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Logic, Language and Knowledge.

Essays on Chateauriand’s Logical Forms


Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

CDD: 149.7

Análise infinita e mundos possíveis na Teodiceia


VIVIANNE DE CASTILHO MOREIRA
Departamento de Filosofia
Universidade Federal do Paraná
CURITIBA, PR
vivicmor@gmail.com

Resumo: A noção de análise infinita, por um lado, e a noção de mundos possíveis, por outro, são em
geral consideradas por estudiosos de Leibniz como duas saídas concorrentes para a dificuldade com que
ele se defronta relativamente à diferença entre necessidade e contingência. Neste trabalho pretendo exa-
minar as teses veiculadas na Teodiceia à luz de algumas reflexões de Leibniz sobre a noção de análise
infinita, visando destacar certos pressupostos comuns que permitam sustentar que aquelas noções – de
análise infinita, por um lado, e de mundos possíveis, por outro – não se excluem entre si como alterna-
tivas concorrentes de resposta para um mesmo problema. Antes que isso, elas podem ser interpretadas
como complementares e articuladas no interior da filosofia de Leibniz, cada qual direcionada a um
aspecto específico da dificuldade concernente à contingência. Se essa hipótese se confirmar, creio que ela
proporcionará indicações que permitirão melhor precisar o lugar que a Teodiceia ocupa no sistema
leibniziano como um todo.
Palavras-chave: Contingência, análise infinita, mundos possíveis.

Abstract: Infinite analysis and possible worlds are generally considered as two different and independ-
ent hypotheses proposed by Leibniz in order to explain the problem of contingency. In this paper, I shall
examine some passages of Theodicy in the light of Leibniz's conceptions about infinity and infinite
analysis. I intend to underline certain elements which could support the suggestion that those two solu-
tions for the problem of contingency do not exclude one another, but, instead, they might be seen as
concurring both to solve the difficulty of contingency, each one being directed to a particular aspect of it.
If this suggestion is correct, it could shed some light on the place the Theodicy occupies in the whole
structure of Leibniz’s philosophy.
Keywords: contingency, inifnite analysis, possible worlds.

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A diferença entre necessidade e contingência 1 constitui um dos


temas centrais dos Ensaios de Teodiceia 2 . Não é difícil compreender o
porquê, já que ela está intrinsecamente ligada a dois outros problemas
centrais do livro. O primeiro concerne à liberdade divina na escolha do
melhor dos mundos, e pode ser sumariamente exposto nos seguintes
termos: em que medida se poderia admitir Deus como um ser livre se a
hipótese da criação de qualquer outro mundo que não o melhor resulta
inconsistente com a definição de Deus? O segundo diz respeito à liber-
dade dos homens nas suas deliberações em um mundo absolutamente
determinado. Trata-se aí de considerar se e em que medida se pode
admitir como livre alguém cujas ações estão todas previstas na noção
completa que lhe corresponde, e que se inscreve no reino das verdades

1 Agradeço aos participantes da jornada de discussão a respeito da noção de


existência em Leibniz, ocorrida no âmbito do Curso de Pós-Graduação em
Filosofia / UERJ, em particular a Edgar Marques, organizador do evento, pe-
las instigantes observações que fizeram à minha apresentação, as quais enseja-
ram a investigação da qual este artigo é o resultado final. Agradeço também
aos participantes do "Colóquio Leibniz: 300 anos da Teodiceia", em particular a
William Piauí, Ulysses Pinheiro, Rodrigo Brandão, Marta Mendonça e José
Arruda, pelas observações feitas na ocasião da apresentação deste trabalho,
que me levaram a reformular sua parte final.
2 As abreviações aqui empregadas, com as respectivas edições dos escritos de

Leibniz, são: Ak: “Sämtliche Schriften und Briefe”. Deutschen Akademie der
Wissenschaften zu Berlin. GP: “G. W. Leibniz – Die philosophischen Schriften”
(Ed.: Gerhardt, C, I., George Olms Verlag. Hildesheim, 1996). GI: “Generales
inquisitiones de analysi notionum et veritatum” (em: OFI, pp. 356 – 399). GM: “G.
W. Leibniz – Die Mathematische Schriften”. Gerhardt. George Olms Verlag. Hilde-
sheim, 1971. Grua: “Textes Inédits d'après les manuscrits de la Bibliothèque provinciale
de Hanovre” (Publicados e comentados por Gaston Grua 2ª ed. PUF, Paris,
1998). OFI: ”G. W. Leibniz – Opuscules et fragments inédits – extraits des manuscrits
de la Bibliothèque Royale de Hanovre” (Ed.: Couturat, L. George Olms Verlag.
Hildesheim, 1988). Teodiceia: “Essais de Théodicée sur la bonté de Dieu, la liberté de
l'homme et l'origine du mal” (em: GP VI, pp. 21 - 471).

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eternas que constitui o entendimento divino. A não ser que se assegure,


em alguma medida, a contingência da escolha, fica difícil oferecer uma
resposta satisfatória para essas duas questões.
Como é sabido, a saída de Leibniz para a dificuldade remete a
duas noções, quais sejam, de análise infinita, por um lado, e de mundos
possíveis, por outro. Para expor sumariamente a solução proporcionada
por cada uma delas, a primeira consistiria em considerar que, envolven-
do uma infinidade de passos, a análise das verdades contingentes não se
consumaria e, nessa medida, não seria redutível a uma identidade.
Quanto à infinidade dos mundos possíveis, o argumento se resumiria
em que, sendo todos igualmente possíveis, não seria contraditório, com
respeito a cada um deles, que viesse à existência ao invés do atualmente
existente. Isso asseguraria tanto a contingência da escolha de um dentre
eles quanto a contingência das ações, afinal intrinsecamente vinculadas,
em sua realização, à existência do mundo de que fazem parte.
Parece pertinente estimar essas duas respostas e, na esteira de-
las, as noções nas quais se ancoram, como duas saídas autônomas e,
por isso, concorrentes para a dificuldade com a qual Leibniz se defron-
ta ao distinguir necessidade de contingência. De sorte que pareceria
também pertinente aquilatar qual das saídas seria a mais adequada, po-
dendo ser, por isso, eleita, em detrimento da outra, como a genuína
resposta leibniziana para o problema da contingência.
Benson Mates e Hidé Ishiguro podem ser mencionados como
dois estudiosos que optaram por esse viés interpretativo. Por razões
diferentes, ambos consideraram que, face às dificuldades que a noção
de análise infinita suscita, conviria abandoná-la como incapaz de pro-
porcionar uma resposta satisfatória para o problema. Mates argumenta
que, embora Leibniz não tenha efetivamente estabelecido a distinção
entre proposições necessárias e contingentes em termos de mundos

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possíveis, não se pode ver facilmente como o apelo à noção de infinito


asseguraria, do ponto de vista lógico, aquela distinção 3 . Ele afirma:

"Se a inclusão do conceito B no conceito A é uma condição necessária


e suficiente da verdade de 'A é B', como é o caso quando 'A é B' é uma
proposição essencial, então parece impossível que a proposição seria
verdadeira de alguns mundos possíveis e falsa de outros. Pois a eleição
de um dado mundo possível à existência não pode determinar a relação
dos conceitos que estão na mente de Deus anteriormente à Criação. A
abordagem das proposições contingentes pela 'análise infinita' pode
talvez ser aceita como uma caracterização daquelas proposições que
nós, na nossa ignorância, chamamos 'contingentes', mas não pode defi-
nir inteligivelmente a classe de proposições que são contingentes, sendo
verdadeiras de alguns mundos e falsas de outros" 4 .

H. Ishiguro, por sua vez, argumenta que as razões alegadas por


Leibniz visando estabelecer a diferença entre as verdades necessárias e
contingentes em termos de análise infinita não bastam para fundar essa
diferença 5 . De acordo com ela, tais razões seriam duas. A primeira seria
“o argumento que diz que, para compreender qualquer fato contingen-
te, nós necessitamos do conhecimento de todas as partes do universo
infinito e das relações infinitamente complexas do fato com tudo o
mais” 6 . A fraqueza do argumento residiria, segundo ela, no fato de que
ele “depende da assunção de que o universo é ‘infinito’ – que nosso
mundo consiste em infinitamente muitas substâncias – assim como do
princípio de razão suficiente” 7 . A segunda razão consistiria na conside-
ração de que “as verdades contingentes (…) não têm provas a priori,
porque elas dependem de como é nosso universo, o que origina na
vontade de Deus” 8 . Este argumento, diz ela, “de fato nos dá funda-

3 Ver Leibnizian Possible Worlds and Related Modern Concepts, III. Ver também The
Philosopy of Leibniz, VI, §1.
4 The Philosophy of Leibniz, pp. 116-117.
5 Leibniz's Philosophy of Logic and Language, p. 198.
6 Leibniz's Philosophy of Logic and Language, p. 196.
7 Id., p. 197.
8 Id., p. 197.

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mentos lógicos para a prova de uma verdade contingente ser ‘resolvível


no infinito’. Mas ele repousa sobre o Princípio do Melhor, que postula
que Deus sempre escolhe livremente realizar o melhor 9 , suplementado
por uma postulação mais específica e esotérica sobre o que é o melhor
mundo” 10 .
Ishiguro completa suas justificativas para abandonar a noção
de análise infinita sustentando que, “se Leibniz deve adotar a tese do
praedicatum inest subjecto para a verdade em geral e ainda manter a dife-
rença entre verdade necessária e verdade contingente, então ele tem que
fazer apelo a outros mundos possíveis 11 . Mas isso não é senão uma
maneira pitoresca de exprimir os valores de verdade que assinalamos a
várias proposições hipotéticas, incluindo as contrafactuais” 12 .
Nas páginas que seguem, não tomo parte no debate a respeito
da pertinência ou não das respostas ofertadas por Leibniz para o pro-
blema da contingência. Limito-me a examinar algumas de suas afirma-
ções relativas à questão com a finalidade de mostrar que as duas noções
em discussão aqui não precisam ser vistas como concorrentes e exclu-
dentes. Ao contrário, elas podem ser interpretadas como complementa-

9 Para uma discussão desse assunto, ver Pinheiro, U. Contingência e análise infinita
em Leibniz.
10 Id., p. 198.
11 Convém notar que, em descompasso com essa afirmação de Ishiguro, é na

noção de análise infinita, antes que na de mundos possíveis, que Leibniz assi-
nala repousar sua solução para a compatibilização entre a tese do praedicatum
inest subjectum com a contingência: "Se, com efeito, a noção do predicado estava
naquela do sujeito por um tempo dado, como, sem contradição e impossibili-
dade, o predicado poderia agora estar ausente do sujeito sem que a noção deste
não fosse afetada por isso? 'Enfim uma luz nova e inesperada veio-me de onde
eu menos esperava, a saber, de considerações matemáticas sobre a natureza do
infinito” Há certamente dois labirintos do espírito humano: um concerne à
composição do contínuo, o outro à natureza da liberdade, ambos nascem de
uma fonte idêntica no infinito" (Phil. IV, 3, a, 1 – OFI, p. 18).
12 Leibniz's Philosophy of Logic and Language, p. 199.

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res e articuladas no interior da filosofia de Leibniz, cada qual direciona-


da a um aspecto específico da dificuldade concernente à contingência.
De uma perspectiva histórica, é difícil encontrar respaldo tex-
tual para a sugestão de que, com respeito às noções de análise infinita e
de mundos possíveis, alguma delas teria sido substituída pela outra. Se a
noção de mundos possíveis aparece em escritos tardios, como é o caso
da Teodiceia, isso não se faz em detrimento das noções de infinito e de
análise infinita, que são evocadas por Leibniz em escritos datados de
períodos diferentes, e que podemos remontar à época em que torna
pública sua descoberta do cálculo infinitesimal 13 . Assim, se houver al-
guma relação de anterioridade entre aquelas noções, ela deve ter um
cunho teórico ou argumentativo, antes que cronológico. Na verdade,
como pretendo mostrar doravante, a levar em conta a ordem e os con-
textos em que Leibniz discute aquelas noções, é pertinente afirmar que
a noção de mundos possíveis é um desdobramento da noção de análise
infinita. Ela constituiria como que um corolário desta, aplicado a um
problema específico: a liberdade de Deus na escolha que precede a Cri-
ação.

13 Em 1684, Leibniz torna pública sua descoberta nas Acta Eruditorum, no


célebre artigo “Nova methodus pro maximis et minimis, itemque tangentibus, quae nec
fractas nec irrationales quantitates moratur et singulare pro illis calculi genus” (GM V, pp.
220 – 226). Dois anos depois seriam escritas suas Generales inquisitiones, nas
quais a diferença entre verdades necessárias e contingentes seria definida em
termos de análise infinita (Ver § 130 - § 135). São também estimados pertencer
a um período pouco posterior os opúsculos “De contingentia” (Grua 302 – 306)
e “Origo veritatum contingentium” (OFI 1- 3), para dar outros dois exemplos. Essa
sequência na elaboração dos escritos coaduna-se com a convicção de que “o
fio para o Labirinto da Composição do Contínuo, o máximo e o mínimo, o
inassinalável e o infinito, somente a geometria pode fornecer; e ninguém que
não o tenha percorrido chega a uma metafísica realmente sólida” (Ak., VI, iii,
p. 449).

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II

A tese leibniziana da análise infinita surge, como já indicado, na


esteira das suas descobertas matemáticas relativas ao cálculo infinitesi-
mal, e é inspirada por elas. Com efeito, na origem dessa tese parece es-
tar um raciocínio de cunho eminentemente analógico, amparado na
consideração do que se passa no domínio da matemática 14 . A convic-
ção quanto à validade do raciocínio analógico, por seu turno, parece
fundar-se na tese de que seria uma só a solução tanto para o problema
lógico da contingência quanto para o problema matemático do contí-
nuo. Isso porque seria também uma única e a mesma a raiz de um e de
outro. Diz ele:

“Há certamente dois labirintos do espírito humano: um concerne à


composição do contínuo, o outro à natureza da liberdade, ambos nas-
cem de uma fonte idêntica no infinito” 15 .

Dispenso-me aqui de examinar as razões de Leibniz para sus-


tentar essa convicção 16 , preferindo destacar dois desdobramentos dela
que são relevantes para a presente discussão. O primeiro diz respeito a
uma característica do infinito, como aquilo que é inesgotável do ponto
de vista quantitativo – ou que excede qualquer quantidade assinalável.

14 Esse raciocínio analógico é esboçado no opúsculo “Origem das verdades

contingentes por um processo ao infinito e a exemplo das proporções entre quantidades


incomensuráveis” – Theol., VI, 2, f.11-12 - OFI, pp. 1-3. Uma outra parte deste
opúsculo é publicada por Foucher de Careil, pp. 178-184. Ainda uma terceira
parte encontra-se em Grua, pp. 325-326. Cf. Grua, p. 325 n. 177,et p. 326 - B
15 Phil. IV, 3, a, 1 – OFI, p. 18. Logo no início da Teodiceia, Leibniz retorna ao

assunto, afirmando que “há dois Labirintos famosos em que nossa razão
paralisa com frequência: um concerne à grande questão do Livre e do Necessário,
sobretudo na produção e na origem do Mal; o outro consiste na discussão
sobre a continuidade e os indivisíveis, que parecem seus Elementos, em que deve
entrar a consideração do infinito” (Prefácio – GP VI, p. 29).
16 Discuto esse assunto no artigo “Sed quaeritur quid significet tó: existens”. Revista

O que nos faz pensar, 26, 2009.

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O segundo concerne a uma característica intrínseca ao continuum, que é


a noção de limite de uma série infinita 17 . Essas duas noções são operan-
tes também no caso do labirinto da contingência, verificando-se no que
distingue as proposições necessárias das contingentes.
Que, no caso da análise das proposições contingentes a infini-
tude compartilhe com o contínuo matemático o mesmo o caráter quan-
titativo acima exposto é algo que Leibniz deixa manifesto em diversas
ocasiões 18 . Esse caráter quantitativo acarreta que, por mais que se avan-
ce na análise das noções, nunca se consuma a demonstração de uma
verdade contingente: para toda verdade a que se chegue na série regres-
siva da análise uma outra ainda é requerida como a razão sobre a qual
aquela estaria fundada. Não há, por conseguinte, algo como a primeira
proposição da série a partir da qual se demonstraria uma verdade con-

17 A expressão "limite" <extremum> é recorrente nas reflexões de Leibniz sobre


o contínuo, e figura em sua formulação do princípio de continuidade. Por “li-
mite” ele entende aquilo para o que converge uma série infinita, o qual, por
isso, a limita. Reconhecendo tal limite como externo à série, ele considera que,
com base no princípio de continuidade, é possível assumi-lo como ainda per-
tencente a ela. Diz ele: “…[d]a Lei da Continuidade (…) se depreende que nos
contínuos, um limite externo pode ser tratado como um limite interno, e como um caso
último que, mesmo sendo de natureza completamente diferente, seria abarcado
na lei geral dos demais” (GM V, p. 385. Sobre a aplicação do princípio, ver GP
III, p. 52).
18 No opúsculo em que correlaciona o problema matemático e o lógico,

Leibniz afirma que:


“ - se a análise vai ao infinito e jamais se esgota,
a verdade é contingente, envolvendo uma infinidade de razões
a proporção é inefável, comportando uma infinidade de quocientes.
- De sorte que haverá sempre um resto do qual:
é preciso dar razão
fornecer um novo quociente.
- Assim, a continuação da análise produz uma série infinita
que é contudo conhecida perfeitamente por Deus na ciência da visão
da qual o geômetra conhece muitas propriedades na teoria dos números irra-
cionais tal como contida no Livro 12 dos Elementos” (OFI , p. 2. Ver também
pp. 18-19 e Grua, p. 303).

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tingente. Ou inversamente, e à diferença do que se passa no caso das


proposições necessárias, na série analítica das verdades contingentes,
não há algo como a proposição que corresponde ao seu fim. Por não
haver tal fim, fica assegurado que as verdades contingentes podem ser
negadas sem contradição. No opúsculo consagrado à investigação das
condições formais da análise das noções e das proposições 19 , Leibniz
afirma:

“Parece que se pode também aprender, a partir daí 20 , a discriminar as


verdades necessárias das outras do seguinte modo: necessárias são a-
quelas que podem ser reduzidas a idênticas, ou aquelas cujos opostos
podem ser reduzidos a contradições. E impossíveis aquelas que podem
ser reduzidas a contradições, ou cujos opostos podem ser reduzidos a
identidades.
‘Possíveis são aquelas das quais se pode demonstrar que na sua resolu-
ção nunca ocorrerá uma contradição. Verdades contingentes são aque-
las que precisam de uma resolução continuada ao infinito” 21 .

A noção de limite impõe-se a partir do que é um desdobra-


mento da noção de verdade como inerência, isto é, como a pertinência
da noção do predicado naquela do sujeito da proposição verdadeira,
praedicatum inest subjecto. Com efeito, se esta noção vale para as proposi-
ções verdadeiras em geral, como sustenta Leibniz, independentemente
do se estatuto modal 22 , então os predicados das verdades contingentes,
não menos do que aqueles das verdades necessárias, devem ser pressu-

19 Generales inquisitiones de analysi notionum et veritatum – doravante: GI.


20 “Pode-se duvidar que seja necessário que toda resolução termine em
verdades primeiras ou seja, irresolúveis, sobretudo nas proposições
contingentes, visto que não podem ser reduzidas a idênticas” (GI, §56 - OFI, p.
371).
21 GI §60- §61.
22 “Ora, uma proposição verdadeira é aquela cujo predicado está contido no

sujeito, ou mais geralmente cujo conseqüente está contido no antecedente


(…). Isso tem lugar em toda proposição verdadeira afirmativa, universal ou
singular, necessária ou contingente, que o predicado esteja na noção do sujeito,
ou bem expressamente, ou bem virtualmente” (Id. – OFI, p. 402).

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postos inerentes às noções dos respectivos sujeitos 23 . Isso conduz


Leibniz à conclusão de que, conquanto a análise das verdades contin-
gentes se estenda ao infinito, ela possui um limite, no qual resulta con-
templada a exigência imposta pela noção coerentista de verdade. Ele
diz:

“Toda proposição verdadeira pode ser provada. Pois, visto que o


predicado está no sujeito, como diz Aristóteles, ou a noção do
predicado está envolvida na noção plenamente compreendida do
sujeito, é preciso que a verdade possa ser mostrada pela resolução dos
termos em seus valores, ou seja, nos termos que eles contêm.
‘Uma proposição verdadeira necessária pode ser provada por redução a
proposições idênticas, ou pela redução da sua oposta a uma proposição
contraditória; donde a oposta é dita impossível.
‘Uma proposição verdadeira contingente não pode ser reduzida a pro-
posições idênticas, mas é provada em se mostrando que, se a resolução
for continuada sempre mais, ela se aproxima infinitamente das idênti-
cas, sem contudo jamais chegar a elas (…)
‘Por conseguinte, é a mesma a diferença entre as verdades necessárias e
contingentes e aquela entre as linhas que se encontram e as assíntotas,
ou entre os números comensuráveis e os incomensuráveis” 24 .

Destacados esses desdobramentos da convicção leibniziana


sobre a homogeneidade dos labirintos, cumpre salientar outro aspecto
relevante da análise das verdades contingentes, este pertinente não
tanto à natureza dessa análise, mas ao conteúdo daquelas verdades.
Refiro-me à noção de compossibilidade.
À diferença das proposições necessárias, cuja verdade se asse-
gura apenas por sua consistência interna, as proposições contingentes

23 “Verdadeira é uma afirmação cujo predicado está no sujeito <praedicatum inest

subjecto>; por isso em toda Proposição verdadeira afirmativa, necessária ou


contingente, universal ou singular, a Noção do predicado está de algum modo
contida na noção do sujeito; de tal modo que quem compreender
perfeitamente a noção de ambos do mesmo modo que Deus a compreende,
por isso mesmo verá nitidamente <perspiceret> que o predicado está no sujeito”
(OFI, pp. 16-17).
24 GI §132- §135 – OFI, p. 388.

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têm na consistência interna uma condição necessária, mas não suficien-


te, para sua verdade. Isso decorre da própria caracterização das propo-
sições contingentes como aquelas que podem ser afirmadas ou negadas
sem contradição 25 . Se nenhuma contradição decorre seja da afirmação
seja da negação de uma proposição, então seu valor de verdade não se
decide pela mera ausência de contradição, mas requer algo mais.
Resta saber o que seria esse algo mais. Visto que as proposi-
ções contingentes também satisfazem o princípio praedicatum inest subjec-
to, devendo, eo ipso, satisfazer a caracterização de verdade em termos de
coerência, o que quer que assegure as condições de determinação do
valor de verdade das proposições contingentes não pode ser irredutível
às exigências coerentistas a partir das quais Leibniz caracteriza a verda-
de. Se, a despeito da infinitude da análise, é ainda a partir das noções de
identidade e de contradição que as verdades e falsidades contingentes se
deixam respectivamente caracterizar, segue-se que elas devem, ainda de
algum modo, se determinar, enquanto tais, em termos de consistência.
Ante essa exigência, e tendo em vista que a mera consistência
interna não assegura o valor de verdade de uma proposição contingen-
te, parece não restar outra alternativa senão buscar na consistência ex-
terna as condições de determinação daquele valor. Leibniz adotou essa
saída, concluindo que a verdade de uma proposição contingente deixa-
se determinar por sua consistência com outra proposição contingente já
admitida verdadeira. A isso ele se referiu pela expressão “compossibilida-
de”, definindo o compossível como “o que não implica contradição
com outro” 26 .

25 “As verdades necessárias dependem do princípio de contradição. As

verdades contingentes não podem ser reduzidas ao princípio de contradição;


de outro modo seriam todas necessárias, e nada seria possível a não ser o que
vem à existência em ato” (Grua, p. 303). “Chamo necessário aquilo cujo oposto
implica contradição (…). Necessário é aquilo cujo oposto é impossível.
Contingente, cujo oposto é possível” (Confessio philosophi – La profession de foi du
philosophe, p. 54).
26 Grua, p. 325.

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Se a consistência externa é o que agrega à consistência interna a condi-


ção suficiente para a determinação da verdade de uma proposição con-
tingente, segue-se que, posta uma verdade contingente qualquer, todas
as proposições contingentes consistente com ela, as quais não forem
inconsistentes entre si, serão também verdadeiras 27 . Caso contrário
uma proposição contingente poderia ser consistente com a totalidade
das verdades contingentes sem por isso ser verdadeira, o que seria in-
compatível com o já assumido. O valor de verdade das proposições
contingentes determina-se, portanto, em termos de máxima compossi-
bilidade. Leibniz exprimiu essa conclusão sustentando que todo possí-
vel tende a existir, e elegeu essa conclusão ao estatuto de princípio:

“Meu princípio é que tudo o que pode existir, e que é compatível com
os outros, existe. Porque a razão pela qual existem todos os possíveis
não deve estar limitada por nenhuma outra razão, a não ser que nem
todos são compatíveis” 28 .

Uma consequência disso para a análise das proposições contin-


gentes é que esta deve visar não tanto a coerência interna da proposi-
ção, mas sua coerência com as demais verdades contingentes. Assim,
conquanto essa análise se efetue pelas mesmas operações que confor-
mam a análise das proposições em geral, a saber, pela resolução das
noções, o que se visa como correspondente à sua pretensa consumação
não é a redução pura e simples da proposição a uma identidade, mas a
redução à identidade da conjunção dessa proposição com aquela que
reúne todas as demais proposições contingentes verdadeiras. E visto

27 “Visto que uma proposição verdadeira é aquela que é idêntica ou que pode

ser demonstrada a partir das idênticas com a utilização de definições, disso se


segue que a definição real da existência consiste nisto: que existe aquilo que,
dentre todos aqueles que podem existir, é maximamente perfeito ou envolve
mais essências. De tal modo que a natureza da possibilidade ou da essência
seria de exigir a existência. Se assim não fosse, a razão da existência das coisas
não poderia ser dada” (GP VII, p. 195).
28 Ak VI, iii, p. 582.

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que essa redução deve envolver o infinito, é preciso que essa última
proposição reúna uma infinidade de verdades contingentes. Caso con-
trário, a consistência daquela conjunção poderia ser provada em um
número finito de passos – o que a tornaria uma proposição necessária,
antes que contingente.
Pode-se situar aí a raiz das convicções infinitistas de Leibniz a
respeito dos existentes, das substâncias e do mundo criado. Se as ver-
dades contingentes devem ser em número infinito, devem ser igual-
mente infinitas as realidades que verificam essas verdades. Desse ponto
de vista, a infinitude do mundo seria uma decorrência das exigências
imposta pela distinção entre necessidade e contingência vis-à-vis a tese
do praedicatum inest subjecto. E diria respeito não apenas ao mundo efeti-
vamente criado, mas a qualquer que seja o candidato à criação. Pois,
como visto, a determinação da verdade em termos de máxima compos-
sibilidade concerne ao contingente enquanto tal, devendo valer para
todos os possíveis.
Se essas considerações estão corretas, elas permitem suspender
as restrições de Ishiguro anteriormente mencionadas. Pois decorre que,
ao contrário do que ela afirma, a infinitude do universo não seria uma
postulação da qual dependeria a noção de análise infinita, e sim uma
consequência desta. De resto, a impossibilidade de provas a priori das
verdades contingentes não se fundaria na vontade de Deus, e não
depende do princípio do melhor, mas decorreria da distinção entre
necessidade e contingência, que exige que a determinação do valor de
verdade das proposições contingentes se dê em termos de consistência
externa, e não interna.
As mesmas considerações permitem também sugerir uma res-
posta à dificuldade erguida por Mates. Pode-se afirmar que, no caso de
proposições contingentes da forma ‘A é B’, a prova da inclusão de que
o predicado está no sujeito remete à prova da consistência externa da
relação atributiva, prova que, por seu turno, envolve o infinito. Do
ponto de vista da mera consistência interna, visto tratar-se de uma pro-

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posição contingente, ela é assegurada, não tanto porque o predicado ‘B’


pertence a ‘A’, mas porque a proposição ‘A é B’ pode ser afirmada ou
negada sem contradição. O que parece exigir que ‘B’ pode ser afirmado
ou negado de ‘A’ sem contradição 29 .

29 Essa é uma tese que permanece controversa em se tratando de Leibniz. Na


esteira de Russell (A Filosofia de Leibniz, II, §8), muitos estudiosos comparti-
lham, em alguma medida, a convicção de que, para Leibniz, todas as proposi-
ções podem ser admitidas essenciais, à exceção daquelas em que se assere uma
existência. Essa convicção ancora-se no determinismo que geralmente se
atribui a Leibniz, e se vê fortalecida pela tese da noção completa.
Abordar aqui esse viés interpretativo nos desviaria da questão em exame neste
artigo. Em todo caso, conviria salientar que a tese da noção completa está
intrinsecamente vinculada à de mundo possível, que discutiremos adiante, e de
totalidade da série na qual uma certa noção completa se insere. Leibniz insiste
que a noção completa envolve as circunstâncias particulares, espaciais e
temporais, do mundo a que pertence o indivíduo de que é noção. Sobre isso, e
apesar de sua extensão, um trecho das observações que faz Leibniz à carta que
lhe dirige Arnauld em 13 de maio de 1686 merece ser lembrado:
“…digo que a ligação entre Adão e os eventos humanos não é independente
de todos os decretos livres de Deus, mas também que ela não depende
inteiramente deles de tal maneira, como se cada evento só acontecesse ou
fosse previsto em virtude de um decreto particular primitivo a seu respeito.
Creio portanto que há poucos decretos livres primitivos que podem ser
chamados leis do universo, que regulam as sequências das coisas, os quais
sendo unidos ao decreto livre de criar Adão, consumam a consequência mais
ou menos como são necessárias apenas poucas hipóteses para explicar os
fenômenos; o que explicarei ainda mais distintamente no que se segue. E
quanto à objeção que os possíveis são independentes dos decretos de Deus, eu
concordo quanto aos decretos efetivos (ainda que os Cartesianos não
concordem de modo algum), mas sustento que as noções individuais possíveis
encerram alguns decretos livres possíveis. Por exemplo, se este Mundo não
fosse senão possível, a noção individual de algum corpo deste mundo, que
encerra certos movimentos como possíveis, encerraria também nossas leis do
movimento (que são decretos livres de Deus) mas também somente como
possíveis. Pois como há uma infinidade de mundos possíveis, há também uma
infinidade de leis, umas próprias a um, outras a outro, e cada indivíduo
possível de algum mundo encerra na sua noção as leis do seu mundo” (GP II,
p. 40). Ver também pp. 49-51; e OFI, p.19.

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Análise infinita e mundos possíveis na Teodiceia 183

III

Assim caracterizada a relação entre a noção completa e o mundo possível a


que diz respeito, ela coaduna-se com noção de máxima compossibilidade. E
permite sugerir que a prova da inclusão de qualquer daqueles predicados à
noção completa deve reportar-se à máxima compossibilidade da relação atribu-
tiva daquele predicado ao sujeito. Nesse caso, a demonstração infinita da per-
tinência do predicado ao sujeito da noção completa não concerne à redução,
no infinito, da proposição a uma identidade, mas à redução no infinito de sua
conjunção com a proposição infinitamente complexa que descreve integral-
mente o mundo respectivo. Do ponto de vista formal, isso permite afirmar
que a consistência interna de uma proposição contingente da forma “S é P” se
assegura porque o predicado P não se afigura, nesse nível, nem pertencente
nem não pertencente ao sujeito S. Estamos aí no plano das noções sub ratione
generalitatis. Apenas na remissão a um certo conjunto maximal de proposições
descrevendo um mundo possível é que se pode assumir que a consistência da
proposição determina seu valor de verdade (no infinito). Nesse caso, porém,
trata-se de consistência externa, como já discutido. Diz Leibniz:
“Permaneço de acordo que a conexão dos eventos, ainda que certa, não é
necessária, e que sou livre para fazer ou não fazer esta viagem, pois embora
esteja encerrado na minha noção que a farei, aí está também encerrado que a
farei livremente. E de tudo em mim que se pode conceber sub ratione generalitatis
seu essentiae seu notionis specificae sive incompletae não há nada de onde se pudesse
tirar que eu a faria necessariamente, ao passo que se pode concluir de eu ser
homem que sou capaz de pensar; e conseqüentemente, se não faço esta
viagem, isso não combaterá nenhuma verdade eterna ou necessária.
Entretanto, visto que é certo que a farei, é preciso que haja alguma conexão
entre mim, que sou o sujeito, e a execução da viagem, que é o predicado, semper
enim notio praedicati inest subjecto in propositione vera. Haveria portanto uma
falsidade, se eu não a fizesse, que destruiria minha noção individual ou
completa, ou o que Deus concebe ou concebia de mim antes mesmo de
resolver criar-me; pois esta noção envolve sub ratione possibilitatis as existências
ou verdades de fato ou decretos de Deus dos quais dependem os fatos” (GP
II, p. 52).
Para uma interpretação da passagem diferente da aqui proposta, ver Marques,
E. Observações críticas acerca da noção leibniziana de decretos divinos possíveis, pp. 104-
105.

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184 Vivianne de Castilho Moreira

A infinitude que marca a análise das verdades contingentes,


bem como seus desdobramentos para o domínio ontológico do que
verifica aquelas verdades, deve ser ponderada pelo que exige a noção de
limite de uma série infinita. Como vimos, esta noção é operante tam-
bém no caso do labirinto da contingência em decorrência do princípio
praedicatum inest subjecto. Assim, a despeito daquela infinitude, dado que
existimos, o domínio do possível já está determinado quanto ao valor
de verdade das proposições contingentes. E visto que ele se determina
em termos de máxima compossibilidade, já está determinada a totalida-
de maximamente consistente de proposições contingentes que são ver-
dadeiras. É preciso assumir, em algum sentido, já verdadeira e, por con-
seguinte, dada, a proposição infinitamente complexa que reúne a totali-
dade das verdades contingentes.
Para Leibniz, nenhuma dificuldade há em admitir um infinito
dado nesses termos, pois não há contradição entre algo ser infinito e
limitado. De acordo com ele, “muitas séries comportando uma infini-
dade de termos são, quando se efetua sua soma, quantidades finitas” 30 .
As dificuldades relativas aos raciocínios sobre essas matérias emergem
ao se pretender exaurir o que há de infinito no que se supôs limitado, se
exaurir é chegar a um fim; pois é contraditório que o infinito tenha
fim 31 . A análise das verdades contingentes, na medida em que estas já

30 De vera proporctione circuli ad quadratum circumscriptum in numeris rationalibus ex-

pressa – GM V, p. 122. Pouco antes, Leibniz havia considerado, relativamente à


série que exprime a proporção entre o quadrado e o círculo inscrito, que “to-
mada como totalidade, a série exprime o valor exato. E conquanto não se pos-
sa descrever sua soma em um único número, e a série se estenda ao infinito, na
medida em que é constituída por uma única lei de progressão, o espírito pode
concebê-la integralmente de forma adequada” (Id., pp. 121-122). Ver também
Accessio ad arithmeticam infinitorum (Ak III, i), e GP IV, p. 570.
31 “O fato de haver um número infinito de termos significa que a sequência

tem mais termos do que pode ser descrito por qualquer número finito, e não
que o número de termos é um número finito dado” (GM III, p. 566). “Supo-
nha que todas as subdivisões de uma linha, 1/ 2, 1/4, 1/8, 1/ 16, 1/ 32, etc. efeti-
vamente existem. Inferir dessa série que o termo inifitésimo existe seria um

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Análise infinita e mundos possíveis na Teodiceia 185

são verdades, portanto, não tem um fim, mas tem um limite. Este cor-
responde àquela proposição infinitamente complexa que descreve e-
xaustivamente a totalidade absoluta, isto é, omnitemporal, do que exis-
te, totalidade que Leibniz denomina “mundo” 32 .
Essa passagem ao limite das verdades contingentes, que co-
nhecemos, à totalidade inesgotável da proposição maximal consistente
que descreve o mundo, que nos é impossível percorrer, parece nos ser
de muito pouca serventia no conhecimento dos existentes. Afinal, ela
resulta inútil para a prova de uma verdade existencial, em primeiro lugar
porque dita passagem ao limite não proporciona o conhecimento da
proposição infinitamente complexa a partir da qual a prova seria efetu-
ada. Além disso, mesmo que proporcionasse, a prova envolveria o infi-
nito, sendo inexequível. Em contrapartida, a passagem ao limite parece
desempenhar um papel relevante para a metafísica e a teologia elabora-
das por Leibniz. Pois disponibiliza os expedientes para formular as no-
ções metafísicas a partir das quais ele examina um terceiro labirinto: o
“labirinto da predestinação” 33 .
Uma dessas noções, de mundos possíveis, interessa-nos aqui
diretamente. A tese de que a máxima compossibilidade constitui a con-
dição de determinação dos valores de verdade das proposições contin-
gentes traz consigo não apenas a ideia de mundo, enquanto totalidade
infinita dos existentes, mas também a de uma infinidade de conjuntos
maximais de verdades contingentes totalizando infinitas alternativas à
existência.

erro. Pois penso que não se segue disso senão que há uma fração finita deter-
minável que pode ser tão pequena quanto se deseja” (Id., p. 536). Ver também
GP II, pp. 314 – 315.
32 “Chamo Mundo toda a sequência e toda a coleção de todas as coisas existen-

tes, a fim de que não se diga que vários mundos poderiam existir em diferentes
tempos e diferentes lugares. Pois seria preciso contá-los todos juntos como um
mundo, ou, se se preferir, por um Universo” (Ensaios de Teodiceia I § 8 - GP VI,
p. 107).
33 Discurso preliminar da conformidade da fé com a razão, § 24 – GP VI, p. 65.

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Pode-se afirmar que, na medida em que são contingentes as in-


finitas verdades que integram a proposição infinita que descreve o
mundo, cada uma delas pode ser negada sem contradição. E, permane-
cendo possíveis, a negação de cada qual introduz uma nova combina-
ção maximal de verdades, que pode ser pensada como um contrafactu-
al. De sorte que, da infinitude das verdades que integram a proposição
verdadeira que descreve o mundo, infere-se, como possibilidades, uma
infinidade de alternativas maximais contingentes à proposição maximal
que descreve o mundo existente. Na esteira delas, uma infinidade de
mundos respectivos 34 . Estes mundos evidentemente não possuem ne-
nhuma realidade 35 , mas podem ser legitimamente presumidos como
possíveis com base no raciocínio ao limite que está em sua origem. A
mesma passagem ao limite pela qual se chegou à ideia de uma proposi-
ção infinitamente complexa descrevendo plenamente o que existe legi-
tima e engendra a segunda passagem, de uma infinidade de proposições
também infinitas descrevendo outros existentes maximais, que devem,
eo ipso, ser admitidos como possíveis.
Os mundos possíveis são o que, na Teodiceia, Leibniz identifica
como o que se oferece à escolha divina na criação. E pode-se compre-
ender o porquê. Sendo todos infinitos, e descritíveis por proposições
infinitamente complexas, não poderíamos tornar inteligível o conheci-
mento que Deus tem deles se, para tanto, necessitássemos supor que
Deus percorre exaustivamente cada uma das proposições integrando a
34 Na continuação da sua caracterização de mundo supra citada, Leibniz
considera que “ainda que se preenchesse todos os tempos e todos os lugares,
permaneceria sempre verdadeiro que se poderia preenchê-los de uma
infinidade de maneiras, que há uma infinidade de Mundos possíveis” (GP VI,
p. 107).
35 “Introduzir outro gênero de coisas existentes, e como que outro mundo

igualmente infinito, é abusar do nome existência, pois não se pode dizer se essas
coisas existem ou não agora. Ora, a existência, tal como a concebemos,
envolve um tempo determinado; nós dizemos que algo existe somente quando
podemos, em algum momento do tempo, dizer ‘esta coisa existe agora’” (Ak
VI, iii, p. 581).

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Análise infinita e mundos possíveis na Teodiceia 187

série infinita de proposições contingentes que os descrevem. Pois uma


série infinita é uma série que não tem fim, e cujos elementos, portanto,
não podem ser exaustivamente percorridos. Para acomodar nossa fé à
nossa razão, é preciso tornar inteligível algo como o conhecimento in-
finito dos infinitos mundos infinitamente complexos disponíveis ao
entendimento divino 36 . Isso requer que possamos suspender o infinito
que um mundo encerra, evitando o percurso infinito que acarretaria a
consideração isolada de cada uma das proposições que integram a pro-
posição infinitamente complexa que o descreve. Pois isso nos permitiria
conceber um mundo, mesmo infinito, como uma totalidade limitada 37 .
Leibniz exprime essa exigência considerando que:

“…é preciso saber que tudo está ligado em cada um dos Mundos possí-
veis: o Universo, qualquer que possa ser, é uma única peça, como um
Oceano (…). Assim, se o menor mal que acontece no mundo aí faltas-

36 Essa acomodação é importante para Leibniz porque, amparado nela, ele


pode sustentar que a escolha divina, ainda que seja algo cuja compreensão
esteja acima da nossa razão, certamente não é contrária à nossa razão (Cf.
Discours de la conformité de la foi avec la raison, § 23). Com efeito, se aquela escolha
se revelasse contrária à nossa razão, não poderia ser artigo de fé. Diz Leibniz:
“Quanto a mim, confesso que não compartilho a convicção daqueles que
sustentam que uma verdade pode sofrer objeções invencíveis; pois acaso uma
objeção seria outra coisa que um argumento cuja conclusão contradiz nossa
tese? E um argumento invencível não é uma demonstração? E como se pode
conhecer a certeza das demonstrações a não ser pelo exame detalhado do
argumento, sua forma e sua matéria, a fim de saber se a forma é boa e cada
premissa é ou reconhecida ou provada por um outro argumento de vigor
semelhante, até que não se tenha mais necessidade de premissas reconhecidas?
Ora, se há uma tal objeção contra nossa tese, é preciso dizer que a falsidade
dessa tese está demonstrada, e que é impossível que possamos ter razões
suficientes para prová-la. Caso contrário duas contraditórias seriam
conjuntamente verdadeiras” (Id., § 25).
37 “Só Deus vê, não o fim da série, porque não há, mas ao menos a ligação dos

termos, quer dizer, o envolvimento do predicado no sujeito, pois Ele vê tudo o


que está na série” (Recherches générales sur l’analyse des notions et des vérites, p. 333.
Ver também Phil. IV, 3, a, 1 - OFI, pp. 18-19, p. 388 §134, e Grua, p. 303).

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se, não seria mais este mundo, que, tudo pesado, tudo computado, foi
considerado o melhor pelo Criador que o escolheu” 38 .

O mesmo deve valer, evidentemente, para a infinidade das al-


ternativas que se oferecem à escolha divina. Que se possa pretender
que essa escolha, ainda que esteja acima da nossa razão, de modo algum
é contrária a ela também depende de uma passagem ao limite de mesma
natureza, graças à qual as alternativas maximais que se oferecem a Deus
se deixam apresentar não apenas em sua variedade inesgotável, mas
enquanto perfazem uma série limitada 39 .
Pode-se concluir, a partir dessas considerações, que a ideia de
limite de uma série infinita oferece a Leibniz expedientes conceituais a
partir dos quais ele pode assegurar que os mistérios divinos não são
contrários à razão. A noção de mundos possíveis surge como um des-
ses expedientes na medida em que satisfaz a duas exigências. A primeira
delas diz respeito à acomodação da escolha divina às condições de inte-
ligibilidade da nossa razão. Essa acomodação é assegurada pela unidade
intrínseca à noção de mundo possível, que permite introduzir um limite
à infinitude a ele inerente. A segunda exigência remete aos fundamen-
tos lógicos que legitimam a noção de mundos possíveis. Como visto,
essa noção repousa em uma passagem ao limite, que se mostra não a-
penas possível mas também necessária uma vez assumidas as duas teses
já mencionadas, a saber, a tese do praedicatum inest subjecto, por um lado,
e a tese da contingência dos existentes, por outro.
Essas considerações estão longe de exaurir a complexidade do
tema e a riqueza da Teodiceia. Mas elas bastam para cumprir a promessa
inicial, de fornecer indicações sobre como pensar uma coerência das
teses de Leibniz, a partir da qual suas diferentes respostas para o pro-
blema da contingência possam ser preservadas e articuladas. Claro que

38GP VI, p. 107-108.


39 Abordo essa questão no artigo “Sed quaeritur quid significet tó: existens”, já
indicado anteriormente.

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Análise infinita e mundos possíveis na Teodiceia 189

as conclusões a que chegamos nos obrigam a reconsiderar o escopo da


noção de mundos possíveis no interior do sistema leibniziano. Pode-se
afirma que essa noção não proporciona a resposta de Leibniz para o
problema lógico da contingência, mas apenas para o problema moral e
teológico da liberdade, da onisciência e da bondade de Deus na criação.
Se esta conclusão pode eventualmente frustrar àqueles que esperam
encontrar na Teodiceia uma saída para o problema lógico das modalida-
des, é que não se deu suficiente atenção ao que Leibniz anuncia no títu-
lo de uma das poucas obras que dele mereceram um nome: Ensaios sobre
a bondade de Deus, a liberdade do homem, e a origem do mal.

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