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Loucura feminina: doença mental ou transgressão social?

MACHADO, J. S. de A.; CALEIRO, R.C.L.

LOUCURA FEMININA: DOENÇA OU TRANSGRESSÃO SOCIAL?

Jacqueline Simone de Almeida Machado;*


Regina Célia Lima Caleiro **

Resumo:Este artigo trata da constituição da Psiquiatria no Brasil e das representações sociais positivas do mundo
reservado aos espaços femininos. A negação desses valores pode remeter a mulher à condição de alienada,
retirando-lhe a subjetividade, imprimindo-lhe o estigma da loucura. Identificada pelo discurso da psiquiatria,
esta marca qualifica a mulher como louca ou degenerada, estabelecendo um contraponto demarcado pela racio-
nalidade moderna, com a mulher normal ou normatizada.
Palavras-chave: loucura; mulher; doença; transgressão; hospício.

FEMININE MADNESS: MENTAL ILL OR SOCIAL TRANGRETION?


Abstract: The text evidences the psychiatry constitution in Brazil and the positive social representations of the
world reserved to the feminine spaces. The negation of these values can send the woman to the mentally ill
condition, removing her the subjectivity, printing her the stigma of madness. Identified by the psychiatry dis-
course, this mark qualifies the woman as depraved or insane person, establishing a counterpoint demarcated
by the modern rationality, with the normal and normalized woman.

Key-words: madness; woman; lllness; trespass; hospice.

A loucura feminina pode ser considerada como Nesse período, a Psiquiatria foi instituída como a
doença mental ou como uma forma de transgres- ciência capaz de “tratar” a loucura, não porque os
são social? Para respondermos a esta pergunta, médicos passaram a conhecê-la, mas porque pas-
faz-se necessário um retorno ao período his- saram a dominar a loucura. Reduzida à condição
tórico em que os médicos passaram a ostentar de negativo da ordem, a loucura foi segregada e
sua autoridade nascida da ordem e da moral da abafada nos asilos e hospitais psiquiátricos. Por
família burguesa e das necessidades do Estado. sua vez, o discurso médico passou a defini-la pelo

* Professora do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros. Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Unimontes.
** Doutora em História e professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvi-
mento Social da Unimontes. Coordenadora de Avaliação Institucional das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes
Claros.

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que ela não é: razão, virtude, paz, harmonia, auto uma medicina urbana, que cuidava de fiscalizar,
controle, ou seja, qualidades valorizadas pela normatizar e transformar a cidade, surge a Psi-
sociedade burguesa estreitamente vinculadas às quiatria, que circunscreve a loucura à condição
questões morais. de “doença mental”. Neste momento histórico,
sofrendo influências de Esquirol e Pinel e inspi-
Entretanto, importa lembrar que a constituição rados pelo pensamento francês, os psiquiatras
da Psiquiatria no Brasil apenas reforçou antigas concluem que os loucos não devem mais conviver
interdições morais acerca do papel das mulheres em sociedade. Criam-se então os hospícios, que
nesta sociedade em desenvolvimento. abriga pessoas consideradas perigosas à popula-
Em seu livro Ao Sul do Corpo, Del Priore (1995) dis- ção, aquelas que atentam, principalmente, contra
corre sobre a mulher no Brasil colonial, a condição a moral pública.
feminina, o processo de domesticação da mulher, Segundo Machado (1978), para a Psiquiatria da
a maternidade, os papéis femininos estabelecidos época, a loucura se tratava com disciplina e não
pela Igreja e pela Sociedade.
com liberdade ou repressão. Era preciso isolar a
Houve um processo de adestramento da mulher, loucura da sociedade:
através do discurso sobre padrões ideais de com-
Só é, portanto, possível compreender
portamento, e cabia à Igreja disseminar esses valo-
o nascimento da psiquiatria brasileira a
res entre a população feminina. “Adestrar a mulher partir da medicina que incorpora a socie-
fazia parte do processo civilizatório, e, no Brasil, dade como novo objeto e se impõe como
este adestramento fez-se a serviço do processo instância de controle social dos indivíduos
de colonização”. (DEL PRIORE, 1995, p. 27). e das populações. É no seio da medicina
social que se constitui a psiquiatria. Do
Esse adestramento utilizou também outro ins- processo de medicalização da sociedade,
trumento, que foi o discurso normativo médico elaborado e desenvolvido pela medicina
que explicitamente se denominou política,
sobre o funcionamento do corpo feminino,
surge o projeto – característico da psiquia-
especificando como função natural da mulher a tria – de patologizar o comportamento do
procriação, conforme a autora, assim, enquanto louco, só a partir de então conside-
a Igreja cuidava das almas, a Medicina ocupava-se rado anormal e, portanto, medicalizável
dos corpos. E tudo o que fugia às regras estabe- (MACHADO, 1978, p. 376).
lecidas era objeto de perseguição:
A medicina social via o louco como um perigo à
A sacralização do papel social das mães cidade, desencadeando a “necessidade de exercer
passava, portanto, pela construção do
seu avesso: a mulher mundana, lasciva sobre a loucura uma regulação de caráter moral,
e luxuriosa, para quem a procriação não inscrevendo-a na categoria das condutas anor-
era dever, mas prazer. As mulheres que mais” (MACHADO, 1978, p. 383).
viviam em ambigüidade desses dois papéis
foram sistematicamente perseguidas, pois Para a loucura, encontramos várias definições de
o uso autônomo da sexualidade feminina acordo com cada momento histórico, desde Es-
era interpretado como revolucionário e quirol, que avaliava o grau de sanidade e loucura
contrariava o desejo da Igreja e do Estado
de colocar o corpo feminino a serviço da
dos seus pacientes pelas suas afeições morais, à
sociedade patriarcal e do projeto coloni- loucura moral ou tratamento moral inspirado no
zador (DEL PRIORE, 1995, p. 83). modelo assistencial de Pinel, além da teoria da
degenerescência e o alienismo.
A partir do século XIX a medicina, a serviço do Louco é aquele que perdeu a razão, é dominado
Estado passou a exercer um controle sobre toda a por uma paixão intensa, esquisito, excêntrico
sociedade e cuidou de normatizar a vida pública e (fora do centro), imprudente, temerário, nos diz
privada das mulheres estabelecendo os papéis por o Dicionário Aurélio.
ela desempenhados. A partir da consolidação da
Medicina Social do século XIX, prioritariamente Segundo Maria Clementina Cunha, algumas defini-

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ções são usadas para o comportamento desviante: evocadas em sua natureza histórica e tran-
“constitui uma ameaça concreta e palpável: desvio sitória. São remetidas a processos sociais
que condicionam o domínio do patológico
da imaginação, reverso da razão, fim da inteligibi-
a determinações que transcendem o plano
lidade, uso indevido da liberdade” (CUNHA, 1986, puramente individual (TUNDIS; COSTA,
p. 14). E para livrar-se dos loucos, a sociedade 1997, p. 10).
burguesa tratou de excluí-los, aprisionando-os nos
hospícios, buscando anulá-los e transformá-los em Machado (1978) alega que os alienistas, para
objeto de conhecimento de médicos psiquiatras, avaliarem se uma conduta era razoável ou não,
higienistas e sanitaristas. comparavam-na com os comportamentos comu-
Em Silva Filho (1997, p. 78), encontramos a defi- mente aceitos na sociedade num determinado
nição de louco como “aquele cuja voz foi anulada, momento histórico, articulando a história indivi-
abafada, nem valorizada, nem importante”. dual e a história da sociedade:

Podemos dizer que “loucos” eram todos aqueles Todo indivíduo se constitui como sujeito
que incomodavam a sociedade, que apresentavam de paixões em sua vida de relação social e é
um comportamento que não era o esperado ou esta vida em sociedade que lhe assegura o
exercício regulado de sua atividade apaixo-
determinado, aqueles que não ficavam presos nada. Transpostos os limites problemáticos
às convenções como os libertinos, os religiosos desse exercício, o indivíduo encontra-se
infratores, os velhos e crianças abandonadas, doente porque rompe a rede de relações
os venéreos, os aleijados, os transgressores, os em que está inserido, desequilibra e
epilépticos, as mulheres transgressoras, os doentes subverte, por seus excessos, os efeitos
reguladores da sociedade (MACHADO,
mentais. Essas pessoas viviam à margem da socieda-
1978, p. 410).
de, consideradas como perigosas, eram os excluídos,
abandonados à própria sorte num Hospital Psiqui-
A medicina mental vai demarcar o que é excesso,
átrico (local que deveria ser de tratamento), onde
estabelecer o que é conduta normal e o que é com-
o que prevalecia era uma concepção excludente da
portamento desviante ou patológico, de acordo
loucura.
com critérios por ela estabelecidos, que visavam
Neste contexto, ao conceituar a doença mental, atender a normatização urbana, como descreve
Silva Filho (1997, p. 100-101) propõe que é impos- Machado (1978, p. 411), “O reconhecimento da
sível pensá-la enquanto essência naturalizada no loucura, a possibilidade de dizer ‘este é um louco’,
corpo, e, sim, que ela é acontecimento possibili- aparece ligado em grande parte a uma mudança de
tado historicamente pelos saberes psiquiátrico e hábitos e de idéias, à existência de uma diferença,
médico no momento em que monopolizavam a ao rompimento de relações sociais (...)”.
loucura. Segundo ele, a loucura indicava algo que
Se a sociedade lançou mão das diversas teorias
não estava normatizado, que sua patologização
médicas para justificar a loucura das pessoas
poderia curá-la através da medicina. Portanto,
que não se enquadravam nos padrões estabe-
faz-se necessário interrogarmos através de quais
lecidos, encontra-se entre este contingente de
jogos da verdade o homem se pôs a pensar seu
“loucos” algumas categorias mais visadas pelo
próprio ser, percebendo-se como louco, olhando-
olhar inquisidor da medicina, como os negros e
se como doente, reconhecendo-se como sujeito
as mulheres, principalmente as mulheres negras,
do desejo.
“a degeneração e a loucura são inerentes à visão
Através da história da psiquiatria no Brasil, per- animalizada das negras, tornando sua presença
cebe-se que o conceito de loucura é variável. Os no hospício uma contingência quase natural”
comportamentos estabelecidos como “sintomas” (CUNHA, 1986, p. 124).
mudam de acordo com o momento, atendendo a Em busca da compreensão da loucura feminina
interesses culturais, políticos e sociais, nos deparamos com dois caminhos: entender se
As práticas e representações que as socie- as mulheres foram consideradas loucas por algum
dades elaboram em torno da loucura são distúrbio mental ou por não se enquadrarem nos

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padrões de comportamento estabelecidos. Na conduta desviante, um descontrole ou perda da


bibliografia consultada, encontramos fortes indí- razão.
cios de que grande parte das mulheres rotuladas
como “loucas” apresentavam comportamento Rodrigo da Cunha Pereira (1999, p. 520) propõe um
considerado “desviante”. Lévi-Strauss (citado por olhar crítico sobre a loucura e a normalidade,
Tundis; Costa, 1997), percebeu que as doenças A história sempre colocou os loucos de um
mentais podem ser também consideradas como lado, em contraposição à razão. Mas esta
incidência sociológica na conduta de indivíduos fronteira entre o normal e o anormal deve
cuja história e constituição pessoais se dissocia- ser questionada, mesmo porque ela tem
ram parcialmente do sistema simbólico no grupo, variado ao longo do tempo. A insensatez,
a feitiçaria, a paixão desesperada eram
dele se alienando. Vários autores afirmam o ca-
loucura.
ráter histórico da loucura, demonstrando que os
sintomas da doença se diversificaram de acordo
com o momento social. Foucault (1978), na Histó- A conduta da mulher, a feminilidade e a materni-
ria da Loucura, faz uma contextualização sobre o dade, sempre despertaram receio, ou significaram
mistério. Suas características fisiológicas, sua
tema através dos séculos e lembra que
sensibilidade e afetividade eram motivos de estra-
a noção de loucura, tal como existe no nhamento. Era preciso neutralizar ou normatizar
século XIX, formou-se no interior de a mulher, estabelecendo limites para sua ação.
uma consciência histórica, e isto de dois
No Brasil colônia, ela deveria ficar restrita ao am-
modos: primeiro, porque a loucura em
sua aceleração constante forma como biente doméstico. Segundo Del Priori (1995), ela
que uma derivada da história; e, a seguir, deveria fazer o trabalho de base: educar a prole,
porque suas formas são determinadas pe- cuidar de seu sustento e saúde física e espiritu-
las próprias figuras do devir (FOUCAULT, al, obedecer e ajudar ao marido. A mulher foi
1978, p. 375). considerada inferior, idéia endossada pela Igreja
e pela Medicina: “ela era possuidora de um tem-
Podemos dizer, portanto, que a loucura é atem- peramento comumente melancólico, era um ser
poral e aespacial (sic), e como relata o autor, seu débil, frágil, de natureza imbecil e enfermiça. [...]
registro se relaciona com a relação de poder e sua inferioridade física fora decretada por Deus”
o incômodo causado pelos desarrazoados. E se (DEL PRIORI, 1995, pp. 36-38).
os desarrazoados incomodam, o internamento é
Esta era a imagem da mulher que prevalecia, inclu-
uma forma de silenciá-los ou reprimi-los, com o
sive no imaginário feminino: submissa, disposta a
objetivo de conduzi-los de volta à razão através
aceitar os valores impostos; desobedecer ou mani-
da coerção moral,
festar seus desejos e necessidades, ser sujeito de
É evidente que o internamento, em suas sua própria existência significava “estar louca”.
formas primitivas, funcionou como um me-
canismo social [...]. Daí supor que o sentido Para Costa (2004, p.260), no século XIX a mulher
do internamento se esgota numa obscura ultrapassava o limite de segurança ao tentar con-
finalidade social que permite ao grupo
correr com o homem, e, “do ponto de vista dos
eliminar os elementos que lhe são hete-
rogêneos ou nocivos [...] o internamento higienistas, a independência da mulher não podia
seria assim a eliminação espontânea dos extravasar as fronteiras da casa e do consumo
“a-sociais” (FOUCAULT, 1978, p, 79). de bens e idéias que reforçassem a imagem da
mulher-mãe”. Segundo ele, para que o machismo
Ao articulamos as formas de loucura ao momento continuasse existindo, era necessário a inferio-
histórico, é mister que se estabeleça uma relação ridade da mulher, e a loucura era uma forma
também entre os valores femininos vigentes nesta higiênica de punir a mulher.
sociedade, para compreendermos a identidade da
“mulher louca”. É inevitável um olhar sobre a luta Viver seus desejos, ou desejar deliciar-se com os
das mulheres por seus direitos e sua liberdade, prazeres mundanos, gozar a liberdade era consi-
o que caracterizou, em diversas situações, uma derado loucura: “A correlação entre mundanismo

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e doença teve um papel fundamental na domesti- da família, mulheres que insistiam em fugir às
cação da mulher. Fazendo do excesso social causa normas que a definiam como subordinada, frágil
de enfermidade físico-moral, a higiene retirava a e dependente. Outras causas extremamente recor-
mulher do mundo...” (COSTA, 2004, p. 269). rentes estavam relacionadas à sexualidade:

Outro sintoma considerado como loucura era


No que compete às mulheres, a sexuali-
de origem sexual. A insatisfação sexual causava dade está relacionada desde longo tempo
nervosismo na mulher, e ela se utilizava deste ner- a diferentes categorias de insanidade:
vosismo para defender-se de seus opressores. tradicionalmente, os alienistas associaram
a loucura feminina a fases críticas de seu
A teoria higiênica da doença nervosa, fruto corpo – a adolescência, os partos e puer-
da insatisfação sexual, começou a ser usada périos, a menopausa – e chegaram mesmo
pelas mulheres num sentido paralelo ao a adotar terapeuticamente procedimentos
inventado pelos médicos. O nervosismo tão cruéis quanto reveladores, que incluí-
passou a ser simulado ou sentido sempre ram a extirpação do clitóris, a introdução
que a mulher pretendia opor-se ao homem de gelo na vagina e outras formas de tortura
ou obter dele concessões sexuais (COSTA, destinadas ao controle das sexualidades
inconvencionais das mulheres (SHOWALTER
2004, p. 272).
apud CUNHA, 1986, p. 154).
Viver a própria sexualidade, manifestar suas emo-
ções ou preocupar-se com o seu prazer sexual não
era permitido às mulheres. Estes comportamen- A questão de gênero se faz presente também
tos, aliados às particularidades femininas, à per- nos hospícios, onde o tratamento é diferenciado
sonalidade, aos aspectos fisiológicos da mulher para homens e mulheres, caracterizando a divisão
dos papéis. Do contrário, como explicar que nos
e à tentativa de burlar as normas estabelecidas
primeiros anos de existência os hospitais psiqui-
com certeza contribuíram para um diagnóstico
átricos internavam apenas homens, e as mulheres
de loucura ou de doença mental.
ficavam em cárcere privado?
É neste contexto que se define a representação da
Podemos dizer ainda da identidade sexual em rela-
mulher no Brasil, que perpassa os tempos e ainda
ção ao trabalho: os hospitais psiquiátricos usavam
hoje se encontra arraigada em nossa cultura. Falar
o trabalho como forma de tratamento (laborte-
da “Mulher Louca” é falar da representação social
rapia): os homens iam para o trabalho agrícola e
da mulher, dos papéis sexuais estabelecidos, das
as mulheres para os trabalhos domésticos, refor-
transgressões cometidas por algumas delas que
çando a diferenciação dos papéis ou dos valores
não se enquadravam, que ousavam tomar as réde- vigentes. O hospício reproduz os papéis sexuais,
as do seu próprio destino. Existe um modelo do e enquanto se considerava que para os homens
feminino que insiste em prevalecer no imaginário as atividades ao ar livre aparentavam liberdade, o
coletivo, e sua negação conduz a mulher à exclu- que contribuiria para a cura, no caso das mulheres,
são ou reclusão num hospital psiquiátrico. o importante era a reclusão do trabalho domés-
No hospício, a mulher perde toda a sua condição tico, pois a condição feminina se relacionava aos
de sujeito, sua identidade, torna-se submissa, é espaços fechados ( CUNHA, 1986).
institucionalizada, não mais oferece perigo à so- A autora mostra ainda que existem diferenças no
ciedade ou à família. É importante ressaltar que, padrão de tratamento e avaliação em relação a
em muitos casos, as internações eram feitas pela homens e mulheres:
família, por não suportarem a alteridade, a “ver-
Os homens são considerados “perigo-
gonha”por determinados comportamentos ou até
sos” ou problemáticos do ponto de vista
mesmo por questões de ordem econômica. disciplinar quando agridem, xingam,
reivindicam. Quebrados pela disciplina
A partir de sua pesquisa no Juquery, Cunha (1986) asilar, exibem quase sempre a marca do
levanta algumas causas para a condução das mu- asilo em seu rosto e postura corporal [...]
lheres ao Hospício: uso de bebidas, afastamento as mulheres, por sua vez, são vigiadas e

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reprimidas em relação a outros aspectos No caso da loucura feminina, transgres-


de sua conduta, sobretudo os que dizem são não atinge apenas as normas sociais,
respeito à sexualidade: coibir a masturba- senão à própria natureza, que a destinara
ção, impedir a nudez, evitar o “espetáculo ao papel de mãe e esposa. [...] a sanção
indecente” que as transforma, no interior e a condenação para comportamentos
do Juquery, nas usuárias exclusivas da anômalos acabam assumindo, no caso das
camisa-de-força. Alguns homens perma- mulheres, o caráter de julgamento mais
necem constantemente nus pelos pátios profundo, e o comportamento “estranho”
internos. Às mulheres, mesmo à custa da aparece aí como muito mais transgressivo:
violência, deve ser “ensinado” o seu recato não o anti-social, mas o antinatural. Neste
“natural” (CUNHA, 1986, p. 97). contexto, a loucura – doença terrível – não
deixa de aparecer como uma vingança da
Para ela, o Juquery apresenta situações onde natureza contra a violação de suas leis
se percebe claramente a discriminação sexual (CUNHA, 1986, p. 145).
presente no tratamento psiquiátrico, pois o hos-
pício reproduz as normas sociais de conduta, e Entendemos que a mulher, assim como os negros,
conceitos como masculino e feminino são valores os libertinos e outras categorias de marginaliza-
culturais: dos, foram discriminados e punidos, tendo seu
discurso abafado em prol da manutenção do status
A problemática feminina apresenta al-
gumas de suas características. A busca quo, e que esta prática se perpetuou de geração
ao estranho engloba aqui tudo que foge em geração.
à imagem construída para a mulher. É
evidente que há diferenças no interior do Magro Filho (1992), em seu livro A Tradição da
grupo feminino recluso no hospício (...). Loucura, faz um estudo sobre a doença mental
Mas perpassa todas estas histórias o dado em Minas Gerais no período de 1870 a 1964 e
comum de ter nascido mulher em uma questiona as internações nos hospícios como
cultura e em uma circunstância histórica
uma questão muito mais política e social do que
em que este simples e fortuito evento é,
de per si, tomado como uma deficiência patológica: “a criação do hospício é uma medida
(CUNHA, 1986, p. 144). preservadora da sociedade” (MAGRO FILHO, 1992,
p. 28).
Os diagnósticos de loucura diferiam entre homem
Conforme o autor, já no século XX, o Hospital
e mulher. As causas atribuídas à doença mental
Colônia de Barbacena adotou o trabalho agrícola
eram diferentes. As internações femininas, na
como forma de tratamento para os alienados.
maior parte das vezes, são devidas a distúrbios
Porém percebe-se uma incoerência: se a labor-
relacionados ao papel sexual e social na esfera pri-
terapia era indicada como necessária para a cura
vada. Há uma relação de distúrbio psíquico com a
do doente mental, por que os internos pagantes
rigidez das regras de comportamento socialmente
não trabalhavam? “Fica claro que o indigente, o
impostas, quando há uma negação da “imagem
pobre e o marginal, considerados como infratores
feminina ideal”, conforme constata Cunha (1986,
de uma norma social de conduta, deveriam agora
p. 143), através do prontuário de uma paciente
redimir-se trabalhando, não para sua melhora em
de 22 anos, solteira, interna no Juquery em 1918,
verdade, mas, sim, em favor do Estado” (MAGRO
por estar viajando, utilizando os proventos de
FILHO, 1992, p. 40).
uma herança recebida, vestida como homem.
Ao ser reconhecida como mulher, foi presa pela Se havia no hospital psiquiátrico uma discrimi-
polícia e considerada fraca de espírito, com uma nação de classe social, isto sugere uma falta de
demência se desenvolvendo. Os comportamentos critério científico nas internações. Entendemos
sociais eram alvo de uma vigilância permanente. que onde há a discriminação de classe pode
Existia uma concepção de mulher, um papel pre- ocorrer também de gênero, uma vez que existe
estabelecido para ela na sociedade e qualquer uma mentalidade preconceituosa. O autor propõe
tentativa de negá-lo ou transgredi-lo seria tratado uma reflexão sobre a reclusão como prevenção de
como “loucura”, contágio para a sociedade.

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A questão, portanto, era muito pouco téc- a crueldade praticada no Hospital Psiquiátrico de
nica e bastante política (...) Na verdade, a Barbacena. O documentário é uma denúncia sobre
sociedade recluiu nos hospícios, menores
a degradação do ser humano, a capacidade da
sem casa, jovens mulheres que não se
conduziam de acordo com a moral vigente, “razão humana” para criar um verdadeiro campo
pessoas de quem as famílias queriam se ver de concentração brasileiro, onde qualquer ves-
livres (alcoólatras), doentes portadores de tígio de dignidade desaparece, a voz do louco é
moléstias infecciosas, pobres, enfim, todo silenciada, tragada pela voracidade dos discursos,
grupo que não se enquadrava nas regras melhor seria dizer, dos monólogos da “razão”.
sociais. Submetidos a um estado dupla-
mente repressor, os cidadãos indigentes Segundo Foucault (1978), a história da loucura
podiam ser internados no hospício, em-
não é a história do discurso psiquiátrico mas a
bora fossem pessoas sadias, bastando para
isso autorização policial (MAGRO FILHO, “arqueologia desse silêncio”que se estabeleceu
1992, p. 136). no mundo moderno das doenças mentais, a partir
do momento em que foi interrompido o diálogo
Pensar que esse tipo de conduta aconteceu em do louco com a sociedade. Portanto, o que se
Minas Gerais, em meados do século XX, pressupõe construiu foi o discurso da razão sobre a loucura,
a reprodução de uma ideologia remanescente do não há discurso da loucura sobre a razão (FRAYZE-
Brasil-Colônia, e mostra que os valores da nossa PEREIRA, 2005).
sociedade não mudaram tanto quanto acredita- Talvez uma forma de rompermos este silêncio seja
mos. Entende-se que a Psiquiatria, assim como a identificar na “arqueologia do saber” como propôs
Medicina, serviu ao Estado como uma forma de Foucault (1978), o discurso dos “sem-razão”. No
disciplina moral. Esse fato não desmerece suas documentário de Ratton (1979), uma interna de
conquistas no âmbito das ciências, mas a torna nome Sueli rouba a cena, com voz firme, caden-
passível de questionamentos. ciada, canta com o ritmo valente dos que, mesmo
sem a mínima esperança de salvar-se do inferno
dos hospitais psiquiátricos, não se calam:

Considerações finais O seu Manoel tenha compaixão,


tira nós todas dessa prisão,
nós todas de azulão
lavando o pátio de pé no chão.
Várias questões nos levaram a pensar que a lou-
Lá vem a bóia do pessoal:
cura feminina foi, e talvez ainda seja, muito mais arroz cru e feijão sem sal
uma questão de transgressão social ou moral do e mais atrás vem o macarrão,
que uma doença mental, como pudemos consta- Parece cola de colar balão.
tar na bibliografia consultada. Sua identidade foi
E mais atrás vem a sobremesa:
construída através do discurso dos detentores Banana podre em cima da mesa.
do poder, seja ele político, religioso, médico, E mais atrás vem as funcionárias
jurídico ou familiar. Ao privar uma mulher do Que são as putas mais ordinárias.
convívio social, a loucura é silenciada, a vergo-
nha é camuflada, escondida debaixo do tapete, e Outros loucos, emblematicamente, cantam o
a honra de todos se restabelece. Porém, não se “Hino da Independência” ou “Jesus Cristo eu es-
pode esquecer que a internação deixa uma marca tou aqui...”. Um outro com voz melancólica canta
profunda para o ser humano, pois o estigma da “felicidade foi embora e a saudade no meu peito
loucura é irreversível: “o internamento oculta o inda mora, é por isso que eu gosto lá de fora...”
desatino e trai a vergonha que ele suscita, mas
designa explicitamente a loucura: aponta-a com São estas algumas formas de discurso que a sensi-
bilidade humana, embotada pela cultura ocidental
o dedo” (FOUCAULT, 1978, p. 148).
moderna não quer ouvir, visto que pronunciadas
Em 1979, a divulgação do documentário “Em por aqueles que não se enquadram às expectativas
nome da Razão”, de Helvécio Ratton, expôs toda sociais de normalidade, aqueles cuja razão foge

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aos padrões desejados, aqueles cuja chave para DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição femi-
o entendimento do mundo nos é desconhecida. nina, maternidades e mentalidades no Brasil Colô-
O que esta cruel história da loucura nos revela, nia. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
porque “insiste no direito à singularidade e, por-
tanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é EM NOME da razão. Direção: Helvècio Ratton.
nesse mundo patologia ou anormalidade é porque [S.l.: s.n.], 1979. VHS (20')
a coexistência de seres diferenciados se tornou
uma impossibilidade” (FRAYZE-PEREIRA, 2005). FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
Este artigo não pretende esgotar o assunto,
mas afirmar que a questão “mulher e loucura”
é também social, pois diz respeito às relações FRAYZE-PEREIRA, João A. O que é loucura? São
de gênero, étnicas, religiosas e morais. Existe Paulo: Brasiliense, 2005.
uma diferença entre homem e mulher do ponto
de vista fisiológico, mas a diferença de gênero MACHADO, Roberto et. al. Danação da Norma: a
se estabelece a partir das relações sociais, fun- medicina social e constituição da psiquiatria no
damentadas nas diferenças percebidas entre os Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
sexos. Entender a loucura feminina requer uma
nova escrita desta história, em que tome como MAGRO FILHO, João B. A tradição da loucura: Minas
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e as representações sociais da mulher nesse con- UFMG, 1992.
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Mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis.
Janeiro: Paz e Terra, 1986. Vozes, 1997.

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