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& direito
2002–2004
Gustavo Lins Ribeiro presidente
Antonio Carlos de Souza Lima vice-presidente
2004–2006
Miriam Pillar Grossi presidente
Peter Henry Fry vice-presidente
temas antropológicos
para estudos jurídicos
2006–2008
Luís Roberto Cardoso de Oliveira presidente
Roberto Kant de Lima vice-presidente
2008–2010
Carlos Alberto Caroso Soares presidente
Lia Zanotta Machado vice-presidente
apoio
6.
direito e saúde
Coordenação Sérgio Carrara
Introdução -vozes de saberes desenvolvidos alhures. Em face disso e valendo-se
de seu projeto de crítica sistemática ao universalismo e de recupe-
ração metódica dos sentidos ou significados particulares atribuídos
por diferentes grupos sociais ao que as ciências tendem a ver como
invariantes (idade, sexo, doença, morte, vida etc.), a antropologia
pode contribuir para que os profissionais da área do direito pro-
blematizem essas “realidades” e as situem nos contextos culturais e
sociais que lhes dão sentido.
Dito de outro modo, recorrer às ciências biomédicas é recorrer
ao “corpo”, considerado por elas uma realidade discreta e objetiva.
Com efeito, desde o século xix, é na materialidade corporal que as
em que ocasiões um indivíduo pode ser declarado legal- doenças se ancoram; é no fluxo e na composição dos fluidos corpo-
mente morto? A partir de que momento, entre a concepção e o nas- rais que se materializam. Além disso, é no próprio corpo que ancora-
cimento, o corpo é considerado um novo sujeito de direitos, ou seja, mos a identidade individual – e, portanto, a personalidade jurídica –,
transforma-se numa pessoa? Qual a idade em que alguém se torna simbolizada por marcadores físicos considerados absolutamente
responsável, do ponto de vista penal, e capaz, do ponto de vista cível? singulares, como impressões digitais ou códigos genéticos. Por fim,
Que perturbações da saúde levam à irresponsabilidade ou à inca- é em suas transformações ao longo do ciclo de vida que se procuram
pacidade? Que estados ou condições individuais podem ser consi- apoiar as transformações que a própria personalidade jurídica sofre
derados doentios ou anormais? A loucura sempre implica a plena até que se instaurem plenamente, nos indivíduos considerados adul-
incapacidade civil de um indivíduo? tos, a responsabilidade penal e a capacidade civil.
Respostas a essas questões não só se caracterizam por inúmeros Por essas razões, iniciamos o presente eixo com texto sobre o “corpo”
conflitos éticos, morais e religiosos, como também surgem sempre e o modo como diferentes corporalidades, vale dizer, formas culturais
envoltas em incertezas. Tomem-se, por exemplo, as discussões em e historicamente específicas de compreensão do corpo, têm sido dis-
curso no Brasil sobre a diminuição da maioridade penal e o direito cutidas no âmbito da antropologia social. A essa discussão segue-se
ao aborto. Em face de tais conflitos e incertezas, o direito, em suas texto sobre vida e morte. Também quanto a esse tema a interlocução
diferentes áreas de atuação, tem buscado obter respostas principal- do direito com as ciências biomédicas tem sido crucial, seja na defi-
mente junto à biologia e às ciências da saúde, que supostamente de- nição do que é a morte, seja na determinação do momento em que
têm um saber objetivo e, por conseguinte, universal sobre o humano. se inicia a vida e, com ela, a personalidade jurídica de um indivíduo.
Nesse processo, constitui-se um vasto corpo de peritos judiciários, Em linhas gerais, ver-se-á que a antropologia tende a deslocar a discussão
como médicos, psiquiatras, psicólogos, e também de disciplinas, en- centrada nos corpos e no conjunto de técnicas que pode ou não mantê-
tre as quais a medicina legal e a psiquiatria forense. -los “vivos” para o contexto em que um indivíduo se torna uma pessoa e
O recurso às ciências, todavia, é não apenas delicado, uma vez passa a ocupar determinado lugar numa rede de relações sociais.
que os “cientistas” nem sempre concordam uns com os outros, mas Os dois textos seguintes se orientam por uma questão mais am-
também arriscado, pois pode tornar os tribunais apenas porta- pla, que foca a noção de pessoa jurídica e os processos que podem
douglas, Mary
(1970) “The two bodies”. In: Natural Symbols: Explorations in Cosmology.
London: Barrie & Rockliff, p. 65–81.
foucault, Michel
(1976) História da sexualidade, vol. 1: a vontade de saber. Rio de Janeiro:
Graal, 1977.
haraway, Donna
(1993) “The biopolitics of postmodern bodies: determination of self in im-
mune system discourse”. In: lindebaum, Shirley & lock, Margaret.
(eds.) Knowledge, Power, and Practice: the Anthropology of Medicine
and Everyday Life. California: University Press of California.
hervieu-léger, Daniele
(2003) “Mourir em modernité”. In: ameisen, Jean-Claude; hervieu-léger,
Danièle & hirsch, Emmanuel (eds). Qu’est-ce que mourir? Paris:
Le Pommier.
o nascimento de uma “ medicina mental ” , ou seja, de
howarth, Glennys & leaman, Oliver (eds.) uma especialidade médica dirigida aos então chamados alienados
(2001) Encyclopedia of Death and Dying. London: Routledge. mentais, coincidiu com o surgimento de uma instituição destinada
especificamente aos loucos. Na Europa, até o final do século xviii, o
lock, Margaret louco era confinado no estabelecimento reservado a mendigos, la-
(2002) Twice Dead. Organs Transplants and the Reinvention of Death. Berkeley: drões e despossuídos de toda sorte (Foucault, 1963). A medicalização
University of Califórnia Press. da loucura, isto é, sua transformação numa entidade mórbida, a ser
(2004) “Living cadavers and the calculation of death”, Body & Society, vol. 10,
conhecida, estudada e tratada pela medicina, ocorreu simultanea-
n. 2–3, London, p. 135–52.
mente à concepção do confinamento como terapêutica. Em vez de
mauss, Marcel apenas excluir os socialmente indesejáveis ou problemáticos, passou-
(1926) “Efeito físico no indivíduo da ideia de morte sugerida pela coletividade”. se a inseri-los num espaço de observação e cura. Em outras palavras,
In: Sociologia e antropologia. São Paulo: CosacNaify, 2003. o hospício de alienados se tornou o local onde, de um lado, a loucura
revelaria seus segredos ao olhar do médico e, de outro, este trataria
menezes, Rachel Aisengart de modo científico e racional, por meio do controle do espaço e dos
(2004) Em busca da boa morte. Antropologia dos cuidados paliativos. Rio de comportamentos, a chamada “alienação mental”.
Janeiro: Editora Fiocruz/Garamond.
O hospício e a psiquiatria como especialidade médica surgiram,
portanto, num mesmo momento da história do Ocidente. Na passa-
gem do século xviii para o século xix, a França revolucionária pôs
em xeque o regime absolutista e, por mais que se tenha tratado de
um acontecimento restrito ao território francês, conhecemos não só
o quão emblemáticas foram a queda da Bastilha e, posteriormente, a
decapitação de Luís xvi, como também o temor das demais monar-
quias europeias perante a difusão de ideias tão subversivas.
jane russo
ana teresa a. venancio
ferreira, Jaqueline
(1994) “O corpo sígnico”. In: alves, Paulo César & minayo, Maria Cecília de
Souza (orgs.). Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 1994, p. 101–13.
helman, Cecil
(1984) Saúde, cultura e doença. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
luz, Madel T.
(2000) “Práticas de saúde, cura e terapêutica na sociedade atual”. In: Anais do
vi Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Salvador. cd-Rom.
montero, Paula
(1986) “A cura mágica na umbanda”, Comunicações do iser, ano 5, n. 20, Rio
de Janeiro, julho, p. 39–48.