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A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl 164

A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl

The psychopathology in Renato Ferraz Kehl works

André Luis Masiero1


Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, Brasil

Resumo
Renato Ferraz Kehl é conhecido por ter introduzido a eugenia no Brasil. No entanto, dedicou-se também à
psicopatologia, psicologia, antropologia e filosofia. Este trabalho objetiva descrever e analisar sua teoria
psicopatológica. Foram analisadas 6 obras de sua autoria, publicadas entre 1927 e 1941 e que focam temáticas
psicológicas e psicopatológicas. Para Kehl traços de personalidade e psicopatológicos seriam indicadores da
qualidade racial da população. Classifica os desvios de personalidade e tipos psicológicos com o objetivo de oferecer
dados para a análise do caráter nacional e controle do que acreditava serem sinais de degeneração racial. O material
foi analisado a partir do conceito de “tecnologias do instinto” de M. Foucault. Conclui-se que o limite entre o
normal e o patológico é periodicamente modificado ao longo da história das ciências e está sujeito a variáveis tanto
científicas quanto aos jogos de poder. A obra de Kehl é um importante indicador desse processo.
Palavras-chave: Psicopatologia, Caracterologia, Eugenia, Renato F. Kehl.

Abstract
Renato Ferraz Kehl is known for introducing eugenics into Brazil. However, he was also devoted to
psychopathology, psychology, anthropology and philosophy. This paper aims to describe and analyze his
psychopathology theory. Six (6) of his works were selected and analyzed and published between 1927 and 1941
focusing on t psychological and psychopathological issues. For Kehl personality and psychopathology traits would
be indicators population’s racial quality. He classifies personality deviations and psychological types in order to
provide data for the analysis of the national character and control of what he believed to be signs of racial
degeneration. The material was analyzed based on the concept of “technologies of instinct” (Michel Foucault). We
concluded that the boundary line between normal and pathological is periodically changed throughout the history of
science and is subject to both scientific and power seeking variables. Kehl's work is an important indicator of this
process.
Keywords: Psychopathology, Caracterology, Eugenics, Renato Ferraz Kehl

Introdução psiquiatria se consolida como saber especializado


Dentre as muitas transformações ocorridas na incorporando uma ampla gama de conhecimentos
cultura e ciência brasileiras no século XIX, a da antropologia física, da educação, da medicina, e

1 Contato: andremasiero@ufscar.br

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por fim da psicologia. Desde o início, um dos especulativas, o que culmina em um sistema
objetivos da psiquiatria e da psicologia, na vertente “topográfico do espírito”, pouco científico e sem
dos estudos das diferenças individuais, era dividir muitas aplicações; a segunda fase consiste no
os seres humanos em estratos e ordena-los em uma surgimento da “fisiopatologia cerebral”, de modo
hierarquia, quantificando e qualificando as que toda a psicologia “subjetiva” acaba sendo
propriedades mentais. Nesta época, os limites entre abandonada, deixando um espaço carente de uma
o normal e o patológico começaram a ser definidos teoria mental abrangente que reunisse
de acordo com as potenciais ameaças a conhecimentos biológicos e sociais. A busca deste
constituição da civilização nacional. Seja qual for o espaço caracterizaria a terceira fase das relações
método de avaliação psiquiátrica definidora deste entre a psicologia e a psiquiatria, o que exigiu a
limite sempre teremos uma concepção de homem criação de instrumentos de investigação da
historicamente construída que oferecerá subsídios personalidade e medidas mentais largamente
à Psicopatologia. No outro extremo teremos as utilizados nas instituições psiquiátricas.
formas de tratamento.
Nunca houve um consenso entre as diversas Psicopatologia e processo civilizatório
ciências e profissões envolvidas na questão da Vários foram os médicos que tentaram criar
Psicopatologia. As diferenças culturais, políticas, uma classificação psicopatológica apropriada ao
econômicas – para citarmos somente três contexto brasileiro. Em um primeiro momento, as
problemas – entre os povos e países afetados pelas classificações não eram propriamente médicas. O
concepções psicopatológicas padronizadas tem Hospício Pedro II foi inaugurado em 1852 com
gerado uma insatisfação na área médica e 140 pacientes, dos quais 126 foram classificados
psicológica. Por isso, o Diagnostic and Statistical como “tranquilos”, 10 como “agitados” e 4 como
Manual of Mental Disorders (DSM) já está em sua “imundos”. (Gonçalves e Edler, 2009). Saltando
quinta versão. Note-se que tudo isso ocorreu em um longo período, um grupo de psiquiatras, em
um curto espaço de cerca de 60 anos. Antes do sessão da Sociedade Brasileira de Psiquiatria,
surgimento das classificações internacionais das Neurologia e Medicina Legal (SBPNML), no dia 05
psicopatologias, atualmente o capítulo V da de abril de 1908, entre eles Juliano Moreira,
Classificação Internacional de Doenças (CID-10), Afranio Peixoto e Henrique Roxo, foi incumbido
especificamente dos itens F00 a F99, e o DSM IV- de elaborar uma classificação nacional das doenças
R, cada pesquisador elaborava uma classificação mentais com o objetivo de servir de base estatística
específica para o contexto de seu país ou da aos manicômios brasileiros. Esta classificação
instituição hospitalar onde trabalhava. Na medida brasileira sofreu bastante influência do alemão
em que a loucura é medicalizada a partir do século Emil Kraepelin e do suíço Eugen Bleuler.
XVIII (Foucault, 1978), com a conseqüente Publicada em 1910 pela equipe da SBPNML, a
hospitalização do louco, é que começam a surgir as classificação dividia as doenças mentais em 14
classificações da anormalidade, baseadas em um tipos: 1) Psicoses infecciosas; 2) Psicoses auto-
modelo taxionômico. Por outro lado, tão logo a toxicas; 3) Psicoses hetero-toxicas; 4) Demência
Psicologia clínica surge como ciência e profissão, precoce; 5) Demência Paranóide; 6) Paranóia 7)
tem início uma via de classificação humana Psicose maníaco depressiva; 8) Psicose de
autônoma. Estas classificações concentravam-se involução; 9) Psicoses por lesões cerebrais; 10)
nos processos mentais, nos comportamentos Paralisia Geral; 11) Psicose epiléptica; 12) Psicoses
explícitos e nos tipos de personalidade, entidades nevrósicas (sic); 13) Estados atípicos de
privilegiadas da então nova ciência no início do degeneração; 14) Imbecilidade e idiotia.
século XX. Assim, a Psicologia começa a Mas esta classificação não atingiu um consenso
influenciar a Psicopatologia médica. O psiquiatra nacional e logo outros psiquiatras brasileiros
brasileiro Whitaker (1937), em sua época passando criaram novas. Seguindo outras referências.
por esta influência, distingue três fases nas relações Mirandolino Caldas Filho (1926), por exemplo, do
entre psiquiatria e a psicologia: A primeira Hospital Nacional de Alienados no Rio de Janeiro
caracterizava-se pelas teorias filosófico- (o antigo Pedro II), selecionou uma amostra de

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1300 internos, sendo 588 homens adultos, 660 Paulo, Renato Feraz Kehl foi o principal
mulheres adultas e 52 crianças, e os classificou responsável pela introdução da eugenia no cenário
segundo 20 patologias neuropsiquiátricas e 1 científico brasileiro. Inicialmente, a idéia foi
doença infecciosa (tal a freqüência com que definida pelo matemático e psicometrista inglês
apareceram). São elas: 1) Psychose maníaco Francis Galton em 1865 como a ciência do
depressiva; 2) Confusão mental; 3) Alcoolismo; 4) aprimoramento das qualidades físicas, psicológicas
Epilepsia; 5) Delírio episódico; 6) Debilidade e morais do homem, através da manipulação
mental; 7) Demência senil; 8) Paralysia geral; 9) racional da reprodução humana, orientada pelo
Demência precoce; 10) Hysteria; 11) Imbecilidade; estado (Masiero, 2005). Tal foi o entusiasmo de
12) Paraphrenia; 13) Arterio-esclerose cerebral; 14) Kehl pelas idéias de Galton, que fundou a
Estado atypico de degeneração; 15) Syphilis Sociedade eugênica de São Paulo em 1918. Com o
cerebral; 16) Psychose de involução; 17) Idiotia; apoio de seu amigo Monteiro Lobato, de muitos
18) outras toxicoses; 19) Syndrome paranoide; 20) médicos e outros intelectuais, a sociedade
Psychose traumática; 21) Doença de Chagas. funcionou por apenas dois anos, para sua
Vê-se que ambas as classificações, embora decepção. Em 1929 funda então, agora no Rio de
bastante diferentes e com tipos cujos significados Janeiro, o Instituto Brasileiro de Eugenia, que
precisam ser recuperados pela história, atendem às passaria a se chamar Comissão Central Brasileira
preocupações da psiquiatria brasileira do início do de Eugenia. Nos quatro anos seguintes editou o
século XX. O alcoolismo, a sífilis e as intoxicações, mensal Boletim de Eugenia, um pequeno jornal
entendidos na época como reflexos de destinado à divulgação da higiene racial.
comportamentos típicos do processo de Neste contexto, Kehl, um dos muitos cientistas
urbanização (abuso de álcool e drogas e desvios interessados pela então nova ciência da psicologia,
sexuais) eram chamados de “venenos da raça” via nos comportamentos humanos um perigoso
(Kehl, 1935) por serem causas de muitas desordens fator de degeneração, ora como causa da
neuropsiquiátricas ameaçadoras das gerações decadência racial, ora como reflexo de um
futuras. Já os “estados de degeneração” seriam processo degenerativo já instalado. Por isso, em
indicadores da preocupante decadência da várias de suas obras sobre psicologia tenta tipificar
qualidade racial do país ou devido à mestiçagem, os comportamentos desviantes. É importante
cujo resultado seria uma progênie inferior ressaltar que embora buscasse uma classificação
contaminada pelos vícios da raça negra ou pela psicopatológica, Kehl partia de princípios não
deformação das células reprodutoras pelo álcool, somente neuropsiquiátricos, mas também dos
drogas ou sífilis. comportamentais. Suas conclusões não são
Sabendo-se a quantidade e tipos de doenças decorrentes de prática em clínica nem em
mentais recorrentes no território nacional seria manicômios, mas sim da observação do cotidiano,
possível traçar um mapa da situação, permitindo de seu conhecimento teórico de psicologia e
prever os gastos com esta população e elaborar psicopatologia da época e da sua atividade como
planos de intervenção. Controlar os médico sanitarista, que exerceu no início de sua
comportamentos impulsivos da sexualidade juvenil carreira.
como forma de impedir a disseminação da sífilis Os estudos sobre Kehl têm se dedicado
foi uma grande preocupação dos primeiros principalmente à sua obra sobre a eugenia (Stepan,
estudiosos da psicologia, médicos, pedagogos e 1991; Castañeda, 2003). De fato, este era seu
antropólogos. É justamente no debate sobre o principal interesse e em seu ponto de vista todas as
desenvolvimento da civilização brasileira e os outras ciências deveriam estar submetidas a ela,
obstáculos que a ela se apresenta que Renato como se pode constatar em seus livros de
Ferraz Kehl concentra a sua obra psicológica e psicologia: Tipos vulgares: introdução a psicologia da
psicopatológica. personalidade, de 1927 (sucesso editorial publicado
primeiramente na Espanha e Argentina); Conduta:
A psico-crítica de Renato Ferraz Kehl guia para formação do caráter, de 1934; Psicologia da
Natural da cidade de Limeira, no interior de São personalidade, de 1941; A cura do espírito, de 1943; e

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A interpretação do homem: ensaio de caracterologia, de melhor a estrutura e a dinâmica espiritual para


1951. Há muitos outros escritos de Kehl sobre interpretação das individuo-personalidades. (Kehl,
psicologia, tanto textos curtos em revistas quanto 1958b, p. 18)
livros de outros temas, nos quais ele passa pela A base da psico-crítica deveria ser biológica,
psicopatologia e psicologia rapidamente, ou a elas buscando encontrar os substratos físicos das
dedica capítulos inteiros, como em Lições de características humanas boas ou desviantes, o que
Eugenia, de 1929, no qual propõe aplicações o estreito quadrante da psicologia clássica não
eugênicas dos testes mentais. De qualquer forma, traria. Entendia por psicologia clássica aquela sem
estas seis obras são suficientemente ilustrativas de fundamentos nas ciências naturais. Prosseguindo
seu pensamento na área das ciências psicológicas. diz:
Não são obras técnicas, mas objetivavam divulgar
Inegável o interesse instintivo e intuitivo de cada
à população leiga conhecimentos a partir de pessoa em conhecer o lado afetivo-ativo, o modo
discussões científicas e filosóficas. de sentir e de reagir dos indivíduos. Na imensa
Kehl acreditava que o comportamento humano variedade de tipos procura-se distinguir os que
deveria ser mudado pela educação, embora convêm à aproximação e os que devem ser
houvesse limites, pois as disposições genéticas às mantidos a distância. (Kehl 1958b, p. 18)
quais a vontade individual estava submetida é que Não bastaria saber identificar os elementos
determinariam os traços de caráter. Daí ter escrito indesejáveis, mas também seria necessário
duas obras orientando os jovens na escolha de posicionar-se criticamente, afastando-se deles.
parceiros sãos para o casamento e reprodução: Assim, os conhecimentos sobre a Psicologia
Como escolher uma boa esposa, e Como escolher um bom humana deveriam ser aplicados na segregação dos
marido, nas quais fazia um alerta aos jovens em elementos prejudiciais à raça e à nação:
idade matrimonial ensinando-os como identificar
sinais de degeneração racial, do ponto de vista Existem testes para aquilatar o valor individual em
vários sentidos, seja quanto a inteligência, à
psicológico e caracterológico, orientando-os a
presteza de raciocínio, à memória, à desatenção;
evitar uniões com essas pessoas caso algum sinal (...) Coube a Galton a primazia na tentativa de
suspeito fosse identificado. Indicando fórmulas determinar os caracteres psíquicos individuais,
higienistas para se atingir a felicidade na vida como meio para resolver o problema da seleção
familiar, profissional e amorosa, pode ser lido humana” (Kehl, 1958b, p. 91)
também como um precursor da literatura de auto-
Kehl criou várias classificações dos
ajuda no Brasil. Sua vasta produção e edições
comportamentos disgênicos, muito próximos das
sucessivas de suas obras por editoras nacionais e
atuais classificações das psicopatologias da
internacionais de grande alcance para a época
personalidade (Kehl, 1951, 1954, 1958a, 1958b,
indicam que era bastante lido.
1959). Na obra Tipos vulgares: introdução a psicologia da
Kehl (1958b) chamou de “psico-crítica” um
personalidade, descreve 19 perfis:
ramo da caracteriologia, destinada à observação
criteriosa das tendências da personalidade humana Felizes/infelizes; Gordos e magros; O velhaco, o
e seus traços anormais. Essa observação deveria impulsivo; o preguiçoso; o medroso; o bajulador;
o invejoso; crentes e crédulos; o sestroso; o
orientar as políticas públicas e os cidadãos
inconseqüente; o farcista (sic); o confusionista; o
conscientes de sua responsabilidade para com a
criticador; o indisciplinado; o escravo do álcool; o
raça humana e a formação da civilização nacional. ciumento; o jogador; os castos forçados. (Kehl,
Sua teoria psicológica e o limite normal-patológico 1958b.)
podem ser entendidos a partir deste conceito:
Esta classificação de tipos por comportamento
É mister, por meio de uma análise psico-crítica, patológico, conforme podemos conferir em outras
que não se aprende no estreito quadrante da
publicações, pretendia chamar a atenção para os
psicologia clássica, devassar a alma dos homens. A
problemas que, segundo ele, faziam parte da “alma
psico-crítica com base na biologia ou mais
especificamente com fundamento na constituição
nacional” e que contribuíam para o atraso do país.
e temperamento torna possível compreender Como poderia o Brasil se desenvolver com tantos

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“preguiçosos”, “medrosos”, “infelizes”, perda do contato com o outro e com a realidade. A


“alcoólatras”, etc.? Embora já houvesse termos tese tipológica de Kreteschmer pressupunha que
psicopatológicos para referir-se a esses desvios da os leptossômicos teriam um metabolismo mais
personalidade, por se tratar de uma obra acelerado, daí sua tendência à ansiedade e
introdutória de divulgação para leigos, optou por impaciência. Já os pícnicos, ao contrário, tenderiam
utilizar termos vulgares de fácil entendimento de a ser mais calmos e lentos devido ao seu
seu público. metabolismo. Isso faria com que dedicassem mais
Ele abre esta obra, editada pela primeira vez em tempo e paciência ao outro. Por algum motivo, a
1927, com a discussão do principal anseio humano: ativação nervosa seria diferente entre os dois tipos.
a busca da felicidade. Toda a felicidade não seria Em um predominaria a atividade do nervo vago
questão de sorte, nem de vontade divina, (conhecido como nervo da paz) e no outro a
tampouco do desejo do homem, como queriam os atividade do nervo simpático (nervo da guerra). A
filósofos e psicólogos clássicos, mas sim da boa felicidade consistiria no equilíbrio entre as duas
configuração biológica: “O médico e o eugenista tendências. Nota-se nestes perfis uma continuidade
não encaram nem podem encarar a felicidade por entre o normal e o patológico, limite dado não pela
prismas tão metafísicos, sentimentais e utopistas. qualidade do afeto, mas pela sua variabilidade
Para estes o problema só pode ser resolvido por quantitativa. Por exemplo, o temperamento
equação biológica” (Kehl, 1958b, p. 20). ciclóide, comum entre os brevilíneos, em seu
Os homens realmente felizes não dependeriam extremo poderia desencadear uma psicose maníaco
de aprovação externa, pois não teria dúvidas de seu depressiva.
estado. Os “bajuladores”, como reflexo da sua O “velhaco” seria outro perfil psico-crítico
infelicidade tenderiam a adular e lisonjear o outro, bastante comum no Brasil. Caracterizados pela
esperando aprovação externa. Os elogios vindos falta de escrúpulos, tendência maníaca ao engodo,
destas pessoas, portanto, seriam falsos, convindo aos golpes e, via de regra, a ações em grupos.
mantê-los distantes quando identificados. Mesmo Seriam muito comuns em cargos públicos e nas
que assim o fizesse não alcançaria a felicidade, pois altas rodas sociais. Hábil com as palavras, como o
o problema dos bajuladores não residiria na “farsista”, geralmente inteligentes e cultos,
aprovação externa, mas em sua incapacidade por aparentariam boa constituição, no entanto, não
limitações físico-mentais. passariam de fraudadores. Kehl (1958b) cita o
A felicidade humana dependeria do equilíbrio arqueólogo e egiptólogo francês Charles
entre a boa conformação biológica com o desejo Lenormant como um representante deste tipo. A
individual, o que o leva ao segundo perfil psico- diferença entre os “velhacos” e os “farsistas” é que
crítico. Baseado na teoria constitucional do os segundos são golpistas e não somente
psiquiatra alemão Ernst Kretschmer, que malandros como os primeiros. Aqui, Kehl abstém-
procurava uma correlação entre o físico e o se de apresentar uma correlação físico-psicológica
psíquico, os gordos teriam traços de caráter bem como no perfil anterior, mas aponta que nem
diferentes dos magros. Segundo o psiquiatra sempre uma boa constituição é garantia de um
alemão, os gordos, tecnicamente chamados de bom indivíduo. Desses “velhacos” muitos se
pícnicos e brevilineos tenderiam a ter um aproveitariam da ingenuidade alheia sentindo
temperamento ciclóide. Estes indivíduos seriam prazer em assistir a ruína de suas vítimas. Os
amigáveis, alegres e dependentes das relações “jogadores” seriam golpistas deste tipo, e o pior é
pessoais. No extremo dessas paixões cairiam na que teriam a capacidade de contaminar os
psicose maníaco depressiva, caracterizada pela expectadores com sua volúpia disfarçada de
oscilação entre a hiperestesia e anestesia. Já os diversão.
magros ou leptossômicos, seriam mais contidos, O perfil dos “impulsivos” e “inconseqüentes”
introvertidos e impacientes, características representam na obra de Kehl a mais ilustrativa tese
marcantes do temperamento esquizóide. No do fatalismo biológico, pois independentemente do
extremo cairiam mais facilmente na esquizofrenia, desejo individual e das forças sociais regulatórias
psicopatologia caracterizada pelo embotamento e sobre todos os indivíduos, eles agiriam segundo

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sua psicopatologia sem que nada pudessem fazer ocorreria desde a primeira infância quando as
para evitar, como um pane instintual. Haveria criadas contavam histórias de sacis, cucas, bichos
criminosos de todos os tipos neste perfil, de papões, espíritos etc. para as crianças. Durante o
assassinos a ladrões. Assim se explica como desenvolvimento infantil essas histórias, assim
indivíduos que levaram uma vida honesta durante como outros fatos do cotidiano, seriam fixadas no
muito tempo repentinamente se tornariam subconsciente podendo formar futuramente um
criminosos. Exemplifica com casos de assassinos caráter medroso (Kehl, 1954). Como profilaxia
por motivos fúteis. Se o motivo do crime não deste mau hábito nacional, Kehl desaconselhava
poderia ser encontrado no ambiente, restaria propagar estas histórias.
somente o biológico como explicação: Há uma relação de perfis psico-críticos que
Os estudos modernos sobre hereditariedade, seriam obstáculos a felicidade individual, como os
constituição e temperamento demonstram, à “bajuladores”, os “invejosos” e os “criticadores”.
evidência, que todos nós estamos presos a uma Os primeiros por nutrirem-se de falsos elogios aos
fatalidade orgânica e psíquica a qual não podemos outros e os segundos por não suportarem o
fugir, e que os nossos atos dependem, sucesso alheio que não conseguiram, ao invés de
essencialmente, de nossa constituição, de nosso investirem energias em conseguir os mesmos
temperamento e não da simples influência do méritos, desgastam-se sabotando o sucesso do
meio e de circunstâncias mais ou menos outro. Como reflexo da inveja, os “criticadores”
imprevistas. (Kehl, 1958b, p. 39).
fariam o mesmo. Por falta de criatividade seriam
Faltaria a essas pessoas o filtro psicológico para consumidos pelo excessivo desejo de destruição do
o autocontrole dos instintos. Aos outro passando-se por vítimas quando acusados.
“inconseqüentes” faltaria a simples habilidade de A tendência do brasileiro a acreditar em
ligar sua ação a conseqüência. Um problema de emissários divinos e influências espirituais na vida
síntese da função mental básica que os colocariam terrena, comuns na mitologia nacional,
no nível dos débeis mentais. identificariam o perfil psico-crítico dos “crentes e
Em um país recém-saído do domínio imperial, crédulos”. Para Kehl, a religiosidade e misticismo
em processo de rápida urbanização, recebendo assemelham-se, sendo disfarces da superstição e
levas de imigrantes europeus e asiáticos, e reflexos do medo e da ignorância. Incompatíveis
preparando-se para o futuro, a “preguiça” mórbida com o pensamento científico e oferecendo
e o “medo”, traços comuns da população respostas falsas às dúvidas humanas, a religião e o
brasileira, seriam dois perfis psico-críticos de misticismo geralmente seriam acatados por pessoas
profundo impacto cultural. Kehl (1958b) relata que conformistas ou que se apegariam a elas como
de acordo com o psiquiatra Paul Emil Levy, a tábua de salvação diante dos mistérios da vida. Por
preguiça como na neurastenia caracterizava-se por outro lado, observa que mesmo pessoas instruídas
uma baixa atividade neurológica, daí a constante seriam influenciadas com certa facilidade pela
indisposição desses indivíduos para quaisquer religião. Isto se daria principalmente após grande
atividades produtivas. Já o “medo”, em um mundo choque afetivo, ou na velhice, quando perderiam
no período entre guerras, seria mais um perigo à sua racionalidade. Kehl lembra episódios de
civilização brasileira, pois deixava o país fanatismo religioso como os seguidores de Padre
desprovido de bons defensores do território o que Cícero e o conflito de Canudos quando o líder
seria natural em todas as espécies animais. Antonio Conselheiro amealhou uma legião de
Não se devem tomar os medrosos como entes fanáticos e ameaçou os ideais republicanos.
desprezíveis, mas dignos de lastima. Durante a As propensões comportamentais, como as dos
grande guerra de 1914 a 1918, foi bem estudada fanáticos, já nasceriam na constituição humana. O
esta questão: verificaram-se numerosos indivíduos egoísmo seria um comportamento comum em
medrosos vitimas de nevroses, quási sempre com todas as espécies. Mesmo que a própria evolução
caráter dramático, acompanhadas de contraturas levasse a espécie humana ao gregarismo, o homem
ou de ticos convulsivos. (Kehl, 1958b, p. 55). só o teria feito devido aos interesses individuais,
No Brasil, o hábito do estímulo à covardia portanto continuaria egoísta. A necessidade de

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viver em bandos deu origem à moralidade humana, definitivamente na descendência familiar, por isso
um sistema de regras que permitiria a vida em era chamada também de “falsa hereditariedade”,
sociedade. Sempre na mesma explicação social- isto é, embora a manifestação da desordem fosse
evolucionista e moralista, Kehl argumenta que em semelhante a manifestação fenotípica dos defeitos
alguns indivíduos faltaria o sistema interno de genéticos, na verdade seria efeito de células
regulação que faria com que instintos primitivos reprodutivas danificadas pelo álcool. Era uma
predominassem sobre os valores elevados da forma de neo-lamarckismo, na qual considerava-se
cultura. Caso dos “sestrosos”, simplesmente mal possível a herança de caracteres adquiridos. Além
educados incapazes de incorporar os mais de classificar, como já se pode notar em várias de
comezinhos valores éticos, por isso atentariam aos suas obras, Kehl procura descrever o
códigos da civilidade. psicodinamismo dos perfis patológicos que
A educação na escola ou família em quase descreve. Os “ciumentos”, também doentes da
todos os casos pouco poderia fazer por esses razão, seriam indivíduos com acentuado
indivíduos, mas mesmo assim, explica, seria sentimento de inferioridade por isso não se
necessário faze-lo: julgariam merecedores de amor do próximo. Como
Trazemos ao nascer a marca indelével do que duvidariam da própria sinceridade, de manterem-se
seremos, segundo as leis da hereditariedade (...). fiéis ao cônjuge, julgariam o outro de acordo com
Admitido o determinismo e rejeitado o arbítrio os próprios desejos.
das vontades livres para querer e não querer, não Em um país em que se reconhecia o crime
devemos negara as influências do meio e da passional como atenuante no julgamento de
educação sobre os indivíduos. (...) Indivíduos assassinatos, Kehl mantém-se fiel aos valores
originários de estirpe não favorável apresentam, civilizados. A melhor vingança, diz, é manter a
não obstante, qualidades que lhes poderiam dignidade, rompendo-se o relacionamento ou
assegurar melhores situações na sociedade se não
desprezando-se o traidor. Mas para isso seria
lhes tivessem faltado influências encorajadoras.
necessário muita força de caráter.
(Kehl, 1958a, p. 15).
O tema da sexualidade humana está implícito
Algumas psicopatologias seriam caracterizadas nos tipos psico-críticos. A escolha do cônjuge
pela aversão a educação, como os pelos jovens, as relações homem mulher, as
“indisciplinados”, hostis ao mando superior dos doenças sexualmente transmissíveis etc. teria de
pais e professores. Como resultado da aversão levá-lo necessariamente a reflexão sobre a
desses indivíduos a educação por motivos de sexualidade humana. Influenciado pela psicanálise
ordem hereditária, é que se assistiria a onda de descreve o tipo dos “castos forçados”. Mesmo
desordens políticas, familiares e sociais. com as críticas de Freud à hereditariedade das
O homem moderno teria uma propensão ao doenças mentais e ao fatalismo biológico (Masiero
gozo ilimitado, por isso o perigo do álcool, uma et al., 2006), Kehl aproveita-se de alguns conceitos
epidemia ameaçadora das futuras gerações. Os muito superficialmente como a etiologia sexual das
“escravos do álcool”, também “impulsivos e neuroses, a sublimação e subconsciente. Na
indisciplinados”, um dos mais perniciosos perfis verdade, Freud falava em inconsciente explicando
psicocríticos, não se dariam conta do prejuízo que a inadequação do termo “subconsciente”.
estariam causando à raça nacional fazendo sofrer Os tabus sexuais impostos pela cultura durante
não apenas os seus contemporâneos próximos, longos anos teriam criado um misticismo ao redor
mas também a raça vindoura. Kehl voltará ao tema da sexualidade sendo causador de muito
do alcoolismo em obras futuras e o combaterá sofrimento desnecessário. A igreja cristã, diz Kehl,
intensivamente. é a grande responsável por isso. O ascetismo e as
Com influência da teoria blastoftórica de tentações impuras da carne ditados pelos cristãos
August Forel, psiquiatra alemão, defendia que a na verdade seriam encobridoras de mentes
ação do álcool danificaria as células reprodutivas doentias, cujos desejos não estariam em
humanas, degenerando a progênie. Essa conformidade com a natureza. O que os crentes
degeneração poderia inclusive fixar-se fariam era sublimar a sexualidade, como dizia

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Freud, transformando seus desejos em práticas pensamentos cruéis permanentemente. Seria


religiosas obsessivas. Por outro lado, a idéia de comum encontrar na genealogia desses indivíduos
pecado criada pelo cristianismo teria a função de “taras blastoftóricas”, por isso seriam incuráveis e
dominar os fiéis e os sacerdotes. No mundo refratários aos castigos físicos ou morais, devendo
contemporâneo, a facilidade do contato sexual dos ser mantidos internados ou sob controle. Kehl
jovens estaria esvaziando as igrejas, pois eles não chama a atenção para o fato de que dependendo
mais aceitariam a abstinência sexual, nem o sexo do país e do autor a definição de perversidade
como pecado, afinal, estas crenças seriam uma pode variar. Os autores ingleses e italianos
forma de cerceamento da liberdade. Na sua tenderiam a pensar a perversidade como
interpretação naturalística da sexualidade, a perturbação do juízo ético, já os alemães como
abstinência sexual forçada levaria a uma série de debilidade genotípica manifesta em um
transtornos. E o tratamento seria simples: comportamento moral rebaixado.
desobstruir a sexualidade, permitindo sua Os “simuladores de dupla personalidade”
manifestação livre, desde que higienizada e seriam indivíduos capazes de manter afastados
moralizada. impulsos ambivalentes mantendo esta cisão sob
Posteriormente, em 1941, na obra Psicologia da controle, como se dois espíritos habitassem o
personalidade: guia de orientação psicológica, Kehl (1959) mesmo corpo. Mostra exemplos de personagens
vai aprimorar seus perfis de personalidade históricos reais e ficcionais. Na Inglaterra era
incluindo subdivisões, outras psicopatologias, bem conhecido na época Jonathan Wild, um famoso
como formas de intervenção para evitar a investigador de polícia infalível em recuperar
proliferação desses tipos, além de um capítulo roubos. Autoridades descobriram que ele mesmo
sobre os super normais, indivíduos de altas era o ladrão. Na ficção um bom exemplo seria o
qualidades eugênicas por seu caráter, inteligência e Dr. Jekill e Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson.
conduta. Os “amantes da dor”, também chamados de
Os tipos de personalidades vulgares e “algofílicos e algomaníacos” seriam pessoas que
psicopatologias apresentados na classificação desta não mantêm a tendência natural de evitar o
obra são: sofrimento. Os algofílicos seriam os masoquistas
Desalmados; frívolos e fúteis; simplórios e passivos e os algomaníacos os que imporiam o
simplistas; ousados e tímidos; perversos; sofrimento ao outro. Não chegariam a ser sadistas
mistificadores; simuladores e dissimuladores; e masoquistas propriamente, mas pessoas que
simulação de dupla personalidade; rotineiros e carregariam estes componentes na personalidade.
conservadores; ressentidos e despeitados; amantes Essas manifestações psicopatológicas não seriam
da dor; criancelhos; intolerantes; paranóicos e apenas de ordem sexual, mas também pessoas que
paranódes; abúlicos e mendigos; vulgaristas; impõem-se sofrimentos como suplícios corporais,
monoideistas e fobistas. (Kehl, 1959, p. 23) jejuns prolongados para uma suposta purificação
Aqui há uma aproximação com a da alma. A agressividade humana, relata Kehl, seria
psicopatologia clássica, além de repetir as fruto do medo, ou seja, uma reação natural ao
personalidades já apresentadas na obra anterior. sentimento permanente de ameaça. Os ataques não
Os “perversos” eram descritos como pessoas apenas físicos, mas também espirituais, seriam até
invejosas que, pelo seu sentimento, pretenderiam mesmo aceitos pela cultura. Os tabus religiosos
destruir o próximo e a sociedade, ofendendo, teriam transformado o amor em pecado; o
ferindo ou brutalizando os objetos invejados. Mas nascimento, fruto de um ato sujo e a morte em
eles tem certo grau de escrúpulos, e só reagiriam encontro com o dia do julgamento. Sob constante
quando provocados. Dentro desta psicopatologia ameaça, a tendência humana seria reagir com
haveria ainda subdivisões variando em graus de violência ora contra o outro, ora contra si mesmo
perversidade quantitativos e qualitativos. Há com a justificativa de purificar a alma e alcançar a
“perversos estilizados” dando um aspecto remissão dos pecados.
dramatizado a sua crueldade. Há ainda os Exemplos não faltariam também entre poetas e
“perversos obsessivos” que vivem no estado de filósofos. Entre os algofílicos estariam Casimiro de

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A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl 172

Abreu, Álvares de Azevedo, Junqueira Freire, longo de gerações. O limite entre o normal e o
Fagundes Varela, entre outros, que apresentariam patológico deveria ser novamente estabelecido,
toda a amargura de viver em seus escritos. Entre os afastando as concepções que pretenderiam turvar
algomaníacos cita o personagem Carlitos, de este limite. O oposto dos degenerados, os super-
Charlie Chaplin que criaria situações humilhantes normais, gênios ou eugênicos mentais não
para ofender os sentimentos estéticos e conspirar deixariam dúvidas sobre sua condição:
contra a paz social. Estes tipos amantes da dor o gênio se caracteriza implícita e explicitamente
sofreriam de uma patologia que os dificultaria a dar pela própria grandeza, pela própria força criadora
sentido a existência, ora humilhando o outro e a e vale pelo elevado grau de sentimento, de
sociedade ora rebaixando-se ou se auto agredindo. sensibilidade, de vontade, de perseverança e de
As tendências sado-masoquistas já apareceriam paciência que manifesta (...). Tendo pois em vista,
na infância mesmo em crianças normais, isto quer que os gênios são os heróis do pensamento, do
dizer que se trata de uma tendência natural do ser belo, do bom, do útil, participes da constelação
humano. Os amantes da dor teriam uma biológica que ilumina o céu do vasto anonimato,
como conciliar, dentro da lógica, genialidade com
dificuldade caracterológica a controlar esses
degeneração?. (Kehl, 1959, p. 244)
impulsos. Já o instinto de sobrevivência também
latente no ser humano o levaria a tender a Os gênios e os degenerados evidentemente
acumular riqueza para satisfazer suas necessidades afastar-se-iam da norma, nem por isso seriam
primárias. O capitalismo teria aí sua origem. semelhantes em essência. Alguns gênios realmente
Alguns indivíduos, no entanto perderiam a medida teriam reações psicopatológicas, no entanto isto
e desenvolveriam verdadeiras psicopatologias, não se daria devido à degeneração ou doença, mas
também frutos do medo de não conseguirem por desgaste pelo excesso de trabalho, por
superar as adversidades da vida. É o caso dos perseguições, pela hipersensibilidade emotiva, ou
avaros que no extremo se transformariam em outras asperezas da vida. Assim, nunca a real
paranóicos. Seriam pessoas combativas, ávidas por genialidade seria efeito da degeneração, mas uma
acumular riquezas e prestígio social, por isso variação superior do tipo médio. Kehl (1959)
seriam orgulhosas e arrogantes. Por temerem a analisa a biografia de três expoentes que se
perseguição, de algo ou alguém que ameaça retirar enquadrariam neste caso: Francis Galton, Charles
seus bens materiais ou imateriais são irredutíveis e Darwin e o filósofo Friederich Nietzsche. Não
avessos a negociações. Quando líderes, esses obstante seus tormentos, os três teriam em comum
paranóicos poderiam tornar-se assassinos cruéis. a originalidade, a crítica à mediocridade da cultura
Kehl (1959) enquadrou vários revolucionários contemporânea, a insubordinação aos tiranos, o
franceses nesta condição, como Jean Paul Marat e apreço pela liberdade, a sinceridade e a
Maximilien Robespierre, que desenvolveram uma perseverança, traços estes marcantes da
verdadeira “neurose revolucionária”. caracterologia dos “super-mentais eugênicos”. No
Visto esta imensa gama de degenerados, na caso mais controverso, o do filósofo alemão, todos
mesma obra Kehl descreve o que chamou de os seus infortúnios teriam sido devido a influências
protótipo de “super-mental eugênico”, ou aqueles mesológicas (não hereditárias) e por amor ao
que “reunindo qualidades ótimas, convergidas para pensamento livre. Não por vadiagem é que se
felizes complexos mentais, constituem a legítima desligou da universidade e isolou-se, abrindo mão
aristocracia humana” (Kehl, 1959, p. 239). Antes do comodismo, das convenções e tradições. Ele
faz um alerta. Sobretudo pela influência de Cesare preferiu pagar o preço da liberdade, o que o
Lombroso, a genialidade teria uma relação com a engrandece, mas seus críticos inutilmente tentariam
loucura. Isto ocorreria devido à vulgarização do desqualificar sua obra pela sua psicopatologia.
termo degeneração que invadiu outros domínios Provas da sua superioridade é que se manteve ativo
científicos como a criminologia, psiquiatria e até a intelectualmente e sua loucura eclodiu somente
crítica literária, perdendo a sua clareza. após os 40 anos de idade, do contrário esse traço o
Degeneração, para Kehl, significa deterioração teria acompanhado durante toda a vida, como nos
progressiva com perda dos bons caracteres ao degenerados.

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A. L. Masiero 173

O fato de um gênio nascer de uma união de um medidas educativas e ambientais, também


casal de medíocres ou o contrário não colocaria o ineficientes no Brasil, deveriam atuar impedindo
determinismo biológico em questão. Haveria sim que os indivíduos de boa ascendência fossem
uma tendência dos super normais e degenerados degradados pelo álcool ou pelas doenças,
gerarem semelhantes em grande número. O principalmente pela sífilis e tuberculose, bem como
restante seriam casos isolados devido à orientar o comportamento da juventude a evitar
variabilidade genética, uma questão estatística estes males.
facilmente explicável. Como os recursos para Na obra Tipos Vulgares, Kehl apresenta um
sobrevivência humana são limitados não valeria a esquema de identificação desse longo elenco de
pena pagar os custos sociais de muitos anormais deficitários morais:
para o surgimento de poucos superiores entre eles. Primeiramente dever-se-ia investigar as
Mais valeria oferecer apoio diferenciado aos constantes biopsicológicas ou fatores de
gênios. Aqui a Psicologia poderia oferecer seus predestinação da personalidade, hereditários e
maiores préstimos a humanidade, ao criar métodos congênitos. “Esses fatores seriam determinantes
para diferenciar os superiores dos inferiores. Para dos caracteres fixos exteriorizados e dos que se
subsidiar sua tese, apresenta os estudos mantêm latentes” (Kehl, 1958a, p. 136).
genealógicos de Galton e outros autores. Em segundo lugar considerar os fatores
Em um estudo de 1000 ingleses notáveis, o variáveis, mesológicos ou ambientais. Esses seriam
eugenista inglês teria verificado que 100 deles os desencadeadores das patologias latentes:
tiveram 31 pais eminentes, 41 filhos, 17 avós e 14 “Estímulos fisiológicos”: desordens glandulares,
netos igualmente notáveis. Já Woods demonstrara crescimento, idade sexual, idade crítica; “Estímulos
em um estudo genealógico com 3500 americanos psíquicos”: ambiente doméstico, escolar de ordem
notáveis que a proporção de geração de geral (crenças sugestões etc.) de ordem
inteligência superior seria de 1 para 5 nesta sentimental; “Estímulos econômicos e sociais”:
população, ao passo que entre os medíocres seria miséria, urbanismo, doenças intoxicações. Ele não
de 1 para 500 (Kehl, 1959, p. 248). Diferença tão apresenta uma fórmula para quantificar esses
alta assim não poderia estar associada ao ambiente. fatores e estímulos, no entanto, diz que uma
Assim, Kehl rebate críticas feitas à eugenia mental avaliação psicológica deveria ser assim
de que o combate à degeneração racial levaria desenvolvida de acordo com os conhecimentos da
indiretamente à diminuição dos notáveis também. caracterologia.
O que se faria no Brasil era justamente ao Analisando todos perfis psico-críticos, enfim,
contrário. Mobilizado por um sentimentalismo aparentemente pode-se concluir que Kehl é um
piegas e religioso, o estado brasileiro teria a crítico da civilização brasileira, pois visto a ampla
tendência à filantropia, acolhendo vagabundos, gama de anormalidades, poucos seriam
débeis mentais, loucos e degenerados de todo tipo considerados normais segundo esses parâmetros e
em instituições de caridade, onerando a parcela sã sendo a anormalidade uma questão biológica, uma
e trabalhadora da sociedade e assim incentivando a constante, como diz, pouco poderia ser feito. No
descendência defeituosa. Era o que chamava de entanto, Kehl apresenta ao longo de sua obra
“filantropia contra-seletiva”. Não que o estado psicológica uma série de intervenções para a
devesse deixá-los à própria sorte ou eliminá-los, correção do grave problema da degeneração
como em alguns países europeus. As políticas mental brasileira. Para ele, a crítica não bastava.
públicas deveriam sim exercer um controle
profilático dessas pessoas, retirando-os de A cura do espírito
circulação e impedindo a sua reprodução, pois o De forma muito mais restrita que a
dever do estado seria ajudar o que a natureza já identificação e tipologia das personalidades e
teria determinado, ou seja, a eliminação progressiva psicopatologias, Kehl (1954; 1958a) apresentará
dos deficientes. Pelas leis da evolução, os menos orientações para a formação do caráter e a “cura
adaptados tenderiam a desaparecer naturalmente, do espírito”. Parece que neste campo haveria
processo que a filantropia estaria impedindo. Já as muito menos a dizer. As suas orientações, ele deixa

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A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl 174

claro, só poderiam ter efeito naquelas pessoas que e desfavorecidos em outros, assim não há quem
já tivessem a capacidade de incorporá-las, mas que não tenha um potencial; II) Considerar-se simples
o ambiente não estaria favorável. Caso contrário, usufruturário da existência: Há um papel da vida
que não se encerra na existência individual, mas é
pouco poderia ser feito. Uma pessoa míope jamais
papel do homem cuidar das gerações futuras; III)
saberia de sua limitação se ninguém a dissesse e
Atender a consciência, ao foro íntimo: É
indicasse um par de óculos. No entanto haveria necessário que a consciência fique em paz consigo
pessoas que não compreenderiam este princípio mesma, assim é preferível afrontar o mundo para
básico e por mais que se fizesse recusariam a servir a consciência que o contrário; IV) Cuidar de
correção, permanecendo assim indefinidamente. A atender as exigências naturais: Em sinal de
melhor intervenção seria mesmo a eugênica, desconforto tentar averiguar quais exigências
impedindo o aparecimento dos degenerados naturais não estão satisfeitas; V) Não se absorver,
mentais por imposição do estado ou iniciativa dos isto é, não se dedicar obsessivamente ao problema
indivíduos instruídos na matéria, que se recusariam de gozar a felicidade: A felicidade não deve ser
perseguida diretamente, mas sim em passos
a coabitar e procriar com os tipos humanos que
gradativos pelo esforço individual; VI) Não se
descreve em suas obras.
iludir com as aparências da felicidade alheia: todos
Em sua obra Cura do espírito (Kehl, 1954) utiliza gozam e todos sofrem, assim não é possível fazer
o verbo “curar” não como sinônimo de “sanar” ou comparações, pois a felicidade não se apresenta
interromper um processo patológico. diretamente; VII) Esforçar-se para merecer e para
Aproximando-se do sentido latino, entende cura acrescentar mais alguns momentos felizes:
como “zelar, cuidar, tratar”. Curar e sanar em sua Considerar-se dotado de inteligência suficiente
obra são dois processos diferentes. O único para conquistar mais momentos de felicidade;
caminho para sanar uma deficiência seriam as VIII) Cultivar o amor próprio sem o exacerbar:
ações eugênicas profiláticas. Já as suas orientações Jamais julgar-se menos que os outros; IX) Guiar-
se pelo sentimento, atendendo à razão ou ao
necessitariam de um solo fértil para que pudessem
equivalente, viver pela razão, sem exagerar-se em
florescer. sentimentalismos: Buscar o equilíbrio entre a
Kehl (1954) não apresenta nenhuma prática razão e a emoção; X) Respeitar a lei de
psicológica clínica, restringindo-se a uma série de reciprocidade: Não fazer aos outros que não se
aconselhamentos e orientações médicas para o dia deseja que nos façam. Nunca contribuir para a
a dia aliada ao que chamou de hormono-vitamino- infelicidade alheia; XI) Estabelecer o programa da
terapia. Nesta obra parece oscilar entre um auto-suficiência: Não depositar a felicidade nas
pessimismo com a cultura nacional e esperança de mãos de outro; XII) Conquistar as chaves magnas
que a maioria dos infelizes assim o seriam devido do sucesso: a paciência, a calma e a moderação: A
paciência deve ser cultivada para melhor
ao meio desfavorável.
compreensão dos obstáculos da vida. Não deixar
Em sua obra a eugenia é a ciência do bom
que as paixões se sobreponham..
nascimento, já a eutenia é a ciência do
desenvolvimento das melhores contingências Estes doze princípios encerram três segmentos
ambientais. Importante notar que o segundo dos espíritos sãos e livres: o equilíbrio entre razão e
conceito aparece, sobretudo, em sua obra emoção; a auto-regulação, isto é, imune ao
psicológica. Ambas teriam as mesmas metas, ressentimento o espírito são conhece seus deveres
oferecer condições ao individuo para o seu sem precisar de algo que o mande. Kehl, na mesma
desenvolvimento rumo a felicidade. obra, vai dedicar uma extensa reflexão sobre o
Bloqueados biologicamente, ou não, Kehl espírito sadio, visto sua importância para a
(1954, p. 43-8) oferece doze estratégias gerais para "medicina do espírito". Problema explorado por
confortar os espíritos desajustados ou desenvolver Nietszche, em Genealogia da Moral, o ressentimento
os bons espíritos latentes, mas carentes de um é caracterizado por uma ruminação mental
ambiente propício: decorrente de alguma ofensa não respondida a
altura. Este sentimento poderia tomar uma
I) Julgar-se razoavelmente aquinhoado: Todos os
proporção que acabaria por intoxicar a alma,
indivíduos razoavelmente bem conformados
biologicamente são favorecidos em alguns pontos invertendo os valores civilizados. O ressentido,

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A. L. Masiero 175

fixado em um fato ou pessoa, poderia ser tomado controle instintual no século XIX: a eugenia e a
por desejos desde simples malquerença até a uma psicanálise. Essas duas práticas fundadas em
vingança sanguinária. Ele seria incapaz de passar discursos sobre o instinto permitirão à Psiquiatria
ao largo de uma decepção, odiando um objeto estender suas ações para além dos muros
anteriormente amado, ou o contrário se isso manicomiais. É o que ocorre na psicopatologia de
servisse de alento. Kehl defende que o Renato Kehl. Toda sua classificação
ressentimento deveria figurar nos tratados de psicopatológica é voltada às práticas de controle
psicopatologia. social, as quais, como vimos, deveriam ser
Como conclusão Kehl (1954) oferece a sua conduzidas pelos indivíduos comuns esclarecidos
“farmácia do espírito”, um conjunto de ditos ou cientistas especializados que orientariam as
breves, preceitos morais, máximas educativas, políticas públicas para a loucura e para toda a sorte
aforismos filosóficos e conceitos eugênicos, como de anormalidades. Mas essas tecnologias não
se fossem frascos de medicamentos, mas para o surgiram espontaneamente, nem foram frutos de
espírito. Estes "medicamentos" seriam indicados descobertas propriamente científicas da psiquiatria,
para facilitar o caminho da auto-análise, uma vez antes, foram resultado das engrenagens de poder
que os núcleos neuróticos não poderiam ser (Foucault, 2001). Ao se fundar nas ciências
reconhecidos diretamente, mas somente com naturais a Psiquiatria fornecerá elementos
muito exercício de autocrítica. aparentemente inequívocos para a criminologia, na
Para tanto, orienta que o leitor procure medida em que definirá o limite imputabilidade
identificar os seus próprios desajustes, estabeleça criminal, isto é, onde começa e termina a
um propósito de autocura, o que chama de responsabilidade do sujeito por seus próprios atos.
"hormônio psíquico revigorador" (Kehl, 1954, p. As classificações das anormalidades criadas por
132) e por fim procure criar os próprios recursos Kehl pretendiam resultar em uma psiquiatria e
auto-sugestivos, precavendo-se de futuros ataques psicologia (ele não faz uma grande distinção entre
das paixões subconscientes. A saúde mental essas ciências) eugenista, afim de recolocar em
consiste em aprender a criar administrar os ordem os atributos mentais e morais do brasileiro,
próprios remédios para o espírito. em vias de degeneração.
A chamada caracterologia, base da psicologia
Tecnologias do instinto do eugenista, era uma tecnologia que permitiria, a
No século XIX surge um novo problema para a partir da análise de traços explícitos do
psiquiatria, fundamental para delimitar a fronteira comportamento e da fisionomia, verificar como o
entre o normal e patológico: os instintos. Segundo instinto se revelaria em um indivíduo. Evidente
Foucault (2001) é a noção de instinto que permitirá que todos carregariam os mesmos instintos, mas a
à Psiquiatria ser inscrita na problemática biológica, expressão deveria ser diferente em cada um e em
mais especificamente no evolucionismo darwinista. alguns essa expressão revelaria suas anormalidades.
Mesmo a Psiquiatria estando estabelecida como
especialidade médica, ainda faltava-lhe algo que de Conclusões
fato a incluísse nas ciências naturais, escapando das Embora sua obra psicológica seja extensa e
noções metafísicas, como a alma. O delírio, como destinada a transformação psíquica individual e
o outro da razão, conceito caro a Psiquiatria, não cultural, Kehl nunca atuou como clínico. Toda a
foi suficiente para essa função. Os instintos sua obra é especulativa e derivada da colagem de
revelados pelo evolucionismo apontavam um uma infinidade de filósofos, cientistas, médicos
verdadeiro perigo à cultura e isso exigia uma etc.. Nas obras analisadas ele apresenta uma série
resposta da medicina. A sexualidade e a de esquemas de exame mental, porém, não
agressividade, dois instintos primários e aplicados por ele nem sistematizados a partir de
reveladores da face animal do humano, se não pesquisa experimental no ambiente brasileiro. Isso
controlados poderiam causar sérios danos à se deve também ao momento histórico pré-
constituição racial de um país. Assim, aponta experimental em que se encontrava a psicologia
Foucault (2001), criaram-se duas tecnologias de brasileira. Suas qualidades residem muito mais na

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A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl 176

forma com que consegue encaixar conhecimentos razão para Kehl empreender sua crítica cultural ao
de diferentes domínios como a caracterologia, a Brasil. O que diria sobre os costumes nacionais se
criminologia, a filosofia, a medicina, que tudo fosse pré-determinado? E o sujeito, como
propriamente de suas próprias descobertas. Ele poderia ser responsabilizado se suas ações fossem
não apresenta nenhuma tese original nem qualquer pré-determinadas pela hereditariedade? Assim, é na
invenção, mas suas habilidades literárias, sua sua obra psicológica que seu reducionismo e
capacidade argumentativa, e sua erudição são determinismo biológico são colocados à prova. Se
inegáveis. Suas análises de personagens históricos e a manipulação do meio, a que chama de eutenia,
literários são interessantes para a época e talvez fosse inútil para prover o indivíduo de boas
por isso tenha chamado a atenção de vários condições para o seu desenvolvimento, as ciências
escritores, entre eles, Monteiro Lobato. psicológicas não teriam motivo de existir. Tudo
O fato de não ser propriamente um teria de ser resolvido pela regulação da reprodução
pesquisador nem um clínico é a causa de humana. Sua solução foi hierarquizar o biológico, o
aproximar-se do neolamarckismo, defendendo a individual e o ambiental, nesta ordem, e retirar a
tese da herança de caracteres psicológicos nova e promissora ciência da Psicologia das
adquiridos em uma época em que esse conceito já amarras da metafísica. Ao explorar os
estava superado. Isso pode levar-nos a concluir determinantes individuais e ambientais das
que se trata de um autor sem grande importância psicopatologias e desvios morais, procurava
para a história da psicopatologia brasileira responsabilizar o individuo sem deixar de lado o
moderna. Engano. Sua defesa radical do determinismo biológico. Caso contrário, ninguém
determinismo biológico o aproxima de certas poderia ser responsabilizado por seus próprios
classificações psicopatológicas atuais indicando que atos, ou seja, a engrenagem poder-saber (Foucault,
no Brasil outrora esta concepção já fora bastante 2001) não se encaixaria.
presente, o que a rigor pouco se modificou. Pode-se dizer que sua Psicologia é pessimista,
Embora as categorias psicopatológicas atuais sejam pois aceita a idéia da modelagem comportamental
bastante diferentes das de Kehl, o sistema de maneira restrita, restando pouco espaço ao
taxionômico é praticamente o mesmo. A sua desejo individual e ao ambiente, ao contrário das
Psicologia atendia prontamente as necessidades e correntes behavioristas e psicanalistas então em
aspirações culturais brasileiras e estava ascensão no período em que escreve. Para ele, o
perfeitamente sintonizada com a psicopatologia indivíduo é pouco moldável, por isso insiste na
mundial. manipulação das características da espécie, como
Ele pode ser entendido também como um uma tecnologia (Foucault, 2001). Assim o conceito
pioneiro da Psicologia Evolucionista no Brasil, isto de personalidade aparece como uma constante e
é, uma psicologia que busca na seleção natural não variável.
darwinista a explicação das propriedades mentais Em um viés predominante pedagógico, passa
(inteligência, memória, afetividades etc.) e para os ao largo das práticas clínicas. É compreensível. O
comportamentos normais e desviantes. Segundo manejo clínico em psicologia e psicopatologia é
esta leitura, os comportamentos que mais geraram quase que exclusivamente ambiental e mental. Se
benefícios à sobrevivência do homem, tenderam a investisse nesse assunto feriria a hierarquia entre
permanecer, enquanto os prejudiciais tenderam a biológico, individual e ambiental.
desaparecer. As anormalidades, portanto, seriam Para alcançar seus objetivos então elabora uma
momentos de adaptação da espécie, como se a série de lições de como proceder na vida cotidiana
natureza estivesse testando um novo modelo de para se alcançar a felicidade, o que de certa forma
comportamento para verificar sua funcionalidade o aproxima também da literatura de autoajuda
na manutenção da vida, interesse de toda a espécie. atual. Porém, são lições que só poderiam ser
No entanto, encontra um grande obstáculo aproveitadas pelos espíritos elevados. Muito faria a
quando trata da raiz moral das psicopatologias, psicologia pela humanidade se conseguisse evitar
como o ressentimento. Sendo os comportamentos que os indivíduos bem conformados
e os desvios moldados biologicamente não haveria biologicamente fossem maculados pelos venenos

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A. L. Masiero 177

da raça. uma vez que empreendera técnicas exclusivamente


Kehl tem muitas influências da Psicanálise, psicológicas para tentar sanar o sofrimento mental.
embora não admita diretamente, principalmente no Nos Estudos sobre histeria (1996), publicado pela
tocante a naturalização e "desmoralização" da primeira vez em 1895, Freud expõe uma série de
sexualidade. Conceitos como subconsciente, casos clínicos tratados com hipnose. Iniciava uma
inconsciente, sexualidade, recalque, sublimação e busca por um modelo mental autônomo. A análise
instinto estão presentes no dinamismo das do ressentimento em Kehl é equivalente a da
psicopatologias e desvios de conduta que descreve, histeria em Freud. Os afetos não encaminhados
mas tudo isso é síntese de um substrato biológico. adequadamente ficam represados no inconsciente
Como previu Foucault (2001), é isso que permitirá individual e acabam sendo desviados para outras
a inscrição da Psiquiatria na ordem discursiva metas, formando assim os sintomas.
naturalística. Individualista, para Kehl as verdadeiras virtudes
A luta entre os poderes naturais do instinto e as não poderiam ser alcançadas esperando-se atitudes
exigências da cultura também é marcante em sua do outro ou empreendimentos coletivos. Dever-se-
obra. Como em Freud (2010), a privação sexual da ia atender prioritariamente a própria consciência,
moral civilizada cristã é motivo de muito mesmo que isso fosse contra a unanimidade. De
sofrimento desnecessário e misticismo. Em sua nada valeria estar de bem com o mundo, mas
"farmácia do espírito", Kehl afirma que parte da desconfortável com a própria consciência. Isso
vida saudável consiste em dar vazão aos chamados equivale ao vício da hipocrisia. O brasileiro não
da natureza. A sexualidade, como a fome, deve ser teria a habilidade empreendedora individual e as
satisfeita para uma vida plena e normal. O tipo formações coletivas decorreriam da sua
psicopatológico dos "castos forçados", um ataque incapacidade de posicionar-se criticamente. Os
indireto ao catolicismo, seria um exemplo de grave bajuladores, tão comuns nas instituições nacionais,
desvio de conduta. Isso é o que ocorre quando a seriam exemplos deste vício.
moral civilizada tem um suporte religioso e não O projeto científico de homem e cultura
cientifico, como no Brasil. Kehl, em nenhum nutrido pela modernidade exige a segmentação e a
momento, coloca a religiosidade como necessária a ordenação dos fenômenos. As doenças mentais e
integração cultural nem para condução da vida desvios comportamentais não podem escapar a
privada. Para ele, como em outros pensadores este projeto. Ao segmentar e ordenar, o projeto
brasileiros do início do século XX, a religiosidade é moderno de homem, do qual Kehl é mais um
incompatível com a racionalidade, como se uma representante, cria ao mesmo tempo os seus
invadisse o campo da outra e a subjugasse. Ele "outros", isto é, os seus contrários, gerando assim
propunha assim substituir a repressão dos uma série interminável de ambigüidades (Foucault,
instintos, por uma “tecnologia do instinto” 2001). Para todo anormal – inúmeros tipos que
(Foucault, 2001). pesam sobre a sociedade – há o que Kehl chama
Ele nega toda a subjetividade e coloca o papel de supernormal, ou seja, superiores responsáveis
do sujeito em segundo plano no direcionamento por resolver os problemas que os primeiros
de seu destino. Kehl, assim, aproveita a crítica geraram, garantindo assim o equilíbrio social. Em
cultural psicanalítica, mas não o seu determinismo sua obra, as mazelas sociais do Brasil seriam
mental, tampouco a metapsicologia freudiana. decorrentes de um desequilíbrio nesta equação.
Evidentemente Kehl prescindia do determinismo Um dos problemas que a clínica psiquiátrica
mental de Freud em função do determinismo e enfrenta atualmente, devido a segmentação do
reducionismo biológico, por isso os termos fenômeno do sofrimento mental humano, é a
inconsciente e subconsciente não são conceituados duplicidade diagnóstica. Algumas classificações
e aparecem somente como adjetivos e não como psicopatológicas dos manuais diagnósticos são tão
substantivos. Talvez por não aproveitá-la próximas que na prática clínica não se observa
integralmente é que opte por não mencioná-la grandes diferenças. Por outro lado outros modelos
diretamente. É bastante conhecida a crítica de epistemológicos já desistiram da empreitada da
Freud ao determinismo e reducionismo biológico, segmentação e pouco se importam com o nome

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A psicopatologia na obra de Renato Ferraz Kehl 178

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