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RESENHA  1

Como funciona a propaganda? seus argumentos. Segundo, os grupos carentes de


recursos encontram obstáculos à sua ação política,
Ideologia, demagogia e que não derivam meramente da carência de recur-
desigualdade sos, mas sim da percepção e da autopercepção de que
não têm o conhecimento necessário, ou a autocon-
How Propaganda Works? Ideology, fiança exigida, para participar do processo delibera-
demagogy and inequality tivo. Esses grupos seriam vítimas de uma forma de
injustiça epistêmica, uma vez que, para levar adiante
STANLEY, Jason. How propaganda works? Prince- as suas reivindicações, devem superar barreiras que
ton, Princeton University Press, 2016. 353 páginas. outros grupos não enfrentam (pp. xvii-xviii).
Haveria uma espécie de círculo vicioso, em que
Renato Francisquini sociedades marcadas por profundas desigualdades
 http://orcid.org/0000-0003-2789-457X
favorecem a ascensão de ideologias falhas, que, por
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador – BA, sua vez, contribuem para a reprodução e o aprofun-
Brasil. E-mail: renato.francisquini@ufba.br damento daquelas desigualdades. Ao se debruçar
DOI: 10.1590/3410101/2019 sobre a “propaganda”, Stanley pretende explicar (a)
o que ela é, (b) por que ela importa, e (c) os meca-
“Esta permanecerá sempre como uma das me- nismos que a tornam efetiva na deliberação pública.
lhores piadas da democracia, que ela tenha dado How propaganda works está dividido em sete capítu-
aos seus inimigos mortais os meios pelos quais ela los (além da Introdução e Conclusão), que podem
foi destruída.”1 Não foi à toa que Jason Stanley es- ser agrupados da seguinte maneira: (i) os capítulos
colheu a frase do ideólogo nazista Joseph Goebbels 1 e 2, 5 e 6 são dedicados à definição dos termos
como epígrafe do livro. A opção está plenamente do debate a partir da filosofia política clássica e con-
em acordo com o espírito da obra aqui resenha- temporânea; (ii) o capítulo 3 faz um diagnóstico
da, na medida em que o autor pretende sublinhar do problema no que toca à teoria democrática e as
o potencial destrutivo da comunicação, quando democracias contemporâneas; e (iii), no capítulo 7,
substanciada em ideologias falhas (flawed ideolo- encontramos um estudo de caso sobre as diretrizes
gies), para um regime democrático e as promessas da política educacional estadunidense, que ilustra os
que este pretende cumprir. argumentos expostos anteriormente.
A tradição democrática sustenta que os cida- Como sói acontecer em uma resenha, não será
dãos mantêm a prerrogativa do julgamento com nosso objetivo aqui explorar a fundo todos os por-
respeito às decisões coletivas, decisões estas associa- menores dessa rica obra de teoria política. A fim
das aos mecanismos de formação da opinião e da de trazer ao público as principais contribuições de
vontade democrática. A democracia guarda, por- Stanley para pensarmos o problema da comunica-
tanto, uma relação direta com a possibilidade de ção na democracia, vamos nos debruçar sobre os
livre comunicação entre os cidadãos, determinada pontos que nos parecem mais agudos para os deba-
por um equilíbrio entre liberdade e outros valo- tes que ora se apresentam em áreas como as ciências
res que lhes são igualmente caros. Ao reconhecer sociais, a filosofia e o direito.
o papel fundante da livre expressão de ideias para o Desde os clássicos do pensamento helênico,
regime democrático, emerge como um problema conhecemos as diversas objeções a certo tipo de
o impacto de certos discursos para o “valor equita- discurso, associado, à época, à participação dos de-
tivo das liberdades políticas”.2 magogos na política.3 Da filosofia política clássica
Stanley chama a atenção para dois fatos rela- à ciência política moderna, ganharam destaque as
cionados à contestação política, que, por vezes, nos consequências negativas da demagogia para a esta-
passam despercebidos. Primeiro, o fato de as reivin- bilidade dos regimes políticos. Na Grécia Antiga,
dicações de grupos desprivilegiados serem frequen- Platão e Aristóteles assistiram à derrocada da de-
temente desconsideradas, a despeito da solidez de mocracia, fazendo-se críticos contumazes de uma
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forma de retórica em que as palavras eram usadas que contribuem para uma decisão racional sobre a
antes para encobrir, do que para revelar. Sob a égi- temática sob escrutínio; (2) eles devem se guiar pela
de da livre expressão de ideias, as democracias li- razão prática aliada ao véu de ignorância (essa norma
berais permitem a veiculação de inúmeros tipos de exige ao menos alguma empatia entre os que tomam
discurso, a despeito dos riscos que determinados parte na deliberação pública e nas decisões vinculan-
conteúdos representam para a democracia e as pro- tes); e (3) a argumentação pública deve se guiar por
messas de igualdade que lhe sustentam. A questão uma norma de razoabilidade ou de igual respeito às
teórico-normativa mais relevante para a democracia perspectivas de todos os participantes, isto é, a nossa
liberal, nesse contexto, se refere ao fato de que o va- participação na deliberação pública deve ser orientada
lor da liberdade, tão caro a essa forma de governo, pela justificabilidade dos argumentos mobilizados na
pode criar constrangimentos à sua plena realização. defesa de determinada posição (pp. 94-110).7
Sendo o propósito do livro analisar os tipos de pro- Sabemos que os “significados sociais” que com-
paganda que ameaçam a democracia liberal, nada partilhamos e que, de certo modo, criam as estru-
mais natural que se lance luz sobre os discursos que turas de expectativas de nosso comportamento em
vão de encontro a ideais associados ao regime de- sociedade são ubíquos e muitos deles carregam um
mocrático, como liberdade, igualdade e tolerância conteúdo expressamente iliberal, tornando o uso
(pp. 72-73).4 de determinadas palavras e expressões, com o seu
Stanley remete esses ideais à ideia de razão pú- sentido subjacente, instrumentos de exclusão e si-
blica.5 O dever de civilidade associado à razão lenciamento de vários grupos na sociedade. Des-
pública seria fundamental à democracia liberal, se ponto de vista, parece tarefa impossível que a
pois, apenas mediante um debate “justo e honesto”, comunicação venha a se aproximar em qualquer
podemos chegar a decisões políticas efetivamente tempo do ideal de razão pública. Uma forma de
legítimas. Um sistema político liberal protege a li- mensurar a compatibilidade de uma sociedade com
berdade de seus cidadãos uma vez que veda deci- os ideais democráticos é mediante uma análise do
sões vinculantes arbitrárias, isto é, que não contem grau em que aqueles que se engajam no discurso
com o assentimento racional de todos aqueles afe- público se comprometem com o “dever de civili-
tados por tais decisões (pp. 88-89).6 A propagan- dade” identificado com a razão pública, e a medida
da, segundo Stanley, afeta o processo deliberativo, em que são encorajados a fazê-lo (pp. 167-173).
que é a base de sustentação de um sistema político Haja vista a complexidade da deliberação pú-
democrático, independentemente de considera- blica no cotidiano das democracias liberais, Stanley
ções sobre a correção dos resultados gerados a par- aventa que a maneira mais apropriada para lidar
tir desse processo, pois decisões que emergem de com o problema da propaganda e das ideologias
processos contaminados por uma forma perniciosa falhas seja a nossa capacidade de refletir e sermos
de comunicação não seriam capazes de reivindicar sensíveis aos impactos de ideologias falhas em nos-
legitimidade (pp. 90-91). so próprio sistema de crenças.8 Contudo, há um
Assim, a ideia de razão pública emerge à medida problema adicional que merece destaque nessa aná-
que refletimos sobre os ideais que devem servir de guia lise, a saber, o tipo de sociedade ou de estrutura
para as normas que regulam a deliberação. Pergunta- social que favorece a emergência e o espraiamento
mo-nos, então, que critérios podem ser usados para de ideologias falhas e as suas consequências nega-
definir se e quanto um processo como esse deve ser tivas. Segundo Stanley, sociedades marcadas por
considerado “justo e honesto”. Stanley nos oferecerá desigualdades mais ou menos profundas são mais
três diretrizes, que podem ser usadas ao avaliarmos o propícias para a ascensão de discursos propagandís-
processo deliberativo que dá origem a normas válidas ticos que são nocivos à igualdade democrática (pp.
universalmente para a comunidade política: (1) to- 176-177).
dos os debates no fórum político público devem ser O sucesso da propaganda, sugere o autor, de-
orientados por uma norma de racionalidade teórica, pende da presença (i) de um sistema de crenças re-
ou seja, em reivindicações legitimamente justificadas, sistente às evidências que possam lhe contradizer e
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(ii) de crenças que, sendo resistentes à evidência, Se as ideologias são compreendidas como uma
são também falhas em algum sentido. No quinto espécie de roteiro que coordena as nossas expectati-
capítulo, Stanley busca evidenciar, valendo-se da vas, todos nós temos alguma ou algumas ideologias.
linguagem humana, as crenças que seriam “céticas Contudo, nem todas elas são ideologias falhas no
em relação aos sentidos”. Ao contrário de Hume, sentido atribuído por Stanley. As ideologias falhas são
que se preocupa sobretudo com o modo pelo qual aquelas que nos impedem de adquirir conhecimento,
uma psicologia individual falha dá origem a uma notadamente um tipo particular de conhecimento.
crença ideológica também falha, Stanley lança luz Elas combinam uma forma de irrevisibilidade racional
sobre o mecanismo pelo qual estruturas sociais fa- com certos defeitos epistêmicos (p. 200).
lhas, ou arranjos sociais injustos, podem ter o mes- Interpretando as ideologias como barreiras que
mo efeito, com consequências nefastas até mesmo dificultam a aquisição de conhecimentos, Stanley
para a forma como determinados grupos enxergam avalia o que ele considera como uma das crenças
a si mesmos enquanto membros do corpo social. mais deletérias à democracia liberal. Para ele, a
Não raro, encontramos na tradição filosófica uma ideologia do tecnicismo – e a meritocracia muitas
distinção entre crenças ideológicas e crenças regulares. vezes a ela associada – restringe, na deliberação pú-
O fator a distanciá-las seria a possibilidade de revisão, blica, os argumentos tidos como legítimois àque-
característico das últimas, mas não das primeiras. As les que tenham validade científica. Uma forma de
crenças ideológicas impõem uma barreira à revisibili- ideologia como essa rebaixa a participação dos ci-
dade, por se associarem a certas práticas sociais ou dadãos, sobretudo de grupos menos privilegiados,
identidades que temos razões para valorizar. Há cer- pois estes não seriam suficientemente qualificados
tas crenças necessárias ao nosso engajamento em uma para se engajar nas decisões coletivas. Esse tipo de
comunidade, mesmo que, por vezes, a nossa adesão ideologia tende a reproduzir e intensificar o elitis-
a elas seja mais ou menos hipócrita. Abandonar essas mo, criando um obstáculo instransponível à parti-
crenças significa deixar para trás a comunidade e parte cipação daqueles que se encontram em uma posi-
do que com ela se identifica (pp. 185-187). ção subalterna na sociedade (pp. 208-209).11
As crenças ideológicas que interessam ao autor O argumento se desdobra em uma consideração
são aquelas que derivam da estrutura social e que sobre a desigualdade em pelo menos dois sentidos.
resultam em comportamentos que, à luz de evidên- De um lado, Stanley sugere que as desigualdades
cias disponíveis, poderiam ser considerados irracio- estruturais contribuem para o desenvolvimento e a
nais. Para ele, tais comportamentos muitas vezes consolidação de ideologias falhas, como as que afir-
são o resultado de estruturas sociais injustas, de mam que certas formas de desigualdades moralmen-
violência simbólica e outras formas de desigualdade te condenáveis não seriam injustas. De outro lado,
que têm impacto significativo sobre a democracia.9 e este é, talvez, o sentido mais importante, o autor
Chegamos aqui a um ponto crucial de seu argu- afirma que a existência de ideologias falhas impõe
mento, a saber, a associação entre, de um lado, uma enormes dificuldades para que políticas públicas
estrutura social injusta e, de outro, um sistema de orientadas pela justiça sejam viabilizadas na delibe-
crenças que organiza e justifica as práticas sociais, ração pública (p. 220).
informado por uma ideologia falha: Segundo Weber, toda forma de privilégio exige
discursos de autolegitimação, os quais sustentam
[...] assim como uma crença pode ser ideoló- que os diversos tipos de superioridade estão asso-
gica em virtude de características estruturais ciados ao mérito (apud Stanley, pp. 225-226). Uma
da sociedade, que inibem a sua revisão, uma posição como essa se associa ao que o pesquisador
ideologia pode ser falha devido às característi- de Stanford, Claude Steele, afirma ser uma necessi-
cas sociais falhas, que inibem a revisão racional dade de mantermos uma permanente autoconcep-
de falsas crenças preexistentes, que preservam ção de nós mesmos como “pessoas boas e apropria-
uma situação desejável a um grupo privilegia- das”. Não seria implausível sugerir, portanto, que
do (p. 199).10 a exigência de um discurso de autoafirmação por
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parte daqueles que detêm um quinhão maior de secundário nos Estados Unidos na década de 1920.
recursos na sociedade poderia aparecer como uma Stanley argumenta que o sistema educacional esta-
ideologia falha, que justifica a dominação opressiva dunidense vem sendo organizado de acordo com
sobre outros (idem, ibidem).12 uma ideologia promovida e reproduzida no nível
Em sociedades marcadas por desigualdades das elites. Segundo essa ideologia, as pessoas seriam
profundas, os que se encontram em uma posição desiguais e, portanto, a educação deveria oferecer a
subalterna são oprimidos em diversos sentidos. cada um os recursos necessários ao cumprimento
Nesse contexto, uma ideologia falha pode ser res- de sua função na estrutura social. Como argumenta
ponsável por impedir que tais grupos percebam a Dewey, a diferença no sistema educacional revelaria
injustiça de sua condição e por evitar que ajam no uma distinção mais profunda entre os membros de
sentido de modificá-la. A resistência a tais crenças grupos que deveriam ser “livres” e os que deveriam
envolve o que Kristie Dotson denominou “mudan- ser “servis” (apud Stanley, p. 276). Nesse aspecto, o
ças de terceira ordem”, que dependem do controle sistema educacional, que poderia promover maior
de certos recursos hermenêuticos, que estarão tão igualdade de oportunidades, tende a aprofundar
menos disponíveis quanto maior a desigualdade – as desigualdades ora existentes. As elites, portanto,
uma forma de “injustiça contributiva” (apud Stan- adquirem uma espécie de controle social sobre as
ley, p. 237). Injustiças como essa são verificáveis camadas negativamente privilegiadas, uma forma
mesmo em sociedades nas quais há acesso a fontes de dominação por meio do controle das normas so-
alternativas de informação e uma cultura política ciais (pp. 277-278).14
pluralista (pp. 237-238). A percepção da educação como um instrumen-
A dificuldade de superar as barreiras impostas to para tornar a sociedade mais “eficiente” logo se
pela estrutura social foram denominadas por Claude apropriou da interpretação que sugeria a necessi-
Steele e Joshua Aronso de “ameaça de estereótipo”, dade de se distinguir entre uma “educação liberal”,
isto, é “a ameaça situacional imediata que deriva da apropriada aos que poderiam liderar a sociedade,
ampla disseminação de estereótipos negativos so- e um “ensino prático” para aqueles que deveriam
bre um grupo” (apud Stanley, p. 240).13 Em outras saber lidar com as necessidades materiais (p. 280).
palavras, esses autores indicam que certos tipos de Nessa perspectiva, foi criada, em 1912, a Comis-
preconceito são incorporados às crenças dos mem- são para a Reorganização da Educação Secundária,
bros de grupos marginalizados como uma forma de cujo documento principal, que serviria de parâ-
“cognição protetiva de identidade” (idem, ibidem). metro, dali em diante, para a estrutura do sistema
Está longe de ser uma conclusão inédita a de que os educacional estadunidense, que refletia, em grande
grupos privilegiados acabam por controlar também medida, as ideias expostas acima. Segundo Stan-
as narrativas hegemônicas na sociedade. Em diversas ley, o relatório, intitulado “Os princípios cardiais
circunstâncias, a superioridade será justificada pelo da educação secundária”, publicado após três anos
ideal meritocrático, o que permite aos grupos pri- de debate, era uma tradução da distinção platônica
vilegiados combinar autoridade epistêmica e autori- entre governantes e governados. De fato, em de-
dade prática, colocando os demais membros da so- terminado momento, o documento sustenta que a
ciedade em uma situação de desvantagem epistêmica democracia exigiria que a “atividade humana seja
em discussões acerca de temas significativos, como a alçada a um alto nível de eficiência; e que nessa efi-
própria distribuição dos benefícios advindos da coo- ciência seja incluída uma avaliação da significância
peração social (pp. 251-266). de tais atividades “e que um indivíduo escolha aquela
No último capítulo, Stanley passa a analisar um vocação e aquelas formas de serviço social nos quais a
caso em que podemos identificar a eficácia prática sua personalidade seja mais capaz de se desenvolver e
de tais ideologias. O sétimo capítulo tem, então, se tornar mais efetiva” (p. 284; grifo nosso).15
duas pretensões, a saber: (i) fazer uma descrição das A oposição entre uma abordagem educacional,
principais características da ideologia das elites, e tal como advogada por Dewey, segundo a qual os
(ii) evidenciar a sua função na reforma do ensino estudos sobre a sociedade deveriam lançar luz sobre
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os obstáculos para o aprimoramento da sociedade, means by which it was destroyed”. Todas as traduções
e uma visão segundo a qual eles deveriam servir desta resenha foram feitas pelo autor.
ao controle social dos grupos menos privilegiados, 2 Nos diz Rawls que, às liberdades políticas, deve ser
segue ao longo do século XX. O que Stanley nos garantido um valor equitativo, ou seja, todos devem
chama a atenção aqui é para a função, pouco va- gozar dos direitos básicos e de oportunidades efetivas
lorizada, que teria sido desempenhada por diver- de exercê-las. Segundo Rawls, elas são importantes,
não para promover os interesses humanos em qual-
sos teóricos da educação, que contribuíram para a
quer sentido, mas para promover o bem dos cidadãos
ascensão dessa última posição, encobrindo-a sob o entendidos como pessoas livres e iguais (2011a, pp.
véu da ciência e da técnica (p. 288). 384-390).
O argumento central do livro, portanto, é de
3 Valendo-se dessa tradição, Stanley denomina de “de-
que desigualdades significativas de recursos propi- magogueria” o discurso propagandístico cujo efeito
ciam práticas epistêmicas que erigem obstáculos à sobre a democracia considera negativo.
realização dos ideais da democracia liberal; tais obs- 4 Cabe uma ressalva importante. Stanley admite, de
táculos beneficiam aqueles que estão em uma po- saída, a ubiquidade da ideologia. Todos nós temos
sição privilegiada dessa distribuição desigual e, por crenças ideológicas, isto é, crenças baseadas em con-
isso, tendem a ser obscurecidos. Os grupos beneficia- ceitos que temos sobre nós mesmos e o nosso lugar
dos se valem de instrumentos de propaganda a fim de no mundo. A crença na teoria evolucionista ou no
impedir uma investigação mais profunda sobre a criacionismo seriam, assim, igualmente ideológicas.
distância entre os ideais democráticos e a realidade O autor reconhece, portanto, não haver um ponto
social. Nesse sentido, o sistema educacional, assim arquimediano, uma postura absolutamente neutra, a
como outros sistemas responsáveis pela construção partir da qual poderíamos avaliar, imparcialmente, se
um discurso se enquadra ou não como propaganda e
simbólica da realidade social – como os meios de co-
se ele é ou não prejudicial à democracia. Enquanto
municação de massa – impossibilitam aos membros uma teoria da ideologia, o livro pretende produzir co-
dos grupos negativamente privilegiados questionar nhecimento sobre a ideologia, o que não significa que
as ideologias falhas que sustentam a estrutura de ele tenha de ser, para tanto, desprovido de qualquer
ônus e recompensas da cooperação social. ideologia – o que seria, segundo o autor, infactível.
Movimentos sociais e lideranças políticas em Seja como for, a opção de Stanley por uma abordagem
diversos níveis agiram no esforço de desafiar a de- liberal é bem clara (p. 77).
magogueria sustentada em ideologias perniciosas 5 O sentido atribuído pelo autor ao termo remete à
que perpetuam práticas sociais que fortalecem e obra de John Rawls (2011b), para quem o ideal de ra-
aprofundam as desigualdades – embora o avan- zão pública seria um “dever de civilidade”, um padrão
ço da igualdade tenha sido perceptivelmente in- de argumentação que deveria orientar os debates nos
suficiente. Nesse sentido, ainda que não ofereça fóruns públicos políticos, como as supremas cortes, a
arena legislativa e as campanhas eleitorais. Stanley es-
uma fórmula pronta para enfrentar os inúmeros
tende este “dever” ao que Rawls denomina de “cultura
problemas identificados ao longo do livro, Stan-
de fundo”.
ley nos apresenta um caminho profícuo, a par-
6 Sem desconsiderar, todavia, casos em que um proce-
tir do qual podemos compreender e criticar as
dimento correto venha a levar a decisões injustas, bem
justificativas, apresentadas por meio do discurso como aqueles em que um procedimento incorreto
propagandístico, que contribuem para reprodu- leva a decisões que são boas para a comunidade – na
zir e aprofundar graves injustiças encrustadas nas interpretação de Stanley, John Rawls e Joshua Cohen
democracias contemporâneas. seriam “procedimentalistas puros”, cujo foco recai
apenas sobre a correção do procedimento mediante o
qual uma decisão foi tomada; ao passo que David Es-
Notas tlund e Hélène Landemore defenderiam uma versão
epistêmica da teoria democrática, segundo a qual tan-
1 No original: “This will always remain one of the best to o procedimento quanto o seu resultado importam
jokes of democracy, that it gave its deadly enemies the (apud Stanley, 2016, p. 90).
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7 Stanley não deixa de admitir certas exceções, como as 12 Há, segundo Stanley, uma ampla correlação, em vá-
encontradas na obra de W. E. B. Du Bois ou na ação rios países, entre riqueza e apoio a partidos de direita.
política de M. L. King Jr. Segundo o autor, determi- 13 No original: “[…] the immediate situational threat
nadas formas de argumentação que não são racionais that derives from the broad dissemination of negative
no sentido pensado acima podem ser necessárias para stereotypes about one’s group”.
sobrepor os obstáculos impostos à realização dos ideais
14 Na base desse processo, encontra-se uma divisão um
democráticos. Du Bois, por exemplo, sustenta que a
tanto quanto questionável entre reflexão teórica e ha-
arte negra poderia contribuir para o reconhecimen-
bilidades práticas.
to, através de um apelo à emoção, de que os negros
merecem igual respeito como cidadãos e como sujei- 15 No original: “human activity be placed at a high level
tos. Nesse caso, não há por que supor que haja algu- of efficiency; and to that efficiency be added an appre-
ma forma de manipulação da vontade racional, pois ciation of its level of the significance of these activities
os argumentos não seriam fraudados ou enganosos, and that the individual choose that vocation and tho-
embora não possamos afirmar que façam um apelo à se forms of social service in which his personality may
racionalidade em sentido mais restrito do termo. Ade- most develop and become most effective”.
mais, sugere Stanley, há razões estruturais para consi-
derarmos que esse tipo de argumento é fundamental
para corrigir falhas na democracia liberal. Dado que BIBLIOGRAFIA
determinados grupos são invisíveis aos olhos de seus
concidadãos, que os temem ou os inferiorizam, não
HABERMAS, Jürgen. (1987), Técnica e ciência
há método racional capaz de modificar essa situação,
pois a invisibilidade também silencia as vozes dos ex-
como “ideologia”. Trad. Artur Morão. Lisboa,
cluídos (pp. 114-115). Edições 70.
RAWLS, John. (2011a), O liberalismo político.
8 Um dos papéis fundamentais da filosofia política, nos
diz Stanley, é justamente o de evidenciar as ilusões po- Trad. Álvaro de Vita. São Paulo, WMF Mar-
líticas que não nos permitem compreender a realidade tins Fontes.
social. A teoria que não se preocupe com a denúncia RAWLS, John. (2011b), “A ideia de razão pública
das ilusões que obscurecem nosso olhar sobre a política, revisitada”, in J. Rawls, O liberalismo político,
torna-se parte do mecanismo que produz tais ilusões, trad. Álvaro de Vita, São Paulo, WMF Martins
pois constrói “a ilusão de que não há ilusão” (p. 33). Fontes.
9 Nem toda crença associada a uma identidade ou a
uma prática social será perniciosa à democracia. Ela
não o será quando, por exemplo, estiver associada a
valores como a tolerância, o pluralismo etc. As ideo-
logias falhas são epistemologicamente incapacitantes,
pois nos impedem de adquirir conhecimento sobre a
realidade social, o que pode ter impactos negativos
sobre nosso comportamento político (pp. 197-198).
10 No original: “[…] just as a belief can be ideological
in virtue of structural features of society that inhibit
its revision, so too can an ideology be flawed, because
of flawed structural features of society that inhibit the
rational revision of preexisting false belief, to preserve
a desirable situation for a privileged group”.
11 Não foi por mera coincidência que Habermas (1987)
associou o domínio da técnica (enquanto ideologia)
ao elitismo político, identificado por ele na crise do
capitalismo tardio.

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