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A SEDE DE ALMAS
Podemos dizer também que a alma tem sede de Nosso Senhor, como no Salmo:
“Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas, assim a minha alma suspira por
ti, ó Deus” (Ps. XLI, 2). É até frequente, em símbolos eucarísticos, vermos dois
cervos dessedentando-se numa fonte. Essa sede é, evidentemente, a que a alma tem
de Deus. O desejo que nós temos de comungar, a nostalgia eucarística quando nós
não comungamos, é exatamente essa sede.
Todas essas três sedes têm isso de comum, que são apetências e atrações puramente
espirituais, da alma que deseja uma outra alma. Uma sede inexprimível da parte de
Deus, que não precisa de ninguém, que é perfeito, que se basta a Si próprio, e que
quer condescender em ter sede de nós; uma sede muito menor, mas ardentíssima nos
santos, dos homens para com Deus; e uma sede que o apóstolo tem das almas junto
às quais ele vai fazer apostolado.
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Quais são as características, quais são as razões de ser dessas sedes? Afinal de contas,
o que é isso, como é que isso se passa nas almas?
Essa questão é muito importante, para nós nos perguntarmos em que medida temos
essa sede, o que devemos fazer para acendê-la em nós, e quais são os fatores que
podem fazer acender ou fazer deperecer essa sede em nós. Para conhecermos isso,
temos que ver se a alma humana deve pedir isso, e no que é legítimo a ela pedir isso.
Para esse efeito é preciso preparar, calcar um pouco o terreno nas nossas almas,
tratando de um outro aspecto da questão, que é o seguinte: As almas que não têm
sede das outras almas, do que é que têm elas sede?
Tenho impressão de que há duas espécies de almas: umas que têm sede de almas, e
outras que têm sede de utilidades. As últimas não têm propriamente sede de almas.
A vida delas passa-se pouco mais ou menos indiferente às outras almas. Querem
apenas ter utilidades, que podem ser de várias formas: saúde, conforto, prestígio,
popularidade. Uma das formas dessa utilidade é uma alma sentir o convívio de outra
por causa do instinto de sociabilidade, que impõe a necessidade de um convívio.
Outra forma é o desejo sentimental, o gosto de ser adorada por outra alma. Mas
nenhuma dessas constitui a sede das almas. Essas são maneiras utilitárias.
É preciso dizer que o desejo de ser adorado por outrem, o desejo de sentir o convívio
de uma outra alma, ainda representa uma forma menos vil de egoísmo do que o
egoísmo puramente utilitário: “Eu tenho o que quero, estou bem equipado, tenho
minha casa, meus objetos, a vida do meu corpo está bem atendida, ouço uma música
que agrada a meus ouvidos, como uma comida que deleita o meu paladar, tenho
meus empregados que mantêm minhas coisas em ordem ; portanto, estou atendido
nas minhas necessidades, não preciso de mais nada nem de ninguém”. Isto é uma
forma de utilitarismo do corpo. Enquanto diz respeito ao corpo, é evidentemente
mais baixo do que o que diz respeito à alma, não deixando esta última de ser também
errada.
Há muitos modos de ser, antigos e modernos, que mostram que se vai descambando
do utilitarismo espiritual para o utilitarismo material. Antigamente, por exemplo, a
vida familiar era tal que o convívio de alma era muito intenso, e passava até por ser
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a principal finalidade da vida de família. Nota-se hoje que esse convívio vem sendo
cada vez menos intenso entre parentes, mas, pelo contrário, a permuta de vantagens
práticas vai cada vez mais dando vida às relações entre eles. Quer dizer, a família
vai refluindo do espírito para a matéria.
Devemos começar então por analisar a mentalidade daqueles que têm apenas a
apetência de um convívio material, e o que há de errado nisso.
O que caracteriza as almas das pessoas que caíram no estado de puro utilitarismo
material é que elas não têm a menor necessidade de semelhanças nem de
dessemelhanças. Elas são fechadas em si, como numa torre, e não se incomodam
com o convívio de ninguém que lhes seja semelhante ou dessemelhante. Mais ainda,
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os objetos materiais que a cercam não têm para ela expressão de alma; têm, quando
muito, uma conotação artística puramente sensível: tal cor agrada aos olhos ou não,
tal som deleita os ouvidos ou não. Mas um significado espiritual, que importe em
afinidade ou em harmonia de dessemelhanças, isso elas não sentem, abstraem-no
completamente.
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É preciso notar que ser avesso, por temperamento, ao convívio social, não é em si
um mal. Mas se consentido, o é. O tipo anglo-saxônico não se importa com isso, e
bebe sozinho. Depois, para os vizinhos, é um senhor muito respeitável, que passou
todo o domingo no seu quarto. De fato, passou bêbado, cantou, caiu, quase morreu,
mas na segunda-feira, pontualmente, a bebedeira dele está reabsorvida e ele vai para
o emprego, apenas com o nariz um pouco vermelho.
Existe na Alemanha a lenda da Lorelei. É uma mulher muito bonita, sentada no alto
de um rochedo do Reno, penteando os cabelos dourados com um pente dourado, e
cantando. É uma mulher malfazeja, uma virgem malvada, porque os pescadores do
Reno, quando a noite começa a baixar e o Reno começa a correr sozinho, no silêncio
– vê-se o wagneriano da cena – vão voltando cansados para casa, e ouvem-na
cantando uma melodia sedutora, acariciante e ondulada como as ondas do rio.
Atraídos, fazem os barcos rumar em sua direção, batem em pedras e morrem. A
Lorelei, malvada, fica feliz. E o Reno continua a correr.
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Para o alemão, não. A mulher não precisa ser bonita; isso é secundário. A Lorelei
o era, porque tinha todas as qualidades. O bonito é ser uma mulher, entre outras
coisas, engraçada. Conheci um bar alemão, no qual havia uma alemãzona enorme,
dançando como borboleta preta. Os frequentadores alemães achavam aquilo
engraçado. Muitos dos presentes, não alemães, riam de tudo cética e debocha-
damente. Riam do espírito alemão, e por isso era um deboche não bom, pois, no
fundo, riam da seriedade.
Além disso a mulher deve saber dizer coisas surpreendentes e sempre novas para o
homem, e estimulá-lo, pela oposição, a novos pensamentos.
Há ingleses que têm esse gênio. Eu me lembro de ter lido nas memórias do Príncipe
de Gales a narração do encontro dele com a Simpson. Apresentaram-na, e ele
começou uma conversinha a respeito de hotéis, dizendo que os da Inglaterra eram
menos bons do que os da América, de onde ela vinha. Ela então deu uma gargalhada
espirituosa, e disse: “Não pensei que com o Príncipe de Gales se conversasse uma
tal banalidade”. Ele ficou subjugado. Está aí uma provocação inesperada: saiu de
dentro algo que não imaginava, e que começa a brincar com ele. Então o pesadão
fica entusiasmado com a libélula, e vai atrás.
modo, entrava assim esse desejo de querer e estimar, que era a satisfação de uma
necessidade de alma.
O TIPO METAFÍSICO
O alemão que se coloca – e daí vêm os mil lados por onde eu gosto da cultura alemã
– no litoral do Báltico, por exemplo, vendo uns pinheirais nativos da região
litorânea, a água descendo na encosta, chocando-se gélida e espumante contra
algumas pedras, o silêncio vazio da natureza; Beethoven com a tempestade, e
sobretudo Wagner, que tem mais categoria, senão como músico, pelo menos como
“pensador”; o alemão que se extasia com a poesia da hecatombe, com finais
wagnerianos, trágicos: isto é ou não é um modo elevado de ver as coisas?
Isso, afinal de contas, é um modo de ver como todas essas coisas naturais são
símbolos de realidades de caráter metafísico superior. E que, portanto, no Reno
que corre à noite, caudaloso, se observa uma ordem natural das coisas, válida,
independente do juízo que os homens possam fazer a respeito dela. E se nota que o
Reno não existiria desse modo se não houvesse um Espectador (com E maiúsculo)
que o vê, e para o qual ele corre; se não houvesse um autor que o tivesse feito. Algo
fala de Deus.
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diante de tudo, pois em face de tudo há uma ordem e uma desordem. Trata-se então
de perguntar como é uma posição e a outra.
O termo final da meditação não é o Reno nem é Deus, que criou o Reno e é o Divino
Espectador diante do qual o Reno corre, mas sou eu, enquanto tendo haurido uma
grandeza nessa consideração. Aqui está a posição egoística e desordenada.
Essa posição leva o homem a fechar-se, a não querer se abrir nem sequer para
os discípulos. Leva-o a pensar o seguinte: “Ó homens estultos! Eu passo por esse
mundo desconhecido, mas não comunico a vocês o oceano que levo dentro de mim.
Eu vi, eu sei, dentro do meu espírito habitam esses valores que vocês, ricaços
vulgares ou plebe ignara, são incapazes de compreender. Quando vou ao restaurante,
sento-me no canto, e enquanto a orquestra toca Wagner, olho com piedade para todo
mundo, porque só eu o compreendí. Na minha alma há um santuário interior, no qual
repercutem esses valores. Nesse santuário há um ídolo, e esse ídolo se chama Eu. Eu
me adoro, tendo captado isso”. Essa é a posição fundamentalmente desordenada.
Essa posição não dá sede das almas, mas também não dá sede de Deus. Eu me
dessedento em mim, eu me bebo. É uma coisa monstruosa, mas eu me nutro de mim.
É como uma pessoa que começasse a comer seus próprios dedos e seus próprios
braços: “Eu não preciso de nada nem de ninguém. O termo final de minha meditação
sou eu. O meu ídolo, diante do qual eu vivo e para o qual eu vivo, sou eu,
compreendente e enriquecido dessas coisas”.
A posição ordenada é a que provoca a abnegação. Diante desse Reno que corre, desse
mistério do Reno e da grandeza que se apresenta a mim com isso, deve haver um
primeiro movimento de enlevo. Quer dizer, depois do conhecimento, uma
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veneração: “Que coisa enorme! Por detrás disso há um Deus, único e verdadeiro, do
qual isso não é senão um símbolo e uma manifestação insuficiente e contingente,
como todo símbolo e toda manifestação. Em Deus isso existe, mas de modo incriado,
que eu nem posso imaginar. Como eu venero esse Deus que é assim!”
De outro lado, ternura e amor. Não é só admiração e respeito, mas também amor:
“Como Ele é superior a mim! Como é adorável amar Alguém tão superior a mim, e
que me ajuda a sair de dentro de minha própria charneca, de minha miséria, de minha
contingência, para amá-lo desinteressadamente, porque Ele é Ele”. Esta é a posição
verdadeira e desinteressada.
É uma posição por onde o termo final não sou eu, mas é Ele. O movimento não é de
egoísmo, mas é de me dar. É verdade que eu lucro tudo nesse movimento, mas
não é a razão do meu movimento; a razão é dar-me, desinteressadamente. Isso é
propriamente o holocausto. É menos dar a minha vida do que dar o meu ser, dar
minha alma, dar meu amor, dar a homenagem da minha inteligência e de todo o meu
ser, por causa dAquele que o merece. Essa é a posição adequada da alma, e que
provoca nela a sede de Deus.
Resta-me mostrar como isso provoca paralelamente a sede das almas. A sede de
Deus é uma coisa tão conhecida, que vale a pena fazer somente de passagem uma
observação. Creio que se fazem muito poucas meditações como essa, começando
por mostrar Deus enquanto admirável, para depois mostrá-lo enquanto amável. De
fato só se ama inteiramente aquilo que se admirou inteiramente. O primeiro elemento
do amor é a admiração. O mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas” inclui
o admirar a Deus sobre todas as coisas e reconhecer as sublimidades e excelsitudes
de Deus, por cima e como fim do caminho de todas as sublimidades e excelsitudes
que podem ser consideradas. Nesse sentido, a natureza é de fato um manancial
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inesgotável. O que se pode considerar na natureza foi feito para nós considerarmos,
e nós devemos de fato considerá-las.
Quer dizer, vale mais Wagner – que, aliás, eu censuro – musicando o Reno do que
o próprio Reno. Que exista uma criatura capaz de interpretar o Reno, de analisá-lo,
de formar um juízo e um ato de vontade a respeito dele, é mais belo do que o próprio
Reno. Eu preciso ter a noção do valor de cada alma, para ter a noção exata do valor
do Universo. Enquanto eu ficar em considerações a respeito de graminha, de
florzinha, de queda d’água majestosa, de pinheiro do Báltico, ficarei num nível baixo,
porque por mais altas que sejam as considerações a que tudo isso se presta, a alma
humana vale mais do que tudo isso. E se não sou capaz de perceber a beleza espiritual
por cima da beleza material, não compreendi nada do Universo.
Tenho a impressão de que essa é uma das noções de que o homem contemporâneo é
mais pobre. Ele não sabe compreender a beleza de uma alma, não sabe entender quão
bela é qualquer alma, até mesmo a do último bêbado maltrapilho que a gente
encontra na rua. Eu gostava de observar alguns mendigos que havia em frente de
nossa Sede da Martim Francisco, porque percebia neles, apesar de serem
extremamente miseráveis, uma centelha no fundo dos olhos. E essa centelha da alma
humana, no fundo do lodo e da sujeira, era um particular elemento de realce. Em
toda alma humana ela existe, e toda alma – qualquer que ela seja, desfigurada pelo
pecado original, pelos pecados atuais – tem pelo menos uma beleza potencial
própria, que deveríamos saber entender.
Tenho impressão de que essa noção da beleza das almas é uma noção para a qual a
nossa educação não nos prepara, e essa é a razão pela qual passamos junto dos outros
sem saber vê- los, sem saber entendê-los, sem saber ter em relação a eles sentimentos
de afinidade nem de heterogeneidade, mas apenas de birras, fobias e simpatias.
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Enquanto uma alma não está condenada ao inferno – mesmo a dos bêbados, das
pessoas pelas quais sentimos repulsa – existe algo que está sendo procurado pela
graça, visitado pela graça, algo que ainda pode vir a ser bom. E se pode perceber
nela, ainda que esteja carregada de todas as culpas possíveis, o que seria se fosse
boa. Percebendo-se o que seria aquela alma humana na sua ordem, no seu esplendor,
por uma espécie de reconstituição quase arqueológica, tem-se uma censura ainda
maior do homem, porque se vê qual é a obra divina que ele espandongou para dar
naquilo. Mas compreende-se o que é que ele seria.
Creio que era isso que levava Nosso Senhor a ter paciência com os apóstolos infiéis.
Vê-los fazer aquele papel, depois da Ceia Eucarística, é uma coisa abaixo de zero.
Como é que Ele continuou a amá-los? Um dos elementos desse amor era a
consideração do que havia neles de potencialmente bom. Ele sabia que iam se
transformar, quando recebessem o pentecostes, em homens santos e confirmados em
graça.
Quando eu bato num cristal e obtenho uma nota, os outros cristais capazes de emitir
a mesma nota vibram com isso. É uma conaturalidade, uma participação numa
mesma natureza, que não tem, em si mesmo, um caráter egoísta.
Quando eu tenho o sensus animarum, e através disso subo até Deus, nada me agrada
mais do que serem as outras almas habitadas por Deus, possuídas por Ele, serem por
assim dizer “deiformes”. Porque eu compreendo, a bem dizer na minha própria
natureza, como é horrível que aquela alma não seja segundo Deus. Compreendo a
injúria que há para Deus, a Quem eu amo, que aquela alma não seja segundo Ele.
Por outro lado, compreendo como é admirável que a alma seja segundo Deus, como
Lhe dá glória que seja segundo Ele.
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Por esse amor que concebí em relação a Deus, atuando e movimentando essa
conaturalidade, eu tenho sede das almas. A sede e o zelo das almas vêm disso. Supõe
uma estrutura de espírito por onde se conheça o valor de uma alma, se tenha subido
até Deus, se saiba medir e sentir a ordem profunda que há em que uma alma seja
segundo Deus, e a desordem profunda que há em que uma alma seja contra Deus,
desconforme a Deus.
Isso não deve ser concebido apenas teoricamente, mas visto em cada alma. Quando
se é exigente em ter uma imagem bem precisa de como é Deus, do que é a
conformidade com Deus, e intransigente em relação à desconformidade com Deus,
sente-se isso nos outros. Daí vêm o senso psicológico e o amor às almas. Tornamo-
nos psicólogos, às vezes com o auxílio da graça.
Isso se transpõe para o amor de Deus. O senso psicológico não é outra coisa senão
notar a harmonia ou a cacofonia das almas. É por causa disso que, em geral, as
pessoas que têm muita sede das almas são psicólogas. Naturalmente, com um nível
maior ou menor de explicitação, de intelectualização, etc. E é por causa disso
que todo santo é muito penetrante, embora, infelizmente, nem todo penetrante seja
santo. Não conhecemos um só santo – embora vários deles fossem homens do povo,
rudes e ignorantes – que não tenha tido esse senso para tratar com as almas, esse tato,
essa finura, esse discernimento.
Temos um exemplo do contrário num caso que me contaram. Uma senhora de quase
oitenta anos foi pedir comunhão numa igreja. Uma tal senhora vai com dificuldade
à Igreja, ainda mais ela, que não tinha automóvel e precisava tomar ônibus ou táxi.
Quando falou com o Padre, este lhe respondeu: “Não dou comunhão à senhora,
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porque há dez minutos que o sacrário está fechado”. Há uma primeira consideração
que salta aos olhos: essa senhora está em idade de morrer, e quem sabe não seria essa
comunhão a última de sua vida. É um pensamento que deveria comover uma alma
qualquer, quanto mais uma alma sacerdotal.
Mas eu não quero ficar aí. O Padre deveria olhar para aquela alma e pensar o
seguinte: “Eu sei o que é a união de uma alma com Deus, a alegria que Deus tem
nisso. Há aí um valor, um bem, e é bom que essa alma receba a Deus. Entretanto, eu
sou indiferente a isso. Olhando para essa alma, e vendo o que ela em concreto lucra
recebendo o Santíssimo Sacramento, sou indiferente a que ela tenha esse acréscimo
de virtude. Não me diz nada que essa alma fique melhor. Diz-me mais o regulamento
de minha igreja, que eu quero cumprir para o meu comodismo”. O Padre estava na
sacristia; era só atravessar a capela-mor e entrar na capela do Santíssimo; ele tinha
preguiça de dar talvez esses dez ou quinze passos, abrir o sacrário e dar a comunhão.
Para ele, o poupar-se esse esforço valia mais do que o acréscimo de luz, de beleza,
de formosura, que aquela alma podia receber.
Trata-se de um Padre que não tem nenhum sensus animarum. Não espanta que, na
hora de dar um conselho, esse homem não saiba dá- lo, ache cacete dar um conselho.
Acho natural, porque ele não entendeu o bê-a-bá de nada daquilo. Que contas ele
dará a Deus por ser assim? Fica-se horrorizado em pensar.
Quando estou em contato com as outras almas, sei senti-las? Sei amá-las? Tenho
sede das almas? Instintivamente ou racionalmente a sede delas faz-se disso. Não
consigo atrair para Nossa Senhora uma alma da qual eu não tenha sede. Nada faz
tão bem para uma alma – ainda que ela rejeite – quanto sentir que temos sede dela.
Não para nós, mas para Nossa Senhora, para Deus Nosso Senhor. Sede
desinteressada de alguém que quer fazer bem a uma alma, e depois de olhar a sua
beleza, diz: Gratias agimus Tibi, Domine, propter magnam gloriam tuam – Eu vos
dou graças, ó Senhor, por causa de vossa grande glória nessa alma.
Tenho a impressão de que o ponto de partida fraco de tudo isso é que nós não
sabemos sentir as almas, não sabemos querê-las, o mundo delas é um mundo fechado
para nós, e o resultado é que nós não temos sede das almas. Há toda uma espécie de
animologia, de ciência das almas, que nós deveríamos ter.
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De outro lado, acho que ninguém consegue ser Apóstolo dos Últimos Tempos se
não tem essa sede das almas. Não vejo como se possa ser Apóstolo dos Últimos
Tempos, ou apóstolo de qualquer tempo aliás, sem ter essa sede das almas. O que
resulta naqueles tais apostolados frios, os tais apostolados gélidos, a tal burocracia,
a tal coisa que não vai para a frente, que não pega fogo em nada. Por quê? Porque
não há o sensus animarum, não se cultiva este senso; aquela famosa divisa de São
João Bosco, emprestada à espiritualidade de S. Francisco de Salles: Da mihi animas,
coetera tolle – consubstancia este espírito : Dai-me almas, e tirai-me todo o resto!
Não devemos nos incomodar com o resto, e pedir as almas. Para Deus, não para nós.
Este é um ponto que na nossa formação ainda mereceria mais atenção, porque sinto-
o indispensável.
O grande meio para se chegar a ter sede de almas é a oração, pois todo dom perfeito
vem
do Espírito Santo, pela intercessão de Nossa Senhora. Portanto, a primeira coisa é
pedir. A par da oração, compreender que as almas são a única coisa que
verdadeiramente vale no mundo, e se nós não tivermos o espírito aberto para esse
amor às almas, para essa sede das almas (a palavra amor está tão profanada, que eu
prefiro a expressão sede das almas; ela exprime o amor no que este tem de mais
atuante), passaremos pela vida como cegos.
Uma tese muito bonita de São Tomás afirma que o valor da alma humana é tal, que
Deus não teria criado o universo material se não tivesse criado o universo espiritual.
Uma das razões de ser do universo material é o espiritual. As coisas materiais não
teriam razão de ser, não seriam ontologicamente possíveis e criáveis por Deus, se
não houvesse já criado as espirituais. Deus criar, por exemplo, só um Reno, e ficar
olhando-o correr, não está à altura d’Ele. Ou isso é para enquadrar e complementar
o homem, ou não é nada. As pessoas têm disso uma noção vaga, às vezes não têm
noção alguma.
A substância da sede de almas é dupla. Ela vem da minha atração por Deus, que
nasce de minha própria condição de ser espiritual contingente. Compreendo que não
sou nada, e que há um ser para o qual devo me dirigir. Quanto à sede das almas dos
outros, ela vem da noção da afinidade das almas com Deus, da beleza em que sejam
segundo Deus e do horror em que não o sejam.
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Isso não deve ser concebido em termos abstratos, mas em termos concretos. Trata-
se desta alma, que seria de tal jeito se fosse segundo Deus, mas que cai na adoração
de si mesma, na vulgaridade, no crime, e que
se torna o contrário. Se eu tenho o sensus animarum, para mim o progresso dessa
alma é um gáudio, e o declínio ou estagnação dela é um tormento.
Fala-se em imitação de Cristo. Como é que se pode imitar a Cristo, se não se é assim?
Toda a vida de Nosso Senhor foi isso. Cumpre-nos ser como Ele.
Aplicando esses ensinamentos à nossa vida, concluímos que, para alguém fazer um
apostolado fecundo, precisa ter sede das almas; quer dizer, precisa ter uma noção de
qual é, em tese, a beleza de uma alma; de como a virtude dá à alma o complemento
necessário para ela ser efetivamente bela, porque a virtude é a ordem da alma.
Embora a alma seja bela por sua natureza espiritual, fica desordenada sem a virtude,
e portanto se torna hedionda, pois a corrupção do ótimo é o péssimo. Portanto,
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Se é verdade que o universo inteiro foi criado para que o homem o conhecesse, e
através dele subisse a Deus, a obra-prima do universo sensível, que temos diante de
nós, é o homem. Mas o homem principalmente enquanto alma, mais do que enquanto
corpo, porque não há nada na natureza mais belo do que as almas.
Insistimos em que não há nada de mais belo do que as almas em estado de virtude,
como não há nada de mais horrendo do que as almas em estado de pecado. Desse
modo, a pessoa que queira verdadeiramente ter boa formação católica deve conhecer
a virtude das almas e embevecer-se com isso. Deve ter sede de que essas almas se
assemelhem a Deus, se unam a Deus. Essa pessoa, verdadeiramente apostólica, deve
ter a sede que Nosso senhor Jesus Cristo teve dessas almas, deve ter em si o “sitio”
dEle.
Essa sede tem uma circunstância peculiar, por onde dizer-se sequioso de tal alma é
menos que dizer-se sequioso de uma alma. Porque ter sede de algo é querer como
que beber, incorporar aquilo à própria pessoa. Assim, devemos ter verdadeiramente
sede das almas. Devemos ser tais que a nossa virtude tenha sede de unir-se à virtude
das outras almas.
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É claro que, por detrás dessa sede de almas, o que existe realmente é uma sede de
Deus. Isso não é a amizade romântica, em que uma alma tem sede da outra para
satisfazer seu sentimentalismo, seus gostos e caprichos. Muito menos uma espécie
de simpatia utilitária, para servir-se do outro como de um instrumento, para alguma
utilidade, mas é propriamente uma sede desinteressada, em que a alma deseja a outra
por aquilo que ela é, pela semelhança de Deus que há nela. E por causa disso ela
procura a santidade daquela outra alma.
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de sublime, de ordenado – vamos dizer tudo numa palavra só: de Sabedoria – exista
nas almas.
Quando, por exemplo – e a essa luz tal consideração fica até impressionante – temos
diante de nós um auditório repleto, quando olhamos para um grande número de
almas e podemos imaginar o que há de sabedoria em cada uma delas, qual é o plano
divino de sabedoria completa nessas almas, não podemos nos dispensar de ter sede
de almas. De tal maneira percebemos qual seria, ou qual será a beleza da obra de
Deus, quando o ultramontano completo, o escravo de Nossa Senhora, o Apóstolo
dos Últimos Tempos for construído inteiramente ali, e teríamos vontade de olhar
para cada rosto e dizer: “sitio”, eu tenho sede deste. Eu o quero para Nosso Senhor,
mesmo que ele não saiba que sou eu quem o quer. Quero-o para Nosso Senhor, bom
como ele deve ser.
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