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Resumo:Este artigo trata da constituição da Psiquiatria no Brasil e das representações sociais positivas do mundo
reservado aos espaços femininos. A negação desses valores pode remeter a mulher à condição de alienada,
retirando-lhe a subjetividade, imprimindo-lhe o estigma da loucura. Identificada pelo discurso da psiquiatria,
esta marca qualifica a mulher como louca ou degenerada, estabelecendo um contraponto demarcado pela racio-
nalidade moderna, com a mulher normal ou normatizada.
Palavras-chave: loucura; mulher; doença; transgressão; hospício.
A loucura feminina pode ser considerada como Nesse período, a Psiquiatria foi instituída como a
doença mental ou como uma forma de transgres- ciência capaz de “tratar” a loucura, não porque os
são social? Para respondermos a esta pergunta, médicos passaram a conhecê-la, mas porque pas-
faz-se necessário um retorno ao período his- saram a dominar a loucura. Reduzida à condição
tórico em que os médicos passaram a ostentar de negativo da ordem, a loucura foi segregada e
sua autoridade nascida da ordem e da moral da abafada nos asilos e hospitais psiquiátricos. Por
família burguesa e das necessidades do Estado. sua vez, o discurso médico passou a defini-la pelo
* Professora do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes Claros. Mestranda do Programa
de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Unimontes.
** Doutora em História e professora do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvi-
mento Social da Unimontes. Coordenadora de Avaliação Institucional das Faculdades Integradas Pitágoras de Montes
Claros.
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que ela não é: razão, virtude, paz, harmonia, auto uma medicina urbana, que cuidava de fiscalizar,
controle, ou seja, qualidades valorizadas pela normatizar e transformar a cidade, surge a Psi-
sociedade burguesa estreitamente vinculadas às quiatria, que circunscreve a loucura à condição
questões morais. de “doença mental”. Neste momento histórico,
sofrendo influências de Esquirol e Pinel e inspi-
Entretanto, importa lembrar que a constituição rados pelo pensamento francês, os psiquiatras
da Psiquiatria no Brasil apenas reforçou antigas concluem que os loucos não devem mais conviver
interdições morais acerca do papel das mulheres em sociedade. Criam-se então os hospícios, que
nesta sociedade em desenvolvimento. abriga pessoas consideradas perigosas à popula-
Em seu livro Ao Sul do Corpo, Del Priore (1995) dis- ção, aquelas que atentam, principalmente, contra
corre sobre a mulher no Brasil colonial, a condição a moral pública.
feminina, o processo de domesticação da mulher, Segundo Machado (1978), para a Psiquiatria da
a maternidade, os papéis femininos estabelecidos época, a loucura se tratava com disciplina e não
pela Igreja e pela Sociedade.
com liberdade ou repressão. Era preciso isolar a
Houve um processo de adestramento da mulher, loucura da sociedade:
através do discurso sobre padrões ideais de com-
Só é, portanto, possível compreender
portamento, e cabia à Igreja disseminar esses valo-
o nascimento da psiquiatria brasileira a
res entre a população feminina. “Adestrar a mulher partir da medicina que incorpora a socie-
fazia parte do processo civilizatório, e, no Brasil, dade como novo objeto e se impõe como
este adestramento fez-se a serviço do processo instância de controle social dos indivíduos
de colonização”. (DEL PRIORE, 1995, p. 27). e das populações. É no seio da medicina
social que se constitui a psiquiatria. Do
Esse adestramento utilizou também outro ins- processo de medicalização da sociedade,
trumento, que foi o discurso normativo médico elaborado e desenvolvido pela medicina
que explicitamente se denominou política,
sobre o funcionamento do corpo feminino,
surge o projeto – característico da psiquia-
especificando como função natural da mulher a tria – de patologizar o comportamento do
procriação, conforme a autora, assim, enquanto louco, só a partir de então conside-
a Igreja cuidava das almas, a Medicina ocupava-se rado anormal e, portanto, medicalizável
dos corpos. E tudo o que fugia às regras estabe- (MACHADO, 1978, p. 376).
lecidas era objeto de perseguição:
A medicina social via o louco como um perigo à
A sacralização do papel social das mães cidade, desencadeando a “necessidade de exercer
passava, portanto, pela construção do
seu avesso: a mulher mundana, lasciva sobre a loucura uma regulação de caráter moral,
e luxuriosa, para quem a procriação não inscrevendo-a na categoria das condutas anor-
era dever, mas prazer. As mulheres que mais” (MACHADO, 1978, p. 383).
viviam em ambigüidade desses dois papéis
foram sistematicamente perseguidas, pois Para a loucura, encontramos várias definições de
o uso autônomo da sexualidade feminina acordo com cada momento histórico, desde Es-
era interpretado como revolucionário e quirol, que avaliava o grau de sanidade e loucura
contrariava o desejo da Igreja e do Estado
de colocar o corpo feminino a serviço da
dos seus pacientes pelas suas afeições morais, à
sociedade patriarcal e do projeto coloni- loucura moral ou tratamento moral inspirado no
zador (DEL PRIORE, 1995, p. 83). modelo assistencial de Pinel, além da teoria da
degenerescência e o alienismo.
A partir do século XIX a medicina, a serviço do Louco é aquele que perdeu a razão, é dominado
Estado passou a exercer um controle sobre toda a por uma paixão intensa, esquisito, excêntrico
sociedade e cuidou de normatizar a vida pública e (fora do centro), imprudente, temerário, nos diz
privada das mulheres estabelecendo os papéis por o Dicionário Aurélio.
ela desempenhados. A partir da consolidação da
Medicina Social do século XIX, prioritariamente Segundo Maria Clementina Cunha, algumas defini-
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Loucura feminina: doença mental ou transgressão social?
MACHADO, J. S. de A.; CALEIRO, R.C.L.
ções são usadas para o comportamento desviante: evocadas em sua natureza histórica e tran-
“constitui uma ameaça concreta e palpável: desvio sitória. São remetidas a processos sociais
que condicionam o domínio do patológico
da imaginação, reverso da razão, fim da inteligibi-
a determinações que transcendem o plano
lidade, uso indevido da liberdade” (CUNHA, 1986, puramente individual (TUNDIS; COSTA,
p. 14). E para livrar-se dos loucos, a sociedade 1997, p. 10).
burguesa tratou de excluí-los, aprisionando-os nos
hospícios, buscando anulá-los e transformá-los em Machado (1978) alega que os alienistas, para
objeto de conhecimento de médicos psiquiatras, avaliarem se uma conduta era razoável ou não,
higienistas e sanitaristas. comparavam-na com os comportamentos comu-
Em Silva Filho (1997, p. 78), encontramos a defi- mente aceitos na sociedade num determinado
nição de louco como “aquele cuja voz foi anulada, momento histórico, articulando a história indivi-
abafada, nem valorizada, nem importante”. dual e a história da sociedade:
Podemos dizer que “loucos” eram todos aqueles Todo indivíduo se constitui como sujeito
que incomodavam a sociedade, que apresentavam de paixões em sua vida de relação social e é
um comportamento que não era o esperado ou esta vida em sociedade que lhe assegura o
exercício regulado de sua atividade apaixo-
determinado, aqueles que não ficavam presos nada. Transpostos os limites problemáticos
às convenções como os libertinos, os religiosos desse exercício, o indivíduo encontra-se
infratores, os velhos e crianças abandonadas, doente porque rompe a rede de relações
os venéreos, os aleijados, os transgressores, os em que está inserido, desequilibra e
epilépticos, as mulheres transgressoras, os doentes subverte, por seus excessos, os efeitos
reguladores da sociedade (MACHADO,
mentais. Essas pessoas viviam à margem da socieda-
1978, p. 410).
de, consideradas como perigosas, eram os excluídos,
abandonados à própria sorte num Hospital Psiqui-
A medicina mental vai demarcar o que é excesso,
átrico (local que deveria ser de tratamento), onde
estabelecer o que é conduta normal e o que é com-
o que prevalecia era uma concepção excludente da
portamento desviante ou patológico, de acordo
loucura.
com critérios por ela estabelecidos, que visavam
Neste contexto, ao conceituar a doença mental, atender a normatização urbana, como descreve
Silva Filho (1997, p. 100-101) propõe que é impos- Machado (1978, p. 411), “O reconhecimento da
sível pensá-la enquanto essência naturalizada no loucura, a possibilidade de dizer ‘este é um louco’,
corpo, e, sim, que ela é acontecimento possibili- aparece ligado em grande parte a uma mudança de
tado historicamente pelos saberes psiquiátrico e hábitos e de idéias, à existência de uma diferença,
médico no momento em que monopolizavam a ao rompimento de relações sociais (...)”.
loucura. Segundo ele, a loucura indicava algo que
Se a sociedade lançou mão das diversas teorias
não estava normatizado, que sua patologização
médicas para justificar a loucura das pessoas
poderia curá-la através da medicina. Portanto,
que não se enquadravam nos padrões estabe-
faz-se necessário interrogarmos através de quais
lecidos, encontra-se entre este contingente de
jogos da verdade o homem se pôs a pensar seu
“loucos” algumas categorias mais visadas pelo
próprio ser, percebendo-se como louco, olhando-
olhar inquisidor da medicina, como os negros e
se como doente, reconhecendo-se como sujeito
as mulheres, principalmente as mulheres negras,
do desejo.
“a degeneração e a loucura são inerentes à visão
Através da história da psiquiatria no Brasil, per- animalizada das negras, tornando sua presença
cebe-se que o conceito de loucura é variável. Os no hospício uma contingência quase natural”
comportamentos estabelecidos como “sintomas” (CUNHA, 1986, p. 124).
mudam de acordo com o momento, atendendo a Em busca da compreensão da loucura feminina
interesses culturais, políticos e sociais, nos deparamos com dois caminhos: entender se
As práticas e representações que as socie- as mulheres foram consideradas loucas por algum
dades elaboram em torno da loucura são distúrbio mental ou por não se enquadrarem nos
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e doença teve um papel fundamental na domesti- da família, mulheres que insistiam em fugir às
cação da mulher. Fazendo do excesso social causa normas que a definiam como subordinada, frágil
de enfermidade físico-moral, a higiene retirava a e dependente. Outras causas extremamente recor-
mulher do mundo...” (COSTA, 2004, p. 269). rentes estavam relacionadas à sexualidade:
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A questão, portanto, era muito pouco téc- a crueldade praticada no Hospital Psiquiátrico de
nica e bastante política (...) Na verdade, a Barbacena. O documentário é uma denúncia sobre
sociedade recluiu nos hospícios, menores
a degradação do ser humano, a capacidade da
sem casa, jovens mulheres que não se
conduziam de acordo com a moral vigente, “razão humana” para criar um verdadeiro campo
pessoas de quem as famílias queriam se ver de concentração brasileiro, onde qualquer ves-
livres (alcoólatras), doentes portadores de tígio de dignidade desaparece, a voz do louco é
moléstias infecciosas, pobres, enfim, todo silenciada, tragada pela voracidade dos discursos,
grupo que não se enquadrava nas regras melhor seria dizer, dos monólogos da “razão”.
sociais. Submetidos a um estado dupla-
mente repressor, os cidadãos indigentes Segundo Foucault (1978), a história da loucura
podiam ser internados no hospício, em-
não é a história do discurso psiquiátrico mas a
bora fossem pessoas sadias, bastando para
isso autorização policial (MAGRO FILHO, “arqueologia desse silêncio”que se estabeleceu
1992, p. 136). no mundo moderno das doenças mentais, a partir
do momento em que foi interrompido o diálogo
Pensar que esse tipo de conduta aconteceu em do louco com a sociedade. Portanto, o que se
Minas Gerais, em meados do século XX, pressupõe construiu foi o discurso da razão sobre a loucura,
a reprodução de uma ideologia remanescente do não há discurso da loucura sobre a razão (FRAYZE-
Brasil-Colônia, e mostra que os valores da nossa PEREIRA, 2005).
sociedade não mudaram tanto quanto acredita- Talvez uma forma de rompermos este silêncio seja
mos. Entende-se que a Psiquiatria, assim como a identificar na “arqueologia do saber” como propôs
Medicina, serviu ao Estado como uma forma de Foucault (1978), o discurso dos “sem-razão”. No
disciplina moral. Esse fato não desmerece suas documentário de Ratton (1979), uma interna de
conquistas no âmbito das ciências, mas a torna nome Sueli rouba a cena, com voz firme, caden-
passível de questionamentos. ciada, canta com o ritmo valente dos que, mesmo
sem a mínima esperança de salvar-se do inferno
dos hospitais psiquiátricos, não se calam:
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aos padrões desejados, aqueles cuja chave para DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição femi-
o entendimento do mundo nos é desconhecida. nina, maternidades e mentalidades no Brasil Colô-
O que esta cruel história da loucura nos revela, nia. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.
porque “insiste no direito à singularidade e, por-
tanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é EM NOME da razão. Direção: Helvècio Ratton.
nesse mundo patologia ou anormalidade é porque [S.l.: s.n.], 1979. VHS (20')
a coexistência de seres diferenciados se tornou
uma impossibilidade” (FRAYZE-PEREIRA, 2005). FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
Este artigo não pretende esgotar o assunto,
mas afirmar que a questão “mulher e loucura”
é também social, pois diz respeito às relações FRAYZE-PEREIRA, João A. O que é loucura? São
de gênero, étnicas, religiosas e morais. Existe Paulo: Brasiliense, 2005.
uma diferença entre homem e mulher do ponto
de vista fisiológico, mas a diferença de gênero MACHADO, Roberto et. al. Danação da Norma: a
se estabelece a partir das relações sociais, fun- medicina social e constituição da psiquiatria no
damentadas nas diferenças percebidas entre os Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
sexos. Entender a loucura feminina requer uma
nova escrita desta história, em que tome como MAGRO FILHO, João B. A tradição da loucura: Minas
referência os valores sociais e culturais da época Gerais, 1870-1964. Belo Horizonte: COOPMED/
e as representações sociais da mulher nesse con- UFMG, 1992.
texto e, quem sabe, os pequenos fragmentos dos
discursos dos “insanos”. PEREIRA, Roberto da Cunha. Todo Gênero de Lou-
co: uma Questão de Capacidade. In: ZIMERMAN,
David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (Orgs.).
Aspectos Psicológicos na Prática Jurídica. Campinas:
Millennium, 1999.
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do TUNDIS, S: COSTA, N. (org). Cidadania e loucura:
Mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Políticas de saúde mental no Brasil. Petrópolis.
Janeiro: Paz e Terra, 1986. Vozes, 1997.