Vous êtes sur la page 1sur 19

Sede de Almas

A SEDE DE ALMAS

(reunião de maio/junho de 1968)

Do alto da Cruz, Nosso Senhor disse: “Sitio”


– Tenho sede (Jo. XIX, 28). Ele tinha sede, e todos os intérpretes concordam em que
essa sede não era apenas a sede física, causada pela efusão abundante de sangue, mas
era sobretudo a sede das almas.

Ouvimos também falar de sede em outras passagens do Evangelho. Certa ocasião


Nosso Senhor fala da sede de justiça, daqueles que têm fome e sede de justiça. Foi
quando enumerou as bem-aventuranças: “Bem-aventurados os que têm fome e sede
de justiça, porque eles serão saciados” (Mt. V, 6).

Podemos dizer também que a alma tem sede de Nosso Senhor, como no Salmo:
“Assim como o cervo suspira pelas fontes das águas, assim a minha alma suspira por
ti, ó Deus” (Ps. XLI, 2). É até frequente, em símbolos eucarísticos, vermos dois
cervos dessedentando-se numa fonte. Essa sede é, evidentemente, a que a alma tem
de Deus. O desejo que nós temos de comungar, a nostalgia eucarística quando nós
não comungamos, é exatamente essa sede.

Então há três espécies de sede que podemos imaginar:

A sede que Deus tem das almas;


A sede que temos de Deus;
A sede que devemos ter, uns das almas dos outros.

Todas essas três sedes têm isso de comum, que são apetências e atrações puramente
espirituais, da alma que deseja uma outra alma. Uma sede inexprimível da parte de
Deus, que não precisa de ninguém, que é perfeito, que se basta a Si próprio, e que
quer condescender em ter sede de nós; uma sede muito menor, mas ardentíssima nos
santos, dos homens para com Deus; e uma sede que o apóstolo tem das almas junto
às quais ele vai fazer apostolado.

Página 1 de 19
Sede de Almas

Quais são as características, quais são as razões de ser dessas sedes? Afinal de contas,
o que é isso, como é que isso se passa nas almas?

Essa questão é muito importante, para nós nos perguntarmos em que medida temos
essa sede, o que devemos fazer para acendê-la em nós, e quais são os fatores que
podem fazer acender ou fazer deperecer essa sede em nós. Para conhecermos isso,
temos que ver se a alma humana deve pedir isso, e no que é legítimo a ela pedir isso.

Para esse efeito é preciso preparar, calcar um pouco o terreno nas nossas almas,
tratando de um outro aspecto da questão, que é o seguinte: As almas que não têm
sede das outras almas, do que é que têm elas sede?

AS ALMAS QUE TÊM SEDE DE ALMAS E AS QUE TÊM SEDE DE


UTILIDADES

Tenho impressão de que há duas espécies de almas: umas que têm sede de almas, e
outras que têm sede de utilidades. As últimas não têm propriamente sede de almas.
A vida delas passa-se pouco mais ou menos indiferente às outras almas. Querem
apenas ter utilidades, que podem ser de várias formas: saúde, conforto, prestígio,
popularidade. Uma das formas dessa utilidade é uma alma sentir o convívio de outra
por causa do instinto de sociabilidade, que impõe a necessidade de um convívio.
Outra forma é o desejo sentimental, o gosto de ser adorada por outra alma. Mas
nenhuma dessas constitui a sede das almas. Essas são maneiras utilitárias.

É preciso dizer que o desejo de ser adorado por outrem, o desejo de sentir o convívio
de uma outra alma, ainda representa uma forma menos vil de egoísmo do que o
egoísmo puramente utilitário: “Eu tenho o que quero, estou bem equipado, tenho
minha casa, meus objetos, a vida do meu corpo está bem atendida, ouço uma música
que agrada a meus ouvidos, como uma comida que deleita o meu paladar, tenho
meus empregados que mantêm minhas coisas em ordem ; portanto, estou atendido
nas minhas necessidades, não preciso de mais nada nem de ninguém”. Isto é uma
forma de utilitarismo do corpo. Enquanto diz respeito ao corpo, é evidentemente
mais baixo do que o que diz respeito à alma, não deixando esta última de ser também
errada.

Há muitos modos de ser, antigos e modernos, que mostram que se vai descambando
do utilitarismo espiritual para o utilitarismo material. Antigamente, por exemplo, a
vida familiar era tal que o convívio de alma era muito intenso, e passava até por ser

Página 2 de 19
Sede de Almas

a principal finalidade da vida de família. Nota-se hoje que esse convívio vem sendo
cada vez menos intenso entre parentes, mas, pelo contrário, a permuta de vantagens
práticas vai cada vez mais dando vida às relações entre eles. Quer dizer, a família
vai refluindo do espírito para a matéria.

Poderíamos então perguntar o seguinte: Essa atração romântica, essa necessidade


romântica de uma alma em relação à outra, no que é parecida e no que é diferente da
sede de almas? O que vem a ser exatamente essa sede de almas, e como é que a
gente pode tê-la? É um assunto que se move numa zona muito cheia de
imponderáveis, e que facilmente pode parecer bizantino.

Sobre a distinção entre a verdadeira sede de almas e essa necessidade romântica


de as almas conviverem umas com as outras, serem adoradas etc., temos que
considerar a existência de três categorias:

Os que têm necessidade de um convívio apenas material;


Os que têm necessidade de um convívio de almas, mas interessado;
Os que têm uma sede desinteressada das almas.

AS ALMAS QUE TÊM NECESSIDADE DE UM CONVIVIO APENAS


MATERIAL

Devemos começar então por analisar a mentalidade daqueles que têm apenas a
apetência de um convívio material, e o que há de errado nisso.

A primeira nota do espírito deles, muito curiosa, é um completo adormecimento de


um traço fundamental do espírito humano. O homem gosta das coisas, seja porque
se parecem com ele e o tonificam, seja porque são diferentes dele, mas de uma
diferença harmônica, e o completam. O espírito humano tem necessidade desse
duplo contato, sem isso ele não vive. Isso é propriamente a respiração da alma
humana. A pessoa a encontrava, por exemplo, na vida de família, na amizade, até na
vida boêmia. Havia um fenômeno de alma, do qual o romantismo, por exemplo, era
a expressão nos assuntos sentimentais.

O que caracteriza as almas das pessoas que caíram no estado de puro utilitarismo
material é que elas não têm a menor necessidade de semelhanças nem de
dessemelhanças. Elas são fechadas em si, como numa torre, e não se incomodam
com o convívio de ninguém que lhes seja semelhante ou dessemelhante. Mais ainda,

Página 3 de 19
Sede de Almas

os objetos materiais que a cercam não têm para ela expressão de alma; têm, quando
muito, uma conotação artística puramente sensível: tal cor agrada aos olhos ou não,
tal som deleita os ouvidos ou não. Mas um significado espiritual, que importe em
afinidade ou em harmonia de dessemelhanças, isso elas não sentem, abstraem-no
completamente.

O calvinista – Tenho a impressão de que os povos


anglo-saxões são muito mais suscetíveis disso do
que os latinos. Por isso nós encontramos nos
primeiros, ou em pessoas de uma forte dose de
anglo-saxonismo, uns tipos característicos disso.

Outro tipo característico é o francês calvinista, ou a


própria estampa representando Calvino: um homem
que podia passar dez mil anos sozinho.
Ele construía doutrinas, mas as doutrinas eram para
uso dele. Se quisesse difundir essas doutrinas, seria
apenas para ter pessoas que o aplaudissem. Mas o
aplauso, para ele, nem era uma coisa muito
importante; a coisa importante era o prazer pessoal
de ter ele feito uma doutrina, e de se aplaudir a si
próprio. Ora, o filósofo não pode ser indiferente a
que outros tomem ou não conhecimento de sua doutrina; ele tem obrigação de comunicá-
la, para o benefício comum dos homens.

No calvinismo, no entanto, há uma espécie de auto-suficiência mórbida, doentia, que


quebra os vínculos das almas entre si. É desnecessário lembrar a diferença desse
espírito com o do monge, que se isola dos homens por amor
de Deus. Eu disse e sustento que se eu conhecer um homem
casto e sem fé, terei pânico dele. Que um homem consiga
ser casto por mera adoração de si mesmo...

Há um modo pelo qual o extremo do amor de si mesmo


toca no preternatural. É quando o indivíduo começa a gozar
os deleites, as fantasias, as mentiras que o demônio põe
nele. É interessado, porque no reino do inferno só existe
interesse, mas aí o interesse procura o preternatural.

Página 4 de 19
Sede de Almas

Tipos britânicos – Outro tipo é o do inglês ou escocês. Um homem que compra


várias garrafas de whisky, tranca-se no quarto no domingo e passa o dia bebendo.
Na segunda- feira cedo, já digeriu a bebedeira e sai. Ele não precisou de companhia.
Para os latinos, para todos os povos onde a proporção do sangue germânico é muito
pequena, embebedar-se sozinho não acontece, é inconcebível.

Nunca ouvi falar de um brasileiro que se tranca no quarto e se embebeda sozinho.


Se ele fosse um prisioneiro, não podendo sair, entre embebedar-se e não se
embebedar, talvez ele se embebedasse. Mas fora disso, seria capaz de fazer um túnel
para alcançar o vizinho de cela, passar-lhe a metade da bebida e se embriagarem
juntos, de tal maneira não se compreende o prazer de uma pura degustação material
sozinho.

É preciso notar que ser avesso, por temperamento, ao convívio social, não é em si
um mal. Mas se consentido, o é. O tipo anglo-saxônico não se importa com isso, e
bebe sozinho. Depois, para os vizinhos, é um senhor muito respeitável, que passou
todo o domingo no seu quarto. De fato, passou bêbado, cantou, caiu, quase morreu,
mas na segunda-feira, pontualmente, a bebedeira dele está reabsorvida e ele vai para
o emprego, apenas com o nariz um pouco vermelho.

Tipos germânicos – Há um tipo de alemão do sul, meio influenciado pela atmosfera


latina, que se embriaga em cervejaria, cantando. Mas um prussiano, não. Ele vai
sozinho para uma floresta, senta-se debaixo de um pinheiro e bebe. No meio de
elaborações metafísicas, porque o alemão não deixa a metafísica.

Existe na Alemanha a lenda da Lorelei. É uma mulher muito bonita, sentada no alto
de um rochedo do Reno, penteando os cabelos dourados com um pente dourado, e
cantando. É uma mulher malfazeja, uma virgem malvada, porque os pescadores do
Reno, quando a noite começa a baixar e o Reno começa a correr sozinho, no silêncio
– vê-se o wagneriano da cena – vão voltando cansados para casa, e ouvem-na
cantando uma melodia sedutora, acariciante e ondulada como as ondas do rio.
Atraídos, fazem os barcos rumar em sua direção, batem em pedras e morrem. A
Lorelei, malvada, fica feliz. E o Reno continua a correr.

No fundo, é um princípio eterno, metafísico, da maldade humana e outras coisas


assim, que estão empenhados na canção da Lorelei. Mas ainda é uma coisa a ser feita
solitária: não tem companhia, não tem instinto de sociabilidade.

Página 5 de 19
Sede de Almas

Tipos norte-americanos – O norte - americano – refiro-me ao americano caricato,


do qual faz propaganda certa grande imprensa internacional – atinge o extremo da
indiferença, porque ele não tem essas necessidades de alma, e sim da pura utilidade
material. Pode estar sozinho, como pode estar em companhia. Quando procura
companhia, realmente é para fugir de um pouco de alma que possa aparecer nele, e
afogar-se no barulho. É o utilitário material. É diferente do prussiano, que pensa em
metafísica quando está sozinho, e não precisa dos outros. A esse tipo de americano
é indiferente estar isolado ou em companhia. Ambas as situações são utilitárias, mas
com estilos diversos de utilitarismo.

As almas de tipo romântico – O romântico sente necessidade de um contato de


alma, quer para se completar, quer para sentir afinidade. Nesse ponto o romântico,
sobretudo o latino, não se contenta com metafísica, mas procura a amizade, e muitas
vezes procura a boemia, mas o faz ainda por uma utilidade. É uma coisa mais nobre,
mas ele a procura ainda para uma utilidade. Há uma utilidade de alma que está
empenhada nisso.

O romântico alemão – Quando vemos todo o modo romântico de considerar a


amizade - o país que mais romantizou a amizade foi a Alemanha – vemos o prazer
da afinidade. Aqueles soldados alemães, que vão para a morte fazendo
Paradenmarsch, a metralha vai dizimando, e eles continuam a marchar. Morrem
numa espécie de ebriedade de se sentirem juntos, de juntos caminharem para a morte,
e de terem superado por esta forma, até esse extremo, o abismo que separa uma alma
da outra. Isso, para eles, é a amizade.

Uma cena característica, incompreensível para brasileiros, é a de dois alemães


tomando chope. Estão conversando sobre um tema qualquer - um negócio, um
partido político ou um músico predileto, por exemplo – “elaboram” e chegam a um
acordo. Quando chegam a uma conclusão, levantam o chope, batem os canecos e
tomam o chope. Ficam então um pouco quietos, gozando a sublimidade do
momento a que chegaram. É o deleite de sentirem a semelhança de um com o outro.

O prazer da dessemelhança – O curioso é que o alemão procura a semelhança


noutro homem; a dessemelhança, ele a procura na mulher. É uma coisa que o latino
não compreende. Por que uma pessoa vai se sobrecarregar com uma mulher
dessemelhante? Pode haver coisa mais aborrecida? A Escritura diz que uma mulher
briguenta é comparável a uma goteira que cai em dia de chuva (Prov. XXVII, 15).
Eu não tenho visto, ou ao menos raramente tenho visto, homem que procura mulher
dessemelhante.

Página 6 de 19
Sede de Almas

Para o alemão, não. A mulher não precisa ser bonita; isso é secundário. A Lorelei
o era, porque tinha todas as qualidades. O bonito é ser uma mulher, entre outras
coisas, engraçada. Conheci um bar alemão, no qual havia uma alemãzona enorme,
dançando como borboleta preta. Os frequentadores alemães achavam aquilo
engraçado. Muitos dos presentes, não alemães, riam de tudo cética e debocha-
damente. Riam do espírito alemão, e por isso era um deboche não bom, pois, no
fundo, riam da seriedade.

Além disso a mulher deve saber dizer coisas surpreendentes e sempre novas para o
homem, e estimulá-lo, pela oposição, a novos pensamentos.

Há ingleses que têm esse gênio. Eu me lembro de ter lido nas memórias do Príncipe
de Gales a narração do encontro dele com a Simpson. Apresentaram-na, e ele
começou uma conversinha a respeito de hotéis, dizendo que os da Inglaterra eram
menos bons do que os da América, de onde ela vinha. Ela então deu uma gargalhada
espirituosa, e disse: “Não pensei que com o Príncipe de Gales se conversasse uma
tal banalidade”. Ele ficou subjugado. Está aí uma provocação inesperada: saiu de
dentro algo que não imaginava, e que começa a brincar com ele. Então o pesadão
fica entusiasmado com a libélula, e vai atrás.

Os Buissonnets – Onde se sente uma forma assim de convívio de alma, muito


elevado – no ambiente do romantismo, mas sem os defeitos do romantismo – é nos
Buissonnets de Santa Teresinha do Menino
Jesus. Quando se vai aos Buissonnets, sente-se
aquele ambiente da “História de uma Alma”.
Percebe-se que Monsieur Martin, com a sua
gravidade, a sua respeitabilidade, o seu espírito
sobrenatural, literalmente alimentava a vida dos
Buissonnets; e que as filhas, durante muito
tempo, viveram da substância espiritual de
Monsieur Martin, de gravitar em torno de sua
alma e de receber o calor do seu espírito. É uma
coisa curiosa, mas para mim os Buissonnets falaram menos de Santa Teresinha,
diretamente, do que ela vista em Monsieur Martin. A grande presença ali é de
Monsieur Martin. O que se compreende, aliás, sendo ele o dono da casa.

Isso que se apresentava com notas religiosas na família de Santa Teresinha


apresentava-se com notas de puro afeto humano na família romântica. De qualquer
Página 7 de 19
Sede de Almas

modo, entrava assim esse desejo de querer e estimar, que era a satisfação de uma
necessidade de alma.

O TIPO METAFÍSICO

Tratarei agora da parte sobrenatural e da parte metafísica, do que vem a ser


propriamente a sede de almas. Consideremos o lado metafísico e de razão natural,
antes de passarmos aos dados da Revelação.

A CONTEMPLAÇÃO METAFÍSICA DA NATUREZA

Retomando um exemplo anterior, podemos perguntar-nos se é censurável ou não o


homem que pensa no Reno, em todos os mistérios, em tudo aquilo que pode
simbolizar um rio caudaloso e profundo que, sem ser olhado por ninguém, corre
durante a noite, nas trevas. Uma coisa dessas eu aplaudo, acho que esse é um modo
elevado de ver as coisas, um modo nobre.

O alemão que se coloca – e daí vêm os mil lados por onde eu gosto da cultura alemã
– no litoral do Báltico, por exemplo, vendo uns pinheirais nativos da região
litorânea, a água descendo na encosta, chocando-se gélida e espumante contra
algumas pedras, o silêncio vazio da natureza; Beethoven com a tempestade, e
sobretudo Wagner, que tem mais categoria, senão como músico, pelo menos como
“pensador”; o alemão que se extasia com a poesia da hecatombe, com finais
wagnerianos, trágicos: isto é ou não é um modo elevado de ver as coisas?

Isso, afinal de contas, é um modo de ver como todas essas coisas naturais são
símbolos de realidades de caráter metafísico superior. E que, portanto, no Reno
que corre à noite, caudaloso, se observa uma ordem natural das coisas, válida,
independente do juízo que os homens possam fazer a respeito dela. E se nota que o
Reno não existiria desse modo se não houvesse um Espectador (com E maiúsculo)
que o vê, e para o qual ele corre; se não houvesse um autor que o tivesse feito. Algo
fala de Deus.

A CONTEMPLAÇÃO METAFÍSICA DESORDENADA: O EGOISMO, O


TERMO FINAL SOU EU MESMO

Diante dessa posição metafísica ou wagneriana - vamos rotulá-la assim – o homem


pode tomar uma atitude ordenada e outra desordenada; como, aliás, ele pode fazer

Página 8 de 19
Sede de Almas

diante de tudo, pois em face de tudo há uma ordem e uma desordem. Trata-se então
de perguntar como é uma posição e a outra.

A posição desordenada consistiria em dizer: “Eu captei, eu percebí o mistério desse


Reno que corre durante a noite; percebi o mistério desses pinheirais; percebi a beleza
disso. Como a minha alma se sente grande ao considerar esse mistério! Como eu
subo e cresço, desenvolvendo-me na meditação disso! Como isso é um manjar
superior para meu espírito! Como eu me enlevo com a grandeza que adquiri com
isso! Como eu me inebrio e me torno radioso com essa grandeza que eu mesmo
adquirí!”

O termo final da meditação não é o Reno nem é Deus, que criou o Reno e é o Divino
Espectador diante do qual o Reno corre, mas sou eu, enquanto tendo haurido uma
grandeza nessa consideração. Aqui está a posição egoística e desordenada.

Essa posição leva o homem a fechar-se, a não querer se abrir nem sequer para
os discípulos. Leva-o a pensar o seguinte: “Ó homens estultos! Eu passo por esse
mundo desconhecido, mas não comunico a vocês o oceano que levo dentro de mim.
Eu vi, eu sei, dentro do meu espírito habitam esses valores que vocês, ricaços
vulgares ou plebe ignara, são incapazes de compreender. Quando vou ao restaurante,
sento-me no canto, e enquanto a orquestra toca Wagner, olho com piedade para todo
mundo, porque só eu o compreendí. Na minha alma há um santuário interior, no qual
repercutem esses valores. Nesse santuário há um ídolo, e esse ídolo se chama Eu. Eu
me adoro, tendo captado isso”. Essa é a posição fundamentalmente desordenada.

Essa posição não dá sede das almas, mas também não dá sede de Deus. Eu me
dessedento em mim, eu me bebo. É uma coisa monstruosa, mas eu me nutro de mim.
É como uma pessoa que começasse a comer seus próprios dedos e seus próprios
braços: “Eu não preciso de nada nem de ninguém. O termo final de minha meditação
sou eu. O meu ídolo, diante do qual eu vivo e para o qual eu vivo, sou eu,
compreendente e enriquecido dessas coisas”.

A CONTEMPLAÇÃO METAFÍSICA ORDENADA: ABNEGAÇÃO, ENLEVO,


VENERAÇÃO, TERNURA E AMOR

A posição ordenada é a que provoca a abnegação. Diante desse Reno que corre, desse
mistério do Reno e da grandeza que se apresenta a mim com isso, deve haver um
primeiro movimento de enlevo. Quer dizer, depois do conhecimento, uma

Página 9 de 19
Sede de Almas

veneração: “Que coisa enorme! Por detrás disso há um Deus, único e verdadeiro, do
qual isso não é senão um símbolo e uma manifestação insuficiente e contingente,
como todo símbolo e toda manifestação. Em Deus isso existe, mas de modo incriado,
que eu nem posso imaginar. Como eu venero esse Deus que é assim!”

De outro lado, ternura e amor. Não é só admiração e respeito, mas também amor:
“Como Ele é superior a mim! Como é adorável amar Alguém tão superior a mim, e
que me ajuda a sair de dentro de minha própria charneca, de minha miséria, de minha
contingência, para amá-lo desinteressadamente, porque Ele é Ele”. Esta é a posição
verdadeira e desinteressada.

É certo que nessa posição desinteressada eu encontro a satisfação de tudo o que a


minha alma precisa. Eu encontro a divina afinidade comigo mesmo, e encontro ao
mesmo tempo a divina dessemelhança de mim. Minha alma encontra aí um repouso
inteiro. Mas se, por absurdo, eu não encontrasse aí o repouso inteiro, ainda O amaria,
O respeitaria, O veneraria, porque Ele é Ele, e porque Ele é daquela maneira.

A CONTEMPLAÇÃO METAFÍSICA ORDENADA:


DESINTERESSADA-MENTE O TERMO FINAL NÃO SOU EU, É ELE!

É uma posição por onde o termo final não sou eu, mas é Ele. O movimento não é de
egoísmo, mas é de me dar. É verdade que eu lucro tudo nesse movimento, mas
não é a razão do meu movimento; a razão é dar-me, desinteressadamente. Isso é
propriamente o holocausto. É menos dar a minha vida do que dar o meu ser, dar
minha alma, dar meu amor, dar a homenagem da minha inteligência e de todo o meu
ser, por causa dAquele que o merece. Essa é a posição adequada da alma, e que
provoca nela a sede de Deus.

Resta-me mostrar como isso provoca paralelamente a sede das almas. A sede de
Deus é uma coisa tão conhecida, que vale a pena fazer somente de passagem uma
observação. Creio que se fazem muito poucas meditações como essa, começando
por mostrar Deus enquanto admirável, para depois mostrá-lo enquanto amável. De
fato só se ama inteiramente aquilo que se admirou inteiramente. O primeiro elemento
do amor é a admiração. O mandamento “amar a Deus sobre todas as coisas” inclui
o admirar a Deus sobre todas as coisas e reconhecer as sublimidades e excelsitudes
de Deus, por cima e como fim do caminho de todas as sublimidades e excelsitudes
que podem ser consideradas. Nesse sentido, a natureza é de fato um manancial

Página 10 de 19
Sede de Almas

inesgotável. O que se pode considerar na natureza foi feito para nós considerarmos,
e nós devemos de fato considerá-las.

PASSANDO DO NATURAL MATERIAL PARA O NATURAL ESPIRITUAL

Passemos agora do natural material – o Reno, afinal, é apenas matéria – para o


natural espiritual. Este último deve me levar a reconhecer que, por mais bonita que
seja a natureza, todas as suas belezas são menos belas do que a alma humana, e que
esta, considerada em si, como um ser capaz de pensar e de querer, de tomar atitude
própria perante as coisas, vale incomensuravelmente mais do que as coisas perante
as quais esse ser toma posição.

Quer dizer, vale mais Wagner – que, aliás, eu censuro – musicando o Reno do que
o próprio Reno. Que exista uma criatura capaz de interpretar o Reno, de analisá-lo,
de formar um juízo e um ato de vontade a respeito dele, é mais belo do que o próprio
Reno. Eu preciso ter a noção do valor de cada alma, para ter a noção exata do valor
do Universo. Enquanto eu ficar em considerações a respeito de graminha, de
florzinha, de queda d’água majestosa, de pinheiro do Báltico, ficarei num nível baixo,
porque por mais altas que sejam as considerações a que tudo isso se presta, a alma
humana vale mais do que tudo isso. E se não sou capaz de perceber a beleza espiritual
por cima da beleza material, não compreendi nada do Universo.

Tenho a impressão de que essa é uma das noções de que o homem contemporâneo é
mais pobre. Ele não sabe compreender a beleza de uma alma, não sabe entender quão
bela é qualquer alma, até mesmo a do último bêbado maltrapilho que a gente
encontra na rua. Eu gostava de observar alguns mendigos que havia em frente de
nossa Sede da Martim Francisco, porque percebia neles, apesar de serem
extremamente miseráveis, uma centelha no fundo dos olhos. E essa centelha da alma
humana, no fundo do lodo e da sujeira, era um particular elemento de realce. Em
toda alma humana ela existe, e toda alma – qualquer que ela seja, desfigurada pelo
pecado original, pelos pecados atuais – tem pelo menos uma beleza potencial
própria, que deveríamos saber entender.

Tenho impressão de que essa noção da beleza das almas é uma noção para a qual a
nossa educação não nos prepara, e essa é a razão pela qual passamos junto dos outros
sem saber vê- los, sem saber entendê-los, sem saber ter em relação a eles sentimentos
de afinidade nem de heterogeneidade, mas apenas de birras, fobias e simpatias.

Página 11 de 19
Sede de Almas

Enquanto uma alma não está condenada ao inferno – mesmo a dos bêbados, das
pessoas pelas quais sentimos repulsa – existe algo que está sendo procurado pela
graça, visitado pela graça, algo que ainda pode vir a ser bom. E se pode perceber
nela, ainda que esteja carregada de todas as culpas possíveis, o que seria se fosse
boa. Percebendo-se o que seria aquela alma humana na sua ordem, no seu esplendor,
por uma espécie de reconstituição quase arqueológica, tem-se uma censura ainda
maior do homem, porque se vê qual é a obra divina que ele espandongou para dar
naquilo. Mas compreende-se o que é que ele seria.

Creio que era isso que levava Nosso Senhor a ter paciência com os apóstolos infiéis.
Vê-los fazer aquele papel, depois da Ceia Eucarística, é uma coisa abaixo de zero.
Como é que Ele continuou a amá-los? Um dos elementos desse amor era a
consideração do que havia neles de potencialmente bom. Ele sabia que iam se
transformar, quando recebessem o pentecostes, em homens santos e confirmados em
graça.

A AUTÊNTICA SEDE DE ALMAS

Se eu tenho noção da beleza das almas, considerando-as eu me elevo a Deus, mais


do que pelas coisas materiais, mais do que através do Reno. Por uma questão de
afinidade que é invencível, que tem suas raízes na própria metafísica, aquilo que
toca aos seres da minha própria natureza toca a mim mesmo. Não por egoísmo, mas
por conaturalidade.

A CONATURAIDADE É O FUNDO DA SEDE DE ALMAS

Quando eu bato num cristal e obtenho uma nota, os outros cristais capazes de emitir
a mesma nota vibram com isso. É uma conaturalidade, uma participação numa
mesma natureza, que não tem, em si mesmo, um caráter egoísta.

Quando eu tenho o sensus animarum, e através disso subo até Deus, nada me agrada
mais do que serem as outras almas habitadas por Deus, possuídas por Ele, serem por
assim dizer “deiformes”. Porque eu compreendo, a bem dizer na minha própria
natureza, como é horrível que aquela alma não seja segundo Deus. Compreendo a
injúria que há para Deus, a Quem eu amo, que aquela alma não seja segundo Ele.
Por outro lado, compreendo como é admirável que a alma seja segundo Deus, como
Lhe dá glória que seja segundo Ele.

Página 12 de 19
Sede de Almas

Por esse amor que concebí em relação a Deus, atuando e movimentando essa
conaturalidade, eu tenho sede das almas. A sede e o zelo das almas vêm disso. Supõe
uma estrutura de espírito por onde se conheça o valor de uma alma, se tenha subido
até Deus, se saiba medir e sentir a ordem profunda que há em que uma alma seja
segundo Deus, e a desordem profunda que há em que uma alma seja contra Deus,
desconforme a Deus.

À FORÇA DE CONATURALIDADE OBTEM-SE O SENSO PSICOLÓGICO

Isso não deve ser concebido apenas teoricamente, mas visto em cada alma. Quando
se é exigente em ter uma imagem bem precisa de como é Deus, do que é a
conformidade com Deus, e intransigente em relação à desconformidade com Deus,
sente-se isso nos outros. Daí vêm o senso psicológico e o amor às almas. Tornamo-
nos psicólogos, às vezes com o auxílio da graça.

Tomemos o exemplo de um músico ouvindo um coro. Se é bom músico,


imediatamente sente quando uma nota está errada. Um de nós, por exemplo, pode
ouvir e não perceber. Por quê? Porque os valores da música estão de tal maneira
presentes no seu espírito, ele os ama de tal maneira, e com isso detesta de tal maneira
a cacofonia, que se torna perspicaz à força de conaturalidade, de amor e de
execração.

Isso se transpõe para o amor de Deus. O senso psicológico não é outra coisa senão
notar a harmonia ou a cacofonia das almas. É por causa disso que, em geral, as
pessoas que têm muita sede das almas são psicólogas. Naturalmente, com um nível
maior ou menor de explicitação, de intelectualização, etc. E é por causa disso
que todo santo é muito penetrante, embora, infelizmente, nem todo penetrante seja
santo. Não conhecemos um só santo – embora vários deles fossem homens do povo,
rudes e ignorantes – que não tenha tido esse senso para tratar com as almas, esse tato,
essa finura, esse discernimento.

UM EXEMPLO DE FALTA DE “SENSUS ANIMARUM”

Temos um exemplo do contrário num caso que me contaram. Uma senhora de quase
oitenta anos foi pedir comunhão numa igreja. Uma tal senhora vai com dificuldade
à Igreja, ainda mais ela, que não tinha automóvel e precisava tomar ônibus ou táxi.
Quando falou com o Padre, este lhe respondeu: “Não dou comunhão à senhora,

Página 13 de 19
Sede de Almas

porque há dez minutos que o sacrário está fechado”. Há uma primeira consideração
que salta aos olhos: essa senhora está em idade de morrer, e quem sabe não seria essa
comunhão a última de sua vida. É um pensamento que deveria comover uma alma
qualquer, quanto mais uma alma sacerdotal.

Mas eu não quero ficar aí. O Padre deveria olhar para aquela alma e pensar o
seguinte: “Eu sei o que é a união de uma alma com Deus, a alegria que Deus tem
nisso. Há aí um valor, um bem, e é bom que essa alma receba a Deus. Entretanto, eu
sou indiferente a isso. Olhando para essa alma, e vendo o que ela em concreto lucra
recebendo o Santíssimo Sacramento, sou indiferente a que ela tenha esse acréscimo
de virtude. Não me diz nada que essa alma fique melhor. Diz-me mais o regulamento
de minha igreja, que eu quero cumprir para o meu comodismo”. O Padre estava na
sacristia; era só atravessar a capela-mor e entrar na capela do Santíssimo; ele tinha
preguiça de dar talvez esses dez ou quinze passos, abrir o sacrário e dar a comunhão.
Para ele, o poupar-se esse esforço valia mais do que o acréscimo de luz, de beleza,
de formosura, que aquela alma podia receber.

Trata-se de um Padre que não tem nenhum sensus animarum. Não espanta que, na
hora de dar um conselho, esse homem não saiba dá- lo, ache cacete dar um conselho.
Acho natural, porque ele não entendeu o bê-a-bá de nada daquilo. Que contas ele
dará a Deus por ser assim? Fica-se horrorizado em pensar.

A SEDE DE ALMAS E OS APÓSTOLOS DOS ÚLTIMOS TEMPOS

Quando estou em contato com as outras almas, sei senti-las? Sei amá-las? Tenho
sede das almas? Instintivamente ou racionalmente a sede delas faz-se disso. Não
consigo atrair para Nossa Senhora uma alma da qual eu não tenha sede. Nada faz
tão bem para uma alma – ainda que ela rejeite – quanto sentir que temos sede dela.
Não para nós, mas para Nossa Senhora, para Deus Nosso Senhor. Sede
desinteressada de alguém que quer fazer bem a uma alma, e depois de olhar a sua
beleza, diz: Gratias agimus Tibi, Domine, propter magnam gloriam tuam – Eu vos
dou graças, ó Senhor, por causa de vossa grande glória nessa alma.

Tenho a impressão de que o ponto de partida fraco de tudo isso é que nós não
sabemos sentir as almas, não sabemos querê-las, o mundo delas é um mundo fechado
para nós, e o resultado é que nós não temos sede das almas. Há toda uma espécie de
animologia, de ciência das almas, que nós deveríamos ter.

Página 14 de 19
Sede de Almas

De outro lado, acho que ninguém consegue ser Apóstolo dos Últimos Tempos se
não tem essa sede das almas. Não vejo como se possa ser Apóstolo dos Últimos
Tempos, ou apóstolo de qualquer tempo aliás, sem ter essa sede das almas. O que
resulta naqueles tais apostolados frios, os tais apostolados gélidos, a tal burocracia,
a tal coisa que não vai para a frente, que não pega fogo em nada. Por quê? Porque
não há o sensus animarum, não se cultiva este senso; aquela famosa divisa de São
João Bosco, emprestada à espiritualidade de S. Francisco de Salles: Da mihi animas,
coetera tolle – consubstancia este espírito : Dai-me almas, e tirai-me todo o resto!
Não devemos nos incomodar com o resto, e pedir as almas. Para Deus, não para nós.

Este é um ponto que na nossa formação ainda mereceria mais atenção, porque sinto-
o indispensável.

O grande meio para se chegar a ter sede de almas é a oração, pois todo dom perfeito
vem
do Espírito Santo, pela intercessão de Nossa Senhora. Portanto, a primeira coisa é
pedir. A par da oração, compreender que as almas são a única coisa que
verdadeiramente vale no mundo, e se nós não tivermos o espírito aberto para esse
amor às almas, para essa sede das almas (a palavra amor está tão profanada, que eu
prefiro a expressão sede das almas; ela exprime o amor no que este tem de mais
atuante), passaremos pela vida como cegos.

Uma tese muito bonita de São Tomás afirma que o valor da alma humana é tal, que
Deus não teria criado o universo material se não tivesse criado o universo espiritual.
Uma das razões de ser do universo material é o espiritual. As coisas materiais não
teriam razão de ser, não seriam ontologicamente possíveis e criáveis por Deus, se
não houvesse já criado as espirituais. Deus criar, por exemplo, só um Reno, e ficar
olhando-o correr, não está à altura d’Ele. Ou isso é para enquadrar e complementar
o homem, ou não é nada. As pessoas têm disso uma noção vaga, às vezes não têm
noção alguma.

A substância da sede de almas é dupla. Ela vem da minha atração por Deus, que
nasce de minha própria condição de ser espiritual contingente. Compreendo que não
sou nada, e que há um ser para o qual devo me dirigir. Quanto à sede das almas dos
outros, ela vem da noção da afinidade das almas com Deus, da beleza em que sejam
segundo Deus e do horror em que não o sejam.

Página 15 de 19
Sede de Almas

Um dos elementos desse senso é a conaturalidade. Àquilo que é da minha própria


natureza eu sou muito mais sensível. Quase que involuntariamente, por instinto,
independente da razão, repercute em mim. Desejo que as coisas sejam deiformes.

Isso não deve ser concebido em termos abstratos, mas em termos concretos. Trata-
se desta alma, que seria de tal jeito se fosse segundo Deus, mas que cai na adoração
de si mesma, na vulgaridade, no crime, e que
se torna o contrário. Se eu tenho o sensus animarum, para mim o progresso dessa
alma é um gáudio, e o declínio ou estagnação dela é um tormento.

Fala-se em imitação de Cristo. Como é que se pode imitar a Cristo, se não se é assim?
Toda a vida de Nosso Senhor foi isso. Cumpre-nos ser como Ele.

RECAPITULANDO O ANALISADO ATÉ AQUI

Antes de continuarmos a desenvolver o tema “Sede de Almas”, recapitulemos em


outras palavras o que até aqui vimos.

Iniciamos lembrando que Nosso Senhor, pelo menos em duas passagens do


Evangelho, fala de sede. A mais notável foi quando Ele, do alto da Cruz, disse:
“sitio” – Tenho sede (Joan. XIX, 28). Isso queria dizer que Ele tinha sede das almas.
É claro que tinha também uma sede material, física, ocasionada pela quantidade de
sangue derramado. Mas essa sede material, que O levou a lamentar-Se e a pedir
água, era um símbolo material da enorme sede das almas que Ele tinha. E todos os
intérpretes do Evangelho que li ensinam esse “sitio” com este sentido.

Também há um outro momento, quando fala das bem-aventuranças, em que Ele se


refere à fome e sede de justiça (Mt. V, 6). A justiça, no Evangelho, não é apenas a
virtude pela qual se dá a cada um o que é seu, mas é o conjunto das virtudes, é a
santidade. São bem-aventuradas as almas que têm fome e sede de santidade, porque
elas serão saciadas.

Aplicando esses ensinamentos à nossa vida, concluímos que, para alguém fazer um
apostolado fecundo, precisa ter sede das almas; quer dizer, precisa ter uma noção de
qual é, em tese, a beleza de uma alma; de como a virtude dá à alma o complemento
necessário para ela ser efetivamente bela, porque a virtude é a ordem da alma.
Embora a alma seja bela por sua natureza espiritual, fica desordenada sem a virtude,
e portanto se torna hedionda, pois a corrupção do ótimo é o péssimo. Portanto,

Página 16 de 19
Sede de Almas

a natureza espiritual, como qualquer coisa, só encontra a verdadeira beleza quando


é ordenada. Desse modo a virtude é, por assim dizer, a fina ponta da beleza da alma.
A alma tira sua beleza da virtude.

Se é verdade que o universo inteiro foi criado para que o homem o conhecesse, e
através dele subisse a Deus, a obra-prima do universo sensível, que temos diante de
nós, é o homem. Mas o homem principalmente enquanto alma, mais do que enquanto
corpo, porque não há nada na natureza mais belo do que as almas.

Insistimos em que não há nada de mais belo do que as almas em estado de virtude,
como não há nada de mais horrendo do que as almas em estado de pecado. Desse
modo, a pessoa que queira verdadeiramente ter boa formação católica deve conhecer
a virtude das almas e embevecer-se com isso. Deve ter sede de que essas almas se
assemelhem a Deus, se unam a Deus. Essa pessoa, verdadeiramente apostólica, deve
ter a sede que Nosso senhor Jesus Cristo teve dessas almas, deve ter em si o “sitio”
dEle.

Essa sede tem uma circunstância peculiar, por onde dizer-se sequioso de tal alma é
menos que dizer-se sequioso de uma alma. Porque ter sede de algo é querer como
que beber, incorporar aquilo à própria pessoa. Assim, devemos ter verdadeiramente
sede das almas. Devemos ser tais que a nossa virtude tenha sede de unir-se à virtude
das outras almas.

O melhor de nosso instinto de sociabilidade é a apetência que tem nossa virtude de


encontrar-se com a virtude das outras almas, e de corroborar-se ali, para assim
crescer no amor às virtudes e crescer no amor de Deus. Quando duas almas virtuosas
se conhecem reciprocamente, saciam a sede que uma tem da outra, de acordo com o
princípio metafísico simile simili gaudet – Ao semelhante agrada o semelhante.

Compreendemos com isso certas grandes efusões dos santos, quando se


encontravam. Por exemplo, o famoso encontro entre São
Domingos, São Francisco e Santo Ângelo, carmelita. Eles se encontraram numa
sacristia de Roma, parece-me, e não se conheciam. Quando se viram, caíram os três
de joelhos, um diante do outro. Embora fossem para lugares diferentes, para missões
diferentes, caíram de joelhos, cada um diante dos outros, e cantaram louvores a Deus.
E um deles – creio ter sido Santo Ângelo – previu o futuro dos outros, com tudo que
lhes ia acontecer.

Página 17 de 19
Sede de Almas

Quando se pensa nesse encontro, gostaríamos de ocupar o canto da sala, qualquer


lugar minúsculo, e ficar cem anos apreciando a cena, porque é realmente
maravilhosa. Vê-se que esses santos tiveram sede um do outro. Por assim dizer, a
alma de cada um penetrou na alma do outro, uniu-se a ela, e ali se satisfez e se
dessedentou.

É claro que, por detrás dessa sede de almas, o que existe realmente é uma sede de
Deus. Isso não é a amizade romântica, em que uma alma tem sede da outra para
satisfazer seu sentimentalismo, seus gostos e caprichos. Muito menos uma espécie
de simpatia utilitária, para servir-se do outro como de um instrumento, para alguma
utilidade, mas é propriamente uma sede desinteressada, em que a alma deseja a outra
por aquilo que ela é, pela semelhança de Deus que há nela. E por causa disso ela
procura a santidade daquela outra alma.

Esse é o ponto sensível do apostolado. Nós temos senso apostólico quando


percebemos as outras almas. Às vezes, num indivíduo desprezível que possa andar
pela rua, olhamos e percebemos: “Esse homem, se fosse virtuoso, seria de tal jeito.
Como seria belo que ele fosse desse jeito! Como eu estaria disposto a trabalhar, a
lutar, a rezar, a sofrer para conseguir que ele fosse desse jeito! Ainda que ele não me
conhecesse e não soubesse quem foi que lutou, que rezou por ele, pouco importa. Eu
o veria passar regenerado, e compreenderia que a obra de Deus, tendo-o em vista, se
realizou”. Então exultaria do fundo de minha alma, ao ver essa obra, porque eu amo
as obras de Deus em si mesmas, porque elas vêm dEle, e por elas subo até Deus.
É uma forma de amizade que não exige retribuição. Eu não faço questão de que
aquele que ficou bom, tendo eu servido de instrumento, me agradeça. Não faço
questão de que me estime por isso, a não ser na medida em que a estima é uma
virtude que ele deva ter. Mas se for melhor que ele nunca saiba que fui eu, também
fico satisfeito. O que eu quero, o que eu tenho, é sede da alma dele para o Sagrado
Coração de Jesus, para o Imaculado Coração de Maria; para satisfazer essa sede de
almas que Eles têm, e que me comunicam. Tenho a sede de que a alma dele seja
santa.

Faço questão de desinfetar – no sentido literal da palavra – esse resumo introdutório


de qualquer odor de “heresia branca”. Quando um de nós tem sede de almas, tem
sede de que a alma seja ultramontana. Não de que ela tenha os bons sentimentos
langorosos daquelas formas adocicadas e sentimentais de piedade que, no fundo, a
pessoa usa sem nenhuma visão da realidade. Não é isso. Nós temos sede de que o
verdadeiro espírito da Igreja Católica, no que ele tem de grande, de sério, de sábio,

Página 18 de 19
Sede de Almas

de sublime, de ordenado – vamos dizer tudo numa palavra só: de Sabedoria – exista
nas almas.

É disso que se tem sede. Todas as virtudes particularmente consideradas – a


castidade, a veracidade, a piedade, a honestidade pecuniária – não são senão
aplicações da Sabedoria a campos concretos. E nós temos sede é de que essas almas
tenham a Sabedoria, essa sabedoria séria, grave, sublime, calma, ordenada, super-
combativa, super-dinâmica, mas super-contemplativa e super-plácida, que dá
verdadeiramente a nota do espírito da Igreja Católica.

Quando, por exemplo – e a essa luz tal consideração fica até impressionante – temos
diante de nós um auditório repleto, quando olhamos para um grande número de
almas e podemos imaginar o que há de sabedoria em cada uma delas, qual é o plano
divino de sabedoria completa nessas almas, não podemos nos dispensar de ter sede
de almas. De tal maneira percebemos qual seria, ou qual será a beleza da obra de
Deus, quando o ultramontano completo, o escravo de Nossa Senhora, o Apóstolo
dos Últimos Tempos for construído inteiramente ali, e teríamos vontade de olhar
para cada rosto e dizer: “sitio”, eu tenho sede deste. Eu o quero para Nosso Senhor,
mesmo que ele não saiba que sou eu quem o quer. Quero-o para Nosso Senhor, bom
como ele deve ser.

Página 19 de 19

Vous aimerez peut-être aussi