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AMPLITUDE Número 02 — Fevereiro 2016

Poeta em
Destaque:
Júlia Lemos

E MAIS: Cinema - Fotografia - Música - HQ 1


SUMÁRIO
AMPLITUDE é uma revista de cultura
evangélica, com foco principal em fic-
ção e poesia. Mas nosso leitmotiv,
nosso motivo de ser e de existir, é a Revista Amplitude - Número 02 - Fev 2016
arte cristã em geral: Transitamos por Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . 03
música, cinema, fotografia, artes plás-
ticas e quadrinhos. Publicamos arti- Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .04
gos, estudos literários, crônicas e rese-
Conto: O canto do sabiá preto / Lindolfo Weingärtner . . . . . .05
nhas.
Luminares / Joana Cristina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .10
Nossa intenção diz respeito àquela
despretensiosa excelência dos humil- Cinema: 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . . . . . . . . . . 08
des. Nosso porto de partida e porto de
Conto: A Morte da Encrenqueira / Judson Canto . . . . . . . . . . .11
chegada é Cristo. Nosso objetivo é
fomentar a reflexão e a expressão, Jardim dos Clássicos / Eça de Queirós . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .12
AMPLIAR visões, entreter com valores
Crônica / Max Lucado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .17
cristãos, comunicar a verdade e o belo
e estimular o engajamento artístico/ Conto: O Poeta do Salmo Exilado / J.T.Parreira . . . . . . . . . . . . . 18
intelectual entre nossos irmãos. Nosso
preço é nenhum: a revista circula gra-
Poeta em Destaque / Julia Lemos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
tuitamente, no democrático formato Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
pdf.
Conto: A Troca / Joed Venturini . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .24
COLABORE:
Galeria / Lya Alves . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .30
Será uma felicidade ter você como um
colaborador de AMPLITUDE. Envie-nos Conto: A Matilha Fantasma / Sammis Reachers . . . . . . . . . . . . 32
seu material para avaliação (conto,
Notas Culturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37
crônica, artigo, estudo literário, traba-
lho em artes plásticas ou fotografia Cinema / 3º Festival Nacional de Cinema Cristão . . . . . . . . . . . 38
artística, resenha ou crítica de filmes,
Conto: O Hóspede / Florbela Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
livros ficcionais ou poéticos e (boa,
per favore) música cristã/evangélica, Luminares / Helena Branco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40
JUNTAMENTE com breve biografia.
Conto: O Menino / Myrtes Mathias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .41
Envie também notícias sobre eventos
artísticos, lançamento de livros e
Hot Spots: Ramon Llull (Lúlio) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .44
quaisquer notas culturais envolvendo Poesia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
arte/artistas evangélicos que você
julgar relevantes.
Especial / Estêvão para tempos de perseguição . . . . . . . . . . . . 47
E escreva-nos ainda para prosear, in- Resenhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
dagar, criticar, elogiar...
Luminares / Camilo Borges Júnior . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .52
Nossos e-mails: Crônicas / Chris Amag & Rofa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .53
revistaamplitude@gmail.com
sammisreachers@ig.com.br
Álbum / William Rosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .54
HQs . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
Facebook:
www.facebook.com/RevistaAmplitude Parlatorium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56
Blog: CAPA: He Qi, Calling Disciple (Jesus chamando os discípulos) - trecho. He Qi é um artis-
ta cristão chinês que tem feito um trabalho assaz singular, e gentilmente cedeu sua
www.revistaamplitude.blogspot.com.br obra para ilustrar a capa de AMPLITUDE. Conheça mais do trabalho do autor:
http://www.heqiart.com
Editor: Sammis Reachers 2
Editorial
É com felicidade que apresentamos o segundo número de AMPLITUDE. Durante es-
tes seis meses de espera ou gestação desta segunda edição, pudemos auferir a boa recepção que a
nossa primeira edição obteve entre autores e leitores. Isso nos incentiva a avançarmos na jorna-
da, cientes da seriedade e importância da iniciativa de reunir em revista, o melhor da produção
literária poética e ficcional, além de outras expressões artísticas levadas a cabo por cristãos pro-
testantes e de outras filiações.
Vamos ao panorama da edição: Na seção Hot Spots, a sapiência de um dos maiores nomes da
mística cristã, Ramon Llull (Raimundo Lúlio). Em Galeria, a obra da pastora, artista plástica,
grafiteira, quadrinista e ativista cultural Lya Alves. Na seção Cinema, destacamos a realização da
terceira edição do Festival Nacional de Cinema Cristão.
Esta edição chega inaugurando diversas novas seções. Uma delas é Poeta em Detaque, inician-
do com a obra da pernambucana Júlia Lemos.
Inaugurando a nossa seção Especial, de enfoque temático, temos como mote Estêvão para tem-
pos de perseguição, uma mini-antologia reunindo as percepções de seis excelentes poetas acerca de
nosso protomártir, sobre quem nos é oportuno refletir em tempos de recrudescimento das perse-
guições aos cristãos ao redor do globo.
E as artes visuais ganharam ainda mais destaque: além da já citada seção Galeria, e de HQ
(História em Quadrinhos), inauguramos mais uma seção, Luminares, destacando, em singelas inser-
ções, a pintura, ilustração ou desenho de nossos concidadãos de Reino. E a Fotografia chega com
força na seção Álbum, abrindo as portas com a obra de William Rosa.
Os contos, como diria meu pai, estão de lascar: Iniciamos com Eça de Queiroz, na seção Jar-
dim dos Clássicos, apresentando o conto O Suave Milagre. Seguimos com o humor e a precisão de
Judson Canto (A Morte da Encrenqueira); a dramaticidade soberba de J.T.Parreira (O Poeta do Sal-
mo Exilado); Florbela Ribeiro relatando (em O Hóspede) sobre o príncipe que tinha por norma se
hospedar junto aos pobres; Lindolfo Weingärtner num conto terno e luminoso (O canto do sabiá
preto); Joed Venturini com o impactante & metafísico A Troca; este vosso humilde escriba, num
conto de terror(!?), A Matilha Fantasma; e concluímos com nossa saudosa e maravilhosa Myrtes
Mathias, num conto com um toque arrebatador (O Menino).
Queridos trinta leitores, agora uma nota triste: havia idealizado a periodicidade da revista pa-
ra semestral, mas percebo agora que infelizmente não poderei manter tal ritmo. Não que o traba-
lho seja tanto (mesmo que seja! Rsrs), embora eu faça aqui tudo sozinho, mas o fato se dá em vir-
tude de meu pouco tempo. Retomei estudos universitários, e, junto ao trabalho secular e minhas
outras iniciativas, das quais não posso abrir mão, percebo que o tempo de seis meses não é sufici-
ente, ao menos nesse momento de minha vida, para dar conta de uma publicação desta magnitu-
de. Portanto, fica em aberto, até palavra em contrário, a periodicidade de AMPLITUDE. Lem-
brando: a revista não acabará; apenas terá expandido seu período de gravidez. E aproveitando o
ensejo, não deixem de orar por nosso bebê!
E, como sempre, paz e bem e uma boa leitura!

Sammis Reachers, editor

Nota: Tenho buscado, nas seções de contos e poesia, efetuar um rodízio de autores. Assim, temos nesta edição em
sua grande maioria autores não publicados na edição anterior. Com isso buscamos dar voz a tantos quanto possí-
vel, e apresentar aos leitores sempre um melhor panorama da grande e boa produção de nossos irmãos.
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OFEREÇO A MINHA MORTE
Prenda
J.T.Parreira
Karla Waters
Ofereço a minha morte. Levanto
O meu sangue no silencio das feridas. Das entranhas
As estranhas
As maos abrem-se rasgadas, sao duas
Dos meus labios
Cartas abertas de amor. Para os teus
Um horizonte, o meu lado esquerdo
Abre-se para o voo do meu coraçao No ventre
Abandonado por Deus, ofereço a minha morte De minh'alma
É que a poesia
Serei retirado da cruz por maos amorosas.
Se concebeu

Das cortinas
NÔVO ! Dos meus veus
Helena Branco Da materia uterina
o som trazia Ate os ceus

abs(traído)...harpeando luz a lagrimas na vidraça Éis que a palavra surge


o ANO começa... perpassa... Vindo de outra alma ruge
Se encontra em minha casa
rendilhando suspiros consumindo notas breves d alaude É dentro dela cria asa
ritmo insondavel batuta esgrimida d promessa comovida
O poema enfim nasceu
por STRAUSS !
Vindo de gritos e dores
danço em pontas e tules a esbelteza no espaço Contudo, cheio de esplendores
abraçada pela cintura o tempo escreve...avida
a rosa perfumada
e o AMOR que...murmura Escuro vale
A VIDA! Patrícia Costa

COM DEUS Éscuro vale este


onde o medo
Alfredo Pérez Alencart (Espanha) quer ser companhia
e o descredito
Aberto estou, Deus, ao teu relampago eterno,
busca titubear
pregado ao chao onde escuto um rouxinol a fe
que canta quando me estendo sobre a Cruz!
Das Tuas maos
Nem ao crepusculo se me quebra a esperança,
o amparo
tributaria duma carne que rangeu tao longe a certeza
para nos amparar com a sua altíssima ternura. e o cuidado
de ser
Assim, tu, eu, bem aventurados do milagre
refugio e fortaleza
na chave profetica, espelhos duma aliança que ha de guiar
habil em redençoes sob sois escuros! meus olhos
meu corpo
Subita liberdade para voltar ao ponto
meus pes
de partida! Liberdade para desordenar-me
entre a luz onde decerto treme a sua Voz! quando tudo parecer contrario.
Rasga a noite, Deus, e muda-me de planeta!
Tradução: António Salvado
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O canto do sabiá preto resposta.
Ja que nosso asilo era uma instituiçao da
Lindolfo Weingärtner igreja, vinha sendo dirigido por um pastor,
O asilo ainda fora construído no tempo que cuidava de seu rebanho tanto na area
em que se pensava que pessoas idosas, para física como na espiritual. Os velhos que
se sentirem bem, antes de tudo precisavam adoeciam, nao precisavam ser deslocados
de ar fresco e de natureza nao poluída. So para o distante hospital, eles eram tratados
mais tarde se havia descoberto que o maior na propria casa, na proximidade de seu cu-
inimigo de gente velha era a soli- ra d'almas habitual; eles ficavam sob
dao. os cuidados de um medico, que
Mas tal inimigo, como se atendia o asilo uma vez por
sabe, nao poupa nem mes- semana, e quando alguem
mo os asilos situados em falecia, era sepultado no
meio ao turbilhao dos cemiterio do asilo. O ce-
centros urbanos. Éle miterio fazia parte do
nao olha classe social, dia-a-dia dos inquilinos,
rico ou pobre, gente cul- e a maior parte deles ti-
ta ou inculta. Tambem nha feito as pazes com o
nao olha homem ou mu- campo-santo. Sabiam que,
lher, apesar de que muitos quando eles proprios mor-
(em sua maioria, homens) ressem, permaneceriam per-
afirmem ser mais facil para as to do lugar onde tinham passa-
mulheres lidar com a solidao do que pa- do seus ultimos anos de vida, e esse
ra seus parceiros masculinos. nao deixava de ser um pensamento confor-
Infelizmente nao existe nenhum apare- tante.
lho com o qual se pudesse medir o grau de Todas as pessoas, ao chegarem a velhice,
solidao sentido por uma pessoa, a nao ser aprendem, de certo modo, a viver como vi-
que classifiquemos um coraçao grande e zinhos da morte. Alguns conseguem estabe-
amoroso de aparelho, coisa de que Deus lecer uma vizinhança pacífica, outros nao
nos queira preservar. gostam de ser lembrados do termino de
O asilo que nestas paginas vamos apre- seus dias, em especial, quando o fim se
sentar ao leitor estava situado distante da aproxima a olhos vistos. Ém nosso asilo nao
cidade, em meio a montanhas e colinas co- era so a proximidade do cemiterio que
bertas de matas, e com vista a verdes vales, constantemente lembrava os velhinhos da
pontilhados de campos e lavouras vicejan- morte. Éra a situaçao elementar dos septua-
tes. Viviam na instituiçao cerca de 120 ido- genarios e octogenarios que os lembrava
sos, e nenhum deles carecia de coisa algu- dela, pois seguidamente viam alguem sendo
ma que se tem por essencial na vida das arrancado de seu meio, que nao deixava na-
pessoas. A associaçao que administrava o da a nao ser um lugar vazio no refeitorio.
asilo nao poupava esforços para que os seus Raros eram os meses em que ao menos um
velhinhos nao sofressem nenhuma carencia dos asilados nao viesse a ser carregado pa-
e para que tambem pudessem ser recebidos ra o campo-santo. É quando acontecia que
na casa nao poucos que eram incapazes de num período de um ou dois meses nao fale-
pagar as mensalidades vigentes. cia ninguem, poderia ter a certeza de que o
Como era que os asilados conviviam com sino da capela dobraria duas ou tres vezes
a solidao? Bem, essa e uma pergunta a par- seguidas no mes seguinte. Com batidas
te, que por enquanto ternos que deixar sem compassadas e solenes ele revelaria que
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mais uma vez alguem tinha ido embora que tinham ido para outras cidades, todo mun-
por muito tempo convivera com a pequena do na família trabalhava ou estudava, e em
comunidade. Provavelmente cada um dos seus apartamentos simplesmente nao havia
velhinhos, bem no fundo do coraçao, se per- lugar para uma mulher velha e necessitada
guntava: Quando chegara o dia em que o si- de cuidados, mesmo uma mulher como Ir-
no vai dobrar para mim? mingard, que com seu coraçao carinhoso
Ontem o sino anunciara a morte da ve- era capaz de gerar e de repartir amor, nao
lha Irmingard. Aqui ainda vivia gente com so de retribuir o amor de outros.
nomes como o dela, nomes arcaicos e sole- Assim Irmingard afinal chegara ao asilo,
nes, sem a marca de modismos modernos. depois de se convencer de que por causa de
Havia mulheres chamadas de Irmingard, ou seu diabetes nao poderia mais ficar sozinha
de Clotilde, havia homens chamados de Fri- em sua propria casinha. Tinha sido real-
dolino ou Teofilo, naturalmente alem dos mente a melhor soluçao para ela. Ja um ano
que, conforme uso da terra, se chamavam antes de sua mudança para o ancionato lhe
Maria, Jose, Dulce ou Giacomo, dependendo haviam amputado uma perna, e, anos mais
do lugar onde o destino colocara o seu ber- tarde, os medicos tiveram que cortar-lhe a
ço. Nao raras vezes, aqueles que tinham tais outra tambem.
nomes antigos eram pessoas bem especiais, Irmingard de começo se revoltara contra
que liam livros de conteudo nada corriquei- esta segunda amputaçao, dissera que prefe-
ro, versadas em assuntos que nao costuma- ria antes morrer, do que aceitar ser mutila-
vam aparecer nas paginas das revistas e nos da daquele jeito. Tinha passado por uma lu-
programas de televisao. ta dura antes de finalmente concordar com
Irmingard tinha sido uma pessoa assim. a operaçao.
Tivera uma vida nada facil. Ém sua comuni- Ja que nao podia mais sentar na cadeira
dade de origem, pela maior parte de sua vi- de rodas, ela tivera de passar os ultimos
da adulta ela servira como organista, e ela anos deitada em seu leito, totalmente de-
nao so amara a musica e os cantos, mas pendente de outras pessoas. Sendo peque-
tambem as pessoas que tocavam e canta- na e de figura franzina, as atendentes a car-
vam, principalmente as crianças, que ela regavam nos braços como se fosse uma cri-
havia reunido ao seu redor para lhes ensi- ancinha, sempre que a tinham de mover do
nar a cantar e a tocar violao e flauta doce. A seu lugar. Ém seus ultimos anos de vida ela
nao poucos dos pequenos ela tambem ensi- nao deveria ter pesado mais de 35 quilos,
nara a viver. Sim, uma pessoa assim tinha um feixe de sofrimento e de miseria huma-
sido a velha Irmingard. na.
Aos quarenta anos, ela casara com um Irmingard era uma mulher crente, por
viuvo, pai de quatro filhos. Nao tivera filhos isso ela nao acusava a Deus por sua sorte.
proprios, e quando o seu marido, poucos Mas por vezes ela se admirava das ordenan-
anos depois do casamento, chegara a fale- ças e dos caminhos do Senhor. Éla conhece-
cer, ela educara os filhos dele com dedica- ra tempos de luta, tempos de duvidas fero-
çao e com amor, fato de que os filhos, agora zes, em que sua fe parecera um mero pavio
adultos, jamais poderiam esquecer-se, co- fumegante, ameaçado de se extinguir a cada
mo nao deixavam de assegurar, sempre que momento. Mas ela nao acreditava em sua fe,
a visitavam no asilo. ela cria no Deus que faz nascer fe e certeza,
Mas nao esquecer e uma coisa, e retribu- em meio a duvidas e desespero.
ir amor com amor e outra. Acontecera o que Irmingard tinha um segredo. Éla apren-
em nossos tempos parece ser a coisa mais dera a extrair paz e alegria íntimas nao da
natural do mundo: os filhos tinham casado, propria situaçao e dos proprios sentimen-
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tos, mas sim, das promissoes de Deus. É os dao, mesmo em meio a gente alegre. Éste
outros velhinhos sentiam aquele segredo mar, constantemente alimentado por fontes
dela, e eles vinham ao seu leito, silenciavam secretas, e capaz de afogar qualquer alegria
com ela, ou conversavam com ela sobre a com suas aguas amargas.
vida deles. Irmingard sabia ouvir, calada, e So depois da morte de Irmingard alguns
ela tambem sabia falar no devido tempo, e dos velhinhos e do pessoal do asilo se de-
havia muitos que tinham encontrado con- ram conta de que na presença dela eles ja-
forto e novo animo junto ao leito dela. mais se tinham sentido solitarios. Ninguem
Mesmo Fridolino, que conhecia a Bíblia poderia dizer precisamente por que tinha
como poucos, gostava de sentar junto a ca- sido assim. Devia ter sido o segredo dela. Ja
ma de Irmingard, falando-lhe das descober- que ela tinha Deus por fonte de vida e de
tas que fizera nos livros do Novo e do Anti- esperança, ja que nao vivia de seus proprios
go Testamento. Irmingard gostava de ouvi- recursos, ela tinha recebido do seu Criador
lo, se bem que ela nem sempre comparti- o dom de poder abrir seu coraçao para ou-
lhava suas opinioes e interpretaçoes. Para tros, e com isto conseguia tambem que os
ela, a Bíblia indicava a direçao em que an- outros lhe abrissem o proprio coraçao. Ate
dar, nao a considerava um caminho ladeado o fim de sua vida ela tivera a capacidade de
de indicaçoes e prescriçoes que mantinham amar as pessoas e de compartilhar da vida
o cristao na linha. A Éscritura era um curso delas.
de fe e de vida, que Deus mandara escrever, Agora Irmingard tinha falecido, e ela de-
nao uma coleçao de dogmas e doutrinas in- veria ser sepultada no cemiterio do asilo, a
falíveis. Mas a fundo os dois se entendiam tarde do dia apos a sua morte. Tudo que os
muito bem, e o velho Fridolino, depois de humanos costumam fazer numa ocasiao
uma de suas conversas com Irmingard, destas, tinha sido feito. O corpo murcho e
sempre costumava ser um pouco mais tra- mutilado de Irmingard tinha sido lavado,
tavel e mais cordial. seus cabelos ralos foram penteados e ajus-
O dirigente do asilo bem sabia que Ir- tados, e tinham lhe botado o melhor de
mingard era a confessora secreta da casa, e seus vestidos. Assim ela estava deitada em
nao raras vezes encaminhava para ela ho- seu esquife, seu rostinho estreito emoldura-
mens ou mulheres que tinham problemas do por flores multicoloridas, e mesmo os
com os familiares ou que tinham começado que viviam familiarizados com a morte,
a retrair-se em si mesmos, acometidos de sentiam, mais que em outros casos, uma
depressoes, coisa propria da velhice. Éle grande tristeza, e algo como uma incredula
nao ignorava que em muitos casos a mu- estranhes perante o fato de ela nao se en-
lherzinha com aquele corpo mutilado sabia contrar mais em seu meio.
ajudar as pessoas melhor do que ele pro- Énfermeiras e atendentes tinham enchi-
prio. do a parte inferior do esquife com crisante-
De começo constatamos que o maior ini- mos brancos, assim que nao caía em vista
migo de gente idosa costuma ser a solidao. que no corpo da falecida, no lugar das per-
Isso tambem era o caso em nosso asilo, e nas, havia um espaço vazio. No cemiterio o
nao era so pelo fato de ele estar situado dis- coveiro tinha preparado para ela uma das
tante da cidade, e rodeado de lavouras e sepulturas ja escavadas de antemao, e havia
campos. As fontes amargas da solidao em urna profusao de flores e coroas destinadas
realidade brotam dos abismos do coraçao a enfeitar seu ultimo lugar de repouso. Fi-
humano, e quando neles sobe o lençol das lhos e netos, mais alguns conhecidos de sua
aguas da tristeza, elas sao capazes de aflo- cidade, tinham comparecido, e tudo deveria
rar a superfície, revelando um mar de soli- seguir o ritual costumeiro.
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Mas Deus tinha resolvido dar um ar fes- mentos deste tempo. Cada um dos velhi-
tivo ao dia em que iria ser sepultada sua nhos tinha seu historico de sofrimentos que
serva Irmingard. Por isso ele havia ordena- a vida lhe impusera. É muitos viviam de co-
do que a hora do sepultamento se formasse raçao machucado, e havia feridas do passa-
urna tempestade sobre o vale, com relam- do que continuavam sangrando secreta-
pagos e estrondos de trovao, acompanha- mente. Nao, nao se podia varrer as coisas
dos de cortinas de chuva fustigadas pela doídas da vida para debaixo do tapete, ao
ventania. Assim o feretro, que seguiria da querer falar da gloria a ser revelada.
capela ao cemiterio, chegou a atrasar-se por Assim o pregador falou do sofrimento da
um bom tempo. falecida, descreveu sua vida, lembrou seu
Éra tradiçao no asilo, o pastor, por ocasi- serviço e enalteceu sua fidelidade. Sim, ela
ao de um sepultamento, fazer a alocuçao tivera de provar os sofrimentos desta vida,
funebre no cemiterio, nao na capela, e os fora obrigada a esvaziar ate o fundo o calice
velhinhos apreciavam a pratica, ja que lhes da dor. A vontade inescrutavel de Deus era
ajudava a suportar o silencio pesado do pa- essa: justamente as pessoas de fe eram
radouro dos mortos. marcadas por contratempos e sofrimentos.
Assim, jovens e velhos se haviam reuni- Éla, cujos pes por tantos anos tinham acio-
do na parte superior do cemiterio, enchen- nado os pedais do harmonio e do orgao de
do os estreitos espaços entre os jazigos, os sua igreja, para dar gloria a Deus, ela fora
olhares dirigidos para o vale, enquanto o obrigada a amputar ambas as pernas. Justa-
pastor se tinha posicionado na parte inferi- mente ela, que tanto gostara de lidar com
or, com o rosto voltado para o distante cer- crianças e jovens alegres, tivera de findar os
ro, atras do qual o sol ja ia desaparecendo. seus dias enferma, em meio a outras pesso-
Quando, apos o hino inicial e a leitura de as enfermas e idosas. Os caminhos de Deus
um trecho da Bíblia, o pastor iniciou sua para com os humanos eram verdadeira-
alocuçao, repentinamente toda a paisagem mente inescrutaveis.
parecia mergulhar num brilho irreal. Ainda No momento em que o pregador menci-
pairava um paredao escuro de nuvens sobre onara as pernas amputadas de Irmingard, o
o vale, mas do meio do paredao ia surgindo arco-íris tinha intensificado o seu brilho; e
um esplendor, que lentamente se transfor- começara a espelhar-se nas nuvens, assim
mava num magnífico arco-íris. Éra um arco que aos poucos se ia formando um arco du-
festivo, cujo brilho aumentava a olhos vis- plo, fenomeno como que sobrenatural, que
tos, assim que se vinha refletindo mais e poucas pessoas tem oportunidade de ver no
mais nos rostos dos presentes. decorrer de sua vida.
O pregador estava de costas voltadas pa- Ja que o sol acabara de desaparecer por
ra o vale, portanto nada enxergava do mara- detras do cerro, o vale aos poucos mergu-
vilhoso esplendor. Verdade, ele via o brilho lhara na sombra; mas agora a paisagem to-
refletido nos rostos dos presentes, mas nao da começara a resplandecer com um brilho
sabia como explica-lo. Assim ele continuou que nao parecia desta terra.
comentando a palavra do apostolo Paulo O pregador sentia a comoçao dos pre-
constante no oitavo capítulo da Épístola aos sentes. Via como os rostos familiares havi-
Romanos - que os sofrimentos deste tempo am mudado, assim como se diante deles ja
nao sao para comparar a gloria que nos de- nao se viesse desdobrando um ritual religi-
vera ser revelada no reino de Deus. oso, mas como se lhes estivesse ocorrendo
Para a comunidade, em sua maioria algo de novo e maravilhoso, que os arreba-
composta de idosos, poderia parecer coisa tava de seu dia-a-dia.
muito logica o pregador falar sobre os sofri- O pastor, porem, continuava falando dos

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sofrimentos deste tempo. Éle nao poderia ao po. Semeia-se um corpo corruptível, res-
mudar o escopo de sua pregaçao, so porque suscitara um corpo espiritual. Juntos, final-
os rostos do pessoal pareciam espelhar co- mente, todos oraram a oraçao do Senhor, e
moçao e admiraçao. Éle parecia perturbado, depois foram despedidos com a costumeira
sim, pelo fato de os presentes, pelo que pa- bençao.
recia, ja terem antecipado a segunda parte A maior parte dos velhos voltara ao asi-
de seu sermao, antes que ele tivesse falado lo, logo apos a cerimonia. So ao redor de
uma palavra sequer da gloria que em nos Fridolino se havia formado um grupo que
devera ser revelada. se envolvera numa discussao com ele.
Por alguns momentos, admirado da co- Fridolino insistia que o arco-íris tinha
moçao refletida nos rostos dos velhinhos, o sido um sinal de Deus; o proprio pastor o
pregador chegou a silenciar. Foi aí que uma tinha confirmado. É vinha escrito na Bíblia:
voz quebrou o silencio: "Pastor, olhe para Deus havia colocado o arco no ceu, apos o
suas costas, olhe para o ceu — O Sinal da diluvio, para que servisse de eterno sinal da
Aliança!" Éra Fridolino, que ousara inter- aliança estabelecida entre Éle e os huma-
romper o solene ritual, apontando para o nos.
espetaculo celeste. O pastor, em sua convi- Mas ele nao admitia que tambem o canto
vencia com os velhinhos, se acostumara a do sabia era parte desta aliança. Nada se
muitas esquisitices e atitudes excentricas encontrava na Sagrada Éscritura a respeito
proprias de gente idosa, assim atendeu o de aves que tinham a tarefa de dar recados
pedido de Fridolino olhando na direçao in- aos humanos atraves de seu canto. A pomba
dicada. que carregara no bico a folha de oliveira,
É entao tambem ele passou a ver a glo- nao havia arrulhado nada para Noe, o corvo
ria. É se deu conta de que o proprio Deus que havia trazido pao e carne a Élias, na
havia assumido a parte do seu sermao que margem do arroio de Querite, nao havia
tratava da gloria a ser revelada em nos. As- grasnado nenhuma mensagem para o pro-
sim ele limitou-se a dizer: "Sim, Fridolino feta. Seu serviço fora mudo. Deus nao falava
tem razao. O Sinal da Aliança." atraves de passarinhos, e o canto deles nao
É assim aconteceu que, na hora do se- tinha nenhum significado para nos.
pultamento de Irmingard, pastor e comuni- Um dos circunstantes alegava que o galo,
dade quedavam-se em silencio, ao lado da que, afinal, tambem era ave, por certo tivera
sepultura aberta, abrindo-se ao fulgor que um recado a dar a Pedro, na noite em que
irradiava do arco da aliança de Deus. este negara a seu Mestre. Mas Fridolino nao
É enquanto paravam, silenciosos, bem se deu por achado. O galo tinha cantado,
de manso, do beirado da floresta proxima, mas era hora de ele cantar de qualquer jei-
começou a trinar um sabia preto. Éle canta- to, ele nem sabia porque estava cantando e
va como que de voz contida, assim como os que seu canto poderia ter um significado
sabias pretos costumam cantar ao lusco- pala Pedro. A gente facilmente se tornava
fusco do dia. Cantou por uns dois minutos, e vítima de fantasias, ao querer dar as coisas
quando enfim silenciou, igualmente o arco- da natureza uma interpretaçao espiritual.
íris foi perdendo o seu fulgor. Alguns do grupo nao concordavam com
Ao fim, o pastor voltou a encarar a co- ele, mas ninguem costumava argumentar
munidade. Falou da esperança dos que com o velho Fridolino sobre questoes que
adormeceram em Cristo Jesus, falou da glo- envolviam a Bíblia, e assim sua opiniao pre-
ria da vida eterna — e tudo correu segundo valeceu.
a ordem costumeira. O esquife foi baixado a Mas por ocasiao da janta, Fridolino se
sepultura: Terra a terra, cinza a cinza e po mantivera calado, como que contrariado, e

9
quando todos abandonaram o refeitorio, ele tanto era um recado bem pessoal de Deus
reteve alguns de seus amigos, com os quais para todos eles.
havia discutido pouco antes no cemiterio, e Éu penso que poderemos concordar com
humildemente lhes pediu perdao. Éle se ha- o velho Fridolino, aceitando sua interpreta-
via enganado. O sabia fora mensageiro de çao da Éscritura tambem em nossa propria
Deus, sim. Éle havia conferido na Bíblia; vida. É talvez que nesta interpretaçao se re-
constava no Salmo 148, com toda clareza: vele o mais profundo segredo de Irmingard:
Éntre feras, gados e repteis estavam tam- o louvor a Deus havia secado em seu cora-
bem os volateis, isto e, os passarinhos - to- çao aquela fonte amarga da qual se alimen-
dos sendo convocados para louvarem a ta a solidao humana, fazendo nascer em seu
Deus. É aí o sabia preto nao podia ficar de lugar a vertente vivificante do amor. Com
fora. É como ele poderia louvar a Deus, a isso sua propria vida, e a vida de muitas ou-
nao ser com seu canto? tras pessoas, tinham sido transformadas.
É talvez em realidade o canto do sabia
tinha uma coisa a ver com o fato de a faleci- Lindolfo Weingärtner nasceu em 1923 em
da Irmingard ter tocado e cantado para a Águas Mornas - SC. É pastor luterano, pro-
gloria de Deus, enquanto ainda fora capaz fessor, escritor e poeta. Possui 27 livros pu-
de faze-lo. É tambem constava no Salmo blicados, dentre os quais O Canto do Sabiá e
148 que os velhos junto com os jovens devi- outros contos cristãos (Blumenau: Gráfi-
am louvar a Deus, e que isto era uma coisa ca e Editora Otto Kuhr, 2003), de onde retira-
que Irmingard sempre havia falado, e por- mos o presente texto.

L
U “Aslam”,
de Joana Cristina.
M Conheça mais
AQUI.
I
N
A
R
E
S
10
A Morte da Encrenqueira dose de maldade, comentou que ela havia
Judson Canto morrido de ansiedade por nao conseguir
colocar as fofocas e murmuraçoes em dia.
Sabe a irma encrenqueira, aquela infati- A notícia de sua morte se espalhou, e
gavel promotora de confusoes na igreja, que gente de toda a cidade, em numero suficien-
pode ser definida como o friozinho na espi- te para encher a arca de Noe, vítimas de su-
nha do pastor ou a dor de dente as intrigas, correu para a igreja, espremen-
da congregaçao? Éssa era Porfí- do-se nos bancos e corredores
ria, talvez o equivalente a mui- em silenciosa confraternizaçao.
tos tratamentos de canal. Alguns, desconfiados da sorte,
— Mas ela era tao terrível beliscavam disfarçadamente o
assim? cadaver, para ver se ela nao es-
O diacono Padilha, que re- tava fingindo. Depois se belisca-
passava a um novo convertido vam para ver se nao estavam so-
curioso a biografia da encren- nhando.
queira, balançou a cabeça confirmando. Éle ***
proprio fora uma das vítimas daquela lín- No cemiterio, o pastor Rodolfo pi-
gua muitas vezes comparada a uma víbora, garreou, ajeitou o no da gravata e começou:
so que — todos concordavam — mais vene- — Irmaos, estamos aqui neste culto de
nosa. Éla havia cismado que fora ele quem açao de graças — todos fingiram nao perce-
lhe dera o apelido de Morte na Panela, e nao ber a gafe — pelo passamento da irma Por-
poupava o coitado. Se ele se demorava um fíria…
pouco mais no cumprimento a uma mulher, Atras dele, um coral de cochichos com-
ela puxava alguem pelo braço e cochichava: posto por irmaos ansiosos para enterrar o
“Ja vi esse filme…”. Se ele abraçava um velho passado instigava:
amigo com maior efusao, ela comentava: — Anda logo! Anda logo!
“Nao sei nao…”. — Vamos ler uma passagem da Bíblia,
— Éla costumava encarar a pessoa bem no Évangelho de Joao, capítulo onze…
de perto, e entao começava a falar mal de É novamente o coral de cochichos, com
alguem, sempre repetindo: “Nao acha que expressao de pavor:
eu tenho razao?”. É a pessoa que nao con- — Le outra! Le outra!
cordasse! — acrescentou o diacono Padilha, Finalmente a sepultaram. Os irmaos
explicando o principal metodo da fofoquei- nem haviam ainda deixado o cemiterio
ra. — Depois ela procurava o irmao ou irma quando o ceu enegreceu e um raio fendeu a
de quem havia falado mal e dizia quem in- escuridao de alto a baixo. Ém seguida, um
ventara aquelas coisas fora a outra pessoa. trovao fez estremecer o lugar.
Porque, se voce concordava, e como O diacono Padilha olhou para o alto e ex-
se tambem tivesse dito, nao e? clamou:
— Nao posso imaginar nada pior. — Ih! Éla ja chegou la.
— Pois imagine. Éla tinha mau halito.
O diacono Padilha e o novo convertido
estavam conversando no velorio de Porfíria. Judson Canto é editor, escritor, revisor e tra-
Sim, ela adoecera meses antes. É, depois dutor. Mantem o blog O Balido.
uma subita melhora, ate voltara a frequen- Do autor, baixe em formato pdf o conto
tar os cultos, porem morreu passados al- ilustrado Ate os Confins da Terra. CLIQUÉ
guns dias, de forma tao repentina quanto AQUI.
fora a sua recuperaçao. Alguem, com certa
11
Jardim dos Clássicos
Eça de Queirós (1845 - 1900) nasceu em Póvoa de Varzim, no norte de Portugal. Foi
um dos maiores prosadores de nossa língua, filiado ao Realismo português. Iniciou sua
carreira nas Letras publicando no Jornal Gazeta de Portugal. Autor de diversas obras, tais
como os romances A Ilustre Casa de Ramires, A Capital, O Crime do Padre Amaro, O Pri-
mo Basílio e A Relíquia, dentre outros. Suas obras estão traduzidas para mais de vinte idi-
omas. O presente conto foi publicado originalmente em 1898, na Revista Moderna.

O Suave Milagre jado, sacudiu os cabelos, e meteu pensativa-


mente por sob o Aqueduto, logo sumido na
Eça de Queirós
espessura das amendoeiras em flor. Mas
uma esperança, deliciosa como o orvalho
NÉSSÉ tempo Jesus ainda se nao afastara
nos meses em que canta a cigarra, refrescou
da Galileia e das doces, luminosas margens
as almas simples: logo, por toda a campina
do Lago de Tiberíades: - mas a nova dos
que verdeja ate Ascalon, o arado pareceu
seus milagres penetrara ja ate Énganim, ci-
mais brando de enterrar, mais leve de mo-
dade rica, de muralhas fortes, entre olivais e
ver a pedra do lagar; as crianças, colhendo
vinhedos, no país de Issacar.
ramos de anemonas, espreitavam pelos ca-
minhos se alem, da esquina do muro, ou de
Uma tarde um homem de olhos ardentes
sob o sicomoro, nao surgiria uma claridade;
e deslumbrados passou no fresco vale, e
e nos bancos de pedra, as portas da cidade,
anunciou que um novo profeta, um Rabi
os velhos, correndo os dedos pelos fios das
formoso, percorria os campos e as aldeias
barbas, ja nao desenrolavam, com tao sapi-
da Galileia, predizendo a chegada do reino
ente certeza, os ditames antigos.
de Deus, curando todos os males humanos.
Ora entao vivia em Énganim um velho,
É enquanto descansava sentado a beira da
por nome Obede, duma família pontifical de
Fonte dos Vergeis, contou ainda que esse
Samaria, que sacrificara nas aras do Monte
Rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra
Ébal, senhor de fartos rebanhos e de fartas
o servo De um decuriao romano so com es-
vinhas - e com o coraçao tao cheio de orgu-
tender sobre ele a sombra das suas maos; e
lho como o seu celeiro de trigo. Mas um
que noutra manha, atravessando numa bar-
vento arido e abrasador, esse vento de de-
ca para a terra dos Gerassenios, onde come-
solaçao que ao mando do Senhor sopra das
çava a colheita do balsamo, ressuscitara a
torvas terras de Assur, matara as reses mais
filha de Jairo, homem consideravel e douto
gordas das suas manadas, e pelas encostas
que comentava os Livros na Sinagoga. É co-
onde as suas vinhas se enroscavam no ol-
mo em redor, assombrados, seareiros, pas-
mo, e se estiravam na latada airosa, so dei-
tores, e as mulheres trigueiras com a bilha
xara, em torno dos olmos e pilares despi-
no ombro, lhe perguntassem se esse era, em
dos, sarmentos, cepas mirradas, e a parra
verdade, o Messias da Judeia e se diante de-
roída de crespa ferrugem. É Obede, agacha-
le refulgia a espada de fogo, e se o ladea-
do a soleira da sua porta, com a ponta do
vam, caminhando como as sombras de duas
manto sobre a face, palpava a poeira, la-
torres, as sombras de Gogue e de Magogue -
mentava a velhice, ruminava queixumes
o homem, sem mesmo beber daquela agua
contra Deus cruel.
tao fria de que bebera Josue, apanhou o ca-
12
Apenas ouvira falar desse novo Rabi da dos tamarindos. Um homem da tribo dos
Galileia, que alimentava as multidoes, ame- Éssenios, todo vestido de linho branco, apa-
drontava os demonios, emendava todas as nhava lentamente ervas salutares, pela bei-
desventuras - Obede, homem lido, que via- ra da agua, com um cordeirinho branco ao
jara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria colo. Os servos humildemente saudaram-
um desses feiticeiros tao acostumados na no, porque o povo ama aqueles homens de
Palestina, como Apolonio, ou Rabi Ben- coraçao tao limpo, e claro, e candido como
Dossa, ou Simao, o Sutil. Ésses, mesmo nas as suas vestes cada manha lavadas em tan-
noites tenebrosas, conversam com as estre- ques purificados. É sabia ele da passagem
las, para eles sempre claras e faceis nos do novo Rabi da Galileia, que como os Ésse-
seus segredos: com uma vara afugentam de nios ensinava a doçura, e curava as gentes e
sobre as searas os moscardos gerados nos os gados? O essenio murmurou que o Rabi
lodos do Égito: e agarram entre os dedos as atravessara o Oasis de Éngaddi, depois se
sombras das arvores, que conduzem, como adiantara para alem...
toldos beneficos, para cima das eiras, a hora - Mas onde, "alem"?
da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com - Movendo um ramo de flores roxas que
magias mais viçosas decerto, se ele larga- colhera, o essenio mostrou as terras de
mente o pagasse, sustaria a mortandade alem Jordao, a planície de Moabe. Os servos
dos seus gados, reverdeceria os seus vinhe- vadearam o rio - e debalde procuraram Je-
dos. Éntao Obede ordenou aos seus servos sus, arquejando pelos rudes trilhos, ate as
que partissem, procurassem por toda a Ga- fragas onde se ergue a cidadela sinistra de
lileia o rabi novo, e com promessa de di- Macaur... No Poço de Yakob repousava uma
nheiros ou alfaias o trouxessem a Énganim, larga caravana, que conduzia para o Égito
no país de Issacar. mirra, especiarias e balsamos de Gileade; e
Os servos apertaram os cinturoes de os cameleiros, tirando a agua com os baldes
couro - e largaram pela estrada das Carava- de couro, contaram aos servos de Obede
nas, que, costeando o Lago, se estende ate que em Gadara, pela lua nova, um Rabi ma-
Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o po- ravilhoso, maior que Davi ou Isaías, arran-
ente, vermelho como uma roma muito ma- cara sete demonios do peito duma tecedei-
dura, as neves finas do monte Hermon. De- ra, e que, a sua voz, um homem degolado
pois, na frescura duma manha macia, o lago pelo salteador Barrabas se erguera da sua
de Tiberíades resplandeceu diante deles, sepultura e recolhera ao seu horto. Os ser-
transparente, coberto de silencio, mais azul vos, esperançados, subiram logo açodada-
que o ceu, todo orlado de prados floridos, mente pelo caminho dos peregrinos ate Ga-
de densos vergeis, de rochas de porfiro, e dara, de altas torres, e ainda mais longe ate
de alvos terraços por entre os pomares, sob as nascentes da Amalha... Mas Jesus, nessa
o voo das rolas. madrugada seguido por um povo que canta-
Um pescador que desamarrava a sua va e sacudia ramos de mimosa, embarcara
barca duma ponta de relva, assombreada de no Lago, num batel de pesca, e a vela nave-
aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O gara para Magdala. É os servos de Obede,
Rabi de Nazare? Oh, desde o mes de Ijar, o descoroçoados, de novo passaram o Jordao
Rabi descera, com os seus discípulos, para na ponte da Filhas de Jaco. Um dia, ja com
os lados para onde o Jordao leva as aguas. as sandalias rotas dos longos caminhos, pi-
Os servos, correndo, seguiam pelas mar- sando ja as terras da Judeia romana, cruza-
gens do rio, ate adiante do vau, onde ele se ram com um fariseu sombrio, que recolhia a
estira num largo remanso, e descansa, e um Éfraim, montado na sua mula. Com devota
instante dorme, imovel e verde, a sombra reverencia detiveram o homem da Lei. Én-
13
contrara ele por acaso esse profeta novo da garosamente ao alto a flecha, e varava uma
Galileia que, como um Deus passeando na grande aguia, voando de asa serena, no ceu
terra, semeava milagres? A adunca face do rutilante. A filha de Septimus seguia um
fariseu escureceu enrugada e a sua colera momento a ave, torneando ate bater morta
retumbou como um tambor orgulhoso: sobre as rochas; - depois, com um suspiro,
- Oh, escravos pagaos! Oh, blasfemos! mais triste e mais palida, recomeçava a
Onde ouvistes que existissem profetas ou olhar para o mar.
milagres fora de Jerusalem? So Jeova tem Éntao Septimus, ouvindo contar, a mer-
força no seu Templo. De Galileia surgem os cadores de Corazim, deste Rabi admiravel,
nescios e os impostores... tao potente sobre os espíritos, que sarava
É como os servos recuavam ante o seu os males tenebrosos da alma, destacou tres
punho erguido, todo enrodilhado de dísti- decurias de soldados para que o procuras-
cos sagrados - o furioso Doutor saltou da sem pela Galileia, e por todas as cidades da
mula, e, com as pedras da estrada, apedre- Decapolis, ate a costa e ate Ascalon. Os sol-
jou os servos de Obede, uivando: Racca! Ra- dados enfiaram os escudos nos sacos de lo-
cca! e todos os anátemas rituais. Os servos na, espetaram nos elmos ramos de oliveira -
fugiram para Énganim. É grande foi a des- e as suas sandalias ferradas apressadamen-
consolaçao de Obede, porque os seus gados te se afastaram, ressoando sobre as lajes de
morriam, as suas vinhas secavam – e, toda- basalto da estrada romana, que desde Cesa-
via, radiantemente, como uma alvorada por reia ate Lago corta toda a tetrarquia de He-
detras de serras, crescia, consoladora e rodes. As suas armas, de noite, brilhavam
cheia de promessas divinas, a fama de Jesus no topo das colinas, por entre a chama on-
da Galileia. deante dos archotes erguidos. De dia inva-
Por esse tempo, um centuriao romano, diam os casais, rebuscavam a espessura dos
Publius Septimus, comandava o forte que pomares, esfuracavam com a ponta das lan-
domina o vale de Cesareia, ate a cidade e ao ças a palha das medas; e as mulheres, as-
mar. Publius, homem aspero, veterano da sustadas, para amansar logo acudiam com
campanha de Tiberio contra Partos, enri- bolos de mel, figos novos, e malgas cheias
quecera durante a revolta de Samaria com de vinho, que eles bebiam dum trago, senta-
presas e saques, possuía minas na Atica, e dos a sombra dos sicomoros. Assim corre-
gozava, como favor supremo dos deuses, a ram a Baixa Galileia - e, do Rabi, so encon-
amizade de Flaco, legado imperial da Síria. travam o sulco luminoso nos coraçoes. Én-
Mas uma dor roía a sua prosperidade muito fastiados com as inuteis marchas, desconfi-
poderosa, como um verme roi um fruto ando que os judeus sonegassem o seu feiti-
muito suculento. Sua filha unica, para ele ceiro para que Romanos nao aproveitassem
mais amada que vida e bens, definhava com do superior feitiço, derramavam com tu-
um mal sutil e lento, estranho mesmo ao sa- multo a sua colera, atraves da piedosa terra
ber dos esculapios e magicos que ele man- submissa. A entrada das pontes detinham
dara consultar a Sidon e a Tiro. Branca e os peregrinos, gritando o nome do Rabi,
triste como a lua num cemiterio, sem um rasgando os veus as virgens: e, a hora em
queixume, sorrindo palidamente a seu pai, que os cantaros se enchem nas cisternas in-
definhava, sentada na alta esplanada do for- vadiam as ruas estreitas dos burgos, pene-
te, sob um velario, alongando saudosamen- travam nas sinagogas e batiam, sacrilega-
te os negros olhos tristes pelo azul do mar mente com os punhos das espadas nas The-
de Tiro, por onde ela navegara de Italia, nu- bahs, os Santos Armários de cedro que conti-
ma opulenta galera. Ao seu lado, por vezes, nham os Livros Sagrados. Nas cercanias de
um legionario entre as ameias apontava va- Hebron arrastaram os solitarios pelas bar-
14
bas para fora das grutas, para lhes arrancar gres... So Apolo Delfico conhece o segredo
o nome do deserto ou do palmar em que se das coisas!
ocultava o Rabi - e dois mercadores fenícios Éntao, devagar, com a cabeça derrubada,
que vinham de Jope com uma carga de ma- como numa tarde de derrota, os soldados
lobatro, e a quem nunca chegara o nome de recolheram a fortaleza de Cesareia. É gran-
Jesus, pagaram por esse delito cem dramas de foi o desespero de Septimus, porque sua
a cada centuriao. Ja as gentes dos campos, filha morria, sem um queixume, olhando o
mesmo os bravios pastores de Idumeia, que mar de Tiro - e todavia a fama de Jesus, cu-
levam as reses brancas para o Templo, fugi- rador dos languidos males, crescia, sempre
am espavoridos para as serranias, apenas consoladora e fresca, como a margem da
luziam, nalguma volta do caminho, as ar- tarde que sopra do Hermon e, atraves dos
mas do bando violento. É da beira dos eira- hortos, reanima e levanta os açucenas pen-
dos, as velhas sacudiam como taleigos a didas.
ponta dos cabelos desgrenhados, e arroja- Ora entre Énganim e Cesareia, num case-
vam sobre eles as Mas-Sortes, invocando a bre desgarrado, sumido na prega dum cer-
vingança de Élias. Assim tumultuosamente ro, vivia a esse tempo uma viuva, mais des-
erraram ate Ascalon; nao encontraram Je- graçada mulher que todas as mulheres de
sus: e retrocederam ao longo da costa en- Israel. O seu filhinho unico, todo aleijado,
terrando as sandalias nas areias ardentes. passara do magro peito a que ela o criara
Numa madrugada, perto de Cesareia, para os farrapos da enxerga apodrecida, on-
marchando num vale, avistaram sobre um de jazera, sete anos passados, mirrando e
outeiro um verde-negro bosque de lourei- gemendo. Tambem a ela a doença a enge-
ros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e lhara dentro dos trapos nunca mudados,
claro portico dum templo. Um velho, de mais escura e torcida que uma cepa arran-
compridas barbas brancas, coroado de fo- cada. É, sobre ambos, espessamente a mise-
lhas de louro, vestido com uma tunica cor ria cresceu como o bolor sobre cacos perdi-
de açafrao, segurando uma curta lira de tres dos num ermo. Ate na lampada de barro
cordas, esperava gravemente, sobre os de- vermelho secara ha muito o azeite. Dentro
graus de marmore, a apariçao do Sol. Debai- da arca pintada nao restava grao ou codea.
xo, agitando um ramo de oliveira, os solda- No Éstio, sem pasto, a cabra morrera. De-
dos bradaram pelo sacerdote. Conhecia ele pois, no quinteiro, secara a figueira. Tao
um novo profeta que surgira na Galileia, e longe do povoado, nunca esmola de pao ou
tao destro em milagres que ressuscitava os mel entrava o portal. É so ervas apanhadas
mortos e mudava a agua em vinho? Serena- nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nu-
mente, alargando os braços, o sereno velho triam aquelas criaturas de Deus na terra es-
exclamou por sobre a rociada verdura do colhida, onde ate as aves maleficas sobrava
vale: o sustento.
- Oh romanos, pois acreditais que em Ga- Um dia um mendigo entrou no casebre,
lileia ou Judeia apareçam profetas consu- repartiu do seu farnel com a mae amargura-
mando milagres? Como pode um barbaro da, e um momento sentado na pedra da la-
alterar a ordem instituída por Zeus?... Magi- reira, coçando as feridas das pernas, contou
cos e feiticeiros sao vendilhoes, que mur- dessa grande esperança dos tristes, esse
muram palavras ocas, para arrebatar a es- Rabi que aparecera na Galileia, que de um
portula dos simples... Sem a permissao dos pao no mesmo cesto fazia sete, e amava to-
Imortais nem um galho seco pode tombar das as criancinhas, e enxugava todos os
da arvore, nem seca folha pode ser sacudida prantos, e prometia aos pobres um grande e
na arvore. Nao ha profetas, nao ha mila- luminoso Reino, de abundancia maior que a
15
corte de Salomao. A mulher escutava, com xerga tao rota?
olhos famintos. É esse doce Rabi, esperança A criança, com duas lagrimas na face
dos tristes, onde se encontrava? O mendigo magrinha, murmurou:
suspirou. Ah, esse doce Rabi! quantos o de- - Oh, mae, Jesus ama todos os pequeni-
sejavam, que se desesperançavam! A sua nos. É eu ainda tao pequeno, e com um mal
fama andava por sobre toda a Judeia como tao pesado, e que tanto queria sarar!
o Sol que ate por qualquer velho muro se É a mae, em soluços:
estende e se goza; mas para enxergar a cla- - Oh, meu filho, como te posso deixar?
ridade do seu rosto, so aqueles ditosos que Longe sao as estradas da Galileia, e curta a
o seu desejo escolhia. Obede, tao rico, man- piedade dos homens. Tao rota, tao tropega,
dara os seus servos por toda a Galileia para tao triste, ate os caes me ladrariam da porta
que procurassem Jesus, o chamassem com dos casais. Ninguem atenderia o meu reca-
promessa a Énganim; Septimus, tao sobera- do, e me apontaria a morada do doce Rabi.
no, destacara os seus soldados ate a costa Oh, filho! Talvez Jesus morresse... Nem mes-
do mar, para que buscassem Jesus, o condu- mo os ricos e os fortes o encontram. O ceu o
zissem, por seu mando, a Cesareia. Érrando, trouxe, o ceu o levou. É com ele para sem-
esmolando por tantas estradas, ele topara pre morreu a esperança dos tristes.
os servos de Obede, depois os legionarios De entre os negros trapos, erguendo as
de Septimus. É todos voltavam como derro- suas pobres maozinhas que tremiam, a cri-
tados, com as sandalias rotas, sem terem ança murmurou:
descoberto em que mata ou cidade, em que - Mae, eu queria ver Jesus...
toca ou palacio, se escondia Jesus. É logo, abrindo devagar a porta e sorrin-
A tarde caía. O mendigo apanhou o seu do, Jesus disse a criança:
bordao, desceu pelo duro trilho, entre a ur- - Aqui estou.
ze e a rocha. A mae retomou o seu canto,
mais vergada, mais abandonada. É entao o
filhinho, num murmurio mais debil que o
roçar duma asa, pediu a mae que lhe trou-
xesse esse Rabi, que amava as criancinhas
ainda as mais pobres, sarava os males ainda
os mais antigos. A mae apertou a cabeça es-
guedelhada:
- Oh, filho! É como queres que te deixe, e
me meta aos caminhos, a procura do Rabi
da Galileia? Obede e rico e tem servos, e de-
balde buscaram Jesus, por areais e colinas,
desde Corazim ate ao país de Moabe. Septi-
mus e forte, e tem soldados, e debalde cor-
reram por Jesus, desde o Hebron ate ao mar.
Como queres que te deixe? Jesus anda por
muito longe e a nossa dor mora conosco,
dentro destas paredes, e dentro delas nos
prende. É mesmo que o encontrasse, como
convenceria eu o Rabi tao desejado, por
quem ricos e fortes suspiram, a que desces-
se atraves das cidades ate este ermo, para
sarar um entrevadinho tao pobre, sobre en-
16
Arte de Escrever
Max Lucado

O jovem aspirante a escritor estava precisan- ambos esperavam. As respostas começaram a


do de esperança. Muitas pessoas lhe haviam dito chegar. “Sentimos muito, mas nao aceitamos ma-
para desistir. “É quase impossível conseguir que nuscritos nao solicitados”. “Éstamos devolvendo
seu trabalho seja publicado”, disse-lhe um orien- o seu trabalho. Felicidades”. “Nao temos espaço
tador. “A menos que voce seja uma celebridade em nosso catalogo para autores nunca dantes pu-
nacional, os editores nem sequer falarao com vo- blicados”.
ce”. Outro avisou: “Éscrever toma muito tempo. Ainda tenho essas cartas. Ém uma pasta, em
Alem disso, voce nao vai querer colocar todos os algum lugar. Éncontra-las levaria algum tempo.
seus pensamentos no papel”. No entanto, encontrar o bordado de Denalyn nao
No início ele ouviu. Concordou que escrever leva tempo algum. Para ve-lo, tudo o que tenho
era um desperdício de esforço e voltou sua aten- que fazer e levantar os olhos do meu monitor e
çao a outros projetos. Mas de alguma forma, a ca- olhar para a parede. “Éntre todas as artes nas
neta e o bloco de notas eram como o cafe e a Coca quais os sabios sao proficientes, a maior obra-
-Cola para o viciado em palavras. Éle preferia es- prima da natureza e escrever bem”.
crever a ler. Éntao escrevia. Com isso ela me deu tempo para que a carta
Quantas noites ele passava naquele sofa, em numero quinze chegasse. Um editor tinha dito
um canto do seu apartamento, misturando sua sim. Aquela carta tambem esta emoldurada. Qual
coleçao de verbos e substantivos? É quantas ho- dos dois quadros significa mais para mim? O pre-
ras sua mulher lhe fez companhia? Éle fazendo sente da minha esposa ou a carta do editor? O
artesanato com as palavras. Éla bordando em presente, claro. Ao dar-me o presente, Denalyn
ponto de cruz. Por fim, ele terminou um manus- deu-me esperança.
crito. Cru e cheio de erros, mas terminado. O amor faz isso. O amor estende um ramo de
Éla lhe deu o empurrao que faltava. — Por que oliveira a pessoa amada e diz: “Éu tenho esperan-
voce nao o envia? Que mal ha nisso? ça em voce”.
Éntao ele fez isso. Énviou o manuscrito a quin- _________________________________________________________
ze diferentes editores. Énquanto o casal espera-
va, ele escrevia. Énquanto ele escrevia, ela borda- Éxtraído de “Quando a Sua Esperança é Peque-
va. Nenhum deles tinha muitas expectativas, mas na” (do livro “Um Amor que Vale a Pena”, CPAD,
2003).

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O Poeta do Salmo exilado Tinha as sandalias cheias de lama, por-
que costumava percorrer os montes de ter-
J.T.Parreira ra que bordejavam as aguas do rio.
O rio nao parecia correr no seu leito O rosto evidenciava, com rugas, que ha-
natural, circulava pela via percorrido uma es-
cidade, por entre as casas trada na vida que nao
e dava a impressao de fora atapetada de lírios.
estar ao nível das Tinha, no entanto,
construçoes mais uma boa figura, e as
rectangulares, reflectindo maos, quando andava,
as faces dos edifícios. pareciam imprimir
Gedalias, um anciao calma a todo o corpo.
de olhar ja acomodado, Vivia num lugar que
sentava-se ao lado de as autoridades babiloni-
Quebar, um canal navega- cas tinham destinado
vel, a jusante do Éufrates, aos judeus deportados.
e via subir e descer com o Éstes viviam em casas
vento, ate arrastarem as proprias, alguns ate ha-
folhas mais altas nas viam enriquecido com o
aguas, os juncos que se esforço da sua acultura-
pareciam com saltadores çao e integraçao, viven-
no momento do mergu- do nao como escravos,
lho. mas semi-livres, em
Nas pedras, junto de si, tinha Michele Myers pontos estrategicos um
pousada uma tabua de barro com inscri- pouco acima das margens do Quebar. A sua
çoes da historia recente e um papiro enve- casa e a da família estava ao lado de um
lhecido no qual se via que ja inscrevera al- grande salgueiro, que em fins de tarde sem
gumas frases em aramaico. O velhinho vento dava bastante calma ao olhar, embo-
olhava-as, e quando o fazia espaçadamente ra nao acrescentasse nenhuma novidade,
era com uma tristeza nos cantos da boca, por isso nos olhos de Gedalias havia, por
como se alguma coisa tardasse em chegar. vezes, uma certa acomodaçao.
É afirmava a si proprio: «Éstes versos Mas, na maior parte do tempo em que
serao feitos como se esculpisse o sentir da estava sozinho, os olhos iam buscar ao fun-
tristeza, a lamentaçao certa ha-de chegar do do rio sentimentos tristes, e, no entanto,
perfeita, do meu estado de espírito.» davam a impressao de estarem a acompa-
Éra um velho que trajava um longo ves- nhar o subtil curso das aguas.
tido gasto, com motivos sumerios, e abriga- Como quase sempre podia fazer, estava
va-se da humidade do ar com uma pele de sentado ao lado do rio, e a luminosidade
carneiro surrada, «Apesar das aparencias, que vinha da agua, compartilhava-a no seu
sou um cativo muito bem tratado» – pensa- rosto. Nesses momentos baixava a cabeça e
va, varias vezes, com algum reconhecimen- olhava em direcçao do seu manuscrito.
to, e poucas vezes falava de vingança. Trouxeram-nos, um dia, por volta do
Fizera parte da primeira deportaçao, anoitecer, das suas terras da Palestina, ao
era um bom artífice, a quem reconheceram velhinho com uma dezena de milhar de
a sua valia profissional para trabalhar em outros judeus, e a partir de entao aqueles
artes decorativas. Agora, porem, ja nao tra- canais da Babilonia eram como uma praça
balhava. onde juntavam os soluços e as palavras
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castradas. pre que se animava com uma possível lon-
Lembrava-se perfeitamente do dia, Jeru- gevidade.
salem apos um cerco breve capitulou no dia Havia rumores de que os persas, sob o
16 de Março de 597, sem resistencia digna mando de Ciro, poderiam estar perto de in-
de nota. vadir Babilonia. É esses nao eram propria-
O rio possuía recantos aprazíveis e os mente barbaros. É no que dizia respeito aos
salgueiros quando se reflectiam no retrato judeus, a sua relaçao com estes nao era as-
criado no espelho das aguas, faziam-no de sim tao complicada politicamente.
margem a margem em alguns pontos. Mas um poema sobre o exílio obcecava-o
Uma parte do seu estado de espírito e estava dentro das suas prioridades de an-
quereria fazer caber esse sentimento ciao.
estetico no que viesse a escrever, a outra, Pensava muito no assunto, e talvez por
era mais dramatica, prendia-se com o saber que o mesmo nao acontecia com ou-
aviltamento natural do seu estado de tros da sua idade, e, sobretudo, com alguns
exilado judeu, prendia-se com a religiao. muito mais novos, que ja haviam nascido
— Se eu fosse o nosso grande rei David, em terra estranha, muito mais pensava num
o salmo ja arderia de beleza em todas as retrato poetico do exílio, numa forma que
suas palavras. — Disse, um dia, a um moço sintetizasse a tristeza e o orgulho nacionais.
que lhe perguntara o destino que daria ao Foi nesse instante que um dos filhos, o
manuscrito. mais velho, lhe interrompeu o que estava a
— Éu sou apenas um velho que quer pensar. Éle falava de um modo pacificado e
deixar um pedaço de historia para la das parecia inquieto, mais no olhar do que na
nossas ruínas. Mas talvez seja ja muito voz.
tarde. — Arrematou, voltando de novo a sua
contemplaçao. — Pai, queria que me desse uns momen-
— Venha, meu pai. — Julgar-se-ia que a tos da sua atençao.
filha o teria acordado, quando o veio Ésse seu filho era o predilecto, nao por
chamar. — Venha preparar o Shabat, que ser o primogenito, mas por ser rigoroso
apesar de estarmos em terra estranha, com a sua vida secular, com ortodoxia de
temos aqui de perpetuar Siao. princípios para com a comunidade, cumpri-
A noite caía sobre o Éufrates e o Quebar dor da lei Mosaica e um excelente musico.
como uma peça unica, compacta, a propria Tocava lira na perfeiçao.
sombra tenue dos salgueiros ja nao se dis- — Ja decidi, ha muito tempo, que nao
tinguia, mais tarde seria somente o murmu- vou tocar lira para a festividade dos nossos
rar das aguas que indicariam, no escuro, o opressores. No entanto, insistem. Vou deba-
volume espesso dos rios. ter-me com problemas.
Émbora nao desse excessiva importancia — Deus reservou-te uma tarefa, que nao
a idade, como limite para produzir uma sera certamente tocares o cantico do
obra salmodica, pensava com frequencia Senhor em terra estranha. — Anuiu o velho
que ja nao teria muito tempo, que talvez pai, enquanto com a cabeça procurava o
fosse ja muito tarde. exacto ponto cardeal para olhar, no vazio,
— Ainda quero sair daqui, regressar a rumo a Jerusalem.
minha terra. — Desejava sempre que a con-
— Nao sou o unico a pensar desta
versa se metia por aí, embora la nao tivesse
maneira — informou o filho — Ha muitos
as margens de um rio como aquele onde se
judeus a pensarem o mesmo.
poderia sentar. Sentar-se-ia debaixo do al-
pendre de uma casa. É pensava assim sem-
19
É, no entanto, estavam todos aflitos com religiosidade e tambem um sentido comuni-
a situaçao. Éra uma honra que os babilonios tario. Fizera bem em referi-lo, porque o ve-
os considerassem muito bons musicos e se lho concluiu os versos com «lembrando-nos
deliciassem a ouvir as liras dedilhadas por de Sião.»
uns dedos que so sabiam, agora, contar Depois veio aquela referencia aos sal-
salmos de angustia e tristeza, mas sempre gueiros. Havia inumeros, junto as colonias
com aquele ritmo vivo que um dia fizera oferecidas aos judeus, nas margens do rio
Miria executar uma remota dança ou David Quebar. «Nos salgueiros penduramos nos-
saltar a frente da Arca. sas harpas.»
— Talvez. — Concordou o velho — Mas Mas como uma centelha que sai do fundo
sempre e o cantico do Senhor em terra es- da fogueira que parece extinta, e revigora
tranha. Por muito que ambicionemos nao todo o fogo, Gedalias recordou que nos pri-
poderemos tirar desta terra um cantico pa- meiros anos de cativeiro, e mesmo muitos
ra o Senhor. — Repetiu, enquanto um vento anos depois, os babilonios insistiam para
inesperado fez uma passagem rapida pelos que cantassem as suas cançoes. Éra verda-
salgueiros, como uma musica agreste, de- de, que tinham permissao para celebrar as
frontando as ramagens. É entre as suas pal- suas festas, embora so cultivassem uma, a
pebras, ja muito flacidas, começaram a bri- Festa das Lamentaçoes aliada ao novo cos-
lhar umas pequeníssimas perolas. tume de orarem com os olhos voltados para
Uma nuvem mais branca, queria agora Jerusalem, mas tocar para aqueles que os
instalar-se entre as mais escuras que corri- levaram ao exílio, jamais.
am, ja havia um bocado, pelo ceu. Éra uma É, assim, começou a escrever:
nuvem muito simples, que nao se parecia «Porquanto aqueles que nos levaram cati-
com nada, nem suscitava qualquer desenho vos, nos pediam uma canção; e os que nos
a imaginaçao. destruíram, que os alegrássemos, dizendo:
O velho talvez pudesse agora voltar para Cantai-nos um dos cânticos de Sião.»
o seu sítio ao lado do rio, e levar os seus ins- Mas como numa terra impura, o homem
trumentos de escrita onde esperava ainda se guarda de contaminar o corpo, sem lugar
escrever alguma coisa a favor do mundo de culto, sem referencias físicas para situar
que lhe roubaram. A lua era uma quilha de a sua religiao, a nao ser no plano dos costu-
um barco a subir e a descer na luminosida- mes, dando maior importancia ao Sabado e
de de espuma, quase alva, de algumas nu- a Circuncisao, o velho e todos os outros ju-
vens. Nessa noite, cheia do rumor com que deus que puderam, enfim, regressar a Jeru-
as aguas, as vezes, substituem a ventania, salem, tinham imenso orgulho em poder
sentia-se com pensamentos inspirados. afirmar, como as palavras desse poema, a
— Junto dos rios da Babilónia nos assen- sua recusa: «Mas como entoaremos o canti-
tamos e choramos — disse em voz alta, e co do Senhor em terra estranha?».
achou que este começo do poema condizia ____________________________________________________
com a verdade, porque ja presumia a liçao
Do livro Como quem ia para longe. Baixe gratuita-
de quanto mais poetico mais verdadeiro.
mente seu exemplar AQUI.
Poderia ser mais narrativa que poesia, mas
era a verdade sentida.
— Filho — olhou para o primogenito — J.T.Parreira é poeta, escritor e ensaísta português.
Nao cres que esta e a melhor posiçao que Autor de seis livros de poesia e diversos e-books.
actualmente nos retrata, como um povo? Éscreve desde 1964 na revista Novas de Alegria.
Havia no entanto, que meter dentro do Mantem o blog Poeta Salutor.
paragrafo, dissera-lhe o filho, a saudade, a
20
RECIFE- MENINO POR AMOR
Ao toque do cada sino Foi tanto o vexame,
remeto à vida do meu Recife - menino. lado a lado com dois vagabundos
Nos quintais quase todos os frutos: expulsos fora de portas.
os que do oriente foram trazidos Mais que tudo:
e os que já se encontravam sendo o pior de todos eles.
no chão do descobrimento, Chistes, esgares, - porque te
as cores dos frutos nos quintais das casas apanharam?
celebravam a vida em todas as nuances
e eu adormecia sob aquele manto cintilante. Desfeito de formas
diante de estranhos homens
De tempos em tempos de fala obscura.
floriam as mangabeiras, Um deles me lançou uma praga alucinado
depois era a vez das mangas de rir uma risada sem dentes,
de amarelo, rosa e verde vestidas, até que se exumou de vez.
também as goiabeiras, os laranjais e abacateiros.
Vivíamos sob a exuberante copa dos jambeiros, Lágrimas em óleo quente.
e à espera de colher as bananas d’água, da prata e do ouro. Mais que as lanças rasgando-me juntas
e descolando carne da carne,
Recife era umidamente adornada. era a vergonha absoluta.
Outros frutos como araçás
pitombas e cajás enfeitavam Entardecia, virava-me
as mesas tropicais de Dezembro. o sol as costas. Monções de poeira
Em junho, sopravam para longe
a chuva caía fina como uma oração. toda-paixão pelos homens.
As ruas da cidade ficavam limpas Meu ouvido dizia: adormece !Yeshua!
exibindo um fulgor quase. Até que as cordas do coração
As águas escorriam das biqueiras, me soltaram e a descer, a descer,
e era um banho dos fluidos celestiais
feitos na maior brincadeira. vertiginoso preparo
para a permanência na
As tardes recebiam o enfeite das flores, região do silêncio sem respostas
bom dia, boa tarde, boa noite,
buganvílias, jasmins, margaridas, A noite desceu compacta e
dálias e sempre-vivas. Jerusalém mergulhava escura
Sempre as trazia comigo, pois as amava no sangue de um homem sem culpas
e as flores gostam de nossos amores.
Entre as famílias
a morte quando chegava A VISITAÇÃO
era por natural decorrência
Existe um perfume onde Tu estás,
e sem violência levava quem ela queria.
fragrância de rosas, alguma nota cítrica:
Um véu de estrelas forrava todo o firmamento. toques leves de malva e cássia.
Era augusto este recorte que uma menina via.
Além do perfume com que te anuncias,
Na varanda ficavam o pai, a mãe, tios e avós
uma luz diáfana. Vens assim
a discorrer sobre fatos decorridos ou imaginários.
Do tempo dessa casa antiga em suave aragem pela minha sala.
para mim ninguém partiu definitivamente. em suave aragem pela minha sala.
Eles continuam a existir no meio dessa paixão
da qual as estrelas são permanentes testemunhas. 21
UM OLHAR INEXTINGUÍVEL CANDEIA
O olhar soturno que Deus me deu
Deus se amplia, não é para ferir o mundo
além do meu espaço, mas para amá-lo.
meu gueto, meus guias. Amo-o com a candura
Ele vai muito além dos olhares límpidos
de meus esquadros, e subo ao mais alto edifício
usando régua e compasso de onde eu possa ser a candeia
que desconheço. que ilumine toda a cidade.

Na matemática simples do dia,


LITANIA
enquanto ainda estou no começo,
Ele está lá no futuro Trago dentro de mim
realizando promessas, uma oração como uma litania.
que mais próximas do meu Pai, não trago palavras fáceis,
passado já se encontram. em vão se amontoam os pedidos,
coisas. Não era isto que eu queria
Para melhor entende-lo, mas a ternura.
serve-me de espelho Hoje o céu está como que de chumbo,
a física quântica. vertigem dos joelhos
Por isto, minha palavra terem subido de repente.
traz à existência o que não existe,
e, como as águas, símbolo do seu Espírito, Guardo em mim a ânsia
da terra que me foi prometida.
vou perfurando fendas na Rocha sobre
-Não eram os frutos
o precipício. maiores aqueles
trazidos pelos espias?
Olho para Deus
vendo-o criar mundos dentro de outros mundos, Pai, não vim aqui
e a mover-se na velocidade de uma luz fazer orações compridas.
que neste momento já extinguiu tantas estrelas. Sobre estes territórios
tão vigiados transitam
os meus sonhos jamais olvidados.

DIANTE DO TRONO
Julia Lemos é natural de Caruaru, interior do estado de
Pernambuco, nordeste do Brasil. Radicada no Recife, tem forma- Quando cessarem
ção em Comunicação Social, nas áreas de Publicidade e Propa- as esperanças
ganda e Jornalismo, pela Universidade Federal de Pernambuco, e o quartzo não mais refletir
atuando como Coordenadora de Comunicação Social do Ministé- meu rosto prismático,
rio da Saúde, bem como repórter e redatora no Jornal do Comér- quando todos os venenos
cio e na Televisão Universitária . para curar ou para ferir
acabarem
Atriz, estreou no teatro infantil em 1977 com “Pedacinho de Lua” (de Tonico Aguiar). vou-me para diante de ti.
Em Olinda, fez parte do grupo de estudos do teatro de Bertold Brecht do Teatro Hermilo
Borba Filho, atuando em diversas encenações. Havendo de chegar
não lhe farei perguntas.
Co-autora do livro de receitas A Cozinha Estrangeira na Terra do Caju, com prefácio
de Gilberto Freyre, 1985; publicou os livros de poesia Carmem Antonio Migliacchio En- - Pai,
louqueceu (Edições Pirata- Fundação Gilberto Freyre), e A Casa Estrelada, pela Fundação respondi tudo de forma
de Cultura de Pernambuco, através da CEPE. Participou de diversas antologias. poética. Minha vida
foi de boemias frasais,
É pós-graduada em Literatura Brasileira pela Faculdade Frassinetti do Recife e mestra e fiz muitos amigos assim.
em Estudos Brasileiros pela Universidade de Lisboa. Tem inédito o livro de poesias A Ex-
22
posição dos Sóis e Poemas ao Rei.
cobras & lagartos Múmia

Manuel Adriano Rodrigues Rosa Leme

ha pessoas Éu era uma mumia no meio de


que ja cantaram conosco velhos hinarios Outras mumias.
pentecostais Éu entrei descontrolada
No grande salao
e nos disseram distancia Éu falava gritava, gritava...
e outros disseram de nos Éu gritava, mas era em vao.
cobras & lagartos Ninguem me ouvia.
sem nunca terem visto o vestígio de um vício qualquer Éstava sozinha.
na nossa boca As imagens ficavam inertes!
ja houve quem nos dissesse Varias delas eram de argila.
que temos o habito de ter os olhos abertos Outras Mumias
De louças valiosas...
e que se foram embora
As imagens eram de prata e ouro,
com medo da diferença De artistas habilidosos.
outros mais proximos Obra das maos dos homens.
que no passado viram o nosso interior Imagens, apenas imagens.
temendo a nossa nudez Tem olhos, mas nao veem;
ficaram calados Tem ouvidos, mas nao ouvem;
Tem boca, mas nao falam;
e nao nos quiseram abraçar Nariz tem, mas nao cheiram;
mas tambem ja houve quem nos tenha dito Tem maos, mas nao apalpam;
Amor Tem pes, mas nao andam;
e isso, Éu era uma mumia em forma humana.
Éu ja fui uma mumia
e o que importa Súplica de poeta No meio de uma multidao.
May Sousa Hoje sou apenas uma mulher
Que encontrou a salvaçao.
Deus,
Permita-me ser:
HEBREUS 11.1 Legenda tua!
Fazer-te conhecido, com tinta e papel.
Nira de Andrade

(Ora) sem fé é impossível agradar a Deus


DEUS SABE A HORA
(a)ssim foi escrito pelo autor aos Hebreus
(fé) é necessária para crer que Ele existe
William Vicente Borges
(é) preciso para quem na oração persiste
Deus sabe a hora de dizer SIM
(o) galardão daquele, que até o fim resiste...
e então sentimos a brisa da sua compreensão
(firme)za nas provas e nas tentações
Deus sabe a hora de dizer NÃO
(fundamento) dos que sofrem grandes provações
e sentimos a fragrância da sua sabedoria
(das) mulheres e homens que nos dão lições...
Deus sabe a hora de dizer BASTA
(coisas) que venceram e foram campeões.
e todas as nossas dores se vão
(que) dizer de Abraão, nosso pai na fé,
Deus sabe a hora de dizer AGORA
(se)m falar de Abel, Enoque e Noé...
e nossos joelhos se dobram em gratidão
(esperam) nas promessas do Jeová Jiré!
Deus sabe a hora de dizer CALMA
(e) xperimentam escárnios, açoites, cadeias e prisões.
e nossos medos são jogados ao chão
(a)inda assim com fé dentro dos corações,
Deus sabe a hora de dizer MUDA
(prova)dos no fogo, no deserto, na cova dos leões
e nossa alma segue outra direção
(das) suas falhas e fraquezas tiraram resistência
Deus sabe a hora de dizer NÃO TEMAS
(coisas) que enfrentaram com toda a persistência
e sentimos o poder de suas mãos
(que)rendo a prática da fé na obediência...
Deus sabe a hora de dizer EU TE AMO
(se)ndo apedrejados, serrados, mortos ao fio da espada;
e se prestarmos a atenção veremos
(não) desistiram nem abandonaram a sua jornada
que o diz a toda hora!
(veem) na esperança sua fé aperfeiçoada!!! 23
surpreendentes. Podia citar uma lista res-
peitavel de nomes de jovens que tinham
Joed Venturini deixado uma vida que levaria a uma morte
prematura e que tinham sido recuperados
Um grupo de garotos passou correndo ao ponto de se casarem, terem emprego e
pela frente da porta, enquanto o velho Éuri- serem fieis membros de igreja, e ate dois
co a fechava para sair. Um deles praticamen- que eram pastores.
te esbarrou no anciao, mas Éurico parecia Mas Éurico nao fazia propaganda de seu
nao perceber ou pelo menos nao se incomo- trabalho. Seria contrario ao seu estilo e per-
dar. Éra parte de sua maneira de reagir ao sonalidade. Alem de mais ele considerava
ambiente. É seu estilo poderia ser seu ministerio como uma simples re-
considerado perfeito. Fazia ja tribuiçao pelo que ele mesmo
quinze anos que vivia naque- recebera. Fora, em tempos
la favela e nunca fora assal- idos, um alcoolatra que es-
tado! Ninguem o molesta- tragara a vida e desgraçara
va. Vivia so e sossegado e a família. Teria morrido
era respeitado. assim, se nao fosse o amor
Saía pouco, pois era paciente e perseverante
aposentado. Ia metodica- de um antigo diacono da
mente a igreja evangelica igreja onde agora assistia.
mais proxima, mas tirando Éssa era sua historia. Éssa
isso, e as saídas diarias a pa- era sua vida.
daria e semanais ao supermer- Ultimamente, porem, o ho-
cado, era ali mesmo, nas estreitas mem andava um tanto preocupa-
ruas da comunidade pobre, que fazia sua do e nervoso. O caso que tomara parecia
vida. O velho era conhecido como uma espe- nao se resolver como os anteriores. Éstava
cie de operador de milagres. Distribuía ja ha meses orando, jejuando e lutando pela
compaixao como o orvalho matinal e sua es- vida de Édmilson e parecia nao haver ne-
pecialidade, se e que se poderia chamar as- nhuma sensibilidade da parte do rapaz. A
sim, era recuperar jovens desviados. É na cada nova investida de Éurico o jovem se
sua favela havia muito material de trabalho. afundava mais em sua vida de pecado. Co-
O anciao tinha uma estrategia pouco co- mo chefe de uma facçao da gangue, tinha di-
mum. Poderia se dizer que ganhava pela nheiro e poder sobre outros jovens. Nao se
exaustao. Primeiro escolhia, em oraçao, um importava com nada a nao ser usar e abusar
jovem que estivesse mesmo muito mal. Ém de seu poder sobre os assustados morado-
geral eram delinquentes envolvidos com o res da favela. Passear de carro e trocar de
trafico de drogas e membros de gangues da namorada eram outros de seus passatem-
favela. Éntao iniciava uma maratona de je- pos e, claro, tudo bem regado a chope e co-
jum e oraçao por aquele jovem. Quando caína.
sentia que tinha suficiente cobertura de Éurico nao era homem de desistir facil.
oraçao, “atacava”. De tal forma procurava o Nao sentira ainda que fosse tempo de dei-
seu alvo que as vezes virava sua sombra. Ém xar de lutar pela vida e salvaçao de Édmil-
regra era rejeitado de início, mas ia ganhan- son e por isso mais uma vez apos uma se-
do terreno ate que o jovem acabava ouvindo mana de intensa oraçao, ele se dirigia ate o
o homem. local aonde sabia que poderia encontrar o
Mesmo com meios tao arcaicos a psico- rapaz.
logia moderna, o anciao tinha resultados O jovem nao estava em casa. Fora visto indo
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para o topo do morro, aonde tinham uma nais da ultima dose de droga.
casa que servia como uma especie de prisao Éurico levantou a Bíblia em sinal de
para inimigos capturados ou devedores que identificaçao. A arma foi baixada e os olhos
nao pagavam suas remessas de droga. Éra do rapaz se encheram de impaciencia e
ali, no terraço, que costumavam executar aborrecimento.
aqueles que tinham atravessado o caminho — Ce num me larga velho? Me deixa, po!
dos líderes do pedaço. Éurico estremecera, To cansado de te aturar! Ve se me esquece!
mas nao de medo. Éstava seguro. Temia pe- — Boa tarde, Édmilson! — o anciao res-
lo seu alvo. Éra pelo moço que sentia medo. pondeu em tom triste.
Subiu custosamente o morro, parando Um silencio pesado se seguiu.
varias vezes. A idade ja nao facilitava. As oi- — Nao posso desistir de voce, Édmilson.
tenta primaveras ja tinham passado ha al- — continuou o anciao — Voce esta no meu
guns anos e os musculos nao tinham a força coraçao. Quero ver voce salvo e seguro nos
de outrora. Perto do local que queria alcan- braços de Jesus!
çar o anciao foi barrado por dois garotos ar- O Jovem riu com sarcasmo e balançou a
mados, de uns dezesseis anos. cabeça.
— É aí vovo, aonde e que pensa que vai? — Os braços que eu quero sao outros. —
— Vim ver o Édmilson — Éxplicou Éuri- gozou ele — Alem do que, se voce que reza
co com toda a naturalidade. aproveita e ve se ajuda esse aqui que preci-
— Manero — riu o outro garoto - O ve- sa mais que eu — riu apontando o cadaver
lho, ce num acha que ta velho demais pra — Éu tenho mais que fazer.
andar cheirando? Dizendo isso o rapaz passou pelo velho
Éurico baixou a cabeça cansada e levan- com desdem e o empurrou com violencia.
tando-a, fitou o rapaz bem nos olhos, de tal Éurico perdeu o equilíbrio e caiu sentado
forma que o fez ficar sem jeito. Foi entao junto ao muro que circundava o terraço e o
que o outro notou a Bíblia na mao do velho jovem se foi.
e reagiu: O anciao encolheu-se. Éstaria errado
— Pode passar velho, vai logo! desta vez? Seria Édmilson um caso realmen-
Mais uma vez a superstiçao local se fazia te perdido? Na verdade o livre arbítrio era
sentir. Os traficantes, por regra, nao se meti- de se considerar. Éle nao podia forçar a von-
am com “crentes” porque diziam que dava tade de alguem a quem Deus fizera livre. No
azar. As evidencias confirmavam. Éurico entanto o peso da alma do jovem o fazia so-
avançou ate a casa. Éra um casarao abando- frer e as lagrimas brotavam de seu rosto
nado. Por todo o lado cheirava a dejetos hu- cansado. Ali ficou com a cabeça apoiada nos
manos e havia ratos andando em plena luz joelhos chorando e clamando por uma
do dia. Um despacho de macumba bem na oportunidade de ser verdadeiramente inter-
entrada terminava de compor o quadro ma- cessor, de ficar na brecha por este rapaz.
cabro. O tempo passou. Éurico nao sabia se
O anciao nao hesitou. Subiu as escadas muito ou pouco. Quando se deu conta havia
gastas. Nao havia ninguem no 1º andar, nem outra pessoa no terraço e o sol declinava ra-
no 2º. Ao chegar ao terraço ja o velho arfava pidamente no horizonte. A presença dessa
novamente. Parou e viu um jovem negro, al- pessoa o fez erguer-se um tanto assustado.
to, de soberbo aspecto, perto de um corpo Limpou as lagrimas do rosto e o nariz que
que jazia no chao em meio a uma poça de pingava e tentou se recompor. Mas a aproxi-
sangue. Ao pressentir a presença do homem maçao da outra pessoa o deixou deveras
o jovem apontou a arma com ar furioso e surpreso.
olhos arregalados onde se evidenciavam si- Saída como que de uma especie de nevoa

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veio ao seu encontro uma velha de aspecto avançou ate o parapeito da varanda exami-
medonho. Curvada e cheia de reumatismo nando as redondezas. Éurico fez enorme es-
ela parecia nao ter sequer um osso que nao forço para sair de seu estado quase catato-
fosse deformado. Érgueu o rosto para Éuri- nico.
co e o fitou com superioridade. O anciao tre- — Posso ajuda-la de alguma forma? —
meu sem querer. perguntou com educaçao.
O rosto da velha era de tal forma enruga- A velha o mirou de novo com aquele
do e cheio de espinhas e pontos negros que olhar gelado e desdenhou:
so o fixa-lo ja era penoso. O nariz de propor- — Nao e voce que quero! — respondeu
çoes significativas era peludo e torto. A boca secamente.
irregular de labios secos. Da cabeça quase — Éntao, quem e? — insistiu o anciao ja
careca saíam uns poucos fios de cabelo gri- com seus pressentimentos.
salho em total desalinho. A mulher trazia A mulher parecia incomodada com a
uma roupa toda negra e esfarrapada condi- presença e a insistencia do homem e pare-
zente com seu aspecto físico. Sua presença ceu ataca-lo. Voltando-se com rapidez sur-
causava repulsa e medo, tremor e asco ao preendente o questionou:
mesmo tempo. — Nao tem medo de mim?
Depois do primeiro susto Éurico tentou Desta vez foi Éurico que ficou firme e
se recuperar. Pensou que fosse alguem da com olhar tranquilo e seguro sorriu e res-
família do homem morto que permanecia pondeu:
no extremo do terraço e tentou ser gentil: — Deveria ter?
— Boa tarde, senhora. Veio pelo moço — A grande maioria dos homens tem…
acidentado? — perguntou apontando o ca- — disse a velha com segurança.
daver. — Parece ter muita experiencia! — refle-
— Acidentado? — pronunciou a velha tiu Éurico.
com sarcasmo. — Alguma... — devolveu a outra com
Sua voz era metalica e grave. Um tanto sarcasmo.
inesperado. Causava arrepios na medula e — É esta procurando... - sugeriu o an-
parecia penetrar os ossos. Nao parecia ser ciao.
humana. — Édmilson - declarou a velha de forma
— Acidentado? — repetiu a velha. seca e voltou a perscrutar a vizinhança.
— Bem — titubeou Éurico sem jeito — Éurico ficou abalado com a revelaçao e
eu, na verdade, nao sei. Quando cheguei se aproximou corajosamente da velha ape-
aqui ja estava morto. sar de que o frio que ela transmitia ser a ul-
A velha parecia nao estar interessada no tima coisa do mundo que queria experimen-
que ele dizia. Aproximou-se do anciao e o tar de novo. De subito, sentiu-se cheio de
rodeou examinando cada detalhe dele e em ousadia para lutar pelo jovem que pretendia
especial a Bíblia em sua mao. A sua aproxi- ver salvo, e pressentia que esta ancia so po-
maçao Éurico experimentou um fenomeno dia trazer mas notícias. Chegou-se com con-
de todo inusitado. O chao parecia ter se tor- vicçao e disparou:
nado frio. Como se a temperatura a volta da — Quem e a senhora?
mulher fosse bem mais baixa que o resto do A velha olhou Éurico com um misto de
ar. A tal ponto se fez sentir isso que o pobre admiraçao e desprezo e sorriu. Um sorriso
homem quase tremia de frio e segurava o que faria gelar o coraçao do mais corajoso.
queixo para que nao batesse. De sua boca disforme se viam uns poucos
A velha tornou a se afastar dele sem pa- dentes amarelo-acastanhados e a risada
lavras como se tivesse perdido o interesse e qual grito de hiena na noite africana parecia
26
vindo de outro mundo. A mulher, olhando o ciao - Éle nao esta pronto para ir. Precisa de
homem no fundo dos olhos, pronunciou cal- mais tempo. O amor de Deus ha de vencer
mamente: em sua vida, mas precisa de mais tempo.
— Sou a Morte! — É e esse tempo que voce quer com-
— Nao pode leva-lo! — foi a reaçao ime- prar para ele? — sugeriu a velha rindo.
diata e quase impensada do anciao. — Se for possível… — clamou ele.
A Morte mostrou surpresa, franzindo o — Possível e… — disse ela — Nao seria a
sobrolho que logo abriu em novo sorriso primeira vez. Tem-se feito muitas vezes e
desdenhoso. creio que ainda se farao muitas mais.
— Voce vai me impedir? — É ele tera tempo suficiente? — quis
— Nao posso... — reconheceu Éurico — saber o homem ansioso.
Mas ele nao esta pronto! — Isso nao pode saber. So o Todo Pode-
— Isso nao e problema meu. — deu de roso sabe essas coisas. Pode ser que sim.
ombros a velha — Cumpro minhas obriga- Pode ser que nao. Acha que vale a pena
çoes e chegou a hora do rapaz. Se nao se mesmo assim? Morrer sem ter a certeza?
preparou para me receber e problema dele. Pode ser em vao… — tentou a morte ma-
— É meu tambem. — protestou o ho- treira.
mem — Éu assumi a responsabilidade por — O amor nunca e em vao! - sentenciou
ele. Éurico — Éstou disposto a dar a Édmilson
— Ninguem pode assumir a responsabi- mais uma oportunidade, nem que seja a ul-
lidade por outro. — devolveu a Morte — Ca- tima!
da um tem que me enfrentar sozinho e a ho- A morte balançou a cabeça e chegou-se
ra de Édmilson e chegada. ao fim do terraço aonde se via toda a favela.
— Éntao, me leve a mim. — tentou Éuri- Suspirou com ar cansado e olhou mais uma
co ja desesperado — Éu posso ir ja, estou vez com seus pequeninos olhos negros o
pronto. Nao tenho medo de voce. Leve-me homem que a observava em suspense.
no lugar dele! — Tanto trabalho a fazer... Voltarei por
Agora o homem parecia pela primeira voce... Amanha!
vez ter conseguido a total atençao de sua Antes que Éurico pudesse dizer qualquer
interlocutora que o examinava com mais coisa uma nevoa vinda nao se sabe de onde
cuidado ainda. A morte aproximou-se nova- encobriu a velha e a sua figura fantasmago-
mente e o frio glaciar de ainda a pouco vol- rica desapareceu.
tou a gelar Éurico de forma desagradavel e O homem ficou muito tempo ali em pe
quase insuportavel. Tudo nele clamava por sem saber bem o que se passara com ele.
se ver livre dessa sensaçao, mas ficou quie- Fora sonho? Fora visao? Fora real? Como sa-
to, em seu interior lutando pela alma de seu ber a verdade? O anciao sentia-se confuso.
protegido. Seria genuíno que ele negociara com a mor-
A morte percebeu a luta do homem e sua te e se oferecera para ir ao lugar de Édmil-
forte resoluçao e se afastou lentamente. son? Isso seria possível? Seria aceito? No
— Tem a certeza do que me propoe? — dia seguinte seria a sua vez? Éstaria real-
questionou tentando verificar a certeza do mente tao preparado como se julgava?
homem. Com esses pensamentos na cabeça ele
— Sim! — afirmou Éurico com total con- deixou o local e a medida que descia do
vicçao. morro notava toda a agitaçao típica do fim
— É porque faz isso? — quis saber a de dia, mas algo mais do que era normal. Fi-
morte. nalmente um jovem o informou. A polícia
— Pela salvaçao dele. — explicou o an- havia estado no morro durante a tarde. Ti-
27
nha havido troca de tiros e Édmilson fora do — É era horrível!
baleado. Éstava no hospital. — Éu sei. — balançou a cabeça o anciao
Éurico estremeceu. Tinha que verificar. — Mas nao precisa ter medo dela agora. Vo-
Sentia-se cansado. Na verdade exausto, mas ce vai viver. Mas o quanto e como vai depen-
nao teria paz sem confirmar o que sucedera. der de onde voce vai colocar o coraçao.
Questionou sobre o hospital em que o jo- Na entrada do quarto uma enfermeira
vem estaria internado e foi ate la, chegando fez sinal ao anciao que era hora de se reti-
ja noite cerrada. Procurou o medico que rar. Édmilson segurou o braço dele com an-
atendera Édmilson. O clínico sentou com o gustia. Ém seus olhos ele via agora todo o
anciao e parecia confuso. vazio de seu coraçao, toda a busca de sua
— Foi algo muito estranho. — disse o alma.
medico — O rapaz foi baleado tres vezes no — O que e que eu faço? — perguntou
abdomen, na regiao do fígado. Chegou aqui com voz embargada.
com hemorragia interna incontrolavel. Nao Éurico o olhou com carinho. Colocou sua
havia nada que pudessemos fazer. Nem se o Bíblia na cabeceira. Éra a sua velha Bíblia.
tivessemos recebido logo apos os tiros. Mas Companheira de tantos anos. Ganhara aque-
tinham passado mais de duas horas! Éle es- le livro do homem que o levara a Cristo. Éra
tava a morte! O pulso estava indo e todos seu mais precioso tesouro. Mas sentia que
nos preparavamos para deixa-lo cadaver agora o rapaz precisava mais dela do que
quando, de repente, o sangue parou. O cara ele. Sorriu de leve e acrescentou:
se recuperou bem ali, a nossa frente. Olha, — Comece lendo o livro onde esta mar-
se eu nao tivesse visto, nao acreditaria. Se e cado. Depois, quando sair daqui procure o
que existe essa coisa de milagre, este foi pastor Joao da igreja la da favela. Éle sabera
um! te ajudar. Nao desperdice seu tempo, meu
Éurico ouviu tudo com lagrimas nos filho! A vida e curta! Voce nao sabe o que
olhos e sentindo que, afinal, tudo o que vi- vem amanha.
vera fora verdade. Cheio de convicçao e cer- — Voce vira me visitar? — quis saber o
teza conseguiu autorizaçao e chegou a cabe- moço.
ceira do moço por quem se dispusera a — Nao sei. — respondeu o velho com o
morrer. O jovem orgulhoso e cheio de anti- olhar perdido — Tenho amanha um com-
patia que ele vira no começo do dia ja nao promisso muito importante. Logo voce sa-
estava ali. Édmilson tinha um ar assustado bera.
de garoto pobre que era o verdadeiro esta- Com uma breve oraçao ele se despediu
do de sua alma. Olhou Éurico com vergonha do moço e saiu. Trazia o coraçao em paz.
e uma pitada de esperança. Tremia ao lhe Sentia que aquele jovem estava a caminho
contar. da recuperaçao. Seria difícil o caminho e
— Foi uma emboscada. O meu pessoal muito espinhoso. As tentaçoes seriam mul-
me traiu. O desgraçado do Mendes queria a tiplas e a luta tremenda. Mas ele queria
minha posiçao. Miseravel! Vai pagar caro! — acreditar. Éra tudo que precisava. Fizera a
dizia com o rosto se contorcendo de dor e sua parte. Talvez ate demais. É com esse
raiva. pensamento enchendo sua mente chegou a
— Ainda odiando? — interrompeu Éuri- casa finalmente e dormiu um sono pesado,
co — Isso nao te trouxe nada de bom. sem sobressaltos, cheio de paz.
O moço parou de falar e o olhou triste. No dia seguinte, levantou-se a hora habi-
Desta vez parecia reconhecer a verdade nas tual. Fez tudo como em qualquer outro dia.
palavras do velho. Por que seria diferente? Foi o que pensou. O
— Éu vi a morte! — disse entao tremen- dia inteiro, porem, esperava sentir aquela
28
presença gelada que o envolvera no dia an- — Ah! — riu ela e se aproximou esten-
terior e que certamente o viria buscar. Mas dendo a xícara de cha fumegante e cheiroso.
nada aconteceu de manha e a tarde ia ja A sua aproximaçao ele sentiu o frio que
avançada quando se sentou em seu sofa de lhe percorrera o corpo no dia anterior. Mas
leitura e adormeceu com um velho livro de este nao era o mesmo tipo de frio. Nao gela-
poesia no colo. va. Nao fazia tremer. Éra mais um tipo re-
Acordou com uma sensaçao estranha e frescante, qual brisa gostosa em tarde aba-
imediatamente sentiu que nao estava so. fada.
Um arrepio percorreu sua espinha, mas re- A moça fez sinal e ele tornou a sentar-se
cuperou depressa e levantando-se deu de no sofa. Éla foi postar-se nao muito longe,
cara com uma moça que, sentada a mesa da bem em frente a ele.
sala, preparava um cha. — Na verdade foi comigo que falou on-
Éra jovem e extremamente bela. Alta e tem. — continuou a morte — Mas ontem vo-
esbelta, de feiçoes finas, rosto pequeno ce me viu como Édmilson me veria. Ontem
emoldurado por abundante cabelo castanho eu era a morte aos olhos dele. Hoje estou di-
claro, olhos enormes de um verde enigmati- ferente, ou talvez nao. Na verdade nao mu-
co, labios bem desenhados e um queixo ar- do. O que muda e a maneira como as pesso-
tístico. Éra branca, muito branca e dela pa- as me veem.
recia emanar um perfume doce inebriante Éurico abanou a cabeça. Fazia sentido.
que o anciao sentiu ser delicioso demais. Éra mesmo bastante logico. Sorriu. Nao po-
Éurico sorriu diante de tal visao e lim- dia evita-lo. Como temer uma morte com es-
pando a garganta, se desculpou: ta cara?
— Peço desculpa nao a vi entrar, estava — Ésta preparado?
lendo e creio que cochilei. — Sim! — disse prontamente o homem
— Nao tem problema, eu tenho tempo. sem hesitar — É Édmilson?
— ela respondeu numa voz maviosa e musi- — Tera sua oportunidade.
cal. — É sera suficiente? - insistiu ele.
É as palavras foram acompanhadas de — So o Todo Poderoso sabe! — decretou
um sorriso que trazia a beleza sombria de ela — Tome seu cha. Voce ja fez sua parte.
uma noite de luar. Éurico nao pode evitar
um novo arrepio, mas nao sabia como rea- Novo sorriso encheu o ar de parte a par-
gir. te. Éle bebeu o cha e encostou a cabeça na
— Ém que posso servi-la? — quis saber, poltrona. Fechou os olhos sentido o perfu-
sempre educado. me que enchia o ar. Logo estava dormindo.
— Temos encontro marcado. - lembrou a No outro dia de manha corria a notícia
moça com certo ar de surpresa no rosto — na favela. O velho Éurico morrera na tarde
Certamente nao esqueceu! anterior enquanto dormia e o barbeiro que
O anciao recuou um passo e parou. Ésta- costumava cortar-lhe o cabelo comentava:
va confuso e admirado. Balançou a cabeça e — Isso e que e uma Bela Morte!
fixou melhor o olhar. Baseado em João 15:13:
— Tenho encontro marcado com a... — “Ninguém tem maior amor do que este: de dar
nao foi capaz de dize-lo. alguém a própria vida em favor de seus amigos."
— Comigo! — completou a moça.
— Nao pode ser! — continuou estra- Joed Venturini é Pastor da Terceira Igreja Batista de
Lisboa, Mestre em Missiologia, Medico especialista
nhando o velho.
em Medicina Tropical e Éscritor.
— Porque nao? — insistiu ela. Leia mais do autor em:
— Nao foi voce que vi ontem! http://joedventurini.blogspot.com.br/

29
Galeria Lya Alves
Acrílica sobre papel - 21x30 cm - ano 1998
"Batuque"

Grafite no
‘Galerio’, enor-
me painel ao ar
livre que fica
entre a estação
Coelho Neto e a
Estação Colé-
gio, na cidade
do Rio de Janei-
ro.
30
Lya Alves Nasceu em São
Gonçalo e vive em Niterói -
RJ. Começou a pintar em
1998, e a grafitar em
2008. O eixo temático do
seu trabalho é alienação,
coisificação e fetichismo e
suas obras promovem refle-
xões e críticas ácidas sobre
o consumismo através de
fábulas visuais e antropo-
morfismos.
Além de pastora e artista
plástica, a múltipla Lya é
ainda quadrinista (HQ Guer-
reiros de Deus), grafiteira e
designer de moda, e tam-
bém ativista cultural.
Conheça mais do trabalho
“Anastácia" da autora em Págiina em P/B da HQ Guerreiros de Deus
Acrílica sobre tela - 60x40 cm - ano 2008
lyaalves.blogspot.com.br/

Em sentido ho-
rário: Lya grafi-
tando um de
seus temas
prediletos, a
Águia; Grafite;
grafitando uma
rosa; Águia de
Fogo (ilustração
digital).

31
laborar com a obra dela, uma vez por mes
levava um saco de raçao para de alguma
Sammis Reachers maneira somar nas despesas. Nesses dias
ela convidava-me para entrar, e passei a fa-
Sabia o nome dela das notas de entrega: miliarizar-me tambem com os caes.
Norma ou Dona Norma. Nunca conversava- Éra professora aposentada da USP. Tinha
mos muito, – Boa noite, oi meu filho, e voce, um filho apenas, funcionario de uma agen-
que bom, voce e o mais simpatico, cia do Banco do Brasil nos ÉUA.
aquele outro rapaz e meio É assim nossa amizade foi es-
grosso... treitando-se, tanto entre mim
– Éle e gente boa, dona e dona Norma, como com
Norma, veio do interior, e os caes.
mais assustado do que Havia em sua casa um
grosso... – Éssa foi nossa patio coberto que servia
maior conversa. de quintal, onde ela fizera
Um dia encontrei-a na pequenas celas de canil, de
rua Bras Cubas, proxima a Acli- um lado e outro. Os animais
maçao, a longos quilometros de sua casa. mais ferozes, ou que sempre arruma-
Éu estava indo para meu turno na pizzaria, vam encrenca, permaneciam presos a maior
que ia das 15h00 as 23h30. Éla tentava apa- parte do tempo, e eram liberados apenas
nhar um caozinho que estava embaixo de quando os demais estavam nas celas. Den-
um carro estacionado. Parei a moto e fiquei tre eles, Drago, um pitbull que matara tres
observando-a. Éla ja idosa, tinha dificulda- cachorros e ainda ferira um homem que o
des. Desmontei para ajuda-la. tentara matar, e que ela salvou de ser poste-
– Ola dona Norma! Quer ajuda aí? – disse riormente sacrificado; Lonlon, nome singelo
-lhe, ja me agachando do outro lado do veí- para um dogue alemao especialmente hos-
culo e chamando o cachorrinho. Consegui til; e a cereja do bolo: Sem Matilha, um lobo
apanha-lo, era bem mansinho e magricela. Guara, com a aparencia marcial, marcado de
Éla o colocou numa dessas caixas especiais combates, que ela adotou quando o circo
para o transporte de pets. que o mantinha, impedido de continuar
Sempre imaginara que ela era uma pro- com animais selvagens devido a uma lei de
tetora de animais, dados os muitos latidos 2005, foi obrigado a desfazer-se dos mes-
que ouvia, disparados de dentro de seu mos. O dono do circo, como ela gostava de
quintal, mas nunca tive certeza. Perguntei: dizer, ‘espanhol morenao de Zaragoza’, de-
– Éste tambem e da senhora? Ésta longe veria doa-lo para um zoologico, como a mai-
de casa hein! oria dos demais animais. Mas nao apareceu
– Nao, meu filho, este esta abandonado. zoologico algum interessado em apanhar o
Éu sempre que posso recolho elezinhos e lobo, os dias foram passando e o dono do
levo pra casa... mesmo resolveu da-lo para dona Norma.
Com o tempo, ja nao me estranhavam, e
*** passei a alimenta-los tambem.

Depois daquele dia, passamos a conver- ***


sar mais, e eu sempre perguntava pelos Fui acordado pelos socos que ameaça-
caes. Éla familiarizou-se ainda mais comigo, vam derrubar minha porta. Levantei-me
passou a relatar das dificuldades no trato desnorteado, sonhava com a namorada que
dos exatos trinta e dois caes. Comecei a co- eu nao tinha. Abri a porta.
32
– Voce e Gabriel Motta? O cenario era terrível. Marcas de sangue
– Sou eu, que foi, sou trabalhador – disse, ainda parcialmente umidas no chao. Os poli-
entre assustado e intimidado pelo uniforme ciais disseram que nada fora roubado. Mas
que vi. por que?
– Houve um problema, um homicídio, ta, Havia outro fato sinistro. A cela do lobo,
e a princípio voce esta sendo detido para o Sem Matilha, apresentava quatro perfura-
averiguaçao. çoes de bala no portao. No entanto, embora
Um soco velado na cara do crente, logo o formato da cela, bastante estreito e alon-
pela manha. Um soco e depois um tiro como gado, tornasse quase impossível que o ani-
que por dentro: mataram dona Norma. mal nao fosse atingido, ele estava em perfei-
Silencio na viatura, apenas relataram to estado, aparentemente calmo, observan-
que uma vizinha havia dito que eu era a uni- do tudo com seus olhos escuros. O lobo nao
ca pessoa que costumava visitar a casa. Fo- era de latir ou ganir; era um animal quieto e
ram ate a Pizzaria Panosian e conseguiram arisco, que na natureza nao vive em bando,
o meu endereço. e se aproxima de outros lobos apenas para
Na delegacia o delegado pos-me a par acasalar. Por que teriam disparado contra a
dos acontecimentos. Dona Norma foi encon- cela?
trada morta num dos cantos de seu quintal, Observando dentro da casa, lembrei de
proxima ao muro dos fundos. Tres caes tam- que a dona Norma detestava bancos; ela, fi-
bem foram mortos. Dona Norma foi espan- lha de velhos anarquistas paulistas, oriun-
cada e esfaqueada; os caes foram baleados. dos da colonia Cecília, nao confiava seja em
Um vizinho ouviu os disparos, por volta das governos seja em instituiçoes financeiras.
quatro da manha, e chamou a polícia. Éla guardava os recursos que seu filho lhe
Dei as explicaçoes que me pediram. Nao enviava dentro de casa. Sera que os margi-
trabalhara no dia anterior, fui ao culto na nais sabiam disso, e queriam o dinheiro?
igreja que costumava frequentar, saí de la Num momento em que os policiais verifica-
em torno de 22 horas, voltei para casa, fiz vam as trancas da janela da sala da casa, fui
um lanche e dormi, talvez pelas 23 horas. ate o quarto tendo em mente a ideia da exis-
tencia de um cofre. Olhei todo o quarto, as
Apos seis horas de perguntas, respostas coisas reviradas. Nada. Pelas marcas dife-
e esperas, entrecortadas por telefonemas e rentes na pintura, notei que dois quadros da
comparecimento de amigos, vizinhos e tes- parede foram arrancados. Éntao estava cla-
temunhas, consegui ser liberado. Perguntei ro que eles procuravam por um cofre. A um
ao delegado se poderia ir ate o local do cri- canto, sobre roupas íntimas aparentemente
me, eu poderia ajudar nas investigaçoes. Éle tiradas de uma comoda, jazia uma estatua
a princípio recusou, mas com insistencia de um cao, um pastor alemao de ceramica
consegui a autorizaçao. Éu precisava ir ate partido ao meio.
la, precisava ver o que acontecera, ajudar no Algo entao estalou em minha mente, e
esclarecimento, ajudar os caes. tudo pareceu ganhar simplicidade. Pois
Éle me mandou junto a dois dos investi- imediatamente visualizei a estatua que fica-
gadores. Ja ao entrarmos, os caes começa- va logo junto a entrada, ao lado esquerdo da
ram a latir. Dois funcionarios do centro de porta da casa. Uma escultura bastante feia,
zoonoses da Prefeitura estiveram la mais representando um cachorro de raça indefi-
cedo, a pedido da polícia, e alimentaram nível, feita de cimento, de uns oitenta centí-
com raçao os caes. A maioria estava presa metros de altura.
nas celas dos canis, mas alguns mais doceis Nao falei nada, nem cometi a temeridade
permaneceram soltos. de ir analisar a estatua em frente aos polici-
33
ais. Éu era um motoboy habituado as noites gens, documentos, postais, escrituras de
efervescentes de Sao Paulo: conhecia a polí- terrenos, e papeis escritos em italiano, tal-
cia bem demais para dar um mole desses. vez de seus pais.
Saímos. Mas a ideia de dinheiro ficar Ja passava de uma da manha. Nao dormi-
‘perdido’ dentro de uma estatua, enquanto ra desde a hora em que fora acordado pela
os caes eram recolhidos para o Centro de polícia; resolvi deitar a um canto, no quintal
Zoonoses, para serem sacrificados caso nao mesmo, e dormir um pouco. Os caes, tristes
conseguissem adoçao, nao me deixava ter e agitados, solicitavam-me a todo instante
paz. Éla vivera para que eles vivessem: ago- em busca de carinho, eu precisava ficar um
ra, morta, morreriam todos com ela? Nao, pouco com eles. Éscolhi um canto bem escu-
com o dinheiro eu poderia providenciar um ro, para o caso de alguma ma eventualidade,
lugar para eles, ate conseguir remaneja-los como dormir demais e ser surpreendido pe-
entre outras pessoas ou Ongs que os criari- la polícia. Coloquei o despertador para as
am sem o risco de serem sacrificados. 4h30, para que eu pudesse pular o muro, e
Mas o tempo era inimigo dos caes. Éu ir a polícia dizendo que eu ficaria responsa-
precisava encontrar o dinheiro antes do dia vel pelos caes, para o que eu, em secreto,
seguinte, quando eles começariam a remo- utilizaria o dinheiro. Deus sabia que minha
çao dos animais. É havia outra questao a me causa era justa, e eu sabia que dona Norma
preocupar: segundo o delegado, o filho de ficaria grata.
dona Norma ainda nao fora localizado nos Havia o risco de tudo aquilo dar errado,
ÉUA. Mas ele possuía residencia e emprego eu ser novamente preso, pego com o dinhei-
fixos, e a localizaçao era iminente. É, como ro, e aí nao teria desculpa ou alibi que me
ela sempre me relatava em tom de lamuria, livrasse. Mas ao deitar-me, e ver mais de do-
ele, criado a maior parte da vida pelo pai, ze caes achegarem-se e deitarem sobre
“detestava cachorros.” Um com quem eu mim, ao meu lado, aos meus pes, eu sabia
nao poderia contar para nada. que valia a pena arriscar-me por eles. Éu
A noite voltei a casa. Deixei a moto num era tudo que eles tinham.
posto de gasolina onde conhecia os frentis-
tas, fui a pe ate a casa, ladeando-a ate a par- * * *
te dos fundos, que dava para uma pequena Acordei com o som de disparos e gani-
mata. Com ajuda de um tronco, pulei o mu- dos. Éra inacreditavel o caos, e imediata-
ro. Os cachorros soltos latiram, mas ao me mente pensei que se tratava de um pesade-
reconhecerem fizeram festa, e alguns davam lo. Vi dois homens a alguns metros de mim,
aqueles gemidos de tristeza, acredito que ja proximos a porta da casa. Um deles estava
sentindo a falta de sua mae. armado, e disparava contra o lobo. O lobo
Distribuí a raçao que ainda estava no de- estava de costas para mim, e algo em sua
posito, soltei a maioria dos caes doceis que face parecia brilhar intensamente, como se
conhecia. O lobo gania estranhamente, e re- ele tivesse uma lanterna no rosto. O homem
solvi solta-lo tambem. Ém seguida fui a es- que empunhava a arma disparou entre cin-
tatua, apalpando-a de todos os lados. Sobre co e seis tiros, e o animal nao deu um pio,
o pedestal de cimento, a estatua do cao mo- mesmo sendo balançado pelo impacto dos
veu-se ao meu toque; estava solta. Levantei- projeteis. Ém ato contínuo, alguns caes fe-
a entao, descobrindo sob ela um espaço es- charam um círculo sobre os homens. Os
cavado, e acondicionado ali uma caixa do olhos dos animais brilhavam! Mas o que era
tipo porta-joias, e embrulhos plasticos por aquilo?!? A luz que brilhava no lobo era a
baixo. Na caixa estavam dezenove mil e seis- mesma incandescencia que ardia nos olhos
centos reais, em notas de cem. Nas embala- dos caes, mas em menor tom. Olhei para os
34
lados, e vi outros caes, mas estavam ame- eu usei a unica arma que tinha. Num misto
drontados, e nao havia brilho em seus de suplica, terror e simples reflexo, eu gri-
olhos. Éntao, nao sei como, talvez com a cal- tei:
ma de achar que estava realmente tendo um – Jesus!!!
simples pesadelo, com todo o nonsense e Os caes deram um chiado agudo, mas o
distopia que um pesadelo pode apresentar, lobo apenas me observava com seus olhos
foi que reparei que os homens estavam cer- acesos. A visao era insuportavel: eu fechei
cados apenas por cadelas, sete ou oito. meus olhos e em terror principiei a orar. Co-
Énquanto refletia, o lobo uivou, e entao mecei em silencio, mas depois vieram-me a
senti uma pontada, uma cutucada no peito, mente em tumulto imagens e lembranças de
no coraçao, nao sei. As cadelas saltaram so- cultos pentecostais, de demonios sendo
bre o homem que tinha a pistola. O outro, exorcizados, e comecei a orar em voz alta.
apavorado, refugiara-se na casa, fechando Abri entao os olhos, mas sei que nunca de-
imediatamente a porta. veria te-lo feito: o lobo abaixara a cabeça e
O indivíduo armado disparou a esmo. Ao me olhava com uma expressao de dor quase
ferir uma das cadelas com o disparo, o ate humana, mas distorcida, doentia, algo que
entao invulneravel lobo gritara; outras tres nunca vira nas muitas expressoes que um
cadelas saltaram sobre as suas costas, e ao cao ou qualquer animal podia assumir. Éle
desequilibrar-se e cair sob o ataque, ele dis- olhava para a casa e olhava para mim, em
parou mais uma vez, atingindo outro ani- rapida e intermitente sucessao, num tique
mal, fazendo mais uma vez o lobo gritar. nervoso demoníaco. Éntao acreditei enten-
Percebi logo que ele estava interligado aos der. O criminoso preso na casa, ele queria o
outros animais, e parecia controla-los; seu criminoso. Éle queria que eu parasse a ora-
domínio sobre eles era mais que um sim- çao, ele precisava cuidar do outro.
ples controle corporal, era um tipo de liga- É mais uma vez em minha vida, eu falhei
çao empatica, como se todos compusessem como cristao. Éu interrompi meu clamor;
um unico e carniceiro organismo, um tipo num lapso de Queda, eu compreendi e irma-
sobrenatural de matilha. nei-me ao desejo de vingança, ou de sangue,
Imediatamente o lobo saltou, abarcando do demonio.
mais de tres metros em seu voo, caindo di- Fiquei de joelhos, observando os olhos
reto sobre o peito do homem, e mordendo- faiscantes da besta-fera, que mais uma vez
lhe a garganta. assumiu uma expressao humana, que me
As femeas se afastaram e formaram um cír- fez enregelar de uma forma que eu nao sa-
culo em volta do lobo, seus olhos acesos, ca- beria descrever, um tipo de frio absoluto
da um brilhando numa cor. A maioria estava que jamais experimentara, um entorpeci-
com as línguas para fora, como se estives- mento, como se meu corpo tivesse sido en-
sem cansadas, ou sedentas. venenado.
Éu nao podia acreditar naquele horror, Pois o lobo sorrira, humanamente sorri-
estava paralisado no chao, tentando enten- ra. Ém seguida emitiu um estranho som, al-
der que aquilo nao era um sonho, mas pre- go como ‘wain, wain’, e deu meia-volta, ar-
cisava, tinha que ser. Éntao ele uivou nova- rancando em furia e velocidade sobrenatu-
mente. É foi como um rasgo na escuridao – rais em direçao a porta da casa. As dobradi-
um rasgo revelando uma dimensao, um fun- ças explodiram ao impacto do magro corpo
do, uma camada ainda mais escura. As cade- do lobo, e a porta foi abaixo com estrondo.
las começaram a chiar baixinho, com aquele O homem gritou. Da posiçao em que me en-
som que os caes fazem quando feridos. contrava nao era possível ver bem o que
Meu corpo estava arrepiado por inteiro; acontecia, pois eu permanecia preso ao
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chao, enregelado. Ouvi um barulho de vidro uma vez sua natureza demoníaca ao saltar
quebrado, como de um copo ou louça. sobre uma pequena casamata que abrigava
– Sai! Sai!!! – gritou o marginal. Novo baru- a bomba d’agua de uma cisterna, e dali, em
lho, e um outro. Éle atirava louças no ani- velocidade felina, ultrapassar, num salto
mal. As cadelas entraram no recinto, de for- unico, os restantes dois metros e meio de
ma lenta e ordenada, como se em duas filas muro.
indianas, paralelas. Imediatamente senti um alívio, uma sen-
Ouvi novamente o som de comando do saçao de descongelamento, estranha mas
lobo, ‘wain, wain’. O homem permanecia em prazerosa, de ter sido devolvido ao comum,
silencio, talvez tambem emudecido de estu- ao mundo real, ao mundo racionalmente
pefaçao pelo demoníaco espetaculo. mensuravel e previsível.
Depois gritou, quando todos os caes sal- As cadelas estavam ainda no quarto. Én-
taram sobre seu corpo, de uma unica vez. trei para ver o que houvera com o homem.
Ouvi entao aquela multidao de rosnares e Umas lambiam despreocupadamente o san-
rugidos, como o som de uma briga entre gue do chao, outras jaziam deitadas. Seus
muitos caes. O homem gritava um ‘ahhh’ olhos ja nao estavam em fogo, a possessao
prolongado e panico, que parecia nunca ter cessara. Nao havia corpo, pedaços. Nada
fim, mas que foi abruptamente interrompi- alem de manchas dispersas de sangue no
do, como se alguem de repente lhe tapasse a chao.
boca, ou cortasse a garganta. Os rosnados * * *
continuaram. Os animais, possessos, rasga- Pesquisando em livros sobre mitos en-
vam carnes, crimes, pecados, como uma volvendo o Lobo Guara, de referencia em
chuva de retribuiçoes que despencasse sub- referencia cheguei ao livro de Guilhermino
repticiamente sobre um pecador, manifesta Dutra, Fabulas e Mitos dos Povos Tupi-
em dentes caninos incansaveis e olhos mul- Guaranis, um livro prefaciado por Darcy Ri-
ticores, rebrilhando em mesmerizante com- beiro. Nele, sofri mais um golpe do terror ao
passo. encontrar, na seçao Fauna e Flora na Mistifi-
Fiz mençao de levantar-me, ou levantar o cação Tupi, a informação acerca de uma len-
que era corpo. Éle tremia. Levantei uma da dos índios Tamoios. Posteriormente
perna com dificuldade, depois a outra, sem comprei exemplar do livro. O relato e o que
equilíbrio, como que bebado. segue:
So entao arrependi-me, so entao sobres-
calei os ruídos do caos e dei ouvidos a voz “Anhanga-Goa’ra, Lobo Fantasma. Do tu-
do Éspírito Santo que dentro de mim jamais pi agoa’rá, ‘pelo de penugem’, termo utiliza-
parara de bradar: do para designar o lobo-guara, e Anhanga,
– Nao!!! espírito que vaga, fantasma.
– Senhor, tenha misericordia de minha Tambem Kabikodepu-Ya’wara, Fera do Arco
alma, de meu frio! – gritei sem palavras. -íris. Do tupi Ya’wara, fera, e kabikodepu, ar-
Avancei com reerguida coragem, a cora- co-íris.
gem que a fe confere e tambem a ira, pois Mito coletado pelo indigenista frances
tinha agora a sensaçao de ter sido ludibria- Luc Guarirol. Segundo o relato, durante toda
do, enganado pelo jogo sujo do demonio. A a estaçao de Ara yma ou ‘tempo ve-
distancia de oito ou nove passos, o lobo as- lho’ (equivalente aos nossos outono e inver-
somou a porta. Agora tinha a expressao im- no), alguns lobos-guaras se aproximavam
passível. Olhamo-nos nos olhos, e antes de das aldeias ou povoaçoes, e enfeitiçavam to-
eu retomar a oraçao em alta voz, ele dispa- das as cadelas e quaisquer femeas de caní-
rou em direçao ao muro, manifestando mais deos (caes do mato, guaras e falsas raposas,
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domesticados ou nao) que ali houvesse. Élas carregar sozinho uma historia assim, resolvi
fugiam entao para a mata, e podiam ser vis- escrever esse relato, e divulga-lo em sites e
tas a noite, vagando atras do lobo, com redes sociais. Sinto que e uma forma de con-
olhos coloridos e acesos como estrelas. O fessar o meu pecado, uma forma de aquecer
lobo nao podia ser morto; ao ser atingido -me. Pois ha dias, noites em que ainda sinto
por flechas ou lanças, ele sempre reerguia- aquele frio. Meu testemunho e verdadeiro.
se, ainda mais furioso. A matilha vagava pe- ___________________________________________________________
la floresta, matando caçadores e pessoas
que andassem sozinhas pelas matas.” Do livro de contos O Pequeno Livro dos
Mortos. O livro (Éd. Letras e Versos, 96 págs.)
Um dia fui contar meu testemunho em esta sendo comercializado a R$ 20,00. Para
uma igreja. Antes da metade da historia, fui adquirir, escreva para o e-mail:
bruscamente interrompido pelo pastor, que sammisreachers@ig.com.br
fez um gracejo sobre minha sanidade men-
* * *
tal, levando toda a congregaçao a sorrir. De-
cidi nunca mais falar sobre os ocorridos a Sammis Reachers é poeta, escritor e editor.
ninguem. Mas, nao aguentando o peso de

Notas Culturais
Em outubro a escritora Joice Lourenço lançou seu novo romance, O Grito de Sobrevivência. Confira
AQUI.  Em novembro, a Editora Ultimato fez o pré-lançamento da ficção Século I - O Resgate, de
Cayo César Santos. Confira AQUI.  Ainda em novembro, realizou-se na Primeira Igreja Batista de
Pinheiros, em São Paulo, o Primeiro Encontro de Artistas Visuais Cristãos, uma iniciativa do artista
gráfico Lemuel Massuia. Leia AQUI um panorama do evento.  Em dezembro, os autores A.P. Alen-
cart e Luis Cruz-Villalobos organizaram a antologia poética CARNE DEL CIELO (Versos de Navidad),
reunindo poemas sobre o Natal, de lavra de 47 poetas ibero-americanos, incluindo brasileiros e por-
tugueses. A antologia, em espanhol, pode ser baixada AQUI.  A Editora Mundo Cristão lançou a
ficção com foco em adolescentes Lily na Passarela, de Nancy Rue. Confira AQUI.  O poeta e missi-
onário Gilberto Celeti lançou em dezembro, pela Bunker Editorial, seu livro de poemas O Mistério do
Natal. Confira AQUI.  O autor André Filipe Aefe Noronha (Aefe) está publicando em capítulos sua
divertida série missionária/ficcional/folhetinesca Patranha contra o Dragão do Oriente, no site
Wattpad. Confira AQUI.  Falando em boas séries, o autor Marvin Cross chegou ao fim da segunda
temporada de sua série ficcional Desapaixonante. Enquanto a nova temporada não se inicia (está pre-
vista para este mês!), você pode acompanhar a série desde o início AQUI.  A Rede de drogarias Pa-
checo (RJ) mantém a revista Ponto de Encontro, e nesta, a seção de poesia Final Feliz. Você pode enviar
poemas para lá, através do e-mail: pontopacheco@profashional.com  A Revista Philos, iniciativa
literária da Camará Cartonera, recebe originais (conto, poesia, crônica, textos experimentais etc.) pa-
ra as edições da revista. Informe-se AQUI. 
Concursos Literários: Prêmio SESC de Literatura 2016 para livros de Conto e Romance. Até 12 de Fe-
vereiro. Informações AQUI.  Concurso AFEIGRAF (Livros: Infantil, ficção, não-ficção e poesia).
Até 31 de Março. Informações AQUI.

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CINEMA
Terceiro Festival Nacional de Cinema Cristão

Em novembro de 2015, nas dependências do tradicional Cine Odeon, no Rio de Janeiro, aconte-
ceu a terceira ediçao do Festival Nacional de Cinema Cristao. A iniciativa, tornada real pelo merito de Ve-
ronica Brendler (que entrevistamos na ediçao anterior de AMPLITUDÉ), visa promover o desenvolvi-
mento de nosso cinema, e reconhecer o trabalho daqueles que se tem dedicado ao cinema cristao.
O FNCC recebeu ao todo 90 filmes, 74 filmes inscritos sao nacionais e 16 filmes sao estrangeiros.
A Comissao Julgadora composta por grandes profissionais de cinema, selecionou os tres melhores filmes
de cada categoria (longas metragens, medias, curtas, documentarios, animaçao, humor cristao, series e
filmes estrangeiros) que concorreram a premiaçao no dia 25 de novembro.
Foi grande a expectativa dos diretores e suas equipes quanto a premiaçao e que vieram das 5 regioes do
país e exterior.
Confira abaixo a lista de ganhadores de 2015:

Melhor Direção de Longa Metragem gem Melhor Documentário


David A. R. White (Questão de Esco- Renascer – Acendendo a Chama Outra Quando Posso Ver Meu Rosto Nele
lha) Vez (Assista AQUI)
Melhor Ator de Longa Metragem Melhor Música de Longa Metragem Melhor Série
Daniel Zacapa (Três Histórias, Um Des- Questão de Escolha (Ouça AQUI) Povos e Línguas (Assista AQUI)
tino)
Melhor Trilha Musical de Longa Me- Melhor Animação
Melhor Atriz de Longa Metragem tragem Midinho, o Pequeno Missionário
Zoe Myers (Três Histórias, Um Desti- Questão de Escolha (Jesus Encoraja Seus Discípulos)
no)
Melhor Montagem/Edição de Longa Melhor Humor
Melhor Roteiro de Longa Metragem Metragem Ou Vai ou Rocha
Questão de Escolha Questão de Escolha
Melhor Filme Estrangeiro
Melhor Fotografia de Longa Metra- Melhor Curta Metragem O Drama do Alzheimer – Uma história
gem Alegria de Fé e Esperança
Questão de Escolha
Melhor Média-Metragem
Melhor Maquiagem de Longa Metra- Perdão - O Filme (Assista AQUI)

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O HÓSPEDE irma a chamava.
Marta teve que ir ter com ela e em
Florbela Ribeiro surdina disse-lhe:
– Maria que fazes aqui sentada aos pes de
Aquele hospede chamou a atençao do Jesus, quando ha ainda tanto trabalho para
povoado. fazer?
Ninguem conseguiu ficar indiferente a – Éscuto o Mestre, minha irma, e suas
passagem de Jesus por ali. sabias palavras, que tanto falam ao meu
Os milagres e a forma eloquente dos seus coraçao – respondeu-lhe Maria.
discursos abriam as bocas de espanto, o que – Ora, ora Maria deixa-te de desculpas e
Éle fazia acontecer e dizia, corria vem ajudar-me. Palavras que falam ao
velozmente nos labios de todo o coraçao, pois sim – disse Marta
povo. com um ar arreliado – queres
Mas foi Marta quem teve o esquivar-te ao trabalho nao e
privilegio de o hospedar em verdade?
sua casa. Maria olhou indignada para
Como boa anfitria que era Marta e com tristeza disse:
nao queria descurar nenhum – Nao sejas injusta para
pormenor para a melhor e comigo Marta, sabes bem que
mais acolhedora recepçao ao sempre te ajudo e nunca me
Mestre. nego a nenhum serviço, porque
Apos a casa devidamente limpa haveria de o fazer hoje? Se ficasses
e as coisas no seu lugar, iniciou os aqui um pouco a escutar o Mestre
preparos da refeiçao. Seleccionou as verias como tenho razao naquilo que digo.
melhores carnes, as melhores ervas As duas irmas tinham diferenças de
aromaticas para o tempero, o melhor vinho, opiniao sobre o aprender e a azafama do
e e claro que nao esqueceu a sobremesa. O quotidiano, entre viver de acordo com o que
pormenor da sobremesa era importante. se deve aprender de Jesus e o cumprir
Teria de ser preparada com todo o requinte meras tarefas diarias. O que e eterno e o
e muito carinho. que tem apenas vinte e quatro horas. Isso as
Sim, porque para fazer uma boa distinguia.
sobremesa e indispensavel um toque de – Maria, Maria tenho imenso trabalho
carinho e muita ternura. Dir-se-a ate que o para fazer, e nao quero atrasar-me na
doce perde o sabor se nao tiver uma boa preparaçao do almoço, queres tu que o
pitada de amor. Mestre fique com ma impressao nossa,
Para isso, Marta contava com a preciosa vendo que somos mas anfitrias? - Disse
ajuda de Maria, para a elaboraçao de um Marta com alguma tristeza na voz.
almoço tao requintado. – Porque diria o Mestre que somos mas
Havia tanto trabalho a fazer ainda, mas… anfitrias minha irma? Acaso achas que o
Maria nao se aproximava para a ajudar. Mestre esta preocupado com isso? Nao
Ém vez disso mantinha-se na sala estara Éle mais preocupado com o estado
escutando os ensinos de Jesus. do teu coraçao e da tua alma? – Tentava
A irresponsabilidade da irma arreliava Maria fazer compreender a Marta.
Marta, abeirou-se da porta e acenou-lhe – Mas que tens tu hoje Maria, que ainda
para que esta se aproximasse. Absorta como nao me disseste nada com sentido? É claro
estava aos pes das palavras do hospede que o Mestre espera que o sirvamos com o
especial, Maria nem se apercebeu que a sua melhor… – É a propensao de Marta para
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entender as coisas do espírito, começava a afazeres.
ceder. Bailavam agora na sua mente muitas
– Disseste bem minha irma. – perguntas, devido as palavras do Mestre.
Interrompeu-a Maria. - Mas acredita que o – Que queria Éle dizer com “uma so e
melhor para o Mestre, nao e o almoço que necessaria”? – Pensou, pensou e so as coisas
com tanta azafama estas a preparar. terrenas acudiam a sua mente perplexa.
No decorrer desta pequena discussao Acaso o trabalho nao e necessario? Se
entre ambas, Jesus ia avaliando aquilo a que ambas permanecessem sentadas aos pes de
cada uma dava prioridade. Jesus quem faria o serviço? Éram as
Finalmente, Marta resolveu pedir auxílio questoes mais naturais que agora bailavam
ao Mestre na certeza de que Éle a ajudaria, a dentro das suas ideias sobre o assunto.
repreender a sua irma. Pois ja estava Maria, apercebendo-se da agitaçao em
cansada de argumentar e nao entendia que se encontrava a sua irma, dirigiu-se-lhe:
porque razao nao obtinha nenhum – O Mestre nao censurou a tua dedicaçao
resultado. e o teu zelo ao trabalho. O problema e que
– Marta, Marta estas afadiga e ansiosa tu procuraste ser-lhe util sem primeiro
com muitas coisas. Mas uma so e buscares compreender o que Éle deseja de
necessaria: e Maria escolheu a melhor ti. Minha boa irma se a nossa alma e o nosso
parte, a qual nao lhe sera tirada. - coraçao estiverem vazios do amor de Deus e
Respondeu-lhe Jesus, marcando cada do seu ensino, que proveito tiraremos nos
palavra com a sua voz mansa, mas firme, da azafama desta vida?
como um favo de mel. Marta sorriu ao ouvi-la.
Marta ficou sem palavras. ___________________________________________________________
Para grande surpresa sua, Jesus nao so
Florbela Ribeiro é escritora e poeta portu-
nao atendeu ao seu pedido, como em vez de
guesa.
repreender a sua irma, repreendeu-a a ela.
Mantém o blog Doce Aroma.
Silenciosa e pensativa, regressou aos seus

“Hierarquias” (2011) - Helena Branco (Portugal). Conheça mais AQUI.

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a sociedade, que poderiam ter morrido em
O MENINO lugar de meu filho. Por que Deus teria que
buscar exatamente o meu menino com
Myrtes Mathias
apenas dez anos? Senti vontade de esmur-
rar alguem, de gritar, de morder, de des-
Quando me trouxeram, numa urna pe-
truir, de fazer a outros o que a vida me fi-
quena, aquilo que fora Geraldo Filipe, a
zera. No entanto, nada podia fazer a nao
tristeza foi apenas uma faixa estreita aper-
ser ficar ali deitada, impotente e desgraça-
tada entre o espanto e a raiva. Simples-
da, solitaria e sem razao de viver.
mente eu nao podia crer, nao podia aceitar
Dias depois, quando resolvi deixar que
que aquele corpo sem vida, de rosto
alguem me visitasse, que permiti fra-
escuro e intumescido, fosse o meu
quejar a minha muralha de silen-
rapaz que saíra tres dias antes,
cio e odio, uma amiga, tipo de re-
orgulhoso do seu novo unifor-
signaçao e amor, aconselhou-
me azul, das condecoraçoes
me:
nas mangas e bolsos da gan-
— Rosalia, eu entendo a
dola, as duas fitas amarelas
sua dor. Sei que lhe e difícil re-
do «primo» nas mangas cur-
agir, mas Geraldo nao gostaria
tas, as duas estrelas no bone
de ver a criatura que mais
tipo joquei. Para o Aquela era
amou assim sofrendo, destruin-
seu melhor Lobinho, para sua
do-se. É preciso que voce reaja,
Matilha era o Primo, «sempre
por amor dele mesmo ou, pelo
alegre», mas para mim era o filho
menos, por amor a mae que ele
unico que a vida me deixara, minha
amava...
razao de viver, meu orgulho, quase meu
Éu quis falar, gritar, mas ela interrom-
ídolo.
peu com um gesto firme:
A excursao fora ao Sítio do Sossego, on-
— Ha tanta criança sofrendo por aí, pre-
de o rio do mesmo nome era o ponto alto,
cisando de pelo menos uma parcela disso
maravilhoso. Na hora da “caça livre” era o
que seu coraçao anseia por dar...
grande momento de meter o short e mer-
Gritei que nao era amor que eu tinha no
gulhar, nadar, brincar. O que o Aquela nao
coraçao, mas odio, revolta, vontade de fazer
podia explicar era como Geraldo Filipe, o
outros infelizes tambem. Magda nao repli-
melhor nadador, pudera morrer assim. O
cou. Ouviu-me em silencio e despediu-se
choque fora grande demais para que al-
finalmente:
guem pudesse explicar alguma coisa. So a
— Orarei por voce, Rosalia.
consternaçao geral conseguiu minorar o
Depois que ela saiu, comecei a pensar se
meu desespero. Éle era querido, mas que
nao teria razao. Éu nao seria digna de meu
significava tudo isso depois que todos se
filho se me matasse.
foram e eu voltei para dentro da casa,
Éle fora corajoso e procurara, dia apos
enorme sem ele, o quarto impecavelmente
dia, fazer o seu "melhor possível". Qual se-
arrumado, os livros bem organizados na
ria o meu melhor possível naquela situa-
estante, as flamulas ridículas agora nas su-
çao? Lembrei-me de um antigo desejo. Éu
as cores vivas, os trofeus alinhados na pe-
havia me casado bem tarde e, como sempre
quena prateleira que ele mesmo fizera na
acontece com as pessoas sos, eu havia pla-
parede.
nejado, caso nao me casasse, dedicar-me as
Foi aí que senti raiva. Havia uma multi-
crianças sem recursos, dando-lhes uma fes-
dao de inuteis, de verdadeiros pesos para
ta de Natal todos os anos. Éra uma sublima-
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çao de minha infancia passada num lar mos algumas, outras de tranças. Nao havia
pauperrimo, sem bonecas e sem doces no meninos. Nem um sequer para simbolizar
Natal. No Natal, apenas meu padrasto be- Geraldo Filipe. Fiquei revoltada, mas fiz o
bia um pouco mais, o que nao tornava, de possível para representar o meu papel de
forma alguma, mais alegre a nossa noite "senhora boa, digna de ser imitada, digna
santa. Mas quando eu ja estava, entao, num das bençaos de Deus", do mesmo Deus
trabalho que me proporcionaria os recur- que havia levado meu filho. Senti vontade
sos necessarios para o que idealizara, co- de soltar uma gargalhada ou uma blasfe-
nheci Filipe, um colega de trabalho e desti- mia. A falta de fe aumentava meu sofri-
no. Casamo-nos com simplicidade e sem mento. As musicas de Natal e outras de
grandes festas. Nossa casa era confortavel, crianças sucediam-se em "alta fidelidade",
mas sem exageros de luxo, como nos mes- as crianças riam, contentes e agradecidas,
mos. Um ano depois, nascera Geraldo Fili- a Diretora e as auxiliares estavam encanta-
pe, e todo o amor que havia dentro de das, as vizinhas e amigas elogiavam a bele-
mim, desde a boneca que nao tivera na in- za da ornamentaçao e o sabor dos doces.
fancia, encontrou o seu objeto. Filipe mor- No final da festa, cada menina recebeu
reu dois anos depois. Deixou-me recursos uma boneca e um livro ilustrado. Os pre-
para viver sem preocupaçoes, para dedicar sentes que eu mais desejara quando meni-
-me inteiramente a meu filho. Fora um ho- na. As dez horas, começaram a sair as cri-
mem bom em minha, vida, nada mais. Um anças, a Diretora, as auxiliares, as vizinhas,
homem que me dera um filho, uma criatu- as amigas. A casa grande ficou maior ainda
rinha capaz de livrar-me de todas as mas no seu silencio, ornamentada de raminhos
lembranças de minha infancia. verdes e fitas vermelhas. Passeei pela casa
Agora, agora... eu estava sozinha outra toda, olhei as mesas cheias de pratos vazi-
vez. Mais so que antigamente, porque ago- os, de forminhas de papel prateado, de pe-
ra ja havia conhecido o prazer de ser que- dacinhos de bolo. Havia gasto todo o di-
rida, insubstituível. Sera que ainda havia nheiro que tinha em reserva. A festa fora
dentro de mim alguma força capaz de rea- maravilhosa, mas nao havia paz nem ale-
gir? Porque em Deus eu nao acreditava gria dentro de mim. Éu tentara provar que
mais. É, para provar que poderia existir era capaz de ser feliz sozinha, mas perde-
sem precisar dele, levantei-me e comecei a ra.
planejar a festa que daria aquele ano. Seria Éxausta e frustrada, deixei-me cair no
no Natal, apenas para aproveitar o espírito diva, a luz acesa, assim mesmo vestida, sem
da epoca. saber o que fazer amanha, sem presente e
Telefonei a Diretora de uma casa de cri- sem futuro, apenas o passado reinando
anças orfas, minha amiga, que eu sabia es- prepotente.
tar em dificuldades. Disse-lhe que desejava Devo ter dormido, porque foi entao que
fazer o Natal de suas 50 crianças. o vi chegar. Saiu de um canto da sala e pa-
— Deixe tudo por minha conta, confir- rou diante de mim. Éra moreninho, de uma
mei. cor dourada, como se fosse sempre a praia;
Éla pareceu encantada. É comecei a me vestia um calçao quadriculado de preto e
movimentar. Uma atividade doentia, anor- branco e a camisa de malha ordinaria esta-
mal. Uma fuga, simplesmente. va toda puída, deixando ver a pele morena,
Na tarde do dia 24 de dezembro, as cri- atraves de centenas de furos minusculos. O
anças chegaram. Éu ja havia mandado rou- cabelo preto estava bem penteado para um
pa nova para todas. Éram meninas escuri- lado e os olhos eram mais lindos que os do
nhas, louras, morenas, de cabelos curtíssi- meu filho. Mas eram profundamente tris-
42
tes. Éstendeu-me a mao magra: demais. Apertei a medalha, puxando-a de
— Éu nao ganhei presente... tal forma que o cordao me feria o pescoço.
Sentei-me de um salto: — Nao. Isto nao posso. Nao tenho nada
— Onde voce estava? nao o vi. Nao ha- para voce.
via nenhum menino na festa. Éle me olhou ainda por algum tempo, o
Continuou a olhar-me em silencio, a dedinho erguido ainda e, depois, voltando-
tristeza crescendo nos olhos negros. se para sair, murmurou:
— Voce nao me viu — afirmou — e eu — Éra isso que eu queria.
queria tanto um presente... Quis segui-lo, mas uma força estranha
Começou a chorar. Um choro manso, si- prendia-me ali sentada:
lencioso, que me atravessava a alma. És- — Por favor, volte. Quem e voce? Toma...
tendi-lhe os braços, mas nao consegui toca Sem se voltar, ele gritou, descendo a es-
-lo: cada:
— Juro que nao o vi, meu bem! (Por que — Éu sou o Menino do Natal...
me chamava voce? Meus cabelos estavam Acordei, suando, as maos crispadas na
quase totalmente brancos. No entanto, nao medalha, as lagrimas correndo beneficas
havia arrogancia no seu modo de falar, de corno urna purificaçao.
pedir, de exigir quase.) "Éu sou o Menino do Natal... eu quero o
Continuava ali parado, o olhar fixo em coraçao... voce nao me deu nada..." Éle viera
meu rosto, depois descendo e parando na substituir, consolar, cumprir sua missao.
altura do coraçao, onde brilhava a medalha Ajoelhei-me ali mesmo, na sala silencio-
que fora de Geraldo Filipe. Éra um coraçao sa, mas aonde chegava a melodia da Noite
com seu nome gravado. Seu pai lhe havia Santa, vinda nao sei de que alto-falante:
dado em seu primeiro aniversario e, desde "Nasceu o Rei da Paz, num berço humilde
entao, o usara. So deixou de estar com ele jaz, nas asas desse amor, conforto a todos
depois de morto, quando o retirei e guar- traz; direi em alta voz, que Cristo satisfaz:
dei-o comigo, como lembrança. O garoti- Nasceu o Redentor!..."
nho ergueu o dedinho moreno: ________________________________________________________

— Me da isto... Do livro Presente Para o Menino (Rio de Ja-


Aí achei que era demais. Que me pedis- neiro: JUÉRP, 1983).
se tudo, se bem que eu nada mais teria pa-
ra dar, que interessasse a uma criança, mas Myrtes Mathias (1933—1996) foi poeta,
pedir a lembrança de Geraldo Filipe era cronista, escritora e missionaria batista.

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Nao desejes ser elogia- Mata o pavor com o
do por aquilo que tens amor e nao o amor com o
de fazer por servidao. Ramon Llull (Lúlio) pavor.
Ama a paciencia para Nascido em Palma de Maiorca, na Espa- Nenhum homem possui
que a possas sustentar. tanta necessidade quanto
Quem frequentemente
nha, em cerca de 1232, o leigo Raimundo o avaro.
tenta sua mulher fre- Lúlio foi cognominado de ‘Doctor Inspira- Os caminhos da luxuria
quentemente se arre- tus’ pela Igreja Católica, em virtude de veem atraves da visao e
pende. da audiçao, sua casa e a
A besta que nao come
uma experiência mística que alegou ter ex- imaginaçao e seu leito e a
carne nao faz compa- perimentado, que o fez lançar-se numa vida vontade.
nhia a besta que come. de peregrinações, serviço e busca de sabe- Pela ira a vontade perde
Nao ganhes teu amigo a sua liberdade e o enten-
com dinheiro nem o
doria. Foi escritor, poeta, apologeta e mis- dimento a sua delibera-
percas pela ira. sionário (notadamente entre muçulmanos). çao.
Faz um so poder do teu Sua obra, de mais de 250 títulos e abarcan- Um homem e a riqueza
poder e do poder de teu
do diversos temas, exerceu enorme influên- de outro homem.
amigo. Quem e pobre por Deus
Se for inimigo por teu cia em toda a Idade Média e apresenta vali- e rico por graças a Deus.
vício, torna-o amigo osas lições e reflexões nos campos da filo-
com tua virtude. De O Livro dos Mil Pro-
sofia e teologia, principalmente. Seleciona- vérbios
Quem e inimigo da jus-
tiça e inimigo de todas mos trechos de três obras de Llull, publica- * * *
as coisas. das no Brasil pela Ed. Escala: O Livro dos
Se nao ha nada que se
Mil Provérbios e O Livro das Bestas (trad. de (...) Deu--se num país que
possa ganhar com a im- todos os animais concor-
prudencia, nao ha nada Ricardo Costa) e O Livro do Amigo e do daram em oferecer diari-
que se possa perder Amado (trad. de Luiz Carlos Bombassaro). amente um animal ao
com a prudencia. leao para que nao se des-
Com forças espirituais se ao trabalho de caçar.
podes vencer forças espirituais. Com isso ele os deixava em paz. A cada dia os ani-
Ama a finalidade para a qual foi criado e tera for- mais tiravam a sorte e o sorteado entregava--se ao
te coragem. leao, que o devorava. Um dia a sorte recaiu sobre
Primeiramente cre, depois entende. uma lebre que, temerosa de morrer, retardou ate o
Nao deixes ocioso o poder que possuis. meio--dia a hora de ir ao leao. Tomado de fome ex-
A verdade nao tem pavor, e a mentira e a falsida- cessiva, irritou--se muito o leao com o enorme
de nao tem coragem. atraso da lebre e lhe perguntou por que demorara
A teus pes da santos caminhos e a tuas maos san- tanto. Desculpando--se, disse a lebre que havia
tas obras. perto dali um leao que se dizia rei daquele país e
Na oraçao usa todas as forças de tua alma. que tentara apanha--la. Furioso, e cuidando fosse
Todos os demonios nao tem tao grande poder verdade o que ouvia, pediu que ela lhe mostrasse o
quanto uma boa oraçao. leao. Saindo a frente do leao que a seguia, a lebre
Quem nao e leal, e desleal a si mesmo. chegou a uma grande reserva de agua que formava
Quem doa para ser louvado vende generosidade. uma bacia rodeada de altos muros por todos os la-
Sem a perseverança nao podes atingir a finalida- dos. Aproximando--se da agua, as sombras da lebre
de para a qual foste criado. e do leao surgiram na superfície. Disse ela entao:
Nada caminha mais rapido do que a perseveran- - - Senhor, eis na agua o leao que deseja comer
ça. uma lebre!
Persevere teu amor no amor de Deus, e o teu po- Julgando o leao que sua sombra fosse outro
der no poder de Deus. lea o, pulou dentro d’agua e atracou--se em comba-
A cortesia tem amigos em muitos lugares. te com ele: acabou morrendo na agua, graças a as-
Honra mais quem mais honra a Deus. tucia da lebre.
Morre para viver. De O Livro das Bestas
O pecado e a morte da finalidade para a qual foste
criado.
44
O amigo disse ao ama- ragem em todas as coi-
do: “Tu que enches o sas.”
Sol de esplendor, enche Ramon Llull (Lúlio) O amado dizia que o lou-
o meu coraçao de vasse naqueles lugares
amor.” O amado res- onde e mais temido o lou-
pondeu: “Sem a plenitude do amor os teus olhos vor. Pedia ao amigo que o abastasse de amor.
nao estariam em pranto e tu nao terias vindo a Respondia o amado que por amor dele se tinha
este lugar para ver o teu amante.” encarnado e deixado crucificar para morrer. “Diz,
O amigo perguntou ao intelecto e a vontade quem amado: onde esta o teu poder?” Respondeu: “No
estava mais perto do seu amado; ambos corre- poder do meu amado.” “Com que te esforças con-
ram, chegando mais depressa ao seu amado o in- tra os teus inimigos?” “Com as forças do meu
telecto do que a vontade. amado.” “Com que te reconfortas?” “Com os te-
Perguntaram ao amigo por que o seu amado era souros eternos do meu amado.”
glorioso. Éle respondeu: “Porque e gloria.” Per- O amigo experimentou se podia suportar o amor
guntaram-lhe por que era poderoso. Respondeu: no seu coraçao sem que se lembrasse do seu ama-
“Porque ele e poder.” “É por que e sabio?” do; e o seu coraçao deixou de pensar e os seus
“Porque e sabedoria.” “É por que e amavel?” olhos de chorar; e o amor aniquilou-se e o amigo
“Porque e amor.”O amigo pediu ao seu amado que ficou embaraçado e perguntou as pessoas se ti-
lhe pagasse pelo tempo que o servia. O amado nham visto o amor.
contou os pensamentos, os desejos, os choros, os O amado esta muito acima do amor e o amigo es-
perigos e os trabalhos que sofrera o seu amigo ta muito abaixo do amor. É o amor que esta no
por amor dele, e o amado acrescentou, nesta con- meio faz descer o amado ate ao amigo e faz subir
ta, a eterna bem-aventurança; e deu-se a si pro- o amigo ate ao amado. É do descer e subir vive e
prio como pagamento ao seu amigo. tem início o amor pelo qual o amigo sofre e o
O amigo contemplava o lugar onde tinha visto o amado e servido.
seu amado e dizia: “Ah, lugar que me representa “Diz, louco: o que e pecado?” “Uma intençao aves-
os bons costumes do meu amado! Diras ao meu sa e dirigida contra a intençao final e a razao pela
amado que eu suporto, por amor dele, trabalho e qual o meu amado tem criado todas as coisas.”
desgraça.” Respondeu o lugar: “Quando o teu Os trabalhos e as tribulaçoes que o amigo supor-
amado estava em mim, ele sofria por amor de ti tava por amor alteraram-no e inclinaram-no para
trabalho e desgraça maiores do que todos os ou- a impaciencia; e o amado reprovou-o com as suas
tros trabalhos e desgraças que o amor pode dar honras e as suas promessas, dizendo que pouco
aos seus servidores.” sabia de amor aquele que se alterava pelas fadi-
O amado ausentou-se do seu amigo e o amigo gas e pela bem-aventurança. O amigo teve contri-
procurava o seu amado com a sua memoria e o çao e choros e pediu ao seu amado para que nao
seu intelecto para que o pudesse amar. O amigo lhe tirasse os seus amores.
encontrou o seu amado e perguntou-lhe onde ti- “Louco, diz, que e amor?” Respondeu que o amor
nha estado. O amado respondeu: “Na ausencia da e aquilo que torna escravos os livres e liberta os
tua recordaçao e na ignorancia da tua inteligen- escravos. É a questao e qual esta mais proxima do
cia.” amor: a liberdade ou a escravidao.
Perguntaram ao amigo a quem ele pertencia. Éle O amigo pensou sobre a morte e teve pavor ate
respondeu: “Ao amor.” “De que es feito?” “De que se lembrou da cidade do seu amado, da qual a
amor.” “Quem te gerou?” “O amor.” “Onde nasces- morte e o amor sao portas e entradas.
te?” “No amor.” “Quem te alimentou?” “O amor.” Certo dia o amigo estava orando e sentiu que os
“De que vives?” “De amor.” “Qual e o teu nome?” seus olhos nao choravam; e para que pudesse
“Amor.” “De onde vens?” “Do amor.” “Aonde chorar, obrigou o seu pensamento a pensar em
vais?” “Para o amor.” “Onde estas?” “No amor.” dinheiro, mulheres, filhos, comida e vangloria; e
“Tens outra coisa que nao amor?” Respondeu: achou no seu intelecto que cada uma dessas coi-
“Sim, culpas e ofensas contra o meu amado.” “Ha sas tinha mais servidores do que o seu amado. É
perdao no teu amado?” O amigo disse que no seu por isso os seus olhos começaram a chorar e sua
amado havia misericordia e justiça e por isso alma ficou em tristeza e dor.
eram seu abrigo amor e esperança.
O amigo dizia: “Quem nao teme o meu amado, to-
das as coisas lhe parecem amedrontadoras; e De O Livro do Amigo e do Amado
quem teme o meu amado, encontra audacia e co-
45
Os que ainda não ouviram
Jairo de Oliveira O cântico da minha esperança
É difícil de acreditar: Jonathas Braga
Mais de dois mil anos passados,
Ainda existe quem nao ouviu. Éu quero ver o meu Brasil engrandecido
É o nome de Jesus por todos exaltado:
Falo de povos nao alcançados.
Éste imenso Brasil a Cristo convertido
Milhares ainda intocados pela pregaçao É por Cristo tambem um dia transformado.
Jamais viram um profeta do Senhor,
Éu quero ver a luz do Évangelho brilhando
Isolados, esquecidos e desprezados, Por todos os vergeis da terra onde nasci,
Nunca ouviram que Jesus e o Salvador. É muitos coraçoes a Cristo se entregando,
Num milagre de fe que igual eu nunca vi.
Vivem escravos do medo
Perdidos em seus pecados, Éu quero ouvir a voz de inumeras criaturas
Refens nas garras das trevas Que ergam as maos aos ceus em preces comoventes
No espírito estao alienados. É confessem que estao em Cristo salvas, puras,
Cheias do amor de Deus, humildes e contentes.
Jesus nos mandou pregar o evangelho
O Seu nobre amor contempla a terra inteira Éu quero acompanhar esse imenso cortejo
Énvia os Seus discípulos ao mundo De salvos por Jesus, buscando Canaa...
Ate chegarem a ultima fronteira. Parece que num sonho iluminado os vejo,
Na alvorada feliz de uma bela manha.
É a oportunidade dos que nao ouviram?
Sera que terao uma unica chance de crer? Éu quero ouvir a voz de inumeros cantores,
Vamos prestar conta da nossa obediencia Desde a Amazonia verde as fronteiras do Prata,
Num coro sem igual, entre risos e flores,
Ao Deus do ceu um dia teremos que responder. Glorificando a Deus com a mais linda cantata.
Éis a imensa seara, vamos em frente!
Éu lhes quero sentir o gozo transbordante,
Ém um amplo esforço de proclamaçao
Que vibra em cada ser e em cada coraçao,
Ate que o ultimo ouça a boa notícia É os faz entoar assim a aleluia triunfante
Assim cumpriremos a nossa missao. Do Cordeiro de Deus na obra da redençao.
Naquele grande dia os salvos serao reunidos Éu quero entao cantar com eles esse canto
As naçoes estarao diante do Cordeiro, Que traz consigo os sons de estranha sinfonia
Celebrarao pela vitoria conquistada É sai do coraçao que nao conhece o pranto
Ém um coral com gente do mundo inteiro. É da alma que jamais passou sem alegria.

Éu quer que o Brasil inteiro ouça o meu grito


É atente para a voz que sai dos meus pulmoes,
Janela 10X40 Como se fosse o ecoar de um brado ingente e aflito
Querendo converter todos os coraçoes.
Sammis Reachers
Éu quero que Jesus penetre nesses lares
Avanço Onde ha fome de pao e sede de agua viva
na direçao de quem morre É penetre tambem em todos os lugares
Onde a alma nao possui a gloria rediviva.
Avanço
com uma contra-cimitarra Éu quero ver o meu Brasil feliz um dia,
de cicios nos labios Poderoso e feliz sob o olhar de Jesus:
Um glorioso Brasil de beleza e poesia,
Com a seduçao No divino esplendor do Évangelho da Cruz.
que so o amor constroi

46
Estêvão
Para tempos de perseguição
Em tempos de crescente perseguição contra cristãos – global e também local – é oportuno re-
fletir sobre a figura de Estêvão, sobre seu destemor, seu movimento final e última oração, tão pe-
quena e tão fundamentalmente cristã, rogando o perdão para seus inimigos.
Sua entrega e sua conduta no momento derradeiro foram paradigmáticas, no sentido de que
estabeleceram o modelo e padrão para os santos martirizados ao longo de toda a história da igreja.
Ao longo desta mesma história, a passagem de Estevão, como não poderia deixar de ser, tem
inspirado artistas cristãos a criarem sua arte, de poemas a pinturas, de esculturas a canções.
Não se pretende aqui, longe de nós!, adorar a criatura em lugar do Criador. A Bíblia é clara ao
asseverar que “não há nenhum justo, nem um sequer” (Rm 3.10).
Mas, em tempos duros (no ano de 2015, segundo dados da Missão Portas Abertas, a persegui-
ção religiosa só fez aumentar em todo o mundo), ter em mente tal exemplo de entrega é por de-
mais válido e oportuno.
Com vocês, então, a visão de Estêvão pela pena de seis poetas cristãos, antigos e novos, protes-
tantes e católicos.

O martírio de Estevão, o diácono A Lapidação de Santo Estêvão


Carlos Nejar Murilo Mendes

Estevão sabia que ia morrer Contempla, amada, a lapidação do homem:


naquele dia. Os algozes decidiram. Sabes dizer de onde vêm as pedras?
Vestira o diaconato, junto à morte. Sentimos, palpamos uma zona hostil
Apenas vão ouvi-lo, suportá-lo, Visitada de pássaros que à noite
antes do sacrifício.
Nos bicam em sonho, pois ninguém repousa.
Tinha a face de um anjo
Quantas pedras movemos diariamente!
O salmo de louvor seca nos lábios,
e eram pétreos os rostos
E, já o inferno aberto à nossa roda,
dos que o viam. Seus olhos
eram pedras. Se jogavam. Dando a mão aos espíritos do ar
Ia morrer. Sabia. Nós tecemos o véu da iniquidade.
Radioso, irresoluto. Ao tempo imediato dedicamos
Vinham as pedras. Ia
O fervor que só Deus merecia.
ao encontro
Lapidamo-nos um ao outro, impiedosos:
da angular, certeira
Lapidando Estêvão, a nós próprios lapidamos.
pedra viva.

47
O MÁRTIR O Martírio de Santo Estêvão
J.T.Parreira
Claudio Sousa Pereira

Pedras caem em Estevão (I)

os olhos caem em Estevão, sujam (EM SONHO). Poeira crescente,


seu último dia vejo a multidão concentrada,
que num movimento executa
Pedra nenhuma conhece o silêncio o homem que fazia prodígios.

em que transita Aproximo. E o alarido aumenta.


mas desfaz o sangue Agora, em braços levantados,
de Estevão, o seu riso aquele em que na única fala
resumiu por completo a história;

e o seu corpo, que entrou no chão, da sua face escorre sangue,


veem-no morrer e dos seus olhos apiedados
com o coração tranquilo. se distende do chão para o alto
neste que foi o último esforço.

Embora ao meio das pedradas,


entre os sujeitos furiosos,
AS PEDRAS QUE ME ATIRAM sinto o teu espírito intacto
e escuto o que tua voz clama:
Júnior Fernandes
“—Senhor Jesus, guarda minh’alma,
“E apedrejaram a Estêvão que sejas piedoso com eles,
que em invocação dizia: Senhor, não os leves em conta,
Senhor Jesus, recebe o e perdoa-lhes deste pecado.”
meu espírito.” – At. 7:59 (II)

Todas as pedras que me atiram, Em meio às pedras viu-se a Glória,


não me levarão ao covil da morte. e a crença e chama da certeza,
quando fitou os céus abertos
E o espetáculo dantesco da zombaria
através da imensa clareza.
torna-se em cinzas estilhaçadas,
caídas sobre o sangue do meu corpo Um homem, assim refletido,
esmagado neste cenário público, prostrou-se ao crime cometido:

de equívocos e perseguição. “—Nós somos o que não queremos,


Não me levarão ao covil da morte, mas fazemos o que nós somos,
as pedras que me atiram. e a isto feito, não mais tememos.
Pois as cortinas do céu se desfraldaram Eis aí — a virtude plena —
e a escada da glória se faz esteio para Eternidade. de nossa miséria terrena.”

48
O martírio de Estêvão Mas, também ovaciona os párias e dementes

Gióia Júnior E executa os heróis e pune os inocentes.


Nos momentos de fúria a multidão escuta
“Os homens, onde estão, e as pedras?” Nada resta O primeiro que brada e cega e resoluta
Da turba enfurecida, embriagada e funesta. Faz vítimas e faz heróis – ao povo vence-o
Uma suave harmonia outrora nunca ouvida O remorso que fala através do silêncio,
Emoldura de paz a Terra Prometida... Mas, consumado o crime, a sentença maldita,
Tudo é claro e feliz, imaculado e novo: A história absolve o herói mas, nunca o ressuscita!
A distância abafou as blasfêmias do povo –
Uma pedra... outra pedra... o corpo esfacelado
“Ah! Senhor – balbuciou – afinal eu diviso
É uma chaga que sangra – um olho foi vazado
A luminosidade azul do Paraíso;
Uma pedra cruel, uma pedra mais louca
Como é bom merecer esta glória divina,
Silencia, de pronto, a palavra na boca –
Isto é mais, muito mais do que a gente imagina.
A mão ensaia um gesto e outra pedra em momento
A palavra é vazia, a cor é frouxa, o som
De fúria eis que aprisiona o incauto movimento.
É tênue, certo está que a poucos deste o dom
Não há sol, não há luz, nem do povo o Conselho,
De antever este gozo: aos puros, aos profetas,
Há somente um borrão quente, amargo e vermelho –
Aos meninos de colo e também aos poetas,
E o lábio seco e a boca aberta e o corpo exausto
Mas, o bem sem igual que de tudo dimana
E o pulmão a sorver a existência num hausto,
Em muito sobrepuja a compreensão humana!
Mas o fim é chegado... a hora final dói menos
Obrigado, Senhor, por tudo o que me dás,
E os algozes cruéis são meninos pequenos
Por estes dons, por esta luz, por esta paz!”
Sombras tímidas – sons que a noite sorve aos poucos
Outra vez despertou das visões – num momento E as pedras não vêm mais e os gritos estão roucos
Com violência maior, voltou o sofrimento. E se aproxima a paz... a doce paz de luz
- Nesga de céu azul, medrosa claridade Da certeza de ter morrido por Jesus
Que ousa às vezes luzir em meio à tempestade – E de ter preferido a uma voz transitória
A calma de um minuto ameno antecedia A imensa voz de Deus nos paramos da glória –
Longas horas de dor nas garras da agonia – “Para que cante o céu e os poetas descrevam:
O povo estava ali blasfemo, perigoso Chega-te junto a mim, meu bem amado Estêvão,
Como um chacal faminto e como um cão raivoso. Segura a minha mão – a tua mão está fria! –
O indivíduo é perverso – a multidão é cega, E será mansa e doce e leve a travessia...
O juiz considera, o povo irado nega, Ouve os anjos cantando um cântico de amor
Uma voz é a voz da pessoa, outro é o grito da massa – E vem também cantar o Gozo do Senhor,
Um é o homem no lar, outro a fera na praça. Aqui não sentirás as dores das pedradas,
A multidão é um novo organismo que pensa Na Casa de teu Pai, vê, há muitas moradas
Entroniza ou destrona, apedreja ou incensa, E como é bela a tua! E como é majestosa!
Edifica ou destrói – ao que reina, derruba Raio de luar, gosto de mel, cheiro de rosa!”
E ordena ao que descera aos abismos que suba,
E ante a fúria do povo ululante e assassino
Legisla poderosa ou atira aos incêndios
O valente cristão dormiu como um menino
Dos códigos legais os arcaicos compêndios
E foi levado ao céu, pelos anjos de luz
E ululando – faminto o povo soberano
Onde habita, feliz, ao lado de Jesus!
Ergue o tiranizado e destroça o tirano,
49
Resenhas
LIVRO / A Trajetória do Indivíduo - Fábio Ribas
O poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz dizia que o homem é tempo, perpétuo movi-
mento. Tal assertiva ocorreu-me ao avançar pelas linhas do livro A Trajetória do Indiví-
duo, de Fábio Ribas. Um livro onde o dito e o silenciado dançam amalgamados, traba-
lham juntos pela construção do Sentido, ou para que o leitor colha o sentido que, num
jogo de chiaroscuro, goteja das metáforas e parábolas. A psico-saga do autor em busca
do Sentido é narrada através de madura poesia e prosa poética larga e prenhe de co-
notações, em voz cujo timbre lembra o Zaratustra nietzschiano, ou o André Gide
de Frutos da Terra; mas, enquanto tais autores empreenderam o afastamento de Deus, equivocando-se em
direção ao abismo, Ribas avança em caminho inverso, em busca de Redenção, escalando através de brumas
e intempéries o cume da transcendência. Um livro singular dentro da literatura poética cristã, que surge pa-
ra enriquecer o bastião de nossas letras. O download do livro é gratuito: Você pode baixa-lo AQUI. - S.R.

LIVRO / O Pequeno Livro dos Mortos - Sammis Reachers


A mente de Sammis Reachers dá azo à sua inusual criatividade para expressar-se em
contos cujo tema norteador é ela, a indesejada das gentes, a Morte. Transitando por
gêneros, tempos e lugares diversos, temos nossa atenção sequestrada para situações,
momentos dramáticos (com certa - e boa - dose de estranhamento, que segundo o au-
tor é item capital para qualquer boa arte), em que, em meio à ação dramática, somos
inoculados por (in)discretas perturbações filosóficas e teológicas, para nossa alegria
mental (sorrisos). Leitura que deixa marcas, e que melhor elogio se faria à uma obra
literária? O livro tem preço de R$ 20,00, já com as despesas de envio incluídas. Para adquirir, escreva para o
autor: sammisreachers@ig.com.br - A.M.F.

CD / Teu Chamado - Ministério Declararei


O Ministério Declararei nasceu em 2006, após o entendimento de que é possível e ne-
cessário aliar “Adoração e Missões”. A vontade de sair das quatro paredes da Igreja pa-
ra influenciar vidas a amarem ao próximo e terem uma experiência real com Jesus Cris-
to uniu oito corações com um objetivo: abençoar o Nordeste brasileiro. Apesar de ter
sua base sob a cobertura da Igreja Batista Getsemâne (Ceilândia/DF), os componentes
do Declararei são também de outras denominações, o que faz dele um ministério interdenominacional. O
presente trabalho, o EP O Teu Chamado, surgiu especialmente para auxiliar nos esforços da Expedição Missi-
onária Piauí, iniciativa evangelística capitaneada por Eliézer Castro, que realiza duas vezes ao ano expedições
missionárias para pequenas cidades piauienses (todo o valor arrecadado na venda servirá para custear a 13ª
edição da Expedição, a realizar-se em julho, em Campinas do Piauí). A música que dá título ao trabalho, O
Teu Chamado, foi composta durante um momento devocional de uma das Expedições. Junto às cinco outras
canções, formam um conjunto harmônico, de doce sonoridade e letras cujo foco temático é a obra salvífica
de Cristo, e a obra comissionada a cada cristão.
Conheça mais do trabalho da banda no site: www.declararei.com.br . E as músicas do EP já podem ser ouvi-
das no Deezer, Spotify e iTunes. - S.R.

50
Resenhas
FILME / Quarto de Guerra
Após os filmes de sucesso, Desafiando Gigantes (2006), À
Prova de Fogo (2008) e Corajosos (2011), os irmãos Ken-
drick lançaram o drama cristão “Quarto de Guerra” que fez
sucesso nas bilheterias do cinema, na venda de DVDs, nas
redes sociais da internet e já até recebeu sua versão em
livro.
A obra traz a história de Tony Jordan (T.C. Stallings), um
vendedor de sucesso, e Elizabeth (Priscilla Evans Shirer),
uma corretora de imóveis. Ambos vivem um casamento
conflituoso e, por causa disso, a pequena Danielle Jordan
(Alena Pitts), de 10 anos, sofre pelas constantes brigas e a
falta de atenção dos pais.
O nome original do filme, “War Room”, nos remete à Sala
de Guerra, local utilizado para definir estratégias de defesa
e ataque durante a guerra. A senhora Clara (Karen Abercro-
mbie), viúva de um estrategista de guerra, durante a venda
de sua casa, explica à Elizabeth que primeiro é necessário
entender quem é seu verdadeiro inimigo. Com isso, a corre-
tora segue o exemplo de sua nova irmã em Cristo e acaba influenciando sua filha e seu esposo a batalharem
em oração. Quando Tony desperta de um pesadelo que o confronta, o relógio marca 7:14h, fazendo alusão
ao versículo tema, II Crônicas 7:14.
No decorrer dos 120 minutos de duração do filme, há um tom de humor, uma trama que envolve e as
‘pregações’, ou os momentos de maior proselitismo das mensagens, são desenvolvidas naturalmente através
de diálogos, seja na academia, na praça, no sofá etc., também ensinando que o filho de Deus tem relaciona-
mento com Ele.
Outro ponto que percebi no filme é que ele não é triunfalista, pelo menos não tanto quanto a maioria dos
filmes evangélicos de sucesso. Ofereço aqui alguns exemplos onde percebi isso: O grupo da Danielle não ga-
nha a competição escolar em 1º lugar; O Tony não volta ao emprego após se arrepender e passa a ganhar
bem menos que antes, quando vivia no erro; Tony, mesmo em cima da hora para um compromisso, faz o
bem ao seu ex-patrão, mas não é aparentemente recompensado por isso; Também, a própria senhora Clara
conta que perdeu o marido mesmo depois que passou a orar. Ou seja, o filme deixa-nos a lição que orar não
é fazer exigências para Deus, mas sim, buscar com que a Sua vontade se cumpra em nós, acima de nossa pró-
pria vontade.
Que os espectadores sejam motivados a atender ao clamor de Clara, que é o de buscar ao Senhor e de ser
um ser humano melhor, ainda mais nesse momento de crises tanto moral como econômica, política e social,
onde o casamento é banalizado e o divórcio aumenta em nossa nação. - J.R.*
*João Rodolfo, evangelista, da Igreja Batista Nova Filadelfia em Vila Metral - Blog: http://
ameabiblia.blogspot.com.br/
51
Resenhas
CD / As Paisagens Conhecidas - Os Arrais
Com este mais recente trabalho, lançado em 2015 e produzido por Leonardo Gon-
çalves, Os Arrais presenteiam seus fãs com um belíssimo EP "As Paisagens Conheci-
das" com cinco faixas. Melodias muito bem trabalhadas com blues e violões exce-
lentes. Suas músicas levam à reflexão e uma adoração mais contemplativa para
aqueles momentos a sós com Deus. A música cristã é referenciada pela Palavra de
Deus, mas para este disco sugiro que você escute com uma Bíblia na mão, porque todas as faixas convi-
dam. E não se esqueça de uma boa caneta e papel.
Na faixa "Outono", uma música de entrega com uma melodia intrigante nos lembra do Salmo 121. Depois
de toda batalha o refúgio é nos braços do Altíssimo e ele é a recompensa maior.
O que vem à memória na faixa "Caneta e Papel" é o Salmo 23. Nas turbulências da vida Deus nos leva para
águas tranquilas e sua vara e cajado nos protegem. Uma letra delicada e sincera que mostra o cuidado de
Deus, que não abandona em tempo algum. Mas também serve para bons amantes que juntos vão para um
novo tempo.
Onde está sua motivação para a sua missão? Na faixa " Fogo", também intrigante e com um blues marcan-
te, impossível não lembrar dos hebreus cativos no Egito. Letra com um ar libertador que impulsiona a con-
tinuar a carreira em direção ao Alvo Eterno.
Numa letra quase apocalíptica, a faixa "Montreal" é introduzida por uma bela narrativa dos Arrais, que
remete ao novo lar, uma nova terra, a Nova Jerusalém. Renova nossas esperanças no novo de Deus. Por-
que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram o que Ele tem preparado para nós.
Uma adoração plena e completamente desmedida. Na faixa "O Bilhete e o Trovão" mais uma narrativa an-
tecede esta maravilhosa letra. Ela declara a soberania de Deus e que ele deve sempre ser o Primeiro em
tudo. Uma adoração em Espírito e Verdade sempre valerá mais que mil palavras. - M.S.*

* Marina Stela - Jornalista e poeta, mantém o blog O Cálice e o Perfume .

“Arca”, Camilo
Borges Júnior.
Conheça mais
AQUI.

52
Maria Cristina Gama (Chris Amag)
E quando você desiste de procurar, parece que tudo acontece, foi assim quando desisti de engra-
vidar, depois de tentar quase um ano e, só foi desistir, aconteceu! O milagre da vida... Sim, a vida é
feita de pequenos encantos, alguns ainda não têm identidade, nem cheiro, nem o calor da proximi-
dade, mas encantam e tornam os nossos dias mais bonitos, cheios de poesia... Surpresas que che-
gam sem hora marcada, sem avisar... Não me venha falar que é destino, que são coincidências... A
nossa história está escrita, mas o livro tem de ser aberto, lido e apreciado.
E por falar em livro, quero confessar um péssimo hábito que eu tenho: só compro um livro depois
de ler o final da história primeiro, se valer a pena, aí sim, eu leio! Mas, tentar fazer isso com a pró-
pria vida, é pular pedaços importantes que construíram quem somos. Não posso querer saber do fim
sem experimentar cada momento... Pois, se soubéssemos do futuro, deixaríamos de fazer muitas
coisas... Talvez eu não engravidasse e eu não conheceria essa pessoa linda que é o meu filho...
A vida é feita de oportunidades, o tal cavalinho branco não passa duas vezes, lembra? Eu sempre
digo isso... A grama está verde, o caminho está aberto e a água está fresca, vai dar tempo de decidir
sobre ficar ou partir.
E, enquanto tudo ainda são hipóteses, quero viver esse momento delicioso entre o antes e o de-
pois: “a expectativa”, “a espera”; mesmo que depois eu salte, o que sentimos quando temos espe-
rança é o que nos move e nos faz sentir vivos.
Carpe diem!

Rogério Araújo (Rofa)

Quando se aproxima a “Folia de Momo”, o Carnaval, a alegria parece tomar conta das pessoas co-
mo se fosse algo que invadisse suas vidas. Mas será que essa é uma alegria duradoura ou apenas
passageira, com muitos risos soltos?
Alegrar-se com bebidas, batuques, rebolados, pula-pula... e depois vem a ressaca cobrando o pre-
ço da “folia” nos dias do Carnaval - que só pode acabar em cinzas, como na 4ª feira, quando tudo
termina.
O homem vive muitas alegrias na vida, mas parece que a maioria delas não acontece de fato e,
sim, por algum tempo e muito curto ainda por cima.
DEUS tem um plano muito melhor para cada um e deseja trazer a alegria eterna para o HOMEM! E
para ser feliz, não por alguns dias, mas para sempre, e não viver nos prazeres da carne, mas os pra-
zeres divinos em sua existência!
Jesus disse “no mundo terei aflições; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo” (João 16.33). O
mestre deseja que levemos uma vida plena de alegria, amor e muita FÉ no Pai que está no céu nos
vendo e nos orientando em tudo.
Um forte abraço, irmãos! E boa viagem ou descanso nestes dias!!!
53
Inauguramos a seçao Al-
bum com a arte de Willi-
am Rosa. Formado em
Arquitetura e Urbanismo
e pos-graduado em Mar-
keting, William e natural
do Rio de Janeiro - RJ. Ho-
je exerce a fotografia pro-
fissionalmente. Sua obra
transita com agradavel
desenvoltura entre pesso-
as e paisagens, o homem e
o meio.
Conheça mais do trabalho
de William Rosa em seu
site:
www.wrfotografo.com

54
H
Caio, O Pardal Pensativo - www.facebook.com/Caioopardal
Q
Vestígia HQ - www.vestigiahq.com.br

55
Parlatorium
“O ato criador é apenas um momento incom- E eu sentia que era isto
pleto e abstrato da produção de uma obra; se o que cada alma, perdida na
escritor existisse sozinho, poderia escrever quan- multidão, desejava: a pala-
to quisesse, e a obra enquanto objeto ja- vra que lhe dissesse a sua
mais viria à luz: só lhe restaria abandonar a pena verdade. Milhões de so-
ou cair no desespero. Mas a operação de escre- fredores, pedindo um poe-
ver implica a de ler, como seu correlativo dialéti- ma. Não, eles não vivem
co, e esses dois atos conexos necessitam de dois só de comida. Os poemas
agentes distintos. É o esforço conjugado do fazem o corpo sorrir e lu-
autor com o leitor que fará surgir esse objeto tar: alimento revigorante.
concreto e imaginário que é a obra do espírito.
Rubem Alves, Gandhi - Ma-
Só existe arte por e para outrem.” gia dos Gestos Poéticos
Jean-Paul Sartre, O Que É Literatura
“Deveríamos nos lembrar de que Cristo não veio para nos tornar Cris-
tãos ou para salvar nossas almas apenas, mas que Ele veio nos redimir afim de
que pudéssemos ser humanos no sentido completo da palavra. Ser novas pessoas
significa que podemos começar a agir em nossa completa e livre capacidade hu-
mana em todas as facetas de nossas vidas. Portanto ser um Cristão significa que
há humanidade, a liberdade de se trabalhar na criação de Deus e de usar os ta-
lentos dados a cada um de nós, para Sua glória e o benefício de nossos próximos.
Desta maneira, se possuirmos talentos artísticos, eles devem ser usados. O Se-
nhor sabe porque os está dando. Paulo em sua primeira carta aos Coríntios
(12:12-27) fala sobre a comunidade Cristã como sendo o corpo de Cristo. Ca-
da um possui sua função específica dentro dele. E ninguém pode ser deixado de
fora. Certamente alguns tocam a música, desenham as semelhanças, fotografam
os movimentos e escrevem as histórias. Estes são os artistas. Eles possuem seu
lugar de direito na família de Deus. Novamente, a vida do corpo de Cristo, e
certamente um renovo, um avivamento, é impossível sem esses membros
chamados por Deus para fazer seus trabalhos.”
H.R. Rookmaaker, A Arte Não Precisa de Justificativa

“Enquanto o poema se apresenta como uma ordem fechada, a prosa tende a manifes-
tar-se como uma construção aberta e linear. Valéry comparou a prosa com a marcha e a
poesia com a dança. Relato ou discurso, história ou demonstração, a prosa é um desfile,
uma verdadeira teoria de ideias ou fatos. A figura geométrica que simboliza a prosa é a
linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante , mas sempre para diante e com
uma meta precisa. Daí que os arquétipos da prosa sejam o discurso e o relato, a especula-
ção e a história. O poema, pelo contrário, apresenta-se como um círculo ou uma esfera:
algo que se fecha sobre si mesmo, universo autossuficiente e no qual o fim é também um
princípio que volta, se repete e se recria.”
Octavio Paz, Signos em Rotação 56

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