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do Estado da Bahia
Correspondência: julianapassos.psi@gmail.com
1. Introdução
2. Metodologia
A partir do momento em que tais referenciais reivindicam o contato direto – face a face
com os atores sociais – numa relação de imersão no terreno das dinâmicas relacionais,
faz-se adequada a utilização da Observação Participante como estratégia privilegiada de
pesquisa, servindo-se de entrevistas sob diferentes formas e de documentos pessoais a
exemplo dos diários de campo, importantes ferramentas etnográficas. Nessa perspectiva,
por imersão, o pesquisador se torna parte ativa do objeto que ele analisa. Assim, a
postura do pesquisador será a de descrever o contexto onde ocorre a produção de
sentidos, não se tratando apenas do simples ato de registrar aquilo que se vê em campo
como em um inventário, mas de um trabalho rigoroso de analisar e interpretar aquilo
que se observa. A descrição etnográfica é a realidade social apreendida a partir do olhar,
uma realidade que se tornou linguagem e que se inscreve numa rede de
intertextualidade, não consistindo em exprimir um conteúdo pré-existente e previamente
dito, mas em fazer surgir o que ainda não foi dito, em revelar o inédito (LAPLANTINE,
2004). Sua finalidade passa por podermos apreender os fenômenos sociais enquanto
totalidades localizadas, datadas e historicizadas, para chegarmos a uma descrição, o
mais completa possível, dos significados compartilhados pelos membros de um
determinado grupo e dos processos de construção desses significados pelos
participantes.
O projeto vem sendo desenvolvido com três turmas do terceiro ano do Ensino Médio,
sendo duas do turno matutino e uma do noturno. Em primeiro lugar, foi realizado um
levantamento, via questionário, dos planos de futuro, escolhas profissionais e
influências nas decisões dos estudantes. O processo de coleta foi realizado em poucos
dias e as informações obtidas foram transformadas em dados e gráficos para posterior
devolução aos alunos. O encontro de devolução foi precedido de uma divulgação prévia
com cartazes que traziam perguntas sobre o futuro dos alunos (Ex.: “O que querem os
alunos do terceiro ano? Prestar Vestibular? Fazer um Curso Técnico? Casar?”), com a
finalidade de incitar a curiosidade dos mesmos acerca da devolução.
Também foi exibido e discutido o filme nacional “Pro dia nascer feliz”1, por se acreditar
que se tratava de um recurso interessante para promover uma reflexão e debate acerca
das diferentes realidades e perspectivas vivenciadas nas instituições escolares e para
disparar discussões que abordassem a questão dos projetos de vida, os quais podem ser
influenciados por diferentes contextos de formação.
3. Resultados e Discussão
De modo geral, pode-se perceber que houve grande envolvimento dos alunos, que
passaram a demandar informações que pudessem instrumentalizá-los para suas escolhas
em relação ao futuro, e a incluir fortemente em seus projetos de vida o plano de cursar o
Ensino Superior, possibilidade que anteriormente não era encarada por eles como algo
atingível. Foi percebida uma diferença importante entre as perspectivas dos estudantes
do turno matutino e noturno, visto que para os últimos a perspectiva de se manter no
mercado de trabalho se mostra mais impositiva.
Na atividade de devolução dos dados colhidos através dos questionários, foi realizada
uma dinâmica inicial de apresentação que consistia em que todas as pessoas presentes –
inclusive os membros do estágio – dissessem o nome e algo que gostavam de fazer.
Depois os dados foram exibidos por meio de uma apresentação de power point e, logo
em seguida, discutidos com os estudantes. As discussões desenvolvidas envolveram
ainda o relato da experiência de um estudante do curso de Psicologia da UFBA – que
utiliza a assistência estudantil da universidade para permanecer estudando – o qual
havia sido convidado pela equipe para partilhar sua história de vida e a experiência de
ingresso na universidade pública, mesmo sendo advindo de uma pequena escola pública
no interior da Bahia.
A repercussão desse primeiro encontro foi muito positiva, sendo que os estudantes
solicitaram “mais palestras de motivação” para alguns professores. Já a devolução para
as outras duas turmas apresentou algumas dificuldades devido ao grande número de
pessoas na sala, e por não ter contado com o relato de experiência do mesmo estudante
de Psicologia, embora uma estagiária de classe popular da equipe tenha rapidamente
comentado sobre a sua inserção na UFBA. Alguns estudantes procuraram a equipe, no
fim das apresentações, para fazer perguntas sobre as mudanças ocorridas na UFBA e
sobre o ENEM. A equipe respondeu na medida do possível e indicou endereços
eletrônicos onde poderiam pesquisar acerca dos temas causadores de dúvidas.
O segundo encontro proposto pela equipe da USP, ao ser adaptado para a realidade local
da escola, partiu da sugestão de que os grupos de alunos, divididos conforme o número
de pessoas na sala, produzissem cartazes sobre os seguintes assuntos: vestibular,
profissões, faculdade e mercado de trabalho. Pedimos que não fossem inseridos títulos
nos cartazes, tendo em vista que os colegas deveriam adivinhar o assunto tratado por
cada grupo. Os alunos discutiram animadamente o conteúdo dos cartazes elaborados,
trazendo porém muitas angústias em relação aos temas abordados, demonstrando grande
insatisfação com a realidade educacional e de trabalho do país. Os próprios estudantes
tiveram a iniciativa de afixar os trabalhos nas paredes da escola, o que foi
surpreendentemente positivo, mostrando seu amplo interesse em discutir tais questões.
A exibição e discussão do filme “Pro dia nascer feliz”, por sua vez, partiu do objetivo de
relacionar o conteúdo do filme – o qual problematiza a realidade das escolas públicas e
Educação Brasileira – à realidade local da escola, enfocando o cotidiano vivido pelos
estudantes. Esse foi um momento bastante positivo na medida em que propiciou que os
estudantes falassem sobre as dificuldades que enfrentam na escola, denunciando
questões como dificuldades de relacionamento com a direção da escola e com os
professores – os quais têm uma tendência a desmotivá-los quanto à continuação dos
estudos e ingresso na universidade – e falta de oportunidades para exercitar o
protagonismo juvenil.
Com relação aos encontros informativos, foi percebido um grande interesse por parte
dos estudantes em buscar informações que pudessem instrumentalizá-los para fazer
escolhas mais conscientes em relação ao seu futuro, propiciando construções individuais
e coletivas de projetos de vida coerentes com suas possibilidades concretas, porém sem
perder de vista o sonho de desenvolver e ser reconhecido por uma profissão, galgando
melhores posições na dinâmica social e qualidade de vida. É importante frisar que foi
amplamente incentivado que eles passassem a buscar essas informações por si sós, com
vistas a não se manterem tão dependentes de nossas orientações enquanto
multiplicadores.
De modo geral, a maior parte dos alunos avaliou como positiva e satisfatória a
participação na série de encontros que as equipes de estágio promoveram. É fato que
nem todos que estiveram na reunião de devolução participaram das etapas posteriores
do processo, contudo, a quantidade mínima de alunos que contamos durante um
encontro foi de dez estudantes. Pode-se dizer que a temática da importância do
planejamento do futuro criou um ambiente possível para discutir outras questões que se
fazem presentes para os alunos envolvidos, com a reflexão e problematização das
dificuldades e necessidades que eles possuem em seu cotidiano. No caso dos alunos do
terceiro ano noturno, a questão das dificuldades econômicas enfrentadas por eles e suas
famílias e as implicações disso na relação com a escola foi bastante abordada.
Em alguns momentos sentimos uma espécie de desânimo e falta de esperança por parte
deles, como se sonhar com o ingresso no ensino superior fosse algo impensável. Apesar
de percebermos que os relatos de experiências de estudantes que também pertencem à
classe popular os mobilizaram bastante, no sentido de “se ele pôde fazer isso, eu
também posso”, às vezes parecia que o discurso de possibilidade de ingresso num curso
de graduação, veiculado pela equipe, não fazia sentido para a maior parte deles, mesmo
quando eram sinalizados recursos objetivos e legais que poderiam contar para entrar e
se manter estudando numa universidade pública. Levando isso em conta, ajustamos a
dinâmica em relação ao turno da noite, considerando os planos para o futuro de maneira
mais ampla e valorizando o que nos era relatado, sem direcionar o processo tanto para a
questão da continuação dos estudos. Quando surgia algo que convergia para o objetivo
original do projeto, como a inscrição para o ENEM, ou a dúvida sobre alguma mudança
no vestibular da UFBA, salientávamo-na e nos detínhamos mais nela.
Durantes os encontros realizados com o terceiro ano da noite, também se constatou que
a maior parte dos estudantes trabalha durante os outros turnos, em geral ocupando
profissões pouco valorizadas no mercado de trabalho, sem contrato de trabalho ou com
vínculo empregatício bastante precário. Como ressaltam Lehman, Uvaldo e Silva (2006,
p. 85): “Hoje, os padrões ocupacionais dos jovens apontam para o agravamento do
quadro de marginalização e desagregação social produzido pelas políticas
macroeconômicas e reproduzidas pelo funcionamento desfavorável do mercado de
trabalho”.
Conforme essa perspectiva, percebemos que as questões mais valorizadas pelos alunos
do turno noturno, quando pensavam sobre o futuro, se vinculavam às oportunidades de
trabalho e ascensão econômica, algumas vezes deixando em segundo plano a realização
pessoal, que poderia se fazer presente com o exercício de uma profissão. Também em
relação ao público da noite, é importante relatar que alguns professores, quando
conversavam informalmente com a equipe de psicologia acerca do projeto, nos
aconselhavam a não realizá-lo no período noturno, já que consideravam os alunos da
noite muito “fraquinhos” para ingressar numa faculdade, sendo que o máximo que
muitos poderiam (e desejavam) alcançar era um diploma de nível médio. Percebemos
certa convergência dessa concepção apresentada por estes professores com a chamada
“teoria da deficiência sociocultural”. Patto (1999) e, mais especificamente Charlot
(2000), apontam que essa teoria pode aparecer seguindo três modalidades principais: a
teoria da privação, que se remete a algo que falta no jovem – em termos de capacidades
e habilidades e que impede o alcance de sucesso na escola; a teoria do conflito
sociocultural, que se relaciona a uma discriminação e desvalorização da cultura familiar
das classes populares, que não consegue atender às demandas escolares e a deficiência
institucional, que admite que é o próprio tratamento oferecido pela escola às crianças e
adolescentes de baixa renda que provocam essa desvantagens nos alunos.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto
Alegre: ArtMed, 2000.