Vous êtes sur la page 1sur 16

LIBOREL, Hughes. As fiandeiras. In: BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários.

Tradução
de Carlos Sussekind. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. pp. 370-384.

AS FIANDEIRAS

É ainda com o algodão de Alep, entre nós aproveitado quando muito para fazermos
'bolsas de Rouen', que as fiandeiras da Síria compõem a trama das velhas redes de
pescar coral; mas o fuso requer paciência, e não há nada que a paciência não
consiga empreender. (Mémoires du Baron de Tott sur les Turcs et les Tartares,
Amsterdã, 1785, t.IV, p. 104).

A origem, nossa origem, essa sensação de alheamento que se apossa de nós à medida que
procuramos circunscrevê-la, está sempre a dissimular-se através de silêncios e densas sombras. O
Homem, para distanciar-se dessa origem, trilhas de Conhecimentos e estradas de Re-conhecimento.
Ele teve que inventar sua própria história a fim de separar-se dos deuses a que sentia ligado. A
história humana começou com os mitos; e, dentre todos, aquele que nos prende ainda à dinâmica
imaginária mais fecunda é o mito das Fiandeiras. Primeiras figuras de caráter divino, elas
alimentam a inesgotável compreensão do desenrolar de toda existência, enquadrada pelo
nascimento e pela morte. Quando refletimos sobre os estados de existência, quando refletimos sobre
o que os liga entre si, sobre o que faz com que nos sintamos, nós humanos, pertencentes a um
princípio de anterioridade, somos compelidos a retornar a níveis mais profundos do nosso
entendimento, onde surgem as leis periódicas da sucessão temporal. É lá que sessas divindades das
águas celestes, em primeiro lugar, fazem cair chuva e orvalho. As substâncias da Natureza são
apreendidas como um tecido. As deuses extrairão a essência graças às suas características de
fiandeiras. A natureza sagrada do número - três - parece remontar às estações do inverno, a
primavera e o verão, que eram as únicas distinguidas pelos povos antigos. Mais imbuído de um
senso de temporalidade, o Destino, inelutável em Homero, faz evoluir a figura da Moira única para
a tríade de irmãs. Das Cárites à Horas, das Graças às Parcas, e até as Nornas, a criação dessas
divindades servirá para lembrar que estamos no mundo e que aqui estamos sujeitos à Morte
imutável.
No alvorecer do mundo, portanto, a feminilidade se ativa e fabrica. E suas primeiras atribuições
acham-se, por inteiro, contidas, na arte de fiar. Segundo Paul Sebillot, é "em termos de fiação que se
exprime a antiguidade de uma coisa ou sua inverosimilhança". A mitologia grega ao individualizar e
multiplicar a necessidade de participação, [p. 371] dando ênfase aos movimentos uniformes e à
sucessão de vidas circunscritas, expressou tudo isto com gestos de fiandeira.
A fiandeira é confiado o poder de começar e de interromper. Na vida religiosa, na vida dos
cultos e na vida cotidiana, a fiandeira ou as fiandeiras - evoluídas da unicidade à triplicação -
inscrevem no mundo o primado feminino. Elas ameaçam a soberania e a potência do próprio Zeus.
O destino humano que elas tecem e dirigem não pode ser modificado pelos deuses.
Em que consiste esse poder das fiandeiras? Até onde se estende? Reservaremos, no presente
estudo, um amplo espaço aos gestos e aos utensílios da fiandeira, mas também à sua dimensão
simbólica: o que liga as fiandeiras ao tempo, o que as torna dependentes entre si e faz delas
representações do feminino cotidiano guardiãs da divina fertilidade terrestre, dos cuidados preciosos
de vigília nos períodos do dia e da vida, do rigor inflexível das leis que regem a relação com a
morte, seja de todas as nossas pequenas mortes individuais, seja do desaparecimento em geral.
As fiandeiras divinas deixam-nos na ignorância, tanto de sua beleza, como de sua juventude ou
velhice. Mitógrafos e poetas não nos sabem dizer em que lugar celeste elas se sentam, para fiar o fio
de linho natural. Deusas de origem ou personificações recentes, elas se tornam antes de tudo uma
encarnação da mulher.
Tanto podem evocar-nos a Deusa Tríplice como estar associadas aos Infernos ou à lua. Trindade
santa ou ambígua, que preside a ritos conjuratórios, a partos ou nascimentos de homem. Serão
também mulheres com capacidade de desejo? As Fiandeiras e o desejo; será isso o que faz a
tradição gloriosa, presente em todos os povos, de pôr as mulheres para fiar, depois para tecer e
costurar?
Nossas considerações sobre o mito das fiandeiras levarão em conta a luza que sobre ele lança
hoje a psicanálise. Do surgimento como símbolo à atividade doméstica habitual de fiar, tentaremos
também fixar a marca de um feminino que, para nós, homens, funciona como um energizador de
nossos trabalhos e nossos dias.

O gesto e o utensílio

Recentemente, ao revelar a existência, entre outros instrumentos e atributos do artesanato


primitivo, dos discos perfurados utilizados à maneira de pequenos fusos, a arqueologia demostrava
que as mulheres do lar, bem antes do final do quinto milênio antes de Cristo, fiavam e teciam. Para
algumas, essas atividades feitas com a roca eram sua única fonte de subsistência. Foi, portanto, em
épocas mais antigas que aquelas da fabricação de cerâmicas, que o fuso assumiu seu lugar entre os
objetos de uso doméstico, de que serviam exclusivamente as mulheres. Ele difundiu-se ao longo de
toda a orla da bacia do Mediterrâneo, nas velhas aglomerações da Europa central e oriental, nas
terras da Ásia ocidental, na Índia inteira; suas origens indo-europeias parecem, doravante,
confirmadas.
Como acontece com outras especialidades, seria da maior conveniência circunscrever o campo
primitivo da tecnicidade da arte de fiar. Em sua obra Le fil du Temps, Ethnologie et Préhistoire,
André Leroi-Gourhan fornece-nos dados apropriados a refundir o que historicamente pensamos da
evolução mesmas das técnicas, cujos símbolos e estética ele nos convida a conceituar de outra
maneira.
O gesto e o utensílio da fiandeira-artesã se situariam no prolongamento espacial do corpo dessa
última, tal como a tradição nos deixa entrever. Gesto e utensílio trabalham no sentido de uma
corporificação do espaço. Engendram-se mutuamente. Com o muto, eles se fazem presentes desde a
origem: objetos escolhidos, mostrados com precisão e em definitivo. Objetos fixos que se deslocam
em círculos repetidos, sempre os mesmos ao longo do tempo. Objetos do trabalho que anulam o que
há de fugar e de aleatório em todos os outros gestos.
Uma leitura atenta de L'homme et la Matière [O homem e a matéria], de Gourhan, leva-nos a
formular novas perguntas sobre as possibilidades de pensar, adquirir, de agir, de criar, que abrem
para esse corpo, esse corpo de mulher que trabalha, que fia.

Do fuso à roda de fiar

De forma mais precisa, os gestos das fiandeiras são exatamente aqueles que animam o corpo a
fazê-lo fabricar. Fabricação e torção do fio produzem em operação contínua um fio resistente ou
muito fino, o mais longo possível. As atividades principais da fiandeira constituem um campo de
ações originalmente limitado, [p. 372] que se restringe voluntariamente ao que envolve, de início, a
preparação e a torcedura das fibras. Depois, operações mais precisas, em número de três, entram na
fabricação do fio. A começar pelo estiramento, que consiste em apanhar da massa de fibras
preparadas alguns fios que arrastarão consigo outros elementos residuais. Em seguida, a torcedura,
ação de fazer girar o fuso para imprimir à massa um movimento de torção que resultará no fio. E,
por fim, o enrolamento do fio.
Os Destinos ou Moiras fiam o linho. É uma fibra que, por atrito, se esmiúça, as partes separadas
sendo depois tornadas maleáveis. Desde tempos remotos, na vida doméstica, as fibras naturais
utilizadas - o linho, o cânhamo, a urtiga têxtil - requerem ser maceradas, atritadas e penteadas. Aos
trabalhos de preparação sucedem as manipulações propriamente ditas que põem em funcionamento
o instrumental relacionado com a fiação. Plínio foi bastante preciso na descrição desses processos.
Na técnica de fiar tanto ressaltam com evidências as qualidades de um bom fio como os defeitos de
um fio que não presta.
Voltemos, agora, à divisão original em que se funda a técnica de fiação, que conduz a uma
aproximação com o número ternário das Moiras. O conto alemão As três fiandeiras ilustra bem esse
tema. À uma mocinha preguiçosa que não quer fiar, promete-se que se casará com o filho da Rainha
quando acabar de fiar todo o linho que encher três aposentos do palácio. Ela leva três dias para
perceber o caráter irrealizável da tarefa. Três mulheres aparecem, então, em seu socorro:

A primeira fiava a estopa e fazia girava a roda, a segunda molhava o fio, a terceira
o torcia e o apoiava sobre a mesa com o polegar. A cada golpe do polegar, caía no
chão uma meada do mais fino linho.

Os três dias, as três mulheres pareces ser uma referência à tríplice unidade do tempo e do
espaço, bem como aquela do corpo que fia. Um fio se faz em três tempos (operações) e o corpo
deve adaptar-se, em três gestos ou atos diferentes, a essa divisão técnica. É a complementaridade
dos tempos e dos gestos de fiar que, no mito das Fiandeiras, daria ao número três seu caráter
mágico-religioso. Três sequências e posturas para anunciar o estado de comunhão, de totalidade, de
perfeição. O lugar importante que os utensílios da fiandeira ocupam no ritual e na tradição
populares bem demonstram seu valor emblemático para a vida doméstica. Elas inscrevem a fiação
no tempo como uma antiga atividade de mulher; e sua tecnologia não evoluiu grande coisa, no
tocante ao artesanato, desde as Parcas fiandeiras descritas por Aristófanes.
Escavações recentes feitas na cidade de Gdansk, na Polônia, põem por terra a noção
convencional de que a única forma de fiação seria aquela do fuso. H. Th. Horwitz distingue,
ademais, em sua obra Die Entwicklung des Spinnens [O desenvolvimento da fiação], oito tipos de
fiação. De todos os instrumentos que utiliza a fiandeira, o fuso é, sem dúvida, o primeiro a ter
surgido. Sua aquisição fez com que a fiandeira artesã passasse a não mais torcer o fio com os dedos
e não mais enrolá-lo entre a palma da mão e a coxa. Com isso, parece-nos, o corpo da fiandeira
liberta-se, em parte, de um conjunto de instrumentação e fica disponível para conceber aquilo que
se apóia o movimento circular próprio. Primeiro recuso mecânico a ser inventado, o fuso garante,
desde a origem, de maneira completa e diferenciada, as três operações de fiação. Fazer girar o fio
consiste geralmente em deixar o fuso pender, livre, da ponta do fio (de que resulta uma rotação lenta
e regular deste), ou então em lança um tipo de fuso fixo no fundo de um recipiente ou sobre a terra.
Com grande velocidade o fuso gira durante certo tempo sobre essa terminação em agulha, até ir
ficando cada vez mais lento e parar.
Com a roda de fiar, a fiação torna-se contínua, regular e o ofício da fiandeira beneficia-se em
tempo e em qualidade. Tal como o fuso, a roda de fiar também apresenta numerosas variantes; o que
estabelece a diferença técnica entre os vários tipos é o número de cordões que fazem tração da roda.
A roda de dois cordões é o modelo mais antigo: um dos cordões puxa um volante, como uma roda
motriz; o outro, também ligado ao volante, tem a função de puxar o fuso. Dessa combinação resulta
o enrolamento do fio, que se deve a um desencontro de velocidades e é produzido pela diferença de
transmissão. No tocante à tecnologia, a roda representa o desencadeador da mutação [p. 373] e da
invenção do gênero humano. Representará ela para a fiandeira a inauguração de uma inteligência
nova que lhe permita a criação de uma instrumentação também nova, capaz de assegurar o
desenvolvimento de seu ofício? A roda de fiar viria a ser o primeiro elo de uma série de associações
instrumentais complexas destinadas a saciar o desejo humano de aperfeiçoamento. Na Renascença,
por exemplo, Leonardo da Vinci propõe, em seu Codex Atrantico, um processo de fiar os têxteis
mais em voga na sua época.
Foi uma talhador de pedra e escultor de Watenbüttel quem inventou a roda de fiar em 1530,
segundo está mencionado na famosa crônica de Brunswick-Lüneburg. O instrumento evoluirá para
a roda de pedal, e a revolução industrial não reduzirá de modo significativo sua implantação na
Itália, Hungria, na Polônia.
Sem pretender associar a vida dos objetos à vida dos seres vivos, sentimo-nos tentados, em face
da evolução da roda de fiar, a levantar a questão da vontade criadora na fiandeira. Nas relações
entre os diferentes tipos de rodas de fiar e sua organização específica localizada, poderíamos
localizar os começos de uma identidade sociocultural em que as mulheres teriam decidido reter o
ofício de fiação exclusivamente para elas?

"Vem fiar na minha roca"

Na mitologia grega, a integridade da cidade devotada ao culto de Atena é garantida pelo


Paládio. Na estátua da mágica Atena, além dos emblemas de suas virtudes guerreiras estão presentes
também uma roca e um fuso, em sinal de reconhecimento pelas atividades em que se apoia a vida
da cidade: artes domésticas e habilidade manual. Trata-se, igualmente, de metáforas materializadas
do desenrolar dos dias, do final da fiação quando a roca ficará vazia, dos dias contados que
transcorrem impassivelmente. A primeira representação da roca está figurada no manuscrito
espanhol Ibrabanus de 1023; mas Paul Sebillot nos faz lembrar, em seu Légendes et curiosités des
métiers [Lendas e curisiosidades sobre os ofícios], o grande papel desempenhado, em quase todas
as épocas, por esse precioso objeto na iniciação e nas atribuições da mulher, em geral. Entre os
gauleses, uma roca com linha era entregue à recém-casada, diante da deusa Meelênia, e ela fiava
por alguns instantes. Nas Landes, a roca era levada no dia de núpcias por uma velha, que muitas
vezes se colocava durante a cerimônia entre o noivo e a noiva. Entre os presentes que se ofereciam
à moças, durante muito tempo as rodas de fiar as rocas foram os preferidos. Segundo Mme d'
Aulnoy, as fadas que prestaram serviços à Princesa Printanière receberam rocas de cedro de fiar da
Alemanha. Noutras épocas e noutros lugares - como na Bretanha - são os apaixonados que
presenteiam suas bem-amadas com uma roca de madeira trabalhada em que se acham esculpidos os
emblemas, as divisas e os nomes daquelas a quem é feito o oferecimento.
Quando morre uma senhora de alta linhagem, depois de uma vida de de devoção religiosa e
devotamento aos trabalhos domésticos, sua roca é a único objeto que a acompanha à sepultura,
sendo ali depositado pelos vivos como propriedade privada que só pode prestar serviços àquela que
se vai. Acaso deveríamos ver aí, também, uma remanescência do que perdura entre todos os povos
desde o neolítico: a crença de que os mortos têm as mesmas necessidades que os vivos?
Tecnicamente, nas práticas artesanais, o modelo mais antigo de roca ao qual temos mais fácil
acesso em nossos dias é a roca com suporte, cuja manga a fiandeira prendia à sua cintura; a retorção
fazia-se então com a ajuda de um fuso de gancho, assim chamado porque era provido de um gancho
na parte de cima.
Como bem demostram os exemplares conservados em numerosos museus - dos quais o mais
bem servido é o de Cluny, com sua coleção de rocas de madeira trabalhada -, durante séculos as
principais ocupações da mulher centraram-se na fabricação do fio. É uma atividade que vale por um
ato de iniciação entre as mulheres, do qual achava-se excluído qualquer homem. As fiandeiras, ao
longo das vigílias em que se entregam à sua ocupação fora do alcance dos olhares masculinos,
falam, evocam, cantam. São práticas que inquietam e fascinam. Fiando incessantemente, a fiandeira
construiria [p. 374] para sia a possibilidade de introduzir-se num outro mundo. Seria aquele do
sagrado, que se mantém sempre para além do mundo profano?
O Evangelho das rocas

Nos contos, essa iniciação é demarcada pelas provas por que a heroína deve passar:

No dia seguinte, ela é mandada ao campo. Recebe a filaça, uma roca e um fuso
para que se ocupe enquanto toma conta dos carneiros. Ela vai buscar sua roda de
fiar que fia sem precisar de ajuda de ninguém. Põe a filaça sobre a roda, a roca do
lado, e a roda vai fiando enquanto ela cuida dos carneiros. Ao cair da noite,
desenrola o fio que teceu no fuso e o leva para casa (Tipo 531 B, versão 4 do
Catálogo Delarue).

A ascensão da moça continua ligada à aquisição da roda de fiar mágica, que lhe permitirá o
encontro com o filho do rei. A versão nivernesa do conto da Borralheira apresenta uma heroína que
"era uma boa trabalhadora e, à noite, vinha com uma produção de sete fusos de fio (...)". Ela
encontra fadas que a ajudam na árdua tarefa. As representação da fiação, no conto, revelam em
primeiro lugar as competências mágicas, quase intercambiáveis, entre a fiandeira e seus utensílios.
A conjugação de seus esforços, contribuem sempre para o cesso da fiandeira à paz, à felicidade, ao
amor. O caráter iniciático dos trabalhos da fiandeira parece-nos ser ainda acentuado pelos locais ou
pelos momentos em que eles se desenrolam.
Arqueólogos e mitólogos afirmam que não se sabe em que circunstâncias (momento e lugar) os
Destinos fiam, mas nos contos e lendas, a tardinha e o cair da noite são os momentos preferidos.
Sozinha ou com algumas companheiras, a mulher fia junto ao fogo, à espera de um feliz
acontecimento, enquanto vela pelos rebanhos no campo. Por outro lado, como as fiandeiras adoram
sempre os mesmos lugares e as mesmas posturas para fiar, adquirem uma reputação que lhes fará
cumprir outros papéis e outras funções. Serão santas ou feiticeiras, no Delfinado, serão mulheres de
vida desregrada, prostitutas mesmo.
O Evangelho das rocas apresenta usos e costumes das fiandeiras com poderes sobrenaturais. O
ingresso dessas matérias na literatura leva-nos a indagar sobre a associação de tais crenças a
revelações e, portanto, sobre o papel de profetisas que se atribuiria às fiandeiras. Resta saber em que
medida o que escrito nessa obras seria como que o eco multiplicado de uma voz que se pronunciaria
de outra dimensão. Será a voz de Deus ou das fiandeiras que promete a mulher arranjar-lhe marido,
prendendo os pés dele no fio produzido num dia de trabalho e estendido diante de sua casa?

A emboscada da aranha

Começa o fio, começa o ato de fiar, e logo se põem em movimento os poderes que possui a
mulher, qualquer mulher, E o que desencadeia a própria ação, como o linho natural recebido em
toscos emaranhados que serão desfiados, desenredados, torcidos, enrolados. Acaso não será por
esses movimentos de endireitar e enrolar, inerentes à operação de fiar, que nos damos conta de estar
contido em qualquer pedaço de fio um trabalho começado, cuja unidade se baseia num
entrelaçamento? No conto, particularmente, o fio é o vínculo e o caminho, e aquela que o fabrica
marca nele etapas e entroncamentos. Citando ainda Paul Sebillot, podemos dizer que a fiandeira é
meio mulher meio bicho: virgem e aranha, ela tem poder sobrenatural. É à noite que ela fia, para
que no dia seguinte o tempo seja bom e as teias de aranha não deixam ver os objetos sagrados
(alusão à teia de aranha, que feita da noite para o dia, numa gruta, escondeu Nossa Senhora em sua
fuga para o Egito? N.T). O fio-de-Nossa-Senhora (nome brasileiro dado a uma ranha do campo, em
francês filasse de la Vierge Marie) é um exemplo, entre muitos, dos termos mágicos que associam
na imaginação dos povos a fiandeira, a fada, a arquiteta dos movimentos mais antigos. O gio não
tem começo nem fim. Se el romper por vontade divina, no ponto de sua ruptura ou fragmentação ele
pode reatar-se também.
O fio realiza ou confere poder de realizar associações de elementos os mais antitéticos. [p. 375]
É o vínculo entre o abstrato e concreto, e fiar é engendrar um a partir do outro num vaivém
contínuo. Noël du Fail evoca, na tradição provinciana, o papel de penitentes que desempenham
certas fadas, cuja presença é assinalada por um fio estendido junto às nascentes. Se uma jovem do
Lavedan apanha e enrola rápido esse fio, a fada liberta-se e confere à moça o poder de utilizar sua
varinha mágica.
Atos e gestos próprios do trabalho de fiar são também provas de força, impostas como parte da
formação de uma mulher, correspondendo a um período de autoformação afetiva e sexual. Trabalho
que, não obstante a aparente imobilidade e solidão em que se executa, afeta por inteiro o corpo da
mulher-fiandeira, nele implantando o desejo. Em meio ao tédio e à tristeza de ser só, uma velha
fiava de noite junto à lareira. Pela chaminé despencam diante dela primeiro dois grandes pés, depois
as pernas seguidas pelo resto de um corpo que vai tornar o seu tão desejado companheiro. Essa
versão que aparece numa velha lenda inglesa ilustra, como outra, o simbolismo sexual.
A fertilidade e a fecundidade encarnadas pelo corpo da fiandeira não podem ser evocadas em
que lembremos o que se generaliza na expressão tão popular da "mulher em trabalhos [de parto]".
As produções ligadas à arte de fiar são as primeiras a assegurar o traço de união entre trabalho e
sexualidade. Essa sexualidade, de início sentida confusamente, depois formulada em termos tanto
individuais como universais, leva-nos a estabelecer o mito propriamente das fiandeiras, localização
de uma origem, localização mitológica. Localização de origem: lugar de engendramento dos outros
lugares próprios dos corpos das mulheres; sexos da renovação da vida e da instauração da
imortalidade, transcendente a toda destruição.

As moiras e o fio do destino

O fuso, utensílio-instrumento da fiandeira, foi o primeiro a simbolizar a lei do Eterno Retorno.


Segundo Platão, o fuso da Necessidade regula o conjunto cósmico, autonomiza a balança da vida e
da morte. Do estado de ser uma à triplicação inaugural, as Moiras fundam o mundo feminino, na
medida em que ele é representação da periodicidade, da renovação, da transformação, da ruptura e
do nascimento. O ciclo - movimento uniforme e rotativo - é então o gesto de ligação entre as
Moiras; ele engendra todos os outros gestos exigidos pela fiação para recuperar cada um deles em
sua precisão e em sua unicidade. As Deusas-Fiandeiras começam e interrompem: o fio, também,
que elas fabricarão e romperão com bem lhes aprouver, investe-se do mesmo temível poder. As
Moiras, desde muito cedo na religião helênica, com altares consagrados em Atenas, Esparta,
Olímpia, Tebas, aliam o sagrado e o humano.
No fuso ou na roca, elas fiam o destino dos homens. Não se deixam demover em suas decisões
pela insistência dos pedidos desses homens e dos deuses. Nem jovens, nem belas, nem velhas, nem
feias, as fiandeiras divinas são filhas da noite. filhas de Têmis e de Zeus. Permanecem estranhas ao
mundo olímpico, diversamente de sua mãe que é la admitida. Com Zeus, elas ora se encontram sem
situação de dependência, ora de oposição. Ninguém sabe onde nem quando transcorrem seus
trabalhos. O fio do destino, como se vê, nasce do mistério.
Até o último século da civilização helenística, as Fiandeiras são a Lua Tripla, à semelhança de
Ísis, e é em torno dessa figura que se forma o sincretismo religioso na Grécia arcaica. De forma que
seu mito é a imagem do Único, que nada é capaz de embaçar. Mulheres inflexíveis, elas fiam o
destino como suas irmãs, as Parcas ou as Horas, em sua túnica branca tecida de fio de linho.
Cloto é a fiandeira propriamente dita, Láquesis mede o fio, Átropos é aquela a quem não se
pode escapar. Elas intervêm, quando e como bem entendem, na vida de cada um. Todas três terão
atravessado as primeiras instâncias da oralidade de nossa humanidade, deixando em contos e lendas
um fundo inalterável que é sua marca.
As cantigas de província, os percurso figurativos da poesia, os fluxos de um lied
transfiguradores dos gestos - poucas são as obras humanas, artísticas e literárias, que em seus
fundamentos escapam ao movimento imitado da pequena máquina de fiar. Ainda hoje, [p. 376] nas
culturas orais, o que se estende e se aparenta às Moiras como retratos muito fiéis - Laima e as
Nornas - faz aflorar tão profundas semelhanças entre essas nobres figuras que é sem geral muito
difícil, para os não-especialistas, distinguir os motivos de origem grega daqueles de origem
escandinava ou eslava.
Voltemos então ao número triádico: signo primeiro da tri-unidade do divino, segundo Georges
Durnézil, esse número é universal e exprime a tripartição, na ordem social, das funções de
sacerdote, guerreiro e produtor. É o número áureo de acordo com o qual as Fiandeiras ordenam seu
grupo. Elas são a face multiplicada do poder divino. A forma triádica em que se distribuem
reproduz-se em muito outros modelos culturais e cultuais, quer se trate da Trindade Cristã, do
"Raio-Trovão-Relâmpago" ou do Deus supremo em três pessoas - o pai (justiceiro), o filho mais
velho e o filho mais novo (alimentador da humanidade) entre os antigos peruanos.
Desde seu surgimento, essa representação ternária das Fiandeiras fascinou poetas e filósofos.
Homero as faz aparecer na Ilíada, Plotino as conceitua nas Enêadas. O número, benéfico ou
maléfico, parece ser favorecido a sorte do tema, e as Fiandeiras, ao longo dos tempos, serviram
como musas para a literatura, a pintura e a música. Continuam a servir como tais para a nova arte do
cinema. Freud, sob o símbolo dos "três escrínios", em seus Ensaios de psicanálise aplicada,
rememora-nos os estreitos laços que unem Moiras, Graças e Horas, fundamentando-se aí para uma
interpretação das escolhas que achamos difíceis de fazer. Numerosos autores e historiadores
procuraram focalizar situações hipostáticas, fixando um paralelo com as atitudes posturais das
deusas que estamos tratando, definindo tais situações por analogia com o ritual de seus gestos
divinos, encontrando assim aspectos mais reconhecíveis daquilo que dá a vida humana as
qualidades requeridas para sua única destinação, que é a morte.
As Moiras, surgidas, numa época e numa ordem muito antigas, são deusas da lei. Elas acham-se
presentes muito antes das leis que pesaram sobre os destinos de Aquiles e de Heitor. São diferentes
das outras mulheres que trabalham o fio, no sentido que inauguram toda fabricação; a própria
essência da redução a toda dualidade no homem. As elaborações que elas provocam são hipóteses.
Funcionam como cibórios para a idéia que elas pretendem expressar. Henri de Régnier, em seu Jeux
rustiques [Jogos Rústicos], escreve: "O Destino teceu nossos dias e nossos anos", personificando
assim a violência universal que consiste, para cada um, em saber sua morte prevista - antes dele e
sem ele.
A fiandeira e o fio instalam-se dentro de nós como os modelos mais ativos de nosso imaginário.
Esses modelos são reativados pelas fadas, sejam elas boas ou más, pois as fadas são da linhagem
das Parcas. Nicole Belmont nelas vê as primeiras atualizações da arcaica figura da Fiandeira.

Penélope e o fio da paciência

Fiar: recomeçar. Esse eterno retorno ao mesmo organiza as metáforas do trabalho interior
feminino. Trabalho do sonho de criação, infinito Fiando, a fiandeira se faz onipotência, ambígua.
Entendemos ser essa a diferença entre a atividade de fiar e aquela de tecer, ainda que muitas vezes o
tecer não seja senão a inevitável consequência do fiar. Tecelãs e costureiras serão sempre as
auxiliares das Fiandeiras.
Penélope tece durante o dia e, à noite, desfaz quase que fio por fio o trabalho começado,
recomeçando, interminável. Durante a noite, Penélope desfia e seus poderes são os da figura inversa
da fiandeira. O trabalho a ser feito é a mortalha destinada ao corpo do velho Laertes. Uma mortalha
para o corpo do pai de Ulisses, talvez representando o corpo de seu próprio pai. E também limite
mortuário para o corpo do esposo cuja ausência já se estende por vários anos. Inevitavelmente, atura
sobre a mortalha o princípio de condensação: ela é sudário e lençol de cama. Lençol de cama para o
morto e para o vivo que repousariam. A escolha de Penélope por esse trabalho feminino singular, a
fim de acalmar seus pretendentes, torna-a a nossos olhos diferente aquela que habitualmente
reconhecemos como emblema da fidelidade conjugal. Tecer, fiar dão-lhe tempo para fabricar suas
próprias defesas contra o homem, o esposo [p. 377] e o pai. Para ela, é o tempo de sublimar o medo,
de ver um esposo de volta mas envelhecido e esquecido de seus antigos segredos de alcova. Se
Penélope toma a defesa de Helena, é para tecer argumentações sem sua própria defesa, que
conservarão o selo de sua ambiguidade, que, se dependesse de sua vontade, ela afastaria. Penélope é
ainda uma mulher plena de tentações e de desejos; a precipitação de seus pretendentes decorre
diretamente disso. Por ações não ostensivas, que se furtam aos olhares despertados, ela fixa no
coração uma única imagem: aquela do único homem que ama. Em seu íntimo Penélope é contra ele,
e enquanto prossegue em seu trabalho lança-lhe todas as suas recriminações. É contra ele que ela
constrói, principalmente, sua falta de confiança. Seu esposo poderiam muito bem, como os outros
homens, enganá-la e fazer-se passar por outro. É uma fiandeira prevendo o futuro. Penélope dirá
que Ulisses não tem o direito de zangar-se por ela tê-lo reconhecido tardiamente. Não é que ela
tenha esquecido sua identidade; mais próprio seria dizer que ela a reconstruiu. E reclama para sua
paciência de fiandeira, para sua paciência de mulher, outros direitos, outras considerações.

Uma fiandeira ao sabor da corrente

O tempo estendido como um rio. Em seu leito, das obras que nele se acumular, emergem
figuras pastorais, ligadas ao séquito de nossas deusas, cuja beleza de antemão se põe fora de
alcance. A pintura criou sósias das Moiras, e os fundos da água, de plantas ou de céus, sobre os
quais elas trabalham, nem as afetam nem pesam sobre elas. De todas, em nossa opinião, La Fileuse
[A fiandeira] de Millet é a mais hierática. Uma única personagem ocupa o quadro inteiro. A
Fiandeira entra como elemento ordenador e subordinador da roda de fiar e da massa de lã branca a
ser fiada. A tela, concebida entre 1850 e 1855, é hoje propriedade do Museu de Belas Artes de
Boston. Se ela nos deslumbra e exerce um fascínio especial em nós ainda hoje, é porque realiza uma
harmonia que se compõe, uma perfeição que obtém, da naturalidade das cenas da vida campestre. A
personagem da Fiandeira, empenhada na lenta revolução da roda de fiar, inclina-se também para
colher o fio, gesto ao mesmo tempo inicial e complementar.
A fiandeira nos fascina desse modo, corpo e movimentos perfeitamente integrados, o cotidiano
e a eternidade completando-se numa luz igual que os unifica, branca e sombreada, velada pela
solidão. Não nos surpreenderíamos se ao captar seu olhar nos deparássemos com a interrogação
sempre vívida quanto ao itinerário a ser seguido pelo fio. Costureiras, uma pastora sentada sobre um
rochedo, tricotando enquanto o rebanho pasta à sua volta, uma criança aprende com a mãe a tricotar,
uma cardadora, uma outra fiandeira da região de Auvergnes - desenhos e águas-fortes em que
François Millet tentou esgotar o mito das fiandeiras.
O tema da Gretchen am Spinnrade [Maria na roda de fiar] situa-se no pólo oposto: espelho da
inquietação e do embuste, onde o verbo da fiandeira se exalta num monólogo majestoso, um
milagre revelado de dentro para fora. Em Schubert, a arte de cinzelar a escrita musical engendra um
de seus mais belos lieds, em que se introduz o ronronar imitado da roda de fiar. Progressivamente, a
voz que acompanha o fio eleva-se, dolorosa, desesperada, até tornar-se um rasgado e impudico grito
de amor. A Fiandeira como que se petrifica no seu desgosto, chegando ao cúmulo da desolação e,
por fim, encerrando seus males de juventude quase que num sopro de voz. Uma paz interior, a
calma da palavra reencontrada depois da aflição, de que ficou uma gravação memorável na voz de
Elizabeth Schwarzkopf acompanhada ao piado por Edwin Fischer. Aqui ainda, para Gretchen, para
a cantora, o tempo de fiar continua servindo a pensar nas fortes dores; tempo de palavras, de
palavras que são como bálsamos.
Tempo curto ou tempo longo, silêncios e gritos: tempo de uma função, sempre a mesma, única -
a mulher fia desde as eras mais remotas. A língua nasceu desse tempo contido o fiar primitivo.
Vozes múltiplas nascidas na cabeça daquela cujas mãos não cessam de ir e vir. Língua primitiva:
mythos e logos. O falar, o escrever em si. Fiar: trabalhos obstinados, tarefas domésticas, obrigações
rotineiras em suas desilusões ritmadas, monótonas que instalam a [p. 378] feminilidade em sua
origem, e fazem dela a única mãe substancial, de que tiramos o fôlego, a ordem, a imitação e o
dizer.
É a primeira cena da representação de uma vida. Não obstante sua permanência, a revelação
sedutora nos deixa diante das mesmas obscuridades, na mesma curiosidade insatisfeita.

O fio do desejo

Ao extrairmos doravante a fiandeira - essa imagem fundadora de todo imaginário - de esferas


reprimidas, descobrimos como que um engajamento no gosto das coisas eternas. A fiandeira mítica
é e fabrica essas coisas. Ela e essas coisas, primeiros objetos do desejo, equivalem-se. Como
desejosa e desejada, o mito, desde sua origem, é uma apresentação da feminilidade; e em seu corpo
côncavo, "em trabalho", é num mesmo lugar que se acumulam o desejoso (o que faz desejar) e o
desejado (objeto que atrai o desejo), o segundo criando-se como que por efeitos de concentração do
primeiro. Se observarmos mais de perto o que seria conveniente chamar de contexto morfológico
dos contos e lendas, são as substituições operantes entre a fiandeira, seus atos e seus atributos que
desenvolvem uma nova configuração. Novas figuras do desejo aparecem. É a do homem,
complementar, necessária, nasce antes de tomar corpo. Muito mais que a fiação em si mesma, seus
agentes e seus produtos é que organizariam esse nascimento do desejo: estado funcional primeiro do
produtor, e também vínculo anterior de união da busca e da satisfação.

- Fie bem fino, mulher, fie bem comprido.


- ...Meu cânhamo aí está, mas não tenho noiva a quem entregá-lo para fiar.

O caráter figurativo do gesto da fiandeira nas versos 7 e 25 do conto da Gata Branca, repletas
de uma repetição de uso arquetípica, ou de uma significação excessivamente materializada pela
ausência, teria como resultado uma exposição não da fiandeira mas da mulher-fiandeira. A
semântica das formas narrativas utilizadas, a nova função textual do relato conjugam-se e
precipitam-se numa voz refletida: o casal - a mulher que fia e o homem amar, amado.
Aquilo que outrora nos era apresentado como uma secreta esperança, rotações e resignação da
heroína fiandeira, transforma-se de súbito em ardentes exaltações, exaltações sonhadas. Vem o
homem, reconhece e dá o seu testemunho de que vê, de que sabe que a mulher produz um fio ativo,
criador, voluptuoso, fecundo.

Era uma vez uma pobre viúva que tenha três filhas. Mantinham-se graças aos
produtos de uma horta em que cresciam couves. A mais velha disse um dia para a
mãe:
- Hoje irei fiar com minha roca na horta, e impedirei o cavalo de comer nossas
couves.
- Faça isso - disse-lhe a mãe.
A moça saiu e o cavalo veio; ela então pegou a roca e bateu com ela no cavalo. A
roca ficou presa ao cavalo, e a mão da moça presa à roca. O cavalo fugiu para as
bandas de uma verde colina.

O conto de A viúva e suas três filhas organiza, na própria forma em que está ordenado o texto,
o campo de desejo da mulher que fia. É a realização de um sonho de moça. Quanto a mãe aceita ter
chegado a vez dela também tornar-se mulher, a filha faz aflorar seus desejos inconscientes,
realizando-os em dois jogos ritualizados: pegar e se deixar pegar, seduzir e deixar-se seduzir. Conto
universal do sonho feminino que reproduz o caminho da idealização à realização. Itinerário da
ferida de amor sempre sempre presente até sua mutação numa cicatriz inscrita como uma chancela.
No conto, é a terceira das filhas-fiandeiras que alcançará o amor, enriquecendo sua experiência com
as provas de morte das suas irmãs. Ela fabricará para si o galã ideal que será o seu. Sem que a
fiação jamais se execute, é a mulher que existe em cada fiandeira e o instrumento-arma utilizado
que explicitam as figuras esperadas; a carga semântica da fiação desloca, ela avança lentamente no
texto, avanço esse que segue as etapas do desejo da fiandeira. É talvez aí, ao momento que passa à
escrita, que o conto rejeita mulher e deusa, para construir o humano feminino. É ao ser decapitado
pela fiandeira que o cavalo sagrado se torna um belo jovem. [p. 379] Essa execução se efetuará por
meio da roca prodigiosa. Assim é que a nova fiandeira fia o fio do encantamento, liame para unir os
corpos separados: o corpo da mulher, o corpo do homem. Mas não se trata de uma união eterna. Ela
precisa ser constantemente recomeçada.
Na profundidade maior que alcança o nosso entendimento, percebemos que a fiação e o fio
estão unidos numa aliança duradoura. Seus movimentos duais, repetidos, ciclos e cadências, têm
como única finalidade cingir a sacralidade uterina.
Segundo Plínio o Antigo, mesmo para o homem seria honroso fiar o linho. Equivaleria isto a
dizer que as criações culturais viris teriam a ganhar se de algum modo se reportassem a um certo
poder enfeitiçador de referência feminina? A nossa escrita seria acaso construída sobre a mesma
falha, ambivalente, aberta, sempre, na rocha da natureza do feminino?
As mulheres, desde nossas Fiandeiras divinas, têm o domínio do fio em toda a sua extensão: o
fio do desejo, o mesmo que elas seguram com uma das mãos, o mesmo que se enrola, se enovela em
torno dos emblemas por elas sustentados com a outra mão. Penélope é cúmplice de Helena, como
Anticléia é cúmplice de si própria. A linearidade do fio e suas circunvoluções determinam a trama
da obra feminina. Ela engendra por efeito do ritmo e de continuidade, infinitamente.

Quando o fio torna-se corpo

Ariadne é uma outra representação de nossas deusas. Ao homem por quem concebeu um
violento amor desde a primeira vez que o viu, ela fez o dom precioso de um novelo de fio. É esse
fio que, desenrolado, lhe indicará o caminho de volta. Ela escapará em sua companhia do inferno do
vaivém; ela o salva do Minotauro, mas será abandonada por ele e morrerá em consequência disso. O
fio mágico de Ariadne merece nossa atenção. É ele que dá a Teseu o poder e os meios de continuar
vivo. Dom quase de imortalidade. O fio é de desejo, de proteção e de conservação. O que Ariadne,
em torca, exige de Teseu é um amor eterno: um vínculo indestrutível que promova a união de seus
dois seres, vínculo tão forte que impedirá essa união. "Quando Teseu saiu do labirinto, coberto de
sangue, Ariadne tomou-o em seus braços e beijou-o apaixonadamente". Não há necessidade de
materializar aqui a representação subjacente do fio. É por estarem ligados um ao outro, graças a
esse fio, que ele retorna para ela. Nessa cena, que representa como que o inverso de um parto,
Ariadne teria sentido, dentro de seu corpo, toda a luta pela vida travada entre o monstro e seu
amado. Ela também materialmente ligada à verga da porta de entrada da caverna na montanha, a
mulher e a mãe nele presentes dirigiram, graças ao fio, de começo a fim, toda a operação de
salvamento. Entende-se que não tenha ficado esclarecido com que precisão se o Minotauro foi
morto a espada ou estrangulado pelas mãos do valente guerreiro: é o espaço imaginário que nos foi
deixado para que pensemos no fio como arama mágica. Assim sendo, o valente combatente não
poderia ser considerado assassino; não teria matado por efeito de uma decisão voluntária. Ele não
passa de um executante. Na ponta do fio de Ariadne, Teseu é um joguete que ela refrabrica e de
cujos gestos ela tem o comando. O fio favoreceria, em Ariadne, a reativação de recordações da
infância. Teseu estaria repetindo o jogo de corpo das bonecas de membros movíveis inventadas po
Débalo e que tanto fascínio exerceram sobre ela e sobre sua mãe, Pasífae. Ariadne puxa os fios do
destino de Teseu no momento do combate com o Minotauro, como ela puxava os fios das bonecas
para fazer com que elas dançassem. O fio estabelece uma ligação, prende. É também o instrumento
do gênio de Dédalo; em muitas ocasiões serve para construir, juntar, consolidar, noutras salva da
morte, noutras mata; ou anima o corpo com um movimento que o destina a apropriar-se do espaço e
do tempo. A diversão de Ariadne quando menina era fazer suas bonecas gesticularem com a ajuda
do fio. Dédalo, ao fugir de Minos, escondeu-se na cidade de Camicos. Lá também fabricou bonecas
para as garotas do lugar. O fio acompanha-o incessantemente em suas invenções. E foi ele que o
salvou ao acertar a adivinhação do "fio passado na concha", que lhe prpôs seu perseguidor. O nome
grego Ariadne significa "a muito sagrada". É ela a "Deusa-Lua" [p.380], a "Muito grande", a "Muito
presente", aquela para quem eram executadas danças iniciáticas e rituais. Danças do fio enrolando-
se e desenrolando-se. Dança de entrecruzamentos. Também nessa esfera Teseu aprendeu com
Ariadne. Em Delos, diante e uma estátua de Afrodite oferecida por Ariadne, ele executou uma dança
circular muito complicada, que representava as sinuosidades do labirinto, as voltas e desvios do fio
divino, talvez uma repetição do combate decisivo que o salvou. Ondulações, curvaturas côncavas e
convexas, meandros do corpo de Ariadne: fio desligado do corpo da mulher, em ondas propagadas,
que punham em movimento o corpo feliz e doloroso do homem. Fio para um corpo imaginário:
enrolando o tempo, distribuindo o espaço até o suicídio por enforcamento, até o suicídio por
precipitação no vazio.
Quando Ariadne foi abandonada na ilha de Dia, uma das versões do mito pretende que ela tenha
se enforcado por medo De Ártemis. Teseu teria sido traiçoeiramente lançado do alto de um rochedo
pelo rei Licomendes.

O fio da viagem

"Aquela que esconde" vive na ilha de Ogínia, que é, segundo Homero, o "umbigo do mar".
Desse local incomparável, privilegiado, à maneira de Circe e de Penélope, a ninfa Calipso fia. Com
sua lançadeira de ouro ela também tece junto à lareira, acompanhada por suas servas, um tecido de
extremo refinamento. Ao produzir os fios maravilhosos, ela também deseja que esses liames que
não deixariam de ser liames sirvam para uni-la a Ulisses, tornando-os esposos, e que esses liames,
confiram imortalidade a ele. Mas Hermes, mensageiro de Zeus, insiste com Calipso para que ela
liberte Ulisses. De modo que a fiandeira tem de renunciar a seu desejo. Calipso transformará o fio
do desejo em fio da viagem. Ela renuncia a seu amante e deixa-o seguir mar afora, mas antes
prepara amorosamente os fios com que serão tecidas as velas de sua embarcação. Fibras animais ou
vegetais, elas enfrentarão por muito tempo todas as intempéries. O poder da mulher que foi capaz
de sublimar rivalizará com aquele de qualquer força natural. Marcel Breal nos apresenta Calipso
como aquela que vela, que se envolve e envolve com brumas. Ela se esconde e ela esconde nesse
centro cósmico onde vive. Representação inversa da aranha, ela também se coloca no centro de sua
teia, mas se atrai para junto de si o homem que ama não é com a intenção de devorá-lo. Esse
"umbigo do mar" poderia ser o local de reinvenção do primeiro estado de simbiose. Renunciando ao
amante, a mulher-ninfa deixa-o partir no outro extremo do fio, um fio altamente flexível e resistente
que o levaria, terminado seu périplo, a novas verdades. O esplendor do tecido que resulta dos fios
de Calipso apresenta-o ao bisso: o linho muito fino, com feixes de filamentos sedosos, que as
crônicas do Livro de Ester designam como uma matéria prima de luxo. O Apocalipse invocou por
duas vezes a desgraça para "a grande cidade que se vestiu de linho". Luxo e luxúria umedeceriam o
fio de Calipso à maneira da secreção saída dos moluscos bivalves, cuja função era unir, fixar.
Aqui o esoterismo do fio, partilhado entre Calipso e Ulisses, ganha sentido e convidaria esse
último a reconstruir também o fio de suas peregrinações. Graças ao fio da viagem, Ulisses passará
por essa última prova sem que a mente venha obscurecer seus olhos.

O fio do sonho

Não é necessário apresentar aquela que o cinema, a sétima arte, chamará sempre de "A Divina".
A simples substantivação de sua principal qualidade de mulher, de atriz, seria bastante para dela
fazer o avatar moderno de nossas fiandeiras. Garbo, como a fiandeira arcaica, tem assento,
hierática, nos arcanos dos tempos. Tão próxima quanto longínqua, esculpida na eternidade de seus
diferentes papéis, protegida voluntariamente de qualquer alteração. No filme A rainha Cristina, que,
na opinião de todos, é o trabalho mais pessoal da atriz. Garbo compõe, como se o fizesse
unicamente para seu prazer e para ajustá-lo a si própria: a mudança de comportamento na
personagem [p. 381] que está incumbida de representar. Em seguida a cena da bela e única noite
com o amante de circunstância, o embaixador da Espanha, ela acorda antes dele e se dá conta de
que teve sua primeira noite de amor. Então, como que multiplicada, tocando com os olhos e com a
pele todos os objetos daquele quarto abençoado, ela se deslumbra com as provas de sua
feminilidade, nascidas da obscuridade e ali reunidas, para si própria e nela própria, longe de suas
obrigações de rainha. No filme, isolada sua imagem num medalhão, ela se vê em sonhos como uma
mulher feliz, fiando tranquilamente no lar. Essa imagem, com efeito, na metade do desenrolar da
obra cinematográfica, realiza a metamorfose de uma rainha. Mulher e amante dedicadas, a nosso
ver, ela transformará a melancolia progressiva em forças naturais de conquistas para o homem de
sua vida, até a morte injusta deste último, até a realização de sua vontade de exílio.
A identificação de Garbo com a fiandeira de outrora, livre só para amar, faz começar sua busca
do universo da felicidade pessoal. Quando, no final do filme, ela embarca no navio que lhe é
especialmente reservado, sofre, sem dúvida, mas também, por outro lado, mostra-se plena de
certeza num prolongamento e numa conclusão para o percurso novo que se abriu em sua vida. No
ponto de confluência, em que se rompem o fio de sua história de rainha e aquele do destino de seu
amante, urde-se um novo caminho, feito ao mesmo tempo de solidão e de esperanças Há que
destacar aqui o símbolo representado pelo nó na fabricação do fio do destino. O fio do sonho
comportaria aqui um nó sem igual que selaria o amor, a vida e a morte. O nó assinalaria um corte no
destino individual, ao mesmo tempo que convidaria a uma continuidade incoercível. O que
igualmente designamos por "nós" na vida da rainha Cristina fará obstrução ao desenrolar dos
projetos de sua Corte, e, como na Idade Média, impedirá que aconteça o casamento entre os dois
amantes.
O rosto de Greta Garbo na tela cria um estranho efeito, como o do corpo da fiandeira antiga:
um estado de carne absoluta ou, ao contrário, um corpo que não é possível nem atingir nem
abandonar. Quando Garbo deixou de povoar a tela com suas fantasias artísticas, retirou-se entre seus
próprios objetos humanos, frágeis, revoltados, seguros, não deixando para trás qualquer
possibilidade de uma imitação de sua personagem.

Em filigrana

Inevitavelmente, o tema das fiandeiras reativa nossos fantasmas do corpo feminino. Voltamos à
origem. Recomeçamos, refazemos o que, por nosso próprio corpo, facilitará sua reinserção, sempre
em falta de renovar-se, num sistema ambivalente de morte e de proteção.
Corpo capaz de leitura, corpo capaz de escrita, que assim fazendo fabrica como que sólidas
cordas. Esse tema nos incitaria a desejar fortemente combinar a anterioridade e o presente. A
realizar a síntese entre tempo linear e tempo circular. Incitações necessárias e estruturantes que nos
levariam à posse de um tempo do início, para nós: nosso tempo próprio. O tempo primeiro do ato
feminino - tempo da fiação - não teria equivalente no masculino. É o tempo da anunciação e da
revelação, o tempo da fertilidade e de seu duplo.
O corpo, voltado para a leitura, para a escrita, iria referir-se ao tema mítico das Fiandeiras e
seria, ele próprio, o fio prodigioso que se fia. O ser em estado de renascimento, como o homem ou a
mulher que traça signos e os lê, faz-se papel selado-fio-palimpsesto. As inscrições: fios de palavras,
nomes, nossos vestígios e traçados de ausência, segundo a expressão das proibições originárias.
Esse estado que consiste em dizer ou em escrever aquilo que só a nos cabe dizer ou escrever,
todo esse nada do qual é preciso fabricar nossa qualquer coisa na conivência do fio e do verbo. É
assim que nos educamos para forçar, em nós, a imagem do outro, para situar o lugar onde desfraldar
nossa própria palavra. Como que em torno de um cilindro de tear, essa palavra se enrola, fio por fio,
torcida, entremesclada. Em torno desses labirintos, arquiteturas iniciáticas de que traçamos nossos
retratos de escritor reportando-os à imagem de uma das Moiras.
A escrita é traçada com os deuses e deusas que o povoam. Essa escrita, o simples entrar na
literatura do Mito, é espelho. Ela reflete a atividade divida e se propaga por contágio. É a escrita-
fiação que nos desfoca do campo significativo e singular de toda evocação e notação, sem nos dizer
jamais qual delas - tropos, Cloto ou Láquesis - nos acompanha. [p. 382]

"De fil en aiguille" [Do fio à agulha]

Ingressados na literatura, a fiandeira e seu fio dão ressonância a velhas fontes e aparecem como
imagens de presságios. O fio, agente que ligar, está presente, sem dúvida, desde as origens, e sob
formas diversas, para associar todo tipo de matérias. Nas florestas tropicais da África ou das
Antilhas, as fibras vegetais que caem das folhagens são as preferidas pelas curandeiras para unir
madeira verde com madeira morta: feixes de lenha para acender seu fogo, feixes de plantas para
preparar remédios ancestrais. As rodilhas que elas acomodam na cabeça para suportar ritualmente
essas cargas pesadas que são rolos dessas mesmas fibras depois de limpas de todas as suas
asperezas, depois de cortadas em comprimentos iguais e modeladas em volta do punho esquerdo.
Em Guadalupe, as velhas mulheres que trabalhavam nos canaviais ou nas plantações em geral,
guardaram por muito tempo, seguindo uma tradição, a primeira rodilha por elas fabricada, como um
fetiche ou um objeto sagrado. As meninas usam esses mesmos cordões vegetais para pular corda;
com elas trançam coroas de noiva que elas enfeitam com flores para os ritos de passagem. Quando
um garoto adoece de coqueluche, sua mãe o faz usar um colar ou pulseirinhas de fio vermelho. O
fio, cósmico, maléfico, protetor ou iniciático, é o fio da história que liga também os mundos e os
estados: mundo visível e mundo invisível; estados de oferecer e de receber um sacrifício. O fio que
engendra o liame, a corda, a trança, o cipó; revela-nos fisicamente o espaço, quando seguimos o seu
rastro, ou o vemos animar-se em vibrações; faz-se símbolo do amor e da dualidade, quando se
enrosca em torno da árvore. Foram formatos helicoidais tão conspícuos nas plantas chamadas
volúveis que chamaram a atenção do homem para o belo movimento circular aberto, desenvolvido a
partir da espiral.
Nas épocas pré-históricas, paliçadas erguidas à base de fibras trançadas já delimitam o
espaço humano, o território individual ou coletivo. Essas obras de cordas vegetais, dão testemunho
de arquiteturas que, ainda hoje, acusam o parentesco com os entrelaçamentos e entrecruzamentos do
fio. São usos do fio com o objetivo de conter, de encerrar; organizam as imensidões terrestres em
séries, dividindo-as em interiores e exteriores.
Através dos tempos, em toda civilização, as construções feitas pela mão homem irão se reportar
sempre a elas. Elas estarão empenhadas em alcançar a perfeição a partir do momento em que
descobrem o eixo-fio que permite a passagem do de dentro para o de fora. O que nosso imaginário
constrói em termos de imagens de vedação, de refúgio, de confinamento ou de intimidade remete-
nos às formas mais complexas dessas construções: às redes, armas temíveis. E também a tudo o que
entrava na vida interior e exterior, tudo o que é difícil e doloroso de desembaraçar, de desatar, de
desfazer - as malhas em nossa vida de um modo geral.
O fio realizou, por si só, como que uma segunda entrada no mito das fiandeiras. As numerosas
expressões que contêm a palavra fio no idioma francês (fil), tanto quanto as próprias atualizações
das fiandeiras, asseguram a filiação entre o fio da palavra e a escrita.
É o caso, por exemplo, da locução "de fil en aiguille" ("do fio para a agulha", que se entende
por "de assunto em assunto", "passando naturalmente de um assunto para o outro"), que já se pode
encontrar no Roman de la rose e que faz alusão ao trabalho da mulher e àquele do fio. Uma locução
que é usada com referência ao discurso que se está tendo. No momento que ela aparece, o discurso
se rompe, ou porque dá um branco na memória, ou porque há um segredo que deve ser escondido
na fala. É uma expressão imprescindível ao narrador para significar, sem fazê-lo às claras, a ruptura
prevista ou inconsciente. Alusão feita à fragilidade do fio da palavra, mas também as possibilidades
de estabelecer, como numa enfiada, pontos de condensação da linguagem. Imagem que condensa o
tempo e a maneira, o momento e o modo das mãos, primeiras mãos, mãos da mãe que fazem, "de
primeira mão", o que não será desatado. Usar a expressão "de fil en aiguille" para um locutor que se
substitui ao leitor ao fazê-lo lembrar-se da primeiríssima figura de toda a sua história (as mãos da
mãe que fazem), tomá-la como referente e reatar o fio (de seu discurso) para continuar a relatar, a
contar, de maneira mais rápida, mais concentrada. A expressão adverbial, fixa, imutável, vale aqui
[p. 383] como fabricação incomparável daquele ou daquela que diz, para tentar talvez uma
apropriação de seu texto narrativo. Essa expressão assegura a emergência do narrador, como ser
ontológico real, de dentro do seu próprio discurso. É também quando se realiza, para o leitor, a
evidenciação imediata de que se acha na impossibilidade de prosseguir com o fio do que está
dizendo naquele exato momento. É também o ponto e a ocasião da não repetição, do não advento
daquele gesto inicial que ele apenas pode ver ou rememorar. De modo que "de fil en aiguille" é uma
ocorrência ímpar na linguagem. Encenação do fio e de seu silêncio. Silêncio de uma condenação
jamais anunciada - a condenação de ser aquele que diz, nunca aquele que faz ou que refaz. Do fio
masculino à agulha feminina, há o laço entre o homem e a mulher, réplica do primeiro que é entre a
mãe e o filho. O que vem a ser o encontro celeste entre a Tecelã e o Bojeiro, o momento do
equinócio, do equilíbrio, da união e da complementaridade que se erigem em filosofia entre o Yin e
o Yang.
Mitos e tradições relacionam os trabalhos de lavrar a terra com aqueles do fio, os mais antigos
em nossas memórias. Esses trabalhos do fio nos sulcos são atos de criação que por muito tempo
fizeram da lã a representação da terra e dos campos cultivados. Porfírio, na Caverna das Ninfas,
estima que o ofício que melhor convém às almas que baixam para o processo de geração é o de
tecer.

Um filete de voz

A locução "um filete de voz" convida-nos a uma outra abordagem quanto ao simbolismo do fio
que fiaria a própria voz, representação daquilo que em nós sairia do obscuro, seria o rastro, o sinal
mais autobiográfico de quem ousa olhar-se interiormente. Os signos vocais, mais do que o olhar,
nos escreveriam incessantemente, e a voz, o filete de voz seria o autorretrato mais perfeito do self.
Para que uma pessoa se siga inteiramente às outras e para que essas outras aprendam a dizer-se
também, seria preciso que começássemos o canto do self pelas encantações do self.
Jean-Jacques Rousseau noas passa grandes lições quando fala do "filete de voz tão doce" de sua
Tia Suson "Afora o tempo que eu passava lendo ou escrevendo junto de meu pai, e as saídas a
passeio com mamãe, eu ficava sempre com minha tia, olhando-a bordas, ouvindo-a cantar, sentado
ou de pé ao lado dela, e muito feliz". Se o poeta lírico ou o artista diz sempre "eu", segundo
Nietzsche, "é porque ele não pára de desenrolar para nós a gama cromática de suas paixões e de
seus desejos". A voz - nossa voz que alimenta a meada com o fio de nossa história; a voz em si
mesma, mágica roca do tempo - convoca-nos incessantemente, também, à escrita do que se
apresenta como gritos e sussurros, chamados e rugidos. A voz segue um desenrolar e marca com sua
assinatura os encontros da pessoa consigo própria, ou com ouvintes-leitores que, ao escutá-la,
reconhecerão, sem sombra de dúvida, a voz do autor. A voz: eco das origens, fia a inocência
essencial do self, dos silêncios eternos.
Retomando o "filete de voz tão doce", das Confissões do filósofo-pedagogo, somos levados a
constatar que a voz, como o fio, é representação ambivalente do passado e do presente. No filete de
voz amada está a própria essência da voz. Por outro lado, é na voz que, à semelhança de uma figura
divina, está a origem de suspiros e estertores, bem como o poder eterno sobre eles. Para Rousseau,
no fio dos tempos, o filete de voz dura toda a vida, amortecido sob novas camadas no fundo das
vozes. É matéria têxtil que reagrupa as palavras, as pausas, consolidando-se num solo de sons que
canta. Voz da velhice, da morte que junta o visível e o legível. Já não dá para escutar, a não ser na
escrita, como um fio que engendra nossa voz e que nós seguimos.
Filete de vozes. Repositório das canções populares, das melodias que os povos têm, em
comum, para as circunstâncias de nascimento e de morte. Espelho musical do Mundo: indivisível
amálgama feito, ao longo dos tempos, dos afluentes de sonhos e de poesias.
"Que lugar pode ser mais propício para tudo o que se queira dizer de terno, num empenho de
todas as forças para imitar a música". O filete de voz, para nós, traça, retraça. É sempre, como o fio,
inacabamento necessário.
O fiar incessante das mulheres, no recolhimento, à noite, para pacificar dramas interiores, foi
motivo da inquietação tanto para os homens quanto para a igreja e a sociedade. Seus [p. 384]
pensamentos secretos, profanos ou sagrados, eram forjados nessas ocasiões, enquanto sonhavam
com um outro caminho na vida, com um outro estatuto social. As fiandeiras pensam e seus
pensamentos se organizam a contrapelo (fr. en contre-fil). Se Joana d'Arc é "relapsa e santa", no
dizer de Georges Bernanos, sabe-se que foi protegida por seu hábito de fiar que ela teria aprendido a
ser "um cordeiro pela humildade", "um leão pela força".
Le Mystère de la Crarité de Jeanne d'Arc [O mistério da caridade de Joana d'Arc], de Charles
Péguy, inicia-se com o cenário, familiar a todos, da heroína Jeannette, de manhã, fiando enquanto
toma conta dos carneiros. Uma imagem habitual que está presente no fundo de nossas memórias. A
obra continua e recheia-se com as convicções da pastora, expostas diante de sua amiga Hauviette de
Madame Gervaise, que a acusa de blasfemar. Descerá a cortina ao som de sua fala "Orléans, qui
êtes au pays de Loire" [Orléans, que estão no país de Loire]. Antes, ela havia retomado os gestos de
fiar.
Em seu livro Christine de Pisan, Régine Pernoud apresenta a poeta a contrapelo, e afirma que
ela não gostava de fiar: as censuras que faz à sua mãe são justamente por ter querido obrigá-la a
ocupar-se com "filaças". Christine contrariou os desejos maternos e seguiu a inclinação do pai - "um
extaordinário apetite de saber”:

l'avoir qui est pris


à la fontaine de grand prix.

[o bem que se adquire


na fonte de precioso valor.]

Bibliografia

ASSOUN, Paul Laurent. Freud et la Femme. Paris: Calmann-Lévy, 1983.

BARTHES, Roland. Mythologies. Paris: Points, 1957.

BRISSON, Luc. Platon, les mots et les mythes. Paris: François Maspéro, 1982.

DARMON, Pierre. Mythologie de la Femme dans l'Ancienne France. Paris: Seuil, 1983.

DEVEREUX, G. Gemme et Mythe. Paris: Flammarion, 1982.

DUCHMENIN, Jacqueline. Mélanges, Visages du Destin dans les Mythologies. Travaux et


mémoires. Paris: Les Belles Lettres, 1983.

ANDREI, Walter. L'évolution des techinques du filage et du tissage du Moyen Age à la révolution
industrielle. Paris: Mouton & Cie, 1968.
EVANS-PRITCHARD, L.-E. La femme dans les sociétés primitives et autres essais d'anthropologie
sociale. Paris: P.U.F., 1971.

LANOÊ-VILLÉNE, Georges. Le livre des symboles. t. VI, "Symbolique du voyage d'Ulysse". Paris:
Librairie Générale, 1937.

LEROI-GOURHAN, André. L'Homme et la Matière. Paris: Albin Michel, 1971.

LEYSSÉRE, M.; VALIÈRE, M. Les jours d'Angles. Paris: Bonneton, 1984.

NIETZSCHE. La naissance de la Tragédie. Paris: Gallimard, 1977.

SÉBILLOT, Paul. Légendes et curiosités des Métiers. Marseille: Laffitte, 1981.

_____. Le folklore de France, t. III, La Faunde et la Flore. Paris: Larose, 1968.

Vous aimerez peut-être aussi