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ConceIrTos DE LITERATURA E CULTURA Euridice Figueiredo (organizadora) Editora UFJF / EUUFF 2005 CrRIOULIZAGAO E CRIOULIDADE Magdala Franca Vianna Universidade Federal Fluminense La fixité du territoire est terrifiante. Rien west plus beau que le chaos — et il n’y a rien de plus beau que le chaos-monde. E. Glissant La Créolité est notre soupe primitive et notre prolongement, notre chaos originel et notre mangrove de virtualités. J. Bernabé, P. Chamoiseau, R. Confiant As palavras crioulizagdo e crioulidade vem do termo crioulo que circulou nas Américas coloniais, a partir da lingua espanhola, como _criollo. Egresso do latim « criare com o sentido de educar, 0 termo identificava os que nasciam e eram educados nas Améri er originarios delas como os amerindios, passando, entretanto, a indicar, por extens4o, homens de todas as _racas, animais e plantas que se _transportaram para 0 continente americano a partir de 1492. Alguns diciondrios franceses registram a ocorréncia do termo apenas no século XIX, tornando seu uso restrito a linhagem de colonos brancos chamados de békés nas Antilhas. Atualmente, na Franca, o termo _privilegia a definigéo de Iinguas complexas, egressas da situacéo de contato entre elementos lingiiisticos totalmente heterogéneos, explicando-se, assim, a tendéncia a redugao do conceito a uma simples defesa da lingua, que é, entretanto, apenas um dos componentes de um debate bem mais amplo sobre a identidade miltipla, como esclarece © tedrico da Crioulizagdo, Edouard Glissant: “Quando digo crioulizagao, nao me refiro absolutamente a Iingua crioula, mas ao fendmeno que estruturou as linguas crioulas, 0 que nao € a mesma coisa” (Glissant, 1996 p. 29). De fato, ao se tomar como referéncia de Pesquisa a leitura do verbete crioulo em dicionarios de Iinguas neolatinas, encontrar-se-4 uma multiplicidade de registros no percurso conceitual do termo até a emergéncia de crioulizagao ¢ crioulidade nos diferentes discursos em que seus sentidos vio sendo ressignificados. O Novo diciondrio da lingua portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira define criowlo como: 0 individuo de raga branca, nascido nas colénias européias de além-mar, particularmente as das Américas, denominando também de crioulo o dialeto falado por essas pessoas; 0 negro nascido nas Américas; 0 dialéto portugués falado em Cabo Verde ¢ em outras possess6es portuguesas da Africa. Ha ainda registros diversos relativos a circulagéo da palavra em construcées regionais especificas como, no Rio Grande do Sul, 0s nativos de determinada regido ou o individuo natural de qualquer parte do Estado e, no Rio de Janeiro, qualquer individuo negro (bacurau), além de extensées da carga semantica de base, tais como “galinha comum, sem tipo nem raca definida” ou “cigarro feito de palha e fumo de rolo”. Encontram- se, também, referéncias as variagdes da lenda sulista do Crioulo do Pastorejo ou Negrinho do Pastoreio. Para crioulismo registra-se a tendéncia nativista nas literaturas hispano-americanas. O diciondrio enciclopédico Le Pelii Larousse refere crioulo como pessoa de ascendéncia européia nascida nas antigas colonias francesas de plantagao como as Antilhas, as Guianas, Reuniao etc, e, também, como © dialeto que, surgido por ocasido do trafico de escravos africanos entre os séculos XVI e XIX, torna-se lingua materna dos descendentes desses escravos. Para crioulizagdo registra-se o processo pelo qual u Pidgin (lingua de relacao nascida do contato entre linguas européias, asidticas e africanas que permite a comunicagao entre comunidades, mas, ao contrario do crioulo, nao tem o estatuto de lingua materna) 104 torna-se crioulo, enquanto crioulismo é idiomatismo préprio de lingua crioula, € criowlofono, o falante de lingua crioula. Para se crioulizar, Tegistra-se o “estar afetado por um processo de crioulizacao”. Na América hispanica, 0 termo crioulo nao 86 indica os membros, de classes subalternas, nascidos nas Américas, mas, também, refere-se 4 légica sincrética do crioulo vernacular como modelo inclusivo com um majoritario aporte de construgées sociais. William Rowe escreve que © “crioulo denomina, no século XX, uma atitude cultural, que se_ tem chamado de ‘nacionalismo estético’. E, como movimento literario, existe, nas histérias da literatura, um certo consenso de que o ulismo estende-se de 1900 até mais ou menos 1945 ou 1950” (Rowe, 1994, p. 707). Essas referéncias autorizam a pesquisa de um continuum processual ou de “continuidades” nas construgées culturais identitarias entre as sociedades crioulas de diferentes expressdes lingiiisticas nas Américas. No Brasil os movimentos negros ainda absorvem teorias da cursiva € néo participam do debate - Negritude como referéncia di cuja discussao, permanente no Caribe, ja se e divulga entre 0s afrodescendentes dos Estados Unidos. As teorias da Crioulizagéo e da Crioulidade vem ganhando corpo nos meios académicos brasileiros e em simpésios promovidos por organizacées internacionais cientificas € educacionais como a UNESCO. ] O mapeamento hist6rico da palavra crioulo, base sémica da qual _ emergem os conceitos de crioulizacao e crioulidade, em que se evidenciam — “inscricées do discurso colonial e se problematizam representagoes da “alteridade na _desconstrugéo de conceitos ocident: tase puristas, torna visivel, em ter em termos isticos, as. migragécs discursivas _ que Sere carats izam o processo de significagao vocabular, ou seja, 0 jogo _ de divergéncias entre significante e significado, que Roland Barthes (1984) chamou de significancia, e Jacques Derrida (1967), de différAnce. O dito “o mar € hist6ria”, do escritor caribenho Derek Walcott (Santa Liicia), ganhador do Prémio Nobel de Literatura em 1992, citado por Edouard Glissant (Martinica) na epigrafe de Poétique de la Relation essencialistas € 105, (1990), autoriza a inscrigdo de oceanos e mares no Ambito das fronteiras culturais moventes, De fato, auténticas regides aquaticas abertas, como a atlantica e a caribenha, constituiram-se na rota do projeto expansionista ocidental nao s6 pelo trafico de populagoes transplantadas, mas, também, por migracées miultiplas. Gli que _ assina o pensamento da Crioulizacao, escreve sobre a importancia do mar do Caribe - “um mar aberto, um mar que difrata [...] e que leva a comocao da diversidade” (Glissant, 1996, p.14) -, definindo-o na apenas como um mar de transito e passagem, mas, r lugar de circulacdo de elementos culturais diversos “ crioulizam, que realmente se sobrepéem e se confundem outros para resultar em algo absolutamente impr absolutamente novo que € a realidade crioula” (Glissant, 1996, O pesquisador antilhano usa a referéncia da circularidade geog da regido do Caribe e a figura da difragéo para definir a Cri h como um movimento aberto_que se propaga em espiral em diregées, diferindo, portanto, fundamentalmente, da “projecao | flecha” marcante em todo processo de colonizagdo. Apesar de reconhecer que o fendmeno nao se processa, exclusivamente, no Caribe, Glissant destaca o privilegiamento da regio para a ocorréncia de mesticamentos etnoculturais por seu extraordinario poder de diversidade e unidade. Em Introduction a une pottique du divers (1996), 0 escritor defende a teoria de que existe atualmente uma arquipelizacao cultural do Caribe, evoluindo para_a. crioulizagao. O termo aplica-se também a uma totalidade-planetdria em que, nao havendo mais “nenhuma autoridade ‘organica’ e onde tudo_ €arquipélago” (Glissant, 1996, p. 22), se realiza o produto imprevisivel rugdes culturais heterogéneas e complexas postas em relacio. Transversalizando a ética ocidental monolitica e universalista com 0 “olhar exterior” crioulo, ele avalia a arquipelizacao dos continentes e_ revitaliza 0 conceito de regiao cultural: “As Américas arquipelizam-se__ €constituem regides além das fronteiras nacionais. Creio que é preciso restabelecer a dignidade do termo regido. A Europa se arquipeliza. As regides lingiiisticas, as regides culturai: para além das barreiras das 106 _nac6es, sao ilhas, mas ilhas abertas, € essa é sua principal condicao de sobrevivéncia” Glissant, 1996, p. 44). A dinamica dessas construcées tem escapado As politicas nacionais resistentes as forgas da _arquipelizacao e, apesar da relacao hierarquica entre centro e periferia, “ndo parece possivel deter a transgressio das fronteiras geograficas € 0 desenho de novas cartografias culturais policéntricas ¢ polifnicas. -Entretanto, as politicas de disseminacdo das linguagens telematicas ‘icénicas da atualidade pelos mass-media, a0 unificarem seus produtos € promoverem a estandardizacao de sujeitos culturais, que se véem_ -atravessados por conceitos universais ¢ metodologias totalizantes, tém uido uma ameaga ao processo de arquipelizagdo_ cultural. ‘Provocando importantes debates sobre o tema, Edouard Glissant, mentor da Crioulizagdo, e os tedricos da Crioulidade, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaél Confiant, defendem a tese de que a permanéncia do processo sustentar-se-ia na vitalizacéo de uma relacio dialégica entre os povos, ou seja, de fluxos comunicativos descentralizados, intercambios parciais, hibridizagoes € sincretismos, cada tentativa de retorno de _paradigmas unificados e ‘monolégicos. A crenga nesse aparato conceitual é que faz os” pesquisadores da Crioulizagdo e da Crioulidade verem no encontro de povos e culturas a possibilidade de construgao de um novo ethos, uma nova maneira de ser e estar no mundo. Entretanto, apesar da crenga dos intelectuais antilhanos nessa ética politica dialégica inscrita nos discursos da Crioulizagdo e da Crioulidade, sabe-se que a difusao do processo no hemisfério norte tem sido rechacada por politicas segregacionistas, que tentam apagar seus aspectos mais evidentes em nome de uma cultura branca ¢ européia. Ainda assim, nada parece capaz de impedir o fluxo da crioulizagdo, que tem inscrito significativas -construgées em_matrizes culturais populares, como, por exemplo, nos _Estados Unidos, onde ha, entre outros tracos ndo menos importantes, - numerosos empréstimos as linguas autéctones depositarias de memorias indigenas, além de um grande aporte de construgoes culturais negras, como 0 jazz, os blues, e 0 rock, herancas pontuais de ritmos africanos que, reconstituidos através da meméria, evolufram em matrizes musicais negras. 107 A atual complexidade das migracées faz das Antilhas um _arquipélago movente, onde se constitui uma regiao cull 1ral_aberta, atravessada por uma multiplicidade de culturas, mesmo as mais. contraditérias, como, por exemplo, o rap, que convive com o gwoka, ou 0 teatro de bowlevard com a veillée, 0 sero ou sarau anti igo. Por isso, a despeito da situacao de insularidade, Sua cultura pode ser descrit como uma “border culture”, em que se estimula a criagao de novas forma culturais, valorizando-se novos mesticamentos € dinamizando-se formas tradicionais j4 estratificadas pelo uso. O esquema dé transplantacao e desenraizamento é comum a todas as ilhas, sejam d lingua francesa, espanhola, inglesa ou holandesa. HA, como se sabe por exemplo, em Londres, Liverpool, Amsterdam, New York e Mi quarteirdes caracteristicamente caribenhos. Das complexas migracoes haitianas, que ocorrem principalmente entre Canada, Estados-Unidos € Europa, surgem combinagées lingiiisticas imprevisiveis, como as d haitianos de Nova York ou Toronto, que, apesar de conservarem pratica da lingua crioula, perdem a do francés € se exprimem em inglés. Além disso, parte da producio literéria do Haiti escreve-se em inglés nos Estados-Unidos e em francés no Quebec, assim como a das ilha de expressao lingiiistica inglesa também j se produz em Londres suas periferias, ou a de escritores do Suriname que vivem em Haia publicam em Amsterda. Guadalupe e Martinica incluem-se na rota migracdes predominantemente da Republica Dominicana, Domi e do Haiti, e os censos demograficos demonstram que apenas 30% dos insulares jamais deixaram seus paises. Os outros 70% movimentan se entre suas ilhas de origem, a Franca e os paises da Europa onde ha oferta de trabalho, disseminando suas alteridades culturais, sobretu através da misica, como, por exemplo, 0 zouk, que se enraizou fortemente na regiao parisiense. Atualmente, mais de meio milhao d guadalupenses e martiniquenses residem na Franga e seus descendente sao classificados pelas agéncias de imigragdo como Deuxiéme Génération. Eles se caracterizam por falar o francés standard, sem o acento antilhano, “devorador de r”, de que fala Frantz Fanon, ¢ so chamados de “négropolitains”, negros metropolitanos. Sua visio das construgées 108 culturais do arquipélago é mediada por cursos ministrados por professores especializados da metrépole. De um modo geral, as comunidades de imigrados recentes_sio desprestigiadas pelos %esidentes” da metrépole nao s6 pelo uso do crioulo € 0 acento fortemente marcado, mas por praticas culturais, mantidas em_ “numerosas_associacées, que nao correspondem aos. paradigmas | definidos como auténticos. “Todo esse quadro deixa claro que 0 encontro de culturas nas sociedades contemporaneas pode provocar reagoes opostas de abertura e fechamento em relacao as politicas identitarias. O escritor antilhano Raphaél Confiant (Martinica), um dos mentores da Crioulidade, em entrevista divulgada pela emissora de radio francesa Fréquence Paris Plurielle (106,3 MHz FM), em 22 de janeiro de 1999, aponta o > capitalismo como o sistema responsdvel pela gestao desse contato generalizado de culturas, I linguas, religi “territérios fixos, demarcados politicamente, onde sao obrigados nao \bém nstantes_confrontos. A administragao dos conflitos e diferengas dai advindos por programas desenvolvidios pelos agentes da modernizacao nas Américas Latina e s, civilizagdes, em coabitar, mas, também, a se expo! Afrolatina (Glissant), realizando o discurso racionalista € autolegitimador da modernidade que se ergueu como solugao para 0 subdesenvolvimento, resultou, na andlise de Confiant, no esvaziamento_ do conceito liberal de nagio. Ante 6 fracasso-da miodernidade em construir espacos de verdadeira agao democratica, enfrenta-se, hoje, segundo o escritor, o grave dilema da opgao entre 0 fascismo € a crioulizaca rdeneidaate maltpta, 2 partlha da identidade, partilha da identidade, que é, “entretanto, considerada uma via alternativa muito mais dificil que a da exclusio da diferenga. Avaliando a complexidade dessa dindmica, em entrevista a Label France (janeiro de 2000, n® 38), por ocasiao do lancamento de seu livro Sartorius. Le roman des Batoutos (1999), uma fabula moderna da nao-dominac4o, Edouard Glissant diz que se torna cada vez mais necessario compreender as dimensoes do mesticamento cultural © axtolégico 10 Ambito de um processo intercu (tural, em que se devem definir programas de uma educacao voltada para a 109 construgéo de imaginarios miltiplos, uma vez que sem essa pratica nao ser4 possivel a produgao de um discurso de solidariedade que fortaleca a autodeterminacio dos povos. E preciso, portanto, no ambito desse debate, analisar as dimensdes descentralizadas, policéntricas € _ polimérficas das novas organizagées que vém desconstruindo a relagio _ dual ¢ hierarquica entre centro e periferia. Para isso, tem-se recorrido aestratégias de implantacdo de politicas culturais que tornem viavel 0 acompanhamento dessa dinamica por uma educagao mestiga. Talvez assim fosse possfvel, segundo os estudiosos da Crioulizagdo e da Crioulidade, inibir o desenvolvimento de nacionalismos e integrismos de toda ordem, responsaveis pela instauracao de regimes de medo ¢ violencia, sobretudo nas Américas Latina ¢ Afrolatina, na definicao de Glissant, Essas Américas sao, em suas anilises, um projeto cultural a ser produzido, € seu embrido estaria na vitalizacio de uma possivel rede de trabalho intelectual que fosse capaz de distinguir raizes identitarias — _comuns e estabelecer pontes de relacao solidaria entre os povos, uma 7 Politicamente, ai vez que solugées individuais nao parecem possfveis construcées conceituais da Crioulizagdo e da Crioulidade partem, pois, — “da analise da modernidade em crise, da hesitacio da Europa entre a tolerancia multiétnica e a nostalgia nacionalista, em um momento em que as ideologias hegeménicas s4o incapazes de fornecer um modelo para o futuro. Em busca da discursividade dial6gi necessdria a realizagao do- projeto de construcao de uma América criowla, o teérico_antilhano referenda o pensamento do antropélogo brasileiro Darcy Ribeiro (1978), que, como outros pesquisadores latino-americanos, defende_ u a cartografia das Américas baseada na mobilidac FOCESSO. de.crioulizagéo. Em Introduction 4 une poétique du divers (1996), Glissant descreve a existéncia de trés Américas que se interpenetram, muitas vezes, de maneira indissociavel: a Meso-América dos amerindios; a Euro-América, constituida pelo Canada, Estados-Unidos e uma parte do Chile e da Argentina, que preservaram construgées ethoetnoculturais de seus pafses de origem; ¢ a Neo-América, definida por ele como a América da crioulizagio, herdeira das civilizagoes egressas do sistema 110 de plantagao e povoamento, ou seja, a América constituida pelo Caribe, o nordeste do Brasil, Guianas e Curagao, a costa caribenha da Venezuela e da Colémbia e uma grande parte da América Central, do México e do sul dos Estados-Unidos, particularmente, a Luisiénia. A _ proposta dos dois pesquisadores, acrescenta-se, ainda, a ocorréncia de miltiplos desdobramentos de regides culturais como, por exemplo, na Venezuela e na Colombia, que sao fracionadas em duas, uma andina (Meso-América) e outra caribenha (Neo-América). _Aimportancia da movéncia das fronteiras culturais na producio _ de uma textualidade hibrida em formacoes discursivas e em processos | “de construgées identitarias na América Afrolatina pode ser avaliada ao se reconstituirem matrizes de importantes movimentos politico- literdrios ativos, por exemplo, na década de 30, quando as teorias da Negritude referendavam-se na revitalizagao da heranga africana no Indigenismo haitiano de Jean Price-Mars, e no pensamento de escritores do Renascimento do Harlem. Apés Aimé Césaire € 0 movimento da Negritude, escritores e pensadores antilhanos, ao _elaborarem novas teorias € conceitos sobre a construg’o de identidades culturais, vém. instaurando um polémico debate em torno do pensamento da Crioulizacao Srioulidade. Na Martinica, 0s discursos da Crioulizagao da Crioulidade tem como data-marco as edigées de Le discours antillais (1981), de Edouard Glissant e do manifesto coletivo Eloge de la Créolité (1989), assinado pelo lingitista Jean Bernabé, e os escritores Patrick Ghamoiseau e Raphaél Confiant. O escritor haitiano René Depestre acrescenta ao conjunto 0 livro de Aimé Césaire Poésie et connaissance (1944), considerando que as trés obras complementam-se na revelagao do processo da crioulizagdo e do transito da crioulidade no romance e na poesia da Martinica. No ensaio Les aventures de la créolité (Ludwig, 1994), Depestre escreve que, embora no se constitufsse na obra de Gésaire um discurso conceitual ou antropolégico sobre Crioulizagao ou Crioulidade, 0 imagindrio do mestigamento crioulo em transito na literatura antilhana ja se expressava poeticamente no barroquismo, na carnavalizacao, na marronnage (clandestinidade) cultural, no humor “negro”, no onirismo antilhano, no realismo maravilhoso e no surrealismo popular de seus textos. i No Eloge de la Créolité, Bernabé, Chamoiseau e Confiant, além de proclamarem sua filiagdo a Césaire - “A Negritude cesairiana € um batismo, o ato inicial de nossa dignidade restituida. Nés somos para sempre filhos de Aimé Césaire” (1989, p. 18) -, consideram-no um ante-crioulo: “A Negritude impunha-se entao como vontade obstinada de resisténcia, total e unicamente empenhada em domiciliar nossa identidade em uma cultura negada, denegada e renegada. Césaire um anticrioulo? Absolutamente nao, mas um ante-crioulo” (1989, p. 18). Em recente sessio de debates em que se discutia a criagao de um conselho de pesquisas sobre a lingua crioula, Raphaél Confiant reitera as concepces do Eloge sobre a Crioulidade, quando se proclamou a identidade criowla - “Nem Franceses, nem Africanos, nem Asi nés nos proclamamos Crioulos” (p. 13), € reafirma que a Negritude promoveu apenas a | consciéncia das origens africanas, constituinda_ entretanto, uma etapa ‘necessdria a construgao do discurso da Crioulidade: “A Negritude nao saberia ser sendo uma breve etapa na direcao da crioulidade. Nao ha mais, nao ha e nao haverd, cada vez mais, sendo crioulos” (Confiant, KAPES Kreol, 2002, p. 2). Além de Confiant, também Patrick Chamoiseau, em Ecrire en pays dominé, escreve que a “Negritude havia reconstituido pe Concentragdes de identidade. [... -] essas memérias (Traces- -mémoires) — icos, foram afetadas por elas. Elas nao reconstrufram Africa nenhuma na_ regido, mas teceram uma trai a cintilante de Africas moventes, 4 deriva (Chamoiseau, 1997, p. 128). Na evolucao dos debates em torno dos conceitos, instaurou-se entre a intelectualidade antilhana uma polémica sobre a construgao teérica da Crioulizagéo e da Crioulidade. Na Introduction a une poétique du divers, em didlogo mantido com o poeta quebequense Gaston Miron sobre uma provavel ambivaléncia entre a produgao literaria da Crioulidade, ou seja, 0s romances de Chamoiseau e Confiant, nos quais haveria uma certa busca de identidade tinica, e 0 projeto de identidade definido no Eloge de la Créolité, que postula a totalidade-planetaria 112 (totalité-monde) aps a totalidade caribenha, Glissant diz reconhecer uma diferenga entre o manifesto e a produgao literdria, entretanto, corrigindo Miron, acrescenta: “Mas creio que é nas obras literarias, € nao nas tentativas tedricas, que a abordagem da totalidade-planetaria (otalité-monde) primeiro se desenha. Dito isto, eu nao vejo a contradi¢ao que vocé assinala e nao acredito que esses escritores estejam em busca | de uma ‘raiz tinica’ ” (Glissant, 1996, p. 104). Entretanto, entrevistado pela jornalista alema Andréa Schwieger Hiepko, em maio de 1998, por ocasiao de sua conferéncia em Berlim intitulada Penser Europe de | nouveau: Médias électroniques, oralité et identité (KAPES Kreol, 2001), -se na evidéncia de uma concepgao . Glissant diz que a discussao base essencialista no discurso da Crioulidade: “Quando propus 0 conceito de Crioulizacao, Chamoiseau e Confiant o tomaram para desenvolver “0 conceito de Crioulidade, mas sou totalmente contrario a essa no¢ao_ de Crioulidade. A Crioulizagao é um processo permanente que convém A movéncia permanente do caos-planet haos-monde). A_ ‘Grioulidade consiste em interromper 0 movimento em um lugar e momento determinados e definir o que se passa ali. Penso que essa ‘tentativa leva ao risco de_nos fazer voltar 8s antigas esséncias identitarias” (Glissant, 2001, 13/10, p. 6). Com isso, Glissant reitera as distingdes entre Crioulizagdo e Crioulidade ja elaboradas na Poétique de la Relation: “N6s nao propomes o ser, nem modelos de humanidade. O que nos orienta nao € somente a definigao de nossas identidades, “mas também sua relagio com todo o possivel: as mutagdes miituas que esse género de relacées cria. As crioulizagées levam 2 Relacgao, _ mas nao para universalizar; a ‘crioulidade’, em seu principio, ‘Tegressaria as negritudes, aos afrancesamentos, as latinidades” (Glissant, 1990, p. 103). Respondendo a avaliagao de Glissant, em entrevista ao professor Michel Peterson sob o titulo de Limaginaire de la diversité (KAPES Kreol, 2001), Patrick Chamoiseau diz que “na Martinica nos acusaram com freqiiéncia de querer reger a criacao e ser os comandantes do espirito, quando nés s6 quisemos simplesmente dizer quais eram nossas referéncias e nossas intengdes” (Chamoiseau, 2001, 12/10 p. 3). 113 Segundo Chamoiseau, 0 texto do Eloge de la Créolité é “menos fechado e menos dirigista do que se pensa”, nao se caracteriza como um manifesto - “nao € um manifesto”, e se define como “uma espécie de quadro estético que fornece algumas orientagées na noite” (Chamoiseau, 2001, 12/10, p. 3). No artigo Le créole é travers les Ages de Voral & Vinternet, en passant par Vécrit (KAPES Kreol, 2001), Raphaél Confiant e Jean Bernabé também manifestam sua posigao a respeito da polémica: “N6s queriamos ir mais longe nessa utopia de uma Martinica biolégica, formulando o sonho de uma comunidade de crioulos, crioulofonos, crioulisantes, crioulistas e crioulofilas, preocupada em defender a biodiversidade cultural do espago crioulofono tanto quanto seu entorno natural. [...] Nesse contexto hist6rico novo, cabe a nés agir, agora, para dar vida ao espago crioulofono, todos nés, crioulos, crioulofonos, crioulisantes, crioulistas e crioulofilas” (Confiant, Bernabé, 2001, 13/10, p. 3). A Crioulizagéo, segundo Glissant, fundamenta-se no principio de que o ser humano nao é uma entidade absoluta, mas um sendo/estando movente (étant changeant) em processo perpétuo, produzindo identidades inclusivas e impregnando de novas linguagens ethos diversificados. Para que a crioulizagéo se realize, as construgées culturais postas em contato devem ser, obrigatoriamente, equivalentes em valor, uma vez que a inferiorizagao de uma delas descaracteriza 0 processo. Glissant distingue crioulizagado de mesticagem e transculturagao. A mesticagem é tomada por ele no plano biol ou racial, e seus resultados tém a marca do previsivel, opondo-se a0 conceito de impredictibitidade ou imprevisibilidade, responsavel pela criagao de regides culturais e lingiiisticas totalmente inesperadas na_ crioulizagao: “a mestigagem seré o determinismo, e a crioulizacao é, em relagao 4 mestigagem, o produtor do imprevisivel. A crioulizagao é o impredictivel” (Glissant, 1996, p. 89). A diferenga entre AGO € _crioulizagéo estaria, ent ctanions na x rane a nenhum movimento representa melhor 0 que se passa no mundo que “essa realizacdo imprevisivel a partir de elementos heterogéneos” 114 (Glissant, 1996 p. 29), no momento em que a discursividade ocidental, fundamentalmente conceitual, é rasurada pelo imaginario crioulo. Teorizando, em Poétique de la Relation, sobre a constru¢ao do imaginario nas sociedades es migrantes, Glissant, além de ressaltar a _ importancia do pensamento complexo desenvolvido n: a movéncia das migrag6es, aponta a crioulizagéo cultural como chave do pensamento da modernidade e identifica na Relagao exatamente o contrario de um _mutticulturalismo redutor da diversidade, de uma dominagao cultural e “e politica do Outro: “As culturas em evolugao inferem a Relacio, 0 " excedente que funda sua unidade-diversidade” Glissant, 1990, p. 13), ou seja, uma totalidade aberta, em movimento sobre si mesma cujo resultado é a multiplicidade na totalidade. A trama epistemolégica da Crioulizagdo fundamenta-se em uma intervalorizagao de clementos heterogéneos postos em contato, ou seja, em uma concepgao da diversidade cuja teoria abre um leque de conceitos complementares, como os 10 os de membria-residual (trace-mémoire), totalidade- planetéria (tout-monde), caos-planetario (chaos-~ monde), lugar (lieu), -identidade-rizoma, relacdo, opacidade. Teorizando sobre a diversidade, Glissant diz que “o diverso nao é 0 melting-pot, o ‘bouilli-bouilli’, o méli-mélo, etc. O diverso é as diferencas que se encontram, se ajustam, se opdem, se afinam e produzem o imprevisivel” (Glissant, 1996, p. 98), apondo a universalidade dos pensamentos de sistema adiversalidade do pensamento da meméria-residual ( (trace-mémoire), que fundamenta as praticas de reconstituicao cultural al_no rastreamento de memérias_ diversas sobreviventes da degradagao e do recalcamento de herangas étnicas nos processos de colonizagao. A ‘totalidade-planetaria (tout- monde) diz respeito 4 complexidade do mundo atual, onde se realizam sistemas errdticos de relagdes, que tém um cardter totalmente imprevisivel.e cuja proposta é a convivéncia em cuntato sem diluigao de identidades diversas em um “magma multicultural” Glissant, 1996, p. 88). A concepgio de lugar relaciona-se A totalidade planetdria (otalité- monde) “que nao é o totalitario, mas seu contrario em diversidade” (Glissant, 1996, p. 105),.distinguindo-se do territério: “O lugar nao é um territ6rio: aceita-se partilhar o lugar, concebendo-o e vivendo-o 115 em um pensamento de errancia, mesmo que o defendamos contra toda desnaturacao, toda alteracéo” (Glissant, 1996, p. 105). A concepcao de lugar é fundamental para inibir o apagamento identitario: “O contrario da crioulizagao ser, efetivamente, o nao-identitario. Mas hdo lugar, que nos mantém” (Glissant, 1996, p. 99). O conceito de caos nao parte de uma visao apocaliptica e € dotado de valor positivo - “nada é mais belo que 0 caos — ¢ nao ha nada de mais belo que 0 caos-planetario (chaos-monde)" (Ludwig, 1994, p. 112), sem conotagoes de incomunicabilidade ou babelismo. Para a busca do. invariante cultural do caos-planetério (chaos-monde), ou a evidéncia de ersos caéticos em todo o mundo contemporaneo, é necessdrio no conceito de imprevisibilidade que acrescenta uma forte dimensao “politico-social 4 concepcao do caos-planetério - “ha caos-planetario porque ha imprevisivel” (Glissant, 1996 p. 37) -, a uma revisto das concepgdes monoliticas ocidentais de mito fundador, tempo, legitimidade e filiagio. © resultado dos conilitos € rupturas, mas, | também, as conciliagdes decorrentes do processo, constituem_o nsamento complexo do caos - “pelo qual a totalidade-planetaria se acha hoje realizada” (Glissant, 1996, p. 82) -, contra a linearidade conceitual ocidental. ci ea ~—~Em didlogo com Appiah (1997), sobre o valor ideolégico a fungao politica dos conceitos no estagio atual das sociedades contemporaneas, Glissant trabalha a concepco de que “o imaginario invadiu 0 conceito” (Ludwig, 1994, p. 125), revitalizando o papel da arte, da literatura, como pedagogia do caos, ou “a literatura como descoberta do mundo, como descoberta da totalidade-planetaria (tout-monde)” (Glissant, 1996, p. 91). Somente a aprendizagem do imaginario da totalidade- planetaria (fout-monde), na qual a atuagao da arte é fundamental, pode ultrapassar, segundo o tedrico da literatura, os limites da violéncia conceitual que, ainda hoje, referenda os genocidios, os massacres € as intolerancias. Em relacao as estratégias estéticas, a palavra caos tem também uma conota¢ao positiva que inclui a aceitagao das zonas de opacidade proprias da oralidade. Praticando-se nos textos literarios a 116 integracdo das dialéticas do oral e do escrito, prestigia-se a memoria oral, elaborada nas Antilhas, a partir do século XVII, pelo resgate de fragmentos culturais reconstituidos em mosaico na experiénciacomum de uma realidade nova. Essa pratica é fundamental para as construgoes “identitarias nao s6 do povo antilhano, mas de todos os povos egressos dos sistemas de dominagao. A relagdo postula uma situagao dialégica de transversalidade ¢ _ nao de causas ¢ efeitos, explicando-se como tentativa de estabelecimento | de uma rede de solidariedade com 0 mundo. Dizendo de outra maneira, € uma rede de relagées concebida como identidade rizoma, isto é, raiz em busca de outras raizes na diversidade da experiéncia antropol6gica das sociedades crioulas, opondo-se a dominagao por uma “Yinica etnia, uma Unica lingua, uma tnica visto do mundo. Concebidas por Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mille Plateaux (1980), as imagens de rizoma (que se expande) e raiz tinica (que mata) sao retomadas por Glissant em Poétique de la Relation (1990) econstituem o principio da poética da relagdo, segundo a qual toda identidade se expande na mobilidade ¢ do “sendo/estando movente” (étant changeant). A Relacao _opée-se, pois, as identidades exclusivas constituidas pelas nocées estaticas de ser e estar e de absoluto, proprias do pensamento totalitario _e monolitico, ou seja, de raiz tinica. ; _A opacidade consiste na recusa do totalitarismo da razao cartesiana, _ da transparéncia universal ocidental ¢ dos conceitos de “modelo e- compreensio, interferindo, dessa forma, nas concepcoes filos6ficas € politicas mantenedoras dos paradigmas hegeménicos contemporaneos. O conceito tem, no texto de Glissant, a marca da solidariedade étnica € propée a valorizacao e estetizagao das obacidades crioulas contra a compreensao das transparéncias ociden “E preciso lutar, poeticamente, para afirmar o direito de int de todos os povos a opacidade; isso quer dizer que_eu_nio-tenho necessidade de compreender_ um. _povo, uma cultura, de reduzi-lo 4 transparéncia do modelo universal __ para trabalhar com ele, amé-lo, freqiienté-lo, realizar coisas com ele” (Ludwig, 1994, p. 128). Nesse sentido, na construgio do “nés” coletivo, um dos objetivos da opacidade € o resgate e a revitalizagao da palavra. do contador de histérias crioulo do universo rural antilhano, mobilizando as oposigGes e os paradoxos das estratégias da oralidade e da escrita. Escrever 6, pois, na concep¢ao dos autores antilhanos, um ato coletivo constitufdo no processo da crioulizagéo, como pensa Depestre: “Etimologicamente: metabolismo cultural nascido in loco (ou seja, em terra americana), processo de sincretismo, de dinamizagao e aceleracao barroca das herangas culturais, a crioulizagao tera se desenvolvido a ponto de fazer surgir nas literaturas elementos poderosos de comunhao estética a partir das cruéis antinomias que a colonizagao tinha tramado na vida plantaciondria” (Ludwig, 1994 p. 160). Para o escritor haitiano, entretanto, apesar da comunhio estética das produc6es literarias antilhanas, a dindmica de mutagées identitarias, que caracteriza a crioulizagdo em toda sua complexidade contextual, preserva a diversidade das construgées culturais que se mantém “dissemelhantes em seus mais evidentes signos de parentesco” (Ludwig, 1994 p. 160). No Eloge de la Créolité, Bernabé, Chamoiseau e Confiant, ao elaborarem uma poética da literatura antilhana, afirmam que “uma das miss6es dessa escrita é tornar visiveis os heréis insignificantes, os herdis andénimos, os esquecidos da Crénica colonial, aqueles que ofereceram uma resisténcia elaborada em desvios e em paciéncias, € que nao correspondem em nada ao imaginario do her6i ocidental- francés” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p. 41). A conceituagao. de Crioulidade parte, pois, da pratica de_um_discurso_critico do_ etnocentrismo tendo em vista o resgate dos valores de povos colonizados e neocolonizados, | que _deverao agenciar sua prépria historia a partir de uma nova categoria ontolégica, a do ser crioulo. A questio fundamental proposta no E no Eloge de la Créolité é a necessidade de elaboraco interior de uma nova identidade criowla. Seus autores _denunciam a pretensdo ocidental 8 universalidade, ou seja, recusam, na experiéncia européia, os paradigmas a partir_dos quais se _dimensiona a humanidade, e denunciam a exotizagdo do nds coletivo martiniquense: “Nés vimos 0 mundo através do filtro dos valores ocidentais e nosso fundamento tornou-se ‘exotizado’ pela visaéo 118 francesa que tivemos que adotar. Condigao terrivel a de conceber sua arquitetura interior, seu mundo, 0s instantes de seus dias, seus proprios . valores, com 0 olhar do Outro” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p- 14). No texto do Eloge levantam-se e importantes questées, sobretudo, no plano politico, concernentes a as construgées ide identitarias criowlas, & andlise de _mitos_ e realidades ; especificas do Caribe, que vém se diversifi ificando em identidades \iltiplas, embora historicamente egressas de matrizes coloniais comuns de. recalcamento, esquecimento e/ou silent iamento cultural que identificam peculiarmente as culturas afrolatinas nas Américas. Os mentores da Crioulidade referendam_o discurso da Crioulizagéo fundado na légica da diversidade, mas enfatizam a necessidade de enraizamento hist6rico ¢ cultural das sociedades -Giolas, 6 essa_proposta que se constitui como alvo das discusses eopreaa as construgées identitarias de re do referendu: dos autores 4s migracées culturais € ao transito da enraizamento, segundo Bernabé, Chamoiseau e Confiant, nao constitu um essencialismo, ou uma evidéncia de pureza etnocultural, mas ‘reflete uma tentativa de decifragao dos enigmas histéricos ¢_ antropolégicos, necessaria 4 reconstitui¢ao da realidade crioula, cuja figura é a identidade-rizoma de Deleuze ¢ Guattari em que, como ja se disse, a raiz tinica se dissolve para dar lugar & raiz rizomatica. O projeto tedrico e as praticas politicas dos pesquisadores da Crioulidade realizam-se na tentativa de mobilizagao desse rizoma em convergéncia. harmoniosa. O trabalho, portanto, de_reconstitui¢ao de memérias recalcadas pelo dualismo maniquefsta ocidental, produtor das grandes oposi¢des redutoras e exclusivas, da, sem diivida, a seus pesquisadores © estatuto de antropdlogos ou etndlogos da Crioulidade reivindicado no Eloge: “Um pouco como em escavagées arqueolégicas: apés a demarcacao do espaco, avancar a pequenos toques de broxa para nada alterar ou perder desse nés enterrado pela francisagao” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p. 22). Revendo politicas culturais e construgées identitarias, os trés autores desconstréem as oposigées maniqueistas que foram ig constituidas como expressdes simbdlicas de resisténcia em praticas anticoloniais. Assim eles avaliam a violenta inscrigao do alterismo nos povos colonizados que passou a funcionar como arquétipo da identidade do novo mundo, referendando, portanto, a tese de Appiah (1997), jé exposta anteriormente. A Crioulidade surge, pois, como parte da proliferacao de um mecanismo de estratégias contemporaneas para a pratica da liberacao cultural e politica. Da discussao sobre a intensidade das migragées nas sociedades contemporaneas, constr6i- se em seu discurso uma imagem da hist6ria como caleidoscdpio que, além de afiangar a condicéo multicultural do homem, acena com uma esperanga hist6rica de reconciliagéo dos povos em um mundo marcado. Por guerras e fendmenos de uniformizacao e estandardizacdo culturais: “Por sua constituicao em mosaico, a Crioulidade € uma especificidade aberta. [...] Exprimi-la é exprimir nao uma sintese, nem simplesmente uma mestigagem, ou qualquer outra unicidade. f exprimir une totalidade caleidosc6pica, ou seja, a consciéncia nao totalitaria de uma diversidade preservada” (Bernabé, Chamoiseau, Confiant, 1989, p. 28). Em Texaco (1992), romance ganhador do prémio Goncourt de literatura, Patrick Chamoiseau, definindo a cultura-mosaico inscrita na lingua crioula do bairro de Texaco, escreve que “a cidade crioula fala em segredo uma linguagem nova e nao mais teme Babel” (Chamoiseau, 1992, p. 248). Essa linguagem caracteriza uma identidade nova “multilingiie, multi-racial, multi-hist6rica, aberta, sensivel A diversidade do mundo” (Chamoiseau, 1992, p. 243), constituida no processo de crioulizagdo_¢ identificada na emergéncia das. crioulidades ethoetnoculturais. Em Ecrire en pays dominé, Chamoiseau pluraliza os termos Criowlizacao e Crioulidade, definindo-os da seguinte maneira: “E preciso chamar de ‘crioulizacées’ os mecanismos evolutivos dos processos de relacées, que, entalhados de maneira complexa e acelerada nas Américas, repercutem hoje no mundo inteiro” (Chamoiseau, 1997, p. 201). E ainda? “fpreciso chamar de. ‘crioulidades’ ticulares na alquimia das crioulizagées. Resultantes que continuam em movimento porque estao submissas as 120 eletrlises continuas das crioulizagoes” (Chamoiseau, 1997, p. 201). Todos esses mecanismos encontram-se nas Américas das plantagées, no Caribe e em todos os espacgos onde houve ou ha crioulizagdo, A abordagem dessa realidade complexa pelos tedricos da Crioulidade, que recusam a nogo de mestigagem usada como fuga dialégica do monologismo, inclui as teorias da multiculturalidade, da transculturalidade edo multilingiiismo. Sabendo-se que no _ multiculturalismo supde-se a presenca de varios imaginarios em um mesmo espaco, enquanto no transculturalismo ha uma _correlagao, ou, como diz Chamoiseau, uma “inter-retro-reagao” aos diferentes imaginarios, conclui-se que a proposta da Crioulidade é totalmente pertinente quando afirma reconhecer em um mesmo espago, a possibilidade de convivéncia de processos de multiculturalidade justaposta e mecanismos de transculturalidade nos quais as construgées culturais, em relagao aberta e ativa, afetam-se e modificam-se. O interesse dos autores da Crioulidade é, pois, a andlise dos mecanismos de solidariedade conflitual no processo das construgées culturais € identitarias crioulas, em que nao ocorreu uma sintese harmoniosa, mas uma espécie de diferenciacao aberta em que se refletem as modalidades dialogicas e paradoxais emergentes do mesticamento entre Africa, Europa, india e Asia. Essa é a trama construida por Chamoiseau em Texaco: “eu tento ver todaa diversidade interior, a que continua aberta, que nao funda o territério, que nao forma raiz nica, que nao funda uma historia, una lingua, mas que parece se desdobrar em feixes” (Chamoiseau, KAPES Kreol, 2001, p. 3). _Os discursos da Criculizagéo e da Crioulidade parecem consti assim, a partir de suas rigorosas construgées tedricas, um importante referencial para os deb: tido da historicidade das Américas Latina e Afrolatina. No quadro de sua produgao conceitual, parece ser fundamental 0 reconhecimento da importancia do conceito de regiao, das migragées e das fronteiras culturais, que se movem em. processo Constante de reorganizagao, desempenhando um papel determinante nas dinamicas de integracao social. Tudo isso referenda uma necessaria parceria intercultural entre as sociedades das diferentes 121 Areas lingitisticas das Américas, se for possivel concluir que a articulagao de novos espagos politicos na situagéo atual, quando os fendmenos migratérios so massivos e generalizados, nao se constitui apenas a partir do equacionamento ou do equilibrio de paradigmas culturais diferentes. Nesse sentido, a propria histéria das Américas constitui-se como pano de fundo para a representagao de um projeto histérico solidario de construgdo de sociedades com uma visao mais complexa sobre o direito de investigacao, restauragao e difusio de seus bens culturais e seu patriménio histérico, nao em busca, certamente, do restabelecimento de matrizes essencialistas, mas de um dialogismo identitario, sabendo-se que o conceito tem miltiplas ocorréncias, lugares de articulagao e pontos de convergéncia. A Crioulizagéo e a Crioulidade inscrevem-se, pois, como expressdes de um idedrio politico, cultural e identitario, na construgao desse pensamento, base da solidariedade politica entre povos crioulos, que constitui, também, o objetivo deste programa de pesquisa. Referéncias Bibliogréficas APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a Africa na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. BARTHES, Roland. Le bruissemient de la langue: essais critiques 1V. Paris: Seuil, 1984. BARRETEAU, Daniel, BERNABE, Jean, CONFIANT, Raphaél. Le créole a travers les ges de oral & l'internet, en passant par l’écrit, In: Articles & Débats. KAPES KREOL / CAPES de CREOLE, http://kapeskreol.online.fr/creole_ages.htm, Session 13/10/2001. BERNABE, Jean; CHAMOISEAU, Patrick; CONFIANT, Raphaél. Eloge de la Créolité. Paris: Gallimard / Presses Universitaires Créoles, 1989. BERND, Zila (org). Escrituras hibridas: estudos em literatura comparada interamericana. 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