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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Selma Correia da Silva

O sofrimento de adolescentes internados:


a escuta psicanalítica na clínica do cuidar

Rio de Janeiro
2001
Selma Correia da Silva

O sofrimento de adolescentes internados: a escuta psicanalítica na clínica do


cuidar

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre, ao
Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.

Orientadora: Profa. Dra . Sonia Alberti

Rio de Janeiro
2001
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A

S586 Silva, Selma Correia da.


O sofrimento de adolescentes internados : a escuta
psicanalílica na clínica do cuidar / Selma Correia da Silva. - 2001.
112 f.

Orientadora: Sonia Alberti.


Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Psicologia.

1. Psicanálise. 2. Doenças orgânicas crônicas. I. Alberti,


Sonia. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Psicologia. III. Título.

CDU 159 964 2

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta dissertação, desde que citada a fonte.

________________________________ _____________________
Assinatura Data
Selma Correia da Silva

O sofrimento de adolescentes internados: a escuta psicanalítica na clínica do


cuidar

Dissertação apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Mestre,
ao Programa de Pós-Graduação em
Psicanálise, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Pesquisa e Clínica em Psicanálise.

Aprovada em 19 de dezembro de 2001.


Banca Examinadora:

_____________________________________________
Prof.ª Dra. Sonia Alberti (Orientadora)
Instituto de Psicologia - UERJ

_____________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge
Instituto de Psicologia - UERJ

_____________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Cristina de Figueiredo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2001
DEDICATÓRIA

À minha mãe pela sua dedicação amorosa,


cuja atenção me confortou neste período de
produção.

Ao Dr. Frederico W. de B. Baumann, que, ao


escutar as queixas clínicas de seus pacientes
pode auscultar um sofrimento agudo do
coração. Suas histórias trasmitem a sabedoria
de um médico que há muito cuida de doenças
orgânicas.

À Brenda, por retratar o ideal da juventude na


beleza da adolescência.

À Suzana, irmã e amiga, pela cumplicidade de


sempre, principalmente na fase final desta
dissertação, quando o aconchego de sua casa
favoreceu meus estudos.

Ao meu pai, meus irmãos, Sonia, Solange e


Sergio, meus cunhados Gilberto e Gloria, pela
admiração com que cada um, em sua
particularidade, teceu um fio do meu percurso
profissional. Às meninas Melina, Clarissa e
Bárbara, que torceram para o término desta
dissertação.
AGRADECIMENTOS

Professores do Programa de Pós-graduação em Psicanálise do Instituto de


Psicologia da UERJ, pela competência e mérito na constituição do Curso de
Mestrado; Faperj, pelo suporte financeiro à minha pesquisa.
Professora Sonia Alberti, Coordenadora do Curso de Mestrado, que, ao
testemunhar meu desejo de sustentar a clínica psicanalítica no hospital, me
incentivou à realização da pesquisa universitária, orientando-me nesta dissertação.
Professores Marco Antonio C. Jorge, pela sensibilidade nas aulas, permitindo-
me fazer uma ponte entre a escuta psicanalítica do sofrimento e a arte e Ana
Cristina Figueiredo, por sugerir a direção de minha pesquisa no eixo
psicanálise/medicina.
Professor José Henrique W. Aquino, Coordenador da Enfermaria do Núcleo
de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA, pela ponderação, tolerância e
sensibilidade no trato não só com os pacientes, mas também com a equipe de
Saúde Mental – atributos essenciais de um profissional que conduz um espaço
institucional marcado pelo sofrimento físico e psíquico.
Serviço de Saúde Mental do NESA: Marília Mello de Vilhena, Simone Pencak,
Suyanna Linhales Barker, pelo respeito ao meu trabalho e pelo impulso na
realização deste Mestrado, e Vera Pollo, em particular, pelo apoio na leitura crítica
deste texto.
Professores José Augusto da S. Messias, pela transmissão dos ensinamentos
nas visitas médicas, e Maria Cristina C. Kuschnir, por prestar atenção nas
intervenções psicanalíticas trazidas para discussão na Enfermaria do NESA,
principalmente nos casos desta dissertação.
Professora Eloisa Grossman, Coordenadora da disciplina “Medicina de
Adolescentes”, que me possibilitou muitos conhecimentos sobre as doenças
orgânicas crônicas, no Ambulatório de Nefrologia.
Professora Maria Helena Ruzany, Diretora do NESA, por apreciar meu
empenho profissional na clínica com os adolescentes; Mariângela Giana de A. G.
Ribeiro, Coordenadora do Ambulatório do NESA, pelo reconhecimento que atribui ao
meu trabalho.
Luiz André Vieira Fernandes, médico, e Mônica Vicente da Silva, assistente
social, pela competência profissional, cuja saída da Enfermaria do NESA deixou
saudades; Solange Araújo Câmara, fisioterapeuta, pela parceria nos assuntos
pertinentes ao cotidiano hospitalar dos adolescentes internados.
Equipe de Enfermagem, com destaque para os mais chegados, e de
Recreação do Nível Terciário, pela interlocução do dia-a-dia sobre o ânimo dos
pacientes; Equipe Multidisciplinar do Nível Secundário, pelo incentivo à minha
permanência no NESA, em especial os médicos Flávio Roberto Sztajnbok e Isabel
Cristina da S. Bouzas; Equipe do Nível Primário e Pessoal da Área Administrativa
do NESA, pelo carinho dos que se fazem presentes.
Mauro Leonardo S. C. dos Santos, amigo a quem atribuo uma significação
especial pela incansável escuta durante a fase final do Mestrado e pelas valiosas
sugestões dignas de um Doutor na Clínica do Cuidar.
Célia Maria dos Santos, Rejane Maurell, Sandra Berardinelli e Simone
Pencak, queridas amigas, que souberam, com carinho, esperar o meu retorno aos
nossos encontros prazerosos.
Georgina Maria R. F. Cerquise e Yara de A. Lemos, pelo companheirismo
durante o percurso do Mestrado.
Magali S. P. R. Penna, pelas palavras de sensatez nas horas difíceis; Mari de
Souza Gomes e Priscila de S. G. Feitosa, pela paciência no auxílio da digitação
deste trabalho; Soraya Goulart, pelo refinamento na revisão final do texto.
Numa carta escrita em 10 de maio de 1923 a Lou Andréas-Salomé,
Freud confessa seu cansaço em relação às agressões físicas
sofridas por causa de seu câncer de mandíbula que não cessa de se
espalhar e que ainda lhe acarretaria múltiplas operações dolorosas:
‘Partilho completamente da sua opinião sobre o desamparo que
experimentamos diante dos males físicos particularmente dolorosos;
como você, igualmente, acho-os desesperadores e, se pudéssemos
atribui-los a alguém pessoalmente, ignóbeis.

Sigmund Freud

(cf. MANONI, M. O nomeável e o inomeável: a última palavra da vida.

Rio de Janeiro: Zahar, 1995.)


RESUMO

SILVA, Selma Correia da. O sofrimento de adolescentes internados : a escuta


psicanalítica na clínica do cuidar. 112 f. Dissertação (Mestrado em Psicanálise) –
Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2001.

A possibilidade de uma intervenção psicanalítica na “clínica do cuidar”, bem


como a escuta de adolescentes cujo sofrimento causado pela doença crônica exige
a hospitalização, são as duas questões centrais desta dissertação. Nossa pesquisa
tem início na análise da estrutura da clínica psicanalítica que é sustentada na
Enfermaria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA/UERJ. Faz-se
um percurso pela teoria lacaniana da fase do espelho, como base da identificação
especular, para que, em seguida, se possa verificar de que modo o “mandamento do
amor ao próximo” está presente no ato de cuidar. Com Freud, coloca-se em primeiro
plano a questão libidinal relativa ao processo da doença física. Destaca-se também
o conceito freudiano de inibição que fundamenta a explicação das modalidades de
retração da libido. O debate psicanalítico sobre a influência do inconsciente e as
alterações que ele provoca no quadro da doença orgânica traz uma contribuição à
clínica médica. A ausência de investimento libidinal afetivo nas figuras parentais, na
clínica com adolescentes cujo corpo está adoecido, é o ponto em que este trabalho
se conclui, demonstrando que para alguns adolescentes esta é a principal razão de
seu óbito.

Palavras-chave: Psicanálise. Doenças orgânicas crônicas. Clínica do Cuidar.


Escuta de adolescentes. Tristeza. Equipe multidisciplinar e
medicina.
RÉSUME

SILVA, Selma Correia da. La souffrance de l'adolescent hospitalisé: l'écoute


psychanalytique dans la clinique du soin . 112 f. Dissertação (Mestrado em
Psicanálise) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2001.

La possibilite d’une intervention psychanalytique dans la “clinique du soigner”,


ainsi que l’écoute des adolescents dont la souffrance causée par une maladie
chronique éxige l’hospitalisation sont les deux questions centrales de cette
dissertation. Notre recherche commence par l’analyse de la structure de la clinique
psychanalytique qui se tient dans l’ Infirmerie du Noyau d’Études sur la Santé de
l’Adolescent / NESA/ UERJ. On fait un parcours dans la théorie lacanienne de la
phase du miroir comme la base de l’identification spéculaire pour qu’on puisse
vérifier ensuite le mode dont le “commandement de l’amour di prochain” est présent
dans l’acte du soigner. Avec Freud, on met au premier plan la question libidinale qui
tient au processus de la maladie physique. On relève aussi le concept freudien d’
inhibition qui fonde l’explication des modalités du retrait de la libido. Le débat
psychanalytique sur l’influence de l’inconcient et les altérations qu’il promeut dans le
cadre de la maladie organique apporte une contribution à la clinique médicale.
L’absense d’un investissement libidinale affectif sur les figures parentales dans la
clinique avec les adolescents dont le corps est malade est le point sur lequel ce
travail trouve une conclusion, en démontrant que pour certains adolescents celle-ci
est la cause majeure de leur décès.

Mots-clés: Psychanalyse. Maladies organiques chroniques. Clinique du soigner.


Écoute des Adolescents. Tristesse. Équipe multi-disciplinaire.
Medécine.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 10
1.1 Psicanálise na Enfermaria de Adolescentes ...................................... 10
1.2 Psicanálise na “reunião das segundas-feiras” .................................. 15
1.3 Alice no reino das pedras .................................................................... 18
2 O AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR .............................. 25
2.1 Clínica do cuidar ................................................................................... 25
2.2 O cuidar como escuta a doentes jovens ............................................ 27
2.3 O amor ao próximo ............................................................................... 34
2.4 O próximo-estranho: Fábio precisa de um “pai-drinho” .................. 39
3 A TRISTEZA NO LEITO ......................................................................... 46
3.1 Doença e inibição ................................................................................. 46
3.2 Depressão e sua tristeza ...................................................................... 50
3.3 “Mais um caso perdido”: Camila no leito 10 ...................................... 53
4 A DOR QUE PETRIFICA ....................................................................... 58
4.1 Dor física e dor psíquica ...................................................................... 58
4.2 Elisabeth: a dor da conversação ......................................................... 63
4.3 Alice: a dor que petrifica ...................................................................... 71
5 A DEMANDA PELO GRITO ................................................................... 76
5.1 Eritromelalgia: psicossomática e literatura médica .......................... 76
5.2 Eritromelalgia: a sabedoria do corpo e o inconsciente .................... 82
5.3 O grito da eritromelalgia ...................................................................... 84
5.4 O grito aspirado de Ricardo ................................................................ 94
CONCLUSÃO ......................................................................................... 101
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 106
10

INTRODUÇÃO

1.1 Psicanálise na Enfermaria de Adolescentes

Esta dissertação visa a discutir o possível da intervenção psicanalítica na


clínica com adolescentes afetados pelo sofrimento orgânico crônico, internados na
Enfermaria do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA 1, do Hospital
Universitário Pedro Ernesto/HUPE, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
UERJ. Nossos interlocutores são profissionais que trabalham em filosofia de equipe
multidisciplinar, tais como: médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, assistentes sociais,
nutricionistas e recreadores – todos exercendo suas atividades na clínica do cuidar.
A implantação de atividades psicanalíticas na Enfermaria do NESA
testemunha uma década de nossa trajetória profissional, que teve início nesse
Instituto quando éramos alunas do Curso de Especialização, em Psicologia Clínica,
na UERJ. Em 1991, ao freqüentarmos a disciplina “Psicologia Institucional”, tivemos
a oportunidade de participar de intercâmbio entre aquele Curso e o NESA.
Sob a coordenação da Professora Sonia Alberti, três especializandas 2 foram
estagiárias de um projeto piloto3, voltado para o público adolescente, que objetivava
desenvolver atendimento psicanalítico em nível secundário de assistência –
Ambulatório –, sem deixar de considerar a possibilidade de ampliá-lo, num futuro, à
assistência terciária – Enfermaria.
No final do estágio, fui convidada, por membros do Setor de Psicologia (Dulce
Maria Fausto de Castro e Suyanna Linhales Barker), a permanecer na Unidade de
Adolescentes, para dar continuidade ao trabalho, bem como a assumir o

1 O Serviço teve origem como Unidade Clínica de Adolescentes/UCA, em 1974, e, em 1995, passou à
categoria de Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA.

2 Selma Correia da Silva, Jane da Rocha Cruz e Hilma H. Silva estagiaram quatro meses na Unidade
Clínica de Adolescentes/UCA.

3 Originalmente, aquele projeto intitulava-se “Estudos de alguns fenômenos que tangem o ato e a
inibição, na psicanálise aplicada à clínica institucional do adolescente, visando à área de psicologia
do adolescente num curso de especialização”, tendo sido financiado, sob esse título, pela FAPERJ,
de novembro de 1990 a outubro de 1991.
11

atendimento nos ambulatórios de especialidades médicas (pré-natal e doenças


orgânicas crônicas). Esse convite estendeu-se à Enfermaria, onde havia
necessidade da escuta do sofrimento psíquico dos sujeitos adolescentes.
Naquela ocasião, a clínica psicanalítica no Ambulatório de Adolescentes já
contava com o atendimento de uma profissional da área de psiquiatria (Simone
Pencak). Porém, na Enfermaria, em particular, algumas profissionais da área de
psicologia e psiquiatria haviam exercido sua clínica, mas lá não permaneceram
pelos mais variados motivos: dificuldades de integração com a equipe
multidisciplinar e na escuta dos pacientes; falta de vínculo institucional, dentre
outros.
Fomos instigados, então, a pesquisar, através de levantamento bibliográfico,
como foi a inserção do psicanalista no hospital. Constatamos que, tradicionalmente,
ele iniciava suas atividades, voltando-se para as áreas da psiquiatria ou para outras
muito específicas – pacientes terminais e pediátricos –, como mostram as pesquisas
de Raimbault (1977), no seu livro A criança e a morte.
O âmbito da pediatria e o da adolescência foram porta de entrada no hospital
geral para psicanalistas exercerem sua prática, como na França. Françoise Dolto
(1971), por exemplo, dedica aos pediatras o seu livro Psicanálise e pediatria, no qual
menciona seus primeiros casos clínicos atendidos na época em que mantinha
consultas médico-pedagógicas no hospital geral. Já na Inglaterra, Winnicott (1978)
foi divulgador dessa clínica, como registram os textos de seu livro Da pediatria à
psicanálise.
No Brasil, em Belo Horizonte, um grupo de psicanalistas tem inserção no
Hospital Geral Mater Dei, coordenados por Marisa Decat de Moura, também
organizadora dos livros Psicanálise e hospital (1996) e Psicanálise e hospital – a
criança e sua dor (1999).
Nem sempre é tarefa fácil implantar atividades da clínica psicanalítica numa
instituição hospitalar, uma vez que exige escuta tolerante, que implica enfrentar
resistências, frustrações, e confrontos de impossibilidades. O profissional esbarra
com os limites de sua prática, surgindo muitos questionamentos do tipo “o que faz
um psicanalista num território alheio ao seu saber?”
12

Em 16 de fevereiro de 1966, em mesa redonda realizada no Colégio de


Medicina, na Salpêtrière, Lacan refere-se ao lugar marginal da psicanálise sob o
ponto de vista da medicina, que atribui ao psicanalista uma função de ajuda
semelhante à do psicólogo. Assim, caberia ao médico convocar o psicanalista
quando o seu saber se esgota diante da demanda do enfermo, a qual está para
além de qualquer resposta possível da medicina.
Dessa maneira, a psicanálise, inicialmente, fez sua entrada nos ambulatórios
de especialidades médicas do NESA, sob a ótica da medicina, para “desempenhar
sua função” de ajudar o médico e os demais profissionais de uma equipe
multidisciplinar de saúde. Porém, coube-nos decifrar que pedido era aquele; só
assim poderíamos concernir nossa função não só no Ambulatório, mas também, e
em especial, na Enfermaria.
O NESA apresentava uma demanda forte para a realização de grupos com os
pacientes portadores de doenças orgânicas crônicas. Nossa experiência anterior
confirmava que tais atividades se mostram comuns em hospitais da rede pública do
Rio de Janeiro. Na própria instituição, encontramos, durante pesquisas, um
documento intitulado “Atenção integral ao adolescente” cujo teor se reportava às
propostas de realização de grupos informativos e de reflexão com adolescentes
cardiopatas. Nos grupos, os sujeitos são identificados a partir do significante que
nomeia o diagnóstico – cardiopatia, nefropatia, alergia, etc.; dessa forma, essas
intervenções velam a estrutura subjetiva que é particular a cada um, como se
pacientes com o mesmo diagnóstico pudessem vivenciar a doença de forma
idêntica.
Após atestarmos a importância da escuta individual, tanto no nível secundário
quanto no terciário, começamos o atendimento. Daí, os grupos que têm sua eficácia
terapêutica ficaram a cargo do Serviço Social. Essa questão marca uma posição
diferenciada do que propomos no NESA. Ressaltamos que a ética da psicanálise – a
do bem dizer – diz respeito ao sujeito do inconsciente, ou seja, à escuta de sua
particularidade.
A colocação de Clavreul (1983) sobre a significação da palavra “sofrimento”
vem ao encontro de nossas proposições: ela permite abarcar dor física e psíquica,
pois não há como separá-las. O autor (idem) faz um alerta quanto ao que a medicina
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não pode ler no corpo para além do olhar médico, o que levou à indagação com a
qual iniciamos esta pesquisa: o que é um corpo a partir da psicanálise?
A partir do conceito de pulsão, a psicanálise concebe a questão do corpo
referido ao desejo; este não se reduz às necessidades biológicas. Freud (1915)
teoriza a pulsão como situada entre o psíquico e o somático; ela seria o
representante psíquico de forças somáticas e de estímulos orgânicos. Em textos
posteriores, diferencia a pulsão de seu representante psíquico.
Lacan, nos anos 50, localiza a pulsão em termos de significante, ao dizer que
o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Em 1953, no “Discurso de
Roma”, o autor faz menção ao corpo como linguagem: esta antecede ao corpo
próprio, pois habita os órgãos e lhes dá uma função. O corpo é definido como algo
que traz a marca do significante. Portanto, a psicanálise tornou possível não
confundir corpo com organismo. Se o corpo é linguagem, possui a mesma estrutura
do inconsciente.
O cotidiano da Enfermaria do NESA vem corroborar tal assertiva lacaniana:
as doenças, ao irromperem no organismo, afetam o corpo da linguagem, o que
implica dizer que o sujeito, ao vivenciar o mal físico, experimenta a influência do
inconsciente.
A clínica psicanalítica no hospital, principalmente com pacientes portadores
de doenças orgânicas crônicas, confronta-se com a dificuldade de esses sujeitos
fazerem demanda de análise. O surgimento de uma doença aliado à internação são
fatores que interferem, na maioria dos casos, no surgimento das idéias espontâneas
do paciente, isto é, da associação livre.
Freud (1924), no texto “O problema econômico do masoquismo”, alerta que
“uma neurose poderá desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um
casamento infeliz, perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica
perigosa” (Freud, S., idem: 207). Essa afirmação merece um esclarecimento: se, por
um lado, a doença afasta os sintomas neuróticos, por outro lado, não deixa de
causar sofrimento psíquico no sujeito, como o luto ou a depressão – formas de dor
psíquica que podem falar de um sujeito neurótico, mas não sintomas neuróticos.
Em outros sujeitos, porém, a neurose não desvanece no ato de um
adoecimento. Ao contrário da observação de Freud, a doença propicia o
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desencadeamento de sintomas neuróticos, principalmente quando acrescidos de


situações de impasse.
Alberti e Silva (1994), no texto “A demanda do sujeito no hospital”, abordam
as relações familiares como fator de perturbação na vida do adolescente. É o caso
de sujeitos que sofrem pela falta de investimento afetivo dos pais. Tal situação
conflitiva – tão comum na Enfermaria – poderá levá-los a fazer sintoma e, inclusive,
a alterar o prognóstico do quadro clínico orgânico. Essa evidência exigiu a
realização de entrevistas com os pais, as quais se constituíram de importância
fundamental para a continuidade do atendimento aos adolescentes.
No decorrer de uma década, várias são as demandas avaliadas; por isso,
conseguimos visualizar a constituição de um trabalho que se faz a cada dia. Sem
dúvida, o fato de o NESA pertencer a uma Universidade acabou por impulsionar a
articulação da assistência ao ensino, de modo que a presença de alunos, tanto de
graduação quanto de pós-graduação, se faz necessária para a transmissão da
psicanálise no hospital.
Como o Ambulatório já contava com um mínimo de condições para a
estruturação de uma clínica psicanalítica, concentramos nossos investimentos na
Enfermaria, sem deixarmos de estendê-los ao nível secundário. Constituiu-se uma
equipe, denominada “Saúde Mental4”, composta por estagiários, residentes e
treinandos de psicologia, que participam das seguintes atividades da Enfermaria:
 Atendimento clínico individual a vinte leitos de ambos os sexos;
 Atendimento aos familiares;
 Supervisão clínica;
 Leitura e discussão de textos psicanalíticos;
 Visitas médicas diárias (supervisão dos médicos);
 Reunião multidisciplinar.
Porém, dentre tantas atividades das quais participamos na Enfermaria, uma,
em especial, merece destaque por possibilitar a interlocução entre os diversos
saberes vigentes: a reunião multidisciplinar – o próximo subitem aqui destacado.

4 A equipe de Saúde Mental da Enfermaria (nível terciário) integra o Serviço de Saúde Mental do
NESA, composto também pelos níveis de atenção primário (Comunidade de Vila Isabel) e
secundário (Ambulatório). O Serviço reúne-se, mensalmente, para intercâmbio entre os
profissionais. Participam desse Serviço: Dulce Maria Fausto de Castro, Marília Mello de Vilhena,
Selma Correia da Silva, Simone Pencak, Sonia Alberti, Suyanna Linhales Barker e Vera Pollo.
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1.2 A psicanálise na “reunião das segundas-feiras”

Legitimada pelo NESA desde os seus primórdios, a reunião denominada


multidisciplinar tem seu espaço na Enfermaria de Adolescentes todas as segundas-
feiras, no horário das 11:00 às 12:00h, sendo coordenada, semanalmente, por um
diferente representante de cada Setor.
Segundo Messias (1999), essa reunião tomou como modelo a dos grupos
Balint, cuja formação se deu na Quarta Clínica Médica da UERJ. Os grupos Balint
discutiam a relação médico/paciente-adolescente, com a participação de médicos
(staffs, internos e residentes) e duas psicólogas. A expansão desses grupos deveu-
se às idéias de equipe multidisciplinar, difundidas nos anos 70 e assimiladas pelos
interessados na abordagem de atenção integral ao adolescente. Assim, a reunião
multidisciplinar foi ganhando corpo ao longo dos anos, até constituir-se em atividade
fundamental para o bom funcionamento da Enfermaria; sua origem foi anterior à
própria fundação do Serviço, possibilitando mesmo os seus primeiros alicerces.
Através de seus representantes, a psicanálise, desde 1991, tem sua
participação efetiva na reunião, muito embora enfrente resistências na transmissão
de seu discurso – o que não se constitui em novidade. Essas resistências têm longa
data: o próprio Freud já teve de lidar com elas em seu tempo e no decorrer da
história do movimento psicanalítico.
Porque a intervenção psicanalítica faz-se presente, é possível identificarmos,
nos discursos dos profissionais, a função que desempenha o ato de cuidar de
doentes, principalmente de jovens. Não poderíamos deixar de remeter a Freud
(1895), que alerta sobre o ato de cuidar, quando se refere aos cuidados que
Elisabeth, uma de suas pacientes, prestou ao pai:

“Há bons motivos para o fato de que cuidar de doentes desempenhe papel
tão significante na pré-história de casos de histeria. Alguns dos fatores em
ação são óbvios: a perturbação da saúde física, decorrente do sono
interrompido, o desleixo de sua própria pessoa, o efeito da constante
preocupação com função vegetativa de outra pessoa. Mas, em minha
opinião, deve-se procurar o determinante mais importante em outra parte.
Qualquer um cuja mente esteja ocupada pelas inúmeras tarefas de velar
pelos enfermos, tarefas essas que se seguem uma as outras, em sucessão
interminável, por um período de semanas e meses, adotará, por outro lado,
16

o hábito de suprimir todos os sinais de sua própria emoção, e por outro,


desviará sua atenção de suas próprias impressões, visto não ter nem
tempo, nem vigor para apreciá-las” (Freud, S., idem: 211).

A citação de Freud revela que o ato de cuidar exige certas condições de


renúncia daquele que desempenha a árdua função. O autor sublinha a ligação entre
o ato de cuidar e a histeria. Conforme indica a escuta psicanalítica, podemos ampliar
as observações freudianas no sentido de que, para alguns membros da equipe de
saúde do hospital, o cuidar se expressa pelo “mandamento do amor ao próximo”,
entendido aqui como um sintoma neurótico.
Aventamos a possibilidade de que certos profissionais se valem desse
mandamento para suportar o ato de cuidar, pois esta é a maneira mais fácil de
exercer sua função profissional com doentes jovens.
A fim de explanarmos mais claramente nossa hipótese, dedicamos, no
Capítulo II – O AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR –, as considerações
tecidas sobre o caso clínico Fábio.
Fábio, dezoito anos, foi personagem constante trazido pelo discurso de
muitos para as “reuniões das segundas-feiras”. Despertara, inicialmente,
sentimentos de piedade por estar paraplégico. Foi “amado” e, posteriormente por
não corresponder ao amor recebido, foi “odiado”. O desfecho do caso de Fábio,
causa de muita tensão na Enfermaria fora anunciado, exaustivas vezes, pela
psicanálise. Ao nos vermos diante da compaixão de alguns, tentávamos intervir com
o propósito de expressar os possíveis efeitos de “um amor dado sem reflexão”, tal
como Freud denuncia, em 1930.
No Capítulo III – A TRISTEZA NO LEITO –, fazemos um contraponto:
enquanto alguns pacientes ficam em evidência na reunião por serem “rebeldes e
agressivos” como Fábio, outros podem ficar no anonimato, como é o caso de
Camila.
A moça, vinte anos, foi internada na Enfermaria aos quinze anos para tratar
de complicações secundárias à sua paraplegia. Durante os dois últimos anos de
hospitalização, defrontou-se, certo dia, com uma perda real, causa de muito
sofrimento: a morte do pai.
“Camila é boa moça, pois não causa tumultos na instituição” – discurso mais
freqüente a refletir seu estado de ânimo no leito, uma vez que dorme mais do que
17

deveria. Alegavam os médicos que seu estado era terminal e, por isso, a equipe a
mantinha afastada de ser falada na reunião. Porém, a “psicanálise reivindicou” o
retorno da paciente para a “reunião das segundas-feiras”, quando poderia ser
discutido se a paciente apresentava uma tristeza ou uma depressão. Se a tristeza de
Camila é razão de dúvida quanto o significado da sua dor psíquica, certamente as
dores conversivas de Elisabeth também o seriam, acaso pudéssemos transpor,
imaginariamente, a paciente de Freud para a Enfermaria.
Discorremos sobre Elizabeth no Capítulo IV – A DOR QUE PETRIFICA –, ao
mesmo tempo em que acrescentaremos algumas considerações sobre o caso Alice
– um dos temas desta introdução.
Elisabeth tinha vinte e quatro anos quando foi atendida por Freud, em 1892,
com quadro de dores conversivas que tinham origem em um reumatismo muscular
crônico comum. Mais uma vez, levantamos a hipótese de que, se o caso da jovem
fosse discutido nas “reuniões das segundas-feiras”, ela seria tratada como uma
“pitiática” e inscrita como aquela que “não tem nada”. O diagnóstico médico de “piti”
exigiria uma mediação psicanalítica, pois está situado no campo do sintoma
histérico. Elisabeth, provavelmente, receberia alta o mais breve possível, pois suas
dores não se enquadrariam na fenomenologia da dor orgânica, como é o caso de
Ricardo.
Tema principal do Capítulo V desta dissertação – A DEMANDA PELO
GRITO –, Ricardo, treze anos, apresentava as conseqüências de ser portador
de doença orgânica crônica pouco conhecida pela medicina. Sofria fortes dores
físicas em queimação e também psíquicas. Demandava, em gritos, pela presença da
mãe, que pouco respondeu ao seu chamado.
Mais uma vez, perguntamos sobre a função da psicanálise na “reunião das
segundas-feiras”, frente a um caso em que manifestações fenomenológicas davam
margem à duvida quanto ao diagnóstico de psicose ou de histeria.
Sem dúvida, uma questão perpassa todo este trabalho: a escuta psicanalítica
na clínica do cuidar. A fim de sintetizarmos nosso objetivo maior, não poderíamos
deixar de discorrer sobre o caso de Alice; ele abarca os temas principais vividos no
cotidiano da Enfermaria de Adolescentes, onde o sofrimento físico é objeto primeiro
de intervenção dos profissionais.
18

1. 3 As dores de Alice no reino das pedras

O caso Alice talvez tenha sido um dos mais discutidos e exigiu exaustiva
“presença” psicanalítica. Deram-lhe muita ênfase na “reunião das segundas-feiras”,
e a psicanálise teve sua participação de imediato, pois, como veremos, uma questão
ética se impunha.
Alice estudou até a terceira série do primeiro grau e, após algumas
reprovações, desligou-se da escola aos treze anos. Deu início às suas atividades
laborativas como babá, desempenhando a função até casar-se. Aos dezessete anos
decidiu viver com Marcelo e fez a opção de demitir-se do emprego para cuidar do
marido e da casa. Aos dezoito anos (1995), foi internada na Clínica de Ortopedia do
HUPE, sendo posteriormente transferida para a Enfermaria de Adolescentes.
Queixava-se de fortes dores na perna esquerda; a descrição detalhada dos
sintomas não deixava dúvida quanto à fenomenologia da dor orgânica. Estava
grávida, no terceiro mês, de uma gestação planejada e desejada.
Na Enfermaria, foi submetida, pela equipe médica, a uma série de exames
sofisticados e a inúmeras sessões clínicas, das quais participamos. Os resultados
registraram que o problema não era ortopédico; o diagnóstico diferencial da Clínica
Oncológica confirmou trombose venosa profunda (obstrução de um grande vaso) e
câncer do tipo sarcoma de partes moles da coxa esquerda. O sarcoma era de alto
grau de malignidade e invadia o corpo da paciente, alojando-se na parede do útero,
ao mesmo tempo em que o feto se desenvolvia.
A partir do diagnóstico com um prognóstico desfavorável para a adolescente,
Alice entrou numa via crucis de tratamento que passou a fazer parte de uma rotina
hospitalar. A interrupção da gestação facilitaria o tratamento, no sentido de poder ser
instituído de forma mais “agressiva”, inclusive, com radioterapia associada. Também
facilitaria melhor investigação e acompanhamento com métodos radiológicos.
Instaurou-se, dessa maneira, uma questão ética: o que seria o melhor para a
paciente, do ponto de vista da medicina, sem deixar de levar em consideração o
desejo de Alice em manter a gravidez.
19

Sugerimos que a medicina deveria “recalcar o sujeito” para obter o


diagnóstico da doença orgânica. Isso significa tratar e curar o paciente: a prática
médica faz essa exigência. Nessas horas de impasse, é função da psicanálise
deixar falar o sujeito junto à medicina. No caso de Alice, foi revelada uma situação,
que se constituiu num paradoxo entre câncer e desejo. Além disso, tivemos também
de escutar, com muita atenção, o discurso dos médicos.
Marcelo, desempregado, acompanhava Alice diariamente na Enfermaria; sua
presença contribuiu para que ambos tomassem ciência das eventuais complicações
e riscos que a manutenção da gravidez poderia ocasionar. Porém, não hesitaram, ao
redigir uma declaração, em manifestar seu consentimento quanto à quimioterapia –
opção de tratamento menos agressivo. Assim, o desejo de ter o filho foi anunciado e
ratificado em ato escrito.
A escuta psicanalítica teve início logo após a conclusão do diagnóstico
médico. O único caminho a seguir era o que orientava para o bem dizer da paciente:
ao falar, ela se mostrava desejante pela maternidade. Mas como desejar frente a
uma experiência tão avassaladora, como o sofrimento de ter um câncer?
O caso da adolescente não correspondeu integralmente à concepção
psicanalítica de Freud (1914), quando este menciona a retirada do investimento
libidinal dos objetos de amor do sujeito, ao ser afetado por uma doença orgânica.
Por outro lado, ratifica-se sua observação sobre o narcisismo dos pais ou, melhor
dizendo, sobre o narcisismo de algumas mulheres:

“Mesmo para as mulheres narcisistas, cuja atitude para com os homens


permanece fria, há um caminho que leva ao amor objetal completo. Na
criança que geram, uma parte de seu próprio corpo as confronta como um
objeto estranho, ao qual, partindo de seu próprio narcisismo, podem então
dar um amor objetal completo” (Freud, S., idem: 106).

O “amor objetal completo”, acima referido por Freud, vinha para Alice
representado no ideal da maternidade, favorecendo sua adesão ao tratamento
médico. Podemos dizer que houve uma prevalência da maternidade sobre a doença,
como ilustra o esquema a seguir:

Alice SM (SUJEITO MATERNIDADE)


SD (SUJEITO DOENÇA)
20

Apesar disso, a libido dividiu-se entre a luta contra o câncer e o desejo de ser
mãe. Uma vez identificado à maternidade, o sujeito não deixou de amar enquanto
sofria. Houve, durante a internação, um enorme gasto de energia psíquica: a
paciente sofria tanto por dores do câncer, como também por manter-se desejante.
Ao decidir-se pelo nome de menina, optou por homenagear uma de suas
médicas, cujo nome lhe fazia lembrar a dedicação da profissional no período em que
foi tratada de um grande sofrimento. Por saber da gravidade da sua doença,
expressava-se culpada, ao dizer que não poderia prestar os cuidados maternos à
criança, juntamente com o marido que tanto amava. Apresentava-se em privação
diante de um dano real. Sua tristeza acentuou-se ao ter conhecimento de que a
criança poderia nascer e que ela, provavelmente, não exerceria a maternidade. A
escolha não lhe passou impune: tomava posse de um desejo que, segundo suas
palavras, se realizaria “pela metade” – causa de um grande conflito.
O sofrimento provocado pelas dores do câncer não estava dissociado nem da
fala da paciente, nem da nossa escuta. Acentuamos ser a função do psicanalista
escutar o que um sujeito diz para além de uma dor física; porém, quando as queixas
de sintomas somáticos se repetem com freqüência em nossa escuta, temos de
remeter os pacientes aos médicos. No caso, isso foi uma constatação, significando
que, em ocasiões como essa, não temos como escutar um paciente devido à
intensidade do quadro álgico que faz calar o sujeito.
Na tentativa de realizar o ideal da maternidade – o “amor objetal” –, a
paciente esbarrou com a rapidez cronológica de um câncer que levava vantagem
sobre o tempo lógico do seu desejo. É a partir da clínica que constatamos a
improbabilidade de um sujeito fazer um câncer, pois se o quisesse desfazer não
conseguiria. Tal hipótese está voltada para uma visão confusa da abordagem
psicossomática e pensamos ser devida à falta de experiência clínica de alguns
profissionais, no hospital, com pacientes portadores de doenças orgânicas.
Com o avançar das terapêuticas invasivas, Alice passou a sofrer todas as
conseqüências de uma quimioterapia. Os cabelos caíram e a paciente os guardou
num saco plástico; alegou assim proceder por receio de perder o companheiro. Os
cabelos podiam representar a máscara da feminilidade, que a moça tentava, de toda
a maneira, preservar. Necessitava, também, reter algo diante de tantas perdas.
21

Os atendimentos psicanalíticos mantiveram-se mais de uma vez por dia,


mesmo com a dificuldade de sermos freqüentemente interrompidos pelos vários
especialistas que atuavam no caso – fato comum no cotidiano hospitalar e desafio
ao psicanalista para encontrar a melhor estratégia de efetivar-se a escuta.
O quadro clínico da paciente evoluiu progressivamente com aumento das
dores, coincidindo, inclusive, com os períodos de ausência do marido que voltou às
atividades de trabalho e, por isso, não pôde mais participar do tratamento de Alice.
Um aspecto muito discutido em reuniões clínicas foi a alteração no quadro álgico
associada a essa ausência.
Apesar da gravidade da doença, havia como pensar na relação dor-histeria.
Lembramos que Freud (1895), no caso Elisabeth, menciona alguns quadros
orgânicos comuns como passíveis de sofrerem alteração, devido à condição
subjetiva do paciente. Acrescentamos aos ditos freudianos que todo e qualquer
quadro de dor poderá ser alterado, seja por diminuição, seja por intensificação.
Já em 1926, no texto “Inibições, sintomas e angústia”, Freud amplia suas
pesquisas e verifica o desaparecimento até mesmo das “dores físicas mais
intensas”, caso haja “desvio psíquico por algum outro interesse”. Tais elaborações
teóricas remetem a outra questão igualmente importante: se “a dor é imperativa”,
como poderá deixar de surgir?
As dores de Alice nunca cederam, mesmo com “desvio psíquico”
representado pelo desejo da maternidade. Em alguns momentos, foram alteradas e,
através da fenomenologia da dor, os médicos davam subsídios para pensarmos nos
mecanismos psíquicos da histeria interferindo na dor física.
Levantamos, assim, uma hipótese: Alice, talvez, estivesse recusando-se a ver
os riscos que existiam também para o feto. Dar continuidade à gestação significava
modificar o protocolo de tratamento para esquemas alternativos, além de submeter o
feto aos riscos de baixo peso, prematuridade, alteração no desenvolvimento
psicomotor, dependência a opiáceos ou até o óbito.
Mais uma vez, cabe-nos perguntar: caso essa hipótese fosse confirmada,
haveria a possibilidade de aparecimento de um sintoma psíquico desencadeado pelo
conflito entre ter o filho e recusar-se a assumir os possíveis riscos para o feto?
22

Devido à intensa dor física apresentada pela paciente, foi necessária a


colocação de um cateter no espaço peridural para analgesia, com morfina e
marcaína. Os protocolos de quimioterapia eram realizados sem qualquer resposta.
Perturbada pela dor, num quadro de muita angústia, Alice ora chorava, ora se
calava. Poderíamos dizer que ela se encontrava diante de um real sem sentido. Na
verdade, havia uma exigência premente de sentido. Certa feita exclamou: “É tudo
insuportável”, fazendo um apelo ao Outro, como um tradutor a sustentar seu
sofrimento: dores físicas e psíquicas misturavam-se numa manifestação de tristeza,
na vertente de um luto irremediável.
Alice, embora tenha deparado com várias perdas, não abriu mão de seu
desejo; pelo contrário, revelou-se como sujeito da enunciação, tentando uma saída
para a questão que se apresentou de imediato com o diagnóstico de um câncer
durante a gravidez. O processo de luto iniciou-se no momento em que fora
comunicada das possíveis perdas conseqüentes. Sua tristeza era uma resposta
subjetiva, traduzida no olhar de despedida para as pessoas queridas e para a vida.
A adolescente, ao estar ligada amorosamente aos seus ideais, em especial à
gravidez, foi experimentando uma profunda decepção e prejuízos psíquicos.
Ao atingir idade gestacional de trinta semanas, com o feto no peso de um
quilo, foi-lhe indicada cesariana, em precisão e sabedoria dignas de médicos com
“mãos de mestres”. A filha nasceu necessitando de prótese ventilatória e apresentou
sinais de dependência à morfina; ficou um período na incubadora, impossibilitando à
mãe amamentá-la, o que significava mais uma perda. Ratificamos, na ocasião, a
necessidade de dar continuidade à escuta, mesmo que a paciente só se
expressasse por monossílabos. Estava muito triste e, por isso mesmo, insistíamos
em escutá-la: o falar possibilita, como sabemos, o “ancoramento” da angústia.
Embora em quadro de profundo sofrimento, a paciente ainda anunciou
orientação psíquica, com objetivo de concordar com mais uma intervenção invasiva:
a cordotomia – secção de um dos cordões laterais da medula para fins de analgesia.
Esse fato remete a uma situação vivida por Freud: ao ser submetido a ato
cirúrgico, devido ao câncer na mandíbula superior, necessitou da implantação de
uma mandíbula mecânica. Ao ser entrevistado por George S. Vierek, em 1930, disse
que detestava aquela mandíbula, mas preferia ter aquele aparelho a não ter
23

mandíbula, ter sobrevivência à extinção. Encerrou sua prática, após cinqüenta e três
anos de trabalho, enfrentando o câncer.
Esgotados todos os recursos médicos a seu favor, Alice viu-se diante de uma
clínica paliativa, o que nos faz indagar qual a referência psicanalítica diante de uma
prática médica que passa a ter, como único objetivo, a função de atenuar o
irremediável de um estado terminal.
A palavra paliativo, de origem latina, palliatu, apresenta etimologia cuja
significação é ”coberto com capote”, num indício de disfarce das aparências
(Ferreira, A. B. H., 1975: 1021). Conseqüentemente, podemos aludir aos cuidados
paliativos como um “disfarce” necessário para mascarar e amenizar um sofrimento
que não tem remédio.
A doença, em sua fase terminal, indicou a proximidade da morte que
enclausurou a paciente, silenciosamente, no leito. O câncer é um exemplo muito
claro da necessidade dos cuidados paliativos. Malengreau (1993) aborda o tema no
artigo “Para uma clínica dos cuidados paliativos”:

“A proximidade de uma morte anunciada é acompanhada de uma restrição


semântica das palavras; estas tomam uma consistência imaterial que,
dizem esses pacientes, se impõem a eles numa prova sem recurso”
(Malengreau, p., idem: 87).

A “morte anunciada” presentifica as perdas que, antes de tudo, foram de cada


dia na existência do sujeito. No hospital, o paciente depara com a impossibilidade de
responder; os profissionais confrontam-se com um desafio ético: o que fazer? Falar
pelo sujeito, já que este quase nada fala? Com certeza, a posição mais imediata de
alguns membros da equipe de saúde é a assumir a voz do sujeito para tentar dar
uma significação ao sofrimento dele e isso tem uma eficácia terapêutica na
instituição. A esta posição Malengreau (1993), na clínica dos cuidados paliativos,
nomeou como “humana”, contrapondo-a a outra: aquela “aberta ao humano”, que se
assemelha à proposta psicanalítica.
Acrescentamos que, enquanto a primeira postura é verificada na clínica do
cuidar em geral e os profissionais ficam sujeitos ao “mandamento do amor ao
próximo”, a segunda, referida ao bem dizer e “aberta ao humano”, não deixa de
possibilitar o alívio do mal-estar. A psicanálise, portanto, não abandona sua
24

orientação ética, por mais que sejam dolorosas as ocasiões. Empenha-se em


testemunhar a fala do sujeito, a partir dos significantes outrora pronunciados pelo
paciente. A ética do bem dizer não adere à significação, quer na clínica do cuidar,
quer em seu momento mais crítico: quando do período paliativo. Porém, o analista
deve saber quais os limites de sua clínica, a partir do grau de afetação dos efeitos –
reais ou subjetivos – da doença sobre o paciente, para que não espere de alguém
atormentado por dor e mal estar orgânico “grandes produções inconscientes”.
Não encerraremos aqui o caso Alice; deixaremos para fazê-lo no Capítulo IV.
Sua história merece ser particularizada pela expressão dos sintomas de dor – tema
tão comum e importante para quem lida com a pesquisa de doenças orgânicas
crônicas, principalmente no hospital.
Entretanto, damos por finalizado este capítulo introdutório, sublinhando a
relevância da interlocução da psicanálise na “reunião das segundas-feiras”, no que
tange aos temas pertinentes ao ato de cuidar, à dor física e dor psíquica, ao
diagnóstico, à demanda, ao corpo pulsional, entre outros, ao trazer o sujeito com o
corpo adoecido como principal objeto de discussão de todos aqueles que exercem
suas atividades clínicas na Enfermaria de Adolescentes.
25

2 AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR

“28. Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido


disputar, e sabendo que lhes tinha respondido bem, perguntou-
lhe: Qual é o primeiro de todos os mandamentos?
29. E Jesus respondeu-lhe: O primeiro de todos os
mandamentos é: Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único
Senhor.
30. Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e
de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas
as tuas forças: este é o primeiro mandamento.
31. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que
estes.
32. E o escriba lhe disse: Muito bem, Mestre, e com verdade
disseste que há um só Deus, e que não há outro além dele;
33. E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento,
e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como
a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios.
34. E Jesus, vendo que havia respondido sabiamente, disse-
lhe: Não estás longe do reino de Deus. E já ninguém ousava
perguntar-lhe mais nada”.

(cf Bíblia Sagrada; Marcos 12: 28-34)

2.1 Clínica do cuidar

Os profissionais de saúde que trabalham no hospital, espaço institucional que


acolhe sofrimentos como os males físicos, a dor, a morte e o abandono familiar,
dentre outros, podem assumir, no exercício de suas atividades, diferentes posturas,
as quais são determinadas por diversas escolhas éticas.
26

A psicanálise, ao orientar-se pela ética do bem dizer, isto é, pela ética do


desejo, encontra muitas barreiras para exercer sua clínica no hospital, pois esta
instituição faz um apelo forte para a prática de um certo bem querer do paciente. O
bem dizer, ao contrário do bem querer, exige do sujeito trabalho psíquico e não
promete a felicidade nem a resolução rápida dos conflitos, tão bem vindos no
hospital.
Lacan, no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1960: 266-7), levanta a
questão do bem e elucida-a como causa de turbulências, por estar “próxima de
nossa ação”. Sugere, assim, que, a cada dia, questionemos quanto ao “desejo de
fazer o bem, o desejo de curar”. Define, entretanto, a prática psicanalítica como um
“não-desejo de curar”. Ao fazer esse alerta, coloca-nos frente ao engodo de querer o
bem do sujeito. A psicanálise caminha em contramão à posição dos bens, pois, só
em sua articulação significante, o sujeito emerge como efeito para dizer sobre seu
“bem maior”: o seu desejo.
Difícil tarefa para o analista – sustentar, na clínica do cuidar, a ética da
psicanálise, tão diferenciada das demais. Lembramos que todos os profissionais que
escutam no hospital já foram convocados à ordem da compaixão 5. Se o psicanalista
não desconhece a compaixão nem mesmo é isento totalmente dela, a ética da
psicanálise, por sua vez, enquanto ética do desejo, não é referida à compaixão.
Mas qual lugar da ética da psicanálise na clínica do cuidar? Para
respondermos a essa questão, faz-se necessário abordar o ato de cuidar no
hospital. Partiremos do texto “A ética do cuidar”, onde Figueiredo (1999) refere-se ao
cuidar sob duas perspectivas: “cuidar como diferente de tratar” e “cuidar como
sinônimo de tratar”.
Como exemplo do primeiro caso, a autora cita a figura do médico: cabe-lhe
examinar, medicar e traçar condutas terapêuticas para o paciente, sem, contudo,

5 Uma leitura diacrônica do vocábulo compaixão, de acordo com Santos (2001: 17), “permite, sem
dúvida, a interpretação dúplice de sentido que se espraia à família de palavras do mesmo etmo. Por
um lado, compadecer é padecer com, sofrer com, e por outro é apaixonar-se por, apiedar-se de. O
vocábulo compaixão integra-se, formal e semanticamente, à família de palavras cujos termos
geradores possuem dois radicais: padecer e paixão, o primeiro de base erudita; o segundo de base
vernácula. Em compaixão (cf. compadecimento), lêem-se não só piedade, para, como também,
sofrimento com. Abre-se ainda a interpretação do vocábulo, com entrosamento filosófico ao sentido
de ter paixão por, ou melhor sofrer paixão por. O que parece ser interessante é o fato de haver, em
quaisquer das interpretações, um traço de passividade, ou voltando ao vocábulo erudito, de
padecimento”.
27

conviver com ele no cotidiano hospitalar. Por outro lado, quem cuida são os
profissionais que convivem com o paciente, como o enfermeiro, o assistente social e
o psicólogo.
No segundo caso, o significado de cuidar torna-se mais abrangente: quem
trata é quem convive, ao prestar cuidados ao doente, como a equipe que exerce
suas funções com filosofia multidisciplinar. Assim, Figueiredo (idem: 130) discorre
sobre alguns “significados correntes” do ato de cuidar. Para esta pesquisa,
tomaremos apenas um: o “cuidar como escuta”. A partir de nossa clínica no hospital,
incluiremos o tratamento do médico de adolescentes como um ato de cuidar, já que
“convive” com o paciente no cotidiano do processo de internação.

2.2 O cuidar como escuta a doentes jovens

Escutar não é um privilégio da psicanálise. Contudo, o que anunciamos como


questão é saber o que os demais profissionais fazem na clínica do cuidar com o que
escutam, principalmente em se tratando de doentes jovens.
Dentro da realidade com a qual trabalhamos, o cotidiano de uma enfermaria
de clínica médica e/ou cirúrgica revela que um estado de adoecimento é sempre
vivido como uma experiência subjetiva que pode alcançar intensidade drástica na
vida do paciente. As doenças orgânicas crônicas verificam tal fato, pois fazem
exigências imperiosas de sentido na vida do sujeito.
Alguns fragmentos de discursos de pacientes internados na Enfermaria de
Adolescentes corroboram essas observações:

“Doença dá em poste? Não. Dá em coisa que fala, em coisa que late, em


coisa que mia. Dá em coisa que tem vida” (Bárbara, dezoito anos –
diagnóstico: esclerose múltipla).

“O que eu queria ser mesmo era doutora da minha doença, estudar o que
sinto” (Júlia, dezoito anos – diagnóstico: lúpus eritematoso sistêmico).

“Sonhei com minha própria morte” (Regina, dezoito anos – diagnóstico:


lúpus eritematoso sistêmico).
28

As falas destacadas sinalizam que a irrupção de uma doença introduz um real


na vida do sujeito que se soma à relação com a castração – falta fundamental da dor
de existir –, a qual o orienta em suas relações com a vida. O sofrimento que veio de
fora intensifica a dor da existência, produzindo questionamentos. Eis um campo fértil
para a clínica psicanalítica: o que poderá ser escutado da subjetividade do paciente
em contrapartida ao que não é auscultado em medicina.
A palavra auscultar tem origem “no latim auscultare, isto é, aplicar o ouvido a
(peito, o ventre, as costas etc.) para conhecer os ruídos que se produzem dentro do
organismo” (Ferreira, A. B. H., 1975: 161). Ao encostar o ouvido, o médico obterá
informações sobre o órgão do corpo humano em disfunção. No sentido popular,
auscultar é escutar. Auscultar, portanto, é escutar de maneira dirigida.
A partir da etimologia da palavra auscultar, podemos deduzir, numa imagem
metafórica, que seria de bom alvitre que o médico escutasse, primeiramente, as
queixas clínicas de seu paciente, já que indicarão o que deverá ser auscultado e,
conseqüentemente, diagnosticado, tratado e curado. Porém, um cardiologista, por
exemplo, poderá auscultar uma disfunção do coração não compatível com a escuta
das queixas clínicas do paciente. Diante desse fato, o médico deveria, inclusive,
pensar em causas subjetivas que poderiam estar contribuindo para a expressão da
disfunção. Freud, no texto “Inibições, sintomas e angústia” (1926), identifica o
coração como um dos órgãos que mais recebem as descargas motoras do afeto de
angústia, o que pode indicar um enorme estado de desprazer, despertado no sujeito
por ocasião de uma experiência de dor psíquica. Pensamos nessa constatação do
autor como um alerta aos médicos quanto à importância da participação do
inconsciente no corpo. Isso não quer dizer que, caso o médico levante essa
hipótese, deva possibilitar o surgimento da escuta da subjetividade a qual não está
habilitado em seu ofício.
A escuta do médico tem um objetivo e depende de seu conhecimento em
anatomia associado ao de fisiologia e fisiopatologia, o que lhe possibilita identificar o
sintoma orgânico e, conseqüentemente, distingui-lo de um psíquico. Portanto, um
sintoma como signo de uma doença é sempre patológico e tem uma significação
para o médico a partir de seu saber prévio. Dessa maneira, a escuta em medicina e
a eficácia terapêutica de um médico não dependem da escuta da subjetividade do
29

paciente – esta não é fator relevante para o esclarecimento de uma doença


orgânica. Ousaríamos dizer que “recalcar a subjetividade” de seu paciente deveria
ser um exercício do médico em sua escuta. Mas essa tarefa não é tão simples
assim: um sofrimento físico sempre vem acompanhado de sofrimento psíquico, e
ambos não são vivenciados separadamente no ato de adoecimento. Isso significa
que o paciente emite suas queixas orgânicas “permeadas de subjetividade”. Porém,
um “médico experimentado” 6 poderá conduzir seu atendimento de maneira que não
deixe “emergir a subjetividade” do paciente em detrimento às queixas relacionadas
ao sofrimento orgânico. Caso contrário, sua ausculta terá interferências e poderá
desviar-se da excelência de uma prática médica clínica que tem como objetivos
diagnosticar, tratar e curar.
A escuta do psicanalista, ao contrário da do médico, não é dirigida; deve
deixar emergir a subjetividade do paciente para que ele possa falar de seu
sofrimento psíquico, que pode ter expressão num sintoma, como o que lhe paralisa
diante de seus laços sociais.
O sintoma, em psicanálise, é constituinte da estrutura neurótica e, segundo
Freud (1926), representa a substituição de uma satisfação pulsional que sofreu o
processo de recalque, quando o eu, por uma ordem externa, não se associou a uma
catexia pulsional oriunda do id. Para Lacan (1956), o neurótico fabrica, com seus
sintomas, o recalque, que é “uma língua”. Esta língua poderá ser traduzida pela
escuta da linguagem inconsciente dos sintomas, os quais revelam a particularidade
de cada sujeito: a sua verdade. Além dos sintomas, os sonhos, os atos falhos e os
chistes são efeitos da formação do inconsciente, que expressam a divisão do sujeito
ao deparar com a castração, da qual não quer nada saber.
A escuta do sintoma como verdade do inconsciente, ou seja, da subjetividade,
é peculiar à psicanálise, pelo estabelecimento da relação transferencial – fato que
exige, segundo Freud (1912), a atenção flutuante do lado do analista em
contrapartida à associação livre do lado do analisando. A partir da suspensão dos
motivos que dirigem a atenção do analista, sua intervenção implica um “escutar
calado”, o que significa que ele não deve destacar nem priorizar elementos dos
enunciados do paciente. Essa recomendação técnica tem como conseqüência a

6 Expressão utilizada por Freud no texto “Cinco lições de psicanálise” (1910: 14).
30

espontaneidade do discurso do paciente que poderá falar sobre “o que lhe vier à
cabeça”, regra fundamental da psicanálise, anunciada por Freud (idem).
Ressaltamos, porém, que o psicanalista deve ficar atento para os sintomas
somáticos que se repetem no discurso de determinados sujeitos em tratamento.
Esse fato deve trazer incômodo à escuta do psicanalista que deverá levantar
hipóteses quanto à possibilidade de haver alguma disfunção orgânica. Sobre este
fato, pensamos que Freud (1900) também faz um alerta aos psicanalistas, ao
comentar uma passagem de sua clínica.
Certa feita, Freud (1900: 320-1) recebeu uma paciente que estava em
tratamento há anos com diagnóstico de histeria (sofria de algias e de marcha
anormal). A partir das indicações que a clínica psicanalítica lhe permitiu conhecer
sobre as neuroses, pôde excluir a possibilidade de histeria. Procedeu a um rigoroso
exame físico, diagnosticando um estágio muito avançado de tabes – quarto estágio
da sífilis, posteriormente tratado por um médico. Os resultados do tratamento,
segundo Freud, foram bons.
No NESA, identificamos uma questão muito comum, relacionada à escuta,
causa de confusões no cotidiano hospitalar: a “escuta paralela” que se destaca e se
diferencia daquela necessária ao ato de cuidar – a que particulariza o significante
adolescência como sinônimo de “período de crise do indivíduo”, perda da imagem
corporal, conflitos em relação à sexualidade, formação de grupos etc. A
especialidade adolescência “clama” pela escuta ao abrir um flanco sobre os aspetos
subjetivos da vida do paciente. Constatamos que, desde as origens da Medicina de
Adolescentes e à história de fundação do NESA, existe uma valorização da “escuta
paralela” dos adolescentes.
O vocábulo Hebiatria é um sinônimo de Medicina de Adolescentes; em grego,
hebe significa mocidade, derivando-se daí o termo. Para a Organização Mundial de
Saúde, a segunda década da existência humana, de dez a vinte anos, situa o
período da adolescência.
Segundo Coates (1993: 3), as origens dessa especialidade são obscuras. No
final do século XIX e início do século XX, alguns médicos já demonstravam
“interesse especial no crescimento e desenvolvimento” de pacientes adolescentes e
de suas doenças. Um estudo clássico de crescimento dessa faixa etária foi
31

publicado em 1887, por Bowditch, e, em 1888, Dabney descreveu uma epidemia de


pleurodinia (dor na pleura) entre estudantes.
Os médicos ingleses foram os primeiros a ter sua atenção despertada para
adolescentes nas escolas. A eles devem-se o reconhecimento das particularidades
dos problemas e a responsabilidade pelos cuidados com a saúde daqueles jovens,
na tentativa de melhoria da qualidade do ambiente das escolas, da assistência
médica e da prevenção das doenças e dos acidentes. Em 1885, publicaram um
código de regras, que teve a sua última edição em 1975, vigorando, até hoje, sob o
título “Manual de Saúde Escolar”. Aqueles médicos eram generalistas e dedicavam
grande parte de sua prática aos adolescentes, fato que possibilitava a “escuta”.
Felix Heald (1992), ao pesquisar informações sobre a origem da Medicina de
Adolescentes, encontra a primeira publicação clássica do psicólogo G. Stanley Hall 7
(1904), intitulada Adolescência – sua psicologia e relação com a fisiologia, a
antropologia, a sociologia, sexo, crime, religião e educação.
Hall (idem) baseia seus estudos a partir de uma teoria genética, inspirada no
conceito de evolução biológica de Darwin. Segundo o psicólogo, o organismo
humano, ao desenvolver-se, passaria por estágios similares àqueles, “recapitulando”
os que ocorreram durante a história da espécie da evolução humana. Assim,
preconiza estágios de desenvolvimentos, nomeando a adolescência (doze anos ao
status adulto final – vinte e dois a vinte e cinco anos) como um período da “Sturm
and Drang” – “tempestade e tensão”.
Voltadas para um vasto estudo sobre a adolescência, as pesquisas de Hall
(idem) influenciam na formação dos médicos interessados na “escuta” dos

7 Hall era um homem erudito e discorria sobre vários assuntos, caracterizando-se por um certo
ecletismo, como podemos observar pelo título de sua obra. Pensamos esse ecletismo como um
ponto de impasse com Freud. Hall até tentou aproximar-se das idéias de Freud e, em 1908, fez-lhe,
pela primeira vez, um convite para discursar na Clark University, Massachusets, Estados Unidos,
por ocasião do vigésimo aniversário da instituição. O encontro entre ambos aconteceu em 6 de
setembro de 1909, quando Freud pronunciou as “Cinco lições de psicanálise”.
O psicólogo entusiasmou-se com a psicanálise, fato que o fez ministrar cursos sobre o assunto.
Num primeiro momento, foi evidente a admiração de Freud (idem: 27) pelo Presidente da Clark
University, ao qual se referia como “o nosso honrado presidente”. Hall tinha sido extremamente
gentil com o homem que trouxera a “peste” aos americanos. Porém, seus interesses psicanalíticos
não vingaram por muito tempo, ao voltar-se para a escola de psicologia individual de Alfred Adler,
primeiro dissidente da história do movimento psicanalítico.
32

adolescentes. O psicólogo foi reconhecido como o primeiro a produzir uma obra


científica sobre adolescência.
Verificamos, através da origem da Medicina de Adolescentes, a preocupação
dos médicos quanto à extensão dos cuidados aos pacientes, fato que possibilitou a
criação de alguns serviços. Segundo Coates (1993: 4), na década de 40, centros
pediátricos começaram a atender pacientes até dezesseis anos, dedicando-lhes
“atenção especial”. Em 1951, foi fundada a Unidade de Adolescentes no Hospital
Infantil de Boston, que integrou, nos anos 50 e 60, um centro acadêmico para
desenvolvimento de programa de treinamento, cujas diretrizes foram “a
individualidade e as diferenças dos adolescentes, com relação aos outros estágios
de desenvolvimento durante a vida”. O médico convidado para chefiar a Unidade,
Dr. Gallagher, era autoridade em Medicina de Adolescentes e enfatizou a “escuta”
dos jovens:

“A abordagem da Medicina de Adolescentes é semelhante à pediatria e à


geriatria, generalizada e multidisciplinar em que o médico leva em
consideração o estágio de desenvolvimento, características, necessidades e
ambientes de seus pacientes, assim como suas doenças. Também se
tornou evidente que a maioria dos adolescentes responde favoravelmente a
médicos que os respeitem e que estão querendo escutá-los” (cf. Coates,
idem: 6).

Destacamos, na fala do Dr. Gallagher, a atenção dispensada, primeiramente,


para os aspectos da vida do adolescente, diferenciados dos da doença,
evidenciando a importância da “escuta”. Questionamos: que escuta é essa tão
valorizada pela Medicina de Adolescentes?
Messias e colaboradores (1999) narram que o Serviço de Adolescentes da
UERJ surgiu a partir da “escuta dos aspectos psicológicos” dos pacientes. No início
dos anos 70, alunos de medicina e de enfermagem, ao escutarem “as angústias
geradas pela hospitalização” de adolescentes internados nas diversas enfermarias
do HUPE, deram origem a atividades recreativas com aqueles pacientes. Esse fato
exigiu, para sua continuidade, supervisão e orientação teórica, que ficaram sob a
responsabilidade do Dr. Lindemberg Rocha, psiquiatra, e de Maria Tereza da Costa
Barros, estagiária de psicologia. Posteriormente, outros psiquiatras e estagiários de
psicologia aderiram ao grupo inicial. Conforme Messias (idem), naquela fase em que
o Serviço dava seus primeiros passos, uma ocorrência teve destaque fundamental
33

para que os estudantes reivindicassem um “cuidado especial aos adolescentes”: um


surto esquizofrênico de um paciente de dezesseis anos, portador de
esquistossomose mansônica8, após intervenção cirúrgica, causou muita inquietação,
com destaque para o aspecto psíquico do quadro clínico.
A relevância atribuída aos fatores psicológicos impulsionou a criação do
Serviço de Adolescentes da UERJ, em julho de 1974, na Quarta Disciplina de
Clínica Médica, chefiada pelo professor Aloysio Amâncio da Silva (clínico geral).
Desde então, o NESA conta com a participação de profissionais da área de
psicologia e psiquiatria, que formaram, em 1994, um Serviço de Saúde Mental. Se,
por um lado, a criação de um Serviço específico voltado para a adolescência é
fundamental para os cuidados dessa faixa etária, por outro, a “escuta paralela” na
clínica do cuidar pode levar alguns médicos e demais técnicos da área de saúde a
“escutarem mais do que deveriam”, como se fossem “psicólogos dos pacientes”.
Chamamos atenção que esse procedimento é fator de interferência na clínica
psicanalítica, o que nos faz indagar: quem é esse sujeito “chamado” adolescente de
que trata a psicanálise?
Alberti (1996) indica que, durante alguns anos, a adolescência foi tratada pela
psicanálise como um “período de crise do indivíduo”. A autora comenta o erro de
Marie Bonaparte, discípula de Freud, que, ao traduzir a frase “wo es war soll ich
werden” como “o ego deve desalojar o id”, contradiz o verdadeiro sentido da
expressão: “onde isso era devo advir”. A tradução errônea deu margem ao
tratamento da Psicologia do ego, em que a eficácia terapêutica se baseava no
apaziguamento da crise pelo fortalecimento do ego. Um ego forte impediria os
impulsos do id – causa de mal-estar no sujeito. Assim, essa abordagem não
considera a possibilidade de surgimento do sintoma como revelador da verdade do
sujeito; se o adolescente tem “crise”, é porque esta crise sinaliza sua divisão,
condição de sujeito do inconsciente.
A “crise” poderá emergir no momento do despertar das pulsões que tomam
força de tempestade no final da latência e início da genitalidade: a adolescência.
Segundo Freud (1905), nessa fase da existência humana (a qual se referiu como
puberdade), o sujeito depara com “o buraco da sexualidade” que não faz sentido e,
8 Doença causada por protozoário que é adquirido no contato com água contaminada e transmitido
através do caramujo, que é seu hospedeiro.
34

por isso mesmo, gera angústia. Em termos lacanianos, podemos dizer que o Outro
do sexo – fonte imaginária de garantias do sujeito –, ao revelar-se incompleto, causa
decepção. Diante desse “desencontro sexual”, a psicanálise, contrária à teoria de
reforço do ego, propõe que o adolescente deixe falar sua “crise”, possibilidade de
bem dizer seu desejo.
Em nossa experiência no NESA, observamos que a “escuta paralela” ao ato
de cuidar é baseada na teoria de reforço de ego, que considera aqueles jovens
como indivíduos in-divisos, que não comportam a divisão do inconsciente; são
constituídos pelo desenvolvimento de fases que tendem ao fechamento, conforme
Hall (1904).
A escuta do indivíduo, portanto, difere radicalmente da escuta do sujeito da
psicanálise. Quando é acrescentado aos “indivíduos em crise” o sofrimento da
doença, os profissionais podem ser convocados, como já ressaltado, à ordem da
compaixão que vem do Outro – representada seja pela máxima cristã, seja pela
direção de um Serviço de Saúde. O “cuidar como escuta” a doentes jovens é razão
para alguns sofrerem paixão, expressando-se pelo que identificamos como “o
mandamento do amor ao próximo9”.

2.3 O amor ao próximo

A Bíblia, em algumas de suas referências, confere ao próximo extrema


proteção, atribuindo-lhe um ideal de amor. No Velho Testamento, Deus ordenou a
Moisés que falasse aos filhos de Israel sobre as diversas leis, dentre as quais a do
“amor ao próximo”. Disse o Senhor a Moisés: “Não te vingarás, nem guardarás ira
contra os filhos de teu povo; mas amarás o teu próximo como a ti mesmo: eu sou o
Senhor” (Levítico, 19: 13).

9 Nos anos de 1996 e 1997, participamos das aulas do Seminário de Romildo do Rego Barros, na
Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio, cujo tema “narcisismo” levou-nos à reflexão e à
pesquisa psicanalítica sobre o mandamento bíblico “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”.
35

No Novo Testamento, por sua vez, o “amor ao próximo”10 vem como o


segundo mandamento cristão mais importante, semelhante ao primeiro, o do “amor
a Deus”. Na passagem bíblica intitulada “O Grande Mandamento”, Jesus foi
interrogado por um fariseu, doutor da lei, sobre qual seria o grande mandamento da
mesma, ao qual respondeu:

“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e
de todo o teu pensamento.
Este é o primeiro e grande mandamento.
E o segundo semelhante a este é: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (cf. Mateus,
22: 36-40).

Mas quem é o próximo do mandamento cristão? O irmão? O estrangeiro?


Através da “Parábola do Bom Samaritano” (Lucas, 10: 26-37), Jesus, de acordo com
a história, contou ao fariseu que um homem, ao sair de Jerusalém com destino a
Jericó, foi roubado e espancado por salteadores que quase lhe retiraram a vida.
Todavia, um sacerdote, ao passar pelo mesmo caminho, no qual vira o homem
quase morto, não foi capaz de socorrê-lo. Da mesma forma procedeu um levita.
Porém, um samaritano, ao aproximar-se, moveu-se de “íntima compaixão”,
prestando os cuidados necessários ao judeu.
É interessante ressaltar que o benfeitor, excluído por definição do direito a ser
próximo ao judeu, era um herege – homem considerado errado, tanto na doutrina,
como na prática da religião. O próximo, de acordo com a história, era um estranho e
alguém fora do grupo que não partilhava a mesma religião do judeu; mesmo assim,
usou de misericórdia para com o necessitado.
A partir da leitura psicanalítica, faz-se necessário analisar se é possível a
realização desse amor preconizado pela Bíblia. Freud (1930) retorna ao
mandamento “Amarás teu próximo como a ti mesmo” para criticá-lo com muita
indignação, porque, de um lado, ele é impossível e, de outro, narcísico ao extremo,
razão de ser um paradoxo. Segundo ele, o amor não deve ser dado sem reflexão,
devendo ser fonte de interrogação. Mais adiante (idem: 131), contesta a exigência
do preceito que não leva em consideração a face oculta do próximo e propõe, então,

10 Mandamento também encontrado em outros livros da Bíblia, tais como Lucas (10: 26), Marcos (12:
31).
36

que o amor seja retirado do plano geral, pois não deve ser partilhado com todos.
Apenas determinados seres humanos merecem nosso amor e este não é universal.
Quando amamos é porque o outro nos atraiu com um “valor” ou “significação”; caso
contrário, não conseguiríamos amar um “estranho”.
O mandamento, segundo Freud (idem: 132), deveria ser escrito de uma outra
maneira: “Ama teu próximo como este te ama”. Além disso, amamos o igual que
também comporta o estranho, fato que o ”mandamento do amor ao próximo”
desconsidera. Sobre o termo estranho, Freud (1919) tece um exame lingüístico, para
além da equação “estranho não familiar”, estudo que auxilia a esclarecer o
significado da face desconhecida do mandamento.
O estranho11 tem relação com o que é assustador, com o que causa medo ou
horror; pode, ainda, assumir uma característica diferenciada do uso corrente da
palavra, ou seja, é aquele traço do assustador que provoca o conhecido, velho e
familiar. O exame lingüístico explicita que:
1º) Nem tudo o que é não familiar é assustador;
2º) Algumas novidades são assustadoras;
3º) Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar para torná-lo
estranho.
Em alemão, o termo Unheimlich significa o que não é doméstico; isso vem a
ser o oposto de Heimlich, que tem o sentido de lar, familiar. A palavra Heimlich tem
diferentes conotações ou significados, dentre os quais um revela-se igual ao seu
oposto: Unheimlich. Portanto, algo Heimlich é também Unheimlich.
Algo que é Heimlich tem o significado de familiar e agradável e, também, o
que está oculto e se mantém escondido, fora do alcance da visão. Mas o termo
Unheimlich é apenas usado como o oposto do primeiro significado de Heimlich e não
do segundo. Porém, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido oculto, mas
veio à luz12.
Podemos inferir, através desse estudo freudiano, que o próximo é, ao mesmo
tempo, o familiar e o estranho.

11 Segundo a Bíblia, os hebreus foram estrangeiros no Egito. O estranho para os hebreus e árabes
pode ter conotação de demoníaco e horrível.
12 Freud refere-se a Schelling, que deu um novo conceito a Unheimlich (estranho).
37

Anunciado pela Bíblia13, o mandamento do “amor ao próximo como a si


mesmo” proclama a anulação da diferença e universaliza os homens como iguais. A
psicanálise subverte o preceito bíblico a partir da segunda característica do próximo:
o estranho. A intolerância ao próximo reside no ponto que revela uma
dessemelhança em relação ao que era igual ao outro especular e que foi excluído no
processo identificatório.
Julien (1996: 106) faz referência ao mandamento bíblico, quando menciona
que “amar ao próximo como a si mesmo” é explorar seu espaço até o fim. O autor
nomea algumas “zonas do próximo”, com as quais o sujeito depara ao longo de sua
existência.
A primeira é aquela na qual o eu se constitui pela imagem do outro especular.
É na “fase do espelho”14 que encontramos o primeiro próximo, de acordo com a
imagem e a semelhança. A imagem é constituinte, sede das identificações
imaginárias pela equivalência entre o eu e o outro, sustentada pela configuração da
mesma, lugar dos enganos e ilusões. Se o sujeito ama o outro é porque ele se ama
na imagem desse outro. Julien (1996) dirá que, nessa fase, o “bem do outro é uma
extensão do amor próprio, e o amor próprio é uma garantia do bem do outro”. Nela,
um dia, o sujeito vai experimentar a queda da imagem do semelhante, revelando a
face oculta do próximo.
A dessemelhança nessa zona demonstra uma delimitação de espaço, que
desvela a estranheza do próximo. O outro não quer só o bem do sujeito; também
almeja o seu mal. Verifica-se, na descompletude da imagem, a hostilidade do
próximo, na qual o sujeito vê-se frente ao horror do qual tem de se defender. Seguir
adiante significa, primeiramente, experimentar os efeitos subjetivos produzidos na
decepção com o próximo, pela queda do ideal da ilusão da imagem que o
sustentava como semelhante.

13 Em Gênesis, que é o primeiro livro do Velho Testamento, Deus refere-se à imagem e semelhança
no capítulo 1, versículo 26. O homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus significa ser
dotado de faculdades de raciocinar, expressar emoções e agir voluntariamente. Particularmente,
indica a capacidade de o homem manter íntima comunhão com o Criador.

14 Lacan estudou o tema da identificação imaginária no texto “O estádio do espelho”. A versão original
desse trabalho foi escrita em 1936, para o XIV Congresso Internacional de Mariembad. Até 1949,
Lacan vai retornar as idéias apresentadas em 1936, nos textos “Os complexos familiares”
(1938),“Considerações sobre a causalidade psíquica (1946) e “A agressividade em psicanálise”
(1948).
38

Na angústia pela perda do bem, surge a questão enigmática para o sujeito:


“que quer o outro de mim?” Segundo Julien (idem), é hora de o sujeito “fazer o luto
da zona do bem por identificação ao semelhante”. O outro quer do sujeito que ele
pague a sua dívida, pois também foi cruel e por esta razão recebeu a maldade dele.
Ao atingir a “segunda zona do próximo”, o sujeito confronta-se com a lei, com
o Outro que está “para além do espelho”. Nesse lugar, fora da imagem, existe a
possibilidade de prosseguir pela incorporação do significante. É a internalização da
lei no momento de declínio do complexo de Édipo. De acordo com o autor (idem:
109), nessa zona revela-se uma outra hostilidade: a da própria lei. O sujeito depara
com a culpa porque é devedor e a voz de seu credor lhe cobra o que ele não pode
pagar jamais. Há uma “maldade de si para consigo”, fato que faz Julien interrogar se
“o amor ao próximo como a si mesmo” não é exatamente “aproximar-se da própria
maldade”.
Há ainda uma “última zona do próximo” (Julien, idem ibidem): “é a condição
de exploração do Outro”, a partir da revelação de das Ding, “a Coisa”, que tem
origem na estrutura do “complexo perceptivo”, descrito por Freud (1895).
O complexo perceptivo divide-se em duas partes: a primeira é aquela na qual
o sujeito se reconhece por semelhança, através de informações mnêmicas evocadas
do corpo próprio; a segunda está relacionada ao estranho, isto é, à Coisa, como tal,
representando a zona de perigo, de hostilidade que necessita ser ultrapassada pelo
sujeito. É em torno de das Ding que o processo simbólico aspirado pelo sujeito vai
girar, com o objetivo de tamponar o furo deixado pela queda do ideal de que o outro
seria, necessariamente, o próximo do sujeito.
Lacan (1960) exemplificou o ato criador do vaso pelo oleiro – para elucidar a
ultrapassagem do sujeito no encontro com a Coisa. Um oleiro modela um vaso a
partir do vazio do ex-nihilo, do furo. O furo inicial do vaso remete ao vazio da Coisa,
e a sua modelação ao processo simbólico a que o sujeito deseja aspirar. Podemos
pensar na própria constituição do sujeito, que se processa, inicialmente, pela
identificação com a imagem do semelhante. Mas a imagem também comporta um
furo, que revela uma hostilidade. Diante da angústia provocada pela descompletude
do próximo, a psicanálise propõe que o sujeito, ao produzir seus próprios
39

significantes pelo processo de uma análise, ultrapasse a desilusão do “amor ao


próximo”, que é experimentada ao longo de sua história.
Podemos resumir “as zonas do próximo” propostas por Julien de acordo com
o esquema:

1a zona: eu = outro 2a zona: eu  maldade 3a zona: eu = das Ding


do outro (Outro radical)

Neste estudo sobre o mandamento bíblico, analisamos, a partir da


psicanálise, que “o amor ao próximo como a si mesmo” está associado “ao mal do
próximo como tal”.
A seguir, um caso clínico cuja intervenção de alguns profissionais da
Enfermaria do NESA muito tem a acrescentar sobre “o amor ao próximo”, revelado
através do ato de cuidar como “escuta paralela”, na clínica com doentes jovens.

2.4 O próximo-estranho: Fábio precisa de um pai-drinho

Dados do Prontuário
Paciente: Fábio
Idade: dezoito anos
Mãe: Nair
40

Pai: Ignorado

Fábio foi internado na Enfermaria de Adolescentes em abril de 1999, por ter


sido vítima de projétil de arma de fogo (PAF), ficando paraplégico. Além disso,
apresentou, como conseqüência, úlceras de pressão (escaras causadas pela
imobilidade do corpo ao leito), que, ao longo da internação, se complicaram,
evoluindo com osteomielite crônica (Inflamação nos ossos), secundária às escaras
de difícil controle, desnutrição e anemia. Seu estado clínico geral inspirava muitos
cuidados.
As tentativas da equipe de Saúde Mental para atender Fábio sempre foram
contínuas, apesar de ele resistir, na maioria das vezes. Quando estava disposto a
falar, referia-se a um aspecto muito importante na sua vida: “a um não ter mais jeito”,
que se repetia em sua história.
A existência de Fábio é marcada por fortes destituições. Tinha apenas alguns
meses de idade quando seu pai o abandonou. A mãe, ao sair de casa para
trabalhar, deixava-o na companhia de vários familiares. Logo cedo, começou a fugir
da residência, retornando após passar grandes períodos de tempo na rua. Nessas
idas e vindas, foi-lhe concedido, pelo tráfico de drogas, um lugar como “avião”
(olheiro) em sua comunidade. Tão comum nas grandes metrópoles, como o Rio de
Janeiro, a violência sem limites, oriunda de tal contexto social, provocou no
adolescente a perda do movimento das pernas que o levou à internação na
Enfermaria do NESA.
Segundo o próprio paciente, esse trágico acontecimento era tão assustador
que “não havia mais o que fazer diante dele”. Ao ser atingido por dois tiros, ficou
paraplégico e, uma vez que não podia mais andar, entendia que não poderia mais
ser, viver, falar...
Em entrevista com a senhora Nair, sua mãe, escutamos que Fábio aparecia
no discurso dela como aquele que “não tinha mais jeito”. Ela reproduzia as falas dos
professores, tios e irmãos, relatando o que todos sempre diziam sobre o filho. Nessa
posição subjetiva, Fábio localizava-se no Outro como um desacreditado.
Durante as primeiras semanas de internação do paciente, era evidente uma
perturbação psíquica, inclusive pela ausência de sua família. Verbalizava ser muito
41

sozinho e não ter amigos. Sua mãe, assim como seu padrasto, compareciam para
visitá-lo vez ou outra, por muita insistência da equipe multidisciplinar. Fábio passou
a apresentar um quadro de tristeza, mesclado à enfática revolta que se expressava
na recusa de todo e qualquer cuidado que os profissionais lhe ofereceriam. Segundo
relatos constantes da equipe de enfermagem, o paciente queixava-se de sua
dependência, chegando a impedir as mobilizações necessárias em seu corpo. A
preocupação dos médicos, nesse período, tornou-se intensa e foi discutida, com a
equipe de Saúde Mental, a introdução de medicamento antidepressivo –
administrado, posteriormente, pela clínica psiquiátrica.
No leito, o adolescente recebia cuidados e atenção; alguns tentavam traduzir
as suas queixas e amenizar sua hostilidade, trazendo-lhe sanduíches e
refrigerantes. Aqueles que assim procediam justificavam as tentativas como
“estratégias” para que o paciente pudesse aderir ao tratamento, já que seu estado
clínico geral se tornara crítico. Fábio exilava-se no leito, “sem desejo de continuar
vivendo” – registro do residente médico que o acompanhava. Por “não ter mais
jeito”, pois alguns pensavam que o paciente estava próximo da morte, ele passou a
receber visitas freqüentes de um sacerdote católico15. Este, ao escutar sua história
de vida, chegou à conclusão de que ele precisava de um padrinho, fato corroborado
por determinados profissionais da equipe multidisciplinar, que naquela ocasião
expressavam-se com piedade para com a situação.
Quem assumiria aquela função protetora, sem ter ciência do que poderia
pedir o sujeito a um pai–drinho?. A etimologia da palavra padrinho provém do latim
“patrinu, diminutivo de pater, pai” (Ferreira, 1975: 1016). Na Igreja Católica, o
padrinho é o protetor do afilhado na ausência dos pais. Talvez algum jovem em
início de carreira, muito emocionado, sensível e dedicado ao caso fosse o padrinho.
Um residente de medicina que prestava seus cuidados, movido de “íntima
compaixão”, tal qual o “Bom Samaritano”, e influenciado por outros membros da
equipe técnica, ofereceu-se para batizar o paciente, resistindo quanto a perceber a
questão transferencial. Naquela ocasião, o acontecimento foi visto como algo
comum pelo médico, que, devido ao seu envolvimento afetivo no caso, não pôde
escutar as observações da equipe de Saúde Mental sobre os possíveis prejuízos

15 É permitida a entrada de quaisquer líderes religiosos no HUPE e, conseqüentemente, no NESA.


42

daquele ato, tanto para um quanto para o outro. Foi um período de muito
investimento do residente com o paciente, quer no tratamento, quer na tentativa de
suprir, de maneira inconsciente, a “função do pai”. Fábio, que resistia à escuta
psicanalítica, passou a recusá-la.
Evidenciamos, no caso clínico, a “escuta paralela” à escuta na clínica do
cuidar. Conforme já ousamos dizer no início deste capítulo, “recalcar a subjetividade”
de seu paciente deveria ser um exercício do médico em sua escuta. Isso implica
dizer que ele também deveria “recalcar a própria subjetividade”, para que sua escuta
não seja desviada da sua ausculta. Esse argumento, talvez voltado para um “ideal”,
fundamenta-se numa exigência de análise pessoal do médico. Ao estimular a
questão transferencial, o médico poderá incorrer no engodo das significações do
sofrimento psíquico do paciente e “o amor transferencial, fadado a permanecer
oculto e não analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento a contribuição
que a análise dele teria extraído“, segundo alerta Freud em “Observações sobre o
amor transferencial” (1914: 210-11).
Numa Enfermaria, a transferência analítica dilui-se ao sofrer interferências;
“todos escutam mais do que deveriam”. Dessa maneira, vão cuidamando do
paciente na imagem de si mesmo no espelho, na “primeira zona do próximo”.
Fábio é incluído, na Enfermaria, no rol daqueles adolescentes que, além de
sofrerem com o diagnóstico de doença orgânica crônica, ainda sofrem pelas
condições precárias de moradia, pelo abandono da figura materna e, sobretudo, pela
“carência do pai” no complexo, que não se confunde com sua carência na família,
conforme teoriza Lacan, no Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1958).
Lacan (idem) refere-se ao pai como uma função significante – nomeada pela
instância o Nome-do-Pai. Este vem imprimir, no complexo de Édipo, um outro lugar
para o desejo da mãe, o qual passa a ser submetido a uma lei. O Nome-do-Pai
inscreve-se no Outro materno, que irá apresentar-se castrado. Assim, a criança
deixa de ser o falo da mãe para ter o falo, significante que a autorizará às
significações as quais vai aspirar durante sua história de vida.
A função do pai ocupa um lugar central em psicanálise. Para Freud, no texto
“Totem e tabu” (1913), a função paterna é depreendida em seus três registros: real,
imaginário e simbólico. O pai real está às voltas com seu próprio gozo; o pai
43

simbólico articula a lei à proibição do incesto com um desejo; e o pai imaginário é


aquele sobre o qual o sujeito emite suas queixas.
Indagamos como foram articuladas as três vertentes do pai na história de
Fábio. Podemos pensar o tráfico de drogas ocupando a “função paterna”, ao
conceder-lhe um lugar como “avião”. Porém, a dimensão do pai real apresentou-se
em sua versão mais cruel ao castrar os movimentos das pernas do sujeito, que,
certamente, infringiu as regras do tráfico. Na Enfermaria, um pai-drinho ofereceu
sua escuta, expressando-se tolerante, compreensivo e emitindo conselhos
concomitantes aos seus cuidados. O afilhado, que não estava acostumado com
tanta dedicação e afeto, estranhou sua aproximação, assim como a de todos que
estavam ao seu redor.
Fábio, em outra etapa da internação, rebelou-se contra tudo e contra todos e
sua agressividade atingiu um nível considerável em sua atuação, de maneira que
alguns profissionais tiveram a integridade física ameaçada pelo paciente. Foi um
período de grande tensão, em que Fábio passou a ser mal-dito, e a alta hospitalar
ou a transferência para outra instituição começaram a ser reivindicadas,
incessantemente. Foram realizadas várias reuniões da equipe multidisciplinar, em
caráter de urgência, com a Coordenação da Enfermaria.
A hostilidade evidenciou-se em dupla direção: a Comunidade, que tanto quis
“o bem” do paciente, defrontou-se com “o estranho do próximo”; mas o próximo, por
sua vez, também experimentou o estranho da Comunidade. O ato de cuidar revelou
o amoródio: o espelho foi quebrado e atingiu a “segunda zona do próximo”.
A Comunidade é representada pela equipe de saúde, que ordena o espaço
hospitalar e, portanto, impõe as leis. O paciente, ao querer usufruir a plena
liberdade, expressou seus impulsos libidinais e agressivos, não reconhecendo os
limites estabelecidos. Sua agressividade não pôde prevalecer sobre o grupo, que,
apesar de tudo, trabalhava em prol da sua recuperação. Fábio precisava ser
interditado, não pelo “futuro padrinho”, muito tolerante e, sim pela voz do Outro da
Coordenação, que, eximindo-se do ato de compaixão, impôs limites ao paciente. A
tensão perdurou por muitos dias na Enfermaria.
A equipe de Saúde Mental foi acionada também para intervir junto àqueles
que, ao se apresentarem bastante angustiados, se diziam prejudicados pelo
44

“comportamento” de Fábio. Os profissionais de enfermagem16 demandaram em


desespero uma escuta. Durante algumas semanas, fizemos reuniões, às quartas-
feiras pela manhã, das 8:00 às 9:00 horas. Escutávamos queixas de mágoa e
revolta; alguns verbalizavam que não entendiam por que o paciente, ao receber
“amor”, maltratava e hostilizava aqueles que prestavam seus cuidados.
O ódio do paciente pôde ser traduzido, lentamente, pelos profissionais como
um “estranhamento ao bem recebido”. Houve invasão simultânea tanto da área do
semelhante como da do próximo e, conseqüentemente, decepção no amor. Atingir a
“terceira zona do próximo” constituiu-se o encontro com o vazio, com o qual
depararam aqueles que cuidaram de Fábio e que quiseram amar a um estranho –
face oculta de todo semelhante.
Chamamos atenção para as duas abordagens no caso clínico aqui analisado:
a primeira relacionada à dedicação de alguns membros da equipe, a ponto de um
residente propor-se como padrinho – ação interditada por sua supervisora, “médica
experimentada” da Enfermaria. A outra, da situação oposta: a “hostilidade” a Fábio,
quando ele não correspondeu ao “amor ao próximo”.
Fábio17 continuava internado na Enfermaria de Adolescentes, aguardando um
procedimento cirúrgico de enxertia para as escaras. Exibia-se pelo espaço hospitalar
com seus cabelos pintados de cores diferentes. Informava à equipe sobre os
adolescentes ou seus familiares. Ao tomar ciência do óbito de algum companheiro
da Enfermaria, pôde verbalizar seu medo da morte: “quem sobe, não desce”. Essa
frase é referida à internação de pacientes no Centro de Tratamento Intensivo/CTI ou
no Centro Cirúrgico do HUPE. Acabou por encontrar uma maneira de “boa
convivência” no espaço hospitalar; na Enfermaria, tem acolhida e cuidados, o que
provavelmente não acontecerá ao receber alta médica.

16 Florence Nightingale fundou a enfermagem científica, na qual estabeleceu uma concepção no


escopo teórico dos fundamentos do cuidar, traduzido como relação de ajuda ao doente no leito.
Nightingale formulou sua teoria do cuidar baseada no ato de compaixão, a partir da escuta do
sofrimento de seus pacientes (cf. Santos, 2001).

17 Discorremos sobre o caso clínico no período compreendido entre 1999 e 2000. O comportamento
agressivo de Fábio retornou após algumas semanas, quando a equipe multidisciplinar já havia
esgotado todo seu nível de tolerância com o paciente, que se recusava à escuta psicanalítica.
Chegou-se à conclusão de que sua permanência na Enfermaria de Adolescentes já não era tão útil
aos seus cuidados, pois a cirurgia não seria possível. Realizaram-se visita domiciliar e contato com
um Posto de Saúde próximo à residência do paciente. Em outubro de 2001, recebeu alta.
45

As intervenções mais constantes da equipe de Saúde Mental na Enfermaria


consistem em pontuar uma questão que, com freqüência, tem sido observada no
cotidiano do hospital: o “mandamento do amor ao próximo”, que contém sentimentos
de piedade. Freud (1915: 150) refere-se ao termo Miltleid (literalmente “sofrendo
com”, “compaixão”), cujo significado, em alemão, é piedade. Segundo o texto
freudiano, a piedade é constituída de sentimentos contrários, o que significa
ambivalência pelo mesmo objeto. Isso equivale dizer que o sujeito poderá amar e
odiar seu objeto de desejo – atitude nomeada de formação reativa, tão comum
também nos sujeitos neuróticos.
Cabe-nos, agora, retomar o texto “O mal estar na civilização”, onde Freud
(1930) atribui ao amor a tarefa de sublimar os impulsos agressivos da cultura:

“Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a iniciar as pessoas a


identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a
restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao
próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo
fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem”
(Freud, S., idem: 134).

Uma passagem bíblica finaliza este capítulo como metáfora do paradoxo do


amor que, em sua exigência de renúncia, traz latentes os sentimentos de
ambivalência do sujeito humano.

“1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse
amor, seria como metal que soa ou como o sino que tini.
2. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios
e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
3. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e
ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria.
4. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata
com leviandade, não se ensoberbece.
5. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita,
não suspeita mal;
6. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
7. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (cf . I Coríntios 13: 1-7).
46

3 A TRISTEZA NO LEITO

Tédio

“Passo pálida e triste. Oiço dizer


‘Que branca que ela é! Parece morta!
E eu que vou sonhando, vaga, absorta,
Não tenho um gesto, ou um olhar sequer...
Que diga o mundo e a gente o que quiser!
– O que é que isso me faz?... O que me importa?...
O frio que trago dentro gela e corta
Tudo que é sonho e graça na mulher!
O que é que isso me importa? Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente...
O mesmo lago plácido, dormente...
E os dias sempre os mesmos, a correr...

Florbela Espanca

(In: Poemas, São Paulo: Martins Fonte, 1996)

3.1 Doença e inibição

Freud (1930) refere-se à fragilidade do corpo como uma das fontes de


sofrimento experimentadas pelo homem. Assim, ao afetar o corpo e ameaçar o
sujeito em sua existência, o surgimento da doença orgânica crônica vem
acompanhado de outras demandas relativas ao mal estar – fato ratificado pela
clínica psicanalítica exercida no hospital.
47

As doenças orgânicas de caráter crônico são aquelas evidenciadas pela


persistência dos sintomas e nem sempre apresentam a cura. O seu diagnóstico é
determinante de tratamento com terapêuticas invasivas no corpo do paciente.
Vejamos alguns exemplos: no câncer, a realização de quimioterapia; na insuficiência
renal, as idas à hemodiálise; no diabetes melitus, a aplicação de insulina e no lúpus
eritematoso sistêmico, a ingestão de corticóide – todas incluindo procedimentos que
cumprem determinados protocolos com horas e datas marcadas. Na verdade,
acabam por transformar-se em verdadeiros rituais para o paciente, seguidos de
encontros com médicos e outros profissionais, bem como de internações freqüentes.
As inúmeras limitações apresentadas ao sujeito interferem nos seus hábitos
alimentares, sociais, escolares, dentre outros. Ao exigir renúncia, a realidade
constitui-se em sofrimento para o sujeito que adquiriu algo a sua revelia, da ordem
de um mal introduzido no corpo e, conseqüentemente, na vida. Podemos dizer, em
termos metafóricos, que esses males, com freqüência, se apresentam como “um
espinho na carne”18: ao entranhar-se no corpo, fere, provoca dor e incomoda... para
sempre. Verifica-se uma ruptura entre presente e futuro, provocando
questionamentos: por que eu? Esta pergunta, diante da qual o paciente expressa
sua divisão subjetiva, o remete à castração.
O sofrimento orgânico exige muito do sujeito em termos de libido – energia
psíquica. Analisemos uma citação de Freud (1914) sobre a questão sugerida por
Ferenczi:

“É do conhecimento de todos, e eu aceito como coisa natural, que uma


pessoa atormentada por dor e mal-estar orgânico deixa de se interessar
pelas coisas do mundo externo, na medida em que não dizem respeito a
seu sofrimento. Uma observação mais detida nos ensina que ela também
retira o interesse libidinal de seus objetos amorosos: enquanto sofre, deixa
de amar. A banalidade desse fato não justifica que deixemos de traduzi-lo
em termos da teoria da libido. Devemos então dizer: o homem enfermo
retira suas catexias libidinais de volta para seu próprio eu e as põe para fora
novamente quando se recupera” (Freud, S., idem: 98).

18 Expressão bíblica pronunciada pelo apóstolo Paulo, para referir-se a um sofrimento que,
provavelmente, seria uma doença dolorosa: “Mas para que eu não ficasse orgulhoso demais por
causa das coisas que vi, foi-me dada uma doença dolorosa, como se fosse um espinho na carne”
(cf. II Coríntios, 12: 7).
48

Freud (idem) evidencia um consumo de energia em direção à doença,


condição necessária para o investimento no tratamento e conseqüente recuperação
do paciente. Parece-nos, também, que o autor considera a manifestação e o
trabalho de elaboração do luto, por vezes vivenciado por alguns pacientes – fato
comum observado na clínica: o aparecimento de uma doença implica perdas
objetivas. Por outro lado, certos pacientes apresentam-se desistentes da relação
com o mundo externo ao adoecerem, o que evoca uma posição subjetiva que pode
falar sobre a depressão.
O leito de um hospital é lugar de muita utilidade para o exílio de doentes
deprimidos. Diversas vezes, as impossibilidades reais de uma doença ou de um
tratamento são confundidas com a impotência dos estados depressivos. Em geral,
uma das primeiras condições observadas em doentes tristes é a inibição, expressa
pelo enfraquecimento das forças, as quais impulsionam o paciente à ação. A inibição
é um conceito psicanalítico importante para o estudo da depressão.
Freud, no texto “Inibições, sintomas e angústia” (1926) adaptou à sua teoria,
conforme pesquisa de Roudinesco (1998), o conceito de inibição utilizado pela
medicina (diminuição de uma função fisiológica19) e o definiu como conseqüência
das restrições das funções do eu, relacionadas à diminuição de uma função. Além
disso, comenta sobre cinco funções que podem apresentar inibição: função sexual,
alimentação, locomoção, trabalho e certas funções específicas.
Para Freud (idem), a inibição sexual masculina expressa-se sob quatro
maneiras: falta de prazer, falta de ereção, ejaculação precoce e falta de ejaculação.
A inibição sexual feminina assume a forma de repulsa do ato sexual, na histeria.
Quanto à inibição alimentar, o autor (idem) menciona a falta (anorexia) e o
excesso (bulimia) de apetite, referidos, preferencialmente, à histeria. A recusa à
ingestão de qualquer tipo de alimento viria relacionada, provavelmente, aos estados
psicóticos.
Em estados neuróticos, a inibição da locomoção é expressa pela indisposição
ou enfraquecimento para andar. É o que se confirma no caso de Fraülein Elisabeth
von R, uma das primeiras pacientes analisadas por Freud, em 1892.

19A inibição consiste numa “suspensão das funções de um órgão, consecutivamente à irritação de
um ponto do organismo, mais ou menos afastado; a irritação é transmitida ao órgão, que pára de
funcionar por intermédio do sistema nervoso” (Delamare, G., 1988: 607).
49

Ao inibir-se no trabalho, o sujeito, se histérico, poderá apresentar sintomas


somáticos ou experimentar uma diminuição de prazer e da capacidade para realizar
tarefas; se for obsessivo, poderá perder tempo com distrações ou repetições de
algumas ações.
Na inibição, o eu se organiza fortemente para selecionar, previamente, os
possíveis perigos advindos do isso, ditando o que o sujeito poderá ou não realizar.
Um estado de inibição afasta a formação do sintoma, uma das condições de
revelação do desejo.
Configurando-se num processo de “extraterritoriedade” à organização do eu,
o sintoma, ao contrário da inibição, representa um corpo estranho para o eu, sendo
a expressão do recalcado; o eu já se encontra enfraquecido, mas continua a sua luta
contra o que foge ao seu controle – causa de angústia. Freud (1926) não deixa de
relacionar a inibição com a angústia; para ele, a inibição representa o abandono de
uma função porque sua prática poderia ser fonte de angústia.
Um estado de inibição pode indicar manifestação de luto, depressão (inibição
generalizada) ou, ainda, melancolia (condição de inibição mais grave).
Freud, em “Luto e melancolia” (1917), afirma ser o luto uma reação normal,
desencadeada diante da perda de um objeto de amor: um ente querido, uma
abstração ou um ideal. Essa expressão de dor psíquica não é inconsciente, uma vez
que o enlutado sabe o que perdeu. A inibição e a falta de interesse, durante o
processo de luto, são resultantes do trabalho de absorção da libido pelo eu ocupado
na elaboração da perda.
O luto cumpre um tempo e é concluído, deixando, posteriormente, o sujeito
livre para adotar novos objetos de amor. Freud (idem: 276-7) diz ser “fato que as
pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na
realidade, quando um substituto já se lhes acena”. O eu no luto expressa a sua
fortaleza, o que, segundo Alberti (1999: 153), “permitirá fazer a ponte entre o luto e a
depressão como afeto”. A esse respeito, também Alberti, no texto “Depressão: o que
o afeto tem a ver com isso?”, comentando Lacan, vem elucidar a importância do
afeto:

“O afeto, para Lacan, é, portanto, uma questão de paixão, e a paixão, desde


sempre, é para o homem uma questão de sofrimento. O afeto divide o
50

sujeito pelo lado da paixão. Vou ater-me a dois tipos de sofrimento que
implicam diretamente o afeto: a já citada angústia e a depressão, ou, como
diz Freud em “Inibições, sintomas e angústia (1926), os estados
depressivos” (Alberti, S., 1989: 103).

Em Freud (1894), o afeto, quando referido ao estado melancólico, consiste no


luto por perda da libido, numa tentativa de recuperação do que foi perdido, no campo
pulsional. Portanto, o luto vem manifestar-se na afecção narcísica da melancolia
como uma reação à separação entre o sujeito e o prazer da libido.
Conseqüentemente, o sujeito apresenta-se com grave inibição – afeto paralisante –,
numa retração da libido. Freud (1894: 282) chegou mesmo a comparar tal estado a
uma “ferida aberta”.
No Seminário, livro 10: a angústia, Lacan (1963) fundamenta seus conceitos
sobre o afeto da angústia, revelando-o como decorrente de algo que não foi
simbolizado pelo sujeito e, por isso, aparece sob a forma de dor, de desprazer.

3.2 Depressão e sua tristeza

A psicanálise, com Lacan (1974), vem designar a tristeza como um afeto


referido ao campo das paixões. Lacan, interpretando a ética de Spinoza, diferencia
a tristeza de um estado d’alma:

“Não se trata de um estado d’alma é simplesmente uma falta moral, como


se expressa Dante e até mesmo Spinoza: um pecado, o que quer dizer,
covardia moral, que só se situa, em última instância, a partir do
pensamento, ou seja, do dever de bem dizer ou de orientar-se no
inconsciente, na estrutura” (Lacan, J., idem: 44).

Para Lacan (idem), a falta moral do tristonho está relacionada ao recuo do


sujeito frente ao Outro da linguagem, lugar onde o significante ordena o desejo
inconsciente. O sujeito na depressão desiste do desejo: não quer saber da
castração, passa ao largo das formações do inconsciente – uma das possibilidades
de bem-dizer o desejo. Apresenta-se em desorientação psíquica, com queixas que
revelam os efeitos do abalo no ideal, configuração narcísica que o sustentava como
objeto de amor do Outro, idealização de seu eu.
51

O afeto de tristeza não é suficiente para o deprimido lamentar-se da falta


moral que dói. Ao abrir mão de seu desejo, o sujeito diz-se culpado. Mas por que a
culpa diante de tanto desprazer suscitado pelas lágrimas na tristeza?
A culpabilidade encontra sua razão no para além do princípio do prazer, no
incômodo do gozo, desvelado ao sujeito diante da perda do ideal, deixando-o
identificado ao pior do objeto.
Quinet (1999: 93) articula a culpa do deprimido à “inadequação do gozo” e
sugere “três culpados”: primeiramente, estaria a sociedade, uma vez que não é
capaz de satisfazer as exigências de gozar do sujeito; o segundo culpado poderia
ser o Outro, mas este se mostrou inconsistente ao anunciar sua falta na queda do
ideal. Dessa maneira, só resta ao sujeito culpar a si mesmo pela falta da castração
que se transformou em covardia moral, camuflando a falta constitutiva do desejo.
Na depressão, o sujeito experimenta o sentimento de culpa pela cobrança e
punição do supereu, que o massacra e o identifica ao resto, como aquele que não
tem jeito. Daí as queixas de autodepreciação a revelarem a perda do ideal que feriu
o narcisismo, provocando tristeza e culpa. A depressão verifica a relação do eu ideal
i (a) com o ideal de eu I (A).
Lacan, no Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1954), faz um
retorno ao texto freudiano de 1914 para explicar a diferença entre as duas instâncias
psíquicas: o eu ideal, como correspondendo à modulação do narcisismo infantil; e o
ideal de eu, como consistindo no deslocamento da libido do eu para um ideal que é
da cultura, a um desvio do “amor de si”, seguido de uma introjeção.
O ideal de eu freudiano, segundo a teoria lacaniana, “forma-se com o
recalque de um desejo do sujeito pela adoção inconsciente da imagem mesma do
Outro” (Lacan, J., 1958: 763-4). Portanto, é desse lugar que o sujeito se vê amado
pela assunção da imagem do Outro. Assim, ele localiza o seu eu ideal como o objeto
amado pelo Outro, como uma lembrança do “amor de si”, de que gozava no
narcisismo primário.
Há, na depressão, uma decepção de amor, seguida de abalo no ideal de eu e
no eu ideal. O sujeito recusa-se a qualquer trabalho psíquico que o determine a
pensar no inconsciente para, conseqüentemente, passar ao ato de agir.
52

É comum os pacientes deprimidos receberem as doações do “mandamento


do amor ao próximo”, pois estão largados do amor do Outro. Suscitam a compaixão
porque padecem do amor, sempre considerado por eles como insuficiente para
sustentar seu ideal. Dessa maneira, retornam ao estado de narcisismo infantil, na
tentativa de preservarem a ilusão da perfeição do amor, de forma que não se
decepcionem.
Nesse “retorno nostálgico”, buscam “o amor de si”, não podendo atender às
exigências do ideal do eu, no qual, um dia, o eu projetou seu ideal. A possibilidade
de articulação simbólica é reduzida, pois acontece no campo do Outro, sobre o qual
o sujeito não quer nada saber. Reencontrar o Outro equivale a produzir significantes
pelo ato da fala.
Na Enfermaria, alguns pacientes tentam driblar o mal da doença, através da
disposição para agir: aderem à terapêutica médica, aceitam os cuidados de
enfermagem e não rejeitam a escuta psicanalítica, podendo falar sobre o sofrimento
causado pelo estado de adoecimento, apesar do luto.
Para outros, contudo, a irreversibilidade da doença produz, além do luto,
lesões narcísicas – efeito subjetivo da quebra da imagem, sustentação de perfeição
e completude do corpo como Outro da linguagem. As lesões causam sofrimento e,
conseqüentemente, dor física e psíquica. Frente à ferida narcísica, o eu se inibe,
entristece, e o sujeito apresenta-se deprimido no leito.
Nessas ocasiões, alguns profissionais da equipe técnica de saúde costumam
fazer uma separação entre tristeza e depressão, como se a primeira condição
psíquica não tivesse relação com a segunda. Ao localizarem a entidade depressão 20
no discurso da ciência, formulam-na como uma doença que necessita da
erradicação por medicamentos. Ratificamos nossos ditos com o enunciado de um
médico em reunião multidisciplinar sobre o estado depressivo de uma adolescente:
“Se for depressão, medicaremos, mas me parece só uma tristeza. Não sou
especialista na área; deixaremos isso para o pessoal da Saúde Mental”.

20 Caetano, em Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10 (1993),


relaciona uma série de classificações psiquiátricas da depressão. Um dos exemplos são os
episódios depressivos típicos, variando de graus que vão do leve, passando pelo moderado, ao
grave.
53

A fala do médico confundiu-se na tentativa diagnóstica, uma vez que a


depressão é uma das formas clínicas do afeto da tristeza. Embora saibamos da
eficácia terapêutica dos medicamentos, não é possível reduzir o sofrimento da dor
psíquica a uma simples visão organicista, que foraclui o inconsciente. Não podemos
esquecer que a psicanálise tem, sistematicamente, investigado temas querelantes, a
depressão21 inclusive, contribuindo com os outros campos do saber, como o da
medicina, por exemplo.
Passaremos, no próximo subitem, à discussão de um caso clínico, cuja
análise revela a alteração do prognóstico devido ao estado de depressão de uma
jovem portadora de doença orgânica crônica.

3.3 “Mais um caso perdido”: Camila no leito 10

Camila é uma jovem de vinte anos, que teve sua primeira internação na
Enfermaria de Adolescentes em 1995. Segundo dados do prontuário, aos onze anos
apresentou quadro de fraqueza em membros inferiores, com perda de força
muscular, diminuição da sensibilidade e dificuldades de deambulação (locomoção),
com quedas repetidas ao chão.
A família procurou auxílio médico e diagnosticou-se na paciente um
hemangioma (tumor vascular) na coluna vertebral. Camila foi submetida à cirurgia
para descompressão medular, quando apresentou paraplegia de membros
inferiores. Não há informações precisas sobre a causa da paraplegia, cuja origem
pode ter sido por seqüela do próprio hemangioma ou por iatrogenia médica. A partir
de então, iniciou-se uma história drástica em que são contadas perdas reais na vida
da adolescente.
Sua entrada na Enfermaria, aos quinze anos, foi devida aos problemas
secundários à paraplegia, como, por exemplo, as úlceras de pressão: escaras que

21Participamos do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose entre 1995 e 1998, quando se discutiu, durante
meses, o tema da depressão. Esse Núcleo foi realizado na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção
Rio, coordenado por Antonio Quinet. Em 1997, houve jornadas clínicas sobre o tema, culminando
na publicação do livro A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão e melancolia.
54

abriram alguns orifícios em seu corpo. Na época, alguns médicos já demonstravam


preocupação com o estado de ânimo da paciente, o qual foi avaliado como
“depressivo”. Provavelmente, esse parecer deveu-se à tristeza expressa nas
lágrimas de Camila, que reclamava quando da ausência de sua mãe do hospital.
Desde os primeiros dias de internação da adolescente, a escuta psicanalítica
foi-lhe oferecida, mas a paciente, constantemente, a recusava. Apresentava uma
certa indiferença em relação ao seu estado clínico geral. Fazia questão de parecer
estar sempre bem, ao verbalizar que não tinha “nada a falar”. Apesar da condição
física precária, andava em cadeira de rodas, conversava com os demais
adolescentes, exibindo-se com os lábios e unhas fortemente pintadas de vermelho.
Essa era a aparência mais comum com que se manteve nas diversas internações na
Enfermaria, durante os quatro anos iniciais de idas e vindas.
Camila tornou-se um daqueles pacientes que já fazia parte do cotidiano
hospitalar, e cada alta médica significava um possível retorno, pelas dificuldades de
realização de certos cuidados específicos na residência. Assim, justificava sua mãe,
senhora Leila, quando a filha retornava ao hospital.
É importante ressaltar que senhora Leila acompanhava a adolescente nas
internações, mostrando-se preocupada e carinhosa: preparava a alimentação de
Camila (que, até hoje, se recusa a comer a comida do hospital) e prestava todos os
cuidados maternos necessários a um sujeito que adoeceu na puberdade. Tentamos,
inúmeras vezes, realizar entrevistas com a mãe da paciente, que, resistente,
respondia “não ter nada a falar com psicólogo”. Essa frase acabou por ser,
posteriormente, reproduzida pela filha com certa freqüência.
Seu pai, senhor José, fazia-lhe constantes visitas. Antes do nascimento de
Camila, ele era casado e vivia maritalmente com outra mulher, tendo constituído
família da qual não se desligou oficialmente – fato que não lhe impedia de dedicar-
se à Camila e à sua mãe. A filha mantinha verdadeira adoração pelo pai.
Nos dois últimos anos em que se mantém continuamente na Enfermaria, a
equipe médica vem observando uma involução no estado clínico geral da paciente.
As úlceras de pressão apresentam difícil cicatrização e o seu emagrecimento é
visível. São inevitáveis os contatos da paciente com a irreversibilidade do mal no
55

corpo. Porém, um acontecimento veio somar-se à doença: no ano passado (2000),


seu pai foi internado no HUPE, vítima de complicações cardíacas, e faleceu.
A equipe de Saúde Mental vem fazendo sucessivas tentativas para atender à
paciente, que continua resistente às chamadas, ao deixar claro um não querer, uma
falta de vontade. As raras vezes que Camila quis falar, nós a escutamos a respeito
do afeto que mantinha pelo pai – ideal de seu eu, lugar onde a jovem se sentia
amada, sustentado pela pessoa do pai. Diante de mais um abalo narcísico pela
perda de um ideal, a moça “alegre e vaidosa”, como alguns costumavam qualificá-la,
entristeceu.
Nesse período, sua mãe afastou-se e não lhe dedicou a atenção devida. A
senhora Leila justifica sua ausência ao dizer que não agüenta mais ver a filha sofrer.
Atualmente, seu discurso mudou, alegando estar procurando emprego, para poder
ter uma moradia melhor e levar a filha com ela.
Na morte do companheiro, a mãe distanciou-se da filha, desinvestindo na
relação de ambas. A morte do senhor José desvelou-lhe o horror da doença da filha.
No leito 10, a paciente fixou sua moradia, de onde recebe tratamento médico e
fisioterápico, cuidados de enfermagem e, quando permite, a escuta psicanalítica.
Parece decidir no leito “pela desistência”, num estado depressivo, em que “a tristeza
passou ao ato de inibir o dinamismo da vontade”, como anuncia Soler (1999: 101).
Camila apresenta uma diminuição em suas funções, tanto para locomover-se
em cadeira de rodas, como para alimentar-se ou trabalhar em seus objetos manuais
(bijuterias, bordados, etc), que outrora tanto gostava de confeccionar. Alimenta-se
de biscoitos, frutas e quentinhas, comprados pelas faxineiras fora da instituição e
pagos com o dinheiro angariado com venda das bijuterias que produzia. Quando o
dinheiro acaba, não come e necessita de alimentação enteral22 para nutrir seu
organismo debilitado.
A constante permanência da paciente no leito e o sono em demasia retardam
alguma melhora em seu quadro clínico, pois prejudicam a cicatrização das escaras.
Contudo, indagamos qual o ganho que um sujeito poderá retirar de um estado como
esse?

22Uma sonda que, introduzida pelo nariz, vai até o intestino delgado, levando uma combinação de
nutrientes.
56

O leito para Camila representa mais que um lugar onde ela recebe cuidados:
acolhe sua depressão – condição subjetiva que a mantém deitada ao mesmo tempo
que dificulta o fechamento de suas úlceras de pressão no corpo. E a paciente exila-
se no leito, identificada à cronicidade de sua doença, ao esperar e implorar pelas
visitas da mãe. Temos, nesse caso, o que Freud (1905) designa como o “ganho
secundário da doença”, ou seja, as vantagens que o sujeito poderá obter num
estado de adoecimento.
Freud descreve, pela primeira vez e de maneira sutil, “o ganho secundário da
doença”, em uma de suas correspondências a Fliess – “Carta 76, datada de 18 de
novembro de 1897”. Nela, menciona a relação de um diagnóstico médico (tumor)
com a histeria. Na “Conferência XXIV: O estado neurótico comum” (1917), ilustra a
condição de ganho secundário, ao citar o exemplo de um homem que, ao sofrer uma
mutilação num acidente de trabalho, passou a esmolar. O acidente (fator externo)
serviu para o sujeito retirar proveito e explorar a situação.
Mas foi em nota de rodapé, acrescentada em 1923 sobre o Caso Dora, que
Freud (1905: 40-1) fornece uma explicação clara do assunto, na neurose. Segundo o
autor, a neurose também apresenta um ganho primário: a fuga constante que o
aparelho psíquico realiza frente a um conflito, em conseqüência da economia de
energia, representada na atração que a doença provoca. Quando ao ganho primário
junta-se um elemento exterior, deflagra-se o ganho secundário.
Pelas explicações freudianas, atestamos a tentativa de um caráter de ganho
secundário de nossa paciente para receber afeto e atenção da figura materna que,
no entanto, não responde aos seus chamados. Porém, alguns membros da equipe
multidisciplinar de saúde parecem tê-la adotada ao chamá-la de “meu bebezinho”.
Seu leito é cercado de bichos de pelúcia como se fosse um berço. Difícil tarefa para
um sujeito, nessas circunstâncias, tentar erigir algum ideal; sua tristeza é acentuada
pelas dádivas institucionais que a mantêm como uma “pobre coitada”. Essa postura
não é unânime e, sim daqueles mais afetados com o caso que, em sua “escuta
paralela” ao ato de cuidar, praticam “o mandamento do amor ao próximo”.
Na sua última internação, a tristeza representou-se pela depressão, quando
Camila deparou com a queda do ideal do pai que a sustentava como objeto amado.
A partir dessa queda, manteve-se “à parte” do desejo, o que levou ao agravamento
57

de seu estado orgânico. Camila, então, foi considerada, no discurso médico, como
“mais um caso perdido”.
Lembramos que a depressão é um estado de inibição, o qual foi teorizado por
Freud em 1926. Porém, existe uma relação entre a inibição e a angústia; ao inibir-se,
o eu abandona uma função porque sua prática representaria fonte de angústia.
Disso advém que o afeto da depressão se manifesta para evitar uma determinação
inconsciente e conseqüente surgimento do sintoma. Porém, nem tudo está perdido!
Não desistimos de escutar a jovem; sua tristeza engana sobre o seu desejo. O
trabalho com pacientes portadores de doenças crônicas nunca é fácil, pelas
peculiaridades em cada diagnóstico.
Passados alguns meses, Camila23, oficialmente, não deveria mais estar
internada na Enfermaria de Adolescentes, já que completou, em outubro deste ano,
vinte e um anos. A equipe médica aguarda por um procedimento de enxertia nas
regiões atingidas pelas úlceras de pressão. Caso sua mãe tenha condições de
recebê-la e prestar-lhe os cuidados, receberá alta. Mas, por enquanto, só lhe resta
exilar-se no leito 10 – local de acolhimento do sono como condição favorável ao seu
estado depressivo, ao representar a retirada quase completa da libido até o eu.
Pode-se inferir que, na depressão, dormir é semelhante a morrer, como
desistência do desejo – covardia moral. Quinet, citando Hamlet acerca do desejo de
dormir, afirma que este “se impõe arrancando o sujeito dos laços libidinais para jogá-
lo nos braços de Morfeu e, assim, apagar a realidade que lhe aparece penosa, e
amortece os ‘choques dos quais a carne é herdeira’” (Quinet, A., 2000: 73-74):

To die – to sleep
No more, and by a sleep to say we end
The hear – ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to.
Hamlet

23Abordamos o caso de Camila a partir da última internação – de 1999 até junho deste ano. Camila
completou vinte e um anos. A Enfermaria de Adolescentes ofereceu-lhe uma festa, como faz para
com todos os pacientes que aniversariam lá. Compareceram alguns de seus familiares, inclusive a
sua mãe. Sua maioridade serviu como um ponto de limite para a equipe multidisciplinar posicionar-
se frente ao caso, em que se cogita a possibilidade de uma visita domiciliar, com o objetivo de dar-
lhe alta.
58

4 A DOR QUE PETRIFICA

“A DOR é uma das coisas mais importantes de minha vida. A


palavra ‘escrito’ não seria adequada. Encontrei-me diante de
páginas metodicamente repletas de uma letra
extraordinariamente regular e calma. Encontrei-me diante de
uma fenomenal desordem do pensamento e do sentimento que
não ousei tocar, e comparada a qual a literatura me
envergonha”.

Marguerite Duras

(In: A DOR, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986: 08)

4.1 Dor física e dor psíquica

Freud, no texto “Projeto para neurólogos” (1895), formula suas primeiras


concepções sobre a questão da dor física, as quais, posteriormente, serviriam como
modelo para discorrer sobre a dor psíquica, em suas manifestações clínicas de luto,
depressão e melancolia. Reproduzir o conceito de dor física elaborado por Freud
(idem: 408-9; 424-5) não é tarefa fácil, porque se faz necessário um retorno ao
sistema neuronal referido pelo autor.
A dor, “o mais imperativo de todos os processos”, é o resultado da ruptura de
grandes quantidades de energia (Qs) provenientes do exterior, que ultrapassaram os
neurônios classificados como fi (), e irromperam nos neurônios classificados como
psi ().
Os neurônios  são “permeáveis”, o que possibilita a entrada dos estímulos
externos; já os neurônios  são “impermeáveis” e, ao contrário dos primeiros, fazem
barreira de contato e apresentam resistência à chegada dos estímulos externos.
59

Ambos são responsáveis pela percepção: os primeiros “nada retêm”; os segundos,


por sua vez, “são retentores” e participam do processo de memória.
As barreiras de contato, ao serem atingidas nos neurônios , ficam alteradas
pela excitação do estímulo e permitem, cada vez mais, a entrada de novos
estímulos, tornando esses neurônios “menos impermeáveis” e, portanto, mais
propícios à condução do estímulo, tal como acontece com os neurônios . Dessa
maneira, a memória do estímulo externo (objeto hostil) fica representada pelas
diferenças de facilitações possíveis entre os neurônios . Essas facilitações
dependem da “magnitude da impressão e da freqüência com que a mesma se
repete”.
As Qs em nível elevado, ao atingirem os neurônios , produzem um
desequilíbrio do nível de energia, que é experimentado como desprazer pelos
neurônios , ocasionando “a dor propriamente dita”. Isso equivale dizer que, quando
a energia aumenta em , a catexia se eleva em . Caso a energia diminua, a catexia
cairá.
Os dois sistemas neuronais são postos a funcionar ao mesmo tempo, e as Qs
em  chegam à consciência como sensação de qualidade. Quando “a imagem
minêmica do objeto hostil” é reinvestida por uma nova percepção, surge um estado
de desprazer muito semelhante ao da dor e a “tendência à sua descarga
corresponde à experiência da dor”. Essa experiência diz respeito à irrupção de afeto
– expressão de uma imagem minêmica catexizada e liberada do interior do corpo. A
liberação, segundo Freud (1895: 425), é devida aos neurônios secretores
(nomeados “chave”), que, quando excitados em , provocam no interior do corpo a
manifestação de algo que atua como estímulo sobre as vias endógenas de
condução até .
A partir de suas elaborações sobre o tema da dor, Freud conclui que:

“A dor passa por todas as vias e descargas, fato que possibilita as trilhas de
facilitações em  e como um raio suprime as resistências das barreiras de
contato, estabelecendo ‘via de condução’ em  como também as que existem em
” (Freud, S., idem: 409 – grifo nosso).
60

A metáfora freudiana da dor como um raio permite-nos, a seguir, elaborar


um esquema, onde o fenômeno da dor tem início por um estímulo externo,
promovendo falhas de todos os dispositivos biológicos que foram atingidos em seu
limiar de eficiência. A percepção de uma excitação dolorosa imprime, na
consciência, a imagem da lesão do corpo, como representação psíquica da área
afetada.
Ao fracasso da homeostase, seguem-se o estado de desprazer e a dor
propriamente dita. Os ângulos do raio, tanto à direita como à esquerda, simbolizam
os limites a que o organismo está submetido.

Sintetizando o esquema da dor como um raio, a reprodução da experiência


da dor surge como manifestação do reinvestimento dos restos de lembranças do
61

objeto hostil por uma nova percepção qualquer. O desprazer liberado no interior do
corpo é novamente transmitido ao aparelho psíquico pelas trilhas facilitadoras.
Para Freud (1895: 426-7), as lembranças de experiência de dor, assim como
as de satisfação, constituem os afetos e os estados de desejo e produzem aumento
de tensão em . Tanto a dor, que corresponde ao aumento de Qs, quanto a
satisfação, que equivale à descarga dessa energia, passam por um processo de
regulação, de prazer-desprazer. Este argumento psicofísico, utilizado pelo “princípio
de constância”, foi atribuído ao médico e filósofo alemão G. T. Fechner e
comparado, na obra de Freud, à noção de homeostase.
Em 1926, no texto “Inibições, sintomas e angústia”, Freud afirma ter
encontrado o ponto de analogia entre dor física e dor psíquica, tema anteriormente
estudado no “Projeto”, em 1895: o que está em questão, de acordo com suas
palavras, é o sentimento de perda experimentado em ambas:

“Quando há dor, ocorre um alto grau do que pode ser denominado de


catexia narcísica do ponto doloroso. Essa catexia continua a aumentar e
tende, por assim dizer, a esvaziar o eu. Sabe-se que quando os órgãos
internos transmitem dor recebemos representações espaciais e outras
representações de partes do corpo que de maneira comum não são
absolutamente representadas em ideação consciente” (Freud, S., 1926:
196).

Ainda de acordo com Freud (idem), a passagem da dor física para a dor
psíquica corresponde à mudança de catexia narcísica para catexia de objeto. Na dor
psíquica, a perda de objeto ou a sua falta expressa uma concentração de catexia de
anseio, que tende a aumentar, uma vez que não pode ser aliviada. Tal anseio
assemelha-se ao da dor física, pela sensação da perda na área lesada do corpo.
Portanto, na dor psíquica, o anseio pulsional – energia pulsional –, para representar
o objeto, produz um “estado de desamparo”, experimentado pelo aparelho psíquico
como desprazer e, conseqüentemente, como dor. Isso evidencia um fracasso do
aparelho psíquico.
Freud retoma as idéias de Fechner, sobre as quais já havia feito menção no
“Projeto”, ao atribuir uma “tendência primária da vida psíquica a evitar o desprazer”:
62

“Até onde os impulsos conscientes sempre possuem uma certa relação com
o prazer e o desprazer, estes também podem ser encarados como
possuindo uma relação psicofísica com condições de estabilidade e
instabilidade. Isso fornece a base para uma hipótese em que me proponho
ingressar com maiores pormenores em outra parte.

De acordo com ela, todo movimento psicofísico que se eleve acima do limiar
da consciência é assistido pelo prazer na proporção em que, além de um
certo limite, ele se aproxima da estabilidade completa, sendo assistido pelo
desprazer na proporção em que, além de um certo limite, se desvia dessa
estabilidade, ao passo que entre os dois limites, que podem ser descritos
como limiares qualitativos de prazer e desprazer, há uma certa margem de
indiferença estética” (Fechner; cf. Freud, S., 1920: 18-9).

Segundo o “princípio de constância”, a tendência da vida primária a fugir do


desprazer poderia estar identificada ao estado de inércia pela evitação da excitação.
Em 1915, no texto “As pulsões e suas vicissitudes”, o “princípio de
constância”, nomeado por Freud de “Nirvana”, ainda está correlacionado ao
“princípio do prazer”; porém, o autor já expressa um questionamento a esse
respeito. Somente em 1920, Freud identifica o “princípio do prazer” como
conseqüência do princípio do Nirvana. Chama atenção para o fato de que o
“princípio do prazer”, considerado como método primário de funcionamento do
aparelho psíquico, “não é eficaz e poderá, até mesmo, ser perigoso” para as pulsões
de autoconservação, que lidam com as adversidades externas enfrentadas pelo
organismo.
Assim, “pela influência das pulsões de autoconservação do eu, o princípio do
prazer cede lugar ao da realidade” (Freud, S., 1920: 20-1). O princípio da realidade
não despreza o prazer, mas sua forma de obtê-lo é completamente diferenciada:
dependerá das exigências de uma ação específica, que passará pelas vertentes das
pulsões sexuais; estas, por serem “difíceis de educar”, sempre estarão
“insatisfeitas”.
Em elaborações posteriores, no texto “O problema econômico do
masoquismo”, Freud (1924) deixa claro que o princípio de Nirvana “expressa a
tendência da pulsão de morte; o princípio do prazer representa as exigências da
libido e a modificação do último princípio, o princípio da realidade, representa a
influência do mundo externo”. (Freud, S., idem: 201).
A vida psíquica, ao passar pelo processo de regulação prazer/desprazer,
tende a fugir da dor; assim, perguntamos como o sujeito poderá lidar com as
63

conseqüências da invasão tão imperativa da dor. Para melhor elucidarmos a


questão, ilustramos, com dois casos clínicos, a experiência da dor, quer física, quer
psíquica.

4.2 Elisabeth: a dor da conversação

Uma das primeiras pacientes analisadas por Freud (1895), Fraülein Elisabeth
von R., sofria de fortes dores nas pernas há mais de dois anos, quadro clínico
intimamente relacionado às suas dores psíquicas.
Freud, devido à sua precisão clínica como neuropatologista e aos estudos
realizados com Charcot na Salpêtrière, bem como à sua escuta que, cada vez mais,
se dirigia à investigação do inconsciente, identifica, na jovem, sintomas orgânicos e
psíquicos a partir das queixas de dores. O autor revela, através do caso, que o
inconsciente é capaz de alterar um quadro álgico orgânico, bem como de criar dores
conversivas.
As dores periosterais (nos ossos) e neurálgicas (nos nervos), que
acompanham as dores dentárias, as dores de cabeça, as dores musculares
reumáticas e as dores orgânicas mais comuns são citadas por Freud (idem: 223-4)
como aquelas que podem ser intensificadas pela neurose.
Freud diagnostica em Elisabeth uma dor de origem orgânica – reumatismo
muscular crônico comum –, que, segundo sua escuta, foi copiada pela histeria da
paciente. Certamente, sua observação foi possível porque atribuiu à fenomenologia
um critério importante para o estabelecimento do diagnóstico diferencial.
Sem dúvida, não podemos deixar de considerar as observações de Freud
como válidas para o trabalho do psicanalista, no que tange à descrição da dor pelo
paciente. Chamamos atenção para o fato de que nem sempre constatações
fenomenológicas são levadas em consideração. A fenomenologia tem seu lugar
nessa clínica, principalmente para aquele que exerce atividades no hospital.
A partir de sua primeira entrevista com Elisabeth, Freud (idem) estabelece
certas diferenças quanto à descrição e à sensibilidade em dores de origem histérica,
64

hipocondríaca e orgânica, como demonstra o quadro a seguir, elaborado de acordo


com nossas pesquisas:

A FENOMENOLOGIA DA DOR

Histeria Hipocondria Doença Orgânica


Descrição: Forma indefinida; Parece estar desempenhando Forma definida; ocorre
intensidade variada; tarefa superior às suas forças; em certos intervalos de
desenvolvimento jamais se cansa de acrescentar tempo, que se
gradativo. novos detalhes. Parece estar estendem desse para
empenhado numa difícil tarefa aquele lugar.
intelectual; as feições contraem-se, Parece ser provocada
como se estivessem sob a por uma coisa ou
influência de uma emoção aflitiva; outra; dores
empenha-se em encontrar um meio lancinantes.
de expressão; rejeita qualquer
descrição das dores, sugerida pelo
médico.
Sensibilidade Indiferente; a expressão Esquiva-se, retrai-se e resiste; a Esquiva-se, retrai-se e
quanto ao do rosto não se ajusta à expressão do rosto é de mal-estar. resiste; a expressão do
exame: dor (prazer). rosto é de mal-estar.

Por um lado, se o psicanalista não deve deixar de reconhecer a


fenomenologia, por outro não se quer dizer que seja essa a direção a ser seguida
em sua prática clínica: sua escuta diz respeito às formações do inconsciente – ato
falho, chiste, sonho e sintoma.
Elisabeth tinha vinte e quatro anos quando foi encaminhada por um médico a
Freud. Queixava-se de “grande dor no andar e de cansar rapidamente, tanto ao
andar como ao ficar de pé”. Freud (1895) localiza, na região da dor na coxa direita,
uma grande área da superfície anterior a sinalizar o foco que se irradiava. Aquela
hiperalgia manifestava-se também na outra perna; ambas apresentavam grande
sensibilidade à dor, nos músculos e na pele.
Segundo avaliação do exame físico, a força motora das pernas não era
pequena e os reflexos apresentavam força média. Os sintomas álgicos
desenvolveram-se durante os dois anos anteriores à procura da paciente por Freud
65

e, para ele, não podia levantar-se nenhuma hipótese de “qualquer afecção orgânica
grave”.
Freud (1895) concorda com o diagnóstico de histeria suspeitado pelo médico
que lhe indicara a paciente. Sua conclusão deve-se, principalmente, pelo ar de
prazer expresso no rosto da moça, no momento do exame; não é comum um
paciente, com dor de origem orgânica ou um hipocondríaco, expressar-se daquela
forma ao estímulo da região sensível à dor. Isso possibilita a Freud destacar o
caráter de erogeneização da área afetada no corpo, no sintoma da dor, que
anunciava “pensamentos ocultos” em Elisabeth.
Ao seguir, em sua investigação clínica, levanta uma outra hipótese, que não
contradiz a primeira de histeria: os músculos que eram mais sensíveis à dor, e que
estavam endurecidos, puderam indicar que Elisabeth sofria de reumatismo muscular
crônico comum. Provavelmente, a neurose da paciente ligava-se demasiadamente à
dor, exacerbando-a. Dessa maneira, Freud (idem) sinaliza as primeiras evidências
do inconsciente na participação do sintoma.
O quadro álgico foi considerado de origem mista; prescreveu-se, para a
paciente, um tratamento das pernas com correntes elétricas de alta tensão,
acompanhado de massagem e faradização dos músculos sensíveis. Elizabeth
apresentou alguma melhora e pareceu ter gostado dos choques.
Após quatro semanas, Freud propõe-lhe seguir uma outra etapa: começar o
tratamento psíquico, ao qual a moça não resistiu. Inicia-se o tratamento catártico, o
que implica perguntar se a paciente tinha consciência da “origem e da causa
precipitante da doença”. Ele não revela o que a jovem respondeu, porém, sua
hipótese é a de que ela sabia o que lhe estava causando a perturbação expressa em
seu quadro álgico. Naquele momento, não foi preciso o recurso da hipnose, embora
Freud tenha utilizado o processo de “desembaraçar camada por camada” 24 do
material patogênico, como se estivesse participando das escavações de Pompéia.
Posteriormente, a hipnose foi necessária ou técnica semelhante, como deitar a
paciente de olhos fechados.
Elisabeth era a mais nova de três irmãs. Seu pai, “homem das rodas
mundanas”, mantinha uma forte ligação afetiva com a filha. Ele dizia que a moça

24 Freud (1895: 188) compara a técnica à de “escavar uma cidade soterrada”.


66

estava no “lugar de um filho e de um amigo” com quem poderia conversar. Ela


conservava orgulho pelo pai, que a chamava de “atrevida e convencida”. Frau von
R., a mãe, sofria de doença nos olhos e era “mulher perturbada pelos estados de
nervos”, fato que mantinha Elizabeth longe da mãe e ainda mais ligada ao pai.
A família, ao mudar-se para a capital da Hungria, viu-se frente ao primeiro
abalo, razão de muito sofrimento: o pai fora acometido de um edema pulmonar
agudo, em decorrência de uma afecção cardíaca crônica. Ficou dezoito meses no
leito de dor, quando Elisabeth ocupou o lugar de enfermeira junto à figura paterna,
que veio a falecer. O reumatismo muscular crônico foi adquirido nessa época.
Com a morte do pai, a paciente enfrentou um forte estado de luto; após
conseguir elaborá-lo, ela passou a procurar razões para “substituir a felicidade
perdida”, como também dispensou mais atenção à sua mãe.
Sua irmã mais velha casou-se com um homem que não demonstrava afeto
pela mãe de Elisabeth – fato que a jovem não podia suportar. O casamento da
segunda irmã parecia ser mais ameno para a moça: o cunhado era afetivo com a
sogra doente, que teve de submeter-se a uma cirurgia na vista. Elisabeth voltou,
nesse período, a exercer junto à mãe seus cuidados de enfermagem durante várias
semanas. Posteriormente, ao encontrar-se reunida com toda a família em férias,
queixou-se de dores e fraqueza locomotora, sendo aconselhada pelo médico a um
tratamento hidropático nos Alpes austríacos.
A viagem para a Áustria foi causa de angústia para Elisabeth, pois sua irmã
mais nova ficara doente. Ao passar quinze dias na cidade de Gastein, teve de
regressar com sua mãe após receberem a notícia de que a irmã se encontrava em
estado gravíssimo de saúde.
A irmã, muito amada por Elisabeth, sofreu, no início da adolescência, de
coréia (provocada por febre reumática), que foi seguida por doença cardíaca branda.
A segunda gravidez acentuou a doença e a jovem veio a falecer. Mais uma vez
Elisabeth experimentou um luto e ficou em reclusão social, cuidando de suas
“próprias dores”, como também das de sua mãe.
Com o início do tratamento, Freud (1895) constata que as dores histéricas de
Elisabeth foram reproduzidas a partir de uma dor de origem orgânica: reumatismo
muscular crônico na perna direita. Nas palavras freudianas, aquele ponto doloroso
67

tornou-se uma “zona histerogênica atípica”: era naquele lugar que o pai enfermo
descansava uma de suas pernas todas as manhãs, enquanto a filha trocava as
ataduras. Elisabeth procedeu assim “umas cem vezes”, o que causou um
enrijecimento dos músculos de sua perna direita e, conseqüentemente, uma lesão.
A partir de então, a dor – de origem orgânica – possibilitou o aparecimento
das trilhas facilitadoras, que permitiram, através dos restos de lembranças do
freqüente estímulo hostil, a formação das dores conversivas. Freud (idem)
diagnostica um sintoma físico ligado a um complexo minêmico da mente: cada
lembrança que evocava para a paciente um fato traumático correspondia uma
sensação de dor. Assim, “as pernas começaram a conversação durante a análise 25”,
deixando evidente o fato mais significativo do quadro clínico da paciente: dor física e
dor psíquica se fundiam e pareciam apenas uma.
Freud (idem), no decorrer da análise, a partir do discurso da moça, observa
que as dores da perna direita lembravam-na os cuidados ao pai doente e também os
sentimentos afetuosos despertados por um certo amigo. Numa ocasião, Elisabeth
saiu com esse rapaz e, ao regressar à residência, encontrou o pai pior de saúde.
Seu interesse pelo jovem entrou, naquele instante, em conflito com os cuidados que
deixou de dispensar ao pai enfermo no decorrer do dia. Duas reações opostas
emergiram: a alegria experimentada pelo encontro amoroso e o estado de tristeza
pelo agravamento da doença do pai.
Chamamos atenção de que, para Freud, “a idéia erótica foi recalcada da
associação e a emoção ligada àquela idéia foi utilizada para intensificar ou reviver
uma dor física que se achava presente simultaneamente, ou pouco depois” (Freud,
S., 1895: 196). As dores conversivas tiveram a sua origem nesse período e estavam
ligadas a lembranças tristes, com sentimento de luto, e a conflitos.
Ao dar seqüência ao tratamento, Freud identifica que as dores da perna
esquerda evocavam lembranças à Elisabeth de sua irmã morta, que fora tão amada.
A primeira vez que irromperam as dores na paciente foi após um passeio com a
família, quando, em momento íntimo, trocou idéias com a irmã sobre o casamento
feliz desta, o que lhe despertou anseios por um marido igual ao seu cunhado e
desejos eróticos com ele. Elisabeth apresentou fraqueza locomotora e, desde então,

25 Expressão de Freud (idem: 197).


68

foi vista como a “inválida da família”, sendo aconselhada a tratamento nos Alpes
austríacos.
Durante a viagem, sentiu “dores lancinantes”, as quais puderam ser
interpretadas como uma preocupação com a irmã doente. Ao regressar, em caráter
de urgência pelo agravamento do quadro clínico da irmã, chegou tarde demais. Em
pé, ao lado do leito de morte, uma idéia incompatível atravessou-lhe a mente:
“Agora, ele está livre novamente e eu posso ser sua esposa”. Freud destaca um
aspecto importante: o “ficar de pé” invocava outra situação: a cena do ataque
cardíaco do pai, quando também Elizabeth ficara de pé ao lado de uma porta.
Elisabeth sofria de um complexo denominado astasia-abasia, que tornara o
seu “caminhar doloroso”, causando-lhe dificuldades para ficar de pé, assim como
para deitar. Freud lembra que essas são “funções e estados das partes do corpo”
(Freud, S., idem: 200). A astasia corresponde à privação da posição ereta; a abasia,
à privação da marcha.
A paciente sofria da falta do movimento, expressa, simultaneamente, em seu
caminhar físico e psíquico, que se tornaram dolorosos. Havia experimentado uma
série de estados de luto pelas perdas de objetos de amor – o pai e a irmã –, que
ocuparam lugar de ideal. Por outro lado, vivenciara sentimentos contrários pelas
mesmas figuras que tanto amava. Só lhe restava, então, o sofrimento manifesto nas
dores, pela “conversão bem sucedida”.
A associação freudiana entre dor e movimento desperta-nos uma outra: o
conceito de inibição como fundamental para a seguinte questão: não há dor física
sem dor psíquica; ambas estão relacionadas ao movimento.
Nossas enunciações vão ao encontro das de Lacan, no Seminário, livro 10: a
angústia (1963), quando, ao associar inibição e movimento, deixa claro que o
conceito a que se refere não se restringe apenas à função da locomoção, mas,
sobretudo, àquela de paralisação de qualquer movimento: “ele existe pelo menos
metaforicamente” (Lacan, J., idem: 18). Para melhor elucidar esse ponto de vista,
distingue dois eixos de coordenadas: o vertical, relacionado ao movimento; o
horizontal, à dificuldade.
Lacan reforça o fato de que a angústia como expressão da rede
movimento/dificuldade deve estar presente no grafo, juntamente com os conceitos
69

de inibição e sintoma – elaborados por Freud (1926). Contudo, para que faça série,
deve ser representada em diagonal, a fim de que os espaços que sejam
preenchidos:

Dificuldade

Inibição X X

X Sintoma X
Movimento

X X Angústia
(Lacan, J., 1963: 17)
As etapas de preenchimento do gráfico são explicadas, de acordo com as
ações com que o sujeito depara. Nem todos os espaços vêm preenchidos.

Sintoma Sujeito

Dificuldade

Inibição Impedimento Embaraço

Emoção Sintoma X
Movimento

Perturbação X Angústia
(Esmagamento)
(Lacan, J., idem: 19)

Na coordenada da dificuldade, aparece a palavra “impedimento”: “estar


impedido é um sintoma; e inibido é um sintoma posto no museu” (Lacan, J., 1963:
19), o que não deixa de suscitar a angústia.
Posteriormente, acrescenta o termo “embaraço” vinculado à noção de
obstáculo, sugerindo o sujeito barrado. O eixo da dificuldade desemboca no
embaraço como forma leve da angústia.
70

Quanto à outra dimensão, Lacan sugere que o primeiro termo seja a


“emoção”, por representar, etimologicamente, o movimento que se desagrega e por
permitir ampliar o conceito para “lançar fora da linha de movimento”. Partindo do
termo emoção, o autor faz uma série de associações lingüísticas que lhe vão indicar
uma outra palavra: perturbação, cuja raiz se liga, entre outras significações, a
esmagamento – perda da força, da potência. A partir dessa possibilidade de
ampliação do campo semântico, propomos a palavra “petrificação” como parte da
seqüência da coordenada do movimento; na verdade, o “ato da petrificação” sugere
mudança de estado: a transformação em pedra produz uma contração total dos
movimentos.
Em nossas pesquisas, a importância do gráfico sugerido por Lacan deve-se,
sobretudo, para explicarmos nossa hipótese de que não há dor física sem dor
psíquica, já que a inibição está presente em ambas, como parte da coordenada
dificuldade/movimento.
O caso clínico Elizabeth ganha, assim, novos contornos: suas sensações
físicas dolorosas correspondiam ao pesar de “ficar sozinha” e equivaliam a não
caminhar. Freud pôde constatar que cada lembrança com força psíquica foi
deixando suas marcas no corpo e inibindo seus movimentos de locomoção e,
metaforicamente, de contato com o mundo externo, pela reclusão social.
Pelo gráfico a seguir, podemos verificar que Elizabeth, mesmo apresentando-
se inibida, caminhou para o embaraço, mas não chegou à emoção, como
desagregadora do movimento.
71

Sintoma Sujeito

Dificuldade

Inibição Impedimento Embaraço

Emoção Sintoma X
Movimento

Perturbação X Angústia
(Esmagamento)

Petrificação
(Contração Total)

Elisabeth conseguiu abreagir seu amor! Reconhecer o amor pelo cunhado


teve “efeito esmagador sobre a pobre moça”, conforme Freud (1895). Nas dores, a
jovem vivenciara a impossibilidade de uma paixão.
Mãe e filha viajaram e a análise foi interrompida, com o final do verão. Ao
voltarem para Viena, Freud teve notícias de que a paciente estava bem e havia
casado. Apenas ocasionalmente sentia dores leves. Freud não perdeu a
oportunidade de assistir sua ex-paciente girando num baile de Viena, numa
demonstração de graça de movimento.

4.3 Alice: a dor que petrifica

Neste ponto de nosso trabalho, vale retomar o caso Alice, anteriormente


descrito na introdução; ele vem acrescentar-se ao de Elizabeth, no sentido de
estender a questão da dor e do movimento.
De acordo com Freud (1920), quando a dor física se instala é porque houve
ruptura de barreiras de proteção na área lesada. Tal observação serviu-lhe para
72

estabelecer mais uma correlação com a dor psíquica: esta comporta uma ruptura de
associações quanto à cadeia do pensamento inconsciente, conforme o autor (1895)
explana com referência à melancolia, ao afirmar que nesta há um furo no psiquismo,
como se houvesse um escoamento da libido, tal como uma hemorragia.
A dor consiste num fracasso do aparelho psíquico, o que implica uma falha do
recalque que não comparece quando há um nível de tensão muito elevado.
Freud, em “O problema econômico do masoquismo” (1924), não deixa de
remeter ao prazer na dor, correspondente à satisfação da pulsão de morte, ou seja,
a questão do gozo (Genuss) masoquista expresso no sintoma. Quinet (1997), em
suas pesquisas sobre o tema, retoma a relação dor/gozo, ao dizer que:

“Por um lado, a dor corresponde à emergência de um gozo inadequado


para o sujeito, ou seja, a dor é o excesso de gozo que rompe a barreira do
simbólico, ultrapassando o limite do funcionamento do aparelho (simbólico)
do sujeito. Por outro lado, essa dor é vinculada à castração, a qual o sujeito
é remetido a cada dia” (Quinet, A., idem: 13).

A dor psíquica – seja na forma de luto, depressão ou melancolia –, ao


manifestar-se, desvela a máscara que encobria a dor da castração: a dor de existir.
A cada dia, o sujeito tem de se haver com o que perdeu. E, conseqüentemente,
defrontar-se com a castração.
A partir de nossa escuta no hospital, verificamos que o sofrimento físico
implica também dor psíquica. No texto “Recalque”, Freud repete a frase já registrada
no “Projeto” (1895) – “A dor é imperativa” –, acrescentando-lhe um adendo: “As
únicas coisas diante das quais ela pode ceder são a eliminação por algum agente
tóxico ou a influência da distração mental” (Freud, S., 1915: 169-170).
Mas a prática clínica evidencia que existem dores que não cedem, mesmo
que o sujeito tenha lançado mão de todos os recursos possíveis, como por exemplo
a dor experimentada no câncer, de caráter invasivo e “imperativo”. Tal como um
raio, retira todas as barreiras, suprimindo, paulatinamente, as resistências possíveis
ao objeto hostil. Essa mesma trajetória pôde ser observada no tratamento de Alice,
com suas dores lancinantes: ela foi tão atingida pelo raio, que suas resistências
simplesmente esmaeceram, apesar de todo desejo de vida.
73

A continuidade do seu tratamento médico fez-se acompanhar dos “efeitos


placebo”26 e a paciente verbalizava sentir alguma melhora. Não concordávamos com
esse procedimento e o avaliávamos como ineficaz. Certa feita, uma jovem médica,
muito angustiada que ainda “não tinha adquirido a sabedoria dos mestres”, chamou-
nos para dizer que Alice estava “simulando as dores”. Sabiamente, um “médico
experimentado” da Clínica da Dor do HUPE27 pôde escutá-la e responder: “Não há
placebo que resista às dores do câncer”. As dores lancinantes de que Alice tanto se
queixava não eram sugestionáveis pelo efeito placebo.
O alívio das dores, segundo nossa hipótese, tinha uma razão: estava
associado ao seu desejo de retornar a casa, várias vezes anunciado em nossos
atendimentos. Ela sabia da possibilidade de alta temporária, caso seu quadro clínico
expressasse alguma mudança terapêutica. Mas o câncer, com sua malignidade e
rapidez, venceu a batalha contra o desejo: Alice, diante de intensas doses de
analgesias e sedações, apagou e virou pedra. Mas como a dor poderá levar alguém
ao reino das pedras?
Na tentativa de respondermos a essa questão, retomamos duas importantes
assertivas: com Freud (1926), podemos pensar a relação entre dor e angústia: “a dor
é assim a reação à perda de objeto, enquanto a angústia é a reação ao perigo que
essa perda acarreta e, por um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda
do objeto” (Freud, S., idem: 195-6); com Lacan (1963), recorremos ao gráfico para
nele situar a questão do movimento: as dores de Alice a levaram, no vetor da
dificuldade, para além da angústia.

26 Placebo: substância farmacologicamente inerte, mas que apresenta algum efeito quando
administrada no paciente.

27 Clínica do HUPE especializada no tratamento de dores agudas e crônicas.


74

Sintoma Sujeito

Dificuldade

Inibição Impedimento Embaraço

Emoção Sintoma X
Movimento

Perturbação X Angústia
(Esmagamento)

Petrificação
(Contração Total)

Lacan, no Seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1960), utiliza-se do mito


de Dáfinis para falar sobre a dor. Segundo ele, o ser vivo, impossibilitado de mover-
se, num quadro de fortes dores, sugere, em sua aparência, a forma de uma pedra,
tal qual o mito citado: ”Não existe na própria arquitetura algo como a petrificação da
dor?” (Lacan, J., idem: 78).
Essa metáfora nos faz pensar a dor como algo semelhante à imobilidade das
pedras: elas são necessárias, em sua rigidez, à arte de edificação do arquiteto.
Neste ponto de nosso texto, cabe abrirmos um parêntese a fim de
estabelecermos a ligação entre o mito de Dáfinis e metáfora lacaniana.
Dáfinis, de acordo com a lenda, era um semideus siciliano que pertencia ao
ciclo bucólico. Nasceu num pequeno bosque e foi criado por ninfas que lhe
ensinaram a pastorear. Exibia uma grande beleza e recebia o amor de deuses,
mortais e ninfas. Enquanto seus bois pastavam, cantava canções bucólicas.
Todavia, morreu muito jovem e a causa de sua morte relacionou-se ao amor que
dedicou à “Pastora Nómia”. Ao unir-se à ninfa, prometeu-lhe fidelidade. Mas só se
manteve fiel até apaixonar-se por uma princesa, que conseguiu embriagá-lo e unir-
se a ele. Nómia, encolerizada pela traição, privou-o da visão. Dáfinis, cego, cantava
75

canções tristes e, por sentir muitas dores, atirou-se do alto de um penhasco e


transformou-se em rochedo (Grimal, P., 1997).
Alice apresentou-se, inicialmente, como ser falante e desejante: um ser vivo,
apesar das dores insuportáveis que a acometiam. Foi, gradativamente, calando,
endurecendo. Impossibilitada, cada vez mais, de mover-se, sua aparência final
lembrava a de um rochedo. Perguntamos até que ponto o afastamento do marido
não foi vivenciado por ela como uma traição e abandono, pois, semelhantemente a
Dáfinis, antes de morrer, entoou canções tristes.
Existem canções que somente um cego – alguém que já abriu mão de todo o
recurso narcísico e imaginário – pode entoar. O amor narcísico sustentou-a durante
algum tempo, na expectativa de uma sobrevivência de sua própria imagem na
imagem da filha. Mas ele, finalmente, esvaiu-se. Alice perdeu o amor pela imagem e
cedeu à dor, numa retração total de qualquer movimento.
Sua dor petrificou-a... e a carruagem, como costumam dizer na Enfermaria de
Adolescentes, passou e levou mais um passageiro: Alice
76

5 A DEMANDA PELO GRITO

“Oh! Morte, que alguns dizem assombrosa


E forte, não te orgulhes, não és assim;
Mesmo aquele a quem visaste o fim,
Não morre; não te vejo vitoriosa
Vens em sono e repouso disfarçada,
Prazeres para os que tu surpreendes;
E o bom ao conhecer o que pretendes
Descansa o corpo, a alma libertada,
Serves aos reis, ao azar e às agonias,
A ti, doença e guerra se acasalam;
Também os ópios e magias nos embalam,
Como o sono. De que te vanglorias?
Um breve sono que a vida eterna traz,
Golpeia a morte, Morte morrerás”.

John Donne

(In: Meditações XVIIII)

5.1 Eritromelalgia: psicossomática e literatura médica

Este capítulo aborda o caso clínico de um paciente que sofre de uma doença
cuja etiologia é desconhecida da medicina. Dessa maneira, o diagnóstico poderia
ser tratado à luz da abordagem psicossomática. Embora não seja esse o nosso
interesse, um histórico da origem da psicossomática faz-se necessário para
demonstrar suas possíveis confusões teóricas.
O “principal inspirador” da corrente psicossomática, conforme Roudinesco
(1998: 623) foi Georg Groddeck, seguido de Franz Alexander, nos Estados Unidos,
Alexander Mitscherlich, na Alemanha, e Pierre Marty, na França. Dentre esses,
77

coube a Franz Alexander dar surgimento à medicina psicossomática, ao se


interessar pela pesquisa clínica com pacientes portadores de úlcera gastroduodenal
(a mais comum dentre as úlceras pépticas). Para o autor, naqueles pacientes, o
inconsciente revelava uma demanda de comida, fato que acarretaria secreção
gástrica em abundância, o que faria irromper a úlcera. Assim, privilegia duas
terapêuticas: uma psicológica, relacionada à palavra, e outra somática, referente à
úlcera. A partir dessa divisão, a psicossomática firma-se como especialidade
médica.
Em pesquisa realizada por Silva e colaboradores (1996), constata-se que a
medicina psicossomática toma forma de pesquisa no período entre 1920 e 1940.
Naquela época, um grupo de psiquiatras, reunidos com médicos clínicos e
profissionais de outras áreas (fisiologia, bioquímica, psicologia e sociologia),
aderiram às idéias de Franz Alexander e iniciaram um amplo estudo sobre doenças
de etiologia desconhecida cujos sintomas, segundo suspeitavam, poderiam indicar
que o fator emocional estava envolvido como causa, conseqüência ou
concomitância: a asma brônquica, por exemplo.
Ainda de acordo com Silva et al. (1996), em 1941, Thomaz French e Franz
Alexander28 realizaram uma monografia sobre os fatores psicogênicos da asma,
defendendo a idéia de que existia uma “personalidade asmática”. Segundo os
autores, os pacientes portadores de asma, apresentavam conflito entre atitudes
infantis de dependência à figura materna e outras questões emocionais. As crises de
asma estariam relacionadas ao choro recalcado dos “asmáticos” pela mãe. Mas,
nesse mesmo período, os estudos de Lewis, Freeman e Kelley introduziram
comentários contrários aos daqueles pesquisadores, abordando a asma como um
processo patológico pulmonar, no qual os aspectos emocionais interagiriam no
quadro, sem, no entanto, serem a causa da doença.
A partir de suas origens, pode-se constatar que a medicina psicossomática
constitui-se em ponto de embaraço, uma vez que os pacientes são tratados numa
perspectiva que visa a explicações psicanalíticas para atribuir a causa de algumas
doenças, tal como a úlcera gastroduodenal e a asma brônquica. Se os médicos não
têm explicações para a etiologia de muitas doenças, os psicanalistas deveriam ter o

28 Psicanalistas filiados ao Instituto Psicanalítico de Chicago.


78

cuidado de não obturarem o desconhecido pela medicina, no que tange à causa de


males orgânicos.
Freud (1917: 423) refere-se à “causação da neurose” para falar da formação
do sintoma. De fato, a psicanálise lida com a causalidade psíquica, mas a considera
para além dos efeitos do sintoma – este faz parte da própria constituição do sujeito
do inconsciente. A medicina, ao contrário, localiza a causa para erradicar o sintoma
– signo da doença. Portanto, o que sustenta o diálogo entre psicanálise e medicina é
a possibilidade de uma interlocução que reconheça a diferença entre os dois
campos de saber. Isso não exige a criação de nova especialidade, como a
psicossomática.
É preciso ressaltar que, embora muitos diagnósticos indiquem fenômenos
psicossomáticos, o importante para a psicanálise é a posição subjetiva do paciente
em relação ao sofrimento que se impôs. A direção do analista será aquela da escuta
do desejo. Pensamos, porém, que muitos diagnósticos poderão ser alterados no
curso de seu quadro clínico, de acordo com o estado subjetivo do paciente. Nesse
sentido, a psicanálise poderá dialogar com a medicina, tendo em vista que nem
sempre os médicos poderão escutá-la; às vezes, a angústia, frente a casos de
doenças desconhecidas é tanta, que necessitam recusar a hipótese do inconsciente.
Quem melhor define um limite para a abordagem psicossomática é, sem
dúvida, Lacan (1966), ao propor a idéia de uma “falha epistemossomática”, ao invés
da já consagrada expressão “psicossomática”. Trata-se, para Lacan, de uma hiância
do saber constituído, seja médico ou psicanalítico, do corpo no seu estatuto de real,
que escapa a qualquer apreensão pelo simbólico.
A pesquisa sobre o corpo interessa à medicina e à psicanálise; o corpo é o
suporte das conversões histéricas, dos fenômenos psicossomáticos, das
manifestações hipocondríacas e das doenças orgânicas. Um corpo é o que se diz
dele, tanto do lugar de quem se queixa, quanto do lugar de quem a escuta. A
psicanálise diz respeito ao corpo do discurso, referido ao Outro da linguagem.
A irrupção de uma doença é algo semelhante a uma força que, vinda do
exterior, abre um furo na Gestald imaginária do corpo, provocando a queda da
mesma. Evidencia-se, dessa maneira, que o corpo não é constituído só de imagem:
esta, mesmo quando abalada, insiste enquanto representação. Sua insistência está
79

referida a um aspecto impossível de ser dito pelo sujeito, por sua absoluta
exterioridade ao simbólico. É a partir desse ponto, onde a doença traz à tona o real
do corpo, que o sujeito emite queixas sobre ele, buscando resgatar seu registro
simbólico. O corpo é estruturado numa topologia nos registros imaginário, real e
simbólico, como a estrutura do inconsciente, proposta por Lacan nos anos 50.
Para analisarmos o possível exercício da psicanálise com pacientes
portadores de doenças orgânicas no hospital, passaremos à discussão de um caso
clínico, escolhido devido às características peculiares do diagnóstico. A doença
crônica rara de que o paciente é portador, a eritromelalgia, exigiu o exame detalhado
do caso.
Ressaltamos a necessidade de abordar as várias terapêuticas médicas
introduzidas no paciente, já que seus efeitos não só indicavam as possibilidades de
intervenção psicanalítica, mas também traziam informações indispensáveis a ela.
Esse paciente e todos os outros atendidos no hospital tornam-se ponto de
interseção entre o saber da medicina e o saber da psicanálise. Parece-nos, então,
que é quase uma exigência a aquisição de alguns conhecimentos médicos para o
psicanalista exercer a clínica com pacientes portadores de doenças orgânicas
crônicas no hospital.
O artigo “Erythromelalgia: new theories and new terapies”, de autoria de
Cohen (2000)29, contém as abordagens mais recentes sobre a doença e foi escrito a
partir da clínica com pacientes portadores do diagnóstico, que, reunidos em uma
associação – The Erytromelalgia Association –, constituem-se um grupo com o
objetivo de informar a médicos e a outros pacientes sobre a doença.
Condição rara, a eritromelalgia pode alterar muito a qualidade de vida do
sujeito e representa, há anos, um enigma quanto à etiologia e terapêutica. É
caracterizada por dores esquêmicas (dores fortes), tipicamente em queimação,
intenso eritema (vermelhidão), parestesias (sensação de dormência), prurido
(coceira) e elevação da temperatura da pele.

29Os professores de medicina da Enfermaria do NESA fizeram um levantamento bibliográfico sobre a


doença, do qual utilizamos alguns artigos. A eles também coube a tarefa de supervisionarem essa
parte da pesquisa. Por outro lado, pedimos auxílio externo ao Dr. Frederico W. de B. Baumann, na
tradução técnica do texto que muito esclarece sobre a doença.
80

Pode ser unilateral ou bilateral quanto aos membros inferiores ou superiores.


Nos casos mais graves, podem ser acometidos braços, pernas, face e orelhas; nos
mais brandos, os sintomas podem aparecer nas reativações e evidenciam eritema
agudo, calor, edema e dor.
A eritromelalgia intercala períodos assintomáticos com períodos em que toda
a sintomatologia poderá ser apresentada. A doença pode ser primária (idiopática),
sem etiologia definida, atingindo o paciente em qualquer faixa etária e tendo início
de maneira espontânea. A forma secundária pode ocorrer em conseqüência de
distúrbios de base hematológica, cardiovascular, neurológica, auto-imune, dentre
outras. A causa da doença é bastante obscura para a medicina atual, de forma que
se inscreveria, facilmente, na categoria de doença psicossomática, de acordo com a
classificação de 1920-40. Conforme já dissemos, não será esta a abordagem que
daremos ao caso.
Os pacientes com eritromelalgia demonstram uma insuportabilidade no que
diz respeito a ambientes quentes, procurando sempre lugares muito refrigerados. O
uso de meias e sapatos fechados, às vezes, torna-se inviável. O quadro de
queimação constante e de dor poderá manter o sujeito refém de um único ambiente,
limitando seus laços familiares e sociais.
A diminuição tanto da temperatura da pele como também da intensidade da
dor poderá ser alcançada pela imersão da área atingida em água gelada. Porém,
esse procedimento tende a causar dependência ao paciente, desencadeando crises
e causando lesões cutâneas, úlceras de difícil cicatrização, infecções, necrose e, até
mesmo, amputação dos membros acometidos pela doença.
Por afligir mais os pacientes à noite, durante o dia os sinais poderão ser
camuflados ao exame clínico, dificultando a precisão diagnóstica. Portanto, muitos
portadores de eritromelalgia poderão não ter um diagnóstico preciso, sendo a
doença confundida com o fenômeno de Raynaud30, cuja distribuição de sangue nos
vasos sangüíneos assemelha-se a da eritromelalgia. Segundo algumas hipóteses, a
fase de vasodilatação é mais proeminente na eritromelalgia e a vasoconstricção no
fenômemo de Raynaud.

30Fenômeno vascular em duas fases intensas: a primeira, com vasoconstricção e cianose; a


segunda, com vasodilatação, eritema e dor.
81

Existe a possibilidade de os pacientes não serem diagnosticados por anos.


Uma maneira de verificar o diagnóstico quando há dúvidas é imergir, por dez a trinta
minutos, a área afetada do corpo em água com a temperatura elevada –
procedimento que poderá provocar a sensação de queimadura. A distinção entre as
formas primária e secundária deverá ser realizada pelos médicos para decidir a
direção do tratamento.
Não existe uma terapêutica única para o tratamento da eritromelalgia. A
abordagem medicamentosa por via oral é experimentada com a administração de
vários fármacos combinados. As drogas que inibem a recaptação de serotonina
(fluoxetina, paroxetina), antidepressivos tricíclicos (triptanol), opiáceos (tramadol e
morfina), anti-histamínicos (polaramine) e anticonvulsivantes (gabapentina), fazem
parte deste arsenal farmacológico, tendo como objetivo impedir que as terminações
nervosas façam com que os vasos se dilatem, fato que poderá amenizar os sinais e
sintomas da doença.
A infusão de nitroprussiato de sódio (vasodilatador), por via venosa, poderá
ser experimentada em crianças e adolescentes.
Procedimentos mais invasivos poderão ser realizados, como analgesia
através da colocação de um de cateter no espaço peridural, o que mostra o difícil
controle da doença pela medicina – fato que evidencia o corpo em seu estatuto de
real, escapando à sua apreensão no registro simbólico, conforme teoriza Lacan
(1966) sobre a “falha epsitemossomática”.
Cohen (2001) descreve a eritromelalgia como uma doença que,
habitualmente, poderá seguir um curso crônico, por vezes progressivo e
incapacitante. Em alguns pacientes essa condição é reversível por meses, anos ou
para sempre. Tal fato sustenta a afirmação de que a “eritromelalgia não é uma
entidade patológica separada, porém, uma resposta fisiopatológica da
microcirculação da pele” (idem: 846); ela apresenta uma disfunção da distribuição do
fluxo sangüíneo. Verifica-se um desequilíbrio da função dos vasos sangüíneos de
pequeno calibre, resultando em hipóxia (falta de oxigênio) e hiperemia (aumento de
sangue). O primeiro mecanismo ativa o segundo, ocasionando piora do eritema,
aumentando a temperatura da pele e a dor.
82

Na medida em que apresenta uma séria disfunção vascular, ou seja, um


fracasso da homeostase interna, poderíamos dizer, de acordo com os ensinamentos
de Cannon (1932), que na eritromelalgia o corpo deixa de obedecer a sua
“sabedoria”31.

5.2 Eritromelalgia: a sabedoria do corpo e o inconsciente

Lembramos que Cannon foi um biólogo que ousou falar de um saber do


corpo, ao escrever o livro La sagesse du corps32, em 1932. O autor teve influências
de Claude Bernard33, cientista de considerável importância em seu meio, que elevou
a fisiologia à categoria de ciência da vida. Mas em que sentido o corpo sabe?
Para Cannon (1932: 19), a sabedoria do corpo consiste em a vida ter funções
precárias e ameaçadas, mas sempre restabelecidas por um sistema de regulações
internas, a que o autor chama de “homeostasia”. Assim, o corpo sempre sabe o que
deve fazer, mesmo diante das adversidades. O princípio da constância proposto por
G. T. Fechner foi comparado à noção de homeostase, o qual está relacionado no
“Projeto” (Freud, S., 1895: 396) e aqui descrito no Capítulo IV desta dissertação.
Durante a Primeira Guerra Mundial, Cannon (idem) identifica os efeitos dos
choques traumáticos e constata o restabelecimento da auto-regulação dos
processos fisiológicos e a maneira pela qual se opera a manutenção dos estados
estáveis no corpo. Além disso, refere-se a uma instabilidade da estrutura orgânica,
ao dizer que os nervos, os músculos e os órgãos dos sentidos são sujeitos às mais
leves estimulações e perturbações. O corpo, para ele, expressa uma fragilidade
estrutural em contraposição à homeostasia que mantém com o meio interior.
Exemplifica essa afirmação ao citar o fato de que a morte poderá ser provocada

31A indicação do livro de Cannon foi possível a partir do seminário ministrado por Millet, “Elementos
da biologia lacaniana” (1999), quando recebemos, de maneira carinhosa, do Dr. Jésus Santiago o
material aqui utilizado.
32 O título La sagesse du corps foi tirado por Cannon da obra do ilustre fisiologista inglês Starling. O
original de Cannon intitula-se The wisdom of the body.

33 Bernard formulou a noção de meio interno, o que possibilitou a Cannon estender o conceito de
homeostasia.
83

após sete ou oito minutos da interrupção de irrigação sangüínea do cérebro, ao


passo que, aparentemente, não há estragos essenciais.
Lacan (1953: 318) faz menção a Cannon e à “moderna concepção” do autor
sobre a “noção de homeostase”, enfatizando a importância da contribuição desse
conceito para as pesquisas psicanalíticas.
O biólogo, ao pesquisar processos complexos – por exemplo, o da irrigação
sangüínea, no qual se observa a necessidade de determinada quantidade de água,
sal, açúcar, proteínas e gordura para a manutenção do equilíbrio interno – consegue
demonstrar que o corpo possui um saber. Estende suas hipóteses às defesas
naturais dos corpos frente aos corpos estranhos; assim, menciona o espirro, dentre
outros, para apresentá-lo como uma defesa do corpo frente a algo que se introduziu
no aparelho respiratório.
Lacan, no Seminário, livro 20: mais, ainda, parece concordar com as idéias de
Cannon quanto ao saber do corpo, ao enunciar que “é preciso que ele se baste”
(Lacan, J., 1973: 149). Continuando suas observações, Lacan menciona as
lágrimas, que, de tão necessárias à função do olho, causariam enormes transtornos
à visão, caso não fossem mais produzidas pela glândula lacrimal. Chamou a essa
fisiologia do olho de “milagres do corpo”, o que parece equivaler à expressão
“sabedoria do corpo”, de autoria de Cannon.
E o saber do inconsciente... o que tem a ver com a sabedoria do corpo?
Imaginamos qual seria a resposta de Lacan, conhecedor das idéias de
Cannon, caso pudesse participar, hoje, desse diálogo. Provavelmente, ele
responderia com a frase registrada em Televisão: “O sujeito do inconsciente, ele
mesmo, influi no corpo” (Lacan, J., 1974: 66). Essa frase remete à analogia do corpo
inundado pelo rio de palavras do inconsciente: segundo a etimologia, influir é fazer
fluir para dentro, o que significa correr em estado líquido (Ferreira, A. B. H., 1975:
764). Certamente, o inconsciente afeta o corpo e não é sempre que o corpo obedece
à sua sabedoria. Cannon pesquisou o corpo à luz da fisiologia, que estuda as
funções dos organismos vivos destinados à sobrevivência da vida orgânica.
Freud, por sua vez, constata que o inconsciente emerge no corpo da histérica,
afetado pela verdade que é particular à história de cada sujeito. Dentre vários
exemplos, analisa um caso de cegueira histérica. Seu texto “A concepção
84

psicanalítica da perturbação psicogênica da visão” (1910), em homenagem ao


oftalmologista Leopold Köngstein, seu amigo, corrobora sua teoria.
A cegueira – sintoma apresentado pela paciente – não continha substrato
orgânico e o olho funcionalmente estava bem. A perturbação introduzida na visão
era decifrável e passível de interpretação analítica. Tratava-se de um diagnóstico de
conversão, teorizado por Freud como um conflito entre as pulsões do eu e as
pulsões sexuais: as primeiras, destinadas à autopreservação, trabalham para a
finalidade do saber do corpo; as segundas dirigem-se ao desejo.
Através do exemplo de Freud, podemos dizer que, na cegueira histérica, o
olho deixou de obedecer ao saber dirigido à visão – sua função fisiológica – e
passou a servir somente ao recalque. O corpo apresentou um sintoma conversivo de
cegueira, numa clara evidencia de que não havia lesão orgânica. A perturbação que
se instaurou no olho interpelou a pulsão sexual, acolhida pela função do órgão,
privando-o da visão. Eis, assim, um órgão tomado por um fenômeno de verdade.
A perturbação apresentava uma outra vertente: a do gozo, de acordo com a
teoria lacaniana que relaciona o gozo a uma “propriedade do corpo vivo” (Lacan,
J.,1973: 35). Podemos dizer que, no caso de cegueira histérica, o olho deixou de ver
e passou a ser visto. Assim, a partir da psicanálise, constata-se a dupla exigência do
corpo: sobrevivência e desejo. A primeira diz respeito à “sabedoria do corpo”; a
segunda, ao inconsciente.

5.3 O grito da eritromelalgia

Neste ponto da dissertação, é necessária a análise de um caso em que o


corpo apresenta um desequilíbrio em sua sabedoria.
Ricardo sofre de eritromelalgia e seu corpo foi atingido bruscamente na
função interna de homeostase, fato seriamente agravado pela condição subjetiva do
paciente. Na impossibilidade de falar sua verdade, esta foi “interceptada” e se
expressou na vertente de gozo, que saiu pelo corpo através dos “gritos do sujeito”.
No Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise, Lacan (1970: 64) refere-se à
85

verdade como “irmã do gozo”: ambos têm algo em comum e, no caso da


eritromelalgia, trabalharam contra a sabedoria do corpo, afetando-o em alto nível de
tensão e desgaste.
O paciente apresentou-se nas internações com ímpetos agressivos
incontroláveis, afeto de muita raiva, ataques de angústia, estado depressivo e gritos.
Seu estado clínico geral inspirava muitos cuidados, pois foi bruscamente alterado
pelo “seu comportamento”, fato que levou os médicos a dizerem que ele corria risco
de amputação das pernas.
Ao ser internado na Enfermaria de Adolescentes, em janeiro de 2001, Ricardo
ainda não tinha entrado em puberdade – aqui entendida como fenômeno biológico,
caracterizado pelas transformações fisiológicas do corpo. Ele completou seus treze
anos de idade na instituição.
Segundo o prontuário médico, a história clínica da doença do paciente teve
início no ano de 1996, quando, aos oito anos de idade, o menino se queixou de
“formigamento” na planta dos pés, sensação de queimação e prurido intenso. A
remissão parcial dos sintomas foi constatada, de acordo com relato de seu pai, pela
imersão dos pés do menino em água gelada. Após um ano, a família procurou
auxílio médico em hospital da Baixada Fluminense, já que as queixas retornaram.
Foram realizadas medidas terapêuticas ineficazes, como o uso de meias térmicas e
hidratante. Passados quatro meses, a sintomatologia foi agravada e seu pai foi
orientado a procurar um hospital de grande porte. Havia suspeita diagnóstica de
pênfigo, doença auto-imune que apresenta lesões cutâneas, conhecida como “fogo
selvagem”.
Em setembro de 2000, foi internado no Instituto de Pediatria e Puericultura
Martagão Gesteira/IPPMG, da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ, onde
permaneceu por doze dias. Apresentava lesões na pele, expressas em úlceras de
grande magnitude, desenvolvidas pelo ato freqüente de coçar. Apesar de ter sido
submetido à biópsia, não foi possível obtenção de diagnóstico. Tratado com
antiinflamatórios potentes e antialérgicos, também lhe foram prescritos
benzodiazepínicos, devido ao seu “distúrbio emocional”: forte agitação psicomotora.
Recebeu alta do hospital, quando a dermatologista sinalizou para a família a
necessidade de cuidados psiquiátricos, com o objetivo de restabelecimento do
86

quadro orgânico. Os médicos não conseguiam tratar o paciente que se apresentava


psiquicamente conturbado, estado que influenciava no curso da doença, na ocasião
sem diagnóstico esclarecido. Seu pai procurou o Instituto Phillipe Pinel; porém, o
filho não foi atendido por desencontro com o médico indicado.
O diagnóstico de eritromelalgia parestésica foi dado pela Clínica
Dermatológica, quando o paciente foi internado no Serviço de Pediatria do HUPE 34,
no dia 26 de dezembro de 2000. Nesse período, como Ricardo se encontrava em
grande agitação psicomotora, foi solicitado parecer da psiquiatria, que avaliou o
quadro como conseqüência da doença. Pensamos que, até aquela fase do
tratamento, os profissionais envolvidos no caso não tinham ciência da sua confusa
história familiar, causa de intenso sofrimento para o paciente.
Deparamos, no ato da internação, com um pré-púbere, que repetia as queixas
somáticas anteriormente citadas. Estava com os pés imersos em um balde de água
gelada, que parecia mais cumprir a função de aliviar um sujeito atormentado por dor
psíquica que aliviar suas dores físicas. O procedimento do balde mantinha-se como
um ritual: ao perder a temperatura gelada, o menino reclamava, em atos de
desespero, pela troca da água. Ao mesmo tempo, gritava, chorava, chamava as
enfermeiras, uma doutora, um doutor, confundindo a todos sobre o que queria. A
presença de qualquer membro da equipe que se aproximasse com gesto enérgico,
porém terno, poderia acalmá-lo. Observávamos um sujeito que sofria para além da
doença orgânica.
Alguns profissionais da Enfermaria indagavam sobre a “condição de loucura”
do paciente, fato reforçado pela família, que relatou episódios de “possessões
malignas”, caracterizados quer por agressões verbais à figura paterna, quer pela
mudança de tom de voz, quer pelo seu repentino desaparecimento – razões de
inquietação dos familiares. A expressão de tal manifestação fenomenológica, com
episódios de fúria, força incontrolável, contorções na expressão facial, somadas à
agitação psicomotora, justificavam o porquê dos encaminhamentos do caso à clínica
psiquiátrica.
Iniciamos as intervenções psicanalíticas e não faltaram interferências
objetivas, oriundas da doença, como, por exemplo, o quadro álgico, que interpelava
34 A Enfermaria do NESA, entre o Natal e o Reveillon de 2000, encontrava-se fechada para
manutenção.
87

a fala do sujeito. Também tentamos abordar alguns familiares, principalmente a mãe


de Ricardo, que se mantinha ausente – causa de muita angústia, expressa em gritos
de amor e ódio dirigidos à figura materna. Nessas ocasiões, os médicos,
questionavam a intensidade da dor física, que podia oscilar conforme a condição
subjetiva do paciente.
Durante a noite, o desespero do menino levava a equipe de enfermagem a
chamar o plantão médico exaustivas vezes, sendo verificado, dentre muitos, o
seguinte registro no prontuário: “O paciente, transtornado, gritava em altos brados,
coçava as ulcerações até delas extrair sangue, verbalizava impropérios”. Certa feita,
fora capaz de ficar quarenta e oito horas em estado de vigília, resistindo a qualquer
tipo de abordagem. Apelava, com insistência, para a troca de água do balde, ao
mesmo tempo em que pronunciava idéias suicidas. Posteriormente, era capaz de
acalmar-se por alguns minutos em desconexão completa com a cena anterior de
desespero.
Nos períodos em que Ricardo se queixava de dor e agitação, a equipe médica
prescrevia analgésicos, opiáceos, anti-histamínicos etc. Sabemos que o uso dessas
medicações pode causar efeito contrário ao esperado, aumentando o grau de
agitação e nível de tensão do paciente, cuja doença desafiava todas as terapêuticas
médicas: administração da gabapentina, triptanol e clonazepan, prescrições feitas
pela Clínica da Dor. Passados mais de trinta dias de internação, evidenciou-se como
imprescindível a participação da equipe de Saúde Mental, pelo sofrimento psíquico
do sujeito. A intervenção psicanalítica, que já havia tido início, foi intensificada, numa
tentativa de atender ao paciente mais de uma vez ao dia.
Ricardo, antes da primeira internação, residia com o pai, senhor Rogério e a
avó paterna, que foi chamada a comparecer na Enfermaria para ficar com o neto
durante o dia. O pai acompanhava o filho no período noturno. Por vezes, o menino
demonstrava-se bastante irritado com a figura paterna que, ao acompanhá-lo,
adormecia, alegando cansaço físico, devido à sua atividade de trabalho noturno
como motorista. Nossas maiores dificuldades sempre estiveram relacionadas em
manter contato com a mãe do paciente, senhora Marina, que estava separada do
senhor Rogério e havia contraído outra relação conjugal, da qual tinha um bebê.
88

No decorrer da internação, frente ao agravamento do caso, a equipe médica


optou pelo procedimento invasivo de analgesia de membros inferiores, através da
colocação de cateter no espaço peridural. A terapêutica revelou-se ineficaz, uma vez
que houve perda do cateter, devido ao estado de agitação do menino. Nesse mesmo
dia, sua mãe compareceu, pela primeira vez, à Enfermaria de Adolescentes.
A senhora Marina apresentou-se aos profissionais com um nome diferente do
registrado no prontuário. Dizia ter trocado seu nome de batismo quando veio do
Nordeste morar no Rio de Janeiro. Estava acompanhada do atual marido e do bebê.
Justificou sua ausência da Enfermaria por morar num outro município do Estado e
por ter um filho recém-nascido para cuidar.
O primeiro encontro de Ricardo com a mãe foi marcado por uma forte emoção
de alegria para o menino, que saiu do leito andando e desculpando-se com alguns
membros da equipe pelo “seu comportamento”. A senhora Marina mencionou sua
assistência ao filho em outro hospital, dizendo ter sido impedida de continuar
cuidando dele por seu primeiro marido. Temos informações dadas pelo pai e pela
avó do paciente que a mãe, na véspera do Natal de 2000, notificou a Ricardo que
iria deixá-lo, pois seu outro filho estava preste a nascer. Antes da internação no
IPPMG/UFRJ, o filho ia, de vez em quando, passar alguns dias na casa da mãe.
Lembramos que o paciente foi internado no HUPE um dia após o Natal, e seu irmão
nasceu dias depois. Frisamos a importância de sua permanência junto a Ricardo, já
que constantemente ele fazia esse apelo. Prometeu voltar após o Carnaval, o que
não aconteceu.
Ultrapassados dois meses de internação, mais uma terapêutica médica foi
introduzida: a administração de nitroprussiato de potássio, substância
vasodilatadora. Mas, num gesto repentino, o paciente retirou a medicação que lhe
era aplicada por via intravenosa. A equipe técnica, então, deu-lhe alta para que
continuasse seu tratamento ambulatorialmente. Avaliamos a alta como precipitada,
chamando atenção para o fato de o caráter de desconhecimento da doença interferir
como causa de angústia nos profissionais que lidavam com a estranheza do caso.
A eritromelalgia, ao associar-se ao sofrimento psíquico de Ricardo, rendeu-lhe
a comparação com o Demônio, o que traz à lembrança uma “roupagem antiga” para
89

a apresentação da histeria – estrutura psíquica sobre a qual levantamos hipótese


diagnostica.
Freud, no artigo “Uma neurose demoníaca do século XVII” (1923), menciona
os “trajes demoníacos” assumidos pelas neuroses dos tempos antigos. Menciona
Charcot como o principal autor que identificou “manifestações de histeria nos
retratos de possessões e êxtases preservados nas produções artísticas”. Além
disso, correlaciona “os estados de possessão” às “nossas neuroses” (Freud, S.,
idem: 91).
O texto freudiano relata a análise do fragmento do diário do pintor Christoph
Haismann, quando este fez um pacto com o Demônio, na ocasião em que se
encontrava “duvidoso” quanto à possibilidade de sustentar-se através de sua
produção artística. Haismann fora acometido, desde então, de “convulsões
assustadoras e visões”, fato que o próprio pintor dizia ser, segundo Freud (idem: 98),
“manifestações do espírito mau”. Freud interpreta o Demônio como um substituto do
pai e aquelas manifestações como expressões das atitudes hostis para com a figura
paterna, que ganharam forma na figura do Demônio.
O caso do pintor relembra os episódios de “possessões malignas” de Ricardo,
dirigidas à figura paterna, o que faz indagar se o menino, ao apelar pela mãe através
dos gritos, também estava apelando ao pai pelas “manifestações demoníacas”. Será
que os gritos de Ricardo chamavam o pai para além da pessoa da mãe?
Após a primeira alta médica, o paciente retornou ao NESA para tratamento
ambulatorial. Na consulta inicial, chegou de ambulância com uma vizinha; na
seguinte, com seus familiares. Estava muito debilitado fisicamente: apresentava
escabiose (sarna) e úlceras infectadas por fungos. Carecia de cuidados
emergenciais; seu estado clínico geral era crítico, necessitando de hospitalização.
Naquela ocasião, estava residindo com Vera, sua irmã, que se dizia preocupada
com a situação. Soubemos que os vizinhos, em virtude dos gritos ininterruptos do
sujeito, registraram denúncia no Conselho Tutelar35 por suspeita de maus tratos.
Os primeiros dias de Ricardo, na segunda internação, foram marcados por
queixas incessantes de dor. Percebemos nele, entretanto, uma mudança subjetiva,
expressa por uma quietude, como se esta substituísse os gritos outrora emitidos.
35Órgão da sociedade civil, gerido por representantes da comunidade, cujos objetivos visam a
garantir os direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente.
90

“Uma certa tristeza”, diziam uns. “Ele se cansou de lutar contra a doença”, diziam
outros. O ataque de angústia cedeu lugar ao estado depressivo, evidenciando uma
diferença radical em seu quadro psíquico. Na tristeza, o paciente passou a emitir
frases que expressavam o sofrimento de uma “ferida aberta”, que doía intensamente
e “queimava como fogo”. Dor isquêmica e dor psíquica confundiam-se, e o paciente
fazia pronunciar-se pela eritromelalgia. Mantinha os pés dentro do balde de água
gelada, resmungava, esboçava um choro em silêncio. Idéias de conteúdo suicida
circundavam o menino que dizia ter “vontade de querer desistir de tudo, de parar”.
Encontrava-se sozinho durante o dia; seus familiares apenas compareceram no ato
da internação.
A clínica psiquiátrica foi acionada pela primeira vez na Enfermaria, já que os
médicos careciam de mais um saber sobre um caso “tão desconhecido”. A principal
dúvida estava direcionada ao diagnóstico psíquico do sujeito. Sugerimos, então, o
parecer da psiquiatria do NESA. Ele foi medicado com triptanol, para o estado de
insônia, e, em outras ocasiões, com haldol, devido à agitação psicomotora. Demos
prosseguimento aos atendimentos, mantendo, quando necessário, contato com a
psiquiatria36, que veio a corroborar com a nossa hipótese de histeria.
No último domingo de Páscoa (abril de 2001), Ricardo recebeu visita da mãe,
do pai, Vera e Deise (vizinha da família que lhe demonstrava carinho e, bastante
mobilizada, lhe ofereceu auxílio). Naquele dia, o sujeito produziu uma fala, na qual
apontou para uma dor no peito. Perguntamos sobre o significado da dor, o que
respondeu: “Na Páscoa... a Páscoa... dói...”
O ritual do balde, mais uma vez, foi invocado, ao pronunciar a frase: “Vocês
querem que eu melhore de uma hora para outra... que eu tire o pé do balde? As
coisas não são tão simples assim. Estou tirando mais o pé da água”. Verificávamos,
dessa forma, um sujeito que se in-baldava, mergulhado em água, em posição que
parecia a de um feto no útero materno.
De fato, constatávamos, lentamente, o aumento dos intervalos em que
Ricardo mantinha os pés fora do balde com água gelada. As ulcerações das partes
mais altas dos membros inferiores davam os primeiros sinais de melhora, e as
feridas mais baixas indicavam cicatrização, conforme avaliação médica. Porém, uma
36A Dra. Simone Pencak, psiquiatra psicanalista e Coordenadora do Serviço de Saúde Mental do
NESA, respondeu ao chamado da equipe.
91

condição era imprescindível: a retirada total da imersão de pés e pernas da água


gelada, fato ainda impossível até aquela ocasião para o paciente.
Ricardo, apesar de todas as dificuldades de seu quadro clínico,
gradativamente saia do estado depressivo. Produzia enunciações significativas
sempre relacionadas com a falta da mãe, a raiva de seu padrasto e os ciúmes do
bebê: “Tenho ódio daquela criança que roubou a minha mãe de mim e de meu pai”.
Observamos um sujeito em plena retomada do complexo de Édipo.
O dia-a-dia da Enfermaria de Adolescentes revela conflitos da relação entre
pais e filhos. As querelas familiares podem eclodir durante uma internação, quando
não faltam expressões de paixões. O Édipo é revivido com um elemento a mais: a
doença.
Verificamos que o desligamento das figuras parentais da infância – segundo
Freud (1905), o trabalho mais doloroso e necessário para todo o adolescente –
poderá ser retardado; adoecer exige aproximação, principalmente da mãe como
primeiro Outro do sujeito. O cair doente, nessa fase da existência humana –
sobretudo quando isso acontece sem o olhar materno dos cuidados, no afastamento
da mãe –, pode funcionar como um fator que potencializa o retorno dos impulsos e
desejos edipianos.
Detectamos a utilização das internações do pré-púbere como um pretexto
para desencadear crises familiares. O pai dizia ter “sofrido uma traição” por parte da
ex-esposa, que saiu de casa e abandonou Ricardo, na época com seis anos de
idade e mais dois filhos adolescentes, para viver com seu atual marido de quem teve
um quarto filho. A senhora Marina, numa das raras visitas que prestou ao filho,
verbalizou que Deise, a vizinha, estava querendo tomar o seu lugar. Parecia
expressar ciúmes em relação às visitas da moça que eram importantes para o
menino. Traduzimos, na fala da mãe, mais uma tentativa para justificar sua ausência
de um lugar de que ela “abriu mão”. Nesse contexto, a senhora Marina anunciou que
não compareceria mais à Enfermaria.
Ricardo, ao ter ciência da notícia, apresentou um quadro psíquico semelhante
ao da primeira internação. Retornaram à cena: agitação psicomotora, insônia severa
e choro. O paciente voltou a emitir gritos, como se eles sinalizassem algo do
estranho, ao mesmo tempo tão familiar para o sujeito. A equipe de enfermagem
92

declarou, em reunião multidisciplinar, ter escutado um “pedido transtornado” do


menino, suplicando a amputação dos membros inferiores. Interpretamos “aquele
pedido” como um ato de desespero diante do sofrimento.
Mesmo havendo retirada progressiva de seus pés de dentro do balde d’água,
os médicos constataram o agravamento das ulcerações, com queda de tecido
cutâneo e sangramento expressivo das áreas afetadas. O tempo cronológico da
medicina não podia esperar o tempo lógico do sujeito. Havia risco de amputação das
pernas e uma medida enérgica tornava-se urgente. Em decisão médica da qual
participamos, o balde foi retirado como procedimento terapêutico, optando-se pela
administração de opiáceo (morfina) e sedação. No “apagamento” do sujeito, seu
corpo em dimensão anatômica teria maiores possibilidades de tratamento. Mas, por
uma reação adversa à morfina, Ricardo apresentou um quadro de hipóxia pulmonar
e foi internado no CTI, onde mantivemos contatos diários com ele e com a equipe
técnica, aguardando seu retorno à Enfermaria de Adolescentes.
O Conselho Tutelar permaneceu assistindo o paciente, uma vez que fora
acionado anteriormente. Solicitou pareceres técnicos dos Serviços de Medicina,
Saúde Mental e Serviço Social, pois algumas decisões teriam de ser tomadas,
principalmente no que tangia à guarda de Ricardo após alta; o menino poderia
escolher com quem desejaria morar: o pai, a mãe ou a irmã, desde que em comum
acordo com a aceitação deles.
A irrupção de uma doença crônica demanda cuidados especiais que podem
sinalizar para outros. No caso de Ricardo, os cuidados maternos tornaram-se
imprescindíveis para a continuidade do tratamento médico. Na Enfermaria, o
paciente apelava aos gritos pelo Outro materno, tal qual um bebê que solicitava por
uma mãe que não podia ou não desejava responder ao seu chamado.
Lembramos que a senhora Marina alegava problemas diversos para não
comparecer à Enfermaria, entre os quais os cuidados prestados ao filho recém-
nascido. A mãe posicionava-se como se tivesse de fazer uma escolha entre “dois
bebês”: um gritava por necessidades fundamentais de sobrevivência; o outro, pelo
imperativo de uma dor isquêmica e de uma dor psíquica, subjugada aos efeitos da
indiferença materna. Salientamos que os sintomas da eritromelalgia se agravaram,
coincidindo com o final da gravidez da senhora Marina e com a sua mudança para
93

outro município do Estado, quando o paciente teve sua primeira internação no


HUPE.
Na existência de Ricardo, a doença ocupou um lugar de muita aflição, vez
que, ao irromper, se acoplou a um sofrimento psíquico, relacionado a questões
parentais com sérios prejuízos em sua recuperação clínica. Indagamos: que lugar
este sujeito ocupa no desejo de seus pais?
Muitas são as evidências tanto do apelo à mãe quanto do chamado ao pai.
Enfatizamos, por um lado, a “surdez” da mãe do menino, ao deslocar seu desejo
para outros objetos de amor, como se lhe fosse possível não escutar os gritos de um
filho adoecido.
Por outro lado, referimo-nos a um pai que dormia ao lado do “leito de
desespero” do filho na Enfermaria. Qual o significado desse adormecer, já que
demonstrava, “aparentemente”, uma preocupação com o menino, ao comparecer
durante as internações. As cenas de adormecimento do pai retratam uma cena de
um dos sonhos mencionados por Freud:

“As preliminares deste sonho modelo foram as seguintes: um pai estivera de


vigília à cabeceira do leito de enfermo do filho por dias e noites a fio. Após
a criança falecer, passou para o quarto contíguo a fim de repousar, mas
deixou a porta aberta de maneira a poder enxergar de seu quarto a peça em
que o corpo do filho jazia, com longas velas erguidas em torno dele. Um
velho fora contratado para velá-lo e sentou-se ao lado do corpo,
murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai teve um sonho de
que seu filho estava de pé ao lado de seu leito, que o apanhou pelo braço e
lhe sussurrou em tom de censura: ‘Pai, não vês que estou queimando?’ Ele
acordou, notou um clarão brilhante no quarto contíguo, correu para ele e
descobriu que o velho vigia havia caído no sono e que as roupas e um dos
braços do cadáver de seu querido filho haviam sido queimados por uma
vela acesa que tombara sobre eles” (Freud, S., 1900: 543).

Lacan, no Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da


psicanálise (1964: 59-60), retoma o sonho relatado por Freud para referir-se à
função paterna, a partir do chamado do filho: “Pai, não vês que estou queimando?”
Lacan interpreta a frase destacada como uma perpetuação do “remorso do pai”: este
colocou para velar o corpo do filho alguém que não foi capaz de substituí-lo, pois
adormeceu. O sonho revela a função inconsciente do pai e sua insuficiência
presentificada no encontro faltoso daquele que não pôde manter a vigília para velar
o filho.
94

Talvez possamos dizer que a frase do sonho de Freud (“Pai, não vês que
estou queimando?”) traduza os gritos de Ricardo: ao chamar pela mãe, seus apelos
dirigiam-se ao pai, que, em sono profundo, deixava o filho queimar pela
eritromelalgia.
Identificamos que Ricardo “gritava queixas”, expressando dor física e dor
psíquica. Se, por um lado, a eritromelalgia exige conhecimento especializado para a
medicina curar o paciente, por outro, os gritos emitidos exigem a escuta da
psicanálise para o tratamento de um sujeito que demanda amor.
O grito, ao ser passível de escuta, foi revelando da estrutura neurótica de
Ricardo, conforme nossa hipótese diagnóstica. Na Conferência de Genebra sobre o
sintoma, proferida por Lacan em 1975, há uma referência ao grito como significante.
Pensamos, então, que o grito seria uma chamada ao Outro enquanto leitor para dar
um sentido àquele fragmento de real.

5.4 O grito aspirado de Ricardo

Os gritos emitidos por Ricardo revelam-se como o aspecto de maior


importância quanto à expressão de demanda: embora também emitam os sintomas
da eritromelalgia, estão para além de representarem apenas uma dor esquêmica.
O grito é a maneira mais primitiva e imediata de um sujeito dirigir uma
demanda a outrem. É pelo grito que se entra no universo simbólico, apelando-se ao
Outro para além do outro. O ser humano faz anunciar-se para constituir-se enquanto
sujeito, soltando gritos.
A criança, ao nascer, por estar assujeitada à prematuridade neurofisiológica,
depende de alguém para atender suas necessidades vitais: a satisfação da fome e
da sede, e o alívio de alguma dor. Nesse momento, um grito poderá dar provas de
que há acúmulo de uma tensão intolerável no organismo.
Freud, no texto “Projeto para neurólogos” (1895), compara o grito a uma
descarga motora que escoa a tensão interna do organismo, mas não a extingue.
95

Temos, então, o grito como sinalizador de desprazer, pelo desequilíbrio da


homeostase orgânica, numa exigência de interpretação.
A mãe, como primeiro Outro do lactente, deverá cumprir o papel fundamental
de decifrar necessidades. Os gritos inarticulados chamam pela presença desse
Outro absoluto que sabe sobre a criança. Ao escutar o ímpeto de energia que jorra
da boca, a mãe poderá ou não responder aos apelos do pequeno vivente. Porém, ao
pronunciar-se como intérprete, possibilitará que a simples descarga motora se
transforme em ação específica, com o objetivo de modificar o meio.
Alberti (1999: 53) destaca o termo Aktion, para situá-lo como caráter de ação
específica que funciona pelo escoamento de energia acumulada enquanto excesso.
Essa etapa corresponde ao estado de completo desamparo do lactente que, para
obter a satisfação de suas necessidades imperiosas, terá de fazer a diferença entre
meio externo e meio interno. Assim, é acionado o que Freud (1920) designa por
princípio de realidade em prol do princípio do prazer, na relação que o bebê pode
estabelecer com o outro, o mundo externo. Este, ao se apresentar à criança como
alguém que sabe sobre ela, deixa de ser anônimo e passa a ser o grande Outro,
representado pela figura materna.
Destacamos a constituição do eu através da imagem do outro. Lacan (1949)
formula essa construção como “estádio do espelho” ou “fase do espelho”, em que o
vivente experimenta, antes mesmo de sua maturidade neurofisiológica, o eu como
uma configuração corporal, atribuída pelo semelhante. Lacan (idem) menciona o
caráter imaginário da unidade do eu, onde a identificação com o outro é especular. A
essa “fase do espelho” Freud, em 1914, denomina “narcisismo primário”.
A mãe, como primeiro Outro do sujeito, é chamada a exercer uma dupla
função: suprir as carências essenciais e possibilitar a constituição do eu do pequeno
vivente; ela é, simultaneamente, um outro e um Outro. Porém, o Outro, que se
apresenta como semelhante na “fase do espelho”, poderá desvelar também uma
face estranha para o sujeito: é o que Freud (1895) designa como o “complexo
perceptivo do próximo”.
Segundo a Gestaltheorie (teoria da percepção), um objeto é percebido a partir
das “leis da organização”, isto é, da proximidade e da semelhança que dirigem
nossa percepção para a forma e a totalidade do objeto. Dessa maneira, uma
96

percepção sempre estará relacionada a uma Gestalt, “cujas partes, se consideradas


separadamente, não apresentam as mesmas características” (Abbagnano, N., 2000:
755). A psicanálise, com Freud (idem), menciona “os complexos perceptivos” para
nomear-se a maneira pela qual um sujeito percebe um outro ser humano, através
dos processos de memória e juízo. Essa percepção vai apontar para duas
características do objeto percebido: a de semelhança e a de desconhecimento do
objeto. Para Freud (1895), o próximo, o Nebenmensch, não é percebido como uma
Gestalt, e sim de maneira distinta, o que divide “o complexo perceptivo do próximo”
em dois:

“Os complexos perceptivos emanados desses seus semelhantes serão,


então, em parte novos e incomparáveis - como por exemplo, seus traços, na
esfera visual; nas outras percepções visuais – o movimento das mãos, por
exemplo – coincidindo no sujeito com a lembrança de impressões visuais
muito semelhantes, emanados do seu próprio corpo, lembranças que estão
associadas à lembranças de movimento experimentados por ele mesmo.
Outras percepções do objeto, também – se, por exemplo, ele der um grito –
evocarão a lembrança do próprio grito [do sujeito] e, com isso, de suas
próprias experiências de dor. Desse modo, o complexo perceptivo do ser
humano semelhante se divide em duas partes, das quais uma dá impressão
de ser uma estrutura que persiste coerente como uma coisa, enquanto que
a outra pode ser compreendida por meio da atividade da memória – isto é,
pode ser reduzida a uma informação sobre o próprio corpo [do sujeito]”
(Freud, S., idem: 433).

De acordo com o texto supracitado, Freud (idem) indica as duas “porções


díspares” de um “complexo perceptivo”, isto é, de semelhança e dessemelhança. A
mãe, ou quem quer que exerça a função materna como primeiro Outro do sujeito, se
oferece a essa percepção paradoxal de familiaridade e estranheza.
Das explicações freudianas, Lacan (1949) formula, como vimos
anteriormente, sua construção de “estádio do espelho como formador da função do
eu”. Na primeira etapa desse estádio, o eu é moldado pela imagem que o vivente
apreende do outro como sendo a sua própria imagem. Na segunda fase, algo
escapa a essa configuração harmoniosa e totalizante, e a imagem que o sujeito
recebe do outro apresenta um aspecto de estranheza, que não permite o
fechamento de uma Gestalt, fazendo aparecer o “duplo”, fenômeno estudado por
Freud, em 1919.
97

O duplo tem origem no narcisismo primário e suas vertentes revelam proteção


contra a destruição do eu e, posteriormente, rivalidade em relação ao mesmo. A
dupla apreensão da imagem, cujo caráter de repetição comporta uma estranheza do
que é familiar, desencadeia, no sujeito, a angústia. Em casos mais extremos de
tensão, temos a paranóia, em que o duplo é implacável ao perseguir o sujeito.
A psicanálise revela que, ao significantizar os gritos do lactente, a mãe
incorpora uma face assimilável e acessível a ele, na “fase do espelho”. Mas a
imagem, conforme dissemos, também comporta um fragmento diferenciado,
refletindo a face imutável e desconhecida do Outro. Ao desconhecido que se
manifesta como hostil e traz uma face oculta do objeto, Freud (1895) nomeia-o de
feindliche Objekt. O grito localiza-se no “complexo perceptivo do próximo”, enquanto
este se encontra entre a percepção do Outro como semelhante e como das Ding, a
Coisa anunciada por Freud, no “Projeto” (idem), e retomada por Lacan (1960), no
Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, sob o nome “Coisa materna”.
Um grito poderá chamar pelo Outro, ao mesmo tempo em que revelará a
impenetrabilidade do Outro, desvelando o que ficou de fora na “fase do espelho” e
que não pôde ser assimilado no processo identificatório. O grito, como fragmento de
real, traz à cena o outro, bem como o Outro enquanto leitor.
Sabemos que Ricardo37 carecia dos cuidados maternos, que podiam aliviar-
lhe o mal-estar, segundo a lei do prazer. Mas sua dor demandava para além do
princípio do prazer: interrogava o sujeito frente à inconsistência do Outro. Talvez,
revelasse questões pertinentes ao gozo que, ao fixar-se no corpo, saiu através dos
gritos de dor do sujeito.
Lacan (1966) relaciona o gozo experimentado no corpo como algo da ordem
da tensão, verificado no surgimento da dor. Lembramos que a eritromelalgia é uma
doença caracterizada por fortes dores em queimação. Concluindo, não podemos
deixar de ressaltar os gritos de Ricardo pela mãe como um chamado ao pai, cuja
insuficiência para cumprir sua função simbólica fica evidente na pessoa do pai
adormecido.

37O caso de Ricardo é abordado neste capítulo do período de dezembro de 2000 a maio de 2001.
Ele teve, no total, três internações na Enfermaria de Adolescentes. Em novembro de 2001, foi ao
óbito.
98

Ao estudarmos um caso clínico em que o grito foi destacado para análise,


fomos instigados à introdução em outro campo de investigação: o da pintura como
forma de ilustração. Encontramos, na arte de Francis Bacon, uma indicação de
pintura sobre o grito que faz lembrar o estado depressivo de Ricardo, por ocasião da
sua segunda internação. Trata-se da tela intitulada Head VI, referida por Nasio
(1997), na “Lição III: A dor e o grito”, de sua obra O livro da dor e do amor.
Ficamos surpresos ao deparar com um registro de Nasio (idem) sobre uma de
suas pacientes que emitia gritos que desapareceram após uma gravidez. Sob o
impacto do seu caso clínico, o autor, segundo suas palavras, “visualiza o fenômeno
do grito”, na tela Head VI.
Após pesquisarmos a contribuição de Nasio, uma articulação com o caso
clínico de Ricardo mostra-se possível; dentre tantos gritos emitidos, um, em
especial: “um grito aspirado”.
A tela Head VI é comentada no livro intitulado Entrevistas com Francis Bacon,
do jornalista David Sylvester (1995), que teve a oportunidade de entrevistar o pintor.
Um recorte sobre a vida do artista vem aqui com o objetivo de demonstrar o porquê
de seu interesse em pintar o grito.
Francis Bacon nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1909. No entanto, é
considerado um pintor inglês, por ser esta a ascendência de sua família. Seu pai
treinava cavalos na Irlanda e, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, participou
do Conselho de Guerra, transferindo-se para Londres com sua família. Até o ano de
1925, Bacon mudou-se para várias capitais, fato prejudicial à sua escolaridade e à
sua saúde, já que era portador de asma – doença crônica das vias respiratórias.
Nesse mesmo ano, após ficar independente de sua família, realizou estágio em
Berlim e, posteriormente, mudou-se para a França.
Bacon confidencia a Silvester (idem) o seu interesse, desde muito jovem, pelo
tema do grito. Considera um livro que comprou num sebo em Paris como o fato mais
marcante que influenciou sua pintura: nas ilustrações de doenças, gostava de
admirar o movimento da boca e sua forma.
Morou alguns meses perto de Chantilly, onde teve a oportunidade de
freqüentar o Musée de Condé, vindo a conhecer e a apreciar famoso quadro O
massacre dos inocentes, de Poussin, o qual considerou como “o mais belo grito
99

figurado” na pintura. Impressionou-se ao ver na tela o grito da mãe, quando lhe


retiram o filho dos braços. Deixou-se influenciar também pela fotografia do filme O
encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein. Nele, havia o registro de uma babá
gritando.
Em 1927, desde que foi a uma exposição de Picasso, na Galeria Paul
Rosenberg, em Paris, Bacon decidiu iniciar-se na arte da pintura. O mestre Picasso
indicou-lhe o lado não explorado da pintura: o das “formas orgânicas de figura
humana”.
Bacon sempre foi fascinado pelo quadro do Papa Inocêncio X, de Velásquez
(1650). Reproduziu várias vezes essa obra em sua arte, mas, segundo disse a
Sylvester (1995), fora incapaz de pintar a boca do Papa sorrindo. Diante da
dificuldade, pintou uma “boca disforme”, emitindo um grito, expresso na tela Head
VI.
É interessante como Nasio (1997: 155) relaciona o grito pintado na tela Head
VI aos enunciados de sua paciente a respeito do significado dos seus gritos: “Cada
vez que eu gritava, sentia o grito subir para a cabeça e encher um vazio, como se eu
gritasse com a cabeça toda, ou, por assim dizer, como se toda a minha cabeça
fosse uma boca”. Para Nasio, o grito de sua paciente não tinha sonoridade, pois
aspirava o ar, assim como o grito do Papa Inocêncio X.
Nesse ponto, ousaríamos inferir que nosso paciente também emitiu “um grito
aspirado” durante a segunda internação na Enfermaria de Adolescentes: a quietude
irrompida em Ricardo vinha em substituição aos gritos emitidos na primeira
internação. Alguns interpretaram-na como “uma certa tristeza”, outros verbalizaram
ter “ele se cansado de lutar contra a doença”. Analisamos que o menino estava
cansado de gritar para chamar o Outro, inconsistente e hostil diante dos apelos. Era
como se o paciente, naquele momento, tivesse dado conta da “maldade do
próximo”; daí, o surgimento de um estado depressivo como resposta ao seu
sofrimento.
Lembramos que o sujeito expressou um pesar, “um grito para dentro”, ao
produzir a fala “Na Páscoa ... dói”, ao mesmo tempo em que apontou para uma dor
no coração, como sinal de sua angústia. Se a paciente de Nasio “gritou com a
cabeça”, podemos metaforizar que Ricardo “gritou com o coração”. Dessa forma,
100

seria ousadia fazermos uma analogia entre “o grito aspirado” desse sujeito com a
eritromelalgia?
Uma das conseqüências da eritromelalgia é a hipóxia, isto é, a diminuição da
oxigenação nos tecidos perfundidos pelos vasos sangüíneos. O paciente foi
internado, pela primeira vez, no CTI por um episódio de depressão respiratória. Em
verdade, Ricardo, analogamente ao mecanismo pulmonar de expiração e aspiração,
emitiu o seu grito de dor na forma de “aspiração do ar”.
Como pôde a tela Head VI contribuir para nossas pesquisas acerca do
fenômeno do grito? Francis Bacon era asmático; experimentou uma doença crônica
que dificulta o mecanismo de entrada e saída de ar nos pulmões. Teria sua
“inspiração” artística para pintar gritos figurados partido de uma identificação com a
doença?
101

CONCLUSÃO

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

No texto “Uma breve descrição da psicanálise” (1924), Freud faz uma


projeção da expansão da teoria psicanalítica e é otimista quanto sua participação
futura no combate aos males que afligem a humanidade. Por outro lado, chama a
atenção de que “sozinha a psicanálise não pode oferecer um quadro completo do
mundo” (Freud, S., idem: 259). Esse alerta do autor deixa pistas para pensarmos a
psicanálise em conexão com outros saberes, como por exemplo a medicina.
Várias são as possíveis interlocuções que a psicanálise pode manter: onde o
sofrimento do humano se expressar, ela poderá propor a sua escuta, desde que haja
o analista. As palavras de Elia (2000) vêm ao encontro de nossa proposta de levar a
pesquisa psicanalítica para o hospital:

“Toda pesquisa em psicanálise é clínica porque, radical e estruturalmente,


implica que o pesquisador-analista empreenda sua pesquisa a partir do
lugar definido no dispositivo analítico como sendo o lugar do analista, lugar
de escuta e sobretudo de causa para o sujeito, o que pressupõe o ato
analítico e o desejo do analista” (Elia, L., 2000: 23).

No hospital, ou em outros lugares, o analista, em ato, sustenta o que lhe


permite afirmar o seu lugar de pesquisador: o seu desejo. É possível, assim, a
construção de um trabalho mesmo numa clínica como a do cuidar.
Na Enfermaria de Adolescentes, centro de referência nacional para o paciente
portador de doença orgânica crônica, a psicanálise participa com sua intervenção há
uma década. Encontra barreiras, mas também adesões dos profissionais que, com
sua obstinação terapêutica, cuidam de doentes jovens. Esse quadro geral permitiu,
inclusive, a realização desta dissertação como parte integrante do eixo assistência-
ensino-pesquisa, no hospital universitário.
É preciso saber reconhecer como o cotidiano hospitalar exige investimento
que a dor física e psíquica requer dos que ali participam, sejam agentes, pacientes
ou os que estão ao redor. Ousaríamos, a seguir, registrar com um gráfico como os
102

personagens de um triste romance tentam imprimir uma função específica ao seu


papel. A psicanálise, como veremos, ocupa função tanto dentro quanto fora da
narrativa:

O esquema permite a visualização da estrutura da Enfermaria: a psicanálise


ali se insere quer como participante da equipe multidisciplinar, quer como “marginal”,
por inserir-se num território alheio ao seu campo de saber. É, portanto, comum que
resistências se manifestem. Cabe ao analista manejá-las: elas fazem parte de seu
103

ofício. As forças de tensão são permanentes num espaço que acolhe os impulsos de
vida e morte.
Sabemos, desde Freud (1930), como o sofrimento físico é causa de
turbulência para o homem. Canonn (1932) corrobora essa idéia uma vez que
considera o corpo como “expressão de fragilidade”. Essa característica aponta para
uma outra: uma vez frágil, o corpo é afetado pelos males físicos e orgânicos e,
portanto, necessita de cuidados.
É na clínica do cuidar que a psicanálise encontra campo de atuação: o
sofrimento de adolescentes internados exige uma escuta, que ancore a angústia do
sujeito – fonte de desprazer –, através dos significantes por ele emitidos.
Verificamos como o “mandamento do amor ao próximo” é expressão daqueles
que trabalham com a clínica do cuidar. Este é um recurso de que se valem os
profissionais na instituição hospitalar para suportar a dificuldade de lidar com a
doença em pacientes tão jovens. Diante da eminência da morte, eles experimentam
a queda do ideal de profissional, o que lhes acarreta um efeito de quebra do
narcisismo, pela impotência frente a questões irremediáveis. É um jogo de mão
dupla: dar e receber amor, como se fosse possível apreender a ilusão de se
completar no Outro pela semelhança da imagem.
Ao destacarmos o caso Fábio, a intervenção psicanalítica quis evidenciar a
armadilha do amor especular, que não leva em consideração a face oculta do
próximo, isto é, sua hostilidade. Casos como o dele são constantemente discutidos e
mobilizam a atenção da equipe de saúde. Essa mesma postura nem sempre é
averiguada com aqueles nos quais a irrupção da doença orgânica traduz estados de
inibição que podem ser confundidos com as impossibilidades reais de
funcionamento do corpo. O caso de Camila vem aqui como exemplo da tristeza no
leito na forma clínica da depressão.
Hoje (novembro de 2001), Camila, aos vinte e um anos, continua internada na
Enfermaria de Adolescentes, mas de forma diferente: voltou a exibir-se com os
lábios e unhas pintados de vermelho, está estudando e aceita os cuidados
necessários a algum restabelecimento; verbaliza o afeto de raiva pela mãe e já
considera o fato de ir para uma instituição, como uma casa de saúde. Registramos
essas mudanças como resultantes, inclusive, da insistência da psicanálise em
104

escutá-la. A princípio, se seu caso era considerado “perdido”, atualmente


reconhecemos nela a decisão de reencontrar seus significantes primordiais e, em
conseqüência, de ultrapassar sua condição física de ser identificada a um paciente
crônico.
A psicanálise testemunha naquele espaço que outros pacientes, por mais
desejantes, não conseguem romper a barreira da dor: sua doença é de tal forma
devastadora que os leva à morte. Alice vem ratificar essa constatação e sinalizar
para as confusões da abordagem psicossomática: ela não fez um câncer; seu
estado subjetivo, porém, chegou a alterar seu prognóstico, estendendo seus dias de
vida.
Lembramos nossa hipótese de que dor física acompanha dor psíquica. O
contrário também pode ser verdadeiro, em se tratando de uma dor conversiva, como
no caso de Elizabeth. Suas dores na perna cessaram após a análise com Freud
(1895), pois se relacionavam a lembranças traumáticas de sua existência.
Uma vez confirmada a doença orgânica, é fato que a conturbação do estado
subjetivo do paciente poderá até levá-lo ao óbito. Isso certamente aconteceu com
Ricardo – fruto da falta de investimento das figuras parentais. Durante os onze
meses que permaneceu internado, sofrendo as dores de queimação da
eritromelalgia, gritava pela mãe para que seus gritos “acordassem” o pai, que,
contudo, continuou adormecido enquanto sujeito, apesar de fisicamente presente.
Sua estadia no hospital durou o tempo de um pesadelo.
Sua segunda alta, em outubro, trazia consigo os dias contados para a volta:
sua terceira internação aconteceu apenas alguns dias depois, numa prova de
abandono, mais uma vez confirmada pela equipe multidisciplinar. Em sua entrada,
as pernas, a olhos vistos, estavam infectadas pela imersão no balde com água
gelada – procedimento não mais indicado para o menino. Apresentava-se muito
triste, com quadro depressivo, que se expressava na recusa de todo e qualquer
cuidado. A preocupação dos profissionais da equipe técnica foi intensa: ele não
queria comer, tomar banho, falar, ingerir os remédios. É como se tivesse, mais uma
vez – e de forma irremediável –, defrontado-se com o vazio da não tradução de seu
chamado pelos gritos.
105

A última intervenção da psicanálise com Ricardo foi no sentido de reanimá-lo;


depois de muita insistência, conseguimos fazê-lo comer e tomar banho, com a ajuda
de duas auxiliares de enfermagem. Era uma tentativa – em vão – de restituir-lhe os
significantes básicos: cuidar do corpo como equivalente à possibilidade de aquele
ser, ainda vivente, passar de um estado de necessidade a outro de demanda (ele já
não gritava mais). Além disso, mantivemos contato com a mãe, o pai, o irmão e a
irmã para chamá-los à Enfermaria de Adolescentes. O cuidar do menino era
imprescindível! Não tivemos resposta.
Na clínica do cuidar, a aposta da psicanálise é sempre escutar o sujeito
quaisquer que sejam as circunstâncias; não deixa de intervir mesmo quando se
defronta com os mais variados limites: em 22 de novembro de 2001, Ricardo veio a
falecer.
106

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