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Clarke
OS NÁUFRAGOS DO SELENE
Tradução de JORGE LUIZ CALIFE
EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A
Título original: A FALL OF MOONDUST
Copyright © 1961 by Arthur C. Clarke
Direitos adquiridos para a língua portuguesa, no Brasil, pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S/A
Rua Maria Angélica, 168 – Lagoa – CEP: 22.461 – Tel.: 286-7822
Endereço Telegráfico: NEOFRONT
Rio de Janeiro – RJ
CIP-Brasil, Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Clarke, Arthur C. CS45n Os Náufragos do Selene / Arthur C. Clarke; tradução de Jorge Luiz Calife. – Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
Tradução de: A fall of Moondust
1. Ficção científica estadunidense I. Título 83-0889
CDD – 813.0876 CDU – 820(73)-311.9
Para Liz e Mike
Capítulo 1
Ser o capitão da única embarcação operando na Lua era um privilégio que Pat Harris
apreciava. Enquanto os passageiros entravam em fila no Selene, disputando os assentos junto
às janelas, ele se perguntava que tipo de viagem faria desta vez. Pelo espelho retrovisor podia
ver a senhorita Wilkins, toda elegante em seu uniforme azul da Comissão Lunar de Turismo,
encenando seu ritual de boas-vindas. Quando trabalhavam juntos, sempre tentava pensar nela
como "senhorita Wilkins", não Sue, recurso que o ajudava a fixar sua atenção no trabalho. Mas
nunca descobrira realmente que idéia ela fazia dele. Nenhum sinal de caras familiares; este
era um grupo novo, ansioso pelo primeiro cruzeiro. A maioria dos passageiros compunha-se
de turistas típicos: pessoas idosas, visitando um mundo que já fora o próprio símbolo da
inacessibilidade quando jovens. Havia somente quatro ou cinco passageiros na casa dos trinta,
provavelmente técnicos em férias, vindos de alguma das bases lunares. Pat descobrira ser uma
regra quase sem exceção que todas as pessoas velhas vinham da Terra, enquanto os jovens
eram residentes na Lua.
Para todos eles, entretanto, o Mar da Sede era uma novidade. Para além das janelas do Selene,
sua superfície cinzenta e empoeirada estendia-se sem interrupções até alcançar as estrelas.
Acima, o crescente da Terra, suspenso eternamente no céu do qual não se movera em um
bilhão de anos. A luz cintilante e azul-esverdeada do mundo pátrio inundava essa terra
estranha com uma radiação fria – e de fato essa terra era fria, provavelmente trezentos abaixo
de zero nas superfícies expostas.
Ninguém poderia dizer, com um simples olhar, se o Mar era líquido ou sólido.
Completamente plano e sem marcas, não possuía as incontáveis fendas e rachaduras que
marcavam todo o resto desse mundo desolado. Não havia um só montículo, rocha ou
pedregulho que interrompesse sua uniformidade monótona. Nenhum mar da Terra, nem mesmo
um charco, seria tão calmo quanto este.
Era um mar de pó, não de água, e portanto estranho a toda experiência humana, o que
explicava o fascínio e a atração que exercia sobre as pessoas. Fino como talco e mais seco,
neste vácuo, que as areias crestadas do Saara, fluía tão facilmente e sem esforço quanto
qualquer líquido. Um objeto pesado, ao cair, desapareceria nele instantaneamente sem nenhum
esguicho, sem deixar nenhuma marca de sua passagem. Nada poderia mover-se sobre esta
superfície traiçoeira, exceto os pequenos esquis de pó para dois homens e o próprio Selene,
uma inacreditável combinação de trenó e ônibus, não muito diferente dos Gatos da Neve que
no passado haviam desbravado a Antártida.
A designação oficial do Selene era Cruzador do Pó Mark I, embora, para o conhecimento de
Pat, não existisse um Mark II nem nas pranchetas de desenho. Ele era chamado de navio, barco
ou ônibus lunar, de acordo com a preferência. Pat escolheu "barco" para evitar confusão.
Quando usava esta palavra ninguém o tomava por um capitão de espaçonave – e capitães de
espaçonave, é claro, havia de sobra.
– Bem-vindos a bordo do Selene – disse a senhorita Wilkins, depois que todos se sentaram. –
O capitão Harris e eu estamos felizes de tê-los conosco. O nosso passeio terá a duração de
quatro horas e o primeiro objetivo será o Lago Cratera, a cem quilômetros a leste daqui, nas
Montanhas da Inacessibilidade...
Pat quase não ouviu a apresentação familiar, pois estava ocupado com a contagem regressiva.
O Selene era virtualmente uma espaçonave de solo; tinha de sê-lo, uma vez que viajava no
vácuo e precisava proteger sua frágil carga contra o mundo hostil além de suas paredes.
Embora nunca deixasse a superfície da Lua e fosse impulsionado por motores elétricos em vez
de foguetes, carregava todo o equipamento básico de uma completa nave do espaço. E tudo
devia ser checado antes da partida.
Oxigênio – O.K. Força – O.K. Rádio – O.K. ("Alô, base Arco-íris, Selene testando.
Estão recebendo meu rádiofarol?") Navegador inercial – zerado. Segurança da escotilha –
ligada. Detector de vazamentos na cabine – O.K. Luzes internas – O.K.
Passarela – desconectada, e assim por diante, mais de cinquenta itens, cada um dos quais
chamaria a atenção de forma automática em caso de problemas. Mas Pat Harris, como
qualquer espaçonauta que desejava atingir a velhice, nunca confiava em alarmes automáticos
quando podia verificar pessoalmente.
Afinal estava pronto. Os motores quase silenciosos começaram a girar, mas as pás das hélices
ainda estavam em passo-bandeira e o Selene apenas estremecia no ancoradouro. Regulou o
passo da hélice de bombordo e o "barco" começou a virar lentamente à direita. Ao distanciar-
se do lugar de embarque colocou-o num curso retilíneo e empurrou os aceleradores para a
frente.
O "barco" se portava muito bem, considerando-se a novidade de seu projeto. Nele não havia
milênios de tentativas e erros, fazendo voltar ao primeiro homem neolítico que lançara uma
tora na correnteza. O Selene era realmente o primeiro de sua linha, criado nos cérebros de um
pequeno grupo de engenheiros que se haviam sentado diante de uma mesa para se
perguntarem: "Como vamos construir um veículo que deslize sobre um mar de pó?"
Alguns deles, pensando no velho Mississípi, queriam fazer uma barcaça com roda de pás na
popa, mas as hélices submersas, mais eficientes, haviam prevalecido.
Enquanto perfuravam através do pó, impulsionando a nave para a frente, elas deixavam uma
esteira semelhante a uma toupeira em alta velocidade, mas este rastro desaparecia em
segundos e o Mar se tornava imaculado, sem qualquer sinal de sua passagem.
Agora os domos pressurizados de Porto Roris mergulhavam rapidamente por trás da linha do
horizonte. Desapareceram em menos de dez minutos: o Selene estava inteiramente só, no
centro de alguma coisa para a qual as línguas humanas não tinham nome.
Pat desligou os motores e a embarcação deslizou até parar. Esperou o silêncio crescer ao seu
redor – era sempre o mesmo. Os passageiros demoravam um pouco a perceber a estranheza do
que havia lá fora. Eles tinham cruzado o espaço e visto as estrelas ao redor; haviam olhado
para cima – ou para baixo – descobrindo a fascinante face da Terra, mas isto era diferente.
Não era terra, mar, ar ou espaço, mas um pouco de cada coisa.
Antes que o silêncio se tornasse opressivo – se durasse muito alguém podia se apavorar -, Pat
levantou-se e olhou com atenção os seus passageiros.
– Boa noite, senhoras e senhores – começou. – Espero que a senhorita Wilkins os tenha
deixado confortáveis. Paramos aqui porque é um bom lugar para apresentá-los ao Mar, para
dar a todos a sensação de como ele é.
Apontou para as janelas e para o cinza fantasmagórico que jazia além.
– A que distância – perguntou calmamente – vocês imaginam que está o nosso horizonte? Ou,
em outras palavras, de que tamanho um homem apareceria se estivesse de pé lá onde as
estrelas parecem encontrar o solo?
Era uma pergunta a que ninguém poderia responder baseado apenas na evidência fornecida
por seus olhos. A lógica dizia que a Lua é um mundo pequeno, portanto o horizonte deveria
estar muito próximo. Mas os sentidos tiravam uma conclusão totalmente diferente: esta terra é
absolutamente plana e se estende até o infinito.
Ela divide o universo em dois, e gira para sempre abaixo das estrelas.
A ilusão permanecia, mesmo conhecendo-se sua causa. O olho não tem meios de calcular
distâncias quando não há nada para focalizar. A vista deslizava e escorregava desamparada
neste oceano de pó. Aqui nem mesmo havia, como ocorre na Terra, a névoa da atmosfera para
dar a idéia de distância ou proximidade. As estrelas eram pontos de luz que jamais piscavam,
visíveis até aquele horizonte indeterminado.
– Acreditem ou não – continuou Pat -, cada um de vocês pode ver apenas três quilômetros, ou
quase duas milhas, para os que ainda não se acostumaram ao sistema métrico. Eu sei que
parece um par de anos-luz daqui até o horizonte, mas vocês poderiam andar até lá em vinte
minutos, se alguém pudesse realmente caminhar nesse negócio.
Voltou para o seu assento e ligou novamente os motores.
– Nada para ver nos próximos sessenta quilômetros – avisou por cima do ombro. -
Assim vamos nos colocar era movimento.
O Selene lançou-se à frente e pela primeira vez havia uma sensação real de velocidade. A
esteira do barco tornou-se mais longa e revolta, enquanto as hélices mordiam com violência a
poeira. Agora a própria poeira estava sendo lançada por ambos os lados em dois grandes
penachos fantasmagóricos. Visto de longe, o Selene parecia um limpa-neve atravessando uma
paisagem invernal, sob a gélida luz da Lua.
Todavia, aquelas imagens cinzentas, caindo lentamente, não eram feitas de neve, e a lâmpada
que iluminava suas trajetórias era o planeta Terra.
Os passageiros relaxaram, apreciando o passeio calmo e quase silencioso. Cada um deles
viajara centenas de vezes mais rápido em sua jornada até a Lua. Mas no espaço não se tem
noção da velocidade e esta corrida através do pó era muito mais excitante. Quando Pat girou o
Selene numa curva fechada, fazendo-o orbitar num círculo, ele quase ultrapassou as cortinas
de pó lançadas por suas hélices. Parecia errado, antinatural que esta poeira impalpável
pudesse subir e cair em curvas tão perfeitas, sem nenhuma resistência de ar. Na Terra ela teria
flutuado durante horas, talvez dias.
Assim que o barco voltou ao curso normal e não havia mais nada para olhar além da planície
vazia, os passageiros começaram a ler o material cuidadosamente preparado para eles. Cada
um recebera um folheto com fotografias, mapas, souvenirs ("Certificado de que o Sr./Sra. ...
atravessou o Mar da Sede a bordo do Cruzador de Pó Selene") e um folheto informativo. Só
tinham de ler para saber tudo sobre o Mar da Sede e talvez um pouco mais.
A superfície da Lua, segundo eles leram, era quase toda coberta por uma fina camada de pó –
em geral com apenas alguns milímetros de espessura. Parte desse pó era resíduo de estrelas,
remanescente dos meteoritos que caíram sobre a face desprotegida da Lua nos últimos cinco
milhões de anos; parte se desprendera das rochas lunares enquanto se expandiam e se
contraíam nos violentos extremos de temperatura entre a noite e o dia. Qualquer que fosse a
origem, era tão finamente dividido que fluía como um líquido, mesmo sob esta fraca
gravidade.
Através dos tempos, o pó deslizara das montanhas para as terras baixas, formando lagos e
poças. Os primeiros exploradores esperavam por isso e estavam bem preparados. O Mar da
Sede, porém, fora uma surpresa; ninguém previra a descoberta de uma área de poeira com
mais de cem quilômetros de largura.
Os "mares" da lua, por sua vez, eram bem pequenos; de fato, os astrônomos nunca
reconheceram oficialmente os seus nomes, salientando tratar-se apenas de uma pequena
porção da Sinus Roris, a Baía do Orvalho{1}. "De que maneira", protestavam eles, "se poderia
considerar parte de uma baía como um mar inteiro?" Todavia o nome, inventado por um
redator da Comissão Lunar de Turismo, fora adotado apesar das objeções. Era pelo menos tão
apropriado quanto os dos que se convencionou chamar de mares – Mar das Nuvens, Mar das
Chuvas, Mar da Tranquilidade. Para não mencionar o Mar de Néctar.
O folheto continha ainda algumas informações tranquilizadoras, destinadas a abafar os temores
do mais nervoso viajante e provar que a Comissão de Turismo pensava em tudo: "Todas as
precauções possíveis foram tomadas em benefício de sua segurança" -, declarava. "O Selene
transporta uma reserva de oxigênio suficiente para mais de uma semana e todos os
equipamentos vitais são duplicados. Um rádiofarol automático assinala sua posição a
intervalos regulares e na eventualidade, extremamente improvável, de uma completa falha de
energia, um esqui de pó, vindo de Porto Roris, poderá rebocá-los para casa com um pequeno
atraso. Acima de tudo não é preciso se preocupar com mau tempo e, mesmo que você não seja
um bom marinheiro, nunca ficará enjoado na Lua. Jamais ocorrem tormentas no Mar da Sede;
ele está sempre calmo."
Estas últimas palavras de conforto haviam sido escritas com a melhor das intenções; mas
quem poderia imaginar que elas logo se mostrariam falsas?
Enquanto o Selene corria silenciosamente através da noite, iluminada pela luz da Terra, a Lua
cuidava de seus negócios. E havia muitos negócios agora, depois de eras de sono.
Aconteceram mais coisas aqui nos últimos cinquenta anos do que nos cinco bilhões anteriores,
e muitas outras iriam acontecer.
Na primeira cidade construída pelo homem fora de seu mundo de origem, o administrador-
chefe Olsen dava seu passeio pelo parque. Ele era muito orgulhoso do parque, assim como
todos os 25 mil habitantes de Porto Clavius. Um parque pequeno, é claro, mas não tão
pequeno como sugerira aquele miserável comentarista de televisão, que o chamara de
"canteirinho com ideias de grandeza".
Certamente não havia parques, jardins ou qualquer coisa parecida na Terra onde se pudessem
encontrar girassóis com dez metros de altura. Muito acima, nuvens esfiapadas deslizavam – ou
assim pareciam. Elas eram, é claro, apenas imagens projetadas no interior, da cúpula, mas a
ilusão era tão perfeita que às vezes deixava A.C. com saudade do lar. Saudade do lar?
Corrigiu a si mesmo; este era o lar!
Contudo, no fundo de seu coração, sabia que não era verdade. Para seus filhos poderia ser,
mas não para ele.. Nascera em Estocolmo, Terra, e eles haviam nascido em Porto Clavius.
Eram cidadãos da Lua, enquanto ele estava preso à Terra por laços que talvez enfraquecessem
com os anos, mas nunca se partiriam.
A menos de um quilômetro, do lado de fora do domo principal, o chefe da Comissão de
Turismo Lunar conferia os últimos lucros, com um modesto sentimento de satisfação. Os
ganhos da última estação foram mantidos; não que houvesse estações na Lua, mas era
perceptível que mais turistas chegariam quando fosse inverno no hemisfério norte da Terra.
Como poderia manter tal interesse? Este era sempre o problema, pois os turistas querem
variedades; não se pode oferecer a eles sempre a mesma coisa. A novidade do cenário, a
baixa gravidade, a vista da Terra, os mistérios do lado oculto, o espetáculo do céu, os
povoamentos pioneiros (onde turistas nem sempre são bem-vindos) – depois de se enumerar
tudo isso, o que mais tem a Lua para oferecer?
Pena não existirem nativos selenitas, com estranhos costumes e aparências curiosas, para os
quais os visitantes pudessem apontar suas câmaras. Aliás, a maior forma de vida já descoberta
na Lua precisava de um microscópio para ser vista – seus ancestrais chegaram aqui no Lunik
II, apenas uma década à frente do Homem.
O comissário Davis desfilava mentalmente os itens que haviam chegado pelo último telefax,
tentando encontrar algo que o pudesse ajudar. Havia, é claro, o pedido usual de uma
companhia de televisão, da qual nunca ouvira falar, ansiosa para realizar um documentário na
Lua, se todas as despesas fossem pagas. A resposta seria "Não". Se aceitasse todas as ofertas
deste tipo seu departamento logo iria à falência.
Havia ainda a carta loquaz de seu concorrente na Grande Comissão de Turismo de Nova
Orleãs, sugerindo intercâmbio de pessoal. Era difícil entender como isso poderia ajudar a Lua
ou Nova Orleãs, mas enfim não custava nada e seria simpático.
E ainda mais interessante: uma consulta do campeão de esqui aquático da Austrália,
perguntando se alguém já tentara esquiar no Mar da Sede.
Sim, era positivamente uma boa idéia. Ficou surpreso de que ninguém tivesse tentado antes.
Talvez já tivessem, atrás do Selene ou de um dos pequenos esquis de pó. Certamente valeria a
pena testar; estava sempre de olho em novas formas de recreação lunar e o Mar da Sede era
um de seus projetos favoritos.
Um projeto que iria se transformar em pesadelo dentro de poucas horas.
Capítulo 2
À frente do Selene, o horizonte não era mais um arco perfeito e ininterrupto, Uma linha
acidentada de montanhas erguera-se sobre a borda da Lua. Enquanto o cruzador corria ao
encontro delas, as montanhas pareciam elevar-se no céu, como se erguidas por algum
gigantesco elevador.
– As Montanhas da Inacessibilidade – anunciou a senhorita Wilkins -, assim chamadas por
serem inteiramente cercadas pelo Mar. Vocês perceberão também que elas são muito mais
íngremes que grande parte das montanhas lunares.
Ela não enfatizou isso, pois era um fato desagradável que a maioria dos picos lunares não
passassem de um desapontamento. As imensas crateras, que pareciam tão impressionantes nas
fotografias tiradas da Terra, quando vistas a curta distância, surgiam como suaves colinas
ondulantes, seu relevo grandemente exagerado pelas sombras lançadas nos poentes e auroras.
Não havia uma única cratera lunar cujas encostas se erguessem mais abruptamente do que as
ladeiras de São Francisco, e muito poucas poderiam constituir um grave obstáculo para um
ciclista. Entretanto, ninguém imaginaria tal coisa, a partir das publicações da Comissão de
Turismo que mostravam somente os penhascos e desfiladeiros mais espetaculares,
fotografados de pontos cuidadosamente escolhidos.
– Elas nunca foram exploradas de um modo completo, nem mesmo agora -
continuou a senhorita Wilkins. – No ano passado trouxemos um grupo de geólogos e os
desembarcamos naquele promontório, mas só conseguiram penetrar alguns quilômetros no
interior. Assim, pode existir alguma coisa em cima daquelas elevações que nós simplesmente
desconhecemos.
"Ótimo", pensou Pat. Sue era uma guia de primeira e sabia o que deixar à imaginação e o que
devia explicar em detalhes. Falava num tom calmo, sem nenhum traço do recitar monótono que
era a doença típica de tantos guias profissionais. E dominava o assunto completamente, sendo
muito raro lhe fazerem uma pergunta a que não pudesse responder. De fato era uma moça
formidável e, embora muitas vezes fizesse parte das fantasias eróticas de Pat, na verdade ele
tinha secretamente um pouco de medo dela.
Os passageiros olhavam com fascinado espanto para os picos que se aproximavam. Na Lua
misteriosa, havia um mistério ainda mais profundo. Elevando-se como uma ilha para fora do
estranho mar que as guardava, as Montanhas da Inacessibilidade permaneciam como um
desafio aos exploradores futuros. A despeito do nome, agora era fácil alcançá-las; mas com
milhões de quilômetros quadrados de território ainda inexplorados, elas teriam de aguardar a
sua vez.
O Selene mergulhava em suas sombras; antes que alguém pudesse perceber o que acontecia, a
Terra, baixa no horizonte, se eclipsara. Sua luz brilhante ainda caía sobre os picos, mas
embaixo havia completa escuridão.
– Vou desligar as luzes da cabine – disse a comissária. – Assim vocês terão uma visão melhor.
Enquanto a mortiça iluminação avermelhada desaparecia, cada viajante sentia-se sozinho na
noite lunar. Mesmo a radiação refletida da Terra sobre aqueles cumes altos sumia aos poucos,
enquanto o cruzador avançava dentro da sombra. Em questão de minutos, as estrelas haviam se
tornado frios e fixos pontos de luz numa escuridão tão completa que fazia a mente se rebelar
contra ela.
Era difícil reconhecer as constelações familiares no meio da multidão de estrelas.
Os olhos se emaranhavam em arranjos nunca vistos da Terra e se perdiam num cintilante
labirinto de aglomerados e nebulosas. Em todo este panorama resplandecente havia apenas um
marco inconfundível: o deslumbrante farol de Vênus, brilhando mais que todos os corpos
celestes e anunciando a proximidade da aurora.
Passaram-se vários minutos antes que os passageiros notassem que nem todas as maravilhas
estavam no céu. Atrás do cruzador acelerado estendia-se uma longa esteira fosforescente,
como se um dedo mágico houvesse traçado uma linha de luz sobre a face escura e poeirenta da
Lua. O Selene desenhava uma cauda de cometa em seu rastro como um navio qualquer abrindo
caminho pelos oceanos tropicais da Terra.
Todavia não existiam microrganismos, com suas minúsculas lâmpadas, para iluminar esse mar
morto. Apenas incontáveis grãos de pó, cujo choque provocava centelhas, enquanto as
descargas estáticas, causadas pela rápida passagem do Selene, se neutralizavam. Mesmo
quando se conhecia a explicação, era lindo olhar dentro da noite e ver a luminosa faixa
elétrica continuamente se renovando, continuamente morrendo, como se a própria Via Láctea
estivesse refletida na superfície da Lua.
A esteira cintilante perdeu-se no clarão quando Pat ligou o holofote.
Assustadoramente próxima, a grande muralha de rocha deslizava ao alcance da mão.
Neste ponto, a face da montanha erguia-se quase verticalmente do mar de poeira ao seu redor
até alturas desconhecidas, já que ela parecia brilhar na existência real apenas onde o fugidio
oval de luz a atingia.
Aqui existiam montanhas diante das quais os Himalaias, as Rochosas, os Alpes pareceriam
bebês. Na Terra as forças da erosão começaram a demolir as montanhas assim que se
formavam, de modo que após alguns milhões de anos elas se tornaram meros fantasmas do que
haviam sido. Mas a Lua não conhecia vento nem chuva; não havia nada aqui para desgastar as
rochas exceto o lento descascar da poeira, quando suas superfícies se contraíam no frio da
noite. Essas montanhas eram tão velhas quanto o mundo que as trouxera à luz.
Pat se orgulhava de seu senso de espetáculo e planejara o próximo ato com muito cuidado.
Parecia perigoso, mas era perfeitamente seguro, pois o Selene executara este trajeto cem vezes
e a memória eletrônica de seu sistema de navegação conhecia o caminho melhor do que
qualquer piloto humano. Subitamente, ele desligou o holofote e agora os passageiros podiam
perceber que, enquanto estavam deslumbrados com o clarão num dos lados, as montanhas se
haviam fechado sorrateiramente ao redor deles.
Numa escuridão quase total, o Selene avançava por um estreito desfiladeiro – e nem sempre
num curso retilíneo, pois de vez em quando ziguezagueava para evitar obstáculos invisíveis.
Alguns deles, de fato, não eram meramente invisíveis: eram inexistentes. Pat programara este
curso em velocidade lenta e na segurança da luz do dia a fim de produzir o máximo de impacto
nos nervos. Os "ahs" e "ohs" vindos da cabine escurecida provavam que fizera um bom
trabalho.
Muito acima, uma estreita faixa de estrelas era tudo o que se podia ver do mundo exterior. Ela
descrevia arcos loucos da direita para a esquerda, a cada mudança brusca do curso do Selene.
O "passeio noturno", como Pat o chamava, durou cinco minutos, mas parecia muito mais
longo. Quando ligou novamente os faróis, de modo que o cruzador se movesse no centro de um
grande círculo de luz, houve um murmúrio de alívio e desapontamento da parte dos
passageiros. Esta fora uma experiência que nenhum deles iria facilmente esquecer.
Agora, restaurada a visão, perceberam ter viajado em um vale de paredes íngremes ou uma
garganta, cujos lados lentamente se afastavam. O desfiladeiro se alargara para dentro de um
anfiteatro oval, com cerca de três quilômetros de largura. O coração de um vulcão extinto, dos
tempos em que a Lua ainda era jovem.
A cratera, muito pequena para os padrões lunares, era única. A poeira onipresente a inundara,
penetrando no vale durante milhões de anos, de modo que os turistas da Terra podiam agora
passear no acolchoado confortável do que havia sido um caldeirão cheio dos fogos do inferno.
Tais fogos morreram muito antes da aurora da vida na Terra e nunca mais se acenderiam de
novo. Porém, havia outras forças que não estavam mortas – apenas esperavam pela sua hora.
Muito acima da superfície da Lua, partindo de uma antena curiosamente apontada para a face
da Terra, um pulso de rádio lançou-se no espaço. Em um sexto de segundo, ele relampejou
pelos cinquenta mil quilômetros até um satélite retransmissor, conhecido como Lagrange II,
diretamente alinhado com a Lua e a Terra. Em outro sexto de segundo o pulso retornava,
amplificado, inundando o lado Norte do pólo ao equador.
Em termos de linguagem humana, transportava uma mensagem simples. "Alô, Selene", dizia o
pulso. "Não estou recebendo o seu sinal. Por favor, responda imediatamente”.
O computador esperou mais cinco segundos. Em seguida, enviou novamente o pulso, e ainda
outro. Eras geológicas haviam transcorrido no mundo da eletrônica, mas a máquina era
infinitamente paciente.
Uma vez mais ela consultou suas instruções. Agora diziam: "Feche o circuito 10101010." O
computador obedeceu. No Controle de Tráfego uma luz verde tornou-se subitamente vermelha
e uma sirene começou a ferir o ar com seu alarme. Pela primeira vez os homens, assim como
as máquinas, tomavam consciência de que havia problemas em algum lugar da Lua.
A princípio a notícia se espalhou lentamente, uma vez que o administrador-chefe via com maus
olhos o pânico desnecessário; da mesma forma e com razões mais fortes, o comissário do
Turismo. Nada era pior para os negócios do que as situações de alerta e emergência, mesmo
quando nove entre dez casos eram causados por fusíveis queimados, relês fundidos ou alarmes
supersensíveis. Entretanto, num mundo como a Lua, era preciso andar na ponta dos pés.
Melhor se assustar com crises imaginárias do que falhar com as reais.
Vários minutos passaram antes que o comissário Davis admitisse, com relutância, que esta
parecia ser uma crise real. O radiofarol automático do Selene havia falhado numa ocasião
anterior, mas Pat Harris respondera imediatamente, quando chamado na frequência do
cruzador. Desta vez era apenas silêncio. O Selene nem mesmo respondera ao sinal enviado na
faixa Desastre lunar, cuidadosamente guardada e reservada só para casos de emergência. Foi
isso o que fez o comissário da Torre de Turismo correr para a Cidade Clavius, através do
deslizador subterrâneo.
Na entrada do Controle de Tráfego, ele encontrou o engenheiro-chefe do Lado Terrestre{3}, o
que era um mau sinal: alguém julgou necessário acionar as operações de salvamento. Os dois
homens se entreolharam com expressões graves, cada um obcecado pelo mesmo pensamento.
– Espero que não precisem de mim – disse o engenheiro-chefe Lawrence. – Onde está o
problema? Tudo o que sei é que o sinal Desastre lunar disparou. Qual é a nave?
– Não é uma nave. É o Selene; não está respondendo do Mar da Sede.
– Meu Deus! Se alguma coisa aconteceu só poderemos alcançá-la com os esquis de pó. Eu
sempre disse que devíamos ter dois cruzadores em operação antes de enviar turistas para lá.
– Foi o que também argumentei, mas as Finanças vetaram a idéia. Disseram que não podíamos
ter outro até o Selene provar que podia dar lucros.
– Espero que ele não ocupe as manchetes em vez disso – respondeu Lawrence, amargamente.
– Você sabe o que eu penso sobre trazer turistas à Lua.
O comissário sabia muito bem, há muito tempo, que esse era um motivo de discórdia entre os
dois. E pela primeira vez se perguntava se o engenheiro-chefe não poderia ter razão.
– Como sempre, havia muita calma no Controle de Tráfego. Nos grandes mapas murais as
luzes verdes e âmbar piscavam continuamente suas mensagens sem importância diante da
única luz vermelha. Nas mesas de Ar, Energia e Radiação os encarregados de plantão estavam
sentados como anjos da guarda, zelando pela segurança de um quarto do mundo.
– Nenhuma novidade – avisou o oficial do Tráfego do Solo. – Ainda estamos totalmente no
escuro. Tudo o que sabemos é que aconteceu alguma coisa no Mar.
Traçou um círculo no grande mapa dividido em escalas.
– A não ser que se encontrem totalmente fora da rota, eles devem estar nesta área. Na
verificação das 1.900 horas eles permaneceram na quilometragem do curso planejado. Nas
duas mil, o sinal desapareceu; portanto, o que quer que tenha ocorrido sucedeu naqueles
sessenta minutos.
– Que distância o Selene pode percorrer em uma hora? – perguntou alguém.
– Cerca de cento e vinte quilômetros – respondeu o comissário. – Mas ele normalmente viaja
abaixo de cem. Ninguém corre num passeio turístico.
Fixou intensamente os olhos no mapa, como se tentasse extrair informação apenas pela força
do olhar.
– Se eles estão no Mar, não vamos demorar a encontrá-los. Já enviou os esquis de pó?– Não,
senhor. Estava esperando autorização. Davis olhou para o engenheiro-chefe, que era superior
em grau hierárquico a qualquer pessoa deste lado da Lua, exceto ao administrador-chefe
Olsen. Lawrence acenou lentamente.
– Mande-os para lá. Mas não espere resultados imediatos. Levará algum tempo para vasculhar
vários milhares de quilômetros quadrados, especialmente à noite.
Diga a eles que sigam na rota da última posição recebida; um esqui em cada lado da área, de
modo a cobrir a faixa mais larga possível.
Dada a ordem, Davis perguntou tristemente:
– O que vocês acham que aconteceu?
– Existem poucas hipóteses. Deve ter acontecido de forma inesperada, pois não houve
mensagem de socorro. Isto geralmente significa uma explosão.
O comissário empalideceu. Havia sempre chance de sabotagem, da qual ninguém estava livre.
Devido à sua vulnerabilidade, os veículos espaciais, como os antigos aviões, exerciam uma
atração irresistível sobre um certo tipo de criminoso. Davis lembrou-se da Argo, uma nave
que cobria a rota de Vênus, destruída com duzentos homens, mulheres e crianças a bordo
porque um maníaco odiava um passageiro que mal o conhecia.
– Existe ainda a possibilidade de uma colisão – prosseguiu o engenheiro-chefe. -
Ele pode ter atingido um obstáculo.
– Harris é um piloto muito cuidadoso – disse o comissário. – E já fez esta viagem várias
vezes.
– Qualquer um pode cometer erros. É fácil calcular mal as distâncias quando se dirige sob a
luz da Terra.
O comissário Davis quase não o ouviu. Já pensava em tudo o que teria de ser providenciado
se o pior tivesse acontecido. Era melhor avisar o Setor Judiciário para verificar os
formulários de indenização. Se os parentes começassem a processar a Comissão de Turismo
em alguns milhões de dólares, seria o fim de toda a campanha publicitária deste ano, mesmo
se ela ganhasse na Justiça.
O oficial do Controle de Tráfego tossiu nervosamente.
– Se me permite uma sugestão – disse ao engenheiro-chefe -, podíamos chamar Lagrange. Os
astrônomos lá de cima podem ser capazes de ver alguma coisa.
– De noite? – indagou Davis ceticamente. – De cinquenta mil quilômetros de altura?
– Ê fácil, se os holofotes ainda estiverem acesos. Vale a pena tentar.
– Excelente idéia – disse o engenheiro-chefe. – Faça isso agora mesmo. – Ele próprio devia
ter pensado nisso e imaginou se não haveria outras possibilidades que tivesse deixado de
considerar. Não era a primeira vez que se sentia forçado a empregar toda a sua sagacidade
contra um mundo tão belo e estranho, um mundo sedutor em seus momentos de magia, mortal
em seus momentos de perigo. A Lua nunca seria completamente conquistada como a Terra, e
talvez fosse melhor assim.
Pois a atração das terras virgens e o leve mas sempre presente indício de perigo eram o que
agora fascinava exploradores e turistas, através dos abismos do espaço.
Preferia passar sem os turistas, mas eles ajudavam a pagar o seu salário.
E agora era melhor começar a arrumar as malas. Toda essa crise terminaria se o Selene
ressurgisse, sem saber do pânico que provocara. Mas não considerava isso provável e seus
temores transformavam-se em certezas, enquanto os minutos passavam. Esperaria mais uma
hora e em seguida tomaria o ônibus suborbital para Porto Roris e o reino do seu inimigo – o
Mar da Sede.
Quando o sinal vermelho de prioridade atingiu Lagrange, o Dr. Thomas Lawson dormia
profundamente. Irritou-se com a interrupção de seu sono, embora precisasse dormir apenas
duas horas em cada 24, quando sob a gravidade zero. Mesmo assim, parecia injusto ser
despertado. Porém, ao perceber o significado da mensagem, acordou completamente. Afinal
iria fazer alguma coisa de útil naquele lugar.
Tom Lawson jamais gostara desse trabalho; desejava realizar uma pesquisa científica, mas a
atmosfera a bordo de Lagrange II era perturbadora. Suspenso entre a Terra e a Lua num ato de
equilibrismo cósmico, possibilitado por uma das mais obscuras consequências da lei da
gravidade, o satélite era um faz-de-tudo astronáutico. Naves passavam em ambas as direções,
a fim de marcar a sua posição a partir dele, e o usavam como um centro de mensagens –
embora não houvesse nenhuma verdade no boato de que paravam ali apenas para pegar a
correspondência. Lagrange era também a estação retransmissora para quase todo tráfego lunar
de rádio, pois sob ela se estendia toda a face da Lua voltada para a Terra.
Apesar do telescópio de cem centímetros ter sido projetado para captar objetos bilhões de
vezes mais distantes que a Lua, era um instrumento admiravelmente adequado para esse
trabalho. De tão perto, mesmo com a regulagem mínima, a vista era soberba. Tom sentia-se
suspenso no espaço, diretamente acima do Mar das Chuvas, olhando os picos dentados dos
Apeninos embaixo, enquanto cintilavam na luz da manhã. Mesmo com um conhecimento vago
de geografia lunar, podia reconhecer de relance as grandes crateras de Archimedes e Platão,
Aristil us e Eudoxus, a cicatriz negra do Vale Alpino e a pirâmide solitária de Pico, lançando
sua longa sombra através da planície.
Mas a região iluminada pelo Sol não o interessava; o que buscava encontrava-se naquele
crescente escuro onde o Sol ainda não surgira. De certa forma isto tornava sua tarefa mais
fácil. Uma lâmpada de sinalização, mesmo uma lanterna, seria facilmente visível lá embaixo
durante a noite. Checou as coordenadas no mapa e apertou os botões de controle. As
montanhas deslizaram para fora de seu campo visual e somente a escuridão permaneceu,
enquanto ele fitava a noite lunar que acabara de engolir vinte homens e mulheres.
De início não pôde ver nada; certamente não havia nenhum sinal piscando seu apelo para as
estrelas. E então, enquanto seus olhos se tornavam mais sensíveis, percebia que esta terra não
estava inteiramente às escuras. Brilhava com uma fosforescência fantasmagórica, banhada
pela luz da Terra, e, quanto mais olhava, mais detalhes podia distinguir.
Lá estavam as montanhas, a leste da Baía do Arco-íris, esperando que a aurora as atingisse
dentro em breve. E então – meu Deus! O que é aquela estrela piscando na escuridão? Suas
esperanças cresceram, mas rapidamente desabaram. Eram apenas as luzes de Porto Roris,
onde. nesse momento, estariam aguardando ansiosamente os resultados de suas inspeções.
Em questão de minutos convenceu-se de que a busca visual era inútil. Não havia a menor
chance de ver um objeto do tamanho de um ônibus naquela paisagem fracamente iluminada.
Durante o dia teria sido diferente, ele poderia localizar o Selene graças à longa sombra que
este lançaria através do Mar. Todavia, o olho humano não era suficientemente sensível para
realizar tal busca na luz de uma Terra minguante, de uma altura de cinquenta mil quilômetros.
Isso não preocupava Tom. Ele não esperava vislumbrar alguma coisa em sua primeira busca
visual. Já se passara um século e meio desde a época em que os astrônomos dependiam de sua
acuidade visual. Hoje possuíam armas muito mais delicadas, todo um arsenal de
amplificadores de luz e detectores de radiação. Um destes, certamente, seria capaz de
encontrar o Selene.
Mas não teria tanta certeza se soubesse que ela não se encontrava mais na superfície da Lua.
Capítulo 4
Quando o Selene enfim parou, seus tripulantes e passageiros estavam terrivelmente chocados
para emitir qualquer som. O capitão Harris foi o primeiro a se recobrar, talvez por ser o único
a ter alguma idéia do que acontecera.
Era, sem dúvida, um desmoronamento; eles não eram raros, embora nenhum houvesse sido
registrado no Mar da Sede. Alguma coisa cedera nas profundezas da Lua; possivelmente o
próprio peso infinitesimal do Selene provocara o colapso.
Enquanto se erguia, ainda trêmulo, Pat Harris decidia-se pelo melhor modo de falar com os
passageiros. Dificilmente poderia fingir que estava tudo sob controle e que se colocariam de
novo a caminho dentro de cinco minutos. Por outro lado, haveria pânico se a real seriedade da
situação fosse revelada. Mais cedo ou mais tarde teria de fazê-lo, mas agora era essencial
manter segredo.
Percebeu a senhorita Wilkins levantando-se no final da cabine, atrás dos passageiros. Estava
muito pálida, mas serena. Sabia que podia confiar nela e deu-lhe um sorriso confortador.
– Parece que estamos inteiros – falou num tom descontraído. – Tivemos um pequeno acidente,
como percebem, mas poderia ter sido pior. (Como?, perguntou uma parte de sua mente. Bem, o
casco podia ter se rompido...Quer prolongar a agonia, então? Calou o monólogo interior, com
enorme esforço.) – Fomos apanhados num deslizamento de terra, um lunamoto se preferirem.
Mas não há razão para alarme. Mesmo que não possamos sair daqui com os nossos motores,
Porto Roris logo enviará socorro. Enquanto isso, a senhorita Wilkins servirá refrescos. Sugiro
que relaxem um pouco. Eu... ah... farei o que for necessário.
Parecia ter se saído muito bem, e com um suspiro de alívio voltou-se para os controles.
Enquanto o fazia, notou que um dos passageiros acendera um cigarro.
Era uma reação automática, que ele gostaria de compartilhar. Não disse nada, para não
destruir a atmosfera criada por sua pequena palestra. Mas fitou o homem de maneira incisiva
para fazê-lo perceber, e o cigarro foi apagado antes que retornasse ao seu assento.
Enquanto ligava o rádio, Pat ouvia o murmúrio da conversação que se iniciava atrás de si.
Quando um grupo de pessoas começa a falar ao mesmo tempo, pode-se perceber o seu estado
de espírito, mesmo sendo impossível distinguir as palavras.
Ele podia detectar aborrecimento, excitação, até gracejos, mas muito pouco medo, no
momento. Talvez os que falavam não tivessem ainda consciência de todo o perigo da situação.
Os que o conheciam mantinham-se calados.
Assim era o espaço celeste. Buscou em todas as faixas de onda, de um lado ao outro, e só
ouviu o fraco estalar da poeira eletrificada que os enterrara. Exatamente como esperava. Essa
substância mortal, com seu alto conteúdo metálico, era um escudo quase perfeito. Não
deixaria passar nem som nem ondas de rádio, e quando tentasse transmitir seria como um
homem gritando do fundo de um poço cheio de penas.
Passou o radiofarol para o ajuste de alta potência de emergência a fim de transmitir
automaticamente o sinal de perigo na faixa Desastre lunar. Somente isso tinha a possibilidade
de conseguir passar; não havia razão para tentar chamar Porto Roris. Seus esforços
infrutíferos apenas perturbariam os passageiros. Deixou o receptor ligado na frequência
destinada ao Selene no caso de alguém responder, mas sabia que era inútil. Ninguém iria ouvi-
los, ninguém iria lhes falar. No que se relacionava a eles, o resto da raça humana poderia
muito bem não existir.
Não perdeu muito tempo pensando nesse inconveniente. Já o esperava e havia muito que fazer.
Com cuidado, verificou os instrumentos e mostradores. Tudo parecia normal, exceto a
temperatura – um pouco alta. Isso também já era esperado, pois o cobertor de poeira os
isolava do frio do espaço.
Sua maior preocupação era quanto à espessura desse cobertor e à pressão exercida por ele
sobre o barco. Deviam existir milhares de toneladas do material acima do Selene – e seu
casco fora projetado para suportar pressão de dentro para fora, não o contrário. Se ela
descesse ainda mais, poderia se quebrar como uma casca de ovo.
Não fazia idéia da profundidade em que se achava o barco. Quando vira as estrelas pela
última vez, a embarcação encontrava-se a dez metros sob a superfície, mas podia ter sido
arrastada a uma profundidade muito maior pela sucção da poeira.
Seria recomendável – mesmo com maior consumo de oxigênio – aumentar a pressão interna,
tirando assim um pouco da tensão sobre o casco.
Lentamente, de modo a não haver indícios – como ouvidos estalando – para alarmar ninguém,
aumentou a pressão da cabine em vinte por cento. Quando terminou, sentiu-se um pouco
melhor e não foi o único. Assim que a agulha no mostrador de pressão se estabilizou em novo
nível, uma voz suave falou sobre seu ombro:
– Acho que isso foi uma boa idéia.
Virou-se para ver quem era o intrometido a espioná-lo, mas não chegou a manifestar o seu
protesto. Na primeira inspeção, Pat não reconheceu nenhum dos passageiros, agora, porém,
podia dizer que havia alguma coisa vagamente familiar nesse homem atarracado e de cabelos
grisalhos que viera até o lugar do piloto.
– Eu não quero me intrometer, capitão. É o comandante aqui, mas achei que seria melhor me
apresentar no caso de poder ajudar. Sou o comodoro Hansteen.
Pat olhou boquiaberto para o homem que liderara a primeira expedição a Plutão e que
provavelmente pisara em mais planetas e luas inexploradas do que qualquer outra pessoa na
história. Apenas pôde dizer, para expressar o seu espanto: – O senhor não estava na lista de
passageiros! O comodoro sorriu: – Meu cognome é Hanson. Desde que me aposentei, tento
fazer um pouco de turismo, sem muitas preocupações. E agora, com a minha barba raspada,
ninguém me reconhece.
– Estou muito feliz de tê-lo conosco – disse Pat com sinceridade. Parte do peso já parecia sair
de seus ombros. O comodoro constituiria um apoio nas horas difíceis – os dias seguintes.
– Se não se importar – continuou Hansteen, com a mesma polidez cautelosa -, eu gostaria de
ter um quadro da situação. Dizendo cruamente: quanto tempo podemos aguentar?
– Oxigênio é o fator limite, como de costume. Temos o suficiente para sete dias,
aproximadamente, se não houver vazamentos. Até agora não há sinal de nenhum.
– Bem, isso nos dá tempo para pensar. E quanto a comida e água?
– Ficaremos famintos, mas não morreremos. Existe uma reserva de emergência de comida
desidratada e o purificador de ar produzirá a água de que necessitarmos.
Assim, não há problemas.
– Energia?
– Bastante, já que não estamos usando os motores.
– Notei que não tentou chamar a base.
– É inútil, a poeira nos bloqueia completamente. Coloquei o radiofarol em emergência. É a
nossa única chance de conseguir enviar um sinal, e é uma chance pequena.
– Assim eles terão que nos achar de algum outro modo. Quanto tempo acha que poderão levar?
– É muito difícil dizer. As buscas irão começar assim que a nossa transmissão das duas mil
horas não for ouvida, e eles saberão a área em que nos encontramos. Mas devemos ter
afundado sem deixar traços; e mesmo que nos encontrem...
– Como irão nos tirar daqui?
– Exatamente,
O capitão do cruzador do pó de vinte lugares e o comodoro do espaço olharam um para o
outro em silêncio, enquanto suas mentes giravam ao redor do mesmo problema. E então, em
meio ao murmúrio dos passageiros, ouviram uma voz muito britânica:
– Quero dizer-lhe, senhorita, que esta é a primeira xícara de chá decente que eu bebo na Lua.
Pensei que ninguém seria capaz de fazê-la aqui. Minhas congratulações.
O comodoro riu.
– Ele deveria agradecer a você, não à aeromoça – disse, apontando o mostrador de pressão.
Pat sorriu. Era verdade, com o aumento da pressão, a água podia ser fervida normalmente,
quase na temperatura ao nível do mar na Terra. Pelo menos desfrutariam algumas bebidas
quentes, e não mornas como de hábito. Mas parecia um modo extravagante de fazer chá, não
muito diferente do conhecido método chinês de assar o porco colocando fogo na casa.
– O nosso maior problema – disse o comodoro (e Pat não se incomodou com "nosso") – é
manter o moral alto. Acho importante, por exemplo, que você dê informações sobre os
procedimentos de busca que devem estar sendo iniciados agora. Mas não seja muito otimista.
Não deve transmitir a impressão de que alguém vai bater na porta dentro de meia hora. Isto
tornaria as coisas difíceis se nós tivermos de esperar, digamos, vários dias.
– Não vou demorar muito tempo para descrever a organização Desastre lunar – disse Pat. – E
francamente ela não foi planejada para lidar com uma situação como esta. Quando uma nave
tem problemas na Lua, ela pode ser localizada muito rapidamente pelos satélites Lagrange II,
acima do lado voltado para a Terra, ou Lagrange I, do lado oposto. Mas tenho dúvidas de que
possam nos ajudar agora. Como eu disse, provavelmente afundamos sem deixar vestígios.
– Isso é difícil de acreditar. Quando um navio afunda na Terra, sempre deixa alguma coisa
para trás. Bolhas, manchas de óleo, destroços flutuantes...
– Nada disso se aplica em nosso caso. E não consigo pensar em nenhum meio de enviar algo à
superfície, não importa o quão distante ela esteja de nós.
– Assim só nos resta sentar e esperar.
– Certo – concordou Pat. Olhou para os indicadores de reserva de oxigênio. – E de uma coisa
podemos estar certos: só conseguiremos esperar durante uma semana.
Cinquenta mil quilômetros acima da Lua, Tom Lawson abandonou a última de suas fotografias.
Examinara cada milímetro quadrado de cada uma com lente de aumento.
A qualidade era excelente; os intensificadores eletrônicos de imagem, milhões de vezes mais
sensíveis do que o olho humano, revelavam detalhes tão claros como se já houvesse luz do dia
sobre aquela planície fracamente cintilante. Localizara até um dos esquis de pó – ou, mais
exatamente, sua longa sombra projetada pela luz da Terra. Porém, não havia vestígio do
Selene; o Mar estava liso e plano como antes da vinda do Homem e como estaria, com toda a
certeza, eras depois de sua extinção.
Tom odiava admitir uma derrota, mesmo numa questão pouco importante como essa.
Acreditava que todos os problemas podiam ter solução, se abordados do modo certo e com o
equipamento adequado. Este era o desafio à sua engenhosidade científica; o fato de que
houvesse tantas vidas em jogo não era importante. O Dr. Tom Lawson não tinha grande
consideração pelos seres humanos, mas respeitava o universo. Esta era uma luta particular
entre os dois.
Considerou a situação com sua inteligência friamente crítica. Vejamos: como o grande Holmes
teria abordado este problema? (Era característico de Tom que um dos poucos homens
verdadeiramente admirados por ele nunca houvesse existido.) Já eliminara o Mar da Sede, o
que deixava apenas uma possibilidade. O cruzador do pó tivera problemas ao longo da costa
ou próximo das montanhas, provavelmente na região conhecida como – verificou nas cartas –
Lago Cratera. Isso fazia sentido, um acidente era muito mais provável aqui do que na planície
lisa e livre de obstáculos.
Olhou as fotografias novamente, desta vez concentrando-se nas montanhas. Logo encontrou
nova dificuldade. Havia dúzias de penhascos isolados e pedras ao longo da borda do Mar,
qualquer um dos quais poderia ser o barco perdido. Pior ainda, havia áreas que não podia
observar, pois sua visão estava bloqueada pelas montanhas.
Nesse ponto, o Mar da Sede aparecia bem ao longo da curvatura da Lua, e sua visão era muito
afetada pela perspectiva. O Lago Cratera, por exemplo, estava completamente oculto pelas
paredes montanhosas. Era uma área que só poderia ser investigada pelos esquis de pó, ao
nível do solo. Mesmo a eminência divina de Tom Lawson era inútil neste caso.
Seria melhor chamar o Lado Terrestre e dar-lhe o seu primeiro relatório.
– Lawson, Lagrange II – disse, quando Comunicações completou a ligação. – Já investiguei o
Mar da Sede. Não há nada na planície aberta. O seu barco deve ter encalhado próximo à
borda.
– Obrigado – disse uma voz desanimada. – Tem certeza disso?
– Absoluta. Posso ver seus esquis de pó e eles têm apenas um quarto do tamanho do Selene.
– Algo visível ao longo da borda do Mar?
– Há muitos pontos em pequena escala que possibilitam uma busca. Posso ver cinquenta... oh,
cem objetos, que devem ser do mesmo tamanho. Assim que o Sol se levantar serei capaz de
examiná-los mais detalhadamente. Lembre-se de que agora é noite, lá embaixo.
– Apreciamos a sua ajuda. Avise-nos se encontrar algo mais.
Naquele exato momento, embora nenhuma das partes envolvidas o soubesse, um dos esquis de
pó passava sobre o cruzador. Construído para velocidade, eficiência e economia, não para o
conforto dos turistas, era muito pouco semelhante ao Selene afundado. Era, de fato, nada mais
do que um trenó aberto, com assentos para um piloto e um passageiro – ambos providos de
trajes espaciais – com uma nacela por cima, a fim de dar proteção contra os raios solares. Um
simples painel de controle, um motor, hélices duplas à ré e prateleiras para armazenar
ferramentas e instrumentos – isso completava a descrição. Um esqui, ao realizar o seu trabalho
normal, usualmente rebocava um trenó, às vezes dois ou três, mas esse estava leve.
Ziguezagueara para a frente e para trás em várias centenas de quilômetros quadrados do Mar e
não encontrara nada.
Pelo intercomunicador de seu traje, o motorista falava com seu companheiro.
– O que você acha que aconteceu com eles, George? Não acredito que estejam aqui.
– Onde mais poderiam estar? Sequestrados por extraterrenos?
– Estou quase aceitando essa idéia – respondeu, meio irônico. Todo astronauta acreditava que
mais cedo ou mais tarde a raça humana encontraria inteligências vindas de outro lugar. Tal
encontro ainda poderia estar muito distante, mas os hipotéticos "extraterrenos" já eram parte
da mitologia do espaço e recebiam a culpa de tudo o que não tivesse explicação.
É fácil acreditar neles quando alguém se encontra com um grupo de companheiros em um
mundo estranho e hostil, onde as próprias rochas e o ar (se houver ar) são totalmente exóticos.
Aí nada pode ser considerado absurdo e a experiência de mil gerações, nascidas na Terra,
pode ser inútil. Da mesma forma que o homem primitivo povoara o desconhecido ao seu redor
com deuses e espíritos, assim o Homo astronauticus olhava por sobre o ombro, quando
pousava em cada novo mundo, perguntando-se quem ou o quê já não estaria por lá. Durante
alguns breves séculos o Homem se imaginara senhor do Universo; e essas esperanças e
temores primitivos, sepultados em seu subconsciente, estavam agora mais fortes que nunca – e
com boa dose de razão enquanto olhava a face brilhante dos céus e pensava nos poderes que
estariam à espreita por lá.
– Melhor relatar à base – disse George. – Já cobrimos nossa área e não tem sentido passar
sobre ela mais uma vez. Pelo menos até o nascer do Sol, quando teremos uma chance melhor
de encontrá-los. Essa maldita luz da Terra me dá arrepios.
Ligou o rádio e transmitiu o sinal de chamada.
– Espanador Dois chamando Controle de Tráfego. Câmbio.
– Aqui Controle de Porto Roris. Encontraram algo?
– Nada. O que há de novo do seu lado?
– Não acreditamos que esteja no Mar. O engenheiro-chefe quer falar com vocês.
– Certo. Ponha na linha.
– Alô, Espanador Dois, aqui Lawrence. O Observatório em Plato acabou de relatar um tremor
próximo das Montanhas da Inacessibilidade. Ocorreu às 19:35, o que é muito próximo do
tempo em que o Selene deveria estar no Lago Cratera. Eles sugerem que foi apanhado por uma
avalanche em algum lugar daquela área.
Portanto, dirijam-se às montanhas e vejam se podem localizar algum deslizamento recente ou
queda de rochas.
– Senhor, qual a probabilidade de que ocorram mais tremores? – indagou o piloto
ansiosamente.
– Muito pequena, de acordo com o Observatório. Eles dizem que serão necessários milhares
de anos para que algo assim aconteça de novo, pois as tensões foram liberadas.
– Espero que estejam certos. Transmitirei quando chegar ao Lago Cratera, o que deve ocorrer
em vinte minutos.
Em apenas 15 minutos o Espanador Dois destruiu as últimas esperanças dos que aguardavam.
– Espanador Dois chamando. Temo que vocês tenham acertado. Ainda não atingimos o Lago
Cratera, estamos percorrendo o desfiladeiro. O observatório estava certo a respeito do tremor.
Houve vários deslizamentos e encontramos dificuldades em passar por alguns deles. Deve
haver dez mil toneladas de rochas no que estou olhando agora. Se o Selene se encontra
debaixo disso, nunca a encontraremos e não valerá a pena procurar.
O silêncio do Controle de Tráfego durou tanto que o esqui chamou de novo: – Alô, Controle
de Tráfego. Ainda me recebem?
– Recebendo – disse o engenheiro-chefe numa voz cansada. Veja se pode encontrar algum
sinal. Mandarei o Espanador Um para ajudar. Tem certeza de que não há esperança de
desenterrá-los?
Levaria semanas, mesmo se os localizássemos. Vi um deslizamento com trezentos metros de
comprimento. E se tentarmos escavar as rochas elas provavelmente voltarão a mover-se.
– Tenham muito cuidado. Relatem a cada 15 minutos, encontrando ou não alguma coisa.
Lawrence afastou-se do microfone, física e mentalmente exaurido. Não havia mais nada que
pudesse fazer nem, conforme suspeitava, que alguém mais pudesse fazer.
Tentando conciliar seus pensamentos, caminhou até a janela de observação voltada para o sul
e olhou a face da Terra crescente.
Era difícil acreditar que ela estivesse lá, fixa no céu, e que embora pairando tão próximo ao
horizonte jamais houvesse se erguido ou ocultado em um milhão de anos. Por mais longo que
fosse o tempo que alguém aqui vivesse, jamais aceitaria este fato, que violava toda a
sabedoria racial da humanidade.
Do outro lado daquele golfo (pequeno para uma gerarão que não conhecera o tempo em que
ele não podia ser cruzado), ondas de espanto e pesar logo se propagariam. Milhares de
homens e mulheres estariam envolvidos direta ou indiretamente, pois a Lua estremecera em
seu sono.
Perdido em seus pensamentos, Lawrence demorou algum tempo para perceber que o oficial de
sinaleiros do Porto tentava atrair a sua atenção.
– Desculpe-me, senhor, mas não chamou o Espanador Um. Devo fazê-lo agora?
– O quê? Oh?, sim, vá em frente. Mande-o ajudar o Dois no Lago Cratera. Diga-lhes que
cancelamos a busca no Mar da Sede.
Capítulo 6
A notícia de que a busca fora cancelada chegou a Lagrange II quando Tom Lawson estava
quase completando suas modificações no telescópio de cem centímetros de abertura. Correra
contra o tempo e agora parecia que todos os seus esforços tinham sido em vão. O Selene não
estava no Mar da Sede e sim num local onde jamais o encontraria. Escondido pelos
contrafortes do Lago Cratera e, como se não bastasse, enterrado por alguns milhares de
toneladas de rocha.
A primeira reação de Tom não foi de compaixão pelas vítimas, mas de ódio pelo tempo e
esforço desperdiçados. A manchete "Jovem astrônomo encontra turistas perdidos" nunca
brilharia nos telejornais dos mundos habitados. Ao ver os seus desejos secretos de glória irem
por água abaixo, praguejou por uns trinta segundos, com uma fluência que surpreenderia os
seus colegas. Em seguida, ainda furioso, começou a desmontar o equipamento que mendigara,
conseguira emprestado ou roubara de outros projetos no satélite.
Tinha certeza de que aquilo teria funcionado. A teoria era sólida, baseada em quase cem anos
de prática. O reconhecimento por meio de infravermelhos remontava pelo menos à II Guerra
Mundial, quando fora utilizado para localizar fábricas camufladas através de seus sinais de
calor.
Embora o Selene não revelasse uma trilha visível no Mar, devia certamente deixar um rastro
infravermelho. Suas hélices haviam remexido a poeira relativamente morna em quase meio
metro de profundidade, espalhando-a sobre as camadas superficiais muito mais frias. Um olho
que pudesse enxergar raios de calor seguiria sua pista horas depois de sua passagem. Haveria
tempo, Tom calculava, de realizar tal busca infravermelha antes que o Sol se erguesse,
apagando todos os traços da tênue trilha de calor através da gélida noite lunar.
Agora, obviamente, não adiantava tentar.
Era bom que ninguém a bordo do Selene soubesse que a busca no Mar da Sede fora cancelada
e que os esquis de pó concentravam agora seus esforços no Lago Cratera. Era bom, também,
que nenhum dos passageiros conhecesse as previsões do Dr. McKenzie.
O físico desenhara num pedaço de papel improvisado a previsão do aumento de temperatura.
Anotara a indicação do termômetro da cabine a cada hora e a marcara na curva. A
coincidência com a teoria era tristemente certa; em vinte horas, o calor ultrapassaria os 45
graus centígrados e as primeiras mortes começariam a ocorrer. À parte o modo como
encaravam tal perspectiva, eles tinham pouco mais de um dia de vida. Nessas circunstâncias,
os esforços do comodoro Hansteen para manter o moral pareciam ser apenas uma piada
irônica. Com sucesso ou não, daria no mesmo.
Entretanto, seria esta a verdade? Embora a única escolha estivesse entre morrer como homens
ou como animais, a primeira era a preferível. Não fazia diferença, ainda, que o Selene
permanecesse perdido até o fim dos tempos, de modo que ninguém viesse a saber como os
seus ocupantes haviam passado suas últimas horas.
Isto estava além da lógica ou da razão; mas é sempre assim, no momento em que se trata de
moldar as vidas ou as mortes de homens.
O comodoro Hansteen tinha plena consciência disso quando planejava o programa para as
horas que se estendiam. Alguns homens são líderes natos e ele era um deles. O vazio de sua
aposentadoria fora subitamente preenchido; pela primeira vez desde que deixara a nau
capitania Centaurus, sentia-se realizado.
Enquanto a tripulação estivesse ocupada, não precisava se preocupar com o moral.
Não importava o que estivessem fazendo, desde que o julgassem essencial e interessante.
Aquele jogo de pôquer, por exemplo, dominava o contador da Administração Espacial, o
engenheiro civil aposentado e os dois executivos de Nova Iorque. Podia-se dizer, de relance,
que eles eram fanáticos por pôquer; o problema seria fazê-los parar de jogar, não mantê-los
ocupados.
A maioria dos outros passageiros dividia-se em pequenos grupos, conversando muito
alegremente. O comitê de entretenimento continuava reunido com o professor Jayawardene,
que tomava notas ocasionais, enquanto a senhora Schuster relembrava seus dias no teatro,
apesar das tentativas de seu marido para fazê-la calar-se. A única pessoa que parecia distante
de tudo isso era a senhorita Morley, que escrevia lentamente, com uma caligrafia diminuta, no
que restara de seu livro de notas.
Talvez, como boa jornalista, ela tentasse manter um diário de sua aventura. O comodoro
Hansteen temia que nem mesmo aquelas poucas páginas seriam preenchidas. Caso fossem,
duvidava que alguém chegasse a lê-las.
Olhando para o relógio, ficou surpreso ao ver como era tarde. A esta hora já devia estar do
outro lado da Lua, de volta à Cidade Clavius. Marcara um encontro para almoçar no Lunar
Hilton e em seguida faria uma viagem, mas não tinha sentido pensar num futuro que nunca
existiria. O breve presente era tudo o que o preocupava agora.
Seria melhor dormir um pouco, antes que a temperatura se tornasse insuportável.
O Selene não fora projetado como dormitório – ou tumba -, mas agora teria de ser
transformado. Isso envolvia algum planejamento, além de uma certa quantidade de danos à
Comissão de Turismo. Levou vinte minutos para reunir todos os fatos e então, depois de uma
breve conversa com o capitão Harris, pediu atenção.
– Senhoras e senhores, tivemos todos um dia ocupado e eu acredito que a maioria ficará
satisfeita se conseguir dormir um pouco. Isto apresenta alguns problemas,.mas andei fazendo
umas experiências e descobri que, com uma leve pressão, os apoios dos braços entre os
assentos podem ser soltos. Não são feitos para isso, mas eu duvido que a Comissão nos
processe. Assim, dez pessoas poderão se esticar sobre os assentos; o resto terá de usar o
chão. Outro ponto: como devem ter notado, está fazendo calor e continuará esquentando por
algum tempo. Dessa forma, aconselho-os a retirar toda a roupa desnecessária. Conforto é mais
importante do que pudor.
E sobrevivência, pensou, é mais importante do que conforto, mas ainda se passariam algumas
horas antes que chegassem a esse ponto.
– Vamos apagar a iluminação principal da cabine. Como não queremos permanecer em
completa escuridão, vamos deixar acesa a luz de emergência. Um de nós ficará de plantão no
assento do piloto. O sr. Harris está organizando uma escala de turnos de duas horas. Alguma
pergunta?
Não havia nenhuma, e o comodoro deu um suspiro de alivio. Temia que alguém ficasse curioso
a respeito do aumento de temperatura e não tinha certeza de como responderia. Suas
habilidades não incluíam o dom de mentir o mais possível, e ele ansiava que os passageiros
desfrutassem um sono tranquilo, naquelas circunstâncias.
A menos que houvesse um milagre, seria o último que teriam.
A senhorita Wilkins, que começava a perder um pouco da sua elegância profissional, levou os
últimos drinques para os que deles necessitavam. Grande parte dos passageiros já começava a
tirar as roupas; os mais recatados esperavam que as luzes principais se apagassem. Sob a
mortiça iluminação vermelha, o interior do Selene adquiria uma aparência fantástica,
totalmente inconcebível quando deixara Porto Roris algumas horas atrás. Vinte e dois homens
e mulheres, usando apenas roupas de baixo, jaziam estendidos sobre os assentos e o piso.
Alguns com mais sorte já ressonavam, embora para a maioria o sono não viesse assim tão
facilmente.
O capitão Harris escolhera uma posição na própria traseira do cruzador. De fato, ele não se
encontrava na cabine, mas na minúscula cozinha-comporta de saída. Era um ótimo ângulo.
Com a porta da cabine aberta, poderia ver todo o comprimento do barco e controlar tudo
dentro dele.
Dobrou o seu uniforme a fim de formar um travesseiro e colocou-o sobre o piso duro.
Faltavam seis horas para o seu turno de plantão, e ele esperava dormir um pouco antes disso.
Dormir! As últimas horas de sua vida estavam se esgotando e ele não tinha nada melhor para
fazer. Ele imaginava se os condenados dormirão bem na noite que antecede o patíbulo.
Estava tão desesperadamente cansado que nem mesmo esse pensamento lhe transmitiu alguma
emoção. A última coisa que viu, antes que a consciência lhe escapasse, foi o Dr. McKenzie
lendo mais uma vez a temperatura e marcando-a com cuidado em seu gráfico, como um
astrólogo ao preparar um horóscopo.
Quinze metros acima, uma distância que poderia ser coberta num único salto sob baixa
gravidade, a manhã já despontara. Não há crepúsculo na Lua, mas por muitas horas o céu
exibira a promessa da aurora. Estendendo-se diante do Sol, surgia a resplandecente pirâmide
da luz zodiacal, raramente vista da Terra. Com infinita lentidão ela se esgueirou acima do
horizonte, tornando-se cada vez mais luzidia à medida que se aproximava o momento do
nascer do astro. Agora, fundia-se na glória opalina da corona; finalmente, um milhão de vezes
mais brilhante que ambas, um fino risco de fogo começou a se espalhar no horizonte, enquanto
o Sol reaparecia depois de quinze dias de escuridão. Levaria mais de uma hora até que se
elevasse por completo sobre a linha do horizonte, tão lento é o giro da Lua em torno de seu
eixo, mas a noite já terminara.
Uma onda de tinta nanquim escoava rapidamente do Mar da Sede, enquanto a violenta luz da
alvorada expulsava a escuridão. Quase toda a vastidão monótona do Mar parecia riscada por
raios quase horizontais. Se alguma coisa se mostrasse acima da superfície, essa luz rasante
teria projetado sua sombra por centenas de metros, revelando-a imediatamente a qualquer um
que a buscasse.
Mas não havia buscas, aqui. O Espanador Um e o Espanador Dois estavam ocupados em sua
procura infrutífera no Lago Cratera, a 15 quilômetros. Ainda se encontravam na escuridão,
pois seriam necessários mais dois dias para que o Sol se erguesse sobre os picos
circundantes, embora seus cumes já ardessem sob a aurora.
Com o passar das horas, uma linha abrupta de luz se arrastaria ao longo do flanco das
montanhas – às vezes movendo-se tão lenta como um homem caminhando – até que o Sol se
elevasse a ponto de seus raios atingirem o interior da cratera.
Uma luz produzida pelo homem já brilhava lá, piscando entre as rochas, enquanto os
pesquisadores fotografavam os aludes que haviam escorregado em silêncio, montanha abaixo,
quando a Lua tremera em seu sono. Essas fotografias teriam chegado à Terra em uma hora; em
outras duas, todos os mundos habitados as teriam visto.
O que seria péssimo para o turismo.
Quando o capitão Harris acordou já estava muito quente. No entanto, não fora o calor, agora
opressivo, que lhe interrompera o sono, uma hora antes de seu turno de plantão.
Apesar de nunca ter passado uma noite a bordo, Pat conhecia todos os sons que o Selene era
capaz de produzir. Quando os motores não funcionavam, era quase silencioso. Alguém teria de
apurar muito o ouvido para perceber o sussurro das bombas de ar e o quieto pulsar da usina
de resfriamento. Estes sons permaneceram, assim, antes de ele dormir. Eram os mesmos,
porém outro ruído se lhes juntara.
Era um sussurro quase inaudível, tão fraco que por um momento Pat pensou que o imaginara.
Parecia incrível que isso tivesse despertado o seu subconsciente, através das barreiras do
sono. Mesmo agora, acordado, não conseguia identificá-lo, ou decidir de que direção vinha.
Então, abruptamente, soube por que aquilo o despertara. Num segundo sua sonolência
desapareceu. Levantou-se rapidamente e pressionou o ouvido contra a porta externa, pois o
som misterioso parecia vir de fora do casco.
Agora podia ouvi-lo, fraco mas distinto, e isso deixou a sua pele arrepiada de apreensão. Não
havia dúvida, era o som de incontáveis grãos de pó deslizando, sussurrantes, pelas paredes do
Selene como uma fantasmagórica tempestade de areia. O que significava? Estaria o Mar
novamente em movimento? Se assim fosse, levaria o Selene consigo? Entretanto, não existia a
menor vibração ou sentido de movimento no cruzador, somente o mundo externo passava
murmurando.
Silencioso, evitando perturbar o sono de seus companheiros, Pat caminhou na ponta dos pés
pela cabine às escuras. Era o turno do Dr. McKenzie e o cientista encontrava-se curvado no
assento do piloto, olhando através das janelas tapadas. Ele voltou-se quando Pat se
aproximou, indagando: – Algo de errado? – perguntou.
– Não sei. Venha ver.
De volta à cozinha, pressionaram as orelhas contra a porta externa e ouviram por um longo
tempo aquela misteriosa crepitação.
– A poeira está se movendo, mas não sei por quê. Isso é outro enigma para nos preocuparmos
– disse McKenzie.
– Outro?
– Sim. Não entendo o que está acontecendo com a temperatura. Continua subindo, mas não tão
rápido como deveria.
O físico parecia verdadeiramente aborrecido com o fato de seus cálculos se mostrarem
incorretos, mas para Pat era o primeiro indício de boas-novas desde o desastre.
– Não fique tão aborrecido. Todos nós cometemos erros, e se este nos dá mais alguns dias de
vida, não vou me queixar.
– Mas eu não podia ter cometido este erro. A matemática é elementar. Sabemos quanto calor é
gerado por 22 pessoas, e ele deve ir para algum lugar.
– Elas não produzem tanto calor quando estão dormindo. Talvez seja esta a explicação.
– Você acha que eu deixaria de levar em conta algo tão óbvio! – disse o cientista irritado. –
Isso ajuda, mas não é o suficiente. Existe outra razão de não estarmos tão aquecidos quanto
deveríamos.
– Vamos aceitar o fato e ser gratos – disse Pat. – Enquanto isso, o que pensa do ruído?
Com óbvia relutância, McKenzie voltou sua mente para o novo problema.
– A poeira está se movendo, mas nós não estamos. Assim, trata-se provavelmente de um efeito
local. De fato, parece ocorrer apenas na parte de trás da cabine e não sei se isso tem algum
significado. – Gesticulou para o anteparo às suas costas.
– O que há do outro lado disto?
– Os motores, reserva de oxigênio, equipamento resfriador...
– Equipamento resfriador! É claro! Lembro-me de ter reparado quando vim a bordo. Nossas
aletas irradiadoras estão lá atrás, não estão?
– Certo.
– Agora entendo o que aconteceu. Elas ficaram tão quentes que a poeira começou a circular,
como qualquer líquido aquecido. Existe uma fonte de poeira lá fora e ela carrega nosso
excesso de calor. Com alguma sorte, a temperatura se estabilizará. Não ficaremos
confortáveis, mas vamos sobreviver.
Quando McKenzie o deixou, Pat tentou dormir de novo, mas não conseguiu. Ficou de olhos
abertos no fraco brilho vermelho, pensando na estranha volta do destino. A poeira que os
engolira e ameaçara cozinhá-los viera agora em seu socorro, enquanto suas correntes de
convecção arrastavam o excesso de calor à superfície. Mas ele não podia conjeturar se essas
correntes continuariam a fluir quando o Sol nascente inflamasse o Mar com a sua fúria.
Do outro lado da parede, a poeira deslizava sussurrante, e Pat lembrou-se, de repente, da
antiga ampulheta que possuíra quando criança. Ao ser invertida, a areia escoava através do
estreito gargalo para dentro da câmara inferior, e o nível crescente marcava a passagem dos
minutos e das horas.
Antes da invenção dos relógios, miríades de homens deviam ter seus dias divididos por tais
grãos de areia. Mas certamente ninguém jamais tivera sua vida medida por uma fonte de
poeira ascendente.
Capítulo 7
Na Cidade Clavius, o administrador-chefe Olsen e o comissário Davis acabavam de
conferenciar com o Departamento Jurídico. Não fora uma conversa alegre; consumiu-se muito
do tempo em discussões sobre os documentos de isenção de responsabilidade da
Administração, em caso de acidente, assinados por todos os turistas antes de embarcarem no
Selene. O comissário Davis argumentara contra isso quando as viagens foram inauguradas,
achando que assustaria os usuários, mas os juristas da Administração insistiram. Agora, estava
satisfeito com o fato de o ponto de vista deles ter prevalecido.
Estava satisfeito também com as autoridades em Porto Roris, que haviam realizado o seu
trabalho de maneira correta; questões como essa eram às vezes tratadas como formalidades
sem importância e silenciosamente ignoradas. Havia uma lista completa de assinaturas dos
passageiros do Selene, com uma possível exceção, que os juristas ainda discutiam.
O incógnito comodoro fora relacionado como R. S. Hamson, e parecia que ele realmente
assinara este nome. A assinatura, entretanto, era tão ilegível que poderia muito bem ser
"Hansteen". Até que um fac-símile fosse irradiado da Terra, ninguém seria capaz de decidir a
questão. Provavelmente não tinha importância. Como o comodoro viajava para negócios
oficiais, a Administração devia aceitar que tinha alguma responsabilidade por ele. E no que se
relacionava aos outros passageiros, ele era moralmente, se não legalmente, responsável.
Acima de tudo, deveria ser feito um esforço no sentido de encontrá-los e dar-lhes um enterro
decente. Este pequeno problema fora inteiramente colocado nas mãos do engenheiro-chefe
Lawrence, ainda em Porto Roris.
Ele poucas vezes estudara alguma coisa com menos entusiasmo. Enquanto houvesse uma
chance de os passageiros do Selene estarem vivos, ele moveria céus, Terra e Lua para resgatá-
los. Mas agora, que deveriam estar necessariamente mortos, não via razão para arriscar vidas,
tentando localizá-los e desenterrá-los.
Pessoalmente, ele não conseguia imaginar um lugar melhor para ser enterrado do que entre
aquelas montanhas eternas.
E o engenheiro-chefe Lawrence não tinha a menor dúvida de que eles estavam mortos; todos
os fatos se ajustavam perfeitamente. O tremor talvez tivesse ocorrido no exato momento em
que o Selene deixava o Lago Cratera, e a garganta estava agora semi-bloqueada pelos
deslizamentos. Mesmo o menor destes teria esmagado a embarcação como um brinquedo de
papel, todos a bordo perecendo em segundos enquanto o ar esguichava para fora. Se, por uma
chance em um milhão, escapara de ser achatado, seus sinais teriam sido recebidos. O
resistente radiofarol automático era construído para resistir a qualquer abalo razoável, e se
estava fora de ação devia ser por uma séria falha estrutural.
O primeiro problema era localizar os destroços. Isto seria razoavelmente fácil, mesmo que
estivessem enterrados sob um milhão de toneladas de material. Existiam instrumentos de
prospecção e uma grande variedade de detectores de metal que poderiam fazer esse trabalho.
E quando o casco rachara, o ar teria esguichado no quase vácuo lunar; mesmo agora, horas
depois, haveria traços de dióxido de carbono e oxigênio que poderiam ser localizados por um
dos detectores de gases usados na determinação de escapamentos em espaçonaves. Assim que
os esquis de pó retornassem à base para recarregar e efetuar a checagem mecânica, ele os
equiparia com detectores de vazamentos e os mandaria farejar em torno dos deslizamentos de
rochas.
Não, achar os destroços seria simples, mas recuperá-los era tarefa impossível. Ele nem ao
menos garantia que isso pudesse ser feito ao custo de cem milhões (já podia ver a cara do
A.C., caso mencionasse tal soma!), por causa de um detalhe: a impossibilidade física de
transportar equipamento pesado para a área, o necessário para remover milhares de toneladas
de calhaus. Os frágeis e pequenos esquis de pó eram inúteis. Para mover aqueles aludes,
alguém teria de fazer as escavadeiras flutuarem através do Mar da Sede, e importar
carregamentos inteiros de gelignite para abrir uma estrada entre as montanhas. A idéia era
inteiramente absurda. Podia entender o ponto de vista da Administração, mas estaria
condenado se permitisse que sua Divisão de Engenharia, já sobrecarregada, recebesse um tal
trabalho de Sísifo.
Com o maior tato possível – pois o administrador-chefe não era o tipo de homem que gostava
de receber um não como resposta – começou a esboçar o seu relatório.
Em resumo, deveria ser lido assim:
a) O trabalho é quase impossível;
b) Se puder ser feito, custará milhões e talvez acarrete perdas de vidas;
c) De qualquer modo, não vale a pena. Como semelhante rudeza o tornaria muito
impopular e, além disso, teria de apresentar justificativas, o relatório chegava a
mais de três mil palavras.
Quando terminou de ditar, fez uma pausa a fim de alinhavar as ideias Não conseguiu pensar em
mais nada e adicionou: "Cópias para o administrador-chefe, Lua; engenheiro-chefe, Lado
Remoto; supervisor do Controle de Tráfego; Comissário de Turismo; Arquivo Central.
Classifique como confidencial."
Apertou a tecla de transcrição. Em vinte segundos, todas as 12 páginas de seu relatório,
impecavelmente datilografadas e pontuadas, com vários deslizes gramaticais corrigidos,
emergira da telefax oficial. Observou-as rapidamente para o caso de a eletrossecretária ter
cometido enganos. Ela os cometia ocasionalmente (todas as eletrossecretárias eram tratadas
no feminino), especialmente nos períodos mais sobrecarregados, em que deveria anotar
ditados de uma dúzia de fontes ao mesmo tempo. Em todo caso, nenhuma boa máquina poderia
encarregar-se de todas as excentricidades de um idioma como o inglês e todo executivo sábio
checava a cópia final antes de enviá-la. Muitos desastres hilariantes atingiram os que
deixavam tudo para a eletrônica.
No Observatório Plato, o padre Ferraro achou a idéia perfeitamente plausível. De fato, ele já
suspeitava de que o foco do tremor estava sob o Mar da Sede e não nas Montanhas da
Inacessibilidade, mas não podia prová-lo, devido ao efeito bloqueador que o Mar exercia em
todas as vibrações. Não, um completo conjunto de sondagens nunca fora feito, seria tedioso e
gastaria muito tempo. Ele o sondara pessoalmente em alguns locais com varas telescópicas e
sempre atingira o fundo em menos de quarenta metros. Sua hipótese quanto à profundidade
média estava abaixo de dez metros, e o Mar era muito mais raso ao redor das bordas. Não, ele
não possuía um detector infravermelho, mas os astrônomos no Lado Remoto poderiam ajudar.
– Sinto, nenhum detector I.V. em Dostoievski. Nosso trabalho é todo no ultravioleta.
– Tente Verne.
– Oh, sim, costumávamos realizar trabalhos em infravermelhos, alguns anos atrás:
espectrogramas de estrelas vermelhas gigantes. Mas sabe de uma coisa? Os traços de
atmosfera lunar eram suficientes para interferir nas leituras; assim, transferiu-se todo o
programa para o espaço.
– Tente Lagrange,
Neste ponto, Lawrence chamou o Controle de Tráfego, pedindo os horários das naves da Terra
e descobriu estar com sorte. Mas o próximo movimento custaria um bocado de dinheiro e
somente o administrador-chefe poderia autorizá-lo.
Uma boa coisa em Olsen era que ele nunca consultava a sua equipe técnica a respeito de
matérias de seu domínio. Ouviu cuidadosamente a história de Lawrence e foi direto ao ponto
principal:
– Se esta teoria é correta – disse -, há uma chance de que ainda estejam vivos, depois de tudo.
– Mais do que uma chance. Eu diria uma grande probabilidade. Sabemos que o Mar é raso;
não podem estar muito fundo. A pressão no casco seria razoavelmente baixa, assim ele pode
continuar intacto.
– E você quer Lawson para ajudar na busca.
– Ele é a última pessoa que eu quero. Mas precisamos dele – respondeu o engenheiro-chefe,
com um gesto de resignação.
Capítulo 9
O comandante do cargueiro Auriga estava furioso, assim como sua tripulação, mas não havia
nada que pudessem fazer. Á dez horas da Terra e com ainda cinco para chegar à Lua, eles
haviam recebido ordens de parar em Lagrange, com todo o desperdício de velocidade e tempo
de computação que tal fato implicava. E para tornar as coisas piores, estavam se desviando da
Cidade Clavius para aquele miserável depósito de lixo que era Porto Roris, quase do outro
lado da Lua. O espaço celeste estava com mensagens de cancelamento de jantares e encontros
sobre todo o hemisfério Sul. O disco de prata manchada da Lua, com sua borda leste enrugada
por montanhas facilmente visíveis, formava um cenário deslumbrante por trás de Lagrange II,
quando o Auriga se imobilizou a cem quilômetros da estação. A nave não tinha permissão para
se aproximar mais; a interferência produzida pelo seu equipamento e pelo brilho de seus jatos
já afetara os sensíveis instrumentos registradores do satélite. Apenas aos foguetes químicos, à
moda antiga, era permitido operar na vizinhança de Lagrange; propulsão a plasma e motores
de fusão eram rigorosamente tabu.
Carregando somente uma pequena valise cheia de roupas e uma mala grande repleta de
equipamento, Tom Lawson entrou na nave vinte minutos após a sua partida de Lagrange. O
piloto da nave-táxi se recusara a ir depressa, a despeito das reclamações do Auriga. O novo
passageiro foi saudado sem nenhum entusiasmo quando chegou a bordo. Seria recebido de
modo bem diferente, caso soubessem de sua missão. Contudo, o administrador-chefe ordenara
segredo por não querer levantar falsas esperanças entre os parentes dos passageiros perdidos.
O comissário de Turismo desejava uma divulgação imediata; isto provaria que estavam
fazendo tudo o que era possível, mas Olsen dissera firmemente: "Espere até que se produza
algum resultado. Então você poderá dizer alguma coisa aos seus amigos das agências de
notícias."
A ordem, no entanto, fora tardia. A bordo do Auriga viajava Maurice Spencer, redator-chefe
das Notícias Interplanetárias, para assumir seu cargo em Cidade Clavius. Ele não tinha certeza
se isto era uma promoção ou uma demissão de seu cargo anterior em Pequim.
Ao contrário dos outros passageiros, ele não estava nem um pouco aborrecido com a mudança
de curso. O atraso ficava por conta da firma e, como velho jornalista, Spencer sempre dava
boas-vindas ao incomum, à quebra da rotina. Era certamente singular que uma nave da rota
lunar perdesse várias horas e uma quantidade inimaginável de energia para se deter em
Lagrange com o único objetivo de apanhar um rapaz de cara amarrada e com um par de malas.
E por que o desvio de Clavius para Porto Roris? "Instruções de alto nível da Terra", dissera o
comandante, e parecia estar falando a verdade quando negara qualquer conhecimento. Era um
mistério – e mistérios eram o negócio de Spencer. Fez uma suposição sagaz e acertou, ou
quase, da primeira vez.
Isso teria relação com o cruzador do pó perdido, que provocara um tumulto na Terra. Este
cientista de Lagrange devia ter alguma informação a respeito ou talvez fosse ajudar na busca.
Mas por que o segredo? Talvez houvesse algum escândalo ou erro que a Administração Lunar
queria abafar. A razão simples e totalmente aceitável nunca ocorreu a Spencer.
Evitou falar com Lawson durante o resto da breve viagem, e se divertiu ao notar que os
poucos passageiros que tentaram começar uma conversa foram rapidamente repelidos.
Spencer esperava sua hora e ela chegou trinta minutos antes do pouso.
Não era por acaso que ele estava sentado ao lado de Lawson quando se deu o aviso de apertar
os cintos. Junto com os outros 15 passageiros, eles se acomodavam na minúscula cabine às
escuras, olhando a Lua que rapidamente se aproximava.
Projetada em uma tela de observação por uma lente no casco externo, a imagem parecia mais
nítida e brilhante do que se fosse real. Era como se estivessem no interior de uma velha
câmara escura; um arranjo muito mais seguro do que uma real janela de observação, uma
estrutura perigosa, contra a qual os projetistas de espaçonaves lutavam com unhas e dentes.
O panorama que se expandia acentuadamente era glorioso, uma visão inesquecível; todavia,
Spencer dispensava-lhe apenas a metade de sua atenção.
Observava o homem ao seu lado, suas feições intensamente aquilinas, quase invisíveis na luz
vinda da tela.
– Não é em algum lugar, lá embaixo – disse ele em seu tom de voz mais displicente – que
aquele barco cheio de turistas acabou de se perder?
– Sim – disse Tom, depois de um considerável tempo.
– Eu não sei me orientar na Lua. Tem alguma idéia de onde se supõe que eles estejam?
Spencer descobrira há muito que mesmo os homens menos cooperativos raramente se negam a
dar informações se alguém lhes der a impressão de que estão fazendo um favor, oferecendo-
lhes a oportunidade de exibirem seu conhecimento superior. O truque funcionava em nove de
cada dez casos: funcionava agora com Lawson.
– Eles estão lá – disse, apontando o centro da tela. – Aquelas são as Montanhas da
Inacessibilidade; ao redor é o Mar da Sede.
Spencer olhou com verdadeiro espanto os pontos negros e brancos, nitidamente delineados,
das montanhas em cuja direção desciam. Esperou que o piloto, humano ou eletrônico,
conhecesse seu trabalho; a nave parecia baixar muito depressa.
Percebeu, então, que deslizavam para um território plano na esquerda da imagem.
As montanhas e a curiosa área cinzenta ao redor derivavam agora do centro da tela.
– Porto Roris – disse Tom inesperadamente, indicando uma marca negra quase invisível na
extrema esquerda. – É lá que vamos pousar.
– Ótimo, eu detestaria descer naquelas montanhas – disse Spencer, determinado a manter a
conversação. – Eles nunca encontrarão os pobres-diabos se estiverem enterrados naquela terra
agreste. Em todo caso, supõe-se que estejam sepultados sob uma avalanche, não?
Tom deu uma risada superior.
– Supõe-se que estejam – disse, ironicamente.
– Por quê? Não é verdade?
Um pouco atrasadamente, Tom lembrou-se de suas instruções.
– Não posso lhe dizer mais nada – replicou, na mesma voz afetada e convicta.
Spencer abandonou o assunto; já soubera o suficiente para convencê-lo de uma coisa. Cidade
Clavius teria de esperar; ele faria melhor permanecendo em Porto Roris, por enquanto.
A certeza aumentou quando seus olhos cheios de inveja viram o Dr. Tom Lawson ser liberado
através da Quarentena, Alfândega e Imigração em três minutos cravados.
Qualquer espião que ouvisse os sons dentro do Selene ficaria muito intrigado. A cabine
reverberava, não muito melodiosamente, ao som de vinte e uma vozes e outros tantos tons,
cantando "parabéns pra você".
– Alguém mais, além da senhora Wil iams – falou o comodoro Hansteen, quando o barulho
diminuiu um pouco -, acabou de se lembrar de que hoje é o seu aniversário? Sabemos, é claro,
que algumas senhoras gostam de manter isto em segredo depois de uma certa idade.
Não houve mais voluntários, mas Duncan McKenzie elevou sua voz acima dos risos.
– Há uma coisa engraçada a respeito de aniversários, com a qual eu costumava ganhar
apostas. Sabendo-se que há 365 dias num ano, quantas pessoas seriam necessárias para que,
num grupo, tivéssemos chances iguais de que duas delas aniversariassem no mesmo dia?
– Metade de 365 , eu suponho; digamos 180 – respondeu alguém, depois de uma breve pausa.
– Esta é a resposta óbvia, mas totalmente errada. Se você tem um grupo maior que 24 pessoas,
as chances são mais do que razoáveis para que duas delas façam aniversário no mesmo dia.
– Isso é ridículo! 24 dias em 365 não podem produzir essa probabilidade.
– Lamento, mas produz. E se há mais do que quarenta pessoas, em nove de cada dez casos
duas delas farão aniversário no mesmo dia. Há uma chance de que funcione mesmo com 22.
Que tal tentarmos, comodoro?
– Muito bem, vou percorrer a cabine e perguntar a cada um o dia de seu aniversário.
– Oh, não – protestou McKenzie. – As pessoas irão mentir, se fizer assim. As datas devem ser
escritas de modo que um não saiba o aniversário do outro.
Uma página quase em branco de um dos guias turísticos foi sacrificada para esse propósito e
rasgada em vinte e duas tiras. Ao serem coletadas e lidas, para espanto geral – e satisfação de
McKenzie – revelou-se que ambos, Pat Harris e Robert Bryan, haviam nascido em 23 de maio.
– Pura sorte! – disse o cético, estabelecendo com isso um animado debate matemático entre
meia dúzia de passageiros do sexo masculino. As senhoras estavam totalmente
desinteressadas, talvez porque não gostassem de matemática, talvez ainda porque preferissem
ignorar aniversários.
Quando o comodoro achou que a discussão fora longe demais, pediu atenção.
– Senhoras e senhores. Vamos passar ao item seguinte do nosso programa. Estou satisfeito em
dizer que o comitê de entretenimento, composto pela senhora Schuster e pelo professor Jaya...
ahm, professor J., teve uma idéia que deverá nos divertir um pouco. Eles sugerem que
estabeleçamos uma corte para interrogar todos, um de cada vez. O objetivo da corte é
encontrar resposta para esta pergunta: por que você veio à Lua? Ê claro que algumas pessoas
não desejarão ser interrogadas, pois sei que metade de vocês pode estar fugindo da polícia ou
de suas esposas. São livres para se recusarem a fornecer declarações, mas não me culpem se
eu tirar as piores conclusões possíveis. Muito bem, o que acham da idéia?
Houve um razoável entusiasmo em alguns setores e irônicos grunhidos de desaprovação em
outros, mas desde que não houve uma firme oposição o comodoro seguiu em frente. Quase
automaticamente foi eleito presidente da corte; igualmente automática foi a indicação de Irving
Schuster para promotor.
Os pares de assentos dianteiros foram virados de modo a se voltarem para a traseira do
cruzador. Serviam de bancada, dividida entre o presidente e o promotor.
Quando todos se haviam acomodado e o oficial de justiça (Pat Harris) pedira ordem, o
presidente fez uma breve advertência.
– Não estamos engajados em uma investigação criminal – disse, mantendo o rosto sério com
alguma dificuldade. – Esta é apenas uma comissão de inquérito. Se alguma testemunha sentir
que está sendo intimidada pelo meu ilustre colega, pode apelar à corte. Que o oficial chame a
primeira testemunha.
– Ah... meritíssimo... quem é a primeira testemunha? – perguntou o oficial de justiça.
Foram necessários dez minutos de discussão entre a corte, promotor e membros do público
para se decidir esta importante questão. Finalmente resolveu-se fazer um sorteio, e o primeiro
nome foi o de David Barrett.
Sorrindo levemente, a testemunha dirigiu-se à frente e tomou seu assento no estreito espaço
diante da bancada.
Irving Schuster, achando que não tinha uma aparência muito jurídica vestido apenas com
camiseta e ceroulas, limpou a garganta de maneira significativa.
– Seu nome é David Barrett?
– Sim.
– Sua ocupação?
– Engenheiro agrícola, aposentado.
– Senhor Barrett, pode dizer a esta corte exatamente por que veio à Lua?
– Estava curioso para ver como era aqui e tinha tempo e dinheiro.
Irving Schuster olhou para Barrett de modo oblíquo, através dos óculos de lentes grossas.
Sempre achara que isso tinha um efeito perturbador em testemunhas. Usar óculos era quase um
sinal de excentricidade nesta era, mas médicos e juristas, especialmente os mais idosos, ainda
favoreciam esse costume, que de fato passara a simbolizar a profissão médica e jurídica.
– Estava curioso para ver como era – repetiu Schuster. – Isso não é explicação. Por que estava
curioso?
– Temo que a questão esteja tão vagamente formulada que não possa respondê-la. Por que
alguém faz algo?
O comodoro Hansteen relaxou, com um sorriso de prazer. Era exatamente o que desejava:
colocar os passageiros argumentando e falando livremente sobre algo que seria do interesse
de todos, mas que não levantasse controvérsias ou emoções. (A corte poderia fazê-lo, é claro,
mas cabia a ele mantê-la em ordem.)
– Admito – continuou o promotor – que minha pergunta devia ser mais específica. Tentarei
reformulá-la.
Pensou por alguns instantes, remexendo em suas notas. Eram apenas folhas tiradas de um guia
turístico. Escrevera algumas perguntas nas margens. Jamais gostara de se levantar numa corte
sem ter alguma coisa na mão.
Havia ocasiões em que alguns segundos de consultas imaginárias eram inestimáveis.
– Seria razoável dizer que o senhor foi atraído pelas belezas cênicas da Lua?
– Sim, isto foi parte da atração, eu vi a literatura turística e os filmes, é claro, e imaginava se
a realidade corresponderia a isso.
– E ela correspondeu?
– Eu diria que excedeu as minhas expectativas – foi a resposta seca.
Houve uma gargalhada geral no resto do grupo. O comodoro Hansteen bateu vigorosamente no
encosto de seu assento.
– Ordem! – gritou. – Se houver mais distúrbios serei obrigado a esvaziar a corte!
Isso, como pretendera, provocou uma gargalhada mais alta, que ele deixou terminar
naturalmente. Quando o riso cessou, Schuster continuou no seu tom de voz do tipo "o que
estava fazendo na noite do dia 22?".
– Isto é muito interessante., senhor Barrett. Veio da Terra, com uma despesa considerável,
apenas para olhar o panorama. Diga-me, o senhor já viu o Grand Canyon?
– O senhor viu?
– Meritíssimo – apelou Schuster -, a testemunha se recusa a colaborar.
Hansteen olhou severamente para o senhor Barrett, que não parecia nem um pouco intimidado.
– O senhor não está conduzindo este interrogatório, senhor Barrett. Sua função é responder às
perguntas, não fazê-las.
– Eu peço o perdão da corte, meu lorde – replicou a testemunha.
– Ah! meu lorde? – disser Hansteen hesitante, olhando para Schuster. – Pensei que era
"meritíssimo".
O advogado deu à questão vários minutos,de pensamento solene.
– Eu sugiro, meritíssimo, que cada testemunha use o procedimento a que está acostumada em
seu país. Se o respeito for demonstrado para com a corte, isso será o suficiente.
– Muito bem, prossiga.
– Eu gostaria de saber, senhor Barrett, por que achou necessário visitar a Lua, quando ainda
havia tantos lugares da Terra que não conhecera. Pode nos dar uma razão válida para tal
comportamento ilógico?
Era uma boa pergunta, do tipo que interessaria a todos, e Barrett fazia agora uma tentativa
séria para responder.
– Já vi uma porção razoável da Terra – disse lentamente, com seu sotaque inglês, que
constituía uma raridade tão grande quanto os óculos de Schuster. – Já estive no Hotel Everest,
em ambos os polos, cheguei mesmo a descer ao fundo da fossa de Calypso. Assim, conheço
bastante o nosso planeta. Digamos que perdi a capacidade de me surpreender. A Lua, por
outro lado, era completamente nova, um mundo inteiro a menos de 24 horas de viagem. Não
pude resistir à novidade.
O pequeno hangar era do tamanho exato para acomodar os dois esquis e levou apenas alguns
minutos para as bombas exaurirem o ar. Enquanto o traje enrijecia ao seu redor, Tom sentiu
uma pontada de medo. O engenheiro-chefe e dois pilotos o observavam e ele não desejava
dar-lhes a satisfação de perceberem que estava em pânico. Nenhum homem pode evitar um
sentimento de tensão quando entra no vácuo pela primeira vez em sua vida.
As portas herméticas abriram-se. Houve um fraco puxão de dedos fantasmagóricos, enquanto
os últimos vestígios de ar escapavam, pressionando febrilmente o seu traje antes de se
dispersarem no vazio. E então, liso e monótono, o vazio cinzento do Mar da Sede estendia-se
até encontrar o horizonte.
Por um momento, pareceu impossível que aqui, a apenas alguns metros, estava a realidade por
trás das imagens que estudara de uma grande distância no espaço.
(Quem estaria agora olhando através do telescópio de cem centímetros? Estaria um de seus
colegas observando, nesse momento, de seu ponto acima da Lua?)
Mas não era uma figura pintada em uma tela por elétrons volantes: a estranha e amorfa matéria
que engolira 22 homens e mulheres, sem deixar traços, era real. E Tom Lawson estava a ponto
de se aventurar através dela neste veículo frágil.
Teve pouco tempo para meditar. O esqui vibrou quando as hélices começaram a girar; então,
seguindo o Espanador Um, ele partiu para a face descoberta da Lua.
Os raios horizontais do sol nascente os atingiram assim que deixaram a longa sombra dos
prédios de, Porto Roris. Mesmo com a proteção dos filtros automáticos, era perigoso olhar
diretamente para a fúria branco-azulada nó céu do leste. Não, corrigiu-se Tom, isto é a Lua,
não a Terra, aqui o sol se ergue no oeste. Assim, estamos nos dirigindo ao nordeste, para
dentro de Sinus Roris, ao longo da trilha que o Selene seguiu e de onde não voltou.
Agora que as cúpulas baixas do Porto encolhiam visivelmente em direção ao horizonte, ele
sentia a excitação e a alegria de todas as formas de velocidade. A sensação durou apenas
alguns minutos, até que todas as marcas do terreno desapareceram e eles tiveram a ilusão de
estar suspensos no centro de uma planície infinita. Apesar da agitação das hélices e da lenta e
silenciosa queda das nuvens de pó, pareciam estar imóveis. Tom sabia que viajavam a uma
velocidade que os levaria através do Mar em poucas horas; entretanto tinha de lutar contra o
medo de que estivessem perdidos, a anos-luz de distância de qualquer esperança de salvação.
Foi nesse exato momento que começou, um pouco tardiamente, a sentir um relutante respeito
pelos homens com quem trabalhava.
Este era um bom lugar para começar a checar o equipamento. Ligou o detector e o deixou
esquadrinhando à frente e atrás sobre a vastidão que acabavam de cruzar.
Notou, com satisfação, os dois rastros ofuscantes de luz estendendo-se para trás na escuridão
do Mar. Este teste, sem dúvida, era infantilmente fácil; o desvanecente fantasma térmico do
Selene seria um milhão de vezes mais difícil de localizar contra o calor crescente da aurora.
Mas era encorajador. Se houvesse fracassado aqui, não haveria razão para continuar mais
além.
– Como está funcionando? – indagou o engenheiro-chefe, que devia estar obser-rvando do
outro esqui.
– De acordo com as especificações – respondeu Lawson com cautela. – Parece comportar-se
normalmente. – Apontou o detector para o minguante crescente da Terra, um alvo um pouco
mais difícil, mas não problemático, já que necessitava de pouca sensibilidade para captar o
suave calor do mundo terrestre quando projetado contra a noite fria do espaço.
Sim, lá estava a Terra no infravermelho; estranha e à primeira vista desconcertante, pois ela
não era mais um crescente geometricamente perfeito, mas um cogumelo esfarrapado, com o
caule estendido ao longo do equador.
Tom levou alguns segundos para interpretar a imagem. Ambos os polos haviam sido cortados.
O que era compreensível, pois eram frios demais para serem detectados em qualquer ajuste da
sensibilidade. Mas por que aquela projeção através do lado noturno e não-iluminado do
planeta? Percebeu então estar observando o brilho quente dos oceanos tropicais, irradiando
para a escuridão o calor que haviam armazenado durante o dia. No infravermelho, a noite
equatorial era mais brilhante do que o dia polar.
Era um fato que nenhum cientista jamais deveria esquecer: os sentidos humanos percebem
somente uma pequena e distorcida imagem do universo. Tom Lawson nunca ouvira a analogia
de Platão sobre os prisioneiros acorrentados em uma caverna, observando sombras lançadas
sobre as paredes e tentando deduzir, a partir delas, as realidades do mundo exterior. Mas aqui
havia uma demonstração que Platão teria apreciado: Qual das terras era a "real"? O crescente
perfeito, visível ao olho, ou o cogumelo esfarrapado, brilhando no infravermelho extremo? Ou
nenhuma das duas?
O escritório era pequeno, mesmo para Porto Roris, que não passava de uma estação de
trânsito entre o Lado Terrestre e o Lado Remoto, além de servir de trampolim para os turistas
do Mar da Sede (que não tinham o aspecto de desejarem pular naquela direção por algum
tempo).
O Porto conhecera um breve momento de glória, trinta anos atrás, como base de um dos
poucos criminosos bem-sucedidos da Lua: Jerry Budker, que fizera uma pequena fortuna,
comercializando pedaços falsos do Lunik II. Dificilmente seria tão excitante quanto Robin
Hood ou Bil y, the Kid, mas era o melhor que a Lua podia oferecer.
Maurice Spencer estava satisfeito que Porto Roris fosse essa cidadezinha calma, embora
suspeitasse que não o seria por muito tempo, especialmente quando seus colegas em Clavius
despertassem para o fato de que o redator-chefe da Notícias Interplanetárias estava por lá,
inexplicavelmente, sem se apressar em ir à cidade grande (população: 52.647). Um discreto
telegrama para a Terra fora enviado aos seus superiores, que confiariam em seu julgamento e
deduziriam qual a história que ele buscava. Mais cedo ou mais tarde, os seus concorrentes
fariam a mesma dedução, mas a essa altura ele esperava estar muito à frente.
O homem com quem conversava era o capitão do Auriga, ainda desapontado, que passara uma
hora complicada e insatisfatória ao telefone, falando com seus agentes em Clavius, numa
tentativa de conseguir transporte para sua carga. McIver, McDonald, Macarthy e McCul och
Ltd. pareciam considerar como uma falha dele o fato de o Auriga ter descido em Porto Roris.
Desligou, por fim, depois de mandar que resolvessem com o escritório central. Como ainda
era manhã de domingo em Edimburgo, isso os conteria por algum tempo.
O capitão Anson acalmou-se um pouco depois do segundo uísque. Afinal, valia a pena
conhecer um homem capaz de encontrar um Johnnie Walker em Porto Roris, e ele perguntou
como Spencer conseguira obtê-lo.
– O poder da imprensa – respondeu o outro, com uma risada. – Um repórter nunca revela as
suas fontes. Se o fizer, não permanece na profissão por muito tempo.
Abriu a pasta e retirou um maço de mapas e fotos.
– Tive muito trabalho em conseguir isto em tão pouco tempo. Agradeceria a gentileza de não
dizê-lo a ninguém. É extremamente confidencial, pelo menos por enquanto.
– Claro. É a respeito de quê? Do Selene?
– Então fez a mesma suposição? Você está certo. Pode dar em nada, mas eu quero estar
preparado.
Espalhou as fotos sobre a mesa. Continham uma imagem do Mar da Sede, de uma série tirada
por satélites de reconhecimento a baixa altitude e publicada pela Pesquisa Lunar. Embora
fossem uma vista do entardecer e as sombras apontassem em direções opostas, eram quase
idênticas ao que Spencer vira um pouco antes do pouso. Ele as estudara tão detidamente que
as conhecia de cor.
– As Montanhas da Inacessibilidade – disse. – Elas se elevam de forma muito íngreme para
fora do Mar, até uma altitude de quase dois mil metros. O oval negro é o Lago Cratera...
– Onde o Selene se perdeu?
– Onde pode estar perdido; há algumas dúvidas quanto a isso. O nosso jovem e sociável
amigo de Lagrange tem provas de que afundou realmente no Mar da Sede, em torno desta área.
As pessoas a bordo ainda podem estar vivas. E nesse caso, capitão, haverá uma tremenda
operação de resgate a apenas cem quilômetros daqui. Porto Roris será o maior centro de
novidades do sistema solar.
– Fiuu! E este é o seu jogo. Mas onde é que eu entro? Mais uma vez Spencer colocou o dedo
sobre o mapa.
– Exatamente aqui, capitão. Eu quero alugar a sua nave. E quero que me instale com uma
câmara e duzentos quilos de equipamento de TV na muralha oeste das Montanhas da
Inacessibilidade.
– Eu não tenho mais perguntas, meritíssimo – disse o promotor Schuster, sentando-se
abruptamente.
– Muito bem – respondeu o comodoro Hansteen. – Devo ordenar a testemunha que não deixe a
jurisdição desta corte.
Em meio à gargalhada geral, David Barrett retornou ao seu assento. Representara bem o seu
papel; embora suas respostas fossem sérias e bem pensadas, eram enriquecidas com pitadas
de humor que mantinham a audiência continuamente interessada. Se todas as outras
testemunhas fossem igualmente solícitas, isso resolveria o problema do entretenimento pelo
tempo que fosse necessário. Mesmo que usasse todas as memórias de quatro gerações por dia,
sem dúvida uma completa impossibilidade, alguém ainda estaria falando quando o recipiente
de oxigênio desse o seu último sopro.
Hansteen olhou para o relógio. Ainda tinham uma hora antes do lanche frugal.
Poderiam voltar para Os brutos também amam ou começar (a despeito das objeções da
senhorita Morley) aquele ridículo romance histórico. Mas era uma pena interromper agora,
quando todos estavam receptivos.
– Se todos concordam, chamarei outra testemunha.
– Tem o meu apoio – foi a resposta rápida de David Barrett, que se sentia a salvo agora de
qualquer inquisição posterior. Até os jogadores de pôquer eram a favor; assim, o oficial de
justiça pegou outro nome no pote de café onde todas as tiras de papel haviam sido misturadas.
Olhou-o com surpresa e hesitou antes de ler.
– Qual é o problema? – indagou a corte. – É o seu nome?
– Ah... não – respondeu o oficial, olhando para o promotor com um riso maldoso.
Limpou a garganta e chamou:
– Senhora Myra Schuster!
– Meritíssimo, eu protesto! – A senhora Schuster ergueu lentamente a sua figura formidável,
embora houvesse perdido um quilo ou dois desde que deixara Porto Roris. Apontou para o
marido, que parecia embaraçado e tentava se esconder por trás de suas notas.
– Ê justo que ele me faça perguntas?
– Eu me disponho a me sentar – disse Irving Schuster, antes mesmo que a corte pudesse dizer
"objeção aceita".
– Estou preparado para realizar o interrogatório – disse o comodoro, embora sua expressão o
desmentisse. – Existe mais alguém que se sinta qualificado para fazê-lo?
Houve um curto silêncio; em seguida, para alívio e surpresa de Hansteen, um dos jogadores de
pôquer se levantou.
– Meritíssimo, embora eu não seja advogado, tenho alguma experiência jurídica.
Gostaria de ajudar.
– Muito bem, senhor Harding. A testemunha é sua.
Harding tomou o lugar de Schuster na parte frontal da cabine e observou a audiência
fascinada. Era um homem atlético, de aparência dura, que de algum modo não se encaixava
com a de um executivo de banco. Hansteen pensava, rapidamente, se isso seria verdade.
– Seu nome é Myra Schuster?
– Sim.
– E o que está fazendo na Lua a senhora Schuster? A testemunha sorriu.
– Esta pergunta é fácil. Eles me disseram que eu pesaria somente vinte quilos aqui.
Assim, eu vim.
– Apenas para registro, por que desejava pesar vinte quilos?
A senhora Schuster olhou para Harding como se ele houvesse dito algo muito tolo.
– Eu era uma dançarina – disse, e sua voz tornou-se subitamente melancólica, sua expressão
distante. – Desisti, é claro, quando me casei com Irving.
– Por que "é claro", senhora Schuster?
A testemunha olhou para o marido, que se mexera, desconfortável; pareceu que ia fazer alguma
objeção, mas então pensou melhor e ficou quieto.
– Oh, ele dizia que não era dignificante. Eu suponho que estivesse com a razão, tendo em vista
o tipo de dança que eu costumava fazer.
Isso foi demais para o senhor Schuster. Ele se levantou abruptamente, ignorando a corte, e
protestou:
– Realmente, Myra! Não há necessidade de...
– Ora, vector it out, Irving! – respondeu ela, a gíria fora de moda trazendo de volta um tênue
perfume dos anos noventa. – Que importância isso tem agora? Vamos parar de representar e
ser nós mesmos. Eu não ligo para o fato de estas pessoas saberem que eu costumava dançar no
Asteroide Azul ou que você me tirou da cadeia quando os tiras deram uma batida no lugar.
Irving sentou-se, resmungando, enquanto a corte se dissolvia com grandes gargalhadas, que
Sua Excelência não fez nada para interromper. Esta liberação de tensões era exatamente o que
ele esperava. Enquanto houvesse pessoas rindo, não precisava temer.
E começou a se admirar mais ainda com o senhor Harding, cujo questionamento casual, mas
sagaz, produzira tudo isso. Para um homem que dizia não ser um advogado, ele estava se
saindo muito bem. Seria interessante ver como se portaria no banco das testemunhas, quando
fosse a vez de Schuster fazer as perguntas.
Capítulo 11
Finalmente havia algo para quebrar a planura sem marcas do Mar da Sede. Uma estilha de luz,
minúscula porém brilhante, despontara no horizonte enquanto os esquis de pó avançavam e
agora subia lentamente contra as estrelas. Logo outra se reunia a ela e em seguida uma
terceira. Os picos das Montanhas da Inacessibilidade erguiam-se sobre a borda da Lua.
Como de hábito, não havia meios de avaliar a distância até eles; poderiam ser pequenas
rochas, a alguns passos dali, ou nem serem parte da Lua, e sim um gigantesco e acidentado
mundo, a milhões de quilômetros no espaço. Na realidade eles estavam a cinquenta
quilômetros de distância. Os esquis de pó chegariam lá em meia hora.
Tom Lawson olhou-os com gratidão. Agora havia algo com que ocupar seus olhos e sua mente.
Sentira que enlouqueceria se tivesse que olhar esta planície aparentemente infinita por muito
mais tempo. Estava aborrecido consigo mesmo por ser tão ilógico. Sabia que o horizonte
estava muito próximo e que todo o Mar era apenas uma pequena parte da superfície bastante
limitada da Lua. Todavia, ao sentar-se aqui, dentro de seu traje espacial, sem aparentemente
chegar a parte alguma, lembrou-se daqueles sonhos horríveis, em que se luta com todas as
forças para escapar de algum perigo tenebroso mas se permanece preso, inapelavelmente, no
mesmo lugar. Tom frequentemente tinha tais sonhos, e outros piores ainda.
Mas agora podia notar que faziam progressos e que sua sombra longa e negra não estava mais
congelada no solo, como às vezes parecia. Focalizou o detector nos picos emergentes e ficou
impressionado. Como esperava, as rochas estavam quase no ponto de fervura, nas faces
voltadas para o Sol. Embora o dia lunar tivesse apenas começado, as Montanhas já estavam
queimando. Era muito mais frio aqui ao "nível do Mar", onde a poeira superficial não atingiria
a temperatura máxima antes do meio-dia, ainda a sete dias de distância no tempo. Este era um
dos itens a seu favor; embora o dia já se iniciasse, ele ainda tinha uma chance razoável de
detectar uma fraca fonte de calor antes que a fúria total do Sol a obliterasse.
Vinte minutos depois, as montanhas já dominavam o céu e os esquis reduziram para meia
velocidade.
– Não queremos ultrapassar a trilha deles – explicou Lawrence. – Se olhar com cuidado, bem
abaixo daquele pico duplo à direita, verá uma linha negra vertical.
Conseguiu?
– Sim.
– Aquilo é a garganta que leva ao Lago Cratera. A mancha de calor que detectou se encontra a
três quilômetros a oeste, portanto fora do alcance da vista, abaixo do nosso horizonte. Em que
direção quer se aproximar?
Lawson pensou sobre o assunto. Teria de ser do norte ou do sul. Caso se aproximassem do
oeste, aquelas rochas ferventes ocupariam o seu campo de visão; pelo leste, a aproximação
seria ainda mais difícil, pois estariam rumando na direção do centro do sol nascente.
– Girem para o norte – disse – e me avisem quando estivermos a dois quilômetros do ponto.
Os esquis aceleraram uma vez mais. Embora ainda não houvesse esperança de detectar alguma
coisa, ele começou a esquadrinhar de um lado a outro a superfície do Mar. Toda a missão
estava baseada numa hipótese: as camadas superficiais de poeira eram normalmente uniformes
em temperatura e qualquer distúrbio térmico seria devido à ação do homem. Se estivesse
errado...
Estava errado. Calculara de maneira completamente inexata. Na tela de observação, o Mar era
um desenho sarapintado de luz e sombra, ou melhor, de calor e frio. As diferenças de
temperatura atingiam apenas frações de um grau, mas a imagem estava inapelavelmente
confusa. Não havia a menor possibilidade de localizar qualquer fonte individual em meio
àquela colcha de retalhos térmica.
Sentindo-se mal, Tom Lawson ergueu os olhos da tela de observação e fitou incredulamente a
poeira. A olho nu, continuava totalmente uniforme. Mas no infravermelho parecia tão
mosqueada como um mar da Terra, durante um dia nublado, quando as águas são cobertas por
desenhos mutáveis de sombra e luz solar.
Mas não havia nuvens aqui para lançarem suas sombras sobre este mar árido. O sombreado
devia ter alguma outra causa. Qualquer que fosse, Tom estava muito chocado para procurar a
explicação científica. Percorrera toda aquela distância até a Lua, arriscara o pescoço e a
sanidade nessa corrida louca e, no final de tudo, alguma excentricidade da natureza arruinara
seu experimento cuidadosamente planejado.
Era a pior sorte possível e ele teve muita pena de si mesmo.
Levou vários minutos antes de se sentir igualmente pesaroso pelas pessoas a bordo do Selene.
– Então – disse o capitão do Auriga com uma calma exagerada – o senhor gostaria de pousar
nas Montanhas da Inacessibilidade? É uma idéia muito interessante.
Era óbvio, para Spencer, que o capitão Anson não o levara a sério. Talvez pensasse estar
lidando com algum jornalista maluco que não tinha idéia dos problemas envolvidos. Isso seria
correto há doze horas, quando todo o plano era somente um sonho vago na mente de Spencer.
Mas agora, com toda a informação necessária na ponta da língua, sabia o que estava fazendo.
– Já o ouvi gabar-se, capitão, de que poderia pousar esta nave a um metro de qualquer ponto
determinado. Isto é correto?
– Bem, com uma pequena ajuda do computador.
– É o suficiente. Agora dê uma olhada nesta fotografia.
– O que é isso? Glasgow, numa noite úmida de sábado?
– Talvez esteja mal ampliada, porém mostra tudo o que queremos saber. É uma ampliação
desta área, exatamente abaixo do cume ocidental das Montanhas. Terei uma cópia melhor,
dentro de algumas horas, e um mapa de relevo preciso. A Pesquisa Lunar está desenhando um
agora, a partir de suas fotos de arquivo. Minha opinião é que existe uma saliência, aqui, larga
o suficiente para uma dúzia de naves pousarem. E é razoavelmente plana, pelo menos nestes
pontos. Assim, um pouso não apresentaria problemas, sob o seu ponto de vista.
– Nenhum problema técnico talvez. Mas tem idéia de quanto custaria?
– Isso é comigo, capitão, ou com a minha rede. Nós achamos que valerá a despesa, se meu
palpite der certo.
Spencer podia ter dito muito mais; mas era mau negócio mostrar o quanto se necessita dos
serviços de alguém. Esta poderia ser a história da década, o primeiro salvamento espacial a
ocorrer literalmente debaixo dos olhos das câmaras de TV. Já aconteceram Deus sabe quantos
desastres e acidentes no espaço, mas todos careceram dos elementos de drama e suspense. Os
envolvidos haviam morrido instantaneamente ou estavam além de qualquer esperança de
resgate. Semelhantes tragédias produziam manchetes, mas não histórias realmente
interessantes como a que ele pressentia aqui.
– Não é apenas o dinheiro – disse o capitão, embora seu tom de voz mostrasse existirem
poucas questões de maior importância. – Mesmo se os proprietários concordarem, você terá
de conseguir uma permissão especial do Controle Espacial, Lado Terrestre.
– Eu sei, tenho alguém trabalhando lá agora. Isso pode ser conseguido.
– E quanto ao Loyd’s? Nosso seguro não cobre pequenos pulos como este.
Spencer inclinou-se sobre a mesa, preparando-se para soltar a sua bomba arrasadora.
– Capitão – disse, lentamente. – Notícias Interplanetárias está preparada para depositar uma
apólice no valor do seguro da nave, que por acaso eu sei ser em torno de 6.425.050 dólares
esterlinos inflacionados.
O capitão Anson piscou duas vezes e a sua atitude mudou imediatamente. Então, parecendo
muito pensativo, tomou outro drinque.
– Nunca imaginei que fosse fazer alpinismo em minha vida – disse – mas se o senhor é
suficientemente tolo para arriscar seis milhões de dólares, então o meu coração está nas terras
altas.
Para grande alívio de seu marido, a senhora Schuster teve seu depoimento interrompido pela
hora do lanche. Era uma senhora muito loquaz e estava obviamente entusiasmada com a
primeira oportunidade que tivera em anos para desabafar. Sua carreira não fora
particularmente ilustre quando o destino e a polícia de Chicago a levaram a um súbito término,
mas ela certamente tivera chance de circular no meio artístico e conhecera alguns dos grandes
nomes da virada do século.
Para os passageiros mais velhos, suas memórias traziam de volta as lembranças de suas
juventudes e frágeis ecos de canções de 1990. Em certo ponto, sem nenhum protesto da corte,
ela liderou toda a companhia numa interpretação da eterna canção favorita Space-suit blues.
Como levantadora do moral, concluiu o comodoro, a senhora Schuster valia seu peso em ouro,
o que seria uma soma considerável.
Após a refeição (que os mais lentos conseguiram estender para meia hora ao mastigarem
cinquenta vezes cada bocado), retomou-se a leitura de livros, e os partidários de A laranja e a
maçã finalmente conseguiram seu intento.
Já que o tema era inglês, decidiu-se que o senhor Barrett era o único homem capaz para o
trabalho. Ele protestou com vigor, mas todas as suas objeções foram silenciosas.
– Oh, muito bem – disse, relutantemente. – Aqui vamos nós. Drury Lane 1665...
A autora certamente não perdia tempo. Dentro de três páginas, sir Isaac Newton estaria
explicando a lei da gravidade para a senhora Gwyn, a qual já demonstrara que gostaria de lhe
dar algo em troca. A forma que tal retribuição tomaria era algo que Pat Harris já podia
facilmente adivinhar, mas o dever o chamava. Esse entretenimento era para os passageiros, a
tripulação tinha trabalho a fazer.
– Ainda resta um armário de emergência, que nós não abrimos – disse a senhorita Wilkins,
enquanto a comporta fechava suavemente por trás deles, interrompendo o sotaque perfeito do
senhor Barrett. – Estamos com escassez de geleia e bolachas, mas ainda há bastante carne em
conserva.
– Não estou surpreso – respondeu Pat. – Todos parecem detestá-la. Vamos ver as listas de
mantimentos.
A aeromoça passou-lhe as folhas datilografadas, agora cheias de anotações a lápis.
– Vamos começar com esta caixa. O que há dentro dela?
– Sabão e toalhas de papel.
– Bem, não podemos comê-los. E esta?
– Doces. Estava guardando-a para uma comemoração. Quando eles nos encontrarem.
– É uma boa idéia, mas acho que você deve distribuir alguns esta noite. Um para cada
passageiro, como um tira-gosto antes de dormirem. E esta?
– Mil cigarros.
– Certifique-se de que ninguém os veja. Preferia que não tivesse me mostrado.
Pat sorriu para Sue e passou ao próximo item. Era óbvio que comida não seria o maior
problema, mas tinham de manter um controle dos estoques. Conhecia os hábitos da
Administração; depois que fossem salvos, um escriturário, humano ou eletrônico, insistiria
num balanço preciso de todos os alimentos consumidos.
Depois que fossem salvos. Acreditaria ele que tal coisa realmente fosse acontecer?
Estavam perdidos há mais de dois dias e não havia o menor indício de que alguém os
estivesse procurando. Não tinha certeza de que indícios seriam esses, mas esperava alguns.
Ainda pensava em silêncio, quando Sue perguntou ansiosa: – Qual é o problema, Pat? Há algo
de errado?
– Oh, não – disse, com ironia. – Estaremos atracando na Base dentro de cinco minutos. Foi
uma viagem agradável, não acha?
Sue olhou-o incrédula. Um rubor espalhou-se sobre suas faces e seus olhos começaram a
derramar lágrimas.
– Desculpe – disse Pat, arrependido. – Eu não quis dizer isso. É uma grande tensão para nós
dois e você tem sido maravilhosa. Não sei o que teria feito sem você, Sue.
Ela secou o nariz com o lenço e deu um breve sorriso.
– Tudo bem, eu entendo.
Ficaram silenciosos por um momento. Depois ela acrescentou: – Acha que vamos escapar
disto?
– Quem sabe? – respondeu, com um gesto de desamparo. – De qualquer modo, pelo bem dos
passageiros, temos que parecer confiantes. Podemos estar certos de que a Lua inteira nos
procura. Não posso acreditar que levará muito tempo...
– Mesmo que nos achem, como vão nos tirar daqui? Os olhos de Pat desviaram-se para a porta
externa, a somente alguns centímetros de distância. Podia tocá-la sem sair do lugar; realmente,
se imobilizasse o fecho interno de segurança, poderia abri-la, já que ela girava para dentro.
Do outro lado daquela fina folha de metal, toneladas incontáveis de pó se derramariam como
água em um navio soçobrando, se houvesse a mais estreita fenda através da qual elas
pudessem entrar. A que distância estariam da superfície? Este era um problema que o
preocupara desde o naufrágio, mas que parecia impossível de resolver.
Não poderia responder à pergunta de Sue. Era difícil pensar além da possibilidade de serem
encontrados. Se tal acontecesse, certamente haveria um resgate. A raça humana não os deixaria
morrer, se os descobrissem ainda vivos.
Mas isto era apenas um desejo. Centenas de vezes no passado homens e mulheres se
encontraram presos, como eles, sem que todos os recursos das grandes nações pudessem
salvá-los. Eram mineiros atrás de deslizamentos, marinheiros em submarinos afundados e,
acima de tudo, astronautas de naves perdidas em órbitas descontroladas, além da
possibilidade de intercessão. Frequentemente, conseguiram falar com seus parentes e amigos
até o fim. Algo assim acontecera apenas dois anos atrás, quando o propulsor principal de
Cassiopeia emperrara e todas as suas energias haviam se exaurido, lançando-a para longe do
Sol. Ela estava lá fora agora, rumando para Canopus, em uma das órbitas mais conhecidas de
qualquer veículo espacial. Os astrônomos seriam capazes de determinar-lhe a posição com
uma precisão de alguns milhares de quilômetros no próximo milhão de anos. Isso devia ter
sido um grande consolo para a sua tripulação, agora em uma tumba mais eterna do que a de
qualquer faraó.
Pat afastou sua mente desse devaneio infrutífero. Sua sorte não se acabara ainda, e esperar um
desastre poderia ser atraí-lo.
– Vamos acabar logo com isso. Quero ouvir como Nel está se saindo com Sir Isaac.
Era uma cadeia de pensamentos muito mais agradável, especialmente quando se está tão
próximo de uma moça muito atraente e sumariamente vestida. Numa situação como esta,
pensou Pat, as mulheres têm uma grande vantagem sobre os homens. Sue ainda parecia
elegante, apesar do fato de que não restara muito de seu uniforme neste calor tropical. Mas
ele, como todos os homens a bordo do Selene, sentia a sua barba de três dias cocar
desconfortavelmente, e não havia nada que pudesse fazer.
Sue pareceu não se importar com a barba quando ele abandonou seu pretenso trabalho e se
aproximou tanto dela que seus pêlos roçaram-lhe a face. Por outro lado, ela não demonstrou o
menor entusiasmo. Permaneceu imóvel em frente ao armário meio vazio, como se estivesse
esperando por isso e não ficasse nem um pouco surpresa. Era uma reação desconcertante;
depois de alguns segundos Pat se afastou.
– Suponho que me julgue um conquistador inescrupuloso – disse ele – que tenta se aproveitar
de você.
– Não, particularmente – respondeu Sue, e riu de modo cansado. – Fico feliz em saber que não
passo despercebida. Nenhuma garota se importa que um homem faça investidas. É quando ele
não para que ela se aborrece.
– Você quer que eu pare?
– Não nos amamos, Pat. E para mim isso é importante. Mesmo agora.
– Ainda seria importante se soubesse que nunca sairemos daqui?
A testa dela se franziu.
– Não estou certa. Você mesmo disse que devemos presumir que vão nos encontrar. Se não,
seria melhor desistir agora mesmo.
– Lamento – disse Pat. – Eu não a quero nesses termos. Gosto demais de você para isso.
– Fico feliz em escutar isso. Sabe que sempre gostei de trabalhar com você. Houve muitos
outros empregos, para os quais eu podia ter me transferido.
– Má sorte sua, que não o fez – respondeu Pat. Seu breve ímpeto de desejo, provocado pela
proximidade, solidão, trajes sumários e pura tensão emocional, já se dissipara.
– Agora está sendo pessimista novamente – disse Sue. – Sabe que este é o seu maior
problema. Deixa-se abater facilmente e é incapaz de reivindicar seus direitos.
Qualquer um toma o seu lugar.
Pat olhou para ela com mais surpresa do que aborrecimento.
– Eu não tinha idéia – disse ele – de que você estivesse tão ocupada em fazer análise
psicológica de mim.
– Não estou. Mas quando se está interessado em alguém e se trabalha com essa pessoa, não se
pode deixar de aprender um bocado sobre ela.
– Bem, não acredito que outras pessoas estejam tomando o meu lugar.
– Não? Quem está dirigindo este barco agora?
– Se você se refere ao comodoro, isto é diferente. Ele é mil vezes mais qualificado para
exercer o comando do que eu. E foi absolutamente correto a esse respeito; pediu a minha
permissão.
– Ele não importa agora. De qualquer modo, a questão não é essa. Não está feliz de que ele
tenha assumido o comando?
Pat pensou nisso por alguns segundos. Em seguida olhou para Sue com um respeito relutante.
– Talvez você tenha razão. Eu nunca me preocupei em impor minha vontade ou afirmar minha
autoridade, se é que tenho alguma. Talvez porque eu seja o motorista de um ônibus lunar, não o
capitão de uma nave de carreira. E agora é tarde para mudar.
– Você ainda não chegou aos trinta.
– Obrigado pela gentileza. Tenho 32 anos. Nós, os Harris, retemos nossa juventude e boa
aparência até idade avançada. É geralmente tudo o que nos resta.
– Trinta e dois e nenhuma namorada firme?
Ah, pensou Pat, há várias coisas que você não sabe a meu respeito. Mas não adiantava
mencionar Clarissa e seu pequeno apartamento em Cidade Copérnico, que agora parece tão
distante. (E como estaria Clarissa agora?, perguntou para si mesmo. Qual dos rapazes a estaria
consolando? Talvez Sue esteja certa, apesar de tudo. Eu não tenho nenhum relacionamento
duradouro, não tive nenhum desde Yvonne, e isto foi há cinco anos. Não, meu Deus, sete anos
atrás.) – Acredito em segurança. Algum dia destes me acomodo – disse ele.
– Talvez continue a dizer isto quando tiver quarenta ou cinquenta anos. Há tantos espaçonautas
assim. Não se acomodaram quando era tempo de se aposentar e agora é muito tarde. Veja o
comodoro, por exemplo.
– O que tem ele? Já estou começando a me cansar deste assunto.
– Ele passou toda a sua vida no espaço. Não tem família nem filhos. A Terra não significa
muito para ele, passou tão pouco tempo lá. Deve ter se sentido desamparado quando atingiu a
idade limite. Este acidente é uma dádiva para ele, está realmente feliz agora.
– Ótimo, ele merece. Ficarei satisfeito se eu fizer um décimo do que ele já fez quando chegar a
sua idade. O que não parece muito provável, no momento.
Pat deu-se conta de que estivera segurando as folhas do estoque, esquecido delas.
Eram uma lembrança de seus minguantes recursos e ele as olhou com desgosto.
– De volta ao trabalho – disse. – Temos de pensar nos passageiros.
– E se ficarmos aqui por mais tempo – respondeu Sue – os passageiros começarão a reparar
em nós.
Ela não se deu conta de como suas palavras eram verdadeiras.
Capítulo 12
O engenheiro-chefe decidiu que o silêncio do Dr. Lawson já se alongara demais.
Era hora de restabelecer a comunicação.
– Tudo bem, doutor? – perguntou com a sua voz mais fraterna.
Houve um som curto e agudo, mas a raiva era dirigida contra o universo, não contra ele.
– Não funciona – respondeu Lawson amargamente. – A imagem de calor está muito confusa.
Existem dúzias de pontos quentes, não apenas o único que eu esperava.
– Pare o seu esqui. Quero dar uma olhada.
O Espanador Dois deslizou até parar; o Espanador Um moveu-se ao seu lado até que os dois
veículos quase se tocaram. Movimentando-se com surpreendente desembaraço, apesar do
estorvo do traje espacial, Lawrence saltou de um veículo para o outro e ficou de pé,
agarrando-se aos suportes da capota superior, por trás do Dr. Lawson. Olhou por cima do
ombro do astrônomo a imagem no conversor infravermelho.
– Vejo o que quer dizer. É uma confusão. Mas por que estaria uniforme quando tirou as fotos?
– Deve ser um efeito da aurora. O Mar está se aquecendo e por algum motivo não se aquece
do mesmo modo em todas as partes.
– Talvez este desenho possa ter algum significado. Reparei que existem áreas razoavelmente
claras, deve haver uma explicação para elas. Se entendermos o que está acontecendo, isto
poderá ajudar.
Tom Lawson mexeu-se com grande esforço. A frágil concha de sua autoconfiança fora
despedaçada pelo contratempo inesperado e ele estava muito cansado. Dormira muito pouco
nos últimos dois dias, fora arrastado do satélite à espaçonave, à Lua e ao esqui de pó, e
depois de tudo a sua ciência falhara.
– Pode haver uma dúzia de explicações – disse secamente. – Esta poeira parece uniforme, mas
podem existir trechos com condutividades diferentes. E ela deve ser mais profunda em certos
lugares do que em outros; isto afetaria o fluxo de calor.
Lawrence ainda olhava para o desenho na tela, tentando relacioná-lo com a cena visual ao
redor.
– Um instante. Acho que conseguiu alguma coisa – disse ele. Chamou a atenção do piloto. –
Qual é a profundidade da poeira neste trecho?
– Ninguém sabe. O Mar nunca foi devidamente sondado. Mas é muito raso por aqui, estamos
próximos da borda norte. Às vezes batemos com uma pá da hélice num recife.
– Tão raso assim? Bem, aí está a nossa resposta. Se. existem rochas a alguns centímetros
abaixo de nós, qualquer coisa poderia alterar o padrão de calor. Aposto dez contra um que
verá esta imagem se tornar mais simples assim que estivermos fora dos baixios. Este é apenas
um efeito local, causado por irregularidades bem embaixo de onde estamos.
– Talvez tenha razão – disse Tom, animando-se ligeiramente. – Se o Selene afundou, deve se
encontrar em uma área onde a poeira é razoavelmente profunda. Tem certeza de que aqui é
raso?
– Vamos descobrir. Há uma sonda de vinte metros no meu esqui.
Um único segmento da vara telescópica foi o suficiente para confirmar a suposição.
Quando Lawrence o empurrou no pó, penetrou menos de dois metros antes de atingir uma
obstrução.
– Quantas hélices de reserva nós temos? – indagou, pensativo.
– Quatro. Dois conjuntos completos – respondeu o piloto. – Mas quando atingimos uma rocha,
o pino se dobra e a lâmina não é danificada. De qualquer modo, elas são feitas de borracha e
geralmente apenas se curvam, voltando depois ao normal. Perdi apenas três no ano passado. O
Selene perdeu uma outro dia e Pat Harris teve de sair e substituí-la. Deu aos passageiros um
bocado de emoção.
– Está bem. Vamos nos mover novamente. Dirija-se para a garganta. Tenho uma teoria de que
ela se prolonga sob o Mar; a poeira será muito profunda ali. Se for assim, a sua imagem
imediatamente se tornará mais simples.
Sem muita esperança, Tom observou os desenhos de luz e sombra fluírem através da tela. Os
esquis moviam-se bem devagar agora, dando-lhe tempo para analisar a imagem. Tinham
viajado dois quilômetros quando percebeu que Lawrence estava absolutamente certo.
O malhado e sarapintado começava a desaparecer, a confusa mistura de calor e frio fundia-se
em uniformidade. A tela tornava-se um cinza plano, enquanto as variações de temperatura se
anulavam. Sem dúvida, a poeira aprofundava-se rapidamente debaixo deles.
A consciência de que seu equipamento era uma vez mais eficiente deveria deixar Tom
satisfeito, mas o resultado foi quase o oposto. Ele só conseguia pensar nas profundezas
ocultas, acima das quais flutuava, suportado por um dos meios mais instáveis e traiçoeiros.
Abaixo, agora, podiam existir abismos estendendo-se profundamente no coração ainda
misterioso da Lua. A qualquer momento, eles poderiam tragar o esqui de pó, assim como
haviam engolido o Selene.
Sentia-se na corda bamba sobre o abismo ou então como se caminhasse numa trilha estreita em
meio a areias movediças. Em toda a sua vida ele se sentira inseguro, buscando a confiança e a
certeza apenas através de suas habilidades técnicas, nunca ao nível do relacionamento
pessoal.
E agora os perigos da situação presente agiam sobre os medos interiores. Sentia uma
desesperada necessidade de solidez, de algo firme e estável a que pudesse agarrar-se.
E lá estavam as montanhas, a apenas três quilômetros de distância, maciças e eternas, com
suas raízes profundamente cravadas na Lua. Olhou o santuário iluminado daqueles picos com a
mesma ansiedade de um náufrago do Pacífico que avistasse, de sua balsa à deriva, uma ilha
passando além do seu alcance.
De todo o coração, ele desejou que Lawrence abandonasse este oceano traiçoeiro e
insubstancial de pó pela segurança da Terra. "Rume para as montanhas!", ele se percebeu
sussurrando, "rume para as montanhas!"
Não existe privacidade num traje espacial quando o seu rádio está ligado. Á cinquenta metros
de distância, Lawrence ouviu o murmúrio e soube exatamente o que significava.
Ninguém se torna engenheiro-chefe de meio mundo sem saber tanto a respeito de homens
quanto de máquinas. "Corri um risco calculado", pensou Lawrence, "e parece que perdi. Mas
não vou desistir sem luta; talvez ainda possa desarmar esta bomba-relógio psicológica antes
que detone."
Tom nem percebeu a aproximação do segundo esqui, perdido que estava em seu próprio
pesadelo. Mas logo foi sacudido violentamente, tão violentamente que sua testa bateu no
bordo inferior do capacete. Por um instante sua visão tornou-se ofuscada em meio a lágrimas
de dor; depois com raiva, mas ao mesmo tempo sentindo um inexplicável alívio, encontrou-se
olhando diretamente para os olhos decididos do engenheiro-chefe Lawrence e ouvindo sua voz
reverberar dos fones do traje espacial.
– Basta dessa tolice – dizia o E.C. – Eu o farei se arrepender, se enjoar num dos nossos trajes
espaciais. Cada vez que isso acontece nos custa quinhentos stollars para colocá-lo em
condições de uso, e mesmo assim nunca mais volta ao normal.
– Eu não ia enjoar...– murmurou Tom. Então percebeu que a verdade era muito pior e sentiu-se
grato a Lawrence por seu tato. Antes que pudesse acrescentar algo mais, o outro prosseguiu,
falando de modo firme mas gentil: – Ninguém mais pode nos ouvir, Tom; estamos no circuito
do traje, agora. Assim, escute-me e não enlouqueça. Sei um bocado a seu respeito, e sei o
quanto apanhou da vida. Mas você tem um cérebro, e um cérebro danado de bom; não o
desperdice comportando-se como um menino assustado. Certo, todos nós somos crianças
assustadas, uma vez ou outra, mas isto não é hora para semelhante coisa. Existem 22 vidas
dependendo de você. Dentro de cinco minutos vamos decidir esta questão de um modo ou de
outro. Fique de olho na tela e esqueça o resto. Vou tirá-lo daqui, tudo bem, portanto não se
preocupe.
Lawrence bateu no traje, suavemente desta vez, sem tirar os olhos do rosto aflito do jovem
cientista. Então, com um vasto sentimento de alívio, viu Lawson descontrair-se lentamente.
Por alguns instantes o astrônomo permaneceu imóvel, sem dúvida em completo controle sobre
si mesmo, mas aparentemente ouvindo alguma voz interior. O que ela estaria lhe dizendo?,
pensou Lawrence. Talvez ele fizesse parte da humanidade, embora ela o tivesse condenado
àquele abominável orfanato, quando criança. Talvez em algum lugar do mundo existisse uma
pessoa capaz de se importar com ele e de abrir caminho através do gelo que lhe incrustara o
coração.
Era uma cena estranha, aqui, nesta planície espelhada, entre as Montanhas da Inacessibilidade
e o sol nascente. Como navios imobilizados num mar morto e estagnado, os Espanadores Um e
Dois flutuavam lado a lado, sem que seus pilotos percebessem o conflito de sentimentos que
se desenrolara, embora dele tivessem certa noção. Ninguém, observando à distância, faria
idéia dos valores em jogo, das vidas e destinos que tremiam na balança, e os dois homens
envolvidos jamais tornariam a falar sobre isso.
De fato, já estavam preocupados com outra coisa, pois tomaram consciência, ao mesmo
tempo, de uma situação altamente irônica.
Em todo o tempo que haviam permanecido ali, tão preocupados com seus próprios problemas,
não observaram nenhuma vez o detector infravermelho, que pacientemente exibira a imagem
que buscavam.
Pat tomou consciência da mudança de atmosfera assim que saiu da comporta. A leitura de A
laranja e a maçã terminara algum tempo atrás e se desenvolvia numa discussão acalorada,
interrompida assim que ele entrou na cabine. Houve um silêncio embaraçoso enquanto
observava a cena. Alguns dos passageiros olhavam-no pelo canto dos olhos, enquanto outros
fingiam ignorar sua presença.
– Bem, comodoro – disse Pat. – Qual é o problema?
– Há uma sensação geral – respondeu Hansteen – de que não estamos fazendo tudo o que
poderíamos para escapar. Já expliquei que não temos outra alternativa senão esperar até que
alguém nos encontre, mas nem todos concordam.
Era inevitável que isso acontecesse mais cedo ou mais tarde, pensou Pat. À medida que o
tempo se esgotava e não surgiam sinais de salvamento, os nervos começaram a fraquejar e o
medo se apoderou de todos. Logo surgiriam apelos à ação, qualquer ação, sendo contra a
natureza humana ficar de braços cruzados diante da morte.
– Já discutimos isto anteriormente – falou cansado. – Estamos no mínimo a dez metros de
profundidade e mesmo que abríssemos a comporta ninguém chegaria à superfície devido à
resistência do pó.
– Tem certeza disso? – perguntou alguém.
– Absoluta – respondeu Pat. – Já tentou nadar através da areia? Não iria muito longe.
– Que tal tentar os motores?
– Eu duvido que nos empurrem por um centímetro. E, mesmo que o fizessem, nos moveríamos
para a frente, não para cima.
– Podemos todos ficar na traseira, nosso peso levantaria a proa.
– É a tensão sobre o casco que me preocupa – disse Pat. – Suponha que eu dê partida nos
motores; seria como ir de cabeça contra uma parede de tijolos. Deus sabe o dano que poderia
causar.
– Mas há uma chance de que funcione. Não vale a pena arriscar?
Pat olhou para o comodoro, sentindo-se aborrecido por não ter o seu apoio.
Hansteen o encarou de volta como se dissesse: "Cuidei disso até aqui, agora é a sua vez."
Bem, era justo, principalmente depois do que Sue dissera. Era tempo de se apoiar em seus
próprios pés ou, no mínimo, provar que poderia fazê-lo.
– O risco é muito grande – disse secamente. – Estaremos perfeitamente seguros aqui por mais
quatro dias, no mínimo. Muito antes disso seremos encontrados. Assim, para que arriscar tudo
numa chance em um milhão? Se este fosse o nosso único recurso eu diria sim, mas não agora.
Passou os olhos pela cabine, desafiando alguém a discordar. Enquanto o fazia, não podia
evitar o olhar da senhorita Morley, nem tentou. Mesmo assim foi com muita surpresa e
embaraço que a ouviu dizer:
– Talvez o capitão não tenha pressa de partir. Reparei que não o temos visto muito, nem a
senhorita Wilkins.
Porque, sua vaca pretensiosa, pensou Pat, porque ninguém em seu juízo perfeito...
– Espere, Harris! – gritou o comodoro em tempo. – Eu cuidarei disso.
Era a primeira vez que Hansteen se impunha; até o momento se comportara de modo brando e
indolente, ficando em segundo plano e deixando Pat fazer seu trabalho. Agora, porém, eles
ouviam a voz autêntica da autoridade, como um toque de cometa através de um campo de
batalha. Este não era um astronauta aposentado falando; era o comodoro do espaço.
– Senhorita Morley – disse – esta foi uma observação muito tola e inconveniente. Apenas o
fato de estarmos todos vivendo sob considerável tensão pode desculpá-la. Acho que deve
pedir desculpas ao capitão.
– Ê verdade – insistiu ela, teimosamente. – Peça a ele que negue, se puder.
O comodoro Hansteen não perdera a calma em trinta anos e não tinha a intenção de perdê-la
agora, mas sabia quando era necessário fingir e um pouco de simulação seria necessário neste
caso. Não estava somente furioso com a senhorita Morley, estava aborrecido com Pat por
sentir que ele os deixara em má situação. Obviamente poderia não haver nenhuma verdade nas
acusações de Morley, mas Pat e Sue perderam muito tempo para fazer um trabalho simples.
Existem ocasiões em que a aparência de ser inocente é quase tão importante quanto a
inocência em si.
Lembrou-se de um provérbio chinês muito antigo: "Não se abaixe para amarrar os sapatos
na plantação de melões do vizinho."
– Eu não dou a mínima importância – disse com sua voz mais causticante – ao relacionamento,
se existe algum, da senhorita Wilkins com o capitão. Isso é problema deles e enquanto fizerem
suas tarefas de modo eficiente não temos o direito de interferir. Está sugerindo que o capitão
Harris não cumpre as suas obrigações?
– Bem, eu não diria isso.
– Então, por favor, não diga nada. Já temos problemas demais em nossas mãos; não
precisamos criar outros.
Os demais passageiros escutavam, com o misto de embaraço e satisfação que a maioria dos
homens sente ao ouvir uma disputa na qual não tomam parte. Embora, em certo sentido, isso se
relacionasse com todos a bordo do Selene por ser o primeiro desafio à autoridade, o primeiro
indício de que a disciplina se fragmentava.
Até o momento o grupo permanecera unido num todo harmonioso, mas agora uma voz se
erguera contra os velhos da tribo.
A senhorita Morley poderia ser uma solteirona neurótica, mas também era dura e obstinada. O
comodoro percebia, com compreensível desagrado, que ela se preparava para dar uma
resposta.
Mas ninguém jamais soube o que ela tencionava dizer, pois naquele momento a senhora
Schuster soltou um grito à altura de suas dimensões.
Quando um homem cai na Lua, ele geralmente tem tempo para fazer alguma coisa, pois seus
nervos e músculos são construídos para lidarem com uma gravidade seis vezes maior.
Entretanto, quando o engenheiro-chefe Lawrence caiu de seu esqui, a distância era curta
demais para que ele tivesse tempo de reagir. Quase instantaneamente, atingiu a poeira e foi
engolfado pela escuridão.
Não conseguia ver nada, exceto a fluorescência muito fraca do painel de instrumentos
iluminado, dentro de seu traje. Com extremo cuidado, começou a tatear ao redor, através
daquela substância semi-líquida e suavemente resistente na qual se debatia, buscando algum
suporte sólido. Não havia nada, nem mesmo um indício de qual direção seria para cima.
Um desespero que parecia sugar toda a força de seu corpo quase o dominou. Seu coração
estrondava com aquela batida errática que anuncia a chegada do pânico, da derrubada final da
razão. Já vira outros homens se transformarem em animais a gritar e se debater e sabia estar
quase a ponto de agir como um deles.
Com o mínimo que restava de sua mente racional pôde se recordar de que há apenas alguns
minutos ele salvara Lawson de um destino semelhante. Mas não se encontrava em situação de
apreciar a ironia. Precisava concentrar toda a sua força para manter o autocontrole, freando as
batidas em seu peito que o ameaçavam despedaçar.
Em seguida, alto e claro no fone de seu capacete, chegou um som tão inesperado que as ondas
do pânico pararam de quebrar-se na ilha de sua alma. Era Tom Lawson rindo.
Uma risada breve, seguida de um pedido de desculpas.
– Lamento, senhor Lawrence, não pude evitá-lo. O senhor parecia tão engraçado, sacudindo as
pernas para o céu.
O engenheiro-chefe gelou dentro de seu traje. O medo desapareceu instantaneamente, cedendo
lugar à raiva. Estava furioso com Lawson, porém muito mais irritado consigo mesmo.
Sem dúvida não estivera em perigo. Ele era, em seu traje inflado, como um balão flutuando
sobre a água, igualmente incapaz de afundar. Agora que sabia o que lhe acontecera podia se
ajeitar sozinho. Chutou decididamente com as pernas e remou com as mãos, até girar em torno
de seu centro de gravidade. E a visão retornou, com a poeira escorrendo de seu capacete.
Afundara no máximo dez centímetros e o esqui estivera ao seu alcance o tempo todo. Foi uma
proeza tê-lo deixado escapar enquanto se agitava como um polvo embaraçado com os seus
tentáculos.
Reunindo tanta dignidade quanto possível, apoiou-se no esqui e se arrastou para bordo. Não
confiava em si mesmo para falar; ainda estava sem fôlego devido ao esforço desnecessário.
Se o fizesse, sua voz trairia o pânico recente. E ainda sentia raiva; não era tão tolo nos dias
em que trabalhava constantemente na superfície lunar. Agora estava sem prática, pois a última
vez que usara uma roupa espacial fora durante o teste anual de capacidade e mesmo assim não
saíra da câmara de descompressão.
De volta ao esqui, continuou as sondagens, enquanto a mistura de ódio e medo evaporava-se
lentamente. Foi substituída por um estado pensativo, no qual refletia o quanto (gostasse ou
não) os acontecimentos da última meia hora haviam-no ligado a Lawson. Era verdade que o
astrônomo rira enquanto ele se agitava na poeira, mas devia ter sido um espetáculo
irresistivelmente cômico. E Lawson pedira desculpas.
Um curto espaço de tempo atrás, ambos, riso e desculpa, teriam sido igualmente impensáveis.
E então Lawrence esqueceu-se de tudo, quando a sua sonda atingiu um obstáculo, 15 metros
abaixo.
Capítulo 14
A primeira reação do comodoro Hansteen quando a senhora Schuster gritou foi: "Meu Deus, a
mulher ficou histérica." Meio segundo depois, precisou de toda a sua força de vontade para
não se unir a ela.
Do lado de fora do casco, onde durante três dias só se ouvira o deslizar da poeira, surgiu
finalmente um outro ruído. Era inconfundível, assim como o seu significado: alguma coisa
metálica arranhava o casco.
Instantaneamente, a cabine encheu-se de gritos, aplausos e exclamações de alívio.
Com considerável dificuldade, Hansteen conseguiu se fazer ouvir.
– Eles nos encontraram – disse. – Mas podem não saber disso. Se todos trabalhar-mos juntos
haverá uma chance maior de que nos localizem. Pat, você tenta o rádio. O resto de nós vai
bater no casco. O velho sinal V em código Morse: Da, Da, Da, De. Vamos, todos juntos!
O Selene reverberou com uma saraivada desconexa de pontos e traços, que lentamente se
sincronizou num único toque.
– Parem! – comandou Hansteen, um minuto depois. – Escutem todos, cuidadosamente.
Depois do ruído, o silêncio era sinistro, enervante. Pat desligara as bombas de ar e os
ventiladores de modo que o único som a bordo do Selene era a batida de 22 corações.
O silêncio se arrastou. Será que aquele ruído, depois de tudo, não passara de alguma
contração e expansão do casco do Selene? Ou teria o grupo de salvamento, sé havia um,
deixado de percebê-los, prosseguindo através da face vazia do Mar?
Abruptamente, o arranhar voltou. Hansteen refreou o entusiasmo renovado com um aceno de
sua mão.
– Ouçam, pelo amor de Deus! Vamos ver se conseguimos descobrir o que é – suplicou.
O ruído durou apenas alguns segundos antes de ser seguido, uma vez mais, pelo silêncio
torturante. Em seguida, alguém falou baixinho, mais para quebrar o suspense do que para dar
qualquer contribuição útil.
– Soava mais como um fio sendo arrastado. Talvez estejam arrastando uma rede à nossa
procura.
– Impossível – respondeu Pat. – A resistência seria muito grande, principalmente nesta
profundidade. Ê mais provável que seja uma vara sondando.
– De qualquer modo – disse o comodoro – há uma equipe de buscas a alguns metros de nós.
Vamos dar-lhe outro toque. Uma vez mais, todos juntos.
– DaDaDaDe...
– DaDaDaDe...
Através do duplo casco e para fora, em meio à poeira, pulsava a fatídica abertura da Quinta
sinfonia de Beethoven, tal como um século atrás soara através da Europa ocupada. No assento
do piloto, Pat Harris repetia com desesperada insistência: " Selene chamando, estão me
ouvindo? Câmbio", então esperava, por eternos 15 segundos antes de repetir a transmissão.
Todavia, o espaço celeste permanecia silencioso, como estivera desde que a poeira os
engolira.
A bordo do Auriga, Maurice Spencer olhou ansioso para o relógio.
– Maldição! – praguejou. – Aqueles esquis já devem estar lá há muito tempo.
Quando foi a última mensagem?
– Há 25 minutos – respondeu o oficial de comunicações. – Aquele relatório a cada meia hora
deve vir logo, tenham ou não encontrado algo.
– Tem certeza de que está ouvindo na frequência certa?
– O senhor cuida do seu negócio que eu cuido do meu – respondeu indignado o operador de
rádio.
– Desculpe – replicou Spencer, que há muito aprendera quando era hora de se desculpar
rapidamente. – Acho que meus nervos estão estourando.
Levantou-se da poltrona e começou a andar pela minúscula sala de controle do Auriga. Depois
de esbarrar dolorosamente num painel de instrumentos (não se acostumara ainda com a
gravidade lunar e começava a duvidar que algum dia o conseguisse), recuperou o controle
mais uma vez.
Esta era a pior parte de seu trabalho: a espera até saber se tinha ou não uma história. Já
investira uma pequena fortuna em despesas; isso não era nada, comparado à conta que se
acumularia, se desse ordens ao capitão Anson de ir adiante. Porém, neste caso, suas
preocupações terminariam, pois ele teria o seu furo de reportagem.
– Aqui estão eles – disse o radioperador subitamente. – Dois minutos antes do tempo. Alguma
coisa aconteceu.
– Atingi alguma coisa – advertiu Lawrence, laconicamente. – Mas não posso dizer o que é.
– Qual a profundidade? – indagaram Lawson e os pilotos ao mesmo tempo.
– Uns 15 metros abaixo. Leve-me dois metros à direita. Vou tentar novamente.
Recolheu a sonda e a impulsionou mais uma vez quando o esqui se moveu para a nova
posição.
– Ainda aqui – relatou. – E na mesma profundidade. Leve-me por mais dois metros.
Agora o obstáculo se fora ou encontrava-se a uma profundidade além do alcance da sonda.
– Nada aqui. Leve-me de volta na outra direção. Seria um trabalho lento e cansativo até
determinarem os contornos do que quer que estivesse sepultado lá embaixo. Através de
semelhante método tedioso, os homens haviam sondado, dois séculos atrás, os oceanos da
Terra, baixando linhas com pesos até o leito do mar e puxando-as de novo. Era uma pena,
pensou Lawrence, que não possuíssem uma sonda de eco que pudesse operar aqui, mas
duvidava que ondas de rádio ou som pudessem penetrar mais do que alguns metros no pó.
Que imbecil! Devia ter pensado nisso antes! Era isso o que sucedera aos sinais de rádio do
Selene. Se o barco fora engolido pela poeira, esta cobria e abafara todas as suas transmissões.
Mas em tal extensão, se estavam realmente sobre o cruzador...
Lawrence ligou seu receptor na faixa Desastre lunar e lá estava o Selene, a gritar com sua voz
metálica. O sinal era penetrantemente forte; o bastante, pensou ele, para ter sido captado em
Lagrange ou Porto Roris. Então lembrou-se de que sua sonda metálica ainda se encontrava
repousando sobre o casco submerso, dando às ondas de rádio um canal livre para a superfície.
Ficou quieto, ouvindo a fileira de pulsos por uns bons 15 segundos antes de reunir suficiente
coragem para dar o próximo passo. Jamais esperara encontrar algo e mesmo agora a busca
poderia ter sido em vão. O radiofarol automático chamaria por semanas, como uma voz da
tumba, muito depois que todos os ocupantes do Selene estivessem mortos. Então, com um
gesto abrupto de raiva, que desafiava o destino a fazer o pior, Lawrence mudou para a
frequência do cruzador e quase ficou surdo com a voz de Pat Harris gritando:
– Selene chamando, Selene chamando. Podem me ouvir? Câmbio.
– Aqui Espanador Um – respondeu. – Engenheiro-chefe, Lado Terrestre, falando. Estou 15
metros acima de vocês. Estão todos bem? Câmbio.
Levou algum tempo para discernir alguma coisa da resposta, tal era o fundo de gritos e
palmas. Isto já era suficiente para lhe dizer que todos os passageiros estavam vivos e em bom
estado. Ouvindo-os, poderia de fato imaginar que estavam dando alguma festa. Na alegria de
serem descobertos e fazerem contato com a raça humana, eles pensavam que seus problemas
estavam terminados.
– Espanador Um chamando Controle de Porto Roris – disse Lawrence, enquanto esperava que
o tumulto diminuísse. – Encontramos o Selene e estabelecemos radio-contato A julgar pelo
ruído lá dentro, estão todos bem. Está 15 metros abaixo, exatamente onde o doutor Lawson
indicou. Chamarei vocês de novo em alguns minutos. Desligando.
Na velocidade da luz, ondas de alívio e alegria estariam agora se espalhando sobre a Lua, a
Terra e os planetas interiores, trazendo uma súbita esperança aos corações de bilhões de
pessoas. Em ruas e calçadas móveis, em ônibus e espaçonaves, estranhos iriam olhar um para
o outro e dizer: "Já ouviu? Eles encontraram o Selene."
Em todo o sistema solar, havia apenas um homem que não compartilhava plenamente aquela
alegria. Enquanto se sentava em seu esqui, ouvindo aqueles risos do subsolo e olhando para o
desenho rastejante da poeira, o engenheiro-chefe Lawrence sentia-se mais assustado e
desamparado que os homens e mulheres aprisionados sob seus pés. Pois ele sabia estar
enfrentando a maior batalha de sua vida.
Capítulo 15
Pela primeira vez em 24 horas, Maurice Spencer podia relaxar. Fizera-se tudo o que era
possível. Homens e equipamentos já se moviam em direção a Porto Roris. (Sorte que Jules
Braques estava em Clavius; era um dos melhores câmaras no ramo e eles frequentemente
trabalhavam juntos.) O capitão Anson fazia somas com o computador e olhava pensativo para
os mapas de relevo das Montanhas. A tripulação (todos seis) fora retirada dos bares (todos
três) e informada de que houvera outra mudança de rota. Na Terra, pelo menos uma dúzia de
contratos fora assinada e tele-transmitida, e largas somas em dinheiro já mudavam de dono.
Os magos financeiros de Notícias Interplanetárias estariam calculando, com precisão
científica, a soma exata que deveriam cobrar das outras agências pela história, sem incentivá-
las a alugar as suas próprias naves; o que não era muito provável, devido à grande dianteira
tomada por Spencer. Nenhum competidor, possivelmente, poderia chegar às Montanhas em
menos de 48 horas; ele estaria lá em seis.
Sim, era muito agradável descansar na calma e confiança de que tudo se encontrava sob
controle e caminhando do modo desejado. Eram estes interlúdios que faziam com que a vida
valesse a pena ser vivida e Spencer sabia como aproveitá-los. Eles eram a sua panaceia
contra úlceras – ainda, depois de um século, a doença ocupacional da indústria da
comunicação.
Era típico de Spencer, contudo, relaxar-se no trabalho. Estava reclinado com um drinque numa
das mãos, o prato de sanduíches na outra, na pequena sala de observação do prédio do
embarcadouro. Através das duplas chapas de vidro, podia observar o minúsculo cais de onde
o Selene zarpara há três dias. (Não havia como escapar de tais termos marítimos, apesar de
inapropriados nesta situação.) Era simplesmente uma faixa de concreto estendendo-se vinte
metros para dentro da misteriosa planura de pó. Tombado sobre quase todo o seu
comprimento, como uma gigantesca sanfona, encontrava-se o tubo flexível através do qual os
passageiros haviam caminhado do Porto para o cruzador. Agora, aberto no vácuo, encontrava-
se flácido e parcialmente desabado. Spencer não podia deixar de considerá-lo uma cena
deprimente.
Olhou para o relógio e em seguida para o incrível horizonte. Se lhe perguntassem, teria
calculado a sua distância como no mínimo de cem quilômetros, não dois ou três. Alguns
minutos depois, uma cintilação de luz refletida atraiu a sua atenção. Lá estavam eles, subindo
sobre a borda da Lua. Estariam aqui em cinco minutos; sairiam da comporta em dez. Tempo de
sobra para terminar o último sanduíche.
O Dr. Lawson não pareceu reconhecê-lo quando Spencer o cumprimentou, o que não era
surpreendente, pois a breve conversa entre ambos acontecera numa escuridão quase total.
– Dr. Lawson? Sou o redator-chefe de Notícias Interplanetárias. Posso gravar?
– Espere um minuto – interrompeu Lawrence. – Eu conheço o homem da Interplanetária, você
não é Joe Leonard...
– Correto. Sou Maurice Spencer. Substituí o Joe na semana passada. Ele teve de se acostumar
à gravidade terrestre novamente ou ficaria preso aqui pelo resto da vida.
– Bem, você é muito rápido. Faz somente uma hora que nós transmitimos a notícia.
Spencer achou melhor não mencionar que estivera ali a maior parte do dia.
– Gostaria de saber se posso gravar – repetiu. Era muito consciencioso a este respeito. Alguns
jornalistas arriscam e vão gravando as conversas sem permissão, mas, se é apanhado, perde o
emprego. E como redator-chefe, ele devia manter as regras, estabelecidas para salvaguardar
sua profissão e o público.
– Não agora, se não se importa – disse Lawrence. – Tenho uma série de coisas para organizar,
mas o Dr. Lawson ficará feliz em conversar com você. Ele fez a maior parte do trabalho e
merece crédito. Pode ter certeza disso.
– Hã... obrigado – murmurou Tom, parecendo embaraçado.
– Vejo você depois – disse Lawrence. – Estarei no escritório do engenheiro local.
Mas você pode muito bem dormir um pouco.
– Não até que terminemos – corrigiu Spencer, agarrando Tom e levando-o em direção ao hotel.
A primeira pessoa que encontraram no salão de entrada de dez metros quadrados foi o capitão
Anson.
– Eu o estava procurando, senhor Spencer – disse ele. – A União dos Trabalhadores do
Espaço vai nos criar problemas. Sabe que há uma regra quanto ao intervalo de tempo entre
duas viagens. Bem, parece que...
– Por favor, capitão, agora não. Leve isto ao Departamento Legal de Notícias Interplanetárias.
Chame Clavius 1234 e peça para falar com Harry Dantzig. Ele cuidará de tudo.
Impulsionou o apático Tom Lawson escadaria acima (era curioso encontrar um hotel sem
elevadores, mas eles eram desnecessários num mundo onde uma pessoa pesa apenas poucos
quilos) e para dentro da suíte.
À parte o tamanho excessivamente pequeno e a completa ausência de janelas, a suíte poderia
estar situada em qualquer hotel barato da Terra. As cadeiras simples, o sofá e a mesa eram
fabricados com o mínimo de matéria-prima, geralmente fibra de vidro, pelo fato de o quartzo
ser muito comum na Lua. O banheiro era convencional (um alívio, depois daqueles toaletes de
queda-livre, cheios de truques), mas a cama tinha uma aparência um pouco desconcertante.
Alguns visitantes da Terra sentiam dificuldade de dormir em um sexto de gravidade; para
benefício dessas pessoas, um lençol elástico poderia ser estendido sobre a cama e mantido
preso por molas finas.
O arranjo dava um certo aspecto de camisas-de-força e celas acolchoadas.
Outro toque sombrio era o aviso atrás da porta, que anunciava em inglês, russo e chinês: "Este
hotel possui pressurização independente. Em caso de falha, você estará perfeitamente seguro.
Se isto acontecer, por favor permaneça em seu quarto e aguarde instruções. Obrigado."
Spencer já lera o aviso várias vezes e ainda pensava que a informação básica poderia ser
transmitida de modo mais seguro e elegante. As frases não tinham charme.
E isso, concluiu, era o problema da Lua. A luta contra as forças da natureza fora tão violenta
que não deixara nenhuma energia para a sofisticação. Era mais evidente no contraste entre a
suprema eficiência dos serviços técnicos e a atitude indolente, tipo "ame ou deixe",
encontrada em todas as outras facetas da vida. Se você se queixa dos serviços telefônicos,
encanamentos ou ar (principalmente o ar), o problema é atendido em questão de minutos. Mas
tente conseguir um atendimento rápido num restaurante ou num bar...
– Eu sei que está muito cansado – começou Spencer – mas gostaria de fazer-lhe algumas
perguntas. Não se importa que eu grave, espero?
– Não – respondeu Tom, que há muito passara do estágio de se importar com alguma coisa.
Estava caído numa cadeira, provando mecanicamente a bebida que Spencer servira, sem nem
ao menos sentir-lhe o gosto.
– Aqui Maurice Spencer, Notícias Interplanetárias, falando com o Dr. Thomas Lawson.
Doutor, tudo o que sabemos no momento é que o senhor e o engenheiro-chefe Lawrence, do
Lado Terrestre, encontraram o Selene e que todos a bordo estão em segurança. Talvez possa
nos dizer, sem entrar em muitos detalhes técnicos, exatamente como... Com mil diabos!
Apanhou o copo que caía lentamente, sem derramar uma gota, e colocou o astrônomo já
adormecido no sofá. Bem, não podia se queixar, este fora o único detalhe que não funcionara
de acordo com o plano. E ainda assim estava em vantagem, pois ninguém poderia encontrar
Lawson (muito menos entrevistá-lo) enquanto estivesse dormindo no que o Hotel Roris, com
excelente senso de humor, chamava de suíte luxuosa.
Todos aguardaram os três segundos, que como de hábito pareciam muito mais longos. Então o
físico respondeu claramente, como se estivesse na mesma sala: – Estive pensando nisso.
Podem existir aglutinantes orgânicos, cola se preferirem, que fariam a coisa se fundir, de
modo que pudesse ser manuseada mais facilmente.
Á água teria alguma utilidade? Já tentaram isso?
– Não, mas o faremos – respondeu Lawrence, tomando notas.
– O material é magnético? – indagou o oficial do Controle de Tráfego.
– Uma boa pergunta – disse Lawrence. – É, padre?
– Ligeiramente. Contém uma quantidade razoável de ferro meteórico. Mas não creio que isso
vá nos ajudar. Um campo magnético retiraria o material ferroso, mas não afetaria a poeira
como um todo.
– De qualquer modo vamos tentar. – Lawrence tomou nota. Era sua esperança, embora muito
frágil, que deste encontro de cérebros surgisse alguma idéia brilhante, alguma concepção
aparentemente bizarra, mas bastante segura, que resolveria os seus problemas. E eram seus
problemas, gostasse ou não. Ele era responsável, através de seus vários subalternos e
departamentos, por cada peça de equipamento técnico neste lado da Lua. Especialmente
quando alguma coisa saía errada.
– Receio – disse o oficial de Controle de Tráfego de Clavius – que sua maior preocupação
será a logística. Cada item do equipamento deverá ser transportado nos esquis; eles levam no
mínimo duas horas na viagem de ida e volta, e mais tempo ainda se rebocarem uma carga
pesada. Antes mesmo que comecem a operar, vocês terão de construir algum tipo de
plataforma, semelhante a uma jangada, que possam deixar no local. Talvez demore um dia para
colocá-la em posição e muito mais para transportar todo o equipamento.
– Incluindo os alojamentos temporários – acrescentou alguém. – Os trabalhadores terão de
permanecer no local.
– Isso é consequência direta. Assim que instalarmos a jangada poderemos inflar um Ighi em
cima.
– Melhor ainda, não vão precisar da jangada: o Iglu flutuará por si mesmo.
– Voltando à jangada – disse Lawrence -, queremos peças fortes e desmontáveis que possam
ser aparafusadas no local. Alguma idéia?
– Tanques de combustíveis vazios?
– Grandes demais e frágeis. Talvez a Estoques Técnicos tenha alguma coisa.
E assim prosseguia a sessão de consórcio cerebral. Lawrence iria permitir mais meia hora e
então decidiria o seu plano de ação.
Não se pode perder muito tempo em falações quando os minutos se escoam e muitas vidas
estão em jogo. E os esquemas apressados e mal concebidos são piores do que os
simplesmente inúteis, pois absorvem material e talentos que podem desequilibrar a balança
entre o sucesso e o fracasso.
À primeira vista parecia um trabalho objetivo. Lá estava o Selene a cem quilômetros de uma
base bem equipada. Sua posição era precisamente conhecida e ela se encontrava a apenas 15
metros de profundidade. Mas estes 15 metros representavam para Lawrence o problema mais
desconcertante de toda a sua carreira.
E era uma carreira, ele o sabia bem, que poderia terminar abruptamente, pois seria muito
difícil explicar a sua falha se aqueles 22 homens e mulheres morressem.
Era uma pena que nenhuma testemunha presenciasse a descida do Auriga, pois ela era uma
visão gloriosa. Uma espaçonave pousando ou decolando é um dos espetáculos mais
impressionantes que o homem já realizou, à exceção de alguns dos esforços mais exuberantes
dos engenheiros nucleares. E quando ocorre na Lua, em câmara lenta e silêncio total, adquire
um caráter de sonho, que se torna inesquecível.
O capitão Anson não via motivo em tentar qualquer navegação extravagante, principalmente
com alguém pagando o consumo de combustível. Não havia nada no manual a respeito de voar
com uma nave de carreira por uma distância de cem quilômetros – cem quilômetros,
francamente! – embora, sem sombra de dúvida, os matemáticos ficassem encantados em
calcular uma trajetória baseada no cálculo das variações, usando uma quantidade mínima de
combustível. Anson simplesmente decolou até uma altura de mil quilômetros (qualificando
assim a missão dentro dos níveis de espaço profundo segundo a lei interplanetária, algo que
ele só contaria a Spencer muito depois) e desceu de novo, numa aproximação normal na
vertical, com guia final através de radar. O computador da nave e o radar controlavam-se
mutuamente; ambos, por sua vez, eram controlados pelo capitão Anson. Qualquer um dos três
teria feito o trabalho, de tão simples e seguro que era, embora não parecesse.
Principalmente para Maurice Spencer, que começava a sentir uma grande saudade das
ondulantes e verdes colinas da Terra, enquanto aqueles picos desolados erguiam-se ao seu
encontro como garras afiadas. Afinal, por que se metera nisto?
Certamente havia métodos menos dispendiosos de cometer suicídio.
A pior parte era a queda livre entre os sucessivos períodos de frenagem. Suponha que os
foguetes falhem em disparar ao comando e a nave continue a mergulhar para a Lua, acelerando
lenta mas inexoravelmente até se espatifar?
Não adianta fingir que isso é um medo estúpido e infantil, pois já aconteceu mais de uma vez.
No entanto, isso não iria acontecer ao Auriga. A insuportável fúria dos jatos de frenagem já se
derramava sobre as rochas, lançando para o céu a poeira e os resíduos cósmicos que não
haviam sido perturbados em três bilhões de anos. Por um momento, a nave flutuou num
delicado equilíbrio a centímetros do solo; em seguida, quase relutantemente, as colunas de
chama que a sustentavam retraíram-se. As pernas separadas do trem de pouso fizeram contato,
suas almofadas inclinaram-se de acordo com os contornos do solo e toda a nave balançou
ligeiramente por um segundo, enquanto os absorvedores de choque neutralizavam a energia
residual do impacto.
Pela segunda vez em 24 horas Maurice Spencer pousara na Lua. Este era um feito que poucos
homens poderiam realizar.
– Bem – disse o capitão Anson, enquanto se erguia do painel de controle -, espero que esteja
satisfeito com a vista. Ela custou-lhe um bocado de dinheiro e ainda há o problema da hora
extra. De acordo com o Sindicato dos Trabalhadores Espaciais...
– Será que não tem alma, capitão? Por que me incomodar com essas trivialidades num
momento como este? Mas se posso dizê-lo, sem nenhum ônus extra, este foi um pouso ótimo.
– Oh, é tudo parte do trabalho diário – respondeu o comandante, embora não ocultasse leves
sinais de satisfação. – A propósito, importa-se se iniciarmos o diário agora, na hora do
pouso?
– Para que serve? – indagou Spencer, desconfiado.
– Prova de entrega. O diário é o nosso maior documento legal.
– Parece um pouco antiquado ter um diário escrito – comentou Spencer. – Pensei que tudo,
hoje em dia, fosse feito pela nucleônica.
– Tradições de serviço – respondeu Anson..– Ê claro que os gravadores de vôo da nave estão
em movimento durante todo o tempo em que se está com os motores ligados e o vôo pode
sempre ser reconstituído a partir deles. Mas somente o diário do capitão dá os pequenos
detalhes que fazem uma viagem diferente da outra. Por exemplo "gêmeos nascidos de uma
passageira de estibordo, esta manhã" ou "no toque das seis avistamos a Baleia Branca á
estibordo da proa".
– Retiro o que disse, capitão. O senhor tem alma, afinal de contas.
Spencer colocou sua assinatura no diário e dirigiu-se à janela para examinar a vista.
Á cabine de comando, a 150 metros acima do solo, possuía as únicas janelas de visão direta
da nave e a vista através delas era soberba. Atrás, para o Norte, erguiam-se os contrafortes
superiores das Montanhas da Inacessibilidade, cobrindo a metade do céu. O nome não era
mais apropriado, pensou Spencer; ele as alcançara e, enquanto a " nave permanecesse aqui,
seria até possível realizar alguma pesquisa científica útil, como a coleta de amostras de rocha.
À parte o valor jornalístico de chegar a tal região de fronteira, ele estava efetivamente
interessado no que poderia ser descoberto aqui. Nenhum homem pode se tornar tão indiferente
a ponto de a promessa do desconhecido e do inexplorado não conseguir comovê-lo.
Na direção oposta, podia enxergar através de quarenta quilômetros do Mar da Sede, que
tomava mais da metade do seu campo de visão num grande arco de imaculada planura.
Todavia, o que o preocupava estava agora a menos de cinco quilômetros de distância e dois
quilômetros abaixo.
Claramente visível através de um par de binóculos de baixo aumento, encontrava-se a vara
metálica deixada por Lawrence como marco e através da qual o Selene se ligava agora ao
mundo. A visão não era impressionante – apenas uma ponta solitária, projetando-se da
planície interminável – e no entanto sua simplicidade atraía Spencer. Isto produziria uma boa
abertura: simbolizava a solidão do Homem no imenso e hostil universo que tentava conquistar.
Dentro de algumas horas, esta planície não estaria mais vazia; até então, a vara serviria para
estabelecer um cenário, enquanto os comentaristas discutissem os planos de resgate e
ocupassem o tempo com as entrevistas adequadas. Não haveria problema; a unidade em
Clavius e os estúdios na Terra cuidariam disso. Spencer tinha apenas um trabalho no
momento: ficar aqui, neste ninho de águia, e cuidar para que as imagens fossem transmitidas.
Com a grande lente zoom, graças à claridade perfeita deste mundo sem ar, poderia obter um
resultado próximo a um close-up daqui de cima, quando a ação começasse.
Olhou para o sudoeste, onde o Sol se elevava tão vagarosamente no céu. Haveria quase duas
semanas de luz do dia, pela contagem da Terra. Nenhuma necessidade, portanto, de se
preocupar com a iluminação. O palco estava pronto.
Capítulo 17
O administrador-chefe Olsen quase nunca realizava atos públicos. Preferia governar a Lua
calma e eficientemente por trás dos bastidores, deixando que os amáveis extrovertidos, como
o comissário de Turismo, enfrentassem os jornalistas.
Suas raras aparições eram portanto muito mais notáveis, como ele desejava que fossem.
Embora milhões o observassem, os 22 homens e mulheres para os quais se dirigia não podiam
vê-lo, já que não se julgara necessário equipar o Selene com circuitos de visão. Mas a sua voz
era suficientemente tranquilizadora; informava tudo que desejavam saber.
– Alô, Selene – começou. – Quero que saibam que todos os recursos da Lua estão sendo
mobilizados neste momento para socorrê-los. As equipes de engenharia e técnica da minha
administração estão trabalhando dia e noite. O senhor Lawrence, engenheiro-chefe do Lado
Terrestre, encontra-se no comando e eu tenho a mais completa confiança nele; encontra-se em
Porto Roris, onde todo o equipamento especial, necessário à operação, está sendo montado.
Decidiu-se, e eu tenho a certeza de que os senhores concordarão, que a tarefa mais urgente é
assegurar a manutenção de seu suprimento de oxigênio. Assim, pretendemos descer
mangueiras até vocês; isto pode ser feito rapidamente, e então poderemos bombear oxigênio,
bem como água e alimento, se necessário. Logo que estas mangueiras estiverem instaladas,
vocês não terão mais nada com que se preocupar. Pode demorar um pouco para alcançá-los e
retirá-los, mas estarão em segurança. Só terão que sentar e esperar por nós. Agora vou sair do
ar e devolver-lhes este canal para que possam falar com seus amigos. Lamento a tensão e o
incômodo por que passaram, mas está tudo terminado agora. Resgataremos vocês dentro de um
dia ou dois. Boa sorte!
Uma alegre conversa iniciou-se a bordo do Selene assim que terminou a transmissão do
administrador-chefe. Ele conseguira obter exatamente o efeito que pretendia: os passageiros já
pensavam em todo o episódio como uma aventura para contarem durante o resto da vida.
Somente Pat Harris não parecia muito feliz.
– Eu gostaria – contou ao comodoro Hansteen – que o A.C. não fosse tão confiante. Na Lua,
afirmações como aquelas parecem sempre desafiar o destino.
– Sei como se sente – respondeu o comodoro. – Mas não pode culpá-lo. Ele pensa no nosso
estado de espírito.
– Que está ótimo, principalmente agora que podemos conversar com parentes e amigos.
– Isso me lembra que há um passageiro que não recebeu nem enviou qualquer mensagem. E, o
que é pior, não demonstra o menor interesse em fazê-lo.
– Quem é?
Hansteen abaixou ainda mais o tom de voz:
– O neozelandês Radley. Ele fica sentado num canto, quieto. Não sei por quê, mas me
preocupa.
– Talvez o pobre coitado não tenha ninguém na Terra com quem deseja falar.
– Um homem com dinheiro suficiente para ir à Lua certamente deve ter alguns amigos –
respondeu Hansteen. E então sorriu, um sorriso quase infantil que passou rapidamente pelo seu
rosto, suavizando as rugas. – Isto me parece muito cínico, não queria dizê-lo, mas sugiro que
fiquemos de olho no senhor Radley.
– Já mencionou isto para a Sue... ahn... senhorita Wilkins?
– Foi ela quem chamou a minha atenção.
Devia ter imaginado, pensou Pat, nada escapa à atenção dela. Agora que pareciam ter um
futuro pela frente, apesar de tudo, começava a pensar seriamente em Sue e no que ela lhe
dissera. Em sua vida, ele amara umas cinco ou seis garotas, ou assim pensara na ocasião, mas
isso era diferente. Conhecia Sue há mais de um ano e desde o começo se sentira atraído por
ela, mas até agora não conseguira nada.
Quais seriam os seus reais sentimentos?, pensou. Lamentaria aquele momento de paixão mútua
ou ele não teria significado nada para ela? Sue poderia afirmar, assim como ele, que o
ocorrido na comporta de ar não era importante; fora apenas o ato de um homem e uma mulher
que julgavam ter apenas algumas horas de vida. Como se fossem outras pessoas, não eles
mesmos.
Mas talvez tivessem sido, talvez aquele fosse o Pat Harris real, a Sue Wilkins real, que
finalmente emergiram do disfarce, revelados pela tensão e ansiedade dos últimos dias. Pensou
se poderia ter certeza disto, mas sabia que apenas o tempo daria a resposta. Se existia um teste
preciso e científico para determinar quando se está apaixonado, Pat Harris ainda não o
descobrira.
A poeira que lambia (se esta era a palavra adequada) o cais de onde o Selene partira há
quatro dias tinha apenas um par de metros de profundidade, mas para este teste era o
suficiente. Se o equipamento construído às pressas funcionasse aqui, funcionaria também lá
fora, no Mar aberto.
Depois de tomar uma ducha e se enxugar, percebeu a mensagem de Spencer sobre a mesa.
"Fique à vontade, tive que sair correndo. Mike Graham está assumindo o meu lugar. Chame-o
no 3443 depois de acordar." Eu dificilmente o chamaria antes de acordar, pensou Tom, cuja
mente excessivamente lógica adorava captar tais vícios de linguagem. Mas obedeceu ao
pedido de Spencer, resistindo heroicamente ao impulso de ordenar antes um desjejum.
Quando terminou de falar com Mike Graham, descobriu que dormira durante as horas mais
excitantes da história de Porto Roris, que Spencer decolara no Auriga para o Mar da Sede e
que a cidade estava repleta de jornalistas, a maioria procurando pelo Dr. Lawson.
– Fique onde está – disse Graham, cujo nome e voz pareciam vagamente familiares a Tom.
Devia tê-lo visto numa das raras ocasiões em que assistira aos tele-noticiários lunares. –
Estarei aí em cinco minutos.
– Estou faminto – protestou Tom.
– Chame o serviço de quarto e peça o que quiser. Por nossa conta, é claro. Mas não saia da
suíte.
Tom não se incomodou em ser manipulado desse modo um tanto cavalheiresco.
Significava, apesar de tudo, que se tornara uma peça importante. Ficou muito mais aborrecido
pelo fato de o serviço de quarto chegar muito depois de Mike Graham.
Algo que qualquer pessoa em Porto Roris poderia ter lhe avisado. Assim, era um astrônomo
faminto, que agora encarava a tele-câmara em miniatura de Mike e tentava explicar para
apenas duzentos milhões de telespectadores (por enquanto) exatamente como pudera encontrar
o Selene.
Graças à transformação produzida pela fome e por suas experiências mais recentes, fez um
trabalho de primeira classe. Alguns dias atrás, se algum repórter de TV conseguisse arrastar
Lawson para a frente de uma câmara, a fim de explicar a técnica de detecção infravermelha,
teria sido desdenhosamente ofuscado pela ciência. Tom lhe daria uma palestra, rápida e
contínua, repleta de termos como "eficiência quântica", "radiação do corpo negro" e
"sensitividade espectral", que convenceriam a sua audiência de que o assunto era
extremamente complexo (o que era verdade) e totalmente impossível de ser entendido por um
leigo (o que era falso).
Todavia, ele agora respondia a Mike Graham de modo cuidadoso e paciente (apesar dos
protestos de seu estômago), usando termos que a maioria dos espectadores poderia
compreender. Para a maior parte da comunidade astronômica, que Tom magoara de vez em
quando, era uma revelação. Lá em cima, em Lagrange II, o professor Kotelnikov resumiu os
sentimentos de seus colegas quando prestou a Tom a homenagem final ao término da
exposição: "Francamente", disse em tom de incredulidade, "eu nunca o teria reconhecido."
Era um feito notável conseguir espremer sete homens na comporta de ar do Selene, mas, como
Pat demonstrara, este era o único lugar onde poderia haver uma troca de ideias em particular.
Sem dúvida, os outros passageiros ignoravam o que estava acontecendo. Iriam sabê-lo em
breve.
Quando Hansteen terminou de explicar, seus ouvintes pareciam compreensivelmente
preocupados, mas não muito surpresos. Eram homens inteligentes e já deviam ter deduzido a
verdade.
– Estou explicando a vocês primeiro – disse o comodoro – porque eu e o capitão Harris
concluímos que são todos sensatos e suficientemente seguros para nos fornecerem a ajuda de
que necessitamos. Por Deus, espero que não cheguemos a isso, mas pode haver tumulto
quando eu o anunciar.
– E se houver? – disse Harding.
– Se alguém der trabalho, agarrem-no – respondeu o comodoro. – Mas ajam do modo mais
natural possível, quando voltarmos à cabine. Procurem não se comportar como se estivessem
esperando uma briga; este é o melhor modo de começar uma. O
trabalho de vocês será sufocar o pânico antes que se espalhe.
– Acha melhor – perguntou o Dr. McKenzie – não dar-lhes uma oportunidade de...
bem... enviar as últimas mensagens?
– Já pensamos nisso, mas levaria muito tempo e deixaria todos excessivamente deprimidos.
Queremos acabar com isso o mais rápido possível. Quanto mais cedo agirmos, maiores as
nossas chances.
– Pensa realmente que temos chances? – indagou Barrett.
– Sim – disse Hansteen – embora não me pareçam promissoras. Mais alguma pergunta?
Bryan? Johanson? Certo, vamos em frente.
Enquanto retornavam à cabine, os outros passageiros observavam com uma curiosidade e um
alerta crescentes. Hansteen evitou mantê-los em suspense.
– Tenho uma grave notificação a fazer – disse de forma bem pausada, – Todos vocês devem ter
notado uma dificuldade em respirar e vários estão se queixando de dores de cabeça. Sim,
receio que seja o ar. Ainda temos bastante oxigênio, este não é o nosso problema. Porém, não
nos podemos livrar do dióxido de carbono que exalamos; ele está se acumulando dentro da
cabine. Por quê, não sabemos. Meu palpite é que o calor afetou os absorventes químicos. Mas
esta explicação não importa, já que não há nada que possamos fazer a respeito.
Teve de parar e respirar profundamente várias vezes, antes de prosseguir.
– Desse modo, devemos enfrentar a situação.. A dificuldade em respirar vai se tornar
inexoravelmente pior, bem como as dores de cabeça. Não vou tentar enganá-los. A equipe de
resgate não poderá nos alcançar antes de seis horas e nós não podemos esperar tanto.
Ouviu-se um som ofegante em algum lugar da audiência. Hansteen evitou olhar para a fonte.
Um momento depois, ouviu-se um ressonar ruidoso da parte da senhora Schuster. Em outra
ocasião teria sido engraçado, mas não agora. Ela estava tranquila, embora não totalmente
inconsciente.
O comodoro respirou fundo mais uma vez. Era cansativo falar.
– Se eu não pudesse oferecer a vocês nenhuma esperança – continuou – não diria nada. Mas
temos uma chance e devemos aproveitá-la logo. Não é uma alternativa agradável, mas o
contrário é muito pior. Senhorita Wilkins, por favor, passe-me os tubos soporíferos.
Houve um silêncio mortal, nem mesmo interrompido pela senhora Schuster, quando a
comissária passou uma pequena caixa de metal. Hansteen abriu e retirou um cilindro branco
com o tamanho e a forma de um cigarro.
– Provavelmente sabem – continuou – que todos os veículos espaciais são obrigados por lei a
transportar isto em seus estojos de remédios. São completamente indolores e vão deixá-los
desacordados durante dez horas. Isto pode significar a diferença entre a vida e a morte, pois o
ritmo respiratório de um homem é reduzido em cinquenta por cento quando se encontra
inconsciente. Assim, nossa reserva de ar irá durar o dobro do tempo. O suficiente, esperamos,
para que a equipe de Porto Roris nos alcance.
– Agora, é essencial que pelo menos uma pessoa permaneça acordada para se manter em
contato com a equipe de resgate. E para termos certeza vamos deixar duas. Uma delas deve
ser o capitão. Acho que não há objeções quanto a isso.
– E suponho que a outra seja o senhor – disse uma voz muito familiar.
– Sinto muito, senhorita Morley – disse o comodoro, sem o menor indício de ressentimento.
Não havia motivo para fazer caso de uma questão já resolvida. – Exatamente para evitar
qualquer possível mal-entendido...
E antes que alguém percebesse o que acontecera ele pressionou o cilindro contra o antebraço.
– Espero vê-los dentro de dez horas – disse de modo lento mas distinto, enquanto se dirigia ao
assento mais próximo. Mal chegara a ele, quando tombou inconsciente.
O espetáculo agora é todo seu, pensou Pat ao se levantar. Por alguns instantes teve vontade de
dizer poucas e boas à senhorita Morley, mas percebeu que se o fizesse estragaria toda a
dignidade da saída do comodoro.
– Sou o capitão deste barco – disse em voz baixa mas firme. – E de agora em diante o que eu
disser será feito.
– Não comigo – respondeu a indomável senhorita Morley. – Paguei a minha passagem e tenho
os meus direitos. Não tenho a menor intenção de usar umas dessas coisas.
A maldita mulher parecia incontrolável. Mas Pat tinha de admitir que ela possuía coragem.
Teve um breve vislumbre do futuro que suas palavras sugeriam: dez horas sozinho com a
senhorita Morley e mais ninguém com quem conversar.
Olhou para os cinco controladores de distúrbios. O mais próximo dela era o engenheiro civil
jamaicano, Robert Bryan. Ele parecia pronto e desejoso de entrar em ação, mas Pat ainda
esperava que isso pudesse ser evitado.
– Não quero discutir os seus direitos – disse – mas se olharem as letras menores de suas
passagens vão descobrir que durante uma emergência eu tenho autoridade total aqui. De
qualquer modo, isto é para o benefício e o próprio conforto de vocês. Para mim seria melhor
estar dormindo do que acordado, enquanto a equipe de salvamento tenta nos alcançar.
– Também penso assim – disse o professor Jayawardene de modo inesperado. – Como o
comodoro falou, isso vai conservar o ar por mais tempo, de modo que é nossa única chance.
Senhorita Wilkins, quer me dar uma dessas coisas?
Essa calma lógica ajudou a baixar a temperatura emocional, e assim o professor mergulhou de
modo suave e obviamente confortável na inconsciência. Caíram dois, faltam 18, murmurou
Pat.
– Não vamos perder mais tempo – disse em voz alta. – Como podem ver, estas injeções são
completamente indolores. Existe uma hipodérmica micro-jato dentro de cada cilindro e vocês
nem mesmo sentirão a picada.
Sue já distribuía os pequenos tubos de aparência inocente, e vários passageiros faziam uso
deles. Lá iam os Schusters (Irving pressionara o tubo com relutância e carinho contra o braço
da esposa adormecida) e o enigmático senhor Radley.
Restavam apenas 15. Quem seria o próximo?
Agora Sue chegara junto à senhorita Morley. É agora, pensou Pat. Se ela ainda está decidida a
criar caso... Já devia adivinhar.
– Eu pensei ter deixado bem claro que não quero uma dessas coisas. Por favor, afaste isso de
mim.
Robert Bryan começou a se aproximar lentamente, mas a voz inglesa, em tom jocoso, de David
Barrett realizou o truque.
– O que realmente perturba a boa senhora, capitão – falou com evidente prazer -, é que o
senhor possa se aproveitar dela enquanto estiver desacordada.
Por alguns segundos a senhorita Morley ficou sem voz de tanto ódio, enquanto seu rosto se
tornava vermelho.
– Nunca fui tão insultada em minha vida – começou ela.
– Nem eu, senhora – acrescentou Pat, aumentando a desmoralização. Ela olhou em torno do
círculo de rostos que, apesar de alguns sorrisos, mesmo numa ocasião como esta, estavam em
sua maioria sérios. Percebeu que só havia um jeito de escapar.
Enquanto ela caía inerte em seu assento, Pat dava um profundo suspiro de alívio.
Depois deste pequeno episódio, o resto seria fácil.
Foi então que ele viu a senhora Williams, cujo aniversário fora celebrado de modo espartano
há apenas algumas horas. Ela fitava o cilindro em sua mão, numa espécie de transe. A pobre
mulher estava obviamente aterrorizada e ninguém poderia censurá-la. No assento ao lado, seu
marido já tombara. De modo muito pouco cavalheiresco, pensou Pat, pois fora primeiro para a
inconsciência, deixando a esposa defender-se sozinha.
Antes que ele pudesse tomar qualquer atitude, Sue adiantou-se.
– Sinto muito, senhora Wil iams. Cometi um engano. Dei-lhe um tubo vazio. Poderia me
devolver?...
A coisa foi feita de um modo tão hábil que pareceu um truque de mágica. Sue pegou, ou
pareceu tirar, o tubo dos dedos da senhora Wil iams; mas, ao fazê-lo, deve tê-lo comprimido
contra a pele da mulher. A senhora Wil iams nunca soube o que acontecera e dobrou-se
languidamente, juntando-se a seu marido.
Agora, metade do grupo estava inconsciente. No cômputo geral, pensou Pat, houve pouca
dificuldade. O comodoro Hansteen fora muito pessimista e o "esquadrão anti-tumulto" não se
fizera necessário.
Então, com um leve sentimento de pesar, percebeu algo que o fez mudar de opinião. Parecia,
como de hábito, que o comodoro sabia exatamente o que estava fazendo. A senhorita Morley
não seria o único problema.
Haviam-se passado dois anos desde a última ocasião em que Lawrence estivera dentro de um
iglu. Quando engenheiro recém-formado, trabalhando em projetos de construção, vivera em
um deles durante semanas e se esquecera de como era estar cercado por paredes rijas. Depois,
é claro, houve muitos melhoramentos no seu desenho; agora não era mais tão penoso viver
numa residência que cabia, dobrada, dentro de um baú.
Este era um dos últimos modelos, um Goodyear Mark XX, com capacidade para suportar seis
homens em um período de tempo indefinido, desde que fosse mantido um suprimento de
energia, água, comida e oxigênio. O iglu poderia provê-los com tudo o mais, até mesmo
entretenimento, pois possuía uma micro-biblioteca embutida, com livros, música e vídeo. Não
era um luxo extravagante, embora se indagasse bastante a respeito. No espaço, o tédio pode
ser mortal. Talvez leve mais tempo do que, digamos, um vazamento na tubulação de ar, mas é
igualmente eficaz e às vezes até mais cruel.
Lawrence parou antes de penetrar na comporta. Em alguns dos modelos antigos, lembrou-se,
era preciso ficar de quatro para entrar. Esperou o sinal de "pressão equalizada" e entrou na
câmara principal hemisférica.
Era como estar dentro de um balão; e de fato consistia exatamente nisso. Podia ver apenas
parte do interior, dividido em vários compartimentos por tabiques desmontáveis. (Outro
refinamento; em seu tempo, a única forma de privacidade era a cortina no banheiro.) Acima,
três metros sobre o solo, estavam as luzes e a grade do condicionador de ar, suspensas do teto
por uma teia elástica. Contra a parede curva erguiam-se prateleiras de metal parcialmente
montadas. Do outro lado de um dos tabiques mais próximos veio o som de uma voz lendo um
inventário, enquanto a cada três segundos alguém respondia: "Confere."
Lawrence deu a volta à parede e se encontrou no dormitório do iglu. Como todas as
prateleiras de parede, os beliches duplos ainda não estavam totalmente montados. Era apenas
necessário assegurar que todas as peças e seções estivessem no lugar, pois assim que a
inspeção se completasse tudo seria embalado e enviado a toda pressa para o local.
Lawrence não interrompeu os dois homens do depósito, que continuaram a sua cuidadosa
verificação do estoque. Este era um dos trabalhos mais tediosos, porém vitais, do tipo que
havia muito na Lua e do qual vidas dependiam. Um engano poderia representar uma sentença
de morte para alguém.
Quando os inspetores chegaram ao final das anotações, Lawrence disse: – Este é o maior
modelo que possuem no estoque?
– O maior que se encontra disponível – foi a resposta. – Temos um Mark 19 para 12 homens,
mas há um vazamento no invólucro externo que precisa de conserto.
– Quanto tempo levaria?
– Somente alguns minutos. Mas então teríamos um teste de inflação de 12 horas antes que
pudéssemos inspecioná-lo.
Era uma daquelas ocasiões em que o homem que faz as regras deve quebrá-las.
– Não podemos esperar um teste completo. Coloque um remendo duplo e faça uma leitura de
vazamento; se ela estiver dentro do padrão de tolerância, inspecione o iglu imediatamente.
Autorizarei a liberação.
O risco era insignificante, e ele talvez precisasse daquele domo grande com urgência. De
algum modo, teria de providenciar abrigo e ar para 22 homens e mulheres no Mar da Sede.
Eles não seriam capazes de usar trajes espaciais durante o tempo necessário para serem
retirados do Selene e transportados a Porto Roris.
Ouviu um "bipe-bipe" do comunicador por trás de sua orelha direita. Apertou o botão no cinto
e respondeu à chamada:
– E.C. falando.
– Mensagem do Selene, senhor – disse uma voz diminuta, mas clara. – Muito urgente, eles
estão em apuros.
Capítulo 19
Até o momento, Pat quase não notara o homem sentado, de braços cruzados, na poltrona 3D,
ao lado da janela, e precisou pensar duas vezes para lembrar-se do seu nome. Era alguma
coisa como Builder – era isso, Baldur. Hans Baldur. Parecia o típico turista pacato, que nunca
dá trabalho.
Ele continuava quieto, porém não era mais típico, já que permanecia teimosamente consciente.
À primeira vista parecia ignorar todos à sua volta, mas a contração de um músculo da face
traía o seu estado de tensão.
– O que está esperando, senhor Baldur? – indagou Pat, no tom de voz mais neutro que podia
conseguir. Sentia-se feliz pelo apoio moral e físico lá atrás. Baldur não parecia
excepcionalmente forte, mas sem dúvida tinha mais força do que os músculos de Pat,
desenvolvidos na Lua, poderiam suportar, se chegassem às vias de fato.
Baldur sacudiu a cabeça e continuou olhando pela janela, como se pudesse ver alguma coisa
além de sua própria reflexão.
– Você não pode me forçar a tomar esse negócio. Não vou fazê-lo – disse num inglês de forte
sotaque.
– Eu não quero forçá-lo a fazer nada – respondeu Pat. – Mas não percebe que é para o seu
próprio bem e para o bem de todos os outros? Qual é a objeção?
Baldur hesitou, parecendo ter dificuldade em encontrar as palavras.
– É... contra os meus princípios. Sim, é isso. Minha religião não permite que eu tome injeções.
Pat sabia vagamente que existem pessoas com tais escrúpulos. Mas nem por um momento
acreditou que Baldur fosse uma delas. O homem estava mentindo. Mas por quê?
– Posso fazer uma observação? – disse uma voz às costas de Pat.
– É claro, senhor Harding – respondeu, agradecendo qualquer coisa que pudesse solucionar o
impasse.
– O senhor disse que não permite nenhuma injeção, senhor Baldur – continuou Harding num
tom que lembrava o interrogatório da senhora Schuster. (Parecia ter-se passado tanto tempo!)
– Mas posso notar que não nasceu na Lua. E ninguém pode deixar de se submeter à quarentena;
Assim, como chegou aqui sem tomar as injeções regulamentares?
A pergunta deixou Baldur extremamente nervoso.
– Isso não é problema de vocês – resmungou.
– Está bem. Só estou tentando ajudar – disse Harding, amavelmente. Aproximou-se,
estendendo a mão esquerda. – Eu poderia ver o seu certificado interplanetário de vacinação?
Era uma pergunta muito tola, pensou Pat. Nenhum olho humano poderia ler a informação
gravada magneticamente no CIV. Ele se perguntou se Baldur perceberia isso e o que poderia,
então, ocorrer.
Mas Baldur não teve tempo de perceber nada. Ainda estava olhando, obviamente tomado de
surpresa, para a palma aberta de Harding, quando este moveu a outra mão de um modo tão
rápido que Pat nem viu o que acontecera.
Era como o truque de prestidigitação de Sue com a senhora Wil iams, porém muito mais
espetacular e também mais mortífero. Até onde Pat pôde perceber, aquilo envolvera apenas o
lado da mão de Harding sobre a base do pescoço de Baldur; não era, com certeza, o tipo de
habilidade que Pat desejaria adquirir.
– Isso vai contê-lo durante 15 minutos – disse Harding bastante seguro de si, enquanto Baldur
desabava em seu assento. – Pode me dar um desses tubos? Obrigado.
Pressionou o cilindro contra o braço do homem desacordado e não houve nenhum indício de
que o golpe tivera qualquer efeito adicional.
A situação, pensou Pat, de certo modo escapara de seu controle. Estava grato por Harding
exercitar as suas habilidades singulares, mas não muito contente quanto a elas.
– Agora, o que significa tudo isso? – indagou, um tanto queixoso.
Harding arregaçou a manga esquerda de Baldur e virou-lhe o braço para mostrar a pele do
lado inferior. Ela estava literalmente coberta com centenas de picadas quase invisíveis.
– Sabe o que é isso?
Pat acenou que sim. Alguns demoraram mais tempo para fazer a viagem do que outros, mas
agora todos os vícios da Terra já haviam alcançado a Lua.
– Não pode culpar o pobre-diabo por não revelar os seus motivos. Ele foi condicionado
contra o uso da agulha. A julgar pelo estado destas marcas, começou a sua cura apenas
algumas semanas atrás. E agora tornou-se psicologicamente impossível aceitar uma injeção.
Espero que não tenhamos lhe causado uma recaída, mas esta é a menor de suas preocupações.
– Como ele conseguiu passar pela quarentena?
– Oh, há uma seção especial para pessoas assim. Os médicos não comentam a respeito, mas os
clientes são temporariamente descondicionados sob hipnose. Há mais deles do que se pode
imaginar. Uma viagem à Lua é altamente recomendada como parte da cura. Ela o afasta de seu
ambiente.
Existiam outras perguntas que Pat gostaria de fazer ao senhor Harding, mas já haviam perdido
vários minutos. Graças a Deus, todos os outros passageiros já estavam inconscientes. A
demonstração de judô, ou o que quer que fosse, devia ter encorajado qualquer indeciso.
– Você não vai mais precisar de mim – disse Sue, com um pequeno sorriso de bravura. –
Adeus, Pat. Acorde-me quando estiver tudo acabado.
– Farei isso – prometeu ele, enquanto a deitava gentilmente no espaço entre duas fileiras de
assentos. – Ou não o farei nunca mais – acrescentou, quando viu que os olhos dela já estavam
fechados.
Permaneceu curvado vários segundos sobre o corpo de Sue antes de recuperar suficiente
autocontrole para encarar os outros. Havia tantas coisas que quisera dizer-lhe, mas agora a
oportunidade se fora, talvez para sempre.
Engolindo para dominar a sensação de aspereza em sua garganta, voltou-se para os cinco
remanescentes. Existia ainda mais um problema e David Barrett o resumiu: – Bem, capitão,
não nos deixe mais em suspense. Qual de nós vai querer como companhia?
Cada um deles recebeu de Pat um tubo soporífero.
– Obrigado pela ajuda. Sei que isto é um tanto melodramático, mas é o modo mais justo.
Apenas quatro desses tubos irão funcionar.
– Espero que seja o meu – disse Barrett, sem perder tempo. Foi o que aconteceu.
Alguns instantes depois, Harding, Bryan e Johanson seguiram o inglês rumo ao limbo.
– Bem – disse o Dr. McKenzie. – Acho que sou o homem sorteado. Estou lisonjeado por sua
escolha. Ou foi apenas sorte?
– Antes de responder a essa pergunta é melhor fazer com que Porto Roris saiba o que está
acontecendo.
Dirigiu-se ao rádio e enviou um breve relatório da situação. Houve um silêncio comovido na
outra extremidade do circuito. Alguns minutos depois o engenheiro-chefe Lawrence entrou na
linha.
– Você fez a melhor coisa, é claro – disse ele, depois que Pat repetiu a história com maior
riqueza de detalhes. – Mesmo que não tenhamos problemas, não poderemos alcançá-los em
menos de cinco horas. Será capaz de aguentar até lá?
– Dois de nós, sim – respondeu Pat. – Poderemos nos revezar no circuito respirador do traje
espacial. É com os passageiros que me preocupo.
– A única coisa que pode fazer é verificar-lhes a respiração e dar-lhes uma descarga de
oxigênio, se parecerem muito agoniados. Faremos o melhor que pudermos, do nosso lado.
Algo mais que queira dizer?
Pat pensou alguns segundos.
– Não – respondeu, cansado. – Chamarei a cada 15 minutos. Selene desligando.
Levantou-se muito lentamente, pois a tensão e o envenenamento por dióxido de carbono
começavam a pesar sobre ele, e falou com McKenzie: – Doutor... dê-me uma mão com aquele
traje espacial.
– Que vergonha. Esqueci-me completamente dele.
– E eu me preocupava que algum passageiro pudesse se lembrar. Todos eles devem ter visto
quando entraram pela comporta. Isto apenas prova como se pode deixar de notar o óbvio.
Os dois estavam sentados com as pernas cruzadas sobre o piso, ao lado do assento do piloto,
com o tubo de oxigênio entre eles. A intervalos de alguns minutos aspiravam o inalador, um de
cada vez, mas apenas duas inspirações. Nunca imaginei, pensou Pat, que me envolveria com o
clichê número um das óperas espaciais da TV.
Entretanto, isso já acontecera tantas vezes na vida real que perdera a graça, especialmente
quando acontece conosco.
Ambos, Pat e McKenzie – ou quase certamente um dos dois -, poderiam sobreviver se
abandonassem os outros passageiros à sua própria sorte. Tentar manter esses vinte homens e
mulheres vivos poderia condená-los.
A situação era tal que a lógica ia de encontro à consciência. Contudo, não era nova nem
peculiar à era espacial, mas tão velha quanto a humanidade, pois incontáveis vezes no passado
grupos perdidos ou isolados enfrentaram a morte através da falta de água, comida ou calor.
Agora faltava oxigênio; o princípio, entretanto, era o mesmo.
Alguns daqueles grupos não deixaram sobreviventes, outros, um punhado de homens que
passaram o resto de suas vidas se penitenciando. Em que pensaria George Pollard, último
capitão do baleeiro Essex, ao caminhar pelas ruas de Nantucket, com a mácula do canibalismo
sobre a sua alma? Esta era uma história com duzentos anos de idade, de que Pat nunca ouvira
falar. Ele vivia num mundo muito ocupado em criar suas próprias lendas para se importar com
as que havia na Terra. No que lhe dizia respeito, já fizera a sua escolha e sabia, sem precisar
perguntar, que McKenzie concordaria com ele. Nenhum dos dois era o tipo de homem que
lutaria pela última bolha de oxigênio no tanque. Mas se houvesse uma luta...
– De que está rindo? – indagou McKenzie.
– Se quer mesmo saber – disse, abaixando a máscara de oxigênio – eu pensava que não teria
muita chance se você decidisse ficar sozinho com o tubo de oxigênio.
McKenzie pareceu um pouco surpreso e então sorriu também.
– Calculei que todos vocês, nascidos na Lua, eram sensíveis a esse respeito.
– Nunca me senti assim – respondeu Pat. – Apesar de tudo, o cérebro é mais importante do
que os músculos. Não posso evitar o fato de ter nascido num campo gravitacional seis vezes
menor do que o seu. De qualquer modo, como sabe que eu nasci na Lua?
– Em parte pelo físico. Todos vocês têm a mesma estrutura alta e delgada. E a cor da sua pele.
Ás lâmpadas ultravioletas nunca fornecem o mesmo bronzeado da luz solar natural.
– Que certamente o bronzeou – retrucou Pat, com um sorriso. – À noite você deve ser um
perigo à navegação. Aliás, como conseguiu ter um nome como McKenzie?
Tendo pouco contato com as tensões raciais ainda não totalmente extintas na Terra, Pat podia
fazer tais observações sem perceber que elas poderiam causar algum embaraço.
– O meu avô o recebeu de um missionário quando foi batizado. Sou muito descrente quanto a
qualquer significação genética. Sei apenas que sou um abo puro sangue.
– Abo?
– Aborígine. Éramos as pessoas que ocupavam a Austrália antes da vinda do homem branco.
Os fatos subsequentes foram um pouco deprimentes.
O conhecimento de Pat quanto à história terrestre era muito vago. Como a maioria dos
residentes da Lua, ele tendia a presumir que nada de maior importância ocorrera antes de 8 de
novembro de 1967, quando o quinquagésimo aniversário da Revolução Russa fora celebrado
de modo tão espetacular{4}.
– Suponho que houve uma guerra?
– Dificilmente poderia chamá-la assim. Tínhamos lanças e bumerangues; eles tinham rifles.
Para não falar da tuberculose e das doenças venéreas, muito mais eficientes. Levamos 150
anos para nos recobrar do impacto. Somente no século passado, depois de 1940, a nossa
população tornou a crescer. Agora existem uns cem mil de nós, quase tantos quanto havia na
época em que seus ancestrais chegaram.
McKenzie forneceu estas informações com uma indiferença irônica que eliminava qualquer
acusação pessoal, mas Pat achou melhor se isentar de qualquer responsabilidade pelos crimes
de seus antepassados terrestres.
– Não me culpe pelo que aconteceu na Terra; nunca estive lá e nunca estarei. Não poderia
suportar sua gravidade. Mas já vi a Austrália muitas vezes através do telescópio. Tenho alguns
laços sentimentais com o lugar. Meus pais decolaram de Woomera.
– E meus ancestrais batizaram o lugar. Um Woomera é um objeto propulsor para as lanças e
também é um estado da Austrália.
– Ainda existe alguém de seu povo vivendo em condições primitivas? – indagou Pat
escolhendo cuidadosamente as palavras. – Já ouvi que isso ocorre em Certas regiões da Ásia.
– A antiga vida tribal se foi. E acabou rapidamente quando as nações africanas começaram a
pressionar a Austrália na ONU. De um modo muito desonesto, devo acrescentar, pois sou um
australiano primeiro e um aborígine depois. Mas devo admitir que meus compatriotas brancos
eram geralmente muito estúpidos; deviam ser, para pensarem que éramos estúpidos! Por quê?
Até meados do último século alguns deles ainda pensavam em nós como selvagens da Idade
da Pedra. Nossa tecnologia era da Idade da Pedra, certo, mas nós não éramos.
Para Pat, tal discussão, abaixo da superfície da Lua, a respeito de um modo de vida tão
distante no espaço e no tempo, não parecia nada absurda. Ele e McKenzie deviam entreter um
ao outro, ficar de olho nos vinte companheiros inconscientes e lutar contra o sono durante pelo
menos cinco horas. Este era um modo tão eficiente de fazê-lo quanto qualquer outro.
– Se o seu povo não estava na Idade da Pedra, doutor – apenas em benefício do argumento
concordarei que não estava -, como os brancos tiveram tal impressão?
– Pura estupidez, somada ao preconceito. Ê uma conclusão fácil de se tirar: se um homem não
pode contar, escrever ou falar um bom inglês, não deve ser inteligente. Posso lhe dar um
perfeito exemplo em minha própria família. Meu avô, o primeiro McKenzie, viveu o suficiente
para conhecer o ano dois mil, mas nunca aprendeu a contar além de dez. E sua descrição de
um eclipse total da Lua seria: "Jesus Cristo apagou a lâmpada de querosene lá no céu." Agora
eu sou capaz de escrever as equações do movimento orbital da Lua, mas não afirmaria ser
mais inteligente que meu avô. Se tivéssemos trocado de lugar no tempo talvez ele fosse o
grande físico. Nossas oportunidades foram diferentes, apenas isso. Vovô nunca teve ocasião
de aprender a contar e eu nunca precisei sustentar uma família num deserto, o que era um
trabalho altamente especializado, em tempo integral.
– Talvez – disse Pat, pensativo – pudéssemos utilizar as habilidades de seu avô por aqui. É o
que estamos tentando fazer agora: sobreviver num deserto.
– Suponho que possa definir desta maneira, embora não acredite que bumerangues e paus de
fazer fogo tenham muita utilidade. Talvez pudéssemos usar um pouco de mágica. Mas receio
não conhecer nenhuma e duvido que os deuses tribais pudessem fazê-lo lá da terra de Arnhem.
– Já se sentiu pesaroso pela destruição do modo de vida de sua gente?
– Como poderia? Eu nem o conheci. Nasci em Brisbane e aprendi a usar um computador
eletrônico antes mesmo de ver um corroboree...
– Um o quê?
– Dança religiosa tribal. E metade dos participantes da que presenciei estavam se graduando
em antropologia cultural. Não tenho ilusões românticas quanto à vida simples do nobre
selvagem. Meus ancestrais eram pessoas ótimas e não me envergonho deles, mas a geografia
os prendera num beco sem saída. Após a luta pela sobrevivência eles não tinham nenhuma
energia de sobra para dedicar à civilização. Á longo prazo, a chegada dos colonizadores
brancos foi uma boa coisa, apesar do seu hábito fascinante de nos venderem farinha
envenenada quando queriam as nossas terras.
– Eles faziam isso?!
– Certamente. Mas por que está surpreso? Isto foi uns cem anos antes de Belsen.
Pat pensou nisso alguns minutos. Em seguida olhou para o relógio e disse com uma distinta
sensação de alívio:
– Hora de contactar de novo a base. Antes, vamos dar uma olhada nos passageiros.
Capítulo 20
Não havia tempo agora, pensou Lawrence, para se preocupar com iglus infláveis e outros
refinamentos do bem-viver no Mar da Sede. Tudo o que importava era descer aqueles dutos de
ar até o cruzador. Os engenheiros e técnicos teriam de suar nos seus trajes espaciais até que a
tarefa estivesse terminada. O sacrifício não seria longo. Se não conseguissem realizá-la em
cinco ou seis horas, poderiam dar a volta e ir para casa, deixando o Selene no mundo do qual
tirara o nome.
Nas oficinas de Porto Roris realizavam-se milagres de improvisação, nunca antes vistos ou
ouvidos. Uma usina de ar condicionado completa, com seus tanques de oxigênio líquido,
absorventes de umidade e dióxido de carbono, reguladores de pressão e temperatura, fora
desmontada e colocada num trenó; da mesma forma, uma perfuratriz de pequeno porte, trazida
num ônibus-foguete, da divisão de geofísica em Clavius; além do encanamento de desenho
especial, que deveria funcionar na primeira tentativa, pois não haveria oportunidade para
modificações.
Lawrence não tentou apressar seus homens; sabia ser desnecessário. Manteve-se nos
bastidores, checando o fluxo de equipamento dos depósitos para as oficinas e daí para os
trenós. Tentava pensar nos possíveis contratempos: que tipo de ferramentas seriam
necessárias? Quantas sobressalentes? A jangada devia ser colocada nos esquis por último, de
modo a ser descarregada em primeiro lugar?
Seria seguro bombear o oxigênio para o Selene antes de conectar uma linha de exaustão? Estes
e centenas de outros detalhes, alguns simples, outros vitais, passaram pela sua mente. Chamou
Pat várias vezes a fim de obter informações técnicas, tais como a pressão interna e
temperatura, se a válvula de exaustão da cabine já estourara (ainda não, provavelmente estava
entupida de poeira) e pediu conselhos quanto aos melhores pontos para se perfurar o teto. Em
cada ocasião, Pat respondia com crescente lentidão e dificuldade.
A despeito das tentativas para contactá-lo, Lawrence recusou-se firmemente a falar com os
jornalistas, que agora se apinhavam em torno de Porto Roris e ocupavam metade dos circuitos
de som e vídeo entre a Terra e a Lua. Fornecera-lhes uma breve declaração, explicando qual
era a situação e o que pretendia fazer a respeito. O resto era com o pessoal da administração.
Era trabalho deles protegê-lo, de modo a poder prosseguir a sua tarefa sem ser perturbado.
Deixara isto bem claro ao comissário de Turismo, e desligara antes que Davis pudesse
argumentar.
Não tinha tempo, é claro, nem para olhar rapidamente a cobertura da televisão, embora
ouvisse comentários de que o Dr. Lawson estava rapidamente criando a reputação de ter
personalidade um tanto rabugenta. Isso, presumiu, era trabalho do homem da Notícias
Interplanetárias, em cujas mãos jogara o astrônomo. O sujeito devia sentir-se muito feliz em
relação a isso.
Mas não estava. Alto, nos contrafortes das Montanhas da Inacessibilidade, cujo título tão
convincentemente refutara, Maurice Spencer caminhava a passos rápidos ao encontro da
úlcera que evitara durante toda a sua vida profissional. Gastara cem mil stollars para trazer o
Auriga até aqui e parecia, afinal, não ter nenhuma história.
Estaria tudo acabado antes que os esquis chegassem. A operação de resgate, cheia de
suspense, que manteria bilhões colados às suas telas, jamais se materializaria. Poucas pessoas
resistiriam ao desejo de observar 22 homens e mulheres serem resgatados da morte, mas
ninguém desejaria ver uma exumação.
Esta era a fria analise de Spencer, sob a óptica do comentarista de TV; mas o ser humano
estava igualmente infeliz. Era terrível estar aqui na montanha, a apenas cinco quilômetros da
tragédia iminente, impossibilitado de fazer alguma coisa para evitá-la. Sentia-se quase
envergonhado cada vez que respirava, sabendo que aquelas pessoas lá embaixo estariam
sufocando. Várias vezes pensara se não haveria algo que o Auriga pudesse fazer para ajudar
(o valor jornalístico disto, é claro, não lhe escapou), mas agora tinha certeza de que seria
apenas uma simples testemunha. O Mar implacável eliminava qualquer possibilidade de
ajuda.
Já cobrira desastres antes, mas desta vez sentia-se anormalmente como um vampiro.
Estava muito tranquilo agora, a bordo do Selene, tão tranquilo que era preciso lutar contra o
sono. Que bom seria, pensava Pat, unir-se aos outros, que sonhavam felizes ao seu redor. E
então tomava algumas inalações de oxigênio e a realidade se fechava sobre ele assim que
percebia o perigo.
Um homem só jamais permaneceria acordado ou manteria uma vigília sobre vinte homens e
mulheres inconscientes, fornecendo-lhes oxigênio sempre que mostravam sinais de problemas
respiratórios. Ele e McKenzie faziam uma vigília mútua, e várias vezes um sacudira o outro da
iminência do sono. Não haveria dificuldade se tivessem bastante oxigênio, mas a garrafa se
tornava rapidamente vazia. Era enlouquecedor o fato de saber que ainda existiam muitos
quilos de oxigênio líquido nos tanques principais do cruzador, sem meios de utilizá-los. O
sistema automático o liberava aos poucos através dos evaporadores para a cabine, onde era
instantaneamente contaminado pela atmosfera, agora quase irrespirável.
Pat nunca vira o tempo passar tão vagarosamente. Parecia incrível que tivessem transcorrido
apenas quatro horas desde que ele e McKenzie ficaram incumbidos de zelar pelos
companheiros adormecidos. Ele afirmaria estar aqui há dias, falando baixinho com o colega,
chamando Porto Roris a cada 15 minutos, checando pulsos e respirações e concedendo
pequenas doses de oxigênio.
Mas nada dura para sempre. Pelo rádio, vindo de um mundo que nenhum dos dois homens
acreditava ver novamente, chegavam as notícias esperadas.
– Estamos a caminho – disse a voz cansada, mas decidida, do engenheiro-chefe Lawrence. –
Só precisam aguentar por mais uma hora. Como se sentem?
– Muito cansados – respondeu Pat com lentidão. – Mas aguentaremos.
– E os passageiros?
– Na mesma.
– Certo, chamaremos vocês a cada dez minutos. Deixe o volume do receptor todo aberto. Esta
é uma sugestão da Divisão Médica. Eles não querem correr o risco de vocês caírem no sono.
O som das trombetas trovejou através da face da Lua e ecoou até a Terra e pelas vastidões do
sistema solar. Hector Berlioz nunca seria capaz de sonhar que dois séculos após compor o
ritmo vibrante de sua Marcha Rakoczy levaria animo e esperança a homens que lutavam por
suas vidas num outro mundo.
Enquanto a música reverberava através da cabine, Pat olhou para o Dr. McKenzie com um
leve sorriso.
– Pode ser antiquado – disse – mas está funcionando.
O sangue pulsava em suas veias, os pés batiam ao compasso da música. Do céu lunar,
relampejando do espaço, chegava o som dos exércitos marchando, o trovão da cavalaria
através de mil campos de batalha, o chamado dos clarins que um dia convocaram nações para
enfrentarem seus destinos. Tudo perdido, há muito tempo, o que era bom para o mundo. Mas
deixando em seu rastro muito do que era bom e nobre. Exemplos de heroísmo e auto-
sacrifício, provas de que os homens ainda eram capazes de se manterem de pé, quando seus
corpos há muito haviam passado os limites da resistência física.
Enquanto seus pulmões trabalhavam no ar estagnado, Pat sabia que precisava dessa inspiração
do passado para conseguir sobreviver àquela hora interminável que se estendia à sua frente.
Nas Montanhas da Inacessibilidade, Maurice Spencer olhava pelo seu binóculo e ouvia as
vozes do rádio, chamando através do Mar da Sede.
A cada dez minutos Lawrence falava com o Selene e em cada ocasião a pausa antes da
resposta era mais longa. Mas Harris e McKenzie ainda se agarravam à consciência, graças à
absoluta força de vontade e talvez ao encorajamento musical que recebiam da Cidade Clavius.
– O que o disc-jockey psicólogo está mandando para eles agora? – indagou Spencer. Do outro
lado da cabine de controle o radioperador aumentou o volume e As Valquírias cavalgaram
sobre as Montanhas da Inacessibilidade.
– Não acredito – resmungou o capitão Anson – que eles tenham tocado algo mais recente do
que o século XIX.
– Ah, tocaram sim – corrigiu Jules Braques, enquanto fazia algum ajuste minúsculo em sua
câmara. – Tocaram a Dança do sabre, de Khachaturian, ainda agora. Esta só tem cem anos de
idade.
– Está na hora do Espanador Um chamar de novo – disse o radioperador. A cabine tornou-se
instantaneamente silenciosa.
No momento exato chegou o sinal do esqui de pó. A expedição estava tão próxima do Auriga
que poderiam ouvi-la diretamente, sem utilizar o relê em Lagrange.
– Lawrence chamando Selene. Estaremos sobre vocês em dez minutos. Estão bem?
Uma pausa agonizante, alongando-se desta vez durante quase cinco segundos.
Então:
– Selene responde. Nenhuma mudança aqui.
Isto era tudo. Pat Harris não desperdiçava o fôlego que lhe restava.
– Dez minutos – disse Spencer. – Deviam estar à vista agora. Algo na tela?
– Ainda não – respondeu Jules, focalizando o horizonte com a lente zoom e lentamente
varrendo ao longo de seu arco vazio. Não havia nada acima, além do espaço negro como a
noite.
A Lua, pensava Jules, sempre apresentava algumas dores de cabeça para o câmara. Tudo era
cor de fuligem ou branco lavado, não havia nenhum belo meio-tom. E, é claro, existia o
clássico e eterno dilema das estrelas, embora esta fosse uma questão estética, não técnica.
O público esperava ver estrelas no céu lunar, mesmo durante o dia, porque elas lá estavam.
Mas o olho humano não poderia vê-las; durante o dia, o olho encontrava-se tão
dessensibilizado pelo brilho que o céu parecia vazio, absolutamente negro. Se alguém
desejasse ver as estrelas, teria de procurar por elas através de óculos protetores, que
filtrassem todo o excesso de luz. Dessa forma, suas pupilas se expandiriam gradualmente e as
estrelas surgiriam uma por uma até preencherem o campo de visão. Mas assim que olhasse
para qualquer outra coisa, elas sumiriam. O olho humano poderia fitar as estrelas à luz do dia
ou a paisagem iluminada, mas não ambas as coisas ao mesmo tempo.
A câmara de TV, contudo, poderia, se isso fosse desejado; alguns diretores preferiam fazê-lo,
outros argumentavam que falsificava a realidade. Era um daqueles problemas que não
possuíam resposta correta. Jules estava do lado do realismo e mantinha o circuito "portal das
estrelas" desligado até que o estúdio o exigisse.
A qualquer momento receberia instruções da Terra. Algumas das redes de notícias já haviam
pedido flashes: vistas gerais das montanhas, lentas varreduras através do Mar, doses do marco
solitário erguendo-se através do pó. Mas dentro em breve e talvez durante horas a fio, essa
câmara seria os olhos de vários bilhões de pessoas. A reportagem talvez fosse um fracasso ou
a maior história do ano.
Segurou o amuleto em seu bolso. Jules Braques, membro da Sociedade dos Engenheiros do
Cinema e da Televisão, ficaria ofendido se alguém o acusasse de carregar um talismã. Por
outro lado, teria dificuldade em explicar por que nunca mostrava o seu pequeno brinquedo
antes que a história que estivesse cobrindo seguramente entrasse no ar.
– Aí vêm eles! – gritou Spencer; sua voz revelava a tensão sob a qual se encontrava. Abaixou
o binóculo e olhou para a câmara. – Você está muito à direita!
Jules já estava filmando. Na tela do monitor, a planura geométrica do horizonte fora afinal
interrompida: duas minúsculas estrelas cintilantes apareciam agora no arco perfeito que
separava o Mar e o espaço. Os esquis de pó aproximavam-se sobre a face da Lua.
Mesmo com o foco mais longo da lente zoom eles pareciam pequenos e distantes.
Era deste modo que Jules queria; estava ansioso em oferecer uma impressão de vazio e
solidão. Deu uma rápida olhada na tela principal da nave, sintonizada no canal interplanetário.
Sim, eles o estavam transmitindo.
Enfiou a mão no bolso, retirou um pequeno diário e o colocou sobre a câmara.
Levantou a capa, que se prendeu em posição quase vertical – e imediatamente tomou vida em
cor e movimento. Ao mesmo tempo uma voz fraca começou a dizer-lhe que este era um
programa especial de Notícias Interplanetárias, canal um-zero-sete, e "agora estamos levando
vocês até a Lua".
A minúscula tela projetava a imagem que ele via diretamente em seu monitor.
Não, não a mesma imagem. Esta era a que captara dois segundos e meio atrás; ele olhava para
tal distância no passado. Nos dois e meio milhões de microssegundos, de acordo com a escala
de tempo de um engenheiro eletrônico, aquela cena passara por muitas aventuras e
transformações. De sua câmara fora canalizada para o transmissor do Auriga e irradiada para
Lagrange, cinquenta mil quilômetros acima.
Lá, fora arrancada do espaço, amplificada algumas centenas de vezes e disparada na direção
da Terra, para ser captada por outro satélite retransmissor. Em seguida para baixo, através da
ionosfera, pelos últimos mais árduos cem quilômetros até o edifício da Interplanetária, onde
suas aventuras realmente começavam, ao se juntar ao fluxo incessante de sons, imagens e
impulsos elétricos, que informavam e divertiam uma fração substancial da raça humana.
E aqui estava ela novamente, depois de passar pelas mãos dos diretores de programa,
departamentos de efeitos especiais e assistentes de engenharia – direto de volta ao lugar onde
tudo começara, irradiada para todo o lado terrestre do transmissor de alta potência em
Lagrange II e sobre o Lado Remoto via Lagrange I.
Para percorrer um único palmo de distância entre a câmara de TV de Jules e seu diário-
receptor de bolso, aquela imagem viajara três quartos de milhão de quilômetros.
Ele se perguntou se valia a pena; coisa que os homens viviam se perguntando desde que a
televisão fora inventada.
Capítulo 21
Lawrence avistou o Auriga quando se encontrava a 15 quilômetros de distância.
Dificilmente teria deixado de fazê-lo, pois era um objeto bastante distinto enquanto a luz do
sol brilhasse sobre o seu metal e o seu plástico.
Que diabo era aquilo?, perguntou-se e respondeu quase ao mesmo tempo. Era obviamente uma
nave, e ele se lembrava de ter ouvido vagos rumores de que alguma rede noticiosa conseguira
um vôo charter para as montanhas. Isso não era da sua conta, embora em certa ocasião tivesse
examinado a questão do desembarque de equipamento ali como um modo de evitar o tedioso
transporte sobre o Mar. Infelizmente, o plano não funcionaria. Não existia nenhum ponto
seguro para pouso a menos de quinhentos metros acima do nível do mar. A saliência que fora
tão conveniente para Spencer ficava numa altitude elevada demais para ser útil.
O engenheiro-chefe não tinha certeza se lhe agradava a idéia de ter cada movimento seu
registrado por lentes de longo alcance lá nas colinas, embora não pudesse fazer nada quanto a
isso. Vetara uma tentativa para colocar uma câmara num dos esquis – para enorme alívio,
embora Lawrence não soubesse, da Notícias Interplanetárias e extrema frustração das outras
redes. Então percebeu que talvez fosse útil ter uma nave a apenas alguns quilômetros de
distância. Ela poderia prover um canal adicional de informação, e talvez utilizassem seus
serviços de outro modo.
Ela poderia fornecer hospitalidade até que os iglus fossem enviados.
Onde estaria o marco? Certamente deveria estar à vista, agora! Por um desconfortável
momento Lawrence pensou que tivesse caído, desaparecendo na poeira. Aquilo não os
impediria de encontrar o Selene, é claro, mas poderia retardá-los por cinco ou dez minutos
numa ocasião em que cada segundo era vital.
Deu um suspiro de alívio; deixara de notar a fina haste contra o luminoso fundo das
montanhas. O piloto já localizara o seu objetivo e mudara ligeiramente o curso para alcançá-
lo.
Os esquis deslizaram até parar em ambos os lados do marco e imediatamente tornaram-se
palco de intensa atividade. Oito figuras em trajes espaciais começaram a descarregar volumes
e grandes tambores cilíndricos com grande agilidade, segundo o esquema predeterminado.
Rapidamente a jangada começou a tomar forma, enquanto sua estrutura de metal chanfrado era
aparafusada em volta dos tambores e o leve piso de fibra de vidro colocado por cima.
Nenhuma construção, em toda a história da Lua, fora realizada com tamanho esquema de
publicidade, graças ao olho vigilante nas montanhas. Todavia, uma vez começado o trabalho,
os oito homens nos esquis tornaram-se totalmente indiferentes aos milhões de olhos voltados
para eles. Tudo o que lhes importava agora era colocar a jangada em posição e fixar a
armação que guiaria a perfuratriz oca, portadora da vida, até o seu objetivo.
A cada cinco minutos, ou menos, Lawrence falava com o Selene, mantendo Pat e McKenzie
informados de seu progresso. O fato de também informar o mundo angustiado com a espera
quase não lhe passou pela cabeça.
Finalmente, no tempo incrível de vinte minutos, a perfuratriz estava pronta, seus cinco
primeiros metros apontados com um arpão pronto a mergulhar no Mar. Só que esse arpão era
projetado para levar a vida, não a morte.
– Estamos baixando – disse Lawrence. – A primeira parte é a maior.
– É melhor se apressarem – sussurrou Pat. – Não aguentarei mais muito tempo.
Ele parecia estar se movendo dentro da névoa e não podia se lembrar de quando ela não
estivera ali. Apesar da dor constante em seus pulmões, não se sentia realmente desconfortável;
apenas cansado, inacreditavelmente cansado. Agora não era mais que um robô realizando uma
tarefa cujo significado já esquecera, se de fato alguma vez o conhecera. Havia uma chave em
sua mão; ele a retirara do estojo de ferramentas horas atrás, sabendo que seria necessária.
Talvez ela o fizesse recordar-se do que deveria fazer quando chegasse a ocasião.
Parecia ouvir, de uma grande distância, um fragmento de conversação que obviamente não lhe
era destinado. Alguém se esquecera de mudar de canal.
– Devemos ajustá-la de modo que a broca possa ser desenroscada da extremidade. Mas se ele
estiver muito fraco para fazê-lo?
– Temos de correr o risco. Os acessórios extras nos teriam atrasado mais uma hora. Dê-me
aquele...
Então o circuito foi desligado, mas Pat já ouvira o suficiente para ficar aborrecido, ou tão
aborrecido quanto um homem poderia estar em sua condição semi-atordoada.
Mostraria a eles... ele e seu bom amigo Dr. Mac... Mac o quê? Não conseguia mais se lembrar
do nome.
Voltou-se lentamente na cadeira giratória e olhou para o comprimento da cabine, cujas ruínas
lembravam o Gólgota. Por um instante não foi capaz de avistar o físico entre os demais corpos
tombados, e então o viu, ajoelhado junto à senhora Wil iams, cujas datas de nascimento e
morte agora pareciam muito próximas. McKenzie segurava a máscara de oxigênio sobre o
rosto dela, totalmente inconsciente do fato de que o sopro de gás do cilindro cessara e o
mostrador há muito atingira o zero.
– Estamos quase aí – disse o rádio. – Deverá ouvir, quando o atingirmos dentro de um minuto.
Tão rápido?, pensou Pat. Mas é claro que o pesado tubo iria atravessar a poeira com a mesma
velocidade com que fosse baixado. Julgou-se muito esperto por deduzir isso.
Batida! Alguma coisa atingira o teto. Mas onde?
– Posso ouvi-los – sussurrou. – Vocês nos alcançaram.
– Sabemos disso – respondeu a voz. – Podemos sentir o contato, mas você tem de fazer o
resto. Pode nos dizer onde foi que a broca tocou? Ê uma parte livre do teto ou está sobre a
fiação? Vamos levantar e abaixar várias vezes para ajudá-lo a localizá-la.
Pat sentiu-se muito ofendido com isso. Parecia terrivelmente desonesto que o obrigassem a
decidir sobre uma questão tão complicada.
Toque, toque, soava a broca contra o teto. Ele não poderia, nem que sua vida dependesse disso
(que frase apropriada!), localizar a posição exata do som. Bem, não tinha nada a perder.
– Vão em frente – murmurou -, vocês estão num ponto livre. – Teve de repetir duas vezes até
que entendessem suas palavras.
Instantaneamente (eles eram rápidos na plataforma lá em cima) a broca começou a zumbir
contra o casco externo. Podia ouvir o som muito distintamente, mais belo do que a música.
A ponta atravessou o primeiro obstáculo em menos de um minuto. Ouviu-a correr e em seguida
parar, quando o motor foi desligado. O operador baixou-a mais alguns centímetros até atingir
o casco interno e começou a girá-la novamente.
O som agora era muito mais alto e poderia ser facilmente localizado. Vinha, notou Pat um tanto
inquieto, de muito perto do principal cabo condutor de energia, ao longo do centro do teto. Se
aquilo o atravessasse...
Lento e cambaleante, levantou-se e caminhou até a fonte do som. Quase a alcançara quando
houve uma chuva de pó do teto, um súbito faiscar de eletricidade e as luzes se apagaram.
Felizmente a iluminação de emergência permaneceu acesa. Pat levou vários segundos para
adaptar seus olhos ao fraco brilho vermelho. Viu o tubo de metal projetando-se do teto.
Moveu-se lentamente para baixo, até chegar meio metro para dentro da cabine, quando então
parou.
O rádio falava ao fundo, dizendo alguma coisa que ele sabia ser muito importante.
Tentou descobrir o sentido enquanto ajustava a chave ao redor da cabeça da broca.
– Não retire a broca até avisarmos – dizia a voz distante. – Precisamos de tempo para instalar
uma válvula de não-retorno. O encanamento está aberto no vácuo nesta extremidade.
Avisaremos assim que estivermos prontos. Repito: não remova a broca até avisarmos.
Pat desejava que o homem parasse de incomodá-lo. Sabia exatamente o que devia fazer.
Bastava inclinar-se com toda a sua força sobre a chave e a cabeça de corte se soltaria. Então
poderia respirar novamente.
Por que não estava se movendo? Tentou mais uma vez.
– Meu Deus! – disse o rádio. – Pare com isso! Não estamos prontos ainda, vai perder todo o
seu ar!
Espere um minuto, pensou Pat, sem fazer caso da interpretação. Há algo errado aqui. Uma
rosca pode girar de um modo ou de outro. E se eu estiver apertando ao invés de abrir?
Isso era horrivelmente complexo. Olhou para sua mão direita, em seguida para a esquerda,
nenhuma pareceu ajudar (nem aquele homem tolo gritando no rádio).
Bem, iria tentar do outro modo e ver se funcionava.
Com grande dignidade deu uma volta completa em torno do tubo, mantendo um braço ao redor.
Quando chegou na chave, do outro lado, agarrou-a com ambas as mãos para não cair.
Descansou por um instante contra ela, a cabeça abaixada.
– Erguer periscópio – balbuciou. O que era mesmo que isto significava na Terra?
Não tinha a menor idéia, mas ouvira em algum lugar e agora parecia apropriado.
Ainda matutava a respeito, quando a cabeça de corte começou a desenroscar lentamente sob o
seu peso, de um modo muito fácil e suave.
Lawrence não esperou muito. Os lados da caixa caíram, revelando uma massa de
circunvoluções de tecido cor de prata, dobrado de modo compacto. Aquilo estremecia e
lutava como uma criatura viva. Lawrence vira uma vez uma mariposa emergir da crisálida,
com as asas ainda dobradas, e os dois processos tinham uma estranha similaridade. O inseto,
todavia, levara uma hora para atingir todo o seu tamanho e esplendor, enquanto o iglu só levou
três minutos.
Enquanto o gerador de ar bombeava para dentro do envelope flácido, ele se expandia e
endurecia em espasmos súbitos, seguidos por lentos períodos de consolidação. Agora já
estava com um metro de altura e se desenvolvia mais para os lados do que para cima. Mas,
quando chegou aos limites de sua extensão, começou a subir novamente, e a comporta de ar
saltou do domo principal. Toda a operação, que se julgaria ser acompanhada de chiados e
sopros, parecia estranha, pois se desenvolvia em total silêncio.
Agora, com a estrutura quase atingindo as suas dimensões finais, tornava-se óbvio que o termo
"iglu" era o único nome possível para ela. Embora projetadas a fim de fornecerem proteção
contra um ambiente bem diverso, mas quase tão hostil, as casas dos esquimós tinham
exatamente a mesma forma. O problema técnico fora similar e assim era a solução.
Levavam mais tempo para instalar os acessórios do que para inflar o iglu, já que todo o
equipamento – beliches, cadeiras, mesas, armários e equipamento eletrônico – devia ser
carregado para dentro através da comporta de ar. Algumas das peças maiores, projetadas com
apenas alguns centímetros de folga, quase não passavam.
Finalmente houve uma chamada de rádio de dentro do domo: – Está funcionando. Podem
entrar!
Vinte e quatro horas após a instalação do iglu, todo o equipamento especial já estava pronto e
embarcado para o local. Era um recorde que Lawrence esperava nunca ter de quebrar, e
sentia-se muito orgulhoso dos homens que o realizaram. A Divisão de Engenharia raramente
recebia o crédito merecido: como o ar que todos respiravam, esquecendo-se dos engenheiros
que o forneciam.
Agora, sentindo-se pronto para entrar em ação, Lawrence estava disposto a começar a falar e
Maurice Spencer mais do que disposto a ouvi-lo; estivera aguardando o tempo todo por este
momento.
Até onde podia se lembrar, esta era a primeira vez que acontecia uma entrevista na televisão
com câmara e entrevistado separados por uma distância de cinco quilômetros. Nessa
fantástica ampliação, a imagem parecia um pouco nebulosa, é claro, e a mais ligeira vibração
na cabine do Auriga a fazia dançar na tela. Assim, todos a bordo da nave encontravam-se
imóveis e a maquinaria não-essencial fora desligada.
O engenheiro-chefe Lawrence estava de pé na beira da jangada, sua figura em traje espacial
recostada contra um pequeno guindaste pendente sobre a borda.
Suspenso na lança, havia um grande cilindro de concreto, aberto em ambas as extremidades; o
primeiro segmento do tubo era agora baixado na poeira.
– Depois de pensar muito – disse Lawrence para a câmara distante, mas sobretudo em favor
dos homens e mulheres a 15 metros abaixo dele – decidimos que esta era a melhor forma de
enfrentar o problema. Este cilindro é chamado "ensecadeira" e afundará facilmente sob seu
próprio peso. O bordo inferior deverá cortar através da poeira como uma faca na manteiga.
Há segmentos suficientes para atingir o cruzador. Quando tivermos feito contato e o tubo
estiver preso na base... sua pressão contra o teto assegurará isso... começaremos a retirar a
poeira de dentro. Em seguida, abriremos uma espécie de chaminé, como um poço, descendo
até o teto do Selene. Com isso, teremos vencido metade da batalha, mas só a metade.
Deveremos, então, conectar a chaminé a um dos nossos iglus pressurizados de maneira a ser
possível cortar através do teto sem que haja perda de ar. Mas penso, e espero, que estes sejam
problemas razoavelmente simples.
Fez uma pequena pausa enquanto decidia se mencionava os outros detalhes que tornavam a
operação muito mais delicada do que parecia. Resolveu não fazê-lo, pois os conhecedores
poderiam ver com seus próprios olhos e os outros não se interessariam e, além disso,
pensariam que ele estava se gabando. Toda a publicidade (mais de meio bilhão de
espectadores, como relatara o comissário de Turismo) não o preocupava, desde que tudo
corresse bem. Porém, se não conseguissem...
Ergueu o braço e ordenou ao operador do guindaste: – Comece a baixar!
Lentamente, o cilindro acomodou-se na poeira até seus quatro metros de comprimento
desaparecerem, à exceção de um estreito anel que se projetava um pouco acima da superfície.
Descera de modo fácil e regular. Lawrence esperava que os demais segmentos se
comportassem da mesma forma.
Um dos engenheiros verificava cuidadosamente ao longo do bordo da ensecadeira, com um
aparelho de nível tipo bolha, para assegurar que a penetração fora vertical.
Em seguida, fez o sinal do polegar para cima, que Lawrence respondeu do mesmo modo.
Houvera um tempo em que, como qualquer outro lobo do espaço, ele fora capaz de estabelecer
um diálogo técnico bastante extenso unicamente na linguagem dos sinais. Esta era uma
habilidade essencial ao seu trabalho, nas ocasiões em que o rádio falhava e quando não era
conveniente sobrecarregar o limitado número de canais de áudio disponíveis.
– Pronto para o número dois – disse ele.
Desta vez seria bem mais delicado. O primeiro segmento devia manter-se rígido, enquanto o
segundo era aparafusado sem alterar o alinhamento. Normalmente, seriam necessários dois
guindastes para realizar este trabalho, mas uma estrutura de vigas em "I", mantida a alguns
centímetros acima da poeira, se encarregaria da carga enquanto o guindaste era utilizado em
outra tarefa.
– Sem erros agora, pelo amor de Deus! – disse baixinho. O segmento número dois girou para
fora do trenó que o trouxera de Porto Roris e três técnicos o colocaram na vertical. Era o tipo
de trabalho em que a distinção entre peso e massa se tornava essencial. O cilindro oscilante
pesava relativamente pouco, mas seu momentum era o mesmo que na Terra, e ele poderia
esmagar um homem se o prendesse numa daquelas lentas oscilações. E nisso havia alguma
coisa de peculiar à Lua: o movimento vagaroso da massa suspensa. Nessa gravidade, um
pêndulo levava duas vezes e meia maior tempo para completar um ciclo do que na Terra. Algo
que jamais pareceria natural, exceto para um homem nascido neste mundo.
Agora o segundo segmento encontrava-se erguido e unido ao primeiro. Mais uma vez,
Lawrence deu a ordem de baixar.
A resistência oferecida pela poeira aumentava, mas a ensecadeira continuava a afundar de um
modo uniforme, graças ao seu próprio peso.
– Oito metros já se foram – avisou Lawrence. – Isto significa que já ultrapassamos a metade
do caminho. Segmento número três chegando.
Depois deste haveria só mais um, embora Lawrence tivesse providenciado um segmento
sobressalente como medida de segurança. Tinha um respeito profundo pela habilidade do Mar
quando se tratava de engolir equipamentos. Até aqui apenas algumas porcas e parafusos foram
perdidos, mas se uma peça da ensecadeira escorregasse do gancho sumiria num segundo.
Embora não fosse provável que afundasse muito, principalmente se atingisse a poeira de lado,
estaria efetivamente fora de alcance, ainda que a uns poucos metros abaixo. Não poderiam
perder tempo resgatando o seu próprio equipamento de resgate.
E lá se foi o número três – o último segmento – movimentando-se com uma lentidão
perceptível. Mas ainda se movia e dentro de alguns minutos, com um pouco de sorte, eles
estariam batendo no teto do cruzador.
– Doze metros abaixo – disse Lawrence. – Estamos apenas a três metros de vocês, Selene.
Devem ouvir-nos a qualquer instante.
De fato, eles podiam ouvir e o som era maravilhosamente tranquilizador. Pouco mais de dez
minutos atrás, Hansteen percebera a vibração no tubo de oxigênio no momento em que a
ensecadeira roçara nele. Era possível dizer quando ela parava e quando começava a se mover.
Lá estava a vibração de novo, desta vez acompanhada por uma pequena queda de poeira do
teto. Os dois tubos de ar foram puxados para cima, de modo que apenas vinte centímetros de
seus comprimentos se projetavam através do teto. O cimento de secagem rápida, que constituía
parte do estojo de emergência de todos os veículos espaciais, estava colocado ao redor destes
pontos de entrada. Agora parecia estar se soltando, mas aquela impalpável chuva de pó era
muito insignificante para causar alarme. De qualquer maneira Hansteen achou melhor
mencioná-lo ao capitão, que talvez não tivesse percebido.
– Engraçado – disse Pat, olhando para o cano que vibrava. – Este cimento devia colar,
segurando o encanamento mesmo em caso de vibração.
Subiu numa poltrona e examinou a tubulação de ar mais de perto. Não disse nada por um
momento e então desceu, parecendo intrigado e aborrecido, além de preocupado.
– Qual é o problema? – perguntou Hansteen baixinho. Conhecia Pat o suficiente agora para ler
em seu rosto como num livro aberto.
– O encanamento está subindo através do teto – disse. – Alguém lá naquela jangada está sendo
descuidado. Já encurtou em um centímetro desde que eu fixei aquela massa.
Então Pat parou subitamente, muito pálido.
– Meu Deus! – sussurrou. – Suponha que seja nossa falha, suponha que estejamos afundando.
– E se estivermos? – perguntou calmamente o comodoro. – É de esperar que a poeira continue
a assentar sob nosso peso. Não significa que estejamos em perigo. A julgar por aquele cano,
descemos apenas um centímetro em vinte e quatro horas.
Eles sempre podem baixar mais um pouco a tubulação, se necessário.
Pat sorriu, um pouco envergonhado.
– É claro, esta é a resposta. Devia ter pensado nisso antes. Provavelmente estivemos
afundando durante todo o tempo, de um modo muito lento, e esta é a primeira prova. Ainda
assim, acho melhor dizer ao senhor Lawrence – pode alterar os seus cálculos.
Pat começou a caminhar em direção à dianteira da cabine, mas não conseguiria chegar até lá.
Capítulo 25
A Natureza levara milhões de anos para instalar a armadilha que apanhara o Selene e o
arrastara para o fundo do Mar da Sede. Na segunda vez ele foi apanhado por uma armadilha
feita por si mesmo.
Pelo fato de os seus projetistas não terem necessidade de se preocupar com cada grama de
excesso de peso, ou planejá-la para jornadas com mais do que algumas horas de duração, não
haviam equipado a embarcação com um daqueles engenhosos, mas não anunciados,
equipamentos pelos quais uma espaçonave recicla todo o seu suprimento de água. Como o
Selene não precisava conservar seus recursos na maneira avarenta das naves de espaço
profundo, a pequena quantidade de água normalmente usada ou produzida a bordo era
simplesmente despejada no exterior,
Durante os últimos cinco dias várias centenas de quilos do líquido e vapor haviam deixado o
Selene para serem instantaneamente absorvidos pelo pó sedento. Muitas horas atrás, a poeira
nas imediações das aberturas de descarga de resíduos tinha se saturado e transformado em
lama. Escorrendo através de centenas de canais, perfurara o Mar ao redor como o interior de
um favo de mel, tirando o cruzador de seu alicerce de modo lento e silencioso. O leve
empurrão causado pela ensecadeira fizera o resto.
Na jangada, o primeiro indício de desastre foi uma luz vermelha piscando no purificador de
ar, seguida pelo som dos alarmes de rádio através de todos os canais.
As vibrações cessaram imediatamente quando o técnico encarregado apertou o botão de
desligar, mas a luz vermelha continuou a piscar.
Uma olhada nos mostradores foi o suficiente para mostrar a Lawrence qual era o problema. Os
tubos de ar – os dois – não estavam mais conectados ao Selene. O purificador bombeava
oxigênio para dentro do Mar através de um dos canos e, o que era pior, sugava poeira através
do outro. Lawrence pensou no tempo que gastaria para limpar os filtros, mas não perdeu mais
tempo com isso. Estava muito ocupado chamando o Selene.
Não recebeu nenhuma resposta. Tentou todas as frequências do cruzador sem receber nem
mesmo o assovio de uma onda. O Mar da Sede estava tão silencioso ao rádio quanto era ao
som.
Eles estão perdidos, disse para si mesmo, está tudo acabado; tão próximos, mas não pudemos
conseguir. E precisávamos apenas de mais uma hora.
O que poderia ter acontecido?, pensou tristemente. Talvez o casco tivesse desabado sob o
peso do pó. Não, isso era muito improvável; a pressão interna do ar teria impedido. Talvez
fosse outro tipo de desabamento. Não estava muito certo, mas pensara sentir um leve tremor
sob os pés. Desde o começo estivera consciente desse perigo, mas não pudera encontrar
nenhum meio de evitá-lo. Era um jogo que todos aceitaram jogar e que o Selene perdera.
Mesmo enquanto o Selene começava a cair, alguma coisa já dizia a Pat que esse desabamento
hão era igual ao primeiro. Era muito mais lento e acompanhado por ruídos de algo deslizando
e se esmagando, vindos do lado de fora do casco. Mesmo naquele momento desesperado, foi
capaz de notar que estes sons eram diferentes dos que a poeira poderia fazer.
No teto, os tubos de ar estavam sendo arrancados. Não deslizaram uniformemente, pois o
cruzador escorregava com a popa voltada para baixo, inclinando-se com a dianteira para
cima. Com um estalar de fibra de vidro, a tubulação à frente da comporta-cozinha rompeu o
teto e desapareceu. Imediatamente, um grosso jato de poeira espalhou-se na cabine e se
expandiu numa nuvem sufocante ao atingir o piso.
O comodoro Hansteen estava mais perto, e chegou primeiro. Rasgou sua camisa e, enrolando-
a rapidamente, empurrou-a na abertura. A poeira esguichava em todas as direções enquanto
ele lutava para bloquear o fluxo. Quase o conseguira quando a tubulação dianteira foi
arrancada e as luzes se apagaram. Pela segunda vez o cabo condutor se partira.
– Eu cuidarei disso! – gritou Pat. Um momento depois, também sem camisa, tentava cortar o
fluxo da torrente que se derramava através do furo.
Viajara pelo Mar da Sede uma centena de vezes e nunca tocara essa substância com a pele
nua. A poeira cinzenta salpicou seu nariz e seus olhos, quase sufocando-o e o cegando
inteiramente. Embora fosse mais seca que o pó da tumba de um faraó, pois era um milhão de
vezes mais antiga que as pirâmides, dava a sensação de algo escorregadio como sabão.
Enquanto lutava contra a coisa, Pat viu-se pensando que, se havia uma morte pior do que ser
afogado, era ser enterrado vivo.
Quando o jato diminuiu, tornando-se um pequeno filete, percebeu que conseguira evitar este
destino, ao menos por enquanto. A pressão produzida por 15 metros de poeira lunar, sob baixa
gravidade, não era difícil de enfrentar, embora a história tivesse sido outra se os buracos no
teto fossem maiores.
Pat sacudiu a poeira da cabeça, dos ombros e cautelosamente abriu os olhos. Pelo menos
podia enxergar de novo, graças à iluminação de emergência. O comodoro já tampara o
vazamento e estava agora calmamente borrifando água com um copo de papel para fazer a
poeira baixar. A técnica era extraordinariamente eficaz e as poucas nuvens restantes
rapidamente se assentaram em poças de lama.
Hansteen olhou para cima e captou o olhar de Pat.
– Bem, capitão – disse ele -, alguma teoria? Havia ocasiões, pensou Pat, em que o
autocontrole olímpico do comodoro era de enlouquecer. Gostaria de vê-lo quebrar pelo menos
uma vez. Não, isto não era verdade. Seu sentimento era apenas um clarão de inveja, de ciúme
mesmo, compreensível, mas que não lhe fazia jus. Devia se envergonhar disto, e realmente
estava envergonhado.
– Não sei o que aconteceu. Talvez as pessoas lá em cima possam nos dizer.
Era necessário subir para alcançar a posição do piloto, pois o cruzador se encontrava agora
inclinado num ângulo de trinta graus. Enquanto tomava seu assento em frente do rádio, Pat
sentia um torpor que ultrapassava qualquer coisa que experimentara desde o sepultamento
anterior. Era um sentimento de resignação, uma crença quase supersticiosa de que os deuses
estavam contra eles e qualquer luta seria inútil.
Teve certeza disso quando ligou o rádio e o encontrou completamente mudo. Não havia força;
quando o tubo de oxigênio arrancara o cabo de energia, fizera um trabalho completo.
Pat girou lentamente o assento. Vinte e um homens e mulheres olhavam-no, aguardando
notícias. Mas vinte dessas pessoas ele não viu, pois Sue o observava e Pat só tinha
consciência da expressão no rosto dela. Exprimia ansiedade e compreensão; mas, mesmo
agora, não havia sinal de medo. Enquanto a olhava, seus próprios sentimentos de desespero
pareceram se dissolver. Sentiu uma onda de força, até mesmo de esperança.
– Não faço a menor idéia do que está acontecendo – disse – mas de uma coisa tenho certeza.
Não estamos acabados ainda, nem por vários anos-luz. Pode ser que tenhamos afundado mais
um pouco, contudo os nossos amigos na jangada certamente nos alcançarão logo. Isso vai
significar um pequeno atraso, é tudo. Não há motivo para preocupação.
– Não quero ser alarmista, capitão – disse Barrett. – Mas suponha que a jangada também tenha
afundado? Que será de nós então?
– Saberemos assim que tivermos consertado o rádio – respondeu Pat, olhando ansiosamente
para os fios pendentes do cabo no teto. – E até que eu tenha arrumado este espaguete vocês
terão de se acostumar com a iluminação de emergência.
– Não me importo – disse a senhora Schuster. – Eu a acho bonita.
Deus a abençoe, senhora Schuster, pensou Pat. Deu uma olhada rápida ao redor da cabine;
embora fosse difícil de precisar nesta iluminação, os passageiros pareciam razoavelmente
calmos.
Eles não estariam tão calmos um minuto depois; foi o tempo gasto para se descobrir que nada
poderia ser feito para consertar o rádio ou as luzes. Á fiação arrebentara bem dentro do
condutor, além do alcance das simples ferramentas disponíveis.
– Isso é um pouco mais sério – relatou Pat. – Não poderemos nos comunicar, a menos que
baixem um microfone para fazer contato conosco.
– Isso quer dizer – disse Barrett, que parecia gostar de ver o lado negro dás coisas – que eles
perderam contato conosco. Não vão entender por que não estamos respondendo. Suponha que
eles pensem que estamos todos mortos e abandonem a operação?
A idéia já passara pela mente de Pat, mas ele a rejeitara imediatamente.
– Você ouviu o engenheiro-chefe Lawrence no rádio – respondeu. – Ele não é o tipo de homem
que desista até ter absoluta certeza de não estarmos vivos. Não precisa se preocupar em
relação a isso.
– E quanto ao nosso ar? – indagou ansiosamente o professor Jayawardene.
– Voltamos mais uma vez aos nossos próprios recursos.
– O que temos deve durar várias horas, agora que os absorventes foram regenera-dos. Aqueles
canos estarão de volta antes disso – acrescentou Pat com bem mais convicção do que
realmente sentia. – Enquanto isso teremos de ser pacientes e providenciar nosso próprio
entretenimento uma vez mais. Nós o fizemos durante três dias; devemos ser capazes de
consegui-lo por mais duas horas.
Olhou de novo à volta da cabine, procurando algum sinal de discordância e viu um dos
passageiros levantar-se lentamente. Era a última pessoa que teria esperado: o pequeno e
calmo senhor Radley, que murmurara apenas uma dúzia de palavras durante toda a viagem.
Pat ainda não sabia nada sobre ele, além de que era um contador e viera da Nova Zelândia, o
único país da Terra ainda ligeiramente isolado do resto do mundo em virtude de sua posição.
Ela poderia ser alcançada tão rapidamente quanto qualquer outro ponto do planeta, mas era o
fim da linha, não um ponto de baldeação para algum outro lugar. Em função disso, os
neozelandeses ainda preservavam muito de sua individualidade. Afirmavam, com boa dose de
verdade, terem salvo tudo que restara da cultura inglesa, agora que as Ilhas Britânicas haviam
sido absorvidas pela Comunidade Atlântica.
– Quer dizer alguma coisa, senhor Radley? – indagou Pat.
Radley olhou para a cabine francamente iluminada como um professor prestes a dirigir-se à
classe.
– Sim, capitão. Tenho uma confissão a fazer. Receio que tudo isto seja minha culpa.
Assim que reencontrara o Selene, Lawrence começara a perfurar. Na tela do monitor, Spencer
podia ver a fina haste do tubo de suprimento de oxigênio fazendo sua segunda descida na
poeira. Por que Lawrence se incomodava com isso, quando não tinha certeza de existir alguém
vivo lá embaixo? E como iria descobrir, agora que o rádio falhara?
Esta era uma pergunta que milhões de pessoas se faziam enquanto observavam aquela
tubulação mergulhar na poeira, e talvez muitos pensassem na resposta certa.
Todavia, ela nunca ocorreu a qualquer pessoa a bordo do Selene, nem mesmo ao comodoro.
Assim que ouviram a forte pancada contra o teto, eles perceberam que não se tratava de uma
vara de sondagem perfurando delicadamente o Mar. Um minuto depois, quando se ouviu o
zumbido inconfundível da broca abrindo caminho através da fibra de vidro, sentiram-se como
condenados que têm a execução adiada na última hora.
Desta vez, a broca evitou o cabo condutor – apesar de isso não ser mais importante. Os
passageiros observaram quase hipnotizados enquanto o som triturante se tornava mais forte e
os primeiros fragmentos caíam do teto. Quando surgiu, a cabeça da broca desceu vinte
centímetros na cabine e houve uma breve salva de palmas.
E agora?, perguntou Pat a si mesmo. Não podemos falar com eles. Como vamos saber quando
desatarraxar a cabeça de corte? Não vou cometer aquele erro pela segunda vez.
Espantosamente alto no silêncio tenso e cheio de expectativa, o tubo de metal ressonou um Da,
Da, Da, De, que certamente ninguém do grupo do Selene esqueceria enquanto vivesse. Pat
replicou imediatamente, batendo seu V de resposta com um alicate. Agora eles sabem que
estamos vivos, pensou. Nunca acreditara realmente que Lawrence iria pensar que estavam
mortos e abandoná-los; no entanto, ao mesmo tempo, houvera sempre a dúvida a atormentá-lo.
O tubo sinalizou de novo, desta vez muito mais lentamente. Era um aborrecimento ter de
aprender o código Morse nesta época. Parecia tão anacrônico que havia muitos protestos entre
pilotos e engenheiros espaciais, pois o consideravam perda de tempo. Em toda uma vida, só
se precisa dele uma vez.
Mas esta era a questão. Ele realmente é necessário.
Da, Da, De batia o tubo. De, Da... Da, Da, Da... De, Da, De, Da... Da, De, Da...
Da... Da, De, De...
Então, para que não houvesse engano, o código começou a ser repetido, mas Pat e o
comodoro, apesar do conhecimento enferrujado, já haviam recebido a mensagem.
– Eles estão dizendo que podemos desparafusar a broca – avisou Pat. – Bem, aqui vamos nós.
O breve sopro de ar deu a todos um momento de pânico desnecessário, enquanto a pressão
equalizava. Em seguida, a canalização abriu-se para o mundo da superfície e 22 homens e
mulheres ansiosos esperavam que o primeiro sopro de oxigênio jorrasse para baixo.
Em vez disso, o tubo falou. De fora do orifício aberto saiu uma voz oca e sepulcral, mas
perfeitamente clara. Era tão alta e inesperada que provocou uma exclamação de surpresa em
todos. Provavelmente, não mais do que meia dúzia daqueles homens e mulheres já tinham
ouvido um tubo megafone; e viviam na crença de que somente a eletrônica poderia enviar
vozes através do espaço. Este antigo artifício era tamanha novidade para eles como o telefone
teria sido para um grego da Antiguidade.
– Engenheiro-chefe Lawrence falando. Podem me ouvir?
Pat colocou as mãos em torno da abertura e respondeu com voz pausada: – Ouvindo alto e
claro. Como está nos recebendo?
– Muito bem. Como estão vocês?
– Bem. O que aconteceu?
– Vocês caíram cerca de dois metros, não mais que isso. Quase não notamos nada aqui em
cima até que os tubos se soltaram. Como está o ar aí embaixo?
– Ainda bom. Porém, quanto mais cedo puderem começar a bombear, melhor.
– Não se preocupem. Vamos bombear assim que retirarmos a poeira dos filtros e
conseguirmos outra cabeça de broca de Porto Roris. A que acabou de desatarraxar era a única
sobressalente que tínhamos... e foi uma sorte que a tivéssemos.
Assim, vai levar pelo menos uma hora, pensou Pat. Mas este não era o problema que o
preocupava agora. Sabia como Lawrence planejara alcançá-los e percebia que tal plano não
funcionaria mais, pois o Selene não se encontrava na horizontal.
– Como vai nos tirar daqui? – perguntou bruscamente.
Houve apenas uma breve hesitação, antes que Lawrence respondesse.
– Ainda não calculamos todos os detalhes, mas vamos adicionar outro segmento à ensecadeira
e continuar a baixá-la até chegar a vocês. Então começaremos a retirar a poeira até chegar no
fundo. Isto deverá nos colocar a alguns centímetros de vocês.
Cruzaremos este intervalo de algum modo. Mas antes queremos que façam uma coisa.
– O que é?
– Tenho noventa por cento de certeza de que não vão deslizar de novo, mas, se o fizerem,
prefiro que aconteça agora. Quero que todos vocês comecem a pular juntos durante alguns
minutos.
– É seguro? – indagou Pat indeciso. – E se o tubo de ar se soltar novamente?
– Você poderia tapar. Outro buraco pequeno não fará diferença, mas outro deslisa-mento sim,
principalmente quando estivermos tentando abrir no teto um buraco da largura de um homem.
O Selene já fora palco de algumas cenas estranhas, mas esta era indubitavelmente a mais
bizarra. Vinte e dois homens e mulheres pulando solenemente para cima e para baixo em
uníssono; subindo até o teto e impulsionando-se o mais vigorosamente possível contra o piso.
Enquanto isso, Pat mantinha uma vigilância cuidadosa sobre a tubulação que levava ao mundo
superior. Após um minuto do exercício extenuante realizado pelos passageiros, o Selene
descera menos de dois centímetros.
Relatou isto a Lawrence, que recebeu as novas agradecido. Agora, razoavelmente certo de que
o Selene não se moveria outra vez, ele se tornava uma vez mais confiante quanto à capacidade
de resgatar os passageiros. Ainda não sabia exatamente de que maneira, mas um plano
começava a se formar em sua mente.
O plano tomou forma nas 12 horas seguintes, através de reuniões com o seu grupo de
assistentes no Mar da Sede. A Divisão de Engenharia aprendeu mais a respeito da poeira nesta
semana do que durante toda a sua existência. Não lutava mais no escuro contra um oponente
desconhecido. Entendia agora que liberdades podia tomar e quais as que não podia.
A despeito da velocidade com que os planos foram mudados e o equipamento construído, não
havia pressa desnecessária nem descuidos. Esta era outra operação que devia funcionar na
primeira tentativa. Se falhasse no final, a ensecadeira deveria ser abandonada e uma nova
baixada. Porém, o que era pior – aquelas pessoas a bordo do Selene estariam sufocadas na
poeira.
– Este é um lindo problema – comentou Tom Lawson, que gostava de lindos problemas e de
quase nada mais. – A extremidade inferior da ensecadeira está aberta na poeira porque
repousa contra apenas um ponto do Selene e a inclinação do teto evita que a abertura seja
selada. Antes que possamos bombear a poeira, temos de fechar esta abertura. Eu disse
bombear? Foi um engano, não se pode bombear esta substância. Ela deve ser erguida. Se
tentássemos fazê-lo do jeito que as coisas se encontram agora, a poeira fluiria tão rapidamente
pelo fundo do tubo quanto na sua retirada do topo.
Tom fez uma pausa, sorrindo sardonicamente para a sua platéia de milhões como se a
desafiasse a resolver o problema que acabara de delinear. Deixou seus telespectadores
cozinhando um pouco em seus pensamentos, enquanto apanhava o modelo sobre a mesa do
estúdio. Embora fosse bem simples, era o orgulho de Lawson, pois ele mesmo o construíra. E
ninguém julgaria, do outro lado da câmara, que fosse apenas um papelão coberto de tinta
prateada.
– Este tubo – disse – representa um curto segmento da ensecadeira que desce agora ao
Selene... a qual, como eu disse, está cheia de poeira. Agora isto... – e com a outra mão pegou
um cilindro curto, fechado numa das extremidades – ...se encaixa exatamente dentro da
ensecadeira como um pistão. É muito pesado e tentará mergulhar sob seu próprio peso. Mas
não pode fazê-lo por causa da poeira presa por baixo.
Tom virou o pistão até a sua extremidade chata apontar para a câmara. Apertou o dedo
indicador contra o centro da pequena face circular e o pequeno alçapão abriu-se.
– Isto funciona como uma válvula. Quando está aberta, a poeira pode fluir através dela e o
pistão afunda ao longo do poço. Assim que chegarmos ao fundo, a válvula será fechada
mediante um sinal da superfície. Isto será selar a ensecadeira de modo que possamos começar
a colher a poeira. Parece simples, não? Mas não é. Existem uns cinquenta problemas que não
mencionei. Por exemplo, quando a ensecadeira estiver vazia, ela tentará flutuar para a
superfície com um empuxo de muitas toneladas. O engenheiro-chefe Lawrence teve de
idealizar um engenhoso sistema de âncoras para mantê-la submersa. Vocês percebem,
naturalmente, que, mesmo quando este tubo estiver vazio de poeira, existirá ainda um espaço
em forma de cunha entre sua extremidade inferior e o teto do Selene. Não sabemos ainda como
o senhor Lawrence se propõe lidar com isto. E por favor não me mandem mais sugestões. Já
tivemos bastantes ideias mal concebidas neste programa... poderia durar uma vida inteira. O
engenho-pistão não é apenas uma teoria. Os engenheiros da Lua o construíram e testaram
durante as últimas 12 horas. Ele se encontra em ação agora mesmo. Se compreendo bem os
acenos daquele homem para mim, acho que vamos voltar ao Mar da Sede para descobrir o que
está acontecendo naquela jangada.
O estúdio temporário do Hotel Roris apagou-se num milhão de telas e em seu lugar surgiu a
imagem agora familiar à maior parte da raça humana.
Havia agora três iglus de tamanhos variados, em cima e em volta da jangada.
Enquanto a luz do sol se refletia em suas superfícies prateadas, assemelhava-se a grandes
gotas de mercúrio. Um dos esquis de pó encontrava-se estacionado ao lado do domo maior e
os outros dois estavam em trânsito transportando suprimentos de Porto Roris.
Como a boca de um poço, a ensecadeira projetava-se do Mar. Seu bordo erguia-se apenas
vinte centímetros sobre a poeira e sua abertura parecia estreita demais para admitir um
homem. Seria de fato muito apertada para um homem com traje espacial, mas a parte crucial
desta operação seria feita sem trajes.
Em intervalos regulares uma pá cilíndrica desaparecia no poço e era puxada de volta à
superfície por um guindaste pequeno, mas poderoso. Em cada retirada, a pá saía da abertura e
descarregava seu conteúdo no Mar. Por um breve instante um cone de poeira cinzenta se
ergueria num equilíbrio precário sobre a planície nivelada e em seguida desabaria em câmara
lenta, para desaparecer completamente antes de a próxima carga emergir do poço.
Era um truque de mágica realizado à luz do dia e fascinante de observar. Mais eficiente do que
mil palavras descritivas, revelava aos espectadores tudo o que precisavam saber sobre o Mar
da Sede.
A pá levava mais tempo agora em seu trabalho, mergulhando mais fundo na poeira. Afinal
chegou o momento de ela surgir coberta apenas pela metade. O caminho para o Selene estava
aberto, a não ser por um último obstáculo.
Capítulo 29
– Ainda estamos com um ânimo muito bom – disse Pat ao microfone baixado através do cano
de ar. – Ê claro que tivemos um choque terrível depois do segundo desabamento, quando
perdemos contato com vocês. Mas agora temos certeza de que logo vão nos retirar. Podemos
ouvir a pá trabalhando enquanto ela recolhe a poeira, e é maravilhoso saber que a ajuda está
tão próxima. Nunca esqueceremos – acrescentou um tanto timidamente – os esforços que tantas
pessoas fizeram para nos ajudar. Não importa o que aconteça, queremos agradecer a todos.
Temos certeza de que se fez tudo que era possível. Agora vou passar o microfone, pois muitos
de nós querem mandar mensagens. Com um pouco de sorte, esta será a última transmissão do
Selene.
Ao passar o microfone para a senhora Williams, percebeu que devia ter feito aquela última
observação com outras palavras, pois ela poderia ser interpretada de dois modos. Entretanto,
agora que o salvamento estava tão perto, recusava-se a admitir a possibilidade de qualquer
contratempo. Haviam superado tanta coisa que certamente nada mais lhes poderia acontecer
agora.
Mas sabia que a fase final da operação seria a mais difícil e a mais crítica de todas.
Debateram o problema interminavelmente, desde que o engenheiro-chefe Lawrence explicara
seus planos. Não havia nada mais a falar, já que, por decisão unânime, o assunto dos discos
voadores fora vetado.
Poderiam continuar com a leitura dos livros, mas de algum modo Os brutos também amam e A
laranja e a maçã haviam perdido todo o seu atrativo. Ninguém conseguia se concentrar em
nada, exceto na perspectiva do resgate e na recuperação da vida, que se estenderia quando se
juntassem uma vez mais à raça humana.
Acima do teto houve uma pancada forte. Isto só podia significar uma coisa: a pá chegara ao
fundo do poço e a ensecadeira estava agora livre da poeira. O passo seguinte seria acoplá-la a
um dos iglus e bombear o ar para o seu interior.
Levou mais de uma hora para completar a conexão e fazer todos os testes necessários. O iglu
Mark XIX especialmente modificado, com uma abertura no fundo do tamanho exato para
acomodar a extremidade proeminente da ensecadeira, tinha de ser posicionado e inflado com
um cuidado extremo. As vidas dos passageiros do Selene, bem como as dos homens
envolvidos no resgate, dependiam deste fecho de ar.
Só depois de completamente satisfeito, o engenheiro-chefe Lawrence retirou seu traje espacial
e se aproximou da abertura. Segurou uma lanterna acima da borda e olhou para dentro do
poço, que parecia encolher na distância até o infinito. No entanto, eram apenas 17 metros até o
fundo; mesmo nesta gravidade baixa, um objeto levaria apenas cinco segundos para cair lá
embaixo.
Lawrence voltou-se para seus assistentes, cada um deles usando um traje espacial, mas com as
viseiras abertas. Se alguma coisa saísse errada, as viseiras poderiam ser fechadas numa
fração de segundo e os homens provavelmente estariam seguros. Mas para Lawrence não
haveria esperança; nem para os 22 a bordo do Selene.
– Vocês sabem exatamente o que fazer – disse. – Se eu quiser subir depressa, todos vocês
puxem a escada de corda juntos. Alguma pergunta?
Não havia nenhuma. Tudo fora completamente ensaiado. Com um "agora" para seus homens e
um coro de "boa sorte" em resposta, Lawrence baixou no interior do poço.
Deixou-se cair a maior parte do percurso, freando a velocidade de vez em quando, ao segurar
a escada. Na Lua era seguro fazer isso. Bem, quase seguro. Lawrence vira alguns homens
morrerem por se esquecerem de que mesmo neste campo de gravidade poderiam acelerar a
uma velocidade letal em menos de dez segundos.
Era como a queda de Alice no País das Maravilhas (tanta coisa em Carrol poderia ter se
inspirado nas viagens, espaciais), mas aqui não havia nada para se ver durante a queda, exceto
a parede de concreto nua, tão próxima que Lawrence tinha de comprimir os olhos para
enxergá-la. E então, com um ligeiro baque, ele chegara ao fundo.
Agachou-se na pequena plataforma de metal, do tamanho e formato de um bueiro, e examinou-
a cuidadosamente. A válvula-alçapão estivera aberta durante a descida do pistão através da
poeira e vazava ligeiramente com um filete de pó cinzento deslizando ao redor do selo. Não
era problemático, mas Lawrence não podia deixar de imaginar o que aconteceria se a válvula
se abrisse com a pressão. A que velocidade a poeira subiria, como água num poço? Não tão
rápido, ele estava certo, quanto poderia subir aquela escada.
Sob os seus pés, a apenas alguns centímetros de distância, encontrava-se o teto do cruzador,
inclinando-se para baixo na poeira nos enlouquecedores trinta graus.
Seu problema era casar a extremidade horizontal do poço com o teto inclinado do cruzador e
fazê-lo de modo que a acoplagem fosse à prova de pó.
Não notava falhas em seu plano nem as esperava, pois fora idealizado pelos melhores
cérebros de engenheiros da Terra e da Lua. Levava em conta até mesmo a possibilidade de o
Selene mover-se novamente por alguns centímetros, enquanto estivessem trabalhando.
Contudo, como bem sabia, a teoria era uma coisa e a prática outra.
Havia seis grandes parafusos com orelhas, igualmente espaçados, ao longo da circunferência
do disco de metal, sobre o qual Lawrence estava agachado. Começou a girá-los, um por um,
como um baterista afinando seu instrumento. Conectada à extremidade inferior da plataforma,
estava uma peça curta de um tubo sanfona, quase tão largo quanto a ensecadeira e agora
dobrado. Formava um acoplamento flexível suficientemente largo para um homem se arrastar
através dele e agora se abria lentamente, à medida que Lawrence girava os parafusos.
Um dos lados do tubo corrugado deveria se estender por quarenta centímetros para chegar ao
teto inclinado, enquanto o lado oposto quase não se moveria. A principal preocupação de
Lawrence fora a resistência que a poeira oporia à sanfona, o que poderia impedi-la de se
abrir, mas os parafusos estavam vencendo a pressão com facilidade.
Agora, nenhum deles podia ser mais apertado; a extremidade inferior da junção devia estar
nivelada com o teto do Selene e, como Lawrence esperava, selada pela gaxeta de borracha em
torno da borda. Ele descobrira logo o quanto esta junção era eficaz.
Checando automaticamente a sua rota de fuga, Lawrence olhou para cima. Não podia ver nada
além do clarão da lâmpada suspensa, dois metros acima de sua cabeça, mas a escada de corda
estendendo-se além dela era extremamente tranquilizadora.
– Baixei a conexão – gritou para seus colegas ocultos. – Parece estar nivelada com o teto. Vou
abrir a válvula.
Qualquer erro agora e todo o poço seria inundado, talvez além de qualquer possibilidade de
uso posterior. Lenta e suavemente soltou o alçapão que deixara a poeira passar, enquanto o
pistão descia. Não houve nenhum transbordar súbito: o tubo corrugado abaixo de seus pés
continha o Mar da Sede.
Lawrence estendeu a mão através da válvula e seus dedos sentiram o teto do Selene, ainda
invisível sob a poeira, mas agora a um palmo de distância. Poucas realizações durante sua
vida proporcionaram-lhe tamanha satisfação. O trabalho ainda estava longe de terminar, mas
ele chegara ao cruzador. Por um momento, permaneceu agachado no pequeno poço, com o
sentimento semelhante ao de um mineiro, no passado, ao ver a primeira pepita de ouro reluzir
sob sua lâmpada.
Bateu três vezes no teto e o sinal retornou imediatamente. Não havia sentido em iniciar uma
conversa em Morse, pois se desejasse poderia falar diretamente através do circuito do
microfone, mas sabia o efeito psicológico que estas pancadas produziriam. Elas seriam a
prova para os homens e mulheres do Selene de que o resgate se encontrava agora a apenas
alguns centímetros de distância.
Havia ainda grandes obstáculos a serem superados e o primeiro era a cobertura de bueiro
sobre a qual estava sentado – a própria face do pistão. Ela serviria ao seu propósito, contendo
a poeira enquanto a chaminé era esvaziada, mas agora tinha de ser retirada antes que alguém
pudesse escapar do Selene. Isso deveria ser feito sem abalar a junção flexível que ajudara a
colocar em posição.
A fim de tornar a operação possível, a face do pistão fora construída de modo a poder ser
erguida como uma tampa de panela, quando os oito parafusos fossem retirados. Lawrence
levou apenas alguns minutos para lidar com eles e prender uma corda ao disco de metal agora
solto. Então gritou: "Suspendam!"
Um homem mais gordo seria obrigado a escalar pelo poço com a tampa circular subindo atrás,
mas Lawrence foi capaz de se espremer contra a parede enquanto a chapa de metal, movendo-
se de lado, era erguida passando por ele. Lá se vai a primeira linha de defesa, disse para si
mesmo, enquanto o disco desaparecia acima.
Agora seria impossível selar o poço se a junção falhasse e a poeira começasse a entrar.
– Desçam o balde! – gritou. O balde já se encontrava a caminho.
Quarenta anos atrás, pensou Lawrence, eu estava brincando numa praia da Califórnia, com
uma pá e um balde, fazendo castelos na areia. Agora aqui estou na Lua, engenheiro-chefe do
Lado Terrestre, cavando bem mais seriamente, com toda a raça humana olhando para mim.
Quando a primeira carga se erguera, ele conseguira expor uma área considerável do teto do
Selene. O volume de pó aprisionado no tubo de acoplagem era bem pequeno, e mais dois
baldes se encarregaram dele.
Diante de Lawrence, encontrava-se agora o tecido aluminizado do escudo solar, que há muito
tempo fora esmagado sob a pressão. Cortou-o sem dificuldade, pois era tão frágil que poderia
rasgá-lo com a mão, e expôs o casco externo de fibra de vidro ligeiramente áspero. Cortá-lo
com uma pequena serra elétrica seria fácil, mas fatal.
O casco duplo do Selene perdera sua integridade quando o teto foi danificado e a poeira
inundara o espaço entre as duas paredes. Ela estaria esperando lá, sob pressão, para esguichar
assim que ele fizesse a primeira incisão. Antes que pudesse entrar no Selene, a fina camada de
pó deveria ser imobilizada.
Lawrence raspou o teto levemente e, como esperava, o som foi amortecido pelo pó. Não
contava, porém, em receber um urgente e frenético sinal de resposta.
Isto, ele podia dizer imediatamente, não era nenhum O.K. tranquilizador do Selene. Antes que
os homens acima pudessem transmitir-lhe as notícias, Lawrence já sabia que o Mar da Sede
fazia uma tentativa final para conservar sua presa.
Como engenheiro nucleônico, Karl Johanson tinha um olfato sensível, e por estar sentado na
traseira do ônibus, foi a pessoa que percebeu a aproximação do desastre.
Ficou quieto por alguns segundos; em seguida disse "com licença" para o companheiro no
assento ao lado e dirigiu-se calmamente para o lavatório. Não desejava provocar alarme
desnecessário, especialmente quando o salvamento parecia tão próximo, mas em sua vida
profissional aprendera, através de mais exemplos do que gostaria de lembrar, a nunca ignorar
o cheiro de borracha queimada.
Permaneceu no lavatório menos de 15 segundos. Quando saiu, caminhava rapidamente, mas
não tão rápido que pudesse causar pânico. Foi direto a Pat Harris, que conversava com o
comodoro Hansteen e interrompeu-os, sem cerimônia.
– Capitão – disse em voz baixa e ansiosa -, estamos pegando fogo. Vá olhar no lavatório. Não
contei a mais ninguém.
Num segundo Pat se fora, e Hansteen com ele. No espaço, bem como no mar, ninguém discute
quando ouve a palavra "fogo". E Johanson não era o tipo de homem que daria um alarme falso;
como Pat, ele era um técnico da Administração Lunar e fora um dos que o comodoro
selecionara para o esquadrão anti-distúrbio.
O toalete era típico dos usados em qualquer veículo pequeno, de terra, mar, ar ou espaço e era
possível tocar todas as paredes sem mudar de posição. Mas a parede traseira, imediatamente
acima da pia, não podia mais ser tocada. A fibra de vidro estava cheia de bolhas com o calor,
dobrando-se e inchando enquanto os aterrorizados espectadores olhavam para ela.
– Meu Deus! – exclamou o comodoro. – Isto vai ceder num instante. Qual é a causa?
Mas Pat se fora. Voltou alguns segundos depois, carregando os dois pequenos extintores da
cabine debaixo dos braços.
– Comodoro – disse -, avise a jangada. Diga que só temos alguns minutos. Ficarei aqui no
caso de romper.
Hansteen fez o que foi pedido. Um momento depois Pat ouviu a sua voz enviando a mensagem
pelo microfone e o súbito tumulto que se instalou entre os passageiros.
Quase imediatamente, a porta voltou a abrir-se e McKenzie surgiu.
– Posso ajudar?
– Acho que não – respondeu Pat, segurando o extintor. Sentia um curioso torpor, como se tudo
isso não estivesse realmente lhe acontecendo, fosse apenas um sonho do qual logo iria
despertar. Talvez tivesse superado o medo, experimentando uma crise após outra, até que toda
a sua emoção se esgotara. Ainda podia suportar, mas não era mais capaz de reagir.
– O que está provocando isso? – indagou McKenzie, repetindo a pergunta sem resposta do
comodoro. – O que há por trás deste anteparo?
– Nosso suprimento principal de energia. Vinte pilhas de alta potência!
– Quanta energia há nelas?
– Bem, começamos com cinco mil quilowatts/hora. Provavelmente ainda temos a metade.
– Esta é a resposta. Alguma coisa provocou um curto em nosso suprimento de energia. Talvez
esteja queimando desde que a fiação do teto foi arrancada.
A explicação fazia sentido; não existia outra fonte de energia a bordo do cruzador.
Ele era completamente à prova de fogo e portanto não poderia sofrer uma combustão comum.
Mas havia bastante energia elétrica em suas pilhas de força para movê-lo a toda velocidade
durante horas, e se toda esta energia se dissipasse em calor os resultados seriam catastróficos.
Todavia, isso era impossível. Tal sobrecarga deveria ter acionado os fusíveis imediatamente.
A não ser que, por alguma razão, estivessem emperrados.
Mas não estavam, como informou McKenzie após uma rápida verificação na comporta de ar.
– Todos os relês se abriram – avisou. – Os circuitos estão completamente sem corrente. Não
entendo.
Mesmo nesse momento de perigo, Pat não pôde evitar um sorriso. McKenzie era o eterno
cientista; podia estar a ponto de morrer, mas insistia em saber como. Se fosse queimado numa
estaca – e um destino semelhante poderia lhe estar reservado – perguntaria aos carrascos:
"Que tipo de madeira vão usar?"
A porta dobrou-se para dentro enquanto Hansteen voltava para relatar: – Lawrence diz que vai
entrar em dez minutos. Esta parede resistirá tanto tempo?
– Só Deus sabe – respondeu Pat. – Ela pode durar outra hora ou se acabar nos próximos cinco
segundos. Depende de como o fogo esteja se espalhando.
– Não existe equipamento automático de combate ao fogo neste compartimento?
– Não há motivo para tê-lo. Este é nosso anteparo de pressão e normalmente há vácuo do
outro lado. Este é o melhor extintor que existe.
– Ê isso! – exclamou McKenzie. – Não percebem? Todo o compartimento foi inundado.
Quando o teto rasgou, a poeira começou a penetrar. E colocou todo o equipamento elétrico em
curto.
Pat sabia, sem sombra de dúvida, que McKenzie estava certo. A esta altura todos os
segmentos normalmente abertos ao espaço estariam cheios de poeira. Ela teria se derramado
através do teto quebrado, fluído pelo espaço entre o casco duplo e se acumulado lentamente
em torno dos terminais na sala de força. Assim, o fogo começara; havia suficiente ferro
meteórico na poeira para torná-la um bom condutor.
Os arcos incandescentes e os curto-circuitos seriam como um milhar de fogos elétricos.
– Se salpicássemos água na parede – perguntou o comodoro -, isso ajudaria ou partiria a fibra
de vidro?
– Acho que devemos tentar – respondeu McKenzie. – Mas com muito cuidado, um pouco de
cada vez.
Encheu um copo plástico – a água já estava quente – e olhou de modo indagador para os
outros. Como não houve objeções, começou a atirar algumas gotas sobre a superfície
empolada.
Os estalidos resultantes foram tão aterradores que ele parou imediatamente. Era um risco
muito grande, seria uma boa idéia numa parede de metal, mas este plástico não-condutor se
partiria sob a tensão térmica.
– Não há nada que possamos fazer aqui – disse o comodoro. – Mesmo os extintores não
ajudarão muito. E melhor sairmos e bloquearmos todo o compartimento. A porta agirá como
barreira contra o fogo e nos dará um tempo extra.
Pat hesitou. O calor já se tornava insuportável, mas parecia covardia sair. Mas a sugestão de
Hansteen fazia sentido. Se ficasse aqui até o fogo penetrar seria provavelmente sufocado num
instante pela fumaça.
– Certo, vamos sair – concordou. – Tentaremos construir uma barricada atrás da porta.
Não imaginou que teriam muito tempo para fazê-lo. Já podia ouvir claramente o som da
parede frigindo, enquanto continha o inferno aprisionado.
Capítulo 30
As notícias de que o Selene estava em chamas não alterou em nada as ações de Lawrence. Ele
não podia trabalhar com mais rapidez; se tentasse, poderia cometer um erro justamente quando
começava a parte mais delicada do trabalho. Tudo o que podia fazer era torcer para chegar
antes das chamas.
O aparelho, descendo agora no poço, parecia uma enorme pistola de graxa ou uma versão
gigantesca das seringas para colocar glacê em bolos de casamento. Esta não continha nem
graxa nem glacê, e sim um composto orgânico de silício, sob grande pressão. No momento era
líquido, mas não se manteria nesse estado por muito tempo.
O primeiro problema de Lawrence seria colocar esse líquido entre o casco duplo sem deixar a
poeira escapar. Usando um pequeno revólver de rebites, disparou sete pinos ocos dentro da
casca externa do Selene – um no centro do círculo exposto, os outros seis igualmente
espaçados à volta da circunferência.
Conectou a seringa ao pino central e apertou o gatilho. Houve um leve assovio enquanto o
fluido escorria através do pino oco; a sua pressão abriu a minúscula válvula na ponta em
forma de bala. De maneira muito rápida, Lawrence moveu-se de um pino a outro, disparando
cargas iguais de fluido através de cada um. Agora, o fluido teria se espalhado quase
uniformemente entre os dois cascos, formando uma panqueca esfiapada de mais de um metro
de largura. Não, uma panqueca não, um suflê, pois começaria a espumar assim que escapasse
do cano.
Alguns segundos depois aquilo começaria a assentar sob a influência do catalisador
adicionado. Lawrence olhou para o seu relógio; em cinco minutos aquela espuma estaria dura
como rocha, embora tão porosa quanto pedra-pomes, com que de fato se assemelharia muito.
Não haveria chance de qualquer poeira extra entrar nesta seção do casco e a que já estivesse
nela ficaria congelada no lugar.
Não havia nada que pudesse fazer para encurtar aqueles cinco minutos; todo o plano dependia
de a espuma solidificar-se na consistência conhecida. Se sua cronometragem e posicionamento
estivessem errados ou se os químicos lá na Base tivessem cometido algum engano, as pessoas
no Selene já podiam se considerar mortas.
Usou o período de espera para desimpedir o poço, mandando todo o equipamento de volta à
superfície. Apenas Lawrence continuou no fundo, sem nenhuma ferramenta, a não ser suas
mãos nuas. Se Maurice Spencer pudesse introduzir uma câmara nesse espaço restrito – e ele
teria assinado um contrato com o diabo para fazê-lo – seus telespectadores não poderiam
compreender o movimento seguinte de Lawrence.
Eles ficariam ainda mais perplexos quando vissem o que parecia um bambolê infantil sendo
baixado no poço. Mas não era brinquedo de criança – era a chave que abriria o Selene.
Sue já reunira os passageiros na parte dianteira e agora muito mais elevada da cabine. Eles se
aglomeravam, olhando ansiosamente para o teto e atentos a qualquer ruído encorajador.
Encorajamento, pensou Pat, era o que precisavam agora. E ele precisava mais do que qualquer
um deles, pois era o único – se McKenzie ou Hansteen ainda não tivessem deduzido – a
conhecer a real magnitude do perigo que enfrentavam.
O fogo já era suficientemente ruim e poderia matá-los se penetrasse na cabine.
Mas era lento e eles poderiam combatê-lo, ainda que por um breve tempo. Contra uma
explosão, todavia, não poderiam fazer nada.
Pois o Selene era uma bomba e o pavio já fora aceso. A energia armazenada em suas pilhas de
força, para impulsionar seus motores e todo o equipamento elétrico, poderia se transformar em
calor, mas não detonar. Infelizmente, o mesmo não acontecia aos tanques de oxigênio líquido.
Eles deviam ainda conter muitos litros daquele elemento terrivelmente frio e violentamente
reativo. Quando o calor acumulado rompesse os tanques, haveria uma explosão física e
química. Seria pequena, é verdade, equivalendo talvez a cem quilos de T.N.T., mas o
suficiente para fazer o Selene em pedaços.
Pat não viu necessidade de mencionar isso a Hansteen, que já planejava sua barricada.
Assentos eram desparafusados das fileiras da frente e colocados entre a última fila e , a porta
do toalete. Era como se o comodoro estivesse se preparando para repelir uma invasão em vez
de fogo, o que de fato acontecia. O fogo em si, devido à sua natureza, não poderia se propagar
além do compartimento das pilhas, mas assim que a parede rachada e empolada cedesse, a
poeira inundaria tudo.
– Comodoro – avisou Pat -, enquanto o senhor faz isso, começarei a organizar os passageiros.
Não podemos ter vinte pessoas tentando sair ao mesmo tempo.
Este era um pesadelo que devia evitar a todo custo. No entanto, seria difícil combater o
pânico, mesmo nesta comunidade bem disciplinada, se um túnel estreito fosse o único meio de
escapar a uma morte que se aproximava rapidamente.
Pat dirigiu-se à dianteira da cabine. Na Terra teria sido uma subida íngreme, mas aqui uma
inclinação de trinta graus era quase imperceptível. Olhou para os rostos ansiosos à sua frente
e disse:
– Vamos sair daqui logo. Quando o teto se abrir, uma escada de corda será baixada. As
senhoras irão primeiro, depois os homens, todos em ordem alfabética. Não se incomodem de
usar os pés. Lembrem-se de que vocês pesam pouco aqui e subam com as mãos tão rápido
quanto puderem. Mas não atropelem a pessoa da frente; terão tempo suficiente e levarão
apenas alguns segundos para chegar ao topo. Sue, coloque todos em ordem alfabética.
Harding, Bryan, Johanson, Barrett...gostaria que ficassem de prontidão, como fizeram antes.
Podemos precisar de sua ajuda...
Não terminou a frase. Houve uma espécie de explosão abafada na traseira da cabine; nada
espetacular, um saco de papel teria feito mais ruído. Mas isto significava que a parede cedera,
enquanto o teto infelizmente continuava intacto.
No outro lado do teto, Lawrence colocara seu laço chato contra a fibra de vidro e começava a
fixar-lhe a posição com uma cola de secagem rápida. O anel era quase tão largo quanto o
pequeno poço no qual se agachava; chegava a alguns centímetros das paredes corrugadas.
Embora fosse perfeitamente seguro de lidar, ele o tratava com cuidado exagerado. Nunca
adquirira a tranquila familiaridade com os explosivos que caracteriza os que vivem com eles.
A carga-anel que colocava em posição era um produto convencional da arte; não envolvia
nenhum problema técnico. Faria um corte uniforme na largura e espessura desejados,
realizando num milésimo de segundo um trabalho que requereria um quarto de hora com uma
serra elétrica. Isto era o que Lawrence tencionava usar a princípio, e agora estava feliz por ter
mudado de idéia. Parecia improvável que dispusesse de um quarto de hora.
Descobriu essa verdade enquanto ainda esperava a espuma assentar.
– O fogo penetrou na cabine! – gritou uma voz lá de cima.
Lawrence olhou para o relógio. Por um momento pareceu que o ponteiro de segundos ficara
imóvel, mas era uma ilusão que experimentara durante toda a sua vida. O relógio não havia
parado; era apenas o Tempo que não transcorria, como de hábito, na velocidade que desejava.
Até este momento passara muito rapidamente; agora, é claro, se arrastava com pés de chumbo.
A espuma deveria estar dura como rocha em mais trinta segundos. Melhor esperar um pouco
mais do que se arriscar a disparar muito cedo, quando ela ainda estivesse plástica.
Começou a subir a escada de corda sem pressa, desenrolando os finos fios do detonador. Sua
cronometragem foi perfeita. Quando saiu do poço e desmanchou o curto-circuito que
estabelecera na ponta dos fios por segurança, conectando-os ao detonador, faltavam apenas
dez segundos.
– Avise-os de que vamos começar a contar a partir de dez – disse.
Enquanto corria ladeira abaixo para ajudar o comodoro, sem saber como, Pat ouvia Sue
chamar em voz calma: senhorita Morley, senhora Schuster, senhora Wil iams... Seria irônico
se a senhorita Morley fosse novamente a primeira, desta vez em virtude da ordem alfabética.
Ela dificilmente poderia se queixar do tratamento recebido agora.
Então um segundo pensamento, muito mais sombrio, relampejou pela mente de Pat. E se a
senhora Schuster ficasse entalada no túnel, bloqueando a saída? Bem, dificilmente poderiam
deixá-la para o final; ela fora um fator decisivo no desenho do tubo e desde então perdera
vários quilos.
À primeira vista parecia que a porta do toalete estava aguentando. De fato, o único sinal de
que algo acontecera era um fino fio de fumaça passando pelas dobradiças. Por um momento
Pat sentiu um grande alívio. Certamente o fogo levaria meia hora para queimar a dupla
espessura de fibra de vidro e muito antes disso...
Alguma coisa escorria pelos seus pés descalços. Moveu-se para o lado automaticamente antes
que sua mente consciente indagasse: "O que é isto?"
Olhou para baixo. Apesar de seus olhos já estarem acostumados à fraca iluminação de
emergência, ele levou algum tempo para perceber a fantasmagórica maré cinzenta escorrendo
sob a porta, cujos painéis já começavam a se curvar ante a pressão de toneladas de poeira.
Bastariam alguns minutos para que começassem a ceder; ainda que isso não acontecesse, faria
pouca diferença. Aquela inundação sinistra e silenciosa já subira acima de seus calcanhares
enquanto ele observava.
Pat não se moveu nem tentou falar ao comodoro, igualmente imóvel a apenas alguns
centímetros de distância. Pela primeira vez em sua vida, e talvez pela última, sentia uma
emoção de puro e irresistível ódio. Naquele momento, enquanto milhões de palpos secos e
delicados roçavam contra suas pernas nuas, Pat sentia como se o Mar da Sede fosse uma
entidade maligna e consciente, que houvesse brincado com eles como um gato faz com um
rato. Cada vez que pensavam ter a situação sob controle, preparava uma nova surpresa.
Estávamos sempre em movimento atrás dele e agora, cansado do seu joguinho, não quer mais
se divertir conosco. Talvez Radley estivesse certo, apesar de tudo.
O alto-falante, suspenso do tubo de ar, retirou-o desse devaneio fatalista.
– Estamos prontos! – gritou. – Fiquem reunidos na traseira do ônibus e cubram os rostos.
Vamos contar a partir de dez.
– Dez.
Já estamos no final do ônibus, pensou Pat. Não há necessidade de todo este tempo. Podemos
nem tê-lo.
– Nove.
Aposto como não vai funcionar. O Mar não deixará, se ele pensar que nós temos alguma
chance de escapar.
– Oito.
É uma pena, depois de todo este esforço. Um punhado de gente quase se matou tentando nos
ajudar. Eles mereciam sorte melhor.
– Sete.
Supõe-se que este seja o número da sorte, não? Talvez possamos conseguir, apesar de tudo.
Alguns de nós.
– Seis.
Vamos fazer de conta. Não fará nenhum mal agora. Suponhamos que leve...
digamos, 15 segundos para passar.
– Cinco.
E, é claro, soltar a escada de novo; eles provavelmente a recolheram por segurança.
– Quatro.
E presumindo que alguém saia a cada três segundos. Não, vamos colocar cinco para ter
certeza.
– Três.
Isto dá 22 vezes cinco, que é mil e... não, isto é ridículo. Já esqueci como se fazem contas
simples.
– Dois.
Digamos cento e poucos segundos, o que deve ser uma boa parte de dois minutos; é tempo
suficiente para aqueles tanques de lox nos estourarem para a eternidade...
– Um.
Um! E não cobri meu rosto. Talvez devesse deitar, mesmo que tenha de engolir esta poeira
suja...
Houve um estalido súbito e um breve sopro de ar. Era tudo. Um anticlímax desapontador, mas
os especialistas em explosivos conheciam seu trabalho como se esperava que conhecessem. A
energia da carga fora precisamente calculada e focalizada; pouco sobrara para fazer ondular a
poeira que agora cobria quase metade do piso da cabine.
O tempo pareceu se imobilizar e durante uma era nada aconteceu. Então houve um lento e belo
milagre, mais extraordinário por ser tão inesperado e contudo tão óbvio que ninguém o
imaginara.
Um anel de luz branca e brilhante surgiu entre as sombras encarnadas do teto.
Cresceu, tornando-se mais brilhante e então, subitamente, expandiu-se num círculo completo e
perfeito enquanto o pedaço do teto caía. Essa luz provinha de um único tubo luminoso vinte
metros acima, mas para olhos que não viam nada há horas, exceto um crepúsculo
avermelhado, ela parecia mais gloriosa que todas as alvoradas.
A escada desceu quase ao mesmo tempo em que o círculo do teto atingiu o chão.
A senhorita Morley, preparada como uma corredora, desapareceu num clarão.
Quando a senhora Schuster a seguiu, um pouco mais lenta, mas ainda assim numa velocidade
da qual ninguém poderia se queixar, foi como um eclipse. Somente alguns raios filtraram-se
pela radiante estrada rumo à salvação. Estava escuro novamente, como se, após um breve
vislumbre da aurora, a noite retornasse com redobrada escuridão.
Agora os homens começavam a subir. Baldur primeiro, provavelmente abençoando sua
posição no alfabeto. Havia apenas 12 na cabine quando a porta escorada finalmente soltou
suas dobradiças e a avalanche acumulada desabou.
A primeira onda de pó atingiu Pat enquanto ele ainda se encontrava no meio do declive da
cabine. Embora leve e impalpável, ela retardou seus movimentos, como se estivesse lutando
para escapar através de cola. Era uma sorte que o ar e a umidade houvessem tirado da poeira
um pouco de sua força; do contrário, a cabine estaria agora cheia de nuvens sufocantes. Pat
espirrava e tossia, mas ainda conseguia respirar.
No crepúsculo enevoado podia ouvir Sue contando "15... 16... 17... 18... 19...", enquanto
guiava os passageiros para a salvação. Queria deixá-la subir com as outras mulheres, mas ela
continuava ali, zelando pelos passageiros. Enquanto lutava contra a areia movediça, que
subira até sua cintura, ele sentia por Sue um amor tão grande que parecia estourar seu coração.
Agora não tinha mais dúvida. O verdadeiro amor é o equilíbrio perfeito entre o desejo e a
ternura. O primeiro existira por um longo tempo e agora o segundo chegava à sua plenitude.
– 20... é o senhor, comodoro. Rápido!
– Com mil diabos, Sue, suba você.
Pat não pôde ver o que aconteceu, estava parcialmente cego pela poeira e a escuridão, mas
calculou que Hansteen devia ter literalmente jogado Sue através do teto. Nem sua idade nem
seus anos no espaço o haviam privado de sua força terrestre.
– Está aí, Pat? – chamou ele. – Eu estou na escada.
– Não espere por mim, estou indo.
Era mais fácil dizer do que fazer. Sentia como se milhões de dedos suaves porém
determinados o prendessem, puxando-o de volta para a inundação crescente.
Agarrou um dos encostos de assento, agora quase oculto sob a poeira, e lançou-se em direção
à luz.
Alguma coisa bateu em seu rosto; instintivamente estendeu a mão para retirá-la e percebeu ser
a ponta da escada de corda. Ergueu-se com toda a força, enquanto lenta e relutantemente o Mar
da Sede relaxava seu aperto sobre ele.
Antes de entrar na chaminé teve um último vislumbre da cabine. Toda a traseira estava agora
submersa na rastejante maré cinzenta. Parecia sobrenatural e duplamente sinistro que ela
subisse num plano geometricamente perfeito, sem uma única ondulação ou sulco em sua
superfície. A um metro de distância – algo que Pat sabia que iria lembrar por toda a sua vida,
embora sem saber por quê – um copo de papel solitário flutuava calmamente, como um barco
de brinquedo num lago. Em alguns minutos ele chegaria ao teto e seria submerso, mas por
enquanto ainda desafiava bravamente a poeira.
Era como as luzes de emergência, que continuariam acesas durante dias, mesmo quando cada
uma delas já estivesse encerrada na escuridão.
Agora o poço mal iluminado estava ao seu redor. Não subia tão rapidamente quanto seus
músculos permitiriam para não se chocar com o comodoro. Houve um súbito clarão acima,
enquanto Hansteen saía do poço. Involuntariamente Pat olhou para baixo, tentando proteger
seus olhos do clarão. A poeira subia rapidamente atrás dele, ainda lisa, plácida e inexorável.
Em seguida pulou sobre a boca da ensecadeira, no centro de um iglu fantasticamente
abarrotado. À sua volta, em vários estádios de exaustão e desalinho, encontravam-se seus
passageiros; quatro figuras em trajes espaciais os ajudavam, mais um homem sem traje de
pressão que ele imaginou ser Lawrence. Era estranho ver um rosto novo, depois de todos
esses dias.
– Todo mundo saiu? – perguntou Lawrence ansiosamente.
– Sim – respondeu Pat. – Eu sou o último homem... assim espero – acrescentou, percebendo
que na escuridão e no meio do tumulto alguém talvez fosse deixado para trás. E se Radley
resolvera não enfrentar o que o esperava na Nova Zelândia?
Não, lá estava ele entre os outros. Pat começava justamente a contar as pessoas quando o piso
de plástico deu um súbito salto e um perfeito anel de fumaça ou pó saiu do poço. Aquilo
atingiu o teto, ricocheteou e desintegrou-se antes que alguém pudesse se mover.
– Que diabo foi isso? – indagou Lawrence.
– Nosso tanque de oxigênio líquido – respondeu Pat. – O bom e velho ônibus aguentou o
tempo exato...
E então, para seu próprio embaraço, o comandante do Selene começou a chorar.
Capítulo 31
– Ainda não acho que estas bandeiras sejam uma boa idéia – comentou Pat enquanto o
cruzador se afastava de Porto Roris. – Elas parecem falsas quando se sabe que estão no
vácuo.
No entanto tinha de admitir que a ilusão era perfeita, pois a linha de estandartes em torno do
prédio do embarcadouro parecia tremular numa brisa não existente. Era tudo feito com molas
e motores elétricos e certamente confundiria os observadores na Terra.
Este era um grande dia para Porto Roris e de fato para toda a Lua. Desejava que Sue pudesse
estar aqui, mas ela não se encontrava em forma para a viagem – literalmente, como observara
ao lhe dar o beijo de despedida pela manhã.
– Não sei como as mulheres podem ter bebês na Terra. Imagine carregar esse peso todo numa
gravidade seis vezes maior.
Pat afastou sua mente da família iminente e levou o Selene II à velocidade máxima. Da cabine
vieram os "ohs" e "ahs" dos 32 passageiros, enquanto as nuvens cinzentas de poeira erguiam-
se contra o Sol, como arco-íris monocromáticos. Esta viagem inaugural era à luz do dia e os
passageiros perderiam a fosforescência mágica do Mar, a corrida noturna pelo desfiladeiro do
Lago Cratera e as glórias esverdeadas da Terra imóvel. Todavia, as atrações principais eram a
novidade e a excitação da jornada. Graças ao seu fatídico predecessor, o Selene II era um dos
veículos mais conhecidos do sistema solar.
Uma prova do velho ditado de que não existe má publicidade. Agora que as reservas
adiantadas começavam a chegar, o comissário de Turismo estava satisfeito por ter insistido em
conseguir mais espaço para passageiros. A princípio, tivera de lutar para obter um novo
Selene. "Uma vez mordido, duas vezes cuidadoso", dissera o administrador-chefe, mas
rendeu-se quando o padre Ferraro e sua Divisão de Geofísica provaram, sem qualquer dúvida,
que o Mar não se mexeria novamente por outro milhão de anos.
– Mantenha no curso – avisou Pat ao co-piloto. – Vou lá atrás conversar com os passageiros.
Ainda era suficientemente jovem e vaidoso para apreciar os olhares de admiração enquanto
caminhava pela cabine. Todos a bordo teriam lido a seu respeito ou visto sua imagem na TV.
De fato, a própria presença dessas pessoas aqui era um voto implícito de confiança. Pat sabia
muito bem que outros compartilhavam o crédito, mas não havia falsa modéstia quanto ao papel
que desempenhara nas últimas horas do Selene I. Seu pertence mais valioso era o pequeno
modelo dourado do cruzador, presente de casamento oferecido ao casal Harris: "De todos na
última viagem, em sincera estima." Era o único testemunho que contava, e ele não desejava
outros.
Já caminhara metade da extensão da cabine de passageiros, trocando algumas palavras aqui e
ali, quando parou subitamente.
– Alô, capitão – disse uma voz inesquecível. – Parece surpreso em me ver.
Pat recobrou-se rapidamente e usou seu sorriso oficial mais deslumbrante.
– É certamente um prazer inesperado, senhorita Morley. Não fazia idéia de que estivesse na
Lua.
– É também uma surpresa para mim. Devo isto à história que escrevi sobre o Selene I. Estou
cobrindo esta viagem para a Vida Interplanetária.
– Só espero que seja um pouco menos excitante que da última vez – comentou Pat.
– A propósito, teve contato com alguns dos outros? O Dr. McKenzie e os Schusters me
escreveram algumas semanas atrás, mas às vezes me pergunto o que terá acontecido ao pobre
e pequeno Radley depois que Harding o levou.
– Nada, exceto que perdeu o emprego. A Cartões de Viagens Universal decidiu que se o
processasse atrairia a simpatia de todos sobre Radley e daria a outras pessoas a idéia de fazer
a mesma coisa. Ele vive agora, acredito, fazendo palestras para os seguidores de seu culto
sobre "O que encontrei na Lua". E eu faço uma previsão, capitão Harris.
– Qual é?
– Algum dia ele voltará à Lua.
– Espero que o faça. Nunca descobri o que ele esperava achar no Mar Crisium.
Ambos riram e em seguida a senhorita Morley comentou: – Ouvi dizer que vai deixar este
trabalho. Pat pareceu um pouco embaraçado.
– É verdade – admitiu. – Vou me transferir para o Serviço Espacial. Se puder passar nos
testes.
Não estava muito certo de conseguir, mas sabia que deveria fazer o esforço. Dirigir um ônibus
lunar fora um trabalho interessante e agradável, mas era também um beco sem saída, como Sue
e o comodoro o haviam convencido. E existia outra razão.
Frequentemente se perguntava quantas vidas foram mudadas ou desviadas de seu curso quando
o Mar da Sede se abrira sob as estrelas. Ninguém a bordo do Selene I poderia deixar de ser
marcado pela experiência, mudando em muitos casos para melhor. O fato de estar aqui agora,
tendo essa conversa amigável com a senhorita Morley, era prova suficiente disso.
O efeito também devia ter sido profundo nos homens envolvidos no esforço de salvamento.
Especialmente o Dr. Lawson e o engenheiro-chefe Lawrence. Pat vira Lawson muitas vezes,
fazendo suas palestras irascíveis sobre assuntos científicos na televisão. Estava grato ao
astrônomo, mas achava impossível gostar dele. Parecia, contudo, que milhões de pessoas não
pensavam assim.
Quanto a Lawrence, trabalhava duro em suas memórias provisoriamente intituladas O Homem
sobre a Lua, e desejava nunca ter assinado o contrato. Pat já o ajudara nos capítulos sobre o
Selene e Sue lia os originais, enquanto esperava o bebê.
– Queira me desculpar – disse Pat, lembrando-se de suas tarefas como capitão. -
Devo atender os outros passageiros. Mas, por favor, venha nos visitar a próxima vez que
estiver em Cidade Clavius.
– Eu irei – prometeu a senhorita Morley, um pouco surpresa, mas obviamente satisfeita.
Pat continuou a caminhar até o fim da cabine, respondendo a uma saudação aqui, a uma
pergunta ali. Então chegou à cozinha-comporta e fechou a porta atrás de si, ficando
momentaneamente sozinho.
Havia mais espaço aqui do que no Selene II, mas o desenho básico era o mesmo.
Não era de surpreender que as lembranças fluíssem de novo. Aquele poderia ser o mesmo
traje espacial cujo oxigênio ele e McKenzie compartilharam enquanto os outros dormiam;
aquela poderia ser a parede onde encostara o ouvido, escutando o sussurro da poeira
ascendente. E essa câmara, de fato, poderia ter sido o lugar onde ele conhecera Sue pela
primeira vez, no sentido bíblico e literal. Mas havia uma inovação nesse modelo: a pequena
janela na comporta para o exterior. Colocou o rosto contra ela e olhou sobre a superfície do
Mar.
Estava no lado sombreado do cruzador, olhando na direção oposta ao Sol, para a noite escura
do espaço. Quando sua visão se ajustou à penumbra, pôde ver as estrelas. Apenas as mais
brilhantes, pois havia bastante luz refletida para dessensibilizar seus olhos. Mas lá estavam
elas – e também Júpiter, o mais brilhante dos planetas depois de Vênus.
Logo estaria lá, longe de seu mundo nativo. Este pensamento o excitava e também o
aterrorizava, mas ele sabia que tinha de ir.
Amara a Lua, mas ela tentara matá-lo e nunca mais se sentiria à vontade em sua superfície.
Embora o espaço profundo fosse ainda mais hostil e implacável, ainda não lhe declarara
guerra. Com seu próprio mundo, de agora em diante, não haveria mais que uma neutralidade
armada.
A porta da cabine se abriu e a comissária entrou com uma bandeja de xícaras vazias. Pat deu
as costas à janela e às estrelas. Na próxima vez que as fitasse, elas estariam muito mais
brilhantes.
Sorriu para a moça elegantemente uniformizada e acenou, indicando a pequena cozinha.
– Ê toda sua, senhorita Johnson, cuide bem dela.
E então caminhou de volta para os controles, conduzindo o Selene II através do Mar da Sede
em sua viagem inaugural, que para ele seria a última.
FIM
O Autor e sua Obra
"Um romance movimentado e fascinante": assim se expressou o New York Times Book
Review sobre Os náufragos do Selene, de Arthur C. Clarke, que a Nova Fronteira publica
após o sucesso de 2010: uma odisséia no espaço II.
Selene é uma nave que, devido a um acidente na poeira lunar, submerge no Mar da Sede. Em
seu interior vinte e duas pessoas lutam para sobreviver. Cabe ao engenheiro-chefe Lawrence
desempenhar uma missão praticamente impossível: encontrar a nave e resgatar os passageiros.
De sua missão depende o futuro da humanidade na Lua.
Residindo atualmente em Sri Lanka, Arthur C. Clarke sempre procurou em seus livros ampliar
as dimensões das narrativas de ficção científica. Para o Chicago News, "Clarke provoca os
leitores, levando-os a pensar construtivamente no futuro da humanidade, e mais, a se
preocupar com a existência de um futuro para si mesma".
Aluno exemplar do tradicional King"s College de Londres – suas notas em física e matemática
sempre lhe garantiram os primeiros lugares -, notabilizou-se pelo espírito premonitório de
algumas das ideias que lançou em seus textos.
Clarke foi também, durante a segunda guerra mundial, o oficial da Força Aérea Real inglesa
encarregado do primeiro equipamento de radar em seu período experimental. Também, os
satélites foram criados por ele, em 1945, o que lhe valeu a medalha de ouro do Franklin
Institute.
A leitura de Os náufragos do Selene faz pensar, por exemplo, na nave Colúmbia e suas viagens
pelo espaço. Autor de cerca de quarenta livros traduzidos em mais de quinze-línguas, Clarke
alia à sua imaginação o dom de saber, como poucos no gênero, mesclar elementos de terror,
política, humor e religião.
Segundo a melhor crítica especializada, Arthur C. Clarke é o autor mais revolucionário da
ficção científica no século XX.
{1}
Sinus Roris, a "Baía do Orvalho", está situada próximo ao pólo norte lunar. Lunetas de abertura razoável podem localizá-la
como uma mancha escura, acima dos montes Jura e a noroeste da brilhante cratera Aristarco (N. do T.)
{2}
GMT: Tempo Médio de Greenwich; em inglês, Greenwich Mean Time. (N. do T.)
{3}
O Lado Terrestre (Earthside) é o que se encontra sempre voltado para a Terra, enquanto a parte oculta aos observadores
chama-se Lado Remoto (Farside). (N. do T)
{4}
Em 1960, quando Arthur Clarke escreveu o romance, este era um bom palpite para a data da chegada à Lua. Infelizmente,
os primeiros homens lá desembarcaram apenas em julho de 1969. Além disso, eram americanos e não russos. (N. do T.)
{5}
argumento no qual a conclusão não segue as premissas. É uma falácia lógica (N.do T).