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Governança e políticas públicas em tempo de crise

Chapter · October 2018

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1 author:

António Calheiros
Universidade Católica Portuguesa
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Espacialidade e movimentos sociais

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EDINUSIA MOREIRA CARNEIRO SANTOS
AGRIPINO SOUZA COELHO NETO
ONILDO ARAUJO DA SILVA
(ORGS.)

Espacialidade e
movimentos sociais

CONSEQUÊNCIA

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© 2018 dos autores
Direitos desta edição reservados à
Consequência Editora
Rua Alcântara Machado, 36 sobreloja 210
Centro - Cep: 20.081-010
Rio de Janeiro - RJ
Brasil
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no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei no 9.610/98).

Conselho editorial
Alvaro Ferreira
Carlos Walter Porto-Gonçalves
João Rua
Marcelo Badaró Mattos
Marcos Saquet
Ruy Moreira
Coordenação editorial e Projeto gráfico
Consequência Editora
Revisão
Priscila Morandi
Capa e diagramação
Letra e Imagem
Foto de capa

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

S237e Santos, Edinusia Moreira Carneiro


Espacialidade e movimentos sociais / Edinusia Moreira Carneiro San-
tos, Agripino Souza Coelho Neto, Onildo Araujo da Silva. – Rio de Janeiro :
Consequência, 2018.
200 p. : il. ; 16m x 23cm.

Inclui bibliografia e índice.


ISBN 978-85-69437-41-3 (broch.)

1. Ciências Sociais. 2. Política. 3. Movimentos sociais. 4. Geografia.


I. Coelho Neto, Agripino Souza. II. Silva, Onildo Araujo da. III. Título.

2018-368 CDD 303.484


CDU 316.42
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

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Dedicamos este livro ao Professor Dr. Sylvio Bandeira de Mello e Silva
(in memorian).

Registramos nossos agradecimentos pelas palavras carinhosas de incenti-


vo, pela disposição de sempre compartilhar conosco, aqui no GEOMOV
e na UEFS, suas experiências, sabedoria e energia positiva.

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SUMÁRIO

Introdução..................................................................................................................................... 9

CAPÍTULO 1. O espaço e o território: conceitos e modos


de uso em tempos de movimentos sociais...........................................................15
Ruy Moreira
CAPÍTULO 2. As tecnologias sociais e seu papel
na transformação da sociedade.............................................................................27
Naidison de Quintella Baptista
CAPÍTULO 3. Os movimentos sociais nas ciências sociais................................51
Celia Basconzuelo
CAPÍTULO 4. Os movimentos sociais urbanos na Espanha e
o seu renascimento após 2010: Uma leitura geográfica.....................................61
Rubén C. Lois González
CAPÍTULO 5. Governança e políticas públicas em tempos de crise.................83
Antonio Calheiros
CAPÍTULO 6. A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais:
teoria e um estudo de caso................................................................................... 117
Nelson Rodrigo Pedon, Eldenilson da Silva Monteiro e Rafael Junior Motter
CAPÍTULO 7. Convivência com o semiárido: um novo tema na agenda
dos presidentes das associações do território do Sisal no estado
da Bahia..................................................................................................................139
Edinusia Moreira C. Santos e Onildo Araujo da Silva
CAPÍTULO 8. A espacialidade das ações coletivas: notas para o debate........155
Agripino Souza Coelho Neto
CAPÍTULO 9. Da região ao território: a “nova” instrumentalidade
de referência para o desenvolvimento rural no Brasil.....................................171
Jamille da Silva Lima

Sobre os autores.................................................................................................. 191

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INTRODUÇÃO

Vivemos atualmente (2018), no Brasil, não apenas uma crise política e


econômica, mas um contexto onde as elites, agora “donas de um poder
sequestrado”, dificultam ainda mais o acesso aos recursos que deveriam
ser investidos em educação, ciência, tecnologia, pesquisa e inovação... Tem
sido difícil publicar livros... O contexto é totalmente desfavorável. Mas
é justamente remando contra essa maré que cumprimos nosso dever de
intelectuais, professores e pesquisadores que hoje necessitam encontrar
atalhos para cumprir um papel que deveria ser facilitado pelo governo e
suas agências de fomento. Esse registro é necessário para que nosso leitor
entenda porque esse livro, que reúne textos dos professores-pesquisado-
res convidados para participarem do 3º Seminário do Grupo de Pesquisa
em Geografia e Movimentos Sociais da Universidade Estadual de Feira
de Santana, realizado entre 25 e 28 de agosto de 2014, só agora está sendo
publicado. Ou seja, o livro ficou pronto no início de 2015, porém, mesmo
tendo conseguido recurso externo que foi descentralizado para a Univer-
sidade, levamos quase três anos para viabilizar o pagamento pelos servi-
ços de editoração e impressão... Falta de dinheiro ou foi mesmo inversão
de prioridade? Ou mesmo incompetência administrativa? Enfim, importa
agora valorizar a luta e agradecer a todos que colaboraram nessa verdadei-
ra empreitada. Feita a ressalva, registramos que insistimos na publicação
dos textos em função da qualidade dos estudos, significando que são, e
ainda serão por um bom tempo, relevantes e atuais.
O tema do 3º Seminário do GEOMOV foi Espacialidade e Movimen-
tos Sociais, mesmo título desse livro. No seminário propusemos promo-
ver o debate sobre as possíveis relações entre os movimentos sociais e as
ações típicas dos processos que gestam distintas espacialidades no seio da
sociedade capitalista, viabilizando o diálogo entre a esfera acadêmica e a
sociedade civil organizada, fomentando o aprofundamento de redes de
trabalho e colaboração com pesquisadores e grupos de outras instituições

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10 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

baianas, brasileiras, portuguesa, espanhola e argentina. Esse livro é cons-


tituído por nove artigos de professores pesquisadores dessas universida-
des, que contribuem para traçarmos um panorama amplo sobre a temática
aqui abordada.
No primeiro texto desta coletânea, intitulado O espaço e o território:
conceitos e modos de uso em tempos de movimentos sociais, o professor
Ruy Moreira, trabalhando as categorias espaço e território, nos convida
a repensar os conceitos, argumentando que “usa-se a categoria do espaço
quando se quer atingir a compreensão do todo. Usa-se a categoria do territó-
rio quando desse todo se quer flagrar um ponto singular”. Partindo desse ar-
gumento e, evidenciando o trajeto dos principais conceitos geográficos, o
autor conclui que “até os anos 1990 vige o domínio da categoria do espaço, a
partir daí vindo a viger a categoria do território”. Além disso, Ruy Moreira
argumenta ainda, que ocorre uma “troca de focalidade” entre as categorias
espaço e território, e esta troca está associada a uma outra troca que neste
momento está se dando no campo das lutas sociais entre os conceitos de
movimentos sociais e lutas de classes. Desse processo resulta que os mo-
vimentos sociais, por constituir-se de múltiplos sujeitos e polaridades, por
seus temas combinarem lutas conjunturais e lutas estruturais, estão mais
adequados à categoria território.
E efetivamente o que verificamos, na prática, é a grande facilidade com
que as várias entidades dos movimentos sociais assumem a ideia de terri-
tório, inclusive em substituição ao uso da região.
Já no texto intitulado As tecnologias sociais e seu papel na trans-
formação da sociedade, de autoria de Naidison de Quintella Baptista, o
professor nos brinda com uma reflexão sobre as tecnologias sociais e sua
inserção nos processos sociais nos dias de hoje, enfatizando a dimensão
do semiárido. Utiliza, para efetivar suas análises, o exemplo da atuação
da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA). O artigo destaca o contexto
das tecnologias sociais em desenvolvimento no Brasil, ressaltando o que
as mesma são, colocadas como instrumento a serviço de um projeto so-
cial e político de inclusão. Assim, o artigo “guarda profunda relação com
as ações e debates da ASA”, destacando o contexto social e político do
Brasil nos dias atuais, aprofundando a leitura sobre o semiárido, eviden-
ciando “as contradições inerentes às políticas que ali se desenvolvem: de
um lado a política de combate à seca, e de outro, a política de convivência
com o semiárido”.

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Introdução 11

O tema Os movimentos sociais nas ciências sociais é abordado no tex-


to da Prof.ª. Celia Basconzuelo, cujo artigo percorre a evolução dos estudos
dos Novos Movimentos Sociais (NMS) nas humanidades, buscando discutir
sobre os desafios contemporâneos das ações coletivas. A pesquisadora co-
loca alguns questionamentos para alimentar a reflexão, interrogando sobre
a conjuntura histórica que fomentou o surgimento dos novos movimentos
sociais e investigando como as ciências sociais fizeram seu objeto de estudo,
construindo conceitos e paradigmas inovadores. A princípio, a autora traça
uma conjuntura histórica dos novos movimentos sociais, contextualizando-
-os na crise do paradigma da modernização e impactos do neoliberalismo,
ou seja, no âmbito da reestruturação capitalista do final do século XX. Em
seguida, trata da acolhida dos NMS nas ciências sociais, reforçando a com-
preensão da emergência de um novo ator como objeto de estudo, sendo que
a preocupação em interpretá-lo motivou os cientistas sociais a mudarem a
perspectiva epistemológica de abordagem. Por fim, refletindo sobre os de-
safios dos NMS na contemporaneidade, a autora insiste na necessidade de
construção de uma cidadania mais comprometida e participativa e na refun-
dação do político, assentado em novas relações entre economia (globalizada)
e a sociedade civil.
Em Os movimentos sociais urbanos na espanha e o seu renascimen-
to após 2010: Uma leitura geográfica, o geógrafo espanhol Rubén C. Lois
González apresenta uma leitura geográfica, traçando o cenário da crise eco-
nômico-financeira que acometeu a Espanha a partir de 2009, sucedendo o
segundo circuito de acumulação de capital, terminado de forma abrupta
em 2007-2008, que produziu impactos nos espaços urbanos, reforçando “o
sentimento de cidadania e a reivindicação de direitos que estão entrelaça-
dos: ao bairro, à cidade, aos serviços públicos, à decisão, a uma democracia
real”. Segundo o prof. Ruben González, como resposta à crise verificou-se
um renascimento dos protestos sociais e de movimentos de vizinhança ur-
banos, cuja dimensão e propagação espacial seguiram o clássico movimen-
to de difusão definidas pela Geografia desde T. Häggerstränd, partindo de
Madri e Barcelona, e criando “focos similares em todas as cidades mais
importantes, em particular nas capitais provinciais ou regionais, onde os
atos se procuravam realizar em praças e lugares simbólicos do poder”. O
autor apresenta uma proposta de classificação dos movimentos sociais
urbanos na Espanha que se caracterizam pela resistência à mudança de
modelo econômico e que envolvem o embate entre o local e o global. O au-

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12 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

tor conclui que os movimentos se caracterizaram pela horizontalidade das


redes sociais, das manifestações e do exercício dos debates e assembleias
de rua em contraponto com a espacialidade vertical do poder.
Já o texto do Prof. português Antonio Calheiros, Governança e polí-
ticas públicas em tempos de crise, procura oferecer um panorama dos
desafios e das ameaças colocadas para a política, reclamando a necessi-
dade de se revitalizar os valores da cidadania, especialmente o respeito
pelos direitos pessoais (saídos da Revolução Francesa de 1789) e pelos di-
reitos civis (1948). O autor defende a importância da participação cívica
como condição necessária para uma boa governança, como instrumento
de decisões democráticas partilhadas que deve pretender “a sensibilização,
formação e motivação de todos os agentes envolvidos na elaboração e gestão
de planos estratégicos” e privilegiar “a concertação de interesses entre os di-
ferentes agentes modeladores do território, em função das suas responsabili-
dades, custos e benefícios”. Para Antonio Calheiros, os efeitos da crise atual
que envolve a condução das políticas públicas colocaram em confronto
os valores da democracia com o poder de mercados poderosos, criando
fluxos e refluxos para a governança. Nesse sentido, o autor problematiza
as decisões políticas, levantando algumas interrogações: “pesam mais as
manifestações públicas dos cidadãos ou as exigências dos mercados? o siste-
ma político atual, enquanto interlocutor entre a sociedade civil e o Estado,
potencializa ou inibe a participação do cidadão no processo decisório?”.
Outro texto que encontramos nessa coletânea é intitulado A pesquisa
geográfica sobre os movimentos sociais: teoria e um estudo de caso, de
autoria de Nelson Rodrigo Pedon, Eldenilson da Silva Monteiro e Rafael
Junior Motter. Nesse artigo os autores apresentam, de forma sintética, es-
tudos e obras percussoras da introdução, na pauta da geografia acadêmica,
dos trabalhos que focam as ações dos movimentos sociais. Destacam que
“os trabalhos de Manuel Correia de Andrade e Josué de Castro marcam,
precursoramente, o início dos estudos sobre movimentos sociais na Geo-
grafia brasileira”. Os autores destacam também, que até o final da déca-
da de 1990, se verifica a ausência de construções teórico-conceituais que
permitissem inserir os movimentos sociais no quadro analítico específi-
co da Geografia, fato que só se inverte com pesquisas e ideias publicadas
no início dos anos 2000 por autores como Carlos Walter Porto Gonçalves,
Jean-Yves Martin, Bernardo M. Fernandes e Renato Emerson dos Santos,
uma vez que esses autores têm em comum “a busca pela criação de um

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Introdução 13

referencial teórico que enfoque a espacialidade e territorialidades explícitas


e implícitas nas mobilizações sociais populares”. O texto apresenta ainda
aspectos centrais da abordagem socioterritorial dos movimentos sociais e
exemplos relacionados aos atingidos por projetos de mineração na Amé-
rica Latina.
No artigo, Uso da água e convivência com o semiárido: um novo tema
na agenda do dia dos presidentes das associações do território do sisal
no Estado da Bahia, os professores Edinusia Moreira C. Santos e Onildo
Araujo da Silva, analisam, a partir da investigação das parcerias estabeleci-
das entre o Estado e as Associações (comunitárias, produtivas, de organi-
zação de jovens, de comunicação e de educação), como representantes de
associações reivindicam do Estado ações de convivência com o semiárido.
Destacam que no semiárido baiano a presença de associações é marcante,
evidenciando que a maioria dos presidentes dessas associações revelaram
que suas entidades não estão mais demandando as típicas ações de “com-
bate à seca”, como carros-pipa, por exemplo; mas, sim, demandando ações
que resultem numa solução definitiva para a disponibilização e uso da
água. Os autores defendem a ideia de que as associações, ao impulsionar
um debate e cobrar efetivamente do Estado ações de convivência com o
semiárido – e não de combate à seca – estão efetivamente influenciado re-
lações de base espacial e impulsionando o desenvolvimento local/regional.
Já o texto do Professor Agripino Souza Coelho Neto, intitulado A es-
pacialidade das ações coletivas: notas para o debate se propõe a esbo-
çar algumas reflexões que oferecerem uma possibilidade de compreender
a espacialidade das ações coletivas, através da análise do comportamen-
to espacial de associações, sindicatos e cooperativas de agricultores que
operam no Espaço Sisaleiro da Bahia. O autor parte do pressuposto de
que a “compreensão da espacialidade da ação social é um recorte desafia-
dor para a ciência geográfica, que se propôs muito mais a ser uma ‘ciência
dos lugares’”. Para viabilizar esse propósito, ou seja, contribuir como uma
abordagem geográfica para os estudos das ações coletivas aciona-se um
instrumental teórico através da escolha dos conceitos de territorialidade,
políticas de escala e estratégias-rede. O autor aposta na força explicativa
destes conceitos para flagrar a leitura da espacialidade das diversas formas
de ações coletivas.
Fecha essa coletânea o texto intitulado Da região ao território: a “nova”
instrumentalidade de referência para o desenvolvimento rural no Brasil,

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14 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

de Jamile da Silva Lima, onde a autora problematiza o deslocamento da


ideia de região para a de território, especialmente no âmbito das políticas
públicas de desenvolvimento rural implantadas no Brasil. A autora destaca
que a concepção territorial do desenvolvimento tem sido basilar para o
desdobramento de estudos acadêmicos e para a fundamentação e execu-
ção de políticas públicas, enquanto tônica que supõe garantir uma pers-
pectiva setorial e exógena de desenvolvimento. No entanto, o qualificativo
territorial tem se constituído em uma nova maneira de regionalização do
espaço associada  a uma dinâmica de intersecção entre o conhecimento
científico e a  geopolítica  mundial, que tem orientado países latino-ame-
ricanos a incorporação da ênfase na abordagem territorial. O território
acaba sendo unidade de intervenção basilar para pensar o rural, no qual
persiste a relação estreita entre pobreza e agricultura, o que desvela o dis-
curso colonial que lhe e coetâneo.
Portanto, acreditamos que esse livro contribui para ampliar o debate
e o diálogo sobre as interfaces entre movimentos sociais e produção do
espaço geográfico, cumprindo um papel de divulgar resultados de inves-
tigações e argumentos que nos permitem reler a realidade à luz de teorias
contemporâneas.

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CAPÍTULO 1

O espaço e o território
Conceitos e modos de uso em tempos
de movimentos sociais

Ruy Moreira

As décadas finais do século XX foram décadas de domínio categorial do


espaço, enquanto as iniciais do século XXI vêm sendo do território. É uma
prática habitual da academia a cultura do momento, cada tempo se refe-
renciando numa teoria, logo substituída e abandonada como ser jurássico.
Seria o caso?
Embora haja em certa medida um modismo, é nosso entendimento que
nessa troca há mais que isto. Qual seria então o motivo por trás de tal mu-
dança de enfoque, sabendo-se ser distinta a perspectiva do olhar por uma
categoria e outra?

O espaço e o território comparados

Usa-se a categoria do espaço quando se quer atingir a compreensão do


todo. Usa-se a categoria do território quando desse todo se quer flagrar um
ponto singular. Usa-se a categoria do espaço quando se quer opor à estru-
tura. E usa-se a categoria do território quando se quer pôr-se frente a frente
à conjuntura. Pode-se concebê-las dessa forma preliminar. Para além do
modismo, isso explicaria inserções de época.
Nas décadas finais do século XX, quer-se mudar o mundo. Isto requer
uma compreensão de estrutura, o que em geografia só se alcança pelo olhar
do espaço. Mudar o todo implica conhecê-lo a partir de sua estrutura, con-
dição de confrontá-lo, sabendo-se a natureza de sua essência e conteúdo.
Nas décadas atuais tem-se por projeto alterar planos de pontualidade. Isto
significa situar e confrontar o ponto sem que a estrutura (a natureza de sua
essência e conteúdo) seja mobilizada necessariamente.

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16 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Daí que se possa dizer do espaço que está para a estrutura assim como o
território para a conjuntura. Empreender a ação territorial significa conhe-
cer a correlação de forças conjuntural do momento como condição neces-
sária e suficiente para a mudança pontual que se quer fazer, a intervenção
espacial significando, ao contrário da territorial, ir mais além, atingindo-
-se o plano estrutural da mediatez. É assim com um movimento de defesa
de um ecossistema, uma ação de distribuição equânime de acessibilidades
urbanas (o que Harvey designa justiça territorial distributiva), a luta por
demarcação de terras indígenas, já não é assim com uma mudança históri-
co-estrutural de uma forma de sociedade por outra.

O movimento e a natureza das lutas sociais

A troca de focalidade de categorias está associada, pode-se dizer, à troca


que neste momento está se dando no campo das lutas sociais entre os con-
ceitos de movimentos sociais e lutas de classes, o deslocamento do foco
espacial para o territorial consorciando-se à mudança de foco e modos
de processamento das ações políticas que nesse momento está ocorrendo
simultaneamente.
Até os anos 1950, as lutas sociais foram movimentos centrados nas
ações e organismos do operariado fabril, enquanto sujeito gestor da ação.
Sendo um contraponto burguesia versus proletariado fabris, as classes so-
ciais fundamentais do sistema industrial, designam-se lutas de classes a
essas lutas sociais. A partir dos anos 1970, a mundialização, a urbanização
e a globalização das relações industriais deram origem a novos sujeitos e
polos de tensão e conflito, as lutas sociais dilatando-se para além do mun-
do e conflitos das classes fabris, com o que ganham a designação mais
genérica de movimentos sociais (TOURAINE, 1981).
Concentradas no polo-chave de que deriva o próprio conteúdo de base
da sociedade industrial, as lutas de classes trazem consigo o significado de
um contraponto sistêmico, o de uma sociedade assentada na hegemonia
do capital – a sociedade capitalista – e uma sociedade assentada no inte-
resse e hegemonia do trabalho – a sociedade socialista –, as lutas sociais
implicando num conhecimento de estrutura global como condição de fim
e supressão de uma forma de sociedade na outra. O modelo histórico-a-
nalítico é a revolução francesa de 1789 e seu desdobramento na revolução

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O espaço e o território 17

russa de 1917, ambas tomadas como casos típicos de mudança estrutural e


exemplos antitéticos.
O efeito intelectual dessa contextualidade histórico-analítica é a teoria
social referenciada na totalidade, a categoria teórico-metodológica do co-
nhecimento e contestação por excelência. Transportada para a teoria geo-
gráfica, é a categoria do espaço.
De formato diferente, os movimentos sociais são de múltiplos sujeitos
e polaridades. Seus temas combinam lutas conjunturais e lutas estruturais,
abertas tanto sobre singularidades quanto sobre totalidades, combinando
pautas que se resolvem por mudanças parciais, acúmulos mudancistas ou
transformações estruturais de cunho brusco ou lento e progressivo, tra-
zendo para si ações sobretudo de centração na pontualidade. Seu modelo
histórico-analítico por isso mesmo é a teoria social – dita pós-moderna,
pós-industrial e pós-liberal – referenciada na singularidade, a categoria
teórico-metodológica do conhecimento e reformatações sistêmicas. Trans-
portada para a teoria geográfica, é então a categoria do território.

O trajeto das (re)conceitualizações

Espaço e território aparecem como categorias que alternam, assim, seus


momentos de centramento, acompanhando enquanto veios teóricos o qua-
dro político das formas de movimentação. Até os anos 1990 vige o do-
mínio da categoria do espaço, a partir daí vindo a viger a categoria do
território, num retardo de tempo frente às mudanças de leitura e formas
tático-estratégicas das lutas sociais.
Há, entretanto, nesse ir e vir, um intercurso da categoria da paisagem.
Como que servindo de ponte de passagem, a paisagem, retirada do univer-
so categorial da geografia por volta dos anos 1930-1940, retorna e logo cede
lugar ao espaço nos anos 1950-1960-1970, ensaia reaparecer nos anos 1970-
1980, para de novo desaparecer junto ao espaço, quando este cede lugar
ao território, nos anos 1990-2010. O mote é a necessária, mas ao mesmo
tempo ambígua presença da natureza no discurso geográfico.
A paisagem é a categoria dominante até os anos 1930. É uma categoria
descritiva da organização geográfica do mundo circundante e compreen-
dida ao mesmo tempo como a forma como a realidade mesma manifesta
seu modo de existência. É ela que substantiva os amplos quadros de clas-

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18 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

sificação – de relevo, de vegetação, de sistemas agrícolas, de distribuição


de indústrias, de arranjos da cidade, de redes de circulação – que formam
a referência e o objeto da explicação geográfica. Através dela cada compo-
nente natural e cada componente humano são aí inseridos, primeiro de
modo destacado e depois no entrelace dos cruzamentos ambientais – fa-
la-se por isso de relação homem-meio, não de relação homem-natureza –,
realizando-se, por acamamento, o traçado das conexões que põem homem
e natureza num mesmo contexto de totalidade, que a paisagem exprime e
visibiliza.
As primeiras manifestações de mutação técnica urbano-industrial dos
grandes quadros de paisagem, anos a fio descritos como quase inertes, são
o sinal de passagem para a prominência categorial do espaço (MOREIRA,
2012c). Fala-se, então, não mais de paisagem, e sim de organização do es-
paço pelo homem, cuja expressão máxima é Pierre George e cuja transição
é a teorização clássica de Brunhes. Com esta paisagem e este espaço for-
mam um binômio – que Brunhes herda de Humboldt –, a paisagem se-
guindo sendo o próprio real em sua forma de manifestação geográfica e o
espaço vindo a corroborá-lo como seu substrato de suporte e organização,
sintetizados no conceito brunhiano de habitat. Brunhes parte do combi-
nado de princípios da atividade, da conectividade e da totalidade para com
eles casar paisagem e espaço como o modo geográfico de localizar-se, dis-
tribuir-se, recortar-se e habitar das coisas – que designa fatos de ocupação
improdutiva, fatos de conquista vegetal e animal e fatos de ocupação des-
trutiva – organicamente na superfície terrestre (BRUNHES, 1962).
Com George, o substrato ascende à substancialidade estrutural que
distinguirá as sociedades segundo sua forma de organização geográfica,
distinguindo-se em espacial e não espacialmente organizadas enquanto
períodos da história. Há, então, as sociedades da natureza sofrida, forma
poética de dizer de paisagem natural praticamente ausente de interven-
ção transformadora do homem, e há as sociedades de paisagem humana,
oriundas da transformação técnica da paisagem natural em espaço, o es-
tado de organização indicando o quadro de história, de que a presença-
-ausência do espaço é o dado de referência histórico-concreta (GEORGE,
1968). A paisagem, no entanto, como que teoricamente ainda flutua em
George, ora aparecendo como categoria elucidativa, ali onde na análise
espacial a presença da natureza se faz iniludível e necessária, ora desapa-
recendo na florescência da estruturação do arranjo técnico, a categoria do

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O espaço e o território 19

visual com que o espaço organizador é inscrito. Mas logo vem a dissolver-
-se no olhar dos herdeiros georgianos como Yves Lacoste, David Harvey e
Milton Santos.
De George a Santos se entrelaçam os olhares da proveniência marxista.
Daí o sentido de historicidade do concreto. E daí a presença, embora ao
fim onipresença, da categoria do espaço. Instrumenta-os a conjuntura his-
tórica herdada das revoluções francesa e russa, marcada pela ideia da in-
tervenção do homem na conformação do seu modo concreto de existência.
Dois modos extremos de ver distinguem os olhares montados na centra-
lidade essencial do espaço, entretanto, um expresso em Lacoste, em seu con-
ceito subjetivado de paisagem prenhe de homem-natureza espacialmente
inter-relacionados, e outro em Santos, em seu conceito tecnotemporalizado
de espaço basicamente vazio de qualquer componente natural, com Harvey
correndo em raia própria em seu conceito de compressão do espaço.
É de Lacoste o conceito de espacialidade diferencial, um combinado de
componentes físicos e humanos – que designa de conjuntos espaciais, no
sentido dos conjuntos matemáticos – formadores da paisagem, arruma-
dos interativamente em seu todo num entrecruzado de órbitas oblíquas,
à semelhança da estrutura dos átomos de Neils-Bohr. Cada mirante de
olhar – cada órbita de conjunto espacial – é um nível de representação,
traduzido como nível de conceitualização, cujo resultado é a subjetividade
conceitual-perceptiva que vai formar o que se designa de paisagem. Esta
pode estar inscrita, assim, na linguagem da vegetação, como de hábito no
conceito de paisagem da tradição, do relevo, do clima, da cidade, da indús-
tria, circulação rentista, a depender do foco com que a vemos. Recriando
o combinado paisagem-espaço de Brunhes, Lacoste funde o binômio, en-
tretanto, no primado do sentido e conteúdo substancial do espaço. Daí o
retrato sociedade-espaço recíproco que Lacoste sintetiza no papel estru-
tural-sobredeterminado de “saber ler o espaço, para saber nele se organi-
zar e nele combater”, um olhar sobre o espaço que Lacoste rapidamente
transfere da geografia para o campo para ele mais amplificado da geografia
política/geopolítica (LACOSTE, 1988).
Vai num contraponto o conceito palimpsêstico de paisagem de Santos,
como um combinado de “temporalidades de tempos desiguais”, na qual
o que vemos é não mais que o agregado num mesmo tempo dos estágios
georgianos periodicamente diferenciados na história da construção técni-
ca do espaço. A paisagem do sentido clássico desaparece frente ao caráter

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20 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

avassaladoramente tecno-historicizado do espaço. Daí o retrato socieda-


de-espaço organicamente distinto do que vemos em Lacoste, dialetizado
no sentido de uma “sociedade que produz-se ao produzir o seu espaço”,
de vez que “o modo de produção da sociedade é o modo de produção do
seu espaço e o modo de produção do espaço é o modo de produção da sua
sociedade”, sociedade e espaço interagindo numa relação de reciprocidade
processual de produtos (SANTOS, 1978, 1994 e 1996).
Harvey vai num curso paralelo. Nele a paisagem dá lugar a arruma-
ções de espaço igualmente sem conteúdo físico, como em Santos, mas
subjetivado num quadro sensoperceptivo dos ordenamentos de territó-
rio, como em Lacoste, desaparecendo frente à imposição substancial da
aceleração técnica, o espaço encurtado nas distâncias frente à essa mes-
ma evolução técnica, num processo de compressão que vai dissolvendo-
-o na instantaneidade existencial do tempo. Paisagem e espaço seguem
assim um mesmo destino, diluídos mortalmente na unicidade terminal
do tempo (HARVEY, 1992).
Não deixa de ser curiosa a premonição da morte do espaço em Lacoste,
Santos e Harvey. Lacoste, repetindo a história trágica da paisagem, mas
aqui pelo primado do político. Santos, na evenencialidade do tempo tecni-
camente empiricizado no espaço. Harvey, na comunicalidade dos lugares
interativizados na compressibilidade do espaço. E Lacoste no chão territo-
rial, então pouco clarificado conceitualmente. Quando, então, mais à fren-
te, a temporalidade se revela pós-modernamente pura pletora de eventos
de um tempo destotalizado na efemeridade do instante – o espaço eve-
nencial de Santos – e pura globalidade de lugares multiparcelarizados nos
fragmentos da instantaneidade do tempo – o espaço da comunicalidade de
Harvey –, o espaço é dissolvido na proeminência do território, Santos com
o conceito do território de uso (modo ambíguo de dizer espaço e território
combinados) e Harvey da justiça territorial distributiva (modo de dizer
conflitos de territorialidades).
Ressaltado apenas quando o dado político o mobilizava – foi sempre
visto como uma categoria da geografia política e/ou proclamado um anjo
decaído no inferno maldito da geopolítica –, o território era até então uma
categoria de status pouco essencializado no universo da geografia. É ele,
não o espaço, que subjaz, verdadeiramente, o conceito de paisagem. E ele,
ainda, a categoria que demarca o limite e a substancialidade do conceito e
organização espacial da região. Seja como for, num e noutro caso é, já, ente

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O espaço e o território 21

de domínio. Domínio da região. Domínio do Estado. Porque domínio da


relação política. Sempre está conotado a poder, o modo como desde então
se exprime e aparece nos discursos de geografia (COSTA, 1992).
Duas funções sempre o caracterizam, então, no discurso geográfico:
o político, de recorte de domínio que vimos, e o epistemológico, de ins-
tância configuracional – dita territorial –, seja da paisagem, seja do es-
paço. A função política já foi vista. Resta ver a epistemológica, sempre
obnubilada. A construção do espaço implica sua arrumação numa rede
de localizações, o todo da rede concertando um modo estrutural de ar-
ranjo do espaço que é o próprio modo de arranjo estrutural da sociedade.
Eis em resumo o traço epistemológico do território, o suporte dominial
da localização, distribuição, distância, escala e extensão espacial que, ao
fim e ao cabo, covalida a constituição espacial das sociedades nos dife-
rentes lugares da superfície terrestre. São, então, duas funções, a política
e a epistêmica, que há tempo a paisagem e agora o espaço revelam com
toda clareza, mais ainda nas sociedades marcadas pelas estratificações e
tensões conflitivas de classes. E é isto que emerge à fatuidade agora, em
tempos de movimentos sociais.
O território-rede, no fundo, é isso. A logística do conflito – por isso
chamado conflito de territorialidades – que opõe o múltiplo das comu-
nidades e o uno da acumulação capitalista largamente difundido como
antagonismo no todo de domínio do agronegócio (as agrossociedades da
literatura norte-americana) que organiza a economia das chamadas socie-
dades emergentes (MOREIRA, 2012a e 2012b).

A força reitora da troca dos conceitos

Os movimentos sociais são as lutas sociais que superam, do mesmo modo


que reforçam, as lutas sociais dos anos 1950, fruto da passagem da fase
industrial para a rentista, ainda não considerada pelos estudiosos.
A sociedade industrial é a forma que vige no mundo até os anos 1950.
Marco de tempo, essa década é também de auge e declínio dessa forma de
sociedade, mercê à rápida mundialização que a própria economia industrial
conhece ao término da Segunda Grande Guerra. Isto significou a mundia-
lização também da escala das lutas de classes conduzidas pelo operariado
fabril e seus meios de organização. Sucede que, não sendo uma luta sozinha e

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22 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

de pauta exclusiva, as lutas do operariado trazem embutida a pauta das lutas


sociais amplas dos segmentos sociais que com ele coabitam, consagrando
demandas próprias e dessa diversidade de sujeitos sociais que não necessa-
riamente se orientam por sua perspectiva própria de superação da forma de
sociedade existente. O ganho das lutas é, assim, repartido nessa pluralidade
mais ampla, aberta no leque de suas múltiplas demandas. E é essa condição
de múltiplos sujeitos, antes embutidos como segmentos sociais pouco clari-
ficados em seus objetivos e perspectivas dentro das lutas do operariado, que
acaba por se emancipar e se pluralizar com seus projetos próprios de luta, o
todo ganhando a rubrica global de movimentos sociais daí por diante.
Com tal amplificação dos sujeitos e formas que requalificam a natureza
das lutas sociais, coincidem as mudanças que requalificam a organização
geográfica das sociedades, originando um quadro que, entretanto, só se
clarifica com a urbanização, que redefine o conteúdo e refaz o modo de
vida da maioria da população do mundo (LEFEBVRE, 1999). A urbaniza-
ção generalizada desloca a indústria para a função substrata de apoiamen-
to dos serviços e da agroindústria, entronizados num sistema de crédito
de financiamento do consumo em cujo bojo o rentismo cresce e se instala
como forma de capital hegemônico.
Pôr em tela esse quadro de relações mundiais analiticamente significa,
assim, clarificar em conceitos uma ordem de organização sociopolítico-
-econômica ainda de todo confusa, a começar pela natureza do rentismo
e a culminar pela do trabalho deste contexto. A atomização territorial
é o empírico que de imediato aparece. Sobretudo mercê à cotidianiza-
ção do urbano, emerso como espaço vivido da maioria de mulheres e
homens. E mercê ainda ao hábito e ao costume do consumismo que cul-
turalmente o urbano rentista naturaliza. Lutar contra tal imediatez da
conjuntura torna-se, assim, um imperativo, enquanto o campo estrutu-
ral da imediatez não atinge a compreensão crítico-sistêmica do universo
dos conceitos.

O esquema do entendimento da conexão

Conjuntura e estrutura são categorias dialeticamente espelhadas e antité-


ticas. Do mesmo modo território e espaço. A conjuntura é um momento
circunstancial da estrutura. A estrutura, um corte temporal permanente

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O espaço e o território 23

da história. Estado da estrutura, a conjuntura explica-se nela e por ela, ao


tempo que igualmente a explica. Esta relação é a mesma que vincula terri-
tório e espaço. Recorte de domínio ou arranjo de ordenamento estrutural
da organização do espaço, o território explica-se nele e por ele, ao tempo
que por isso mesmo igualmente o explica. O mesmo, mutatis mutandi, se
pode dizer da relação entre movimentos e lutas de classes.
Sucede que, assim como ocorreu com a proeminência da categoria do
espaço, trazido no modo genérico de fora para validar-se como um con-
ceito específico de dentro, sem o cuidado do contrapelo do modo geográ-
fico próprio do focar analítico, também com o território estabeleceu-se
uma proeminência do olhar categorial de fora. De modo que tal como se
deu na fase de substituição da principalidade da paisagem pela proemi-
nência conceitual-estrutural do espaço, tornado substancialidade em si
mesmo do fato geográfico, o território ganha igualmente uma proprieda-
de de conteúdo que por si mesmo não tem. O território não se autoexplica
e não se autobasta, no fato de ser um elo necessário da dimensão explica-
tiva do espaço. Poucos fomos os que nos demos conta, quando da passa-
gem da proeminência da paisagem para a proeminência do espaço, para o
cunho generalista como o focamento espacial entre nós foi interiorizado.
Escapou-nos a distinção entre o espaço como forma geral e o espaço geo-
gráfico como forma específica, que George, de cujas teorizações a maioria
de nós provinha, fazia do conceito. Não vimos a mediação da paisagem.
Por decorrência, o conceito estruturante do território. Restou um espaço
solto no espaço, sem visualidade de paisagem e sem raízes configurais de
chão de território (MOREIRA, 2012a, 2012b e 2012c). É com esse mesmo
equívoco de substancialidade que o território chega entre nós. E concei-
tualmente é aplicado.
O fato é que se o real social se explica no viés político, campo onde o
território por definição exprime seu conteúdo explícito, não se materiali-
za e se substancializa, no entanto, nele. Intermedeia-se nele, mas porque
o social é uma perspectiva subjetivada do projeto dos sujeitos. Um tema
de escolha de possibilidades. O real histórico-estrutural é algo, entretanto,
que começa e se resolve no trabalho ontológico. O político-institucional é
o viés por que se explicita. Não seu conteúdo propriamente. Por isso, como
espaço, não como território.
Para arrumar-se como história, a sociedade necessita materializar-se
como espaço. O território é seu viés de ordenação necessário. É o que as

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24 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

lutas sociais ensinam desde sempre. Nenhuma luta se organiza sem logís-
tica de território. Mas a luta é o atalho para onde se deseja chegar. Não o
real-real almejado em si mesmo. Válido para as lutas de classes de ontem,
vale para as lutas dos movimentos sociais de hoje.
É este o traço distintivo entre o espaço geral e o espaço específico da
geografia. Este remete a modos de vida histórico-concretos. A luta e o
modo de ordenamento territorial são o elo de passagem cujo escopo final
é o modo espacial de existência histórico-concreta que se quer. O estado
espacial de geograficidade. Vive-se nos parâmetros estruturais de espaço-
-tempo, não território-tempo, porque é segundo o espaço que a forma de
geossocialidade estabelecida pelo projeto humano se contextualiza como
sociedade (SILVA, 1991). Esta aparece como efetivamente estruturada. É
no espaço e pelo espaço onde o quadro da correlação de forças políticas se
põe como norte, mobilizando a presença conjuntural do território. Razão
porque, Lefebvre poderia dizê-lo (LEFEBVRE, 1973), o capitalismo ao to-
talizar-se toma o espaço por sua categoria de reprodutibilidade, deixando
o trato do singular, do fato localizado, do logístico para o território.

Referências

BRUNHES, Jean. Geografia humana. Edição abreviada. Rio de Janeiro:


Fundo de Cultura, 1962.
COSTA, Wanderley Messias. Geografia política e geopolítica. São Paulo:
Editora Hucitec/Edusp, 1992.
GEORGE, Pierre. A ação do homem. São Paulo: Difel, 1968.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. Uma pesquisa sobre as origens
da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
LACOSTE, Yves. A geografia – isto serve, em primeiro lugar, para fazer a
guerra. São Paulo: Papirus Editora, 1988.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG,
1999.
______. A re-produção das relações de produção. Lisboa: Publicações Escor-
pião, 1973.
MOREIRA, Ruy. O problema do paradigma geográfico da geografia. In:
______. Geografia e praxis – a presença do espaço na teoria e na prática
geográficas. São Paulo: Editora Contexto, 2012a.

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O espaço e o território 25

______. A totalidade homem-meio. In: ______. Geografia e praxis – a pre-


sença do espaço na teoria e na prática geográficas. São Paulo: Editora
Contexto, 2012b.
______. Da região à rede e ao lugar: a nova realidade e o novo olhar da geo-
grafia sobre o real. In: ______. Geografia e praxis – a presença do espaço
na teoria e na prática geográficas. São Paulo: Editora Contexto, 2012c.
SANTOS, Milton. Por uma geografia nova. Da crítica da geografia a uma
geografia nova. São Paulo: Editora Hucitec/Edusp, 1978.
______. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico e in-
formacional. São Paulo: Editora Hucitec, 1994.
______. A natureza do espaço. Técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo:
Editora Hucitec, 1996.
SILVA, Armando Correa. Geografia e lugar social. São Paulo: Editora Con-
texto, 1991.
TOURAINE, Alain. O pós-socialismo. Lisboa: Edições Afrontamento, 1981.

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CAPÍTULO 2

As tecnologias sociais e seu papel na


transformação da sociedade

Naidison de Quintella Baptista

Introdução

Este artigo foi escrito para o 3º Seminário do Grupo de Pesquisa em Geo-


grafia e Movimentos Sociais, “Espacialidade e Movimentos Sociais”.
Este grupo busca a promoção do debate sobre as possíveis relações
entre os movimentos sociais e as ações típicas dos processos que gestam
distintas espacialidades no seio da sociedade capitalista, viabilizando o
diálogo entre a esfera acadêmica e a sociedade civil organizada; visa tam-
bém fomento e aprofundamento de redes de trabalho e colaboração com
pesquisadores e grupos de outras instituições baianas e brasileiras.
Foi-nos solicitado uma reflexão sobre as tecnologias sociais e sua in-
serção nos processos sociais nos dias de hoje, enfatizando a dimensão do
semiárido.
Embora não expresse a posição oficial da ASA (Articulação Semiárido
Brasileiro) sobre o assunto, porque não analisado nos espaços específicos
da própria ASA para esta finalidade, este texto baseia-se nas perspectivas
e dinâmicas da ASA e fortemente em dois pilares. Um deles se configura
nos debates sobre tecnologia social em desenvolvimento no Brasil e que
a coloca como instrumento a serviço de um projeto social e político de
inclusão. O outro pilar é uma análise de algumas das tecnologias sociais
utilizadas pela ASA e suas organizações na concretização de seu sonho e
de sua política de convivência com o semiárido.
Este artigo, desta forma, guarda profunda relação com as ações e deba-
tes da ASA, assim como interseção com artigo semelhante elaborado por
solicitação do INSA (Instituto Nacional do Semiárido) e de outros artigos
escritos pelo próprio autor e publicados em livro denominado Convivên-

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28 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

cia com o Semiárido Brasileiro: Autonomia e Protagonismo Social (CONTI;


SCHROEDER, 2013).
O artigo traz um pequeno debate sobre a contextualização social e po-
lítica do Brasil nos dias atuais, assim como um aprofundamento da leitura
sobre semiárido, com as contradições inerentes às políticas que ali se de-
senvolvem: de um lado a política de combate à seca, com suas mazelas e
maléficas consequências e, de outro, a política de convivência com o semiá-
rido, com sua perspectiva de emancipação do semiárido e sua viabilidade.
É na relação com este contexto que se elucida e emerge o papel específi-
co das tecnologias sociais, por nós colocadas a serviço da convivência com
o semiárido, da inclusão social, democracia, participação social e mudan-
ça da vida das pessoas para melhor.
O texto debate, igualmente, a inter-relação com a Universidade e sua
importância para consolidar estas tecnologias, não negando sua origem,
mas colocando-as cada vez mais a serviço de um projeto democrático de
nação.

O contexto social e político

Falar e debater sobre o papel da tecnologia social na sociedade requer que,


minimamente, se reflita sobre o contexto social e político em que esta tec-
nologia poderá estar inserida e, assim, a serviço de que projeto político ela
estará colocada.

Rápida leitura da realidade brasileira

Um primeiro elemento de contexto é uma rápida leitura sobre a sociedade


brasileira e sua organização.
Efetivamente, ao analisarmos a sociedade brasileira, nos deparamos,
nitidamente, com dois projetos sociais e políticos. De um lado, aquele
que exclui a maioria das pessoas, as explora, enriquece alguns às custas
da miséria de outros, concentra renda, oportunidades, terra, água, crédito,
assistência técnica, saber e conhecimento. Exclui a maioria das pessoas
do processo cidadão. De outro, o projeto que se constrói no dia a dia da
resistência dos mais pobres, que busca a democratização da terra, da água,

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 29

da assistência técnica, do crédito; que quer as mulheres sujeitas e protago-


nistas de seus destinos; que quer negros, indígenas, quilombolas, comuni-
dades de fundo de pasto e outras e outras etnias e povos tendo, no Brasil, o
lugar e o respeito efetivo que lhes é devido. Um projeto, pois, de inclusão
econômica, política e social.
Entre estes projetos, óbvio, há um embate político constante e não é
possível a convivência. E não há neutralidade, de parte alguma. No Bra-
sil, no entanto, há políticas governamentais nitidamente a serviço de um,
como também a serviço do outro projeto.
Há momentos em que parece prevalecer um. Há outros momentos em
que parece prevalecer o outro.
É óbvio, no entanto, que as pessoas, organizações, políticas, o próprio
Governo estarão sempre instados a se posicionar por uma ou outra destas
opções.
Assim também as tecnologias sociais.

O semiárido brasileiro e seus dois projetos

Um rápido olhar sobre o semiárido identifica que nele se encontram em


disputa dois projetos políticos, econômicos e sociais – e que é impossível
viver sem se posicionar.

Uma leitura do semiárido e a política de combate à seca

O semiárido brasileiro tem área de 982.566 km², isso representa 18,2% do


território nacional e 53% da região Nordeste. São 1.135 municípios, 20,41%
dos municípios do país. Sua população é de 22.598.318 habitantes, 11,84%
da população brasileira, sendo 14.003.118 nas áreas urbanas e 8.592.200
nas áreas rurais, o que representa 28,82% de toda a população rural do
Brasil. Em estabelecimentos rurais, são mais de um milhão e setecentos
mil (33% em relação ao total no país), 1,5 milhão de agricultura familiar
(IBGE, Censo Demográfico – ASA, 2009(a), p. 3-4).
Rico em biodiversidade, o semiárido, que alguns preferem denomi-
nar de “sertão”, para diferenciá-lo do litoral, apresenta, de acordo com a
Embrapa Semiárido, mais de 160 microclimas, todos caracterizados por

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30 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

um alto poder de resistência e resiliência. Mesmo com longos períodos


de estiagem, plantas e animais resistem e apresentam grande capacida-
de de regeneração. É só cair as primeiras chuvas e tudo que era cinza e
parecia morto vira verde e esbanja vida. A riqueza dessa região não se
expressa apenas em sua fauna, flora, pinturas rupestres e/ou formações
rochosas (cristalino na maior parte). O maior patrimônio do semiárido é,
principalmente, a diversidade cultural de seu povo: agricultores(as), va-
queiros(as), ribeirinhos(as), quilombolas, comunidades de fundo de pas-
to, indígenas, extrativistas, geraizeiros(as), quebradeiras de coco, outros,
que cultivam, criam, extraem, cantam, dançam, observam e produzem
conhecimentos.
O semiárido é, sem dúvida, um dos ecossistemas mais intrigantes e
fascinantes do planeta! Expressões de admiração e encantamento são co-
muns às pessoas que têm a oportunidade de observar de perto esta re-
gião, sobretudo estudiosos da Biologia, Botânica, Antropologia, Geografia,
Paleontologia, História, Sociologia, Jornalismo, Fotografia, dentre tantas
outras áreas do conhecimento.
Embora já exista fisicamente há milhões de anos, o semiárido brasi-
leiro é um espaço novo. Sua construção simbólica difere-se do Nordes-
te, espaço midiático associado à falta de água, animais mortos, crianças
desnutridas, fome, êxodo, terra rachada, pessoas incapazes, indústria da
seca; difere-se também do sertão, construído em oposição ao litoral, e
difere-se do Norte em oposição ao Sul. Sendo novo, é pouco carregado
de preconceitos e configura uma imagem positiva, não como negação ou
oposição, mas como lugar simbólico. Sem dúvida, a associação de semiá-
rido à ideia de convivência é uma das causas mais consistentes para esta
imagem positiva.
A maior parte do semiárido é ocupada pela caatinga, único bioma exclu-
sivamente brasileiro que apresenta enorme variedade de paisagens, relativa
riqueza biológica e endemismo. Sua diversidade é constituída de, pelo me-
nos, 12 tipos diferentes de caatingas, que chamam atenção especial pelos
exemplos fascinantes de adaptações ao habitat semiárido. A vegetação é
composta, principalmente, de espécies lenhosas, cactáceas, bromeliáceas e
pequenas herbáceas, geralmente com espinhos e caducifólias. Inclui, pelo
menos, uma centena de diferentes tipos de paisagens únicas, sendo rica em
espécies. Já foram registradas 932 espécies de plantas vasculares, das quais
380 são endêmicas e 20 gêneros pertencentes a 42 famílias. Além disso,

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 31

registra-se a existência de 185 espécies de peixes (57% de endemismo), 154


de répteis e anfíbios, 348 de aves (4,3% de endemismo) e 148 espécies de
mamíferos.
Com toda esta riqueza natural, a caatinga, porém, vem enfrentando um
processo sistemático de devastação, cerca de 16.570 km² nos últimos dez
anos, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente (MMA). A caatinga
é devastada para a fabricação de carvão, criação de gado e para dar lugar à
monocultura e mineração, entre outros fatores (BARBOSA, 2011).
Quando se fala em semiárido, uma questão emerge de imediato: a água,
a chuva e a seca. Normalmente, afirma-se que não chove o suficiente, que
há falta de água e que este é o maior problema do semiárido. Esta é uma
verdade relativa, pois existem diferenças marcantes do ponto de vista da
precipitação anual de uma região para outra. Em alguns locais o índice
das chuvas pode chegar a 800 milímetros por ano, enquanto em outros a
média passa apenas um pouco além de 300 milímetros. Temos, no Brasil, o
semiárido mais chuvoso do mundo, porém, as chuvas são concentradas em
poucos meses e mais de 90% de suas águas não são aproveitadas devido à
sua evaporação, ao seu escoamento superficial e ao péssimo sistema de ar-
mazenamento ainda em vigor no semiárido brasileiro, que vem melhoran-
do, nos últimos tempos, a partir dos programas federais e alguns estaduais
de captação de água das chuvas.
Uma reflexão sobre o semiárido, no entanto, precisa ater-se a outros
fatores marcantes e significativos para a compreensão de sua realidade.
Entre elas, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que se localiza
entre os mais baixos do Brasil. Por que isso?
O semiárido quase sempre foi tratado como inviável. É projetado como
um lugar que não serve para nada, e seu povo é tratado como incapaz.
Na realidade, nem o semiárido é inviável nem seu povo é incapaz. O que
ocorre é que, durante muito tempo e, em muitos casos, ainda nos dias de
hoje, as únicas políticas oficiais destinadas à região foram aquelas denomi-
nadas de “combate à seca”. São políticas que estavam e estão voltadas para
grandes obras, normalmente destinadas a criar oportunidades para os
mais ricos e que vinham unidas a projetos assistencialistas voltados para
os mais pobres, como doações, esmolas, distribuição de víveres, carros-pi-
pa e ações semelhantes. Essas políticas nunca tiveram nem têm objetivo
de resolver os problemas do semiárido. As ações de combate à seca sem-
pre aparecem como “atos de bondade”, mas propositalmente são criadas e

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32 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

mantidas para garantir que o semiárido e seu povo permaneçam sem vez
e sem voz, dependentes. Permaneçam na subalternidade.
Como se sabe, essas políticas normalmente são ligadas ao voto e man-
têm no poder as mesmas pessoas e grupos oligárquicos, através da compra
de votos. Assim, por meio de doações e políticas assistencialistas foi manti-
da e favorecida a concentração da terra nos latifúndios, nos grandes proje-
tos do agronegócio e nas grandes fazendas de gado. Enquanto isso, muitos
agricultores e agricultoras continuam trabalhando em terras alheias ou
em minifúndios superexplorados, fragilizando sua segurança alimentar.
De igual modo, durante muitos anos, foram construídos muitos poços e
açudes no semiárido, mas em terras de ricos e fazendeiros. Por isso, em
cada seca ocorrida, os ricos se tornavam mais ricos, concentradores de
mais água em suas terras, com mais terra e mais poder. E os mais pobres,
ou migravam ou ficavam mais miseráveis.
Nessa região, terra e água sempre estiveram nas mãos de uma pe-
quena elite, gerando níveis altíssimos de exclusão social e de degradação
ambiental. Essa realidade atinge, em particular, cerca de 1,5 milhão de
famílias agricultoras que vivem no semiárido brasileiro. Elas represen-
tam 28,82% de toda a agricultura familiar brasileira e ocupam apenas
4,2% das terras agricultáveis. No semiárido, 1,3% dos estabelecimentos
rurais (não familiares) têm 38% das terras e 47% dos estabelecimentos
menores têm, em conjunto, 3% das terras (IBGE, 2006). A concentração
de terra está, indissociavelmente, ligada à concentração da água, repre-
sentando os fatores determinantes da crise socioambiental e econômica
vivida na região.
As famílias sem-terra ou com pouca terra são as que menos se bene-
ficiam das chamadas “inovações”, permanecendo em situação de grande
vulnerabilidade social e alimentar. Esse quadro evoca a necessidade de
profunda reestruturação fundiária, para que o ideal de uma agricultura
sustentável e democrática, com segurança e soberania alimentar e nutri-
cional, seja efetivamente alcançado.
A precipitação pluviométrica da região semiárida é marcada por chuvas
irregulares, tanto na distribuição quanto no espaço e no tempo. Varia en-
tre 300 e 800 mm por ano. Na região ocorre uma evaporação muito supe-
rior à precipitação. Em média, para cada metro cúbico de água que cai das
chuvas, existe o potencial para evaporar 3 m³. Estudos hidrográficos apon-
tam que, muitas vezes, quando a água é encontrada no subsolo, através da

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 33

perfuração de poços tubulares, cacimbões ou artesianos, encontra-se água


salobra e de péssima qualidade para o consumo humano e animal.
O clima é uma das características mais importantes da região, prin-
cipalmente pela ocorrência do fenômeno das “grandes secas”, marcadas
pelo esgotamento da umidade do solo, fenecimento das plantas por falta
de água, depleção do suprimento de água subterrânea e redução e even-
tual cessação do fluxo dos cursos de água. A seca é sinônimo de tragédia,
que provoca grandes problemas sociais, econômicos e políticos na região.
Destrói as atividades agrícolas e pecuárias e agrava a falta de água até mes-
mo para o consumo humano. Ocasiona a sede, a fome e muitas mortes
em consequência de doenças provocadas pela ingestão de águas impuras
e contaminadas.
A cada período forte de estiagem, milhares de pessoas que vivem no
semiárido não conseguem satisfazer suas necessidades de acesso à água e a
alimentos básicos. Ao contrário do que se diz comumente, as causas dessa
realidade não podem ser creditadas às limitações do meio ambiente ou das
populações locais. Elas são, sobretudo, de natureza política e se expressam
na enorme crise socioambiental que vivemos. O problema, assim, não está
apenas na inexistência de água suficiente, mas no fato de chover apenas
um período do ano, ao que se somam os processos inadequados de arma-
zenamento. Ou seja, desperdiça-se quase toda a água das chuvas porque
não é armazenada adequadamente. A questão reside, então, muito mais
na falta de estruturas adequadas de armazenamento (GALINDO, 2008;
ASA, 2009(a); ASA, 2009(b); ASA Maranhão, 2002; ASA Campina Grande,
2003; ASA Piauí, 2004; ASA Ceará, 2006).
Há, ainda, outras ações e políticas que intensificam os problemas do
semiárido, como a educação oferecida aos filhos e filhas dos agricultores.
Quase sempre é uma educação descontextualizada, que coloca na cabeça
das crianças a mentalidade de que na roça e no semiárido não há possi-
bilidade de vida. Pelo que se estuda, debate, lê e se faz em muitas escolas,
conclui-se que quem quer viver bem e dignamente não deveria seguir a
trilha e a história dos próprios pais e antepassados, mas, sim, migrar do
semiárido. Permanecer no semiárido não seria uma ação inteligente, pois
ali não há possibilidade de vida digna (BAPTISTA, 2005; MOURA, 2003;
RESAB, 2006).
Essa é a escola que encontramos na maioria dos espaços no campo e do
semiárido. Descontextualizada, ignorando intencionalmente a realidade

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34 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

onde está inserida e a serviço da modificação pela qual deveria estar atuan-
do. Por isso, a realidade do semiárido, suas perspectivas, os valores de seu
povo, sua música, seus costumes, danças, comidas, lutas, são dimensões
ausentes não apenas dos livros didáticos, mas de debates e conteúdos ou-
tros que os professores desenvolvem para além dos livros didáticos.
A escola, como hoje se apresenta, não contribui para o desenvolvimento
sustentável e para a convivência com o semiárido, além de reforçar o cami-
nho do combate à seca. Muitos livros e pesquisas fazem, com profundida-
de, esta análise (MOURA, 2006; RESAB, 2006). Moura afirma que a escola
desfaz tudo aquilo que se constrói com as comunidades, nas dimensões do
trabalho comunitário. Segundo Moura (2011):

[…] queríamos que as pessoas acreditassem em si mesmas, e a escola pre-


parava para o êxodo; queríamos debater os problemas comunitários para
encontrar solução para eles, e a escola nem tocava no assunto; queríamos
construir conhecimento com os adultos, mas eles eram analfabetos e na
escola se trabalhava com os alunos 04 horas todos os dias, mas não se
construía conhecimentos válidos para melhorar suas propriedades; a esco-
la não apresentava as experiências das famílias e nem as famílias levavam
nada da escola para si mesmas.

Em resumo, na impossibilidade de negar a escolaridade aos habitantes


da área rural e do semiárido, especialmente aos habitantes do campo, o sis-
tema instala uma escola que “educa” os filhos dos agricultores familiares
para desconhecerem e terem vergonha de sua própria cultura e modo de
ser, para migrarem e renunciarem a si mesmos. Cria-se uma escola des-
contextualizada, cuja missão fundamental é negar a convivência com o
semiárido e enraizar o processo de combate à seca.
É neste cenário de negação de direitos que vive a juventude rural do
semiárido, sem perspectivas e sem possibilidade de acessar a terra e seus
recursos naturais. Muitos constroem desde cedo o desejo de ir para a ci-
dade grande desfrutar de uma realidade idealizada. Este comportamento
é perfeitamente compreendido quanto se confrontam os imaginários de
urbano e de rural nordestino, sendo este último constituído de violência
simbólica.
Vitimada, a alternativa aparente para a juventude em geral seria negar o
lugar e seus significados, imputando a falta de direito como consequência

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 35

do lugar, e não da política. Para agravar ainda mais a situação, normal-


mente, quando se constrói uma política para manter os jovens no campo,
o olhar não é para o rural, a manutenção da juventude no meio rural não
está associada ao seu bem-estar, e sim, ao seu possível efeito negativo no
espaço urbano, inchaço, violência etc., ou seja, mesmo as políticas suposta-
mente criadas para o rural são, na verdade, para o bem do urbano.
A favor desta juventude, na afirmação de sua identidade, na última dé-
cada, o imaginário de semiárido rural tem se fortalecido positivamente a
partir de ações de convivência com o meio e da valorização dos conheci-
mentos endógenos. Hoje, o envolvimento de jovens em ações como o Pro-
grama Um Milhão de Cisternas (P1MC), o Programa Uma Terra e Duas
Águas (P1+2) e outros, não é apenas mais uma atividade, constitui prota-
gonismo, propósito e tem ajudado na constituição de uma nova ruralidade:
a do bem viver.

Elementos de convivência com o semiárido

Na contracorrente, nasce e se fortalece o processo de convivência com o


semiárido. A convivência com o semiárido é, antes de tudo, um movimen-
to endógeno, construído na luta diária de mulheres e homens em distintas
fases de suas vidas, portadoras(es) de um vasto saber adquirido a partir da
observação da natureza ao longo dos tempos. Estes homens e mulheres
aprenderam a arte de conviver com o meio ambiente, olhando os ciclos das
chuvas e das secas, o comportamento das plantas, dos animais e as carac-
terísticas do clima e do solo. Neste movimento, foram múltiplas as inicia-
tivas e estratégias construídas pelas famílias para suprir suas necessidades,
sobretudo para a garantia do acesso à água e aos alimentos.
Em oposição à convivência com o semiárido, tem-se o “combate à seca”,
movimento exógeno que parte dos supostos limites, todos comparados de
fora para dentro, e propõe a artificialização da região de forma a torná-la
igual ao território-referência, não considera as estratégias e conhecimen-
tos construídos localmente, o que o torna totalmente ineficiente e danoso
à região. Ainda em uso no semiárido, nos dias de hoje, o combate à seca se
expressa na transposição do rio São Francisco, nas cisternas de polietileno
e outras ações. Estas estratégias provocaram a concentração da terra, da
água, do saber, do poder e o aumento crescente da fome e da miséria no

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36 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

semiárido. Portanto, na linha de raciocínio até aqui construída, o único


combate possível no semiárido é o combate ao “combate à seca”, não como
mera oposição, mas como necessidade premente para a consolidação de
um novo marco civilizatório para a região (GALINDO, 2008).
Assim é que, numa outra perspectiva, nas últimas décadas, com a con-
tribuição de diversos atores, governamentais e não governamentais, vem
sendo gerada outra concepção de ver, trabalhar e construir o semiárido,
baseada na compreensão de que: seu povo é cidadão; seca não se combate;
é possível conviver com a semiaridez; a região é viável; uma sociedade justa
se constrói baseada em equidade de gênero, tendo as mulheres como pro-
tagonistas de seus destinos; é essencial o desenvolvimento de um processo
de educação para a convivência com o semiárido que valorize o conheci-
mento construído pelo seu povo. Nasce, assim, a perspectiva da “convivên-
cia com o semiárido”.
Conviver com o semiárido significa viver, produzir e desenvolver-se,
não dentro de uma mentalidade que valoriza e promove a concentração de
bens, mas, sim, enfatiza a partilha, a justiça e a equidade, querendo bem à
natureza e cuidando de sua conservação. Conviver com o semiárido não
significa apenas empregar tecnologias diferentes, quer sejam baratas ou
caras. Significa abraçar uma proposta de desenvolvimento que afirma ser
o semiárido viável, ser o seu povo inteligente e capaz, ser a natureza do se-
miárido rica e possível, desde que os seres humanos com ela se relacionem
de modo respeitoso e que haja políticas públicas adequadas.

A cultura do estoque
As reflexões acima apontam princípios e práticas de convivência com o
semiárido e indicam que, na convivência, as pessoas humanas estão no
centro dos processos, numa relação de equidade, justiça e convivência har-
mônica com a natureza. A Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), rede
de organizações da sociedade civil que atua na região, responsável pela
implantação e gestão do Programa de Formação e Mobilização Social para
a Convivência com o Semiárido: Um Milhão de Cisternas (P1MC) e Uma
Terra e Duas Águas (P1+2), tem destacado que a base da convivência com
o semiárido reside, sobretudo, na cultura, na política e na estratégia de
estoque. Neste campo, afirma a necessidade de que todas as ações desen-
volvidas na região – a educação formal, a assistência técnica, o crédito, as
infraestruturas etc. – explicitem e dinamizem essa perspectiva. O estoque

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 37

é a base da convivência e do bem viver, não apenas para as regiões semiá-


ridas, mas para todas aquelas em que os plantios sejam temporais e exijam
estratégia de manutenção e armazenamento de alimentos.
Abaixo, destacamos algumas das principais estratégias de estoque para
a convivência com o semiárido:

a) Estoque de água
Para a ASA, o acesso à água é um direito humano fundamental que pre-
cisa ser garantido a toda a população, na perspectiva da segurança alimentar
e nutricional. Este direito está nas leis, nos documentos das Conferências
de Segurança Alimentar e Nutricional e em muitos documentos oficiais
das organizações da sociedade civil. Contudo, muitos homens e mulheres
ainda não têm assegurado o seu direito à água para o consumo humano
e para a produção. No semiárido existe água e, dependendo das regiões,
chove bem. Hoje há estruturas de armazenamento para quase 37 bilhões de
metros cúbicos de água, especialmente nos grandes açudes. O problema é
que toda ou quase toda essa água está destinada às cidades ou concentrada
nas mãos de poucos, enquanto a maioria passa sede. Os programas Um Mi-
lhão de Cisternas (P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), da ASA, assim
como o Programa Água para Todos, do Governo Federal, têm garantido
as condições mínimas para que as famílias tenham acesso à água para o
consumo humano e para a produção, quebrando a hegemonia da concen-
tração de água nas mãos de poucos, em detrimento da miséria de muitos.
Atualmente são cerca de um milhão de famílias com água para o consumo
humano, o que corresponde a aproximadamente 3,5 milhões de pessoas.
Alegra-nos constatar que a proposta de cisternas da ASA se transformou no
Programa Cisternas do Governo Federal, que busca atender a 1,25 milhão
de famílias e, por conseguinte, contemplar 6,25 milhões de pessoas. Para a
estratégia de estoque da água, a ASA propõe cinco linhas:
• Água para beber e cozinhar - A água das chuvas é estocada em reser-
vatórios cilíndricos de 16 mil litros, construídos próximos à casa do(a)
agricultor(a). Este tipo de armazenamento se difundiu muito no semiá-
rido pelo Programa Cisternas, do Ministério do Desenvolvimento So-
cial e Combate à Fome (MDS), pelo Programa Um Milhão de Cisternas
(P1MC) da ASA, por cisternas comunitárias e por vários programas
governamentais de acesso à água, nos vários estados do semiárido. É
resultado de muita luta.

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38 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

• Água para a produção - A população dispersa do semiárido necessita de


alternativas de captação da água para dar de beber aos animais e para
a produção de alimentos que garantam a segurança alimentar e nutri-
cional. Neste campo estão as experiências de pequenas irrigações por
gotejamento e microaspersão, as barragens sucessivas, a perenização
de rios normalmente secos, a partir da utilização da água de barragens.
Aí estão também as cisternas de enxurrada, as cisternas calçadão, os
tanques de pedra, as barragens subterrâneas, os barreiros trincheira,
as aguadas e outras tecnologias de captação de águas das chuvas e sua
estocagem para os períodos secos.
• Água para as comunidades - As famílias do semiárido têm como re-
ferência suas localidades, comunidades, vilarejos e pequenas cidades.
Mesmo quando elas possuem as cisternas de beber e outros modos de
acesso à água para a produção de alimentos, muitas vezes falta-lhes
água para os demais usos domésticos. Nestes casos, as aguadas comu-
nitárias servem para suprir os demais usos da casa, da propriedade e
para dar de beber aos animais. Em todo semiárido existem práticas
valiosas de armazenamento e uso de água nesta perspectiva, que come-
çam a se projetar para o campo de políticas públicas.
• Água de emergência - Durante os anos mais secos é preciso ter a garan-
tia de poços artesianos, de aguadas mais fortes e de barragens maiores.
Assim, se as aguadas familiares secarem, as pessoas e os animais terão
como se socorrer. Muitos poços perfurados e com pouca vazão se en-
contram sem nenhuma utilização, abandonados, pois em muitos destes
não compensa a instalação de motor e bomba para se retirar a água.
Para resolver este problema de bombeamento, a bomba d’água popular
(BAP) cumpre um papel importante. Os muitos poços artesianos de
baixa vazão espalhados pelo sertão e, atualmente, sem utilidade, pode-
rão ser utilizados, através da BAP, como uma alternativa para socorrer
os rebanhos nos períodos mais secos.
• Água do meio ambiente - Devido aos graves processos de devastação
dos solos, da vegetação e dos córregos, riachos e rios no semiárido,
algumas tecnologias e práticas podem ajudar a restabelecer fontes de
água, recuperar solos e cobertura vegetal. Dentre essas tecnologias e
práticas, podemos citar a construção de barragens sucessivas, barragi-
nhas sucessivas e barragens subterrâneas.

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 39

b) Estoque de alimentos e de sementes


Assim como se incentiva o armazenamento de água e de alimentos para
os animais nos tempos mais difíceis, o mesmo pode e deve ser feito para
que todas as pessoas possam ter alimentos bons e saudáveis durante todo
o tempo. Vamos ver algumas maneiras de guardar os alimentos:
• Armazenamento de grãos - Guardar os grãos que se necessita para a
alimentação durante todo o ano e fazê-lo de forma natural, sem utili-
zar agrotóxicos e venenos, é uma estratégia importante de segurança
alimentar. Neste caminho há a recuperação de muitas técnicas tradi-
cionais, como os silos, e a inserção de outras, como as garrafas PET
reutilizadas como recipientes para guardar os alimentos.
• Armazenamento de sementes - Estas também podem ser armazena-
das por várias outras razões: para que não se percam as variedades de
plantas e grãos que, no sertão, servem para a alimentação humana, pois
guardar a semente é guardar a vida; porque quem guarda sua semen-
te tem sempre a possibilidade de plantar quando aparece a primeira
chuva, com mais autonomia. Além disso, há o grande perigo que a de-
pendência de sementes externas causa aos agricultores familiares do
semiárido, comprometendo a soberania alimentar. O armazenamento
ocorre de dois modos: pelos bancos de sementes comunitários, que são
apropriados para guardar diversos tipos de sementes da comunidade
(coentro, abóbora, quiabo, milho, feijão, andu e outras); pelo armazena-
mento familiar, onde cada família guarda suas próprias sementes para
garantir seu plantio e autonomia.
• Guardar as sementes de animais - Importantes também são as expe-
riências de guardar as sementes de animais do semiárido. A criação
de raças adaptadas ao clima e às necessidades das famílias integra
também as preocupações relacionadas às condições de viver e pro-
duzir no semiárido. Elas garantem que se continue a ter os animais
que são adequados, garantem a vida na região e são fundamentais
para a alimentação humana. O semiárido tem animais adequados,
que vivem e se reproduzem bem na região, cujo trato os agricultores
dominam e que não devem ser extintos. Muitas vezes, com a desculpa
de melhorias genéticas, introduzem-se, em pacotes técnicos impostos
via doações e outros processos, outros tipos de animais que não se
adaptam à região e cujo trato não se domina. Para garantir a vida
deve-se garantir a semente – na expressão dos próprios agricultores –

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dos animais adequados, nativos e resistentes. Os pequenos criatórios


são como uma poupança para os agricultores. A existência de uma
multiplicidade deles nas propriedades garante a vida e a segurança
alimentar e gera autonomia.
• Estocar alimento para os animais – Na região semiárida, a água e as
plantas são suficientes para as pessoas e os animais viverem bem. No
entanto, muito do que é produzido ou disponibilizado pela natureza é
desperdiçado. Por isso, um elemento-chave da convivência com o se-
miárido consiste em guardar alimento para os animais. Algumas téc-
nicas de armazenamento de alimentação são:
1. Ensilagem – É uma maneira de estocar forragem que serve de ali-
mento para os animais. A forragem pode ser estocada em silos feitos
em cima do chão, chamados de silos de superfície, ou dentro de uma
vala comprida que se chama silos trincheira.
2. Fenação – Consiste em desidratar alimentos produzindo a forragem,
que é o alimento estocado para os animais. Muitas plantas forragei-
ras podem ser fenadas.
3. Palhadas – Resulta de guardar e armazenar as palhas que sobram
na colheita. Esta palhada, se armazenada em local seco e arejado,
torna-se alimento para os animais na época da estiagem.
4. Cultivo de plantas forrageiras – Consiste em cultivar plantas ade-
quadas ao semiárido que podem ser utilizadas na produção de for-
ragens. Alguns tipos são: palma, mandioca, melancia forrageira,
andu, leucena, sorgo e outras.

c) Assistência técnica, crédito, microcréditos e Fundos Rotativos


Solidários
Os processos que descrevemos até agora existem em muitos espaços do
semiárido. No entanto, para que se ampliem numa mesma propriedade e
sejam mais difundidos, é essencial haver assistência técnica e crédito. Uma
assistência técnica que se desenvolva de modo sistêmico, constante, reali-
zada tanto por organismos governamentais quanto por organizações não
governamentais, numa linha de universalização e baseada em princípios e
metodologias agroecológicas, que tenha os conhecimentos e experiências
dos agricultores no centro dos processos, sem desprezar o conhecimento
científico, mas onde a metodologia do intercâmbio entre agricultores seja
a metodologia básica. Por outro lado, é preciso um crédito adequado que

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 41

sirva de base para a dinamização de todos os processos descritos e viabili-


ze a cultura do estoque e os demais processos aqui descritos.
No entanto, a assistência técnica de que se dispõe ainda é descontínua,
não considera suficientemente a realidade do semiárido, de modo especial
ainda não se centra na perspectiva da cultura do estoque e, deste modo, não
se voltam para a viabilização do processo de convivência. Há iniciativas bem
interessantes, como as chamadas de Assistência Técnica e Extensão Rural
(ATER), a nível federal e em alguns estados, e experiências de muitas organi-
zações não governamentais. Mas ainda insuficientes na perspectiva de suprir
as necessidades reais das comunidades e dos/das agricultores e agricultoras.
Destaque-se que estas experiências começam a incorporar elementos
importantes e vitais no processo de assistência técnica, como a questão da
produção de conhecimento. Neste particular, assumem agricultores e agri-
cultoras como sujeitos do processo, e não como objetos do mesmo e bene-
ficiários(as), incorporam de igual modo a dimensão de que agricultores e
agricultoras são produtores(as) de conhecimento e de que a melhor meto-
dologia de trabalho não é aquela que se centra na difusão de conhecimen-
tos, mas aquela que se baseia no intercâmbio de práticas e conhecimentos
pelos(as) agricultores e agricultoras, experimentadores e experimentadoras,
tendo os técnicos o papel de facilitadores deste caminho. Esta concepção
filosófica e metodológica abre caminho para a incorporação, no processo
de assistência técnica, dos conhecimentos produzidos através dos séculos
por agricultores e agricultoras, conhecimentos estes que se constituem na
base da estrada da convivência com o semiárido. Ampliar os processos de
convivência com o semiárido requer partir das experiências, tendo como
principais instrumentos os intercâmbios horizontais de conhecimentos e
as sistematizações, reflexivas, que possibilitem compreender a realidade na
perspectiva de intervir sobre ela não para artificializá-la, mas, harmonizá-la.
No que se refere ao crédito, encontra-se ainda bastante defasado. De
um lado, porque as propostas de crédito ainda se encontram centradas na
perspectiva das cadeias produtivas e sua verticalidade, ignorando que a
agricultura familiar e, em especial o semiárido, somente se viabiliza pela
múltipla e plural exploração da propriedade (múltiplos plantios e múlti-
plos criatórios) e pela plurianualidade.
O crédito ainda está longe disso. Porém, existem outras iniciativas de
gestão comunitárias, a exemplo dos Fundos Rotativos Solidários, que têm
gerado transformações para muitas famílias na região.

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42 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Esses fundos, cuja gestão é feita pelos próprios grupos e associações


locais, têm possibilitado o acesso rápido e desburocratizado a pequenos
recursos que são utilizados principalmente para incrementos de infraes-
truturas produtivas: melhoria de cercas, bombas para pequenas irriga-
ções, melhoria dos currais dos animais, equipamentos para criação de
abelhas, equipamentos para beneficiamento da produção, máquinas para
produção de forragem, entre outras necessidades. Esses recursos, em sua
maioria oriundos de apoios internacionais, têm possibilitado uma maior
participação das mulheres, sobretudo nas atividades econômicas da pro-
dução familiar. Esse tipo de iniciativa econômica favorece a construção
de laços de solidariedade entre as pessoas, organizações locais e comu-
nidades, de modo que a inadimplência no repasse dos recursos é insig-
nificante do ponto de vista percentual. O governo, no entanto, atua com
enorme resistência quando se trata de ampliar essas experiências e nelas
injetar recursos.

d) Comercialização de circuitos curtos, mercado institucional


e Economia Solidária
Estas passam pela Economia Solidária (grupos de produção, fundos
rotativos, bancos de sementes, mutirões, processos comunitários os mais
variados); pela busca de comercialização da produção (Feiras Agroeco-
lógicas, Programa de Aquisição de Alimentos, Programa Nacional de
Alimentação Escolar, Compras Públicas, Processos Variados de Venda da
Produção); beneficiamento da produção (organização de grupos para im-
plementação de pequenas agroindústrias de beneficiamento da produção
da Agricultura Familiar); iniciativas culturais (conviver com o semiári-
do não significa apenas produzir, mas também viver a cultura, celebrar
momentos, festas, músicas, danças, comidas, bebidas, resgatar o modo de
ser e de viver dos povos do semiárido com sua riqueza e sua multicolo-
ração); educação contextualizada (experiências particulares e oficiais de
implementação de processos educativos através dos quais a escola assume
a realidade da comunidade onde está inserida, parte dela para a produção
e transmissão do conhecimento e produz conhecimento para a transfor-
mação desta realidade.

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 43

A tecnologia social e sua inter-relação com a


convivência e a inclusão social
As tecnologias sociais, seu papel e sua função têm sido bastante debatidos
e refletidos no Brasil.
Há muitos estudos e análises que vêm abordando seu surgimento, sua
filosofia e metodologia e, assim, seu direcionamento. Neste contexto, vai
se debatendo sua não neutralidade e explicitando seu colocar-se como fer-
ramenta para construir outra sociedade, marcada pela participação, pela
justiça e equidade, pela inserção de todos e todas e pela não exclusão.
Aprofundar aqui as questões mais teóricas, referentes a este processo
das tecnologias sociais, estaria fora de nossos propósitos. No entanto, ava-
liamos de fundamental importância explicitar alguns pontos, especial-
mente se nos referimos a algumas características básicas e essenciais da
tecnologia social e, posteriormente, refletir sua contribuição à perspectiva
de convivência com o semiárido.
Henrique Novaes (DAGNINO, 2009), ao analisar características das
tecnologias sociais, assim as delineia:
1. Ser adaptada a pequenos produtores e consumidores de baixa renda.
2. Não promover o tipo de controle capitalista, segmentar, hierarquizar e
dominar os trabalhadores.
3. Ser orientada para a satisfação das necessidades humanas.
4. Incentivar o potencial e a criatividade do produtor direto e dos usuários.
5. Ser capaz de viabilizar economicamente empreendimentos como coo-
perativas populares, assentamentos de reforma agrária, agricultura fa-
miliar e pequenas empresas.

Comparando as características acima explicitadas com as tecnologias


sociais que descrevemos neste mesmo texto, entre as páginas 8 a 12, desco-
brimos uma feliz coincidência entre as mesmas quando tanto umas quanto
outras buscam estradas e caminhos para que:
a) Determinados grupos sociais, especialmente os mais frágeis e explora-
dos, resistam e saiam da condição de excluídos para aquela de incluídos.
b) Sejam criadas condições concretas para que as pessoas, no semiárido,
possam satisfazer suas necessidades de alimentação humana, de cap-
tação, armazenamento e utilização da água, de alimentação de seus
animais, de se educar a partir de uma educação contextualizada, de ter

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44 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

acesso a créditos alternativos e alterativos, possam comercializar seus


produtos.
c) Criem-se condições de democratização do acesso aos bens e serviços,
especialmente no campo do acesso à agua e produção.
d) Criem-se condições para que as pessoas e famílias do semiárido pos-
sam guardar suas sementes, tanto vegetais quanto animais, e possam,
assim, garantir a vida autonomamente.
e) Criem-se condições para que a criatividades dos(as) agricultores(as),
via de regra bloqueada e ignorada pelo status quo, possa desenvolver-se
a serviço da vida.

Esta rápida análise nos leva à conclusão de que as tecnologias sociais,


estejam elas em que campo estiverem, em empreendimentos urbanos ou
rurais, no Sul ou no Norte, olhadas grupal ou familiarmente, não são tidas
como “coisinhas” pequeninas e baratas para tapear os mais pobres, man-
tendo-os, no entanto, na subalternidade. Elas são processos simples, mui-
tas vezes baratos, mas eficientes e seguros, a serviço, no entanto, de uma
outra sociedade, de um projeto político da inclusão de todos e todas.
Neste caso, a eficiência e a eficácia não se confundem com complexi-
dade, gastos desnecessários de recursos, concentração de riquezas e de
oportunidades, inacessibilidade da tecnologia a ser gerida por pessoas
mais simples, mas nem por isso despossuídas de inteligência, criatividade,
capacidade de inovar.
Analisando as tecnologias acima descritas e desenvolvidas no semiári-
do brasileiro, identificamos vários elementos nelas latentes. Esses elemen-
tos mostram com clareza que estas tecnologias estão a serviço do projeto
político de inclusão e de justiça. Eis alguns destes elementos:

a) São tecnologias de resistência


As cisternas, assim como todas as tecnologias de captação de água no
semiárido, foram desenvolvidas pelos(as) agricultores(as) num forte mo-
vimento de resistência. De igual modo, os processos de guarda de semen-
tes, de estocagem de alimentos, de criação de estratégias alternativas de
crédito. Efetivamente, cerceados(as) pela concentração mortífera da água,
obrigados(as) a passar sede e fome, tendo suas sementes desvalorizadas e
relegadas a serem simples grãos, excluídos(as) do crédito, vendo seus/suas
filhos e filhas serem educados(as) desvalorizando e negando sua cultura e

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 45

sua vida, os(as) agricultores(as) utilizaram sua inteligência e criatividade


para resistir e daí nasceram todas estas tecnologias sociais. No seu nas-
cedouro, por conseguinte, elas são tecnologias de resistência, de dissemi-
nação da vida, de explicitação do direito à vida. O fato de algumas delas
estarem sendo, como acontece, transformadas em políticas públicas, não
retira delas nenhuma destas características “políticas” e não as coloca fora
da perspectiva de estarem inseridas na construção de um mundo de justiça
e de inclusão.

b) São tecnologias endógenas


Hoje em dia, muitas das ofertas que são levadas às comunidades mais
pobres, quer rurais, quer urbanas, são processos oriundos em outras pla-
gas, outras regiões, outros países até, que aportam em nossas comunidades
trazendo soluções geradas em outros espaços, na maioria das vezes des-
respeitando e desconhecendo o contexto sociopolítico das comunidades,
os conhecimentos já ali produzidos e negando a própria capacidade das
comunidades de produzir conhecimento.
As tecnologias sociais aqui analisadas, no entanto, são processos endó-
genos. Nasceram no seio das comunidades, foram criadas pelos(as) agricul-
tores(as), aperfeiçoadas, sistematizadas e difundidas pelos seus processos
de intercâmbio entre pessoas e comunidades, sistematizadas com o apoio
de organizações sociais cuja vida e objetivos sempre foram colocar-se a
serviço dos(as) agricultores(as) e seus processos de resistência.
São tecnologias que demonstram a capacidade dos(as) agricultores(as)
e dos mais pobres de produzirem conhecimento, de construírem estradas
e caminhos que os coloquem à frente de seus destinos e demonstrem que
não são os pacotes tecnológicos, gerados onde quer que seja – mesmo com
toda boa vontade de que podem ser portadores –, que resolvem as questões,
mas o conhecimento gerado nas comunidades, naturalmente em inter-re-
lação e sendo aperfeiçoando no embate constante de ideias e práticas da
geração do conhecimento.
Em recentes encontros de agricultores(as) experimentadores(as), pro-
movidos pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), os(as) agriculto-
res(as) faziam duas enfáticas afirmações:
• Referindo-se a um Boletim de Experiências, denominado de “Candeei-
ro”, onde são sistematizadas e publicadas suas experiências, para fins
de trocas e intercâmbios, afirmavam que estes boletins – na sua totali-

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46 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

dade já mais de 1.000 (um mil) em todo o semiárido naquele momento


– eram a luz que iluminava o semiárido novo, sedimentado em suas
práticas e vivências. E diziam mais: que o Governo deveria aprender
com eles o que e como fazer para tornar o semiárido viável e vivo.
• Nesta mesma ocasião, um agricultor, em debate com outros, dizia que
começou a progredir na hora em que descobriu que os técnicos que
vinham à sua propriedade impor coisas e técnicas não o ajudavam, e
sim o prejudicavam. Os técnicos não são e nem devem ser portadores
de pacotes, mas facilitadores de processos.
Esses fatos demonstram a consciência que cresce entre agricultores(as)
de suas capacidades de produzir e não apenas de absorver conhecimento,
aliada à capacidade de inovar, criar tecnologias que estejam a serviço do
projeto político de inclusão.

c) São tecnologias que geram a democracia


do acesso aos bens e serviços
Uma das causas da inviabilidade do semiárido é a concentração de bens
e serviços nas mãos de poucas pessoas. Máxime a concentração da terra,
da água e do saber/conhecimento e de outras oportunidades.
As tecnologias sociais que acima descrevemos operam como forte ins-
trumento de democratização do acesso a bens e serviços. Cisternas e tec-
nologias de acesso à agua servem exemplarmente para que todas as famí-
lias e cada uma das sediadas no semiárido acessem a água para consumo
humano, guardem e acessem sementes crioulas e regionais, transformem
suas escolas em escolas contextualizadas e que respeitem e queiram bem à
sua realidade, assim como a queiram transformar para melhor, guardem e
tenham acesso a alimento para si e seus animais.
Basta imaginar o significado e o exercício de democratização do acesso
à agua, conseguido através do fato de que um milhão de famílias, utili-
zando a tecnologia cisterna de placa, têm acesso à água de qualidade e
100 mil famílias, utilizando a tecnologia água para produção, dinamizam
fundamentalmente sua produção de alimentos e criação de animais; bas-
ta, igualmente, imaginar o que significa 600 bancos de sementes, onde se
efetua a guarda e a distribuição de sementes nas ocasiões adequadas e pro-
pícias. Trata-se de processos democráticos jamais vistos!
A água, as sementes e o saber democratizados geram transformações
significativas nas vidas das pessoas e mudam para melhor suas realidades.

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As tecnologias sociais e seu papel na transformação da sociedade 47

d) São tecnologias participativas, simples e de fácil gerenciamento


As tecnologias sociais na sua totalidade e, em especial, aquelas acima
descritas são de fácil manejo, fácil gerenciamento e simples.
Isso implica em que as comunidades podem participar efetivamente
de sua implementação (do início ao final), têm domínio sobre as mesmas,
sabem e podem repará-las, se necessário, não dependem da “importação”
de técnicos e processos exógenos para manipulá-las.
As comunidades, deste modo, possuem em relação às tecnologias um
processo de pertencimento, que faz com que se transforme não em uma
doação de alguém de fora, mas algo nascido, gerado e desenvolvido e de
propriedade das comunidades. Deste modo, sustentáveis. Assim, são as
cisternas, as implementações de água para produção, os fundos rotativos
solidários de produtos e de dinheiro, os bancos de sementes.

Conclusão

Buscamos, neste rápido artigo, refletir o papel da tecnologia social no se-


miárido. Fazendo-o, partimos do princípio de que a tecnologia social não
se dá desenraizada de uma realidade e de um contexto social, político e
econômico. Justamente por isso ela se denomina tecnologia social.
Uma análise de nosso contexto social e político, no Brasil, deixa evi-
dente que há dois projetos políticos claros em disputa no país: o projeto
da inclusão e o projeto da exclusão. Quando fazemos o corte da realidade
do semiárido, nos deparamos com um projeto de combate à seca que há
séculos expropria o trabalhador, degrada a terra, mata o meio ambiente,
torna o semiárido inviável e sua gente incapaz. E há um outro projeto que
resiste na perspectiva de conviver com o bioma, sua gente, sua terra, seus
costumes e possibilidades.
Este projeto de convivência quer democratizar a água e a terra, viabili-
zar o crédito para todos e todas, produzir e guardar sementes adequadas à
região, dinamizar uma escola contextualizada e que gere conhecimentos
para transformar o semiárido para melhor.
As tecnologias sociais hoje aplicadas e desenvolvidas no semiárido, de
modo especial aquelas coordenadas pela ASA, se voltam justamente para
este projeto de convivência e o tornam cada vez mais possível, concreto,
acessível aos(às) agricultores e agricultoras, porque tendo nascido no seio

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48 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

e do conhecimento dos(as) agricultores e agricultoras, significam seu pro-


cesso de resistência, seus instrumentos de democratizar o acesso de todos
e todas – especialmente dos(as) excluídos(as) – aos bens e serviços, suas ex-
periências de democratização do crédito, do acesso às sementes, de tornar
a escola algo deles, e não um processo exógeno à comunidade.
Se assim é – e este artigo reflete nesta perspectiva –, cabe a nós, técnicos,
pesquisadores – desde que nossa opção seja estar do lado da inclusão –,
colocarmo-nos a serviço destes(as) agricultores e agricultoras, ajudando-
-os(as a sistematizar a aplicação de suas tecnologias sociais, a intercam-
biá-las e difundi-las entre eles(as) e em outros espaços, torná-las cada vez
mais públicas e acessíveis, provocar a que os(as) agricultores(as) possam
aperfeiçoá-las na inter-relação diária de teoria e prática.
Ao colocar este conjunto de reflexões e dados para pesquisadores, pro-
fessores, alunos das Universidades, é nossa expectativa que isso os anime a
interagir com estas tecnologias e seus criadores/inventores, no nosso caso
os(as) agricultores(as), colocar-se à disposição para conhecê-las melhor,
aprofundá-las e, até mesmo, aperfeiçoá-las, sem transformá-las num pro-
duto puramente acadêmico, muitas vezes frio e afastado do mundo dos
sujeitos que atuam nas comunidades e nas bases onde acontecem as mu-
danças que possuem mais significado para a vida das pessoas.
A Universidade, os técnicos, os pesquisadores são bem-vindos, na pers-
pectiva de que possam colocar-se a serviço deste mundo que quer cons-
truir a inclusão, direito esse negado e devido há séculos a estas populações.

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CAPÍTULO 3

Os movimentos sociais nas ciências sociais1

Celia Basconzuelo

Introdução

Eu vou apresentar, em primeiro lugar, a evolução dos estudos nas discipli-


nas sobre os novos movimentos sociais e, logo, refletir sobre os desafios
contemporâneos das ações coletivas.
Fala-se dos novos movimentos sociais para referir um fenômeno social
complexo que, enquanto reúne grupos, tem objetivos diferentes, demandas
diversas e uma maneira de interagir com o poder também diferente. Então,
reúnem-se debaixo do conceito “movimentos sociais” os grupos feministas,
étnicos, urbanos, religiosos, territoriais, ecológicos, dos direitos humanos,
consumidores etc. Isso nos fala de uma questão social altamente complexa.
Por outro lado, nos últimos anos, publicou-se uma variedade de traba-
lhos sobre a importância que tem adquirido o território nos atuais proces-
sos de mobilização social. Como já observou Raúl Zibechi,2 ao contrário
do antigo movimento operário e agricultor, os movimentos atuais esta-
riam promovendo um novo padrão de organização do espaço geográfica, e,
junto com isso, uma modalidade nova de práticas e relações sociais.
Mas em qual conjuntura histórica surgiram esses novos movimentos
sociais e como as ciências sociais fizeram-nos seu objeto de estudo, in-

1 O presente artigo foi apresentado no 3º Seminário do Grupo de Pesquisa em Movimen-


tos Sociais (GEOMOV). UEFS, setembro 2014.
2 Citado em: RODRIGUEZ VERA, S. Movimientos sociales, territorio e identidad: el Mo-
vimiento de Madres y Abuelas de Plaza de Mayo. Geograficando, ano 8, n. 8, p. 213-232.
Disponível em: <http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.5493/pr.5493.
pdf>. Acesso em: 12 ago. 2014.

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52 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

corporando conceitos inovadores e paradigmas? Finalmente, quais são os


desafios contemporâneos? Estas são as três questões que vou abordar. Co-
meçarei com a primeira, a conjuntura histórica.
Poderíamos dizer que a preocupação com o estudo dos movimentos so-
ciais começou lá por 1850, quando o alemão Lorenz von Stein, preocupado
em estudar o movimento operário, inaugurou o conceito com sua História
do movimento social na França. Mais tarde, em 1895, Gustave Le Bon fez
uma interpretação do movimento trabalhista e da luta de classes em seu
livro Psicologia das massas. E então se chegou, especialmente com a inter-
pretação marxista, à concepção da ação coletiva que foi explicada desde a
defesa e confronto de interesses no contexto do conflito capital-trabalho.

A conjuntura histórica dos novos movimentos sociais

A conjuntura histórica precisa associá-la à crise do paradigma da moder-


nização e aos impactos do neoliberalismo. Ou seja, à reestruturação capi-
talista do final do século XX.
Com efeito, em meados dos anos 1970, se evidencia a crise do paradig-
ma da modernização, associada a fenômenos de transnacionalização do
capital, mais espaço conquistado pelo mercado e além do mais, em alguns
países como na Argentina, um incipiente discurso político contra o papel
do Estado que terminou favorecendo as políticas de privatização. O mo-
delo de Estado-Providência (existente desde o final da Segunda Guerra)
começou a desmoronar, sendo um processo mais notório na década de
1980 e especialmente desde a década de 1990, junto com o processo de
globalização que também transformou a relação do Estado-nação com o
território e as demandas sociais.
É uma opinião geral que, no âmbito desse modelo, o Estado controlava
mais ou menos eficazmente o próprio território; mas, logo, com a globali-
zação e o incentivo recebido pelas políticas neoliberais, esse poder territo-
rial foi atravessado por redes de capital internacional, redes corporativas
e poderes do mercado, embora nenhum deles articulado ao Estado-nação.
O velho paradigma do território, entendido como fronteira, foi cruzado
então pelos fluxos e pelas redes.
Por outro lado, a lógica de articulação das demandas sociais mudou. É
dizer, se no modelo de Estado-Providência as demandas articulavam-se

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Os movimentos sociais nas ciências sociais 53

ao Estado, inclusive através de movimentos de massas em quanto coletivo


social, os novos movimentos sociais (quero dizer, os urbanos) responde-
ram às coincidências em torno de objetivos setoriais, em vez dos termos de
classe. Ou seja, a cultura reivindicativa ficou modificada: dos compromis-
sos, participativos e representativos dos grandes coletivos, às demandas de
organizações setoriais (GARCÍA DELGADO, 1994).
O neoliberalismo foi definido como “o outro”, frente a ele os grupos
tinham que resistir ou confrontar (LODESERTO et al., 2010). Neste novo
contexto, o conflito social repercutiu no espaço público e foi definido em
termos de incluídos e dos excluídos.
Como resultado da concentração de renda, da riqueza e dos recursos
naturais, surgiram movimentos de base territorial no espaço rural e no
espaço urbano, estabelecendo-se, em alguns casos, em relação à sua identi-
dade etnocultural (movimentos indígenas) ou em referência à sua falta (os
chamados “movimentos sem”, sem-terra, sem-teto, sem trabalho).

O impacto dos NMS nas ciências sociais

Um novo ator emergiu como objeto de estudo, e a preocupação por inter-


pretá-lo motivou os cientistas sociais a mudarem a perspectiva epistemo-
lógica da abordagem.
Então, assim como foi um fenômeno complexo, assim também foram
as respostas complexas, e os cientistas sociais utilizaram diferentes para-
digmas.
Provavelmente a maior contribuição com suas pesquisas foi provida
desde a sociologia. Até a II Guerra Mundial tivemos as contribuições teó-
ricas americanas que tentaram explicar o comportamento coletivo desde
abordagens psicossociais, entre os quais se destacaram claramente dois
diferenciados: o que surgiu dentro da tradição funcionalista e outro vincu-
lado ao interacionismo simbólico.
No início dos anos 1970, no âmbito norte-americano (e fortemente
influenciado pela “Teoria do ator racional”) constituiu-se a que foi cha-
mada “Teoria da mobilização de recursos”, que rejeitou os componentes
psicológicos como fatores explicativos das ações coletivas e priorizou a
análise econômica, deixando as variáveis políticas e culturais presentes
apenas marginalmente. Ele procurou se referir mais à dinâmica interna

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54 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

dos movimentos sociais que seus aspectos externos. As críticas deste mo-
delo geraram, dentro da própria Teoria Sociológica americana, a Teoria da
“Mobilização Política”, ou também chamada de “Processo político”, cujo
foco de atenção era a relação entre movimento social e Estado.
Desde a sociologia europeia, cujo interesse pelos movimentos sociais
foi retomado na década de 1970, foi imposta a teoria dos “novos movimen-
tos sociais”, com o paradigma de construção de identidade, que apreciou
a dimensão sociocultural e histórica dos movimentos sociais. Eles procu-
raram cobrir os aspectos internos e externos de tais movimentos com um
conceito-chave: a identidade do grupo com o lugar.
Uma terceira corrente (o pós-estruturalismo) atualizou as clássicas ca-
tegorias de análise marxista em direção à realidade neoliberal e globaliza-
da. Foi reinstalado o conceito de revolução no discurso dos movimentos
sociais, junto com as ideias de particularismo e o contrapoder como coor-
denadas centrais da análise (LODESERTO et al., 2010).
No final dos anos 1980, ao mesmo tempo em que se registrava um
crescimento de movimentos sociais, os teóricos se preocuparam com uma
aproximação entre aquelas duas interpretações, ele foi chamado “Cons-
truccionismo social”, que trouxe novas metodologias (tais como o chamado
processo de enquadramento, estrutura de oportunidade política e redes).
Nos anos 1990, chegou para impor-se esse paradigma construcionista.
Além disso, os relatos acadêmicos foram enriquecidos a partir dos estudos
dos movimentos sociais na América Latina, que repensaram as aborda-
gens produzidas na Europa e nos Estados Unidos; os enfoques sociológicos
consideraram o impacto da globalização e discutiram o grau de institu-
cionalização dos novos movimentos. Para a realidade latino-americana,
instalou-se a noção de “movimentos socioterritoriais” para caracterizar os
NMS a partir de quatro dimensões comuns: territorialidade, ação direta,
estrutura flexível, assembleísta e tendência para a autonomia (SANTA-
MARINA CAMPOS, 2008).
Os anos 2000 inauguraram com um retorno às análises específicas so-
bre os movimentos sociais, mas isso aconteceu desde os campos de estudos
disciplinares.
Certamente mais tardios, os estudos antropológicos refletiram sobre
as ambiguidades, limitações e conflitos que cercam os novos movimentos
sociais. Prevaleceram as abordagens construtivistas, usando o método et-
nográfico e realçando a dimensão cultural dos movimentos sociais, seus

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Os movimentos sociais nas ciências sociais 55

mecanismos de identificação subjetiva, suas práticas de resistência cotidia-


na dentro de redes sociais mais amplas e suas conexões com as dinâmicas
da mudança macrossociais com seus aspectos organizacionais.
No entanto, a fraqueza da antropologia dos movimentos sociais cor-
reu paralela à retirada epistêmica de antropologia política durante os
anos 1980 e 1990. Portanto, ficaram estabelecidas três perspectivas an-
tropológicas: as que têm o foco de atenção no campo de “contrapoder”;
a proposta intercultural para a análise da participação política e, final-
mente, a etnografia dos movimentos sociais, cujo objetivo é uma teoria
antropológica a partir do trabalho de campo intensivo, onde um dos
métodos mais difundidos tem sido a observação participante (GARCÍA
LÓPEZ, 2013).
Desde o campo da ciência política, o conceito de movimento social es-
teve intimamente associado às noções de “associação” e “grupos de inte-
resse”. A pesquisa dos movimentos sociais na Europa, ao contrário dos
Estados Unidos, é um campo relativamente jovem. Em países como a Ale-
manha, o tema esteve focalizado em perspectivas tais como “pesquisa de
grupos de interesse”, bem como nos “sistemas de mediação política de in-
teresses”. Para os estudiosos da política, os NMS são um fator-chave para
o surgimento e a consolidação das políticas sociais e as políticas públicas.
Assim mesmo, eles têm um sentido político importante, porque seriam os
principais elementos no processo de aprofundar a democracia.
As últimas teorias da eleição racional e suas variantes subsequentes e,
além disso, as contribuições ideológicas têm fortalecido a perspectiva dos
interesses coletivos e as dinâmicas comunicativas dos NMS (PONT VI-
DAL, 1998).
Pelo lado da geografia, houve também uma renovada contribuição de
conceitos e metodologias. Por exemplo: a noção de espaço foi modificada,
sendo pensada agora como uma dimensão constitutiva das relações sociais.
O conceito de “território”, que durante décadas associou-se à projeção
espacial do poder do Estado, a partir de Rafesttin assumiu um significado
como manifestação espacial de poder com base em relações sociais e de
vários poderes; e cada vez mais se apresentou como um conceito interdis-
ciplinar, sobretudo quando os geógrafos dialogaram com Hanna Arendt
ou Foucault, mas também com os sociólogos e antropólogos. Precisamente,
Milton Santos falou dessa metáfora do retorno do território e a noção pós-
-moderna de transnacionalização do território.

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56 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Emergiu com força o conceito de “lugar”, articulado ao global, mas


também como um compromisso dos geógrafos com abordagens culturais
do território. A partir daí foi que alguns usaram uma perspectiva de lu-
gar para a metodologia nas pesquisas dos MS, vendo então que as práticas
deles são desenvolvidas em um lugar específico e ao mesmo tempo den-
tro de um contexto mais amplo da reestruturação global do capitalismo,
e compreendendo que o espaço é um lugar de constante interação e luta
entre dominação e resistência. Isto tem sido especialmente a contribuição
da geografia cultural e política. Alguns estudos sobre os movimentos so-
cioterritoriais demonstraram que sua luta pela terra era ao mesmo tempo
uma luta por espaço e suas interpretações e representações (OSLENDER,
2002). Para outros autores, tais movimentos têm potencial “emancipatório”
(TOBÍO, 2012).
Neste sentido de contribuições contemporâneas, pudemos também
aludir aos trabalhos teóricos e empíricos o papel dos movimentos sociais
na construção da territorialidade, autoria do grupo de pesquisa da Univer-
sidade Estadual de Feira de Santana e da Universidade do Estado da Bahia.
Em suma, os novos movimentos sociais têm redimensionado as coor-
denadas espaciais. Eles mostraram a crise de legitimidade dos canais con-
vencionais de participação, geraram novas práticas representativas, mos-
traram um ângulo da mobilidade da sociedade civil e uma permanência
no espaço público, cuja intensidade tem sido diferencial conforme cada
experiência nacional. Mas, sobretudo, desde as ciências sociais, conduzi-
ram a estudos interdisciplinares os quais – em minha opinião – têm de-
monstrado constituírem-se eles mesmos numa ferramenta metodológica
para a abordagem de qualquer movimento social.

Os desafios dos NMS

Do ponto de vista das ciências sociais, a definição do que se entende por


novos movimentos sociais e ação coletiva é um campo inteiro de diversas
opiniões. Podemos nos perguntar, por exemplo: em quais universidades
do mundo ditam-se os cursos dos movimentos sociais? Em várias univer-
sidades europeias, mas não em todas as latino-americanas. É preciso então
mais ensino, mais pesquisas, mais abordagens interdisciplinares. Portanto,
é uma oportunidade de empreendê-los, onde o ponto de vista epistemoló-

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Os movimentos sociais nas ciências sociais 57

gico seja ver os NMS como “sujeitos”, e não como objetos de estudo. Prova-
velmente seja necessário avançar numa epistemologia do NMs.
Logo, se temos em conta os próprios movimentos sociais:
• A sociedade é cada vez mais complexa. É correto asseverar que os NMS
expressam demandas e identidades fragmentadas, eles têm muitas difi-
culdades para sobreviver e se manter no tempo. Na maioria dos países
não articulam-se uns aos outros e, além disso, eles são questionados em
sua capacidade de transformação sistêmica.
• Mas também é verdade que esses grupos e organizações manifestam
novas formas de fazer política, de iniciativas que partem da sociedade
civil e já não do Estado, portanto isso sucita uma enorme possibilida-
de – também para a democracia – em meio às tensões que enfrentam as
sociedades latino-americanas. Esta contribuição não é um pequeno deta-
lhe, tendo em conta as experiências que atravessaram muitas sociedades
latino-americanas na década de 1970, com os regimes militares que pos-
suíam, como um de seus projetos, o desmantelamento de ações coletivas.
• Além disso, o Estado já não é um garantidor do desenvolvimento. Mas
este aspecto que poderia ser avaliado como negativo desde uma pers-
pectiva intervencionista ou keynesiana, tem algum potencial desde
uma perspectiva territorial. Com efeito, neste contexto, alguns movi-
mentos sociais geram estratégias de resistência ao movimento de inter-
nacionalização do capitalismo e ao domínio das grandes corporações.
Para esses movimentos, o paradigma de desenvolvimento é satisfazer
as necessidades das populações, gerar recursos endógenos, envolvendo
nesse processo as próprias populações. Ou seja, o território local pode
ser um fator gerador de desenvolvimento. Muitos deles conseguem
articular o termo do conflito em uma nova forma de relacionamento
social. Por isso se fala de territórios de resistência e territórios como
integração (ZIBECHI, 2008).
• Por outro lado, considerando que o poder já não se concentra no Estado
e pode emergir das relações sociais (isto em sentido foucaultiano), os
NMS estarão contribuindo para uma democracia substantiva, mas eu
tenho dúvidas de que seja uma cultura mais participativa.
• Assim também alguns críticos destes movimentos argumentam que vá-
rios deles são caracterizados por ser mais anti do que alter (alternativos).
• Outra variável a considerar é a relação de alguns MS com os governos
populistas. No Equador têm demonstrado que são fracos, assim como

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58 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

na Argentina, onde alguns dirigentes dos MS foram integrados nas es-


truturas do estado, mas não tem sido assim na Bolívia, por certo.
• Em minha opinião, deve-se refundar o político. O que significa isto?
Uma questão que sem dúvida requer um novo contrato social que con-
sidere outra maneira de vincular a economia (globalizada) com a socie-
dade civil. Neste ponto, o desempenho do Estado é chave, no sentido de
dar impulso aos valores da equidade e a responsabilidade social, assim
como também delinear políticas públicas que comportem a superação
de algumas distorções atuais entre cidadãos com plenos direitos civis
e outros cidadãos totalmente excluídos do sistema, particularmente do
plano econômico, mas também em alguns aspetos culturais. Por outro
lado, trata-se de insistir no papel de uma cidadania mais comprometida
e participativa, e que isto seja uma prática não só visível, como também
continuada no tempo.

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CAPÍTULO 4

Os movimentos sociais urbanos na Espanha


e o seu renascimento após 2010
Uma leitura geográfica1

Rubén C. Lois González3

Introdução: a crise econômico-financeira atual


e o seu impacto nos espaços urbanos.

Nos últimos anos, a Espanha foi notícia internacional pela gravidade da


sua crise econômica e pelo auge dos movimentos sociais e políticos urba-
nos que surgiram como protesto à situação existente. A primeira ideia a
destacar é a relação direta entre ambos os processos. A cidade neoliberal
espanhola, em crescimento edificativo contínuo, singularizada por es-
petaculares flagships projects (construções emblemáticas assinadas por
um arquiteto num lugar bem visível do espaço urbano), bem comunica-
da por modernas infraestruturas e reflexo do êxito econômico do país
no contexto da União Europeia, converteu-se num cenário privilegiado
dos múltiplos problemas financeiros das grandes corporações privadas,
das administrações públicas e dos cidadãos (GAJA, 2008; LÓPEZ; RO-
DRÍGUEZ, 2010; OBSERVATÓRIO METROPOLITANO DE MADRID,
2013). Estas dificuldades originaram – e deve ser considerada a hipótese
principal do nosso trabalho – uma emergência das mobilizações urba-
nas, de uns movimentos sociais e de bairro adormecidos desde os finais
de 1970, que se expressam com uma notável originalidade e diferentes
tipos de propostas nas cidades de todo o país (DÍAZ-CORTÉS; UBA-
SART, 2012; GALDE, 2013). Os movimentos urbanos espanhóis enlaçam
superficialmente com os da primavera árabe, expressam um desconten-
tamento cidadão profundo, mas não violento como nos riots de Londres

3 Departamento de Geografía. Universidade de Santiago de Compostela

61

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62 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

e nas banlieue de Paris e, sobretudo, assemelham-se aos movimentos


antiglobalização e de crítica frontal ao sistema desenvolvidos na Grécia,
Wall Street ou contra as cimeiras do G8 (Seattle, Genova etc.) (UITER-
MARK; NICHOLLS; LOOPMANS, 2012; HARVEY, 2012; CASTELLS,
2012; DAVIES, 2014). Todos estes movimentos questionaram um mode-
lo de cidade neoliberal e aparentemente pós-política (BRENNER, 2004;
BAVO, 2007), que perdeu o seu respaldo social com a presente crise eco-
nômico-financeira.
Neste sentido, importa lembrar que a Espanha é um país comple-
tamente urbanizado, fruto de um processo acelerado de transferência
da população e da atividade econômica para as áreas urbanas ocorri-
do desde os anos 1950 (FERIA; ALBERTOS, 2010). Assim, boa parte do
potencial produtivo e inovador da nação concentra-se à volta dos eixos
densificados do litoral, como o corredor mediterrâneo que se apresenta
sob a forma de uma cidade contínua entre Barcelona e Málaga, o bas-
co-cantábrio e a cidade asturiana no Norte, o eixo atlântico na Galiza
e, evidentemente, a região metropolitana de Madri, que juntamente ao
corredor do Ebro com Saragoça como centro, o do baixo Guadalquivir
liderado por Sevilha e a conurbação Valhadolide-Burgos, polarizam o
efetivo demográfico do interior do país (LOIS; PIÑEIRA, 2011). Nas pro-
ximidades da costa, o mais correto é fazer referência a uma urbaniza-
ção contínua, onde, junto aos usos residenciais e empresariais, se detecta
um crescimento edificativo favorecido pela extraordinária importância
que ganhou a atividade turística (construção de hotéis, campings e apar-
tamentos costeiros em um território que se situa entre o segundo e o
quarto destino mundial de visitantes por motivos de férias). Na Espanha,
o mundo urbano é dinâmico, bastante novo e com um nível educativo
da população alto, e apareceu tradicionalmente dominado por uma base
ampla de assalariados que se beneficiou muito da longa etapa de cres-
cimento econômico, que se estendeu entre os anos de 1980 e 2008. Por
sua vez, o rural revela maioritariamente uma imagem de atonia, de des-
povoação, depois de decênios de emigração intensa, e de consolidação
da pequena e mediana propriedade pouco necessitada de mão de obra e
muito orientada para o mercado.
No quadro que acabamos de definir, e para compreender o reben-
tar da crise, recorre-se frequentemente às leituras dos autores clássicos
(PIÑEIRA, 2010; VIVES, 2013). Assim, os problemas das cidades espa-

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 63

nholas respondem aos efeitos de uma crise de sobreacumulação capi-


talista, caraterizada na obra de K. Marx e adaptada à Geografia por D.
Harvey (MARX, 1867; HARVEY, 1985). Coincide-se em assinalar que
o importante crescimento da economia espanhola desde os anos 1990
tinha como justificação a abundância de capital circulante, que fluiu
para o sistema em um contexto de escassa regulamentação das entida-
des financeiras. Como assinalam as obras de Marx e Harvey, os recur-
sos financeiros disponíveis não se dirigiram para a economia produtiva,
mas para a utilização massiva da artificialização de solo. Construíram-
-se centenas de milhares de edifícios, melhoraram-se as infraestruturas
de comunicação de todo o tipo (autoestradas, trem de alta velocidade,
aeroportos etc.) e em muitos lugares se favoreceu o desenvolvimento do
urbanismo espetacular, com exemplos tão destacados como as quatro
torres de La Castellana em Madri, a Ciudad de las Artes y las Ciencias
em Valência, ou da Cidade da Cultura em Santiago, entre outros. Defi-
nitivamente, assistiu-se a uma bolha imobiliária que artificializou o solo,
cobriu de construções todo o litoral e finalizou infraestruturas de escas-
sa rentabilidade, como as autoestradas radiais de Madri, alguns termi-
nais aéreos regionais (Castellón, Ciudad Real etc.) e custosos trechos de
ferrovia pouco utilizados (Toledo - Cuenca - Albacete, como caso mais
emblemático). Um modelo que responde ao segundo circuito de acumu-
lação de capital que terminou de forma abrupta em 2007-2008, dando
lugar a uma grave crise, da qual só na atualidade se começa a sair com
grandes sacrifícios.
Na Figura 1 resumem-se os principais indicadores de sucesso econômi-
co espanhol, apoiado pelas instituições europeias, e que derivou em uma
aguda crise. Na Espanha assistiu-se, tal como nos Estados Unidos e na Ir-
landa, a um rebentamento da bolha imobiliária com graves efeitos na cida-
de e nas sociedades urbanas (Grupo de Geografia Urbana de la AGE, 2014).
Esta crise multiplicou o número de pessoas e famílias que não podem pa-
gar as suas dívidas hipotecárias, arrastou uma parte do setor financeiro
à bancarrota (a maioria das Caixas de Aforro implicadas no negócio da
construção, mais para além dos riscos razoáveis) e ao setor público, que se
encarregou de boa parte das dívidas das entidades privadas, precisamente
num período de recessão, quando os seus rendimentos se reduziram e se
produziu, portanto, um aumento do déficit público.

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64 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Figura 1. Principais indicadores da crise social e econômica na Espanha

2001-2006 2006-2008 2008-2010 2010-2012


Crescimento médio
7,69% 5,06% -1,96% -0,80%
anual do PIB
Média da dívida públi-
386.889,6 405.245,6 552.576,6 761.261,0
ca (€ milhões)
Média de habitação
574.393,0 478.333,0 127.093,0 49.875,3
livre começada
Média de investi-
mentos públicos em
estradas, ferrovias, 35.560.531,0 48.422.049,0 38.732.070,0 14.835.671,3
aeroportos e portos
(milhares €)
Média de pessoas em
risco de pobreza e 3.519.333,3 10.748.500,0 11.682.500,0 12.495.500,0
exclusão social
Média de despejos * * 42.324,5 66.189,0

Fonte: Instituto Nacional de Estatística, Eurostat, Ministério do Desenvolvimento.


* Não existem dados para o período.

Ao repassarmos os afetados pela crise, encontramo-nos perante os


protagonistas do renascimento dos protestos sociais e de vizinhança ur-
banos, objeto do presente artigo. Por um lado, os cidadãos, que até 2008
ou 2009 podiam se qualificar como classe média, viram as suas condições
de vida serem muito deterioradas. Os mesmos sofrem uma redução dos
seus rendimentos e devem enfrentar dívidas hipotecárias em condições
de maior dificuldade. Por outro lado, muitos jovens e adultos passaram a
aumentar as listas de desemprego, o que provocou um aumento notável
do número de pessoas que vivem com muito poucos recursos. Em uma
etapa definida por números de desemprego que superam 20% desde 2009
e uma percentagem próxima de 50% entre os menores de 20 anos, os
encargos familiares – e a própria dimensão dos lares – com que se depa-
raram com a diminuição do seu salário aumentaram exponencialmente.
Em terceiro lugar está o conjunto dos cidadãos que então eram beneficiá-
rios do Estado de bem-estar, que diminuiu de forma substancial devido
à decisão de controlar os volumes de dívida pública que estava em contí-

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 65

nuo aumento. Gasta-se menos em saúde e educação pública, em serviços


sociais ou em apoio aos desempregados, logo, as dificuldades cotidianas
de muitas pessoas aumentam. Por último, milhares de lares perderam
grande parte das suas poupanças pelos investimentos feitos em um sis-
tema financeiro que se viu obrigado a levar a cabo uma reestruturação
completa. Diminuíram os volumes de depósitos bancários individuais, e
a classe média, segura de si e com perspectivas de futuro, tornou-se um
grupo empobrecido, com filhos desempregados ou subempregados, com
um Estado que responde pior às suas demandas de bem-estar e que, em
muitos casos, sofreu uma depreciação das suas propriedades e do seu
capital acumulado. Este grupo, com boa formação e sensação de ser des-
pojado (HARVEY, 2012), é o que encabeça os protestos sociais de toda a
Espanha (CASTELLS, 2012; OBSERVATÓRIO METROPOLITANO DE
MADRID, 2013).
Globalmente, os analistas sociais insistem em que a atual crise rom-
peu numerosos tópicos que estavam bem instalados em épocas prévias.
Na verdade, a ideia de progresso econômico consolidado, ao aumentar
os níveis de rendimentos - possuímos mais bens e nossos filhos viverão
em condições melhores que as nossas - se quebrou. Há medo em rela-
ção ao presente, sensação de empobrecimento e incerteza pelo futuro do
resto da família. A isto se acrescenta uma perspectiva de pior prestação
dos serviços sociais: para aceder a uma reforma digna, é necessário coti-
zar mais anos e/ou contratar um seguro privado; a saúde pública deverá
ser suportada (ao nível de custos) parcialmente pelos usuários etc. Esta
situação, especialmente sensível para uma classe média e trabalhadora
com um elevado nível educativo e capacidade crítica, impulsionou um
descontentamento social. Um descontentamento agitado por jovens es-
tudantes e sem emprego, muitos deles militantes de organizações polí-
ticas e sociais, mas que triunfou no momento em que se juntou a uma
ampla coligação de afetados pelos despejos, desempregados adultos, pais
de filhos sem futuro ou com empregos muito precários, pessoal de saúde
pública e da educação afetados pelos cortes e um importante movimento
alternativo (de economia sustentável, solidariedade com o sul, defesa dos
direitos civis etc.) que se foi consolidando inclusive nos anos de bonança
econômica.

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66 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

A mobilização urbana: dos indignados à luta pelos


despejos
A crise tornou-se evidente com toda a sua crueza na Espanha no ano de
2009, quando se produziu o rebentamento da bolha imobiliária, se destruí-
ram dezenas de milhares de empregos e o Estado entrou em déficit, depois
de alguns anos de forte crescimento das receitas e práticas de gasto pouco
reflexivas. Em 2010, o governo socialista viu-se obrigado a cortar signifi-
cativamente os salários dos empregados públicos, o que foi acompanhado
por processos similares no setor privado, para melhorar a competitividade
e evitar um resgate financeiro. A produção industrial e o PIB começaram a
baixar, e toda a economia entrou em recessão. Num país que desde meados
do século XX desenvolvera de forma extraordinária e sofria crises agudas
de caráter episódico (GARCÍA DELGADO; MYRO, 2013), o forte impacto
do crash financeiro foi assumido com resignação. Ocorreu um empobre-
cimento geral, que foi interpretado como um curto período de contenção
frente a um crescimento intenso acompanhado, e assim se percepcionava,
de um conjunto de excessos.
O ponto de inflexão de todo este período registrou-se no dia 15 de mar-
ço de 2011, quando, num contexto de deterioração generalizada das con-
dições de vida dos cidadãos e perante a ideia de que a crise ia ser muito
mais longa do que o previsto no início, um conjunto de protestos inicia-
dos em Madri e estendidos por toda a Espanha mobilizaram dezenas de
milhares de pessoas, que ocuparam as praças mais centrais e emblemáti-
cas das cidades. Produzia-se, sem que praticamente ninguém esperasse, o
aparecimento do movimento dos indignados, imitando aquilo que tinha
acontecido pouco antes em Tunes, no Egito, e com muito mais semelhan-
ças com protestos paralelos na Grécia e da geração à rasca em Portugal
(CASTELLS, 2012; HARVEY, 2012). Na Figura 2 cartografa-se a extensão
destes protestos, contudo provavelmente seja mais interessante analisar o
seu conteúdo (espacial) e a sua originalidade no que diz respeito às mobi-
lizações sociopolíticas urbanas que se desenvolveram até então, o que se
fará posteriormente.
Na sua dimensão e propagação espacial, o movimento indignado esten-
deu-se seguindo as pautas clássicas de difusão definidas pela Geografia des-
de T. Häggerstränd (HARGGERSTRÄND, 1968; HAGGETT, 1983). Assim,
as manifestações arrancaram com muita força em Madri e com um caráter

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 67

Figura 2. Assembleias e acampamentos organizados durante o movimento 15-M,


na Espanha

Fonte: Elaboração própria com base em 15Mpedia. “Todo el conocimiento del 15M”. Disponível
em: <http://wiki.15m.cc/wiki/Portada>.

autônomo em Barcelona, e de imediato se criaram focos similares em todas


as cidades mais importantes, em particular nas capitais provinciais ou regio-
nais, onde os atos se procuravam realizar em praças e lugares simbólicos do
poder. Dias depois, quando o movimento de protesto evoluiu das manifes-
tações para as ocupações de espaços públicos, também alterou um pouco a
sua geografia. Assim, começaram-se a ocupar não só as praças das capitais,
onde terminavam os protestos, como também uma série de lugares centrais
dos bairros destas mesmas cidades (normalmente também praças, parques,
espaços de respeito em frente a um edifício público ou a uma igreja etc.), ao
mesmo tempo que o Movimento 15-M se difundia a um maior número de

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68 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

cidades secundárias, muitas das quais nunca haviam estado imersas em um


processo de dissidência social e político tão forte. Um número considerá-
vel de protagonistas do movimento optou, como analisaremos, por assentar
permanentemente em espaços públicos, uma decisão que perdurou várias
semanas. Nesses lugares realizavam-se assembleias, debatia-se sobre o con-
teúdo reivindicativo do protesto e programavam-se atos de todo o tipo. Esta
decisão de se fazer de forma efetiva um espaço cidadão continuou comple-
mentando-se com a convocatória de manifestações, todo tipo de marchas e
de protesto, em um movimento diverso, muito bem difundido territorial-
mente e que ainda se mantém na atualidade.
Para compreender as motivações e a ação desenvolvidas, propõe-se
também um esquema teórico que permita entender os movimentos so-
ciais na Espanha, particularmente dos indignados, a partir dos conceitos
e da leitura de base geográfica (Figura 3). O procedimento seguido é o
seguinte: consultaram-se dois trabalhos publicados de observação partici-
pante de ativistas indignadas, o primeiro correspondente a uma licenciada
em ciências da comunicação e militante ecologista, e o segundo consis-
te numa análise realizada por uma antropóloga (PASCUAL, 2013; RAZ-
QUIN, 2013). A partir do seu testemunho, a narração das caraterísticas do
movimento contrasta-se com as aproximações teóricas efetuadas também
há poucos anos por prestigiadas revistas da nossa disciplina (LEITNER;
SHEPPARD; SZIARTO, 2008; UITERMARK; NICHOLLS; LOOPMANS,
2012); evidentemente com os conceitos de direito à cidade (LEFEBVRE,
1968, 1972) e sociedade em rede (CASTELLS, 2002).
Tal como se pode observar, o direito à cidade exerce-se no espaço pú-
blico, em um espaço coletivo que se afirma como desafiante ao poder esta-
belecido. Atua-se localmente, e a proposta através da internet difunde-se
à escala global. Na Espanha, as praças centrais, mais emblemáticas, foram
o local escolhido pelos indignados para se expressarem (Puerta del Sol em
Madrid, Plaça de Catalunya em Barcelona, Praza do Obradoiro em San-
tiago de Compostela etc.). As praças são ocupadas e o movimento debate,
cria, protesta e mantém-se nelas durante um período mais ou menos longo
(como em Hahrir no Cairo e como antecedente de Occupy Wall Street, a
Puerta del Sol de Madri foi o local de acampamento durante várias sema-
nas). Desde esse ponto, ou quando o protesto não pode durar mais, o pro-
cesso repete-se nos locais públicos e reconhecidos dos bairros, mediante
ocupações simbólicas de sucursais bancárias ou outros locais associados à

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 69

Figura 3. Os movimentos sociais urbanos na Espanha interpretados em função dos


grandes conceitos geográficos

Fonte: Elaboração própria a partir de Pascual (2013); Razquin (2013); Leitner, Sheppard & Sziarto
(2008); Uitermark, Nicholls & Loopmans (2012); Lefebvre (1968,1972); Castells (2000).

crise, mediante a criação de obras de arte (murais, grafite etc.) ao longo da


cidade. Tudo é colaborativo, móvel e procura criar uma alternativa, uma
contestação ao poder existente. Protesta-se contra a corrupção política, a
desigualdade econômica, a marginalização, o desemprego massivo, e faz-
-se através da utilização intensiva da internet (que herda as velhas convo-
catórias das assembleias do 68) e fazendo-se visível o conceito de cidadania
que exige o direito à cidade, um aprofundamento democrático e uma nova
ordem econômica das coisas. A internet, as comunicações instantâneas e
horizontais e a expressão de força nas praças públicas constituem os em-
blemas da espacialidade renovada do movimento. Ao mesmo tempo, trata-
-se de gerar um impacto, dado que existe a consciência de pertencer a uma
sociedade onde o protesto deve apresentar-se em certa medida como um
espetáculo para se tornar efetivo (DEBORD, 1967; SANTOS, 2002).

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70 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Um segundo cenário muito importante da mobilização, e desenvolvido


em paralelo ao anterior, foi a luta contra os despejos e pelo direito à mo-
radia. Na Espanha, o número de pessoas que foram expulsas da sua casa
por não poderem fazer frente às suas dívidas hipotecárias é muito eleva-
do atualmente (27.251 em 2008, 65.182 em 2013). Frente a este processo, e
como reivindicação pelo direito à moradia e à cidade, erguem-se Platafor-
mas Antidespejos (PAH) em todo o país, com uma inquestionável reper-
cussão política e social (a sua líder em Barcelona se candidata a prefeita,
com um forte apoio). Precisamente, nas declarações da mesma, A. Colau
explica as chaves de um movimento que se converteu em muito popular e
obrigou a introduzir reformas tanto nas leis como na prática judicial em
assuntos hipotecários (GALDE, 2013). De novo, o testemunho analisa-se
na Figura 4, a partir dos grandes conceitos da Geografia e da teoria social
crítica.

Figura 4. O direito à moradia e a plataforma antidespejos

Fonte: Elaboração própria a partir de A. Colau, em Galde (2013).

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 71

Na Espanha, importante movimento antidespejos aproxima-se de ou-


tros surgidos na América Latina nas últimas décadas, em particular o “Mo-
vimento dos Trabalhadores Sem Teto” (MTST), no Brasil (PEDON, 2013).
Ainda que na Espanha a luta se centre em impedir que cidadãos e famílias
sejam expulsos da sua casa por dívidas, e no Brasil reivindique-se o acesso
a uma moradia digna a milhares de habitantes de favelas e outras formas
de submoradias, pela primeira vez observa-se uma influência direta das
novas formas de mobilização social latino-americanas no sul da Europa.
Esta afirmação que acabamos de fazer constitui uma notável novidade
que teve origem na chegada da crise aos países do sul da Europa. Sem dúvi-
da, o continente europeu se auto representou historicamente como o berço
da origem da civilização (ocidental, obviamente), que se foi estendendo
a todo o mundo. Portanto, também em relação às mobilizações sociais e
políticas, muitos cidadãos pensam que a origem da difusão das revoluções
clássicas (a inglesa do século XVII e a francesa de finais do século XVIII, o
ciclo de 1830, 1848, a Comuna de Paris etc.), e mesmo os originais aconte-
cimentos de 1968 (na universidade parisina, em Praga por um socialismo
de rosto humano), foram outras tantas expressões do caráter inovador e
vanguardista dos europeus no plano político (HOBSBAWM, 1975). Contu-
do, o próprio fato da degradação nas condições de vida que trouxe consigo
a crise, em particular no sul da Europa (nos países denominados deprecia-
tivamente como PIGS pelo Financial Times e outros meios de comunica-
ção, para fazer referência a Portugal, Itália, Grécia e Espanha) e a propaga-
ção de novidades que implica o processo de globalização, permitiu atender
com especial interesse ao que sucede ou sucedera, em outras regiões do
mundo, em particular na América Latina. Por isso, e assim o manifestam
alguns dos seus líderes, pela primeira vez os movimentos sociais e políti-
cos de protesto cívico, na rua, para denunciar os abusos do poder nas suas
diferentes formas ou a ideia de movimento de massas, reconhecem uma
inspiração inicial nos exemplos proporcionados por Brasil, Bolívia, Equa-
dor, Argentina etc. Sem dúvida, também na Geografia o protesto e a força
das nações emergentes deixam a sua pegada na Europa, especialmente nos
territórios mais vulneráveis, onde a degradação das condições de vida des-
de o ano de 2008 foi notável (LOIS; PAUL, 2013).
Junto aos emblemáticos indignados e lutadores contra os despejos, os
movimentos sociais urbanos de massa na Espanha também apresentam
outras formas menos inovadoras, mais clássicas. Este é o caso das lutas por

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72 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

melhorias nos bairros, que em algumas cidades se tornaram movimen-


tos que bloqueiam as grandes obras públicas realizadas pelos municípios.
No Gamonal em Burgos, Plaça de Lesseps em Barcelona, Rekaldeberi em
Bilbao etc., os vizinhos mobilizaram-se para reivindicar a cidade dos cida-
dãos (LEFEBVRE, 1968), com espaços públicos de lazer, onde brinquem as
crianças, com mais serviços públicos e gastos sociais (ASOCIACIÓN DE
FAMILIA DE REKALDEBERRI, 2010; BERNAL, 2014; ESTÉVEZ, 2014).
Estes movimentos consistem em uma contestação direta aos planos de ur-
banização, de construção do urbanismo neoliberal que necessita do espe-
táculo, impulsionado por distintas administrações. Em um plano distinto,
os cortes nos serviços públicos também geraram outros tipos de movimen-
to (articulado nas clássicas manifestações, greves etc.) que procuravam a
sua singularidade ao mobilizarem-se aos domingos, como a “Marea Blan-
ca” (pela cor das batas do pessoal sanitário), que levou dezenas de milhares
de madrilenhos às ruas contra as tentativas de privatização dos hospitais.
Esta tentativa de privatização parcial da saúde pública paralisou-se nos
tribunais, convertendo-se no movimento mais adequado de luta urbana
contra o desmantelamento do Estado de Bem-Estar.

Uma proposta de classificação dos movimentos sociais


urbanos na Espanha: da resistência à mudança de
modelo econômico, do local ao global

A partir dos movimentos sociais urbanos mais emblemáticos da Espanha


atual, estabeleceram-se oposições básicas entre o mundo dos protestos e o
mundo do poder, que nas suas diferentes formas e espacialidade se apresen-
tam como o outro polo de referência (ALLEN, 2003). A dialética estabele-
cida opõe a verticalidade à horizontalidade, meios oficiais de comunicação
ao uso livre das redes sociais, normas à criatividade, urbanismo espeta-
cular ao direito ao bairro e aos espaços comuns, obrigações financeiras ao
direito a uma moradia digna, cidade do capitalismo serôdio à cidade dos
cidadãos, e assim poderíamos continuar. Também é importante frisar ou-
tro fato: os movimentos sociais surgem e expressam-se na cidade, nos seus
espaços centrais e simbólicos, chegam a estender-se para as suas periferias,
mas não alcançaram quase nenhuma importância nas áreas rurais, que
permanecem distanciadas dos cenários de conflito gerados pela crise. Para

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 73

estabelecer uma tipologia dos movimentos urbanos, partiu-se do local, o


concreto, a resistência a intervenções percepcionadas como agressões para
culminar nas reivindicações e nas demonstrações de força mais genéricas,
e ideológicas, que também foram acolhidas nas cidades de toda a Espanha.
1. O primeiro tipo de movimento, atendendo à escala e à motivação que
os justifica, englobaria aqueles que afetam o próprio bairro de resi-
dência. Concentram-se no local, ligam-se com a enorme tradição do
movimento de vizinhos que há no país desde 1960, e procuram con-
frontar políticas de remodelação urbana desenvolvidas pelos poderes
locais. Estes movimentos de bairro opuseram-se a luxuosas reinter-
pretações de praças em Lesseps (Barcelona) ou Rekaldeberri (Bilbao),
ou à construção de modernas avenidas no Gamonal (Burgos) (ASO-
CIACIÓN DE FAMILIAS DE REKALDEBERRI, 2010; BERNAL, 2014;
ESTÉVEZ, 2014). Em função destes três exemplos deduz-se: um en-
raizamento da comunidade intraurbana, que sai à rua para defender o
que é seu; uma rejeição do urbanismo de embelezamento, sustentado
em custosas obras; uma agenda alternativa centrada na reivindicação
dos investimentos básicos em serviços de proximidade e uma poten-
ciação dos espaços de lazer coletivo, que favorecem a socialização. As
reivindicações sempre implicaram o bloqueio de obras ou remodela-
ções em curso, as manifestações (com posterior negociação, como em
Barcelona, ou com distúrbios violentos, como em Burgos) e o exercício
insistente da pressão sobre o poder político local, que, no final, e dada a
magnitude do protesto, cede. Referiram-se três exemplos de sucesso da
vizinhança, que estimularam a proliferação de outras lutas do mesmo
tipo em distintas cidades, sob o denominador do “bairro ao serviço dos
seus habitantes”.
2. O segundo grupo são movimentos que reivindicam direitos básicos
como moradia, emprego, educação ou saúde universais. Neste caso,
não se circunscrevem a um bairro concreto. Formulam-se a nível de
toda a Espanha e com bastante frequência à escala da Comunidade
Autônoma ou da cidade. Pelo que se refere à moradia ou ao emprego, as
reivindicações estenderam-se pelo conjunto do território, se bem que
chegaram a produzir-se encadeamentos de protestos quando vários
casos de despejos se sucederam em lugares próximos entre si, ou as
demissões em determinadas empresas provocaram um forte aumento
do desemprego numa localidade. Frente a estes acontecimentos, pres-

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74 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

siona-se diretamente as autoridades regionais para que intervenham,


já que consideram que é uma escala de governo com capacidade de
decisão, não muito distante dos cidadãos, e que portanto se pode con-
dicionar. Assim, as curralas - mulheres com filhos dependentes e sem
habitação - conseguiram algumas vitórias em Andaluzia (CORRALA
DE VECINAS LA UTOPÍA, 2014; INFORME INTERCOMISIÓN VI-
VIENDA SEVILLA 15M, 2014; MAS QUE UNA CASA, PROCESOS
COLECTIVOS DE VIVIENDA, 2014), ou o fato dos governos autô-
nomos terem forçado a assinatura de Expedientes de Regulación de
Emprego benéficos em algumas empresas. A este respeito, é impor-
tante precisar que as corralas são formas de ocupação de conjuntos
residenciais vazios ou de propriedade pública, lideradas por mulheres
com famílias e filhos a seu cargo, relembrando o antigo urbanismo de
pequenas vivendas com pátios comuns das cidades espanholas (Figu-
ra 5) (ZOIDO et al., 2013). Em relação à defesa dos serviços públicos,
os movimentos adotam um perfil mais convencional de defensa do
Estado de Bem-Estar, com grandes greves e manifestações, particu-
larmente intensas nas Comunidades Autônomas que se destacavam
pelas suas intenções de cortar o gasto público e/ou de privatizar os
serviços à cidadania (a região de Madri foi a mais contestada nestes
temas) (MATÍN, 2013).

Figura 5. A corrala Utopía

Fonte: Google Imagens.

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 75

3. Em terceiro lugar, distinguem-se os movimentos de reivindicação da


democracia direta e a cidade para os cidadãos. Como se pode deduzir,
estamos perante os sinais de identidade dos indignados e das mareas
cidadás. Se no primeiro tipo estabelecido encontrávamo-nos perante
a defesa coletiva do próprio bairro e da capacidade comunitária de in-
tervir nele, neste caso as palavras de ordem são mais amplas e difusas.
Não se centram num bairro, numa cidade ou território, são gerais e,
tal como assinalamos, usam intensivamente as redes sociais (TORET,
2013); só a partir daí se concretizam em determinadas situações (am-
pliar as zonas verdes, criar espaços públicos de debate e convivência,
mudar o governo local etc.). A escala é fundamentalmente a nacional,
pois consiste em que um conjunto de protestos convergentes chame a
atenção e tenha sucesso. Posteriormente, após a hipotética vitória, ar-
ticula-se uma forma distinta de governo urbano e territorial com este
objetivo, ocupam-se ruas, praças públicas, solo vazio e edifícios ou es-
paços abandonados; procura-se criar espaços de dissidência conectados
em rede (SANTOS, 2002; CASTELLS, 2012). Desde estes espaços exer-
ce-se a autêntica cidade dos cidadãos, enunciada por H. Lefebvre e de-
fendida por numerosos pensadores espanhóis. O próprio fato de ocupar,
de propor alternativas, implica, do ponto de vista dos organizadores do
movimento, um exercício de democracia direta (Manifesto Democracia
Real Ya, 2011; RAZQUIN, 2013). Uma democracia real e radicalizada
(controlada a partir das assembleias), que se contrapõe às formas clássi-
cas (e corruptas) da política tradicional. Para compreender esta última
proposição, deve-se lembrar que o desprestígio dos líderes políticos e
governamentais na Espanha atingiu o seu nível máximo desde 2012
(CIS, 2012-2014), devido à combinação entre crise econômica e dezenas
de casos políticos condenados por corrupção a diferentes níveis.
4. Como derivação da tipologia de movimentos anteriores, na agenda
do protesto introduziu-se o tema dos comuns urbanos. Não se trata
de uma questão central, mas sim persistente e que necessitará de um
comentário devido ao seu caráter eminentemente geográfico referido
à própria concepção da cidade. A relevância da propriedade comunal
urbana é lembrada por D. Harvey na sua obra recente (HARVEY, 2012)
e na Espanha afirma-se como oposição frontal aos excessos do urbanis-
mo capitalista e ultraliberal. Se os vizinhos de um bairro são capazes
de deter um grande projeto construtivo ou de ocupar edifícios abando-

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76 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

nados, é possível que possam gerir a partir de um novo comunitaris-


mo. Isto desenvolveu-se em exemplos diversos, como o Campo de La
Cebada no bairro La Latina ou “Esta es una Plaza” em Lavapiés, ambos
bairros populares de Madri, junto a alguns outros casos que tiveram
lugar em Lleida, Saragoça etc. (BELLET; CANOSA, 2014). O retorno à
propriedade, ou à gestão, de vizinhos realiza-se em lugares concretos,
mas apresenta uma leitura mais política e geral de reivindicação do co-
letivo frente ao privado, do direito a dizer e a gerir democraticamente
os territórios que todos estes movimentos sociais levantam como uma
das suas principais bandeiras.
5. Por último, encontramos os movimentos urbanos na Espanha que pos-
suem um caráter crescentemente político, centrados em erguer uma
grande mobilização que alcance o poder. Nestes casos, denuncia-se a
ilegitimidade dos governos, com uns representantes que em princípio
traíram a vontade popular ao descumprir os programas eleitorais com
que se apresentaram às eleições, ou ao serem obrigados a abandonar as
suas promessas pelas pressões que geraram a crise econômico-financei-
ra (Manifesto Democracia Real Ya, 2011; RAZQUIN, 2013). Assim, os
milhares de pessoas que saem às ruas e rodeiam o Congreso dos Depu-
tados, em um desafio frontal ao poder legislativo, e que realizam scra-
ches (concentrações ruidosas diante do domicílio de algum governante)
ou que exigem eleições com um caráter imediato, enquadram-se neste
tipo de mobilização. Os lugares destes protestos voltam a ser os centros
urbanos (todos os movimentos sociais analisados reforçam a centrali-
dade de determinados setores da cidade), particularmente as sedes de
instituições. Frente ao poder instalado, a oposição manifesta-se, realiza
assembleias, constrói espaços dissidentes diante dos edifícios monu-
mentais simbólicos. Muitas vezes pode-se entrar neles, como expressão
material de que se procura conquistar e refundar o governo do país,
sempre desde um lugar central urbano.

Na última palavra do parágrafo anterior emprega-se a expressão ur-


bano, uma vez que, como já aqui se referiu, a mobilização social, na Es-
panha do presente, concretiza-se nas cidades. Então, importa perguntar
por que o rural permaneceu quase totalmente passivo em contraste com
outros exemplos. As razões são várias, mas começam pela constatação de
que as povoações e aldeias de base campesina sofreram com muito menor

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 77

intensidade à crise. Os índices de desemprego são superiores nas áreas que


viveram a bolha imobiliária, espaços urbanos e litorais, a solidariedade dos
vizinhos modera os efeitos dos cortes no Estado de Bem-Estar e não existe
um autêntico problema de acesso à moradia (nem despejos). Por isso, as
condições materiais são diferentes. Mas também importa assinalar que o
rural na Espanha é o espaço de pequenos e médios proprietários que, mal
ou bem, foram se adaptando a uma economia de mercado muito regulada
pela União Europeia (MÉNDEZ; MOLINERO, 1993; GIL; GÓMEZ MEN-
DOZA, 2000). Há crises de preços e produtivas no setor agrário, mas nun-
ca desembocam em situações demasiado dramáticas, como na América
Latina, por exemplo. De qualquer forma, onde a pobreza rural poderia ter
sido um problema, entre os jornaleiros sem terras de Andaluzia e Estrema-
dura, os governos da democracia arbitraram um Plano de Emprego Rural
(PER) que, mediante um mínimo de dias de trabalho, permite aceder a um
salário social que cobre as necessidades básicas. Este PER e outras políticas
de desenvolvimento rural provocaram um auge do clientelismo político,
em relação aos governadores municipais e outros dirigentes locais, que se
traduz numa clara escassa mobilidade dos atores públicos, elevadas taxas
de reeleição dos líderes e na notável diminuição dos conflitos do campo
em todo o país.
Sem dúvida que a mobilização coletiva analisada supôs um despertar
crítico, da vizinhança, político e antiliberal da sociedade espanhola; uma
sociedade ativa que se concentra nas cidades e nos restantes núcleos urba-
nos. O mais importante desta vaga de demonstrações consiste, no nosso
entender, em três aspetos centrais. Primeiro, o caráter entre o tradicional e
o moderno destes movimentos. Por um lado, trata-se de formas de luta já
conhecidas (manifestações, ocupações, ações rápidas num lugar etc.), mas
que introduzem as TICs para serem mais efetivos (convocatórias através
do celular, encontros, retransmissão direta dos eventos etc.). Em segundo
lugar, o forte conteúdo social e reivindicativo dos protestos: contra a perda
de direitos de moradia, a corrupção política e econômica, o desmantela-
mento dos serviços públicos etc. Estamos perante um protesto inequívoco
de defesa dos direitos da cidadania, uma cidadania urbana, muito no sen-
tido que H. Lefebvre definiu há várias dezenas de anos. Em terceiro lugar, o
conteúdo político-ideológico e multiescalar das mobilizações. Trata-se de
denunciar os excessos do capitalismo na sua vertente neoliberal e os cortes
dos direitos coletivos para favorecer uma ordem financeira pouco com-

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78 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

preensível. E isto pode ser feito desde o lugar concreto (bairro, empresa e
moradia como lugar de luta) até a escala de poder nacional e global (que se
afirma, deve-se mudar já)

Conclusões

Ao longo deste artigo, pretendeu-se abordar uma Geografia de contrapo-


der que na Espanha atual é simbolizada pelos movimentos sociais e ur-
banos. Os mesmos, seguindo os antecedentes de 1968 e de diversos tipos
de protestos antiglobalização ou alternativos, procuram criar espaços de
dissidência, de contestação contra o estado habitual das coisas. Trata-se
de mudar a cidade, num contexto onde a mobilização é maioritariamen-
te urbana, como um passo mais na mudança geral, de ordem econômica
e democrática, que se procura. A cidade volta a ser o espaço compacto,
edificado, com praças e lugares centrais emblemáticos que se devem ocu-
par. A sociedade em rede e de fluxos permite gravar, transmitir, comuni-
car as reivindicações de forma imediata para outros locais, criar novos
focos de dissidência e de construção de alternativas ao poder estabelecido.
Muitos movimentos mantiveram e mantêm uma posição de defesa
diante do que se entende como agressões. Uma obra pública indesejada, os
cortes de serviços médicos ou o encerramento dos estudos na universidade
acabam por gerar protestos que reforçam o sentimento de bairro ou de ci-
dadania ameaçada pela crise do Estado de Bem-Estar. Não obstante, à me-
dida que nos aproximamos ao presente das mobilizações sociais urbanas,
estas tornam-se mais políticas. Consideram que para reverter o estado de
crise, e para mudar uma democracia insuficiente, é preciso que se organi-
zem em mareas cidadás ou em partidos-movimento, como explicitamente
afirma o grupo PODEMOS, que aumentou bastante a sua popularidade
depois do seu êxito nas Eleições Europeias de 2014. A construção de espa-
ços de contestação nas cidades deve então complementar-se com exercício
massivo do voto para transformar a representatividade política. Sem dú-
vida, um número crescente de indignados defende que se deve passar dos
espaços de dissidência aos institucionais, do social e urbano ao político e
governamental para modificar as regras de jogo estabelecidas.
Como se tratou de demonstrar, a profunda crise econômico-financei-
ra espanhola mudou as pessoas, reforçou o sentimento de cidadania e a

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Os movimentos sociais urbanos na Espanha e o seu renascimento após 2010 79

reivindicação de direitos que estão entrelaçados: ao bairro, à cidade, aos


serviços públicos, à decisão, a uma democracia real já etc. Assiste-se, e isto
é muito relevante na Geografia, a uma reterritoralização do país com novo
valor adquirido pelo urbanismo consensual, aos espaços públicos, à cidade
central e compacta, e aos lugares institucionais do poder. O território é
das pessoas que, contudo, acentuam a sua concentração em determina-
dos espaços para defender as suas posições críticas inovadoras. Frente à
centralidade dos edifícios públicos emerge a das praças públicas e ruas
centrais, onde todos se misturam e a cidadania sai para reivindicar os seus
direitos. Perante a espacialidade vertical do poder, muitas vezes isolado em
lugares pouco acessíveis, desenvolve-se a horizontalidade das redes sociais,
das manifestações e o exercício dos debates e assembleias de rua, que sem-
pre insistem no direito a decidir e à instauração imediata da democracia
participativa.

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CAPÍTULO 5

Governança e políticas públicas


em tempos de crise

Antonio Calheiros

Breve nota introdutória

O cidadão espera do Estado respostas efetivas, dadas com eficiência e efi-


cácia, aos motivos que o explicam e justificam. Estas respostas depende-
rão do modelo de Estado que a sociedade, ou grupos minoritários em seu
nome, pretende adoptar. Estes modelos não são inócuos, dado gerarem
opções políticas concretas, de acordo com os princípios ideológicos espe-
cíficos.
As políticas públicas daí resultantes, se formatadas num cenário de um
Estado de direito democrático, obrigam a uma participação cívica de alta
intensidade, dado que desta depende a qualidade das decisões tomadas.
No entanto, tanto as políticas públicas atuais como os fundamentos e as
finalidades da ação coletiva na organização dos espaços estão a ser des-
configuradas e reconfiguradas, num quadro multiescalar de complexidade
crescente e, atrevemo-nos a afirmar, de sedes de poder voláteis, porque
dificilmente identificáveis, que encontram nas redes dominadas por elites
a casuística de um poder desproporcionado que vão conquistando e poli-
ticamente legitimando, através do domínio das instituições e do controlo
do poder político.
Daí, por oposição e no mais estrito respeito pelas exigências de um Es-
tado de direito democrático, o que nos propomos abordar são as condições
em que a participação do cidadão se verifica atualmente, assim como os
contextos interativos da mesma. Estes constrangimentos são de nature-
za diversa. Podendo outrora serem atribuídos à existência de indivíduos
entediados, formatados por famílias consumistas e conformistas, hoje as
principais ameaças emergem das dinâmicas projetadas pelo atual contexto

83

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84 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

de crise. O cidadão atual tem a noção das mudanças que se estão a registar,
até porque uma camada significativa de resistentes participa nessas mu-
danças. No entanto, estes resistentes não comungam dos mesmos valores
relativamente ao ideal democrático.
Mais que apresentar soluções, este trabalho pretende oferecer uma pa-
norâmica dos desafios e das ameaças que se estão a viver, porque só assim
é possível aferir as possibilidades de revitalizarmos os valores da cidadania,
os quais se traduzem no respeito pelos direitos pessoais (saídos da Revolu-
ção Francesa de 1789) e pelos direitos civis (1948).

A participação cívica como condição necessária


a uma boa governança

Com a crise do Estado Social e do modelo de planeamento indicativo, as


funções sociais, económicas e políticas1 do Estado têm vindo a ser questio-
nadas, combinadas e redesenhadas, balizadas por opções que oscilam en-
tre o Estado maximalista e o Estado minimalista, o qual, na sua expressão
extrema, pode assumir a forma de anarcocapitalismo.
É neste contexto de crise que surge o paradigma da governança, o
qual exige abordagens multidisciplinares, provenientes de áreas cientí-
ficas tão diversas como a política, a economia, a sociologia e a geografia.
Esta transversalidade resulta da intrínseca afinidade entre o conceito de
governança e o conceito de desenvolvimento. Este novo paradigma pre-
tende responder à crescente procura coletiva de bens e serviços, num
contexto de incerteza e racionalização de recursos; assim como impedir
situações de conflito que possam conduzir à ingovernabilidade, fruto da
asfixia institucional dos organismos do Estado. Neste contexto, deve-
-se reforçar a capacidade de intervenção da sociedade civil, reformar o
sistema político-institucional, recuperar a centralidade da cidadania e
criar uma cultura de decisões e responsabilidades partilhadas, capaz de

1 Era expectável que, para os defensores do Estado minimalista, a função política do Es-
tado fosse inalienável. No entanto, a recente polémica com os vistos Gold em Portugal e
noutros países da periferia europeia, cujas consequências mais extremas podem advir de
Malta, veio a demonstrar cabalmente que a cidadania pode ser comercializada, mesmo
que isso coloque em questão a segurança interna dos cidadãos.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 85

enquadrar e gerir as acções dos diferentes actores que são chamados a


participar na acção governativa.

Breve incursão pelo universo da governança

Este conceito deriva diretamente da tradução do termo inglês governance2,


que é “traduzido nalguns casos por governação e noutros por governo em
rede, governo relacional ou governança. Sem dúvida, esta última acepção
é a que pouco a pouco se vai introduzindo no discurso quotidiano das
nossas sociedades” (SALGADO, 2005, p. 7).
Retirado concretamente da expressão corporate governance, estava ini-
cialmente associado à área da economia. Era utilizado para dar a imagem
da empresa como um sistema aberto, em constantes interações com o meio,
do qual recebia informações sobre os outputs que deveria produzir para a
satisfação das necessidades sociais. Como sistema aberto, necessitava de
ser constantemente retroalimentado e, nesse sentido, a sua sobrevivência
dependia da correta articulação entre a visão executiva que se lhe impu-
nha, com a mobilização de recursos em torno de projectos estratégicos
partilhados. Consequentemente, a governança de uma empresa não de-
pendia apenas dos resultados obtidos pelos seus executivos, mas do contri-
buto dado por todos os seus colaboradores (STEINBERG, 2003).
Este conceito, porém, veio a ser assumido por outras áreas científicas,
nomeadamente aquelas que tratavam de questões relacionadas com o de-
senvolvimento. Para esta transição muito contribuíram as instituições li-
gadas ao Bretton Woods (Banco Mundial e FMI), as quais se assumiram
como as principais responsáveis pela divulgação deste conceito. Ao tornar-
-se abrangente, transformou-se numa noção equívoca, porque aplicada a
realidades e escalas diversas.

Pode afirmar-se que não existe um conceito único de governança, para


além de uma noção muito geral, sendo susceptível de ser aplicada a reali-
dades tão díspares como as instituições e regimes internacionais, a admi-

2 Este termo deriva, em última análise, do latim gubernare, que se traduz por “governar”,
“guiar” e “dirigir” (STEINBERG, 2003).

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86 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

nistração local, as organizações supranacionais, o desenvolvimento eco-


nómico, as corporações, a implementação da nova gestão pública, novas
práticas de coordinação de actividades e através de redes, partenariados,
foros deliberativos, etc… (ALVAREZ et al., 2006, p. 31-32).

Esta mesma indiferenciação é assumida por Kauffman, Kraay e Zoido-


-Lobatón (1999, p. 1) quando definem genericamente a governança como

[…] o conjunto de tradições e instituições através das quais a autoridade


é exercida num país (num território). Isso integra o processo através do
qual os governos são escolhidos, fiscalizados e substituídos, a capacidade
de formular e implementar efectivamente políticas sólidas e o respeito dos
cidadãos e do Estado pelas instituições que regulam as interacções econó-
micas e sociais entre ambos.

Como facilmente podemos deduzir, esta definição fixa as característi-


cas mais relevantes de uma boa governança.
Cabe aqui dizer que subjacente ao conceito de governança está a afir-
mação, também ela ideológica, de que, numa sociedade com o nosso grau
de complexidade, o Estado não se basta a si próprio. Isto ajuda a entender
que “a evolução das transformações do Estado contemporâneo resume-se
[…] não só à sucessão dos paradigmas de Estado (Estado activo ou de bem
estar/Estado mínimo/Estado facilitador), mas também aos paradigmas de
política administrativa associados (clássico burocrático/nova gestão públi-
ca/nova governança)” (CRUZ, 2009, p. 33). A partir desta constatação, evo-
luíram duas tendências: a governança tradicional e a governança moderna.
A primeira defende a centralidade do Estado em termos de governação,
direção e controlo; ao passo que a segunda proclama que a sociedade está
capacitada para gerir muito dos seus interesses sem a intervenção do Es-
tado, o qual é assumido como estorvo, quando deveria ser um facilitador.
Mas a governança também pode ser entendida como um processo so-
cial (societal governance), estabelecido entre os diferentes agentes mode-
ladores do território. Este processo ocorre numa sociedade supostamente
marcada pela diversidade, complexidade e dinamismo, e tem subjacente a
afirmação de um governo interativo marcado pela diferenciação, interação,
integração, cooperação, autonomia e interdependência. Afirmamos supos-
tamente porque essa heterogeneidade societal, como veremos mais adiante,

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 87

está longe de ser consensual entre os diferentes analistas, situação esta que
nos obriga a definir o nosso posicionamento.
Outro aspecto a reter, sobretudo junto daqueles que defendem a prima-
zia do mercado, é o de que nenhum ator é autossuficiente (seja em recur-
sos ou conhecimento) ou suficientemente forte para se impor aos outros e
assumir o governo da sociedade (SALGADO, 2009). Não esconderá esta
percepção uma ideologia concreta, capaz de explicar apenas uma pers-
pectiva, e não o panorama global? A resposta a esta pergunta terá de ser
encontrada na confluência entre a repartição e a concentração de pode-
res. Este novo mundo, que alguns assumem como tendencialmente plano,
tem fomentado a emergência de novos centros de poder; mas a visão opti-
mista que lhe está subjacente, assim como a denúncia de variáveis e cená-
rios que lhe podem ser hostis, deixa antever a inegável clivagem entre as
novas territorialidades e espacialidades, com as injustiças daí decorrentes,
malgrado a imensa confiança na bondade resultante de uma competiti-
vidade extrema (FRIEDMAN, 2006). Assistimos, tal como é referido por
muitos autores, a uma concentração excessiva de poder, onde os objetivos
da elite global amplia continuamente a sua riqueza e o seu domínio, dado
ser aquela com maior capacidade para aproveitar as oportunidades de-
correntes da globalização, condiciona as opções dos decisores políticos
e influencia a vida de milhares de cidadãos (ROTHKOPF, 2008), de um
modo particular, dada a sua distância ao poder, todos aqueles excluídos
das dinâmicas do omnipresente mundo plano e dos seus benefícios dele
derivados (FRIEDMAN, 2006).
Estas dinâmicas denunciam a crescente volatilidade da erodida fron-
teira entre a sociedade civil e o Estado, a qual passa por processos de trans-
formação constante, ordenamentos sucessivos e permanentes fusões, daí
resultando a dificuldade analítica de definir-se onde começa e acaba o Es-
tado. Em concreto sabe-se que a nova forma de governo é caracterizada
pelo governing as governance, ou seja, governar como ou em governo, dito
por outras palavras, em cogovernança. Daí resulta a combinação e a alter-
nância entre três tipos de governança: cogoverno, autogoverno e governo
hierárquico.
Tais dinâmicas, alternâncias e combinações colocam em destaque o ca-
rácter relacional da governança. A essência deste conceito assenta na exis-
tência de redes de interação interorganizacionais e auto-organizadas, inte-
gradas pelos diferentes atores público-privado-civil e as escalas glocais. Estes

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88 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

atores interagem entre si e, baseados na confiança e em regras do jogo nego-


ciadas e acordadas entre todos os participantes da rede, promovem planos
conjuntos com vista à obtenção de determinados objetivos em comum e à
satisfação dos diferentes interesses em jogo. As redes assumem também uma
função importante, dado funcionarem como elementos de coordenação in-
formal, combatendo os desfuncionamentos organizativos e favorecendo não
só o ajuste entre os diferentes órgãos de administração do Estado, como
também os ajustes entre estes e a sociedade civil. Dado ser hoje difícil fazer
a separação entre os poderes públicos e privados, compete ao Estado, den-
tro do jogo interativo que se vai estabelecendo, fomentar o aparecimento de
redes ou ajudar as já existentes e, assumindo uma atitude positiva, procurar
mobilizar recursos e competências que estejam dispersas entre os diferentes
atores a operarem nas respectivas redes (SALGADO, 2009).
O conceito de rede é essencial na escolha de parcerias, as quais se as-
sumem cada vez mais como importantes instrumentos de governança em
matéria de políticas públicas, sobretudo quando se opera em contextos de
elevada especialização, inovação, rapidez, flexibilidade e, por último, de
alargamento do alcance de intervenção (GOLDSMITH; EGGERS, 2004).
É também importante para o estabelecimento de políticas comuns, da ava-
liação dos resultados, das dinâmicas, das dependências e das relações que
se vão estabelecendo na natureza e na estrutura das redes. Para além disso,
a governança não pode se basear numa estrutura de gestão centralizada,
que encontra na autoridade hierárquica, profundamente formal e reprodu-
tiva do status quo, os fundamentos da sua atuação. Antes, pelo contrário,
ela tem de estar apoiada na negociação, na persuasão e na lealdade (fator
crítico de sucesso que exige e expressa elevados índices de capital social3)
como meios absolutamente necessários à elaboração e implementação de
planos conjuntos. Quando assim ocorre, estão garantidos os princípios da
subsidiariedade social e horizontal, que favorece as iniciativas e a partici-
pação dos diferentes atores, a responsabilização dos mesmos e a redistri-
buição de cargos, funções e tarefas entre os agentes públicos e privados
(SALGADO, 2009).

3 Entendemos por capital social os laços que se estabelecem “entre pessoas numa unidade
social que enriquecem tanto as pessoas como a unidade em virtude de serem fundados
em boa vontade, valores partilhados e interacções que são suficientemente frequentes para
dar expressão aos valores partilhados” (ROSENAU, 2010, p. 169).

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 89

Consequentemente, as diferentes instituições procuram parcerias in-


ternacionais para se afirmarem, assim como os territórios nos quais estas
se localizam, em escalas cada vez mais alargadas. Estas redes permitem-
-lhes aceder rapidamente à informação e participarem, ou influenciarem,
as tomadas de decisão.

Embora sempre tenham havido redes hoje elas são distinguidas por terem
um potencial para serem massivas em escala e, como tal, para reorganiza-
rem as práticas e processos da política. Contar o número de redes, ao até
mesmo estimar aproximadamente o seu número, é extremamente difícil,
mas sabemos o suficiente acerca da sua natureza e das funções que exe-
cutam para estarmos confiantes de que se tornaram uma característica
principal da cena mundial […].
Segue-se que os participantes em redes estão não só familiarizados
com os processos de fragmentação como são também jogadores-chave
nesses processos. Colectivamente podem contribuir tanto para a integra-
ção das comunidades como para a sua quebra. De facto, uma vez que a
maioria dos participantes em redes estão provavelmente envolvidos em
mais do que uma rede, eles poderão estar a ajudar a fomentar a integra-
ção com respeito a alguns assuntos enquanto simultaneamente auxiliam o
avanço da fragmentação noutros assuntos (ROSENAU, 2010, p. 174).

As redes assim formadas apresentam basicamente três tipos de estrutura:


a rede estratégica (onde o chefe de fila capta, analisa e processa a informa-
ção para os diferentes parceiros); a rede linear (mais descentralizada e onde
a coordenação não é tão visível) e a rede dinâmica, composta de redes re-
gionais (rede híbrida que integra elementos das duas anteriores) (CORRÊA,
1999). A sua complexidade, porém, não permite que estas possam ser ana-
lisadas isoladamente. Neste sentido, Mance (2002) apresenta também um
modelo de três configurações (centralizada, descentralizada e distribuída),
mas reafirmando que estes modelos estão integrados. Esta integração tra-
duz-se num modelo tridimensional, com processos simultâneos, em cada
célula, de centralização, descentralização e distribuição; células estas que em
rede poderão atuar, por processos de realimentação sobre outras, de acordo
com movimentos integrativos. Existe o propósito, como pano de fundo des-
tas redes de cooperação, das mesmas serem estabelecidas e geridas de acordo
com o planeamento estratégico firmado entre os diferentes parceiros.

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90 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Inerente à questão da governança está o processo e a escolha do modelo


de tomada de decisão. Se relativamente ao processo existe consenso quan-
to aos passos específicos a dar4, no que diz respeito ao modelo (decisão
individual ou em grupo) a questão não se coloca, dado que só a decisão em
grupo permite responder à complexidade dos sistemas, a qual exige uma
visão multidisciplinar, muito difícil de encontrar numa só pessoa. Não se
nega que, a nível operacional, as decisões individuais possam ser mais efi-
cazes. No entanto, a nível estratégico exige-se um somatório de saberes
capazes de enriquecer a definição dos objetivos e a identificação, avaliação
e escolha de diferentes alternativas. Relativamente à implementação des-
tas, estamos de acordo, dada a tendência natural para a pulverização das
responsabilidades, que esta fase seja assegurada por gestores individuais.
A qualidade daí resultante dependerá sempre do consenso crítico apurado
pelo grupo (DONNELY; GIBSON; IVANCEVICH, 2000).

Por último, e em relação com as vantagens e novas oportunidades que este


novo paradigma de governo em rede é capaz de gerar de acordo com uma
participação cidadã nos assuntos que lhe dizem respeito, convém adver-
tir contra possíveis perversões que possam produzir-se. Uma delas está
relacionada com a composição, estrutura e dinâmica das próprias redes,
as quais terão de ajustar-se o mais possível a critérios de participação e
de proximidade, configurando redes de governança permeáveis, plurais,
inclusivas e transparentes. Como se referia anteriormente, o conceito de
governança é consubstancial com a ideia de inclusão, participação, aber-
tura e centralidade cidadã, pelo que seria dificilmente justificável a confor-
mação de redes altamente restrictivas no seu acceso, elitistas na sua com-
posição e opacas e de responsabilidades indefinidas no seu funcionamento
prestação de contas (SALGADO, 2009, p. 16).

Burns e Carson (2003) distinguem ainda entre a governança neocorpo-


rativa, pluralista e de redes temáticas. O modelo neocorporativo enfatiza

4 Metodologia utilizada na tomada de decisão é muito idêntica à teoria do processo de pla-


neamento, apresentando as seguintes fases: identificação e definição do problema; desen-
volvimento de soluções alternativas; avaliação das soluções alternativas face a condições
de certeza, incerteza e risco; eleição das alternativas; implementação, avaliação e controlo
das alternativas selecionadas.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 91

a articulação de interesses através de relacionamentos estáveis e altamen-


te organizados entre o governo e as organizações setoriais da sociedade
civil. O Estado é substancialmente intervencionista face à economia e à
sociedade, moldando, gerindo e restringindo as relações e os comporta-
mentos dos grupos de interesses que se formam dentro das suas fronteiras.
Nas negociações dos sistemas neocorporativistas, até os grupos de pressão
periféricos podem ser envolvidos nos processos de consulta, negociação
e tomadas de decisão. Pese o facto de a extensão e a qualidade do envol-
vimento poder variar, estes mesmos grupos podem concertar estratégias
com grupos semelhantes.
No sistema pluralista, os grupos de pressão periféricos têm poucas
oportunidades no processo de consulta, negociação e tomada de decisões,
a não ser que se constituam ou encontrem uma estrutura organizacional
relevante, ou seja, com muito poder económico e peso político. Assim sen-
do, só os lobbies mais poderosos é que poderão ditar regras e impor políti-
cas, muito para além dos interesses minoritários ou até maioritários, ape-
nas cedendo, por vezes táctica e temporalmente, a grupos cívicos, partidos
políticos, manifestações de massas e notícias mediáticas.
Por último, a governança apoiada nas redes temáticas aproxima-se da
ideia de redes abertas. Estas redes não possuem um único ponto nuclear
ou centro dominante, onde os atores negoceiam e fazem acordos. Segundo
estes autores, tais estruturas são policêntricas: existem vários centros, tipi-
camente heterogéneos, em vez de uma homogeneidade das relações ou um
centro nítido de negociação transversal de poder na rede.
Podemos concluir que as novas formas de fazer políticas públicas as-
sentam nas parcerias público-privadas. Esta inversão surge-nos como
consequência da crise económica, da descentralização e, supostamente
porque verbalizada, mas não demonstrada, da necessidade sempre cres-
cente de maior transparência e eficácia. Verifica-se um alargamento das
responsabilidades locais, através da transferência de competências para
a pluralidade dos atores que irão corporizar o projeto. Isto é realizado
através de um intrincado jogo de expectativas e negociações que forma-
tam a construção de uma ação coletiva, orientada para a obtenção de
objetivos concertados num quadro de pulverização de interesses. Esta
pulverização de interesses torna-se perigosa quando verificamos que, a
exemplo da Idade Média, emerge uma crescente anomia, a qual se traduz
em atitudes demissionárias face ao exercício do poder, ou seja, constata-

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92 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

-se uma dissociação entre o sistema de poder, com os seus subsistemas


de controlo, e os agentes que corporizam os interesses locais numa ló-
gica de efetivação de objetivos partilhados. Estes objetivos partilhados
espelham a complexidade de atos humanos, que preconizam a afirma-
ção individual e coletiva num quadro de criação de condições efetivas
à realização de todos os homens e do homem no seu todo. Os efeitos
perversos, num quadro de aprofundamento dos valores democráticos, só
poderão ser atenuados ou eliminados através da participação política de
uma sociedade civil consciente dos seus direitos e dos seus deveres face à
sustentabilidade de um património comum. Por isso, como diz Salgado
(2009), a governança não se deve confundir com a governance without
government (governar sem governo) ou com as teses neoliberais de um
Estado mínimo e abstencionista, antes como uma transformação na for-
ma de governar do Estado: um governar em parceria, com os outros e
para o proveito das coletividades, acolhendo os juízos valorativos, infor-
mativos, cognoscitivos e operativos dos diferentes atores e respondendo
eficazmente às exigências da sociedade atual. Já não se trata do Estado
que baseia a sua ação na autoridade e no controlo, mas na negociação, na
mediação, na persuasão e no acordo, assumindo um papel de facilitador,
integrador e promotor de consensos. O Estado deverá, no entender deste
autor, continuar a legislar, a defender os mais débeis, a defender os di-
reitos e a liberdades fundamentais, a criar condições para que exista, em
suma, uma sociedade apoiada na política e no direito. Por isso mesmo,
não há propriamente uma redução do papel do Estado, antes uma mu-
dança na sua forma de atuação, fruto da relativização do público.
As opções estratégicas resultantes das necessidades anteriormente des-
critas traduzem-se no imperativo de políticas públicas que promovam
condições para a eclosão de uma verdadeira cidadania. Por isso mesmo,
devemos definir os termos que equilibrem as interações sociais vigentes
com os valores democráticos que emergem da esfera pública, criando-se
condições sustentáveis para efetiva participação de cada ser humano. Re-
cusamos, por isso, a priori, qualquer posicionamento preferencial relativa-
mente a duas visões antagónicas de escolha e implementação de políticas
públicas no espaço e no território: a rigidez hierárquica e a anarquia de
mercado.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 93

A participação cívica como instrumento de decisões


democráticas partilhadas
Torna-se necessário articular, de forma justa e equilibrada, o papel do Es-
tado com as iniciativas privadas geradoras de riqueza. Esta articulação não
tem sido fácil, dadas as múltiplas opções ideológicas resultantes das com-
binações possíveis entre regimes políticos, tipos de regulação económica e
regimes de apropriação de bens (BRASSEUL, 2012). Partimos do princípio
de que o Estado, enquanto forma mais complexa de organização social,
dado existirem sociedades sem Estado, apresenta como principal vanta-
gem ser o espaço comunitário de realização individual e coletiva. Neste
sentido, assumindo sem sofismas uma posição ideológica, considerámos
o homem como centro de todas as prioridades e a justiça social como a
condição necessária à convivência humana.
Tudo isto só é possível quando se conseguir uma igualdade cívica e po-
lítica que rompa com as inevitáveis desigualdades, geradas pelas dinâmi-
cas de mercado. Neste sentido, torna-se necessário encontrar as fórmulas
mais adequadas de relacionamento entre os Estados e as diferentes orga-
nizações socioeconómicas da sociedade civil. Tal pretensão só será efetiva
através do alargamento do espaço da cidadania e da democracia direta.
Assim sendo, a participação assume-se como um relevante indicador para
uma boa governança.
Por isso mesmo, o discurso hodierno da governança elege como ele-
mentos estruturantes do sistema democrático a voice (participação), a ac-
countability (responsabilidade) e os comportamentos de exit (demissão).
O que hoje se fala, fruto das emergentes e avassaladoras dinâmicas
glocais, é já de uma cidadania pós-nacional. Esta cidadania pós-nacional
apela a uma atualização de instituições e de valores. Torna-se necessário
regular a relação entre os povos, assim como diminuir os efeitos perver-
sos que resultam das diferentes fases de desenvolvimento dos países, ou
seja, os desafios globais deveriam ter subjacentes competências territoriais
idênticas. Tais propósitos, no seio de uma sociedade integradora, só serão
possíveis quando se assumir a democracia como um projeto de base local.
No entanto, mais que os governos e as instituições, é necessário reforçar-se
a sociedade civil, enquanto espaço entre o Estado e o mercado. Torna-se
necessário espalhar a participação democrática onde esta não exista, pro-
pondo-a, e nunca a impondo.

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94 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Tendo por base estes pressupostos e procurando enquadrar a necessida-


de de participação cívica, Orea (2002, p. 113) define esta como o “dar voz
à expressão da sensibilidade e preferências da população, diretamente ou
a través dos seus representantes, em todas as fases do processo, e contar
com a sua aceitação”. Segundo este mesmo autor, a participação deveria ser
assumida já na fase preparatória da ação coletiva, no âmbito da responsa-
bilidade partilhada e em íntima conexão com:
• A sensibilização, formação e motivação de todos os agentes envolvidos
na elaboração e gestão de planos estratégicos;
• Uma comunicação fluida e fidedigna, a nível horizontal, vertical (ascen-
dente e descendente) e lateral5, de modo a que todos os agentes se sin-
tam implicados no processo e assumam um compromisso de revisão;
• A concertação de interesses entre os diferentes agentes modeladores do
território, em função das suas responsabilidades, custos e benefícios;
• O princípio da subsidiariedade6;
• O escopo principal que é a qualidade de vida.

Torna-se necessário espalhar a participação democrática onde esta não


exista, promover o diálogo intercultural, os direitos concretos dos grupos
humanos sem exceção, de modo a promovermos uma verdadeira demo-
cracia participativa de alta intensidade. Só assim poderemos dar coerência
ao sistema democrático atual e tornar possível um modelo de desenvolvi-
mento endógeno, integrado e global, dado que a comunicação e a partici-
pação política, social, cultural e económica deixa de ser apanágio de elites.
Nesta participação colocamos o justo equilíbrio entre a democracia re-
presentativa e a democracia participativa.7 Segundo Bandeira (1999), a co-
munidade deve estar implicada desde o início do processo de planeamento

5 A comunicação lateral dá-se entre diferentes níveis hierárquicos (BILHIM, 2005).


6 Convém aqui relembrar as palavras de Vaneigem (2003, p. 95) quando, referindo-se à
Declaração Universal dos Direitos Humanos, refere que “as associações de cidadania, que
o imperialismo mercantil suscitou contra ele em todo o mundo, lançaram as bases de uma
democracia direta onde o cidadão deve agora dar lugar ao indivíduo concreto. É tempo de
a luta contra a desumanidade dar a primazia a projetos de sociedade em que a humaniza-
ção do mundo e a humanização individual se confundem”.
7 A imagem mais simbólica da democracia participativa é, seguramente, o orçamento
participativo, cujo exemplo mais divulgado e assumido como exemplar é o de Porto Ale-
gre, no Brasil, já com duas décadas de existência.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 95

das políticas públicas a favor do desenvolvimento. Deve-o por diferentes


motivos, os quais passamos a enumerar:
• Permite a articulação entre as diferentes escalas territoriais (globais,
nacionais, regionais8 e locais), as quais se cruzam com as planificações
setoriais com incidência territorial, programas, subprogramas, eixos,
medidas, tipologias de ação e projetos específicos;
• Obriga a que se promovam e apoiem9 instituições com a missão de
ajudarem quotidianamente a comunidade na elaboração de políticas
públicas, sem receio de acolherem interesses privados, mas colocando
como critério de decisão a luta pelo interesse público e a exigência para
com os representantes políticos das diferentes comunidades, dado estes
serem os intérpretes da conflituosidade democrática, que encontra na
negociação o seu equilíbrio e força afirmativa;
• Apela a que se formem Conselhos Consultivos e Conselhos Delibera-
tivos, de acordo com as dinâmicas culturais ascendentes,10 onde não
se verifique qualquer efeito de dominação vertical, estejam representa-
dos os mais diversos interesses e asseguradas decisões que representem
uma sociedade dinâmica, justa e democrática.

Os argumentos utilizados a favor da participação dos actores sociais


são diversos, estando todos eles relacionados com a qualidade e a sustenta-
bilidade da democracia, a saber:
• Escutar as partes afetadas pelas alterações que se pretendem introduzir,
pois só assim será possível garantir a sua eficiência e sustentabilidade.
Neste sentido, devemos abandonar dinâmicas top down e promover a
participação da sociedade civil;
• A participação da sociedade civil garante a boa governança e a senda
do progresso participativo, condições necessárias para, como instru-

8 Termo ambíguo porque tanto pode designar uma entidade territorial supranacional
como infranacional. De referir ainda que as escalas territoriais divergem entre os dife-
rentes países.
9 Este apoio deve colocar-se mais no plano da legitimidade institucional de participação
que na existência de um já usual plano de um apoio financeiro destinado, a subverter a
independência de opinião; independência de opinião essencial ao reconhecimento de in-
teresses divergentes e à consensualização, o mais alargada possível, de um mosaico social
com problemas diversos, visões multidisciplinares e soluções diferenciadas.
10 Vulgarmente conhecidas por paradigma territorialista do desenvolvimento.

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96 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

mento de ação, promover-se o desenvolvimento endógeno e sustentável,


aumentar-se os níveis de justiça social e a eficácia administrativa do
Estado, através da democratização das suas ações, as quais não podem
estar dependentes de eleições ou de referendos. Para além disso, a par-
ticipação da sociedade civil pode e deve prevenir a corrupção;
• A participação promove a acumulação de capital social11 que, a par do
capital físico e do capital humano,12 ajuda a explicar as diferenças de
desenvolvimento humano entre os diferentes países e regiões;
• A competitividade sistémica (seja no seus níveis micro, meso, macro ou
meta)13 de um país ou de uma região tem conexão com os mecanismos
participativos, os quais obrigam as instituições a desenvolverem um
clima de confiança e de cooperação; a criarem as condições necessárias
para extraírem dos diversos agentes políticos os consensos, recursos e
motivações fundamentais aos processos de desenvolvimento regional/
local e, por último, a promoverem a cooperação inter-regional;
• A participação incentiva a criação de identidades regionais, condição
básica para o desenvolvimento local e regional.

Da eficácia de um quadro macroeconómico estável e servidor de po-


líticas públicas responsáveis, onde a promoção e a defesa dos sistemas de
saúde, educação e segurança social deve funcionar como um imperativo
categórico, depende a criação de condições necessárias à eclosão e manu-
tenção de ambientes sociopolíticos e culturais que respeitem os direitos
fundamentais das pessoas, respeito este capaz de permitir a cada cidadão a
participação (voice) nas economias de mercado.
No entanto, não nos podemos esquecer que esta participação não é en-
tendida e assumida da mesma forma.

11 Representa a sociabilidade e colaboração dentro de um grupo humano, tendo subjacen-


tes as redes sociais, a confiança e um quadro normativo.
12 O capital humano é um fator crítico de sucesso. “Os muito pobres estão frequentemen-
te desligados das forças de mercado porque lhes falta o capital humano necessário – boa
nutrição, saúde uma educação adequada” (SACHS, 2005, p. 127).
13 O nível micro refere-se às empresas e redes de empresas criadas pelas suas externalida-
des; o nível meso diz respeito às políticas locativas e ao papel que as diferentes instituições
assumem neste âmbito; o nível macro, como o próprio nome indica, trata das condições
macroeconómicas e, por último, no nível meta, encontramos os seguintes indicadores:
estruturas socioculturais, ordem e orientação económica e a capacidade dos diferentes
atores na formulação de visões e estratégias.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 97

A participação voluntária e individual é encorajada nas democracias mo-


dernas, mas não é obrigatória. Qualquer um é livre de agir ou não como
um cidadão, sendo a consequência um tipo discriminatório de lealdade.
Só em tempo de guerra pode o Estado mobilizar todos os seus habitan-
tes; ao contrário, as pessoas são livres de se moverem entre a vida pública
e privada. Para o liberal, as leis justas permitem uma maximização da
vida privada e comercial; para o republicano, o Estado é fraco e a vida
privada incompleta sem um alto nível de participação privada. (CRICK,
2006, p. 95).

Esta complexa e melindrosa relação entre a esfera privada e a esfera pú-


blica volta hoje, devido à crise da democracia representativa, a estar na or-
dem do dia. Para esta crise muito tem contribuído a crescente degradação
do poder político, cada vez mais incapaz de assumir um papel de interlo-
cução entre o Estado, a sociedade e as empresas. Abre-se assim caminho a
uma reconfiguração das relações e das fronteiras, cada vez mais esbatidas,
entre estes três elementos. Consequentemente, o cidadão é convidado a
procurar novas formas de participação, não esgotando a sua intervenção
cívica nos atos eleitorais. As pessoas físicas e jurídicas tendem a agrupar-se
em lobbies, os quais, cada vez mais, se constituem como parceiros do poder
político. Umas vezes são parceiros, outras vezes, como resultado da perda
de confiança da sociedade civil no Estado, assumem-se como substitutos.
Estas novas realidades emergentes, caso o propósito seja o desenvolvi-
mento e a coesão, obrigam a um processo de empowerment da sociedade
civil, no qual esteja subjacente um equilíbrio de forças entre os atores en-
volvidos. Caso esteja garantido à partida este objetivo, o novo conceito de
governança pode e deve ter reflexos positivos sobre o conjunto da sociedade.

Pode porque favorece o princípio da subsidiariedade social ou horizon-


tal, segundo a qual tem de se favorecer a iniciativa e a participação dos
cidadãos, individual ou colectivamente, para a realização de actividades
de interesse comum; a “coisa pública” abre-se, assim, à sociedade civil,
propiciando uma espécie de divisão de competências entre o público e o
privado. Neste sentido, a governança pode definir-se como um método ou
procedimento capaz de fazer frente aos problemas e conflitos da sociedade,
ao propiciar, através das negociações e deliberações, o acordo satisfató-
rio e obrigatório, à vez, entre os distintos actores implicados, os quais se

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98 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

comprometem ao mesmo tempo a cooperar na aplicação dos ditos acordos.


(SALGADO, 2005, p. 19).

Governança e políticas públicas: entre fluxos e


refluxos de um contexto iteractivo

Para qualquer cidadão que se posicione no espectro ideológico da demo-


cracia, o paradigma da governança terá, no mínimo, de ser equacionado
como um instrumento possível na definição e implementação de políticas
públicas. Da conexão entre a expectabilidade e a possibilidade deste para-
digma dependerá, em larga escala, uma resposta ao problema colocado por
Dahrendorf (1996, p. 47): “que fazer (…) […] para preservar o equilíbrio
civil entre criação de riqueza, coesão social e liberdade política?”. O autor
designou esta formulação por quadratura do círculo, ou seja, uma equação
impossível.
Isto demonstra que a relação entre o mercado e a democracia não só é
complexa, como pautada por dinâmicas interdependentes e, dado os seus
princípios de funcionamento serem diversos, até antagónicas. Os efeitos da
atual crise sobre as políticas públicas colocaram em confronto os valores
da democracia com o poder casuístico de mercados poderosos, como já
atrás foi referido, embora não tão impessoais como se pretende fazer crer.14
Este antagonismo revelou os seus contornos com a crise do subprime, pe-
ríodo a partir do qual ficou bem patente a subordinação da democracia ao
capital, com os meios de comunicação social a desempenharem um papel
importante na validação deste desequilíbrio.
Centremos a nossa análise em cada um destes elementos, a começar,
desde já, na reflexão sobre os aspectos primordiais e estruturantes des-
te mercado global. Na nossa perspectiva, este articula, de modo feliz, os
instintos mais primários do ser humano com a eficácia económica na pro-

14 Rothkopf (2008) designa a elite global de superclasse. Fazem parte desta elite, com um
efetivo de aproximadamente seis mil pessoas, os líderes políticos e as altas patentes mili-
tares dos países mais poderosos, os homens dos petrodólares, oligarcas, os CEO, líderes
religiosos selecionados, principais atores das maiores praças financeiras e bancos centrais,
mafiosos, terroristas e chefes de família do crime organizado… Sabemos, assim, quem são,
quantos são e o que pretendem.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 99

dução de riqueza. “O homem é o animal apressado: fez-se depressa e tem


pressa […]. Apressemo-nos a acrescentar que […] aquelas coisas em sus-
penso, que não são feitas já nem tarde, são apenas matéria de ansiedade. E a
ansiedade é apenas a pressa a olhar para si própria” (BERA, 2005, p. 16-17).
Esta pressa que o ser humano traz dentro de si cruza-se com igual leitmo-
tiv dos processos de criação de riqueza. Desde tempos imemoráveis que o
ser humano sabe que “o poder é inseparável da riqueza e a riqueza inse-
parável da velocidade” (VIRILIO, 2000, p. 15). Se a tudo isto somarmos o
“triunfo dos valores ligados à flexibilidade, à eficiência, à produtividade, à
competitividade e à utilidade” (DAHRENDORF, 1996, p. 35), apercebe-
mo-nos, dito numa linguagem marxista, que a estrutura está a sobrepor-se
à superestrutura. Estes valores têm contribuído para a emergência de um
individualismo feroz, o qual divide claramente a sociedade entre vencedo-
res e vencidos, criando fissuras e abismos entre diferentes grupos sociais,
introduzindo factores de estabilização para os mais fortes e tornando o
plano cada vez mais inclinado para os perdedores, dado que, como bem
referiu Dahrendorf (1996, p. 32 e 36),

[…] certas pessoas (por mais terrível que seja apenas escrevê-lo) simples-
mente não servem: a economia pode crescer sem o seu contributo; seja
qual for a perspectiva em que se considerem, para o resto da sociedade
elas não são um benefício, mas um custo […]. Os ricos podem, sem elas,
tornar-se mais ricos; os governos podem ser reeleitos sem os seus votos; e
o produto nacional bruto pode continuar a aumentar indefinidamente.15

Tendo subjacente este cenário, coloca-se a questão sobre a possibilidade


da participação cidadã na definição de políticas públicas, num contexto de
criação rápida de riqueza, associado a fortes dinâmicas de compressão do
tempo e do espaço.
O problema é que esta compressão do tempo e do espaço, associada à ve-
locidade e à mudança (HARVEY, 2007), altera completamente a percepção
da realidade, a imagem que cada cidadão passa a ter de si, o modo como se

15 O Papa Francisco tem-se referido continuamente a esta massa anónima como “os des-
cartáveis”. A sua constante preocupação por este grupo sociológico tem feito deste Papa,
na nossa perspectiva, o mais destacado líder mundial na defesa dos indesejáveis a uma
economia de sucesso.

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100 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

relaciona com os outros e, daí decorrente, a natureza e a intensidade da sua


participação cívica. Esta instantaneidade, resultante da velocidade do mo-
vimento, substitui a visão do mundo, onde o tempo histórico assume um
papel relevante, pela percepção do mundo, a qual irmana o tempo real com
o tempo mundial, de acordo com os ditames da estética do desaparecimen-
to. Quanto mais célere for o movimento e a impermanência, mais forte e
atrativa é a realidade. A aceleração do movimento arrasta consigo outra
série de consequências, destacando-se entre elas a diminuição do espaço
mental do indivíduo, a substituição da reflexão pelo ativismo, muitas vezes
contrário à assimilação, e a alteração da relação entre o corpo territorial, o
corpo social e o corpo animal. O espaço geográfico comprime-se, o mun-
do encolhe e a novidade deixa de alimentar o nosso imaginário. A perda
da grandeza reproduz a claustrofobia e o encarceramento do corpo ani-
mal, perdido na esquizofrenia e no imobilismo. Tudo é próximo e estático.
O “aqui” é substituído pelo “agora”, verificando-se uma deslocalização do
espaço público para o espaço da imagem pública, desprendido da cidade,
do povoamento, ou seja, do lugar do corpo social. Consequentemente, o
indivíduo fica isolado e aumenta-se assim a tendência para a desintegração
da comunidade dos presentes em detrimento das comunidades virtuais,16
ou seja, o próximo tende para o longínquo e o longínquo a tornar-se próxi-
mo. Esta velocidade afeta o fator tempo (História), dado o presente ganhar
supremacia sobre o passado e o futuro, e a vivência do espaço geográfico,
com uma clara degradação das espacialidades (VIRILIO, 2000).
A claustrofobia existencial e a anomia social daí resultantes são refor-
çadas pela pressão vertiginosa exercida pelos meios de comunicação so-
cial. A natureza desta relação deve-nos interpelar acerca da isenção do
termo social, quando aplicado a este contexto. Estas dúvidas resultam do
cruzamento entre os aspectos formais da comunicação e a substância da
mesma. Se atendermos à etimologia da palavra comunicação, esta deriva
do latim communicare, termo através do qual se traduz a ação de “tor-
nar comum”, “partilhar”, “conferenciar”. Nem tudo o que se torna comum,
partilha ou conferência pode ser considerado coerente com a realidade em
si mesma (PERNIOLO, 2005). E, no contexto actual, não o é. Os meios de

16 A recente crise veio a reconfigurar a relação entre estas duas comunidades, demonstran-
do-o que, em determinadas circunstâncias, existem pontos de contato e sinergias entre
ambas.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 101

comunicação social apresentam-se como meios publicitários e propagan-


dísticos por excelência, repetindo até a exaustão as mensagens que querem
fazer passar, abandonando assim o âmbito da informação em detrimento
do âmbito da sugestão e, com isso, ocupando o território emocional do
receptor (VIRILIO, 2000), desviando-o do seu interesse próprio esclare-
cido e apelando, muitas vezes, à exploração das partes mais irracionais e
tenebrosas do ser humano (HUXLEY, s.d.).
Estas estratégias comunicacionais visam apenas criar uma nova ordem
de valores, onde poderes duvidosos e impessoais reinem sobre pessoas ato-
mizadas, demissionárias e alienadas pelo medo. Para que tal ocorra, torna-
-se necessário promover o segredo através do excesso de exposição, elimi-
nar os opostos, fomentar a ambivalência, promover o vitalismo populista,
confinar a agressividade e o conflito à esfera individual, eliminar o desejo,
promover os processos aditivos e destruir as estruturas de mediação.
Podemos notar estes desfasamentos quando nos deparamos com for-
mas de degenerescência da comunicação, as quais traduzem, na maior par-
te dos casos, o seu contrário, uma espécie de cornucópia do segredo guar-
dado no relicário da subjectividade. Ao trazer-se para a comunicação, em
nome da liberdade de expressão, todas as variáveis da realidade de forma
avassaladora, trivializando e desfigurando os seus conteúdos, esta torna-
-se invisível por excesso de exposição. Esta aparente pluralidade degenera
no despotismo comunicativo e protege o núcleo da realidade que não se
pretende revelar, ou seja, comunicar transforma-se no acto de guardar se-
gredo. Tudo é exposto para que tudo possa ser retirado. Quando tudo é
retirado, pouco resta para reflectir e fixar. É aqui que se coloca a grande
interrogação: pode existir comunicação fidedigna e integradora nos tem-
pos actuais?
Poder pode, mas não interessa. Não interessa a quem tem interesses, os
quais podem ser identificados através das tendências expressas pelos meios
de comunicação social. Esta comunicação estridente, que, voltamos a re-
ferir, tudo expõe para tudo nos retirar, procura, apoiada nos princípios da
corrente new age, desfazer os alicerces da sociedade. Se estivermos atentos,
verificámos, sem especial dificuldade, um conjunto de dinâmicas revela-
doras de tais intentos. Vamos apenas enumerar algumas, aquelas que con-
sideramos mais evidentes.
Entre elas encontrámos a desideologização e a reideologização da co-
municação. É nítida a intrínseca afinidade da comunicação com os pro-

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102 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

pósitos de uma pseudodemocracia que, na melhor das hipóteses, nega e


remove a grandeza do conhecimento, promovendo apenas os aspectos
utilitários e rentáveis do mesmo, os quais traduzem e reforçam a eficá-
cia económica e do poder. Neste sentido, regista-se e registar-se-á cada
vez mais uma proletarização das tendências intelectuais e artísticas. Para
a sociedade futura talvez tenha mais interesse o design de uma viatura
de última geração que o “Par de Botas” de Vincent Van Gogh, porque o
valor intrínseco da substância está a dar lugar à trivialidade da new eco-
nomy, sujeitando-se aos humores de um mercado sensível às dinâmicas da
valorização e da desvalorização. Esta trivialidade está também associada
ao posicionamento socioprofissional do indivíduo. Tudo aponta para que
sejam cada menos aqueles que sintam a satisfação das metas e mais aqueles
que experimentarão a adrenalina do caminho. Este caminho está pensado
para ser aditivo e não conclusivo, criar tensão, e não reconciliação.
Outra tendência expressa por estas dinâmicas é a destruição das me-
diações. Tudo é defendido e apresentado como se não existisse comuni-
dade, apenas indivíduos isolados a operarem num ambiente de absoluta
competitividade. A destruição das mediações constitui, cada vez mais, um
propósito obstinado da new economy. Temos como exemplos flagrantes
deste propósito, sobretudo no que a Portugal diz respeito, o combate às
entidades que corporizavam a produção e legitimação do conhecimento
(universidades, escolas, institutos…) e a destruição do constitucionalismo
político, como forma de eliminar o quadro normativo que preside às re-
lações humanas. Sem leis de descriminação positiva, a lei do mais forte
prevalecerá.
Acresce uma errónea descodificação do conceito de liberdade. Subja-
cente a um comportamento que, no essencial, traduz uma pobre e fechada
autoabsorção narcísica, emerge o ruído de um vitalismo populista propa-
gandeador de oportunidades ilimitadas. Este individualismo sem freio vai
de encontro à pretensão humana de realização plena, que, no limite, nos
conduz à infantilização, transformando os cidadãos em crianças ensimes-
madas (PERNIOLO, 2005). Este vitalismo populista pode sufocar a criati-
vidade, dado o excesso de actividade, como também já foi referido, tender
para a uniformidade, contrária à individualidade distinta. Esta é possível
quando o ser humano vive numa permanente tensão entre o desequilíbrio
e o equilíbrio. O desequilíbrio cria o movimento, necessário ao desenvol-
vimento pessoal; o equilíbrio consegue criar as condições necessárias à re-

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 103

lação saudável entre conflito e negociação, possibilitando a vida em comu-


nidade (HOFFER, 2007). Por isso mesmo, deste vitalismo populista muito
dificilmente poderá resultar, para o indivíduo e o conjunto da sociedade,
qualquer tipo de enriquecimento ou benefício. Quando ele ocorre, per-
demos o sentido de comunidade, de pertença a uma sociedade cognitiva.
Para além disso, é destruidor de mediações e de símbolos, precisamente o
contrário do vitalismo poético, que cria, desenvolve e divulga universos
simbólicos. O vitalismo populista exalta egos e isola os indivíduos, abrin-
do caminho aos ditadores e aos manipuladores, os quais sabem tirar pro-
veito de presas abandonadas a si próprias (PERNIOLO, 2005).
A liberdade e a independência podem, nestas circunstâncias, conduzir
ao isolamento individual. Quando tal ocorre, a liberdade transforma-se
em impotência e gera a frustração, a qual tanto pode resultar de oportu-
nidades ilimitadas como da ausência de oportunidades. As oportunida-
des ilimitadas associaram-se a uma cultura onde a ganância começou a
ser vista como positiva,17 sem que as instituições democráticas se tivessem
preocupado com os efeitos sociais da mesma. Sem grandes considerações
éticas sobre este assunto, não podemos deixar de sinalizar o consumo e
a independência económica como propiciadoras de uma independência
afectiva que propiciou o individualismo. Propiciou-o num contexto, como
já referimos, de destruição de mediações e, consequentemente, de degra-
dação do sentido de comunidade. Isto aconteceu no seio de um discurso
liberal aberto, onde o aproveitamento das oportunidades dependia apenas
do exercício de competências, e simultaneamente fechado, com a emergên-
cia sucessiva de pequenas crises e bolsas de pobreza. As frustrações daí re-
sultantes contribuíram decisivamente para a inacção, com as consequentes
implicações sobre o sistema político democrático (HOFFER, 2007).
A actual crise que assolou a UE veio a confrontar-nos com as fragilida-
des da democracia representativa, assim como com a existência de poderes
fácticos, nomeadamente ligados ao sector financeiro, mais poderosos que
o poder expresso pela vontade popular.

17 Ivan Boesky, digníssimo especulador financeiro de Wall Street, e Michael Douglas, no


papel de Gordon Gekko, no filme Wall Street, ajudaram a difundir e a institucionalizar
esta visão de negócios.

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104 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Revelações e desafios colocados à cidadania europeia


em tempos de superação: breve referência a Portugal
Reportando a análise a Portugal, mas enquadrando-a no bloco de integra-
ção económica da UE neste contexto de crise, vemo-nos confrontados com
realidades inquietantes, as quais nos obrigam a colocar algumas questões
que se impõem ao cidadão comum, cidadão ao qual é solicitada a parti-
cipação cívica da elaboração de políticas públicas. Nas decisões políticas
pesam mais as manifestações públicas dos cidadãos (por nós consideradas
formas efectivas de participação) ou as exigências dos mercados? Funcio-
nam estes à margem dos cidadãos ou em seu benefício? A informação que
deve apoiar a decisão é, como atrás foi referido, fluída e fidedigna ou so-
fre distorções intencionais? O sistema político actual, interlocutor entre
a sociedade civil e o Estado, potencia ou inibe a participação do cidadão
no processo decisório? Que carências efectivas podemos encontrar no ci-
dadão comum, face às exigências que lhe são colocadas por um Estado
democrático de alta intensidade?
O rasto de destruição que esta crise provocou no tecido social e eco-
nómico português veio confirmar as palavras premonitórias de Dahren-
dorf (1996, p. 16), quando, referindo-se à Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Económico (OCDE), vaticinou que estes países, “para
permanecerem competitivos num mercado mundial em crescimento têm
de tomar medidas destinadas a danificar irreparavelmente a coesão das
respectivas sociedades civis. Se não estiverem preparados para as tomar,
deverão recorrer a restrições das liberdades civis e da participação política
que configuram directamente um novo autoritarismo”. A actual crise na
UE veio demonstrar a pertinência desta formulação e a impossibilidade,
dado o quadro económico e político actual, de se encontrar uma solução
capaz de tornar possível “a quadratura do círculo entre criação de riqueza,
coesão social e liberdade política” (DAHRENDORF, 1996, p. 16).
Quando se colocou a opção por uma delas, a resposta não só foi ime-
diata como profundamente incisiva: privilegia-se a economia e, no seio das
actividades económicas, o sector financeiro é prioritário. Todo o restante
tecido económico, com excepção do sector exportador, dada a necessidade
imperiosa de se obter o equilíbrio da balança de pagamentos, foi abando-
nado às leis de mercado. O consumo foi desincentivado, através da redução
dos rendimentos das famílias. Este desincentivo tinha o intuito de alterar

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 105

o perfil da economia portuguesa, tornando-a mais dependente da procura


externa, em vez de estruturar-se no consumo interno. Se os rendimentos
familiares tinham assumido, até ao início da crise, um papel importante
no crescimento do PIB, isso também se deveu aos elevados níveis de en-
dividamento. No entanto, se o crescimento antes da crise era insustentá-
vel, o empobrecimento que se seguiu foi evidente, com os indicadores de
pobreza, seja pelo seu desfasamento temporal ou pela hábil manipulação
dos mesmos, a darem uma pálida imagem da realidade. Os factores que
contribuíram para a perda líquida de rendimento agravaram-se substan-
cialmente, pese o facto de, neste ano em curso, por sinal ano de eleições
legislativas, se ter verificado um ligeiro abrandamento. Dentre os factores
atrás referidos, destacamos o aumento do desemprego, o aumento da carga
fiscal, a degradação da rede de segurança (através da diminuição dos ní-
veis de poupança e do montante do subsídio de desemprego), a diminuição
da massa salarial e precarização do trabalho. Tudo é feito e exigido em
nome de um mundo interdependente no plano económico, mas excludente
noutras dimensões humanas.
É neste contexto que se esboça, no caso português, a tentativa de se for-
matar uma narrativa capaz de conciliar o inconciliável. Tal intento culmi-
na com o aparecimento de um discurso esquizofrénico, onde se exaltava, e
ainda se exalta, a necessidade de austeridade com a recriminação dos seus
efeitos; o apelo à mobilização com percepção de impotência; a responsa-
bilidade política regressiva18, através da qual se procura desculpabilizar a
responsabilidade das elites económicas e políticas do país, com o sentido
patriótico de expiação de um povo (ALMEIDA, 2013); o apelo à esperança
futura com a degradação das condições de vida do presente; a reiterada
importância da democracia com o esmagamento do indivíduo pelos mer-
cados…
Neste tipo de discurso procura-se também, como bem denunciou
Perniolo (2005), negar a existência de oposições ou, quando isto não é
conseguido de facto, criar condições para uma ambivalência onde uma
das partes consiga prevalecer sobre a outra. Se mesmo assim este propó-

18 Gil (2014; p. 36) apelida-a de “princípio de irresponsabilidade hierárquica – que diz que
quanto maior se sobe na hierarquia política menor é a responsabilidade dos agentes. No
grau mais baixo está o cidadão culpado (por exemplo de ‘viver acima das suas possibilida-
des’, já que a esse nível a responsabilidade se transforma em culpabilidade”.

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106 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

sito não é atingido, então recorre-se frequentemente à negação. Esta ne-


gação, em si mesma e reportando-se a factos, até não é assim tão negativa.
Não é assim tão negativa porque, na melhor das hipóteses, mesmo não
a aceitando, acaba por ter, pelo menos de forma implícita, a consciência
da remoção. Isto é importante porque um acto removido pode voltar à
consciência. O problema é mais grave quando a negação é radical e pri-
mordial, como acontece na esmagadora maioria dos casos com os quais
nos vemos confrontados. Aqui não há forma de a realidade ser remo-
vida, porque essa realidade nunca lá esteve. Estamos já no domínio do
psicótico, situação bem visível na invenção de novos léxicos, onde torna
evidente a inexistência da mais pequena réstia de afinidade de certos dis-
cursos com a realidade existente. O importante é manter-se o maior tem-
po possível no palco mediático para que estas estratégias surtam efeito,
porque só tem existência real a realidade por eles vivida. Eis-nos perante
a estética do descaramento. Este descaramento, exercido no palco me-
diático, fez com que, na política actual, a forma se tenha transformado
em conteúdo. Quanto mais diluído e informe for esse conteúdo, mais
convincente e real ele é.
É normal que estas dinâmicas causem, pelo menos num determinado
segmento da sociedade, uma certa claustrofobia existencial. Quando a
claustrofobia existencial se adensa e a anomia social paulatinamente se
instala, é perfeitamente justificada a dúvida daqueles que ousam ques-
tionar o realismo político e a inevitabilidade de certas decisões, procu-
rando, na medida do possível, recuperar e reconfigurar as condições
necessárias a uma participação política activa, seja esta favorável ou não
à democracia.
Esta situação tem ocorrido em Portugal e um pouco por toda a UE. No
início da crise sucederam-se inúmeras manifestações de rua, as quais, no
essencial, procuravam combater as políticas de austeridade, na forma e na
intensidade como estavam desenhadas, mas também procuravam mostrar
o descontentamento com o sistema político e a ineficácia das instituições
europeias. Foi neste cenário que emergiram diversos movimentos sociais.
No entanto, a natureza desses movimentos é, em todo espaço da UE, muito
diversa. Os movimentos de extrema-direita, os movimentos eurocéticos e
os movimentos anti-imigração rapidamente se têm convertido em parti-
dos políticos ou adquirido maior representatividade social, aumentando
os seus mandatos nos respectivos parlamentos nacionais e também no Par-

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 107

lamento Europeu19. Mesmo não sendo homogéneos nos seus programas e


nas suas manifestações, têm traços comuns nos seus discursos: criticam as
instituições actuais, o empobrecimento das populações e os estrangeiros,
que disputam os trabalhos e os serviços sociais com os nacionais “puros”.
Habilmente não fazem referência às causas da crise, capitalizando assim o
descontentamento popular sem hostilizar o modelo económico neoliberal.
Neste sentido, estes movimentos apontam uma tendência perigosa à escala
global: podemos estar a caminhar em direcção a um modelo que combina
liberdade económica, autoritarismo político e nacionalismo de interesses.
Estão criadas as condições para a proliferação dos mais diversos tipos
de fanatismo. O modelo económico actual não confrontou apenas o Es-
tado Social com as suas limitações, mas atingiu também, por inerência, a
própria democracia. Atingiu porque ignorou a complementaridade entre
mercado e democracia, pese o facto dos discursos políticos pretenderem
mistificar as opções de fundo tomadas. O sistema, até então, assentava na
“tensão entre dois princípios, o individualismo e a desigualdade, de um
lado; do outro o espaço público e a igualdade, o que obriga à procura per-
manente de um ‘assim-assim’, de um compromisso entre ambos” (FITOU-
SSI, 2005, p. 46). Ao defender-se que só poderemos ter o Estado Social que
consigamos pagar, num contexto acelerado de empobrecimento, abre-se a
possibilidade de as democracias de mercado serem substituídas por econo-
mias de mercado. A riqueza criada por estes, que anteriormente permitiu
a integração socioeconómica de uma vasta parcela da população, não está
democratizada, mas perigosamente concentrada nas mãos da superclas-
se, sem interesse em contribuir para uma melhor distribuição da riqueza.
Tais dinâmicas têm provocado a destruição da classe média. Um cenário
relativamente idêntico contribuiu, como bem referiu Hoffer (2007), para a

19 Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, os partidos da extrema-direita e na-


cionalistas cresceram na maioria dos Estados-membros. Estas forças políticas obtiveram
37,75% no Chipre (Aliança Democrática); 24,88% na Eslovénia (SDS); 24,86% na França
(Frente Nacional); 9,39% na Grécia (Aurora Dourada); 26,6% na Dinamarca (Partido do
Povo Dinamarquês); 26,77% no Reino Unido (Partido Independência do Reino Unido);
12,9% na Finlândia (Partido dos Verdadeiros Finlandeses); 13,32% na Holanda (Partido
da Liberdade); 10,9% na Hungria (Movimento para uma Hungria Melhor); 6,15% na Itália
(Liga Norte) e, na Áustria, o Partido Popular obteve 26,98% e o Partido da Liberdade da Áus-
tria 19,72%. Na Alemanha, o partido neonazi PND (Partido Nacional Democrático) teve um
desempenho percentualmente mais baixo (1%) (PARLAMENTO EUROPEU, 2014).

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108 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

emergência de fanatismos propiciadores de regimes políticos sanguinários.


Foi com uma classe média arruinada que se criaram as condições necessá-
rias à ascensão do nazismo e do fascismo, com as consequentes catástrofes
humanitárias sobejamente conhecidas.
O empobrecimento gera a frustração, da qual, quando não são atingi-
dos os níveis de pobreza extrema, deriva o fanatismo. A frustração pode,
como foi o caso português, conduzir à emigração. Quem não opta por esta
solução sujeita-se, como já anteriormente referimos quando abordámos
a questão da velocidade e a destruição ideológica das mediações, ao iso-
lamento. Se isto ocorrer num contexto de incapacidade para a acção, o
ser humano perde a confiança em si próprio e, por este ou aquele motivo,
sucumbe, deixando-se arrastar para uma vida abjecta. Esta tipologia de
frustrados não representa grande risco político para os poderes dominan-
tes. Tratam-se de indivíduos imunes aos apelos dos movimentos, vilipen-
diados pelos poderes políticos e pelos seus semelhantes20, apenas preocu-
pados, porque anestesiados pela fome, com a sua sobrevivência física. Esta
reincidência na privação tem como consequência directa a vivência de
uma narcótica paciência. Talvez esta armadilha nos ajude a compreender
o porquê do conservadorismo ser tão forte nas classes privilegiadas como
nas classes desfavorecidas.
No entanto, pode dar-se a passagem do indivíduo frustrado para o
indivíduo unificado, em detrimento, como seria desejável, do indivíduo
autónomo. O processo de unificação, porém, é sobretudo um processo
de subtracção do eu. É um processo de subtracção do eu porque quan-
to menor for a satisfação do indivíduo consigo próprio, maior será a sua
propensão para a imitação21. Essa imitação é reforçada pela necessidade
de se abandonar o mais rapidamente possível essa zona de desconforto.
Esta urgência é incompatível com soluções independentes, dadas estas se-
rem morosas. Acresce o facto das vidas infecundas e inseguras mostrarem

20 Na Hungria, após a alteração da Constituição, proíbe-se a circulação dos sem-abrigo


em determinadas áreas urbanas. Na Inglaterra são colocados picos de metal para os im-
pedirem de pernoitar nas ruas. Em França utilizam-se os triângulos nazis para os iden-
tificarem. Neste último país ocorreram dois episódios no mínimo curiosos: proibiu-se o
funeral de uma criança cigana de 3 anos de idade, com o argumento de que a família não
pagava impostos, e foi permitido o funeral dos “jihadistas” que levaram a cabo os atenta-
dos em Paris contra o jornal satírico Charlie Hebdo.
21 Isto pode ajudar-nos a compreender a perigosidade de certas formas de integração.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 109

grande propensão para a obediência e a imitação. Quando à incapacida-


de para a acção se junta uma inadaptação permanente e a promessa de
mudança, associada à fé no futuro e num poder que o materialize, o in-
divíduo está disponível para se converter ao fanatismo, o qual se torna
possível através da abnegação, da renúncia ao eu e da redução da vontade
individual aos superiores interesses do grupo. Estão reunidas as condições
para que os frustrados sejam transformados em fanáticos. Passam a viver
um jogo situado entre a espontaneidade (entusiasmo efémero) e a devoção
(onde encontram a estabilidade e a permanência). São treinados na con-
formação e na mansidão relativamente aos seus pares, mas observam um
comportamento violento com o exterior. Com o intuito de transformarem
a realidade, são muito propensos ao conflito e, como só os seus interesses
são válidos, cultivam a propensão para o ódio e a eliminação do outro. O
ódio é uma fonte de unidade, porque o ser humano não procura aliados
quando ama, mas sim quando odeia. É assim um meio de unificação e
um produto dessa mesma unificação, contaminando até os seus opositores.
Os fanáticos nutrem, por isso, muito respeito pela força e pelo medo, os
quais aprendem a usar e a admirar. A fé fanática permite-lhes racionali-
zar a cobardia e esquecer a honradez, porque só é honrado quem honra a
humanidade. Não admira que os seus líderes ditatoriais tratem todos os
homens por cobardes.
Começam agora a crescer na Europa, nestes tempos de crise, os velhos
revivalismos xenófobos, típicos de um continente com milénios de guerras
civis. Tudo isto nos indica que a crítica libertadora não conduz necessa-
riamente a uma sociedade democrática de livres-pensadores, propensos
a identificarem nos seres humanos a sabedoria e a bondade. No entanto,
não deixa de ser curioso verificar que, com excepção do Chipre, são os
países do sul da Europa, saídos de regime ditatoriais e que aderiram à UE
para consolidarem o seu projecto democrático tardio, aqueles com mais
resiliência aos revivalismos xenófobos. A Espanha incarna, inclusive, um
projecto incomum neste contexto. Como consequência e possível resposta
à crise actual, emergiu na sociedade civil espanhola uma nova força polí-
tica, perante a decadência do sistema partidário vigente. Esta nova força
política adquiriu rapidamente tal representatividade social, que hoje se
apresenta como essencial à governabilidade. Muito se tem escrito sobre
este novo partido, o seu posicionamento ideológico, as suas propostas le-
gislativas e constitucionais, e exequibilidade ou populismo do seu progra-

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110 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

ma. Independentemente das análises e dos juízos de valor formulados ou


a formular, esta força política congregou vontades dispersas e movimentos
inorgânicos, sensíveis a uma cultura de exigência democrática, responsa-
bilidade partilhada e justiça social.
Tendo muitos destes movimentos surgido no contexto da actual crise,
as espacialidades de onde emergiram foram determinantes na definição da
sua natureza, afirmação e sucesso. Em Portugal e na Espanha, dois países
fortemente atacados pela crise, os movimentos de extrema-direita e xe-
nófobos estão longe de colocarem a democracia em risco, pese o facto de
existirem e poderem continuar a crescer neste ambiente de crise e de em-
pobrecimento servido em doses homeopáticas. Como já foi mencionado,
em Espanha surgiu o fenómeno do PODEMOS, situação essa que não tem
sido possível replicar em Portugal, apesar de diversas tentativas terem sido
ensaiadas nesse sentido e algumas delas ainda continuarem em curso. Não
o foi porque o perfil do povo português não é o mesmo do povo espanhol.
Existe no povo espanhol uma espécie de anarquia romântica militante, en-
quanto que o povo português é, na sua maioria, institucionalista, subser-
viente e esquivo.
Para compreendermos o povo português temos de fazê-lo a partir da
sua unicidade cultural profunda e da relação fatídica que tem mantido, ao
longo de nove séculos, com as elites de poder; ao contrário do espanhol,
que é múltiplo e frontal nas suas manifestações (CALHEIROS, 2013). A
multiplicidade e a frontalidade dos espanhóis permite a existência de uma
sociedade mais aberta, mais propensa ao conflito. Daí resulta uma socie-
dade mais pulverizada, mas simultaneamente também mais dinâmica e
competitiva. A sociedade portuguesa foi moldada e maniatada pelas suas
elites, as quais, ao longo da história portuguesa, têm-se manifestado como
cruéis, egoístas, ignorantes, conservadoras, incompetentes e estrangeira-
das (ALMEIDA, 2013). Foram estas mesmas elites que criaram um caldo
cultural de dependência, medo, fatalismo e pessimismo. Mas também é
essa mesma elite, recorrendo à responsabilidade política regressiva, que
acusa o povo da existência desse pântano em que ela mesmo o atolou.
Em plena efervescência destes tempos de crises, chegaram mesmo a
afirmar nunca terem existido elites económicas e políticas por estes lados.
Os argumentos utilizados estruturam-se na simples negação e no insulto,
dado apelidarem os defensores da tese contrária de provincianos. A inten-
ção subjacente a este argumento é simples de detectar: nega-se a realida-

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 111

de para se impedir qualquer reflexão sobre a mesma. A História, porém,


quanto espelha práticas reiteradas, é inexorável e, como tal, abundam os
episódios que retratam as traições e as malfeitorias destas elites ao seu po-
vo.22
A actual crise veio a desvelar os traços esquivos do povo português e
a imagem das suas elites. Estas elites têm contribuído ultimamente para
o empobrecimento do país, a sua venda a retalho e a eliminação da classe
média. O problema da classe média portuguesa reside, quanto a nós, na
incongruência da sua estrutura mental. Enquanto os oprimidos e excluí-
dos lutam, como anteriormente afirmámos, pela sua sobrevivência física e
as elites sempre foram coerentes com o seu esforço de acumulação, a clas-
se média vive do consumo e para o consumo. Sendo a maior beneficiária
da complementaridade entre democracia e mercado (FITOUSSI, 2005), é
também aquela que mais tem a perder com a inversão desta complemen-
taridade, a qual se traduz, como já anteriormente afirmámos, na substitui-
ção das democracias de mercado pelas economias de mercado.
A crise da UE veio também a revelar uma outra tendência generalizada
nas sociedades hodiernas, tendência essa que em Portugal foi agravada pe-
las suas rugosidades culturais. A democracia viu-se acossada não apenas
pelos seus inimigos ancestrais, mas também pelos excessos gerados no seu
interior. Podemos legitimamente afirmar que, conhecidas as causas e as
consequências desta crise, o consumismo e o desperdício são dois inimi-
gos das dinâmicas democráticas.
O consumismo porque, como nos refere Ginsborg (2008), fomentou o
aparecimento de famílias conformistas, absorvidas na sua própria realida-
de. A esfera pública foi negligenciada, possivelmente utilizando-se o pre-

22 Dado optarmos por uma postura metodológica que privilegia a questão da governança
e políticas públicas em tempos de crise, descartamos a possibilidade de nos debruçarmos
adequadamente sobre influência destas elites na estruturação da sociedade civil portu-
guesa. No entanto, não descartamos o contributo de deixarmos aqui formuladas algumas
hipóteses que possam apoiar a compreensão deste problema. Seria importante aferir o
porquê das relações com as nossas ex-colónias não serem tão fortes quantos a de outros
países similares, onde se registou um tipo de colonização mais feroz, porque mais políti-
ca e territorial. Seria importante também aferir o porquê das comunidades portuguesas
no mundo, maioritariamente provenientes de estratos sociais desfavorecidos, serem mais
bem-sucedidas no estrangeiro que em Portugal. Interessante também seria aferir o por-
quê dos portugueses obrigados a emigrarem, porque maltratados no seu país, continua-
rem a terem essa ligação psicoafectiva a Portugal.

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112 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

texto de não se reverem na classe política existente. Os indivíduos têm-se


remetido à esfera privada, num comodismo comodamente incomodado.
Foram alimentando a sua desconfiança relativamente à classe política, en-
quanto esta baseava o seu discurso na necessidade de uma cidadania activa
e, como se esta não existisse, afundava-se nas suas próprias dinâmicas ex-
clusivas e excluentes, privilegiando nas suas decisões os interesses das for-
ças dominantes. Daqui adveio a estranha percepção de uma lógica esqui-
zofrénica, situada entre a participação e a descontinuidade. Poderá alguém
entender a situação real do outro quando as vivências não são próximas?
Não nos parece possível tal ocorrência. Ela é possível quando se podem
estabelecer conexões associativas. Mas como pode o associativismo, nas
circunstâncias actuais de destruição de mediações, assumir-se como uma
força transformadora? Poder até podia, se a base não falhasse. Esta base é
a família, célula a partir da qual será possível ter uma sociedade civil vi-
brante e, consequentemente, serem criadas as condições para a emergência
de um verdadeiro Estado de Direito Democrático. Das famílias, porém,
não têm surgido sujeitos activos, divergentes e responsáveis, capazes de
eliminarem as causas impeditivas da afirmação de cidadania activa. Hoffer
(2007, p. 125) referiu que “se a economia se tornar num proselitismo de
causa sagrada, será sinal de que a sua exequibilidade e vantagens deixaram
de ser evidentes”. A evidência, porém, nem sempre é reconhecida, razão
pela qual o colectivo tem pouca noção do interesse geral.
O desperdício é também inimigo da democracia, dado possibilitar a
existência de um discurso contrário a esta. Neste sentido, não existe qual-
quer problema em admitir a necessidade de uma reforma do Estado, desde
que a mesma não coloque em causa as liberdades políticas dos cidadãos e
a garantia na continuidade das mesmas. O desperdício não está no investi-
mento nos cidadãos, está, entre outros factores, na corrupção, na protecção
de grupos de interesse, na promiscuidade entre o poder legislativo e o po-
der judicial, na falta de racionalidade na prestação de serviços ao cidadão.
Por isso mesmo, a resposta à crise não se faz, na nossa perspectiva, com
mais economia, mas sim com mais política, política capaz de criar as con-
dições necessárias à emergência de indivíduos ativos, divergentes (GINS-
BORG, 2008) e sem revivalismos (HOFFER, 2007). Se isto for possível, es-
tarão então criadas as condições para termos uma sociedade alicerçada em
dois pilares fundamentais: a racionalidade e a humanidade.

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Governança e políticas públicas em tempos de crise 113

Conclusão
A democracia atual enfrenta fragilidades que lhe são específicas, as quais
resultam do facto de permitir que exista no seu seio forças que lhe são anta-
gónicas. Os opositores sabem dessa fragilidade, e exploram-na em proveito
próprio. Esta fragilidade, porém, também nos diz que os problemas da de-
mocracia são inerentes à própria democracia. Será no seio dela, e com mais
política, que será possível encontrar as soluções de que a sociedade carece.
Relativamente à primeira parte, pudemos constatar ao longo deste tra-
balho que a crise gera o medo, o qual, quando vivido num clima fechado
de cepticismo e alimentado pelo secretismo, agudiza ainda mais a crise.
Neste contexto, o poder surge como a resposta mais eficaz ao medo, mas
esse poder que se pretende conquistar pode ter como contrapartida a eli-
minação ou a redução substancial dos níveis de Liberdade.
No entanto, num tempo em que se procura impor à Humanidade uma
visão restritiva e ideológica de democracia, socorrendo-se amiúde de uma
comunicação ilusória, faz sentido ser activo e divergente. Num tempo em
que o tambor de Günter Grass anuncia a fúria da irracionalidade humana,
nas suas múltiplas metáforas e formas polimórficas, faz sentido renunciar
aos revivalismos exclusivos e excluentes. Num tempo assim, onde a con-
fusão se instala e a esperança se esvai, vêm-nos à memória as palavras
do teólogo Reinhold Niebuhr (cit. CRICK, 2006, p. 120): “A tendência do
homem para a justiça torna a democracia possível, mas a incapacidade do
homem para a injustiça torna-a necessária”.

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CAPÍTULO 6

A pesquisa geográfica sobre


os movimentos sociais
Teoria e um estudo de caso

Nelson Rodrigo Pedon


Eldenilson da Silva Monteiro
Rafael Junior Motter

Junto às transformações insurgidas no país na primeira metade da década


de 1980, vieram algumas mudanças de perspectiva acerca da forma como
a realidade era apreendida pelas ciências sociais, e, em especial, pela Geo-
grafia. Mesmo considerando que as mobilizações populares, organizadas
na forma dos movimentos sociais, foram aos poucos sendo inseridas no
conjunto dos temas adotados pela Geografia brasileira antes desse período,
uma vez que os movimentos sociais já haviam sidos evocados nos traba-
lhos precursores de Andrade (1964) e de Castro (1967), que enfocaram a
ação das Ligas Camponesas no contexto de pobreza e concentração fun-
diária do nordeste brasileiro, é de fato com as agitações pós-ditadura que
culminaram na abertura política e na nova Constituição Federal de 1988
que as mobilizações populares passaram a figurar com mais intensidade
nas publicações das ciências sociais.
Os trabalhos iniciados a partir da década de 1980 partiam de uma visão
mais geral sobre o desenvolvimento das relações de produção capitalistas
sobre o espaço e suas consequências à existência da classe trabalhadora, se
alinhavam teoricamente ao materialismo histórico dialético marxista ou
às suas releituras. De maneira geral, a característica mais marcante desses
primeiros estudos foi a adoção de referenciais teóricos de autores que não
se inseriam na tradição de pesquisa em Geografia, fato que se explica pela
lacuna existente na produção geográfica sobre a temática dos movimen-
tos sociais. Contudo, antes desse momento marcante para a renovação da
Geografia brasileira, dois importantes autores nordestinos foram os pri-
meiros a apontar em suas obras a presença de movimentos sociais no Bra-

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118 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

sil. Manuel Correia de Andrade publica em 1964 o livro A terra e o homem


no Nordeste, no realiza uma análise dos problemas do Nordeste brasileiro
a partir da apropriação do solo, elaborando, inclusive, uma regionaliza-
ção com base no processo de colonização da região; sua conclusão é a de
que esta ocupação se deu em função do desenvolvimento do capitalismo
comercial. Josué de Castro1 publica em 1965 o livro Sete palmos de terra
e um caixão: ensaio sobre o Nordeste uma área explosiva, o qual introduz
o estudo dos movimentos sociais do Nordeste explorando a ação das Li-
gas Camponesas, surgidas na Zona da Mata pernambucana na década de
1950. Ambos os autores imprimem um caráter de denúncia da situação de
sujeição do homem e da terra a um modelo de desenvolvimento baseado
na grande propriedade e submisso aos interesses internacionais (PEDON,
2013).
Andrade (1964) e Castro (1967) apontam que, como consequência da
falta de reforma agrária no país e da submissão das elites nacionais aos
interesses estrangeiros, aprofundam-se as tensões sociais no campo ten-
do como consequência a organização social com o objetivo de reivindicar
mudanças no quadro agrário brasileiro. Como efeito do momento em que
os trabalhos foram escritos, os autores apresentam aquele que era o mais
importante movimento social brasileiro: as Ligas Camponesas. No caso
de Andrade (1964), os problemas sociais são abordados juntamente com
as questões da apropriação da terra, no entanto, esse viés social não foi
entendido por muitos pesquisadores da época, uma vez que a Geografia
brasileira ainda estava comprometida com a escola tradicional francesa.
O autor considera as Ligas Camponesas como formas embrionárias de
organização popular que veem, nas medidas implementadas pelo Estado,
soluções pouco eficazes, já que beneficiam apenas um pequeno número
de pessoas, enquanto a “maioria absoluta dos camponeses continuaria a
vegetar” (ANDRADE, 1964, p. 244).
Andrade (1964), ao enfocar a espacialização e o alcance das Ligas,
aponta que mesmo nos municípios que não possuíam núcleos havia uma
certa influência destes junto aos camponeses. O autor aponta que Fran-
cisco Julião, líder emblemático das Ligas, teria afirmado que, mesmo de

1 Josué de Castro não era geógrafo de formação, todavia, parte considerável de suas pes-
quisas, pelo menos a que acabou sendo a mais conhecida dos leitores em geral, se deu no
campo no pensamento geográfico.

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 119

forma desordenada, a organização cresceu a ponto de em toda a Zona da


Mata e em boa parte do semiárido do Nordeste não haver um camponês
que já não fosse potencialmente da Liga, e, em qualquer estado nordesti-
no, mesmo onde a Liga não havia sido fundada, é comum um camponês
injustiçado dizer para o capataz ou para o patrão: “Graças a Jesus Cristo
a ‘Liga’ vai chegar. Será nossa liberdade” (ANDRADE, 1964, p. 249). Cas-
tro (1967) buscou desvendar as conexões que haviam entre a condição de
pobreza da população nordestina e seu processo histórico. Se Andrade
sustenta o viés histórico da colonização brasileira como processo produ-
tor de desigualdades da região nordestina, Josué de Castro reforça a ideia
de que a estrutura agrária concentradora mantida por uma elite tradicio-
nal organiza aquele espaço com o objetivo de manter seus privilégios e os
interesses do capital estrangeiro. O autor dirige suas críticas para aqueles
que buscam fazer da seca a principal causa da pobreza e fome nordestina.
Para ele, “[...] mais do que a ‘sêca’, o que acarreta esse estado de coisas é
o pauperismo generalizado, a proletarização do sertanejo, sua produti-
vidade mínima, insuficiente” (CASTRO, 1967, p. 169-70). “O latifúndio é
o responsável pela paisagem defunta, impregnada da presença constante
da morte” (CASTRO, 1967, p. 41).
Josué de Castro aponta que as Ligas Camponesas surgiram como uma
entidade civil de ajuda mútua na qual a principal finalidade era dar aos
camponeses um funeral decente, uma vez que eram enterrados em cai-
xões doados pela prefeitura ou muitas vezes enrolados em redes. Com a
denominação inicial “Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de
Pernambuco”, que visava defender os direitos dos mortos, as Ligas Cam-
ponesas aos poucos foram se transformando num movimento que passou
a lutar pelos direitos dos camponeses vivos. Ambos os autores buscam na
História o elemento explicativo, dessa forma, a sujeição do Brasil, primeiro
ao imperialismo europeu e depois ao imperialismo norte-americano, foi
responsável por manter grande parte da população na condição miserável
reinante.
Os trabalhos de Manuel Correia de Andrade e Josué de Castro marcam,
precursoramente, o início dos estudos sobre movimentos sociais na Geo-
grafia brasileira. Representantes de uma visão avançada e bem embasada
dos problemas brasileiros, os geógrafos fizeram apontamentos que hoje fa-
zem parte dos estudos sobre movimentos sociais, questões relativas à espa-
cialização dos movimentos, sua interação com outros setores da sociedade,

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120 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

a ação dos mediadores, sua agenda política (esclarecedora dos objetivos e


da ideologia dos movimentos) e sua relação com a estrutura socioeconô-
mica da sociedade (constituída num devir histórico conflituoso que marca
a constituição do território brasileiro) demonstram uma perspectiva de
totalidade que se desenvolverá na década de 1980 com a ampliação desses
estudos na Geografia.
Como já apontamos no início deste texto, é no contexto das transfor-
mações políticas e sociais vividas pela sociedade brasileira que ocorre a
inserção de ideias relativas à valorização das ações políticas mais amplas
no campo da pesquisa geográfica. Estudos como os de Viana (1980), Ber-
nardes (1983), Moreira (1984), Kahil (1985), Silva (1987), Mitzubuti (1986),
Rodrigues (1988), Souza (1988), Andrade (1986) e Oliveira (1988) são re-
sultado das reflexões acumuladas ao longo da experiência acadêmica e
militante dos autores naquele período. Uma importante característica da
produção geográfica daquele momento que predomina até os dias de hoje
é a marcante segmentação da base de referência empírica das pesquisas e
das teorizações: o urbano e o rural. Esta tendência à segmentação levou
às especializações temáticas, ancoradas em recortes paradigmáticos pró-
prios; na década de 1980 as pesquisas sobre movimentos sociais urbanos
foram predominantes, principalmente os estudos de casos; a escala ado-
tada nessas análises coincide com a base de referência territorial (recorte),
suas reivindicações estão voltadas quase que exclusivamente para o Esta-
do; as pesquisas sobre movimentos sociais rurais são marcadas por um
alto grau de generalidade, alguns estudos ignoram as especificidades dos
casos, que, quase sempre, acabavam reduzidos ou enquadrados num mo-
delo paradigmático único e hegemônico no interior do debate acadêmico
(PEDON, 2013).
Outro elemento importante a destacar é a ausência de construções teó-
rico-conceituais que permitissem inserir os movimentos sociais no quadro
analítico específico da Geografia. Este fato será invertido com pesquisas
e ideias publicadas no final da década de 1990 e início dos anos 2000 por
autores como Gonçalves (1999, 2000, 2002 e 2003), Santos (2006), Martin
(1997 e 1998)2 e Fernandes (1996, 1999a, 2000a). O que esses autores têm

2 Martin, mesmo não sendo brasileiro, publicou seus textos em periódicos brasileiros,
pesquisando os movimentos socioterritoriais brasileiros, sendo considerado por Pedon
(2013) um dos percussores da abordagem socioterritorial.

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 121

em comum é buscar pela criação de um referencial teórico que enfoque a


espacialidade e territorialidades explícitas e implícitas nas mobilizações
sociais populares.
Enfocando os trabalhos de Martin (1997 e 1998) e Fernandes (1996,
1999a, 2000a), evidenciaremos o conjunto de estudos que denominamos
como abordagem socioterritorial. De forma sintética, tal abordagem de-
fende que um movimento social pode se compor enquanto movimento
socioespacial se no processo de sua constituição ele se inscrever nas es-
truturas espaciais já existentes, sem, necessariamente, colocá-las em ques-
tão. As ocupações de terras que agrupam famílias de várias partes do país
rompem com o localismo e com os interesses que dificultam a ampliação
da luta dos trabalhadores, dessa forma, podem ser considerados como mo-
vimento socioterritorial. Esta manifestação realiza a combinação de dois
processos diferentes, mas que são indissociáveis no desenvolvimento da
participação política: a espacialização e a territorialização. Numa visão
integradora de seus aspectos organizacionais e de seus projetos, o autor
aponta que os movimentos socioespaciais não colocam em questão os re-
cortes político-administrativos impostos pela política institucional. Para
eles, espaço e recorte espacial são sinônimos, não ultrapassando os aspec-
tos funcionais em suas propostas. Em oposição, os movimentos socioter-
ritoriais atuam de maneira a viabilizar práticas alternativas de apropria-
ção do espaço, práticas estas que rompem com as escalas impostas pelos
usos estritamente capitalistas e pelos recortes institucionais. A luta local
se vincula com a luta nacional no processo de territorialização (FERNAN-
DES,1999a e 2000a).

A abordagem socioterritorial dos movimentos sociais

Os movimentos socioespaciais podem ser definidos como uma forma es-


pecífica de mobilização social. Sua espacialidade está relacionada à sua
capacidade de influenciar determinadas demandas no bojo de um deter-
minado espaço, sem, necessariamente, buscar introduzir algo novo, seja
material ou imaterial. Um movimento socioterritorial, por sua vez, pode
ser definido como uma organização que tem como objetivo criar possibili-
dade de inserção de novas formas de apropriação e uso dos territórios com
o objetivo de instaurar uma nova territorialidade; mesmo limitadas e/ou

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122 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

estritamente localizadas, essas novas territorialidades implicam transfor-


mações nas relações sociais e na configuração dos lugares. Na constituição
do território, o espaço é apropriado de forma a fazer dele o espaço da ação,
assim, este espaço é formado por seus participantes, líderes e mediadores,
enfim, sujeitos da ação política que têm na sua territorialidade a legitima-
ção de sua ação.
De maneira geral, um movimento socioterritorial é ao mesmo tempo
um movimento por autodefinição, já que tem como objetivo afirmar uma
representação de si mesmo, como indivíduo ou grupo, que se apropria de
um espaço. Esta autodefinição constitui-se dentro de um espaço maior,
onde as relações de poder estão arranjadas de forma a dar sentido ao or-
denamento no território. Impor sua territorialidade, imprimir no espaço o
conjunto de seus valores, ideias e vontades faz com que a conquista do ter-
ritório seja um trunfo para os movimentos socioterritoriais. Não é possível
separar a experiência de resistência das territorialidades, Gonçalves (1999,
2000, 2002 e 2003) aponta que é possível falarmos em uma territorialidade
resistente.
O espaço torna-se trunfo ao tornar-se território; nesse processo, ele é
a base da criação e recriação das experiências de resistência e transfor-
mação das relações sociais (FERNANDES,1999a e 2000a). As ocupações
realizadas pelos movimentos socioterritoriais sem-terra, por exemplo,
expressam um momento do permanente processo de reordenamento da
sociedade brasileira. Como implicação disso, põe em causa suas relações
e arranjos políticos. As ocupações resultam do processo de questiona-
mento das relações sociais hegemônicas. Essa novidade trazida pelos
movimentos abala certos valores já tradicionais da sociedade, a exemplo
da noção da propriedade privada inviolável, princípio essencial ao mo-
delo de desenvolvimento capitalista vigente. Ao provocar uma ruptura
na ordem pública por meio das ocupações, estes sujeitos sociais proble-
matizam certo tipo de constituição socioespacial. Sua “natureza” e for-
mas de apropriação são questionadas. Há aí uma crítica de certos valores
tradicionais que, do ponto de vista cultural, servem de barreira para as
transformações sociais que poderiam (e podem) levar a uma sociedade
mais justa ou, pelo menos, melhorar a qualidade de vida da maior parte
da população brasileira.

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 123

A agenda como elemento definidor da complexidade dos


movimentos socioterritoriais
Se considerarmos as mobilizações populares numa perspectiva geográfica,
os movimentos socioterritoriais se constituem de acordo com sua capaci-
dade de articulação e de seu grau de organização. A amarração entre esses
dois componentes dos movimentos socioterritoriais é dada pelo estabele-
cimento de sua agenda. A formulação da agenda de um movimento socio-
territorial é uma prática política e corresponde a um processo caracteriza-
do por três momentos: o primeiro é o da comunicação, no qual ocorrem
as reuniões nas quais os membros socializam valores e ideias; o segundo
é o da constituição de um “espaço interativo”, no qual se dá o processo
de aprendizado por meio da interação, baseada na troca de experiências,
conhecimentos e trajetórias de vida. Elementos basilares à conscientiza-
ção da condição de excluídos e subordinados. Nesse sentido, a agenda de
um movimento socioterritorial traz em si a identidade de seus membros,
a identidade dos expropriados, dos “sem” (terra e moradia) e dos “atingi-
dos”. A interação é responsável por mobilizar as condições subjetivas da
agenda do movimento socioterritorial. Por último, tem-se a constituição
de espaços geradores de sujeitos, nos quais eles constroem suas próprias
experiências. Este momento é o da reflexão e da redefinição das estratégias
e objetivos, mostrando que as agendas não se dissociam da ação, permane-
cendo numa contínua reformulação.3
Esses três momentos apontam que a construção e a conquista do es-
paço de socialização política têm sido uma condição fundamental para o
desenvolvimento das diferentes experiências no processo de formação dos
movimentos socioterritoriais.
Os movimentos socioterritoriais que se desenvolvem a partir das pro-
blemáticas vividas pelas classes populares no espaço das cidades vão con-
formar suas agendas de acordo com a comunicação e a interação propor-
cionadas pelas mobilizações, que têm na busca pelo “teto” seu propósito
basilar. Da mesma forma ocorre com os sem-terra. A preposição sem de-
signa ausência de lugar, sugere o sentido de privação, da falta e da exclusão.
No caso dos sem teto, a denominação não faz referência à casa, mas sim ao

3 Formulação baseada nos apontamentos de Fernandes (2000a).

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124 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

território que lhe permite ser soberano sobre um espaço, sem o qual não
passa de um nômade. No caso dos sem-terra, não é a propriedade, mas o
acesso a um bem que não é criado pelo homem: a terra, lócus da produção
dos meios de existência. Os atingidos por empreendimentos têm algumas
especificidades que veremos mais à frente.
Os movimentos socioterritoriais são, portanto, mobilizações coletivas
com considerável nível de organização e com uma agenda que sintetiza
as propostas do movimento. É importante apontar o caráter condensador
desses dois elementos constitutivos dos movimentos socioterritoriais por-
que eles compreendem, de forma relacional, os processos de conformação
identitária e as espacialidades e territorialidades desse tipo especial de mo-
bilização. Isso significa dizer que os movimentos socioterritoriais se estru-
turam a partir das agendas de luta por meio das quais são relacionadas as
ideologias, os propósitos, os interlocutores (as negociações com o Estado e
com os agentes capitalistas) e as estratégias de ação (a exemplo das táticas
de luta), e que, ao mesmo tempo, desempenham papel de instrumentos
de conformação identitária. No processo de constituição das mobilizações
sociais, a conquista do território é um elemento definidor da identidade
dos movimentos socioterritoriais. Diversamente dos movimentos socioes-
paciais, cuja constituição se encerra na sua estrutura organizativa, o espa-
ço é concebido como base na qual se assentam seus elementos, não sendo,
ele próprio, definidor de sua identidade.
Em suas agendas, os movimentos formalizam sua ideologia enquanto
sujeito coletivo e fundamentam sua identidade. Os movimentos socioter-
ritoriais urbanos têm como objetivo a conquista da moradia, em sentido
restrito, quando se pautam somente na conquista de um teto, ou, em sen-
tido amplo, quando incorporam à sua agenda a conquista por melhores
condições de habitação. No que se refere aos movimentos socioterritoriais
rurais, tem-se a luta pela terra como condição de acesso ao espaço da pro-
dução dos meios de existência, e a luta na terra como forma mais ampla
de manutenção ou melhoramento dessas condições. Quando projetadas
sobre o espaço, as ações intencionais o transformam em território, uma
vez que ele passa a constituir um espaço problematizado e disputado por
diferentes grupos sociais.
As agendas dos movimentos socioterritoriais podem ser entendidas
como a formalização de sua ideologia e objetivo, sendo, portanto, um as-
pecto fundante de sua identidade.

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 125

O caso dos atingidos pelos projetos de mineração:


uma novidade na agenda complexa dos movimentos
socioterritoriais
Nas últimas quatro décadas, sobretudo na América Latina, houve um cres-
cimento do debate sobre os conflitos sociais e impactos socioambientais
dos grandes empreendimentos de mineração em áreas já ocupadas, em
sua maioria, por população camponesa. Na América Latina, em muitos
países a exploração dos recursos minerais passou por um intenso processo
de privatização, têm-se os exemplos do Peru e da Argentina, onde, a partir
dos impactos e dos conflitos em áreas de mineração, principalmente devi-
do à contaminação da água e da terra e dos deslocamentos compulsórios,
emergiram mobilizações coletivas na forma de movimentos antiminera-
ção, com agendas mais amplas. A Confederación Nacional de Comunida-
des del Perú Afectadas por la Minería (Conacami), fundada em 1999 no
Peru, e o movimento No a La Mina - Encontros de las Comunidades Afecta-
das por la Minería de la Argentina, criado em 2003 na Argentina, são dois
importantes exemplos citados por Wanderley (2012).
Além desses exemplos que atingem escalas mais amplas e envolvem
articulações políticas e agendas mais complexas, que representam ques-
tionamentos às mineradoras, há diversos movimentos formados por atin-
gidos pelos empreendimentos mineradores que lutam na escala local. Em
suas agendas figuram questões como: direitos sociais, o impedimento da
consolidação dos empreendimentos em locais determinados e/ou as com-
pensações frente aos danos advindos da territorialização desses empreen-
dimentos. Wanderley (2012), amparado em Bebbington (2007) e Bridge
(2004), aponta os exemplos de países como Guatemala, Chile, Equador,
Gana, Turquia, Grécia, Inglaterra, Austrália, Filipinas, Papua Nova Guiné,
Índia, entre outros (WANDERLEY, 2012, p. 57).
No contexto amazônico brasileiro, é com o aparecimento e organização
do Movimento de Atingidos pela Vale, do Movimento Juruti em Ação, do
Movimento dos Atingidos por Mineração (MAM) e do Comitê Nacional
em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, em 2010, que a categoria de
“atingido por mineração” passa a ser adotada na literatura acadêmica exis-
tente sobre o assunto e na prática política dos diversos atores envolvidos.
O sentido da noção “atingido” é debatido por Vainer (2008). Para este
autor, o termo refere-se ao reconhecimento dos direitos e à legitimação

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126 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

destes por parte de seus detentores; esse direito envolve, de forma dire-
ta, algum tipo de ressarcimento ou indenização, reabilitação ou repara-
ção (VAINER, 2008, p. 40).4 Mesmo considerando que seu enfoque são
os atingidos por barragens hidrelétricas, podemos estender sua conceitua-
ção aos atingidos pelos empreendimentos mineradores, uma vez que, ao
se conformar como uma categoria social em disputa, a noção de atingido
varia no tempo e no espaço, considerando seus contextos políticos e cul-
turais, assim como de acordo com o desenrolar e o desenlace dos conflitos
opondo diferentes atores sociais (VAINER, 2008, p. 40-1). Ser um atingido
constitui um elemento definidor da agenda dos movimentos socioterrito-
riais que conflitam com as grandes mineradoras, diferentemente dos mo-
vimentos dos sem-terra, que se definem e elaboram suas agendas baseados
na condição de despossuídos. Não que esta condição não se aplique aos
atingidos pelos grandes empreendimentos mineradores que passam a figu-
rar-se como despossuídos, mas são, antes de tudo, “atingidos”.
No caso da mineração, a noção de “atingido” não era diretamente uma
categoria social que pretendia legitimar os direitos de determinado grupo
social impactado pela mineração, muito menos a denominação de movi-
mentos sociais críticos à lógica dos grandes projetos minerais. Levando em
consideração a inexistência de um movimento de “atingidos por minera-
ção” na Amazônia brasileira até o princípio do século XXI e a constatação
de difusas experiências de mobilizações populares em áreas de mineração
na região, constatou-se pertinente investigar as características dos movi-
mentos sociais existentes, buscando com isso dar melhor ênfase ao Movi-
mento Nacional Pela Soberania Popular Frente à Mineração, denominado
inicialmente e conhecido mais popularmente como Movimento dos Atin-
gidos por Mineração (MAM),5 que está buscando ampliar a mobilização
em torno da criação e nacionalização de um movimento antimineração.
Na Amazônia brasileira, no Corredor da Estrada de Ferro Carajás, desde
2007, o Movimento dos Atingidos pela Companhia Vale do Rio Doce, que

4 O trabalho de esclarecimento conceitual de Vainer se insere num contexto no qual a


perspectiva da realização de novos deslocamentos populacionais em função da expansão
do setor hidroenergético demanda um melhor entendimento conceitual em busca de um
tratamento mais justo às categorias sociais envolvidas.
5 Rebatizado em um dos encontros realizados no sentido de consolidar sua fundação, foi
mantida a mesma sigla (MAM).

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 127

agregou variados atores sociais, tornou-se bastante incisivo, tornando-se a


região do Brasil com maior resistência e críticas à mineração e com um for-
te componente ideológico antimineração. Os embates no Corredor Carajás
são capitaneados pela Rede Justiça nos Trilhos (JnT), fundada em 2007, mas
com intensa participação das comunidades locais atingidas, de variados mo-
vimentos sociais (do campo e da cidade), de ONGs e de outros atores da so-
ciedade civil. Os movimentos nacionais como Atingidos pela Vale, o MAM,
o GT Mineração e Siderurgia da RBJA e o Comitê em Defesa dos Territórios
apresentam expressiva representatividade no Corredor Carajás. Até então,
as experiências de lutas de movimentos na região não se contrapunham aos
grandes projetos de extração minerais, mas atuavam exclusivamente na luta
por direitos sociais e territoriais ameaçados, por indenizações por impactos
sofridos ou pela participação no crescimento econômico.
As experiências mobilizatórias que emergiram na Amazônia eram di-
ferentes dos movimentos antimineração que existiam em alguns países e
que, como já foi apontado, apareceram no Brasil no fim dos anos 2000.
Entretanto, eles constituíram a origem e o estímulo do movimento antimi-
neração brasileiro, direta ou indiretamente. No caso de Juruti, os aprendi-
zados de Oriximiná e a existência de organizações sociais conscientizadas
sobre os danos de um empreendimento mineral ajudaram no embasamen-
to e na formação de uma consciência crítica sobre a mineração. Ao que
tudo indica, a maneira dos atores sociais atingidos reagirem à mineração
vem alterando lentamente o cerne da questão dos direitos sociais e terri-
torial, da formalização das terras, em particular para o tema do uso dos
recursos minerais.
Na América Latina, de forma geral, e na Amazônia brasileira, de ma-
neira específica, o elevado grau de dependência da extração dos recursos
naturais como vetor de crescimento econômico regional não é uma novi-
dade. Esta dependência em nível regional toma novos contornos na atuali-
dade devido à intensificação do processo de redução do Estado, da entrada
de capitais transnacionais, da abertura comercial e da privatização de em-
presas públicas, como é o da Cia. Vale do Rio Doce (CVRD) no Brasil e a
Minero no Peru.
Os impactos territoriais desse processo se manifestam, sobretudo, na
expropriação e supressão de camponeses de suas atividades domésticas e
de produção e distribuição solidárias, na geração de uma massa de traba-
lhadores destituídos de propriedade, nos subterfúgios e mecanismos de

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128 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

exploração (territorial, de classe e dos recursos naturais), no uso do terri-


tório e de seus recursos minerais, água, energia etc. até exauri-los, na apro-
priação do espaço urbano como lócus privilegiado da acumulação espolia-
tiva, na expropriação do patrimônio público pela via das privatizações e no
uso geopolítico do território, descartando territórios, pessoas, instituições
e saberes comunitários tradicionais.
A forma de apropriação do território e seus recursos, como espaço de
imposição de um espaço político e econômico e como aparelhamento de
um projeto de desenvolvimento capitalista, é elemento essencial para a ele-
vação da taxa de lucro dos estrategistas da mineração, do agronegócio e da
hidroenergia, setores que se articulam e se hegemonizam na apropriação
dos territórios na Amazônia e no Pará. Para a contínua expansão do ca-
pital, a apropriação das reservas naturais subterrâneas é indispensável, tal
como demonstrada na expansão do agro-hidronegócio por Thomaz Júnior
(2009). Este autor evidencia como o movimento do capital e seus meca-
nismos de apropriação das reservas do subsolo conformam territórios em
disputa, inseridos nos circuitos produtivos do capital. A apropriação do
subsolo pelas empresas mineradoras revela as relações de conflitualida-
de entre classes e grupos. Sua apropriação pode se dar de forma direta,
por meio da territorialização da exploração mineral, ou de forma indireta,
pelo controle jurídico, conforme o próprio aparato legal instrumentaliza-
do pelo Estado. De maneira geral, as duas formas de apropriação ocorrem
num mesmo processo de territorialização.
Para Almeida (2009), os atores políticos ligados ao agronegócio têm de-
senvolvido forte pressão política no sentido de ampliar o volume de terras
à disposição da expansão do setor. De acordo com o autor, as “agroestraté-
gias” são um conjunto articulado de discursos, ações e mecanismos cons-
truídos por agências multilaterais e conglomerados financeiros e agroin-
dustriais para incorporar novas terras para a expansão da produção de
commodities agropecuárias. Essas “agroestratégias” têm como foco prin-
cipal as áreas de preservação ambiental, as terras indígenas, quilombolas,
de assentamentos rurais e de uso comum, vistos como obstáculos a serem
removidos, visando ampliar a oferta de terras no mercado que vive mo-
mento de intenso aquecimento, derivado inclusive do crescente interesse
de grupos estrangeiros na aquisição de terras no Brasil.
De acordo com Almeida (2009), as principais “agroestratégias” em cur-
so são: (1) redefinição da Amazônia Legal, com a exclusão de Mato Gros-

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 129

so, Tocantins e Maranhão, possibilitando a incorporação imediata de 145


milhões de hectares, em função da redução da área destinada à preserva-
ção ambiental; (2) redução de 80% para 50% na área de reserva legal da
Amazônia; (3) liberação de crédito para quem praticou crime ambiental,
evitando que os “agronegociantes” fiquem sem acesso a estes recursos; (4)
privatização de terras públicas com até 1500 ha sem licitação na Amazônia
– MP 422/2008; (5) redução da faixa de fronteira onde é proibida a compra
de terras por estrangeiros de 150 para 50 km; (6) revogação do dispositivo
constitucional que prevê a titulação das terras de remanescentes de qui-
lombos.
Em consequência, mas também como matriz, estão sendo levados a
cabo grandes projetos de integração para circulação de mercadorias. To-
dos esses setores estão marcados pelo domínio de empresas transnacionais
vinculadas à agricultura e aos diferentes recursos naturais, como o caso da
mineração, da água e da biodiversidade, sendo o papel do Estado funda-
mentalmente auxiliar no processo de territorialização do capital (BATIS-
TA, 2012).
Assim, os interesses do agronegócio (soja, cana-de-açúcar, dendê, eu-
calipto, pecuária e carvoarias atreladas a guseiras), em conjunto com as
ações de grandes projetos de infraestrutura (rodovias, barragens, hidro-
vias, aeroportos, portos), estão pressionando, em todo o espaço agrário
amazônico e brasileiro, os camponeses – aqui entendidos na sua ampla di-
versidade: os povos originários, os extrativistas, os quilombolas, os garífu-
nas, os pescadores artesanais e os artesãos rurais, entre tantos outros –, no
sentido de lhes destituir de suas condições de sujeitos com autonomia para
submetê-los à lógica burguesa, ou para transformá-los em empresários pe-
quenos burgueses, ou para se proletarizarem, ampliando mais ainda o já
incomensurável exército de reserva de força de trabalho para as empresas
capitalistas (CARVALHO, 2010).
Na lógica que organiza uma sociedade capitalista, as relações de produ-
ção e formas de propriedade vigentes determinam a primazia da apropria-
ção dos territórios como “recursos naturais”, ou seja, como matérias utili-
zadas para a produção de mercadorias com vistas à acumulação de riqueza.
Essa poderosa lógica condiciona a distribuição desigual das possibilidades
de acesso, controle e uso dos diferentes territórios, assim como as lutas
sociais em torno dessa distribuição. Diante das novas territorialidades que
vêm mudando o cenário da região, com rebatimentos sobre a histórica ati-

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130 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

vidade garimpeira, um conjunto de estratégias vêm sendo tomadas: for-


talecimento da legislação ambiental e minerária, interdição de garimpos
e desemprego, atuação de empresas privadas, apropriação e controle do
subsolo através de registros junto ao Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM), por empresas nacionais e transnacionais, são elementos
que expressam mudanças significativas e recorrentes nas regiões onde este
setor tem buscado sua expansão, em particular no estado do Pará. Nesse
processo, o território torna-se uma categoria central para a compreensão
da materialidade e imaterialidades dos conflitos na região sudeste do Pará.
Nesse processo, o território torna-se uma categoria central para a com-
preensão da materialidade e da imaterialidade dos conflitos que ocorrem
na região. Para Haesbaert (2006, p. 87), “[…] o território é um dos princi-
pais conceitos que tenta responder à problemática da relação entre a so-
ciedade e seu espaço”. Na apropriação social do espaço emergem disputas
territoriais permeadas por relações de poder forjadas no conteúdo da luta
de classes. No entanto, muitas análises concentram as atenções na ocupa-
ção dos solos e controle da superfície, como terras agricultáveis e espaços
urbanos, associadas aos interesses hegemônicos e estratégicos do capital.
Pouco se avançou na preocupação com os processos de apropriação e do-
mínio do subsolo enquanto território permeado por relações de poder, en-
tendido como elemento geopolítico na expansão e reprodução do capital.
A exploração dos minérios e controle da água subterrânea e em aquíferos
são exemplos evidentes.
O subsolo envolve conflitos e disputas pelos recursos que possui. Como
afirma Raffestin (1993, p. 251), “[…] todos os recursos são ou podem ser
instrumentos de poder”. A apropriação do subsolo pelas empresas minera-
doras revela as relações de conflitualidade e poder de classe do capital. Sua
apropriação se dá de forma direta, através da territorialização da explora-
ção mineral ou indiretamente, pelo controle jurídico, conforme o próprio
aparato legal instrumentalizado pelo Estado. No último caso, os registros
de subsolo, concedidos para pesquisa ou exploração, através do Governo
Federal às empresas nacionais ou transnacionais é um exemplo claro.
Para garantir os interesses das empresas, o Estado substancia meca-
nismos espoliadores, assentado no modelo de exploração das riquezas
naturais, superexploração da força de trabalho e desterritorialização de
comunidades tradicionais, usando forças repressivas através dos aparelhos
de coerção como a polícia ou o próprio aparato jurídico, legitimando a

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 131

ação do Estado, mais funcional aos interesses hegemônicos do que às po-


pulações locais. De acordo com Conceição (2009, p. 5), “Sob o modo de
produção capitalista o Estado age, na sua integralidade, para cumprir os
requisitos necessários à reprodução do capital. Essa atuação pode, em de-
terminadas circunstâncias, ser executada de modo velado ou deliberado”.
Com milhares de hectares de subsolo registrados, as empresas capita-
listas, além de propiciarem a especulação, entram em conflito com pro-
prietários de terras, camponeses, quilombolas, garimpeiros, indígenas e
com os próprios empresários da mineração.
Esses enunciados se articulam com a concepção de Fernandes (2005),
no sentido de compreender território como o espaço apropriado por uma
determinada relação social que o produz e o mantém a partir de uma forma
de poder cujo território é, ao mesmo tempo, uma convenção e uma con-
frontação. Exatamente porque o território possui limites, possui fronteiras,
é um espaço de conflitualidades. Sua configuração como território refere-
-se às dimensões de poder e controle social que lhes são inerentes. Para o
autor, “[...] no espaço as relações sociais se materializam e se reproduzem,
produzindo espaços e territórios em movimentos desiguais, contraditórios
e conflitivos. Denomina esses movimentos de processos geográficos, que
são também processos sociais” (FERNANDES, 2005, p. 6).
É na luta em sua contradição com as agroestratégias, com a dinâmica
de projetos neoliberais e desenvolvimentistas/neodesenvolvimentistas que
estes articulam, que se configura a luta dos movimentos sociais no campo
brasileiro. Essas lutas, compreendidas como um processo político-ideoló-
gico de negação da “apropriação privada da natureza pelo capital”. Assim,
território passa a entender-se como uma unidade geopolítica de controle
e de poder.
Como afirma Carvalho (2010, p. 1):

Os “territórios camponeses”, assim como aqueles dos quilombolas, dos


extrativistas, dos povos originários (indígenas), tanto como aqueles terri-
tórios de preservação pelo interesse comum como as de recursos naturais
renováveis (parques florestais, estações ecológicas, áreas de preservação
permanente, manguezais, babaçuais...), o litoral, as bacias hidrográficas,
os lagos e sua área de influência, entre tantos outros, deveriam constituir
objeto de disputa política das classes populares em relação à tendência de
apropriação privada da natureza pelo capital, como consequência não ape-

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132 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

nas da acumulação via espoliação, mas da expansão do capital no processo


da sua reprodução ampliada.

É no confronto de territorialidades distintas, referenciadas pela produ-


ção mineral e do agronegócio em confronto com territorialidades campo-
nesas, indígenas, de quebradeiras de coco babaçu, dos atingidos por bar-
ragem, dos atingidos por mineração, dentre outros, que podemos propor
uma abordagem que possibilite aprofundar as leituras geográficas a partir
das ações dos movimentos sociais. De acordo com Fernandes (2005, p. 8),

[…] da mesma forma como alguns movimentos produzem e constroem es-


paços, também se espacializam e possuem espacialidades. A produção ou
a construção do espaço acontece pela ação política, pela intencionalidade
dos sujeitos para transformação de suas realidades. Os espaços políticos são
reproduzidos pelo movimento da ação, constituindo a espacialização. Os
conteúdos desses espaços são manifestados por suas inerências: a espaciali-
dade e a espacialização são propriedades do espaço em seu movimento […].

Portanto, para Fernandes (2005), usando o conceito de movimentos so-


cioterritoriais, as formas de organização, as relações e as ações acontecem
no espaço, se realizam no espaço geográfico e em todas as suas dimensões:
social, política, econômica, ambiental, cultural etc.
É importante destacar que, na última década, um conjunto de mobili-
zações e articulações ocorreu e ocorre no sentido de se trocar experiências,
denúncias e pensar as resistências antimineração, mais especificamente
contra a empresa Vale do Rio Doce. Diversas organizações de todos os ní-
veis – CPT, CEPASP e Movimento Debate e Ação, MST, CPT, MAB, FEAB,
FETAGRI, Justiça nos Trilhos, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e Asso-
ciações de Agricultores e de Moradores, estudantes e professores univer-
sitários dos estados do Pará (PA), Maranhão (MA) e Tocantins (TO), que
articulam bases sociais atingidas pelo avanço da mineração – vêm trocan-
do relatos de experiências sobre os impactos negativos que a mineração e
a Companhia Vale do Rio Doce têm representado para as comunidades
locais, bem como no sentido de avançarem nas perspectivas de formação
e, também, de ação.
Um elemento importante a destacar é que todas as áreas de assenta-
mento do MST no sul e no sudeste do Pará estão afetadas pelas empresas

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A pesquisa geográfica sobre os movimentos sociais 133

de mineração. Em nível nacional, dos 24 estados em que existe a organiza-


ção do MST, em 14 deles existem assentamentos impactados pela minera-
ção, 6 de acordo com levantamento feito pelo MST. Junto a essas questões,
vários grupos antimineração têm surgido no Brasil nos últimos anos. No
Pará temos como exemplos o Movimento dos Trabalhadores da Mineração
(MTM) em 2008, articulando os trabalhadores da Serra Pelada; o Movi-
mento Juruti em Ação em 2009, no município de Juriti, região do Tapajós
e, em especial, o Movimento Nacional Pela Soberania Popular Frente a
Mineração (MAM).

Considerações finais

No campo e na cidade os problemas sociais consequentes da lógica con-


traditória do modo de produção capitalista se acirraram. Pertinente ao
desenvolvimento desigual desse modo de produção, há o aprofundamento
do processo de desterritorialização (rurais e urbanas) devido ao agrava-
mento da situação socioambiental, da ocupação desordenada do espaço, da
concentração de terras, da intensa especulação imobiliária, da expansão
do agronegócio sobre áreas de floresta, entre outros desdobramentos. As
mobilizações sociais das classes populares têm enfrentado desafios cada
vez maiores para manterem suas práticas, suas tradições e suas condições
materiais de reprodução.
A apropriação de parcelas do território é, sem dúvida alguma, além de
uma estratégia de sobrevivência, uma forma de resistir à degradação dos
valores comunitários arraigados no espaço da vida. Definidos como um co-
letivo de pessoas mobilizadas/organizadas que atuam conjuntamente para
produzir alguma mudança na sociedade e em seu espaço, os movimentos
socioterritoriais são organizações que surgem em momentos de inquieta-
ção social. Dado o caráter excludente da sociedade capitalista, sempre há
aqueles que se recusarão a ficar pacatos diante da própria situação, daí a
natureza social da conflitualidade. As ações ensejadas pelos movimentos
representam um momento do conflito social pertinente à sociedade atual.

6 Informação dada por Charles Trocate em entrevista cedida em 2014 no âmbito da pes-
quisa de mestrado de Eldenilson da Silva Monteiro.

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134 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Considerado o exposto, acreditamos que o processo de territoriali-


zação do Movimento Nacional Pela Soberania Popular Frente à Mine-
ração (MAM), assim como seus mecanismos de articulação com os di-
versos sujeitos sociais do campo e da cidade – através das experiências
concretas que vêm sendo construídas na Amazônia Brasileira – pode
ser melhor compreendido por meio dos conceitos de território, terri-
torialização, territorialidade e movimentos socioterritoriais, visto que
este conjunto teórico – da abordagem socioterritorial – nos ajuda a
compreender como os movimentos socioterritoriais constroem espaços
políticos, territorializam-se e promovem territorialidades ao buscarem
atingir seus objetivos. Assim, os movimentos socioterritoriais têm o
território não só como trunfo, mas como fundamento essencial para
sua existência.

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CAPÍTULO 7

Convivência com o semiárido


Um novo tema na agenda dos presidentes das
associações do território do Sisal no estado da Bahia

Edinusia Moreira C. Santos


Onildo Araujo da Silva

Introdução
Este artigo analisa, a partir da investigação das parcerias estabelecidas no
Território do Sisal,1 as nuances da relação entre o Estado e as Associações2
(comunitárias, produtivas, de organização de jovens, de comunicação e de
educação) com foco na ideia de convivência com o semiárido no Território
do Sisal, no estado da Bahia/Brasil.
O Território do Sisal é composto atualmente por 20 municípios: Con-
ceição do Coité, Retirolândia, Monte Santo, Itiúba, Cansanção, Nordesti-
na, Queimadas, Quijingue, Tucano, Araci, Teofilândia, Biritinga, Ichú, La-
marão, Serrinha, Barrocas, Candeal, Valente, Santa Luz e São Domingos
(Figura 1), todos localizados no semiárido baiano e identificados com a
cadeia produtiva da agave sisalana, espécie vegetal xerófila conhecida po-
pularmente apenas como sisal. O sisal se adaptou muito bem às condições
de semiaridez e fornece uma fibra com a qual é possível fabricar fios, cor-
das, tapetes, carpetes etc.

1 A denominação Território do Sisal originou-se com as propostas de políticas territoriais


adotadas pelo Estado brasileiro a partir de 2003 e com a criação do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) e implantação do Programa Nacional
de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PNDSTR), no âmbito do Ministé-
rio do Desenvolvimento Agrário (MDA). Em 2007, com o governo do Partido dos Traba-
lhadores no estado na Bahia, gestão Jaques Wagner, esse território foi definido como uma
unidade de planejamento.
2 As Associações foram identificadas e categorizadas no início da nossa pesquisa. Dentre
as categorias, elegemos essas cinco e aplicamos um questionário aos presidentes de 616
entidades. Para um aprofundamento, ver relatório de pesquisa aqui referenciado.

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140 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Essa possibilidade gerou uma indústria sisaleira, principalmente nos


municípios de Valente, Conceição do Coité, Retirolândia e São Domingos,
além de uma intensa atividade rural onde a plantação de sisal é, na maioria
dos municípios, a base da economia.
No semiárido baiano, a presença de associações é marcante. Entre os
anos de 2009 e 2011, realizamos uma pesquisa3 que teve como objetivo
investigar a relação da ação das associações com o desenvolvimento. Essa
pesquisa foi dividida em dois blocos: um de caracterização das entidades e
outro que focou as questões relativas ao desenvolvimento.4 Foram inves-
tigadas 616 associações em 20 municípios do Território do Sisal no estado
da Bahia/Brasil, cujos presidentes foram entrevistados.
Nesse artigo sintetizamos um aspecto dessa investigação que é a rela-
ção entre a ação das associações e as iniciativas que estão gerando uma
mudança de perspectiva e influenciando na revisão de uma ideia secular:
a de que o semiárido brasileiro é pobre e miserável em função da seca.
Constatamos que, como os 20 municípios da pesquisa estão localizados no
semiárido brasileiro, a “questão” da seca é parte da agenda das associações,
principalmente aquelas que estão localizadas no espaço rural. Além disso,
constatamos também que está evidenciada a diferença entre dois discur-
sos: um que ainda fala de combate à seca e outro que destaca a ideia de
convivência com o semiárido.
Os dados demonstram que a maioria dos presidentes de associações
revelou que suas entidades não estão mais demandando as típicas ações de
“combate à seca”, como carros-pipa, por exemplo; mas, sim, demandando
ações que resultem numa solução definitiva para a disponibilização e uso
da água no Território do Sisal. A maioria entende que essas ações têm re-
batimento direto na atividade produtiva, na melhoria da vida dos associa-
dos e num salto de qualidade do ponto de vista dos principais indicadores
sociais. Entendemos que ao impulsionar um debate, cobrar efetivamente

3 Os dados utilizados neste trabalho foram coletados durante investigação realizada entre
os anos de 2008 e 2010, intitulada Inclusão Social e Desenvolvimento no Território do Sisal:
diagnóstico e construção de mecanismos de apoio ao fortalecimento da ação das associações
e cooperativas, que teve como objetivo realizar um diagnóstico do tecido associativista do
Território do Sisal no estado da Bahia e investigar a relação da ação das associações com
o desenvolvimento.
4 No livro Gente ajudando gente: o tecido associativista do Território do Sisal, aqui refe-
renciado, apresentamos os resultados da pesquisa com relação ao desenvolvimento.

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Convivência com o semiárido 141

do Estado ações de convivência com o semiárido – e não de combate à seca


– e mesmo agir por conta própria, no sentido de buscar práticas efetivas de
conviver com os períodos de estiagem, essas associações estão efetivamen-
te influenciado relações de base espacial e impulsionando o desenvolvi-
mento local/regional.

Figura 1. Território do Sisal no contexto do semiárido baiano (2015)

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142 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

As associações e a questão da água


Os indivíduos sempre buscaram formas de associar-se – desde os grupos
nômades até as grandes empresas capitalistas contemporâneas – como
alternativa para melhorar as condições de vida e de trabalho e, mesmo,
como estratégia de acumulação. Historicamente, a depender da estrutura
socioeconômica de cada sociedade, os princípios, os objetivos e as formas
de associação tomaram características específicas.
De acordo com Santos (2010), consolidar uma sociedade mais demo-
crática e justa deveria ser o objetivo motivador para a constituição das as-
sociações. Assim, as associações, além de servirem como base, em uma
microescala, para o desenvolvimento da democracia, estariam também
aglutinando as pessoas e organizando-as no sentido de buscar uma socie-
dade com menos injustiça e pobreza.
Entendemos ser necessário nos preocuparmos com os conceitos que
utilizamos. Porém, os limites desse artigo não nos permitem uma ampla
revisão conceitual, de forma que optamos por identificar nossas opções,
demarcando apenas os conceitos que utilizamos como base para a inves-
tigação.
Dessa forma, entendemos as associações como

[...] formas organizadas de ações coletivas empiricamente localizáveis e


delimitadas, criadas pelos sujeitos sociais em torno de identificações e pro-
postas comuns, como para a melhoria da qualidade de vida, defesa de di-
reitos de cidadania, reconstrução comunitária etc. (SCHERER-WARREN,
1999, p. 10).

O espaço da investigação que aqui sintetizamos é marcado, além do


número significativo de associações, por indicadores sociais muito ruins;
a pobreza ainda é marcante. Dessa forma, as associações representam uma
forma de buscar melhorias nas condições de vida de forma coletiva. As-
sim, relacionar as atividades desenvolvidas pelas associações e a questão
da água é básico quando o espaço de estudo possui clima semiárido, que
apresenta precipitações irregulares, exigindo, no mínimo, uma ação pla-
nejada para armazenamento de água.
Nesse sentido, o tema da irregularidade das chuvas/seca aparece na fala
dos presidentes das associações de forma indireta. Ou seja, quando orga-

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Convivência com o semiárido 143

nizamos os dados referentes a temas como o patrimônio das associações,


os benefícios conseguidos para seus associados e os cursos de capacitação
oferecidos, foi possível identificar uma forte relação entre o direcionamen-
to da ação de várias associações para trabalhar aspectos relacionados à
chuva, à seca e/ou à falta d’água. Além disso, esses presidentes também
relacionaram a seca e a chuva ao desenvolvimento local/regional. Assim,
optamos por focar na análise da relação que os presidentes estabelecem
entre seca e desenvolvimento e em como a questão da água figura nas de-
mandas estruturadas no contexto das associações pesquisadas.

Associações, água e desenvolvimento

Em trabalho anterior, Santos (2010) aborda a relação entre associativismo


e desenvolvimento, desvelando a concepção de desenvolvimento dos presi-
dentes das associações investigadas; em outro trabalho, a autora (SANTOS,
2014) realiza uma análise de como essas concepções de desenvolvimento
se articulam com as questões ligadas ao binômio seca/água na perspectiva
desses mesmos representantes das associações.
Em nossa investigação, com relação à questão do desenvolvimento, op-
tamos por fazer, aos representantes das associações, perguntas abertas. A
intenção era captar a forma como o representante lida com a questão e
seus desdobramentos para o trabalho da associação. Assim, perguntamos
se existem obstáculos ao desenvolvimento do Território do Sisal e, em caso
positivo, quais eram esses obstáculos. Dos 616 presidentes questionados,
479 (77,7%) responderam que sim e 137 (22,3%) responderam que não exis-
tem obstáculos ao desenvolvimento.
Quando avaliamos os aspectos apontados como obstáculos ao desenvol-
vimento (Quadro 1), identificamos que a seca/falta de chuva é o obstáculo
que mais se repete – foi citado por 55 dos 479 presidentes de associações,
equivalendo a 11,5%. No entanto, os outros obstáculos apontados ao desen-
volvimento envolvem questões relativas às formas de organização e relação
entre os diversos agentes sociais, com destaque para a política e para a ação
do Estado, uma vez que o apoio do poder público é o segundo fator que mais
se repete (citado por 49 dos 479 presidentes, equivalendo a 10,22%).

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144 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Quadro 1. Obstáculos ao desenvolvimento do Território do Sisal segundo os


representantes das associações (Bahia/Brasil, 2009)

1. Seca/falta de chuva 55
2. Falta de incentivo do governo/apoio do poder público 49
3. Falta de apoio dos políticos 38
4. Falta de apoio aos pequenos produtores 35
5. Forma de organização/execução das políticas públicas 31
6. Falta de incentivo à produção do sisal 26
7. Falta de financiamento e/ou falta de conhecimento para articular as 26
pessoas para conseguir recursos financeiros
8. Desemprego 25
9. Falta de informação/conhecimento 25
10. Falta de organização/mobilização da comunidade (principalmente 22
para buscar projetos)
11. Burocracia para conseguir projeto governamental 19
12. Baixo preço do sisal 19
13. Falta de integração entre as organizações e o poder público 16
14. Politicagem/brigas políticas 14
15. Não aprovação dos projetos enviados 11
16. Falta de assistência técnica 10
17. Falta de apoio às pequenas entidades 7
18. Fatores ambientais 6
19. Falta de vontade política 6
20. Atravessadores 6
Fonte: Santos, Silva, Coelho Neto (2011).

A identificação da seca ainda como obstáculo de maior frequência re-


flete a construção do mito da necessidade no Nordeste brasileiro (CAS-
TRO, 1992) por parte da elite política regional, centrada na ideia de que a
seca é a causa da miséria e da fome no semiárido brasileiro. Esse discurso
foi amplamente difundido e internalizado, passando a fazer parte de um
imaginário construído sobre o Nordeste, em que a falta d’água é a matéria-
-prima para negar a ação social e legitimar a miséria pela vontade de Deus,

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Convivência com o semiárido 145

senhor da natureza sacralizada, que manda chuva quando quer. Essa dis-
cussão traz luz a outra face do problema: se não é a ação do governo – que
é ineficiente –, é a seca.
Num contexto onde boa parte dos presidentes de associações são pe-
quenos agricultores semianalfabetos, essa imagem ainda é forte e difícil
de ser negada. Daí a direta relação entre seca e desenvolvimento, ou seja,
o desenvolvimento é sinônimo de melhorias na condição econômica e na
qualidade de vida, mas é a seca que sempre atrapalha a ação da comunida-
de, a cerca, sinônimo da concentração fundiária, não é citada ou mesmo
vista como culpada por esses presidentes de associações. Naturaliza-se o
problema.
Essa questão é tão significativa que, para esses representantes, princi-
palmente os pequenos agricultores, o acesso à terra não é listado como
uma via para resolver o problema da geração de renda criado pelo mini-
fúndio. O representante, nesse caso, ainda não é capaz de perceber que
o vizinho, aquele que é dono do latifúndio, não “sofre” com a seca pois
possui imensas aguadas, inclusive, muitas delas construídas com recur-
sos públicos do antigo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas
(DNOCS). Em síntese, só mesmo a releitura “desse mito da seca” seria ca-
paz de reestruturar essa visão. As próprias associações já apontam novos
caminhos quando constatamos que o curso de capacitação que elas mais
ofereceram foi justamente o de convivência com o semiárido.
Do ponto de vista acadêmico, essas concepções deterministas, já du-
ramente criticadas e combatidas (SILVA, 1999), já foram superadas e co-
locaram em xeque esse tipo de discurso. Assim, não podemos aceitar sem
duras críticas a ampliação dessa visão que articula fenômeno natural, eco-
nomia e desenvolvimento.
Porém, não podemos deixar de registrar que, se somarmos as outras res-
postas que estão vinculadas às questões políticas, tivemos 154 presidentes
(32,15%) enfatizando a falta de apoio dos políticos, falta de vontade política
e “brigas” político-partidárias, o que abre um leque diferente de análise da
questão, tirando o foco da seca como causa fundamental dos problemas.
Quando esses mesmos representantes foram questionados sobre a for-
ma de ultrapassar os obstáculos ao desenvolvimento, as respostas princi-
pais foram: articulação das pessoas (43 presidentes); valorizar a lavoura
sisaleira (36 presidentes); mobilização entre poder público e sociedade civil
(33 presidentes); apoio governamental através de crédito (31 presidentes);

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146 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

conscientização dos políticos (29 presidentes); construir canais de irriga-


ção/aguadas/perfuração de poços (25 presidentes); presença maior do go-
verno do Estado para auxiliar a elaboração de projetos (17 presidentes);
capacitação ligada à socialização dos associados (16 presidentes); contrata-
ção de técnicos (15 presidentes) e fortalecimento do associativismo/organi-
zação das associações (14 presidentes).
Destacamos que entre os 423 presidentes de associações que aponta-
ram soluções para o enfrentamento dos obstáculos ao desenvolvimento,
43 (10,1% dos que responderam à questão) indicaram a articulação das
pessoas como estratégia decisiva nesse pleito.
Essas respostas apresentam alinhamentos interessantes com a concep-
ção de desenvolvimento endógeno, na medida em que estamos escutando
a voz de líderes comunitários que, fundamentados na sua lida cotidiana,
nos respondem que a solução para um dado problema não está fora do
seu contexto, não advém da ação de agentes externos (como empresas ou
governos), mas da articulação das pessoas em torno de uma causa comum.
Essa alternativa mencionada informa uma direção assumida de forma
progressiva pelas ações coletivas contemporâneas, isto é, a formação de
redes de solidariedade como mecanismo de criação de sinergia e fortaleci-
mento dos coletivos organizados (COELHO NETO, 2014) para construção
de soluções conjuntas para problemas comuns.
Destacamos ainda que, entre todas as soluções identificadas, apenas a
construção de canais de irrigação/aguadas/perfuração de poços teria rela-
ção com a seca/falta de água. Essas são ações que remetem diretamente
à questão da convivência com o semiárido e foram citadas por 25 repre-
sentantes (5,9%). Isso expressa a seguinte relação: 55 presidentes (11,5%)
identificaram a seca ou falta de chuva como obstáculo, porém 25 deles
(45,5%) disseram que para superar esse obstáculo devemos construir ca-
nais de irrigação, aguadas e poços. Ou seja, nenhum presidente citou fren-
te de serviço ou carro-pipa; eles estão cientes de que a falta d’água deve
ser resolvida em definitivo, só assim a presença da água contribuirá para
o desenvolvimento. Esta é uma mudança de perspectiva muito bem-vinda,
pois expressa o quanto podemos caminhar no sentido de superar os velhos
discursos que vinculam a miséria de grande parte do povo nordestino às
secas cíclicas do semiárido brasileiro.
Ao analisarmos as demandas apontadas pelas associações, percebemos
que, dentre as 20 de maior frequência, quatro estão ligadas diretamente

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Convivência com o semiárido 147

à questão da água (Quadro 2). Isso ratifica a preocupação em resolver a


questão da escassez de água, mas com procedimentos de convivência, e
não de combate. Não foi mencionada nenhuma ação típica dos históricos
programas de combate às secas, como frentes de serviço, por exemplo.

Quadro 2. Demandas que as associações buscam resolver em curto prazo, segundo


os seus representantes – Território do Sisal (Bahia/Brasil, 2009)

Tipo de demanda Frequência


1. Água encanada 170
2. Energia elétrica 89
3. Melhorar a renda da comunidade/geração de emprego e renda 81
4. Construir cisternas 64
5. Sanitários/Banheiros 42
6. Melhorar a qualidade de vida 42
7. Construir a sede 38
8. Estruturar melhor a associação
36
(questões administrativas e políticas)
9. Trator 32
10. Construção de casa de farinha 31
11. Saúde e educação 31
12. Melhorar as estradas/pavimentação de ruas 29
13. Orelhão público/posto telefônico 28
14. Construir/reformar casas 28
15. Posto de saúde 22
16. Construir barragem 21
17. Saneamento básico (coleta de lixo) 20
18. Cursos de capacitação 18
19. Conseguir máquinas/equipamentos agrícolas 18
20. Conseguir poço artesiano 17
Fonte: Santos, Silva, Coelho Neto (2011).

As associações, para alcançar os objetivos e atender às demandas esta-


belecidas, acabam recorrendo às parcerias com o Estado em suas diferen-
tes escalas. Mesmo assim, acreditamos que esse processo pode possibilitar

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148 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

a construção da autonomia dos indivíduos que, ao conseguirem, a partir


de uma ação coletiva de cobrança ao poder público, benefícios como água
encanada, poço artesiano, cisternas e barragens, resolvem o problema de
acesso/armazenamento da água e passam a não mais depender das ações
eleitoreiras e assistencialistas.

As relações entre associações e poder público

Nossos dados revelam que em todos os 20 municípios do Território do


Sisal aparece como relevante o estabelecimento de diferentes parcerias
para execução de projetos e programas que envolvem a convivência com
o semiárido. Revelam também que a maioria das associações que estão lo-
calizadas no espaço rural tem participado da execução de programas que
visam construir cisternas e outros sistemas de armazenamento e uso da
água. Essas ações têm rebatimento na esfera produtiva e estão contribuin-
do para um repensar do velho discurso da seca.
Os representantes das Associações já cobram do Estado ações efetivas
para resolver em definitivo o problema de abastecimento de água, e essas
ações têm rebatimentos espaciais importantes, contribuindo para reestru-
turações pontuais na dinâmica do espaço rural. Os principais parceiros
das Associações são órgãos governamentais, como a Companhia de De-
senvolvimento e Ação Regional (CAR), a Empresa Baiana de Desenvol-
vimento Agrícola (EBDA) e a Companhia de Engenharia Rural da Bahia
(CERB), com destaque para projetos na área de armazenamento de água
(cisternas), de acesso (poços artesianos) e distribuição (pequenos sistemas
de derivação de adutoras). Nosso trabalho evidencia uma mudança de pa-
radigma importante, pois a maioria dos representantes das Associações foi
taxativa ao responder que não aceitam mais ações pontuais, como carros-
-pipa e frente de serviço.
Temos dedicado tempo e esforço para analisar a interação poder públi-
co e Associações, fundamentalmente quando essa ação tem rebatimento
espacial. Argumentamos que o resultado da ação conjunta em foco pode
ter implicações para o território e as territorialidades constituídas em dife-
rentes escalas; para a dinâmica da paisagem; para o lugar; para as relações
regionais e para a formatação de redes ou mesmo reconfiguração das redes
existentes. Justamente por isso, Silva (2010) defende que nesse processo a

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Convivência com o semiárido 149

ação é chave para a compreensão dos aspectos relacionados com a dinâmi-


ca espacial e com a ordenação territorial. Também é chave, para a análise
da dinâmica do espaço, a investigação de agentes que, cotidianamente, fa-
zem da sua ação um mecanismo de reprodução espacial.
O Estado, por sua força e capacidade de fazer agir todos os demais agen-
tes, e as Associações, por sua capacidade de fazer reunir pessoas em torno
de objetivos comuns, são dois entre os principais agentes no dinâmico pro-
cesso de organização do espaço, principalmente no Território do Sisal no
Estado da Bahia/Brasil, onde é amplo o tecido associativista (SILVA, 2010).
Assim, a parceria com os governos federal e estadual, para execução de
projetos e programas com foco na convivência com o semiárido, fazem
parte da estratégia de centenas de associações para viabilizar suas ações,
principalmente quando necessitam de grande soma de recursos para exe-
cutá-las. No banco de dados do GEOMOV,5 no item sobre as parcerias rea-
lizadas, identificamos que 62,9% dessas parcerias foram estabelecidas com
órgãos e empresas públicas, 34,4% com entidades dos movimentos sociais
e apenas 2,1% com entidades privadas.
Fica evidente que o parceiro principal é o Estado com o estabelecimen-
to de convênios. Esses convênios resultam em ações que têm rebatimentos
diretos tanto para a associação quanto para o espaço onde ela está atuando.
Entre esses aspectos, destacamos: a constituição de um patrimônio que
vai sendo colocado à disposição dos associados; a execução de obras públi-
cas referendadas pela ideia de que resultarão não do desejo do governante,
mas da ação organizada da própria comunidade; a gradativa formação de
lideranças políticas com voz ativa e, muitas vezes, votos, no seio da co-
munidade; e a reestruturação das próprias relações estabelecidas entre
governo e comunidade, entre líderes comunitários e políticos, e entre os
próprios moradores de uma comunidade que se fortalece a cada parceria
realizada e avaliada como uma conquista da organização comunitária, e
não como “favor” do político.
No contexto federal verificamos que o principal parceiro foi o Ministé-
rio do Desenvolvimento Agrário (MDA), que já tinha realizado 13 projetos
em parceria com as Associações até 2009, seguido da Companhia Nacio-
nal de Abastecimento (CONAB), do Instituto Nacional de Colonização e

5 Disponível em: <www.uefs.br/geomov>.

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150 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Reforma Agrária (INCRA), dos Bancos do Nordeste e do Brasil. Inclusive


com destaque para a CONAB, que estava com 13 projetos em realização no
ano de 2011. Na esfera estadual destacam-se órgãos públicos como a Com-
panhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), a Empresa Baiana de
Desenvolvimento Agrícola (EBDA) e a Companhia de Engenharia Rural
da Bahia (CERB). Na esfera municipal é mesmo a Prefeitura a parceira
principal.
Como exemplo do vínculo direto entre essas parcerias e as ações de
convivência com o semiárido está a parceria CAR e associações: foram 214
projetos realizados e 51 em andamento (em 2011, quando finalizamos a
coleta de dados). São projetos focados em ações que construíram cisternas,
banheiros, barragens, casa de farinha, moinho comunitário etc., ratifican-
do uma preocupação com a solução definitiva para a falta d’água, e não
mais com ações paliativas.

Convivência com o semiárido: uma agenda emergente

Como vimos anteriormente, o tema da seca e da convivência com o semiá-


rido aparece na investigação de forma espontânea, ou seja, em nenhum
momento perguntamos sobre ele ou se fazia parte dos objetivos da pes-
quisa. No entanto, quando perguntados sobre vários aspectos do trabalho
das associações, os representantes deram respostas que destacam a relação
entre a seca e/ou a convivência com o semiárido e a ação direta de suas
entidades.
Quando perguntados sobre as atividades realizadas pelas entidades, os
representantes destacaram, entre outras, a oferta de cursos de capacitação.
Em 164 das 616 associações investigadas, os cursos foram oferecidos em
parceria com o poder público e com entidades da sociedade civil organi-
zada. Quando identificamos os temas dos cursos oferecidos aos associados,
descobrimos que o tema principal foi técnicas de convivência com o semiá-
rido, uma vez que em 105 das 616 entidades pesquisadas foram realizados
cursos dessa natureza. Além disso, seis entidades ofertaram cursos cujo
tema foi o gerenciamento dos recursos hídricos.
Outro item relevante, e que surpreende pela natureza dos dados coleta-
dos, foi aquele relacionado aos principais benefícios conseguidos pela as-
sociação. Para nossa surpresa, o principal benefício conseguido foi a cons-

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Convivência com o semiárido 151

trução de cisternas. Construir cisterna em parceria com o poder público e


com organizações não governamentais aparece como um benefício conse-
guido por 237 das 616 entidades investigadas. Além disso, foram listados
também como benefícios conseguidos: água encanada (100 associações),
perfuração de poços artesianos (95 associações) e construção de barragens
(28 associações). Importa destacar que nenhum presidente de associação
listou carros-pipa ou frentes de serviço como um benefício conseguido
para suas comunidades.
É compreensível que as associações, numa área de clima semiárido,
priorizem mecanismos de armazenamento de água. Porém, importa des-
tacar que isso indica uma mudança de mentalidade. Esses dados revelam
que as ações reivindicadas pelas associações, ou mesmo efetivadas direta-
mente por elas, buscam resolver em definitivo a falta d’água.
Temos então um forte indicativo de que existe uma preocupação em
conviver com o semiárido, pois as entidades cobram dos governos, prin-
cipais parceiros nessas ações, soluções de caráter mais efetivo e definitivo,
em contraste com as práticas assistencialistas e paliativas tradicionalmen-
te adotadas pelas ações governamentais no Nordeste brasileiro semiárido,
onde ainda existe o velho discurso da seca como causa da miséria. Porém,
um outro dado indica que a forma como o tema da seca e da convivência
com o semiárido é lido pelos representantes das associações ainda traz
resquícios dessa velha forma como as elites locais nordestinas trataram o
assunto durante décadas:
Importa destacar que os dados também revelam que mesmo aqueles
presidentes que responderam ser a seca um obstáculo disseram que a so-
lução está em ações locais de mobilização das pessoas e do poder públi-
co, e não nas clássicas receitas de trazer indústrias, frentes de serviço e
carros-pipa, por exemplo. Isso indica claramente uma mudança efetiva de
perspectiva, onde é mais forte a vontade de agir numa linha de convivência
com o semiárido do que de combate à seca.
Outro dado ajuda a reforçar a ideia de que já existe, de fato, a constru-
ção de uma nova visão sobre o semiárido, já que, como destacado anterior-
mente, a demanda principal é a água encanada, visto como um benefício a
ser conseguido para a comunidade.
Claro está que a demanda por água encanada revela uma concepção de
que é preciso construir infraestrutura para que cada morador do semiá-
rido consiga conviver com a seca. Essa infraestrutura requer sistemas de

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152 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

armazenamento de água (cisternas e barragens, por exemplo); de acesso


a reservatórios já existentes, como, por exemplo, os lençóis freáticos; de
redes de tratamento e distribuição e de manutenção dessas redes etc. que
custam caro e não estão acessíveis, principalmente para a população mais
pobre. É aqui que a influência e o poder da associação se revelam eficazes
na pressão junto ao Estado para que viabilize tal infraestrutura. A parceria
é então estabelecida, mas os projetos e programas não se efetivam sem os
conflitos e as contradições de sua inserção numa sociedade capitalista e
recheada de governos neoliberais nas mais variadas esferas.6

Para não finalizar...

Alguns estudos (SILVA, 1993; SANTOS, 2000, 2002, 2007; NASCIMEN-


TO, 2000) já indicaram evidências das transformações que se processaram
nas últimas décadas na realidade do Território do Sisal. O associativismo é
apontado, numa posição de protagonista, como parte do conjunto de alter-
nativas para o enfrentamento das condições socioeconômicas ainda bastan-
te desfavoráveis e na busca de soluções para os problemas das comunidades.
As perspectivas dos presidentes de associações, aqui sintetizadas, reve-
lam uma gradativa mudança de paradigma. Não se combate mais a seca, ao
invés disso, são buscados mecanismos de capacitação para a convivência
com o semiárido. Para esse fim, a associação tornou-se importante agente
para buscar a resolução dos problemas de escassez de água, enfraquecendo
as ações que garantiram, por décadas, o uso político da seca como meca-
nismo de controle e dominação.
A convivência com o semiárido está na agenda do dia das associações
do Território do Sisal. Elas buscam soluções em várias frentes: parcerias
com o poder público, parcerias com ONGs nacionais e internacionais e
ações próprias, como os mutirões. Está evidente que a convivência com
o semiárido é uma agenda emergente no contexto das associações inves-
tigadas, inclusive as várias associações já são indutoras de um processo

6 Os limites desse artigo não nos permitem aprofundar o debate sobre a ação do Estado
na esfera dos recursos hídricos no Brasil. Assim, indicamos o artigo intitulado “Água a
serviço do grande capital: a influência do banco mundial na ação de governos neoliberais
no Brasil”, aqui referenciado.

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Convivência com o semiárido 153

de conscientização para a relevância de invertermos a ordem do discurso:


com o semiárido se convive, e seca não se combate.

Referências

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novos discursos no Nordeste. In: CASTRO, I. E. de; GOMES, P. C. da
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CAPÍTULO 8

A espacialidade das ações coletivas


Notas para o debate

Agripino Souza Coelho Neto

Introdução

O tema desta mesa-redonda (A ação dos movimentos sociais na constru-


ção do espaço geográfico), como qualquer outro, permite uma variada
gama de possibilidades de abordagem. Daí meu primeiro movimento é
explicitar e justificar minha opção de abordagem.
De forma bastante geral, o tema sugere pensar algumas perspectivas de
abordagem:
1. Numa perspectiva ontológica, podemos vislumbrar a possibilidade de
refletir sobre a relação entre espaço e movimentos sociais;
2. Numa perspectiva epistemológica, vislumbramos a possibilidade de
analisar o modo como a Geografia trabalha a ação dos movimentos
sociais;
3. Ou, como a Geografia tem produzido teoria para compreensão da geo-
graficidade dos movimentos sociais.

De qualquer modo, parece-me que a temática desta mesa-redonda nos


impõe uma reflexão ainda pouco desenvolvida na Geografia, ou seja, o que
parece estar em questão é a compreensão da espacialidade da ação social,
um recorte desafiador para a ciência geográfica, que se propôs muito mais
a ser uma ciência dos lugares.
A ação social é o objeto privilegiado das ciências sociais, notadamente
da Sociologia, na qual possui uma enorme contribuição construída. No
entanto, a dimensão espacial da ação social foi quase sempre negligenciada
em favor da supervalorização da dimensão temporal na interpretação dos
fenômenos sociais. Soja (1993 [1989]) já nos alertou sobre essa primazia do

155

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156 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

tempo em detrimento do espaço quando tratou da reafirmação do espaço


na teoria social crítica.
Consideramos que há ainda poucos esforços na Geografia que se colo-
caram o desafio de compreender a ação social. No entanto, alguns esforços
relevantes para leitura geográfica da ação social foram empreendidos na
Geografia brasileira. Algumas contribuições têm privilegiado o conceito
de movimentos sociais para tratar de variadas modalidades de ações co-
letivas, buscando destacar a dimensão espacial pelo viés da territorialida-
de, como nos estudos de Fernandes (2000, 2005) e Porto-Gonçalves (2001,
2006), ou da escala, como no caso de Santos (2011).
Estas perspectivas encontram-se presentes em nosso estudo, todavia,
nos particularizamos por alguns aspectos: (1) o uso da categoria ações co-
letivas, considerada mais abrangente que movimentos sociais, uma vez que
abarca as suas variadas manifestações. Estamos tratando de determinadas
formas de ações coletivas institucionalizadas que não consideramos como
movimentos sociais stricto sensu, mas que podem ser produtos de suas
ações, ou mesmo compor movimentos sociais em determinadas situações;1
e (ii) estamos operando com o binômio território-rede para compreender
as estratégias que essas modalidades de ações coletivas desenvolvem em
suas tramas sociais.
Minha reflexão está amparada empiricamente em determinadas mo-
dalidades de ações coletivas, mais especificamente, nas ações de sindica-
tos de trabalhadores rurais, associações comunitárias rurais e coopera-
tivas de agricultores rurais no Espaço Sisaleiro da Bahia. Propomo-nos,
neste texto, a esboçar algumas reflexões que oferecem uma possibilidade
de compreender a espacialidade das ações coletivas através da análise
do comportamento espacial de associações, sindicatos e cooperativas de

1 Fernandes (2005) elaborou o conceito de movimentos socioterritoriais seguindo um


princípio geral análogo ao nosso, ou seja, para enfatizar o papel da territorialidade na exis-
tência dos movimentos sociais. No entanto, nossas abordagens se diferem pelo modo dis-
tinto como concebemos a territorialidade e pelos usos de diferentes categorias sociológicas:
ações coletivas (em nosso caso) e movimentos sociais. Outro aspecto que diverge de nosso
entendimento é o conceito bastante amplo de movimentos sociais, adotado pelo autor, que
o permite considerar que os “movimentos [socioterritoriais] são tanto instituições não for-
mais, políticas no sentido lato, por sua materialidade, ação, estabelecimento e dinâmica,
quanto são igualmente instituições formais como os sindicatos, as empresas, os estados, as
igrejas e as organizações não governamentais (ONGs)” (FERNANDES, 2005, p. 31).

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A espacialidade das ações coletivas 157

agricultores. O instrumental teórico que vou acionar para viabilizar esse


propósito se dá através da escolha dos conceitos de territorialidade, polí-
ticas de escala e estratégias-rede. Estamos apostando na força explicativa
destes conceitos para flagrar a leitura da espacialidade das diversas for-
mas de ações coletivas. A exposição final está organizada em três outras
seções: (i) estratégias-rede, multiescalaridade, políticas de escala; (ii) a
territorialidade como estratégia espacial das organizações-rede; e (iii)
considerações finais.

Multiescalaridade, políticas de escala e


a conformação de estratégias-rede

A análise do comportamento espacial das organizações sociais sediadas


no Espaço Sisaleiro da Bahia permitiu identificar como elas empreendem
uma variada gama de ações que denominamos como estratégias-rede.
Tomei por empréstimo de Marcon e Moinet (2001) o conceito de estra-
tégia-rede. Segundo os autores, “[…] consiste em criar ou, na maioria das
vezes, em ativar e orientar as relações tecidas entre atores no âmbito de um
projeto mais ou menos definido”.
Em termos empíricos, as estratégias-rede se manifestam através de al-
gumas práticas socioespaciais:
1. Crescimento exponencial do número de organizações sociais e diversi-
ficação de seus formatos organizacionais, formando organizações-rede
mais complexas (federações de sindicatos, redes de cooperativas e cen-
trais de associações);
2. As organizações-rede criadas estabelecem propósitos mais ambiciosos,
afirmando sua atuação na escala regional;
3. As organizações-rede começam a integrar, participar e compor redes
estaduais e nacionais de associativismo, cooperativismo e sindicalismo.
4. Na participação em conselhos, fóruns, feiras e outras modalidades de
redes de articulação política e econômica, estruturadas nas escalas re-
gional (seguindo as delimitações dos Territórios de Identidade), esta-
dual (escala de governo) e nacional;
5. No estabelecimento de parcerias com agentes situados nas mais varia-
das escalas espaciais (locais, regionais, nacionais e internacionais).

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158 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Assim, nessa perspectiva, as estratégias-rede se caracterizam pelo de-


senvolvimento de políticas de escala, nas quais os agentes sociais se articu-
lam em diferentes escalas, construindo estratégias de ação multiescalares,
portanto, acionando as escalas geográficas como componente de suas es-
tratégias de luta, empoderamento, afirmação e sobrevivência.
Adam Moore (2008) desenvolve uma distinção basilar para nossos pro-
pósitos, entre escala como categoria de análise e escala como categoria da
prática. Moore (2008) reconhece dois difusos, mas discerníveis raciocínios
que nos parecem organizados em duas posições polarizadas, separando a
(i) escala como entidade socioespacial material e a (ii) escala como cons-
truto epistemológico.
A crítica de Moore (2008) nos parece dirigida às concepções polariza-
das e excludentes, que não consideram a possibilidade da distinção entre
escala como categoria de análise e escala como categoria da prática: (i)
sendo as primeiras “categorias distantes da experiência, usadas pelos cien-
tistas sociais”, (ii) enquanto que as segundas são “categorias da experiên-
cia cotidiana, desenvolvidas e empregadas pelos atores sociais ordinários”.
A partir desta perspectiva, é importante pensar: como as ações coletivas
acionam a escala como conteúdo estratégico de suas ações? Analisamos
de forma mais detida os significados das estratégias-rede nas escalas local
e regional.
Todavia, considerar a escala como uma categoria analítica não impli-
ca desconsiderar que os mais variados agentes sociais desenvolvem com-
portamentos espaciais, elaborando políticas, discursos e desenvolvendo
práticas escalares, pois “[…] os seres humanos produzem e fazem efetivas
suas próprias escalas para alcançar suas metas e organizar seus comporta-
mentos coletivos” (HARVEY, 2000, p. 108). Se considerarmos que as redes
de organizações sociais do Espaço Sisaleiro da Bahia fazem uso da escala
como estratégia para se organizar e alcançar seus propósitos, cujos entre-
laçamentos de discursos e práticas têm o espaço como referência (ACSER-
LRAD, 2002), é possível pensar que eles empreendem “políticas de escala”.
Para González (2010), as “políticas de escala” são definidas como:

[…] o campo no qual tem lugar as lutas materiais e discursivas entre dife-
rentes atores para estabelecer configurações escalares hegemônicas. Nesta

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A espacialidade das ações coletivas 159

luta os atores utilizam “narrativas escalares”2 para justificar e dar impacto


aos seus argumentos. (GONZÁLEZ, 2010, p. 125-126, tradução nossa).3

González (2010) identifica e elenca quatro pilares constitutivos do en-


foque das “políticas de escalas”, oferecendo um conjunto de componentes
que informam um conceito de escala: (i) as escalas não estão ontologica-
mente dadas como um a priori à espera de serem descobertas, mas são
construções que expressam a organização dos processos sociais; (ii) a es-
cala é “[…] tanto um objeto como um meio para as lutas econômico-polí-
ticas”, pois “[…] as relações escalares são, inevitavelmente, relações de po-
der”, o que permite concluir que as escalas são expressões dessas relações
(GONZÁLEZ, 2010, p. 126, tradução nossa)4; (iii) as escalas não podem ser
concebidas como níveis organizados hierarquicamente, mas “[…] várias
contribuições têm sugerido a metáfora da rede como a mais adequada para
entender os processos nos quais opera a política de escalas” (GONZÁLEZ,
2010, p. 127, tradução nossa)5; (iv) as escalas devem ser entendidas como
um conceito dinâmico e processual, pois equivalem a “[…] elaborações
sociais conflitivas, são produções humanas coletivas, dinâmicas, multidi-
mensionais, com os diversos atores e trajetórias históricas em disputa, em
movimento processual, contingente e aberto” (BRANDÃO, 2010, p. 243,
tradução nossa)6.

2 “[…] las narrativas escalares son historias sobre los cambios en los patrones espaciales
de procesos socio-políticos articulados por actores o grupos posicionados en contextos
histórico-políticos concretos”. “[…] as narrativas escalares são histórias sobre as mudan-
ças nos padrões espaciais dos processos sociopolíticos articulados por atores ou grupos
posicionados em contextos histórico-políticos concretos” (GONZÁLEZ, 2010, p. 129, tra-
dução nossa).
3 “La llamada ‘políticas de escalas’ es el campo en el que tienen lugar las luchas materiales
y discursivas entre diferentes actores por establecer configuraciones escalares hegemóni-
cas. En esta lucha los actores utilizan ‘narrativas escalares’ para justificar e ‘dar empaque’
a sus argumentos” (GONZÁLEZ, 2010, p. 125-126).
4 “[…] tanto un objeto como un medio para las luchas económico-políticas”; “[…] las re-
laciones escalares son, inevitablemente, relaciones de poder” (GONZÁLEZ, 2010, p. 126).
5 “[…] varias aportaciones han sugerido la metáfora de la red como la más adecuada para
entender los procesos en los que opera la política de escalas” (GONZÁLEZ, 2010, p. 127).
6 “[…] elaboraciones sociales conflictivas, son producciones humanas colectivas, dinámi-
cas, multidimensionales, con los diversos actores e trayectorias históricas en disputa, en
movimiento procesual, contingente y abiertas” (BRANDÃO, 2010, p. 243).

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160 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

As estratégias-rede na escala local e a construção


de solidariedades comunitárias
Na escala local, as associações comunitárias rurais desempenham um pa-
pel decisivo na construção de solidariedades comunitárias. Nesse senti-
do, o foco seria entender como as associações de agricultores viabilizam a
constituição de solidariedades locais e imediatas, tecidas através da coexis-
tência no mesmo espaço vivido (seja o povoado rural, o assentamento ou a
fazenda), através da busca de soluções coletivas para os problemas comuns,
próprios do compartilhamento da mesma realidade socioespacial.
Através de suas ações e estratégias, as associações comunitárias rurais
buscam (i) realizar o enfrentamento das adversidades naturais (típicas do
semiárido) e das carências de infraestrutura básica familiar e comunitária;
(ii) a constituição de alianças para viabilização de projetos produtivos e
geração de emprego e de renda, (iii) conferir maior importância às práticas
comunitárias (mutirão, roças coletivas, festividades, atividades recreativas
e culturais) para aprofundar as interações socioculturais e fortalecer os
laços políticos.
Os esforços para criação de associações se dirigem também à busca de
alternativas de sobrevivência através da formação de alianças para viabi-
lização de projetos produtivos (voltados para o financiamento de projetos
produtivos, melhorias nas condições de trabalho, construção de casa de fa-
rinha comunitária, distribuição de sementes, criação de pequenos animais
e empréstimo de equipamentos agrícolas). A observância das principais
atividades/ações desenvolvidas pelas associações, discriminadas na Tabela
1, reforça o movimento de organização produtiva (cursos de capacitação,
geralmente dirigidos para capacitação técnica, elaboração de projetos pro-
dutivos e atividades de produção e comercialização de mercadorias). Essa
perspectiva fica bem evidente nos objetivos definidos por diversas asso-
ciações em seus estatutos sociais: “racionalizar as atividades econômicas,
desenvolvendo formas de cooperação que ajudem na produção e comercia-
lização” (Artigo 2º do Estatuto da Associação de Desenvolvimento Comu-
nitário de Tanque Novo, no município de Barrocas, Bahia).

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A espacialidade das ações coletivas 161

Tabela 1. Benefícios obtidos pelas associações do território


do Sisal para os seus associados (2010)

Categoria do Freq. Freq.


Descrição/Detalhamento do benefício
benefício absoluta relativa
Construção de cisternas 237 38,47
Equipamentos Utensílios para casa 54 8,77
e serviços de Construção de casas 47 7,63
infraestrutura Cestas básicas 34 5,52
básica familiar Banheiro 13 2,11
Reforma e ampliação de casas 6 0,97
Financiamento de projetos produtivos 220 35,71
Melhorias nas condições de trabalho 103 16,72
Construção de casa de farinha comuni-
Equipamentos 86 13,96
tária
e serviços para Empréstimo de equipamentos agrícolas 37 6,01
organização de Construção de barragens 28 4,55
atividades pro-
Cursos de capacitação 9 1,46
dutivas
Distribuição de sementes 9 1,46
Criação de pequenos animais 6 0,97
Construção de aguadas 1 0,16
Água encanada 100 16,23
Perfuração de poço artesiano 95 15,42
Energia elétrica 84 13,64
Desconto na compra de mercadorias 17 2,76
Equipamentos
Construção de equipamentos (centro de
e serviços de 11 1,79
abastecimento)
infraestrutura
comunitária Energia solar 9 1,46
Infocentro 4 0,65
Limpeza de espaços públicos 2 0,32
Divulgação de informações de utilidade
1 0,16
pública
Fonte: Banco de dados GEOMOV/UEFS, 2010.
Nota: Foram consideradas para efeito de cálculo desta tabela, apenas as 616 associações que esta-
vam em funcionamento na data da pesquisa de campo, logo, excluídas do levantamento aquelas
inativas.
Elaboração: Agripino Souza Coelho Neto.

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162 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

A construção de possibilidades de desenvolvimento de atividades pro-


dutivas, organizadas a partir das associações comunitárias, podem ser in-
terpretadas como respostas localizadas aos processos de expropriação e
exploração do trabalho no campo. Os dados da Tabela 1 nos permite outra
conclusão sobre o papel que as associações exercem em termos de vida
comunitária. A primeira se refere à natureza das relações de solidariedade
que se estabelecem no âmbito das associações e que são por elas mediadas.
A promoção de mutirões (geralmente para construção de casas e ativida-
des de roçada e colheita), enquanto resultado de mobilização social em fa-
vor de uma ação coletiva de ajuda mútua baseada na reciprocidade, é uma
prática habitual em mais de 50% das associações pesquisas.7

As estratégias-rede na escala regional e a produção


de horizontalidades socioespaciais

Em Santos (2002 [1996]), o conceito de horizontalidades foi formulado


compondo um par dialógico com verticalidades para pensar a arquitetura
espacial da sociedade no período técnico-científico-informacional. Para
ele, os arranjos espaciais não expressam apenas figuras formadas por pon-
tos contíguos, como se fossem manchas espaciais, mas, também, configu-
rações formadas por pontos descontínuos e interligados, designando o que,
na concepção de Castells (2003 [1996]), chama-se de espaço de fluxos.
Nesse sentido, as verticalidades são “pontos no espaço que, separados
uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade e da eco-
nomia” (SANTOS, 2002 [1996], p. 284). Elas seriam conformadas por re-
lações que hierarquizam os espaços, nas quais imperam as racionalidades
de origem distante, portadoras de ordens estranhas ao lugar, produzindo

7 Parece existir uma estreita vinculação entre a prática do mutirão e as relações comu-
nitárias, especialmente aquelas desenvolvidas no campo. Uma expressão desse entendi-
mento pode ser comprovada nas definições da palavra mutirão que aparece no Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa (2007, grifo nosso): 1) “mobilização coletiva para auxílio
mútuo de caráter gratuito, especialmente entre trabalhadores do campo, por ocasião de
roçada, colheita etc.; ajuntamento, juntamento”; 2) “serviço sem ônus prestado por mem-
bros de uma comunidade, ger. visando à construção ou ao melhoramento de imóvel”;
3) “qualquer mobilização de cidadãos, coletiva e gratuita, para execução de serviço que
beneficie uma comunidade”.

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A espacialidade das ações coletivas 163

um efeito desintegrador das solidariedades locais e uma perda relativa da


capacidade de gestão da vida local. Nesse sentido, as verticalidades são
relações econômicas, políticas, sociais e culturais que se estabelecem entre
lugares e entre regiões, alcançando um espaço mundializado de relações.
Por sua vez, as horizontalidades, segundo Santos (2002 [1996], p. 284),
constituem “extensões formadas de pontos que se agregam sem desconti-
nuidade como na definição tradicional de região”. Trata-se de um tecido
espacial conformado por relações de proximidade, de vizinhanças, de um
acontecer homólogo, no qual é possível desenvolver uma solidariedade ati-
va e aumentar a eficácia política. Dessa forma, as horizontalidades se con-
formam através de relações econômicas, políticas, sociais e culturais que
se estabelecem nas escalas locais e regionais, nas quais é possível convergir
solidariedades locais. Nessa perspectiva, os lugares podem se fortalecer
“horizontalmente, reconstruindo, a partir das ações localmente [regional-
mente] constituídas, uma base de vida que amplie a coesão da sociedade
civil, a serviço do interesse coletivo” (SANTOS, 2002 [1996], p. 287-288).
As redes de organizações sociais que se organizam no Espaço Sisaleiro
da Bahia (certamente podemos afirmar que de modo mais marcado para
o Núcleo Sisaleiro da Bahia8) podem ser pensadas como forças centrípetas,
como elementos de agregação e convergência de ações e de viabilização de
projetos nas escalas local/regional que possibilitam a construção de hori-
zontalidades socioespaciais.
Na escala regional, as organizações sociais são produtoras de horizon-
talidades socioespaciais, definida como um tecido socioespacial confor-
mado por relações de proximidade, de vizinhança, de um acontecer ho-
mólogo, ativado por relações de cooperação e reciprocidade que articulam
sujeitos individuais e coletivos e aproximam os lugares, por meio do esta-
belecimento de alianças e o compartilhando de soluções/alternativas de
vida (COELHO NETO, 2013).
Nesse sentido, as diversas organizações-rede que atuam na escala regio-
nal têm sua base de sustentação nas comunidades rurais localmente situa-
das nos povoados. Identificamos um movimento espacial ascendente de
articulação de trabalhadores rurais que vivem e trabalham nas comunida-

8 Os municípios que compõem o Núcleo Sisaleiro da Bahia são: Conceição do Coité, Va-
lente, Santaluz, Retirolândia e São Domingos.

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164 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

des rurais, nos povoados dispersos em vários municípios para formação de


organizações-rede que operam na escala regional (COELHO NETO, 2013).
No caso do Espaço Sisaleiro da Bahia, esse conjunto imbricado de re-
lações viabilizou a construção de uma densa e articulada teia social que se
materializa com a criação do CODES/SISAL e a estruturação do Território
do Sisal, amadurecida através das conexões viabilizadas através de apoios,
parcerias, trocas e do compartilhamento de projetos políticos.
Desse modo, a formação de um tecido social que articula várias orga-
nizações sociais sediadas no Território do Sisal nos permite pensar como
elas costuram suas relações de cooperação e reciprocidade e produzem
horizontalidades socioespaciais, resultado do entrelaçamento de suas his-
tórias e das conexões viabilizadas através de apoios, parcerias, trocas e do
compartilhamento de projetos políticos e sociais.

A territorialidade como estratégia socioespacial


das redes de organizações sociais

Para tratar da territorialidade como estratégia socioespacial das ações co-


letivas, partimos de alguns pressupostos. Consideramos a territorialização
um processo inerente ao homem, pois os grupos sociais, em diversas escalas.
podem construir territórios na instituição de sua vida social. A territoriali-
dade é aqui considerada enquanto a forma como a sociedade se organiza no
espaço, sendo, desse modo, como definiu R. D. Sack (1986, p. 5), “[…] o meio
pelo qual espaço e sociedade estão inter-relacionados”. A territorialidade é
assim considerada, nos termos de Sack (1986, p. 2), uma condição que “está
intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas
próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar”.
Logo, a territorialidade é concebida como os nexos que os coletivos
organizados constroem entre si e com o espaço, implicando uma apro-
priação material e/ou simbólica que sustenta suas estratégias e assegura a
reprodução da vida material. Portanto, os sujeitos individuais e coletivos
organizados apropriam-se e conferem significados particulares às frações
do espaço, delimitando-o como objeto de uso e apropriação, transforman-
do-os em seus territórios. Assim, a territorialidade é, portanto, uma es-
tratégia espacial acionada pelas redes como conteúdo das tramas sociais
(COELHO NETO, 2013).

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A espacialidade das ações coletivas 165

Empiricamente, a territorialidade como estratégia socioespacial das re-


des de organizações se manifesta a partir de quatro comportamentos:
1. Na demarcação de um espaço-referência no/para planejamento estra-
tégico e nas ações das principais organizações-rede:
• A demarcação de um espaço de referência fica explícito na nomeação
das organizações, a exemplo da Associação de Rádios Comunitárias
do Sisal, da Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário
da Região Sisaleira, do Centro de Apoio aos Interesses Comunitá-
rios da Região do Sisal, da Cooperativa de Produção de Jovens da
Região do Sisal e da Fundação de Apoio aos Trabalhadores Rurais
e Agricultores Familiares da Região do Sisal e Semiárido da Bahia
• Essa mesma lógica comparece na formulação da missão das organi-
zações, como nos casos da APAEB-Valente e da FATRES, respecti-
vamente reproduzidas abaixo:
a) Promover o desenvolvimento social e econômico sustentável e
solidário, visando a melhoria da qualidade de vida da população
da região sisaleira. (APAEB, on-line, grifo nosso).9
b) Contribuir para a construção e consolidação do desenvolvimen-
to social e ambientalmente sustentável, voltado para a melhoria
das condições sociais de vida dos trabalhadores e trabalhadoras
da agricultura familiar do semiárido baiano. (FATRES, on-line,
grifo nosso).10
2. No acionamento de elementos espaciais, geralmente remetidos à Re-
gião Sisaleira ou ao Território do Sisal, no desenvolvimento de suas
atividades.
• Constatamos no Catálogo de Produtos das organizações que os con-
teúdos para apresentar os produtos se remetem as especificidades
naturais do semiárido baiano:

As frutas nativas de uma região são aquelas que nascem em meio à ve-
getação local, sem a necessidade de cuidados especiais. No Semiárido
existe uma diversidade grande de frutas nativas como caju, maracujá
do mato, cajá e umbu. Estes alimentos têm uma grande importância

9 Disponível em: <http://apaeb.com.br/empresa.html>.


10 Disponível em: <http://www.fatres.org/portal/missao>.

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166 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

para as famílias agricultoras, da região semiárida […]. Com o benefi-


ciamento das frutas, garantem a geração de trabalho e renda para os/as
agricultores/as. Conheça e saboreie as Riquezas do Sertão feitas das
Frutas nativas da região Semiárida.
No Sertão, o sisal, recurso renovável é todo aproveitado pela indús-
tria limpa da fiação e tecelagem, e pelo artesanato que reaproveita e
transforma tudo como fazem os artesãos do Pereira.
A linha de produtos utilitários foi criada, com uma temática úni-
ca, a fauna da região sisaleira do estado da Bahia. Siriemas, corujas,
caburés, teiús e muitos outros animais característicos daquela região,
adornam uma linha de produtos para gastronomia, escritório, decora-
ção de ambientes ou simplesmente para pendurar suas chaves. (ARCO
SERTÃO, s.d., p. 21, grifo nosso).

Vale salientar que, nessas estratégias de promoção das atividades, as or-


ganizações invocam as particularidades do Sertão, do semiárido e da Re-
gião Sisaleira. Os anúncios reconhecem a diversidade espacial dos Sertões,
todavia, buscam a identificação e a atribuição de especificidades à região
sisaleira a partir da fauna, da flora e dos artefatos culturais sertanejos.

1. Na elaboração de enunciados, discursos e reivindicações de base espa-


cial em torno da Região Sisaleira/Território do Sisal.
• Observamos nos folhetos, catálogos, relatório de atividades, proje-
tos, sites referências à Região Sisaleira e ao Território do Sisal.

2. Na construção de um projeto político coletivo para o Território do Sisal;


• Na constatação de que as organizações em rede se apropriam de um
espaço de referência (no passado a Região Sisaleira, mas atualmente
o Território do Sisal) para a construção de um projeto político co-
letivo.

Durante toda a década de 80, o projeto político na região [DEMAR-


CA UM ESPAÇO DE REFERENCIA PARA O PROJETO COLETI-
VO] resumiu-se à consolidação da APAEB em alguns municípios
e à conquista dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais em outros. É
quando surgem, com o propósito de fortalecer o movimento sindical,
os Polos Sindicais regionais, com destaque para a Fundação de Apoio

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A espacialidade das ações coletivas 167

aos Trabalhadores Rurais da Região do Sisal (FATRES), com sede em


Valente. Nos primeiros anos de 1990 surge, em Valente, o cooperati-
vismo de crédito voltado para a agricultura familiar, o que foi segui-
do posteriormente por outros municípios: Serrinha, Araci e Santaluz.
(CODES-SISAL, 2007, p. 46, grifo nosso).
A FATRES direcionou sua atuação aos trabalhadores e trabalha-
doras rurais, tendo como foco estratégico de ação a mobilização e
articulação dos dirigentes e lideranças sindicais rurais, no sentido
de fortalecer diretamente as organizações sindicais (STRs), para fa-
zerem frente às questões sociais relativas à realidade rural da região
(inicialmente seca, os trabalhadores mutilados do sisal – campanha
um milhão de mutilados, aposentadoria, erradicação do trabalho in-
fantil, acesso à terra, dentre outras). Além na parceria com outros
movimentos sociais da região (APAEB, MMTR, ASCOOB, CEAIC,
POLOS SINDICAIS, dentre outras) para o desenvolvimento de pro-
cessos sociais voltados à mudança da realidade social sisaleira. (FA-
TRES, on-line, grifo nosso).11

As evidências levantadas permitem algumas interpretações/conclusões:


1. Há um evidente e manifesto remetimento a uma espacialidade: na ela-
boração dos projetos, na construção das estratégias e na enunciação dos
discursos.
2. As organizações-rede estão inscritas territorialmente, operando a partir
de uma ancoragem territorial e estabelecendo um espaço de referência
no qual elas se sentem situadas e implicadas.
3. As territorialidades que se conformam na escala local (associações co-
munitárias nos povoados rurais) constituem-se nas bases de sustenta-
ção das territorialidades das organizações-rede articuladas na escala
regional (cooperativas regionais e as centrais de cooperativas, de asso-
ciações e de sindicatos).
4. As diferentes estratégias-rede conformam uma teia social, cujas ações
informam uma apropriação do espaço para subsidiar as estratégias,
configurando-se na construção de uma territorialidade.
5. Há, portanto, uma “territorialidade sisaleira” que vai sendo construída

11 Disponível em: <http://www.fatres.org/page_8.html>. Acesso em: 15 nov. 2012.

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168 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

e simultaneamente acionada nas estratégias, cujos conteúdos conferem


sentidos aos projetos coletivos.
6. Desse modo, verificamos a criação e consolidação do Território do Si-
sal como escala de mobilização, organização, operação e projeção da(s)
rede(s) de organizações sociais.

Considerações finais

Diante das reflexões anteriores, apontamos algumas conclusões fundamen-


tais: (i) as organizações sociais, ao produzirem suas territorialidades, cons-
troem, simultaneamente, suas próprias condições materiais e/ou simbólicas
de existência, (ii) a territorialidade é um produto histórico e geograficamen-
te determinado, construído a partir das tramas político-espaciais, exercendo
um papel fundador e constitutivo na estruturação dos grupos sociais, acio-
nado como conteúdo estratégico nos discursos e práticas e contribuindo
para assegurar a reprodução social, (iii) em seu funcionamento, as organi-
zações sociais desenvolvem um conjunto de estratégias-rede que assumem
duas perspectivas distintas: (a) como forma organizacional ou (b) como es-
tratégia de ação coletiva e de inter-relação, (iv) o comportamento espacial
das estratégias-rede apresenta um nítido conteúdo escalar, pois envolve a
articulação entre sujeitos sociais situados (e territorializados) em diferen-
tes lugares que se associam e se conectam, formando redes de/em múltiplas
dimensões escalares, e (v) as organizações sociais acionam e manipulam a
escala como mecanismo organizativo e como recurso estratégico para viabi-
lização de seus propósitos, construindo políticas de escala.
A densidade organizacional e a teia social erigida pela articulação de
diversas organizações-rede impuseram mudanças ao Território do Sisal:
(i) gestação e fortalecimento de organizações-rede complexas: (a) em sua
natureza constitutiva, e (b) em sua abrangência e operação multiescalar;
(ii) construção de uma escala de mobilização, organização e operação que
assume a forma terminal do CODES-Sisal (expressa um sentido para além
do colegiado territorial da política do Ministério do Desenvolvimento
Agrário); (iii) reforço das territorialidades das organizações-rede em suas
múltiplas escalas de manifestação; (iv) reestruturação das relações de po-
der golpeando o esquema de dominação quase absoluto exercido pelos tra-
dicionais empresários do sisal (que são também caciques políticos); e (v)

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A espacialidade das ações coletivas 169

fortalecimento de uma “territorialidade sisaleira” construída a partir das


práticas sociais das redes socioterritoriais que se manifesta com a gestação
e reforço do Território do Sisal.
Penso que essas proposições conceituais (territorialidade, estratégias-rede
socioespaciais e políticas de escala) oferecem elementos teórico-metodológi-
cos para pensar a espacialidade das ações coletivas (e movimentos sociais).

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CAPÍTULO 9

Da região ao território
A “nova” instrumentalidade de referência para o
desenvolvimento rural no Brasil

Jamille da Silva Lima1

Introdução

Neste estudo objetivamos analisar a emergência da abordagem territorial


nas políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil, problematizan-
do os argumentos que fundamentam o deslocamento da ideia de região
para território enquanto instrumentalidade normativa do Estado.
Haesbaert (2010) sistematizou os momentos de alegada ruptura e rea-
vivamento do conceito de região, com intuito de criticar os discursos que
defendem a exaustão desse conceito, destacando o caráter político do mes-
mo e a pertinência da abordagem regional na atualidade. Anteriormente,
Santos (1994) já havia criticado o discurso de esgotamento e desapareci-
mento da noção de região e, numa acentuada crítica, salientou que “[…]
o que esmaeceu foi a nossa capacidade de reinterpretar e de reconhecer
o espaço em suas divisões e recortes atuais […]” (SANTOS, 1994, p. 102).
Mas, apesar disto, alguns estudiosos, em defesa da abordagem territorial
do desenvolvimento rural, têm alegado que o conceito de região está es-
gotado e não é pertinente no âmbito da atual política de desenvolvimento
rural em curso no Brasil.
Nesse rumo, propõe-se problematizar e aprofundar este debate. Para
tanto, incialmente buscamos contextualizar a incorporação da abordagem
territorial do desenvolvimento rural tanto nos estudos acadêmicos quanto
no âmbito das políticas governamentais brasileiras. Seguidamente, busca-

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia. Professora do curso de Geo-


grafia da Universidade do Estado da Bahia.

171

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172 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

mos discutir o conceito de desenvolvimento territorial rural, destacando


os argumentos que conformaram essa complexa adjetivação a noção de
desenvolvimento.

A emergência da abordagem territorial do


desenvolvimento rural

No Brasil, a abordagem territorial do desenvolvimento ganhou força e ope-


racionalidade nos estudos acadêmicos, nas formulações de planos e diretri-
zes de órgãos governamentais, bem como nos documentos e discursos da
sociedade civil. Sua difusão deve-se, principalmente, à política territorial
implantada pelo governo Lula, através do Ministério de Desenvolvimento
Agrário (MDA), a partir do ano de 2003, que desde então tem propagado
as benesses dessa abordagem na promoção do almejado desenvolvimento,
utilizando-a como suporte basilar na fundamentação teórico-metodológi-
ca das políticas públicas.
Mas, no âmbito acadêmico, a discussão sobre a abordagem territorial
vem sendo fomentada desde a década de noventa. Ricardo Abramovay2 e
José Eli da Veiga3 foram dois grandes precursores desse debate, que, moti-
vados pelas experiências europeias, passaram a disseminar em nosso país
as virtudes dessa abordagem para o desenvolvimento rural,4 ressaltando-
-a enquanto elemento inovador de governança. Suas produções, de cunho
epistemológico e também empírico, difundidas ao longo de sua trajetória

2 No trabalho intitulado “Para uma teoria de estudo territoriais”, Abramovay (s.d.) dedica
uma seção para tratar das virtudes da noção de território.
3 “José Eli da Veiga foi um ativo defensor de uma política de desenvolvimento rural que
apoiasse a agricultura familiar, que entrasse em sintonia com o meio ambiente, que va-
lorizasse a inovação e a diversificação produtiva, tendo mesmo assessorado a CONTAG
algumas vezes (VEIGA, J. E., 1998), bem como a antiga Secretaria de Desenvolvimento
Rural – SDR, do Ministério da Agricultura, em sua primeira metade dos anos 90, na ava-
liação do PRONAF (ABRAMOVAY & VEIGA, 1997) […]. Tal ênfase ficou evidente com a
publicação de seu artigo […] ‘face territorial do desenvolvimento’ (VEIGA, J. E., 1999), no
mesmo período em que realizava pesquisas de pós-doutorado na Europa. Vários outros
trabalhos de Veiga entre 1998 e 2006 convergiram no sentido de adotar o território como
base de articulação de atores e de ações públicas e privadas e de certa tendência a ‘uma
revalorização da dimensão espacial da economia’ (VEIGA, J. E., 1999)” (GUIMARÃES,
2013, p. 153).
4 A exemplo, ver trabalhos de Veiga (2000 e 2002) e Abramovay (2003).

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Da região ao território 173

de estudos, os ergueram à condição de referência àqueles que defendem


essa concepção de desenvolvimento. Nesse sentido, suas contribuições são
aportes tanto nos documentos institucionais do Plano Territorial de De-
senvolvimento Rural Sustentável (MDA, 2005b e 2006) quanto na funda-
mentação teórica de pesquisas de vários autores que tratam deste tema, a
exemplo de Cunha (2008) e Vasconcelos (2007).5
As discussões acadêmicas brasileiras e as experiências internacionais
de reordenamento territorial, principalmente europeias, foram seminais
para nortear a discussão da abordagem territorial no plano governamen-
tal. O Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios
Rurais (PRONAT), em vigência no Brasil desde o governo Lula, teve inspi-
ração no Programa LEADER,6 implementado em países europeus desde
o ano de 1991 até o ano de 2006. O programa que cumpriu um ciclo de 16
anos, dividido em três etapas, propunha uma abordagem inovadora na
promoção do desenvolvimento de áreas rurais: a abordagem territorial e
ascendente que, em síntese, consistia numa concepção multidimensional
do território, na valorização dos recursos endógenos, no estímulo à parti-
cipação social no processo de gestão e no fomento às redes de cooperação
entre os chamados territórios rurais.
Mediados pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricul-
tura (IICA), representantes da Secretaria de Desenvolvimento Territorial
(SDT), vinculada ao Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), bem
como representantes de ONGs e universidades, foram especialmente à Es-
panha, almejando conhecer melhor os propósitos e resultados do Progra-
ma LEADER. Posteriormente, outros países latino-americanos passaram

5 Outros pesquisadores também se interessaram pela temática territorial, fundando gru-


pos de estudos em distintos centros acadêmicos que, somados às pesquisas de Veiga e
Abramovay na Universidade de São Paulo (USP), constituíram uma rede de estudos sobre
o assunto: “no Rio Grande do Sul, através de Sergio Schneider e outros (UFRGS/PPGDR),
em São Paulo através dos pesquisadores citados e no Rio de Janeiro, através de Sérgio Leite,
Nelson Delgado e outros (UFRRJ/CPDA/OPPA), que incluía também pesquisadores da
UFSC […]. Também visitantes do CIRAD/INCA em universidades federais, como UFCG,
UFRJ, UnB e UFRGS, participaram da rede conduzindo pesquisas e publicando livros e
artigos, tendo também o IICA participando de articulações com outros países latino-a-
mericanos e europeus, tendo a Secretaria de Desenvolvimento Territorial – SDT como
parceira do governo federal” (GUIMARÃES, 2013, p. 152-153).
6 LEADER, do título original em francês: Liaisons Entre Actions De Développement De
L’économie Rurale.

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174 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

a compor essa rede de intercâmbio, dando origem à rede PROTERRITÓ-


RIOS,7 que foi criada, em 2008, para viabilizar que os diversos governos
membros intercambiassem conhecimentos em gestão territorial. Talvez
isso ajude a explicar o porquê da rápida e ampla difusão do conceito de
território na América Latina na última década.
Mas a incorporação e a disseminação do enfoque territorial na América
Latina, principalmente no Brasil, não é uma mera importação de conceitos
e metodologias. O conceito é produto, mas também é produtor, como rati-
fica Gallo (2003), através da perspectiva deleuziana.
Contudo, apesar de considerar a capacidade criativa no processo
de produção e utilização do conceito, não se pode ignorar as tessituras
político-econômicas que motivaram a adoção da abordagem territorial em
vários países da América Latina. A dita “nova” abordagem do desenvolvi-
mento rural implantada nesses países a partir do final do século XX possui
estreita relação com as orientações das agências internacionais de apoio à
cooperação e ao desenvolvimento, fundos de financiamento e organismos
unilaterais, tais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de De-
senvolvimento (BID), a Comissão Econômica para América Latina (Ce-
pal), a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
(FAO), entre outros.
A tese de doutoramento de Favareto (2006) elucida esse processo, mos-
trando como o papel de financiador desses organismos internacionais in-
fluencia as políticas públicas dos países da periferia e da semiperiferia do
capitalismo mundial.8 Nesse sentido, o autor destaca que eles funcionam

7 A rede é composta pelos países: Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Espanha, Guatemala, México, Panamá e Peru. Para maiores informações, consultar o site:
<http://www.proterritorios.net/site_v14/>.
8 “Para Arrighi, o essencial para que um Estado seja considerado semiperiférico é que ele
possua uma combinação de atividades ‘tipicamente periféricas’ e ‘tipicamente centrais’ em
uma proporção tal que ofereça a esses países a possibilidade de resistir à periferização, mas
não poder suficiente para superá-la. Caberia então identificar as causas pelas quais esses
‘equilíbrios de forças’ são estáveis. […] Os processos de exclusão referem-se ao fato de que
a riqueza oligárquica dá meios aos Estados centrais para excluir os Estados (semi)perifé-
ricos do gozo dos recursos escassos ou sujeitos à acumulação anormal. […] o traço mais
essencial das economias capitalistas é a recompensa desigual por esforços iguais e opor-
tunidades desiguais do uso de recursos escassos. Os êxitos individuais levam meramente
a um retesamento das tendências excludentes e exploradoras dos Estados centrais, e com
isso aprofundam a distância daqueles que ficam para trás” (LOURENÇO, 2005, p. 181-183).

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Da região ao território 175

como “[…] uma espécie de pivô, através do qual gira uma articulação mui-
to peculiar de interesses e competências envolvendo os campos acadêmi-
co, político, econômico”, fomentando “[…] um movimento de legitimação
recíproca entre os conhecimentos produzidos cientificamente, a definição
de políticas públicas no âmbito de países e governos locais, e a normatiza-
ção dos procedimentos por estes organismos internacionais” (FAVARETO,
2006, p. 131).
Com base nos estudos de Garcia (2002), Favareto (2006) analisa a tra-
jetória da noção de desenvolvimento rural e identifica quatro grandes mo-
mentos que ajudam a entender as permanências e inovações introduzidas
ao longo desse percurso. O primeiro momento, compreendido entre os anos
de 1930 e 1960, é marcado pelos projetos de desenvolvimento comunitário.
Inicialmente os projetos que mais se destacaram se circunscreviam aos
Estados Unidos e à Índia. Posteriormente o termo passou a ser utilizado
pelas Nações Unidas, bem como foi implantado em experiências na Ásia e
na África. Defendia-se que as comunidades possuíam potencialidades que
precisavam ser estimuladas com apoios pontuais. Para tanto, propunha-se
satisfazer as necessidades básicas da população, incentivar a participação
social e apoiar o cooperativismo. Vale salientar que esses objetivos fazem
parte da tônica do atual enfoque territorial do desenvolvimento rural.
O segundo momento inicia-se a partir dos anos de 1960, quando se
constatou que os projetos de desenvolvimento comunitário eram pontuais
e paliativos, pois não alcançaram a dinamização espacial desejada, e de-
pendiam de recursos humanos e financeiros externos, dificultando sua
execução a longo prazo. Nessa perspectiva, passou-se a se preocupar com
mudanças estruturais, especificamente com a reforma agrária. Favareto
(2006) aponta que a FAO já havia realizado um estudo mostrando a relação
entre o perfil fundiário e a pobreza. Concomitantemente, a Cepal e o Co-
mitê Interamericano de Desenvolvimento Agrícola (CIDA), em diferentes
estudos, diagnosticaram “[…] um lento crescimento da produção em re-
lação à demanda nacional e internacional e a necessidade de um processo
de modernização acompanhado de reforma agrária” (FAVARETO, 2006,
p. 134).
Entretanto, a reforma agrária passou a fazer parte da agenda gover-
namental na maioria dos países da América Latina, por conta dos movi-
mentos revolucionários e contestatórios que se sucederam nesse recorte
espacial. Mas as ações governamentais não foram tão favoráveis aos cam-

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176 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

poneses, pois estes se depararam com um ambiente social e institucional


que dificultou a concretização dos seus intentos. Como resultado, buscou-
-se realinhar a estratégia de desenvolvimento, fundamentando o terceiro
momento que se estende até final da década de 1980, no qual se defendeu o
chamado desenvolvimento rural integrado.

Nessa etapa, […] priorizaram-se a colonização e a regularização fundiária,


e não a partilha das terras a fim de evitar conflitos. Vale lembrar que vá-
rios países da América Latina viviam sob regimes de exceção à época, e a
intocabilidade da propriedade fundiária era um dos pilares desses regimes.
Além dessa dificuldade operacional havia um problema institucional. O
desafio era passar de projetos produtivistas para projetos integrados, mas
isso trazia um problema de articulação, derivado da enorme pulverização
de habilidades e competências em um número significativo de estruturas
governamentais. […] Outro problema estava no descompasso entre as exi-
gências técnicas das agências internacionais e os recursos humanos locais.
Formaram-se burocracias e desníveis salariais. Apesar do discurso, a par-
ticipação dos pobres não acontecia. (FAVARETO, 2006, p. 135).

No Brasil, o Estado estimulou a integração da atividade agrícola aos


complexos industriais e a modernização da agricultura, ao tempo em que
reprimiu os conflitos surgidos nesse processo. A adoção dessa perspectiva
de desenvolvimento não só impulsionou a produtividade, como também
ocasionou um aumento da pobreza e da desigualdade. A modernização,
que recebeu o nome de Revolução Verde, não trouxe consequências positi-
vas para os agricultores camponeses. Alguns destes conseguiram alcançar
a integração competitiva, mas desencadeou a crise dos ideais campesinos,
outros só acentuaram a situação de decadência e marginalização.
Nesse contexto, retoma-se o debate sobre o desenvolvimento rural, sob
o ponto de vista da associação entre desenvolvimento rural, redução de
pobreza e um terceiro elemento que hoje também se faz presente na abor-
dagem territorial, que diz respeito à conservação dos recursos naturais,
atualmente tratada através da discussão sobre sustentabilidade. Reclama-
-se uma perspectiva de desenvolvimento multidimensional, descentraliza-
da, de caráter endógeno e que valorize as redes sociais e o envolvimento
da sociedade no processo de planejamento e gestão das políticas públicas.
O conceito de desenvolvimento rural acompanhado do qualificativo “ter-

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Da região ao território 177

ritorial” passou a ser amplamente defendido, sob a prerrogativa de atender


a esses anseios.
Logo, a partir dos anos 1990, institui-se o quarto momento. Em 1996,
o Banco Mundial publica seu relatório intitulado “A nova visão do desen-
volvimento rural”, marcando o surgimento de uma nova abordagem que
propõe a subversão do enfoque setorial, característico do passado. Desde
então, os governos latino-americanos começaram a incorporar essa pers-
pectiva.
No caso brasileiro, o governo Fernando Henrique Cardoso, na segunda
metade dos anos 1990, instituiu o Programa Comunidade Ativa e o cha-
mado Desenvolvimento Local Integrado e Sustentável (DLIS), bem como
estimulou a formação de Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural
(CMDR). Embora neste governo a ideia de desenvolvimento rural tenha es-
tado centrada na escala municipal, nele se instrumentalizavam princípios
basilares definidos pelos organismos internacionais, como participação da
sociedade civil na gestão territorial, cooperação, empreendedorismo, soli-
dariedade, dentre outros. Logo, desde o governo FHC começam a ser im-
plementadas no Brasil as orientações da “nova” visão de desenvolvimento
rural defendida pelo Banco Mundial e demais organismos internacionais.
Mas é no governo Lula que a abordagem territorial do desenvolvimento
rural se estrutura e ganha força no âmbito das políticas públicas brasilei-
ras. As concepções e metodologias adotadas especificamente pelo Ministé-
rio do Desenvolvimento Agrário passaram a centrar-se na constituição de
uma nova escala de governança ou unidade de planejamento e intervenção
estatal, que recebeu o nome de território. Desde então, passou-se a con-
clamar a dimensão territorial. O conceito de desenvolvimento rural está
relacionada a basicamente três argumentos: a) renúncia às perspectivas di-
cotômicas entre rural e urbano, bem como à ação verticalizada do poder
público, que passa a estimular a descentralização e a participação social
no processo de elaboração e gestão das políticas públicas; b) perspectiva
híbrida do desenvolvimento rural entre as dimensões econômica, social,
ambiental e político-institucional, em contraposição a abordagens seto-
riais que acabavam excluindo as parcelas historicamente negligenciadas
na sociedade brasileira; c) valorização das raízes histórico-geográficas do
território, das redes sociais e de solidariedade, enquanto processos endó-
genos de desenvolvimento e desvinculação do rural a relação exclusiva ao
setor primário da economia.

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178 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Contudo, o apelo ao conceito de desenvolvimento territorial rural e,


por conseguinte, de território, torna-se uma tônica predominante, que
parece garantir a superação da concepção setorial e exógena de desenvol-
vimento rural e ao mesmo tempo abranger a complexa dinâmica social.
Assim, incorre-se num sério risco de sobrevalorização do conceito e de
“[…] transformá-lo num conceito que não só, epistemologicamente, tem a
pretensão de dar conta de toda a complexidade do espaço geográfico […],
como também, num sentido normativo, acaba se tornando uma verdadei-
ra panaceia em termos de políticas públicas” (HAESBAERT, 2010, p. 156).
A ênfase exacerbada no conceito de território tem ainda colocado em
pauta a discussão sobre o esgotamento do conceito/categoria região. Por
conta da defesa exaustiva da abordagem territorial do desenvolvimento
rural, notamos que mesmo após a publicação de obras que retomam o de-
bate sobre o conceito de região, ao tempo em que mostram a pertinência
desse conceito na atualidade, tal como vê-se em Lencioni (1999) e Haes-
baert (2010), tem nascido um novo discurso destacando o esgotamento do
conceito de região. Neste sentido, na próxima seção deste artigo, preocu-
pa-se em analisar as consequências do enaltecimento da noção de territó-
rio, tanto para avaliar o aludido arejamento da própria discussão sobre o
desenvolvimento rural quanto para compreender a relação comparativa e
substitutiva da região pelo território.

A escala do desenvolvimento rural:


da região ao território

Na atual política de desenvolvimento rural brasileira, o território é conce-


bido como uma nova institucionalidade. A formação desses territórios tem
como base a área jurídico-política dos municípios. O Território tem sido
entendido como

[…] um espaço físico, geograficamente definido, geralmente contínuo,


compreendendo cidades e campos, caracterizado por critérios multidi-
mensionais, tais como o ambiente, a economia, a sociedade, a cultura,
a política e as instituições, e uma população com grupos sociais relati-
vamente distintos, que se relacionam interna e externamente por meio
de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elemen-

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Da região ao território 179

tos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial. (MDA,


2005a, p. 28).

A pesquisa desenvolvida pelo Observatório de Políticas Públicas para a


Agricultura (OPPA), do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ), aponta um crescente consenso
em torno da necessidade de se conceber o desenvolvimento rural sob a
abordagem “territorial”, bem como ratifica o uso indiscriminado do con-
ceito de território nessa nova perspectiva de operacionalização das políti-
cas públicas:

Levando em conta a experiência recente no exercício das políticas públi-


cas, uma primeira observação que pode ser feita, num nível mais geral, é
que parece existir um consenso crescente sobre a necessidade de pensar
“territorialmente” as políticas, e de consolidar um nível “intermunicipal”
de articulação para se operacionalizar propostas de desenvolvimento, re-
conhecendo os limites da dimensão local/municipal para tanto. Nessa di-
reção, um aspecto que ainda merece um esforço maior de compreensão,
é o uso indiscriminado do conceito de “território”, que em muitos casos
torna-se simplesmente sinônimo de micro ou meso-região, sem atentar
para o fato de que envolve um conjunto de relações, disputas e interesses
e de que não há um único território, mas territórios sobrepostos confor-
me os objetivos para os quais os mesmos são definidos. (DELGADO et
al., 2007, p. 59, grifo nosso).

Na realidade, território é empregado como “[…] ambiente de análise e


campo de programação e execução de ações e políticas públicas em prol
de um caráter de normatização, ao invés de se dedicar à percepção das
práticas sociais e das relações de poder – lócus de luta política” (SOUZA;
FILIPPI, 2008, p. 2-3). As relações de poder, nucleares na definição da ter-
ritorialidade, são ignoradas no conceito de território adotado pela atual
política de desenvolvimento rural brasileira. Logo,

O território que deveria ser visto como ambiente politizado, em conflito e


em construção é posto como ente mercadejado e passivo, mero receptácu-
lo. O que é fruto de relações sociais aparece como relação entre objetos. Há

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180 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

uma coisificação e o território parece ter poder de decisão, transformado


em sujeito coletivo. (BRANDÃO, 2007, p. 50).

Nessa perspectiva, há “[…] uma indiferenciação geral do espaço social,


redefinido como simples espaço operacional passível de ser modificado
por qualquer estratégia de controle organizacional” (DUPAS, 2003, p. 62).
Mais uma vez atesta-se um dos sintomas do paradigma da simplificação: a
negligência para com o papel social.
O território entendido como recorte espacial de atuação ou escala ins-
trumental da governança mais se aproxima da noção de região do que de
território, o que explica a confusão na distinção e associação desses concei-
tos, fato muito comum com a disseminação dessa política.
Segundo Schneider e Tartaruga (2004), a noção de território adotada
na abordagem territorial do desenvolvimento não está em conformida-
de com o caráter analítico e conceitual reivindicado principalmente pela
Geografia, pois trata-se de uma abordagem essencialmente normativa de
sentido instrumental e prático. Assim, para esses autores, “é comum que
o território perca seu sentido heurístico e conceitual e passe a ser utilizado
como sinônimo de espaço ou região, conforme o caso” (p. 11) e, ainda as-
sim, “não se pode reivindicar ou reclamar das perspectivas ou abordagens
territoriais por serem a-teóricas” (p.11), pois elas foram criadas com a fina-
lidade eminentemente prática/operacional.

[…] se defende a necessidade de se distinguir o uso e o significado do territó-


rio como conceito de análise, tal como lhe confere a geografia e outras disci-
plinas como a antropologia ou a biologia, dos sentidos instrumentais e prá-
ticos que lhe são atribuídos pelos enfoques ou abordagens territoriais. […] A
diferença fundamental entre o uso e significado conceitual e instrumental
do território é que o sentido analítico requer que se estabeleçam referências
teóricas e mesmo epistemológicas que possam ser submetidas ao crivo da
experimentação empírica, e, depois, reconstruídos de forma abstrata e ana-
lítica. O uso instrumental e prático não requer estas prerrogativas e, por isso,
pode-se falar em abordagem, enfoque ou perspectiva territorial quando se
pretende referir a um modo de tratar fenômenos, processos, situações e con-
textos que ocorrem em um determinado espaço (que podem ser demarcados
por atributos físicos, naturais, políticos ou outros) sobre o qual se produzem
e se transformam. (SCHNEIDER; TARTARUGA, 2004, p. 10).

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Da região ao território 181

Ora, se a própria formulação teórica pode, inclusive, derivar-se da ob-


servação e análise dos fenômenos empíricos, não se justifica o lapso entre
discussões tão arejadas no âmbito acadêmico sobre o conceito de território,
empreendidas principalmente por geógrafos, e a concepção funcional de
território que alicerça a noção de desenvolvimento nos documentos ofi-
ciais do MDA, especialmente no âmbito do PRONAT. Mesmo reconhe-
cendo a necessidade operacional da política governamental, não se pode
ignorar o número de pesquisas e proposições epistemológicas acerca do
tema, como também não se pode negar que a noção instrumental de terri-
tório, adotada pelo governo federal como parâmetro para a delimitação e
intervenção no espaço, alimente o processo de elaboração teórica.
Se o conceito de território é balizador para implementar a proposta po-
lítica de desenvolvimento, é fundamental que ela não apresente defasagem
conceitual sobre o que lhe é básico, pois a aplicabilidade empírica do con-
ceito depende da interpretação e articulação das concepções teóricas em
que se sustenta ou deveria sustentar-se.
A defasagem conceitual é ainda mais contundente quando se analisa o
argumento central que justifica a substituição do conceito de região pelo
de território, e, por conseguinte, do desenvolvimento regional em favor do
territorial: a alusão ao esgotamento do conceito de região. Sérgio Schnei-
der, por exemplo, apesar de não cair na mera coisificação do território, tem
defendido o esgotamento teórico e prático da abordagem regional, apon-
tando sistematicamente argumentos que sustentam o suposto desgaste da
noção de região e os ganhos do emprego do conceito de território como
unidade de referência das políticas públicas.

No que se refere à indagação acerca dos fatores que ocasionaram a emer-


gência da abordagem territorial como tentativa de síntese para as discus-
sões sobre o desenvolvimento rural, é possível afirmar que a origem está
em dois processos distintos. Primeiro, pelo esgotamento teórico e prático
da abordagem regional, que torna evidente os limites da noção de região
como unidade de referência para se pensar as ações e políticas públicas
destinadas à promoção do desenvolvimento rural. (SCHNEIDER, 2004,
p. 100).

A própria tese de Favareto (2006), que muito contribuiu para a con-


textualização sobre a emergência da abordagem territorial do desenvolvi-

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182 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

mento rural, deixa explícito que o conceito de região não tem pertinência
na realidade atual, pois para ele o referido conceito apresenta limites que
obstaculizam sua aplicabilidade. Sob seu ponto de vista, o autor se apro-
pria de uma citação de Milton Santos que trata de uma crítica ao conceito
de região sob os moldes da Geografia Tradicional para fundamentar a con-
sequente substituição da região por território nas políticas de desenvolvi-
mento.

Para Milton Santos (apud LENCIONI 2003, p. 192), nas condições atuais
da economia universal, a região teria perdido o caráter de realidade viva,
dotada de coerência interna. A ausência desta “autonomia regional” seria,
assim, uma das razões da falência da geografia regional tal como consi-
derada nos moldes clássicos. A segunda crítica diz respeito às fronteiras
epistemológicas. Embora se situe no âmbito da ciência social, a geografia
difere da teoria social à medida que considera aspectos da natureza para
a compreensão da realidade (LENCIONI, 2003, p. 203). Enquanto a geo-
grafia humana sofreu uma espécie de hipertrofia, a geografia física con-
tinuou sua trajetória de valorização, impulsionada pela valorização dos
temas ambientais e ecológicos. Do outro lado, a geografia regional, ante
o entendimento da geografia como ciência social, sem atentar para sua
especificidade que consistia em incorporar a natureza, acabou sendo ne-
gada. Isto é, a especificidade da geografia precisava ser esquecida para sua
afirmação como ciência social. Finalmente, em afinidade com este espírito
dos tempos, o descenso do planejamento regional, em muito relacionado
à primeira destas críticas, completa o quadro de esvaziamento da legiti-
midade do uso do conceito de região na geografia […]. Entende-se assim
parte das razões que levam a substituir região por território na retórica e
nos estudos sobre desenvolvimento […]. (FAVARETO, 2006, p. 125-126,
grifos nossos).

Conforme anteriormente salientado, o próprio Milton Santos alerta:


“Não pensamos que a região haja desaparecido. O que esmaeceu foi a nossa
capacidade de reinterpretar e de reconhecer o espaço em suas divisões e
recortes atuais […]” (SANTOS, 1994, p. 102). Em momento posterior, ele
afirma que “a região continua a existir, mas com um nível de complexida-
de jamais visto pelo homem” (SANTOS, 1999, p. 16). Logo, por que falar
em esgotamento do conceito de região?

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Da região ao território 183

Souza e Filippi (2008), numa crítica à vulgarização da “nova” aborda-


gem de desenvolvimento rural, deixam implícita a perspectiva de substi-
tuição da noção de região por território:

Na verdade, o desenvolvimento territorial poderá se tornar uma pana-


ceia absorvida nos discursos tecnocráticos e no cognitivo dos sujeitos
envolvidos com a articulação e mobilização em prol dos territórios ru-
rais. Retoma-se o “localismo” com outros argumentos, contudo, confor-
me frisam Schneider (2004), Brandão (2007), Blume & Scheneider (2003)
e Schejtman y Berdegué (2004), deve haver um cuidado com a extrema
vulgarização, porque isso criaria obstáculos a uma melhor exploração,
de maneira positiva, das potencialidades que representa o conceito de
território, principalmente o seu significado de superação da noção de
região e Estado-nação. (SOUZA; FILIPPI, 2008, p. 4).

Conforme salientou Haesbaert (2010), o ir e vir dos conceitos ao lon-


go da trajetória de qualquer campo do conhecimento nos revela não ape-
nas a busca por novas palavras/expressões, mas, principalmente, novos
conteúdos que essas palavras comportam numa tentativa de expressar e
acompanhar as transformações da realidade. Atualmente, a hegemonia do
conceito de território, sobretudo na América Latina, se aproxima daquela
adquirida pelo conceito de região no início do século XX. Isto não significa
que se deva substituir o conceito de região pelo de território, como muitos
têm proposto e/ou feito, mas analisar as perspectivas ou questões que eles
são capazes de dar conta (HAESBAERT, 2010).
A análise do processo de formação dos territórios implantados pela po-
lítica nacional de desenvolvimento territorial rural revela sérias fragilida-
des conceituais e também operacionais. Apesar de se combater a aborda-
gem regional, o que se tem chamado de território normativo, não deixa de
ser uma nova forma de regionalização do espaço.
Como categorizou Perico (2009), a constituição dos Territórios Rurais
obedeceu um percurso operacional dividido em três momentos:
1. Momento 1: A Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT) carac-
terizou as microrregiões geográficas a partir de informações secundá-
rias, geopolíticas e demográficas fornecidas pelo IBGE. Dois critérios
básicos foram utilizados para a seleção: população (microrregiões com
população municipal com média de até 50 mil habitantes) e densidade

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184 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

demográfica (microrregiões com densidades inferiores a 80 habitantes


por hectare). Posteriormente esses recortes regionais foram classifica-
dos de acordo com a presença relativa de unidades de produção oriun-
das da agricultura familiar e o cálculo do Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), tendo em vista identificar e priorizar as microrregiões
com níveis de desenvolvimento mais baixos. Esse exercício resultou na
seleção de 120 microrregiões geográficas, também chamadas de mi-
crorregiões rurais.
2. Momento 2: Sobre a base das microrregiões geográficas selecionadas,
iniciou-se o processo de demarcação dos territórios. Corrigiram-se
possíveis imperfeições na definição dos limites regionais, a partir de
um refinamento nas bases de informação utilizadas no processo de re-
gionalização, descrita no momento 1. Em seguida, foram feitos novos
reajustes no arranjo espacial conformado, a partir do reconhecimen-
to da identidade dos atores locais/estaduais, expressa, principalmente,
nas reuniões realizadas pelos Conselhos Estaduais de Desenvolvimento
Rural. Esse processo legitimou a transformação das microrregiões em
territórios, metodologicamente com significado de Territórios de Iden-
tidade.
3. Momento 3: Este momento trata da culminância da “territorialização”
em si, enquanto produto da ação e da gestão do território.

Observa-se que, nessa trajetória metodológica, o MDA/SDT fez uso de


recursos estatísticos para instituir uma “nova regionalização”. Posterior-
mente, através do reconhecimento da identidade dos sujeitos envolvidos
nos arranjos organizacionais preestabelecidos, subtende-se que foram
criados ou ratificados elos de coesão entre os municípios que constituem o
então chamado Território.
Embora os próprios documentos publicados pelo MDA enfatizem que
“os territórios são mais do que simples base física”, eles são entendidos
como área geográfica de atuação e, por isso, são equivocadamente com-
preendidos como escala equivalente ao nível microrregional:

A característica mais significativa da política empreendida pela Secretaria


de Desenvolvimento Territorial consiste na definição do objeto de ação
focada no planejamento e na gestão dos Territórios de Identidade – que
consistem em conjuntos de municípios que conformam unidades de atua-

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Da região ao território 185

ção […]. É fundamental entender que o âmbito da gestão da política de


desenvolvimento rural foi definido enquanto espaço equivalente ao nível
microrregional, conforme expresso na política territorial do Estado Brasi-
leiro. (PERICO, 2009, s.p.).

O estado da Bahia, por exemplo, em consonância com a política do


MDA, foi fragmentado pelo governo Jacques Wagner em vários recortes,
“os territórios”, especificamente chamados de Territórios de Identidade,
materializando uma espécie de quebra-cabeça ou “territórios-zona”, uti-
lizando os termos de Haesbaert (2004).9 Os territórios, espacialmente de-
finidos a partir dos limites político-administrativos municipais, confor-
mam no estado baiano uma lógica areolar. Nesse percurso, o território é
definido como “uma área geográfica de atuação de um projeto político-
-institucional, que se constrói a partir da articulação de instituições em
torno de objetivos e métodos de desenvolvimento comuns” (SEI, 2004, p.
114, grifo nosso). Aqui é possível notar a profunda despolitização do con-
ceito por meio de seu deslocamento de sentido: o que antes expressava a
espacialidade das relações de poder passa a ser sinônimo de área geográ-
fica de atuação.
Algumas pesquisas destacam que o processo de implementação da
política territorial de desenvolvimento da SDT/MDA na Bahia é um caso
exemplar, de profunda singularidade em relação à sistemática dos demais
estados, como vê-se em Rocha e Paula (2007) e Delgado et al. (2007). Essa
asserção está sustentada na crença de que a delimitação dos territórios se
deu de forma amplamente descentralizada e participativa entre Estado e
sociedade, sendo a territorialidade definida pelo reconhecimento da iden-
tidade dos sujeitos envolvidos.10 Porém, vários estudos empíricos sobre
Territórios de Identidade baianos, a exemplo de Freitas (2009) e Germa-
ni (2010), apontam o inverso. Essas autoras destacam que a participação
social dessa política de desenvolvimento territorial aproxima-se da mera
gestão dos recursos públicos, cabendo aos membros da sociedade civil as-
sumir funções e responsabilidades restritas à implementação e execução

9 Para Haesbaert (2004), os “territórios-zona” se definem como tal pela predominância da


lógica zonal, de controle de áreas e limites ou fronteiras.
10 A lógica zonal de demarcação dos territórios, ainda que seja conduzida de maneira par-
ticipativa, não atende à complexidade que pressupõe espacializar a identidade.

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186 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

das políticas públicas, em detrimento da partilha da decisão no processo


de formulação dessas políticas.
Reconhece-se que pode haver ganhos com a perspectiva de descentra-
lização política legitimada pelo MDA, principalmente se houver a trans-
parência do conflito e a proposição de um debate aberto, em que a socie-
dade civil não abra mão de sua visão universalista de direitos (DAGNINO,
2004). Assim, poder-se-á fazer melhor uso da abordagem territorial do
desenvolvimento, especialmente dos espaços públicos que ela institui, “as-
segurando o seu qualificativo públicos e o que ele promete” (DAGNINO,
2004, p. 161, grifo da autora).
Porém, “a proposta de desenvolvimento territorial não é nenhuma polí-
tica de radicalidade, e sim de readequação à lógica de mercado” (SANTOS;
MARSCHNER, 2008, p. 110). Convergindo com essa interpretação, Cunha,
Paulino e Meneses (2009) defendem que o uso da noção de território e, por
conseguinte, de participação social, autogestão, concertação, solidarieda-
de etc. na política de desenvolvimento rural expressa uma tentativa de mo-
dernização. Conforme mostramos na seção anterior, essa proposta política
está em consonância com as orientações dos organismos internacionais
que, por sua vez, continuam associando estritamente a pobreza à agricul-
tura. O relatório sobre desenvolvimento do Banco Mundial ratifica isso:

No século XXI, a agricultura continua a ser um instrumento fundamen-


tal para o desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza […]. Abor-
dar as disparidades de renda nos países em transformação requer um en-
foque abrangente que adote múltiplos meios para sair da pobreza – passar
para uma agricultura de alto valor, descentralizar a atividade econômica
não-agrícola para as áreas rurais e prestar assistência para ajudar as pes-
soas a saírem da agricultura. (BANCO MUNDIAL, 2007, p. 1-2, grifos
nossos).

Apesar da emergência da abordagem territorial do desenvolvimento ru-


ral anunciar várias mudanças em relação aos projetos de desenvolvimento
do passado que tinham a região como unidade de intervenção, continua-se
regionalizando o espaço com enfoques semelhantes, que associam pobreza
à agricultura, mas agora se revestem do discurso de participação social
para legitimação de formas históricas de dominação.

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Da região ao território 187

Considerações finais
A incorporação da abordagem territorial do desenvolvimento rural nas
políticas públicas de desenvolvimento rural está atrelada a uma dinâmica
de interseção entre o conhecimento científico e a instância político-econô-
mica mundial. Nesse contexto, os organismos internacionais ocupam po-
sição de destaque, principalmente pelo seu papel de financiador e, portan-
to, “orientador” das perspectivas de desenvolvimento adotadas nos países
da periferia ou semiperiferia do capitalismo mundial.
Desde a década de 1990, período em que os organismos internacio-
nais passaram a defender a abordagem territorial, os países da América
Latina começaram a incorporará-la em suas políticas de desenvolvimen-
to. No Brasil, a partir do governo FHC adota-se princípios e elementos
desse enfoque, como o incentivo ao cooperativismo, à participação so-
cial, à sustentabilidade etc. Mas é em 2003, com a criação da Secretaria
de Desenvolvimento Territorial, vinculada ao Ministério de Desenvolvi-
mento Agrário, que essa abordagem ganha corpo. O território, instru-
mentalidade dessa política, passou a ser visto como a instância que via-
bilizará o estreitamento da relação sociedade e Estado e como estratégia
metodológica de ascensão dos agricultores camponeses (historicamente
excluídos), numa visão integradora do espaço, da sociedade, mercados e
políticas públicas.
Porém, este estudo aponta que a adoção do termo território, em substi-
tuição ao termo região, está sustentada em equívocos conceituais sobre es-
sas categorias espaciais e, embora se proponha um arejamento da perspec-
tiva de desenvolvimento rural, continua-se reproduzindo aspectos seme-
lhantes aos projetos do passado que tanto foram criticados. A política de
desenvolvimento territorial rural implantada no Brasil, em consonância
com as orientações dos organismos internacionais, não provocou mudan-
ça estrutural (FAVARETO, 2006), ainda que se proponha a descentraliza-
ção das políticas públicas e a abordagem não setorial do desenvolvimento.

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SOBRE OS AUTORES

Agripino Souza Coelho Neto

Licenciado em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (1991), Ba-


charel em Economia pela Faculdade Católica de Ciências Econômicas da
Bahia (1999), Especialista em Administração pela Universidade Federal
da Bahia (2001), Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bah-
ia (2004) e Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense
(2013). Professor do Curso de Urbanismo da Universidade do Estado da
Bahia. Professor do Mestrado em Planejamento Territorial da Universida-
de Estadual de Feira de Santana. Coordenador do Grupo de Pesquisa Ter-
ritório, Cultura e Movimentos Sociais (TECEMOS/UNEB/CAMPUS XI)
e pesquisador dos Grupos de Pesquisa GEOMOV (DCHF/UEFS) e TER-
RITÓRIOS (UNEB/DCET/Campus I). Especialista nas áreas de Geografia
Política, Geografia Regional e Geografia Econômica, com foco nos seguin-
tes temas: Política e Gestão Territorial, Irrigação Pública, Territorialidade
e Redes Sociais, Ruralidades e política de transportes .

Antonio Calheiros

Licenciado em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa. Mestre em


Planejamento Regional e Urbano, pela Faculdade de Letras da Universida-
de do Porto. Doutor em Geografia pela Universidade de Santiago de Com-
postela. Assistente das Faculdades de Ciências Sociais e de Filosofia, do
Centro Regional de Braga da Universidade Católica Portuguesa. Autor dos
livros ”Globalização e Desenvolvimento local. Que futuro para os territó-
rios desfavorecidos?” e Mendigos de Ninguém. Conversas (im)prováveis
acerca da democracia”.

191

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192 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Celia Basconzuelo
Mestre em Partidos Políticos (CEA-UNC). Doutora em Historia pela Uni-
versidad Nacional de Cuyo (UNCu). Pós-doutorado em Ciências Sociais
(CEA-UNC). Professora Associada da Universidad Nacional de Río Cuar-
to (UNRC). Investigadora Adjunta do CONICET. Membro corresponden-
te da Junta Provincial de Historia de Córdoba. Diretora do Mestrado em
Ciências Sociais (UNRC). Diretora do Programa “Protesta social y organi-
zaciones de la Sociedad Civil” (UNRC).

Edinusia Moreira C. Santos

Graduada em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de Santana,


Especialista em Geografia do Semiárido Brasileiro pela Universidade Esta-
dual de Feira de Santana, Mestre em Geografia pela Universidade Federal
da Bahia e Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Sergipe. É
professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, atuando
no Mestrado Profissional em Planejamento Territorial e na Graduação em
Geografia. Na docência tem foco nas áreas de Metodologia da Pesquisa
e Geografia Econômica. Coordenadora do GEOMOV/DCHF/UEFS. No
âmbito da pesquisa, atua a partir dos seguintes temas: Região Sisaleira da
Bahia, desenvolvimento regional, associativismo e movimentos sociais. É
autora dos livros Associativismo e Desenvolvimento: O Caso da Região
Sisaleira da Bahia e Gente ajudando gente: o tecido associativista do Ter-
ritório do Sisal.

Eldenilson da Silva Monteiro

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará


e especialização em Educação do Campo, Agroecologia e Questão Agrá-
ria na Amazônia pela Faculdade de Ciências da Educação/UFPA/Campus
Marabá.

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Sobre os autores 193

Jamille da Silva Lima


Graduada em Geografia pela Universidade do Estado da Bahia, especia-
lista em Dinâmica Territorial e Socioambiental do Espaço Baiano pela
Universidade Estadual de Feira de Santana e Mestre em Geografia pela
Universidade Federal da Bahia. Professora na Universidade do Estado da
Bahia, Departamento de Ciências Humanas, Campus IV. Atualmente está
em processo de doutoramento em Geografia na Universidade Estadual de
Campinas, estudando identidade indígena Payayá, dialogando com a fi-
losofia levinasiana. Tem experiência na área de Geografia regional, Geo-
grafia Agrária e Epistemologia da Geografia, atuando principalmente nos
seguintes temas: Região e regionalização, território e des-territorialização,
políticas de desenvolvimento territorial rural e identidade.

Naidison de Quintella Baptista

Teólogo, com formação na Universidade Católica de Salvador, Universi-


dade Gregoriana de Roma e Instituto Litúrgico de Trier, na Alemanha.
Professor Aposentado da Área de Metodologia do Trabalho Científico da
Universidade Estadual de Feira de Santana. Ativista do Movimento de Or-
ganização Comunitária (MOC) e Coordenador Nacional da Articulação
do Semiárido Brasileiro (ASA).

Nelson Rodrigo Pedon

Professor da EBTT do Instituto Federal de São Paulo - Campus de Biri-


gui, credenciado no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Territorial na América Latina e Caribe (Territorial) vinculado ao Instituto
de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP-São Paulo. É
membro do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária
(NERA) vinculado à UNESP-Presidente Prudente. Atua em diversas áreas
da Geografia Humana e Ensino de Geografia. Foi docente e pesquisador
dos cursos de Geografia da Universidade Federal de Goiás (UFG) entre
2009 e 2010 e da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de 2010 a 2015.
Autor do livro intitulado Geografia e Movimentos Sociais.

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194 ESPACIALIDADE E MOVIMENTOS SOCIAIS

Onildo Araujo da Silva


Possui Licenciatura em Geografia pela Universidade Estadual de Feira de
Santana - UEFS, Especialização em Geografia do Semiárido Brasileiro pela
UEFS, Mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal
de Santa Catarina - UFSC e Doutorado em Geografia pela Universidade
de Santiago de Compostela - USC. É professor titular da Universidade
Estadual de Feira de Santana, onde atua na graduação em Geografia, no
Mestrado Profissional em Planejamento Territorial e na coordenação do
Grupo de Pesquisa em Geografia e Movimentos Sociais (GEOMOV). Os
principais temas de interesse e pesquisa são: políticas públicas, recursos
hídricos e ação do Estado, espaço rural e pequenas cidades, movimentos
sociais e territorialidade. Participa da Rede de Pesquisa Cidades Médias e
Pequenas do Estado da Bahia (Rede CMP) e desenvolve projetos de pes-
quisa que focam a inter-relação entre movimentos sociais e ação do Estado
com foco para as pequenas cidades, principalmente no Território do Sisal
no Estado da Bahia.

Rafael Junior Motter

Mestre em Geografia pelo Instituto de Políticas Públicas e Relações Inter-


nacionais (IPPRI) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fi-
lho (UNESP), Licenciado em Filosofia pela Universidade Regional Integra-
da do Alto Uruguai e das Missões (URI), pós-graduado em Economia Po-
lítica pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), pós-graduado
em Desenvolvimento Rural Sustentável e Agricultura Familiar pela Uni-
versidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Possui experiência profissional
com: docência, educação popular, cooperativismo, economia solidária e
projetos sociais.

Rubén C. Lois González

Licenciado em Geografia e História e Doutor em Geografia pela Universi-


dade de Santiago de Compostela (USC). Catedrático de Análise Geográfica
Regional do Departamento de Geografia da Universidade de Santiago de

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Sobre os autores 195

Compostela e Coordenador do Grupo Análise Territorial (ANTE). Autor


de mais de 20 livros e capítulos de livro e mais de 100 artigos científicos.
É membro fundador da Associação de Geógrafos Espanhóis, Membro da
Comissão Espanhola da União Geográfica Internacional desde 2001. Foi
professor visitante de Geografia em universidades da França (du Maine,
Caen, Toulouse-Le Mirail) e da Noruega (Bergen).

Ruy Moreira

Graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Mes-


tre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutor em
Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo e Doutor
Honoris Causa pela Universidade Estadual do Ceará-UECE. É professor
permanente do Curso de Pós-Graduação (mestrado e doutorado) da Uni-
versidade Federal Fluminense (UFF) e professor permanente do curso de
pós-graduação (mestrado) em Geografia da FFP-UERJ. Tem seu interesse
de pesquisa na formulação da teoria abstrato-geral (método, epistemologia
e ontologia) da Geografia e da teoria real-concreta da organização geográ-
fica da formação espacial brasileira correlata, no intuito da convergência
de configurações que identifiquem na relação homem-espaço-natureza
própria o sentido de ser-estar que determina a sociedade brasileira em
sua (e como uma) forma singular e própria de geograficidade. Entre suas
publicações destacamos os livros Pensar e ser geografia, O pensamento
geográfico brasileiro, Geografia e práxis e A geografia do espaço-mundo.

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Esta obra foi produzida em agosto de 2018
no Rio de Janeiro pela Consequência Editora.
Na composição foram empregadas as tipo­
logias Minion e Helvetica.

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