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Michel Foucault
RESUMO
O presente trabalho busca tratar da noção de “cuidado de si” na obra A Cultura de Si, de
Michel Foucault. Para tal, entretanto, busca construir um panorama que contextualiza a
obra foucaultiana como descendente da tradição crítica kantiana e tenta aproximar, através
de uma breve passagem, a noção de jogos de verdade foucaultiano à noção de jogos de
linguagem, de Wittgentein. Por fim, trata da proposta de Foucault a respeito de como o
cuidado de si é importante para que o sujeito não se torne um indivíduo sujeitado.
1 - INTRODUÇÃO
Peter Hacker 1 afirma, em termos sintéticos, que a filosofia foi encarada, ao longo de sua
história, como um campo do saber produtor de conhecimento. Tal característica de ser um campo
do saber que produz conhecimento geralmente é atribuído às ciências (matemática, física etc.).
Pois, caso a filosofia também produza conhecimento, ela, assim como as outras ciências, deveria
1
HACKER, 2000, p. 10.
igualmente possuir um objeto de estudo – tal como a matemática, a física ou a biologia possuem.
Diferentes autores da tradição filosófica buscaram, cada uma a seu modo, empreender
uma investigação acerca do “objeto da filosofia”. Platão, Aristóteles, René Descartes, John
Locke, David Hume, Immanuel Kant – e as correntes filosóficas que carregam seus nomes como
platonismo, aristotelismo, cartesianismo, empirismo, kantismo, respectivamente – buscaram
formular proposições acerca da noção de verdade, da noção de conhecimento, da noção de bem,
de justiça, de belo, de ciência e, por fim, de qual é a natureza última das coisas.
Segundo Hacker, o que constitui o platonismo é “a investigação de objetos abstratos que
revelariam a natureza última das coisas”; o que constitui o aristotelismo é “a investigação de
princípios de cada ciência e do pensamento em geral”; o que constitui o cartesianismo é “o
estabelecimento de fundamentos de todo e qualquer conhecimento sobre bases seguras e
indubitáveis”; já o que constitui o empirismo é “a investigação sobre a origem de nossas ideias,
bem como sobre a extensão e a natureza do conhecimento humano”; por fim, o que constitui o
kantismo (ou a filosofia crítica em seu nascedouro) é “a investigação que revela as condições de
possibilidade do conhecimento em qualquer domínio dado”.
(...) Não quero dizer que os filósofos que precederam Kant não estavam
conscientes do seu próprio presente e que não se preocupavam com isso. Hobbes,
Descartes e Leibniz levaram em conta a sua própria situação e a situação do mundo
contemporâneo, como fizeram Platão e Santo Agostinho. Mas, para Descartes, o fracasso
de várias alegadas ciências, para Hobbes, a situação política de Inglaterra, para Leibniz,
as controvérsias e querelas religiosas, eram razões para intervir e tentar mudar essa
situação. Penso que a questão de Kant sobre o Aufklärung (POR NOTA DE RODAPÉ)
queria dizer outra coisa. Ao mesmo tempo, Kant dá uma justificação da sua própria
tarefa filosófica através da análise da atualidade a que pertence, e assume como objetivo
do seu trabalho filosófico desempenhar um certo papel na história natural, espontânea,
da razão (FOUCAULT, 2017, p. 70).
Sobre o conteúdo do parágrafo acima, Foucault se refere exatamente ao texto “Was ist
Auflärung? 2”. Kant busca distinguir o que ela chama de “uso público e “uso privado da razão”.
No entanto, o que chama atenção de Foucault é a suposta originalidade do filósofo de
Könnigsberg, que, enquanto filósofo, não mais se propõe a refletir meramente acerca da razão em
termos atemporais, mas, introduzir no campo da reflexão filosófica uma espécie de “consciência
histórica da atualidade”. A respeito disso Foucault afirma que
“Sou da opinião de que este texto introduziu no campo da reflexão filosófica um novo
gênero de questão, a questão da natureza, do sentido, do significado histórico e filosófico
do momento preciso em que o filósofo escreve e do qual faz parte”. (FOUCAULT, 1982,
p. 70).
Foucault, assim, dedica boa parte de suas reflexões não para buscar a compreensão do que
seriam princípios gerais da ciência, de um determinado campo do saber, ou sobre “que é a “a
razão”, “a verdade”, mas, para saber o que é possível se compreender acerca da noção de verdade
2
KANT, WAS IST AUFLRÄRUNG, 2004. Kant responde à pergunta Was ist Auflärung na primeira frase do texto:
“é a saída das pessoas da condição de menoridade pela qual elas são responsáveis”.
a partir da própria dinâmica histórica, de como a “verdade” se manifesta, e.g., no tecido da
organização social, nos âmbitos institucionais em que se se formam relações de poder através de
autoridades ou grupos que o detêm e buscam justifica-los através de discursos de dominação.
3
RUY, 2004, p. 3. Wittgenstein muda o foco de sua atenção, que até então se voltara à geometria determinista de um
simbolismo da linguagem e do cálculo, para o lugar em que os jogos de linguagem ocupam nas práticas humanas, ou
seja, para uma visão pragmática da linguagem.
4
de sua produção”. Sendo assim, não haveria como desvencilhar a noção de verdade dos
contextos em que ela surge; a verdade não é algo que paira sobre algum tipo de nuvem e que,
para acessá-la, é preciso se valer de um esforço de abstração conceitual. Assim como no caso dos
jogos de linguagem, os jogos de verdade aparecem (ou são encontrados) nas próprias práticas
humanas – no seio da própria dinâmica social, principalmente em instituições – escolas,
hospitais, Universidades – pautadas por relação de poder, pela subjugação, dominação e
“assujeitamento”.
3 – CUIDADO DE SI
Por que é que Alcibíades deve cuidar de si próprio? A razão dada por Sócrates é que ele
está num momento de transição da sua vida. Alcibíades não estava satisfeito com os
4
BIRMAN, 2007, p. 307. A regra seria então uma produção social, que fundaria igualmente tanto os jogos de
linguagem quanto os de verdade, inserindo-se no registro do artifício e não da natureza. Para Foucault e para
Wittgenstein, enfim, a categoria de jogo remete tanto ao registro do social, que produziria e plasmaria a regra, quanto
ao da história, que a reproduziria pelo seu uso recorrente.
privilégios que lhe davam o nascimento, a fortuna e o estatuto. Diz precisamente que não
quer passar a vida, katabionai, a tirar proveito de tudo isso Alcibíades quer triunfar sobre
todos os outros na cidade e também, fora dela, sobre o rei de Esparta e o soberano da
Pérsia. Mas Alcibíades mostra-se desde muito cedo incapaz de ter sucesso. Não recebeu
boa educação dada aos jovens Espartanos. Foi confiado a um velho escravo
completamente ignorante e nem sequer sabe o que significam as palavras “justiça” e
“concórdia”. Está desesperado. Mas Sócrates intervém e diz-lhe esta coisa importante:
“Se tivesses cinquenta anos, a situação seria preocupante: seria demasiado tarde. Mas
ainda és muito jovem, e este é precisamente o momento em que deves epistemeisthai
heautou, cuidar de ti (FOUCAULT, 2017, p.76).
Enquanto que para Sócrates o cuidar de si deve ser cultivado o quanto antes, desde a
juventude mais tenra, para os filósofos pós-platónicos, mesmo gregos como Epicuro, é possível
que o cuidado de si se dê, também, numa idade mais avançada. Conforme Foucault,
FOUCAULT, Michel. O que é a crítica? seguido de A cultura de si. Tradução: Pedro Eloi Duarte.
Lisboa. Edições Texto & Grafia, 2017.
HACKER, P.M.S. Wittgenstein. Natureza Humana. Tradução: João Vergílio Gallenari Cuter. São
Paulo, 2000.
BIRMAN, Joel. Jogando com a verdade. Uma leitura de Foucault, 2002. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/physis/v12n2/a07v12n2>. Acessado em 17/06/2019.