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Rio de Janeiro
2001
Selma Correia da Silva
Rio de Janeiro
2001
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/A
________________________________ _____________________
Assinatura Data
Selma Correia da Silva
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Sonia Alberti (Orientadora)
Instituto de Psicologia - UERJ
_____________________________________________
Prof. Dr. Marco Antonio Coutinho Jorge
Instituto de Psicologia - UERJ
_____________________________________________
Prof.ª Dra. Ana Cristina de Figueiredo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2001
DEDICATÓRIA
Sigmund Freud
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 10
1.1 Psicanálise na Enfermaria de Adolescentes ...................................... 10
1.2 Psicanálise na “reunião das segundas-feiras” .................................. 15
1.3 Alice no reino das pedras .................................................................... 18
2 O AMOR AO PRÓXIMO NA CLÍNICA DO CUIDAR .............................. 25
2.1 Clínica do cuidar ................................................................................... 25
2.2 O cuidar como escuta a doentes jovens ............................................ 27
2.3 O amor ao próximo ............................................................................... 34
2.4 O próximo-estranho: Fábio precisa de um “pai-drinho” .................. 39
3 A TRISTEZA NO LEITO ......................................................................... 46
3.1 Doença e inibição ................................................................................. 46
3.2 Depressão e sua tristeza ...................................................................... 50
3.3 “Mais um caso perdido”: Camila no leito 10 ...................................... 53
4 A DOR QUE PETRIFICA ....................................................................... 58
4.1 Dor física e dor psíquica ...................................................................... 58
4.2 Elisabeth: a dor da conversação ......................................................... 63
4.3 Alice: a dor que petrifica ...................................................................... 71
5 A DEMANDA PELO GRITO ................................................................... 76
5.1 Eritromelalgia: psicossomática e literatura médica .......................... 76
5.2 Eritromelalgia: a sabedoria do corpo e o inconsciente .................... 82
5.3 O grito da eritromelalgia ...................................................................... 84
5.4 O grito aspirado de Ricardo ................................................................ 94
CONCLUSÃO ......................................................................................... 101
REFERÊNCIAS ...................................................................................... 106
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INTRODUÇÃO
1 O Serviço teve origem como Unidade Clínica de Adolescentes/UCA, em 1974, e, em 1995, passou à
categoria de Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente/NESA.
2 Selma Correia da Silva, Jane da Rocha Cruz e Hilma H. Silva estagiaram quatro meses na Unidade
Clínica de Adolescentes/UCA.
3 Originalmente, aquele projeto intitulava-se “Estudos de alguns fenômenos que tangem o ato e a
inibição, na psicanálise aplicada à clínica institucional do adolescente, visando à área de psicologia
do adolescente num curso de especialização”, tendo sido financiado, sob esse título, pela FAPERJ,
de novembro de 1990 a outubro de 1991.
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não pode ler no corpo para além do olhar médico, o que levou à indagação com a
qual iniciamos esta pesquisa: o que é um corpo a partir da psicanálise?
A partir do conceito de pulsão, a psicanálise concebe a questão do corpo
referido ao desejo; este não se reduz às necessidades biológicas. Freud (1915)
teoriza a pulsão como situada entre o psíquico e o somático; ela seria o
representante psíquico de forças somáticas e de estímulos orgânicos. Em textos
posteriores, diferencia a pulsão de seu representante psíquico.
Lacan, nos anos 50, localiza a pulsão em termos de significante, ao dizer que
o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Em 1953, no “Discurso de
Roma”, o autor faz menção ao corpo como linguagem: esta antecede ao corpo
próprio, pois habita os órgãos e lhes dá uma função. O corpo é definido como algo
que traz a marca do significante. Portanto, a psicanálise tornou possível não
confundir corpo com organismo. Se o corpo é linguagem, possui a mesma estrutura
do inconsciente.
O cotidiano da Enfermaria do NESA vem corroborar tal assertiva lacaniana:
as doenças, ao irromperem no organismo, afetam o corpo da linguagem, o que
implica dizer que o sujeito, ao vivenciar o mal físico, experimenta a influência do
inconsciente.
A clínica psicanalítica no hospital, principalmente com pacientes portadores
de doenças orgânicas crônicas, confronta-se com a dificuldade de esses sujeitos
fazerem demanda de análise. O surgimento de uma doença aliado à internação são
fatores que interferem, na maioria dos casos, no surgimento das idéias espontâneas
do paciente, isto é, da associação livre.
Freud (1924), no texto “O problema econômico do masoquismo”, alerta que
“uma neurose poderá desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um
casamento infeliz, perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica
perigosa” (Freud, S., idem: 207). Essa afirmação merece um esclarecimento: se, por
um lado, a doença afasta os sintomas neuróticos, por outro lado, não deixa de
causar sofrimento psíquico no sujeito, como o luto ou a depressão – formas de dor
psíquica que podem falar de um sujeito neurótico, mas não sintomas neuróticos.
Em outros sujeitos, porém, a neurose não desvanece no ato de um
adoecimento. Ao contrário da observação de Freud, a doença propicia o
14
4 A equipe de Saúde Mental da Enfermaria (nível terciário) integra o Serviço de Saúde Mental do
NESA, composto também pelos níveis de atenção primário (Comunidade de Vila Isabel) e
secundário (Ambulatório). O Serviço reúne-se, mensalmente, para intercâmbio entre os
profissionais. Participam desse Serviço: Dulce Maria Fausto de Castro, Marília Mello de Vilhena,
Selma Correia da Silva, Simone Pencak, Sonia Alberti, Suyanna Linhales Barker e Vera Pollo.
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“Há bons motivos para o fato de que cuidar de doentes desempenhe papel
tão significante na pré-história de casos de histeria. Alguns dos fatores em
ação são óbvios: a perturbação da saúde física, decorrente do sono
interrompido, o desleixo de sua própria pessoa, o efeito da constante
preocupação com função vegetativa de outra pessoa. Mas, em minha
opinião, deve-se procurar o determinante mais importante em outra parte.
Qualquer um cuja mente esteja ocupada pelas inúmeras tarefas de velar
pelos enfermos, tarefas essas que se seguem uma as outras, em sucessão
interminável, por um período de semanas e meses, adotará, por outro lado,
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deveria. Alegavam os médicos que seu estado era terminal e, por isso, a equipe a
mantinha afastada de ser falada na reunião. Porém, a “psicanálise reivindicou” o
retorno da paciente para a “reunião das segundas-feiras”, quando poderia ser
discutido se a paciente apresentava uma tristeza ou uma depressão. Se a tristeza de
Camila é razão de dúvida quanto o significado da sua dor psíquica, certamente as
dores conversivas de Elisabeth também o seriam, acaso pudéssemos transpor,
imaginariamente, a paciente de Freud para a Enfermaria.
Discorremos sobre Elizabeth no Capítulo IV – A DOR QUE PETRIFICA –, ao
mesmo tempo em que acrescentaremos algumas considerações sobre o caso Alice
– um dos temas desta introdução.
Elisabeth tinha vinte e quatro anos quando foi atendida por Freud, em 1892,
com quadro de dores conversivas que tinham origem em um reumatismo muscular
crônico comum. Mais uma vez, levantamos a hipótese de que, se o caso da jovem
fosse discutido nas “reuniões das segundas-feiras”, ela seria tratada como uma
“pitiática” e inscrita como aquela que “não tem nada”. O diagnóstico médico de “piti”
exigiria uma mediação psicanalítica, pois está situado no campo do sintoma
histérico. Elisabeth, provavelmente, receberia alta o mais breve possível, pois suas
dores não se enquadrariam na fenomenologia da dor orgânica, como é o caso de
Ricardo.
Tema principal do Capítulo V desta dissertação – A DEMANDA PELO
GRITO –, Ricardo, treze anos, apresentava as conseqüências de ser portador
de doença orgânica crônica pouco conhecida pela medicina. Sofria fortes dores
físicas em queimação e também psíquicas. Demandava, em gritos, pela presença da
mãe, que pouco respondeu ao seu chamado.
Mais uma vez, perguntamos sobre a função da psicanálise na “reunião das
segundas-feiras”, frente a um caso em que manifestações fenomenológicas davam
margem à duvida quanto ao diagnóstico de psicose ou de histeria.
Sem dúvida, uma questão perpassa todo este trabalho: a escuta psicanalítica
na clínica do cuidar. A fim de sintetizarmos nosso objetivo maior, não poderíamos
deixar de discorrer sobre o caso de Alice; ele abarca os temas principais vividos no
cotidiano da Enfermaria de Adolescentes, onde o sofrimento físico é objeto primeiro
de intervenção dos profissionais.
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O caso Alice talvez tenha sido um dos mais discutidos e exigiu exaustiva
“presença” psicanalítica. Deram-lhe muita ênfase na “reunião das segundas-feiras”,
e a psicanálise teve sua participação de imediato, pois, como veremos, uma questão
ética se impunha.
Alice estudou até a terceira série do primeiro grau e, após algumas
reprovações, desligou-se da escola aos treze anos. Deu início às suas atividades
laborativas como babá, desempenhando a função até casar-se. Aos dezessete anos
decidiu viver com Marcelo e fez a opção de demitir-se do emprego para cuidar do
marido e da casa. Aos dezoito anos (1995), foi internada na Clínica de Ortopedia do
HUPE, sendo posteriormente transferida para a Enfermaria de Adolescentes.
Queixava-se de fortes dores na perna esquerda; a descrição detalhada dos
sintomas não deixava dúvida quanto à fenomenologia da dor orgânica. Estava
grávida, no terceiro mês, de uma gestação planejada e desejada.
Na Enfermaria, foi submetida, pela equipe médica, a uma série de exames
sofisticados e a inúmeras sessões clínicas, das quais participamos. Os resultados
registraram que o problema não era ortopédico; o diagnóstico diferencial da Clínica
Oncológica confirmou trombose venosa profunda (obstrução de um grande vaso) e
câncer do tipo sarcoma de partes moles da coxa esquerda. O sarcoma era de alto
grau de malignidade e invadia o corpo da paciente, alojando-se na parede do útero,
ao mesmo tempo em que o feto se desenvolvia.
A partir do diagnóstico com um prognóstico desfavorável para a adolescente,
Alice entrou numa via crucis de tratamento que passou a fazer parte de uma rotina
hospitalar. A interrupção da gestação facilitaria o tratamento, no sentido de poder ser
instituído de forma mais “agressiva”, inclusive, com radioterapia associada. Também
facilitaria melhor investigação e acompanhamento com métodos radiológicos.
Instaurou-se, dessa maneira, uma questão ética: o que seria o melhor para a
paciente, do ponto de vista da medicina, sem deixar de levar em consideração o
desejo de Alice em manter a gravidez.
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O “amor objetal completo”, acima referido por Freud, vinha para Alice
representado no ideal da maternidade, favorecendo sua adesão ao tratamento
médico. Podemos dizer que houve uma prevalência da maternidade sobre a doença,
como ilustra o esquema a seguir:
Apesar disso, a libido dividiu-se entre a luta contra o câncer e o desejo de ser
mãe. Uma vez identificado à maternidade, o sujeito não deixou de amar enquanto
sofria. Houve, durante a internação, um enorme gasto de energia psíquica: a
paciente sofria tanto por dores do câncer, como também por manter-se desejante.
Ao decidir-se pelo nome de menina, optou por homenagear uma de suas
médicas, cujo nome lhe fazia lembrar a dedicação da profissional no período em que
foi tratada de um grande sofrimento. Por saber da gravidade da sua doença,
expressava-se culpada, ao dizer que não poderia prestar os cuidados maternos à
criança, juntamente com o marido que tanto amava. Apresentava-se em privação
diante de um dano real. Sua tristeza acentuou-se ao ter conhecimento de que a
criança poderia nascer e que ela, provavelmente, não exerceria a maternidade. A
escolha não lhe passou impune: tomava posse de um desejo que, segundo suas
palavras, se realizaria “pela metade” – causa de um grande conflito.
O sofrimento provocado pelas dores do câncer não estava dissociado nem da
fala da paciente, nem da nossa escuta. Acentuamos ser a função do psicanalista
escutar o que um sujeito diz para além de uma dor física; porém, quando as queixas
de sintomas somáticos se repetem com freqüência em nossa escuta, temos de
remeter os pacientes aos médicos. No caso, isso foi uma constatação, significando
que, em ocasiões como essa, não temos como escutar um paciente devido à
intensidade do quadro álgico que faz calar o sujeito.
Na tentativa de realizar o ideal da maternidade – o “amor objetal” –, a
paciente esbarrou com a rapidez cronológica de um câncer que levava vantagem
sobre o tempo lógico do seu desejo. É a partir da clínica que constatamos a
improbabilidade de um sujeito fazer um câncer, pois se o quisesse desfazer não
conseguiria. Tal hipótese está voltada para uma visão confusa da abordagem
psicossomática e pensamos ser devida à falta de experiência clínica de alguns
profissionais, no hospital, com pacientes portadores de doenças orgânicas.
Com o avançar das terapêuticas invasivas, Alice passou a sofrer todas as
conseqüências de uma quimioterapia. Os cabelos caíram e a paciente os guardou
num saco plástico; alegou assim proceder por receio de perder o companheiro. Os
cabelos podiam representar a máscara da feminilidade, que a moça tentava, de toda
a maneira, preservar. Necessitava, também, reter algo diante de tantas perdas.
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mandíbula, ter sobrevivência à extinção. Encerrou sua prática, após cinqüenta e três
anos de trabalho, enfrentando o câncer.
Esgotados todos os recursos médicos a seu favor, Alice viu-se diante de uma
clínica paliativa, o que nos faz indagar qual a referência psicanalítica diante de uma
prática médica que passa a ter, como único objetivo, a função de atenuar o
irremediável de um estado terminal.
A palavra paliativo, de origem latina, palliatu, apresenta etimologia cuja
significação é ”coberto com capote”, num indício de disfarce das aparências
(Ferreira, A. B. H., 1975: 1021). Conseqüentemente, podemos aludir aos cuidados
paliativos como um “disfarce” necessário para mascarar e amenizar um sofrimento
que não tem remédio.
A doença, em sua fase terminal, indicou a proximidade da morte que
enclausurou a paciente, silenciosamente, no leito. O câncer é um exemplo muito
claro da necessidade dos cuidados paliativos. Malengreau (1993) aborda o tema no
artigo “Para uma clínica dos cuidados paliativos”:
5 Uma leitura diacrônica do vocábulo compaixão, de acordo com Santos (2001: 17), “permite, sem
dúvida, a interpretação dúplice de sentido que se espraia à família de palavras do mesmo etmo. Por
um lado, compadecer é padecer com, sofrer com, e por outro é apaixonar-se por, apiedar-se de. O
vocábulo compaixão integra-se, formal e semanticamente, à família de palavras cujos termos
geradores possuem dois radicais: padecer e paixão, o primeiro de base erudita; o segundo de base
vernácula. Em compaixão (cf. compadecimento), lêem-se não só piedade, para, como também,
sofrimento com. Abre-se ainda a interpretação do vocábulo, com entrosamento filosófico ao sentido
de ter paixão por, ou melhor sofrer paixão por. O que parece ser interessante é o fato de haver, em
quaisquer das interpretações, um traço de passividade, ou voltando ao vocábulo erudito, de
padecimento”.
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conviver com ele no cotidiano hospitalar. Por outro lado, quem cuida são os
profissionais que convivem com o paciente, como o enfermeiro, o assistente social e
o psicólogo.
No segundo caso, o significado de cuidar torna-se mais abrangente: quem
trata é quem convive, ao prestar cuidados ao doente, como a equipe que exerce
suas funções com filosofia multidisciplinar. Assim, Figueiredo (idem: 130) discorre
sobre alguns “significados correntes” do ato de cuidar. Para esta pesquisa,
tomaremos apenas um: o “cuidar como escuta”. A partir de nossa clínica no hospital,
incluiremos o tratamento do médico de adolescentes como um ato de cuidar, já que
“convive” com o paciente no cotidiano do processo de internação.
“O que eu queria ser mesmo era doutora da minha doença, estudar o que
sinto” (Júlia, dezoito anos – diagnóstico: lúpus eritematoso sistêmico).
6 Expressão utilizada por Freud no texto “Cinco lições de psicanálise” (1910: 14).
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espontaneidade do discurso do paciente que poderá falar sobre “o que lhe vier à
cabeça”, regra fundamental da psicanálise, anunciada por Freud (idem).
Ressaltamos, porém, que o psicanalista deve ficar atento para os sintomas
somáticos que se repetem no discurso de determinados sujeitos em tratamento.
Esse fato deve trazer incômodo à escuta do psicanalista que deverá levantar
hipóteses quanto à possibilidade de haver alguma disfunção orgânica. Sobre este
fato, pensamos que Freud (1900) também faz um alerta aos psicanalistas, ao
comentar uma passagem de sua clínica.
Certa feita, Freud (1900: 320-1) recebeu uma paciente que estava em
tratamento há anos com diagnóstico de histeria (sofria de algias e de marcha
anormal). A partir das indicações que a clínica psicanalítica lhe permitiu conhecer
sobre as neuroses, pôde excluir a possibilidade de histeria. Procedeu a um rigoroso
exame físico, diagnosticando um estágio muito avançado de tabes – quarto estágio
da sífilis, posteriormente tratado por um médico. Os resultados do tratamento,
segundo Freud, foram bons.
No NESA, identificamos uma questão muito comum, relacionada à escuta,
causa de confusões no cotidiano hospitalar: a “escuta paralela” que se destaca e se
diferencia daquela necessária ao ato de cuidar – a que particulariza o significante
adolescência como sinônimo de “período de crise do indivíduo”, perda da imagem
corporal, conflitos em relação à sexualidade, formação de grupos etc. A
especialidade adolescência “clama” pela escuta ao abrir um flanco sobre os aspetos
subjetivos da vida do paciente. Constatamos que, desde as origens da Medicina de
Adolescentes e à história de fundação do NESA, existe uma valorização da “escuta
paralela” dos adolescentes.
O vocábulo Hebiatria é um sinônimo de Medicina de Adolescentes; em grego,
hebe significa mocidade, derivando-se daí o termo. Para a Organização Mundial de
Saúde, a segunda década da existência humana, de dez a vinte anos, situa o
período da adolescência.
Segundo Coates (1993: 3), as origens dessa especialidade são obscuras. No
final do século XIX e início do século XX, alguns médicos já demonstravam
“interesse especial no crescimento e desenvolvimento” de pacientes adolescentes e
de suas doenças. Um estudo clássico de crescimento dessa faixa etária foi
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7 Hall era um homem erudito e discorria sobre vários assuntos, caracterizando-se por um certo
ecletismo, como podemos observar pelo título de sua obra. Pensamos esse ecletismo como um
ponto de impasse com Freud. Hall até tentou aproximar-se das idéias de Freud e, em 1908, fez-lhe,
pela primeira vez, um convite para discursar na Clark University, Massachusets, Estados Unidos,
por ocasião do vigésimo aniversário da instituição. O encontro entre ambos aconteceu em 6 de
setembro de 1909, quando Freud pronunciou as “Cinco lições de psicanálise”.
O psicólogo entusiasmou-se com a psicanálise, fato que o fez ministrar cursos sobre o assunto.
Num primeiro momento, foi evidente a admiração de Freud (idem: 27) pelo Presidente da Clark
University, ao qual se referia como “o nosso honrado presidente”. Hall tinha sido extremamente
gentil com o homem que trouxera a “peste” aos americanos. Porém, seus interesses psicanalíticos
não vingaram por muito tempo, ao voltar-se para a escola de psicologia individual de Alfred Adler,
primeiro dissidente da história do movimento psicanalítico.
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por isso mesmo, gera angústia. Em termos lacanianos, podemos dizer que o Outro
do sexo – fonte imaginária de garantias do sujeito –, ao revelar-se incompleto, causa
decepção. Diante desse “desencontro sexual”, a psicanálise, contrária à teoria de
reforço do ego, propõe que o adolescente deixe falar sua “crise”, possibilidade de
bem dizer seu desejo.
Em nossa experiência no NESA, observamos que a “escuta paralela” ao ato
de cuidar é baseada na teoria de reforço de ego, que considera aqueles jovens
como indivíduos in-divisos, que não comportam a divisão do inconsciente; são
constituídos pelo desenvolvimento de fases que tendem ao fechamento, conforme
Hall (1904).
A escuta do indivíduo, portanto, difere radicalmente da escuta do sujeito da
psicanálise. Quando é acrescentado aos “indivíduos em crise” o sofrimento da
doença, os profissionais podem ser convocados, como já ressaltado, à ordem da
compaixão que vem do Outro – representada seja pela máxima cristã, seja pela
direção de um Serviço de Saúde. O “cuidar como escuta” a doentes jovens é razão
para alguns sofrerem paixão, expressando-se pelo que identificamos como “o
mandamento do amor ao próximo9”.
9 Nos anos de 1996 e 1997, participamos das aulas do Seminário de Romildo do Rego Barros, na
Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Rio, cujo tema “narcisismo” levou-nos à reflexão e à
pesquisa psicanalítica sobre o mandamento bíblico “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”.
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“Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e
de todo o teu pensamento.
Este é o primeiro e grande mandamento.
E o segundo semelhante a este é: ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (cf. Mateus,
22: 36-40).
10 Mandamento também encontrado em outros livros da Bíblia, tais como Lucas (10: 26), Marcos (12:
31).
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que o amor seja retirado do plano geral, pois não deve ser partilhado com todos.
Apenas determinados seres humanos merecem nosso amor e este não é universal.
Quando amamos é porque o outro nos atraiu com um “valor” ou “significação”; caso
contrário, não conseguiríamos amar um “estranho”.
O mandamento, segundo Freud (idem: 132), deveria ser escrito de uma outra
maneira: “Ama teu próximo como este te ama”. Além disso, amamos o igual que
também comporta o estranho, fato que o ”mandamento do amor ao próximo”
desconsidera. Sobre o termo estranho, Freud (1919) tece um exame lingüístico, para
além da equação “estranho não familiar”, estudo que auxilia a esclarecer o
significado da face desconhecida do mandamento.
O estranho11 tem relação com o que é assustador, com o que causa medo ou
horror; pode, ainda, assumir uma característica diferenciada do uso corrente da
palavra, ou seja, é aquele traço do assustador que provoca o conhecido, velho e
familiar. O exame lingüístico explicita que:
1º) Nem tudo o que é não familiar é assustador;
2º) Algumas novidades são assustadoras;
3º) Algo tem de ser acrescentado ao que é novo e não familiar para torná-lo
estranho.
Em alemão, o termo Unheimlich significa o que não é doméstico; isso vem a
ser o oposto de Heimlich, que tem o sentido de lar, familiar. A palavra Heimlich tem
diferentes conotações ou significados, dentre os quais um revela-se igual ao seu
oposto: Unheimlich. Portanto, algo Heimlich é também Unheimlich.
Algo que é Heimlich tem o significado de familiar e agradável e, também, o
que está oculto e se mantém escondido, fora do alcance da visão. Mas o termo
Unheimlich é apenas usado como o oposto do primeiro significado de Heimlich e não
do segundo. Porém, Unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido oculto, mas
veio à luz12.
Podemos inferir, através desse estudo freudiano, que o próximo é, ao mesmo
tempo, o familiar e o estranho.
11 Segundo a Bíblia, os hebreus foram estrangeiros no Egito. O estranho para os hebreus e árabes
pode ter conotação de demoníaco e horrível.
12 Freud refere-se a Schelling, que deu um novo conceito a Unheimlich (estranho).
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13 Em Gênesis, que é o primeiro livro do Velho Testamento, Deus refere-se à imagem e semelhança
no capítulo 1, versículo 26. O homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus significa ser
dotado de faculdades de raciocinar, expressar emoções e agir voluntariamente. Particularmente,
indica a capacidade de o homem manter íntima comunhão com o Criador.
14 Lacan estudou o tema da identificação imaginária no texto “O estádio do espelho”. A versão original
desse trabalho foi escrita em 1936, para o XIV Congresso Internacional de Mariembad. Até 1949,
Lacan vai retornar as idéias apresentadas em 1936, nos textos “Os complexos familiares”
(1938),“Considerações sobre a causalidade psíquica (1946) e “A agressividade em psicanálise”
(1948).
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Dados do Prontuário
Paciente: Fábio
Idade: dezoito anos
Mãe: Nair
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Pai: Ignorado
sozinho e não ter amigos. Sua mãe, assim como seu padrasto, compareciam para
visitá-lo vez ou outra, por muita insistência da equipe multidisciplinar. Fábio passou
a apresentar um quadro de tristeza, mesclado à enfática revolta que se expressava
na recusa de todo e qualquer cuidado que os profissionais lhe ofereceriam. Segundo
relatos constantes da equipe de enfermagem, o paciente queixava-se de sua
dependência, chegando a impedir as mobilizações necessárias em seu corpo. A
preocupação dos médicos, nesse período, tornou-se intensa e foi discutida, com a
equipe de Saúde Mental, a introdução de medicamento antidepressivo –
administrado, posteriormente, pela clínica psiquiátrica.
No leito, o adolescente recebia cuidados e atenção; alguns tentavam traduzir
as suas queixas e amenizar sua hostilidade, trazendo-lhe sanduíches e
refrigerantes. Aqueles que assim procediam justificavam as tentativas como
“estratégias” para que o paciente pudesse aderir ao tratamento, já que seu estado
clínico geral se tornara crítico. Fábio exilava-se no leito, “sem desejo de continuar
vivendo” – registro do residente médico que o acompanhava. Por “não ter mais
jeito”, pois alguns pensavam que o paciente estava próximo da morte, ele passou a
receber visitas freqüentes de um sacerdote católico15. Este, ao escutar sua história
de vida, chegou à conclusão de que ele precisava de um padrinho, fato corroborado
por determinados profissionais da equipe multidisciplinar, que naquela ocasião
expressavam-se com piedade para com a situação.
Quem assumiria aquela função protetora, sem ter ciência do que poderia
pedir o sujeito a um pai–drinho?. A etimologia da palavra padrinho provém do latim
“patrinu, diminutivo de pater, pai” (Ferreira, 1975: 1016). Na Igreja Católica, o
padrinho é o protetor do afilhado na ausência dos pais. Talvez algum jovem em
início de carreira, muito emocionado, sensível e dedicado ao caso fosse o padrinho.
Um residente de medicina que prestava seus cuidados, movido de “íntima
compaixão”, tal qual o “Bom Samaritano”, e influenciado por outros membros da
equipe técnica, ofereceu-se para batizar o paciente, resistindo quanto a perceber a
questão transferencial. Naquela ocasião, o acontecimento foi visto como algo
comum pelo médico, que, devido ao seu envolvimento afetivo no caso, não pôde
escutar as observações da equipe de Saúde Mental sobre os possíveis prejuízos
daquele ato, tanto para um quanto para o outro. Foi um período de muito
investimento do residente com o paciente, quer no tratamento, quer na tentativa de
suprir, de maneira inconsciente, a “função do pai”. Fábio, que resistia à escuta
psicanalítica, passou a recusá-la.
Evidenciamos, no caso clínico, a “escuta paralela” à escuta na clínica do
cuidar. Conforme já ousamos dizer no início deste capítulo, “recalcar a subjetividade”
de seu paciente deveria ser um exercício do médico em sua escuta. Isso implica
dizer que ele também deveria “recalcar a própria subjetividade”, para que sua escuta
não seja desviada da sua ausculta. Esse argumento, talvez voltado para um “ideal”,
fundamenta-se numa exigência de análise pessoal do médico. Ao estimular a
questão transferencial, o médico poderá incorrer no engodo das significações do
sofrimento psíquico do paciente e “o amor transferencial, fadado a permanecer
oculto e não analisado, nunca poderá prestar ao restabelecimento a contribuição
que a análise dele teria extraído“, segundo alerta Freud em “Observações sobre o
amor transferencial” (1914: 210-11).
Numa Enfermaria, a transferência analítica dilui-se ao sofrer interferências;
“todos escutam mais do que deveriam”. Dessa maneira, vão cuidamando do
paciente na imagem de si mesmo no espelho, na “primeira zona do próximo”.
Fábio é incluído, na Enfermaria, no rol daqueles adolescentes que, além de
sofrerem com o diagnóstico de doença orgânica crônica, ainda sofrem pelas
condições precárias de moradia, pelo abandono da figura materna e, sobretudo, pela
“carência do pai” no complexo, que não se confunde com sua carência na família,
conforme teoriza Lacan, no Seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1958).
Lacan (idem) refere-se ao pai como uma função significante – nomeada pela
instância o Nome-do-Pai. Este vem imprimir, no complexo de Édipo, um outro lugar
para o desejo da mãe, o qual passa a ser submetido a uma lei. O Nome-do-Pai
inscreve-se no Outro materno, que irá apresentar-se castrado. Assim, a criança
deixa de ser o falo da mãe para ter o falo, significante que a autorizará às
significações as quais vai aspirar durante sua história de vida.
A função do pai ocupa um lugar central em psicanálise. Para Freud, no texto
“Totem e tabu” (1913), a função paterna é depreendida em seus três registros: real,
imaginário e simbólico. O pai real está às voltas com seu próprio gozo; o pai
43
17 Discorremos sobre o caso clínico no período compreendido entre 1999 e 2000. O comportamento
agressivo de Fábio retornou após algumas semanas, quando a equipe multidisciplinar já havia
esgotado todo seu nível de tolerância com o paciente, que se recusava à escuta psicanalítica.
Chegou-se à conclusão de que sua permanência na Enfermaria de Adolescentes já não era tão útil
aos seus cuidados, pois a cirurgia não seria possível. Realizaram-se visita domiciliar e contato com
um Posto de Saúde próximo à residência do paciente. Em outubro de 2001, recebeu alta.
45
“1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse
amor, seria como metal que soa ou como o sino que tini.
2. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios
e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que
transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria.
3. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e
ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor,
nada disso me aproveitaria.
4. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata
com leviandade, não se ensoberbece.
5. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita,
não suspeita mal;
6. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade;
7. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (cf . I Coríntios 13: 1-7).
46
3 A TRISTEZA NO LEITO
Tédio
Florbela Espanca
18 Expressão bíblica pronunciada pelo apóstolo Paulo, para referir-se a um sofrimento que,
provavelmente, seria uma doença dolorosa: “Mas para que eu não ficasse orgulhoso demais por
causa das coisas que vi, foi-me dada uma doença dolorosa, como se fosse um espinho na carne”
(cf. II Coríntios, 12: 7).
48
19A inibição consiste numa “suspensão das funções de um órgão, consecutivamente à irritação de
um ponto do organismo, mais ou menos afastado; a irritação é transmitida ao órgão, que pára de
funcionar por intermédio do sistema nervoso” (Delamare, G., 1988: 607).
49
sujeito pelo lado da paixão. Vou ater-me a dois tipos de sofrimento que
implicam diretamente o afeto: a já citada angústia e a depressão, ou, como
diz Freud em “Inibições, sintomas e angústia (1926), os estados
depressivos” (Alberti, S., 1989: 103).
Camila é uma jovem de vinte anos, que teve sua primeira internação na
Enfermaria de Adolescentes em 1995. Segundo dados do prontuário, aos onze anos
apresentou quadro de fraqueza em membros inferiores, com perda de força
muscular, diminuição da sensibilidade e dificuldades de deambulação (locomoção),
com quedas repetidas ao chão.
A família procurou auxílio médico e diagnosticou-se na paciente um
hemangioma (tumor vascular) na coluna vertebral. Camila foi submetida à cirurgia
para descompressão medular, quando apresentou paraplegia de membros
inferiores. Não há informações precisas sobre a causa da paraplegia, cuja origem
pode ter sido por seqüela do próprio hemangioma ou por iatrogenia médica. A partir
de então, iniciou-se uma história drástica em que são contadas perdas reais na vida
da adolescente.
Sua entrada na Enfermaria, aos quinze anos, foi devida aos problemas
secundários à paraplegia, como, por exemplo, as úlceras de pressão: escaras que
21Participamos do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose entre 1995 e 1998, quando se discutiu, durante
meses, o tema da depressão. Esse Núcleo foi realizado na Escola Brasileira de Psicanálise – Seção
Rio, coordenado por Antonio Quinet. Em 1997, houve jornadas clínicas sobre o tema, culminando
na publicação do livro A dor de existir e suas formas clínicas: tristeza, depressão e melancolia.
54
22Uma sonda que, introduzida pelo nariz, vai até o intestino delgado, levando uma combinação de
nutrientes.
56
O leito para Camila representa mais que um lugar onde ela recebe cuidados:
acolhe sua depressão – condição subjetiva que a mantém deitada ao mesmo tempo
que dificulta o fechamento de suas úlceras de pressão no corpo. E a paciente exila-
se no leito, identificada à cronicidade de sua doença, ao esperar e implorar pelas
visitas da mãe. Temos, nesse caso, o que Freud (1905) designa como o “ganho
secundário da doença”, ou seja, as vantagens que o sujeito poderá obter num
estado de adoecimento.
Freud descreve, pela primeira vez e de maneira sutil, “o ganho secundário da
doença”, em uma de suas correspondências a Fliess – “Carta 76, datada de 18 de
novembro de 1897”. Nela, menciona a relação de um diagnóstico médico (tumor)
com a histeria. Na “Conferência XXIV: O estado neurótico comum” (1917), ilustra a
condição de ganho secundário, ao citar o exemplo de um homem que, ao sofrer uma
mutilação num acidente de trabalho, passou a esmolar. O acidente (fator externo)
serviu para o sujeito retirar proveito e explorar a situação.
Mas foi em nota de rodapé, acrescentada em 1923 sobre o Caso Dora, que
Freud (1905: 40-1) fornece uma explicação clara do assunto, na neurose. Segundo o
autor, a neurose também apresenta um ganho primário: a fuga constante que o
aparelho psíquico realiza frente a um conflito, em conseqüência da economia de
energia, representada na atração que a doença provoca. Quando ao ganho primário
junta-se um elemento exterior, deflagra-se o ganho secundário.
Pelas explicações freudianas, atestamos a tentativa de um caráter de ganho
secundário de nossa paciente para receber afeto e atenção da figura materna que,
no entanto, não responde aos seus chamados. Porém, alguns membros da equipe
multidisciplinar de saúde parecem tê-la adotada ao chamá-la de “meu bebezinho”.
Seu leito é cercado de bichos de pelúcia como se fosse um berço. Difícil tarefa para
um sujeito, nessas circunstâncias, tentar erigir algum ideal; sua tristeza é acentuada
pelas dádivas institucionais que a mantêm como uma “pobre coitada”. Essa postura
não é unânime e, sim daqueles mais afetados com o caso que, em sua “escuta
paralela” ao ato de cuidar, praticam “o mandamento do amor ao próximo”.
Na sua última internação, a tristeza representou-se pela depressão, quando
Camila deparou com a queda do ideal do pai que a sustentava como objeto amado.
A partir dessa queda, manteve-se “à parte” do desejo, o que levou ao agravamento
57
de seu estado orgânico. Camila, então, foi considerada, no discurso médico, como
“mais um caso perdido”.
Lembramos que a depressão é um estado de inibição, o qual foi teorizado por
Freud em 1926. Porém, existe uma relação entre a inibição e a angústia; ao inibir-se,
o eu abandona uma função porque sua prática representaria fonte de angústia.
Disso advém que o afeto da depressão se manifesta para evitar uma determinação
inconsciente e conseqüente surgimento do sintoma. Porém, nem tudo está perdido!
Não desistimos de escutar a jovem; sua tristeza engana sobre o seu desejo. O
trabalho com pacientes portadores de doenças crônicas nunca é fácil, pelas
peculiaridades em cada diagnóstico.
Passados alguns meses, Camila23, oficialmente, não deveria mais estar
internada na Enfermaria de Adolescentes, já que completou, em outubro deste ano,
vinte e um anos. A equipe médica aguarda por um procedimento de enxertia nas
regiões atingidas pelas úlceras de pressão. Caso sua mãe tenha condições de
recebê-la e prestar-lhe os cuidados, receberá alta. Mas, por enquanto, só lhe resta
exilar-se no leito 10 – local de acolhimento do sono como condição favorável ao seu
estado depressivo, ao representar a retirada quase completa da libido até o eu.
Pode-se inferir que, na depressão, dormir é semelhante a morrer, como
desistência do desejo – covardia moral. Quinet, citando Hamlet acerca do desejo de
dormir, afirma que este “se impõe arrancando o sujeito dos laços libidinais para jogá-
lo nos braços de Morfeu e, assim, apagar a realidade que lhe aparece penosa, e
amortece os ‘choques dos quais a carne é herdeira’” (Quinet, A., 2000: 73-74):
To die – to sleep
No more, and by a sleep to say we end
The hear – ache, and the thousand natural shocks
That flesh is heir to.
Hamlet
23Abordamos o caso de Camila a partir da última internação – de 1999 até junho deste ano. Camila
completou vinte e um anos. A Enfermaria de Adolescentes ofereceu-lhe uma festa, como faz para
com todos os pacientes que aniversariam lá. Compareceram alguns de seus familiares, inclusive a
sua mãe. Sua maioridade serviu como um ponto de limite para a equipe multidisciplinar posicionar-
se frente ao caso, em que se cogita a possibilidade de uma visita domiciliar, com o objetivo de dar-
lhe alta.
58
Marguerite Duras
“A dor passa por todas as vias e descargas, fato que possibilita as trilhas de
facilitações em e como um raio suprime as resistências das barreiras de
contato, estabelecendo ‘via de condução’ em como também as que existem em
” (Freud, S., idem: 409 – grifo nosso).
60
objeto hostil por uma nova percepção qualquer. O desprazer liberado no interior do
corpo é novamente transmitido ao aparelho psíquico pelas trilhas facilitadoras.
Para Freud (1895: 426-7), as lembranças de experiência de dor, assim como
as de satisfação, constituem os afetos e os estados de desejo e produzem aumento
de tensão em . Tanto a dor, que corresponde ao aumento de Qs, quanto a
satisfação, que equivale à descarga dessa energia, passam por um processo de
regulação, de prazer-desprazer. Este argumento psicofísico, utilizado pelo “princípio
de constância”, foi atribuído ao médico e filósofo alemão G. T. Fechner e
comparado, na obra de Freud, à noção de homeostase.
Em 1926, no texto “Inibições, sintomas e angústia”, Freud afirma ter
encontrado o ponto de analogia entre dor física e dor psíquica, tema anteriormente
estudado no “Projeto”, em 1895: o que está em questão, de acordo com suas
palavras, é o sentimento de perda experimentado em ambas:
Ainda de acordo com Freud (idem), a passagem da dor física para a dor
psíquica corresponde à mudança de catexia narcísica para catexia de objeto. Na dor
psíquica, a perda de objeto ou a sua falta expressa uma concentração de catexia de
anseio, que tende a aumentar, uma vez que não pode ser aliviada. Tal anseio
assemelha-se ao da dor física, pela sensação da perda na área lesada do corpo.
Portanto, na dor psíquica, o anseio pulsional – energia pulsional –, para representar
o objeto, produz um “estado de desamparo”, experimentado pelo aparelho psíquico
como desprazer e, conseqüentemente, como dor. Isso evidencia um fracasso do
aparelho psíquico.
Freud retoma as idéias de Fechner, sobre as quais já havia feito menção no
“Projeto”, ao atribuir uma “tendência primária da vida psíquica a evitar o desprazer”:
62
“Até onde os impulsos conscientes sempre possuem uma certa relação com
o prazer e o desprazer, estes também podem ser encarados como
possuindo uma relação psicofísica com condições de estabilidade e
instabilidade. Isso fornece a base para uma hipótese em que me proponho
ingressar com maiores pormenores em outra parte.
De acordo com ela, todo movimento psicofísico que se eleve acima do limiar
da consciência é assistido pelo prazer na proporção em que, além de um
certo limite, ele se aproxima da estabilidade completa, sendo assistido pelo
desprazer na proporção em que, além de um certo limite, se desvia dessa
estabilidade, ao passo que entre os dois limites, que podem ser descritos
como limiares qualitativos de prazer e desprazer, há uma certa margem de
indiferença estética” (Fechner; cf. Freud, S., 1920: 18-9).
Uma das primeiras pacientes analisadas por Freud (1895), Fraülein Elisabeth
von R., sofria de fortes dores nas pernas há mais de dois anos, quadro clínico
intimamente relacionado às suas dores psíquicas.
Freud, devido à sua precisão clínica como neuropatologista e aos estudos
realizados com Charcot na Salpêtrière, bem como à sua escuta que, cada vez mais,
se dirigia à investigação do inconsciente, identifica, na jovem, sintomas orgânicos e
psíquicos a partir das queixas de dores. O autor revela, através do caso, que o
inconsciente é capaz de alterar um quadro álgico orgânico, bem como de criar dores
conversivas.
As dores periosterais (nos ossos) e neurálgicas (nos nervos), que
acompanham as dores dentárias, as dores de cabeça, as dores musculares
reumáticas e as dores orgânicas mais comuns são citadas por Freud (idem: 223-4)
como aquelas que podem ser intensificadas pela neurose.
Freud diagnostica em Elisabeth uma dor de origem orgânica – reumatismo
muscular crônico comum –, que, segundo sua escuta, foi copiada pela histeria da
paciente. Certamente, sua observação foi possível porque atribuiu à fenomenologia
um critério importante para o estabelecimento do diagnóstico diferencial.
Sem dúvida, não podemos deixar de considerar as observações de Freud
como válidas para o trabalho do psicanalista, no que tange à descrição da dor pelo
paciente. Chamamos atenção para o fato de que nem sempre constatações
fenomenológicas são levadas em consideração. A fenomenologia tem seu lugar
nessa clínica, principalmente para aquele que exerce atividades no hospital.
A partir de sua primeira entrevista com Elisabeth, Freud (idem) estabelece
certas diferenças quanto à descrição e à sensibilidade em dores de origem histérica,
64
A FENOMENOLOGIA DA DOR
e, para ele, não podia levantar-se nenhuma hipótese de “qualquer afecção orgânica
grave”.
Freud (1895) concorda com o diagnóstico de histeria suspeitado pelo médico
que lhe indicara a paciente. Sua conclusão deve-se, principalmente, pelo ar de
prazer expresso no rosto da moça, no momento do exame; não é comum um
paciente, com dor de origem orgânica ou um hipocondríaco, expressar-se daquela
forma ao estímulo da região sensível à dor. Isso possibilita a Freud destacar o
caráter de erogeneização da área afetada no corpo, no sintoma da dor, que
anunciava “pensamentos ocultos” em Elisabeth.
Ao seguir, em sua investigação clínica, levanta uma outra hipótese, que não
contradiz a primeira de histeria: os músculos que eram mais sensíveis à dor, e que
estavam endurecidos, puderam indicar que Elisabeth sofria de reumatismo muscular
crônico comum. Provavelmente, a neurose da paciente ligava-se demasiadamente à
dor, exacerbando-a. Dessa maneira, Freud (idem) sinaliza as primeiras evidências
do inconsciente na participação do sintoma.
O quadro álgico foi considerado de origem mista; prescreveu-se, para a
paciente, um tratamento das pernas com correntes elétricas de alta tensão,
acompanhado de massagem e faradização dos músculos sensíveis. Elizabeth
apresentou alguma melhora e pareceu ter gostado dos choques.
Após quatro semanas, Freud propõe-lhe seguir uma outra etapa: começar o
tratamento psíquico, ao qual a moça não resistiu. Inicia-se o tratamento catártico, o
que implica perguntar se a paciente tinha consciência da “origem e da causa
precipitante da doença”. Ele não revela o que a jovem respondeu, porém, sua
hipótese é a de que ela sabia o que lhe estava causando a perturbação expressa em
seu quadro álgico. Naquele momento, não foi preciso o recurso da hipnose, embora
Freud tenha utilizado o processo de “desembaraçar camada por camada” 24 do
material patogênico, como se estivesse participando das escavações de Pompéia.
Posteriormente, a hipnose foi necessária ou técnica semelhante, como deitar a
paciente de olhos fechados.
Elisabeth era a mais nova de três irmãs. Seu pai, “homem das rodas
mundanas”, mantinha uma forte ligação afetiva com a filha. Ele dizia que a moça
tornou-se uma “zona histerogênica atípica”: era naquele lugar que o pai enfermo
descansava uma de suas pernas todas as manhãs, enquanto a filha trocava as
ataduras. Elisabeth procedeu assim “umas cem vezes”, o que causou um
enrijecimento dos músculos de sua perna direita e, conseqüentemente, uma lesão.
A partir de então, a dor – de origem orgânica – possibilitou o aparecimento
das trilhas facilitadoras, que permitiram, através dos restos de lembranças do
freqüente estímulo hostil, a formação das dores conversivas. Freud (idem)
diagnostica um sintoma físico ligado a um complexo minêmico da mente: cada
lembrança que evocava para a paciente um fato traumático correspondia uma
sensação de dor. Assim, “as pernas começaram a conversação durante a análise 25”,
deixando evidente o fato mais significativo do quadro clínico da paciente: dor física e
dor psíquica se fundiam e pareciam apenas uma.
Freud (idem), no decorrer da análise, a partir do discurso da moça, observa
que as dores da perna direita lembravam-na os cuidados ao pai doente e também os
sentimentos afetuosos despertados por um certo amigo. Numa ocasião, Elisabeth
saiu com esse rapaz e, ao regressar à residência, encontrou o pai pior de saúde.
Seu interesse pelo jovem entrou, naquele instante, em conflito com os cuidados que
deixou de dispensar ao pai enfermo no decorrer do dia. Duas reações opostas
emergiram: a alegria experimentada pelo encontro amoroso e o estado de tristeza
pelo agravamento da doença do pai.
Chamamos atenção de que, para Freud, “a idéia erótica foi recalcada da
associação e a emoção ligada àquela idéia foi utilizada para intensificar ou reviver
uma dor física que se achava presente simultaneamente, ou pouco depois” (Freud,
S., 1895: 196). As dores conversivas tiveram a sua origem nesse período e estavam
ligadas a lembranças tristes, com sentimento de luto, e a conflitos.
Ao dar seqüência ao tratamento, Freud identifica que as dores da perna
esquerda evocavam lembranças à Elisabeth de sua irmã morta, que fora tão amada.
A primeira vez que irromperam as dores na paciente foi após um passeio com a
família, quando, em momento íntimo, trocou idéias com a irmã sobre o casamento
feliz desta, o que lhe despertou anseios por um marido igual ao seu cunhado e
desejos eróticos com ele. Elisabeth apresentou fraqueza locomotora e, desde então,
foi vista como a “inválida da família”, sendo aconselhada a tratamento nos Alpes
austríacos.
Durante a viagem, sentiu “dores lancinantes”, as quais puderam ser
interpretadas como uma preocupação com a irmã doente. Ao regressar, em caráter
de urgência pelo agravamento do quadro clínico da irmã, chegou tarde demais. Em
pé, ao lado do leito de morte, uma idéia incompatível atravessou-lhe a mente:
“Agora, ele está livre novamente e eu posso ser sua esposa”. Freud destaca um
aspecto importante: o “ficar de pé” invocava outra situação: a cena do ataque
cardíaco do pai, quando também Elizabeth ficara de pé ao lado de uma porta.
Elisabeth sofria de um complexo denominado astasia-abasia, que tornara o
seu “caminhar doloroso”, causando-lhe dificuldades para ficar de pé, assim como
para deitar. Freud lembra que essas são “funções e estados das partes do corpo”
(Freud, S., idem: 200). A astasia corresponde à privação da posição ereta; a abasia,
à privação da marcha.
A paciente sofria da falta do movimento, expressa, simultaneamente, em seu
caminhar físico e psíquico, que se tornaram dolorosos. Havia experimentado uma
série de estados de luto pelas perdas de objetos de amor – o pai e a irmã –, que
ocuparam lugar de ideal. Por outro lado, vivenciara sentimentos contrários pelas
mesmas figuras que tanto amava. Só lhe restava, então, o sofrimento manifesto nas
dores, pela “conversão bem sucedida”.
A associação freudiana entre dor e movimento desperta-nos uma outra: o
conceito de inibição como fundamental para a seguinte questão: não há dor física
sem dor psíquica; ambas estão relacionadas ao movimento.
Nossas enunciações vão ao encontro das de Lacan, no Seminário, livro 10: a
angústia (1963), quando, ao associar inibição e movimento, deixa claro que o
conceito a que se refere não se restringe apenas à função da locomoção, mas,
sobretudo, àquela de paralisação de qualquer movimento: “ele existe pelo menos
metaforicamente” (Lacan, J., idem: 18). Para melhor elucidar esse ponto de vista,
distingue dois eixos de coordenadas: o vertical, relacionado ao movimento; o
horizontal, à dificuldade.
Lacan reforça o fato de que a angústia como expressão da rede
movimento/dificuldade deve estar presente no grafo, juntamente com os conceitos
69
de inibição e sintoma – elaborados por Freud (1926). Contudo, para que faça série,
deve ser representada em diagonal, a fim de que os espaços que sejam
preenchidos:
Dificuldade
Inibição X X
X Sintoma X
Movimento
X X Angústia
(Lacan, J., 1963: 17)
As etapas de preenchimento do gráfico são explicadas, de acordo com as
ações com que o sujeito depara. Nem todos os espaços vêm preenchidos.
Sintoma Sujeito
Dificuldade
Emoção Sintoma X
Movimento
Perturbação X Angústia
(Esmagamento)
(Lacan, J., idem: 19)
Sintoma Sujeito
Dificuldade
Emoção Sintoma X
Movimento
Perturbação X Angústia
(Esmagamento)
Petrificação
(Contração Total)
estabelecer mais uma correlação com a dor psíquica: esta comporta uma ruptura de
associações quanto à cadeia do pensamento inconsciente, conforme o autor (1895)
explana com referência à melancolia, ao afirmar que nesta há um furo no psiquismo,
como se houvesse um escoamento da libido, tal como uma hemorragia.
A dor consiste num fracasso do aparelho psíquico, o que implica uma falha do
recalque que não comparece quando há um nível de tensão muito elevado.
Freud, em “O problema econômico do masoquismo” (1924), não deixa de
remeter ao prazer na dor, correspondente à satisfação da pulsão de morte, ou seja,
a questão do gozo (Genuss) masoquista expresso no sintoma. Quinet (1997), em
suas pesquisas sobre o tema, retoma a relação dor/gozo, ao dizer que:
26 Placebo: substância farmacologicamente inerte, mas que apresenta algum efeito quando
administrada no paciente.
Sintoma Sujeito
Dificuldade
Emoção Sintoma X
Movimento
Perturbação X Angústia
(Esmagamento)
Petrificação
(Contração Total)
John Donne
Este capítulo aborda o caso clínico de um paciente que sofre de uma doença
cuja etiologia é desconhecida da medicina. Dessa maneira, o diagnóstico poderia
ser tratado à luz da abordagem psicossomática. Embora não seja esse o nosso
interesse, um histórico da origem da psicossomática faz-se necessário para
demonstrar suas possíveis confusões teóricas.
O “principal inspirador” da corrente psicossomática, conforme Roudinesco
(1998: 623) foi Georg Groddeck, seguido de Franz Alexander, nos Estados Unidos,
Alexander Mitscherlich, na Alemanha, e Pierre Marty, na França. Dentre esses,
77
referida a um aspecto impossível de ser dito pelo sujeito, por sua absoluta
exterioridade ao simbólico. É a partir desse ponto, onde a doença traz à tona o real
do corpo, que o sujeito emite queixas sobre ele, buscando resgatar seu registro
simbólico. O corpo é estruturado numa topologia nos registros imaginário, real e
simbólico, como a estrutura do inconsciente, proposta por Lacan nos anos 50.
Para analisarmos o possível exercício da psicanálise com pacientes
portadores de doenças orgânicas no hospital, passaremos à discussão de um caso
clínico, escolhido devido às características peculiares do diagnóstico. A doença
crônica rara de que o paciente é portador, a eritromelalgia, exigiu o exame detalhado
do caso.
Ressaltamos a necessidade de abordar as várias terapêuticas médicas
introduzidas no paciente, já que seus efeitos não só indicavam as possibilidades de
intervenção psicanalítica, mas também traziam informações indispensáveis a ela.
Esse paciente e todos os outros atendidos no hospital tornam-se ponto de
interseção entre o saber da medicina e o saber da psicanálise. Parece-nos, então,
que é quase uma exigência a aquisição de alguns conhecimentos médicos para o
psicanalista exercer a clínica com pacientes portadores de doenças orgânicas
crônicas no hospital.
O artigo “Erythromelalgia: new theories and new terapies”, de autoria de
Cohen (2000)29, contém as abordagens mais recentes sobre a doença e foi escrito a
partir da clínica com pacientes portadores do diagnóstico, que, reunidos em uma
associação – The Erytromelalgia Association –, constituem-se um grupo com o
objetivo de informar a médicos e a outros pacientes sobre a doença.
Condição rara, a eritromelalgia pode alterar muito a qualidade de vida do
sujeito e representa, há anos, um enigma quanto à etiologia e terapêutica. É
caracterizada por dores esquêmicas (dores fortes), tipicamente em queimação,
intenso eritema (vermelhidão), parestesias (sensação de dormência), prurido
(coceira) e elevação da temperatura da pele.
31A indicação do livro de Cannon foi possível a partir do seminário ministrado por Millet, “Elementos
da biologia lacaniana” (1999), quando recebemos, de maneira carinhosa, do Dr. Jésus Santiago o
material aqui utilizado.
32 O título La sagesse du corps foi tirado por Cannon da obra do ilustre fisiologista inglês Starling. O
original de Cannon intitula-se The wisdom of the body.
33 Bernard formulou a noção de meio interno, o que possibilitou a Cannon estender o conceito de
homeostasia.
83
“Uma certa tristeza”, diziam uns. “Ele se cansou de lutar contra a doença”, diziam
outros. O ataque de angústia cedeu lugar ao estado depressivo, evidenciando uma
diferença radical em seu quadro psíquico. Na tristeza, o paciente passou a emitir
frases que expressavam o sofrimento de uma “ferida aberta”, que doía intensamente
e “queimava como fogo”. Dor isquêmica e dor psíquica confundiam-se, e o paciente
fazia pronunciar-se pela eritromelalgia. Mantinha os pés dentro do balde de água
gelada, resmungava, esboçava um choro em silêncio. Idéias de conteúdo suicida
circundavam o menino que dizia ter “vontade de querer desistir de tudo, de parar”.
Encontrava-se sozinho durante o dia; seus familiares apenas compareceram no ato
da internação.
A clínica psiquiátrica foi acionada pela primeira vez na Enfermaria, já que os
médicos careciam de mais um saber sobre um caso “tão desconhecido”. A principal
dúvida estava direcionada ao diagnóstico psíquico do sujeito. Sugerimos, então, o
parecer da psiquiatria do NESA. Ele foi medicado com triptanol, para o estado de
insônia, e, em outras ocasiões, com haldol, devido à agitação psicomotora. Demos
prosseguimento aos atendimentos, mantendo, quando necessário, contato com a
psiquiatria36, que veio a corroborar com a nossa hipótese de histeria.
No último domingo de Páscoa (abril de 2001), Ricardo recebeu visita da mãe,
do pai, Vera e Deise (vizinha da família que lhe demonstrava carinho e, bastante
mobilizada, lhe ofereceu auxílio). Naquele dia, o sujeito produziu uma fala, na qual
apontou para uma dor no peito. Perguntamos sobre o significado da dor, o que
respondeu: “Na Páscoa... a Páscoa... dói...”
O ritual do balde, mais uma vez, foi invocado, ao pronunciar a frase: “Vocês
querem que eu melhore de uma hora para outra... que eu tire o pé do balde? As
coisas não são tão simples assim. Estou tirando mais o pé da água”. Verificávamos,
dessa forma, um sujeito que se in-baldava, mergulhado em água, em posição que
parecia a de um feto no útero materno.
De fato, constatávamos, lentamente, o aumento dos intervalos em que
Ricardo mantinha os pés fora do balde com água gelada. As ulcerações das partes
mais altas dos membros inferiores davam os primeiros sinais de melhora, e as
feridas mais baixas indicavam cicatrização, conforme avaliação médica. Porém, uma
36A Dra. Simone Pencak, psiquiatra psicanalista e Coordenadora do Serviço de Saúde Mental do
NESA, respondeu ao chamado da equipe.
91
Talvez possamos dizer que a frase do sonho de Freud (“Pai, não vês que
estou queimando?”) traduza os gritos de Ricardo: ao chamar pela mãe, seus apelos
dirigiam-se ao pai, que, em sono profundo, deixava o filho queimar pela
eritromelalgia.
Identificamos que Ricardo “gritava queixas”, expressando dor física e dor
psíquica. Se, por um lado, a eritromelalgia exige conhecimento especializado para a
medicina curar o paciente, por outro, os gritos emitidos exigem a escuta da
psicanálise para o tratamento de um sujeito que demanda amor.
O grito, ao ser passível de escuta, foi revelando da estrutura neurótica de
Ricardo, conforme nossa hipótese diagnóstica. Na Conferência de Genebra sobre o
sintoma, proferida por Lacan em 1975, há uma referência ao grito como significante.
Pensamos, então, que o grito seria uma chamada ao Outro enquanto leitor para dar
um sentido àquele fragmento de real.
37O caso de Ricardo é abordado neste capítulo do período de dezembro de 2000 a maio de 2001.
Ele teve, no total, três internações na Enfermaria de Adolescentes. Em novembro de 2001, foi ao
óbito.
98
seria ousadia fazermos uma analogia entre “o grito aspirado” desse sujeito com a
eritromelalgia?
Uma das conseqüências da eritromelalgia é a hipóxia, isto é, a diminuição da
oxigenação nos tecidos perfundidos pelos vasos sangüíneos. O paciente foi
internado, pela primeira vez, no CTI por um episódio de depressão respiratória. Em
verdade, Ricardo, analogamente ao mecanismo pulmonar de expiração e aspiração,
emitiu o seu grito de dor na forma de “aspiração do ar”.
Como pôde a tela Head VI contribuir para nossas pesquisas acerca do
fenômeno do grito? Francis Bacon era asmático; experimentou uma doença crônica
que dificulta o mecanismo de entrada e saída de ar nos pulmões. Teria sua
“inspiração” artística para pintar gritos figurados partido de uma identificação com a
doença?
101
CONCLUSÃO
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
ofício. As forças de tensão são permanentes num espaço que acolhe os impulsos de
vida e morte.
Sabemos, desde Freud (1930), como o sofrimento físico é causa de
turbulência para o homem. Canonn (1932) corrobora essa idéia uma vez que
considera o corpo como “expressão de fragilidade”. Essa característica aponta para
uma outra: uma vez frágil, o corpo é afetado pelos males físicos e orgânicos e,
portanto, necessita de cuidados.
É na clínica do cuidar que a psicanálise encontra campo de atuação: o
sofrimento de adolescentes internados exige uma escuta, que ancore a angústia do
sujeito – fonte de desprazer –, através dos significantes por ele emitidos.
Verificamos como o “mandamento do amor ao próximo” é expressão daqueles
que trabalham com a clínica do cuidar. Este é um recurso de que se valem os
profissionais na instituição hospitalar para suportar a dificuldade de lidar com a
doença em pacientes tão jovens. Diante da eminência da morte, eles experimentam
a queda do ideal de profissional, o que lhes acarreta um efeito de quebra do
narcisismo, pela impotência frente a questões irremediáveis. É um jogo de mão
dupla: dar e receber amor, como se fosse possível apreender a ilusão de se
completar no Outro pela semelhança da imagem.
Ao destacarmos o caso Fábio, a intervenção psicanalítica quis evidenciar a
armadilha do amor especular, que não leva em consideração a face oculta do
próximo, isto é, sua hostilidade. Casos como o dele são constantemente discutidos e
mobilizam a atenção da equipe de saúde. Essa mesma postura nem sempre é
averiguada com aqueles nos quais a irrupção da doença orgânica traduz estados de
inibição que podem ser confundidos com as impossibilidades reais de
funcionamento do corpo. O caso de Camila vem aqui como exemplo da tristeza no
leito na forma clínica da depressão.
Hoje (novembro de 2001), Camila, aos vinte e um anos, continua internada na
Enfermaria de Adolescentes, mas de forma diferente: voltou a exibir-se com os
lábios e unhas pintados de vermelho, está estudando e aceita os cuidados
necessários a algum restabelecimento; verbaliza o afeto de raiva pela mãe e já
considera o fato de ir para uma instituição, como uma casa de saúde. Registramos
essas mudanças como resultantes, inclusive, da insistência da psicanálise em
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