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UC Berkeley

Lucero

Title
Civilizacào e barbàrie no romantismo latinoamericano: aproximando facundo,
de sarmiento, e o cabeleira, de Franklin Távora

Permalink
https://escholarship.org/uc/item/3sq9n0zj

Journal
Lucero, 17(1)

ISSN
1098-2892

Author
Moraes, Anita

Publication Date
2006

Peer reviewed

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University of California
C IV ILIZ A gÀ O E B A R B À R IE NO
ROM ANTISM O LA T IN O ­
AM ERICAN O:
APROXIMANDO FACUNDO , DE
SARMIENTO, E O CABELEIRA,
DE FRA N KLIN TÁVORA

ANITA M.ORAES

UNICAM P

he ob jective o f th is a n a ly sis is to unveil a p a rtic u la r

T m o m en t in L a tin A m e r ic a w h ere th e d efin itio n o f


id e n tity w as stro n g ly a n c h o re d in th e d ich o to m y
“C iv iliz a tio n a n d B a rb a r ism .” In th e p re se n t a rticle, I ap p ro ach
Facundo (1 8 4 5 ) b y A rg e n tin e a n D o m in g o F a u stin o S a rm ie n to ,
a n d O C abeleira (1 8 7 2 ) b y B ra z ilia n F ran k lin T á v o ra , w ith the
in ten tio n o f ex p lo rin g th e c h a ra c te ristic s o f th is d ich o to m y in
b o th , S a r m ie n to s a n d T á v o ra ’s d isc o u rse s.

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C IV IL IZ A Ç Â O E B A R B À R I E NO R O M A N T IS M O L A T IN O A M E R IC A N O

A
noçào de civilizaçâo forja-se no cham ado esp ato s (o interior e o litoral) e de projetos de na^áo
m undo ocidental com o destinada a servi­ que se confundem com um "projeto civilizador”,
lo em seus esforços de descriçâo de seus tom ando as form as de urna conquista colonial.!
próprios processos históricos e na classificaçâo C on tar a vida do terrível C abeleira, pondera
de diferentes povos. Participa desses esforços o Franklin Távora, bandido cruel, lem brado pela
de prescrever açôes individuáis e coletivas. E na poesía popular, tem urna inten fáo precisa: im porta
prescriçâo do “dever ser” que a noçào de civilizaçâo narrar a vida desse crim inoso porque ele poderia náo
adquire a força de um valor. Entre o "fato”, a pretensáo ter sido o "facinoroso” que foi, náo fossem algum as
descritiva, e o “valor”, os anseios norm ativos, forja­ circunstáncias que o desviaram do "caminho do
se, com o advento d as Luzes, a palavra civilizaçâo bem ”. O rom ance O Cabeleira ocupa-se ju stam en te
(Starobin ski 11-13). Longe de ter urna referencia de apontar sob quais circunstáncias hom ens sáo
precisa, é noçâo complexa, convergente de noçôes reduzidos a feras:
diversas com o urbanidade, progresso técnico, cultura
d as artes e ciencias. N a m edida em que se im buí de "M erecem -nos particular m editagáo,
valor, a categoria "civilizaçâo" é dispu tad a, vigorando ao lado dos que ai se m ostram dignos
em discursos diversos, até m esm o aparentem ente da gratidáo da patria (...), alguns vultos
antagónicos. A o longo do século X I X e do X X , os infelizes, em quem hoje veneraríam os talvez
colonialism os (británico, francés, portugués, belga, m odelos de altas e varonis virtudes, se certas
etc.) recorreram a esta noçâo convergente (e bastante circunstáncias de tem po e lugar, que decidem
elástica), configurando ideologías im periais afins do s destinos das n afó es e até da hum anidade,
com seus intéresses. Porém , a dicotom ia civilizaçâo náo p udessem desnaturar os hom ens,
e barbàrie, e m esm o a ideologia im periai que nela se torn ando-os a^oites d as gerafóes coevas e
funda (cuja deform açâo m aior consiste em defender algozes de si m esm os. En tra neste núm ero
corno progresso situaçôes coloniais, de exploraçâo o protagonista da presente narrativa, o qual
e violência), foi decisiva na form açâo náo apenas se celebrizou na carreira do crime, m enos
d as novas colonias (A ppiah ; M udim be; S a id ), m as p or m aldade natural, do que pela crassa
tam bém no processo de form açâo das novas naçôes ignoráncia que em seu tem po agrilhoava os
latino-am ericanas (Berriel). bons instintos e deixava so ltas as paixóes
A ficçâo rom ántica brasileira de caráter canibais.” (31)
regionalista, em particular aquela que se dedica à
“violência no cam po”, recorre à dicotom ia civilizaçâo D e m aneira análoga: se n ascido nos dom inios
e barbàrie na costruçâo do espaço rural em da civilizadlo, Facundo, d o tad o do tem peram ento
oposiçâo ao espaço urbano (C an d id o 3 4 2 -3 ). N o privilegiado daqueles que nasceram para mandar,
romance O Cabeleira (1 8 7 6 ) de Franklin Távora, a provavelmente teria sido gran dioso. M as a vida no
com posiçâo d as noçôes de civilizaçâo e barbàrie é cam po, considera Sarm iento, m arcada pela m ais aguda
central. Parece-nos que urna aproxim açâo entre este ignoráncia, destina-o á ferocidade. “A sociedade em
rom ance e a im portante obra Facundo (1 8 4 5 ) do que nascem dá a m aneira especial de m anifestar-se:
argentino D om in go Faustino Sarm iento, perm íte­ sublim es, clássicos, por assim dizer, váo á testa da
nos destacar a com posiçâo destas noçôes nas duas hum anidade civilizada em alguns lugares; terríveis,
obras oitocentistas. Perm ite-nos ainda n otar um sanguinários e m alvados, em ou tros sáo su a mancha,
em preendim ento com um entre intelectuais brasileiros seu opróbrio” (87). Sarm ien to, com o Távora, dispóe-
e argentinos envolvidos com a construçâo de suas se a contar a historia de um hom em das cam panhas,
respectivas naçôes: o recurso à dicotom ia civilizaçâo privado das práticas civilizadoras próprias da cidade.
e barbàrie p ara o estabelecim ento de distinçôes entre A m b os preocupam -se em definir as causas do caráter

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brutal de su as personagens ancorando-se na oposigáo a te m p o raliz a d o : haveria, no decorrer da “H istoria


cidade / cam po - litoral / sertáo; litoral / pam pas. da hum anidade”, p eríodos de selvageria e barbàrie
O descrédito do m undo rural perp assa as duas (este após o outro) que antecederiam a civ ilizad o
obras: o sertáo e os p am p as geram feras p ois, nao (M udim be 4 4 -6 4 ). A suposigáo de urna evolugáo, de
sendo am parados p or instituigóes civilizadoras, seus um progresso da hum anidade, leva a considerar com o
hom ens nao tém chance de se hum anizar. A lh eios à "perdidas no tem po” as form as de hum anidade que
hum anidade civilizada, sertáo e pam pas sáo lugares de náo participam da categoria ’civ iliz ad o ”. A s sociedades
barbàrie. tribais seriam "prim itivas”; as rurais, "arcaicas".
E m que consiste a barbàrie do cam po? C iv iliz a d o , N ovam ente, em que consistiría, em Facundo e
com o lem bra Starobinski, é um "concedo unificador” O Cabeleira, essa barbarie? T u d o o que parece ser
d as luzes em que convergem valores e práticas pròprio do cam po e avesso à cidade: isolam ento das
em inentem ente urbanos, "abrandam ento do s costum es, familias, trabalho bragal, m atas virgens, inexistencia
educacelo dos espíritos, desenvolvim ento d a polidez, de escolas, de polícia, de instituigóes públicas em geral.
cultura das artes e d a s ciencias, crescim ento do Sarm iento considera "devastagóes da barbarie” deixar
comércio e da industria, aquisigáo das com odidades que rios navegáveis, que levariam ¡m igrantes europeus
m ateriais e do luxo” (1 4 ). O civilizado, urbano ou a todos os recantos do privilegiado chao argentino,
cortesáo, opóe-se ao bárbaro como ao rústico ou viláo m antenham -se "entregues as aves aquáticas” ( 1 3 ) .“A
(E lias 23-64). cidade é o centro d a civilizagáo argentina, espanhola,
“A versáo sarm ientina [da dicotom ia européia: ali estáo as oficinas de arte, as casas de
civilizagáo/barbàrie] recolhe urna sèrie de comércio, as escolas e colégios, os ju izad o s, tudo,
lugares com uns que circulam no ocidente enfim, que caracteriza os povos cultos” (31). N a luta
desde a antigüidade greco-latina, sofrem urna contra a barbàrie, cidades devem povoar o interior,
redefin id o substancial com a sociedade de m argear seus rios:"a som b ra de um governo sim pático
corte em m eados do X V I, e sáo subm etidos aos europeus e protetor da seguranga individual, ter-
a urna nova fo rm u la d o em fináis do X V I II se-iam povoado nos últim os vinte anos as m argens de
e ñas prim eiras décadas do X I X , m om ento n ossos rios e realizado os m esm os prodigios que em
em que esta corrente de sentido consolida um m enos tem po se consum aram no M ississip i” (2 8 7 ).
conceito particular de civilizado, de cunho N a m esm a diregáo, considera Távora, no prefácio a seu
urbano-republicano-burgués, principalm ente romance:
elaborado na Franga.” (G árate 65) Q u e náo seria deste m undo
- pensei eu, descendo das em inencias
A lém de convergir dicotom ias e valores pré- da contem plagáo [do rio A m azonas] ás
existentes, a palavra c iv iliz a d o sugere m ovim ento, planicies do positivism o —, se nestas m argens
processo: "a palavra civ ilizad o , que designa um se sentassem cidades; se a agricultura
processo, sobrevém na historia das idéias ao m esm o liberalizasse nestas planicies os seus tesouros;
tem po que a acepgáo m oderna de progresso. se as fábricas enchessem os ares com o seu
C iv iliz a d o e p rogresso sáo term os destin ad os a fum o e neles repercutisse o ruido d as suas
m anter as m ais estreitas relagóes” (S tarob in sk i 15). m áquinas? D esta beleza, ora a m odo de
E m Facundo e O Cabeleira, além de afirm ar-se estática, ora violenta, que fontes de rendas
a dicotom ia cam po / cidade e torná-la análoga náo haviam de rebentar? M ob ilizad os os
à civ iliz ad o / barbàrie, clam a-se a expansáo da capitais e o crédito; anim ados os m ercados
c iv iliz a d o e que os hom ens do cam po sejam "salvos agrícolas, industriáis, artísticos, veríamos
da barbàrie”. A cresce-se à espacializagáo, à d e fin id o aqui a cada p asso urna M anchester ou
de regióes civilizadas em oposigáo a regióes selvagens, urna N ov a Iorque. A praga, o arm azém , o

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entreposto ocupariam a m argem , hoje nua e constituindo-se tam bém num conjunto de técnicas
solitària, o cóm oro sem vida e sem p rom essa; e práticas que tratam e refinam a natureza, m as
o arado percorreria a regiáo que de presente a natureza do hom em : a cultura do espirito, d as
pertence à floresta escura. O estado natural, m aneiras, a polidez.
espancado pelas torrentes de imigra^áo A “brutalidade” e o'caráter sanguinàrio” de n ossos
espontánea que lhe viessem dispu tar os dois heróis, C abeleira e Facundo, náo teria m aior
dom inios im produtivos para os converter em causa que o parco desenvolvim ento da inteligencia
m agníficos em porios ter-se-ia ido refugiar acom panhado de excessivo desenvolvim ento da força
nos sertóes rem otos donde em breve seria física ( W hite 187). N áo tendo acesso nenhum à
novamente desalojado. Urna face nova teria escola, com o Cabeleira, ou apenas ao ensino m ais
vindo suceder ao brilhante e m ajestoso painel básico, com o Facundo, n ossas personagens sáo
da virgem natureza. N a o se m ostrariam m ais privadas da form açâo que canalizaría sua vocaçâo
aqui as tendas negras da fom e e da nudez. O gran diosa a serviço da civilizaçâo. A ignorancia,
trabalho, o capital, a econom ia, a fartura, a "que em tod as as terras e em to d as as idades tem
riqueza, agentes indispensáveis da civ iliz ad o sido considerada com razáo a origem das principáis
e grandeza d o s povos, teriam lugar em inente desgraças” (T ávora 6 3 ), parece levar C abeleira e
nesta im ensidade onde vem os unicamente Facundo a agir sob o dom inio de baixos instintos.
águas, ilhas, planicies, seringais sem firn.” (26) S en d o a escola urna instituiçâo em inentem ente
urbana, funcionando de acordo com a vida das
N a o é à toa que am bos fazem uso de exem plos cidades, é impraticável em regióes rem otas: "O n d e
am ericanos e nao europeus, apesar de ser a Europa colocar a escola para que cheguem a receber liçôes as
o foco irradiador da civ ilizad o . O exem plo norte­ crianças dissem inadas há dez léguas de distáncia, em
am ericano faz crer ñas grandes p ossibilidades de se to d as as direçôes? A ssim , pois, a civilizaçâo é de todo
transplantar a c iv iliz a d o européia para as A m éricas irrealizável, a barbàrie é norm al —e precisa se dar
(C an d id o). D escon siderando p or com pleto os povos graças se os costum es dom ésticos conservam algum
indígenas destas térras, elem entos antes de barbàrie resquicio de m oral" (Sarm iento 36). O n d e náo pode
que de civilizad o , deseja-se que sejam povoadas por chegar a escola, náo há civilizaçâo (C an d id o 3 4 3 ).
im igrantes capazes de ensinar ao am ericano com o A sso ciad a ao ensino está a religiáo cristá, que, em O
explorá-las (G árate 120-121). M ercado, comercio, Cabeleira, ganha destaque: a esta instituiçâo deve-se,
industria, sao palavras que giram em torno d a palavra na sugestáo do romance de Távora, o "resquicio de
civ ilizad o . Távora m enciona a agricultura com o m oral” apontado p or Sarm iento.
pràtica desbravadora, prim eira a^áo civilizadora que C abeleira, ou José, é filho de boa mâe, Jo a n a , e
póe abaixo a floresta escura.2 Tanto Távora com o abom inável pai, Joaqu im . A prim eira, devota a D eus;
Sarm ien to sugerem ser pròpria da barbarie ou das o segundo, incrédulo. Jo aq u im é baixo, corpulento,
regióes pouco povoadas, a natureza nao tratada, desarm onioso ñas form as; ao contràrio do filho, bem
sinónim o de pobreza; e da civilizad o , d as cidades, feito de "vigorosas form as”. O narrador nos lem bra que
riqueza e fartura. À dicotom ia civ iliz ad o / barbàrie "por seus predicados naturais [Jo sé/C ab e leira] náo
e cidade / cam po, associam -se outras: estava destinado a ser o que foi" (6 2 ), ao contràrio do
riqueza / pobreza, natureza transform ada / natureza pai, cuja bestialidade é denunciada pelo desajeitado
intocada. O conjunto de técnicas que tornam a físico. Joaqu im , “gènio da destruiçâo", náo deixa, por
natureza em riqueza, com o tudo o que se considera sua vocaçâo ao mal, de ser vítim a. R egido p o r “baixas
ser essa riqueza, parece definir o que seja civ ilizad o . paixóes",“que à som bra da ignorancia, da im punidade
H á , ainda, um tra^o, privilegiado p or n ossos dois e d as florestas haviam crescido sem freio e lhe tinham
autores, que náo tem propriam ente a ver com riqueza, apagado os lam pejos da consciencia racional que todo

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hom em traz do berço" (3 0 ), su a disposiçâo ao mal Q u an to m ais m edito sobre este assunto,
foi exacerbada pelas circunstâncias, p o r viver im erso m ais me parece que o evangelho que ensina
na barbarie. N o seio da civilizaçâo, su a consciencia a pobreza voluntária, considerada, pela
encontraría abrigo, possib ilid ade de se desenvolver. m oderna ciencia, um absurdo económ ico, e
Religiáo e civilizaçâo aproxim am -se nesse romance. um im possível social, é antes um código de
C abeleira teria m elhor destino se sob a guarda d a mâe m oral prática sujeito á revisáo da sabedoria
que, apesar de ignorante, entendia d as leis de D eu s. dos tem pos, do que um corpo de leis de urna
O narrador náo se im iscui da explicaçâo: na falta de religiáo im utável” (1 9 4 ).
escolas, as práticas religiosas, m esm o que de form a
m enos vigorosa, educam o povo. A reza do terço é N o que confronta o ideal de c iv iliz a d o em sua
"prática gérai a que em grande parte se deve referir versáo oitocentista, "de cunho urbano-republicano-
o adoçam ento dos costum es dessas povoaçôes antes burgués" (G árate 6 5 ), a religiáo deve ser reform ada.
de haverem sido do tad as com as escolas e com os Em Facundo destaca-se o que a religiáo teria de
institutos de educaçâo que atualm ente as dispu tam à arcaica, opon do-a á civ iliz ad o e instaurando nova
ignorância com m ais vigor e proveito” (1 0 2 ). C abeleira, dicotom ía, análoga á barbárie / civ ilizad o , a dicotom ía
arrancado do seio m aterno, bom e cristáo, perde-se arcaico / m oderno. C órdob a, em o p o sifáo a Buenos
na floresta escura com o diabólico pai. Redim e-se A ires, é dom inio da religiáo, tendo, portanto, aspecto
quando reencontra Luisinha, com panhia igualm ente medieval. S e em term os espaciáis a fronteira entre
virtuosa e crista. A mulher, esclarece o narrador, se em civ ilizad o e barbárie está entre a E u ropa e o restante
circunstâncias favoráveis (expostas ao meio social e do m undo —com ressalvas á A m érica do N o rte - ,
em convivio com entes esclarecidos), com su a doçura em term os tem porais, a fronteira da civ iliz ad o com
e devoçâo, influencia positivam ente na form açâo dos a barbárie data do advento d as L u zes. A E span ha,
costum es. “A s suas forças [da mulher] elevam -se à atrasada, anacrónica, com o a C ó rd o b a argentina, vive á
altura das potencias triunfantes, onde quer que seja o m aneira medieval. Para o progresso da civ iliz ad o das
m undo m oral, nao o caos, m as urna criaçâo gran diosa A m éricas, a Franca é o grande farol.
e harm ónica, em conform idade ás leis da estética crista Tanto em O Cabeleira com o em Facundo,
e as altas conquistas d a civilizaçâo” (6 2 ). estabelece-se, dentro da religiáo, nova dicotom ia:
Starobin ski sugere na palavra civilizaçâo um religiáo da cidade versus religiáo do cam po, ou
"substituto laicizado d a religiáo” (1 4 ). S e u caráter verdadeira religiáo versus religiáo deform ada.
dinám ico e expansionista reencenaria o m ovim ento A religiáo crista é deform ada no cam po, conta-
de catequese. E m nom e da civilizaçâo far-se-á o que nos Sarm iento, reduzindo-se á religiáo natural:
fora feito pela religiáo: absorçâo e desaparecim ento "E is ao que se reduziu a religiáo ñas cam panhas
de outras culturas no seio da civilizaçâo ocidental p astoris: á religiáo natural. O cristianism o existe,
(M udim be 4 7 ). O elogio à catequese reforça a com o o idiom a espanhol, num a espécie de tradifáo
aproxim açâo: ao elogiar a cadeira episcopal de O lin da, que se perpetua, m as corrom pido, encarnado
o narrador de O Cabeleira conta-nos das virtudes de em superstigóes grosseiras, sem in str u y o , sem
um bispo que havia despen dido to d as as rendas "na culto, e sem co n v ien es” (3 7 ). C o m o su p erstifáo
sustentaçâo d as trinta m issóes de indios que reunirá e grosseira, o narrador de O Cabeleira fala da crencha
visitara no seio de in óspitos sertóes” (5 4 ). N o entanto, de Florinda, m áe adotiva de Luisinha, na existencia
apesar de dedicar varios d o s "apontam entos históricos” do diabo - principio maligno que náo participa da
que atravessam o rom ance a figuras eclesiásticas e de, doutrina católica na qual o m al náo é substancia
em sua tram a, destacar positivam ente a religiáo, esta e sim falta de bem . A supersti^áo, em lugar da
revela-se sujeita a revisáo sob a luz do progresso: verdadeira religiáo, ata, m ais urna vez, os hom ens á
ignoráncia. Fortem ente católico, O Cabeleira enfatiza
a necessidade de e d u c a d o , de urna in stitu id o que

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proporcione o contato entre o hom em e D eu s por caracteriza3. O s narradores se adiantam a possíveis


meio d o s sacram entos e do uso da razáo para que dúvidas do leitor, sobrepóem -se ás personagens,
p o ssa agir no cam inho da salvadlo. G o staria de apresentam julgam en tos a todo m om ento, e, ao final,
destacar, porém , a “revisáo” em preendida pelo narrador explicam “a m oral da historia". E m am b os os casos, a
do rom ance de Távora quanto ao ensinam ento católico figura do narrador e do escritor se confundem . N a
da p obreza voluntaria.“A pobreza, que é na realidade dicotom ia civilizadáo e barbàrie instau rada ñas obras,
urna desgrana, deve a sociedade atribuir o m aior o narrador/escritor participa d a civilizadlo como
núm ero d o s crim es que pune e dos erros e faltas que tod o aquele que se dedica ás letras. “S e perm anecesse
nao se ju lg a com o direito de punir. A pobreza nunca algum a dúvida diante do exposto, de que a luta
foi nem será ja m a is um elemento de elevacáo; eia foi da república A rgentina é só d a civilizadlo com a
e será sem pre um elemento de degradatilo social” barbàrie, bastaria para prová-lo o fato de náo se achar
(1 9 3 ). Para com bate-la, deve-se expandir a p rod u fáo ao lado de R o sas um só escritor, um só poeta, dos
de riqueza. A pobreza é um mal, e um mal que se m uitos que p ossui aquela jovem nadlo" (Sarm iento
com bate com o progresso da civilizadlo, um problem a 2 9 6 ). Escritor-narrador e leitor, ligados pela pràtica
extrínseco a eia. E m O Cabeleira tem os a sugestáo literária, distanciam -se da barbàrie tem atizada ñas
de que a fam ilia, se harm ónica e cristá, náo passará obras (Eagleton 31). E stas tém clara fun dió: instruir
necessidades (W hite 180). A de Luisinha é exem plar: o leitor. N o caso de Facundo, a fundió específica de
‘‘N á o tivera eia urna existencia de gozo s e grandezas, mover o leitor contra o “bárbaro governo federalista”,
m as nunca lhe faltaram os cóm odos que asseguram a movè-lo a favor da “c ivilizadlo”, portanto, dos unitários.
vida regrada d a familia, que, em bora pobre, encontra O Cabeleira pretende especialm ente convencer da
no trabalho e na econom ia recursos folgados para necessidade de salvar o “pobre povo do se rtlo ” ou seja,
tod as as necessidades até alguns confortos” (1 4 6 ). de que escolas, igrejas e indústrias cheguem a essas
Flagra-se, aqui, a versáo burguesa da o p osifáo regióes. Tanto no romance de Távora com o na obra de
nobre / selvagem , a opositólo rico / pobre. Sarm iento, o discurso confiável, afirm ado, é o discurso
Por m ais que as classes m edias da Europa do narrador. A voz do sertanejo/gaúch o náo se faz
se indignassem com a aristocracia, o que ouvir, a náo ser em alguns p oucos diálogos fechados.
elas desejavam era antes com partilhar seus O narrador, porta-voz da civilizadlo, sobrepóe-se
privilégios que destruir a d istin tió entre as ás personagens, representantes d a barbàrie. Para
partes ‘melhores’ e'piores’ da rafa hum ana. Por o bem ou para o mal, os sertanejos (e os gaúchos
m ais que se ressentissem das prerrogativas de Sarm iento), náo desenvolvendo a inteligencia,
herdadas pelos nobres, em geral eles aínda aproxim am -se, além d as feras, das criandas.
reverenciavam a idéia de urna hierarquia “A colocadlo em pé de igualdade de tudo
social. Poderiam im aginar que tal hierarquia que é suscetível de ser polido (e policiado) náo
se baseava no talento e na riqueza, e náo no deixa de ter im portáncia: bárbaros, selvagens,
nascim ento, m as ainda pressupunham urna gente de provincia (a fortiori: cam poneses),
hum anidade dividida e m ‘ricos’ e ‘pobres’” jovens (a fortiori: criandas) se apresentam
(W hite 214). com o uns tantos paradigm as insubstituíveis.
E m com paradlo com a perfeidlo do polido, o
E ncam inhando-nos à conclusáo, podem os afirmar bárbaro é urna espécie de crianda, a crianda é
que, se p odem ser levantadas algum as diferengas urna espécie de bárbaro” (Starobin ski 28).
na o p e ra rio d as categorías civilizadlo e barbàrie
ñas du as ob ras (com destaque p ara o diferente C on tra a pena de m orte aplicada a C abeleira,
lugar que a “religiáo” nelas ocupa), a dicotom ia brada o n arrad or:"O interrogatorio principal devia ter
civilizadlo / barbàrie instaura-se plenam ente em p or objeto os precedentes do culpado, o grau de sua
am bas. Im po rta destacar que o m onologism o as instrudáo literária, a su a educadlo, os seus teres” (193).

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E acrescenta: ‘ A ju sti^a executou C abeleira p or crim es O u seja, se num prim eiro m om ento poderíam os
que tiveram sua principal origem na ignorancia e na supor que as categorías civilizando e barbárie seriam
pobreza” (1 9 2 ). A defesa de n osso herói p assa pela tem atizadas ñas obras, num a leitura m ais atenta
sugestáo de que nao poderia responsabilizar-se por podem os perceber que participam de algo anterior:
seus atos p or nao ter tido estudo ou riquezas. C rescido a operando d essas categorías determ ina as próprias
alheio á civilizando, deve ser tutelado e nao m orto. estratégias discursivas de O Cabeleira e Facundo.
Se alguém houvesse dito entáo a jo s é C ésar
[governador da provincia] que sua pátria em
m enos de um século riscaria de sua legislando
a pena que ele im punha com tam anho arbitrio
a tres desgranados a quem faltava a instrunao
m ais elementar, teria ouvido o poderoso
agente da realeza m etropolitana classificar
como urna utopia dos sonhadores do século
X V III esta brilhante conquista de nossas
luzes (188).

A queles a que falta a instrunao m ais elementar,


nao se deve punir com o aos instruidos, que, mesm o
fazendo bom uso da razdo, agem para o mal. S e
aproxim ados as c r ia b a s , os bárbaros devem ser
tutelados; se as feras, elim inados. Im porta que
desaparenam, assim ilados pela civilizando ou destru idos
por ela. ' O anticivilizado, o bárbaro devem ser p ostos
fora da cond ad o de prejudicar, se nao podem ser
educados ou convertidos" (Starobinski 3 3 ). Pois, desde
que a palavra civilizando designa um valor, "tudo que a
ameana fará figura de m onstro, de mal absoluto” (3 3 ).
O sertáo e os pam pas, ameanas á civilizando, devem
ser desalojados m ais de urna vez, até desaparecer.
O narrador-escritor, próprio das obras abordadas,
espanoso, sem pre presente, ocupa o lugar de agente
civilizador, participa, com destaque, do movim ento
de expansdo e aperfeinoamento da civilizando. O
m onologism o, ou a voz narrativa em sobreposinao,
articula-se a urna auto-im agem narcísica do escritor,
devedora desta concepndo de civilizando. A ssim , este
lugar do narrador encontra am paro num a concepndo
da atividade literária relacionada a urna m issao
civilizadora de que as novas nanóes deveriam se ocupar
(A ppiah 77 -8 2 ). Parece-nos, e com essa considerando
concluim os este trabalho, haver urna relando forte entre
a apontada configurando m onológica do narrador e o
estabelecimento da dicotom ia civilizando e barbárie.

LU CERO 128
C IV IL IZ A Ç Â O E B A R B À R I E N O R O M A N T IS M O L A T IN O A M E R IC A N O

O b r a s c it a d a s F o o tn o te s

Appiah, Kwame Anthony. Na casa de meu pai, a África na 1 Vale lembrar, aqui, que Domingo Faustino Sarmiento
filosofía da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto,1992. esteve exilado alguns anos no Brasil, no Rio de
Bakhtín, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, em meados do século XIX, tornando-se,
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Moreno. Sâo Paulo: Perspectiva, 1960. 2 Para frisar o caráter convergente "de lugares comuns
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Jorge Zahar Editor, 1994. sua versáo medieval, White considera que:"Dos tempos
Gárate, Miriam Viviana. Civilizaçâo e barbarie n'Os sertôes. bíblicos aos dias de hoje, a n o d o de Homem Selvagem
Campiñas: Mercado de Letras; Sâo Paulo:FAPESP, 2001. esteve associada á idéia de regiáo selvagem - o deserto,
Mudimbe, V.Y. The Invention o f Africa. Bloomington e a floresta, a selva e as montanhas -, aquelas partes do
Indianapolis: Indiana University Press, 1988. mundo físico que ainda nao haviam sido domesticadas
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barbarie no pa m p a argentino. Porto Alegre: Editora da 3 Tomamos este conceito de Bakhtín.Grosso modo,
UFRGS, 1996. podemos dizer que Bakhtín alcunha de monológico um
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Companhia das Letras, 2001. personagens e leitor; e dialógico aquele em que o narrador
Tâvora, Franklin. O Cabeleira. Rio de Janeiro: Editora Très, se encontra na mesma p o sid o destes outros elementos
1973. narrativos, nao tendo ponto de vista privilegiado.
White, Hayden. Trópicos do discurso. Sâo Paulo: Edusp, 1994.

( \
Anita Martins R. de M oraes é
M estre em L iteratu ra B rasileira pela
U N I C A M P (C am p in as-SP , B rasil)
e, atualm ente, d o u toran d a em T eoria
L iterária na m esm a universidade. E m
su a d isse r ta r lo d e m estrad o, Os limites da
civilizando na escrita do sertáo, investigou
a o p e r a d o d a s categorías c iv iliz a d o
e b arb àrie em rom ances brasileiros.
N a atualidade, dedica-se ao estud o de
literatu ras africanas.
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