-

PAEO
PESADELO
James HilIman

~
PAUlUS
"O grande deus Pã está morto!" Esse gri to supostamen-
te ressoou por todo o mundo ant igo, anunciando o fim
do paganismo, com seus mitos e deuses, e a morte da
natureza.
Es te excelente livro traz Pã de volt a à vida, a partir do
famoso dito de C. G. Jung de que os deuses se torn aram
nossas en fe rmidades. Capítulos sob re o pânico nOlumo,
mastu rbação, estupro e nin fo leps ia, instinto e sincl"O-
nicidade , e as amantes de Pã - Eco, Sírinx, Selene e as
Musas - mostram o deus bode atu ando e brincando nos
ímpelos obscuros e paixões cri ativas de nossas vidas.
Os illsiglas de 1-:1 illman mostram a figura arquetípica nas
prof·undezas da natureza e a psicologia arquetíp ica como
método de revelação. Pii e o pesadelo (que inclui uma
tradução completa de Efialtes, o magistral tratado mítico-
-pa tológico que Wilhelm Heinrich Roscher escreveu no
século XlX sobre Pã e os demônios da noite) é o estudo
mais radical já feito so bre esse deus.

JAMES HILLMAN (1926-20 11 ) foi um psicólogo ana lista

no rte-amedcano que se defi nia como a nalista junguiano.
Radical iz.:"l.ndo a psicologia jungu iana ou a na lfti ca , sua
psicologia fic ou conhecida como arquelípica. Didgiu pOl"
vários anos O Institut o Cad Custav Jung, e m Zul"ique. Foi
pl"Of-essor convidado nas Univers idades de Yale, Halvard,
Princeton, Syracuse e Dallas, além de editor (Spring
Publicat ions, lnc., Putnam , Con necticul). Dentre suas
obras, PAU LUS já publicou O livro do pller - EIl$aios
sobre o arquétipo do Pue,· Aetcn1 us ( 1999) e Uma busca
illIerior em psicologia e religitio (1998).
Coleção AMOR E PSIQUE
O feminino
• As deusas e a mulher, J. S. Bolen
• A prostituta sagrada, N. Q. Corbett
• O medo do feminino, E. Neumann
• Os mistérios da mulher, Esther Harding
• Liderança feminina: Gestão, psicologia Jun-
guiana, espiritualidade e a jornada global
através do purgatório, Karin Jironet
o masculino
• No meio da vida: Uma perspectiva Junguia-
na,
M.Stein
• Os deuses e o homem, J. S. Bolen
• Sob a sombra de Saturno, J. Hollis
Psicologia e religião
• Uma busca interior em psicologia e religião,
J.Hillman
Letras imaginativas: breves ensaios de psico-
logia arquetípica, Marcus Quintaes
Sonhos
• Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach
• Breve curso sobre os sonhos, R. Bosnak
• Os sonhos e a cura da alma, J. A. Sanford
• Comoentenderossonhos, Mary Ann Mattoon
• Sonhos na psicologia junguiana - novas
perspectivas no contexto brasileiro, Marion
Rauscher Gallbach / Durval Luiz de Faria /
Laura Villares de Freitas (org.)
Pã e o pesadelo, J. Hillman
Maturidade e Envelhecimento
• A passagem do meio, James Hollis
• No meio da vida, M. Stein
Contos de fada e histórias mitológicas
• A individuação nos contos de fada, Marie-
-Louise von Franz
• Ainterpretaçãodos contosdefada, Marie-Loui-
se von Franz
• Mitologemas:encarnaçõesdomundoinvisível,
J. Hollis
• O Gato, M.-L. von Franz
O que conta o conto?, Jette Bonaventure
O que conta o conto? (II) - Variações sobre o
tema mulher, Jette Bonaventure
Opuer JAMES HILLMAN
• O livra do Puer, ensaios sobre o arquétipo do
Puer Aeternus, J. Hilman
• Puer aeternus, M.-L. von Franz
Relacionamentos e parcerias
• Eros e pathos, A. Carotenuto
• Os parceiros invisíveis: O masculino e o femi-
nino, J. A. Sanford
Sombra
• Mal, o lado sombrio da realidade, J. A.
Sanford
• Os pantanais da alma, J. Hollis
O autoconhecimento e a dimensão social
• Meditações sobre os 22 arcanos maiores do
tarõ, anõnimo
PÃ E O PESADELO
Encontros de psicologia analítica, Maria Elci
Spaccaquerche (org.)
Psicoterapia, imagens
e técnicas psicoterápicas
Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz
O mundo secreto dos desenhos: uma abor-
dagem junguiana da cura pela arte, G. M.
Furth
O abuso do poder na psicoterapia e na me-
dicina, serviço social, sacerdócio e magisté-
rio, A. G.-Craig
• Saudades do Paraíso: perspectivas psicoló-
gicas de um arquétipo, M. Jacobi
• O mistério da Coniunctio: imagem alquími-
ca da individualização, E. F. Edinger
• Psicoterapia junguiana e a pesquisa con-
temporânea com crianças: Padrões básicos
de intercâmbio emocional, ,Mario Jacoby
• Medicina arquetípica, Alfred J. Ziegler
Corpo e a dimensão fisiopsíquica
• Dionísio no exílio: Sobre a repressão da
emoção
e do corpo, R. L.-Pedraza
• Presença no corpo - Eutonia e psicologia
analítica, Marcel Gaumond
Outros
• O mundo interior do trauma: defesas arque-
típicas do espírito pessoal, Donald Kalsched
• A família em foco - sob as lentes do cinema,
M.R. Reis / M. E. Spaccaquerche PAULUS
Título original: Pan and the Nightmare
"An Essay on Pan": copyright © James Hillman 1972
INTRODUÇÃO À COLEÇÃO
"Ephialtes": copyright © Spring Publications 1972 AMOR E PSIQUE
Tradução: Carla C. Pilon
Daniel F. Yago
Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos
Coordenação editorial: Ora. Maria Elci Spaccaquerche
Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes
Coordenador de revisão: Tiago José Risi Leme
Revisão: Tarsila Doná
Caio Pereira
Diagramação: Ana Lúcia Perfoncio
Capa: Marcelo Campanhã
Impressão e acabamento: PAULUS

N a busca de sua alma e do sentido de sua vida, o

homem descobriu novos caminhos que o levam para a
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se
um lugar novo de experiência. Os viajantes desses cami-
Hillman, James, 1926- .
nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar
Pã e o pesadelo / James Hillman; [tradução Carla C. Pilon, Daniel F. Yagol. -- São Paulo:
Paulus, 2015. - (Coleção Amor e psique) a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em
Título original: Pan and the Nightmare. lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas para
ISBN 978-85-349-4241-6
as nossas feridas e os nossos sofrimentos, precisamos,
1. Autoconhecimento 2. Hillman, James. Ensaios sobre Pan 3. Pesadelos 4. Psicologia - em primeiro lugar, amar a nossa alma assim como ela é.
Aspectos religiosos 5. Sonhos -Interpretação I. Título. II. Série.
Desse modo é que poderemos reconhecer que essas feridas
15-06990 CDD-154.632 e esses sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por
outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um
fndices para catálogo sistemático:
1. Pesadelos: Psicologia 154.632
centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a
realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria
vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa
unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro,
la edição, 2015 mas o psíquico e depois o espiritual. É a partir do olhar
jJ do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido,
o que significa que a psicologia pode de novo estender a
© PAULUS - 2015 FSC
www.fsc.org mão para a teologia.
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
MISTO
Fax (11) 5579-3627· Tel. (11) 5087-3700 Papel produzido
Essa perspectiva psicológica nova é fruto do esforço
a partir de
www.paulus.com.br·editorial@paulus.com.br fonles responsáveis para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do
FSC" C108975
ISBN 978-85-349-4241-6 espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si
5
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle-
xões durante a prática psicoterápica, e está começ~ndo a
renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma
nova visão do homem na sua existência cotidiana, do
seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo
dimensões diferentes de nossa existência para podermos
reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos
aqueles que são sensíveis à necessidade de inserir mais
alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente res-
tituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de
sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem
da alma", como C. G. Jung o desejava.
Léon Bonaventure
6 7
AGRADECIMENTOS
A tradução de "Efialtes" foi feita por A. V. O'Brien em
Viena entre 1963-64 e lá editada por A. K. Donoghue, que,
embora prevendo dificuldades à frente, também previu
o valor desta empreitada. Ele, juntamente com Renate
Welsh, duelou com a maioria das referências. A versão final
foi preparada para publicação por Murray Stein, com a as-
sistência de James Fenwick para a tradução das palavras
em grego. Patricia Berry editou meu ensaio; Valerie Donle-
avy projetou e supervisionou a edição do livro. Sou grato a
Rafael López-Pedraza pelas nossas conversas sobre o tema
de Pã e a James Redfield, que, na Universidade de Chicago
em 1968, leu toda a tradução e o esboço anterior do ensaio
sugerindo melhorias para esta edição revisada.
Eu também gostaria de reconhecer meu débito para
com os livros (mencionados em toda parte deste volume,
nos locais apropriados) de Ernest Jones, Reinhard Herbig e
Patricia Merivale, em cujos essenciais trabalhos para este
tema as necessárias referências acadêmicas puderam ser
achadas, e, por fim, meu débito a Wilhelm Heinrich Roscher.
JH
Zurique, 1971
o trabalho acadêmico de Philippe Borgeaud e Roberto
Malini (referidos no texto) precisa ser mencionado.
JH
Thompson, 2000
 Parte I
UM ENSAIO SOBRE PÃ
NOVA EDIÇÃO REVISADA

Por
James Hillman
 A PSIQUE RETORNA À GRÉCIA

... Padrões internos brotam de uma profunda fonte que

não foi produzida pela consciência e não está sob seu con-
trole. Na mitologia dos tempos antigos, estas forças eram
chamadas de mana, ou de espíritos, demônios e deuses.
Eles continuam tão ativos na atualidade quanto estavam
no passado. Se eles estão de acordo com nossos desejos,
os chamamos de bons pressentimentos ou impulsos ... Se
eles vão contra os nossos desejos, dizemos que é má sorte,
ou que as pessoas estão contra nós, ou ainda que a causa
de nossos infortúnios deva ser patológica. Recusamo-nos
a admitir que dependemos de "poderes" que não estão sob
nosso controle. 1
Se a tendência à dissociação não fosse inerente à psique
humana, os sistemas psíquicos fragmentários jamais
teriam se cindido; em outras palavras, nem os espíritos
nem os deuses poderiam ter surgido. Esta é também a
razão pela qual nossa época tornou-se tão completamente
ateia e profana: carecemos de todo o conhecimento sobre a
psique inconsciente e nos dedicamos de tal modo ao culto
da consciência que excluímos tudo mais. Nossa verdadeira
religião é o monoteísmo da consciência, estamos possuídos
por ela, ao passo que também negamos fanaticamente a
existência de sistemas fragmentários autônomos. 2

1 Man and his Symbols (1961), 82 [cf. CW 18, § 554]. Para definir o cenário
de nossa investigação sobre uma das figuras divinas mais estranhas de nossa
história, Pã, e uma das experiências mais terríveis de nossa psique, o pesadelo,
começaremos com duas passagens de C. G. Jung e uma passagem longa minha.
2 CW 13, § 51 (os itálicos são meus).

13
 Quando o monoteísmo da consciência não pode mais
negar a existência de sistemas autônomos fragmentários
e não pode mais cuidar de nosso estado psíquico atual,
surge a fantasia de retorno ao politeísmo grego. Pois esse
"retorno à Grécia" se oferece como uma forma de mediação
quando nossos centros não mais se sustentam e tudo des-
morona. A alternativa politeísta não resolve as oposições
conflituosas entre a besta e Belém, entre caos e unidade;
ela permite a coexistência de todos os fragmentos psíqui-
cos e concede-lhes padrões na imaginação da mitologia
grega. Um "retorno à Grécia" foi experimentado na pró-
pria Roma antiga, no Renascimento italiano e na psique
romântica dos tempos de revolução. Em anos recentes, foi
parte intrínseca da vida de artistas e pensadores como
Stravinsky, Picasso, Heidegger, Joyce e Freud. O "retorno
à Grécia" é uma resposta psicológica ao desafio do colapso;
ele oferece um modelo de integração desintegrada.
Já se escreveu o bastante para justificar o "retorno
à Grécia" desde os pontos de vista estéticos, filosóficos e
culturais. Nossa cultura tem se voltado para a Grécia em
busca de glória passada, de perfeição, de graça e clareza
de mente, e também quando ela busca por suas "origens",
pois na Grécia foi onde nossa cultura começou. Mas nosso
objetivo aqui é olhar para a Grécia em busca de compre-
ensão psicológica. Estamos tentando compreender o que é
essa "Grécia" que tanto convoca a psique e o que a psique
lá encontra.
Quando a visão dominante de mundo que dá coesão
a um período da cultura se fissura, a consciência retorna
aos seus reservatórios mais antigos, procurando por fontes
de sobrevivência que também ofereçam fontes para o seu
renascimento. Os críticos estão certos quando veem esse
"retorno à Grécia" como um desejo regressivo de morte,
como um escape dos conflitos contemporâneos em direção
a mitologias e a especulações de um mundo de fantasia.
14
Mas olhar para trás permite que avancemos, pois olhar
para trás reanima a fantasia do arquétipo da criança,fons
et origo, que é um momento tanto de fraqueza impotente
quanto de um futuro que se desvela. A "renascença" (re-
-nascer) seria uma palavra sem sentido sem a conside-
ração da dissolução que ela implica, a verdadeira morte
da qual vem esse renascimento. Os críticos perdem de
vista a validade e a necessidade da regressão. Também
lhes escapa a necessidade de uma regressão que seja
especificamente "grega".
Nossa cultura oferece duas vias alternativas de
regressão. Essas vias têm sido chamadas helenismo e
hebraísmo, e elas representam as alternativas psicológi-
cas de multiplicidade e unidade. Podemos ver ambas as
alternativas em momentos críticos da história ocidental,
por exemplo, quando do declínio de Roma, que acompa-
nhou Constantino rumo ao cristianismo (como se havia
começado a chamar o hebraísmo). Voltamos a vê-las
novamente em momentos como na Renascença e na Re-
forma, quando o sul da Europa retornou ao helenismo e
o norte, ao hebraísmo.
O hebraísmo reconfirma o monoteísmo da consciência
egoica. Esse caminho convém quando a consciência de
uma época ou de um indivíduo sente que sua sobrevivên-
cia é mais bem assegurada por um padrão arquetípico de
heroísmo e unidade. A imagem primitiva de Cristo era
composta pelo militar Mitra e pelo musculoso Hércules;
a conversão de Constantino, que definitivamente virou o
jogo contra o politeísmo clássico, foi anunciada por uma
visão marcial que veio a ele justo antes que começasse
sua batalha. De modo semelhante, o judaísmo da Reforma,
a despeito de sua tolerância para com a contestação, a
diversidade e os cismas, era arquetipicamente inspirado
pela fantasia de uma força heroica unificada; o indivíduo
era concebido como uma unidade indivisível de respon-
15
sabilidade armada que se coloca ante a Deus, face a
face, o encontro primordial. Nos nossos dias, o caminho
monocêntrico é percorrido sempre que tentamos resolver
uma crise da alma através dos meios da psicologia do ego,
sempre que tentamos "reformar".
A psique em crise tem, naturalmente, outras fanta-
sias. O múltiplo do helenismo e o uno do hebraísmo não
são as únicas saídas de que dispõe a psique para sair de
seu dilema patológico. Há a fuga para o futurismo e para
suas tecnologias, o voltar-se para o Oriente e para o mundo
interior, o retorno ao primitivo e ao natural, o movimento
de ascensão e saída definitiva por meio da transcendência.
Mas essas alternativas são menos autênticas. Elas são
simplistas; negligenciam nossa história e os direitos que
as imagens têm sobre nós; urgem-nos a fugir do apuro ao
invés de nos aprofundarmos nele, fornecendo-lhe um pano
de fundo cultural e uma estrutura diferenciada.
As ficções científicas e as ficções da ciência, as ins-
truções de índios americanos e de conselheiros orien-
tais - por mais sábios e brilhantes que todos eles possam
ser - falham em nos lembrar de nossa história imaginária
no Ocidente, as imagens que efetivamente trabalham em
nossas almas. Ao circundarmos nossa tradição imaginaI,
estas acabariam por nos asilar ainda mais. Então, os ca-
minhos alternativos do helenismo e do hebraísmo agem
como repressões, endossando uma ausência de alma que
suas imagens poderiam contribuir para reparar.
O hebraísmo falha em ir de encontro ao dilema atual
simplesmente porque ele está muito bem estabelecido,
demasiadamente idêntico à nossa visão moralista de
mundo: há uma Bíblia no quarto de todo andarilho, onde
seria melhor que encontrássemos a Odisseia. Não somos
capazes de encontrar renovação alguma na tradição de
nosso eu consciente, mas tão somente uma reiteração dos
hábitos empedernidos de uma mente monocêntrica que
16
desejaria manter a coesão de seu universo através de
sermões culpabilizantes e de autossuperação.
O helenismo, contudo, traz a tradição da imaginação
inconsciente; a complexidade politeísta grega que nos
antecipa as nossas situações psíquicas complicadas e des-
conhecidas. O helenismo favorece a renovação ao oferecer
maior espaço e outro tipo de bênção para todos os tipos
de imagens, de sentimentos e moralidades peculiares que
constituem nossa real natureza psíquica. Ela não mais
necessitaria ser livrada do mal se, anteriormente, ela não
é imaginada como má.
Se em nossa desintegração não somos capazes de
reintegrar todos os nossos fragmentos a partir de uma
psicologia monoteísta do ego, ou não mais conseguimos
nos iludir com um futurismo progressivo, ou com um pri-
mitivismo natural, que antes funcionavam tão bem, e se
precisamos de uma complexidade que esteja à altura de
nossa sofisticação, então devemos retornar para a Grécia.
"Nenhuma outra mitologia conhecida por nós - seja ela
evoluída ou primitiva, antiga ou moderna - apresenta
a mesma complexidade e qualidade sistemática que a
grega."3 A Grécia nos oferece o padrão policêntrico de po-
liteísmo mais ricamente elaborado de todas as culturas 4
e, por isso, é capaz de conter o caos das personalidades
secundárias e dos impulsos autônomos de um domínio,
de uma época ou de um indivíduo. Essa extraordinária
diversidade oferece à psique fantasias multifacetadas
para que possa refletir sobre suas muitas possibilidades.
Por detrás e por dentro de toda cultura grega - na
arte, no pensamento e na ação -, há seu pano de fundo
mítico policêntrico. Esse era o mundo psíquico imaginaI
3 KIRK, G. S., Myth, its meaning and Function (Stanford: University of
California Press, 1970), 205.
4 LEEUW, G. van der, Religion in Essence and Manifestation (I: 19,4).
17
do qual a "glória que é a Grécia" veio. Esse pano de fun-
do mítico talvez estivesse menos circunscrito ao ritual
e aos cultos religiosos em vigência do que às mitologias
de outras grandes culturas. Em outras palavras, o mito
grego serviria de modo menos específico como religião e
de modo mais geral como psicologia, agindo na alma tanto
como estímulo quanto como continente diferenciado para
a extraordinária riqueza psíquica da Grécia antiga.
Mas a "Grécia" para a qual nos voltamos não é literal;
ela inclui todos os períodos, do minoico ao helenístico, to-
das as localidades, da Ásia Menor à Sicília. Esta "Grécia"
se refere a uma região psíquica histórica e geográfica, a
uma Grécia fantástica e mítica, uma Grécia interior da
mente que só indiretamente está ligada à geografia e à
história reais - de modo que estas, então, perderiam seu
valor. "[. .. ] Até a época do Romantismo, a Grécia não era
mais que um museu habitado por pessoas pelas quais se
tinha o maior desprezo."5
Petrarca, que no século XIV se empenhou mais que
qualquer um para dar novamente vida à literatura da
Antiguidade, não sabia ler em grego. Winckelmann, no
século XVIII, que se empenhou mais do que qualquer
outro em fazer reviver o classicismo e que inventou o
culto moderno à Grécia, jamais colocou os pés lá e talvez
nunca tenha visto uma única escultura grega importante
em sua versão original. Nem Racine, tampouco Goethe,
Hõlderlin, Hegel, Heine, Keats e nem mesmo Nietzsche
estiveram na Grécia. Ainda assim, todos eles reconsti-
tuíram a "Grécia" em suas obras. Byron é a absurda - e
fatal- exceção. Obviamente, a língua grega, a literatura,
a política e a ciência eram conhecidas naqueles séculos.
Sócrates era cultuado, a estatuária, a arquitetura e a
5 WEISS, Roberto, Renaissance Discovery of Classical Antiquity (Oxford:
Blackwell, 1969), 140.
18
métrica eram copiadas, mas poucos de fato foram até a
Grécia empírica, e raramente se consultavam os textos
gregos originais. Era uma "imagem de Grécia carregada
de emoção" que imperava. 6 E essa imagem conservou sua
carga de emoções por meio de um conjunto contínuo de
mitos (os "mitos gregos" e a metáfora de "Grécia") que se
mantiveram na consciência dos tempos pós-helênicos aos
nossos dias atuais.
A "Grécia" persiste mais como uma paisagem interior
do que uma paisagem externa, uma metáfora para o reino
imaginaI, em que os arquétipos enquanto deuses foram
colocados. Portanto, podemos ler todos os documentos e
fragmentos de mito deixados pela Antiguidade também
como relatos ou testemunhos do imaginaI. A arqueologia
se torna arquetipologia, apontando menos para a história
literal do que para as realidades eternas da imaginação,
falando-nos sobre o que se passa agora na realidade
psíquica.
O retorno à Grécia não é nem um retorno a uma
época histórica passada, nem a uma época imaginária,
"era dourada" utópica que desapareceu ou que poderia
reaparecer novamente. Pelo contrário, a "Grécia" nos ofe-
rece uma chance de rever nossas almas e nossa psicologia
através de locais imaginais e de pessoas, ao invés do tem-
po. Mudamo-nos em definitivo do pensamento temporal
e da historicidade para irmos em direção a uma região
imaginaI, um arquipélago diferenciado de localizações,
onde os deuses estão, e não para o tempo quando eles lá
estavam ou quando ainda estarão.
É provável que surjam polêmicas opondo a Grécia
enquanto fato e enquanto fantasia, uma vez que a filolo-
gia histórica e literária tradicionalmente vê a sua Grécia
6 OSBORN, J. M., Travel Literature and the Rise ofneo·Hellenism in Eng·
land (Bull. New York Public Library, 67, 1963), 300.
19
de maneira literal, e que cada geração de estudiosos se
deleita em desmascarar as interpretações fantasiosas per-
petradas pela geração precedente. De fato, pode-se dizer
que a Grécia interior da imaginação afeta as perspectivas
da filologia clássica - um domínio profundamente absorto
no que está enterrado, quebrado e remanescente, em ra-
ízes e origens desconhecidas, em mitos e deuses, no que
está especialmente sujeito à influência dos arquétipos no
arranjo e interpretação de seus "fatos". Os deuses pare-
cem batalhar precisamente neste campo e, devido àquela
paixão arquetípica, as línguas mortas, tão convocadas a
justificar racionalmente sua relevância nos dias atuais,
são mantidas com vida pela própria psique em razão de
sua importância para a imaginação.
Nós retornamos à Grécia para redescobrir os arqué-
tipos de nossa mente e de nossa cultura. A fantasia lá
retorna para se tornar arquetípica. Ao retroceder para o
mítico, para o não factual, para o não histórico, a psique
pode reimaginar seus predicamentos factuais e históricos
a partir de outro ponto de vista. A Grécia se converte na
múltipla lente de aumento por meio da qual a psique pode
reconhecer suas pessoas e seus processos em configurações
maiores que a vida, mas que, ainda assim, concernem à
vida de nossas personalidades secundárias. 7
***
Quando falamos, a Grécia está dentro de nossas
palavras: quando pensamos, construímos, calculamos
e organizamos, a Grécia está dando forma a nossas
mentes. Até a ideia de uma ideia é grega. A verdade não
deve negar os valores herdados de outras culturas, seus
7 A totalidade dessa passagem é de James Hillman, Re-visionary Psychology
(New York: Harper & Row, 1975),27-30. Na edição brasileira (James Hillman,
Re-vendo a psicologia, tradução de Gustavo Barcellos, RJ: Vozes, 2010), esse
trecho corresponde aproximadamente às páginas 87-94, "Uma digressão sobre
o 'retorno à Grécia"'. (N.T.)
20
grandes deuses, suas imagens, suas almas. No entanto,
relativizar a "Grécia" enquanto somente uma influência
cultural, puni-la por ser demasiado ocidental, branca,
masculina, hierárquica e muito distante no passado é
recair em uma literalidade racista. Com isso, me refiro
a uma série de erros. Em primeiro lugar, constitui um
erro identificar imaginação com geografia, psicologia com
sociologia e tempo com causalidade (por exemplo, consi-
derarmos que só porque as culturas chinesas, africanas,
egípcias e semitas são mais antigas, seriam também mais
proeminentes em nossas psiques). Em segundo lugar, é
um erro confinar a psique a uma herança genética; pois
a mente não é determinada pelo seu sangue nem pela
sua pele. E em terceiro lugar, e talvez o mais grave de
todos, constitui um erro personalizar a psique naquilo que
suas opiniões pessoais consideram relevantes para seus
problemas pessoais; essa é uma maneira habitual de se
evitar escavar até as raízes arquetípicas da imaginação
na história coletiva, raízes que afetam os problemas sem
que se esteja consciente disso. Sejamos tibetanos ou ja-
maicanos, tenhamos nascido às margens do Mar Vermelho
ou Amarelo, sem qualquer resquício de Grécia em nossos
ossos e sem a mais vaga ideia sobre os mitos gregos, por-
que estamos inexorável e inegavelmente imersos no curso
irrefreável do que se tornou a civilização euro-americana
atlântica - suas noções sobre leis e educação, tecnologia
e raciocínio, psique e pessoa -, para nos conhecermos,
devemos retornar à Grécia, onde essa ideia foi formulada
pela primeira vez.
Há uma boa razão para que Pã seja o guia desse
retorno à imaginação da Grécia - esse tipo de mentali-
dade que precedeu a civilização cristã. O famoso relato
de Plutarco (ca. 46-120 d.C.), no qual ele anuncia a morte
do Grande Deus Pã, coincide com a ascensão do cristia-
nismo. Lendas, imagens e a teologia atestam um conflito
21
irreconciliável entre Pã e Cristo, uma tensão que nunca
findou em que o Diabo, com seus chifres, cascos e corpo
peludo, não é nenhum outro senão o velho Pã, visto pelo
espelho do cristianismo.
A morte de um é a vida do outro. Esse contraste
aparece novamente no simbolismo de seus corpos, suas
geografias, suas retóricas. Um tem a caverna, o outro,
o Monte; um tem a música, o outro, a Palavra; as patas
de Pã saltam e dançam mesmo sendo tortas, peludas e
com cascos de bode, as pernas de Jesus estão quebradas
e esticadas; seus pés, cruzados e pregados. Jesus, o Bom
Pastor; Pã, o ingovernável e rebelde bode. Pã está nu e é
fálico; Jesus, circuncidado, coberto e assexuado.
O conflito PãlJesus apresenta enormes dificuldades
para o indivíduo em nossa civilização. Como se poderiam
superar os obstáculos históricos de modo a reentrar na
imaginação pagã de Pã e em sua natureza sem cair em um
culto satânico e selvagem? Não poderíamos simplesmente
nos desfazer de nossa história, mas devemos lutar contra
os preconceitos.
O famoso ensaio de Matthew Arnold ("Hebraísmo e
Helenismo") define esse preconceito. "A ideia motriz do
hebraísmo", diz ele, "é a rigidez da consciência", ao que a do
helenismo é "a espontaneidade da consciência". Portanto,
os fenômenos espontâneos de Pã - pânico, necessidades
sexuais, pesadelos - são abordados a partir de um ponto
de vista moral. Dizem-nos que devemos lutar no combate
do bem contra estes maus impulsos.
A história ocidental nos deixou duas alternativas
igualmente repugnantes. Ou adoramos um Pã árcade da
Natureza sentimentalizada que ofereceria a libertação
dessa história, ou bem o amaldiçoamos como um demônio
pagão que ameaçaria a civilização com atavismo anár-
quico e outros excessos com rótulos psicológicos, como
a sombra, a atuação, o exibicionismo ou o ido A maneira
22
pela qual cada um de nós responde aos chamados de Pã e
é por ele guiado para o território da "Grécia" depende em
grande parte do matiz cristão que subjazeria nas nossas
atitudes mais íntimas.
Assim, parece que a única possibilidade de se atraves-
sar a ponte rumo à imaginação dos antigos requer que dei-
xemos do lado de cá esses pontos de vista preconceituosos,
enobrecidos como "civilizados", e que seguem repetindo
a morte de Pã, sentimentalizando-o e demonizando-o ao
mesmo tempo.
Rafael Lopez-Pedraza mostrou em "Um Conto de
Dríope e o Nascimento de Pã"B que o renascimento de Pã
e do reino que chamamos de imaginaI, mítico e grego se
inicia com as manifestações de Pã na esfera privada e nas
reações pessoais de cada indivíduo perante seus fenôme-
nos: estupro, masturbação, pânico noturno, sedução das
ninfas e outros eventos induzidos por Pã que nos forçam a
sair de nossos hábitos civilizados. Essas são as maneiras
pelas quais a música de Pã nos alcança. Esses são os cami-
nhos de retorno, a epístrofe para a imaginação. Portanto,
o retorno à Grécia não é nem uma idealização nostálgica,
um romantismo estético, nem um estudo estruturalista
e distante de simbólico. Pelo contrário, trata-se de uma
descida à caverna.
8 Spring, 1976,AnAnnual ofArchetypal Psychology and Jungian Thought,
t76-190. o texto também se encontra no livro Hermes e seus filhos, de Rafael
opez-Pedraza (São Paulo: Paulus, 1999). (N.T.)
23
 o SONHO NO ANO DE 1900

Uma vez que situamos Pã no contexto de um retorno à

Grécia, precisamos agora localizar o pesadelo no contexto
da teoria dos sonhos, particularmente no modo como ela
foi desenvolvida há cem anos, quando a monografia de
Roscher surgiu. Sua monografia pertence ao conjunto de
trabalhos sobre sonhos que Freud tão cuidadosamente
resenhou na primeira seção de seu revolucionário Traum-
deutung. Mas, obviamente, ele não poderia tê-la mencio-
nado lá, visto que esta monografia e o trabalho de Freud
foram publicados em um intervalo de meses de diferença.
Na virada do século, o sonho era um assunto de interesse
de muitos além de Freud. O século XIX viu aparecer uma
infinidade de obras sobre os sonhos, especialmente na
França, na Alemanha e até mesmo nos Estados Unidos.
Em geral, a literatura desse período pode ser classificada
segundo três categorias que, por sua vez, refletem três
distintas abordagens ao sonho correntes na época.
A primeira abordagem era materialista. Ela sus-
tentava que o sonho é um eco na mente dos eventos
psicológicos no corpo. As imagens oníricas são traduções
psicológicas de eventos fisicos. As pesquisas investiga-
vam a origem física dos sonhos em sensações de frio, de
humidade etc., em percepções subliminares e esquecidas,
no óxido nitroso; havia também investigações sobre os

25
estados fisiológicos em estado onírico de modo a tentar
descobrir a origem dos sonhos em eventos somáticos. Essa
visão ainda é contemporânea na medida em que ainda
atribuímos o sonho a algo que comemos, aos estímulos
do último programa visto na televisão, ou ao peso dos
cobertores. O mesmo segue, mas de modo mais sofisti-
cado, quando pensamos, por exemplo, que os correlatos
fisiológicos de nossos estados oníricos (padrões elétricos
de atividade cerebral, mudanças neuro-hormonais ou
circulatórias) são condições necessárias e suficientes
aos sonhos.
O segundo ponto de vista era racionalista. Ele sus-
tentava que o sonho não tem absolutamente nenhum
sentido, pois ele não é mais do que uma espécie de dis-
túrbio das funções mentais produzido pelo relaxamento
durante o sono, como fragmentos de um mosaico que se
desmonta sem o cimento de coesão da vontade consciente
e da capacidade de associar. Desse modo, os sonhos se-
riam aparentados à loucura, amontoados de fragmentos
desprovidos de sentido que em nada diziam respeito ao
sonhador. Portanto, o sonho não constituía um tema digno
de atenção séria, e muito menos de uma investigação cien-
tífica. A terceira, a visão romântica, pode ser encontrada
em meio aos trabalhos de poetas, escritores e pensadores
de inclinação mística - N ovalis, Gerard de Nerval, C,?le-
ridge, Schubert, dos quais fala Albert Béguih em [}Ame
romantique et le rêve. 1 As visões românticas refletiam em
linguagem poética e filosófica a antiga visão religiosa dos
povos arcaicos e tradicionais, segundo os quais, durante
o sono, o espírito ou alma se abrem aos poderes ocultos.
O sonho era uma via de comunicação com os deuses; no
sono, a psique perambulava, recebia intuições e mensa-
gens, podia encontrar os mortos no além. Desse modo, os
1 Paris, edição de 1967.
26
sonhos seriam uma fonte de inspiração e conhecimento.
Eles possuem um significado pessoal e real.
Uma das grandes realizações de Freud foi ter combi-
nado estes três esclarecimentos sobre a vida onírica em
uma única e brilhante teoria. Em acordo com os racionalis-
tas, ele sustentou que o sonho não fazia nenhum sentido,
prima facie. Ele seria, de fato, desprovido de sentido em
estado manifesto, revelando signos de dissociação, distor-
ção e condensação tais como aqueles que se encontram em
uma mente insana. Entretanto, como os românticos, ele
pensava que o sonho podia ser decifrado; o sonho continha
uma mensagem pessoal com sentido para o sonhador e era
a via regia para o "outro mundo", o inconsciente. Ele tam-
bém aceitou, mas em parte, a posição dos materialistas,
pois acreditava que o objetivo último do sonho residia na
psicofisiologia do sono (sono protetor), e sua fonte última
nos estímulos somáticos (tensões sexuais).
A teoria freudiana, através de sua própria elegância
sintética, abriu novas perspectivas, ainda que eclipsasse
outras, sobretudo as experimentais e fisiológicas. Duran-
te os cinquenta primeiros anos que sucederam a Freud,
quase toda a literatura sobre o sonho foi publicada por
psicanalistas. Os novos românticos eram os intérpretes
profissionais do sonho, enquanto o tipo de investigação
sobre o sonho realizada nos laboratórios de psicologia
antes de Freud se reduzia a uma ínfima porcentagem na
literatura sobre o assunto. A interpretação dos sonhos
ascendia em detrimento desse tipo de pesquisa sobre
sonhos. Hoje, as diferentes abordagens unidas por Freud
estão aparecendo novamente, ao passo que a própria
teoria freudiana parece declinar, pois ela não mais as-
segura a coesão racional entre o místico e o material; a
tendência agora parece ser a de abandonar os consultórios
e retornar aos laboratórios como um local de investigação
onírica. Talvez estejamos esperando por uma nova sínte-
27
se, análoga à de Freud no ano de 1900, capaz de abarcar
as interpretações atuais enquanto manifestações de um
substrato arquetípico da personalidade.
O estudo de Roscher sugere um movimento nessa
direção, pois ele une a experiência física à fantasia, o
sonho às manifestações corporais, atrás das quais estaria
a figura de Pão O arquétipo se expressa como um padrão
de comportamento (pânico e pesadelo) e como um padrão
de representação (Efialtes, Pã e seu cortejo). Em outras
palavras, a obra de Roscher também sugere um método
de pesquisa psicossomática fundado na psicologia arque-
típica. Esta pesquisa traria, como fez a pesquisa de Ros-
cher, um lugar primário para os padrões de imaginação
tal como são descritos de maneira precisa pela mitologia.
Por essa razão, sua breve monografia, um estudo mi-
tológico de aparente simplicidade, é uma obra paralela a
Traumdeutung de Freud, na medida em que oferece uma
via de aproximação distinta ao trabalho psicológico do
sonho elaborado por Freud. Roscher vai mais além, até
mesmo quando sua escrita é menos declaradamente psi-
cológica, pois sua abordagem dos eventos do sonho através
de Pã ultrapassa a psico dinâmica pessoal. Pã não pode
ser remetido a nenhum complexo pessoal e não poderia
ser referido por meio de explicações psicológicas. Talvez a
diferença de Roscher para Laistner e o que se tornou, em
última instância, a tradição freudiana da teoria do sonho
possa esclarecer melhor este ponto.
A abordagem de Roscher ao pesadelo tem como ponto
de partida a obra de Ludwig Laistner. Roscher o critica
e desenvolve suas ideias em contraste a Laistner. Ernest
Jones, no entanto, segundo o índice de sua obra On the
Nigthmare,2 referiu-se trinta e uma vezes a Laistner
(trinta e cinco a Freud, e três a Roscher). Embora partes
2 Londres, Hogarlh, 1931.
28
da obra de Jones tenham sido escritas entre 1910 e 1912,
o autor teve tempo suficiente para fazer uso do estudo de
Roscher sobre esse mesmo tema, de maneira que a con-
fiança que Jones deposita em Laistner, e a divergência
entre Roscher e Laistner, indicariam duas visões diferen-
tes do sonho em vigência ainda hoje.
Laistner (3 de novembro de 1845 a 20 de março de
1896) começou primeiramente estudando teologia, para
então mudar-se para o campo dos estudos germânicos, e
editou oito volumes das obras de Goethe em Stuttgard.
Seu interesse estava particularmente na mitologia e na
gramática germânica, e também examinou o folclore e
os contos de fadas, e figuras míticas gregas e de outras
regiões da Europa, inclusive o "Mittagsfrauen" e outros
demónios do meio-dia. Suas ideias sobre o pesadelo estão
presentes em dois volumes ainda não traduzidos , Das
Ratsel der Sphinx (The Riddle of the Sphynx: Fundaments
ofthe History ofa Myth), publicados em Berlim, em 1889.
Sua pesquisa trata principalmente da relação entre os
sonhos, por um lado, e o folclore e contos de fadas, por
outro. A esse respeito, Jones diz:
Nesta obra, ele estudou as características clínicas do Pesa-
delo, e sua ingenuidade extraordinária permitiu remetê-lo
a uma grande quantidade de mitos. Naturalmente na
época (1889), não havia nenhum conhecimento das ca~a­
das inconscientes da mente, de forma que atualmente seu
trabalho tem somente um valor casuístico. Em parte devido
a algumas dificuldades filológicas, a obra de Laistner foi
indevidamente negligenciada por mitólogos, ainda que ela
devesse ser considerada como uma tentativa mais séria
anterior a Freud, de situar a mitologia sobre uma bas~
naturalisticamente inteligível. 3
Parece que a diferença entre Roscher e Laistner ainda
Persiste na psicologia, e não somente no que se refere à
3 Jones, 73.
29
interpretação do pesadelo. Roscher culpa Laistner por sua
tentativa, ainda que fracassada, de fazer do sonho, "em
particular do pesadelo, o princípio fundamental de toda
psicologia". Para Laistner, assim como para Freud e Jones
depois dele, há um fundamento psicológico naturalista
para o mito e a religião. Laistner sublinha o caráter eró-
tico desses sonhos, como mais tarde também farão Freud
e Jones ao reduzir a mitologia e a religião a mecanismos
psicológicos ligados à sexualidade. Roscher, por sua vez,
é primariamente um mitólogo que se recusava a reduzir
o mito a processos intrapessoais.
Até mesmo quando usava as falácias racionalistas
de sua época, é provável que Roscher tivesse aderido, em
relação ao sonho e ao mito, mesmo que de modo distinto
e em uma época diferente, à atitude representada por
Jung, Kerenyi e Eliade. Mito e religião são irredutíveis
aos sonhos, ainda que ambos tenham sua fonte em algo
transpessoal, em uma realidade que não é pessoalmente
humana, mesmo que permaneça humana no sentido ar-
quetípico. Mito e religião constituem aspectos sui generis
da vida, assim como da natureza. Da mesma maneira
que a sexualidade é uma função sui generis da psique
(e não a psique um derivado da sexualidade), também
o são o sonhar, a mitopoese [mythmaking] e as funções
religiosas. Uma fala a respeito da outra e nem por isso se
equivalem. Suas falas são mitos e suas conexões se dão
através de analogias, mas não por virtude de uma raiz
comum. Suas bases não são de ordem naturalista, como
pretendia Jones, pois a natureza é ela mesma uma metá-
fora; assim, para compreender o sonho temos que falar a
sua língua não em termos de conceitos naturais, mas de
imagens. Consequentemente, a metáfora fundamental do
meu ensaio - assim como a de Roscher -, seja do sonho,
seja de Pã, não é "natural", mas "imaginaI".
30
PÃ, O DEUS-BODE DA NATUREZA
A tese de Roscher, em breves palavras, sustenta que
o demônio do pesadelo na Antiguidade é nada menos que
o grande deus Pã em uma de suas muitas formas, e que
as experiências desse demônio eram similares àquelas
observadas pela psiquiatria e pela psicologia em vigência
em sua época. Uma vez estabelecido esse ponto, Roscher
nele se detém. Entretanto, poderíamos ir mais adiante,
concluindo que Pã ainda está vivo. Nossa experiência de
Pã pode ser principalmente encontrada nos distúrbios
psicopatológicos, visto que outros modos de conhecê-lo
foram perdidos em nossa cultura.
Assim, é possível que o encontremos nos consultó-
rios de psicoterapia, onde provas de suas manifestações,
de fato, abundam. 1 Essa conclusão está de acordo com a
tese elaborada em muitos dos meus trabalhos: os deuses
reprimidos retornam como o núcleo arquetípico dos com-
plexos sintomáticos. As relações entre mythos e pathos
constituem somente uma parte da vasta tarefa de explo-
1 Para dois exemplos de Pã na análise junguiana ver MICHEL, R., "Die
Gestalt des Pan und Traüme der Gegenwart", Diss., C. G. Jung-Inst, Zurique,
s/d; e BLOMEYER, R., "Die Konsterllierung der Gegenuberstellung beim Auf-
~auchen archetypischer Traume", Zeitschrift f Analyt. Psychol. u. i. Grenzgebiete,
II, 1, Berlim, 1971.
31
 rar a psicopatologia em termos de psicologia arquetípica.
Uma das implicações dessa psicologia é que a mitologia
se torne uma disciplina indispensável na formação de
psicoterapeutas. O estudo de Roscher, desde seu título,
relaciona a mitologia e a patologia e seria um dos textos
de base para essa formação.
Devido à n.atureza satírica, caprina e fálica de Pã,
tanto a angústia de pânico do pesadelo quanto os seus
aspectos eróticos podem ser subsumidos em uma mesma
figura. No modo como Roscher trata a figura, Pã não é
.uma imagem projetada, uma espécie de complexo psicopa-
tológico criado pela fantasia para expressar a ansiedade
sexual. Sua realidade é de ordem mítica. Ainda que Ros-
cher em algumas ocasiões tenha sido vítima da concepção
racionalista-materialista do sonho tal como apresentada
por Borner (a roupa de cama de pelo de bode e a dispneia
provocariam a experiência de Pã), essa "explicação" do
pesadelo, não obstante, repousa ainda sobre uma epifania
de Pã, sempre permanente como uma vívida realidade
nas páginas de Roscher. O que emerge desse ensaio é um
insight genial: o entrelaçamento, a verdadeira unidade
do mitológico e do patológico.
Quando Roscher discute o pânico e o pesadelo nos
animais, ele mostra estar consciente do nível instintivo
do pesadelo - particularmente, da sexualidade nele
implicada. Observamos em seus escritos a mesma luta
com o "problema sexual" que surgia naquele momento
através de muitos de seus colegas psicólogos contempo-
râneos, Havelock Ellis, Auguste Forel, Ivan Bloch e, é
claro, Freud, para não mencionar a obra dos pintores e
escritores que, no final do século, redescobriam o sátiro
fálico e caprino nas camadas mais profundas das pulsões
humanas e que, tal como fez Freud com Édipo e Roscher
com Pã, expressavam seus insights nas configurações do
mito grego. Patricia Merivale, em seu livro Pan, the Goat-
32
-God: His Myth in Modern Times,2 coletou uma assom-
brosa variedade de exemplos da devoção do século XIX
por Pã, período em que, segundo ela, teria ocorrido seu
apogeu literário. Pã, a propósito, é o personagem grego
favorito da poesia inglesa; em termos de quantidade de
evocação, ele se distancia de seus rivais mais próximos
(Helena, Orfeu e Perséfone) a uma proporção estatística
de quase dois para um.
O mito grego colocou Pã como o deus da natureza.
O termo "natureza" tem sido estudado em pelo menos
cinquenta noções diferentes, de forma que nosso uso do
termo "natureza", aqui, deve ser discernido das qualidades
associadas a Pã, a partir de sua descrição, sua iconografia,
seu estilo de comportamento. Todos os deuses possuíam
aspectos de natureza e podiam ser encontrados na natu-
reza - fatos esses que levariam alguns a concluir que a
antiga religião mitológica era essencialmente uma religião
da natureza, cuja transcendência significaria, por parte do
cristianismo, portanto, a supressão especialmente de Pã, o
representante da natureza, que rapidamente se converteu
no diabo de patas de bode. Para especificar a natureza de
Pã, devemos ver como ele mesmo a personifica, tanto em
S}Ia figura como em sua paisagem externa, a qual é ao
mesmo tempo uma paisagem interior e uma metáfora,
não mera geografia. Seu local de origem, Arcádia, é um
~ocal físico e psíquico. As "cavernas obscuras" onde podia
ser encontrado (o Hino órfico a Pã) foram compreendidas
pelos neoplatônicos 3 como os recessos materiais onde
residem nossas pulsões, os buracos negros da psique de
9nde emergem o desejo e o pânico.
2 Cambridge: Harvard, 1969. Cf. MALINI, Roberto, Pan dio delta selva
CMilão: Ambrosino, 1998), para uma notável antologia de passagens e imagens
clássicas.
R .3 Ver Thomas Taylor the Platonist, selected Writings, editado por Kathleen
ame e G. M. Harper CPrinceton: Princeton UP, 1969,297 ss.).
33
 Seu habitat na Antiguidade, como o de suas formas
romanas posteriores (Fauno, Silvano) e de seus com-
panheiros, eram seI!lpre vales, grutas, água, bosques e
lugares selvagens - nunca vilarejos, nuhcaos -assenta-
mentos cultivados e cercados da civilização; santuários em
cavernas, nunca templos construídos. Ele era o deus dos
pastores, o deus dos pescadores e caçadores, um andarilho
desprovido da estabilidade provida pela genealogia. Os
lexicógrafos do mito atribuem pelo menos yinte filiações
a Pã. 4 Ele bem poderia ser filho de Zeus, de Urano, d-ê
Cronos, de Apolo, de Odisseu, de Hermes ou da corte de
pretendentes de Penélope. Portanto, seu espírito pode
surgir de quase qualquer lugar, produto que é dos inúme-
ros movimentos arquetípicos ou de geração espontânea.
Uma tradição atribui sua paternidade ao Éter, a tênue
substância invisível, porém onipresente, e cujo nome a
princípio significa "céu resplandecente", ou o clima asso-
ciado à hora de Pã durante o meio-dia (ver mais adiante).
Se Pã é inespecífico e espontâneo, por que lhe atribuir
parentesco? Esse questionamento foi feito por Apolodoro
(Fragmento 44b) e por Sérvio (As geórgicas de Virgílio).
Certamente, sua linhagem materna é igualmente
obscura. O principal relato do Hino homérico a Pã e aquele
feito por Kerényi em seu Gods of the Greeks têm Pã por
abandonado a~ Il!lscimento por sua mãe, uma ninfa dos
bosques, e envolto em pele de lebre por seü pai Herines
(ser concebido pb:rHerrnes enfatiza o elemento mercurial
da história de Pã). Hermes leva o bebê para o Olimpo onde
ele é aceito por todos (pan) com prazer. Dioniso adorava-o
especialmente.
Esse mito situa Pã em uma configuração específica.
~m primeiro lugar, ser envolvido em pele de lebre, animal
4 Roscher escreveu um estudo em separado sobre este assunto, Die Sagen
von der Geburt des Pano
34
particularmen~e sa~adop~r Mro~ite, Eros, O mu~do bá- "
quico e a lua, ImplIca sua mserçao nessas assocIações. 5
Sua vestimenta inicial implica uma iniciação nesses uni-
versos; sua adoração por essas estruturas da consciência.
Em segundo lugar, Hermes é seu patrono, o que concede
aspectos herméticos às ações de Pão Elas podem ser
examinadas em busca de mensagens. Elas são modos de
comunicação, conexões que significam alguma coisa. Em
terceiro lugar, o prazer de Dioniso expressa a afinidade
que os une. Estes deuses fornecem um agrupamento ar-
quetípico no qual se encaixa Pã e onde poderíamos esperar
que ele constelasse.
Caberia, agora, uma longa ponderação sobre os mi-
tologemas - "a criança abandonada", "envolto em pele
animal", e "benquisto pelos deuses". Sua exegese, cujos
sentidos são adquiridos mediante sua vivência, pode nos
dizer muito sobre o comportamento que Pã inspira em
nossos momentos de fraqueza e perdição (abandono),
bem como em nossa luxuria erótica, pois, nas entranhas
da promessa de amor que a lebre representa, en~ontra::;se
oculta a natureza não cultivada e selvagem de Pão Prova-
-se rude aquilo que principiou suave, sob a pele "da lebre
se encontra o bode. Ainda assim, os deuses sorriem para
a criança com patas de bode; tomam-no por uma dádiva
à divindade; cada um encontra uma afinidade com Pão
Pã ref:l.ete a todos.
Como o deus de toda a natureza, Pã personifica para
a l?-ºssa consciência o que é só 01I cõ~pletaníente natural,
o Gomportamentoem sua mais estreita ligação comá na~
.t~J.'eza. O naturálmente circunscrito é, de certo"modo tam-
b~m divino. É um comportamento quetrarrscerrde ~ jugo
h~mano dos propósitos, sendo completamente impessoal,
obJetivo e implacável. A causa de tEl~"_c2Ilc1)!ta éohscw.:a; ela
5 Ver LAYARD, J. The Lady ofthe Hare (London, 1944),212-220.
35
surge de repente, espontaneamente. Como a genealogia de
Pã é obscura, a origem do instinto também o é. Defini-lo
como um mecanismo de descarga inato, ou tratá-lo como
um espírito ctônico, um impulso da natureza, é exprimir,
através de conceitos psicológicos obscuros, experiências
obscuras que poderíamos ter atribuído a Pã no passado.
Acima de tudo, devemos nos lembrar de que a ex-
periência de Pã está para além da vontade do sujeito e
de sua psicologia egoica. Até mesmo quando a vontade é
disciplinada ao máximo e o ego tornado o mais resoluto
possível, e aqui eu penso nos homens em campos de ba-
talha, Pã aparece determinado pelo pânico que advém do
embate. Por duas vezes, na Antiguidade (em Maratona
e contra os celtas em 277 a.C.), Pã apareceu e os gregos
foram vitoriosos. Ele foi comemorado junto a Nice (Nike).
A fuga em pânico é uma reação dá. proteção, mesmo que
ém sua cegueira a fuga possa provocar morte em massa.
O aspecto protetor da natureza de Pã é representado não
somente por sua afinidade para com os pastores, ou na raiz
(pan) de "pastor", "pastoral" e pabulum ("nutrição"), mas
também pelo seu papel no treino de Dioniso, quando Pã
carregou o escudo de Dioniso em su!l marcha até a Índia. 6
No mito de Eros e Psique tal como contado por Apu-
leio, Pã protege Psique do suicídio. Inconsolável, sem seu
amor, seu clamor por ajuda divina recusado, a alma entra
em pânico. Psique se atira no rio e ele a rejeita. Neste
mesmo momento de pânico, Pã aparece acompanhado de
outro aspecto refletor, Eco, e faz retornar à alma certas
verdades naturais. Pã é, ao mesmo tempo, protetor e
destruidor, e estes dois aspectos se apresentam à psi-
que em estreita aproximação. Quando somos presas do
pânico, nunca podemos saber precisamente se este será
o primeiro movimento da natureza que dará lugar - se
6 Cf. "Pan" Lexikon de Roscher, 1388-90, para referências de Pã, o Guerreiro.
36
iformoS capazes de escutar o eco da reflexão - a uma nova
icompreensão acerca dela mesma.
~... Como afirma R. Herbing em sua monografia, Pan -
der griechische Bocksgott,7 este deus é sempre um bode e
o bode tem uma força divina. Pã não é "representado" por
um bode, nem este é "sagrado" a Pã; Pã é o deus-bode, e
esta configuração de natureza-animal distingue a natu-
reza ao personificá-la como algo peludo, fálico, errante e
lascivo. A natureza de Pã não é um presente idílico para
os olhos, algo que se possa passar batido, ou junto ao
qual aguardar o retorno da candura. A natureza como
Pã é quente e íntima, é o odor de sua pelugem animal,
de sua ereção, como se a força desobediente e arbitrária
da natureza e o sinistro mistério estivessem sintetizados
nesta única figura.
A "união do deus e do bode" - a expressão é de Niet-
zsche em O nascimento da tragédia - significou para o
mundo pós-nietzscheano um modo de consciência dio-
nisíaco e também a demência final de seu profeta. Mas
embora Nietzsche falasse abertamente do deus-bode, "na
biografia de Nietzsche" escreve Jung,8 "vocês encontrarão
uma prova irrefutável de que o deus ao qual ele se referia
era Wotan".9 Assim, na tentativa de entender a união de
deus e do bode, tal como Merivale constata10 como sendo
"o ponto focal estável de minhas pesquisas", devemos
evitar confundi-lo com o Dioniso de Nietzsche, em cuja
figura escondia-se o Wotan germânico.
Ainda assim, Nietzsche de fato penetra em um dos
enigmas da existência caprina (e são muitos enigmas,
considerando que o bode do senex e o bode espiatório e a
7 Frankfurt a/M.,1949.
B CW 11 § 28.
S : Cf. meu "Dionysos in Jung Writings", Spring 1972 (Nova York/ Zurique:
pnng Publications, 1972), 191-205.
10 Gp. cit., 226.
37
criança dionisíaca e a cabra leiteira nem sequer pertence-
riam a este assunto) quando ele fala do horror da natureza
e do horror da existência individual. Pois o bode solitário
é, ao mesmo tempo, Unidade e solidão, uma existência
nômade e condenada aos espaços vazios, um apetite que
cada vez mais se esvai, seu canto é a "tragédia". Não se
trata do jovial e roliço Pã da estatuária nem de um elfo
flautista chamado Pedro, ou mesmo do "eu emocional e
profundo" do Pã de D. H. Lawrence; mas do Pã do Hino
homérico, que, na tradução renascentista de Chapman, é
chamado de "esquálido e sem amor".
A lascívia, então, é secundária, e a fertilidade tam-
bém; elas surgem da ressecada ânsia pela natureza so-
litária, daquele que sempre é uma criança abandonada
e que, a despeito de todas as suas inumeráveis uniões,
nunca pôde estar unido nem trocar seu casco bifurcado
por patas de lebre. Ele é chamado de "desafortunado no
amor", e nós humanos sentimos sua tristeza na melancolia
da natureza. Há um tom fúnebre nas flautas da natureza,
no qual nos refugiamos nos momentos românticos, enter-
necidos, solitários e desesperados. Pã talvez agradasse
aos deuses, mas nunca chegou a alcançar o Olimpo; ele
copulava, mas nunca se uniu a alguém; ele fazia música,
mas as musas só favoreciam a Apolo.
38
A REALIDADE IMAGINAL
Para compreender Pã enquanto natureza, devemos,
primeiramente, ser compreendidos pela natureza tanto
"fora de nós", da paisagem campestre inabitada que nos
fala em sons e não em palavras, quanto por aquela na-
tureza "dentro de nós", da reação impulsiva (ninguém
recriou melhor este Pã que D. H. Lawrence). Sinistra como
o olhar de um bode, a natureza nos alcança através das
experiências instintivas que Pã personifica. Mas falar em
"personificação" não faria jus ao deus, uma vez que isso
implicaria que o homem cria deuses e que a natureza é
um campo abstrato e impessoal de forças, tal como o pen-
samento a conceberia. Ao contrário: a forma demoníaca
de Pã transforma o conceito de "natureza" em um choque
psíquico imediato.
A tradição filosófica ocidental, desde seu início na
tradição pré-socrática e no Antigo Testamento, tem pre-
terido as imagens (phantasia) de modo preconceituoso
em benefício do pensamento abstrato. Desde Descartes
e do Iluminismo, essa forma de conceituação se mantém
proeminente, e a tendência da psique de personificar tem
sido desdenhosamente intitulada de antropomorfismo.
Um dos principais argumentos contra o modo mítico de
pensar reside no fato de que ele trabalha através de ima-
gens subjetivas, pessoais, sensuais. É exatamente isso que
39
deve ser evitado para a epistemologia ocidental no que se
refere a descrições das forças da natureza. Personificar
significa pensar de modo animista, primitivo, pré-lógico.
Os sentidos enganam; as imagens suscetíveis de transmi-
tir verdades sobre o mundo devem ser purificadas de seus
elementos antropomórficos. As únicas pessoas no universo
são pessoas humanas. E, ainda assim, a experiência dos
deuses, dos heróis, das ninfas, dos demônios, dos anjos e
dos poderes, dos animais sagrados, lugares e coisas como
pessoas precederia o conceito de personificação. Não é que
nós personificamos, mas que as epifanias se manifestam
para nós como se fossem pessoas.
Por acaso poderíamos retroceder no tempo e nos
afastar das pretensões de um ego temeroso que desejaria
colocar cada átomo da natureza sob seu controle? Nesse
caso, nos daríamos conta, mais uma vez, de que não somos
a fonte dos deuses personificados. Nós não os inventamos
mais do que não inventamos os sons que ouvimos nos bos-
ques, nem as pegadas na areia, nem a pressão do pesadelo
pesando em nosso peito.
Por milênios e em quase todas as partes, é bastante
evidente que as figuras divinas e daimônicas surgiam
como pessoas. Mas a Weltanschauung científica, com sua
separação entre observador e observado, nos apartou
dessa evidência, e seu testemunho se converteu em pen-
samento mágico, crenças primitivas, superstição, loucura.
Uma vez que essas figuras imaginais ainda irrompem
ocasionalmente em meio às pessoas mais brilhantes e
educadas, tal como ocorre nos pesadelos, tendemos a
acreditar que essas figuras só poderiam ter sido criadas
por nós. Não podemos conceder-lhes autonomia; pois, do
contrário, o próprio universo científico se transformaria
em pesadelo.
A filologia clássica, seduzida pelo método redutivo da
ciência, rapidamente endossou essa discussão para expli-
40
car essas aparições como "projeções" e "ilusões" criadas
"inconscientemente" por aquele que as percebe. De modo
que ainda encontramos, como na excelente monografia
de Borgeaud, The Cult af Pan in Ancient Greece, l uma
explicação sobre o encontro direto de Fidípides com Pã
(durante o regresso deste mensageiro de Atenas para Ma-
ratona) como "uma simples projeção de seu desejo". "Não
é difícil de imaginar sua tensão, depressão e exaustão no
momento em que, no terceiro dia de corrida constante , ele
encontra o deus Pã."
Ora, da mesma forma que o pesadelo é necessaria-
mente causado por indigestão ou por um edredom muito
pesado, Pã também só poderia ter se originado de uma
disfunção física oriunda de uma corrida de maratona!
Aqui a filologia não só fracassa quanto ao seu tema,
como também nega a autoridade do text0 2 que se dedica
a explicar. Heródoto diz que Pã surgiu para Fidípides, o
chamou pelo nome e lhe transmitiu a mensagem crucial
que salvaria Atenas. Os líderes atenienses acreditaram
em Fidípedes, ganharam a batalha e instituíram o culto
de Pã em Atenas. Seriam os astutos e inteligentes gregos
tão deslumbrados? Por acaso tudo isso só teria vindo à
tona por causa do estado de exaustão mental de um certo
mensageiro que subitamente teve a grande ideia de con-
jurar "Pã" para abençoá-lo com autoridade?
Em sua brilhante, minuciosa e devastadora crítica
sobre a falsificação redutiva do que "realmente aconteceu"
Charles Boer escreve: '
Este foi um dos momentos mais importantes da história da
civilização ocidental, a aparição de um deus com patas de
bode às vésperas de uma batalha que haveria de transfor-
v ~ BORGEAUD, Philippe, The Cult af Pan inAncient Greece (Chicago: Uni-
erslty ofChicago Press, 1988), 133.
2 HERÓDOTO 6, 105.
41
 mar o mundo, com sua mensagem de ajuda demarcando a
fundamental diferença no curso dos eventos que levariam
à salvação da própria democracia. O que ocorre é que atu-
almente não existe ninguém - especialmente mitólogos
profissionais - que se permita, devido às enormes restri-
ções acerca do tema, levar a sério essa história. Seria a
origem da democracia um assunto tão banal assim ou há
algo de errado com os mitólogos?
Pode-se entender a presença de Pã, às vésperas da Ba-
talha de Maratona, "psicologicamente" (de diversas ma-
neiras), pode-se entendê-la "simbolicamente", até mesmo
"historicamente" de uma forma deturpada (conforme a
qual se aceita o fato do resultado, mas toma sua causa
por equivocada). Mas não podemos levá-la a sério. Algo
mais (ou qualquer outra coisa) deve ter ocorrido, dizem
os estudiosos, além do que Fidípides diz ter acontecido.
[... ] Os gregos do inicio do século V a.C. eram, é claro, pri-
vilegiados por considerar Pã como a esplêndida realidade
imaginaI que esse deus era. As figuras imaginais eram
"visíveis" a eles, ouvidas por eles, tocadas por eles. Eles
não estavam, ao menos não sob o ponto de vista deles
inventando-as. 3
É o que precisamente aprendemos com Roscher, ape-
sar de seus próprios escritos. Pois Roscher, assim como
seus contemporâneos (por exemplo, Ameling acerca da
personificação), tendia a conceber Pã como uma incorpo-
ração composta pelas qualidades brutais e terríficas da
natureza, do mesmo modo como suas charmosas ninfas
eram visões da sedução tenra, graciosa e lÍrica da na-
tureza. Mas o quadro conceituaI de Roscher, tomado da
psicologia empirista associacionista (as ideias são feixes
de percepções sensoriais), não concordava com o que
ele havia descoberto em suas descrições empíricas dos
demônios do pesadelo. Elas não são uma reconstrução
dos aspectos assustadores, personificações post hoc de
3 BOER, Charles, "Watch Your Step", Spring: Ajournal af Archetype and
Culture, 59, 1996, 104.
42
sensações provocadas pela roupa de cama. Trata-se de
pessoas vividamente reais.
Dilthey insistia que a personificação era essencial
para uma compreensão humanista que se opusesse à ex-
plicação científica, cujo método requereria conceitualiza-
ção e definição. Lou Andreas-Salomé, seguindo Dilthey,
instou Freud a conservar esse procedimento como essen-
cial ao progresso da psicanálise enquanto uma psicologia
mais humanista do que científica. Jung construiu sua
psicologia sob os arquétipos, os quais, embora passíveis
de descrição conceituaI, podem ser vividos e até mesmo
designados como pessoas. Ademais, Jung foi contrário
à corrente dos tempos, na medida em que defendia as
imagens enquanto dados primários da psique que só pos-
teriormente seriam consideradas, em seu nível sensual
emocional, como os fenômenos empíricos que são, e não
como personificações de ideias abstratas.
' A linguagem do sonho (como demonstra o pesadelo),
a linguagem do delírio e da alucinação, bem como a lin-
guagem da cultura popular, se exprimem em termos de
pessoas. Da mesma forma, assim deve a psicologia fazer
se ela deseja falar à psique em seu próprio discurso. O
movimento de Jung do conceito abstrato à pessoa sensível
corresponde ao movimento do intelecto à imaginação po-
voada por imagens sensórias palpáveis. A monografia de
Roscher - ao insistir quanto à pessoa de Pã - contribui para
a redescoberta do imaginaI que, posteriormente, veio a ser
conhecido como a psicologia do inconsciente, saber cujos
afastamentos metodológicos essenciais em relação à filo-
sofia e à ciência têm sido sua linguagem da personificação.
Um grito percorreu a Antiguidade tardia: "O Grande
Pã está morto". Plutarco assim relatou em "O defeito do
orácu Io"4. O d't
1 o em SI. tornou-se oracular, vindo a significar
4 De def ar. 17.
43
muitas coisas a muitas pessoas em muitas épocas. Mas
uma coisa em especial era anunciada: a natureza estaria
doravante privada de sua voz criativa. Ela não mais era
uma força independente e viva de geração. O que antes
tinha tido alma já não mais tinha, perdida que estava a
relação psíquica com a natureza. Com Pã morto, Eco já
não mais vivia;já não mais podíamos captar a consciência
através de seu reflexo em nossos instintos. Eles haviam
perdido sua luz e facilmente caíram no asceticismo, seguin-
do seu novo pastor, Cristo, de modo gregário e desprovido
de qualquer tipo de instinto rebelde, com seu novo estilo.
de cuidado. A natureza não mais nos falava - ou talvez
não mais pudéssemos escutá-la. A pessoa de Pã, o media-
dor, tal qual o éter que envolvia invisivelmente todas as
coisas naturais com um significado pessoal, com brilho,
desapareceu. As pedras se tornaram somente pedras - e as
árvores, árvores; coisas, lugares e animais não mais eram
este ou aquele deus, mas se transformaram em "símbolos"
ou foram designados como "posses" deste ou daquele deus.
Quando Pã está vivo, a natureza também está, ela está
repleta de deuses, de maneira que o arrulho da coruja
é Atenas e o molusco na orla é Afrodite. Esses pedaços
da natureza não são meramente atributos ou bens. Eles
são os deuses em suas formas biológicas. E onde melhor
encontrar os deuses do que nas coisas, nos lugares e nos
animais nos quais habitam? Como melhor participar deles
do que através de suas representações naturais concretas?
Seja lá o que fosse comido, cheirado, pisado, ou olhado,
eram todos presenças sensuais do significado arquetípico.
Uma vez que Pã está morto, a natureza pode ser
controlada pela vontade do novo deus, o homem, mode-
lado à semelhança de Prometeu ou Hércules, que pode
criar a partir dela e contaminá-la inescrupulosamente.
(Hércules, quem primeiro limpou o mundo natural de Pã,
combinando instinto com força de vontade, nem sequer
44
parou para limpar também as carcaças desmembradas
deixadas para apodrecer após seus trabalhos civilizató-
rios e criativos. Ele se dirige a passos la:gos rumo a sua
próxima tarefa e derradeira loucura.) A medida que o
ser humano perde contato pessoal com a natureza e os
instintos personificados, a imagem de Pã e a imagem do
Diabo se confundem. Pã nunca morreu, observam muitos
comentadores de Plutarco, ele foi recalcado. Consequen-
temente, tal como sugerido acima, Pã ainda vive, e não
meramente na imaginação literária. Ele vive no retorno
do recalcado, nas psicopatologias do instinto que se im-
põem, como diz Roscher, primariamente no pesadelo e
nas qualidades eróticas, demoníacas e do pânico que lhe
são associadas.
Dessa maneira, o pesadelo realmente oferece a pista
para uma reaproximação da natureza morta, perdida.
No pesadelo, a natureza recalcada retorna, tão próxima,
tão real que não poderíamos fazer mais do que reagir a
ela naturalmente, isto é, nos tornando totalmente físicos
e possuídos por Pã, urrando, pedindo por luz, conforto,
contato. A reação imediata é uma reação demoníaca. O
instinto nos faz retornar ao instinto.
45
 o "INSTINTO"

Como muitos dos termos psicológicos que usamos

diariamente - alma, humano, emoção, espírito, consci-
ência, sentimento -, o instinto é mais uma metáfora,
mesmo sob sua roupagem conceituaI, do que um conceito.
Talvez seja uma ideia no sentido original do termo, que
é derivado de "ver", de modo que, por meio da palavra
"instinto", somos capazes de ver determinados tipos de
comportamento, tanto olhando do exterior como observa-
dor quanto do interior como participante. Há demasiada
tinta - e leite - derramada sobre o instinto, o que faz com
que o tomemos como uma inteligência primordial que co-
nhece mais sobre a vida do que poderíamos aprender, ou
como o contrário de inteligência, algo mecânico, arcaico,
algo desprovido da possibilidade de transformação. Ao
instinto, o melhor e o pior da natureza humana foram
atribuídos - e isso nos sugere a tônica de nossa aproxima-
ção aqui. Pois, se Pã é o deus da natureza "dentro de nós",
então ele é o nosso instinto. Mas, novamente, uma vez que
todos os deuses compartilham da natureza e encontram
sua mimese na natureza humana, em nossos modelos
de fantasia, de pensamento e de comportamento, é óbvio
que Pã não poderia ser toda forma de instinto porque
ele não é todos os deuses. Quais aspectos do instinto ele
é, ou de quais aspectos da natureza ele é assemelhado,

47
podem somente ser discernidos a partir de um estudo de
sua fenomenologia.
Uma corrente importante de pensamento sustenta
que o comportamento instintivo é caracterizado princi-
palmente pela compulsão, frequentemente chamada de
"reação tudo-ou-nada". Para além dos processos biológicos
primários - tropismos, ingestão e eliminação, reprodução,
crescimento celular, divisão e morte etc. -, a vida animal,
no que se refere ao comportamento, move-se automatica-
mente entre os dois polos de aproximação e retirada. Uma
polaridade básica de ritmo orgânico tem sido apresentada
repetidamente ao longo dos séculos. É sempre a mesma ~
única ideia arquetípica sobre o ritmo da vida natural que
ocorre naqueles pares intitulados por diferentes teóricos e
em diferentes épocas, como: acessum / recessum, atração e
repulsão, Lust / Unlust, diástole/sístole, introversão/extro-
versão, compulsão/inibição, fusão/separação, tudo-ou-nada
etc. Sob a dominação dos "mecanismos de desencadeamen-
to inato" (como o instinto é também frequentemente cha-
mado), padrões de aproximação e de retirada se tornam
compulsivos, indiferenciados, irrefletidos.
As duas concepções opostas do instinto - a de que ele
é inteligente e a de que ele não é - foram combinadas na
teoria de Jung. Ele descreve dois fins para o comporta-
mento instintivo: de um lado, um padrão comportamental
arcaico e compulsivo e, do outro lado, imagens arquetípi-
caso Desse modo, o instinto age e, ao mesmo tempo, forma
uma imagem de sua ação. As imagens desencadeiam
ações; as ações são padronizadas pelas imagens. Conse-
quentemente, qualquer transformação das imagens afeta
os padrões de comportamento, de maneira que aquilo que
fazemos com nossa imaginação é de relevância instintiva.
Meta o mundo, como alquimistas, místicos e neoplatônicos
acreditavam, mas não exatamente do modo mágico como
imaginaram. Porque as imagens pertencem ao mesmo
48
continuum como instinto (e não como sublimações dele),
aS imagens arquetípicas são partes da natureza e não são
:meramente fantasias subjetivas "de nossa mente".
A figura de Pã tanto representa a compulsão intelec-
tual quanto oferece o meio no qual a compulsão pode ser
:modificada através da imaginação. Ao trabalharmos com
a i:maginação, nós participamos da natureza. O método
desse trabalho, contudo, não é tão simples quanto as apa-
rências deixariam supor, pois não se trata unicamente de
uma atividade da mente ou da vontade consciente, embora
elas tenham um papel a desempenhar. A modificação do
comportamento compulsivo requer outra função psíquica
sobre a qual discutiremos posteriormente a respeito dos
amores de Pão Primeiramente, devemos olhar mais aten-
tamente para a compulsão.
Já no Hino órfico (Taylor), encontramos a compulsão
na descrição de Pã, na qual, por duas vezes, lhe for conferi-
do o epíteto de "fanático" e, no Hino homérico (Chapman),
pode-se ler que ele escala cada vez mais alto e "não des-
cansa nunca". Essa mesma compulsão fanática aparece
no comportamento a ele atribuído: pânico, estupro - e o
pesadelo.
Os dois polos da sexualidade e do pânico, que podem
instantaneamente permutar ou desencadear um ao outro,
exibem os extremos compulsivos mais crassos de atração
e repulsão. O pânico nos faz fugir às cegas em profun-
da desordem, e a sexualidade nos faz abraçar de modo
igualmente cego o objeto com o qual desejamos copular.
Pã, como mestre da natureza "dentro de nós", domina
as reações sexuais e também aquelas de pânico e está
localizado nesses dois extremos. Sua divisão interna nos
é apresentada no Hino homérico através das "regiões" as-
sombradas por ele - os cumes rochosos e cobertos de neve
e os vales suaves (e cavernas) -, e, em nível mitológico,
através do Pã fálico, perseguidor da ninfa que foge tomada
49
podem somente ser discernidos a partir de um estudo de
sua fenomenologia.
Uma corrente importante de pensamento sustenta
que o comportamento instintivo é caracterizado princi-
palmente pela compulsão, frequentemente chamada de
"reação tudo-ou-nada". Para além dos processos biológicos
primários - tropismos, ingestão e eliminação, reprodução,
crescimento celular, divisão e morte etc. -, a vida animal,
no que se refere ao comportamento, move-se automatica-
mente entre os dois polos de aproximação e retirada. Uma
polaridade básica de ritmo orgânico tem sido apresentada
repetidamente ao longo dos séculos. É sempre a mesma é
única ideia arquetípica sobre o ritmo da vida natural que
ocorre naqueles pares intitulados por diferentes teóricos e
em diferentes épocas, como: acessum / recessum, atração e
repulsão, Lust / Unlust, diástole/sístole, introversão/extro-
versão, compulsão/inibição, fusão/separação, tudo-ou-nada
etc. Sob a dominação dos "mecanismos de desencadeamen-
to inato" (como o instinto é também frequentemente cha-
mado), padrões de aproximação e de retirada se tornam
compulsivos, indiferenciados, irrefletidos.
As duas concepções opostas do instinto - a de que ele
é inteligente e a de que ele não é - foram combinadas na
teoria de Jung. Ele descreve dois fins para o comporta-
mento instintivo: de um lado, um padrão comportamental
arcaico e compulsivo e, do outro lado, imagens arquetípi-
caso Desse modo, o instinto age e, ao mesmo tempo, forma
uma imagem de sua ação. As imagens desencadeiam
ações; as ações são padronizadas pelas imagens. Conse-
quentemente, qualquer transformação das imagens afeta
os padrões de comportamento, de maneira que aquilo que
fazemos com nossa imaginação é de relevância instintiva.
Meta o mundo, como alquimistas, místicos e neoplatónicos
acreditavam, mas não exatamente do modo mágico como
imaginaram. Porque as imagens pertencem ao mesmo
48
continuum como instinto (e não como sublimações dele),
as imagens arquetípicas são partes da natureza e não são
meramente fantasias subjetivas "de nossa mente".
A figura de Pã tanto representa a compulsão intelec-
tual quanto oferece o meio no qual a compulsão pode ser
modificada através da imaginação. Ao trabalharmos com
a imaginação, nós participamos da natureza. O método
desse trabalho, contudo, não é tão simples quanto as apa-
rências deixariam supor, pois não se trata unicamente de
uma atividade da mente ou da vontade consciente, embora
elas tenham um papel a desempenhar. A modificação do
comportamento compulsivo requer outra função psíquica
sobre a qual discutiremos posteriormente a respeito dos
amores de Pão Primeiramente, devemos olhar mais aten-
tamente para a compulsão.
Já no Hino órfico (Taylor), encontramos a compulsão
na descrição de Pã, na qual, por duas vezes, lhe for conferi-
do o epíteto de "fanático" e, no Hino homérico (Chapman),
pode-se ler que ele escala cada vez mais alto e "não des-
cansa nunca". Essa mesma compulsão fanática aparece
no comportamento a ele atribuído: pânico, estupro - e o
pesadelo.
Os dois polos da sexualidade e do pânico, que podem
instantaneamente permutar ou desencadear um ao outro,
exibem os extremos compulsivos mais crassos de atração
e repulsão. O pânico nos faz fugir às cegas em profun-
da desordem, e a sexualidade nos faz abraçar de modo
igualmente cego o objeto com o qual desejamos copular.
Pã, como mestre da natureza "dentro de nós", domina
as reações sexuais e também aquelas de pânico e está
localizado nesses dois extremos. Sua divisão interna nos
é apresentada no Hino homérico através das "regiões" as-
sombradas por ele - os cumes rochosos e cobertos de neve
e os vales suaves (e cavernas) -, e, em nível mitológico,
através do Pã fálico, perseguidor da ninfa que foge tomada
49
pelo pânico. Ambos pertencem ao mesmo tema arquetí-
pico e se constituem como seu núcleo. Esses dois modos
de comportamento de Pã representam a ambivalência
inerente ao instinto, aparecendo também em sua imagem,
como comenta Platão em Crátilo 480 C: é grosseiro, rude
e obsceno em sua parte inferior, liso e ornado de chifres
espirituais na sua parte superior.
A despeito de seu caráter natural, Pã é um monstro.
É uma criatura que não existe no mundo natural. Sua na-
tureza é inteiramente imaginaI, de modo que deveremos
também entender o instinto como uma força imaginaI e
não somente concebê-lo literalmente, ao modo das ciências
naturais ou de uma psicologia que se quer fundada sobre
a ciência ou a metabiologia. Paradoxalmente, os impulsos
mais naturais não são naturais, e a mais instintivamente
concreta de nossas experiências é imaginaI. É como se a
existência humana, mesmo em seu nível vital mais bási-
co, fosse uma metáfora. Se o comportamento psicológico
é metafórico, então, para compreendê-lo, devemos nos
voltar às metáforas dominantes da psique. Desse modo,
poderemos aprender tanto sobre a psicologia do instinto
nos ocupando de suas imagens arquetípicas quanto apren-
deríamos se nos ocupássemos da pesquisa fisiológica,
animal e experimental.
50
L
o PÂNICO
Conviria, a esta altura, dizer algo a respeito da na-
tureza do medo. Psicólogos desde São Tomás e Descartes
constatam que o medo seria um suposto afeto primário,
concepção também confirmada por fisiologistas e biólogos
especializados em comportamento animal. Cannon o in-
vestigou como uma de suas quatro reações fundamentais,
e Lorenz o considerava como um dos quatro complexos
impulsivos de base.
A abordagem tradicional do Ocidente ao medo é
negativa. No que se refere às atitudes de nosso ego he-
roico, o medo, como muitos outros afetos e suas imagens,
é acima de tudo considerado como um problema moral a
ser superado com coragem, como diria Emerson, ou com
"a coragem de ser" na "era de ansiedade", nas palavras de
Tillich. O medo deve ser enfrentado e gerido pelo herói em
seu caminho rumo à masculinidade, e um encontro com o
medo tem um papel principal em todas as cerimônias de
iniciação. Em razão da primeira reflexão de nossa cultura
sobre a psique ser habitualmente moral, o valor psicoló-
gico do medo tende a ser prejudicado, quando não total-
mente ocultado, em nossas perspectivas. A abordagem
moral para eventos psicológicos está tão profundamente
enraizada em nós que a psicologia teve de se reportar à
51
fisiologia e ao estudo de animais para encontrar uma via
isenta de moralismo.
Ainda que a fisiologia reconheça a função protetora do
medo, a emoção do medo é geralmente considerada como
um acompanhamento dos padrões instintivos de fuga ou
desses mesmos padrões bloqueados e retidos no seio do
organismo. Essa inibição do comportamento motor, junto
a uma excitação intensificada e prolongada do organismo
(sistema neurovegetativo e ativação neuroendócrina-quí-
mica), é chamada de "ansiedade". Em termos simples, há
duas faces para o pânico: aquela que é vivida em relação
a um estímulo e é chamada de medo; e aquela mantida'
por nenhum estímulo conhecido, e chamada de ansieda-
de. O medo tem um objeto; a ansiedade não. Pode haver
um medo da ordem do pânico, uma fuga em desespero,
digamos; pode haver uma ansiedade da ordem do pânico,
como em um sonho. Em ambos os casos, o resultado pode
ser a morte. Relatos de caso na psicanálise e na psicosso-
mática, bem como as pesquisas sobre o sonho e os estudos
antropológicos (por exemplo, a morte vodu), proporcionam
exemplos das consequências fatais do pânico.
O sonho de ansiedade pode ser distinguido do pe-
sadelo no sentido clássico do termo. O pesadelo clássico
consiste em uma visitação aterradora de um demônio
que fortemente oprime o sonhador até paralisá-lo, lhe
corta o fôlego, de forma que a libertação viria através da
movimentação. O sonho de ansiedade é menos preciso,
no sentido de que não há nenhum demônio, nenhuma
dispneia, mas, ainda assim, experimenta-se a mesma
inibição de movimento.! Um protótipo literário do sonho
de ansiedade, enfatizando uma peculiaridade inibitória
1 Uma coleção desses sonhos é dada por WEIDHORN, M., "The Anxiety
Dream in Literature from Homer to Milton", Studies in Philology 64 (ChapeI
Hill: University ofNorth Carolina Press, 1967),65-82.
52
do movimento, ocorre na Ilíada (Aquiles perseguindo
Beitor):2
Como em um sonho, não podemos perseguir um fugitivo,
um não pode fugir do outro, nem o outro o pode seguir,
assim um não pode alcançar o outro com seus pés e o outro
não pode escapar.
Alguns teóricos da emoção poderiam usar o sonho de
ansiedade como evidência para a visão de que a ansiedade
é medo inibido, um padrão de fuga retido no seio do orga-
nismo, como se o instinto fosse dividido em dois pedaços:
ação e emoção. Durante o sonho de ansiedade, quando a
ação está impedida, a emoção se torna mais intensa. A
ansiedade, estando em sonhos ou não, permanece, nessa
perspectiva por demais positivista e behaviorista, como
uma reação substituível, secundária e inadequada. Se
ousássemos levantar armas contra esse mar de problemas,
cairíamos de pronto muito doentes.
A filosofia existencialista contemporânea confere à
ansiedade, terror ou Angst, uma interpretação mais in-
tencional e opressiva. Angst revela a situação ontológica
fundamental do homem, sua conexão com o não-ser, de
maneira que todo o medo não é simplesmente pavor da
morte, mas do nada sobre o qual todo o ser repousa. Desse
modo, o medo se torna o reflexo na consciência de uma
realidade universal.
O budismo vai ainda mais longe: o medo é mais do
que um fenômeno subjetivo e humano. O mundo inteiro
está em medo: árvores, pedras, tudo. E Buda é o redentor
do mundo em medo. Daí a importância do mudra (gesto
com as mãos) do não temer: não um sinal de mero recon-
forto, mas da total redenção do mundo de seu "terror e
tremor", de sua escravidão ao Angst. O amor perfeito de
2 Ilíada, xxii, 199-201.
53
Buda, à moda das palavras dos Evangelhos, "livrar-nos-
-ia do medo".
Para misturar ainda mais os contextos, digamos que
o mundo da natureza, o mundo de Pã, está em um estado
contínuo de pânico subliminar, assim como está em um es-
tado contínuo de excitação sexual subliminar. Assim como
o mundo é criado por Eros e mantido por esta força cos-
mogónica e carregada de desejo libidinal que é Pã - uma
visão arquetípica mais recentemente apresentada por
Wilhelm Reich -, seu outro aspecto, o pânico, reconhecido
por Buda, pertenceria à mesma constelação. Novamente
retornamos a Pã e aos dois extremos do instinto.
Brinkmann3 já havia apontado para a falência de
todas as teorias do pânico que lidam com ele em termos
sociológicos, psicológicos ou históricos e não através de
seus próprios termos. Os termos apropriados, diz Brink-
mann, são mitológicos. Devemos seguir o caminho traçado
por Nietzsche, cuja exploração dos tipos de consciência e
comportamento através de Apolo e Dioniso bem poderia
ser estendida a Pão O pânico, então, não seria mais consi-
derado como um mecanismo fisiológico de defesa, ou uma
reação inapropriada ou um abaissement du niveau mental,
mas será visto como uma resposta adequada ao numinoso.
A fuga cega contribui para a abertura de uma brecha para
além da segurança protetora e em direção ao "deserto mis-
terioso da existência elementar". O pânico sempre existirá,
pois está enraizado na natureza humana enquanto tal.
Por essa razão, segundo Brinkmann, seu governo deve
obedecer a um ritual, procedimento mitológico gestual
e musical (agora nos vem à memória o som das flautas
em batalhas, e que, em numerosas pinturas de Pã, seu
instrumento não é uma flauta de Pã, mas um trompete).
3 BRINKMANN, D., "Neue Gesichstpunkte zur Psychologie der Panik,"
Schweiz Zeitschrift für Psychol., 3, 1944,3-15.
54
Com efeito, a enumeração dos pânicos animais que
Roscher faz retira a discussão do nível humano e psico-
lógico em sentido estrito para levá-la a hipóteses mais
universais, como. aquelas oferecidas por existencialistas ,
budistas e a pSIcologia arquetípica exibida por Pão Se
porventura aceitamos as evidências citadas por Roscher,
que descrevem o terror de Pã como uma forma de infec-
ção psíquica acometendo, ao mesmo tempo, homens e
animais, então provavelmente estaríamos diante de um
acontecimento arquetípico que ultrapassaria a psique
unicamente humana e colocaria o pânico do pesadelo no
lugar mais profundo da experiência instintiva que o ho-
mem divide com os animais. Mas, que o homem a divida
com as árvores, as pedras e o cosmos em seu conjunto
isso ainda não sabemos. '
Se o pânico nos animais não é substancialmente di-
ferente do pânico que encontramos entre os homens e
A • ,
se o pamco está na raiz do pesadelo, então a hipótese
formulada por Jones não basta. Pois nem sequer o mais
atrevido dos freudianos teria estendido a universalidade
?o complexo de Édipo e da repressão do desejo/medo do
mcesto do pastor à ovelha. As hipóteses psicológicas de
Freud se limitam ao mundo humano (mesmo quando sua
met~psicologi~ de Eros nos leva na mesma direção que
seguImos aqUI). Roscher, ao contrário, alargou o campo
dos fenómenos de pânico para além do humano.
. A hipótese Freud/Jones explica o pesadelo no plano
mtrapsíquico: o desejo recalcado retorna como ansiedade
dem?níac~. Mas Roscher abre caminho para uma pers-
~ec~lVa mItológica~ o demónio instiga tanto desejo quanto
nSIedade. Um nao se converte no outro, pela ação da
censura freudiana, da hidrostática mecânica de libido
represada e da distorção onírica segundo a fórmula:
~ intensidade d~ ~edo é proporcional à culpa dos desejos
Incestuosos repnmIdos que buscam uma gratificação ima-
55
 ginária, cuja contrapartida é o orgasmo - frequentemente
provocado por uma masturbação involuntária. Se o desejo
não estivesse em estado de repressão, não haveria medo, e
a consequência seria um simples sonho erótico. 4
Isso somente nos levaria a crer que o pesadelo é do-
entio, resultado de uma psique defeituosa. Reformulando
a questão através de uma paródia reichiana de uma ideia
mais antiga: o orgasmo perfeito livrar-nos-ia do medo.
A visão que elaboramos neste ensaio centrado em Pã
e em seu papel no pesadelo retoma numerosos fenômenos
relatados por Jones, mas toma-os por evidência de outra
hipótese. A ansiedade não é o resultado secundário da
sexualidade subliminar; a ansiedade e o desejo são centros
gêmeos do arquétipo de Pão Nenhum é primário. Ambas
são qualificações sensuais dos polos mais abstratos do
instinto, que se movem por entre tudo-ou-nada, accessum /
recessum, Lust e Unlust.
O próprio Jones traz evidências adicionais à ideia
de que a ansiedade e a sexualidade aparecem juntas, o
que pareceria contradizer a sua própria fórmula. Como
Roscher, ele se refere a Bõrner:
Em algumas vezes, os sentimentos voluptuosos são
acompanhados daqueles com Angst; especialmente nas
mulheres, que acreditam frequentemente que um demônio
noturno copulou com elas (como nos tribunais das feiticei-
ras). Os homens têm sensações análogas pro~enientes da
pressão exercida sobre os genitais, geralmente seguidas
por emissões seminais. 5
A esse respeito, é importante lembrar-se do quão frequente
é um traço de voluptuosidade nos ataques de Angst dos
estados de vigília: de fato, isso se transforma em emissão
real durante um ataque, fenômeno cuja atenção foi inicial-'
4 JONES, 343.
5 JONES, 46.
56
mente notada por Loewenfeld, no caso dos homens, e por
Janet, no caso das mulheres. 6
Desde o tempo de Jones e dos outros autores por ele
mencionados, uma prodigiosa energia tem sido dedica-
da à investigação das correlações entre a sexualidade
fisiológica e os sonhos. Sabemos, hoje em dia, através
da obse,:vação ~aboratorial de sonhadores humanos, que
as ereçoes pemanas vêm e vão durante o sono de uma
maneira rítmica em acordo com a curva do sonho. Mas
essas investigações, ao invés de nos facilitar a compre-
ensão da relação existente entre sonho e sexualidade
só nos convenceram de que esse domínio é ainda mai~
complexo do que se havia imaginado com Freud e Jones.
A relação entre o conteúdo abertamente sexual do sonho
e a excitação sexual fisiológica (ou sua ausência) as su-
tilezas psicológicas e fisiológicas das emissões noturnas
a pe~i?dicidade d~ ritmo sexual (tanto psíquica quant~
somatIca), as qualIdades da sexualidade psíquica em ter-
mos de con~telações arquetípicas específicas (por exemplo,
se a fa~ta~Ia governante é apolínea, priápica, narcísica,
e ~or aI :aI), a relação entre a fisiologia da ansiedade e a
pSICologIa do recalque, ou ainda, a natureza da repressão,
e aquela do orgasmo "adequado" - todos esses enigmas
~er~anece~ tão mudo~ qu~nto antes; e, certamente, não
der~o reSOlVIdos. por SImplIficações psicodinâmicas que
envam de teonas que não correspondem à psique em
sua complexidade.
Ansiedade e sexualidade são palavras que cobrem
;:ma g~ma imensamente sofisticada de experiências. Além
~ maIS, essas palavras não só abarcam experiências que
~:~ ~e reduzem ~ açõ~s e reações, mas que são também
aforas para sItuaçoes em que o consciente é governado
6 Ibid., 49.
57
por fantasias arquetípicas. De fato, as ações e reações são
elas mesmas parte de um padrão metafórico e somente se
dotam de sentido no seio desse padrão, sempre exprimindo
algo mais sensualmente qualificado do que as definições
de ansiedade e sexualidade. Um desses padrões metafó-
ricos nos é fornecido por Pão Ao colocarmos a ansiedade,
o medo ou o pânico nesse pano de fundo, provavelmente
não resolveremos a questão "o que é medo?", em si mes-
ma uma pergunta dúbia, se não carente de sentido, mas
sem dúvida poderemos nos aproximar da compreensão
de certos tipos de experiências para as quais utilizamos
esse termo e, desse modo, conseguiremos precisar a in-
tencionalidade do medo.
Jung, em seus Seminários, discute ocasionalmente
o problema do medo, considerando-o como uma via legí-
tima por onde seguir. Ele parecia querer dizer que só se
vai aonde se teme, mas não à maneira do herói, que vai
onde está seu dragão para vencê-lo. Mas o medo, como
um padrão instintivo de comportamento, como parte da
"sabedoria do corpo", utilizando a expressão de Cannon,
nos proporciona uma conexão com a natureza (Pã) igual
à fome, à sexualidade ou à agressividade. Tal como o
amor, o medo pode tornar-se um chamado à consciência;
encontramos o inconsciente, o desconhecido, o numinoso
e o incontrolável quando mantemos contato com o medo,
que eleva o pânico instintual e cego da ovelha perante o
terror sagaz, astuto e reverencial do pastor.
Quando Jung diz que devemos reaprender a ter medo,
ele retoma um fio da meada do Antigo Testamento, "o co-
meço da sabedoria é o medo do Senhor", e lhe dá uma nova
forma. Agora, a sabedoria é aquela do corpo que entra em
relação com o divino, como o pânico com Pã, com a mesma
intensidade descrita nas visões sexuais dos santos. Pois,
onde há pânico, há também Pão Quando a alma entra em
pânico, como na história do suicídio de Psique, Pã revela
58
a si mesmo como a sabedoria da natureza. Ser destemido,
desprovido de ansiedade, de pavor, inacessível ao pânico,
significaria a perda do instinto, uma perda da relação
com Pão Os destemidos têm seus escudos; contam com
construções que os previnem de emergências, padrões de
sobressalto mantidos à distância como um meio sistemá-
tico de defesa.
Em outras palavras, pegando emprestadas as formu-
lações de Jones, o pânico e a paranoia podem ser inver-
samente proporcionais. Quanto mais suscetíveis somos
ao pânico instintivo, menos eficazes são nossos sistemas
paranoicos.Ademais, como primeiro corolário, a dissolução
de qualquer sistema paranoico levará ao pânico. Como
segundo corolário, as afirmações psicanalíticas acerca
da paranoia e do medo da homossexualidade podem ser
expandidas para mais além do domínio erótico e incluir
o outro núcleo implícito do arquétipo de Pã, o pânico. E,
como terceiro corolário, qualquer complexo que provoque
pânico não foi integrado em uma construção e não deveria
sê-lo. Portanto, qualquer complexo que provoque pânico
é ~ via regia para o desmantelamento das defesas para-
nOlcas. Essa é a via terapêutica do medo. Ela leva para
fora dos muros da cidade, para o meio do campo. Para as
terras de Pão
O pânico, sobretudo à noite quando a escuridão cai
s?bre. a cidade e quando o ego heroico dorme, é uma parti-
C~patLOn mystique direta com a natureza, uma experiência
fun~amental, até mesmo ontológica, de um mundo vivo e
t:rnficante. Os objetos se tornam sujeitos; movem-se Om
VIda. enquanto estamos paralisados pelo medo. Quarido
a eXIstência é experimentada através de níveis instinti-
~os do medo, da agressão, da fome ou da sexualidade as
~magens se carregam de uma vida irresistível que lhes
e própria. O imaginaI nunca é tão vívido como quando
estam os 1·Igad os ms
. t·mtIvamente
. a ele. O mundo vivo,
59
naturalmente, é animismo. Que este mundo vivo seja
divino e perfilado por diversos deuses, com seus atributos
e características, é panteísmo politeísta. Que o medo, o PÃ E A MASTURBAÇÃO
terror e o horror sejam naturais, é sabedoria. Segundo
Whitehead, Pã significa "natureza viva", e o pânico abre
uma porta para essa realidade.

oartigo de Roscher sobre Pã no Lexikon afirma

que o deus inventou a masturbação. Roscher se refere
a Amores de Ovídio l, 5, 1 e 26 e a Catulo 32, 3; 61, 114.
Contudo, sua principal fonte é Dião Crisóstomo (ca. 40-
112 d.C.) que, em seu sexto discurso, cita Diógenes como
testemunha (Diógenes era aquele filósofo cínico grego que
supostamente se masturbava em público).
Uma segunda e indireta conexão entre Pã e a mas-
turbação nos é dada por J ones na análise etimológica de
mare (também analisada por Roscher), o demônio notur-
no "esmagador" e opressor retido na palavra nightmare
[pesadelo]. Jones vê que os sentidos contidos na raiz MR
são "uma alusão evidente à masturbação".l
A soma de informações que temos acerca da mas-
turbação demonstra que, histórica e antropologicamen-
te, trata-se de uma prática largamente difundida. Nós
também sabemos que ela ocorre em certos animais supe-
riores (não somente em condição de cativeiro) e que ela
se estende na biografia do ser humano da infância até a
velhice, isto é, precedendo as outras atividades genitais e
continuando por um longo tempo depois que elas cessam.
Nos adultos, a masturbação é praticada paralelamente

1 Op. cit., 332.

60 61
ao seu suposto comportamento sexual, nunca a ele ser-
vindo como um mero substituto. Ela é espontaneamente
descoberta (por animais, bebês e crianças pequenas) e,
ademais, é a única atividade sexual praticada solitaria-
mente.
Ao considerarmos a relação entre figura mitológica
e ato psicológico, devemos, antes de tudo, deixar de lado
simplificações redutivas usuais que tentam explicar os
termos desconhecidos de uma associação psicomitoló-
gica em termos do senso comum. Não estamos lidando
meramente com a irrupção de uma urgência sexual que.
ocorre na solidão de caçadores, pescadores, guerreiros,
cavaleiros e suas esposas solitárias; não estamos mera-
mente mitologizando o que nossa fantasia sugere acerca
dos hábitos sexuais dos pastores durante a hora da sesta,
nem associando Pã à masturbação como outra maneira de
dizer que o bode diabólico e inumano que se esconde na
natureza humana há de se exprimir não importa como.
Mas, ao contrário, atribuir a masturbação a Pã é psico-
logicamente apropriado, até mesmo necessário, uma vez
que ela fornece um paradigma para aquelas experiências
que chamamos de instintivas, em que compulsão e inibição
se unem. A psicologia da masturbação clarifica as ideias
anteriormente apontadas a respeito dos dois polos do
comportamento instintivo.
Como já elaborei em outro lugar, 2 a masturbação
reúne dois aspectos do espectro instintivo: de um lado, o
impulso; do outro, a consciência moral e a fantasia que
acompanham e desviam esse impulso. Por muito tempo
confundimos a vergonha associada à masturbação com
uma proibição social, isto é, com uma autoridade censora,
internalizada. Durante muito tempo julgamos a mastur-
2 "Toward the Archetypal Model for the Masturbation Inhibition", Loose
Ends (Dallas: Spring Publications, 1975).
62
.L
bação nociva, pois ela ~ão serve a nenhum ~m_observável.
Biologicamente, el~ nao promove"a proc~laçao, de modo
ue ela não deverIa ser "natural ; emocIOnalmente, ela
~ãO favorece relacionamentos, de modo que ela deveria
ser "autoerótica" e desprovida de amor; socialmente, ela
não conduz a libido rumo ao nexo social, de modo que
ela deveria ser anômica, esquizoide e até mesmo suicida.
Nossas maneiras habituais de considerá-la procedem ex-
clusivamente do ponto de vista civilizatório; assim como
também desse ponto de vista provém nossa compreensão
quanto à sua inibição. A preocupação introspectiva, os
sentimentos de culpa, o conflito psicológico, em uma pa-
lavra, os fenômenos inibidores de consciência moral são
meramente considerados como a voz de uma autoridade
proibitiva, um superego.
A inversão desse ponto de vista tentaria liberar a
masturbação de sua interdição restritiva, deixando-a
livre para seguir o Pã do Romantismo em seu prazer
desenfreado, negligenciando o fator da consciência e o
caráter sui generis da inibição, parte da própria com-
pulsão, seu inverso. (Até mesmo delinquentes sexuais
inveterados, isto é, pessoas encarceradas por causa de
estupro, de repetidos abusos sexuais a crianças e de
assassinatos sádicos alegam ter sentimentos de culpa
e consciência pesada por se masturbarem (!), segundo o
trabalho dos sucessores de Kinsey no Indiana Institute.
A culpa parece ser tão inerente à masturbação quanto a
compulsão.) Pelo menos, a abordagem liberal da mastur-
bação não a condena como psicologicamente regressiva
(apropriada para os jovens, mas não para os adultos).
Entretanto, essa abordagem faz com que a atividade
careça de sentido psicológico. Privada da sua fantasia,
da vergonha e do conflito, a masturbação nada mais é
que fisiologia, um mecanismo inato de alívio desprovido
de sentido para a alma.
63
 Essa noção amplamente compartilhada e seu inverso
fisiológico simplificam tanto Pã quanto a masturbação.
Ambos compõem um complexo de opostos nos quais o
momento da inibição é tão forte quanto o da compulsão.
Esses dois opostos de Pã aparecem na própria atividade:
ou bem recuamos com o medo da masturbação, invadidos
por vergonha ou fantasias terrificantes, ou então passa-
mos do medo à coragem através da excitação de nossos
órgãos genitais. A masturbação apazigua a ansiedade
- mas também a causa em outro nível. O medo do mau
olhado se conjurava, como ainda se conjura em algumas
sociedades, com a manipulação genital ou, pelo menos, com
signos genitais. Nós afastamos o medo tocando a sexua-
lidade, invocando também Pã, inventor da masturbação
e do pânico. Note bene: a sexualidade que afasta o medo
não é o coito, ou seja, conexão com o outro, ou até mesmo
com um animal, mas a masturbação.
Por outro lado, o fator imaginário aparece em Pã como
as configurações de seu meio, na esfoliação da natureza, a
água, as cavernas e os ruídos que ele tanto aprecia (bem
como o silêncio), sua dança e sua música, seu frenesi. O
fator da consciência se manifesta no ato de esconder-se
e retirar-se e no que nossos conceitos denominam como
"leis da natureza", a autoinibição rítmica da sexualidade.
A autoinibição humana é menos aparente que nos animais
cuja periodicidade sexual é claramente marcada. A nossa
é mais sutil, mais psíquica e provavelmente refletê:se
primeiro na fantasia e no fundamento arqúetípico-êli:!
consciência. Se a inibição não se fizesse presente como um
arquétipo, ancorada na mesma estrutura psicoide que é
da nossa sexualidade, então de onde viriam as proibições
concernentes ao incesto e aos rituais de regulação da
sexualidade?
Portanto, quando nos referimos à masturbação,
devemos ter em mente seu significado psicológico. Se oS
64
eventos psicológicos se fundamentam em dominantes
af<iuetípicos, então.o ,comportamento sempr~L tem um
se~tido, e quanto mais arql,l~típico (instintivo) é um
COInportamento, mais primordialmente significativo ele
é. Ver a regressão e não o sentido é uma cegueira que a
íé'rapia não pode se permitir ter. A psicologia do incons-
ciente estabeleceu pelo menos um axioma: o significado
eatá no próprio comportamento. Os atos que realizamos,
estando regressivamente afastados da consciência, como
a masturbação, podem talvez servir a outros fins que não
OS de nossa orientação consciente. Eles podem carecer de
sentido para nossa mente humana e serem arquetipica-
mente significativos ao mesmo tempo.
De modo que podemos considerar que a mastur-
bação é governada pelo deus-bode da natureza, que a
"inventou", e também considerá-la como uma de suas
manifestações. Essa constatação mitológica diz que a
masturbação é uma atividade instintiva e natural inven-
tada pelo bode para o pastor. Também se pode dizer que
a masturbação é dotada de um significado e sancionada
pelos deuses. Visto que ela pertence a um deus, a ativi-
dade é mimética a esse deus, conjurando-o e invocando-o
no corpo concreto. A masturbação é uma maneira de se
representar Pão
Curiosamente, D. H. Lawrence não se deu conta dis-
so. Ele foi o mais próximo de Pã entre todos os modernos 3
e, ainda assim, seus escritos condenam severamente a
masturbação. Entretanto, a supressão da masturbação
não mata somente Pã enquanto compulsão, mas tam-
?é.m a fantasia e a vergonha de Pã, as complicações
InIbitórias que acompanham a masturbação e que são
parte e parcela dela. A supressão da masturbação como
ato físico é também a supressão de suas contrapartidas
3 Ver MERIVALE, Patricia, op. cito sup.
65
psíquicas. E, quando essa repressão se inicia, a batalha reaparece quando estamos mergulhados na solidão?
contra a masturbação se transforma em uma disputa Quando Pã é constelado, a masturbação traz a urgência
teológica interior, refletindo a recusa judaico-cristã e e a complexidade da natureza de volta ao opus contra
reforçando-a na natureza "interior". Em nossa cultura naturam da confecção da alma.
bíblica, devemos nos lembrar, a masturbação é atribuída
a Onan, que foi fulminado por Deus, e não a Pã, que era
ele mesmo um deus.
Em síntese: a masturbação pode ser compreendida
em seus próprios termos e a partir de seu próprio padrão
arquetípico, mas não condenada como um comporta-
mento substitutivo para os solitários ou isolados, coms>
um comportamento regressivo para adolescentes, como
uma recorrência de fixações edípicas, ou ainda como
uma compulsão desprovida de sentido da fisiologia a
ser controlada pelas proibições correspondentes das
relações pessoais, da religião e da sociedade. Do mesmo
modo que a masturbação nos conecta a Pã como bode,
ela também nos conecta a sua outra metade, a partie
superieure da função instintiva: a autoconsciência. Por
ser a única atividade sexual praticada solitariamente,
não podemos julgá-la somente em termos de seu serviço
à espécie ou à sociedade. Ao invés de nos concentrarmos
em seu papel inútil para a civilização externa e para a
procriação, poderíamos refletir sobre sua utilidade para
a cultura interna e a criatividade. Ao intensificar a inte-
rioridade com alegria - e com o conflito e a vergonha - e
ao vivificar a fantasia, a masturbação, ainda que não
possua propósito para a espécie ou para a sociedade, é
capaz de trazer prazer genital, fantasia e conflito para
o indivíduo como um sujeito psíquico. A masturbàção
sexualiza a fantasia,haz o corpo à mente, intensjjica
a experiência da consciência e confirma a poderosll. rEil-
alidade da psique introvertida - por acaso ela não teria
sido inventada por um pastor solitário, tocando flauta
pelos espaços vazios de nossas paisagens interiores, que

66 67
 o ESTUPRO

Como a masturbação, o estupro é um comportamento

psicológico e, dessa forma, merece que lhe dediquemos
uma atenção psicológica. Como a masturbação e o pânico,
ele exemplifica a relação entre mitologia e patologia, tema
central tanto para este ensaio quanto para a monografia
de Roscher. Parte do complexo do estupro é uma aversão
emocional a ele; é uma violação, uma transgressão, um
horror. Uma investigação sobre este assunto evocará,
portanto, a mesma aversão que é inerente ao seu padrão
arquetípico. O próprio tema nos afeta como se fosse um
estupro perante o qual nossa subjetividade se fecha. O
estupro torna-se um tema fechado; não há nada a se
discutir: ele é o que é. A psicologia prefere criminalizá-lo
e ignorá-lo. Ou, quando ela se volta para ele, afronta-o
servindo-se de elaborados subterfúgios conceituais, como
sadismo, agressão ou vingança. Deve-se deixar a psico-
lOgia e se voltar para as mentes literárias (Jean Genet,
por exemplo) de maneira a encontrar as necessárias
prontidões e inteligências para olhar o estupro fenome-
nologicamente.
Para início de conversa: o estupro tem feito parte da
existência humana e divina bem antes que a psicologia
entrasse em cena para explicá-lo. Por conseguinte, não
esperemos muito da psicologia; suas considerações se ins-

69
crevem em uma tradição mesquinha de algumas poucas
gerações, situadas nos confins de uma cultura estreita,
principalmente do hemisfério norte, do mundo ocidental e
judaico-protestante. Ademais, além da inadequação geral
da psicologia para tratar dos grandes temas arquetípicos,
há uma lacuna específica no que concerne ao estupro,
como se a abstenção da psicologia ao estudá-lo a prote-
gesse, porventura, de ser violada (são outros os atos cri-
minosos e sexuais que costumam atrair sua atenção). Os
cinco volumes de A. Grinstein 1 de quarenta mil verbetes
só reservam quatro entradas para o estupro, e de forma
muito periférica. A visão clássica da psicanálise associa
o estupro às fantasias libidinais infantis de se ter um pai
estuprador, ou a uma fantasia de onipotência de estuprar
um dos pais. Os junguianos acrescentam à psicanálise a
noção de mãe fálica que une a sexualidade à agressão e
que é expressa pela imagem do javali urobÓrico. Gosta-
ria de descartar toda essa tradição psicológica tediosa e
começar do zero.
Se a masturbação é "divinamente sancionada", inven-
tada por um deus, então é certo que o estupro está ainda
mais enraizado na divindade, uma vez que o estupro de
ninfas e mortais - e de um deus por outro deus - é uma
convenção da mitologia grega. O estupro não é específico
de Pã, ainda que lhe seja característico, como veremos na
próxima seção, e é seu principal modo de relacionamento
com as figuras femininas, ocasionando a fuga delas e sua
própria frustração (suas tentativas de estupro não se
limitam às ninfas; há Dafne, o menino pastor, que dizem
ter sido atacado enquanto participava de aulas de música
ministradas por Pã, e há também as cabras com quem Pã
copula em várias posições, como mostram camafeus e a
estatuária).
1 Index of Psychoanalytic Writtings (Nova York: LU.P., 1960).
70
Um hermeneuta neoplatônico diria que o estupro
das ninfas expressa a essência imediata, irre:fl.etida e de-
terminada da divindade no domínio dos relacionamentos
naturais. O estupro mostraria a necessidade compulsiva
presente no interior e por detrás de todo tipo de geração.
Quanto ma~SpI'9:Wnoseestá do mundo da natureza ma-
terial~jnais o poder divino mostrar-se-ia sexual e compul-
sivo. O estupro é o paradigma da penetração divina e da
fêhindação do mundo resistente da matéria. Os estupros
na mitologia podem não ser compreendidos em seu sen-
tido literal, mas deveriam ser percebidos como alegorias
teofilosóficas. Assim é o neoplatonismo.
- Ademais, a "perversidade" do mito, ou aquilo a que
nos referimos como sua psicopatologia, há muito tem
sido uma preocupação para seus exegetas. Os apologistas
da religião antiga se viram compelidos a se defender de
acusações de corrupção moral lançadas, sobretudo, por
cristãos (os quais, pelo menos desde Eusébio, viam o Diabo
na figura de Pã). A defesa neoplatônica do mito foi a mais
elaborada, consistente e intelectual de todas: o ápice de
sua compreensão psicológica foi alcançado na filosófica
órfica da Renascença italiana. 2
Não obstante, o neoplatonismo é uma defesa. Ele
pede desculpas. Ele explica. A masturbação não seria
exatamente masturbação, mas uma expressão simbólica
de alguma outra coisa, como a autogeração. O neoplato-
nismo usa um método hermenêutico com o qual, graças
a Freud, estamos familiarizados nos dias atuais: o mani-
festo nada mais é que o véu para um significado latente
mais verdadeiro, mais real e mais libertador do que as
aparências psicopatológicas (sintomáticas). O mesmo
2 Ver Wind, op. cito sup., e também a tradução de T. Taylor de An apology
for t':e fables of Homer de Proclo em Raine and Harper, op. cito sup., para duas
expl!cações fáceis e acessíveis sobre este ponto de vista.
71
ocorre com o estupro; esse modo de exegese não acei-
ta a psicopatologia como um modo essencial de vida
psicológica. Ainda assim, é precisamente isso que diz o
mito.
Podemos compreender um aspecto importante da
relação entre mitologia e patologia se nos dermos conta
de que o comportamento patológico constitui uma repre-
sentação mítica, uma mimesis de um padrão arquetípico.
No fim, é isso o que Freud nos contava ao "descobrir" o
complexo de Édipo. Ele descobriu que a psicopatologia da
família é a representação de um mito. No caso do estupro,
o padrão arquetípico sendo representado é um tipo espe-
cífico que vem sendo condenado por outros arquétipos em
dominância em nossa consciência civilizada, prescrevendo
como renegados tanto Pã quanto o estupro.
O segundo ponto principal dessa relação reverte
o primeiro: a mitologia é necessariamente patológica
(descritiva da psicopatologia), pois, caso contrário, ela
não poderia nos falar da alma tal como ela é. A mitologia
seria, assim, higienizada, uma espécie de religião ideali-
zada (tal como a tradição alemã sempre sonhou com sua
simplificação do mundo grego, pagando, desse modo, um
terrível tributo à psicopatologia). A mitologia, sem sua
"d~pravação moral", tornar-se-ia somente uma religião
livresca, uma construção humanista ou uma revelação de
dogmas éticos, e não a contínua corporificação da experi-
ência humana, na qual padrões patológicos não poderiam
deixar de ser incorporados. Assim, parece que o mito
inclui o estupro como um dos eventos que deveriam ser
retratados por qualquer sistema adequado à verdadeira
amplitude da alma.
Mas onde residiria a diferença entre o seu ou o meu
estupro e o estupro realizado pelas figuras do mito? Se o
mito explica (e sanciona) a patologia, então uma imitatio
Dei implicaria também o estupro. A diferença residiria,
72
então, unicamente no contexto em que os estupros são
cometidos? Se adotarmos este ponto de vista, estabelece-
íamos então uma separação entre o sagrado e o secular
: voltaríamos ao ponto de partida neoplatônico. A copula-
ção de bodes com mulheres em um templo egípcio (como
Heródoto conta) seria, então, sagrada e ritualística. Mas
essas considerações nos ajudariam com a psicopatologia
do estuprador do beco? Onde estariam os contextos de hoje
que fariam a transposição das representações arquetípi-
cas do secular para o ritual?
Para responder a essa questão, novas formas de
psicoterapia foram divisadas, bem como seitas e cultos
de bruxaria, como o grupo liderado por Aleister Crowley,
dedicado a Pã e que, conforme diz o verso de Crowley,
também incluía o estupro. 3 Mas estes, ainda assim, perma-
neceriam seculares, uma vez que não se pode ressuscitar
os deuses. A presença de Pã deve preceder ao culto em seu
nome. Portanto, não se trataria mais de representações
míticas, mas de construções míticas. Em certo sentido,
haveria uma representação mítica mais verdadeira no
beco do que no templo siciliano de Crowley ou em um
workshop psicodramático da Califórnia com suas danças
em honra a Pão
Se não essas tentativas exteriores, então talvez o
sonho, a fantasia e a imaginação das artes poderiam nos
transpor ao mundo mítico em que outras leis imperam
e em que o estupro tem o "seu lugar". Essa solução diz
que nós podemos fazer tudo o que quisermos "dentro de
nós", mas não atuá-Io "fora de nós". O sagrado e mítico
agora se tornam intrapsíquicos e mentais, enquanto o
secular se torna comportamental. Essa solução nos leva
de volta a outra direção. Agora, retornamos à posição
cartesiana e a sua radical separação entre a mente e a
3 Ver MERIVALE, 122 SS.
73
 matéria. Contudo, o fim explícito de nosso ensaio é seguir
Pã mantendo o "dentro de nós" e o "fora de nós" unidos
. ....
lnseparavelS.
Uma quarta solução diria que o que é patologia nas
ruas também o é na mente. O que fazemos na imagina-
ção teria as mesmas consequências para a alma do que
quando damos passagem a um ato. Agora retornamos
na situação cristã, para quem olhar para uma mulher
com luxúria seria idêntico e tão pecaminoso quanto a
ação externa. A fantasia é tomada inteiramente em sua
literalidade.
Claramente, o problema permanecerá insolúvel en-
quanto insistirmos que comportamento e fantasia são
dois reinos diferentes. Essa cisão produz todas as outras:
o secular e o sagrado, o "dentro em nós" e o "fora de nós" ,
a mitologia e a patologia. Por essa razão, o primeiro passo
em direção a uma resolução do problema particular do
estupro está em reconhecer o maior erro que se oculta
por trás dele. Esse erro pode ser retificado ao lembrar
que, desde sempre, comportamento é também fantasia e
fantasia é também comportamento.
Isso significa, em primeiro lugar, que a fantasia é
também física, ela é um modo de estar no mundo. Não
podemos estar no mundo físico sem, ao mesmo tempo,
e a todo momento, estarmos perfilados em um padrão
arquetípico. Não podemos nos mover, falar ou sentir sem
representar uma fantasia. Nossas fantasias não estão
somente em nossa mente, elas também são nossos com-
portamentos.
Em segundo lugar, a união entre fantasia e comporta-
mento significa que não há algo como um comportamento
puro e objetivo. O comportamento não poderia nunca ser
entendido em seu próprio nível, de modo literal. Ele é
sempre guiado pelos processos imaginais que ele expres-
sa. O comportamento é sempre metafórico e requer uma
74
aproximação hermenêutica tanto quanto o devaneio mais
fantástico de uma visão mística requereria.
' Essas observações podem aliviar o termo "psicopa-
tologia" do fardo de servir a dois mestres, o legítimo da
psicologia e o parasitário da moralidade. Os critérios
IIlorais do comportamento pertencem à ética, à lei e à
religião, e esses domínios não deveriam influenciar as
perspectivas da psicopatologia, cujos julgamentos acerca
do comportamento são menos determinados pelo "quê",
pelo "onde" e pelo "com quem" essas ações tomam lugar
do que pelo "como" elas se dão. Menos importa o ato que
sua qualidade.
Nós nos tornamos mais psicopatológicos quando nos
passa despercebida, neste ou naquele segmento de nos-
sas vidas, a fantasia de um ato, ou quando percebemos
que o que estamos fantasiando também está a acontecer
fisicamente, mesmo se de maneira sutil e indireta. Ao
invés disso, fazemos uso da literalidade, e a metáfora,
que preserva a vida psicologicamente intacta, se esfacela.
Quando metáforas não mais se sustentam, temos, de um
lado, fantasias literalizadas em alucinações e delírios;
do outro, cO,mportamentos literalizados chamados de
psicopatia ou transtorno do comportamento, dos quais o
estupro é, às vezes, considerado um sintoma.
Nós nos tornamos menos psicopatológicos quando
podemos restaurar a apreciação metafórica do que nos
acontece. A terapia fala de "(nsight psicológico",. o que
poderia significar a reconexão da fanta~.üicQmo çomnor-
táiiiênto e- a a.issôíuçãodo-Üt~~~Ü~~~ -~través do pod~; do
iiiSi:ght. Porque a lei, a ética e à religião tendem a tratar
ocõinportamento com o mesmo literalismo que a psico-
lOgia considera como a origem da psicopatologia; esses
?ampos não devem invadir os nossos - além disso, seus
Julgamentos emergem do mesmo literalismo psicopato-
lÓgico patente do comportamento que querem julgar (já
75
expressei, em outro lugar, esse conflito necessário entre a
psicologia e esses outros campos a propósito do suicídio,
em que minha ênfase recaía também sobre a perspectiva
metafórica do comportamento).
Então, a psicologia é obrigada a considerar o estupro
sempre como metafórico, até mesmo o seu e o meu e até
mesmo aquele que acontece nas ruas. Essa premissa já é
um ato terapêutico, pois ele afirma a unidade da fantasia e
do comportamento. Mesmo nas ruas, há sempre um ritual
tomando lugar no comportamento, e algo de trans-humano
sempre ocorrendo no que é profano. A transposição que
estamos procurando é uma transposição da nossa visão
das coisas, uma transposição psicológica para que possa-
mos ver a unidade da fantasia e do comportamento. Então,
não mais precisaríamos construir representações literais
e chamá-las de rituais. Este ensaio não é senão uma
tentativa de transposição de nosso ponto de vista. Ao ver
Pã no pânico, na masturbação e no estupro, restauramos
tanto o deus na vida como a vida em deus.
Sem essa visão de um deus no comportamento, o
estupro torna-se somente psicopatologia. Como já mos-
trei em outras obras, quando perdemos de vista o Eros
na análise, a erótica da transferência se torna somente
neurótica; sem Saturno e Dioniso, depressão e histeria se
tornam somente diagnósticos psiquiátricos. Perdemos de
vista o fato de que embora síndromes provoquem sofri-
mento, elas fazem parte de um padrão mais amplo. Em
cada uma dessas situações, a mente moderna tendeu a
ver a patologia antes da psicologia, esquecendo-se de que
a enfermidade é parte do significado. O pathos é parte
da psyche e possui seu próprio logos. O patológico - por
mais distorcido e literalizado que esteja - pertence ao
fazer alma. Os neoplatônicosjá haviam reconhecido isso.
Eles viram que, do mesmo modo que as histórias míticas
tinham um sentido para a alma, o mesmo se aplicava a
76
t das as partes das histórias, incluindo suas depravações
~zarras e seus horrores imaginativamente essenciais, que
tualmente classificamos como psicopatológicos.
a Devemos ter em mente que o horror arquetípico do
estupro afeta até mesmo sua própria discussão. A melhor
testemunha dos efeitos desse horror arquetípico é a su-
pressão legal do estupro. Nos Estados Unidos, em geral,
nem a emissão seminal, nem a penetração real da vagina
OU ânus estão contemplados em sua definição. Basta sim-
plesmente que haja uma justaposição forçada dos genitais
para desencadear o poder do judiciário. E mais: há um
estupro puramente legal (estatutário), que incluiria uma
relação com um menor que consinta, um exame genital por
parte de um médico ou uma anestesia geral aplicada por
um dentista (sem quaisquer terceiros presentes). Estas
não são trivialidades. A pena de morte para o estupro,
incluindo o estupro estatutário, ainda existe em algumas
partes dos Estados Unidos. Esse deslocamento do horror
às sutilezas não sexuais e legais pertence a uma longa
tradição de supressão que remonta à época colonial. Na
Pensilvânia, por exemplo, desde 1700 castravam-se os
negros pela tentativa de estupro (de brancos).
Situemos agora o horror do estupro na constelação de
Pão Antes de tudo, Pã persegue ninfas, ou seja, o estupro
visa uma forma de consciência indefinida, ainda localizada
na natureza, mas que não é pessoalmente corporificada.
Essa consciência é ainda somente natural, da mesma
maneira que a pulsão de Pã é somente natural. A ninfa
ainda está ligada aos bosques, às águas, às cavernas, às
formas evanescentes, à bruma; ela é casta, natureza ainda
virgem (veja, adiante, "As ninfas de Pã").
Pã traz um corpo, um corpo de bode. Ele força a
realidade sexual da geração física a uma estrutura de
consciência que não tem vida pessoal física, cuja vida
é inteiramente "fora de nós" em natureza impessoal. O
77
assalto de Pã repentinamente transforma a natureza
em instinto. O estupro torna-a íntima. O estupro leva o
"dentro de nós" para o "fora de nós". O impessoal penetra
sub-repticiamente até o corpo mais privado, trazendo
consigo uma consciência do impessoal enquanto uma de
experiência pessoal.
Enquanto tal, o estupro é um horror, pois ele é uma
transgressão arquetípica. Ele forçosamente atravessa
duas estruturas de consciência não relacionadas, cuja
distância entre elas se expressa na linguagem dos opostos:
mulher idosa/jovem rapaz, jovem garota/homem idoso,
virgem/libertino, branco/negro, nativo/estrangeiro, velho
presidiário/jovem punk, soldado/civil, mestre/escravo,
bela/fera, classe alta/classe baixa, bárbaro/burguês. Mas
essa transgressão é também uma conexão entre estas
estruturas. O estupro direciona a pulsão do corpo rumo
à alma através de uma metáfora concreta. Ele empurra
a alma em direção à concretude. Ele forçosamente acaba
com a divisão entre comportamento e fantasia, violando
a privilegiada distância da alma que antes quisera viver
a vida através da reflexão e da fantasia.
Interpretar a transgressão do estupro como agressão
é um equívoco do ponto de vista arquetípico. A agressão é
insignificante na constelação de Pão Ele não agride nem
estrangula os obscuros objetos do desejo; nenhuma arma
ou lâmina faz parte de sua ameaça. O estupro de Pã,
como o pesadelo de Pã, é um encontro íntimo com a força
animal do corpo. Seus assaltos, e nossos estupros que os
mimetizam, não são agressões; eles são compulsões. Eles
não são tanto ataques para destruir o objeto quanto são
uma necessidade compulsiva de possuí-lo.
A linguagem do estupro usualmente fala de deflora-
ção, cujo paradigma é Perséfone colhendo flores quando
é raptada por Hades. A defloração também deve ser com-
preendida metaforicamente, pois não estamos falando de
78
uptura do hímen de virgens reais, mas da consciência
~a :flor perpassada e de sua morte. Muito poucos são os
estupros reais de virgens reais; ainda assim, na imagina-
ção, todas elas são virgens, .s~jam irmãs, filhas ou freiras,
sejam jovens rapazes, colegIaIs, ou velhas empregadas, ou
jovens "delinquentes" presos pela primeira vez. A fantasia
da defloração e da virgindade aparece conjuntamente ao
estupro. Empiricamente, essa associação faz pouco sen-
tido; do ponto de vista psicodinâmico, trata-se de uma
elaboração secundária e não essencial. Mas, de um ponto
de vista arquetípico, a associação entre virgindade e estu-
pro é necessária, pois ela mostra que o comportamento é
governado pela fantasia de Pã e das ninfas. De um lado, o
intocado, a consciência desprovida de sensações corporais;
de outro, aquele que toca, o tátil corpo sensual. Toque,
contato, conexão - termos cruciais para a metáfora que
habita na linguagem corporal. Pã, às vezes chamado de
"o invisível", é, no entanto, imaginado da maneira mais
física possível como um estuprador. Ele é chamado de Pã,
o saltitante, o atrevido, o bárbaro, o feroz, o tosco, o sujo,
o peludo, o negro. Esses eram seus epítetos latinos. 4
O medo do estuprador negro e primitivo existia na
consciência ocidental muito antes da fundação da Pensil-
vânia. Se, como se diz, o medo sexual é a fonte psicológica
da repressão ao povo negro, e se Pã tem sido imaginado
como niger, instabilis, lubricus, rusticus, brutus, noctur-
nus etc., então não seria a morte de Pã uma das fontes
arquetípicas de nossas doenças sociais racistas, tornando-
-o totalmente inconsciente e coletivamente projetado?
A lei incorporou a fantasia da ninfa de Pã ao formular
medidas protetivas para ninfetas e mulheres anestesia-
das, projetando a imagem do estuprador nos toques do
médico examinador. Legalmente, para que haja estupro,
4 CARTER, J. B., "Epitheta Deorum" no Lexikon, VII, de Roscher.
79
nem o coito nem a ejaculação são necessários. Esses
aspectos essenciais ao ato sexual não definem o estupro
legalmente. Até mesmo a lei reconhece a maneira sinistra
com que o estupro está acima e além da própria sexuali-
dade concreta. A verdadeira transgressão é a conexão ao
nível genital entre duas estruturas da existência humana
dotadas de diferentes status ontológicos.
Pã, o estuprador, é uma potência intrínseca a todo
impulso sexual. A cada ereção ele pode ser libertado, im-
plicando uma necessidade de defloração psíquica. Corno
psicólogos, devemos primeiramente ver através deste
fato antes de criticá-lo ou defendê-lo. Alguma necessi-
dade da psique poderia converter um impulso em uma
fantasia de estupro, ou mesmo produzir uma fantasia de
estupro sem excitação sexual. Trata-se de uma tentativa
de transgressão, uma tentativa de se passar de um nível
a outro, levando sexo e morte a uma região da alma que
é absolutamente resistente a este modo de consciência.
Eurípedes descreve o estupro como um "matrimónio
do pânico".5 Pã agarra, se apodera, copula. A violência é
comparável ao demónio do pesadelo cuja visita nunca é
desejada; ele se deita sobre aquele que dorme, retendo
sua respiração e privando sua vítima do elemento aéreo,
pneuma. Apesar do pânico, a cópula é, não obstante, um
"matrimónio", uma união de destinos. Dificilmente esse
trágico encontro seria um matrimónio humano de pessoas,
visto que essa união une um impulso monstruoso a uma
inocência ferida.
Pã, o estuprador, será conjurado pelos aspectos
virginais da consciência que não são fisicamente reais,
que estão "fora de contato", imperceptíveis. Sentimentos
e pensamentos que permanecem tênues e fugidios, que
ainda são frios, remotos, reflexivos, convocarão o estupro
5 HELEN, 190.
80
ara penetrá-los. Serão assaltados de novo e de novo pelos
~oncretismos. As reflexões puras serão estupradas de novo
de noVO para que grassem finalmente no comportamento.
e O estuprador perseguindo a virgem é outra manei-
ra de colocar o comportamento à procura de fantasias
para aplacar su~ c~mpulsão. A ojeriza da virgem ,é .outra
Illaneira de expnmIr o medo do comportamento fISICO da
fantasia. Mas a violação da virgem será inevitável sempre
que os limites entre as fantasias demasiado esvaídas do
corpo e as fantasias inteiramente imersas no corpo forem
excessivamente enrijecidas. Então, a metáfora concreta
da 'justaposição genital forçada" é constelada, re-unindo
fantasia e comportamento.
A ideia psicodinâmica de compensação expressaria
esse conceito dizendo que o concreto nos toma - sob a
forma de estupro, de pânico ou de pesadelo - quando
a consciência é etérea, por demais efêmera. O concreto
compensa a distância da vida física, que é representada
por um paradigma concentrado nos genitais. Mas a psi-
codinâmica, em seu intento de reconduzir os eventos de
volta à psique, na realidade, os reconduz ao ego. Diz-se que
estes horrores (o estupro, o pânico, o pesadelo) aparecem
porque o ego está fazendo algo de errado. A irrupção do
poder numinoso torna-se somente um mecanismo psíquico
que visaria corrigir o ego. As explicações, nos termos da
Compensação, se esquecem de que a experiência é inteira-
mentetranspsicológica. Ela se manifesta como numinosa.
A chegada de Pã não é causal, é sui generis. Ele irrompe.
Todavia, essa ênfase na concretude da psicodinâmica
tem sua importância se a tomamos fenomenologicamente,
deixando de lado a teoria dos opostos que se equilibram.
Fenomenologicamente, o estupro, o pânico e o pesadelo
embaraçam a consciência com sua concretude e, por isso,
nos golpeiam sempre como psicopatológicos: os eventos
são demasiado literais. Novamente, a psicopatologia re-
81
si de não no que aconteceu, mas em como aconteceu, na ção significaria não penetração e transformação, mas
metáfora concreta do acontecimento. O estupro, o pânico r~a alma ferida. A partir dessa perspectiva, uma pura
e o pesadelo pertencem ao lugar em que a ansiedade e a ~entelha da luz reflexiva deve manter-se intacta sob todo
sexualidade são tomadas tão concretamente que a psique custo. Um insight espontâneo daria a liberdade de afastar-
já torna uma vítima, capturada, oprimida, sua liberdade -se da opressão da natureza, inflamando a capacidade de
perdida. O horror já começou. imaginar a vida e não somente de ser conduzido por ela.
Da perspectiva da consciência da ninfa, o estupro
sempre será um horror. Esse horror também é arquetipi-
camente autêntico e, portanto, é significativo e não mera-
mente uma resistência fútil e um sintoma de ansiedade.
O horror avisa. Ele procura manter uma estrutura de
consciência intacta. A consciência reflexiva corre perigo
de ser sobrecarregada (vergewaltigt = estupro em Ale-
mão) e violada (viol = estupro em Frances) pelo próprio
mundo físico que ela reflete. A consciência reflexiva se
retira. Esse é o seu movimento natural, pois a reflexão é
também instintiva (ver adiante, ''As ninfas de Pã"). Para
manter sua estrutura reflexiva livre de entraves, esse
aspecto da consciência não deve permitir que o pesadelo,
que é a natureza, lhe monte e lhe cubra. O lado que a
natureza compartilha com o pesadelo é esse concretismo
opressivo e sufocante expresso pelos epítetos de Pã e na
experiência de Efialtes.
Mas o concretismo se faz presente em cada pergunta
literal que fazemos a alguém, em cada conselho sagaz,
em cada interpretação perspicaz sobre como viver e o que
fazer. Nós estupramos e somos estuprados não somente
sexualmente. O sexo não é mais que uma metáfora que
expressa o movimento "de baixo" (redutivamente) rumo
à intimidade pessoal de alguém, de uma maneira crua e
"somente natural". Nada constela mais essas transgres-
sões de fronteira do que as questões inocentes da mente
simplista de uma ninfa.
O concretismo obscurece a luz e bloqueia os movi-
mentos da fantasia. A partir dessa perspectiva, a deflo-

82 83
 AS NINFAS DE PÃ

Ao situar o instinto e a imagem no mesmo continuum,

Jung ofereceu uma nova entrada para o mundo de Pão
Tentativas racionais, morais e deliberadas de gerir com-
pulsões instintivas podem somente reprimir o instinto,
uma vez que essas tentativas emergem de um componente
essencialmente diferente da psique. Semelhante se liga a
I' semelhante; semelhante cura semelhante. Imagens mí-
ticas retratam o instinto; instintos representam padrões
míticos. (Vico pensava que os mitos eram terapêuticos.)
Em nível lógico e prático, os impulsos de Pã são mais bem
estudados através de suas imagens míticas companheiras:
suas ninfas.
A esse respeito, o mito pode ser comparado à alqui-
mia. Na alquimia, a transformação do compulsivo enxofre
requer uma substância igual a ele (principalmente o sal,
mas também o mercúrio, uma substância psíquica evasiva
que é o verdadeiro agente de transformação). A mente
e a vontade do operador têm um papel subsidiário aos
efeitos de uma substância sobre a outra. Então, assim
COmo sucede às mudanças representadas pelo mito, um
mitologema como o de Pã se faz necessário.
Antes de prosseguirmos, preciso qualificar a ideia de
mudança no mito apressando-me a acrescentar que não
estamos compromissados aqui com instruções morais. Não

L 85
há nada de errado com Pã, com o instinto, com a compulsão
e seus semelhantes. Mitos descrevem processos subjetivos
fundamentais nos quais mudanças estão inscritas. É Ulll.
engano nosso lê-las enquanto melhorias morais, progres_
sos de quaisquer tipos. Portanto, falar da "cura" de uma
compulsão é, de um lado, uma noção terapêutica que im-
plica aperfeiçoamento; mas, do outro, "cura" significa uma
passagem de uma forma de aflição a outra. Esforcemo-nos,
pois, para distinguir a noção central de transformação de
suas camadas interpretativas: algumas mais açucaradas
como "crescimento" e "progresso" e outras mais amargas .
como "perda" e "decadência". Se um dos axiomas da psique
é que semelhante cura semelhante, dificilmente podería-
mos operar uma transformação de um determinado nível
atuando em seu nível oposto. Naturalmente, enxofre e
sal são opostos, e a cura vem, como Heráclito teria tido
prazer em constatar, através dos opostos. Mas opostos
que estejam dentro de uma mesma classe e em mesmo
nível. Dessa forma, uma mudança de compulsão não se
deveria à consciência operando sobre o inconsciente, pois
são opostos de duas classes diferentes, similar à situação
da vontade que opera sobre a imaginação, ao superego
que opera sobre o id, ou à mente atuando sobre o corpo.
A mente pode atuar sobre a mente, o corpo sobre o corpo;
então, para que mudemos eventos de natureza imaginaI,
seríamos obrigados a permanecer dentro de um campo
imaginaI.
Ademais, para que a mudança tome lugar em um ní-
vel instintual, o processo deve ser natural; há de ser como
diziam os alquimistas: a natureza que ama e desfruta da
natureza e, ao mesmo tempo, a natureza que transforma
a natureza. Os opostos devem já ser os mesmos, e deve
haver certa afinidade entre eles. Na alquimia, sol ama
luna, fogo e água se abraçam. Na mitologia, Pã quer aS
ninfas.
86
Já vimos que Pã se divide entre o cume da montanha
gruta, entre o ruído e a música, entre ancas peludas
e achifres espirituais, entre pânico precipitado e estupro
e tinado. Outro exemplo, ainda mais imaginativo e atra-
b
oS . as
te é Pã e suas parceIras, . nInf:as. p'
OIS um D eus e sua
en , . . . . d
arceira descrevem os dOIS componentes prmCIpaIS e um
Pomplexo arquetípico. E se a mais nobre das verdades
~o pensamento psicológico (Jung), assim como a filosofia
:mítica e mística, I é a identidade dos opostos, então não
somente os núcleos gêmeos da natureza de Pã são uma
única e mesma coisa, mas também Pã e as ninfas estariam
necessariamente implicados, pois eles também são uma
única e mesma coisa. "As ninfas que acompanham Pã não
são suas subordinadas ... Seguem sendo tão divinas quanto
ele", escreve Philippe Borgeaud. 2
A explicação etimológica e "natural" de Roscher acer-
ca das ninfas 3 as considerava como personificações das
brumas e das nuvens que erram nos vales, nas encostas
das montanhas e nas fontes de água, seres que velam as
águas e dançam sobre elas. E, de fato, para Homero,4 é lá
onde as ninfas vivem. No mesmo volume, Bloch 5 refuta a
hipótese de Roscher assinalando que, na mitologia grega,
a palavra "ninfa" não significa nada além de "donzela em
flor" ou "senhorita", florescendo como um botão, sentido
esse que mais se assemelha ao nosso "núbil" do que a
"nebulosa". W. F. Otto, em seu capítulo sobre as ninfas,6
concorda que o termo signifique garota ou noiva, mas as
conecta miticamente em primeiro lugar a Ártemis e ao
1 WIND, Edgar, "Pan and Proteus", Pagan Mysteries in the Renaissance
CEIarmondsworth, 1967).
2 The Cult af Pan inAncient Greece (Chicago: University of Chicago Press,
1988),173.
3 Lexikan "Pan" 1392 ss.
4 ' ,
Odisseia 6, 123.
5 "Nymphen", 500 ss.
6 Die Musen (Darmstatadt, 1945).
87
sentimento grego deAidos, vergonha, uma timidez modes_
ta, um temor silencioso e reverencial perante a natureza
e pela natureza. Ele descreve esse sentimento como o polo
oposto dos transbordamentos compulsivos de Pã (deus da
epilepsia). As ninfas, assim como Pã, pertencem à mesma
paisagem de nossa natureza interior. 7
Quem são essas ninfas do mito, esses amores da Pã?
Em primeiro lugar, muitas não tinham nome; essas "não
pessoas" revelam, no nível do objeto, a impessoalidade da
pulsão. A mesma força invisível e indefinida que instiga
os estupros de Pã também os objetifica na figura da nin-
fa obscura e desconhecida. Entre aquelas que possuem
nome, há Siringe, uma ninfa da água que, para fugir de
seu abuso sexual, transformou-se em um junco com o qual
Pã fez sua flauta. Embora ela seja a mais célebre de seus
amores, Siringe é colocada em lugar secundário pelos
estudiosos, pois consideram que seu conto nada mais é
que uma explicação mitologizante e tardia para a flauta
de Pã (siringe). Antes de discutirmos o conto de Siringe e
o pouco caso que a academia lhe presta, nos permitamos
uma revisitação das outras ninfas.
Outra figura era Pítis, uma ninfa do pinho. Pã fre-
quentemente usa uma grinalda de pinho ou uma coroa de
abeto e, quando está com Dioniso, ocorre frequentemente
de estar munido de uma pinha, cuja forma pontiaguda
e numerosas sementes lhe valeram o sentido, segUndo o
eufemismo interpretativo favorito dos vitorianos clássicos,
de ser "um símbolo da fertilidade".
Mas aqui Pítis, o pinho, é feminino, e reflete Dioniso
de outra maneira, pois a mistura do pinho e do vinho
em retsina expressa uma coniunctio. D. H. Lawrence
7 A respeito da ninfa interior, suas atratividade e seus perigos, ver JUNG,
Emma, "The Anima as an Elemental Being",Animus andAnima, Spring PubJi·
cations [Animus e Anima, São Paulo: Cultrix, 1991, trad. de Dante Pignataril;
e também JUNG, C. G., CW 13, § 179 ss., 215 ss.
88
aJIlplificou a figura de Pítis a sua própria maneira, ex-
erienciando Pã por meio do pinho, com sua aspereza
Pungente e "eriçada". Para Lawrence, o pinho é menos
~Illa sombra confortável na encosta de uma montanha,
evocada pela fantasia de Roscher de ninfas em um bosque
da Grécia bucólica, do que a agressiva masculinidade do
"pele vermelha", em sua obra Pan in America. O pinho
como Pã, como masculino, reafirma a tese órfica de que
os opostos são idênticos, e que Pã e as ninfas são um só.
Há, por exemplo, estátuas femininas de Pã, e também
pinturas e baixos-relevos nos quais Pã aparece junto a
um hermafrodita. 8
Uma terceira figura entre os amores de Pã foi Eco,
que encontramos no conto de Eros e Psique de Apuleio.
Também nesse caso Pã se frustrou, pois Eco não tinha
corpo, não tinha uma existência substancial própria. Em
sua relação com Pã, ela não era senão ele mesmo devolvido
a si, uma repercussão da natureza refletindo a si mesma.
(No caso de Narciso, amor de Eco, é ele quem a rejeita,
seduzido por seu próprio reflexo.)
A medida que avançamos na lista de amores de Pã,
a reflexão parece ser o objetivo. Pois outra de suas aman-
tes foi Eufeme, a ama de leite das Musas. Pã e Eufeme
tiveram um filho, chamado Croto, que, como meio irmão
das Musas, costumava brincar com elas. O nome Eufeme
significa "fala justa", "boa reputação", "silêncio religioso".
Dessa mesma raiz deriva a palavra "eufemismo", que quer
dizer uso propício das palavras.
Eventos duros ou desafortunados podem ser modifi-
cados quando renomeados com um melhor nome. O uso
correto do eufemismo nutre as Musas. O eufemismo reside
na origem da transformação da natureza em arte. Desgra-
ças absurdas ou lamentáveis da natureza podem ganhar
8 Wernicke em "Pan in Art" no Lexikon de Roscher.
89
outras formas por meio do uso da imaginação. De mesmo
modo que Pã pode converter derrota e tumulto em dan_ça,
clamor em música, sua força de pesadelo busca.express~es
melhores (eufemísticas) para conferir u~ sentld~ u.lteno r
a sua aspereza e crueza, um valor poétlco e rehgIoso. A
relação de Pã com Eufeme e as Musa~ implica também
que em todas as artes subjaz, de manelra oculta, o poder
evocativo e primitivo de Pão
Finalmente a única que revela completamente a
intenção de Pã é' Selene, deusa da Lua. (Sua inteira con-
figuração, seu filho Museu, as conexõe~ dele com ~rf~u. e
com os Mistérios de Elêusis estão imphcados na hIstona
de Pã e Selene, mas sua análise requereria uma mono-
grafia totalmente dedicada a Selene, algo que Roscher, a
propósito, também fez.) Todavia, de~emos el~ncar algumas
de suas características: sua beleza msuperav~l; ~eu olhar
que via tudo o que acontecia abaix?; se? domm~o .so~re a
menstruação, o ritmo ordenado do mstmto femmmo, s~a
dádiva do orvalho, a humidade refrescante; sua rela?ao
com a epilepsia e a cura; o véu que a mantinha :r;>arcIal-
mente oculta, indireta; a tocha que carregava e a dIad~ma
luminosa que usava; a escura caverna da qual surgIa e
para onde se retirava. d.
Para conquistar a lua, conta-se que Pã teve de IS;
farçar suas patas negras e peludas com lã branca. Ess..
é uma linguagem da alquimia, correspondente ao moVl
mento do nigredo ao albedo da consciência lunar. O que
é resistente à luz obscuro e impulsivo, sofrida natureza
de ver
em ignorância, se, torna branco e re fl exIVO,
. ca~az.
o que acontece durante a noite. A lã branca nao
Pã de ir em direção a sua conquista. ~ branque~mell
não é uma askesis do bode. Não quer dIzer que Pa ~o
agora e cesse de dar passagens aos a t os, ~as que__a.. aç!i
a ...'",
por meio de branquear-se, torn~-se reflexI~a e,
também torna possível que eXIsta conexao com
q{)
(selas: luz como a da tocha que brilha à noite). Semelhante
cura semelhante: Pã, ao tornar-se semelhante a Selene,
já se encontra conectado a ela.
Contudo, essa história não quer dizer que a consciên-
cia lunar de Selene refletiu Pã e, desse modo, o desviou.
Ao contrário, a sedução tomou lugar. A consciência lunar
pode ser arrastada por Pã; ela pode ser convulsionada e
cair em pânico, desmaiar e entrar em colapso.9
O estado lunar é particularmente vulnerável a Pã
do mesmo modo que Pã é particularmente atraído por ele~
Já havíamos visto essa ideia anteriormente em relação
ao estupro. Ela se reafirma aqui, uma vez que Pã produz
sua ~~pressão mais vívida, como Efialtes, nos sonhos, que
tradICIOnalmente pertencem à Lua. E, em pesadelos sua
natureza lunática aparece especialmente. Pã era u~ dos
deuses diretamente associados aos lunáticos, assim como
Suas ninfas eram uma causa de loucura (nympholeptoi).
' Estamos agora em posição de retornar a Siringe. Em-
' essa história seja uma invenção tardia, um conceito
meramente da ordem da consciência, seu padrão
pela sua similaridade com outros contos. É
se a invenção do mitólogo estivesse pré-formatada
arquétipo de Pã e da ninfa para nos contar mais
versão de relação entre Pã, frustração e reflexão.
de uma história ser recente não significa que ela
do~ada de menor insight psicológico ou de um valor
Inferior. A primordialidade arquetípica não deve
'., Confundida com a antiguidade histórica.
to " No conto de Siringe, Pã persegue a possibilidade de
~~lVElrin
que, por meio
. de um incessante afastamento,
t b' em seu Instrumento. A música da flauta de
, alll em conhecida como siringe, é a autoconsciência
,
Também pe t
eH r encendo a Pã, de acordo com DODDS, E. R., The Greeks and
oston: Beacon, 1957),
91
 que inibe e transforma a compulsão. Ao invés do estupro
à beira do rio, há uma toada triste de flauta, canto e
dança. A compulsão não é sublimada, mas, no entanto,
se exprime em e através de outra imagem, pois o canto
e a dança são também instintivos. Através da siringe, ° vidades defensivas e protetoras. Além da relação de Nice
ruído tão caro a Pã transforma-se em música, o tumulto,
em passo comedido; os padrões se elaboram; há espaço,
distância e ar, como o murmúrio do vento no pinho. Como
Eco, que proporciona a receptividade feminina do ouvido
e da recordação, a música feita pela flauta de Pã oferta
uma fantasia sonhadora que inibe a compulsão. A com-
pulsão sexual de Pã parece completamente dirigida rumo
ao fim da reflexão. Lembre-se: Pã não é o Deus Pai, pois
sua descendência é mitologicamente insignificante. Sua
fecundidade é de outro tipo.
Esses contos nos dizem que a própria natureza ins-
tintiva deseja figuras e fantasias para fazer-se conscien-
te de si mesma. Nenhum novo princípio é introduzido,
nenhuma correção da compulsão se impõe de cima ou de
fora à configuração do próprio Pão Ele busca um outro polo
intangível - um mero junco, um som, um eco, a pálida
luz, a ama da musa -, uma consciência útil à obscuridade
da sexualidade concretista e do pânico. Pã nos conta que
a ânsia mais forte da natureza "dentro de nós" (e quem
sabe também da natureza "fora de nós") tem por fim a
união da alma com a consciência, uma ideia que já vimos
prefigurada na masturbação e na consciência. O "outro"
a quem Pã persegue tão compulsivamente não é outro
senão sua própria natureza, sua própria alma, refleti da,
transposta a outra chave.
--....é a música.
A chave - . Som. Siringe, Eco e Pítis - que
's
suspira (Nonnus) ou geme quando o vento sopra atrave
dos pinhos - são os sons da natureza. As ninfas refleteJll
a natureza ao pé do ouvido. Ensinam-nos a escutar e a
escuta põe termo à compulsão. Se Pã contém um tipo ele-
92
i 93
.........
:mental de reflexão, então deveríamos esperar encontrar
reflexão também em sua própria imagem e não somente
exemplificada pelas ninfas. E é exatamente isso que
encontramos. Além da música e dança, existem suas ati-
com Atena - tendo Penélope por mãe e/ou Ulisses por pai,
como é contado em tradições, implica Atena -, há também
a semen}e paterna de Hermes (ou de Zeus, Apolo, Cronos,
Urano, Eter ou Odisseu, cada um dos quais apresentando
uma modalidade de espírito reflexivo). Ademais, há tam-
bém o motivo de seu precoce amanhecer, sua aparição nas
pinturas de vasos junto à aurora, o nascer do dia.
Talvez mais significativo do que qualquer uma dessas
imagens de consciência reflexiva seja o fato de que, repe-
tidamente, Pã aparece nas representações artísticas como
um observador. 10 Lá se encontra ele de pé, ou sentado, ou
apoiado, ou agachado, em meio a eventos dos quais não
participa, mas nos quais, ao contrário, constitui-se como
um fator subjetivo de atenção vital. Wernicke afirma que
. . ele serve para despertar o interesse do espectador como
, (Se quando olhássemos uma pintura com Pã ao fundo
'fossemos nós o Pã que a tudo observa. '
(. Pã, o observador, nos aparece da maneira ainda mais
naquelas imagens em que sua mão está
~elllcO:sta.da em sua fronte, olhando para longe: Pã, "aquele
vê longe", "aquele de olhar penetrante", o pastor acima
seu rebanho, em guarda, vigilante. Na intensidade físi-
de Pã, há uma atenção física, uma consciência caprina.
consciência não é olímpica, pois não se constitui
uma corporificação de notoriedade superior. Sua
está em conexão com o rebanho, sua consciência
aos sinais físicos da natureza "dentro de nós". A
está na ereção, no medo, uma consciência que é
lOWernick .
e,op. clt.,
l' t
IS
A
a tres colunas de exemplos.
circunscrita na natureza, assim como são as ninfas para
suas árvores e riachos; cega, porém intuitiva; previdente,
porém imediata. Pã se reflete por completo no corpo, o
corpo como instrumento, como quando dançamos, e para
o qual Lawrence utilizou a metáfora do "pele vermelha".
Essa é a consciência cautelosamente se movendo na
sabedoria do medo através dos lugares vazios de nossas
paisagens interiores, onde não podemos saber qual direção
tomar, desprovidos de vestígios, nosso julgamento somente
embasado nos sentidos, sem jamais perder o contato Com
o rebanho de caprichosos complexos, pequenos medos e
pequenas excitações.
Essa consciência corporal pertence à cabeça, mas se
encontra fora dela; é lunática, semelhante ao espírito que
reside nos chifres. (E a Lua tem chifres.) Não é mental,
nem calculista; é uma reflexão, mas nem posterior e nem
simultânea ao evento (à maneira de Atenas). Melhor:
trata-se da maneira pela qual o ato é levado adiante, apro-
priado, económico, um estilo de dança. Do mesmo modo
que Pã é um com as ninfas, assim seu reflexo é uma só
coisa em relação ao seu próprio comportamento. Ao invés
de um sujeito epistêmico que conhece, há uma fé animal
empistis, de pés seguros como um bode.
O caminho de Pã pode ainda ser o "deixa-te guiar pela
natureza", mesmo quando a natureza selvagem "fora de
nós" está a desaparecer. A natureza "dentro de nós" pode,
não obstante , ser seguida mesmo através das cidades
. "
das formas de domesticação, pois o corpo ainda diz "SllIl
. "
ou "não", "não por aqui, por ali", "espere", "corra", "de}){8
ou "vá agora e pegue-o".
O que mais poderíamos desejar de uma profecia do
que essa consciência corporal imediata de sabe: ~oJO~
quando e o que fazer? Por que pedir por grandes VIsoeS
redentores e do declínio das civilizações? Por que espera!
'le-
que a profecia chegue com uma longa barba e voz tro
94
jante? Isso seria demasiado fácil, e os pronunciamentos,
demasiado barulhentos e claros. O profeta é também uma
figura i~teri,?r, uma ~unção do microcosmo, de modo que
a profecIa nao podena soar mais forte que a intuição do
JOedo ou um desejo repentino.
Plutarco situa sua história sobre a morte de Pã em
uma discussão sobre por que os oráculos se extinguiram.
Com a morte de Pã, as donzelas que proclamavam as ver-
dades naturais também cessaram de existir, pois a morte
de Pã significou também a morte das ninfas. À medida que
. Pã se transformava no Diabo cristão, as ninfas se trans-
formaram em bruxas, a profecia tornou-se feitiçaria. As
mensagens de Pã no corpo se tornaram apelos do Diabo'
qualquer ninfa que evocasse tais chamados não era senã~
, uma bruxa sedutora.
O tipo de consciência que Pã representa é inerente-
mente mântico, de alto a baixo, por assim dizer. (Retor-
naremos a este tema no próximo capítulo.) Foi de Pã que
, A ~p~~ndeu. a arte, antes que Delfos tomasse o lugar
TemIs. As mnfas eram capazes de levar a excitação às
da l.oucura, resultado esse que é, ao mesmo tempo,
~"~V~"'IJ','~ét e dom profético. A ninfa Erato era profética no
~rcade de Pã, e Dafne, o pastor amado por Pã, foi
do mais antigo de todos os oráculos de Delfos:
de ~aia. 12 A lista de todos que foram enlouque-
,~elas mnfas ou dotados de dons divinatórios por
e e Imensa.
Dess~ forma, Pã e as ninfas tiveram seu papel em um
el~~l~l de mântica, que tinha por objetivo promover
. aguas e os lugares benéficos para a restauração
tInham seu spiritus Zoei, geralmente uma ninfa. De
11B
lochsob N'
12 PAUSAN' re as mfas no Lexikon,
13V; •
'. e'aab' IAS 10 , 5, 5 .
" aIXo as 'd' ,
eV1 enC1as de Roscher para Pã e os sonhos de cura,
95
acordo com Bloch, as ninfas promoviam a cura, a loucura
e a profecia através de seus efeitos sobre a fantasia. Como
Otto dizia,14 as ninfas prefiguraram as musas. As ninfas
excitam a imaginação, e ainda voltamos para a natureza
(instintiva dentro de nós e visível fora de nós) para acen-
der nossa fantasia.
Não há acesso à mente da natureza sem conexão Com
a mente natural da ninfa. Mas, quando ela é convertida
em bruxa, e a natureza em um campo objetivo morto, o
que nos resta é uma ciência natural desprovida de uma
mente natural. A ciência divisa outros métodos de divini-
zação da mente da natureza, e a ninfa enquanto fator se
torna uma variável irregular a se excluir. Os psicólogos
falam , então , do problema de anima dos cientistas. Mas
a ninfa continua a operar em nossas psiques. Quando
praticamos magia natural, quando acreditamos nos tra-
tamentos naturais, quando nos tornamos nebulosamente
sentimentais a respeito da poluição e da conservação
da natureza, quando nos prendemos a uma árvore em
particular, a um lugar, a uma paisagem, quando bus-
camos ouvir significados no vento e nos voltamos aos
oráculos em busca de conforto - a ninfa está fazendo o
seu trabalho.
A ninfa arquetípica continua a aparecer nos achados
da pesquisa clínica de pessoas propensas ao pesadelo.
· 'ty 15
O trabalho de Ernest Hartmann na Tufts U mverS1
conclui que pessoas afetadas pelos pesadelos são "pesso:
as cujo sentido de limite é fraco e indefinido. Para elas~ e
difícil manter fantasia e realidade separadas... Elas nao
possuem uma ideia clara e firme de sua própria ident~da­
de". Além disso, Wernick relata um breve estudo curlO~O
mostrando que "especialistas em arte têm três vezes maIS
14 Op. cito sup. sobre as Ninfas e as Musas.
15 Relatado por WERNICK, Robert, Smithsonian (19/12, março, 1989),72-
96
chance de ter pesadelos do que especialistas em educação
física". Uma vez mais, Pã e as Musas.
A ninfa suscitou na alma moderna um novo culto a
Pã; se Pã viveu tão intensamente na imaginação literária,
especialmente no século XIX, então o mesmo aconteceu
com a ninfa. O recrudescimento de Pã pode ser completa-
mente entendido como um produto da imaginação nínfica,
um estilo anima de consciência que paira na recusa núbil
e no horror à sexualidade, nos desmaios, nas retiradas
neurastênicas do sistema nervoso vegetativo da brumosa
Inglaterra vitoriana de Elisabeth Barrett Browning. Seu
primeiro arrebatamento em Pã foi escrito quando ela ain-
da era uma ninfeta de onze ou doze anos. 16 Outro encontro
de um vitoriano com uma ninfa pode ser lido no texto de
Clifford Allen chamado The Problem of John Ruskin.17
Em cada ninfa há um Pã, e em cada Pã há uma ninfa.
A crueza e a timidez caminham juntas. Não podemos ser
tocados por Pã sem, ao mesmo tempo, fugir dele e nos
refletirmos nele. Nossas reflexões acerca de nossa sexu-
alidade impessoal, suja e grosseira, assim como o deleite
que ela nos proporciona, são os ecos da ninfa em nós. A
ninfa continua a provocar choque e lascívia. E quando
sentimentos e fantasias caprinas irrompem em meio aos
~, .' . devaneios, sabemos que Pã foi novamente evocado por
.
"" uma ninfa.
. ~m cada uma das histórias sobre Pã e as ninfas,
Inclumdo a história que conta o seu nascimento - pois
Dríope, sua mãe nos Hinos homéricos, era uma ninfa
d~s bosques -, a ninfa foge tomada de pânico perante
~a. Mas agora Pã não é o único a amedrontá-las. A fuga
~ essencial ao comportamento das ninfas. Lembrem-se
as perseguições de Zeus, Apolo e Hermes. De modo que
83. ~~ MERNALE, 8l.
International Journal ofSexology (4, 7-14), 1950.
97
precisamos nos perguntar o que é que se passa aqui; o
que significa o padrão arquetípico da fuga. Uma vez que
"todos os deuses são internos" e que o mito está presente
a todo momento em nível arque típico em nossa existência,
a fuga da ninfa continua a existir como um processo nas
florestas profundas de nossa alma.
Tentemos reunir as compulsões de Pã (pânico e estu-
pro) com o objeto feminino de sua compulsão. Recapitule-
mos a relação entre instinto e inibição. Acreditava-se que
o próprio Pã ficava em pânico quando os animais corriam
e que essa visão do pânico de Pã fazia o mundo mergu-
lhar em terror. É como se Pã fosse, ele mesmo, vítima de
pesadelos, convulsões epiléticas, do próprio horror que ele
mesmo provocava. O deus é o que ele faz; sua aparência
é sua essência. Em uma única e mesma natureza há, ao
mesmo tempo, o poder da natureza e o medo de seu poder.
Em nossa discussão sobre pânico, dissemos que o
medo é um chamado à consciência. As ninfas manifestam
esse medo em sua fuga em pânico. Elas mostram, dessa
maneira, uma das vias da natureza, a fuga, que é também
uma das quatro reações naturais instintuais descritas
pelo etólogo Konrad Lorenz. Psicologicamente, a fuga se
torna reflexão (reflexio), ao retroceder e retirar-se de perto
do estímulo e ao recebê-lo indiretamente através da luz
da mente. Como disse Jung a propósito desse instinto:
Reflexio é um voltar-se para dentro, com o resultado ~e
que, ao invés de uma ação instintiva, surja uma su~es~ao
de conteúdos derivados ou estados que podem ser mtItu-
lados como reflexão ou deliberação. Assim, em lugar do ato
compulsivo , aparece certo grau de liberdade ... . 1 ~o
A riqueza da psique humana e seu caráter essenCla ~a
provavelmente determinados por esse instinto refleXIVO.
A reflexão reencena o processo de excitação e transporta
o estímulo para uma série de imagens que, se o impulso
for suficientemente forte, é reproduzida em alguma for~a
de expressão. Isso pode se dar diretamente, por exemp o,
98
no discurso, ou pode aparecer na forma do pensamento
abstrato, representação dramática, uma conduta ética;
ou ainda em uma descoberta científica ou em uma obra
de arte.
Através do instinto reflexivo, o estímulo é transformado
quase que por completo em um conteúdo psíquico, isto
é, ele se torna uma experiência: um processo natural é
transformado em um conteúdo consciente. A reflexão é o
instinto cultural par excellence ... 18
Aqui Jung conceitualizou o mitema arquetípico da
perseguição de Pã e da fuga da ninfa. A teoria conceituaI
de Jung é outro modo de afirmar a fantasia dos contos da
ninfa fugitiva. Em ambos os casos, encontramos a trans-
formação da natureza em reflexão, em discurso, arte e
cultura (Eufeme e as Musas). A base dessa transformação
está no poder das imagens liberadas pela reação de fuga.
Em certo sentido, a cultura começa com a compulsão de
Pã e a fuga que ela desperta.
Mas, para não atribuirmos demasiada importância
à reflexão - pois, sozinha, ela é estéril 19 -, mantenhamos
, a reflexão na proximidade de seu protótipo, o medo. Nele,
consciência e cultura estão instintivamente enraizadas.
Quando a reflexão está enraizada no medo, nós refletimos
para sobreviver. Não se trata mais de devaneios mentais
ou de conhecimento contemplativo.
Ao enfatizarmos a importância do complexo medo-
-fuga-reflexão, estamos deliberadamente diminuindo o
. papel usual de importância do amor na criação da cultura.
Eros não busca a reflexão do mesmo modo compulsivo com
. ~ue Pã busca. Ao invés, o amor repudiaria a reflexão que
Impede seu curso, o amor seria cego. Mesmo quando seu
~: cw 8, § 241-43.
JaneirV~~meu The Myth ofAnalysis, Parte I, op. cito [O mito da análise. Rio de
o. az e Terra, 1984. Trad. de Norma Tellesl.
99
objetivo é a Psique, tal como no conto de Apuleio, há uma
diferença bastante distinta entre Eros e Dioniso, de um
lado, e Pã, de outro. Suas similaridades são evidentes e
suas associações (juntamente a Mrodite e Ariadne, com
sátiros e silenoi, coelhos e crianças, o pinho, o vinho e a
hera etc.) nas representações míticas e alegóricas são su-
ficientemente familiares. As suas diferenças, entretanto,
são menos conhecidas.
A princípio, Pã é ativo e as ninfas são passivas; as
mênades são ativas em relação à quietude sombria de
Dioniso. Por outro lado, Eros não é tanto uma figura da
natureza quanto ele é um daimon. Ele é frequentemente
retratado com asas e com genitais não pronunciados,
enquanto Pã é frequentemente um bode em ereção.
A metáfora de Eros é menos concreta, física; suas inten-
ções e emoções são diferentes em qualidade e local físi-
co. Em contraste às perseguições de Pã, não há histó-
rias desse tipo (com exceção daquela de Apuleio) quanto
aos seus amores. Normalmente, ele é o agens, e não ago-
nista. Tanto em Eros quanto em Dioniso, a consciência
psíquica parece estar presente e ativa (mênades, Psique,
Ariadne), mas em Pã o instinto está sempre à procura
da alma.
Uma maneira de examinar este agrupamento con-
siste em seguir a tradição que situa Eros e Pã no cortejo
de Dioniso, como subsidiários desse cosmos. Uma longa
tradição de numerosos afrescos e pinturas de vasos mostra
20
Pã e Eros lutando, para a diversão da corte de Dioniso.
O contraste entre o belo adolescente Eros e a hirsuta
estranheza do rústico e barrigudo Pã, seguido da vitória
de Eros, foi moralizado para mostrar a superioridade do
amor ao sexo , do refinamento ao estupro, do sentimento .
à paixão. Ademais, a vitória de Eros sobre Pã podena
20 WERNICKE, op. cit., 1457, e HERBIG, op. cit., 32.
100
servir de alegoria filosófica para exprimir que o Amor a
tudo conquista.
Também vejo essa oposição em termos de amor versus
pânico, mas não no sentido cristão do amor vencendo o
medo. A questão aqui não é saber quem conquista quem
e qual moral que pode ser derivada dessa vitória. Ao con-
trário, o que está em jogo é a contenção entre o caminho
de Pã e o caminho do amor. A morte de Pã supostamente
coincide com a ascensão do amor (o culto cristão). Inclu-
sive, talvez o reconhecimento de Pã como um dominante
psíquico implique uma diminuição dos tributos que pa-
gamos ao amor, seja ele representado por Eros, seja por
Cristo, seja por Mrodite.
O amor não desempenha nenhum papel no mundo de
Pã, no pânico, na masturbação e no estupro nem em sua
perseguição às ninfas. Essas não são histórias de amor;
não são contos de sentimentos e relações humanas. A
dança é ritual, não um casal que se move em conjunto;
a música soa como as sinistras flautas dos tons medi-
. terrâneos e não como uma canção de amor. Nós estamos
completamente fora do cosmos de Eros e, em seu lugar,
há a sexualidade e o medo. Talvez isso explique por que
nossa civilização se sente tão transtornada diante da
masturbação e do estupro. Eles não se encaixam em um
mundo de amor. Quando julgados pela perspectiva do
amor, se tornam patológicos.
Então, devemos concluir que o reino do amor não
inclui todos os fatores instintivos da natureza humana,
do mesmo modo que a figura de Eros é a de mais um
deus entre muitos outros. Eros não nos fornece imagens
apropriadas para nos guiar por meio das áreas de nosso
comportamento governadas por Pão Seguir julgando nosso
comportamento-Pã à luz do amor perpetua a supressão
~as qualidades instintivas e a animosidade em relação
a natureza que inevitavelmente conduz a resultados psi-
101
copatológicos. A luta entre Eros e Pã, e a vitória de Eros, Nos deuses C?I?p~stos, a tensão entre castidade e paixão,
continua a rebaixar Pã a cada vez que afirmamos que o ou entre pemtenCIa e prazer, que é geralmente associada
pesadelo é um sonho mal, que o estupro viola a relação, ao conflito entre cristianismo e paganismo, foi relevada
como uma fase do próprio paganismo.
que a masturbação é inferior à penetração, que o amor é
melhor ao medo, que o bode é mais feio que a lebre.
Certamente que o estupro é mais violento, que o pe-
sadelo é mais terrível, que a masturbação é mais solitária
e que o bode é mais fétido que as costumeiras harmo-
nias da domesticação civilizada. Mas os fenômenos que
transtornam o habitual não são ipso facto moralmente
repugnantes. Se todas as coisas estão repletas de deuses,
como afirma Eurípedes, então as coisas têm fundamentos
divinos e são governadas pela Necessidade. Até mesmo a
Bíblia diz: "Há um momento para tudo e um tempo para
cada coisa abaixo do sol".21 Os juízos morais emitidos
dentro dos muros da civilização e as leis que protegem o
cidadão não podem fazer justiça aos fenômenos estran-
geiros, cujo alcance é frequentemente uma "saída". O
púlpito deve condenar o estuprador, e a lei, encarcerá-lo,
mas a tarefa do psicólogo é diferente. Devemos tentar
ver os fenômenos por eles mesmos, fora dos colchetes de
nossas civilizadas responsabilidades. O psicólogo tem um
pé para fora do muro.
Finalmente, os insights extraídos da relação entre Pã
e as ninfas poderiam corrigir a ideia cristã de Pã como um
deus de sexualidade pagã desenfreada a ser controlado
pelas proibições judaico-cristãs, seja por meio do amor
ou da lei. Se as ninfas e Pã são um só, então nenhuma
proibição é necessária. A inibição já está presente na
própria compulsão. Portanto, a paixão sexual é sagrada
e, ao mesmo tempo, um aspecto de reflexão, como insis-
tia Lawrence. O desejo animal traz consigo sua própria
vergonha, sua própria piedade.

21 Eclesiastes 3,1.

102 103
 ECOLOGIA

Uma pergunta que Pã poderia nos fazer é: "Por que

vocês, pessoas civilizadas que professam um cristianis-
mo tão compassivo, maltratam tanto o meio ambiente?
Por que destroem, arrasam e derrubam tantos acres de
bosques e encostas de montanhas? Por que existem cada
vez menos lugares solitários onde pessoas possam se es-
conder na natureza e a natureza se esconder das pessoas?
Estariam tentando acabar com as minhas tocas? Dar uma
solução final ao problema de Pã?".
Pã poderia continuar dizendo: "Às vezes, creio que
praticam uma psicologia reversa, uma psicologia de
projeção. Vocês estupram a natureza e me chamam de
estuprador. Vocês servem a seus desejos privados e me
chamam de masturbador. Vocês deixam traços de ruína
em seus passos e, no entanto, dizem que sou o deus que
favorece os lugares despopulados e inóspitos. Por acaso
seu mundo diurno não estaria se convertendo em um
pesadelo sufocante? Seus filhos não têm cada vez mais
problemas para respirar? Não vivem obcecados com segu-
rança, armados para se proteger da surpresa, medicados
contra os ataques de pânico? O que fizeram para salvar
as ninfas, os diminutos e distintos sons da natureza, a
suave música noturna da natureza? Parques, resorts,
campos de golfe e trilhas claramente delimitados - não

105
 r
existem ninfas nesses espaços, não há riscos de os sentidos
se perderem diante da beleza da terra. Não há sequer ° chamado ecológico; eles viram seus perigos e advertiram
risco de pânico".
Para responder a Pã, imaginemos que a ciência e
sua engenharia tecnológica estão deliberadamente ° Mas não restrinjamos o mundo selvagem a uma Ar-
perseguindo e não simplesmente livrando o progresso da
sociedade do pensamento místico e confuso da natureza.
Mais que tudo, a ciência teme o retorno do Pã "dentro de
nós". Uma vez que Pã é Efialtes e o pesadelo, ele é impre-
visível e amoral. Seus impulsos vivem nos lugares mais
estéreis da psique, lá onde o pensamento da engenharia
civil não ousa se aventurar. Ele se esconde nas cavernas
da psique, nas regiões da alma. Seus convites ao estupro,
à masturbação, a bater em retirada tomados pelo pânico,
estão vivos nos cidadãos mais regulados. Não seria, por
acaso, uma causa básica da moderna degradação ambien-
tal "fora de nós" o ato de dar continuidade à determinação
da história ocidental de manter sob controle, "dentro de
nós", o mais potente e resistente dos deuses antigos, de
assegurar-se de que o Grande Deus Pã permaneça morto?
Não surpreende que ambientalistas recebam tão pou-
ca simpatia. Por baixo do desdém que esses abraçadores
de árvore evocam e da violência que às vezes sofrem está
o medo de Pão Os ambientalistas servem não somente
à orgulhosa e solitária deusa Ártemis em sua tarefa de
proteger o mundo selvagem e seus animais. Os devotos
da natureza são também servos de Pã, terapeutas de seu
culto, no sentido que a palavra therapeia tinha a princí-
pio - adorador, servo, devoto de um deus ou de um culto.
De modo que não é surpreendente que Watt, secre-
tário do interior de Utah, e Chenowith, congressista de
ldaho, declarassem em diversas ocasiões que o ambien-
talismo é paganismo. O retorno à natureza convida Pã; e
se o Grande Deus Pã e seu paganismo estivessem vivos,
que implicações haveria para o cristianismo? A temeroSiJ.
106
retidão dos dois funcionários do Estado percebeu deus no
aoS ambientalistas que seguir Pã é um caminho perigoso,
pois o cristianismo civilizado o quer morto.
cádia bucólica agora situada nas áreas vazias de Utah e
Idaho. A cidade também tem seus locais solitários e suas
cavernas escuras. A cidade também excita a espontanei-
dade libidinosa. O bode também habita a cena urbana ,
espreita nas esquinas e, como Efialtes, visita os pesadelos
do mais urbano dos cidadãos. Pode ser que o selvagem
não esteja confinado aos lugares selvagens, tal como
imaginado pela oposição habitual entre natureza sublime
e cidade degenerada. O "selvagem" pode se libertar das
áreas selvagens da natureza e o próprio lugar selvagem
pode ser desliteralizado de forma que Pã possa retornar
à cidade.
Atenas, o modelo de todas as cidades, tinha o seu culto
a Pão Luciano chamou Pã de symmakhos, ou o aliado de
Atenas, onde ele tinha santuários e rituais. De acordo com
Borgeaud, l Pã equilibrava o militarismo de Atenas e Ares
graças a sua agradável música e à dança, ao riso, aos ritos
de mistério e a sua aliança com Mrodite, a "sorridente".
· Arcádia apareceria, então, à guisa de uma cidade român-
· tica, brumosa, lânguida, evocativa - Paris Manhattan
· Veneza, Dresden -, a siringe de Pã se co~verteria e~
saxofone, Selene em anseios sonhadores, a cidade em um
· lugar assombrado por ninfas e pela ninfolepsia.
10 .
p. CU., 133 88., d176 8.
107
ESPONTANEIDADE - SINCRONICIDADE

A hora de Pã sempre foi o meio-dia. Nesse momento,

ele aparecia nas chamas e no resplendor do meio-dia,
levando homens e animais a um terror cego. Esse fato
parece ter pouco a ver com o pesadelo. Talvez devamos
considerar o meio-dia, o zênite do dia, como o ponto mais
alto da força natural, na qual constela, ao mesmo tempo, a
força vital e seu oposto, a necessária queda de sua altura.
Nesse sinistro momento, minha sombra e eu somos um. O
meio-dia, como a meia-noite, é um momento de transição
e, como a meia-noite, o raiar e o pôr do sol são um eixo de
orientação primordial para o que chamamos de relógio
simbólico. Esses são momentos em que o tempo se detém,
quando a procissão ordenada do tempo se interrompe. De
maneira que certas coisas devem ser efetuadas antes do
canto do galo ao amanhecer, ou antes das doze badaladas
da meia-noite, ou antes do cair da noite. Nesses períodos,
algo de extraordinário atravessa o tempo, algo para além
da ordem usual. O Mittagsfrauen aparece, ou os fantasmas
da meia-noite - semelhante à visão do eterno ao meio-
-dia em Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Esse é o
momento em que somente o momento importa, quando
o momento é separado do antes e do depois, de uma lei
Para si mesmo, de uma qualidade, de uma constelação de
forças no ar, sem continuidade e, portanto, sem conexão

109
i'
com o "triste tempo desperdiçado / que se estende antes
e depois".1
Esta é a impossibilidade de conexão com Pã e o as-
pecto de espontaneidade da natureza. Ele é simplesmente
como deveria ser e está no local onde deveria estar; não é
um resultado de eventos, nem uma pendência de retorno;
impetuoso, imprudente, brutal e direto, seja em terror ou
em desejo. É isto que queremos dizer por espontaneidade
do instinto - toda a vida no momento da propagação ou
toda a morte no pânico do rebanho. Poderíamos atribuir
muitas explicações a esse comportamento. Poderíamos
entender que a espontaneidade é "causada" por leis mais
profundas de autopreservação e de sobrevivência das
espécies. Podemos ainda ver um padrão ecológico mais
amplo por trás destes eventos súbitos, discernir que eles
pertencem a uma rede maior de fatores entrelaçados.
Poderíamos considerar os saltos quânticos e o princípio
de descontinuidade como operativos também em huma-
nos e em animais (e não somente na física inorgânica).
Ou então poderíamos conceituar a espontaneidade em
termos de códigos genéticos inatos agindo no seio de um
ciclo temporal inato. Ainda assim, as travessuras espon-
tâneas das crianças e as cambalhotas dos cordeiros, como
também a ereção do pastor ou seu sinistro medo, ocorrem
como eventos não conectados, ainda que instantâneos. A
espontaneidade permanece fora de qualquer explicação.
Por definição, ela não pode ser explicada.
Espontaneidade significa autogeração, imprevisibi-
lidade, não repetição. Ela não pertence ao domínio das
ciências naturais, tal como a ciência hoje se define, mesmO
que a espontaneidade se pareça com um fenómeno natu-
ral. Descobrir as leis do espontâneo seria uma contradição
de termos, pois esses eventos são irregulares, fora da lei.
1 ELIOT, T. S., "Burnt Norton", V.
110
portanto, considerar eventos espontâneos como eventos
aleatórios, passíveis de figurar nas tabelas de Fischer,
borra as categorias de qualidade e quantidade. Aleatório
é um conceito quantitativo; espontâneo é qualitativo e
significativo, indica o que Whitehead chamava de "im-
portância". Há uma emoção na espontaneidade. Ela é
radicalmente livre.
Ao considerarmos que Pã é o pano de fundo da
espontaneidade, 2 estamos sugerindo uma aproximação
dos eventos espontâneos por meio da psicologia arque-
típica. Procuramos pelos princípios que os governam,
seu dominante arquetípico, de forma que os imaginemos
mais psicologicamente, e também compreendamos mais
psicologicamente a tradição que prefigura a dificuldade de
compreender e conceber tais eventos. Pã não os explica-
rá, mas poderá nos oferecer uma vereda por onde nossos
insights possam transitar.
O pânico espontâneo surgido da imobilidade do
meio-dia reaparece em outra configuração, o kabald, ou
pequeno demónio que, segundo Roscher, causaria pânico e
pesadelo. Esse ser também tem uma conotação sexual: ele
é fálico, semelhante a um anão, fecundo, tanto auspicioso
quanto terrificante. Herbert Silberer (provavelmente o
pupilo mais talentoso e aventureiro de Freud, mas nem
sua profunda perspicácia psicológica acerca da alquimia
nem sua rica imaginação e sonhos puderam salvá-lo do
suicídio) estudou o kabald em relação aos eventos "aci-
dentais". Sua obra foi uma das primeiras investigações
PSicológicas a respeito do pano de fundo arquetípico do
destino ou dos supostos fenómenos acausais.
Silberer atribuía a aparição espontânea de figuras de
kobold a eventos fortuitos. Elas podem ser consideradas
COmoAugenblicks Gatt [deus instantâneo], na linguagem
2 Cf. ARNOLD, Matthew, 8, acima.
111
de Usener. Ou ainda imaginá-los como o daimon que
repentinamente advertia Sócrates, ou como qualquer
"personificação" de um evento obstinado que funcionas_
se como uma entidade cruzando o nosso caminho. Jung
considerava esses eventos em parte como complexos
psíquicos e em parte como demônios espirituais. 3 Mas,
sobretudo, ele os reconhecia como sendo tão autênticos
quanto a natureza.
Hoje em dia, nos utilizamos de conceitos para essas
experiências, como pressentimento, intuição, sentimen-
tos sinistros, ou até mesmo profecia, no sentido acima
mencionado. A parapsicologia fala de um sexto sentido
que a humanidade compartilharia com os animais. Esses
conceitos, no entanto, não nos levam muito longe. Ainda
seguimos com a suposição sentimental de que há um nível
de consciência, distribuído onde quer que exista vida ins-
tintiva, emitindo ecos nesta vida através de sinais súbitos.
O mito expressou essa ideia com o desmembramento
de Eco. No conto de Longo sobre Dafne e Cloé, Eco foi feita
em pedaços pelos pastores de Pã (por ter recusado o deus).
Seus membros cantantes foram espalhados aos quatro
ventos. Digamos que Pã fala nesses pedaços ecoantes
de informação que apresentam a própria consciência da
natureza nos momentos de espontaneidade. Por que eles
ocorrem precisamente neste momento e não em outro,
por que eles são tão frequentemente fragmentários; tri-
viais e até mesmo falsos - essas questões deveriam ser
exploradas através de uma mitologia do espontâneo e não
através de métodos empíricos ou lógicos. Seria necessário
penetrar mais fundo na natureza de Pã (e das ninfas) para
melhor sondar essas manifestações que parecem querer
continuar renegadas e diáfanas, meio zombeteiras e meio
verdadeiras, e tão presas a fortes emoções. Contudo, a
3 CW 8, § 570-600.
112
aproximação às suas irregularidades deverá ser herme-
nêutica e não somente sistemática.
Jung trabalhou tanto sistemática como hermeneu-
ticamente acerca dos eventos fortuitos enquanto evidên-
cias para sua hipótese da sincronicidade. Esse termo se
refere às coincidências significativas dos eventos psíqui-
cos e físicos para os quais não pode ser dada nenhuma
explicação satisfatória através das categorias correntes
de casualidade, espaço e tempo. Jung considerava que a
sincronicidade era um princípio igual aos outros três e,
igual a eles, também parte da natureza. Ele descobriu
que conexões repentinas, irracionais, peculiares, embora
significativas, aconteciam principalmente quando níveis
instintuais (emocional, arquetípico, simbólico) da psique
estavam mutuamente implicados.
Pã não pode ser identificado a todas as emoções,
a todos os arquétipos. Mas quando uma coincidência
significativa ocorre que seja dotada de um caráter par-
ticularmente sexual, ou que provoque pânico, ou que
se refira à sua temporalidade (meio-dia e pesadelo), ou
à sua paisagem e atributos, ou ao estado de humor de
suas ninfas, então temos de nos dirigir a ele em busca de
insight. Mas, mais que isso, Pã poderá desempenhar um
papel na sincronicidade em geral, uma vez que Pã, como
a sincronicidade, conecta a natureza "dentro de nós" à
natureza "fora de nós". Novamente, a fantasia conceituaI
de Jung sobre a sincronicidade e a fantasia imaginária
de Pã têm um pouco em comum.
Se o princípio da sincronicidade é outra maneira de
falar sobre Pã, então podemos começar a compreender por
que todos que se ocupam do campo de espontaneidade a
que chamamos de parapsicologia se tornam renegados
da ordem civilizada dos homens racionais. Na medida
~~ ~ue a sincronicidade é o quarto princípio diabólico,
a e a sombra diabólica de nossa Trindade arquetípica
113
i
,I
I::""
dominante. A integração da parapsicologia na ciência e na
psicologia de respeito requereria uma reavaliação de ~ã e
uma visão de instinto e natureza desde sua perspectIva. CURANDO NOSSA LOUCURA
Do contrário, a parapsicologia tenderá a ser projetada na
sombra de Pã, um campo de sentimentalismo e religião
natural, ao mesmo tempo cômico, não confiável, obscuro e
lunático - tal como nossa mente civilizada ainda acredita
que Pã seja.

o deus que traz a loucura também pode nos livrar

dela. Semelhante cura semelhante. E, apesar desse fato,
pouca atenção foi dada a Pã em todos os escritos sobre
doença mental. Pã foi uma das poucas figuras da mitologia
grega a quem a doença mental era diretamente atribuída. 1
Lemos em Roscher que Sorano considerava Pã respon-
sável tanto pela mania quanto pela epilepsia - fato que
poderíamos delimitar melhor, na linguagem dos dias de
hoje, ao dizermos que Pã (inflator) governa nossos estados
hipomaníacos, especialmente aqueles acompanhados por
compulsões sexuais e atividade hipermotora, bem como
ataques repentinos de violenta convulsão, quer seja de
. pânico, angústia, pesadelo ou mântica (glossolalia).
Segundo a metáfora psicoide, genética, Pã governaria
•. as camadas mais profundas de nosso frenesi e de nosso
medo. Mas, ao mesmo tempo, Pã também seria capaz
,de curar neste nível, de modo que existiriam afinidades
. ,entre ele e Esculápio através dos atributos da música,
do falo, de visões em pesadelos e insight mântico. Ambos,
p~ e Esculápio, curam através dos sonhos. Por meio das
nInfas, lugares especiais, curam e abençoam. Também

ltoU~?ODDS,Op. cit., 79 com nota: cf. ROSEN, G.,Madness in Society (Londres:

. edge, 1968), 77 ss.

115
114
vimos Pã salvar a desesperada Psique e também libertar
a prisioneira Cloé no conto de Longo.
Talvez agora possamos reler a oração que Platão faz
a Pã, referenciada na epígrafe deste ensaio. Ela é pro-
nunciada por Sócrates em um diálogo cuja preocupação
principal (e fruto de intenso debate) diz respeito à ma-
neira correta de se falar sobre Eros e loucura. O diálogo
é concluído com Pã e se inicia à orla sombria de um rio
próximo a um local sagrado para as ninfas. Sócrates ali
descansa, com pés descalços. Logo ao início, Sócrates
menciona que ele continuamente luta para compreender
a máxima "conhece-te a ti mesmo", através de sentido de
ignorância a respeito de sua verdadeira natureza.
Então, ao final da oração, ele faz um apelo à beleza
interior, a qual colocaria fim à ignorância, pois, na psico-
logia platônica, o insight no seio da verdadeira natureza
das coisas seria capaz de trazer a verdadeira beleza. Pã,
então, seria o deus capaz de conceder um modo p~rticu­
lar de consciência do qual Sócrates necessitava. E como
se Pã fosse a resposta para a questão apolínea sobre o
conhecimento de si.
O que é esse modo de consciência e como atingi-lo?
Já vimos que Pã é o deus da natureza "d ent ro d e nos ," e
da natureza "fora de nós". Enquanto tal, Pã é a configura-
ção conectiva que impediria as reflexões de se converter
em duas partes desconexas, vindo a constituir o dilema
de uma natureza sem alma e de uma alma sem naturez~,
da matéria objetiva fora de nós e dos processos mentaIS
subjetivos dentro de nós. Pã e as ninfas mantêm a n~tu­
reza e a psique unidas. Eles dizem que eventos lns:
tintivos se refletem na alma e nos dizem que a alma e
instintiva. _ da
. !al como apres~ntado p~r Pã, toda edu~açao,. to de
relIgIão, toda terapIa que nao reconheça a IdentIda I"
da alma no instinto, privilegiando um aspecto em detr
116
:mento do outro, o insulta e não será capaz de promover
cura. Não poderemos fazer nada para a alma sem que a
reconheçamos como uma natureza "dentro de nós", do
:mesmo modo que não poderemos fazer nada pelo instinto
se nos esquecermos de que ele possui sua própria fantasia,
reflexão e intenções psíquicas. A identidade dos centros
gêmeoS de Pã, estando manifestada por comportamento
e fantasia, compulsão e inibição, sexualidade e pânico,
OU pelo deus e suas ninfas, implica que psique e instinto
são inseparáveis a todo momento. O que fazemos ao nosso
instinto também fazemos à nossa alma.
Essa ideia, se levada à abrangência máxima de seus
temas mitológicos e dos comportamentos de Pã, tem con-
sequências. Significa que o autoconhecimento reconhece
a presença de Pã nas cavernas mais obscuras da psique e
que este é o seu lugar. Significa, indo mais adiante, que o
autoconhecimento reconhece que o "horror" de Pã e suas
."depravações morais" também pertencem à alma. Esse
. insight, ao dar ao bode o que lhe é devido, poderá trazer
àquilo para o qual Sócrates orava. E, ao reconhe-
t·",t:J·HHJ~ Pã, tão plenamente quanto possível, ele poderá nos
da bênção que Sócrates buscava, em que interior
exterior são uma só coisa.
A oração de Sócrates é ainda mais relevante nos dias
hoje do que nunca. Não seremos capazes de encontrar
caminho de volta à harmonia tão somente com o
da natureza. Ainda que hoje a principal preocu-
. seja ecológica, a ecologia, enquanto tal, não basta.
Importância da tecnologia e do conhecimento científico
. . da proteção da natureza está fora de discussão
parte do campo ecológico é natureza humana, em cuj~
os arquétipos dominam. Se lá Pã é suprimido, a
e os instintos dispersarão, não importando nosso
em níveis racionais para mantermos tudo em seu
lugar. Para que se restaure, conserve e promova a
117
natureza "fora de nós", a natureza "dentro de nós" também
deverá ser restaurada, conservada e promovida precisa-
mente no mesmo nível de intensidade. De outro modo,
nossa percepção da natureza fora de nós, nossas ações
sobre ela, bem como nossas reações a ela, continuarão a
mostrar os mesmos excessos de inadequação instintiva
do passado. Privados de Pã, nossas boas intenções de
retificar erros do passado irão somente perpetrá-los de
outras maneiras.
A reeducação do cidadão em relação à natureza vai
mais além da consciência temerosa e gentil da ninfa. O
respeito pela vida não é o bastante e até mesmo o amor
rebaixaria Pã, de sorte que não poderemos reeducar o
cidadão através de meios que nos são familiares. Todos
esses tomam a morte de Pã como seu ponto de partida.
Essa reeducação teria de começar, ao menos parcialmente,
pelo ponto de vista de Pã, pois, no final das contas, é o seu
mundo natural que tanto nos assombra. Contudo, o mun-
do de Pã inclui masturbação, estupro, pânico, convulsões
e pesadelos. Reeducar o cidadão na relação à natureza
significaria nada menos que o estabelecimento de uma
nova forma de relação com os "horrores", "depravações
morais" e "loucuras" que fazem parte da vida instintiva
da alma do cidadão.
Se Pã traz a loucura, então ele é o seu curador. Se-
melhante cura semelhante. Ele pertence à educação do
cidadão. Como mestre da alma instintiva, ele tem algo a
nos ensinar acerca de seus ritmos e de sua abrangência.
Pã era um músico e se dizia um grande dançarino. Sua
presença se fazia sentir em reuniões de corais, no com-
passo rítmico dos aplausos,2 trazendo ordem comunal
ao pânico privado. A música tira o corpo de sua solidão
asilada. Ela educa (literalmente, "põe para fora") a alma
2 BORGEAUD, Philippe, 150.
118
que havia se refugiado em si mesma por medo. Dizem que
oS diferentes tipos de dança começam no mundo animal;
humanos aprenderam movimentos e gestos dos animais,
oS mestres do balé da espontaneidade ritualizada. A
dança surge do selvagem e sua intoxicação nos conduz
de volta a ele.
As sociedades estritamente bíblicas se horrorizam
perante a dança. Pouco tempo atrás, eram as polcas e as
valsas e, mais tarde, o foxtrot e o charleston e, então, im-
portações sensuais (tango, rumba, lambada). A dança teve
de ser vigiada, denunciada, proibida. O horror à dança é o
horror a Pã; hebraísmo versos helenismo, controle versus
espontaneidade.
Se a sociedade sofre do mal da rapacidade selvagem,
do exibicionismo masturbatório, da violência eruptiva e
da perda do sentido íntimo de natureza no suposto "va-
zio" de uma "geração perdida", seu domínio e espírito de
selvageria, então o deus dessa doença é Pão Ele oferece
uma educação musical que tocaria a toda uma geração-
mas a música que figura no currículo das escolas e não
simplesmente o pop da exploração comercial. Assim, Pã
regressaria da cacofonia ruidosa para a flauta e a siringe,
delicadas complexidades dos passos do deus de patas de
bode. E, então, poderemos ver que não é Pã que está louco
e deve ser curado, mas é a sociedade que se esqueceu de
como dançar com ele.
Tudo isso nos leva de volta ao pesadelo e ao lado hor-
ripilante da alma instintiva que ele revela. A perplexidade
de Sócrates diante de si mesmo no início de Fedro (230a)
revela um enfoque similar. Ele considera sua semelhança
a Tífon, o gigante demoníaco das erupções vulcânicas,
tormentas e terremotos subterrâneos, "a personificação
do poder destrutivo da natureza". 3 "Conhecer a si mesmo"
3 SCMIDT, "Typhoeus, Typhon", Lexikon V, 1426.
119
em Fedro se inicia com o insight do aspecto demoníaco
da natureza.
É isso que o pesadelo revela. Nele a reeducação cura-
tiva poderia começar porque nele a alma instintiva é mais
real. Jones nos lembra de que a "vividez dos Pesadelos
transcende de longe aquela dos sonhos ordinários".4 Ros-
cher e Laistner observaram o mesmo e Jones cita outros
autores que evidenciaram essa realidade:
O grau de consciência durante um paroxismo do Pesadelo
é muito superior que o de qualquer sonho ... De fato, eu
não conheceria nenhum meio pelo qual um homem teria
de convencer-se de que a visão que lhe ocorreu durante
um paroxismo do Pesadelo não é real. 5
As ilusões que ocorrem são talvez o mais extraordinário
fenômeno do pesadelo, e, de tão fortes que suas impressões
frequentemente parecem ser para nossa mente, mesmo
ao acordarmos, cremos impossível não acreditar que elas
não são reais. 6
enquanto um ser sexual, é una com o ser animal, com
o instinto e, portanto, com a natureza. A visão de Pã de
nossa humanidade é que também somos natureza pura,
que erupções vulcânicas, convulsões e tufões destrutivos
noS habitam. Essa realidade não pode ser fundamentada
por conceitos abstratos. A metáfora da natureza é con-
creta e possui forma. Deve ser sentida, experimentada,
contemplada na experiência concreta e real dos pelos e
dos cascos. Devemos ser paralisados e sufocados por essa
realidade como se algo de eufemístico partisse sempre em
fuga do "horror". Esta experiência sensorial foi, e continua
sendo, a visão de Pã em suas formas de pesadelos. Deste
modo, Roscher, Laistner e Jones, nas mais distintas for-
mas, estão corretos em ver significado no pesadelo. Seu
poder numinoso reclama uma ideia incomensuravelmente
esmagadora: através da realidade do pesadelo, a realidade
do deus natural é revelada.

Desse tipo de experiência, Jones retira seu principal

ponto condensado na segunda epígrafe no início deste
ensaio: a vividez da experiência do pesadelo deu origem
à crença da realidade objetiva dos demônios personifica-
dos e deuses ou do pesadelo como base experiencial da
religião. Naturalmente, para J ones, existem dinamismos
psicossexuais de ordem pessoal, de modo que o p,oder
fértil de seu insight quanto à relação entre o pesadelo e
a realidade dos deuses se vê castrado por uma utilização
tacanha de sua teoria.
O efeito horripilante e curativo do pesadelo toma
lugar não porque é uma revelação da sexualidade enquan-
to tal, mas porque a natureza fundamental do homem,

4 Op. cit., 71
5 WALLER, J., in JONES, ibid.
6 MACNISH, R., in JONES, ibid.

120 121
 Parte II
EFIALTES
UM TRATADO MÍTICO-PATOLÓGICO
SOBRE O PESADELO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA

Por
Wilhelm Heinrich Roscher

, ,

; :
 DA IMPORTÂNCIA PSICOLÓGICA
DO TEXTO E SEU AUTOR
Por James Hillman

A seguinte monografia é um exemplo clássico da filo-

logia europeia do século XIX. Aqui podemos acompanhar
a evolução de um problema significativo - tanto para a
filologia quanto para a vida -, amplificado e analisado por
um homem de imensa cultura. Esta monografia é também
um exemplo de saber negligenciado. À maneira de uma
criatura pré-histórica, o volume e a complexidade de seus
apêndices não permitiram que sua tradução se desse em
outro momento da cultura que não o seu próprio, de modo
que a monografia permaneceu como uma relíquia não lida,
porém preservada, no fundo das bibliotecas acadêmicas e
somente referenciada em notas de rodapé como um tipo
de antecipação de obras posteriores. Uma vez que meu
Ensaio sobre Pã é uma das obras posteriores que depen-
dem deste trabalho, é apropriado honrar a este texto e o
homem que o escreveu.
Devido ao fato de que a monografia de Roscher foi
escrita em uma época muito mais tranquila, quando o
custo de se imprimir extensas notas de rodapé em grego
não era tão inibitório quanto é agora, os estudiosos podiam
sustentar qualquer afirmação feita em um texto com o
auxílio de grande quantidade de citações em grego de
exemplos similares. Às vezes essa ostentação ia mais além
do aconselhável, tornando-se um maneirismo que ainda

125
hoje afeta nossas publicações acadêmicas. Ao preparar
esta tradução, foi necessário, em primeiro lugar, escolher
entre o essencial ou a mera curiosidade. A escolha ideal,
incluir cada nota em literal exatidão, não se mostrava
como uma opção possível, visto que teria implicado o
aban,dono de todo o projeto. Ao invés, decidimos então im-
primir uma tradução acurada do texto com amplas notas,
de forma que o leitor não especialista em inglês pudesse
tirar proveito de uma obra essencial, mas sem o exorbi-
tante aparato de notas fornecido por Roscher. As notas
de rodapé relevantes foram incluídas no corpo do texto,
que, por sua vez, foi completa e fielmente traduzido para
o inglês. Desse modo, o leitor não se vê obrigado a mover
seus olhos horizontalmente pela página e verticalmente
entre as notas de rodapé e o texto. Por essa mesma razão,
para facilitar a leitura, todos os termos em grego foram
transliterados em letras familiares, inclusive no capítulo
3, que se dedica a uma investigação de caráter etimoló-
gico. A nota bibliográfica final, na página 160, descreve o
plano da monografia original, assim como dá informações
de caráter bibliográfico.
Qualquer pessoa com suficiente conhecimento para
seguir o assunto para além do que é dado aqui pode, com
certeza, também buscar esses temas diretamente no ori-
ginal - não somente no alemão de Roscher, mas também
no grego no qual a obra de Roscher se baseia. Portanto,
esta tradução se dirige menos a filólogos do que a todos
aqueles cujo amplo interesse pelos sonhos, mitos e ter-
rores da alma se vê limitado pelo moderno mal-estar do
"pouco latim e menos ainda grego". Porque não devemos
nos privar por completo do conhecimento da Antiguidade,
esta tradução pretende nos colocar novamente em contato
com essa tradição, mas agora em nossa própria linguagem.
Wilhelm Heinrich Roscher foi filho do famoso eco-
nomista alemão Wilhelm R. Roscher, que recebeu mais
126
espaço nos dicionários bibliográficos que seu filho. Roscher
sênior foi um dos fundadores da escola histórica de eco-
nomia política, que teve seu papel no desenvolvimento da
Alemanha moderna sob o governo de Bismarck. Roscher
Júnior nasceu em Gottingen, em 12 de fevereiro de 1845,
e sua família se mudou para Leipzig três anos mais tarde.
Ali ele estudou no Ginásio Nikolai e na escola St. Mra
perto de Meissen, depois se mudou para estudar línguas
clássicas por três semestres em Gottingen e, em seguida,
voltou para Leipzig, onde obteve seu doutorado em 1869.
Durante a segunda metade do século XIX, Leipzig foi
um dos maiores centros de atividade científica e filosófica
da Alemanha. A cidade não era somente importante pela
sua expansão econômica, mas também se consolidou como
um centro editorial e foi cenário de novas realizações
arquitetônicas, incluindo seu famoso museu de arte. Ro-
bert Schumann e Richard Wagner estudaram em Leipzig,
assim como Pavlov, mais tarde; Theodore Mommsen lá
mantinha uma cátedra, enquanto nas ciências médicas
havia His em anatomia, Fleching em pesquisas sobre o
cérebro, Strumpell em neurologia e Wunderlich, um dos
reformadores da medicina alemã a quem devemos a cria-
ção das bases da termometria clínica. A obra de Otswald
sobre químico-física foi gestada em Leipzig, e Fechner lá
mantinha, também, seu laboratório. Pode-se dizer que a
psicofísica começa com Fechner, do mesmo modo que a
psicologia experimental se inicia com Wundt, que fundou
seu instituto em Leipzig e que no ano de 1878 logo se
converteria em um santuário cobiçado pelos estudantes
americanos de psicologia.
Assim era Leipzig, reduto intelectual da juventude e
da maturidade de Roscher que, por sua vez, era também
um investigador pioneiro e um infatigável compilador
de dados à moda do século XIX. Somente agora podemos
compreender que suas realizações no terreno da filologia
127
são equiparáveis às de seus contemporâneos no campo
das ciências naturais. Ele, mais que qualquer outro clas-
sicista, é responsável por ter reunido em um único lugar
o material mítico e religioso do mundo antigo, preparan-
do assim o terreno para o estudo científico do mito e do
símbolo. Entre seus companheiros na Universidade de
Leipzig, havia Friedrich Nietzsche e Erwin Rohde, filólogo
mais conhecido por nós pela sua obra Psique ou o culto
das almas. Com eles, Roscher fundou o Clube de Filologia.
Roscher e Rohde viajaram juntos para a Itália, e Roscher
visitou a Grécia e aÁsia Menor entre 1873 e 74. Em 1876,
ele se casou com Eveline Koller, que, segundo o obituário
de Roscher no Neue Zürcher Zeitung (Zweite Morgenblatt,
20 de março de 1923), era uma suíça originária de Herisau.
Tiveram três filhos. O único filho homem de Roscher (de
novo, um Wilhelm) e seu genro serviram na frente oci-
dental durante a guerra de 1914-1918; Roscher encontrou
em suas pesquisas o consolo para a ansiedade causada
pelo fato de ambos estarem na guerra, fato previsto por
seu pai, inclusive, muito tempo antes. Ele é descrito como
alguém de natureza tranquila e reservada, trabalhando
em sua mesa até a idade avançada tanto quanto a luz do
dia permitisse.
Sua carreira pública foi inteiramente dedicada à
educação. Ensinou línguas clássicas em sua antiga escola,
St. Mra, por onze anos, e então, até alcançar seus setenta
anos (1905), lecionou no Ginásio de Wurzun. Ascendeu
através dos vários títulos no escalão do sistema da edu-
cação secundária: Oberlehrer, Oberstudienrat, Konrektor,
Rektor, Geheimrat. Os beneficiários de todo o seu saber
foram seus alunos, que estudaram com ele no equiva-
lente ao nosso bacharelado. Esse fato põe em relevo uma
diferença entre a noção seletiva da educação, própria do
continente europeu, e a noção de educação da democracia
americana. Põe em relevo, também, a diferença a respei-
128
1 129
to do papel das línguas clássicas entre o final do século
XIX e a segunda metade do século XX. Roscher viveria
ainda por mais dezoito anos após sua aposentadoria,
morrendo aos setenta e oito anos em Dresden, em 7 de
março de 1923.
Roscher devotou a maior parte da sua vida acadê-
mica a uma enciclopédia de mitologia greco-romana cujo
título em inglês seria The Comprehensive Dictionary of
Greek and Roman Mythology (Ausführliches Lexikon der
grichischen und romischen MythologieJ. Sua publicação
se iniciou no ano de 1884 e, ao longo da editoração de
Roscher, ela pôde chegar à letra "T". Cada um de seus oito
volumes continha aproximadamente seiscentas colunas
em letras pequenas (fonte 8), o que reimpresso nos dias
de hoje representaria nada menos que doze mil páginas.
Cabe assinalar que os artigos, nem todos da autoria ou da
revisão de Roscher, estão quase todos o mais abreviada
e condensadamente possível em escrita estenográfica. O
Lexikon examina não somente o corpus de todos os auto-
res clássicos, mas também os da literatura posterior, faz
comparações, propõe comentários e é ricamente ilustrado,
pois Roscher tinha enorme familiaridade com as artes, a
arquitetura e as descobertas arqueológicas relevantes ao
assunto. Essa obra é, ainda hoje, fundamental e valiosa;
recentemente, a editora Olms de Hildesheim publicou
uma reprodução fotomecânica, finalizada por outras mãos,
em dez volumes. Nos nossos dias, o Lexikon continua
proporcionando material para inúmeros artigos sobre mi-
tologia, e constitui um ponto de referência indispensável
nas bibliografias e notas de rodapé. Grande parte de suas
investigações anteriores, bem como aquelas que escreveu
paralelamente à compilação do Lexikon - Apollon und
Mars (1873), Juno undHera (1875),Hermes der Windgott
(1878), Die Gorgone und Verwandtes (1979), Nektar und
Ambrosia (1878), Selene und Verwandtes (1890), e seus
estudos sobre Pã - foram integradas à edição ampliada
do Lexikon.
Como os títulos indicam, Roscher estava particular-
mente interessado em mitologia comparada - assunto esse
que, em suas últimas obras, o levou para mais além das
fontes gregas e latinas. De modo que podemos constatar,
a exemplo de seu estudo sobre o pesadelo, que Roscher
utilizou obras bizantinas, os estudos psicológicos de seu
tempo sobre sono e sonhos e recorreu também ao material
proveniente de outras mitologias e tradições do norte da
Europa e Ásia. Em 1897, examinou o papel do cachorro
e do lobo na escatologia dos gregos, tentando descobrir
conexões entre as ideias religiosas desses animais na
Antiguidade e o problema do lobisomem, da cinantropia e
da licantropia. Ele havia publicado um artigo sobre esses
temas antes da aparição de sua monografia sobre o pesa-
delo em 1900, quando estava com cinquenta e cinco anos.
Posteriormente, ele se apaixonou por temas ainda mais
abstratos: os números na medicina grega, os números sete,
nove e quarenta e o conceito de ponto médio imaginário,
o omphalos ou o umbigo do mundo, tema recorrente na
mitologia grega, romana e semita. Ele também publicou
artigos sobre esses temas. Podemos reconhecer um pa-
drão biográfico em seus escritos que vai de estudos para
cada uma das personificações arquetípicas dos deuses,
passando por seu interesse pelas mais terríveis forças
psicológicas (o pesadelo, a sexualidade, os lobisomens,
a licantropia), até chegar a temas típicos da consciência
senex, quando sob a regência de Saturno: os números e o
conceito de centro.
Mas Roscher foi muito mais que um copista ou en-
ciclopedista. Seu espírito buscava os aspectos insólitos
de seus temas, além de seu aspecto histórico e filológico.
Sua erudição foi, de certa maneira, modificada pelas
correntes românticas que fluíam através do racionalismo
130
do final do século XIX, reaquecendo-o e inflando-o com
novoS e surpreendentes tipos de vida, sendo a psicologia
do inconsciente o mais importante de todos. A obra de
Roscher no campo da mitologia pertence tanto às fon-
tes da psicologia profunda quanto também perten-
cem as obras de Taylor, Frazer e outros antropólogos
de seu tempo, de modo análogo às obras dos irmãos
Grimm ao folclore e aos trabalhos de seus contemporâ-
neos Charcot, Bernheim e Freud no campo da medici-
na. A exploração do pano de fundo da mente racional,
seja através da investigação rigorosa da dissociação
histérica, dos hábitos de pensamento dos povos "primi-
tivos", seja por meio das crenças do passado por meio
da investigação linguística, mitológica ou arqueológica,
culminou no que hoje conhecemos como a psicologia do
inconsciente. O conceito junguiano de arquétipo reside
nas evidências acumuladas por essas disciplinas tão
variadas.
Se formos incapazes de ver mais que uma das mui-
tas raízes entrelaçadas da obra de Jung - por exemplo,
Freud ou Bleuler, ou sua base nos primeiros experimentos
wundtianos de associação, ou seu interesse inicial pela
parapsicologia e ocultismo, ou os problemas da teologia
cristã e suas heresias (alquimia) -, corremos o risco de
negligenciar outros aspectos do pano de fundo da moderna
psicologia profunda em detrimento de outros. Ademais,
uma vez que a psicologia profunda moderna surgiu gra-
ças a estas novas disciplinas do século XIX (psiquiatria,
antropologia, folclore, espiritismo, religiões comparadas
e mitologia), devemos também ler a história desses cam-
pos a partir de um ponto de vista psicológico. Em suas
hipóteses e descobertas, esses campos não se limitavam
a descrever o material correspondente a suas respectivas
disciplinas, mas também falavam do que, em breve, cha-
maríamos de "psicologia do inconsciente".
131
 Portanto, os trabalhos desses pioneiros serviram
não somente para conceder pano de fundo histórico para
seus descendentes modernos no terreno da psiquiatria
"científica", da antropologia e da mitologia, mas também
continham um fermento psicológico, fazendo crescer
muitas de suas hipóteses para além dos limites do que
seria autorizado pelos fatos na atualidade. Assim sendo,
não podemos culpar Roscher por lançar longe sua rede
de pesca nem pelos curiosos peixes que ele trouxe à su-
perfície. Os estudos clássicos deste século impuseram
duras restrições e críticas à filologia do século XIX, ques-
tionando seus métodos e evidências, seu eurocentrismo
e o pior - rindo de suas ambições. A moderna filologia
acadêmica franze o cenho perante o escopo e a conjectura
de Roscher e especialmente desaprova o estudo compara-
tivo dos temas míticos, o que constitui um dos princípios
fundamentais da psicologia profunda e também do método
básico utilizado em todas as investigações psicanalíticas
de Roheim a N eumann. Os acadêmicos insistem quanto
às competências de seus departamentos: um mito, um
tema ou uma figura devem ser estudados em seu con-
texto histórico, cultural, textual, linguístico, econômico,
formal, sociológico ou dentro do que "seja-Iá-o-que-for"
o seu contexto; a comparação de um determinado tema
ou de uma figura mítica com aqueles de outro período,
área ou cultura, ou ainda a consideração de que sejam
relevantes para a psique humana e sua imaginação são
verdadeiros anátemas.
Para a psicologia profunda, os temas e os perso-
nagens da mitologia não são assuntos unicamente do
conhecimento. Eles representam o que é real e vivo no
ser humano, que existem como realidades psíquicas que
coexistiam mesmo antes de sua manifestação histórica e
geográfica. A psicologia profunda recorre à mitologia não
somente para aprender sobre o passado, mas também para
132
I 133
~
nos compreender no presente. A investigação de Roscher
sobre o antigo Pã em relação ao pesadelo contemporâneo
constitui um ótimo exemplo.
O tratamento acadêmico do mito nos termos de uma
departamentalização do saber resultou em uma pletora
de teorias e de várias explicações falaciosas. Todos nós
conhecemos alguma. É quase impossível ouvir um mito
recontado nos dias de hoje sem o peso de ter de aturar,
na mesmíssima história, uma interpretação de seu
significado. O mais perigoso de todos os erros é a sim-
plificação.
A complexidade de um mitema, ou de uma de suas
personagens, nos é apresentada como a descrição de um
processo social, econômico ou histórico, ou bem como o
testemunho pré-racional de determinado assunto filosófico
ou instrução moralista. Os mitos são tomados como expo-
sições disfarçadas de ciência natural, metafísica, soberba
tribal, opressão de gênero ou de religião. Mas antes de
cada uma dessas aplicações ao significado de um mito,
existe o próprio mito e seu puro feito na alma, que, em
primeiro lugar, criou o mito e, em segundo lugar, o per-
petuou com embelezamentos; e a a Ima am . d"a re-sonh a "
esses temas em suas fantasias, seus comportamentos e em
suas estruturas de pensamento. Desse modo, a primeira
aproximação em relação ao mito deve ser psicológica,
uma vez que a psique lhe fornece tanto sua fonte original
quanto seu contexto sempre vivo. Cabe assinalar aqui
que o enfoque psicológico não implica um intercâmbio
simplório de termos, metáforas exóticas sacadas para o
câmbio usual com conceitos familiares, o colossal tornado
ínfimo para facilitar sua aplicação.
Uma abordagem psicológica, tal como compreendo,
não implicaria uma interpretação psicológica. Não se trata
de fazer entrar o mito no departamento da psicologia ou
na escola de análise das profundezas, colocando em dia
 nova~ séries de reduções psicológicas análogas em Sua
estreIteza a outras simplificações departamentadas (dis~
farçadas com técnicas presunçosas), as quais eu gostaria
de desafiar. Na medida em que o mito pertence muito mais
à theoria que à pragmática, sua compreensão pertence
ta.mbém muito mais à exegese e à hermenêutica do que
a mterpretações previsíveis.
Uma abordagem psicológica significa exatamente o
que o termo sugere: um acesso da psique ao mito, uma co~
nexão com o mito que proceda por meio da alma incluindo
especialmente suas estranhas fantasias e seu ;ofrimento
(psicopatologia), um desvelamento e uma extração da
alma que conduziria ao significado mítico e vice-versa.
Somente quando a psique reconhecer a si mesma como
encenadora de mitemas ela poderá compreender o mito,
de modo que uma exegese psicológica do mito deveria se
iniciar com a exegese de si, com o fazer alma. Mas também,
por outro lado, somente quando o mito for reconduzido à
a~ma e somente quando o mito tiver importância psicoló-
gIca ele se converterá em realidade vivida, necessária à
vida, ao invés de um mero artifício literário filosófico ou
religioso. A filologia pertence a esse process~ como parte
da abordagem psicológica. De que outra maneira pode-
ríamos nos aproximar da realidade mítica senão mergu-
lhando em seu domínio, nos contextos que a alimentam
e nas imagens que ela elaborou ao longo da histórié A
filologia se converteria, então, em um método de fazer
alma ao invés de se prestar a ser somente um método de
criar conhecimento. Revivificação terapêutica da psique
e ren~scimento do .mito - dois processos inseparáveis que
poderiam ser consIderados uma só e mesma coisa, pois o
que conhecemos é tão importante quanto o conhecimento.
Assim, o valor da filologia deve ser julgado não so-
mente por sua contribuição ao intelecto, mas também por
sua contribuição para a imaginação. Devemos ter isso em
134
II1ente ao lermos a obra de Roscher. Idealmente, esses
dois tipos de contribuição deveriam acrescentar-se mu-
tuamente, mas os modernos classicistas com frequência
consideram as exorbitantes fantasias de seus antecessores
como fracassos intelectuais. Não se dão conta de que são
eles mesmos vítimas do contrário: da pobreza da fantasia
e dos simplismos psicológicos, e a enorme aridez emotiva
de seu toque em meio às suas realizações expõe falhas
imaginais não menos graves. Quando esse é o caso, nós,
os leitores, não deveríamos nos afastar dos livros eruditos,
mas aprender a lê-los. Suas leituras constituem parte
da abordagem psicológica, tanto ao experimentarmos o
efeito na imaginação da informação intelectual, quanto
observando a fantasia imaginativa dentro do qual o autor
a organiza e por meio do qual essa informação é implici-
tamente interpretada. Não importa quem aborda o mito
ou quão pouco imaginativa é sua abordagem, o mundo
imaginaI é tocado e deixa seu eco no que está sendo dito.
Não podemos tocar o mito sem que ele também nos toque.
Ainda que possamos levantar dúvidas acerca da na-
tureza especulativa da filologia do século XIX e censurá-la
pelo seu gosto por aventura, o qual dificilmente se atreve-
ria a ter o espírito sofisticado, cético - e, quem sabe, até
cínico - que atualmente prevalece no meio acadêmico, não
devemos nos esquecer de que psiquiatras, arqueólogos,
etnólogos e mitólogos eram movidos por uma tremenda
paixão no final do século XIX. Não eram meros traba-
lhadores acadêmicos. Nem eram seus impulsos simples
obsessões pelo conhecimento, ou pela autoridade, através
do conhecimento, ou por eminência e poder, através da au-
toridade. Parecia haver algo novo irrompendo nessa época
por meio desses autores, alguma visão, alguma questão
essencial acerca das profundezas da natureza humana.
Ou estariam eles procurando por deuses perdidos?
Talvez as fascinações pelas profundezas desconhecidas
135

indicassem algo que ultrapassava o humanismo secula
?or eles pr~tendido, vindo a alcançar uma dimensã~
Impessoal e Inumana da alma, em que figuras bárbaras
pagãs e míticas ainda subsistiriam e atrairiam seus devo~
tos, mesmo quando revestidas de roupagens acadêmicas
de um suposto saber imparcial. A psicologia não deve
tomar os testemunhos dos sábios somente em sua uni-
lateralidade literal; devemos considerar que sua paixão
pela descoberta era arquetipicamente governada. Como
os alquimistas, os exploradores e os cruzados dos séculos
anteriores, que também tomaram suas atividades e metas
literalmente, os investigadores do século XIX não estavam
somente engajados em uma "investigação científica", mas
também na busca psicológica de um novo território de
"profundeza".
. Essas profundezas foram projetadas, como diríamos
h~Je, em um passado remoto, na mitologia, em obscuras
t~Ibos estrangeiras e seus exóticos costumes, nas pessoas
sImples e em sua superstição e também no mentalmente
alienado. A exploração minuciosa de cada um desses do-
mínios da filologia é também uma exploração minuciosa
da personalidade humana em seus limites mais obscuros
em que ela se confunde com o pano de fundo impessoal d~
vida em seu estágio "primitivo" da infância do pensamento
e da linguagem, das pessoas e da sociedade. A minúcia
das pesquisas de Roscher, assim como a de Frazer ou de
Cook, ou de Kraepelin na psiquiatria, seria, mais qu~ tudo,
a tentativa apaixonada de circunscrever as profundezas
do homem para traçar um mapa do que chamamos de
inconsciente. Como Evans sobre Creta, ou Schliemann
sobre Troia, esses autores foram dirigidos pelas fanta-
sias privadas da imaginação para a redescoberta de um
mundo imaginaI. Mesmo quando trabalhavam de uma
maneira científica, sóbria e racional, essas famosas figuras
profissionais do final do século XIX, com sua imponente
136
1.
dução escrita, suas sistematizações e sua ânsia p.or
probalho reintroduziram na consciência ocidental aqUIlo
tra , . . .
havia sido excluído desde o RenascImento: o 1magI-
que .
e o poder que ele exerce sobre a vida. Suas pesqUIsas
naI ·d d -
levaram ao reconhecimento de que a hUn:~~I a e na_o
ra somente ocidental, moderna, secular, cIvIlIzada e sa,
e as também primitiva, arcaica, mítica, mágica e louca.
m 'd . dos
Paradoxalmente, eles usaram os meto os n: ms ~vança
da razão para estabelecer a realidade do IrracIOnal - ou
do que teve de ser chamado de i~r~c~onal por caus~ ~a
definição limitada de razão do posItIVIsmo, do mecamCIS-
mo e do utilitarismo daquele século. .
Se a psiquiatria desse período não prod~zlU novas
curas para os insanos, a despeit~ d~ (ou dev.Id~ ~) seu
zelo classificador, tampouCo contrIbUIram a hIstOrIa d,as
religiões, a linguística, a antropologia e os estudos clas-
sicos para revitalizar os rituais moribundos e crenças
de outras culturas ou para transformar esses aspectos
em nossos. Mas uma cura, um re-despertar, surgia à luz
do dia sob a forma de uma reconstrução da consciência
ocidental, a qual, devido ao redescobrimento da função
imaginaI da alma, não podia mais identificar-se com sua
antiga estrutura psíquica unilateral. A mente com .um
ego em seu centro havia perdido suas amarras; ~s COlS~S
desmoronavam a psiquiatria descobria a esqUIzofrema
e o século che~ava ao seu fim. Um novo relativismo se
tornava agora disponível: havia outros mitos além da-
queles da Bíblia, outros deuses além de Cris~o, ~~tros
povos que não tinham a pele branca e, em cada I~dIVIduo,
havia outros tipos de consciência dotados de dIferentes
intenções e valores.
Roscher, ao que parece, não intencionava que se~
trabalho acelerasse esse processo de desintegração. MUI-
to pelo contrário. Em 1908, no prefácio do volume III, 1
("N abaiothes-Pasicharea") do Lexikon, ele se lamentava do
137
 "quão pouc~ propício era o presente" para uma obra como
a sua. Ele VIa ao seu redor "uma indiferença crescente em
relação ao que havia sido até então a fundação de nOSsa
educação e cultura superiores, ou seja, a Antiguidade
Clássica, o Renascimento e os clássicos nacionais da lite-
ratura e da arte". Em sua opinião, esses eram os baluartes
contra "o abismo da barbárie". Mas ele não se dava conta
de que, apesar de seu método ser arrazoado e ordenado
seu material era o próprio Olimpo, ou melhor, o corpu;
completo do politeísmo antigo, para cuja ressurreição
consagrou o trabalho de toda sua vida. Durante mais de
dois mil anos, o judaísmo e o cristianismo tinham colocado
todo seu empenho em reprimir este passado pagão que
agora, graças a Roscher, se encontrava convenientemente
~lencado em seu Lexicon. Tudo transcorreu como se seu
mtelecto não percebesse os efeitos que sua obra tinha
so?r~ ~ imaginação. Como um cientista que com total
obJetIvIdade opera sobre os elementos primordiais dos
materiais fissionáveis, Roscher havia concisamente reco-
lhido (e colocado à disposição de quem quisesse utilizá-lo)
um material capaz de causar detonações psíquicas e não
menos dinâmico para o destino de nossa cultura. Sua as-
sociação
. inicial com Nietzsche não é, portanto, acidental.,
Juntos,_eles fundaram muito mais que o Clube de Filologia.
Nao obstante, o uso que Roscher fez da mitologia em
defesa da cultura ainda é válido, mesmo que não do modo
que originalmente pretendia. Retornamos às raízes mi-
tológicas não somente para o conhecimento dos clássicos
mas para a realidade psicológica que constitui seu contex~
t? Nessa realidade, o mito é decisivo, e a imaginação po-
hteísta que el~ sistematicamente catalogou desempenha
um papel eqUIvalente à razão e ao sentimento. A defesa
da cultura, por consequência, consiste menos em retesar
a or~em racional, e menos ainda em estender a regra do
sentImento humano, do que em explorar e planejar um
138
mapa para o imaginaI. Devemos conhecer as subestrutu-
ras arquetípicas que governam nossas reações, devemos
reconhecer os deuses e os mitos com os quais estamos
envolvidos. Desprovidos dessa consciência, nosso compor-
tamento torna-se inteiramente mítico e nossa consciên-
cia, uma ilusão. Quando Cristo era o mito operante, era
suficiente conhecer seus modos de funcionamento e os
do Diabo. Dispúnhamos da estrutura cristã para a nossa
reflexão. Mas agora que esse único modelo de consciência
se dissociou das múltiplas raízes adormecidas abaixo dele
apresentadas pela mitologia, não é possível avançar sem
uma reflexão mitológica sobre nossos modelos de reações,
nossas atitudes ou nossas fantasias.
Apesar de Roscher ter sido contemporâneo de Freud
(nascido onze anos depois em 1856), sua obra, como a de
outros pioneiros, se distingue de um modo significativo das
obras dos grandes psicólogos, Freud e Jung, que também
pertenceram à mesma sucessão erudita em virtude de
suas prodigiosas produções, seus métodos de trabalho,
suas audácias especulativas - e seus interesses pela cul-
tura. Freud e Jung sabiam que estavam escrevendo sobre
eles mesmos quando teciam comentários sobre as figuras
de Moisés e de JÓ. Poderia Roscher também ter concebido
Pã, ou alguma outra das figuras antigas, para ser, igual-
mente, "um problema seu"? Esse tipo de identificação - e
de distância - psicológica não foi possível nem mesmo
para Nietzsche, quem dirá para seus contemporâneos
nos terrenos da antropologia, da história das religiões, da
psicopatologia e da mitologia que ainda viviam na ilusão
cartesiana de que suas obras e suas psicologias poderiam
ser mantidas em separado. Eles ainda estavam tomados
pela fantasia do sujeito e do objeto. A filologia, como as
ciências naturais, se reservou ao direito psicológico ina-
lienável sobre a "fantasia objetiva", de tal maneira que,
através de suas investigações, esses intelectuais puderam
139
 ainda se defender da possibilidade de aprender algo sobre
eles mesmos e não somente sobre seu material de estudo
Infelizmente, os pioneiros combinaram a infância d~
pensamento e da linguagem, do indivíduo e da sociedade
muito literalmente. Eles acreditavam que a infância real
da humanidade (Freud), da linguagem (Max Müller) ou
da cultura nos povos "primitivos", na Antiguidade e na
arqueologia, lhes forneceria a chave que buscavam. Seus
trabalhos ainda se dedicavam à fantasia da "origem das
espécies" e com demasiada facilidade intercambiavam em
nível literal, a criança, o primitivo, o mítico e o louco. Este
intercâmbio originou uma confusão incomensurável sobre
o suposto pensamento "primitivo", sobre a infância, sobre
a aberração mental e também sobre o mito. Não se de-
ram conta de que suas atividades eruditas eram também
psicológicas e que as origens e a infância que tentavam
elaborar também eram psicológicas, ou seja, que "criança"
" .
ongem "e "pnmItIvo
. . . " eram fatores psíquicos anteriores '
e talvez a priori, ao intelecto racional que realizava ~
investigação. Eles acreditavam estar estudando objetos
"fora de nós" nas escavações arqueológicas, nos pacientes
dos manicômios, nos textos clássicos, enquanto também
estavam estudando o sujeito "dentro de nós", procurando a
cri.ança prim~~dial em nível imaginaI, buscando a psique
cUJO modo mItIco de percepção forneceria as origens ar-
quetípicas da própria ciência. De modo que essas investi-
gações, tendo alcançado o pináculo de seu saber científico,
~rep~ra:am também seu próprio colapso. Pois as forças
ImagInaIS a que suas investigações haviam chegado (na
antropologia, na psiquiatria ou na religião clássica) even-
tualmente colocaram à prova o homem racional adulto
e civilizado, do Iluminismo, seu método e até me~mo sua
mente. O ensaio de Roscher sobre Efialtes constitui uma
peça a mais nesse processo que dinamitou o século XIX
e abriu caminho para a irracionalidade do século XX.
140
PREFÁCIO
Muitos anos de detalhado estudo do mito e do culto
a Pã - o antigo Deus grego dos rebanhos e pastores - le-
varam outros investigadores e a mim mesmo a empreen-
der uma investigação sobre sua função como Efialtes, o
demônio ou o espírito maligno dos pesadelos. De modo a
alcançarmos uma compreensão básica dessa função, pa-
rece-nos absolutamente imperativo que, neste momento,
adquiramos a mais minuciosa maestria das representa-
ções gregas e romanas dos pesadelos e demônios; tentei,
portanto, reunir tudo o que a Antiguidade preservou para
nós em relação a Efialtes para que possamos traçar uma
imagem clara dele que doravante ofereço ao público. Vi-me
obrigado a isso porque Ludwig Laistner, o douto e enge-
nhoso autor de The Riddle of Sphinx: Fundamentals of a
History ofa Myth, não alcançou sucesso, a despeito de seus
valiosos esforços, em clarificar as tradições e concepções
gregas e romanas acerca dos pesadelos e dos demônios
de maneira suficientemente rigorosa e em acordo com os
cânones da filologia. Essa deficiência, em uma obra bas-
tante meritosa a respeito de tantos aspectos, se deve a
duas razões: em primeiro lugar, em razão de sua posição,
compreensível e escusável, como especialista em estudos
germânicos, Laistner só podia contar com dados proce-
dentes da esfera da mitologia germânica como um todo,
141
visto que carecia do conhecimento óbvio e fundamental está o pesadelo de Jacó (Gênesis 32,23 ss.) no qual lutava
das fontes gregas e romanas; em segundo lugar, porque com Elohim. O terceiro capítulo interpreta etimologica-
sua intenção era escrever um livro capaz de interessar a mente as designações gregas e romanas para os pesa-
um grande número de pessoas. Em estreita conexão com delos e os demônios, como Efialtes, (H)ipialos, Epheles,
esse dado, há também o fato do estilo de Laistner estar Típhus, Pnigalion, Baphugnas, Inuus, incubo, Faunus
mais próximo do gênero literário do que do filológico. ficarius, entre outros. Elas são submetidas a um exame
Sua escrita é sempre estimulante, mas frequentemente minucioso e são explicadas etimologicamente com base
carece da moderação desejável e da autocrítica próprias nos pontos de vista contemporâneos acerca da essência
de uma obra genuinamente filológica. Isso é verdadeiro do pesadelo. O quarto capítulo trata em detalhes aque-
não somente para os termos gregos e romanos e para os les demônios gregos e romanos aos quais se atribuíam,
nomes próprios - em certas ocasiões, por demais atrevi- em primeiro lugar, a excitação dos pesadelos (Pã, Sátiro,
dos e, em outras vezes, repletos de etimologia insusten- Fauno, Silvano) e pretende dar uma resposta à questão
tável -, mas também para seu total fracasso em elevar o de por que esses demônios, em especial, se converteram
sonho e, em particular, o pesadelo, ao princípio básico e em demônios do pesadelo.
fundamental de toda mitologia. Por essas razões, vi-me
compelido a desconsiderar e a evitar a obra de Laistner
em meu tratamento dos pesadelos e dos demônios e tive
que me limitar a tomar emprestados somente, e em pou-
cas ocasiões, isolados e valiosos paralelos germânicos e
eslavos. Aqui e ali fui obrigado a mencionar as visões e
explicações de Laistner, seja para concordar com elas, seja
para desassociar-me delas.
Minha investigação divide-se em quatro capítulos
principais. No primeiro, eu tentei desvelar a essência,
a origem e os elementos constitutivos do pesadelo com
base em observações feitas nos trabalhos mais recentes
dos profissionais da medicina; no segundo capítulo, por
outro lado, meu objetivo foi proporcionar provas de que
os pontos de vista dos médicos antigos - todos eles depen-
dentes em maior ou menor grau de Sorano - estão, em
grande medida, em harmonia com os autores modernos.
Este capítulo também contém uma coleção instrutiva e
análises precisas do pesadelo da Antiguidade conservadas
na literatura, tendo por finalidade o exame crítico de seu
fundo extremante diverso de ideias. Em meio das quais

142 143
 A NATUREZA
E A ORIGEM DO PESADELO
À LUZ DA MEDICINA MODERNA

No passado servi-me com frequência do método

aplicado em discussões de temas mitológicos e histórico-
-religiosos; este método tomava por ponto de partida a
consideração básica e objetiva das experiências externas
e internas e os fatos que residem na base de um inquérito
das concepções míticas e religiosas. Nessa mesma disposi-
ção mental, desejo agora tentar explicar, antes de tudo e
tão objetivamente quanto me for possível, as observações
e experiências da medicina moderna e da medicina antiga
em relação à origem e à natureza do pesadelo. Situei as
visões modernas no princípio deste estudo não somente
porque derivam de uma observação ampla e exaustiva
atual dos fatos, mas também porque são menos suspeitas
de se basearem em teorias acríticas - insustentáveis e
obsoletas, derivadas de uma observação enviesada - do
que aquelas dos médicos antigos. Ao mesmo tempo, desse
modo, alcançaremos critérios mais ajustados para o exame
crítico das teorias estabelecidas pelos médicos da época
clássica em relação a esses aspectos do pesadelo.
Pelas indicações mais essenciais concernentes à na-
tureza e à origem do pesadelo, estamos primariamente
em débito com J. Béirner 1 que, em 1855, em sua disser-

1 BORNER, J., Über das Alpendrücken. Seine Begründung und Verbütung

CWürburg, 1885).

145
tação inaugural, enunciou os pontos essenciais que, pelo
que sei, são aceitos por todas as autoridades em ciências
médicas e psicológicas. Borner obteve seus principais re-
sultados em parte através da observação pessoal, tendo
ele mesmo frequentemente sofrido de severas formas de
pesadelos, e em parte com base na observação de compa-
nheiros sofrendo as convulsões de um pesadelo. Através
desses meios e posteriormente através do estudo mais
crítico das condições sob as quais o pesadelo emerge, ele
foi finalmente capaz de suscitar pesadelos sempre que
desejasse, ou seja, experimentalmente. Com base em
numerosas observações feitas sobre ele mesmo e sobre
outras pessoas, Borner descreveu o caráter do pesadelo
da seguinte maneira:
Seu despontar pode acontecer a qualquer momento da noi-
te e normalmente começa com uma sensação de respiração
difícil... Em geral, pensa-se que o ataque se inicia quando
se está deitado de costas, enquanto que, na realidade, a
posição mais frequente é de barriga para baixo. O aumento
da dispneia secundariamente desperta a imaginação - o
sonho -, o que motiva uma ampla variedade de razões para
a dispneia. O sonho mais comum (mas de modo algum
exclusivo) é aquele em que a pessoa vê algum animal pe-
ludo. Geralmente se trata de um cachorro que, de maneira
inconcebível, chega a casa e devagar e deliberadamente
sobe na cama para sentar-se sobre o peito da pessoa, nor-
malmente na área da veia jugular. Toma-se, então, tão
por certo que essa é a causa da dificuldade de respira'r e
da pressão que essa situação se converteu em provérbio.
(Nota do Trad.: "pesadelo" em alemão é Alp-drunk, e drunk
significa literalmente "pressão"). Frequentemente há a
visão de alguma criatura repugnante, um ser humano feio,
uma velha ou simplesmente um peso que se localiza sobre
o peito ... A ansiedade aumenta com o grau da dispneia, e
se produz transpiração, palpitação e intumescimento da
face e dos nervos do pescoço. A vítima sente necessidade
de mudar de posição para que assim derrube o agente
opressivo, estando ela firmemente convencida de que isso
lhe trará alívio. Os músculos afetados, contudo, se negam
146
1 147
a reagir mesmo diante dos esforços mais extenuantes da
vontade. Isso contribui igualmente para o aumento da
sensação de uma angústia não aliviável... Finalmente, a
extrema ansiedade e o sonho interrompido que a acom-
panham provocam um movimento violento produzido com
grande esforço e precedido de gemidos lastimosos, que
habitualmente resultam em um sentimento imediato e
extremamente prazeroso de alívio e tranquilidade, através
da qual o indivíduo pode despertar ou bem seguir dormin-
do. Quando ambos o sono e o sonho não são interrompidos,
é frequentemente muito difícil de convencer-se de que as
visões tidas não eram reais. 2
De acordo com outros observadores, o sentimento de li-
bertação vem acompanhado por um forte grito. 3 Macnish
afirma em seu livro sobre sonhos que: "No momento de
superação da fúria, parece que nos viramos com prodigio-
so esforço, como se sofrêssemos de pressão baixa e de um
peso enorme: e para tentarmos acordar o mais totalmente
possível, muitas vezes chutamos violentamente, desferi-
mos golpes em nosso peito, nos colocamos de pé na cama
e gritamos uma ou duas vezes. Tão logo possamos voltar
a exercitar nossa vontade ou nossa voz com liberdade, o
paroxismo chega ao seu fim".4
No que se refere à origem dos pesadelos em pessoas
saudáveis, Borner chegou à conclusão, através de uma
observação precisa de si mesmo, de que "uma vez que o
problema sempre desaparecia repentinamente depois
de um movimento vigoroso, deduzia-se que algum impe-
dimento para a respiração havia sido eliminado".5 Pos-
teriormente, sua observação de si mesmo mostrou "que,
durante o pesadelo, os orifícios externos de respiração
- nariz e boca - estavam mais ou menos completamente
cobertos. Quando estava deitado de costas ou de lado, isso
2Ibid.,895.
3 BINZ, C., Über den Traum (Bonn, 1878),26 ss.
4 MACNISH, Robert, The Philosophy of Sleep (Glasgow, 1830), 130.
5 BORNER, op. cit., 15 ss.
acontecia devido ao fato da roupa de cama pressionar meu
rosto firmemente, ou, mais precisamente, porque estava
deitado de barriga para baixo com a cara no travesseiro". 6
Ao tratar desse assunto, Macnish diz:
Eu tive ataques deste transtorno com frequência quando
me sentava no braço de uma poltrona com a cabeça apoiada
na mesa. De fato, estas são as posturas mais propícias para
provocá-los, pois os pulmões estariam mais comprimidos
que em qualquer outra postura. Também os tive claramen-
te quando estava deitado de lado e conheço numerosos
casos de descrições semelhantes de outros autores. 7
Borner, por outro lado, assevera que, de acordo com
suas observações, estar de barriga para baixo é a postura
mais frequente para se ter pesadelos.
Os estudos de Borner sobre ele mesmo foram com-
pletamente confirmados por experimentos bem sucedidos
levados a cabo em outras pessoas e, por isso, esses estudos
foram livrados da suspeita de subjetivismo e autossuges-
tão. Ao tapar a boca e o nariz de outras pessoas, Borner
conseguiu em várias ocasiões produzir exatamente os
mesmos sintomas que havia observado em si mesmo.
Nesses casos, o pesadelo se dava à maneira de um animal
peculiar e híbrido - meio cachorro e meio macaco - que
não se esgueirava lentamente em direção à cama, como
antes, mas que saltava sobre o peito da vítima sem ser
previamente notado (como o resultado de cobrir o rosto do
paciente). Esse salto repentino do pesadelo é caracterís-
tico na maioria dos casos e, por essa razão, o termo grego
ephiáltes - "aquele que salta" - é muito oportuno. O ani-
mal então permanecia quieto como se estivesse dormindo
sobre sua vítima enquanto a desafortunada pessoa, presa
em ansiedade, não se atrevia mover-se até que o animal
6 Ibid., 17.
7 MACNISH, op. cit., 131-32.
I
148
1 149
finalmente caísse devido a algum movimento realizado
no ápice da tortura.
A forma atribuída ao animal pelo sonhador do pe-
sadelo dependia principalmente dos objetos que Borner
utilizava para cobrir o rosto da pessoa.
Um pano embolotado ou de qualidade inferior sempre
causava a aparição de um animal peludo, como umpoodle
ou um gato. Se somente a boca e o nariz eram cobertos
pela mão, essa figura onírica de um animal peludo não
surgia, mas era geralmente substituída pela de outro ser
humano feio e hostil que agarrava e estrangulava a pessoa
que estava a dormir. Quando somente uma pequena parte
dos orificios respiratórios estava gradualmente coberta,
produzia-se um grau mais suave de ansiedade e dispneia
com a correspondente incapacidade de movimento ... Nesse
caso, o fantasma geralmente entrava na casa vagarosa-
mente e com suavidade. Então, ele olhava ao redor durante
algum tempo, até que finalmente começava a atorment~r
a pessoa que estava sobre a cama. Mas, se a boca e o n~rIz
estiverem cobertos ao ponto de provocar uma forte dISP-
neia, o fantasma surge instantaneamente na sala, sobre
o peito da pessoa que dorme; por essa razão, o sonhador
não pode dar nenhuma informação sobre como o fantasma
chegou até ali. Essas aparições são muito vívidas, mas
duram pouco tempo.8
Ocasionalmente - e mais comumente em mulheres -, o
sentimento de ansiedade vem acompanhado de luxúria e
as mulheres frequentemente acreditam que o fantasma
manteve relações sexuais com elas. Os homens têm sen-
sações análogas, e geralmente oc~rrem emissões ~e s~men
como resultado da pressão exercIda sobre os gemtms por
estarem deitados de bruços.9
Borner assinala que os principais sintomas do pesa-
delo são os sentimentos de pressão geralmente causados
por se estar de bruços, pela incapacidade de mover-se e
8 BORNER, op. cit., 22.
9 Ibid., 12.
pela ansiedade. Macnish dedica uma atenção particular à
extraordinária e inexplicável ansiedade do paciente como
um sintoma que está praticamente nunca ausente. lO Um
requisito essencial para a origem do pesadelo é o sono
profundo.
As experiências e observações de outros doutores e
psicólogos ampliaram e confirmaram os estudos de Bor-
ner, os quais foram realizados unicamente em pessoas
clinicamente normais. De uma maneira quase unânime,
admite-se que a dificuldade na respiração, que produz
o pesadelo em pessoas sãs e é causada por um impedi-
mento externo, como as roupas de cama, também pode
ter sua origem em determinadas enfermidades e causar
pesadelos bastante severos. Exemplos dessas enfermi-
dades são a difteria, a tuberculose, o sopro cardíaco, os
eventos asmáticos, os estados avançados de hipocondria
e histeria, as enfermidades mentais e o delírio causado
por febre. Borner acrescenta: "Dessa maneira, creio que
deva existir um tipo de pesadelo que precede a asfixia por
gases, exatamente da mesma maneira que a obstrução
repentina e noturna das vias respiratórias por corpos
estranhos, membranas mucosas etc.".l1 Segundo Binz,
podemos ver nos delírios causados pela febre tifoide os
mesmo sintomas do envenenamento por estramônio, isto
é, sonhos sensuais confusos, intoxicação e narcotizações. 12
Ocasionalmente, um pesadelo pode ser resultado de uma
dieta inadequada como, por exemplo, alimentar-se com
alimentos indigestos.
Binz de fato afirma com base em suas experiências
que quando ele está resfriado, uma refeição indigesta é
suficiente para lhe produzir um pesadelo. Binz escreve:
10 MACNISH, op. cit., 125.
11 BORNER, op. cit., 28.
12 BINZ, op. cit., 17.
150
o estado de sonho que conhecemos sob a terminologia
do pesadelo pode se produzir através de envenenamento
agudo ... A validade das investigações de Borner pode ser
confirmada quando se presta atenção a si mesmo. Se,
quando se sofre de um resfriado que obstrui as fossas na-
sais, fazemos uma refeição muito pesada e vamos dormir
enquanto o nariz está ainda razoavelmente desobstruído
e a boca fechada como de costume, com frequência ocorre
o surgimento de secreção catarral e inflamação da mem-
brana da mucosa nasal durante o sono mais profundo. A
passagem do ar está cada vez mais obstruída e o dióxido de
carbono e outras substâncias sufocantes produzidas pelo
metabolismo se acumulam no sangue e alteram o sistema
nervoso. Uma intranquilidade profunda invade nossa
mente em formas borradas; às vezes, isso toma a forma de
um processo definido de sufocamento, e a intranquilidade
permanece obscura e confusa em acordo com a duração
e a força do que lhe deu origem. Eventualmente um mo-
vimento súbito do corpo é percebido nos lábios fechados,
ou mais frequentemente - como observei repetidamente
em mim mesmo - escapa um forte grito de medo e pedido
de auxílio que abre a boca para permitir a entrada do ar
libertador. O oxigênio é o antídoto. O oxigênio equaliza a
irritação perversa causada pelas excreções retidas nas
células de nosso cérebro; isso acontece ao se combinar às
excreções, alterando-as quimicamente. 13
Como veremos mais à frente, essa teoriajá havia sido
formulada pelos médicos das épocas antigas.
Um recurso especial para o que a maior parte dos
estudiosos chamou a atenção é a natureza excepcional-
mente vívida das visões do pesadelo que frequentemente
superam em muito as impressões deixadas pelo que ex-
perimentamos despertos. Em relação a isso, Laistner diz:
A intensidade das aparições nos pesadelos é muito maior
do que a das imagens oníricas ordinárias; tanto é que
quando o sujeito desperta, ele está totalmente convencido
13 Ibid., 26 ss.
151
 de que não teve somente um sonho. A impressão supera a
intuição mais vívida da imaginação da pessoa que acorda,
por mais extraordinariamente "mítica" que ela seja, e, por-
tanto, não há dúvida de que a crença viva nos monstros do
pesadelo pode ser explicada simplesmente pela vivacidade
das apresentações dos sonhos. 14
Dessa forma, Macnish nos conta uma observação real
do médico Waller, que foi acometido por uma aparição de
pesadelo que ele tomou por real, até que finalmente com-
preendeu que se tratava somente de um sonho. Macnisch
também assinala:
Algumas vezes, estamos em um estado que beira o sonho
perfeito; em outras vezes, estamos quase despertos e
podemos observar que quanto mais acordados estiver-
mos, maior será a violência do paroxismo. Com frequên-
cia, experimentei a afecção roubando-me a vitalidade,
mesmo estando em perfeita possessão de minhas facul-
dades mentais, assim como também vivendo a maior das
torturas. 15
Até certo ponto, essa visão de Macnish parece ser
endossada por Cubasch, que, em sua obra Der AIp [O
pesadelo], afirma:
As imagens oníricas frequentemente parecem continu-
ar depois do despertar; esta é uma particularidade não
somente associada ao pesadelo, mas pode ser observada
com frequência em sonhos vívidos de todos os tipos. Essa
continuidade das visões deve ser atribuída à embriaguez
do sono, que é o estado entre o completo estado de vigília e
o sono profundo, ou o inverso. Isso somente demonstra que
a pessoa ainda não parou de sonhar nem está totalmente
desperta. As condições mais favoráveis para esse estado
se dão quando subitamente uma pessoa é tirada de seu
14 LAISTNER, L., Das Ratsel der Sphinx, Grundzüge einer Mythengeschicte
(Berlim, 1889), x.
15 MACNISH, op. cit., 136.
152
sono profundo devido a um sonho alarmante ou a qualquer
outra circunstância. 16
Os supostospauores nocturni (terrores noturnos) das
crianças entre as idades de três a sete anos parecem se
inscrever nesse contexto. Soltmann diz:
Eles normalmente ocorrem durante a etapa mais profunda
do sonho, várias horas após se ter adormecido, sem qual-
quer aviso prévio. As crianças habitua~men:e se sentam
subitamente na cama por volta da meIa-noite, corados e
banhados em suor. O olhar fixo em um ponto, a fala confusa,
a ausência de resposta a chamados e perguntas, tudo in~ica
que a consciência está embotada. A veia carótida palpita,
o coração bate com força e as mãos tre~em de terror. A
persuasão não serve de nada e os sentIdos perm:=t~ece,m
aturdidos pelo terror e o medo provocado pela VIsao. As
vezes as crianças deixam escapar monossílabos e :r;>alavras
como "ali, ali", "cachorro", "homem" etc. - que obvIamente
se relacionam com essas visões alarmantes. Frequente-
mente são necessários entre quinze e vinte minutos para
acalmar a criança. 17
Soltmann assinala a seguir que a maioria dessas
crianças sofre de indigestão, dispepsia, constipação,
gastrite, anemia, tuberculose e raquitismo. Em algumas
ocasiões, esses terrores noturnos ocorrem quando elas têm
.
febre tifoide, escarlatina, bem como quando sob uma eXCI-
tação psíquica produzida pelo susto ou medo. Um menino
de doze anos que sofria de spondylitis dorsalis avançada
imaginava que durante seus ataques um animal tinha se
sentado nas suas costas e queria esmagá-lo até a morte.
A partir deste caso, podemos perceber quão próximos do
pesadelo estão os terrores noturnos das crianças. Com-
16 CUBASCH, C., Der Alp (Berlim, 1877),25.. " . "
17 Eulenburgs Realencyclopadie der gesmmten Hellkunde, ver Nlght Terror
de Soltmann, 425.
153
parando com Tylor: ''Alguns afirmam que esses demônios
'aprisionantes' do pesadelo se aproximam dos homens à
noite, se sentam em seus peitos e lhes chupam o sangue,
outros acreditam que eles só chupam o sangue das crian-
ças, sendo para os adultos somente pesadelos".18 O feito
de chupar o sangue de crianças, como pontua Tylor, está
relacionado com certas doenças hematológicas da infância.
Retornando ao assunto principal de nosso tema:
As imagens do sonho brincam com a consciência meio
desperta e fazem com que a mente creia em coisas que
não existem na realidade. De modo que as formas ou fi-
guras deste mundo extravagante das histórias de contos
de fadas, nas quais a pessoa vê a si mesma transfigurada,
permanecem como um eco perante a consciência obnu-
bilada, fazendo a pessoa crer que está observando essas
coisas completamente desperta, quando de fato ainda não
despertou por completo. A embriaguez do sono constitui
um solo fértil para todo tipo de engano dos sentidos ...
Uma pessoa em estado de embriaguez do sono que está
totalmente persuadida que é dona de si mesma está ven-
do somente fantasmas que a assaltaram quando estava
adormecida, e agora as vê de olhos abertos como em um
estado de consciência aparentemente normal. 19
Em seu Physiologie der Nervenfaser, H. Meyer20 ofere-
ce numerosos exemplos característicos dessa continuação
da aparição do sonho após o despertar. Devo apenas cha-
mar a atenção sobre isto de que, depois de despertar, tais
fenômenos permanecem durante algum tempo e se situam
diretamente no limite entre o sonho e a alucinação - quer
dizer, entre a consciência normal e a consciência pertur-
bada. Elas diferem de modo meramente quantitativo das
alucinações da insanidade pela sua duração mais curta;
18 TYLOR, E. B., Primitive Culture, Vo1.2 (Londres, 1903), 192.
19 CUBASCH, op. cit.,25.
20 MEYER, H., Psysiologie der Nervenfaser, 309.
154
e se elas continuam a persistir com a mesma intensidade
por um período de dias, semanas ou meses, devem ser
consideradas como um sinal indiscutível de insanidade.
N esse sentido, vale a pena prestar atenção ao fato de que
"os pacientes mentais com frequência culpam os sonhos
pelo início de determinadas ideias fixas, na medida em
que se entende que o sonho constituiu uma experiência
genuína".21
No que se refere ao perigo dos pesadelos, quando
estes ocorrem com frequência e de maneira intensa,
Borner22 diz que um grau intenso de dispneia, com seu
correspondente retardamento da circulação do sangue,
com facilidade poderia provocar uma hemorragia cerebral
e, inclusive, um edema agudo no cérebro. De acordo com
Radestock,23 os pesadelos às vezes precedem à enfer-
midade mental e se fazem presentes quando existe um
sopro cardíaco orgânico ou síndrome asmática, assim
como, de uma maneira recorrente, também nos estados
mais avançados da hipocondria e histeria. Na opinião de
Macnish,24 pode se produzir apoplexia ou também ser a
causa de ataques epiléticos e de histeria em pessoas que
sejam anormalmente sensíveis.
Por último gostaria de acrescentar algumas palavras
acerca do que foi observado mais recentemente no que
concerne à composição das aparições dos pesadelos. Os
pesadelos, segundo a descrição de Macnish25 - que, por
sua vez, sofria com muitos pesadelos -, são extraordina-
riamente variados, mas, em geral, se podem distinguir
dois tipos: alguns são terríveis e causam muito medo;
21 Eulenburgs Realencyclop6adie der gestmmten Heilkunde, ver "Deliruim"
de Mendel, 464.
22 BORNER, op. cit., 10.
23 RADESTOCK, Paul, "Schalfund Traum, ein physiologishe-psychologische
Untersuchung" (Leipzig, 1789), 130.
24 MACNISH, op. cit., 142.
25 Ibid., 125.
155
outros são mais leves e benévolos e, em algumas ocasiões,
até mesmo voluptuosos (eróticos). O pesadelo cria uma
impressão terrível e ameaçadora, especialmente quando
nele aparece um animal peludo, como umpoodle preto e
peludo - a forma mais habitual na qual se encarnam os
demónios malignos. Outras formas frequentes são: o gato,
a marta, o ouriço, o rato, o urso, o bode, o porco, o cavalo, o
tigre, a serpente, o sapo, a enguia, o dragão e, finalmente,
um híbrido peculiar, metade cachorro e metade macaco.
A forma do animal no qual o pesadelo encarna parece
depender essencialmente - como já vimos - da natureza
da obstrução respiratória que produz a dispneia, como,
por exemplo, a qualidade da roupa de cama que obstrui
o nariz e a boca. Pode ser suave e branda, ou áspera e
dura. Meyer26 explica que a aparição de um ouriço pode
se produzir com facilidade se a pessoa que dorme está de
barriga para baixo sobre um leito de palha. O oposto seria
o demónio do pesadelo vestido com a pele de uma toupeira,
que corresponde naturalmente a uma obstrução respira-
tória produzida por um material suave. Ocasionalmente
a aparição se mostra na forma de um objeto inanimado
- tal como um fiapo de palha, uma penugem ou fumaça
- e isso pode ser facilmente explicado pelo fato de que,
ao despertar de um pesadelo, a pessoa que dormia tinha
entre seus dedos cerrados um fio de palha ou penugem
de seu colchão. Então, a pessoa imagina que tais objetos
são a forma final assumida pelo demónio do pesadelo que
a assolou, ou bem imagina que a fumaça que preenche
o quarto e a atormenta ao despertar, pois dificulta sua
respiração, não é nada mais que a metamorfose final do
demónio.
Se o espectro aparece sob forma humana, pode ado-
tar formas extraordinariamente diversas. Em algumas
26 MEYER, H., Germanische Mythologie (Berlim, 1891), 107.
156
ocasiões se trata de um homem e em outras de uma
mulher; pode ser feio ou bonito; algumas vezes, pode ser
um duende de aparência quase humana ou um gigante
enorme. A aparição pode ser muda ou pode conversar com
a pessoa que dorme. Com relação a isso, Borner diz que
"só raramente o monstro é selvagem e às vezes a mulher é
até mesmo encantadora. Nesses casos, o monstro fala e às
vezes incautamente revela o futuro da pessoa encantada.
Aqui, a aparição é vista como um emissário da divindade,
da qual se aceita com um coração disposto tanto os tor-
mentos quanto os benefícios".27 A forma pode ser de um
ser vivo ou morto. É evidente que isso levou a se supor
que tanto o ser vivo - bruxas, por exemplo - como o morto
possuem o poder de aparecer nos sonhos de uma pessoa
que dorme para atormentá-la. Assim, Spitta reporta o
caso de uma moça de dezoito anos, com um grau avançado
de tuberculose e grandes dificuldades respiratórias, que,
a cada vez que dormia, tinha um sonho horrível no qual
sua defunta avó entrava pela janela e se enroscava sobre
seu peito para esmagá-la até a morte. 28 Outro pesadelo
reportado por Radestock é o seguinte:
C~rta vez, nas primeiras horas da manhã, vi aparecer à
mmha frente, aos pés da cama, uma pequena besta horrível
e de forma quase humana. Pareceu-me que era de estatura
mediana e que tinha um pescoço fino, era magro com os
olhos muito negros e a testa enrugada. O nariz era adunco,
a boca grande, os lábios proeminentes e a barbicha curta e
pontuda. Aliás, tinha uma barba de bode, orelhas pontiagu-
das - como Pã - o cabelo sujo e seco, dentes de cachorro, o
peito proeminente, uma corcunda, quadris murchos e suas
roupas sujas. O fantasma se agarrou na extremidade da
cama, sacudindo-a com uma força enorme e disse: ''Não
vai permanecer aqui por muito mais tempo!" E quando
27 BORNER, op. cit., II.
d 28 SPITTA, H., Die Sclaf-und Traumsustande der menschlichen Seele 2a
e . (Tübingen, 1882), 242. '
157
 o terror me despertou ... eu saltei da cama e me dirigi
rapidamente ao claustro e me joguei em frente ao altar,
onde permaneci por longo tempo, paralisada pelo terror. 29
Em algumas ocasiões, durante o pesadelo podem
surgir aparições coletivas, como aquelas que chamamos de
terrores do pânico nas doenças mentais. Isso significa que
um grande número de pessoas é atacado ao mesmo tempo
pelo pesadelo e, como se se tratasse de uma epidemia, to-
das as pessoas têm as mesmas visões. Baseando-se nessas
"aparições coletivas", Krauss 30 supõe que quem produz
essas aparições é um "Alpmiasma" específico (miasma de
pesadelo). A esse respeito, um interessante exemplo desse
fenómeno é reportado por Radestock:
Um batalhão inteiro de soldados franceses que estavam
aquartelados em uma velha abadia perto de Tropea, na
Calábria, foi atacado por um pesadelo durante as horas
centrais da noite. O batalhão inteiro se levantou da cama
como um só homem, e tomados de um terror de pânico,
os soldados saíram correndo para fora. (Note-se aqui a
estrita relação que existia entre o pesadelo e o terror do
pânico do homem e dos animais.) Quando foi perguntado a
esses soldados sobre o que os havia assustado tanto, todos
responderam que um diabo, sob a forma de um enorme
cachorro negro e peludo, tinha entrado pela porta e tinha
saltado sobre seus peitos com a velocidade de um raio e
em seguida desaparecido por outra porta, situada à frente
da entrada. A mesma cena se repetiu na noite seguirtte.
Apesar de os soldados terem se distribuído por todas as
partes para fazer guarda contra o diabo, não houve força
humana capaz de fazer os soldados voltarem para seus
quartos. Essa manifestação extraordinária tem uma fácil
explicação. Esses soldados tinham feito, em um quente dia
de junho, uma marcha forçada de 25 milhas e em seguida
os colocaram nesta abadia, que era muito pequena para
29 RADESTOCK, op. cit., 126.
30 KRAUSS, A., Der Sinn um Wahnsinn, 632 (citado em SPITTA, 236
158
tanta gente. Puseram-se a dormir sobre um pouco de
palha e não tiraram suas roupas, pois não tinham com o
que se cobrir. O esgotamento, as precárias condições nas
quais dormiam e os uniformes que os oprimiam causaram
a excitação psicológica que não tardaria a dar lugar a
uma aparição que todos eles conheciam, uma vez que os
habitantes do lugar os tinham advertido de que sentiam
algo misterioso naquela abadia, onde o Diabo rondava sob
o disfarce de um cachorro negro e peludo. 31
Os sonhos eróticos descritos por Bõrner como ocasio-
nalmente associados aos pesadelos podem ser divididos
em dois tipos, a depender do sexo do demónio erótico que
lhe aparece. Geralmente - mas não necessariamente-,
a aparição do demónio depende do sexo da pessoa que
está dormindo. Por essa razão, na atualidade a supers-
tição germânica faz distinção entre o fantasma amoroso
feminino (mare) e o masculino (mar). O primeiro é muito
mais frequente. De acordo com a crença popular medie-
val, e também atual, os demónios e as bruxas - ou seja,
os seres vivos demoníacos - aparecem sob ambas as for-
mas para seduzir ou atormentar nos sonhos de homens
e mulheres. (Nos vêm à memória os íncubos e os súcubos
da Idade Média.) De fato, existem numerosos contos de
fadas e lendas altamente românticos nos quais as pes-
soas que dormem se enamoram do fantasma amoroso
e inclusive têm filhos com ele. Obviamente que alguns
são os resultados de dolências sexuais orgânicas, como,
em particular, demonstra Krauss em seu Der Sinn im
Wahnsinn. 32 Como exemplo, citarei aqui somente dois
casos bastante críveis, um dos quais tendo sido observado
por uma autoridade não inferior a Esquirol. No primeiro
deles, uma mulher doente mental com afecções uterinas
31 RADESTOCK, op. cit., 126.
88.). 32 KRAUSS, op. cit., 618.
159
asseverou com total seriedade que havia sido a esposa
do Demônio por um milhão de anos, que tinha dormido
com ele todas as noites e que havia lhe dado quinze fi-
lhos. O outro caso veio de Radestock, que descreve como
Salomão Maimonides, tendo estudado a Cabala por muito
tempo, sonhou que o demônio Lilith se deitava sobre ele,
enquanto em outro momento, após ter se ocupado com
ideias exaltadas, desfrutou em sonhos do abraço amoroso
da angelical Shekinah. 33 Em Rodestock, podemos ainda
encontrar um exemplo especialmente interessante de um
sonho sensual mesclado de sentimento erótico (relação
física com Cristo).34 Também se pode estabelecer uma
comparação com as histórias referentes ao nascimento
de Merlim e de Roberto, o diabo.
33 RADESTOCK, op. cit., 128.
34 Ibid., 289, n. 133.
160
A NATUREZA
E A ORIGEM DO PESADELO
À LUZ DA MEDICINA ANTIGA
Tendo objetivamente exposto as teorias correntes
sobre a natureza e a origem do pesadelo, estamos agora
em firme posição para analisar a atitude dos médicos
antigos.
O primeiro médico grego que seguramente sabemos
ter se ocupado do pesadelo em suas investigações cientí-
ficas foi Temison de Lodicea. Contemporâneo de César e
Cícero, ele foi o fundador da escola metódica. Lamentavel-
mente, a única coisa que sabemos é que, em suas cartas,
ele não denominava o pesadelo como ephialtes ("aquele
que salta"), como faziam os outros médicos, mas usava
um termo mais raro e, ao mesmo tempo, característico:
pnigalion ("aquele que se afoga"). Podemos obter infor-
mações muito mais exatas sobre as teorias do membro
mais destacado da escola, Sorano, que, em proximidade a
Hipócrates e Galeno, foi provavelmente o mais produtivo
e significativo dos médicos da Antiguidade. Suas visões
há muito são conhecidas graças à adaptação latina de
Célio Aureliano 1 (século V) e, em grande parte, aos tra-
t,ados médicos tardios, em especial a obra de Paulo de
Egina (século VII), Oribásio (século IV-V) e Aécio (início
do século VI).
1 AURELIANO, Célio, Morb. Chron., i, I cap.
161
 À guisa de informação, em época anterior a Sorano,
sabe-se que Rufo de Éfeso já havia tecido considerações
acerca do pesadelo. Comparemos os fragmentos con-
servados de Rufo com os fragmentos do médico árabe
Rhazes, citados por Darmberg e Ruelle em sua edição de
Rufo: "quando alguém estiver acometido por um íncubo,
prescreva eméticos e laxantes, coloque o paciente em uma
dieta leve, purgue sua cabeça com espirros e gargarejos
e depois o esfregue com óleo de castor ou similares para
prevenir a epilepsia".
Também encontramos uma passagem sobre o pesade-
lo no antigo escritor bizantino Miguel Constantino Pselo
(século XI), bem como no Anecdota Graeca e Graecolat,
II, editados por V. Rose, nos quais encontramos várias
reminiscências da teoria do pesadelo de Sorano.
No que concerne aos pontos de vista dos médicos
da Antiguidade sobre a natureza do pesadelo, a própria
expressão pnigalion ("aquele que se afoga"), que pro-
vavelmente Temison tomou emprestado do vernáculo,
mostra que, para ele, "afogar-se ou ser estrangulado" é a
característica mais essencial do pesadelo, sintoma ao qual
Sorano, Oribásio, Aécio, Paulo de Égina e outros também
deram especial atenção. Outros sintomas mencionados
incluem as sensações do adormecido de ter alguém sen-
tado sobre seu peito ou que salta de repente sobre ele e o
esmaga com seu peso. O sofredor experimenta incapacida-
de de mover-se, entorpecimento e incapacidade de falar.
Qualquer tentativa de falar resulta em sons ~esconexos
e inarticulados. Segundo Sorano e Paulo de Egina, essa
impressão talvez se deva ao fato de que o demónio que
está sobre o peito do sonhador deseja violá-lo, mas que
desaparece tão logo o sonhador tenta agarrá-lo em seus
dedos ou una suas mãos ou ainda cerre seus punhos:
"Alguns estão tão afetados pelas visões que acreditam
que elas os estão atacando e os forçando a cometer os
162
atos mais vis: acreditam que se agarrarem seu opressor,
ele desaparecerá".2 A passagem é absolutamente clara e
obviamente significa que, de acordo com a crença popular,
a pessoa torturada pelo pesadelo deve agarrar o monstro
com seus dedos se deseja que ele vá embora. Essa crença
também existe na Alemanha e entre os eslavos. Laistner
diz: ''Aquele a quem a Murawa oprime deve tocar seu dedo
mínimo do pé e então ela irá embora.". "Deve-se segurar
com firmeza o dedo de Pschezolnica (um espírito feminino
eslavo) e então ela fugirá." "Deve-se imobilizar a Mura-
wa ou bruxa do pesadelo, ou agarrá -la pelos cabelos". 3 A
expressão "com os dedos fechados", utilizada por Paulo de
Égina, não é de trivial explicação, pois não fica claro se ele
se referia aos dedos do demónio do pesadelo ou aos dedos
da vítima. Se a primeira hipótese valer, então suas pala-
vras são idênticas às de Sorano; mas se valer a última,
então nós nos lembramos da antiga superstição de que
esfregar as mãos ou apertar os punhos eram antídotos
efetivos para a magia. Segundo Wuttke,4 o pesadelo pode
ser disperso colocando-se o polegar embaixo dos dedos.
Veckenstedt5 e Laistener6 dizem que qualquer um que
tenha sucesso em apertar seu dedão três vezes contra
a armação da cama espantará a Murawa. Todas essas
crenças derivam do fato observável de que o pesadelo
desaparece assim que o adormecido recupera sua capa-
cidade de movimento por meio de um leve movimento
dos dedos das mãos ou dos pés.
Os médicos gregos também observaram epidemias
regulares de pesadelos. Célio Aureliano escreve: "Silímaco
(confundido com Calímaco), pupilo de Hipócrates, explica
2 Ibid.
3 LAISTNER, op. cit., 1, 41; 1, 52; 1,53.
4 WUTTKE, Der Deutsche Volksaberglaube der Cegenwart, § 419.
5 VECKENSTEDT, Wendische Sagen, 13!.
6 LAISTNER, op. cit., 230.
163
que muitos se contagiaram por pesadelos como na praga
que assolou a cidade de Roma". Obviamente, ele se refere
ao Calímaco hipocrático, que foi discípulo de Herófilo no
segundo ou terceiro século a.C. Os escritores antigos, e
especialmente Sorano, enfatizam que o pesadelo pode ser
considerado como uma enfermidade perigosa somente
quando ele afeta repetidamente a mesma pessoa. Sob es-
tas circunstâncias, poder-se-ia ter clorose, emagrecimento,
insônia, constipação e, se os ataques forem especialmente
violentos e frequentes, epilepsia e morte. Sorano acredita
que, em essência, todo pesadelo é igual a um ataque epilé-
tico. (Antes mesmo de Sorano, o médico Rufo de Éfeso ex-
plicava o pesadelo como um sinal de epilepsia incipiente.)
As vítimas de um pesadelo sofrem quando adormecidas
exatamente do mesmo modo como se tivessem um ataque
epilético quando despertos. Dessa forma, o mal deve ser
energeticamente tratado desde a raiz, impedindo a croni-
ficação desta condição e, assim, permitindo o surgimento
de epilepsia, enfermidades mentais ou apoplexia. (Sorano
descreve como epiléticos aqueles que têm sonhos pesados e
atrozes e que facilmente enlouquecem.) Como fiéis pupilos
e seguidores de seu grande mestre Hipócrates, os médicos
antigos veementemente se opuseram à crença popular de
que o pesadelo era um deus ou espírito malvado. Sorano,
em particular, refuta detalhadamente essa superstição
em sua Etiologia. Célio Aureliano escreve: ''A enfermida-
de anteriormente mencionada é, contudo, uma epilepsia
incipiente. Sorano explicou muito convincentemente em
seus livros dedicados às causas da enfermidade, por ele
intitulado Etiologia, que não se trata de um deus, nem
de um semideus nem de Cupido" (confundido aqui com
concupiscência). Presumo que Sorano se refira aos pesa-
delos eróticos e aos ensinamentos de Herófilo, segundo o
qual nossa concupiscência ou nosso instinto erótico pode
produzir sonhos dessa natureza. Sorano considera até
164
mesmo pesadelos eróticos como epilepsias incipientes,
especialmente porque os ataques epiléticos são associados
com frequência à gonorreia sem que o instinto erótico
(cupido) se faça presente. Assim que o ataque tenha pas-
sado e a vítima despertado, pode-se observar que o rosto
e os orifícios corporais estão cobertos por suor úmido, o
paciente sente peso na nuca e tem uma suave e irritante
tosse. Essa tosse é supostamente uma sequela natural da
dispneia precedente.
No que diz respeito à etiologia ou à causa do pesadelo,
os antigos já tinham notado que ele frequentemente se
originava de problemas digestivos provocados por sobrea-
limentação, por excessos alcoólicos ou por algum alimento
indigesto. Naturalmente, os antigos nada sabiam acerca
da possibilidade do pesadelo ser causado pela obstrução
das vias respiratórias, como primeiramente notado por
Borner. Outra característica corretamente observada nos
tempos antigos é que o estado de embriaguez de sono ou a
transição entre o estado de vigília e de adormecimento é
muito favorável à produção de pesadelos; e que as visões
do sonho podem persistir tão vividamente por um período
antes do adormecer ou depois do despertar que o ador-
mecido pode se enganar crendo que sua visão se passou
com seus olhos abertos e que, portanto, ela é real. Assim,
por exemplo, Macróbio, provavelmente baseando-se em
algum dos médicos antigos, afirma:
Fantasma é de fato uma visão que, segundo dizem, entre
a vigília e o sono profundo - naquelas primeiras brumas
do sono quando se crê que se está acordado, mas que se
acaba de cair no sono -, parece estar forçando seu caminho
em formas errantes, de tamanho, forma ou caráter variá-
vel, tanto alegres como terríveis. Efialtes é desse tipo, e a
crença popular diz que se aproxima daqueles que dormem,
e se instala sobre eles e os oprime severamente. 7
7 MACRóBIO, Somn. Scrip., I, 3, 7.
165
 A opinião médica mais moderna confirma que a
ilusão dos sentidos frequentemente ocorre no estado que
diretamente precede o sono.
O fato de que certos adoecimentos - especialmente
aqueles associados à febre agitada - produzam uma
grande variedade de visões horrorosas de pesadelo e de
vívida intensidade era bastante familiar aos médicos
antigos. Comparemos, por exemplo, com Hipócrates: "o
mal nestas febres e cólicas (contorções) dos sonhos", 8
ao que Galeano acrescenta: "Nós também notamos, em
certas enfermidades terríveis, opressão, medo e cólicas
provocados pelos sonhos". Novamente Hipócrates: "De-
pois que ele foi dormir, despertou-se sobressaltado ao ter
monstruosas visões" (anteriormente a essa frase, ele fala
de febre). Em seguida, ele continua: "Crítias relata sobre
sonhos febris". Galeno: "Eu chamei aqueles que têm uma
enfermidade física de 'perspicazes' e aqueles que estão
assustados com seus sonhos de 'profetas e adivinhos por
meio de fantasmas"'.
Em Metamorfoses de Ovídio, são esses medos que,
segundo Hipócrates, também atacariam as pequenas
crianças em seu sono (como notado acima, os pavores noc-
turni), e de quem o deus dos sonhos, Fobetor, claramente
deriva seu nome; a ele se atribuem em particular toda a
sorte de aparições de animais aterrorizantes. É provável
que as coisas espantosas e monstruosas, a confusão dos
sentidos e a fuga assustada da cama também pertençam
a esse contexto, isto é, que façam parte desses delírios
noturnos e pesadelos que antes eram considerados como
sinais de epilepsia em amplo sentido e dos quais se ocupa
Hipócrates em sua obra A doença sagrada. Aprendemos
com Hipócrates que as pessoas acreditavam que esses
eram sinais da influência dos espíritos malignos dos
8 HIPOCRATES, Aphor., III, 736, K.
166
mortos, contra os quais se defendiam com sacrifícios de
purificação e expiação, assim como com encantamentos.
Até mesmo um leigo seria capaz de ter muitas e fre-
quentes oportunidades de presenciar esses delírios de pe-
sadelo e alucinações durante os processos febris, de modo
que não nos soaria estranho que às vezes os conceitos de
febre e pesadelo se confundam com o demônio do pesade-
lo habitual, Efialtes, e que o chamem repetidamente de
Ipíalos e Ipíalis. Aristóteles, em seu Acerca dos sonhos,
reconheceu a estreita relação existente entre os delírios
e os sonhos quando escreveu: "encontramos os mesmo
sintomas nas pessoas assustadas pelos seus sonhos, pois,
de fato, os sonhos provocam doenças". E está claro aqui
que Aristófanes pensa em febres severas combinadas com
perigosa dispneia, em pesadelos e demônios, quando se
orgulha de ter lutado como um segundo Hércules: "Por
vós ele lutou, por vós ele luta: / E então no ano passado,
com mãos aventureiras / Ele lutou ademais com Formas
Espectrais / Os Calafrios e Febres que assolaram nossa
terra".9
Os remédios e a disciplina dietética empregados
pelos doutores antigos para pesadelos estavam estreita-
mente alinhados com suas visões acerca de sua origem.
A maioria e os mais importantes desses remédios tinham
por objetivo remover os humores mórbidos e prejudiciais
e substituí-los por outros benéficos - método esse que cor-
responde à teoria básica dos humores na medicina antiga.
A principal terapia usada iniciava-se com a prática da
flebotomia e com o uso de diversos tipos de purgantes.
Um deles era uma mistura de heléboro negro com suco
de convolvulus no qual acrescentavam anis, cáucus e sal-
sa. Outro famoso remédio caseiro da época consistia em
sementes negras de peônia, que eram utilizadas contra
9 ARISTOFANES, Vespae, 1037 SS.
167
medo, demônios, epilepsia e febre fria, isto é, pesadelos
e delírios de todos os tipos. Galeno também recomenda
o heléboro e a flebotomia para apoplexia, epilepsia e
melancolia. De acordo com Dioscórides, uma mistura de
heléboro e escamônea deveria ser usada para propor-
cionar catarses para epilepsia, melancolia e insanidade
(delirium). No vernáculo, a peônia até mesmo recebia
o nome de Ephialtion. Para um tratamento dietético
efetivo, Sorano e Célio aconselham vários dias de jejum
seguidos de uma dieta a base de alimentos facilmente
digeríveis, e também evitar cuidadosamente qualquer
alimento que produza flatulência, especialmente feijões.
Os feijões eram terminantemente proibidos pelos pita-
góricos, pois se acreditava que eram muito indigestos
e causavam sonhos perturbadores e pesadelos devido a
sua ação flatulenta. Plínio o velho até mesmo menciona
uma surpreendente superstição em que se acreditava
que "as almas dos mortos", isto é, os espíritos malignos,
habitavam nos feijões. 10 Essa ideia é imediatamente
compreensível se lembrarmos de que se acreditava que
os espíritos malignos atuavam pessoalmente nos sonhos
malignos, pesadelos e enfermidades para alarmar e
atormentar aquele que dorme ou o enfermo com suas
aparições. Donde a crença de que habitam determinados
alimentos perniciosos e que a ingestão desses alimentos
poderia induzir temporariamente a penetração de espí-
ritos no corpo humano. O mais importante dos demônios
que habitava as plantas era Dioniso, o deus do vinho,
da hera e talvez também do cânhamo, particularmente
dotado de força narcótica. Ele era diretamente identifi-
cado à hera e à vinha e, ao transferir-se aos homens que
desfrutavam do produto dessas plantas, ele os animava
e inspirava, possuindo-os, de fato.
10 PLINIO (o Velho), Naturalis Historia, 18, 118.
168
Encontramos também a mesma - e provavelmente a
mais antiga - superstição popular em Porfírio. Este autor
afirma, a propósito dos demônios causadores de pesadelos,
que eles entram no corpo humano com a comida e que
causam todo tipo de prejuízo, em particular, provocando
flatulência: "Quando comemos, entram em nós e se insta-
lam, poluindo-nos, e não por interferência divina. Por via
de regra, eles se deleitam com o sangue e a imundície e
invadem o possuído. Em resumo, uma compulsão de avidez
e desejo, um estado geral de excitação turva o pensamento
racional, de maneira que os sons ininteligíveis associados,
bem como a flatulência, causam ao homem uma crise
que satisfaz o demônio".u Parece evidente, a partir de
um fragmento encontrado em Proclo, que Porfírio, ao
falar de flatulência provocada por demônios maléficos,
provavelmente pensava nos atrozes demônios dos sonhos
e nos pesadelos que habitam determinados alimentos
prejudiciais. Zeller relacionou essa afirmação às antigas
crenças sobre os íncubos.1 2 Os sons ininteligíveis muito
provavelmente se referem não somente aos arrotos e à
flatulência, mas também aos gemidos inarticulados da
vítima atormentada pelo pesadelo.
Os elementos constitutivos da aparição no pesadelo
clássico são aproximadamente os mesmos do pesadelo
moderno. Também na época clássica o espectro era às
vezes aterrador ou erótico e, em outras vezes, uma combi-
nação de ambos os aspectos; ele se mostrava sob a forma
humana (homem ou mulher), ou em uma forma parte
humana e parte animal. Em geral, o conceito mais aceito
sobre a essência do espectro era de que ele ou ela era um
demônio maligno - particularmente, um espírito maligno
dos mortos - que desejava torturar os homens enquanto
11 PORFIRIO, De Philos. Ex. Orae. Haur., ed. Wolff, 149.
12 ZELLER, Philos d. Gr., 111,604.
169
dormiam. Nada obstante, havia uma antiga crença popu-
lar segundo a qual as pessoas malvadas, como as bruxas
ou feiticeiras, também podiam aparecer sob a forma de
pesadelo. Finalmente, em diversos lugares constatava-se
a aparição de um espírito de pesadelo amável e benévolo
que presta um serviço precioso ao homem, pois o curava,
revelava seu futuro ou lhe oferecia tesouros. Isso é bas-
tante óbvio a partir desta pequena seleção de pesadelos,
que não pretende, de modo algum, ser exaustiva:
1. Um bode aparece como um espírito de pesadelo
na novela retórica de Jâmblico, da qual, infelizmente, só
se conservou um breve resumo na Biblioteca de Fócio:
"o espectro de um bode cobiçou Sinónide; então, eles
fugiram através dos prados de Ródanes", isto é, o casal
de amantes, Ródanes e Sinónide, protagonistas da no-
vela, que escaparam da perseguição do rei de Babilônia
através de uma pradaria, são guiados por um demônio
de pesadelo em forma de bode que, por sua vez, ataca a
bela Sinónide em seu sono. Uma vez que Jâmblico era
sírio de origem - e, por consequência, semita - e tinha
se criado na Babilônia, provavelmente esse bode é um
dos chamados sair, isto é, um dos fantasmas ou demônios
campestres relacionados aos pãs, aos sátiros e aos fau-
nos repetidamente mencionados no Antigo Testamento.
Mannhardt o tinha anteriormente conjecturado de modo
correto.
2. Filóstrato conta uma história análoga em A vida
de Apolônio de Tiana (6,27) sobre um espírito de pesadelo
erótico que aparecia sob a forma de um sátiro. Enquanto
Apolônio e seus companheiros encontravam-se jantando
em um povoado da Etiópia, não longe das cataratas do
Nilo, de repente ouviram vozes de mulheres que gritavam
umas com as outras: "Detenham-no, persigam-no!". Tam-
bém pediam a seus maridos que castigassem o "adúltero".
Esse povoado estava sendo assombrado j á havia dez meses
170
pelo fantasma de um sátiro que não tinha boas intenções
com as mulheres e sobre o qual se dizia, inclusive, que
tinha matado duas por quem havia se apaixonado. (Um
demônio do amor semelhante, Asmodeu - do hebreuAsch-
modai, aquele que destrói casamentos, "o diabo manco" -, é
mencionado no Livro de Tobias. Ele estava apaixonado por
Sara, filha de Raquel, e havia matado seus sete maridos
na noite de núpcias. Tobias baniu o demônio para o deserto
queimando o fígado de um peixe que havia anteriormente
pescado.) A história continua explicando como Apolônio
domou o sátiro e o tornou inofensivo ao embriagá-lo com
vinho - assim como fez Midas com Sileno (ou sátiro) - e
o baniu para uma gruta de ninfas nas redondezas. Fi-
lóstrato acrescenta um fruto paralelo e posterior de sua
própria experiência quando afirma:
Não devemos duvidar de que os sátiros existam nem de
que são suscetíveis de experimentar a paixão do amor;
pois conheço em Lemnos um jovem da minha idade cuja
mãe, pelo que se dizia, era visitada por um sátiro, algo
perfeitamente possível, a julgar por esta história; pois ele
se apresentava com uma pele de cervo que se ajustava com
perfeição aos seus ombros, com suas patas dianteiras ao
redor do pescoço e atadas sob o peito.
Considerando a frequente mistura dos conceitos de
Pã e Sátiro (Fauno) na era helenista, poder-se-ia pensar
novamente em Pã como o principal representante dos
pesadelos nos últimos séculos da Antiguidade clássica.1 3
A lenda da procriação do sofista Apsines é provavelmente
baseada em um conceito similar. Pode-se supor que sua
mãe imaginava ter mantido relações sexuais com Pã em
um sonho e posteriormente acreditado que Apsines era
filho de Pã, especialmente porque o sofista tinha certa
13 Comparemos com FÜRTWÀNGLER, Der Satyr aus Pergamon, 30 ss.
171
semelhança com o deus. De todo modo, a história de
Apolónio de Tiana, tal como narrada por Filóstrato, é
excepcional por relatar uma epidemia de pesadelos que já
durava dez meses - no caso, a que assolava as mulheres
do povoado etíope. Depois das analogias anteriormente
citadas, não obstante, tal evento não é, de modo algum,
improvável.
3. Um tipo de pesadelo que poderíamos deduzir a
partir de Horácio 14 tem um caráter completamente di-
ferente e não erótico. Nestes versos, um desafortunado
rapaz é assassinado sem piedade por várias mulheres que
se assemelhavam a bruxas para conseguir uma poção do
amor e, pouco antes de morrer, ameaça suas assassinas
sedentas de sangue com estas palavras:
Tão logo vocês tiverem satisfeito sua raiva e eu expirar
Meu fantasma irá assombrá-las em todas as noites.
Vou mutilar suas bochechas com minhas unhas recurvadas,
Pois tal é o poder que os Manes dão aos espectros.
Toda noite, recaídas sobre seus conturbados peitos
Vou afugentar seus sonos com temor e tremor.
Obviamente que a desafortunada vítima ameaça
suas assassinas com a ideia de que sua morte o conver-
terá em um espírito terrível, um demónio do pesadelo, e
lhes dará uma assustadora vingança. (Comparando com
Porfírio: "os lémures, as sombras dos mortos vagantes ,na
madrugada, devem ser muito temidos".)15 O pesadelo é
evidenciado de uma maneira clara no segundo e quinto
verso - comparemos com a imagem "subindo e pousando
sobre o peito" que Sorano (através de Célio) utiliza a
respeito do pesadelo. Novamente, o último verso mostra
uma admirável explicação em Sorano, quando este fala
14 HORACIO, Epodi, 5, 91 SS,
15 Porfírio, De Philos, Ex. Orae, Haur., 2, 2, 209.
172
sobre o íncubo: "Os que sofreram este mal durante um
longo período estão pálidos e magros, pois seu medo os
impede de adormecer". Plutarco também constata que so-
nhos e pesadelos aterradores geralmente terminam com
um súbito despertar, o que algumas vezes é seguido de
um mal-estar físico. O terceiro verso do epodo apresenta
mais que um problema; ele parece sugerir um arranhado
ou dilaceramento do rosto por uma entidade dotada de
garras. Talvez isso se explique se pensarmos nas "gran-
des garras" da deusa do destino em Hesíodo,16 nos pés
com garras das harpias e das sereias e, finalmente, nas
do Caronte etrusco. Como assinalei recentemente, no
conceito original da forma de abutre desses demónios
dos mortos, eles conservaram essas garras. Comparemos
também com Gervásio de Tilbury,17 em cujo capítulo
acerca de "Bruxas e Espectros Noturnos", as lâmias
são interpretadas como "lamiae de laniando = lacerado,
pois elas laceravam crianças". Mais sobre esse tema
pode ser encontrado em Mitologia Germânica dos irmãos
Grimm.
O mesmo permanece verdadeiro acerca das striges
romanas, demónios em forma de coruja com garras recur-
vadas e bicos de abutre, que dilaceravam as bochechas
das crianças e devoravam seus intestinos à maneira dos
abutres. IS Comparemos também com o que afirma Dínon
na obra de Plínio 19 sobre as sereias indianas: "cativam
os homens com seu canto e quando eles caem em sono
profundo, fazem-nos em pedaços". De acordo com uma
moderna superstição grega, os Kalikantsaroi, que perten-
cem a esse tipo de demónio, também dilaceram os rostos
daqueles que encontram durante a noite. Presumo que
16 HESÍODO,Aspis, 254,
17 GERVÁSIO de Tilbury, atia Imper., 39,
18 OVÍDIO, Fasti, 6, 134,
19 PLÍNIO (o Velho), Naturalis Historia, 10, 136.
173
esse tema é explicado pela observação de uma erupção
facial chamada Epinuktis, que aparece repentinamente
durante a noite. Isso ocorre especialmente nas crianças
e está associado a terríveis pesadelos.
Com frequência, as vítimas aparecem para seus
assassinos durante a noite em sonhos ou em alucinações
quando estão meio despertos, mas ainda embriagados
pelo sono. Assumem a forma de demónios fantasmagó-
ricos, aterrorizam suas vítimas e predizem seu destino
iminente. Um exemplo disso é o fantasma de Júlio César
assassinado que apareceu para Brutus e Cássio. Plutar-
co chama o fantasma que aparece para Brutus de "teu
daimon maligno". Segundo Valério Máximo, o mesmo
é verdadeiro para o "homem de enorme estatura, pele
negra, com uma barba suja e cabelo despenteado" que
aterrorizou Cássio Parmese pouco antes de sua morte
"no primeiro sono, quando estava dormindo em seu divã,
atormentado pela angústia e por problemas". 20 Em ambos
os casos, o demónio maligno não pode ser outro que não
Júlio César ou seu gênio pessoal. A descrição é muito
provavelmente a de um pesadelo e, contudo, ainda fal-
tam alguns de seus sintomas mais característicos, como
o sobressalto, a pressa e a sensação de um peso sobre
si; o mesmo procede para o sonho aterrador de Cecina
em Tácito. 21
4. Em um pesadelo dramaticamente descrito por
Apuleio,22 há duas bruxas que aparecem para o infeliz
Aristómene enquanto ele dormia, atormentando-o da
maneira mais terrível possível. É possível que o conceito
que subjaz na base desse sonho seja similar ao que en-
contramos em numerosas sagas nórdicas, isto é, que a
20 VALÉRIO MÁXIMO, 1, 7, 7.
21 JOSEFO, Antiquitales Judaicae, 1,65.
22 APULEIO, Metamorphoses, 1, 11 SS.
174
alma dos vivos possui o poder de sair do corpo durante
o sonho e aparecer no sonho dos outros, transmitindo
assim um tipo de realidade. (Estou me referindo à saga
escandinava das Fylgjur.) Depois de um jantar suntuoso,
abundante em carne e bebidas, Aristómene vai dormir
com seu amigo Sócrates. O último rapidamente cai em
sono profundo. Aristómene, entretanto, tranca a porta e
coloca sua própria cama contra ela para maior proteção.
Quando por fim se deitou para dormir, a porta se abriu
com um forte estrondo e muita força. A cama voou pelos
ares e ele acabou caído por baixo dela. Ao mesmo tempo,
entraram duas bruxas velhas que atravessaram seu ami-
go adormecido com uma espada, roubando-lhe o sangue e
fechando a ferida com uma esponja. Em seguida, as bruxas
atacaram Aristómene, banhado que estava com o frio suor
do medo. Elas o tiram debaixo da cama e, diz ele: "sobre
meu rosto esvaziaram suas bexigas, me encharcando com
a mais nauseabunda das urinas". (O kallikántzaros grego
moderno, que se relaciona em muitos aspectos a Pã e os
sátiros, age de maneira similar.) Nesse pesadelo clássico,
encontramos mais uma vez quase todas as características
que os médicos da Antiguidade consideravam específicas
do pesadelo: um pesadelo causado por má digestão, pro-
fusa sudorese, no rosto em particular (Sorano, através de
Célio: "Então, quando despertam de seu sonho, o rosto e
as partes utilizadas na deglutição estavam molhados e
úmidos"), que provocaram a desagradável impressão de
bruxas terem urinado em sua cara. Além do mais, a sen-
sação de pressão e de estrangulamento é perfeitamente
motivada pela cama caída em cima daquele que dormia e
as bruxas sentadas em seu rosto. Finalmente, há a penosa
condição e o medo do desafortunado quando acorda que é
dramaticamente descrito: "Sem vida, nu, frio e coberto de
urina, como se tivesse acabado de sair do útero materno
ou, antes, meio morto".
175
 5. Em sua história sobre Demarato, rei de Esparta,
Heródot023 descreve um esplêndido pesadelo erótico que
é de especial importância mitológica, pois grande quan-
tidade de histórias de nascimentos pode ser explicada
em analogia a ele. Quando seu adversário Leotíquides
censurou Demarato dizendo-lhe que não era filho de
Ariston, visto que o próprio rei carregava sérias dúvidas
a respeito de sua paternidade, Demarato foi instar sua
mãe, da maneira mais solene possível, a contar-lhe toda
a verdade sobre sua origem. Sua mãe respondeu:
Na terceira noite após Ariston ter me levado para sua casa,
me apareceu um fantasma que tinha a forma de Ariston,
ele dormiu comigo e colocou suas guirlandas em minha
cabeça. Então, quando essa figura se foi, em seguida che-
gou o Ariston de carne e osso. Ao ver aquelas guirlandas
em mim, perguntou-me quem as havia dado para mim:
eu respondi que tinha sido ele mesmo, mas ele disse que
não. Então eu disse, e jurei, que ele fazia mal em negar-
-me; pois que ele havia vindo havia pouco e que eu tinha
me deitado com ele e que em seguida ele tinha me dado as
guirlandas. Ariston, vendo que eu falava a verdade, se deu
conta de que aquilo era uma coisa divina; com efeito, por
um lado, as guirlandas vinham certamente do santuário
do herói chamado Astrábaco; e, por outro, os adivinhos
responderam que era ele mesmo quem havia me visitado.
Assim, meu filho, você tem tudo o que deseja saber. Pois ou
você é filho desse herói, e o herói Astrábaco é seu pai, ou
então seu pai é Ariston, pois naquela noite eu te concebi.
(O mesmo tema aparece na lenda de Roberto, o diabo.)
Essa fábula nos é valiosa na medida em que ela vem
de tempos históricos. Ela foi claramente transmitida e
faz diversas analogias aos tempos históricos e mitológi-
cos. Aqui a tradição de Alexandre, o Grande, nos vem à
mente, cuja mãe, Olímpia, segundo diziam, o concebeu
23 HERÓDOTO, 6, 65 ss. (Loeb Library, n. 119).
176
durante um sonho no qual lhe apareceu Zeus em forma
de um raio. Conhecemos também as histórias sobre os
nascimentos sobrenaturais de Platão, Seleuco e Augusto,
bem como a lenda tácia sobre o nascimento de Teágenes;
e finalmente temos também as fábulas relativas a Zeus e
Alcmena, Zeus e Dânae, Zeus e Sêmele, Marte e Ília etc.
Mesmo hoje o impulso de fabulação de similares lendas
não desapareceu de todo. A seguinte passagem de Pashley
lança uma luz acerca do folclore de Creta:
Apareceu um vampiro em Anápolis, atormentou as pessoas
e violou uma mulher. Induziu os homens a abandonar suas
esposas, chamou outros vampiros e fez as mulheres acre-
ditarem que eram seus maridos. Quando um dos homens
veio e perguntou: "O que está acontecendo com você?",
sua esposa respondeu: ''Você me tem usado desajeitada e
frequentemente". O marido, contudo, respondeu: "Não fui
eu quem veio". Ao que a mulher retruca: "Então era um
vampiro". Posteriormente, baniram os vampiros com um
exorcismo na ilha de Santorini. 24
N a Idade Média, os antigos heróis, demônios e deuses
que se misturavam com os homens em pesadelos eróticos
se converteram, naturalmente, em demônios. Às vezes,
apareciam como incubi, outras como succubae e, em algu-
mas ocasiões, geravam filhos que mais tarde se convertiam
em feiticeiros malvados, bruxas etc. Esse conceito desem-
penhou um grande papel junto aos processos contra as
bruxas. "Die Braut von Korinth", de Goethe, mostra quão
altamente poéticas essas compreensões e representações
são capazes de ser. O poema se baseia em uma história
de Flegon sobre um vampiro.
6. Encontramos ainda outro tipo de pesadelo erótico
em um interessante relevo helenístic025 cujo conhecimento
24 PASHLEY, Travels in Creta, II, 221.
25 Ver SCHREIBER, Reliefbilder, plate LXI.
177
só foi possível mediante a deliciosa obra de Crusius, Die
Epiphanie der Sirene. Uma bela e voluptuosa sereia com
asas meio estendidas e pernas humanas que terminavam
em garras afiadas semelhantes a um falcão se lança sobre
um pastor ou camponês, aparentemente adormecido ao
ar livre, com óbvias intenções eróticas. (Comparemos com
Josefo: 26 "Durante a noite, Mateo parece ter tido relações
sexuais com uma mulher em um sonho" e, primeiramente,
as esculturas em que se representa a esfinge debruçando-
-se sobre umjovem reclinado, em que o monstro bem pode-
ria significar um demônio do pesadelo.) Crusius assinala
corretamente que, na literatura helenística - que deve
ser citada para se entender o imaginário -, acreditava-
-se que as sereias eram filhas de Aqueloo e uma musa,
mais parecida com as náiades e, de acordo com Dínon em
Plínio,27 essas sereias "cativavam os homens com seu can-
to, e quando estes caíam em um sono profundo, mutilavam
seus corpos". As náiades eram também reputadas como
filhas dos deuses fluviais e especialmente de Aqueloo.
Encontramos crenças similares a respeito dos elfos
no norte da Alemanha. Eles também se distinguem por
sua beleza e pelo seu gosto por se banharem na luz do sol.
(N ossa sereia também é um demônio do sul.) Se uma elfa
deseja unir-se a um homem, ela voa até um raio de sol
para entrar através de alguma abertura que a casa tenha,
como uma fechadura ou uma fenda no cômodo - exafa-
mente como os demônios do pesadelo. É perigoso chegar
perto de sua colina e muitos dos jovens que dormiram em
uma colina de elfos nunca mais regressaram (o mesmo
também é verdadeiro para as ninfas). Os elfos gostam de
dançar nas pradarias à luz da lua. Em correspondência
aos elfos que dançam nas pradarias iluminadas pela lua,
26 JOSEFO, Antiquitates Judaicae, 17, 6, 4.
27 Plínio (o Velho), Naturalis Historia, 20, 136.
178
há também as sereias que são as companheiras de Persé-
fone enquanto ela recolhe flores pelo campo. O golpe de
um elfo pode causar claudicação ou trazer alguma doença.
Os elfos disparam suas flechas pelos ares e, similarmente,
as "flechadas" de um elfo carregam a morte. O mesmo se
sustenta verdadeiro para as ninfas. No folclore islandês,
os elfos mantêm relações amorosas com os seres humanos.
Em estreita conexão com os elfos estão os vampiros, como
as empusas ou lâmias, sobre as quais afirma Filóstrato:
"Estes seres se apaixonam e são devotos dos deleites de
Mrodite, mas, especialmente, lhes agrada a carne dos
humanos. E ludibriam, com estes prazeres, aqueles que
desejam devorar em seus banquetes".28 Aproveitemos
a oportunidade para recordar da imsomnia Veneris ou
somni Venerei ("os sonhos maus de Vênus"), que estão
intimamente aliados à patologia dos pesadelos. Trata-se
de sonhos eróticos associados à gonorreia, entendidos
pelos médicos da Antiguidade como sendo os precursores
ou sintomas de epilepsia e insanidade - assim como os
pesadelos. As pessoas também os atribuíam aos poderes
dos demônios.
7. No Génesis, podemos encontrar um pesadelo evi-
dente ou, antes, uma visão de pesadelo. Ali se diz:
Levantou-se ainda de noite e tomou suas duas esposas,
suas duas servas e seus onze filhos e passou o vau do Ja-
boque. Ele os ajudou a passar a torrente e fez atravessar
tudo o que tinha. Quando Jacó ficou sozinho, um homem
se pôs a lutar com ele até o romper da aurora. Vendo que
não podia vencê-lo, atingiu-lhe a articulação da coxa; de
modo que o próprio tendão da coxa de Jacó se deslocou
enquanto lutava com ele. Mas o homem disse: "Solta-
-me. Pois já surge a aurora". Mas Jacó respondeu: "Não
te soltarei, a menos que tu me abençoes". O homem lhe
perguntou: "Qual é o teu nome?". E ele disse: "Jacó". Ele
28 FILÓSTRATO, Vita Apollonii, 4.25.
179
 lhe disse: "De ora em diante não te chamarás Jacó, mas
Israel, pois como um príncipe, tens o poder de Deus e dos
homens e assim prevalecerá". E Jacó lhe pediu, dizendo
"Diz-me, te suplico, teu nome?" Mas ele respondeu: "Par~
que perguntas meu nome?" E ali mesmo o abençoou. Jacó
deu àquele lugar o nome de Peniel- a face de Deus: pois
eu vi Deus face a face, e minha vida foi preservada. O sol
surgia quando ele atravessava Peniel, mancando devido
a sua coxa. Por isso, os israelitas não comem até hoje o
nervo da articulação da coxa, pois Jacó foi ferido nesse
nervo (Gn 32,22-32).
A noção de que mortais que veem Deus contra a Sua
vontade devem morrer ou ficar cegos é amplamente difun-
dida. Pensemos em Acteon, Sêmele, Tirésias etc.
Ainda que nessa lenda singular de Elohim não esteja
explicitado que a contenda noturna entre Jacó e Elohim
deva ser interpretada como um sonho ou um pesadelo,
dificilmente haveria qualquer dúvida, depois de todas
as provas serem levadas em consideração, e depois de
qualquer outra explicação, de que tal luta violenta re-
almente pudesse acontecer na realidade. A maioria dos
comentaristas atuais do Gênesis considera a luta entre
Jacó e Elohim uma obra de ficção ou um mito; ainda assim,
eles se abstêm de dar uma interpretação científica e, por
mais estranho que seja, rechaçam a opinião mais antiga
de que a luta deva ser construída à moda de um sonho.
Quando Dillmann afirma:
Que a luta com Deus, no sentido da lenda, seja tanto física
quanto externa é inegável e mais que confirmada pela
claudicação de Jacó. Somente uma má interpretação dos
fatos poderia explicar por que ela foi narrada como um
evento simplesmente mental, quer se trate de uma visão
onírica vívida ou uma luta violenta em oração ... 29
29 DILLMAN, Genesis, 345.
180
Ele não dedica atenção alguma para o fato de que
pesadelos vívidos frequentemente aparecem como expe-
riências externas e objetivas por parte do adormecido,
como tampouco atenta para o fato de que todos os motivos
contidos na lenda - por exemplo, a paralisia do quadril-
são recorrentes nos pesadelos, como explicaremos mais
adiante. O fato de que a luta em questão não se designa
especificamente como uma experiência de caráter oníri-
co não deve ser considerado como um obstáculo, pois os
sonhos e, em especial, os pesadelos, se destacam por sua
peculiar vivacidade e são descritos como experiências re-
ais, sem o reconhecimento de que são como sonhos. Como
já vimos, até mesmo médicos modernos habituados a uma
observação atenta de si mesmos, em algumas ocasiões,
confundiram fenômenos oníricos e subjetivos de grande
intensidade com experiências reais. Comparemos, por
exemplo, a passagem da Odisseia na qual Odisseu, oculto
na forma de uma águia, aparece a Penélope em sonhos e
lhe diz: "isto não é um sonho, mas uma visão real que há de
se cumprir". Pensemos também na extraordinária história
da cura de Sostrata no segundo catálogo de Epidauro,30
em que explica como sua paciente tinha empreendido sua
viagem de retorno sem antes ter recebido uma visão clara
em sonhos e, no caminho, foi curada por Asclépio, quando
estava totalmente desperta e não através da agência de
um sonho. Uma encantadora ode de Horáci0 3! é baseada
em uma visão onírica similar. A melhor analogia de todas,
entretanto, nos é proporcionada pelo pesadelo de Higino,32
expressamente definida como uma experiência real. Além
disso, há o fato, não menos importante, de que a fonte
eloísta a quem devemos nossa lenda também faz com que
30 EPIDAURO, Eph. Arch, 26-35.
31 HORÁCIO, Carmina, 11, 19.
32 KAIBEL, Epigrammata Graeca ex lapido Collecta, No. 802.
181
Deus se revele em sonhos em outros lugares. Se agora ob-
servarmos a história com maior discernimento, podemos
ver que todos os temas dessa lenda aparecem também
nos sonhos e, em especial, nos pesadelos, bem como nos
mitos que derivam delas. De modo que podemos observar,
em primeiro lugar, o tema da luta noturna, coisa que,
de acordo com Artemidoro, não somente ocorre com fre-
quência nos sonhos, como também desempenha ~m papel
em pesadelos evidentes. As palavras de ArtemIdoro que
cabem ser destacadas são: "o sonho que traz a vitória a
um dos dois combatentes, que conserva sua força até o
amanhecer".33 Segundo Artemidoro, "uma luta com um
oponente desconhecido significa perigo devido a alguma
doença", e não há dúvida de que isso proceda p~ra Jacó,
que termina com uma paralisia no quadril depoIs de sua
luta com o estranho. Assim, por exemplo, Veckenstedt nos
explica a seguinte história sobre um demônio es:avo do
pesadelo chamado Serpolnica: "Uma mulher ~a~u pa~a
cortar ervas à noite e não percebeu que o reloglO batia
doze horas. Ela foi atacada por Serpolnica e lutou com ele
por uma hora inteira, quando o relógio bateu uma ho.ra,
momento em que o fantasma se foi. Ela volta em seguIda
para sua casa exausta e completamente despent eada " .34
Mais adiante, veremos que os deuses das florestas apare-
cem muitas vezes como demônios do pesadelo, como, por
exemplo, os Dusii celtas e os italianos Silvano e Fauno.
De uma maneira similar, Veckenstedt assim diz em sua
obra Mitos Lituanos, a propósito da Medine lituana ou
mulher da floresta. "Para qualquer um que entrar, pode
acontecer que a Medine o obrigue a lutar com ela; se ele
sai vitorioso, é ricamente recompensado" (assim como JacÓ
foi através de sua bênção!), "mas se ele sai derrotado, ela
33 ARTEMIDORO, Oneirocritica, 1, 60.
34 VECKENSTEDT, op. cit, 109.
182
o devora". Kolrusch 35 e Perty 36 afirmam que, em alguns
casos, o pesadelo é tão intenso que aquele que dorme e
que está lutando com o espectro cai da cama; é obvio que
essa queda pode produzir torções, aleijamento e todos os
tipos de ferimentos.
Um segundo tema próprio dos pesadelos pode ser
visto na duração da luta até o amanhecer, assim como
no pedido que Elohim faz ao Jacó vitorioso para soltá-lo,
pois o dia começa a nascer. Uma das características dos
demônios da noite e dos espectros é que estão relaciona-
dos com a noite e a escuridão, de forma que devem fugir
se uma luz se levanta ou se principia o amanhecer. 37
Bürger diz: "o primeiro raio do dia bane os demônios da
noite"38 ou quando se escuta o canto do galo anunciando
a chegada do dia. O canto do galo que anuncia que é dia
e espanta os espíritos (Grimm). Essa crença também está
expressa nos ensinamentos parses e no Talmude. Como
prova disso, temos a seguinte lenda lituana recolhida por
Veckenstedt. 39 Ela está relacionada aos Caucie, pequenos
demônios do pesadelo com longas barbas cinzentas que,
nas noites de lua cheia, se esgueiram nos quartos para
estrangular aqueles que dormem.
Um camponês frequentemente atormentado por demônios
pediu um conselho a seus vizinhos e, em seguida, passou
a acender uma tocha assim que percebia que o Caucie
se aproximava. A partir desse momento, eles o deixaram
em paz, pois a luz brilhante os assustava. Outro campo-
nês em circunstâncias similares, seguindo o conselho do
pároco da igreja, comprou três galos. Ele os mantinha
constantemente acordados, para que também cantassem
à noite. Na noite seguinte, mal tinha o Caucie começado
35 KOLRUSCH, Schweizer Sagenbuch, 318.
36 PERTY, D. Myst. Erscheinungen der Menschl. Natur, I, 140.
37 WUTTKE, op. cit., § 772.
38 BÜRGER, Lenore V., Verso 28.
39 VECKENSTEDT, Lit. Mythen, II, 145 sS.
183

a atormentar o camponês, quando os galos começaram a
cantar fazendo-o desaparecer.
Ademais, o fato de que Jacó perguntou o nome de
Elohim e que Elohim não tenha desejado dizê-lo decidi-
damente aponta para um pesadelo. Na superstição alemã,
você deve chamar o demónio pelo nome se quiser capturá-
-lo , isto é , submetê-lo ao seu poder. 40 "Para proteger-se
das bruxas em forma animal (que frequentemente atuam
como demónios do pesadelo) e obrigá-las a retornar nova-
mente para sua forma humana, elas devem ser chamadas
pelo seu nome cristão três vezes." E as bruxas geralmente
reaparecem nuas. Comparando com Grohmann e~ seu
Aberglauben und Gebrüche aus Bohmen und Mahren:
"Quando a pessoa assombrada se dirige à metamorfose
animal (no pesadelo) chamando-a pelo nome humano da
que causa o pesadelo, a pessoa aparecerá a sua frente em
sua forma humana e não poderá lhe fazer mal".41 Uma
frase do livro de Bühler Davas in seinem Walserdialekt diz:
"Se o nome de um Daggi (espectro do pesadelo) ou de um
.
Fiinken for conhecIdo, tem-se o po d er sob re e1"42E·t
e . XIS e
a mesma crença entre os Wandos eslavos, cujo demónio do
pesadelo se chama Murawa. Sobre esse contexto, Laistner
escreve: "Se for possível conjecturar, mesmo sem comp~e~a
exatidão, quem está sentado sobre você (como um demo~I~
do pesadelo), tem de chamá-lo pelo nome e a ~urawa Ira
embora".43 Esse tema desempenha um papel Importante
em numerosos contos de fadas e sagas compiladas por
Laistner. O mais conhecido de todos é o de Rumpelstilzkin.
Quando na lenda do Gênesis nos é dito mais além
que Jacó deslocou o quadril (ou seja, adquiriu uma pare-
40 WUTTKE, ap. cit., § 404.
41 Ibid., 405. . 44
42 BÜHLER, Valo, Davas in seinem Walserdwlekt, I, 365.
43 LAISTNER, op. cit., 41 ss.
184
sia) em sua luta com Elohim, podemos situar esse tema
sem dificuldade alguma, no âmbito dos pesadelos. E~
primeiro lugar, nos vem à mente que as dores reumáticas
contraídas por quem incautamente dorme ao ar livre são
conhecidas como "tiros" de bruxa ou de demónio. Essa de-
signação claramente demonstra que tais dores e paresias
eram atribuídas pelas pessoas aos seres que se tornavam
visíveis nos pesadelos. 44 O "sopro" das nereidas gregas
compartilha semelhanças com essa crença. Esses acome-
timentos eram particularmente dirigidos às pessoas que
iam dormir por volta do meio-dia em um lugar solitário
e ao ar livre, na proximidade de fontes e riachos e se
.
mamfestava através de doença mental ou física. Notemos
'
que o aleijamento de Jacó se produziu às margens do rio
Jaboque, onde as exalações de frio durante a noite - devido
à intensa queda da temperatura - poderiam causar um
aleijamento reumático. Finalmente, o demónio do pesadelo
brande burguês Scherber (Serp, Serpel) também se insere
nessa categoria. Trata-se da contrapartida masculina de
Serpolnica que corta o calcanhar de sua vítima com uma
faca curva, à semelhança da crença de que nos Alpes
austríacos considera-se muito perigoso pisar descalço
nas pegadas de Habergeiss quando esse demónio caprino
aparece como um demónio do pesadelo, pois imediata-
mente sente-se o Gallschuss (literalmente , tiro de bile) ,
que produz uma dor penetrante no pé semelhante ao
reumatismo ou gota. 45
Enfim, somente nos faltaria provar que a bênção
que Jacó força o derrotado Elohim a lhe conceder tam-
bém constitui um tema próprio do pesadelo. Para tornar
essa informação compreensível, refiro-me mais uma
Vez à Medine lituana ou mulher do bosque, que a todos
GRIMM, D., Myth, 381.
45 ALPENBURG, Myth., 381. Também LAISTNER, op. cit., I, 334;
185
compele a entrar no bosque para lutar com ela; e, se a
pessoa sai vitoriosa, é ricamente recompensada, mas se é
derrotada, ela a devora. Muito frequentemente, a vitória
sobre o demónio do pesadelo consiste em conseguir pegar
o demónio pelo capuz e obrigá-lo a conceder ou divulgar
a localização de um tesouro - um conceito do qual Petró-
nio tinha conhecimento quando falou sobre um homem
pobre que se tornou rico de maneira misteriosa: "Ele que
rouba um cabelo do mcu / b o e encont ra um t esouro. "46
Esse tema é encontrado em muitas sagas italianas, gre-
gas modernas, germânicas e eslavas, mas somente me
limitarei a narrar uma que é bastante característica.
Entre os habitantes do bosque Sansomier, o demónio
do pesadelo é chamado de Vjek (o velho) ou de Gnotek
(o pequeno opressor). Não se sabe onde ele passa seus
dias. Não é muito grande, mas é extremamente pesado.
O Vjek se deita sobre aquele que dorme desprevenido e
comprime seu peito com toda a sua força, de forma que
a vítima não consiga sequer se mover. As pessoas dizem
que se alguém chega a arrebatá-lo pelo capuz, o demónio
lhe dará muita riqueza.
A bênção que o demónio do pesadelo confere pode
também consistir na revelação de segredos importantes
e úteis, bem como a concessão de força e boa saúde. Como
veremos mais adiante, esse aspecto da bênção, de fazer
o bem ou de prestar um serviço, deixou sua marca e foi
amplamente desenvolvido nos espíritos domésticos ger-
mânicos (spirutus familiares), que também são, ao mesmo
tempo, demónios do pesadelo. Portanto, a conexão ent.re
o até então inexplicável nome de Mefistófeles e Ofells-
-Epofelis ("aquele que ajuda", "benfeitor") fica muito clara,
pois, segundo a antiga lenda de Fausto, se tratava de um
desses tão úteis espíritos domésticos.
46 PETR6NIO, Satyricon, 38.
186
, ~':
8. O ponto de vista anteriormente mencionado sobre
o campo de atividade promotor de saúde e concessor de
bênçãos dos demónios do pesadelo é expresso em uma
epigrama em Kaibel, que foi de diversas maneiras mal
interpretado. Trata-se de uma inscrição encontrada em
Roma, que Kaibel datou em torno do século II d.C. Nela,
um pastor afirma ter sido curado de uma séria doença com
o aparecimento de Pã-Efialtes, quando tirava um cochilo
por volta de meio-dia. O epigrama diz:
A você, ó flautista, cantor de hinos, deus benevolente
Puro líder das náiades que derramam águas de banho
Higino, a quem tu mesmo curaste de uma severa doença
Por meio de sua aproximação, apresenta esta oblação.
Pois tu apareceste ao meu rebanho
Não como uma visão de sonho, mas em pleno dia. 47
A frase k tin essin ("ao meu rebanho") remeteria,
certamente, a um pastor que descansa ao meio-dia. Se
se referisse a um caçador, skylakessin ("aos meus filho-
tes de cachorro") seria apropriado. Em minha opinião, a
conjectura de E. Curtius, Tekessin ("aos meus filhos"), é
a menos provável, e devemos admitir que essa leitura
estaria deslocada se aqui estivéssemos falando de uma
epidemia de pesadelos, isto é, se ao mesmo tempo que
Higino fosse acometido por pesadelos, seus filhos também
tivessem sido. Comparemos com Artemidoro, no qual a
mesma antítese entre o sonho e o dia pode ser achada,
e com certeza com a Odisseia quando Odisseu se dirige
a Penélope em sonho: "Seja forte, filha do célebre Icário!
Pois não é um sonho e sim uma alegre realidade que verá
cumprir-se" .
A maioria dos filólogos que estudaram esta interes-
sante inscrição é da opinião de que a divindade a que se
47 KAIBEL, op. cit., n. 802.
187
fazem oferendas é Apolo-Pagão, mesmo que em nenhum
outro lugar ele receba o nome de soriktis ("flautista").
Plew e Drexler são os únicos autores que relacionaram a
epigrama com Pã, que também recebe em outros textos,
como este, os epítetos de cantor de hinos, guia das náia-
des e flautista, tal como corretamente assinalou Drexler.
Por outro lado, o fato de que Pã48 se revele às pessoas
durante o descanso do meio-dia - como aqui - justifica
essa interpretação. Em Longo,49 todos os tipos de visões
aterradoras, tanto diurnas como noturnas, "tinham sua
origem na raiva de Pã contra os marinheiros". Podemos
avançar na compreensão se entendermos que a instância
de Higino não se refere - como opinam Plew e Robert - a
um sonho normal e comum, mas a um vívido pesadelo
que, como acabamos de ver, era atribuído a Pã-Efialtes e
que, segundo uma antiga crença popular, exercia efeitos
curativos sobre a doença. Pã - como Asclépio - curava as
pessoas em sonhos: "O santuário de Pã Litírio em Treze-
na". "Desde tempos imemoriais, os habitantes de Trezena
mantinham um santuário no qual o deus concedia sonhos
proféticos que indicavam a cura para as epidemias."50
Os pesadelos também podem estar relacionados a
esse caso, pois, como veremos mais adiante, eles mais bem
correspondem à natureza de Pã do que os sonhos normais.
Drexler diz que não se trata de um pesadelo, mas de uma
visão que se tem acordado, porque declara expressamente
que o deus apareceu para Higino "não como uma visão de
sonho, mas em pleno dia". No entanto, gostaria de pontuar
que as noções de sonho e visão se entrelaçam de muitas
formas, e os pesadelos frequentemente são tão vívidos que
até os médicos mais experimentados podem confundi-los
48 LONGO, Pastorales, 2, 26.
49 Ibid., 2, 25.
50 Pausânio, 2, 32, 6.
188
com experiências reais. É muito provável que os fatos
que deram origem a esse epigrama sejam os seguintes:
Higino, um pastor afligido por uma doença física grave,
está cochilando ao meio-dia com seu rebanho. Ele acredita
estar desperto e Pã-Efialtes aparece (o deus dos pastores
e caçadores) em um sonho extraordinariamente real e o
cura com sua aparição. O mesmo se pode dizer sobre os
sonhos incubatórios no qual o deus, o demônio ou o herói
que fisicamente habita o santuário aparece para a pessoa
em sonho proporcionando-lhe cura através de uma inter-
venção pessoal ou prescrevendo qual terapia seguir. Em
algumas ocasiões, a vividez do sonho é tal que aquele que
dorme está convencido de que presenciou a aparição do
deus estando desperto e não em sono. Isso fica evidente
na extraordinária história da cura de Sóstrata no segundo
catálogo de Epidauro.
Ao aceitar a aparição física e não simplesmente so-
nhada do deus, Higino é fortalecido pelo fato de que, ao
mesmo tempo, seu rebanho caiu vítima de um ataque de
pânico (que se atribui igualmente a esse deus) e, como
mostra de gratidão, faz uma oblação ao deus curador por
tê-lo concedido cura. É possível que o epíteto de Pã, Pagão,
se deva a sua capacidade de prestar auxílio e ajuda, de
curar enfermidades. A representação de Efialtes como
um deus que cura e ajuda se explica facilmente por uma
sensação de consolo e redenção que se tem após a maioria
dos pesadelos. Mais adiante, veremos como os terrores do
pesadelo e do pânico são conceitos estreitamente relacio-
nados ente si e, por isso mesmo, são atribuídos frequen-
temente aos mesmos demônios.
189
 AS ANTIGAS DENOMINAÇÕES
DO PESADELO

A esta altura da argumentação, já estamos suficien-

temente familiarizados com a natureza e o funcionamento
do pesadelo e dos demônios do pesadelo para sermos ca-
pazes de entender etimologicamente sua multiplicidade
de nomes e, portanto, podemos proceder a uma breve
enumeração e estudo deles.
1. As duas palavras mais amplamente conhecidas
para designar o pesadelo são epialtes e ephialtes, que
estão foneticamente relacionadas entre si como epiorkos
e ephiorkos. Outra forma parece estar presente no nome
lício epaltes (Ilíada, II, 415). Diz-se que Alceu utilizou
a forma sem aspiração; também sendo considerada, de
outro modo, comojônica e ática. Na opinião de Moeris, as
formas epialtes ou ephialtes são helenistas, em contraste
com tiphus, que, conforme declara, é ática. O nome de um
notório traidor em Heródoto é Epialtes; um vaso de cerâ-
mica procedente da Ilha de Ceos, no qual é representada
uma gigantomaquia, mostra o nome de um gigante que
nos vasos áticos e na literatura soa Ephialtes e aparece
escrito como Hipialtes. Kretschemer deriva esse nome
de iallo (hiallo) e crê que o pintor escreveu ou desejava
escrever Hepialtes. No que diz respeito a seu significa-
do, tanto os filólogos antigos como os modernos vacilam
entre os derivados de iallo ("eu envio", "eu disparo") e

1 191
hallomai. Foneticamente, ambos derivados parecem
ser igualmente válidos, mas pelo significado é preferí-
vel hallesthai, pois, de um lado, hallesthai corresponde
muito melhor que iallen ao sentido dos verbos utilizados
em outros lugares para indicar a aparição do pesadelo,
como epipiptein - (pedan), irruere, invadere, incumbere,
epherpein, eperchesthai. O nome que os romanos davam ao
pesadelo era incubo(-us), derivado de incubere ("apoiar-
-se sobre, precipitar-se, deixar cair o peso sobre"). O nome
do gigante Ephialtes deriva claramente de ephallesthai,
uma vez que Filostro de Apolo afirma sobre os gigantes:
saltam em direção aos céus e não permitem que os deuses
lá residam (ourano de epipedesai kai me sunchorein tois
theois ep'autou einai). Por outro lado, em outros lugares
aparece empregado de maneira similar, assim como ao
pesadelo, para descrever os ataques repentinos e inespe-
rados dos guerreiros de Homero ou para retratar a veloz
descida de uma ave que se joga sobre sua presa. De fato,
também é admitido o significado de ephallesthai, que cor-
responde ao caráter erótico de Efialtes. Homero o utiliza
neste sentido na Odisseia quando se refere a Odisseu,
que impetuosamente abraça e beija seu velho pai (Kusse
de min periphus epialmenos ede proseuda).
2. Da mesma maneira, as formas mais raras epi-al-es,
gen. -etos, epi-al-os, iphi-al-os e epi-al-tos podem derivar
de hallesthai. Quanto a epiales - como testemunhado por
Hesíquio e Querobosco -, pode-se reportar a um fragmento
de Sófron que diz: Epiales ho ton patera pnigon ("Epiales
estrangulou seu pai"). Como somos ignorantes de seu con-
texto, permanecerá em lamentável dubiedade se devemos
entender que o demônio do pesadelo Epiales estrangula
seu próprio pai ou o pai de alguma outra pessoa. Neste
último caso, poderíamos entender que originalmente esse
demônio do pesadelo era um homem ímpio e parricida
e que em sua morte foi convertido em um espírito ator-
192
mentador e estrangulador. (Quando Aristófanes diz em
As Vespas, a propósito dos epialoi e puretoi: "que saiu à
noite para estrangular os pais e para engasgar os avôs",
e ao mesmo tempo indica que ele, como um segundo Hé-
racles, conquistou esses demônios, pode-se entender como
uma alusão ao texto de Sófron ou alguma outra dessas
fontes). Dizem que Alceu utilizou a terminação epialos em
estreita ligação a epialtes. No que diz respeito ao sentido
claramente ativo do sufixo -tos em epial-tos, gostaria de
dirigir ao leitor a obra de Kühner e H. Meyer (Ausf Gr.
Gramm. I, 715, Gr. Gramm. § 600). Somente com hesitação
eu me atreveria a nomear nesta ligação a forma epiales
mencionada por Hesíquio, possivelmente ao invés de
epialles. M. Schmidt prefere ler como epialtes ou epiales.
3. As formas epialos e epiales são mais difíceis de
elucidar. A mais importante entrada a respeito delas é
encontrada na Etymologicum Magnum: epialos, epiales e
epioles significam as intermitências da febre que também
atacam os que dormem à maneira de um demônio. Eufe-
misticamente, epios é chamado "o amável", "o amigável".
Contudo, Apolônio afirma que epialtes é chamado de
epiales, mesmo com a troca do a em o-pioles. O seguinte
excerto de Eustáquio mostra que essas palavras têm como
origem Herodiano: "nos escritos de Herodiano, aparece
epiales epialetos, que, tal como ele afirma, é utilizado de
um modo similar por Sófron quando Héracles estrangula
Epiales". Desses escritos, podemos aprender que, de um
lado, os calafrios febris denominados rhigorpuretos, as-
sim como o pesadelo e seu demônio, são designados pelos
mesmos termos epialos, epiales e epioles. Por outro lado,
fica claro que as palavras kat'antiphrasin derivam de
epios, isto é, pensava-se que tinham se originado a partir
de esforços eufêmicos. O duplo significado de epialos e
epiales ("ataque de febre com calafrios" e "pesadelo") pode
ser explicado com facilidade a partir do fato acima men-
193
cionado de que os pesadelos se produzem com frequência
durante episódios de delírios febris. (Pode-se recordar aqui
do Paione - também chamado epialteion - que dizem ser
um remédio eficiente tanto para pesadelos quanto para fe-
bre intermitente.) Entretanto, não é possível no momento
determinar com clareza se esses termos estão realmente
relacionados com epios e se podemos traçar sua origem a
um eufemismo. Obviamente, é inconcebível que ao temível
demônio das febres e pesadelos seja dado um nome de
sonoridade agradável. Basta recordar eufemismos, tais
como "mar hospitaleiro" no lugar de "mar inospitaleiro";
"noite amigável" para "noite mortal", "auspicioso" para
"ameaçador" ou "esquerdo" (sinais de má sorte sempre vêm
do lado esquerdo), Eumênides ("graciosas") por Erínias
("Fúrias", literalmente "vingadoras"), entre outros. Pode-
-se sustentar o ponto de vista de que nos sufixos -aios e
-ales, o -ai coincide com a raiz hallomai ("saltar sobre")
e, portanto, aponta para Epi-al-os e Epi-al-es como um
daimon epios ephallomenos e, dessa maneira, é possível
que as formas paralelas e aparentemente idênticas de
Epi-al-os e Epi-ales (veja acima) possam ter contribuí-
do consideravelmente para essa ideia. Em excertos da
poesia grega, aparecem figuras incontestáveis de vários
demônios com forma animal, de maneira que considero
provável que em epaphos devemos encontrar um demônio
animal, a poupa. 1 .
De longe, a informação mais importante que Eustá-
quio nos ensina é o mito contido no fragmento de Sófron,
no qual Hércules parece estar assombrado pelo demônio
do pesadelo (e da febre?); nele, Hércules o trata de igual
para igual, estrangulando o demônio da mesma maneira
que o demônio havia tentado estrangulá-lo. Devemos en-
trever nessa lenda, demasiado esquecida, um paralelo com
1 Aqui, o autor refere-se ao pássaro Upupa epops. (N.T.)
194
a luta - unicamente representada na escultura antiga - de
Hércules com Geras, a personific~ção de velhice, ou com
Tânatos emAlceste de Eurípedes. E possível que o mito de
Epiales e Hércules esteja representado em um camafeu
de "Gemas Antigas e Anéis" de King. Trata-se de umajoia
de estilo belo e grave que até o momento ainda não foi
explicada. Nela, Hércules aparece sentado na postura de
um homem completamente exausto ou a ponto de cair no
sono. Sua cabeça e seu peito estão inclinados para a frente
e ele parece estar sentado sobre uma pedra (?) com sua
mão direita apoiada sobre seu bastão. Aproximando-se
dele por trás - aparentemente de forma furtiva -, há um
poderoso homem barbado dotado de largas asas, que se-
gura um ramo de arvore ou uma haste de papoula na mão
esquerda e, com a mão direita, agarra o herói pelo pescoço,
aparentemente para estrangulá-lo. (Comparemos com a
definição de Epiales como um demônio que se aproxima
furtivamente daqueles que dormem, ou que os ataca.) Se-
melhantemente, Hipnos também aparece com frequência
nas esculturas como um demônio barbudo. Normalmente,
ele está atrás da pessoa que dorme ou, menos frequente-
mente, caminha em direção à pessoa derramando o sono
a partir de uma cornucópia. Em alguns casos, ele toca as
têmporas daquele que dorme com um pequeno ramo ou
uma haste de papoula úmidos com orvalho do Lete. Ele
é frequentemente alado. Não é necessário relembrar que
o demônio do pesadelo, somente operante durante o sono
ou no estado que precede o sono, ou o demônio da febre,
sempre acompanhado por sonhos temerosos e inquietan-
tes (epialos, Epiales), devem ter muito em comum com
Hipnos (e Oneiros).
4. Assim como o demônio da febre e dos calafrios
febris, o demônio da febre tifoide (tuphos, tuphomanie,
tuphodes puretos), frequentemente associado a delírios
intensos, sonhos confusos e sensuais (pesadelos), into-
195
xicação e estupor, parece também ter sido confundido
com o demônio do pesadelo Efialtes. (Os sonhos sensuais
estão provavelmente conectados com a emissão de sêmen
que Hipócrates tinha observado em certos casos de febre
tifoide.) É evidente que Tifo, cujo nome significa fumaça
ou emanações, deve denotar uma doença semelhante,
algumas vezes acompanhada de delírio e, em outras, de
estupor profundo, ambos os sintomas similares aos que
ocorrem àqueles que permanecem imersos em fumaça por
longo tempo e morrem asfixiados, quando não são resga-
tados a tempo. A propósito, a fumaça tem o mesmo efeito
sobre animais e homens. Durante o incêndio de outubro
de 1899 no pavilhão dos animais carnívoros do Jardim
Zoológico de Berlim, os animais ficaram primeiramente
enfurecidos pela fumaça, mas muito rapidamente se
tranquilizaram e entraram em estado letárgico, e somente
com muita de dificuldade foram despertados desse estado.
O uso de tuphoo (que significa basicamente "envol-
ver com fumaça") está em completa harmonia com esse
conceito, porque Hesíquio explica tetuphosthai ("repleto
de fumaça") a partir de memenenai ("fúria"); tetuphotai
("repleto de emanações") a partir de embebrontetai ("atur-
dido"); tuphosai ("encher com fumaça") a partir de pnixai
("sufocar"), apolesai ("destruir"); e por tetuphomenos en-
tendemos ser uma pessoa narcotizada, tola, irresponsável.
Gostaria de derivar tuphus ("fumaça", "emanações", "febre
tifoide"), tiphus como equivalente de Efialtis, como teste-
munham Dídimo, Moeris, Fócio e Hesíquio. Isto é, assumo
que tiphus substitui o antigo tuphus, da mesma maneira
que phi-tu-s substitui phu-tu-s e phituo substitui phutuo,
pois, segundo a fonologia grega, quando aparecem dois "u"
seguidos, o primeiro se transforma em "i" por dissimilação.
A terminação -us parece corresponder ao -eus habitual,
como se vê em uma série de inscrições de vasos coleta-
dos por Kretschemer - por exemplo, Nerus = Nereus,
196
Tudus = Tudeus, Oinus = Oineus, Thesus = Theseus, as-
sim como em nomes que aparecem na literatura, como
Hippus =Hippeus e Nikus =Nikeus. Ainda neste assunto,
também seria possível deduzir Tiph-us ("pesadelo") dire-
tamente de Thuphus ("fumaça", "gases") e entender que
"sonho asfixiante" (em alemão: Sticktraum) ou pnigalion
deve seu nome tiphus ao efeito da fumaça que, de acordo
com Béirner, produz ataques de asfixia nas pessoas ador-
mecidas e, portanto, muito provavelmente em pesadelos.
Nessa instância, tiphus significaria sonho enfumaçado
(em alemão: Rauchtraum). Não é difícil pensar que, por
conta da pobre qualidade do fogo e da iluminação no
período clássico - em especial nos primeiros tempos -, o
envenenamento por fumaça e os caos de estupor e pesa-
delos (tuphoi) deviam ser muito comuns, e todos teriam
tido a oportunidade de observar isso tanto em si mesmos
como nos outros.
5. A palavra epheles ("ser fantasmagórico") foi duas
vezes atestada por Hesíquio, que a considerava eólica.
Ela provavelmente deriva do verbo eph-el-ein, que quer
dizer "apreender ou atacar". Por conseguinte, poderia
significar "atacante" e indicar que o demônio do pesadelo
agarra aquele que dorme pelo pescoço ou lhe tapa a boca,
de maneira a provocar uma sensação de asfixia. Cabe re-
cordar, neste contexto, as palavras com as quais Homero
descreve Odisseu quando este tapa a boca de Euricleia:
helon epi mastaka chersin ouk ea eipemenai. Uma apre-
sentação similar se dá na base do uso de epilambaneim
(comparemos com epilepsia), que é frequentemente usado
acerca da doença.
6. A palavra pnigalion ("estrangulamento") utiliza-
da pelo médico Themisom e provavelmente derivada do
vernáculo se baseia em um conceito similar. O demônio
do pesadelo foi apropriadamente designado como "aquele
que faz engasgar" ou "aquele que estrangula" e, tendo em
197
vista nossas explicações prévias, este tópico não necessita
de maiores esclarecimentos.
7. Também já debatemos suficientemente a compre-
ensão de Epopheles e Opheles ("aquele que ajuda", "aquele
que salva"), atestados por Sorano e Hesíquio.
8. Nos antigos comentários de Aristófanes (As ves-
pas, 1038), fala-se sobre epialoi kai puretoi ("calafrios e
febres"), os quais Aristófanes atacou como um segundo
Héracles: "No entanto, Dídimo diz: 'O demônio Epialos,
também chamado Epiales e tiphus"'. Em lugar do Euopan,
termo até então inexplicável e de difícil compreensão,
Rohde deseja ler Euopana (uma referência a Suídas) que,
com toda certeza, seria perfeito para designar Pã, que
dança como um bode e que frequentemente aparece como
um demônio do pesadelo. Na coleção de vasos do Museu
Nacional de Nápoles, existe um que mostra um ator ou
um membro do coro que se prepara para um drama sa-
tírico. Ele está coroado com hera e usa em sua cintura o
avental desgrenhado dos sátiros (tragoi) com rabo e falo.
O Paniscos com patas de bode no espelho etrusco-romano
de Víbio-Filipo de Palestrina constitui um claro paralelo
a isso. Similarmente, o koutsodaimonas em forma de
bode dos gregos modernos, que ataca jovens e que, devido
aos seus chifres, é um perigo para mulheres grávidas ou
puérperas, tem a voz de um bode. Schmidt o vê como um
descendente direto do Pã grego.
Os próximos a serem citados são oriundos de algu-
mas designações medievais e neogregas do demônio do
pesadelo:
9. Baruchnas, notado por Eustáquio e Pselo, junto
com as formas claramente desviantes Barupnas, Bra-
phnas, garupnas, Brachnas e sbrachnas. Na opinião de
Sakellarios, se trata de uma derivação de barus ("pesa-
do") e pneo ("sono"), e entende que barupnas significa
barupnous ("respiração difícil"). Polite preferia conside-
198
...l.
rar o termo como uma combinação de barus e hugnos.
As mudanças de vogais aparentemente irracionais são
mais bem explicadas pela notável tendência das pessoas
supersticiosas de alterar arbitrariamente o nome dos
demônios que as assustam, pois temem que eles lhes
causem algum mal se chamados pelo seu nome correto.
A única coisa que podemos afirmar com certeza é que o
adjetivo barus ("pesado"), como já vimos, se faz presente
nessa expressão.
10. É muito difícil estabelecer a etimologia de ba-
boutzias e baboutzikarios, que aparecem pela primeira
vez na literatura bizantina tardia. O primeiro termo é
achado em um léxico como uma explicação para Efialtes,
de acordo com Du Cange (Ephialtes vulgo Babutcios); o
segundo termo é atestado por Suídas e Miguel Pselo na
obra de Leão Alácio (ephialtes: ho epi pollou baboutzias).
Uma vez que a distinta família dos Baboutcicoi é mencio-
nada por Genésio na primeira metade do século IX, estas
duas designações de pesadelo devem ter surgido no mais
tardar no século VIII. Pselo acredita que o baboutzikarios
é um espírito mal que sai vagueando perto da época de
N ataI. Leão Alácio também relacionou essa característica
aos vampiros dos gregos recentes: se trata de um demônio
que algumas vezes aparece como um lobisomem e outras
vezes como um demônio do pesadelo com patas de burro ou
bode, com orelhas de bode e pele peluda, e que, em muitos
aspectos, se parece com o antigo Pã grego e com os sátiros
que, por sua vez, também se parecem com demônios do
pesadelo. Pselo tentou relacionar o baboutzikarios com
Baubo, mãe de Demofonte, conhecida através do culto
de Deméter em Elêusis, mas essa suposição é altamente
questionável. É possível que o nome esteja relacionado
com a palavra neogregapapoutzas ("sapateiro"),papout-
zion ("sapatilhas") que, de acordo com Littré, deriva do
árabe-persa baboudj, papoch ("babouche", "sapatilha"),
, 199
e foi incorporada pela maioria das línguas modernas
(comparando-se com o francês babouche, em alemão Ba-
bousche ou Papu(t}sche). Resulta difícil explicar de que
maneira se conectam as ideias de sapatilha e sapateiro
com o conceito de demônio do pesadelo. Contudo, cabe
assinalar que, segundo os Grimm, um duende alemão que
também é um demônio do pesadelo é chamado "gato de
botas" ou simplesmente "botas"; e também como pontua
Sartori, em algumas ocasiões, as sapatilhas dos demônios
do pesadelo e dos espíritos noturnos falam, da mesma
maneira que os anões aparecem às vezes como sapateiros.
Talvez o próprio demônio seja de origem oriental, como
seu nome. Nada disso é surpreendente quando se leva
em conta as muitas e estreitas relações entre a velha
Constantinopla e o Oriente.
11. Entre as palavras neogregas para pesadelo, mora
é a mais amplamente utilizada. Parece que sua origem
remonta à língua eslava, pois o pesadelo recebe o nome
de mora em polonês e mura em boêmio. Grimm a coloca
em relação com o termo alemão mar (anglo-saxão moere,
inglês nightmare, francês cauchemar(e) a partir de calca-
re - "pisar em cima", "calcar" - e mar, significando "pesa-
delo"). Mora é também um epíteto de Gillou, um demônio
que estrangula os bebês, provavelmente idêntico ao antigo
Gello. A confusão que se faz entre o demônio causador de
uma doença que faz crianças sufocarem (paidopnikt'ria,
"aquele que estrangula crianças") e o pesadelo não é de
todo extraordinária se pensarmos nos pavores nocturni,
que são, por um lado, um estado patológico, e por outro,
similares aos pesadelos.
Este parece ser um ponto apropriado para enumerar
as outras denominações do pesadelo encontradas nos
escritores clássicos, principalmente em latim.
12. O nome Inuus se destaca claramente como uma
das mais antigas apelações latinas do pesadelo. Ele ocorre
200
pela primeira vez em Virgílio (Eneida, VI, 775), mas ali
parece ser utilizado no sentido de um assentamento de
Inuus. Rutílio Namaciano também destaca sua antigui-
dade. Os antigos identificavam Inuus com Fauno (Pã) e
gostavam de derivar seu nome do verbo inire, no sentido
de concumbere ("deitar-se com alguém"). Essa derivação
não é sequer minimamente plausível do ponto de vista
fonético, pois, neste caso, devíamos esperar uma forma
anterior in-i-vus. Parece muito mais provável que Inuus
não seja mais que uma forma derivada da preposição "in"
("em", ".sobre", "para", "rumo a"), na qual se acrescentou o
sufixo -vus, mas que, uma vez que a preposição termina
em "n", precisou ser mudado para -uus (comparemos com
in-gen-uus). Deve-se tomar por certo que essa forma era
empregada para designar os demônios do pesadelo no
sentido preciso de "alguém que se agacha ou está sentado
sobre outro", obviamente, em sentido erótico.
13. Em estreita relação com o conceito de inuus estão
os dois termos in-cub-o e in-cub-us, que aparentemente
classificam o demônio como "aquele que senta em cima",
isto é, um ser demoníaco que se deita sobre aquele que
dorme e se torna seu fardo. Cabe notar neste ponto que
cubare, cubitare, concumbere, concubinus-a, concubitus
etc., eram primeiramente utilizados para designar as
relações sexuais e, portanto, incubo e incubus em algu-
mas ocasiões têm um significado secundário claramente
erótico. Era conhecido na Idade Média o uso de incubus
e succubus no sentido de demônio-amante. Em sentido
geral, incubus(-o} e inuus aparecem como epíteto de Fauno
(Pã) ou de Silvano identificado com Pã (fauno); por outro
lado, incubus também é encontrado como um apelativo
de Hércules em seu papel como guardião de tesouros e
até mesmo parece que em algum momento se pensou nele
como um demônio completamente diferente de Fauno
(Pã, Silvano), que revela ou falseia tesouros àqueles que
201
dormem - como o grego Efialtes -, se eles conseguirem
roubar o que lhe cobre a cabeça. Quando incubo é utilizado
no sentido de guardião de tesouros, cabe assinalar que
incubare é frequentemente usado no sentido de vigília
zelosa, guardar dinheiro ou tesouros etc.
14. Desde o século I d.C., o termo fauni (fatui) fi-
carii aparece repetidamente rendido aos demônios do
pesadelo, como, por exemplo, feito por Cornélio Celso em
Pelagônio: "Os cavalos são frequentemente incomodados
durante a noite por Fauno Ficário; eles são então afligi-
dos pelas mais terríveis dores e a falta de sono provoca
perda de peso". Jerônimo escreve um comentário a Isaías:
"Certas pessoas chamam aquele que a maioria denomina
fauni ficarii tanto como incubi ou sátiros ou silvestres
(espíritos dos bosques)". De acordo com Jordanes (que
retoma a ideia de Cassiodoro), a raça dos hunos surgiu
quando esses fauni ficarii se misturaram com umas
mulheres bruxas; e nos glossários antigos a terminação
indo-germânica vudevasan é explicada com sátiros e
faunic ficarii. (Grimm afirma que os demônios do pesa-
delo, as fadas e as bruxas aparecem como borboletas e
especialmente como mariposas, cujas lagartas, natural-
mente, vivem perto ou nas árvores.) Du Cange relacionou
corretamente o adjetivo ficarius com as figueiras em seu
glossário, enquanto que Bochart entende ficus no senti-
do de verrugas-figo (o grego suke), isto é, os pequenos
inchaços nos pescoços das cabras e sátiros (pherea, verru-
culae), muito comuns em seu imaginário. O ponto de vista
de Du Cange parece se basear nas canções populares si-
cilianas e na superstição grega, em que se crê até hoje
que as figueiras são habitadas por espíritos malignos.
Talvez o sentido indecente de figo (sukon, em Italiano
fica, em francês figue) faça sentido nesse contexto. Com-
paremos também com o grego sukazein ("colher figos
maduros").
202
15. A designação pilosus pertence aproximadamente
à mesma época do nome faunus ficarius. Encontramo-la
pela primeira vez na tradução latina (Vulgate) do Livro
de Isaías, em que se diz: "Nec ponet ibi tentoriaArabs nec
pastores requiescent ibi, sed requiescent ibi bestiae et re-
plebuntur domus eorum draconibus et habitabunt ibi stru-
thiones, et Pilosi saltabunt ibi" (versão autorizada: "Não
armarás a tenda o árabe, nem os pastores ali terão seus
rebanhos. Mas as bestas selvagens do deserto ali dormi-
rão, e os dragões em seus agradáveis palácios, e corujas ali
habitarão, e sátiros lá dançarão".) A Septuaginta traduz
aqui: "kai daimonia ekei / orchesontai" ("e os demônios
lá dançarão"), enquanto o hebreu original usa a palavra
seirim (literalmente "cabras"), pelo que entendemos como
demônios em forma de bode, obviamente aparentados a
Pã, aos sátiros e aos faunos, que vivem em lugares selva-
gens e solitários e chamam uns aos outros. Que de fato
demônios do pesadelo devam ser compreendidos no termo
pilosi não procede somente de: "Os faunos, sem dúvida,
são aqueles a quem as pessoas chamam íncubos ou pilosi
e dão respostas quando são consultados por pagãos", mas
também de Isidoro (Orig. 8,11,103): "Os Pilosi ("aqueles
que são peludos"), que os gregos chamavam de Panitae,
os romanos de incubi ou inui por copular indiscrimina-
damente com animais, com frequência também atacam
desavergonhadamente as mulheres e têm relações com
elas. Os gauleses chamam esses demônios pelo nome de
Dusios, uma vez que praticam incessantemente tais imun-
dícies".Aliás, o antigo comentário boêmio de Wacerad diz:
"Os Moruzzi pilosi, a quem os gregos chamam panitae e
os romanos incubi, cuja forma a princípio deriva da hu-
mana, mas cujas extremidades são como as das bestas".
Convém recordar aqui que em polonês e em grego moderno
mora faz referência ao demônio do pesadelo. No que diz
respeito aos pilosi, o fato de que os faunos ou pilosi res-
I
203
1
pondem as perguntas que lhes são feitas demonstra que
se trata de genuínos demónios do pesadelo. Obviamente,
o termo pilosi dá a entender que o demónio do pesadelo é
um ser de pelo áspero e desgrenhado. Essa representação,
como já vimos, é explicada simplesmente pela roupa de
cama peluda feita com pele de cabra ou lã de ovelha. Se
essas roupas de cama obstruem a respiração daquele que
dorme, então elas com certeza darão origem ao conceito
de um demónio do pesadelo peludo e assemelhado a um
bode. Assim, entendemos por que os Pãs, sátiros e faunos
caprinos acabaram por ser considerados demónios do pe-
sadelo: pois naquele tempo as peles de cabra ou de ovelha
ou as capas feitas com pele de cabra ou lã de ovelha eram
utilizadas para proteger aqueles que dormiam do frio e
do clima inclemente.
16. E finalmente, nos restam os Dusii gauleses. Eles
são mencionados pela primeira vez por Agostinho e são ca-
racterizados como demónios do pesadelo deitados à espera
de mulheres. Dado que quase todas as evidências desses
demónios foram cuidadosamente compiladas por Holder
(Altceltischer Spachschatz I, 1387 ss.), tenho justificável
dispensa para evitar reproduzi-las aqui. Acreditava-se
que os Dusii viviam nos bosques e nas colinas com os Pãs,
os faunos e as sílfides. Dusius foi convertido atualmente
em deuce. Provavelmente a palavra Dus-ii esta relacio-
nada com o grego dus-, o sânscrito dus-, o parsi dush-i-ti
("desgraça") e o antigo irlandês du-, e denota os demónios
do pesadelo como espíritos malvados. Essa explicação se
ajusta perfeitamente com o epíteto improbi que usam
Agostinho e Isidoro. Completamente diferente e, em mi-
nha opinião, de menor aplicação, é a etimologia oferecida
por Holder, que gostaria de ligá-la ao lituano dvaese ("es-
pírito", "alma"), ao eslavo duchu e ao grego theos.
204
1 205
OS MAIS IMPORTANTES DEMÓNIOS
DO PESADELO GREGOS E ROMANOS
Como já ficou claro a partir de nossa pequena co-
leção de pesadelos antigos, sua causa era atribuída a
vários deuses e demónios em conformidade ao seu amplo
e variado conteúdo. De modo que vemos no número 1 de
nossa coleção um ser em forma de bode, e no número 2
um sátiro, e nos números 3 e 5 os espíritos dos mortos
(heróis), no número 4 seres humanos dotados de feitiçaria
demoníaca, no número 6 uma sereia, no número 7 até
mesmo Elohim e, no número 8, Pão Portanto, em geral,
a julgar pelos escassos pesadelos antigos descritos em
detalhe, parece que o mesmo procede para eles a respei-
to dos sonhos ordinários: cada deus ou demónio - e, na
prática, todo ser humano demoníaco - é capaz de causar
pesadelos e aparecer neles com sua própria forma ou com
outra diferente. Mas embora o número de seres divinos
ou demoníacos causadores de pesadelos - e de sonhos
ordinários - seja quase ilimitado, ao se realizar uma in-
vestigação mais precisa fica evidente que, na realidade,
existem muito poucos demónios aos quais se atribuía a
capacidade de desencadear pesadelos. Esses demónios
têm suas características próprias. O fato de que quase
todos os deuses e demónios sejam potenciais causadores
de pesadelos provavelmente confundiu Laistner, que viu
demónios do pesadelo em todos os deuses e demónios,
elevando, consequentemente, o pesadelo ao patamar de
princípio mestre e básico de toda a mitologia.
Consideraremos agora cada um desses instigadores e
tentaremos buscar uma resposta para a questão: sobre qual
solo cada um desses elementos individuais foi fundamenta-
do como um demônio do pesadelo? Ou, em outras palavras,
como as relações dessas figuras com os pesadelos podem ser
explicadas a partir de seus atributos e funções? (Não levo
em consideração aqui aqueles demônios do pesadelo que
não parecem ser mais que personificações do conceito de
"pesadelo" e que, na realidade, somente conhecemos seus
nomes, por exemplo, Efialtes, Tifo, Íncubo, Inuus etc., pois
foram descritos no capítulo anterior. Eles desempenham o
mesmo papel sem importância que os demônios do sonho
em Ovídio, como, por exemplo, Morfeu, Fobetor ou Ícelo,
Fântaso.) Começaremos nossa investigação com Pã, que
é o mais conhecido e o mais importante desses demônios.
Concebo esse deus como protótipo divino ou demoníaco
dos antigos pastores de ovelhas e cabras gregos e como a
encarnação da vida coletiva desses antigos pastores, com
todas as suas experiências, costumes, alegrias e tristezas.
1. Pão A evidência direta do significado de Pã como
Efialtes ou causador de pesadelos aparece pela primeira
vez na época de Augusto; não obstante, se levarmos em
conta a totalidade de fatos relevantes, dificilmente existi-
ria alguma dúvida de que o conceito de Pã como demôhio
do pesadelo se originou muito antes, até mesmo em sua
Arcádia natal. (Tentei mostrar que o culto de Pã tem suas
raízes na Arcádia em: "Archiv für Religionswissenschaf-
ten", I, pp. 5 ss.) As evidências são estas:
a. Aristófanes (As vespas, 1038): "Dídimo disse: 'um
demônio a quem chamam de Ipialis, ou Typhis ou Eua-
pan"'. Ver capítulo III, 8.
b. Artemidoro (On. 2,37): "Ephialus, também confun-
dido com Pã, mostra, ainda assim, algumas diferenças:
206
opressivo e pesado, ele é o mesmo nos pesadelos e nos
terrores. Contudo, quaisquer que sejam suas respostas,
elas são sempre verdadeiras. Ele concede diversos favo-
res àqueles com quem ele consorcia, e ele faz profecias,
particularmente quando ele não atua como um pesadelo.
Quando ele deseja o bem, ele cura doentes, mas nunca se
aproxima dos moribundos".
C. O interessante epigrama de Higino, no qual se
afirma que ele foi curado de uma doença severa por uma
visão originada por Pã-Efialtes, datado do século II d.C.
d. Agostinho (Cidade de Deus, 15,23): "Há também
um rumor bastante notável, que muitos puderam veri-
ficar pela própria experiência, ou ouviram testemunhos
diretos de pessoas confiáveis, que os silvanos e os pãs,
comum ente chamados de íncubos, sempre se compor-
tam de maneira desavergonhada com as mulheres, as
desejam e mantém relações com elas". Achamos prati-
camente o mesmo conteúdo em Isidoro (Orig. 8,11,103)
e em Gervásio de Tilbury (Otia impero 3, 86), ambos em
débito com a obra de Agostinho. A lenda humorística de
Ovídio que, por sinal, provavelmente remonta aos poetas
alexandrinos, é obviamente baseada neste aspecto de Pão
Ela começa com as seguintes palavras: "Era meia-noite.
Quem se atreveria a ensaiar um amor lascivo?" Compa-
remos também com Heráclito (de incred. 25): "A respeito
dos Pãs e dos Sátiros: eles nascem nas montanhas e não
estão acostumados às mulheres. Se eles encontram uma
mulher, eles têm relações sexuais com elas. Em grande
número, costumam provocar terror e pânico entre as
mulheres".
As seguintes considerações põem em evidência que
esses conceitos sobre Pã-Efialtes não se originaram no
século I a.C., mas são muito mais antigos. Em primeiro
lugar, Pã foi considerado desde sempre o causador de todo
tipo de sonhos e visões e especialmente do terror violento
207
e repentino. Assim, por exemplo, sabemos a partir de Pau-
sânias (2, 32, 6) sobre o santuário de Pan Lytirius ("Pã,
o redentor") em Trôade que foi fundado em memória da
libertação da cidade de uma epidemia. Pã havia revelado
remédios eficazes aos governantes da cidade em sonhos.
(A bem atestada importância de Pã como deus mântico e
mestre de Apolo na arte da adivinhação em, por exemplo,
Licosura e no Liceu árcade, pode remontar com facilida-
de tanto a um oráculo onírico como a função de Pã como
um emissário de mania, do êxtase ou do furor divinus.)
Isso claramente remonta à cura de Higino por meio de
um sonho ou visão do deus. A famosa aventura do arau-
to Fidípedes, que pouco antes da batalha de Maratona
proclamou ter tido uma visão do deus nas montanhas do
Partenon, em Tégea, quando estava a caminho de Atenas
desde Esparta, também pode ser interpretada como um
sonho ou visão. Esse evento constituiu um das principais
razões para o estabelecimento do culto de Pã na Acrópole
de Atenas. Além do mais, o phasma ("aparição") que rou-
bou a visão de Epicelo (ou Policelo), fazendo-o perder a
batalha de Maratona, momento em que Pã concede aos
atenienses a vitória enviando pânico e terror aos seus
inimigos, l nada mais era do que uma aparição de Pã,
segundo disse um informante desconhecido da Suídas.
(Quem quer que veja um deus ou descubra o segredo
de um deus contra sua vontade fica cego, enlouquece ou
morre. Comparemos com as lendas de Tirésias, Astrábaco,
Aglauro, Acteon ou Sêmele.) Da mesma maneira, Long0 2
explicava várias visões e sons aterradores, tanto diurnos
quanto noturnos, que causavam pânico, como "revelações
da ira de Pã contra os marinheiros". Isso é expressamente
confirmado mais adiante, pela aparição do deus em um
1 HERÓDOTO, 6, 117.
2 LONGO, Pastorale, 2, 25 e 26.
208
sonho que teve o líder de um exército durante sua sesta. A
ampla difusão do conceito de que Pã, quando está irritado,
envia sonhos e visões aterradoras claramente se deve aos
vários glossários de Hesíquio e Fócio, que até então não
puderam ser devidamente compreendidos. Fócio (Lex.,
ed. Naber, 51): "porque Pã é o instigador de visões que
causam a insanidade"; Hesíquio: "As emanações de Pã
causam visões noturnas". A ira de Pã é frequentemente
mencionada em outros lugares como, por exemplo, na
Medeia de Eurípedes (v. 1172), com relação ao início da
epilepsia. Não é difícil perceber que a conexão de Pã com
os sonhos e visões - em especial com os pesadelos - está
intimamente associada com o pânico e o terror, cuja exci-
tação também era atribuída a Pão
Se me permitem, repetirei mais uma vez o que já
observei quanto ao entendimento desse interessante
fenômeno, facilmente compreensível em acordo com a
natureza de Pã como deus dos pastores e rebanhos: é um
fato conhecido que até animais totalmente domestica-
dos, como ovelhas e bodes, sejam afetados por um desas-
sossego e um terror especialmente violento que frequen-
temente os assalta repentinamente - sobretudo durante
a noite -, não havendo, em geral, uma razão objetiva
perceptível para tanto. Os animais perdem o juízo e,
como se tivessem enlouquecido, correm de um lado para
outro, até mesmo quando essa ação é perigosa para eles.
Por exemplo, podem cair em um precipício ou atirar-se
na água, e alguns ou até o rebanho inteiro pode morrer.
Em Valério Flaco CArgon., 3, 43 ss.), o terror do pânico
fatal para Dolione é atribuído a chamados de trombeta
e gritos de horror durante a noite. Segue a descrição: "O
descanso dos homens foi quebrado, o deus Pã tinha trazido
distração para a cidade em dúvida. Pã, senhor dos bosques
e da guerra, que se protege da luz do dia nas cavernas.
Aparece por volta da meia-noite nos lugares solitários
209
com seu flanco peludo e com folhagens desbastadas em
sua feroz testa". A descrição se conclui com estas palavras:
"É diversão para o deus quando ele dispersa o assustado
rebanho de seu redil e o guia enquanto pisoteia arbustos
em seu voo. 3 Suídas diz: "Os terrores de Pã - algo que
corre nos acampamentos militares; homens e cavalos
são subitamente atirados a uma agitação sem qualquer
razão aparente - se denominam dessa maneira porque
esses terrores infundados são atribuídos a Pã". J. Frobel
escreve acerca desse pânico em cavalos, cães etc.: "Um dos
incidentes mais perigosos que pode ocorrer durante uma
viagem é um estampido noturno ou, para expressar-me
de modo clássico, o efeito de um ataque de pânico em um
grupo de mulas ... O menor dos infortúnios a ser temido
é que um dos muleiros seja pisoteado pelas mulas que
repentinamente se comportam como se estivessem fora de
si, pois se pode perder todas as mulas e a caravana inteira
pode morrer". Os zoólogos modernos observaram que as
cabras e ovelhas são, em particular, sujeitas a esse terror,
e aqui também poderíamos recordar o pânico que tomou
a manada de porcos no Novo Testamento. Tylor escreve: 4
"Os animais se assustam e se espantam sem que possamos
saber a causa; por acaso eles veem espíritos que me são
invisíveis?". Essa crença que Tylor sustenta apresentando
vários exemplos demonstra que não somente fenômenos
de caráter acústico, mas também, e com a mesma fre-
quência, visuais, provocam terror e pânico de acordo com
o ponto de vista dos antigos.
Convidamos o leitor a comparar essas informações
com Dionísio de Halicarnasso (Antiguidades romanas,
5, 16): "Pois os romanos atribuem os ataques de pânico
a esta divindade; e quaisquer que sejam as aparições
3 Selene und Verw, 157 SS.
4TYLOR,Anf D. Cultur, 197 SS.
210
que os homens veem, às vezes sob uma forma e às vezes
sob outra, elas inspiram terror, e quaisquer que sejam
as vozes sobrenaturais que chegam a seus ouvidos e os
molestam, são, segundo dizem, obra deste deus". Essas
vozes sobrenaturais são os "sons fantasmas da natureza"
sobre os quais recentemente E. Thiessen dedicou um es-
timulante artigo. 5 Esse é o suposto terror de pânico cuja
característica essencial - tal como afirmado pelos anti-
gos - é o inicio súbito, imprevisível e perigoso, negligente
de toda razão ou sentido e que ataca vários indivíduos ao
mesmo tempo. Portanto, esse fenômeno é frequentemen-
te chamado de loucura (mania, pavor, lymphaticus). Os
pastores gregos, naturalmente tentando explicar o caráter
indubitavelmente demoníaco desse fenômeno (que, como
já vimos, afetava com frequência as vidas dos pastores)
para torná-lo compreensível de algum modo, atribuíam a
ele a ação demoníaca e destrutiva de Pã como o deus dos
rebanhos e pastores. Eles tomavam muito cuidado para
não suscitar a ira do deus, para que ele mantivesse os
rebanhos a salvo da loucura.
Assim, Pã se torna também um deus da guerra, pois
ele frequentemente semeia o terror do pânico em nu-
merosos grupos de pessoas, em particular nos exércitos.
Esse ato desempenhou um papel decisivo na história
militar antiga, como, por exemplo, em Maratona e em
Delfos. A ideia de que o terror do pânico tenha sua origem
primeiramente nas experiências e observações tiradas
da vida pastoril pode ser constatada também em Enéas
(Poliorcética, 27), que explicitamente afirmava que paneia
("pânico") deveria ser considerado como um nome pelo-
poneso ou árcade, pois Arcádia e Peloponeso eram tidos
como a sede autêntica e o lugar originário do culto de Pã
desde tempos imemoráveis. Para uma compreensão mais
5 THIESSEN, E., Die Woche (Berlim, 1900) n. 20, 878 SS.
211
profunda da estreita relação que une os dois conceitos de
pesadelo e terror do pânico, quero chamar atenção para: I)
os pesadelos endêmicos já mencionados, cujos efeitos são
perfeitamente comparáveis aos do terror do pânico e 2) o
fato de que em outros lugares os demônios que suscitam
terrores de pânico sejam idênticos aos do pesadelo. Assim,
por exemplo, a descrição de um estrondo (o efeito que
provoca o pânico nos rebanhos no sudoeste da América
do Norte) diz o seguinte: "Os vaqueiros o chamam de 'o
pesadelo' e atribuem a ele poderes invisíveis, duendes ou
anões que estuporam o gado e o assustam e o separam".6
Estava evidentemente tomado por certo, portanto, o fato
de que animais e homens eram atormentados em certos
estados mórbidos por sonhos aterradores (pesadelos) e
alucinações que produziam terror de pânico. A mais ine-
quívoca evidência é encontrada em Suídas: "Excitação por
sonhos: agitados por sonhos, os animais também adoecem,
afirma Pitágoras"; e também em Lucrécio, que fala sobre
os sonhos dos animais: "Em verdade, verás cavalos animo-
sos, com seus membros enterrados nos sonhos, banhados
de suor, se apresentarem ofegantes e se movendo como
se disputassem pela vitória".7
O estado patológico aqui mencionado é indiscutivel-
mente idêntico a outro conhecido pela superstição germâ-
nica que o atribui aos demônios do pesadelo. Comparemos,
por exemplo, com Wuttke: 8
Até mesmo cavalos e outros aninais são atormentados
por pesadelos; os animais suam profusamente, ofegam
ruidosamente, seu pelo se arrepia totalmente e fazem
apertados nós em suas crinas impossíveis de se pentear;
a única coisa que se pode fazer é queimá-las com velas
benzidas ou cortar em forma de cruz. O Walriderske (nome
6 Ilustr. Ztg., n. 2821, 22 de julho de 1897, 122.
7 Tradução por H. A. J. Munro, 1908, ed. 1947.
8 WUTTKE, op. cit., § 403.
212
1 213
dos demônios do pesadelo na Vestfália e Oldenburg) ca-
valgou neles.
Presumo que essa doença demasiado comum em
cavalos era realmente chamada de "pesadelo", mas para
o presente não posso produzir qualquer prova para tal de-
signação. Roncar (dispneia), suar e sentir grande agitação
também são características de pesadelos em humanos, se-
gundo Sorano. De fato, acreditava-se que cavalos e ovelhas
sofriam das mesmas doenças que o homem. Sobre isso,
vejamos Aristóteles: 9 "A experiência mostra que quase
todas as doenças que afetam os homens também afetam
os cavalos e o gado". A peculiar crença dos huzulus reco-
lhida por Kaindl certamente se inscreve nesse contexto: 10
No Natal, esses pequenos diabos (szczezlyki, chowanci)
visitam os estábulos e não dão descanso ao gado. Saltam
e cavalgam sobre eles até que o gado morre de exaustão
durant~ a noite, ou se tornam muito magros; ademais,
estes dIabos reduzem os instrumentos do estábulo a pe-
daços. Para evitá-los, os estábulos devem ser fumigados
com incenso (ladan) durante a noite e as fechaduras das
portas presas com alho, capaz de manter todo o mal longe.
Muito parecida é a história dos Leetons - os demônios
do pesadelo dos letões - que diz que:
os cavalos são cavalgados por Maar ou Leeton, como eram
chamados, durante a noite, de forma que os cavalos ficavam
muito fracos e cansados; e apresentam marcas que, pelo
que se crê, foram feitas por estes montadores. Colocam a
cabeça de um cavalo morto debaixo do feno do comedouro,
pois [... ] isso afastará os Maars.
Os romanos atribuíam uma doença similar a um
demônio malvado do pesadelo a quem chamavam de Fau-
9 ARISTÓTELES, Historia Animalium, VIII, 24.
10 KAINDL, Zauberglaube b. d. Huzulen, Globus 72, 255.
nus ficarius. Os sinais dessa doença eram perda de peso,
agitação violenta durante a noite e dores agonizantes. Os
gregos conheciam o mesmo tipo de demônio que agitava
e tirava a tranquilidade dos cavalos e o chamavam de
Taraxippos. Esse demônio era venerado nos hipódromos
de Olímpia, no Istmo e em N emeia. Em geral, era conside-
rado um herói, isto é, um espírito dos mortos de natureza
maligna, mas outras interpretações tomam-no como, por
exemplo, o gigante Isqueno, ou ainda outros gigantes ou
titãs, até mesmo Poseidon. A questão sobre a natureza de
Taraxippos recebeu uma nova dimensão no interessante
ensaio de Pernice sobre uma antiga pintura coríntia na
qual é possível ver um demônio assemelhado a um anão,
imberbe e definitivamente erótico, que está atrás de um
cavaleiro, próximo à base da cauda do cavalo, apertando
seu falo extremamente proeminente com ambas as mãos.
(Diz-se que foi encontrado um espectro provocador "com
forma de macaco e de cócoras" em um vaso de Tagliatella,
mas não pude ter acesso a ele.) Muito provavelmente,
essa figura é Taraxippos. Vemos um demônio de similar
compleição com a inscrição LA1 em outro fragmento de ce-
râmica coríntia, na qual ele aparece diante do forno de um
ceramista. Considerando o caráter erótico desse demônio,
a inscrição pode ser completada de muitas maneiras. A
maioria delas pode ser traduzida como "libidinoso, lasci-
vo"; mas também "imoral" e "perverso" seriam possíveis.
N a interpretação de Pernice, se trata de um dos kobolds
maliciosos que, de acordo com a bênção homérica do cera-
mista (kaminos he karames), causam destroços no forno
do ceramista e estragam seus vasos. Robertll até mesmo
considerou esses kobolds do forno como um tipo peculiar
de sátiro. Essa hipótese poderia estar correta, ainda que
todas as características próprias do bode ou do cavalo
11 Veja ROBERT em Greek Mythology de PRELLER, voI. I, 726 ss.
214
estejam ausentes no demônio retratado no fragmento
de cerâmica coríntia. Como Furtwangler primeiramente
reconheceu, bailarinos grotescos com barrigas e pélvis
conspicuamente enormes e frequentemente com pênis des-
comunais aparecem na antiga cerâmica coríntia no lugar
dos até então desconhecidos sátiros e silenos, figuras essas
muito parecidas com o Taraxippos e com esse kobold do
forno. Podemos, ademais, aproveitar a oportunidade para
relembrar que na peça satírica de Sófocles "Héracles no
Tenaro", os hilotas ocupam o lugar do sátiro. Nestes boju-
dos vasos coríntios, cuja forma se assemelhava aos sátiros,
pode-se pensar automaticamente na crassa caracterização
que Hesíodo 12 faz dos camponeses incultos e carentes de
educação: "pastores dormindo a céu aberto, consistindo
somente de estômagos, canalhas". Quando se considera
que os demônios do pesadelo dos huzulos também inco-
modavam os cavalos e destroçavam os estábulos, a ideia
em si sugere que os dois kobolds anões fálicos da pintura
coríntia são os mesmos que esses malignos demônios do
pesadelo que, em diversas ocasiões, assustam ou adoecem
os cavalos e outras vezes atuam no forno do ceramista em
detrimento de seu dono.
Comparemos também com as aparições similares de
anões maliciosos e kobolds descritos pelos irmãos Grimm
em sua Mitologia Germânica. O caráter notadamente
fálico desses espíritos nos dá a pista para sua interpreta-
ção; essa característica se explica facilmente pelo caráter
inequivocamente erótico próprio de todos os demônios
do pesadelo. Em acréscimo, contamos com a observação
feita pelos autores antigos de que anões possuem grandes
genitais. Aristóteles 13 diz: ''A mula, como os anões, tam-
bém possui partes privadas grandes". A apresentação de
12 HESIODO, Teogonia, 26.
13 ARISTOTELES, Historia Animalium, VI, 24.
215
tais anões (pigmeus) na arte corresponde a essa ideia.
É verdade que a identidade comum de Taraxippos e Pã
não pode ser provada. O primeiro parece ter mais coisas
em comum com os sátiros do que com Pã, pois faltam os
chifres e as patas de bode, que são específicos de Pão Não
obstante, podemos dar por certo que existia uma relação
muito estreita entre ambos os demónios, baseada na
conexão comum com o pesadelo erótico e os terrores do
pânico, ou seja, com a agitação dos animais.
Por outro lado, as informações sobre um interessante
demónio neogrego, o Laboma que existe hoje em dia nas
crenças dos pastores do Parnaso, devem ser considerados
como claras reminiscências das antigas representações
da natureza e das ações de Pão B. Schmidt diz: 14 "Este
ser tem o costume de montar nas cabras montesas como
faria um bode, e provoca sua morte súbita. Numerosos
pastores do Parnaso dizem ter sido testemunhas oculares
desse fato e afirmam que os animais foram tomados por
uma dor atroz durante a cópula com o demónio, gritando
com medo e morrendo pouco depois. Em algumas vezes,
o demónio imita o som da flauta do pastor guiando o
rebanho e atrai os animais inocentes para si mesmo.
Ninguém se atreve a disparar sua pistola ou escopeta
contra o Laboma quando notam sua presença, pois muitas
armas explodiram causando uma ferida fatal no atira,dor".
Schmidt colocou bastante ênfase no fato de que como a
gruta Corícia era dedicada a Pã e às ninfas da Antigui-
dade, e que sempre serviu de refúgio para os pastores do
Parnaso e seus rebanhos, e uma vez que Pã era conside-
rado, e também representado como, um agressor seme-
lhante ao moderno demónio Laboma, consequentemente
devemos ver no deus-bode dos pastores contemporâneos
do Parnaso simplesmente uma metamorfose particular de
14 SCHMIDT, B., Volksleben der Neugriechen, I, 156.
216
Pão A vali dez dessa hipótese parece indiscutível, sobre-
tudo quando acabamos de ver que os demónios aos quais
se atribuem os pesadelos são também frequentemente
considerados responsáveis por certas doenças fatais do
gado, manifestando-se em múltiplas formas de extrema
excitação e agitação; em tais casos, podemos supor que
esses demónios cavalgaram ou saltaram sobre os ani-
mais. Dado o sentido erótico secundário desses termos,
eles obviamente indicam copulação (comparemos com o
latim salire, inire e o grego thornistai etc.). E, no que se
refere ao costume de cavalgar dos demónios do pesadelo,
me refiro aos Grimm. 15
Em estreitíssima associação com essas visões de
Pã enquanto demónio do pesadelo e causador tanto dos
terrores do pânico quanto de determinadas doenças ve-
terinárias, há o fato de que se acreditava que ele também
era o causador da epilepsia e das doenças mentais. Uma
evidência definitiva da crença antiga acerca da relação de
Pã com a epilepsia pode ser achada em Medeia de Eurípe-
des, em que se fala sobre a origem da doença de Creusa
(causada pela túnica envenenada por Medeia), que, a
princípio, parecia ser um ataque epilético causado por Pã,
pois a rigidez repentina, o cair por terra e a palidez são os
três principais sinais da epilepsia. Os antigos escoliastas
já haviam sintetizado essa opinião quando assinalaram,
acerca dessas palavras, que "se trata de um acesso de fúria
de Pã ou de algum outro deus" e que "os homens acredi-
tam desde tempos imemoriais que aqueles que de repente
caem por terra (aqueles que sofrem de epilepsia) estão
transtornados por causa de Pã ou de Hécate"; consciente
da estreita relação que existe entre ataques epiléticos e
terror do pânico e as súbitas alterações mentais que deles
derivam, o autor ainda acrescenta: "acreditam que a razão
15 GRIMM, Dit Myth., 384 SS.
217
desses temores súbitos e das alterações mentais é Pã". A
medicina moderna também sustenta que um sentimento
de terror violento e repentino pode produzir formas es-
pasmódicas de epilepsia, doença de São Vito, asma e até
alterações mentais. O aborto que sucede a um choque
violento também se insere nesse contexto. Isso deu lugar
à teoria de que os demônios que produzem o pânico são
perigosos para as mulheres grávidas e puérperas e que
são os causadores da terrível febre puerperal com seus
delírios correspondentes. Areteu já havia observado com
notável precisão que muitos epiléticos imaginam imedia-
tamente antes do ataque que estão sendo hostilizados por
um animal selvagem horrível ou um fantasma e têm todo
tipo de sonhos malignos e estranhos, bem como alucina-
ções acústicas peculiares que nos lembram dos fenômenos
visuais e acústicos provocados pela ira de Pã sobre Longo.
É interessante notar que Hipócrates não menciona Pã
entre os demônios que a crença popular atribuía à origem
da epilepsia (Cibele, Poseidon, Enoida (= Hécate), Apolo
Nomios (?), Ares, os Heróis). A razão é provavelmente
que, na época de Hipócrates, o culto do deus árcade dos
pastores ainda não havia se estendido até Cos e a costa
da Ásia Menor.
Pã, como autor de ataques epiléticos severos e algu-
mas vezes fatais, que ocasionalmente não eram convul-
sivos, de maneira que podiam dar a impressão de morte,
eventualmente se converteria em um malvado demônio
da morte, como mostra uma pequena tábua de encanta-
mento encontrada em uma tumba perto de Constantino.
N essas pequenas tábuas se inscrevia uma maldição e
eram enterradas em tumbas para estabelecerem contato
com o Submundo. A inscrição diz: 16 "Ele (aquele a ser
amaldiçoado) deve ser carregado para longe, assim você
16 C.I.L., VIII supp. N. 19525 = Wünsch, Defixion. tabell. Praef, xxvi.
218
(o demônio da morte) deve desprovê-lo de sentimento,
memória, respiração, até que ele seja somente uma som-
bra de si mesmo". O resto é ilegível. O demônio retratado
nessa pequena tábua é descrito por Wünsch da seguinte
maneira: "na Antiguidade, o demônio invocado tinha os
cascos fendidos e peludos de um bode e estava armado
com estilingue e um gancho".1 7 Perda dos sentidos, da
consciência, da memória, da fala e retenção da respira-
ção são sintomas muito semelhantes aos da epilepsia, de
modo que, em minha conjectura, não seria improvável
considerar Pã, na forma de demônio com patas de bode,
como o causador de pesadelos e ataques epiléticos. Em
conclusão, lembremos mais uma vez do ponto de vista
de Sorano, de que o pesadelo é uma epilepsia incipiente.
Essa afirmação, como acabamos de ver, agora parece ser
muito natural e compreensível a partir do ponto de vista
da antiga crença popular.
Portanto, Pã acabou por se converter no ser causador
das alterações mentais (mania). (A propósito, gostaria de
chamar a atenção para quão proximamente relacionados
são os conceitos de mania e epilepsia). Como tal, Pã apare-
ce nas obras de Eurípedes, que, em Hipólito, versos 14 ss.,
faz com que o coro diga a Fedra, que está louca de amor:
O selvagem êxtase lhe possui
Enviado por Pã ou por Hécate?
Dos andarilhos Coribantes?
Ou do poder de Cibele?
O escoliasta acrescenta: "Entusiastas são aqueles
cuja razão foi roubada pela aparição e que estão possu-
ídos pelo deus que se apresentou a eles e executou suas
ordens". Essa observação do antigo comentarista é psicolo-
gicamente correta, na medida em que alucinações, visões
17 WÜNSCH, Defixion, tabell, praef, xxvi.
219
 e ilusões constituem o sinal mais seguro da doença mental
e primeiramente se manifestam nos sonhos dos insanos;
esse fato está em completa harmonia com a observação
feita na Antiguidade, quando os sonhos pesados - em par-
ticular os pesadelos - precedem a aparição da epilepsia e
da loucura. De modo que podemos entender facilmente
como Pã, o agente dos pesadelos, das visões, das alucina-
ções e dos ataques epiléticos teve de se converter no cau-
sador das doenças mentais. Mais dois fatos contribuíram
para isso: o primeiro é a experiência de um medo violento
e repentino, como as phasmata que Pã geralmente cau-
sa, frequentemente produzindo não meramente ataques
epiléticos, mas também severos distúrbios mentais; e o
segundo é o terror de pânico dos homens e dos animais,
interpretado como mania ou ataques de ira e, portanto,
atribuído a demônios que em outros lugares eram também
a causa da demência ou loucura, de acordo com o ponto de
vista antigo. Esse fato é posteriormente elucidado através
de uma passagem dos evangélicos sinóticos,18 no qual
Jesus expulsa uma legião de demônios que haviam possu-
ído um homem, fazendo com que seus espíritos imundos
entrassem em um rebanho de dois mil porcos. Os porcos
foram então tomados pelo terror de pânico, "e acabaram
correndo para um precipício e se lançaram ao mar". Por
outro lado, temos a história de Pausânias (X, 23, 7) sobre
o terror do pânico que assaltou os gauleses sob as ordens
de Breno em Delfos, no ano de 278 a.C., pânico esse que
hoje em dia chamamos de mania.
De modo ajustificar adiante a posição de equivalência
do terror do pânico e da loucura na Antiguidade, gostaria
de chamar a atenção para a relativa frequência das epi-
demias de pesadelos e de insanidade, isto é, o fato de um
grande número de indivíduos sucumbir ao mesmo tempo
18 Marcos 5,1-14; Mateus 8,28 ss.; Lucas 8,26 ss.
i 220
I
I
I
a algo que novamente nos faz recordar do terror do pânico.
Na passagem que cito a seguir, aprendemos muito sobre
um caso de loucura epidêmica em forma de cinantropia e
licantropia atribuída a Pã, na qual se fala de Pã e Eco: "Pã
está enfurecido com a menina porque ele a inveja, inveja
a sua música e porque ele é feio. Assim, ele enlouquece
os pastores de ovelhas e de cabras. Estes a despedaçam
como lobos ou cães e espalham seus membros por todos
os cantos. No entanto, os membros continuam a cantar" .19
Há mais evidências de Pã como causador da loucura em
outros textos. Se nos referimos a Rhein. Mus, 1898, 199,
acharemos muitos outros casos desse tipo de insanidade
epidêmica, bem como de provas de que a doença das filhas
de Pandareu (Odisseia, XX, versos 66 e seguintes), men-
cionada pelo escoliasta, muito provavelmente consistia
em cinantropia (licantropia).
Devo concluir esta reflexão sobre Pã-Efialtes, com o
objetivo expresso de especificar tanto quanto for possível
os motivos pelos quais o antigo deus dos pastores daArcá-
dia se transformou em um demônio do pesadelo - aI udin-
do, agora, ao impulso erótico a ele atribuído desde sempre
e, sobretudo, nas numerosas esculturas. Cabe relembrar
sua imagem de pelagem áspera, caprina, que divide com
os outros deuses do pesadelo, pois, como já vimos, o leito
habitual de Antiguidade era pele de cabra ou feita com
pelo de cabra, que, por sua natureza, devia provocar a
aparição de demônios parecidos com uma cabra na pessoa
afligida por um pesadelo. Poderíamos pensar na aparição
do bode para Sinônide, ou no sátiro que aparece como
um demônio do pesadelo em Filóstrato - provavelmente
também forma parcial de cabra -, e finalmente podemos
recordar o Bocksmahrte germânico (literalmente, o bode
do pesadelo), o Habergeiss (literalmente, o bode-aveia,
19 LONGO, Pastorales, 3,23.
221
provavelmente devido à conotação erótica da aveia; cf.
em inglês "to sow wild oats"20) e o bode no qual montava
a Murawa e a Trude.
2. Sátiros. Como já vimos, os sátiras às vezes apare-
cem como demônios do pesadelo em pesadelos eróticos
absolutamente genuínos. Esse fato é facilmente compre-
ensível, pois, tanto nesse aspecto como em muitos outros,
os sátiras estavam estreitamente relacionados a Pã, cuja
imagem é representada por eles, ainda que de modo de-
formado por vulgaridade, comicidade, burlesco e maldade.
Os sátiras também se originaram em Argos. Como Pã,
são demônios em forma de bode; sua relação com ele é
praticamente a mesma que os pequenos Pãs que - como
é evidenciado pela coleção de Wernicke de ilustrações
sobre vasos de cerâmica - são absolutamente idênticos
visualmente aos sátiras e confundidos constantemente
com eles nas descrições modernas. O temo "bode" é igual-
mente adequado para ambos. Algo similar ocorre com os
chamados "sátiras com chifres", que frequentemente não
podem ser diferenciados do Pã de pernas humanas. Com
Pã, eles compartilham a forma parcial ou completa de
bode, evidenciada pelo fato de serem sempre chamados
de bodes ou Titiros (que é, na verdade, um macaco com
um longo rabo) e pela sua representação nos vasos áticos
antigos em figuras vermelhas excelentemente tratadas
por Wernicke (Hermes, XXXII, p. 297 ss.). Ademais, são
peludos e possuem um impulso erótico irrefreável. Todas
essas características também são comuns a todos os outros
demônios do pesadelo. Comparemos também com o sátira
Lásio da taça de Munique e os numerosos sátiras encon-
trados em vasos: Peos ("falo"), Sybas ("sibarita"), Stygon
20 "To sow wild oats" é uma expressão que literalmente significa "semear
aveia selvagem", mas cujo sentido informal significa "viver ajuventude intensa-
mente", em especial no que se refere a ter muitos relacionamentos sexuais. (N.T.)
222
1
("ereto"), Poston ("pequeno rabo"), Eraton ("libertino").
Em outros aspectos, contudo, eles também se parecem
muito com os já mencionados kobolds dos germânicos e
dos outros povos do norte, que frequentemente também
aparecem como demônios do pesadelo. Vem daí sua grande
propensão a todos os tipos de chistes e brincadeiras, que
até mesmo seriam proferidas para provocar o poderoso
Hércules. Inclusive, há também sua paixão por roubos,
saques e enganações, justamente as mesmas inclinações
dos malvados kobolds. Os cercops possuem uma natureza
muito similar. São também incapazes de realizar qualquer
trabalho; eles são saqueadores e ladrões. Sua lascívia está
provavelmente expressa em seu próprio nome (kerkos =
phallus). Não me aventurarei a conjecturar a propósito
do rabo dos macacos porque, até onde me consta, eles não
aparecem na estatuária, ainda que os cercops, como os
sátiras e Pã, possuam conexão com os macacos. Lobeck
os colocou em relação com os kobaloi, um tipo de demô-
nio do cortejo de Dioniso, enquanto que pertencentes da
esfera desses demônios do pesadelo burlescos e malicio-
sos e assemelhados a kobolds. Todavia, atualmente não
existe nenhuma prova definitiva de sua conexão com os
pesadelos.
3. Faunos. Não é minha tarefa aqui demonstrar que
Fauna, em sua origem e significado básico, seja bastante
próximo a Pão Isso implicaria dizer que, assim como Pã,
ele é um antigo demônio dos pastores (camponeses) e dos
rebanhos e que, devido a sua óbvia semelhança com o
pastor árcade, foi colocado no mesmo nível que Pã desde
o primeiro cantata com a religião grega e com a religião
dos romanos. Devo me contentar aqui em assinalar que
Fauna se tornou um demônio do pesadelo pelas mesmas
razões que Pão Convocando a prova anteriormente men-
cionada acerca da validade de Fauna como um demônio
do pesadelo, gostaria de chamar a atenção, antes de
223
 tudo, para o fato de que Fauno costuma revelar-se pelas
mesmas razões que Pã nos sonhos proféticos e em todos
os tipos de visões óticas e acústicas, sobretudo naquelas
que inspiram terror. A crença em Fauno como inspirador
de sonhos proféticos é muito antiga e difundida, como
demonstram os ritos de incubação descritos por Virgílio,21
a propósito de um oráculo de Fauno situado em um bos-
que sagrado que cercava a fonte de Albunea. Igualmente,
em Ovídio,22 esses ritos deviam ser observados se Fauno
desejasse enviar uma revelação em sonhos: em primeiro
lugar, tinham de sacrificar algumas ovelhas; em seguida,
os peregrinos tinham que deitar e dormir sobre a pele dos
animais sacrificados no bosque consagrado a Fauno. Em
acréscimo, era necessário colocar uma coroa de folhas de
faia, praticar a castidade e abstinência e retirar todos
os anéis dos dedos. Entre as raças mais primitivas, uma
dieta frugal oujejum era o principal meio para assegurar
visões e sonhos proféticos, como demostram as excelentes
observações de Tylor. Esse ritual, como assinala Preller,23
corretamente dá a impressão de ser realmente muito anti-
go e surpreendentemente coincide com os costumes gregos
de incubação. Desconheço o modo pelo qual Marquart24
chegou à conclusão de que o ritual de incubação romano
só se tornou usual tardiamente e que deveríamos situar
sua origem na Grécia. De qualquer maneira, a autoridade
mais competente no aspecto das religiões antigas, Bouche-
-Leclerq, 25 dá por certo, e com boas razões, que o oráculo
de sonhos de Pã Litírio de Trezena está relacionado com a
incubação. Se essa suposição for correta, o paralelo entre
Pã e Fauno é ampliado em um importante ponto.
21 VIRGÍLIO,Aeneis, VII, 81 ss.
22 OVIDIO, Fausti, Iv, 641.
23 PRELLER, Roman Myths, I, 383.
24 MARQUART, Ram. Staatsv. III, 97 ss.
25 BOUCHE-LECLERQ, Histoire de la Divination, II, 386.
Ainda mais numerosos são os testemunhos que ates-
tam a crença de que Fauno - como Pã - se mostra em fenô-
menos óticos e acústicos de todo tipo e em sua maioria pro-
duzem horror. A passagem principal sobre esse tema pode
ser encontrada em Dionísio de Halicarnasso,26 que segue:
~ois os romanos atribuem o pânico a essa divindade; e
mdependentemente das aparições que chegam à visão
das pess?as, uma hora sob uma forma e depois sob ou-
tra, mspIrando o terror, e independentemente das vozes
sobrenaturais que chegam a seus ouvidos para molestar
as pessoas, elas são obra, segundo afirmam, desse deus.
Notemos como os fenômenos acústicos e óticos de
fauno ~stão relacionados com o terror de pânico, o que,
posterIOrmente ao que acabo de dizer sobre Pã, é facil-
mente compreensível e nos brinda com uma bem-vinda
confirmação da explicação que demos aqui. Possivelmen-
te, as seguintes palavras de Lucrécio estão relacionadas
aos fenômenos acústicos de Fauno: "As pessoas afirmam
que a calma noturna é interrompida pelas brincadeiras
dos furiosos e barulhentos faunos". Sem dúvida, não
podemos excluir a ideia de que esse conceito tem origem
grega e que foi tomado emprestado por Pã e pelos sátiros
anteriormente mencionados juntamente com as ninfas:
A caracterização de Pico e Fauno oferecida por Plutarco
(Numa, 15), com relação à antiga e conhecida lenda roma-
na, na qual Numa domina esses demônios, diz que, como
os genuínos demônios do pesadelo, "eles renunciam à sua
própria natureza tomando formas diversas e conjuram
visões aterrorizantes perante os olhos dos homens. Eles
predizem muito do futuro e informam os homens sobre
ele", particularmente quando estão bêbados de vinho e
fortemente presos. Similarmente, Ovídi027 fala a respeito
26 DIONÍSIO de Halicarnasso RomanAntiquities 6 16
27 OVÍDIO, Metamorphoseon, II, 638 ss. ".

i 224 225
'I
i
....
do deus do sonho Ícelo ou Fobetor: ele "se transforma em
fera, em pássaro, em uma enorme serpente. Os deuses
chamam-no de Ícelo, mas os mortais o chamam de Fobe-
tor". Comparemos também com Laistner, The Riddle af
the Sphinx, 1,62 ss., 82 ss., 92 s. e II, 4 s., sobre as meta-
morfoses dos demônios do pesadelo.
Outros demônios do pesadelo também podem ser
persuadidos a realizar profecias e também para que levem
a cabo serviços úteis se forem embriagados com vinho e
se fortemente imobilizados. Logo, esses conceitos sobre
Fauno não foram pegos emprestados do culto e do mito
grego de Pã, mas sua origem genuinamente italiana está
demonstrada pela lenda histórica da batalha no bosque de
Arsia, onde tanto Fauno como Silvano - semelhantes em
natureza e, portanto, identificados com ele - semearam o
terror do pânico entre os inimigos através de fenômenos
acústicos noturnos, decidindo o desenlace da batalha em
favor dos romanos. As crenças nos fenômenos acústicos e
visuais de Fauno estavam tão arraigadas entre os roma-
nos que até podemos nos aventurar a explicar o nome do
' · 28 o nome d e
deus na seguinte base: de acor d o com S ervlO,
Fauno deriva de phane = "ruído", ao passo que Hesíquio
interpreta o nome a partir de phainan autan = "aquele
que mostra a si mesmo". Outras fontes atribuem a mesma
importância que os fenômenos visuais têm aos fenômenos
acústicos de Fauno. Já vimos que, sobre as mesmas bases,
também houve intenções de derivar o nome de Pã do verbo
· . ="mos t rar-se " .
P h aLnem
Algumas doenças equinas, com sintomas de perda
de peso e mal-estar noturno, também foram atribuídas a
Fatuus ficarius, ou seja, a Fauno enquanto um demônio
do pesadelo. Esse assunto já foi discutido. A seguinte ora-
28 Sérvio, em Aeneis, VII, 81.
226
ção de Horáci029 demonstra que, em geral, se acreditava
que ele era o causador, mas também o protetor contra a
doenças dos animais, em particular aquelas que afetavam
as jovens e recém-nascidas ovelhas:
Para além de meus ensolarados campos,
Passais benevolente, e retirai-vos das vistas
Sendo gentil ao gado jovem.
Porfírio aqui explica: "Ele invoca fauno, sobre quem
se diz ser um deus malvado e pestilento". Comparemos
com Acrão, acerca dessa passagem: "Os jovens bezerros
são os mais prejudicados pelos Faunos", e com Sérvio:
"Horácio representa Fauno como prejudicial, dizendo
'passa benevolente"'.
Não há nenhuma tradição direta que considere Fau-
no como o causador da loucura como se considerava Pã,
mas isso não seria improvável se levarmos em conside-
ração que o êxtase mântico ou a inspiração divinatória
foram interpretados desde sempre como "furor" (furaris
divinalis),30 assim como a profecia através de sonhos
sempre foi relacionada com Fauno (Fatuus) e sua esposa
Fauna (Fatua). Consequentemente, Fauno recebeu os
apelativos de fatiducus, 31 Fatuclus e Fatuus ("profeta"); os
ditados e profecias mais antigos dos habitantes da Itália
escritos em versos saturninos ou "fáunica" eram atribuí-
dos a ele. Vejo aqui um paralelo definitivo com Pã, a quem
se dispensavam oráculos "desde os tempos imemoriais" e
cuja profetisa, segundo se dizia, era a ninfa Erato, a esposa
de Arcas. Uma coleção de profecias comparáveis àquelas
das sibilas circulou sob o nome dela até mesmo na época
de Pausânias, pois Periegete diz tê-las lido.
29 HORÁCIO, Carmina, III, 18, 295. Tradução de Lord Dunsany, Londres,
1947.
30 CÍCERO, De Diuinatione, 1. 2. 4.
31 VIRGÍLIO, Aeneis, VII, 82.
227
 Finalmente, podemos apelar para a relação familiar
com os bodes, caracterizada por pelos duros e pronunciado
impulso erótico, para provar a conversão do antigo deus
italiano dos pastores e rebanhos, Fauno, em um demônio
do pesadelo. Não podemos demonstrar definitivamente
que Fauno, mesmo antes de ser equacionado a Pã, era
representado como uma mistura de bode e homem (com
patas e chifres de bode) tal como Pã, mas é certo que os
antigos sacerdotes romanos, os lupercos, eram chamados
de Creppi, ou seja, bodes, pois se vestiam somente com
uma pele de cabra, em semelhança à forma como o pró-
prio Fauno era pictoricamente representado, assim como
também os sátiros, também chamados de bodes. O sa-
crifício de bodes e cabras era habitual tanto nos cultos
de Pã quanto nos de Fauno, e com certeza estão relacio-
nados.
4. Silvano. O deus das florestas, Silvano, surge de
uma esfera de pensamento e experiência quase que idên-
ticas às de Fauno e Pão A semelhança com esses deuses
era tão óbvia para os antigos que Silvano era às vezes
identificado com o primeiro e, em outras vezes, com o se-
gundo. De acordo com o comentário de Prob0 32 a Virgílio,
o pastor Crátis gerou seu filho Silvano com uma cabra.
Elian0 33 conta a mesma lenda a respeito de Pão O mito é
de origem sibarita e, sem dúvida, os sibaritas procediam
em parte da Acaia (onde também havia um rio chamado
Crátis) e em parte de Trezena, e, por conseguinte, do
local de origem do culto de Pão Auréli0 34 também atesta
a equação entre Silvano e Fauno. Segundo a lenda da
batalha do bosque de Arsia, percebe-se que essa equação
é muito antiga. Em algumas vezes é Fauno, e em outras
32 PROBO, Georgica, I, 20.
33 ELIANO, De Natura Animalium, 6, 42.
34 [AURÉLIO VICTOR], De Viris Illustribus, 4.
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I '
228
I
vezes é Silvano que é creditado como o demônio que
convoca e origina o pânico. Sua essencial semelhança
com Pã e Fauno é posteriormente demostrada pelo fato
de que ele, como os outros, também se transformou em
um demônio do pesadelo. Isso fica evidente em Agos-
tinho: "Há também um rumor bastante notável, que
muitos puderam verificar pela própria experiência, ou
ouviram testemunhos diretos de pessoas confiáveis, que
os silvanos e os pãs, comum ente chamados de incubos,
sempre se comportam de maneira desavergonhada com
as mulheres, as desejam e mantém relações com elas".35
Novamente, como acontece com Pã e Fauno, Silvano é
considerado um dos originadores do terror do pânico, em
particular através de fenômenos acústicos; donde o terror
do despertar da batalha no bosque de Arsia ser às vezes
atribuído a Silvano e outras vezes a Fauno. Varro (citado
por Agostinho) sugere a crença de que Silvano também
provocava visões aterradoras e perigosos delírios da febre
puerperal, quando afirma que:
A mulher depois do parto é guardada por três deuses para
que o deus Silvano não a importune durante a noite. Com
o intuito de representar estes três guardiões, três homens,
durante a noite, visitam e rondam os umbrais da casa,
primeiramente golpeando o umbral com um machado,
depois o golpeando com um pilão e, por fim, o esfregando
com uma vassoura. Esses sinais mostram que a casa está
ocupada e impedem Silvano de entrar. Pois nenhuma ár-
vore pode ser derrubada sem corte ou ferro, nem o milho
pode ser preparado sem um pilão, nem a colheita pode
ser amontoada sem uma vassoura. Os nomes dos deuses
derivam destas três coisas: Intercidona, da intercessão do
golpe cortante do machado; Pilumnus, do pilão (Pilus), e
Deverra, das vassouras. O poder desses três deuses protege
a pós-parturiente de Silvano.
35 AGOSTINHO, De Civitate Dei, 15,23. Tradução de M. Dods, II, 92 ss.
229
 Agostinho acrescenta mais adiante:
Portanto, o olhar dos justos não prevaleceria contra a ira
do deus malicioso se não houvesse várias pessoas para
repeli-lo, grosseiro, inculto e repugnante que é, assiI? como
os bosques, mas com os símbolos da lavoura e cultIvo que
são opostos à sua natureza. 36
Possivelmente, as "certas doenças" dos lunáticos
[sonâmbulos] em Macróbi0 37 são parcialmente relacio-
nadas às febres puerperais, em particular quando estão
relacionadas a doenças fatais. A crença de que mulheres
pós-parturientes estavam especialmente vulneráveis a
demônios malignos e que deveriam ser protegidas contra
eles é, de fato, muito difundida.) Obviamente, se dava por
certo que era o mesmo demônio que importunava as mu-
lheres nos pesadelos e que também aparecia em delírios
da febre puerperal e podia tornar-se perigoso. O mesmo
se pode dizer do Koutsodaimonas com forma de bode dos
gregos modernos, que muito provavelmente corresponde-
ria ao antigo Pã grego. Ele tem
um queixo muito longo com uma barba (barba de bode),
seus olhos são rodeados de pelos duros e tem a voz de um
bode. Não somente ataca as jovens mulheres, mas também
as mulheres pós-parturientes e grávidas, porque golpeia
suas barrigas com seus chifres. 3s
Acreditava-se que Silvano constituía um perigo não
somente para as mulheres que acabavam de dar à luz,
mas também para os recém-nascidos, como vemos em
um fragmento de Varro: "Se a criança nasce viva e é pega
pela parteira, é depositada no solo para garantir auspí-
cios favoráveis; uma oferenda é preparada para Pilumno
36 Ibid., 6,9.
37 MACRóBIO, Saturnalia, 1, 17, II.
38 SCHMIDT, B., Das Volksleben der Neugriechen, l, 153 SS.
230
e Picumno, os deuses do matrimônio". Sérvio comenta
a respeito de Virgílio, Eneida, 10, 76: "Varro atesta que
Pilumno e Picumno são os deuses dos recém-nascidos e
que a eles se prepara uma oferenda no umbral por par-
te da mulher pós-parturiente para averiguar se o bebê
recém-nascido vai sobreviver". Vemos aqui que Pilumno
e Picumno tinham que proteger não somente a mãe, mas
também seu filho recém-nascido. Parece que também
existia a crença de que Silvano sequestrava e trocava os
bebês uns pelos outros (changelings), fato que é atestado
pela superstição corrente no vale de Fasa, no sul do Tirol,
de que os Salvegn (= Silvanos) frequentemente trocavam
as crianças.
Como um ponto final, convém assinalar que Silvano
também corresponde a Pã e a Fauno nas vezes que toma
a forma de um bode, recebe cabras como vítimas sacrifi-
ciais e é peludo e desgrenhado; todas estas características
contribuíram em grande medida para que se convertesse
em um demônio do pesadelo.
Os antigos demônios do pesadelo dos índios, os Gran-
dharves e Rakshas, também mostram extraordinária
similaridade com Pã, Fauno, Silvano e os sátiros. Cobertos
de couro e peles, dançam e correm pelos bosques ao cair da
noite, pois evitam a luz do dia; saltam ao redor das casas,
guinchando como asnos. Tomam a forma de um irmão ou
de um pai, ou aparecem enrolados em panos, ou com uma
horrível deformidade, corcundas ou disformes, com a bar-
riga flácida e torso proeminente, pelo negro, duro e descui-
dado, e exalam o fedor de um bode. O antídoto mais eficaz
contra eles é uma erva amarela, de cheiro forte - Baja ou
Pinga ou Ayacringi (Chifre-de-bode) -, que desempenha o
mesmo papel que o paionie da superstição greco-romana.
Eles ficam à espreita de mulheres adormecidas, na lua de
mel, e logo após o parto; atormentam as mulheres como
espíritos sexuais licenciosos, permanentemente excitados
231
 e com grandes testículos, e se divertem matando recém-
-nascidos. Habitam lugares sombrios e escuros (como
Silvano) e são capazes de enlouquecer as mulheres. Tem NOTA BIBLIOGRÁFICA FINAL
o pelo áspero e são comparados a macacos e cachorros.
Sua contrapartida feminina são as Apsaras, que podem
ser comparadas com os elfos, as ninfas e as sereias e são
quase iguais aos Grangharvas.

N a primeira página da monografia original estava

impresso o seguinte: EPHIALTES, eine Pathologische-
-Mythologische Abhandlung über die Alptraume und
Alpdamonen des klassischen Altertums Von Wilhelm
Heinrich Roscher. (Des XX. Bander der Abhandlungen der
philologisch-historischen Classe der Ki:inigl. Sachsischen
Gesellschaft der Wissenschaften. No II, Leipzig, bei B. G.
Teubner, 1900).
A monografia consistia de 123 páginas de texto (mais
um sumário "sistemático", isto é, um resumo dos conte-
údos, e um índice). Aqui, 92 páginas foram traduzidas
juntas com mais de 285 notas de rodapé que foram, em
maioria, mantidas no texto. A tradução das passagens
, '
clássicas foi principalmente - mas não totalmente - feita
I. por nós. O leitor que desejar se aprofundar em quaisquer
referências em detalhes pode tanto consultar a versão em
inglês do autor clássico quanto a original em grego ou
latim. Em geral, as referências foram adaptadas para as
abreviações do inglês padrão que prefaciam The Oxford
English Dictionary, o Greek-English Lexicon de Liddell e
Scott, e o Latin Dictionary de Lewis e Short.
Os três curtos apêndices que não foram incluídos nes-
ta edição são: I. "O significado do nome Mefistófeles", em
que Roscher conclui que o Diabo medieval e renascentista

233
232
 não só é figurativamente, mas também etimologicamente
ligado ao Pã enquanto demónio do pesadelo; II. "Passa-
gens dos antigos médicos acerca da natureza e origem ÍNDICE
dos pesadelos" apresenta, à luz dos resultados obtidos
na monografia, textos melhorados (em grego e em latim)
de tudo que se refira ao pesadelo no trabalho dos antigos
médicos (Sorano, Oribásio, Aécio etc.); III. Uma citação
latina de Tritêmio (Annales Hirsaugiensis II) do século
XVII sobre demónios do pesadelo que possuíram freiras
enclausuradas. Finalmente, as páginas 120-123 contêm
em letras miúdas o "Nachtrage" de Roscher, ou seus pós-
-escritos, argumentos filológicos, correções e considerações 5 Introdução à coleção Amor e Psique
sobre sua obra como um todo. Era costumeiro que se
incluísse informação adicional, reunida posteriormente 7 Agradecimentos
à publicação do trabalho nas primeiras páginas em um
"N achtrag", de modo que o trabalho pudesse estar tão
atualizado e com tanta autoridade quanto fosse possível. PARTE I
UM ENSAIO SOBRE PÃ
NOVA EDIÇÃO REVISADA
Por James Hillman
13 A psique retorna à Grécia
,I
25 O sonho no ano de 1900
Iii,
31 Pã, o deus-bode da natureza
li
I' 39 A realidade imaginaI
i!

i·
47 O "instinto"
",I
ii 51 O pânico
ir
61 Pã e a masturbação
69 O estupro
85 As ninfas de pã
105 Ecologia
109 Espontaneidade - sincronicidade
115 Curando nossa loucura
234
235
 PARTE II
EFIALTES
UM TRATADO MÍTICO-PATOLÓGICO
SOBRE O PESADELO NA ANTIGUIDADE CLÁSSICA
Por
Wilhelm Heinrich Roscher

125 Da importância psicológica do texto e seu autor

141 Prefácio
145 A natureza e a origem do pesadelo à luz
da medicina moderna
161 A natureza e a origem do pesadelo à luz
da medicina antiga
191 As antigas denominações do pesadelo
205 Os mais importantes demônios
do pesadelo gregos e romanos
233 Nota bibliográfica final

236
......
I