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Do futuro distante ao presente perpétuo:

uma resenha de “Nós”, de I. Zamiatin.

Em seu livro de 1929, o sociólogo alemão Karl Mannheim procurou diferenciar


ideologia e utopia. Para ele, a primeira seria formada por representações da realidade com
as quais as classes dominantes escondem a si mesmas e aos demais o real funcionamento
da sociedade produtora de mercadorias em função da conservação de seu próprio poder;
a segunda, por sua vez, designaria a mentalidade dos grupos subalternos orientada
exclusivamente para a mudança e o futuro, e animada por uma vontade pragmática. Se
assim for, poderíamos compreender o gênero “distópico” como a mentalidade das massas
vencidas diante da vitória peremptória de determinado contexto histórico. A distopia
seria, portanto, a narrativa dos derrotados que consistiria em mostrar que nem os
vencedores estarão a salvo no futuro.
Outro grande pensador, o filósofo alemão Ernst Bloch, em sua opus magnum,
procurou compreender a utopia como algo concreto e cotidiano. Todos os três volumes
de O Princípio-Esperança tratam dos “sonhos de uma vida melhor”, sempre orientados
para o futuro. Se assim também for, a distopia poderia ser descrita como o “pesadelo da
vida pior” aproximando-se paulatinamente ao presente. Poderíamos, talvez, chamar de
“distópico” este primeiro quarto do século XXI, onde, como sublinhou Fredric Jameson
certa feita, é mais fácil imaginar o fim do mundo envolto numa destruição total e
aniquilação dos indivíduos do que projetar o fim do capitalismo enquanto sistema-mundo.
Os filmes hollywoodianos sobre catástrofes naturais, invasões alienígenas, zumbis etc.,
dão razão a ele.
Depois dessas duas rápidas aproximações, a Mannheim e a Bloch, arrisco uma
definição de distopia: ela significa o retrato estético de um contexto histórico onde a
imaginação foi subsumida nos aparatos de gestão social, i. e., onde a força transgressora
perdeu sua potência emancipatória e transformadora. Esta definição está implícita no
romance Nós, de Ievguêni Zamiátin, republicado agora, em 2017, em português pela
editora Aleph, conhecida por ter em seu catálogo outros títulos distópicos, como Laranja
Mecânica, de Anthony Burgess, Eu, Robô, de Isaac Asimov, dentre outros.

1
É consenso que Nós representa a primeira distopia. Em outro lugar1, defini o
romance distópico como aviso de incêndio, o qual, como todo recurso de emergência,
busca chamar a atenção para que o acontecimento perigoso seja controlado, e seus efeitos,
embora já em curso, sejam inibidos. Em Admirável Mundo Novo, de Huxley, as formas
de controle no âmbito da gênese social do indivíduo, isto é, no que se refere aos modos
de dominação que incidem diretamente sobre a subjetividade com vistas a regular
pensamentos e comportamentos; em 1984, de Orwell, a dinâmica de vigilância que forma
um diagrama amplo de controle político balizado pela organização totalitária dos laços
sociais; e em Fahrenheit 451, de Bradbury, a emergência e consolidação de uma
Zivilisation sem Kultur, isto é, de uma conjuntura na qual a cultura – os valores e o código
moral, por exemplo – existem hegemonicamente na função de imperativo de manutenção
da civilização, em outras palavras, a cultura reduzida à sua finalidade civilizatória. Em
suma, a narrativa distópica busca chamar nossa atenção para as relações heterônomas
entre subjetividade, sociedade, cultura e poder.
Mas qual seria, neste panorama, o destaque de Nós? Seria notável somente pelo
fato de ter sido a distopia pioneira ou por participar desta modalidade de romance?

II

Mesmo este pioneirismo fica eclipsado se lembrarmos do escritor britânico


Herbert George Wells. Ele escreveu, em 1895, o romance A máquina do tempo, onde o
protagonista era levado a várias etapas futuras da humanidade, detendo-se em uma época
onde as duas classes da sociedade industrial se cristalizaram biológica e fisicamente. Indo
ainda mais para o futuro, o protagonista vê a humanidade em sucessivas fases de declínio,
até o estágio de sua definitiva extinção. Como disse o historiador Vitor Ivo Comparatto,
a utopia wellsiana é o material já pronto para a distopia.
A utopia em sua forma literária se sentiu bastante à vontade para se desenvolver
na sociedade inglesa. De Thomas Morus a George Orwell, passando por Francis Bacon,
Lord Lytton, H. G. Wells, Samuel Butler, William Morris e Aldous Huxley, o problema
utópico em sua forma literária parece ser uma questão londrina. Assim como, em sua
forma política, foi uma questão francesa, do Conde de Saint-Simon a Pierre-Joseph
Proudhon, passando por Charles Fourier e Robert Owen. O que deve provocar certo

1
Refiro-me ao artigo Teoria Crítica e Literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da
modernidade, publicado em Anuário de Literatura., Florianópolis, v.18, n. 2, p. 201-215, 2013.

2
espanto é a maneira pela qual a distopia se tornou uma questão soviética, justamente ali
na periferia do capitalismo.
No prefácio à edição italiana de Nós, o crítico literário Ettore Lo Gatto sublinha
que, em 1922, mesmo ano de lançamento de sua distopia, Zamiatine escreveu um ensaio
sobre H. G. Wells. Aliás, sabemos também que ele foi editor das traduções russas de H.
G. Wells. Parece-me que uma das condições fundamentais para a aclimatação periférica
de temas centrais é exatamente o intelectual atento ao mundo. Foi assim que se produziu
aqui no Brasil um romancista do calibre de Machado de Assis, um “mestre na periferia
do capitalismo”, na fórmula de Roberto Schwarz. Tudo se passa como se a literatura, em
ambientes culturais periféricos na passagem para o século XX, tivesse trazido para si a
tarefa que, no centro, coube à filosofia ou à sociologia, isto é, de pensar, sistematizar e
problematizar os problemas contemporâneos. Ser um romancista na periferia do
capitalismo é, antes de tudo, ser um intelectual de seu tempo, engajado nas questões
relevantes de sua época2.
Para nós, leitores do século XXI, é inevitável fazer a conexão direta entre o regime
stalinista do socialismo de caserna e a distopia de Zamiatin. De fato, há algo que
poderíamos chamar de “literatura soviética dissidente”: Isaac Babel, preso, torturado e
executado durante os “Processos de Moscou”, em 1937; Boris Pasternak (autor de Dr.
Jivago), perseguido e expulso; Varlam Chalámov (autor de Contos de Kolima), preso por
20 anos, dentre outros. Juntos a Zamiátin, todos exerceram oposição à Stálin por meio da
literatura, bem como se somaram às fileiras da Revolução Russa. A frase de Zamiátin em
sua carta a Stalin em 1931 (que consta em anexo ao volume recém-publicado pela Aleph)
parece resumir esta dissidência literária: “Para mim, como escritor, ser privado de
escrever é como uma sentença de morte”.
Se levarmos a sério, então, que Zamiátin estava plenamente cônscio do que estava
fazendo ao escrever Nós, i. e., inaugurando a distopia como método de crítica social pela
via da literatura diante de um contexto histórico opressor e tendencialmente autoritário,
temos que colocá-lo lado a lado com outros intelectuais que concomitantemente exerciam
esta tarefa em outros ambientes intelectuais, como: Georg Lukács, que publicou História

2
Na literatura brasileira, por exemplo, o escritor oscilou quase sempre entre as tradições populares e a vida
urbana. Para dizer de outra maneira, a literatura brasileira se constituiu como uma forma específica de
pensamento cuja função foi captar o trânsito de uma sociedade arcaica para a moderna sociedade produtora
de mercadorias. Não é curioso que Raquel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano Ramos, tenham sido
filiados ao Partido Comunista Brasileiro ao mesmo tempo em que seus romances tratavam de regionalismo?
Ou seja, um encontro entre que há de mais moderno no século XX, o partido de vanguardas, com aquilo
que há de mais arcaico na sociedade brasileira, do ponto de vista do desenvolvimento capitalista.

3
e Consciência de Classe, e Karl Korsch, autor de Marxismo e Filosofia, ambos de 1922,
cujo objetivo era, no terreno da crítica social, reafirmar o marxismo como uma teoria
crítica e não como um conjunto de dogmas imutáveis e irrevogáveis; Isaak I. Rubin, morto
e fuzilado em 1937, que publicou A teoria marxista do valor em 1923, livro cujo objetivo
era focalizar as categorias como valor, trabalho abstrato e fetichismo, em vez da leitura
dogmática que centralizava as classes, o Estado e o trabalho tout court; Evgeni
Pachukanis, jurista soviético desaparecido em 1937, que publicou A teoria geral do
direito e marxismo em 1924, polemizando contra a possibilidade de um direito soviético,
afirmando a extinção da forma-jurídica como passo necessário da revolução. Se assim
for, Zamiátin participou não somente da dissidência literária no seio da União Soviética,
mas sobretudo endossou a fileira daqueles que se esforçavam em levar mais adiante a
crítica radical do capitalismo. O mérito de Zamiátin, portanto, não é somente o de ter
inaugurado um novo gênero literário, a distopia, mas também o de ter colocado a literatura
como uma ferramenta de análise radical da modernidade, expondo as sombras de barbárie
produzidas pelas Luzes do Progreso.

III

O livro é composto por quarenta anotações que buscam retratar a vida sob o
domínio do Estado Único. Na primeira anotação, Zamiatin apresenta A Integral,
materialização do projeto de levar o modelo social vitorioso a nível global para além da
Terra. Caso os extraterrestres não compreendam a felicidade matematicamente infalível
deste modelo social, “o nosso dever é obrigá-los a serem felizes”, diz a Gazeta do Estado.
Quem nos relata isso é D-503, o autor das memórias que compõem o livro Nós, e também
um dos matemáticos do Estado Único e construtor da Integral. Sabemos que ele vive num
mundo matematicamente perfeito cujo sistema social não é de nenhum modo
questionado, razão pela qual sua expansão alcançou patamares galácticos. Novamente, é
inevitável a lembrança da política stalinista de exportar para todo o mundo o modelo
soviético através dos Partidos Comunistas, que deveriam se constituir enquanto células
reprodutoras do modelo do socialismo de caserna, a partir de princípios tornados
universais como o centralismo democrático, o marxismo-leninismo, a glorificação da
disciplina etc.
O mundo de “Nós” parece ser o mundo onde a disciplina se tornou o princípio de
organização social. Lembremos da disciplina como a entendia o filósofo francês Michel

4
Foucault em seu clássico Vigiar e Punir, isto é, como um diagrama de poder cujo objetivo
era tornar os cidadãos dóceis politicamente e úteis produtivamente a partir de instituições
específicas, como hospital, asilo, escola, exército, prisões etc. A disciplina, em Nós,
extrapolou as dimensões das instituições sociais. Cotidianamente, duas vezes por dia, das
16 às 17 horas e das 21h às 22h horas existem as chamadas Horas Pessoais, onde os
cidadãos possuem alguma liberdade de fazerem o que quiserem. Algum grau de liberdade
ainda era necessário à dominação total.

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