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Revista de Psicologia

IDENTIDADE SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLO-


GIA SOCIAL CRÍTICA: REVISITANDO OS
CAMINHOS DA EDIFICAÇÃO DE UMA TEORIA
Revista IDENTITY UNDER THE PERSPECTIVE OF CRITICAL SOCIAL PSYCHOLOGY: REVISITING
de Psicologia THE WAYS OF EDIFICATION OF A THEORY

Sheila Ferreira Miranda 1

Resumo
Pensar nos aspectos da produção identitária na contemporaneidade significa buscar pela compreensão de significados assumidos
e adjudicados pelos indivíduos às transformações experienciadas ao longo de suas. No contexto de uma Psicologia Social Crítica,
este debate toma especial relevância, pois a discussão reclama a elaboração de construções que contribuam para uma leitura mais
profícua da realidade social, levando-se em consideração o indiscutível compromisso político assumido pela intencionalidade teórico-
epistemológica de uma psicologia social historicamente situada. Tendo como base estas orientações, o objetivo deste estudo consiste
em revisitarmos os caminhos tomados pela obra de Antônio da Costa Ciampa, partindo de uma leitura de sua Tese de Doutoramento
em direção à construção teórica do sintagma identidade-metamorfose-emancipação, buscando explicitar os principais elementos
conceituais e o delineamento epistemológico do seu trabalho. E ao avaliarmos o potencial analítico dos escritos do autor, defendemos
que sua obra configura uma Teoria da Identidade e não apenas uma categoria analítica, cuja edificação visa, especialmente, encontrar
pontos de fuga, alternativas emancipatórias perante o quadro de individualismos, coerções e dissensos causados pela inversão de
valores nas sociedades modernas.

Palavras-chave: Emancipação; Identidade; Psicologia Social.

Abstract
Think about the aspects of identity in contemporary production means to quest for understanding meanings assumed by individuals
and attributed to transformations experienced throughout their lives and still one of the greatest theoretical challenges of today to the
different areas of the humanities. In the context of a Critical Social Psychology, this debate is especially relevant because the discussion
calls for the development of theoretical constructs that contribute to a successful result reading of social reality, taking into account the
undisputed political commitment of the theoretical and epistemological intentionality social psychology historically situated. Based on
these guidelines, the aim of this study is to revisit the paths taken by the work of Antonio da Costa Ciampa, from a reading of his doctoral
thesis toward the theoretical construction of the phrase identity-metamorphosis-emancipation, seeking to clarify the main conceptual and
epistemological design of your work. And to assess the analytical potential of the writings of the author, argue that his work constitutes a
theory of identity and not just an analytical category, whose building aims, especially, find vanishing points, emancipatory alternatives to
the framework of individualism, coercions and dissension caused by the inversion of values in modern societies.

Keywords: Emancipation; Identity; Social Psychology.

1
Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ). Psicóloga, Mestre em Psicologia, Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e Pesquisadora do Grupo
Interdisciplinar de Pesquisas sobre a Identidade Humana/PUC-SP. Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFSJ. E-mail: sheilaze@gmail.com

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Revista de Psicologia

Eu não sou mais quem você conheceu


Não existe mais em mim os velhos tempos
Não diga nada pois tudo é sim
Todo caminho tem um mesmo fim
Transformação pra poder existir
Não estranhe

Renato Teixeira

Pensar nos aspectos da produção jam um “aprisionamento aos sectarismos


identitária no contexto contemporâneo sig- dogmáticos” em relação aos teóricos revi-
nifica ¬— como já dissemos em outro mo- sitados, fazendo alusão às discussões im-
mento (Miranda, 2011) — uma infatigável plementadas por Carone (2007) e Ciampa
busca pela compreensão de significados (1987).
assumidos e adjudicados pelos indivíduos
O objetivo principal deste trabalho
às transformações experienciadas ao lon-
consiste em revisitarmos os caminhos toma-
go de suas vidas e, ainda, um dos maiores
dos pela obra de Antônio da Costa Ciampa
desafios teóricos da atualidade para as di-
(1984; 1987; 1999; 2002; 2003) partindo de
ferentes áreas das ciências humanas (Al-
uma leitura de sua Tese de Doutoramento
meida, 2005).
em direção à construção teórica do sintag-
No contexto de uma Psicologia Social ma identidade-metamorfose-emancipação,
Crítica, este debate toma especial relevân- buscando explicitar os principais elemen-
cia, pois infere à realização de análises das tos conceituais, bem como o delineamento
relações estabelecidas entre o indivíduo e epistemológico do seu trabalho.
seu contexto social, demarcando tanto os
determinantes que atuam na manutenção
da ordem vigente, quanto as diferentes pos-
sibilidades de superação destas limitações. IDENTIDADE-METAMORFOSE: DA EPIS-
Assim, ao refletirmos sobre o fenô- TEMOLOGIA AO DEBATE SOBRE OS
meno das identidades, temos que ter em SENTIDOS
mente que esta discussão reclama a elabo-
ração de elementos teóricos que contribu- A tese defendida pelo autor no final
am para uma leitura mais profícua da rea- da década de 80 – que irá modificar deci-
lidade social, levando-se em consideração o sivamente os rumos conceituais da dis-
indiscutível compromisso político assumi- cussão do fenômeno na Psicologia Social
do por uma Psicologia historicamente situ- Latino-Americana – sustenta a identidade
ada, na qual nos referenciamos principal- como um processo inescapável de trans-
mente a partir de Lane (1984; 1995/2009). formações, ou seja, compreende o sujeito
através do crivo materialista histórico, sub-
O desafio da discussão identitária
também exige que se abram espaços de in- vertendo uma tradição substancialista (Ca-
terlocuções permanentes com disciplinas rone, s/d) do conceito, que mantinha até
afins e múltiplos autores, tendo em vista então a ideia de “permanência e unicidade
a complexidade do fenômeno e sua carac- do ser” (Almeida, 2005).
terística multifacetada. Neste sentido, pre- A partir deste trabalho, a discussão
tendemos que o ato de nos interrogarmos identitária amplia-se e passa a ser tratada
sobre a atualidade dos conceitos e as arti- em termos de metamorfose (Ciampa, 1984;
culações teóricas aqui tecidas não nos exi- 1987), concepção de processo que tem

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como pressuposto ontológico a ideia do ser Este processo aponta o caráter rela-
como devir (Carone, s/d; Ciampa, 1987). cional das identidades, pois Ciampa (1987)
A leitura sobre o sujeito deixa de ser fun- considera que sua produção não pode ser
damentada em algo imutável – abando- pensada sem o alicerce dos códigos de
nando as predicações definitivas – para conduta socialmente atribuídos, toman-
ser concebida através das mudanças edi- do como base a teoria dos papéis (Carone,
ficadas pelos sentidos dados ao próprio s/d). As identidades evidenciam-se ampa-
projeto de vida. radas nas relações sociais no momento em
que o autor, ao pensar nas condições sob
Nestes termos, “o indivíduo não é
as quais se produz o humano, faz o empre-
mais algo: ele é o que faz” (Ciampa, 1987,
go pensamento de Habermas (1983) e con-
p. 135) e, portanto, é considerado produ-
sidera profícuas suas leituras sobre a obra
to e produtor, autor e personagem que se
de Mead (1973).
constrói através da atividade social em um
determinado momento histórico. Assim, A unidade da pessoa, que é cons-
pensar a identidade como metamorfose sig- truída através de uma auto-identi-
nifica admitir uma transformação radical ficação intersubjetivamente reco-
nas pesquisas em Psicologia Social (Ciam- nhecida (analisada por G. H. Mead)
apóia-se sobre a participação na – e
pa, 1987), pois de tarefa até então essen-
sobre a delimitação da – realidade
cialmente descritiva (Carone, s/d), passa simbólica de um grupo, assim como
a ser um trabalho de nível compreensivo, sobre a possibilidade de se localizar
que busque “(...) captar os significados im- tal realidade (Habermas, 1983, p.
plícitos, considerar o jogo das aparências” 24, grifos nossos).
(Ciampa, 1987, p. 139).
Tentar compreender os sujeitos
Em Habermas a produção das iden-
através desta teoria implica em acompa-
tidades é elucidada a partir do princípio
nharmos as constantes mudanças, as di-
de internalização das normas sociais, que
ferentes representações que podem con-
dá origem à constituição de “identidades
formar tanto a expressão do movimento de
de papel”, posteriormente superadas pelas
alterização quanto a impressão do mesmo.
“identidades do Eu” – construções que ope-
Por meio destas mudanças a identida- ram reflexivamente, transpondo os limites
de se conforma em “uma totalidade contra- e exigências impostos pelas normas socia-
ditória, múltipla e mutável, no entanto, una” lizadoras. Isto significa que “o fundamento
(Ciampa, 1987, p. 61). Nesta linha de raciocí- para a afirmação da própria identidade não
nio, temos o caráter dialético do processo, que é a auto-identificação tout court, mas a au-
se apresenta como uma unidade de contrá- to-identificação intersubjetivamente reco-
rios e, ao mesmo, tempo reflete a totalidade do nhecida” (Habermas, 1983, p. 22, grifos do
contexto vigente no microcosmo das relações autor).
sociais: o sujeito é uno e se constrói através
Tais afirmações abrem preceden-
da multiplicidade e da mudança, de acordo
tes para compreendermos a essenciali-
com seus posicionamentos como ator e autor
dade do Outro na formação do Eu, que o
do próprio processo identitário.
autor demarca em ambos os textos como
A produção ocorre através dos pro- “auto-identificação intersubjetivamente
cessos de socialização e individualização reconhecida” – partindo da concepção
(Habermas, 2002), nos quais os indivíduos interacionista da subjetividade na obra
interiorizam atribuições sociais predicadas de Mead (1973). Esta concepção aparece
pelos papéis e modificam-nas de acordo imersa na leitura dos processos psíqui-
com seus interesses particulares na articu- cos, ao levarmos em conta que os indiví-
lação de diferentes personagens (Ciampa, duos irão buscar os referenciais para de-
1987). finirem-se não só na auto-interpretação

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de si, mas também no reconhecimento tuição das identidades, temos sua carac-
intersubjetivo (Habermas, 1983; 2002). terização como fenômeno ao mesmo tempo
grupal e individual, de maneira que esta
Mead (1973) desenvolve esta ideia
construção, também, ocorre pela articula-
quando afirma que a condição humana é
ção entre diferenças e igualdades, pelo cri-
inerente à constituição do self: O self cons-
tério comparativo (Ciampa, 1987).
titui a dimensão da personalidade compos-
ta pela consciência que o indivíduo tem de Neste complexo a representação dos
si mesmo ou autoconsciência que, por sua papéis designa a aparente substância, as
vez, edifica-se a partir da incorporação das múltiplas formas de predicações que no-
atividades sociais, possibilitando a sociali- meiam o indivíduo na condição de ser so-
zação através da compreensão acerca dos cializado e se exprimem na atividade social
símbolos compartilhados e a consequente através dos vários personagens, que dão
reprodução de gestos e valores comuns. corpo, significado e movimentos peculia-
Além disto, o desenvolvimento da auto- res aos sentidos e projetos de existência de
consciência também possibilita a reflexão cada um (Ciampa, 1987).
sobre os próprios atos e os determinan-
É na atividade social que ocorre a
tes sociais, gerando a autonomização das
objetivação e, portanto, que temos a carac-
ações ou individuação (Habermas, 2002).
terística de materialidade (Carone, s/d) do
Para que o indivíduo adquira a con- processo identitário. A multiplicidade das
dição de refletir sobre si mesmo, existe um determinações sociais se reflete nas repre-
pré-requisito: a compreensão dos códigos sentações individuais do sujeito, ao mesmo
sociais compartilhados, de forma que ele tempo em que ele transforma o meio e luta
só atinge um self, quando é capaz de res- para se alterizar, modificando seu entor-
ponder aos atos sociais e ver a si mesmo no: “se não há nada que não seja devir, a
a partir da perspectiva dos outros (Mead, superação, no devir, não é aniquilamento,
1925/1991). mas metamorfose: morte-e-vida” (Ciampa,
1987, p. 151).
A importância da proposição de
Mead reside no pioneirismo de sua leitura Morte-e-vida (Ciampa, 1987): é a
teórica, ao abandonar as premissas meta- metamorfose como possibilidade (Carone,
físicas de discussão da subjetividade, com- s/d), como realidade de potencial transfor-
preendendo os processos psíquicos como mação significativa e qualitativa, na qual
fenômenos intimamente atrelados à cons- seja possível a conscientização e os ques-
tituição de experiências de integração do tionamentos acerca das condições e limites
indivíduo à realidade das interações hu- de sua existência histórica. A característica
manas. Por conseguinte, entendemos que histórica da noção de identidade se ratifi-
o indivíduo não é visto como algo isolado ca no contexto das transformações sociais,
(Ciampa, 1987), mas como produto do através dos quais se precipitam diferentes
complexo de relações que estabelece com formas de vida, pois como nos afirma Ciam-
os outros e consigo mesmo em um contexto pa (1987, p. 157), “(...) não há personagens
histórico determinado. Torna-se, portanto, fora de uma história, assim como não há
impossível falarmos de uma Teoria da Iden- história (ao menos história humana) sem
tidade que se esgote na ideia de ipseidade personagens”.
(Almeida, 2005) como realidade absoluta,
Desse processo de transformações
sem levarmos em consideração a subjetivi-
fazem parte abandonar ou extinguir anti-
dade como algo gerido no âmbito das signi-
gas representações (morte) e mais do que
ficações produzidas por outros indivíduos,
isso, assumir um projeto político (vida) que
instituições e grupos.
remeta à humanização e à concretização
Ao considerarmos as interações da antítese no processo dialético (Konder,
como elementos fundamentais na consti- 1990).

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A antítese ou superação do processo está também apontando o caráter negati-


(que concretiza a metamorfose) ocorre jus- vo da identidade-metamorfose, ou seja, só
tamente na emergência da crise e contra- seria possível a alterização (no sentido uni-
dição, na negação da permanência (identi- versal) se o sujeito humano não estivesse
dade pressuposta) que eleva o indivíduo ao atrelado às condições de alienação geradas
sentido de uma condição de sujeito, ope- pelo sistema: não é, de maneira “plena”,
rando transformações em termos de ati- um sujeito, “(...) é um personagem, porque
vidade e consciência, de forma que possa as próprias relações de produção impedem-
lançar-se na direção de sua mesmidade. -no de se tornar sujeito na história” (Caro-
O que significa aprender a ser Outro, não ne, s/d, p. 06).
como re-atualização de uma imagem pres-
Para Ciampa (1987) o engajamento
suposta, mas ser o “outro de si mesmo”,
consciente num projeto político pode ser
em um movimento que confronta desejos e
impedido, quando a metamorfose se cris-
limites em relação às aspirações pessoais
taliza em seu aspecto representacional: é
e possibilidades de reconhecimento social,
a identidade-mesmice, identidade-mito ou
de maneira que a mudança se converta em
má-infinidade do processo (esta última,
transformação efetiva, na realização de um
no sentido de não superação das contra-
projeto político. Nas palavras do autor: “é
dições). Situação que se conforma numa
sermos o Um e um Outro, para que chegue-
“vida-que-nem-sempre-é-vivida” (p. 127).
mos a ser Um, numa infindável transfor-
mação” (Ciampa, 1984, p. 74). Entretanto, Nesse sentido, para compreendemos
a ideia de identidade-mesmice, precisamos
Se é verdade que uma identidade
concretiza uma política, dá corpo
mergulhar na análise do aspecto represen-
a uma ideologia, fica claro sob que tacional da identidade. A representação é
condições vivemos quando percebe- um exercício de adesão ao contexto social
mos que na nossa sociedade o devir no interior de uma cultura, que significa a
homem-sujeito é praticamente im- conformação de referenciais identificató-
possível (ao menos universalmen- rios na relação de confronto estabelecida
te)” (Ciampa, 1987, p. 182, grifos do entre os desejos pessoais e a sua organi-
autor). zação segundo modelos sociais de conduta
(Almeida, 2005). Assim, o indivíduo se re-
-apresenta ao outro como sempre idêntico,
Na discussão acima, o autor eviden- buscando se objetificar e ser reconhecido
cia a concepção de sujeito implícita na te- (Ciampa, 1987).
oria. Temos um indivíduo no qual sua es-
sência foi obstada, capturada pelo modo de Este fenômeno fica explicito atra-
produção capitalista. Não uma essência no vés da distinção entre personagem e pa-
sentido apriorístico do termo, mas uma as- pel tematizada por Ciampa (1987). O pa-
piração por alterizar-se, uma aspiração por pel traduz uma atividade padronizada,
igualdade e liberdade, que é obstada de se caracterizando a interiorização de predica-
materializar pelo modo de produção vigente dos normativamente definidos pela esfera
(Carone, s/d). Neste contexto, “o verdadei- coletiva. Apresenta-se como um aspecto
ro sujeito é o capital (...)” (Ciampa, 1987, substantivo das identidades-metamorfose,
p. 178), de forma que o processo de meta- podendo representar uma das diversas po-
morfose ocorre pelos predicativos criados a sições do sujeito na estrutura social. De tal
partir das determinações geradas pelo ca- modo que esta noção evidencia a articula-
pitalismo. O sujeito humano emerge dentre ção entre objetividade e subjetividade, na
as necessidades, limites e possibilidades
medida em que a pressuposição de uma
engendradas pelo próprio sistema.
identidade é encarnada pelo sujeito no co-
Quando o autor afirma que o “devir tidiano das suas múltiplas representações
homem-sujeito é praticamente impossível” e determinações.

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Mas a generalidade do papel, ou da essencial) acaba obscurecendo o movimento,


representação de uma identidade pressu- as mudanças que lhe são intrínsecas. Acre-
posta é encarnada apenas como parte de ditamos que a teoria elaborada por Ciampa
um processo muito mais complexo, que (1984; 1987) presta-se ao trabalho de “(...)
envolve sua objetivação através da repre- desideologizar os papéis” (Lane, 1995/2009,
sentação idiossincrática dos personagens. p. 77), o que implica em apontar as possi-
Cada ator social apresenta um modo dife- bilidades de mesmidade no processo e logo,
rente de representar o papel com suas ca- a superação dialética no confronto entre es-
racterísticas próprias, seu toque pessoal e sência e aparência – apontada na ilusão da
atribuindo adjetivos singulares aos perso- essência pela aparência do mesmo.
nagens, que são edificados através da ação
Com base nestes pressupostos, a re-
dos sujeitos (Ciampa, 1987).
-posição conforma a ideia de mesmice, ou
Se, como já afirmamos, os papéis se seja, a obstrução da metamorfose (no sen-
conformam na representação dos diferen- tido de não-superação de uma identidade
tes personagens, através do processo da pressuposta) em um processo que “(...) fixa
atividade social (que se edifica como movi- e cristaliza as identidades em representa-
mento e mudança), podemos compreender ções normatizadas” (Miranda, 2011, p. 54),
que o personagem é sempre verbo, mes- “(...) um fetiche controlando o ator” (Ciam-
mo que em alguns momentos ele se afirme pa, 1987, p. 158), que direciona as vivên-
como substantivo (Ciampa, 1987). Assim, cias a um universo presidido pelo jogo das
se analisarmos a forma como se produz convenções sociais e se apoia na negação
o aspecto representacional da identida- da metamorfose como possibilidade.
de, passamos a entender que este ratifica
O ator passa a ser escravo do per-
a ilusão de substancialidade do fenômeno
sonagem em uma espécie de compulsão à
(Ciampa, 1987).
repetição. Segundo Ciampa (1987) os su-
A ilusão da identidade como algo jeitos podem tanto aderir a este movimen-
estático acontece no jogo de ocultação e to de re-posição por interesses específicos,
revelação de diferentes aspectos predica- quanto terem seus projetos impedidos in-
tivos, de forma que o indivíduo reitera re- voluntariamente, barrados pela falta de
presentações de si pela repetição de uma condições objetivas, presos a uma espécie
identidade pressuposta, apresentando um de “mesmice imposta” (p. 165).
personagem que se cristalizou como ima-
A mesmice promove a tipificação dos
gem atemporal. Contudo, para que esta
indivíduos (Almeida, 2005) e estes passam
repetição ocorra também existe um movi-
mento, que é a constante re-apresentação a definir suas existências em função dos
da imagem supostamente “dada” ou vista parâmetros convencionais da identidade
pelo Outro como algo “permanente”, pois se (Habermas, 1983), ou seja, os sujeitos são
o sujeito é histórico, ele está constrangido a obstados de se apresentarem de forma dis-
se modificar (Lane, 1984), mesmo que seja tinta daquilo que é socialmente atribuído e
no esforço de conferir a paralização do pro- ficam presos a uma representação pressu-
cesso identificatório em re-produções pres- posta (Almeida, 2005).
critas (Ciampa, 1987).
A identidade convencional se confor-
Isto significa que a leitura do processo ma na delimitação de seu conteúdo e na re-
como metamorfose nos possibilita também a -apresentação de personagens que refletem
superação das ideologias inscritas no pró- acriticamente tradições, conservam-se em
prio contexto teórico-prático das identida- imagens do mundo e administram valores
des, pois, se levarmos em consideração uma e significados pré-estabelecidos normativa-
tradição substantiva do conceito, a essen- mente em uma adesão ritualizada que pode
cialização das identidades (quer seja como ser de caráter voluntário ou não (Haber-
personalidade, quer seja como um núcleo mas, 1983).

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A mesmice passa pela repetição ma neste entremeio, que a intencionalida-


cega aos ideais de autonomia, sob a qual de de sua produção teórica não concerne
o sujeito torna-se encarcerado, preso ao a um empreendimento paradigmático,
personagem que criou, seja em função de na medida em que o sintagma não pode
interesses pessoais, comodismo ou pres- ser compreendido através de conteúdos,
sões externas, como afirma Almeida (2005). mas de significações e sentidos adjudi-
Neste sentido, a imutabilidade deixa de ser cados (e assumidos) pelos indivíduos no
uma possibilidade e torna-se única opção contexto da produção de diferentes for-
visualizada, implicando na aceitação re- mas de existência.
signada dos ditames hegemônicos. Assim,
Neste interim, a característica de
a condição de mesmice como fetiche nos
transformação permanente delineada pela
remete à conformação de identidades con-
tese da identidade-metamorfose é teori-
vencionais e, por consequência, a negação
camente mantida, entretanto, o foco dos
das identidades-metamorfose como possi-
questionamentos do autor passa a ser a
bilidades emancipatórias,ou seja, identida-
tensão entre autonomia e heteronomia, de-
des que revelam não só a simples mudan-
lineada através dos diferentes sentidos to-
ça de aparência, mas um potencial crítico
mados pelas mudanças edificadas na vida
de transformação da realidade, em acordo
dos sujeitos (Ciampa, 2003).
com Ciampa (1987).
O debate implementado transcorre
De maneira que, ao descrever as
não só a partir da configuração da identi-
formas assumidas pela mesmice e a con-
dade como metamorfose e seus processos
dição de metamorfose/transformação no
de mudança e re-posição, mas à compre-
processo identitário, Ciampa (1987) sina-
ensão dos direcionamentos deste processo,
liza para a leitura das diferentes condições
ou seja, o sentido ético e natureza políti-
de existência, dadas a partir das expecta-
ca das identidades, apontados por Ciampa
tivas sociais, das aspirações individuais
(2003) como suas principais inquietações
e dos projetos assumidos (ou não) pelos
no contexto contemporâneo.
sujeitos perante a realidade histórica vivi-
da. Considerando que a metamorfose de- Tais inquietações nos remetem ao
signa tanto as transformações pelas quais sentido da vida – daquilo que nós, como
o sujeito humano se submete ao longo de seres humanizáveis nos propomos, em ter-
sua vida, quanto o seu próprio processo de mos de pretensões universais dentro do
humanizar-se (Ciampa, 2003), o autor nos campo dos possíveis. Por este caminho, fica
encaminha a questionamentos acerca dos claro que a autonomia é sempre o horizonte
sentidos possíveis deste movimento ines- desejável, de maneira que o que se preco-
capável.
niza é uma identidade racional do Eu, “(...)
que assegure ao mesmo tempo liberdade e
individualização da pessoa singular no in-
terior de complexos sistemas de papéis (...)”
A INTEGRAÇÃO DO SINTAGMA: SOBRE (Habermas, 1983, p. 81), uma identidade
O SENTIDO ÉTICO E A NATUREZA POLÍ- que tenha como pressuposto ético a ideia
TICA DAS IDENTIDADES-METAMORFOSE de emancipação humana.
A integração do sintagma identida- A emancipação apresenta-se então
de-metamorfose-emancipação à Teoria da como possibilidade desejável, entendida
Identidade conforma-se, portanto, nos tex- como uma:
tos publicados por Ciampa a partir de 1999
(...) mudança dotada de poder ino-
e designa uma preocupação do autor em si- vador, de construção de novos sen-
nalizar os sentidos possíveis tomados pelos tidos para a existência, de supera-
projetos de vida dos sujeitos perante os di- ção de condições pessoais e sociais
tames sociais (Ciampa, 1999). O autor afir- restritivas que impedem as pessoas

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de participarem na determinação uma crescente independência


de suas próprias ações ou na defi- com relação aos sistemas sociais
nição das condições nas quais elas (Habermas, 1983, p. 54).
acontecem, e que são geradoras de
sofrimentos e inquietações, de su-
bordinação e inferiorização do indi- Há, portanto uma atitude essencial-
víduo e do cidadão (Almeida, Apud:
mente reflexiva diante da própria existência
Almeida, 2005, p. 93).
que através de um entrelaçamento dos de-
sejos, pretensões e normas estabelecidas,
Quando falamos em emancipação, constituem um projeto de vida único. Este
além de pensarmos nas possibilidades de processo de formação é descontínuo, mar-
autonomização das ações a partir da cons- cado por crises (Almeida, 2005) e são os
trução de novos sentidos de existência, em enfrentamentos a elas que desencadeiam
oposição às práticas sociais restritivas e in- a superação dos modelos pré-concebidos
feriorizantes – justamente pela raiz teórica de existência, pois o “projeto” só se realiza
da definição utilizada por Almeida (2005) – mediante relações simétricas de reconheci-
estamos implicitamente discorrendo sobre mento recíproco (Habermas, 2002).
as interrelações não-coagidas no âmbito da De modo que a oposição ou resis-
linguagem e da ação, a negação de identi- tência aos modos de vida potencialmente
dades previamente constituídas em relação desumanizantes são os principais indica-
ao conteúdo e a superação de uma identi- dores deste processo que tem como carac-
dade convencional pela assunção de uma terística uma utopia emancipatória como
identidade pós-convencional. meta a ser alcançada, um projeto de luta
A identidade pós-convencional se pela dignidade da vida humana e que dá
expressa através de uma biografia incon- o sentido ético às identidades (Ciampa,
fundível e orienta-se não por um conteú- 2003), traduzido por uma incansável bus-
do prévio, mas pela apropriação crítica das ca pela emancipação.
tradições, um intercâmbio entre sistemas Este conceito é baseado nos pres-
de referência que são criticamente exami- supostos da teoria habermasiana. Em Ha-
nados pelo sujeito, capaz de relativizá-los bermas a noção de emancipação está fun-
e dissolver as identificações com conteú- damentalmente atrelada ao conceito de
dos previamente constituídos (Habermas, “razão comunicativa”, pois, segundo Repa
1983). (2008), somente a partir do entendimento
sem coerção podemos ter a chave para um
O aspecto central desta produção contexto de vida emancipada. Nesta con-
identitária é justamente o fato dela não ser juntura, não existem modelos previamente
meramente atribuída; a não necessidade inscritos de ação, mas uma orientação de
de conteúdos fixos e sua orientação por procedimentos que garantam um consenso
princípios éticos autonomamente escolhi- livremente produzido nas relações de co-
dos. Neste contexto, a identidade pós-con- municação, ou seja, a construção de con-
vencional se apoia na intersubjetividade e é dições objetivas para a efetivação da ação
(...) gerada pela socialização, ou comunicativa (Habermas, 1993).
seja, vai-se processando à medi- A ação comunicativa constitui um
da que o sujeito – apropriando-se mecanismo de produção da ação gerido pelos
dos universos simbólicos – inte- processos de entendimento e integração so-
gra-se, antes de mais nada, num cial mobilizados pela linguagem. O consenso
certo sistema social, ao passo nas relações que visam ao entendimento só
que, mais tarde, ela é garantida ocorre na condição do reconhecimento inter-
e desenvolvida pela individuali- subjetivo, ou seja, quando se admite que os
zação, ou seja, precisamente por indivíduos falantes sejam aceitos em seus

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proferimentos. Por sua vez, o ato de fala con- te socialização e individuação (Ciampa,
cretiza-se não numa ação vazia, mas numa 2005). E neste complexo epistemológico,
reivindicação de pretensão de validade, que “(...) a subjetividade do indivíduo é vista
deve ter efeitos de tomada de posição por sempre articulada com a objetividade da
parte do ouvinte. Neste ínterim, indivídu- natureza, a normatividade da sociedade e
os se tornam sujeitos quando reconhecidos a intersubjetividade da linguagem (Ciam-
em suas pretensões e não necessariamente pa, 2005, p. 07).
quando elas tornam-se práticas ou normas –
pois há também o risco do dissenso em qual-
quer tentativa de interação.
A ideia de razão comunicativa em A INVERSÃO DA METAMORFOSE: QUES-
Habermas (2002) diz respeito à razão orien- TIONANDO OS SENTIDOS DO PROCES-
tada ao entendimento, que imediatamente SO IDENTITÁRIO
nos aponta para a questão da emancipa-
A análise dos contextos de inter-
ção, na medida em que o autor defende que
-ação na teoria da ação comunicativa ha-
existe um potencial emancipatório em todo
bermasiana além de apontar possibilidades
proferimento e que sua análise teórica in-
emancipatórias, designa um tipo de inter-
tenciona mostrar as diferenciações sociais,
relação que serve aos desígnios do sistema.
identificar formas patológicas de existên-
Em contraste à ação comunicativa, as rela-
cia e compreender os sentidos das produ-
ções heterônomas se desenvolvem por meio
ções simbólicas democráticas e autônomas
do agir estratégico: uma forma de interação
(Repa, 2008).
orientada a um fim (e não a um consenso),
A centralidade da linguagem no pro- de maneira que aqui o ato de fala é utili-
jeto habermasiano deixa suas marcas na zado apenas como meio para transmissão
construção da Teoria da Identidade, na de informações, independentemente das
medida em que a leitura dos elementos da expectativas e pretensões dos atores aos
teoria do agir comunicativo entrelaçados à quais se dirige (Habermas, 2002).
noção de emancipação, legitimam a concep-
O agir estratégico depende da in-
ção de um sintagma identitário, justifican-
fluência de uns atores sobre outros, re-
do a construção de uma macro categoria
sultando na indução de uma das partes a
(Ciampa,1999) elaborada a partir de três
um determinado tipo de comportamento,
conceitos indissociavelmente articulados:
tendo portanto, um caráter instrumental
identidade-metamorfose-emancipação.
(Habermas, 2002). Não existe um acordo
A apropriação teórica dos conceitos válido nesta forma de interação, que se re-
de Habermas realizada por Ciampa (1999; aliza a partir de induções, ameaças ou en-
2003), possibilita um ampliação concei- ganos, ferindo as condições de um pacto
tual profícua à Teoria da Identidade, que consensual:
denota um compromisso de compreender o
Aquilo que se obtém visivelmente
fenômeno como um processo em constan-
através de gratificação ou ameaça,
te formação e transformação (por isto, sua sugestão ou engano, não pode valer
predicação eminentemente histórica), cujo intersubjetivamente como acordo;
sentido ético se traduz a partir de uma uto- tal intervenção fere as condições
pia emancipatória (Ciampa, 2003). sob as quais as forças ilocucioná-
rias despertam convicções e geram
Este sentido ou meta de humaniza- ‘contactos’ (Habermas, 2002, p. 72,
ção a ser alcançada, só pode ser possível grifos do autor).
por meio da realização de projetos políticos
(Ciampa, 2003), que se edificam mediados
pela intersubjetividade, ou seja, mediante Deve-se levar em consideração que
construções que articulam dialeticamen- o agir estratégico também ocorre no mun-

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do da vida, justamente por causa das in- análise, provocadas de modo hete-
vasões sistêmicas. Neste sentido, aparece rônomo por um poder interiorizado
como alternativa para ações comunicativas subjetivamente e – ou apenas – ex-
fracassadas, de maneira que as relações do teriorizado objetivamente. Ou seja,
quase sempre, senão sempre, há
mercado e do poder passam a ser reguladas
um conflito político que se estabe-
pelas instituições (Habermas, 2002), que lece entre a pretensão de uma iden-
representam a articulação entre o mundo tidade social, de um lado como (1)
da vida e o sistema (Almeida, 2005). auto-afirmação e hetero-reconheci-
O pano de fundo deste complexo são mento de um projeto emancipatório
e, de outro, como (2) hetero-afirma-
as formas unilaterais e patológicas de exis-
ção e auto-reconhecimento de um
tência, pois, na medida em que as estru-
projeto coercitivo ou de dominação
turas sistêmicas se sobrepõem ao mundo (Ciampa, 2003, p. 03).
da vida, mais e mais as ações de caráter
instrumental dominam as esferas comu-
nicacionais espontâneas. A consequência O sentido do processo identitário
prática deste processo é a inversão de va- é, então, questionado, partindo do pres-
lores pelo cerceamento dos espaços de au- suposto de que este último se correlacio-
tonomia, provocando crises de sentido, a na a um conflito entre autonomia e hete-
supressão sistemática das ações voltadas ronomia, entre a pretensão de uma vida
ao entendimento e o “esmigalhamento” das que faça sentido, concretizada através da
formas de solidariedade (Habermas, 2005), efetivação de uma ação política (que pode
ou seja, a construção de interações siste- ocorrer de forma explícita ou não) e a coi-
maticamente distorcidas que levam a um sificação dos indivíduos, ou seja, um pro-
contexto de desumanização. cesso de metamorfose que é invertido no
Como já sinalizado anteriormente, seu sentido ético, no qual os indivíduos e
Ciampa (2003) com base nos elementos te- coletividades são impelidos por forças co-
óricos supracitados, aponta que a possibi- ercitivas (de ordem subjetiva e/ou objeti-
lidade da realização de um projeto que dê va) que impedem a realização de projetos
sentido ético às identidades, só se realiza políticos emancipatórios.
mediante a concretização de ações políticas. A ação política e, por consequência,
E se a identidade resulta de um “(...) encon- a produção de identidades pós-convencio-
tro entre a idéia que fazemos ou a imagem nais – ou de acordo com Ciampa (2002),
que temos de nós mesmos e dos outros e, a identidades políticas – pode ser então obs-
idéia ou a imagem que os outros têm de nós” tada por uma interiorização a-crítica de
(Almeida, 2005, p. 52), estamos falando de normas, ou heteronomia e/ou por uma
um processo essencialmente conflitivo, no ação externa que impeça ou dificulte a rea-
qual as representações pessoais e coletivas lização de projetos emancipatórios que, ge-
podem ou não convergir. ralmente, ocorre de forma violenta, através
Perante o choque entre estas re- de coerção, imposições, ameaças.
presentações, pode ocorrer a inversão da Com base nestes pressupostos, afir-
metamorfose, de maneira que o “projeto”
mamos que a condição sine qua non para a
de uma busca emancipatória se converta
produção de ações emancipatórias consiste
num processo desumanizante. Tal proces-
na assunção de uma perspectiva diferente
so ocorre quando as ações políticas vislum-
bradas pelos sujeitos ou grupos encontram daquela já estabelecida e que modifique os
obstáculos, são impedidas de forma violen- parâmetros já estabelecidos pelo contexto
ta, impositiva ou coercitiva: societário.
A destruição, a degradação e a in- Neste sentido, a discussão sobre os
dignidade de pessoas e grupos são significados dados à emancipação em Ha-
formas de metamorfose, em última bermas também nos abre espaço para o

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debate acerca da natureza política do pro- das ações e reivindicações coletivas assu-
cesso identitário, pois o conceito de razão midas pelos grupos oprimidos (Ciampa,
comunicativa está diretamente relacionado 2002).
à ideia de planos de ação possíveis num
A afirmação de uma identidade com
universo interativo e não à condição pura
sentido emancipatório no plano individu-
de ipseidade. Assim, a produção das identi-
al se corrobora através da conformação de
dades e seu sentido emancipatório (ou não)
identidades políticas (Ciampa, 2002), ou
implica num choque entre as pretensões
identidades pós-convencionais, de acordo
dos indivíduos e as exigências de pertinên-
com Habermas (1983).
cia dadas pelos grupos aos quais ele se afi-
lia. Falamos, portanto, de políticas de iden- Este movimento, segundo Ciampa
tidade e das possibilidades de construção (2002), é sempre alicerçado pelas políticas
de identidades políticas. de identidade que, em um primeiro mo-
mento, servem aos indivíduos como ideais
Ciampa (2002) compreende as políti-
identificatórios para a formação de laços
cas de identidade como as formas diversas
solidários e suporte às reivindicações por
pelas quais os grupos sociais hegemôni-
igualdade. Mas, para que a conformação de
cos e minoritários lutam pela afirmação de
identidades políticas seja realizada, tam-
suas identidades coletivas. São discursos e
bém se faz necessário o movimento de in-
estratégias de ação que, quando operados,
dividuação, ou seja, a criação de uma con-
traduzem a assunção de um personagem
cepção de identidade única que, ao mesmo
coletivo que corresponda às intenções do
tempo em que se vincula a determinados
(ou dos) movimento a que pertencem os su-
modelos oferecidos pela sociedade, possa
jeitos confirmando a adesão a determina-
se diferenciar, numa atitude reflexiva, para
dos modelos identificatórios.
seguir assumindo novos projetos e novas
A questão crucial para compreender- pretensões de reconhecimento.
mos o sentido das ações políticas dos indi-
Por isto a conformação de identida-
víduos reside na condição de que elas só
des políticas é sempre produto de um con-
podem ser consideradas legítimas quando
flito, pois, no contexto do sintagma identi-
centradas nos pressupostos da ação comu-
dade-metamorfose-emancipação, não existe
nicativa, nem sempre passíveis de realiza-
processo de transformação que não abra es-
ção em todos os contextos (Almeida, 2005).
paços para diferentes formas de existência.
Assim, tais políticas podem servir tanto aos
interesses sistêmicos quanto às diferentes
formas coletivas de integração dos grupos
de minorias: são as políticas de identidade
de dominação em contraposição às políti- CONSIDERAÇÕES FINAIS: LOCALIZAN-
cas de identidade emancipatórias. DO A IDENTIDADE COMO TEORIA
As políticas de identidade de domi- Ao avaliarmos a extensão e o poten-
nação são políticas regulatórias e carac- cial analítico da obra de Antônio da Cos-
terizam-se por designarem ações coleti- ta Ciampa; assim como Lima (2010) e Ca-
vas que, ao serem invadidas pelas formas rone (s/d), acreditamos que seu trabalho
sistêmicas, a exemplo das representações configure uma Teoria da Identidade e não
coletivas e dos comportamentos sociais apenas uma categoria de análise. Por isto
desenvolvidos pelo pensamento hegemô-
mesmo, ao longo deste ensaio, buscamos
nico, buscam a manutenção do status
pensar com o autor e não analisar o seu
quo. Por outro lado, as políticas de iden-
trabalho à luz de paradigmas prontos.
tidade com teor emancipatório inspiram o
vigor e a energia de mudança, construin- Esta Teoria está fundamentada na
do novos espaços de discussão e práticas orientação para a emancipação, sobretudo
políticas baseadas no consenso, a partir a partir das contribuições habermasianas.

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Marcado pela influência do pensamento de ção. Esta mudança denota uma ampliação
uma Teoria Crítica da Sociedade, a obra conceitual, elaborada sobretudo, a partir
de Ciampa parte do pressuposto de que o centralidade da linguagem no projeto ha-
funcionamento da sociedade não deve ser bermasiano. A identidade continua a ser
somente explicado, mas analisado em sua concebida como um processo de transfor-
dimensão concreta à luz de um “interes- mações qualitativas constantes, todavia,
se emancipatório”. Isto significa buscar a a leitura dos sentidos dados a esta cons-
construção de um quadro teórico de análi- trução passa a ser o principal foco de in-
ses que contemple tanto as estruturas so- quietações do autor. A produção identida-
ciais de dominação quanto os processos de de pressupõe, portanto, um sentido ético
superação desta mesma realidade (Saave- (demarcado por um horizonte emancipató-
dra, 2007), ou seja, a sociedade, os limites rio desejável) e uma natureza política, de
e possibilidades à condição emancipatória. forma que sua conformação como projeto
emancipatório só realiza perante a concre-
Num primeiro momento de sua pro-
tização de ações políticas implementadas a
dução, diante de um contexto histórico de
partir de um projeto de vida.
revisão crítica dos conceitos em Psicologia
Social (Lane, 1995/2009), o autor inova ao Neste contexto, o processo de eman-
defender a tese da identidade-metamorfo- cipação passa a ser entendido também
se, concebendo-a como processo inesca- como um processo de comunicação. De
pável de transformações. Ciampa (1984, forma que o diálogo sem coações externas
1987) redimensiona os parâmetros teóricos constitui, portanto, a saída para a alie-
do entendimento da identidade, ao realizar nação, para a perda da individualidade e
uma análise crítica acerca da constituição para a recuperação da autonomia (Deluiz,
humana, partindo do pressuposto de que 1995), ou seja, a saída para a constituição
“o devir homem-sujeito é praticamente im- de identidades políticas, ou identidades
possível (ao menos universalmente)” (Ciam- pós-convencionais, de acordo com Haber-
pa, 1987, p. 182). mas (1983).
Além disto, o autor considera a pro- Mas Ciampa (2003) nos aponta tam-
dução identitária como um processo in- bém o perigo da inversão da metamorfose.
tersubjetivo, construindo uma estrutura Este fenômeno é assinalado a partir do con-
teórico-conceitual que projeta uma con- ceito habermasiano de agir estratégico, que
cepção de sujeito transformador e autor de proclama as “invasões sistêmicas do mundo
sua própria história, mediante os limites da vida”. A inversão do processo identitário
impostos pelo contexto hegemônico: assim, ocorre quando indivíduos e grupos são im-
os sujeitos se constroem a partir dos pro- pedidos (de forma objetiva e/ou subjetiva)
cessos de socialização e individuação. da realização de suas ações políticas, cons-
trangidos pelas imposições e ameaças pre-
Esta perspectiva trás tanto a possi- sentes no contexto hegemônico.
bilidade de aparecimento das identidades-
-mesmice, quanto o aparecimento do po- Esta situação coercitiva é caracte-
tencial emancipatório, movimento no qual rística das atuais sociedades, nas quais
verificamos uma dinâmica politicamente
o sujeito hominiza-se e reage à coerção da
descontrolada e guiada pelo princípio do
sociedade, opondo-se à heteronomia infli-
desempenho, que substitui as formas de
gida pelos processos socializadores (Miran- comunicação e participação na formação
da, 2014). democrática da vontade. Em outras pala-
No segundo momento de sua traje- vras, emerge uma tendência de despoliti-
tória, o autor acresce à Teoria a constru- zação dos cidadãos, que pode ser exem-
ção de um sintagma, organizado a partir de plificada pela lógica de mercado (ou lógica
três conceitos indissociavelmente articu- neoliberal) invadindo diferentes setores da
lados: identidade-metamorfose-emancipa- vida de modo crescente (Habermas, 2005).

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A partir destes parâmetros, concluí- ção apresentada em Simpósio no X Encon-


mos que a busca por assinalar os fenôme- tro Nacional da Associação Brasileira de
nos patológicos e as possibilidades emanci- Psicologia Social, Outubro, 1-5, (Mimeo).
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a partir da edificação do sintagma, cons-
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societária, de forma que os conceitos ela-
borados pelo autor em sua Teoria da Iden- Ciampa, A. C. (2003). A identidade social
tidade buscam iluminar a produção de “(...) como metamorfose humana em busca de
um diagnóstico do tempo capaz de ofere- emancipação: articulando pensamento his-
cer uma compreensão complexa e acurada tórico e pensamento utópico. In: XXIX Con-
do momento histórico e das possibilidades gresso Interamericano de Psicologia, Lima,
emancipatórias” (Nobre, 2008, p. 19). Peru. Anais do XXIX Congresso Interameri-
cano de Psicologia.
Destarte, compreendemos que a
edificação desta Teoria visa, especialmen- Ciampa, A. C. (2005). Anotações sobre
te, encontrar pontos de fuga, alternativas “fundamentos filosóficos” da linha de pes-
emancipatórias perante o quadro de indivi- quisa, para sistematizar a abordagem teóri-
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Recebido em 26 de setembro de 2014.


Aprovado para publicação em 02 de novembro de 2014.

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