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Resumo: Este artigo analisa os critérios fixados Abstract: This article analyzes the criteria esta-
pela Lei 12.850/2013 para a determinação de bilished by the Act. 12,850/2013 for the deter-
benefícios aos colaboradores premiados, assim mination of rewards to the defendant who gives
como sua interpretação pelo Supremo Tribunal substantial assistance to authorities, as well as
Federal, com foco no julgamento do HC 127.483/ their interpretation by the Brazilian Supreme
PR. Constata-se que o Ministério Público tem Court. It is verified that prosecutors have wide
ampla discricionariedade para determinar a pe- discretion in sentencing, even without observing
na em concreto aos colaboradores, mesmo sem the benefits provided by the legislation. The judi-
observar os benefícios legalmente previstos, res- cial control is restricted to the verification (i) of
tringindo-se a análise judicial à verificação (i) dos the formal requirements of the deal in the ho-
requisitos formais do acordo na homologação e mologation and (ii) of the assistance effective-
(ii) da eficácia da colaboração na sentença, uma ness in the sentence, since the defendant who
vez que o réu que cumpre suas obrigações tem fulfill his/her obligations has subjective right to
direito subjetivo aos benefícios acordados. Além the agreed rewards. Besides, in the determina-
disso, na fixação do benefício privilegia-se os as- tion of rewards the utilitaristic aspects – assis-
pectos utilitários – eficácia da colaboração –, em tance effectiveness – has greater value than the
detrimento dos relacionados à gravidade do fato aspects related to the crime seriousness and the
e à culpabilidade. A hipótese defendida é de que culpability. The hypothesis is that, in sentencing in
alguns dos benefícios e dos critérios para con- cases of substantial assistance, some rewards,
cessão, assim como o modo de controle judicial, some criteria and the judicial review contradict
contrariam as finalidades da determinação da the theoretical purposes of the sentencing. This
pena, o que é inadmissível, visto que a Colabo- is not admissible, since the substantial assistance
ração Premiada é apenas um instrumento para is an instrument of the criminal law and therefo-
efetivação do direito penal, não podendo contra- re may not contradict its purposes. Some propo-
riar os fins deste. Faz-se proposições de lege lata sitions de lege lata and de lege ferenda are made.
e de lege ferenda.
Palavras-chave: Direito penal – Processo pe- Keywords: Criminal law – Criminal procedure –
nal – Delação premiada – Aplicação da pena – Crown witness – Substantial assistance – Sen-
Individualização da pena. tencing.
Introdução
A busca por efetividade e eficiência1 na descoberta e punição de crimes cuja
produção da prova é de alta complexidade levou legisladores de diversos países
a adotarem mecanismos especiais de investigação. Entre eles, se insere a Cola-
boração Premiada2, pela qual se incentiva o auxílio do investigado, acusado ou
condenado, às autoridades públicas encarregadas da persecução penal mediante
24. A implementação do instituto nos países de civil law remete às décadas de 1970 e 1980,
em casos envolvendo a Máfia, na Itália, e crimes de terrorismo, na Espanha. Poste-
riormente, difundiu-se, também, em relação ao tráfico de drogas. (BITTAR, Delação
premiada, p. 7 e ss.) No mesmo sentido, citando as mesmas décadas e incluindo ainda
a Alemanha: GARRO CARRERA, Comportamiento postdelictivo positivo y delincuencia
asociativa, p. 8-9.
25. BENÍTEZ ORTÚZAR, El colaborador con la justicia, p. 13-14. PEREIRA, Delação pre-
miada, p. 27-28.
26. O termo “utilitário” é empregado aqui em sentido amplo, referindo-se à ideia de que o
instituto busca maximizar/otimizar certas finalidades empíricas do sistema criminal.
27. PEREIRA, Delação premiada, p. 28. Assim também García de Paz: “Desde una perspec-
tiva político-criminal, son, pues, razones de pragmatismo las que fundamentan estas
disposiciones que conceden beneficios penales: la evitación de futuros delitos y el des-
cubrimiento de los ya cometidos.” (GARCÍA DE PAZ, El coimputado que colabora con la
justicia, p. 2). No mesmo sentido: BENÍTEZ ORTÚZAR, El colaborador con la justicia,
p. 49-50.
28. Bittar apontava em 2011, portanto, anteriormente à Lei 12.850/2013, que “não houve a
mínima preocupação do legislador, até hoje, com a regulamentação das normas proce-
dimentais para a aplicação do instituto, o que acentua o conteúdo material das normas
previstas na lei pátria sobre o tema, em detrimento do formal (processual)”. (BITTAR,
Delação premiada, p. 2-3).
procedimento ser seguido, por analogia, nos acordos realizados conforme as pre-
visões de outras leis.29 Em relação aos aspectos materiais da colaboração – isto é,
em relação aos benefícios, requisitos e critérios para concessão – deve ser aplica-
da a legislação específica, sendo o regime geral dado pela Lei 9.807/99, que pos-
sibilita a aplicação da Colaboração Premiada a qualquer espécie de crime. Apesar
disso, examinarei a Lei 12.850/2013, por três razões: (i) por ter as mais amplas
e radicais possibilidades de concessão de benefícios, abarcando as previsões das
demais legislações, de modo que sua análise compreenderá as demais; (ii) por ser
a legislação mais recente e por suas disposições terem sido objeto de discussão
das últimas decisões do STF sobre o tema; e (iii) porque os aspectos procedimen-
tais por ela regulados, como o controle judicial na homologação e na sentença,
têm enorme relevância para a discussão da determinação da pena. Ademais, exa-
minarei a interpretação dada aos seus dispositivos pela paradigmática decisão do
STF, no HC 127.483, em 201530, que julgou de forma abrangente e sistemática a
regulamentação de 2013.
A regulamentação da Colaboração Premiada, na Lei 12.850/2013, é feita pe-
los arts. 4º a 7º. Conforme o art. 4º, caput e §§ 4º e 5º, os benefícios que podem ser
concedidos pelo juiz, a requerimento das partes, são: (1) em caso de colaboração
anterior à sentença: (a) o perdão judicial; (b) a redução de até 2/3 da pena priva-
tiva de liberdade; (c) a substituição de pena privativa de liberdade por restritiva
de direitos; (d) o não oferecimento da denúncia em relação ao réu que não seja lí-
der da organização criminosa e que seja o primeiro a prestar efetiva colaboração;
(2) em caso de colaboração posterior à sentença condenatória: (e) a redução de pe-
na em até metade; e (f) a progressão de regime, ainda que ausentes os requisitos
objetivos. Conforme previamente esclarecido, a discussão deste artigo se restrin-
ge aos benefícios anteriores à sentença, porque são os que afetam diretamente a
determinação da pena. Desse modo, não tratarei dos benefícios para colabora-
ções posteriores à sentença condenatória (e f).
Para que sejam concedidos esses prêmios ao colaborador, o mesmo art. 4º exi-
ge que alguma das seguintes consequências seja obtida:
29. Afirmando ser essa a posição majoritária da doutrina e referindo ampla bibliografia,
veja-se VASCONCELLOS, Colaboração Premiada no processo penal, p. 76.
30. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015.
Portanto, é requisito para a concessão dos benefícios citados supra que “um
ou mais” destes resultados se realize.32 A partir da verificação de sua obtenção e
da medida em que foram alcançados valorar-se-á a eficácia da colaboração, crité-
rio apontado para a concessão do benefício (art. 4º, § 1º) e que deve ser apreciado
pela sentença (art. 4º, § 11).
Os critérios para concessão dos benefícios, fixados pelo art. 4º, § 1º, são (i) a
personalidade do colaborador; (ii) a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a
repercussão social do fato criminoso; ao lado da já referida (iii) eficácia da cola-
boração. No julgamento do HC 127.483, o STF entendeu que tais elementos não
são “requisitos para o acordo de colaboração” a serem considerados já no momen-
to da homologação judicial, mas critérios para a concessão dos benefícios (“sanção
premial”) ao imputado a serem avaliados “no estabelecimento das cláusulas do
33. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. p. 54-55. O voto trata es-
pecificamente do critério da personalidade do agente, mas faz referência genérica aos
critérios do art. 4º, § 1º. Consta na ementa do acórdão: “A personalidade do colabora-
dor não constitui requisito de validade do acordo de colaboração, mas sim vetor a ser
considerado no estabelecimento de suas cláusulas, notadamente na escolha da sanção
premial a que fará jus o colaborador, bem como no momento da aplicação dessa sanção
pelo juiz na sentença (art. 4º, § 11, da Lei 12.850/13).”
34. Sobre a possibilidade de a autoridade policial firmar acordo de Colaboração Premia-
da, veja-se o recente julgamento da ADI 5.508/DF, rel. Min. Marco Aurélio Mello,
j. 20.06.2018. (Inteiro teor do Acórdão não publicado na data da submissão.)
35. Veja-se STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. p. 31.
36. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. p. 32.
Por fim, em relação à eficácia, o acordo apenas produzirá efeitos se houver ho-
mologação judicial.37
O primeiro momento de controle judicial do acordo ocorre somente após fi-
nalizadas as negociações, uma vez que, conforme referido, o juiz não pode delas
participar. Realizado o acordo entre as partes, o art. 4º, § 7º, determina que devem
ser enviados ao juiz o termo, as declarações do colaborador e a cópia das investi-
gações para verificação da “regularidade, legalidade e voluntariedade”. Para esse
fim, o magistrado pode ouvir o colaborador, na presença de defensor.38
A homologação, conforme entendimento do STF, consiste em um simples
“provimento interlocutório” que não decide sobre o mérito da pretensão acu-
satória, “não emite nenhum juízo de valor” sobre as declarações eventualmente
prestadas pelo colaborador e nem atribui idoneidade às declarações subsequen-
tes.39 Por meio dela são verificados apenas os requisitos formais do acordo – re-
lativos à regularidade, legalidade e voluntariedade –, de modo a se possibilitar a
produção dos efeitos jurídicos (eficácia) visados pelas partes, que dependem da
decisão homologatória.40 O art. 4º, § 8º, possibilita ao juiz recusar a homologação
da proposta que não atender aos requisitos legais ou adequá-la ao caso concreto.
Caso o juiz intervenha nos termos acordados
47. Demetrio Crespo utiliza o termo “determinación de la pena” para se referir à “fijación en la
ley del marco penal correspondiente a un delito determinado” e o termo “invidualización
de la pena” para a “fijación por el juez de las consecuencias jurídicas de un delito”, o que
inclui, além da medida e quantidade da pena, a eventual substituição. (CRESPO, Preven-
ción General y Invidivualización Judicial de la Pena, p. 43). Desse modo, o que chamarei de
determinação da pena corresponde ao que o autor chama de individualização da pena.
48. ZIFFER, Lineamientos de la determinación de la pena, p. 23. Tradução livre de “acto me-
diante el qual el juez fija las consecuencias de un delito”.
49. ZIFFER, Lineamientos de la determinación de la pena, p. 23.
50. TEIXEIRA, Teoria da aplicação da pena, p. 21.
51. De forma semelhante, com foco na cominação em abstrato, Schünemann assevera que:
“La amenaza penal atribuida a la prohibición tiene un efecto de prevención general
tanto positiva como negativa: por un lado, ya la prohibición acompañada de la conmi-
nación penal robustece la conciencia jurídica general y hace presente el valor del bien
jurídico; por otro lado, cuando la amenaza de pena anticipa idealmente un efecto inti-
midatorio, es manifestación de prevención general negativa.” (SCHÜNEMANN, Sobre
la crítica a la teoria de la prevención general positiva, p. 96).
52. De modo muito semelhante: RUDOLPHI, El fin del derecho penal del Estado y las formas
de imputación jurídico-penal, p. 81-83.
53. Veja-se: FREUND, Sobre la función legitimadora de la idea de fin en el sistema integral del
derecho penal, p. 98-101. RUDOLPHI, El fin del derecho penal del Estado y las formas
de imputación jurídico-penal, p. 83). Também o reconhece Schünemann, mas como
“un simple epifenómeno, al cual no se añade ningún significado por el hecho de que
se determine elevar la pena. Formulada de otro modo, la prevención general positiva
es, pues, un bienvenido efecto concomitante, pero carente de significado teorético
propio.” (SCHÜNEMANN, Sobre la crítica a la teoria de la prevención general positiva,
p. 98).
54. Assim já na teoria da pena de Feuerbach, veja-se: FEUERBACH, Tratado de derecho pe-
nal, p. 60-1. Para uma explicação detalhada: GRECO, Lo vivo y lo muerto en la teoria de la
pena de Feuerbach, p. 339 e ss. Evidências empíricas de que a ameaça de pena tem efeitos
preventivos, ao menos no que diz respeito à certeza da punição, são demonstradas por
meta-análises. Sobre isso, veja-se: BOTTOMS/VON HIRSCH, The crime-preventive im-
pact of penal sanctions, p. 98 e ss.
55. A prevenção especial positiva tem (ou deveria ter) relevância na Execução da Pena,
como fica claro pela redação do art. 1º da Lei de Execução Penal: “A execução penal
tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar
condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.”
56. Sobre a relevância dos princípios da culpabilidade e da legalidade para a determinação
da pena, veja-se TEIXEIRA, Teoria da aplicação da pena, p. 106-115.
A prevenção não pode ser considerada como fator para aumento da punição,
cujo limite máximo deve ser dado pela culpabilidade57, sendo vedado que a pe-
na supere em sequer um dia esse limite58. Não obstante, a pena também tem
de ser suficiente para a obtenção das finalidades preventivas acima referidas, de
modo que, embora o limite máximo seja dado pela culpabilidade, o limite mí-
nimo deve ser a sanção adequada à realização das finalidades preventivas do di-
reito penal.59
Viu-se que a Colaboração Premiada encontra fundamento em razões utilitá-
rias relacionadas à efetividade do sistema penal. Nesse sentido, por um lado, ela
pode ser um instrumento relevante para tornar efetiva a punição de crimes que,
sem ela, dificilmente se conseguiria identificar e comprovar. O conhecimento
generalizado da impunidade de certas infrações pode passar a mensagem de que
a norma de comportamento não é válida e que a ameaça de pena não é séria, de
modo que a eficácia preventiva seria afetada em razão da alta probabilidade da
não punição.60 Não se ignora que as normas penais têm vigência contrafática, is-
usados como moeda de troca no acordo. Por essa razão, os benefícios concedidos
pela colaboração têm de ser limitados.
Em relação à culpabilidade como limite máximo da punição, a Colaboração
Premiada, em tese, não parece trazer maiores problemas64, uma vez que os bene-
fícios reduzem ou isentam de pena o colaborador, inexistindo possibilidade de
aumento da sanção. Porém, o princípio da legalidade das penas, tanto na dimen-
são da reserva legal, quanto na cognoscibilidade, na calculabilidade e na confia-
bilidade do direito exigidas pelo mandado de determinação, pode ser frustrado
pela ausência de critérios e de controle no que diz respeito aos benefícios da co-
laboração processual.
Portanto, para atender as finalidades atribuídas à atividade de determinação
da pena, a concessão da sanção premial deve ser inserida na metodologia geral
da aplicação de sanções penais. O CP estabelece etapas e critérios para a determi-
nação judicial da pena, sendo a planificação geral dada pelo art. 5965, do qual se
extrai pelo menos duas importantes constatações sobre a determinação da pena:
(i) ela é competência do julgador e (ii) deve ser aplicada em modalidade e quan-
tidade necessária e suficiente para a obtenção de duas finalidades: reprovação e
prevenção do crime.
66. Assim dispõe a Súmula 231 do STJ: “A incidência da circunstância atenuante não pode
conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal.”
da pena definitiva (terceira fase), após a aplicação das causas materiais (tentati-
va, arrependimento posterior, erro evitável sobre a ilicitude, semi-imputabilida-
de, concurso formal, crime continuado, entre outras), reduzindo a quantidade
total de pena até então calculada e acarretando, assim, uma redução global da
pena privativa de liberdade. Parece ser essa a ratio legis do art. 4º, caput, da Lei
12.850/2013.67
b) O benefício de não oferecimento da denúncia
Especialmente problemática, porém, é a possibilidade de não oferecimento
da denúncia pelo Ministério Público. Para a concessão desse benefício, a lei exige
dois requisitos: (i) um ligado à culpabilidade do colaborador, consubstanciada
no fato de que ele não pode ser o líder da organização criminosa, e (ii) outro li-
gado à utilidade da colaboração, consistente na exigência de que seja o primeiro
a prestar efetiva colaboração. Porém, o não oferecimento da denúncia acarreta a
inexistência de processo penal, prejudicando de modo irreparável o controle ju-
dicial que deveria ser realizado na sentença sobre tais requisitos e sobre a efetivi-
dade da colaboração.
Conforme anteriormente exposto, o controle judicial sobre o acordo ocorre
em dois momentos: na homologação e na sentença. O primeiro realiza contro-
le apenas formal sobre o acordo, atribuindo-lhe eficácia; o segundo faz análise
primacialmente da efetividade do acordo, aplicando as sanções premiais. Entre-
tanto, caso seja concedido o benefício de não oferecimento da denúncia, o úni-
co controle judicial sobre o acordo de colaboração será formal, no momento da
homologação, uma vez que não existirá processo penal contra o colaborador e,
consequentemente, não haverá sentença para realização de controle material pe-
lo Judiciário.68 Assim, a análise sobre a efetividade da colaboração em relação aos
resultados elencados nos incisos do art. 4º, caput, da Lei 12.850/2013 fica impos-
sibilitada, já que a homologação apenas possibilita a produção dos efeitos jurídi-
cos do negócio, ocorrendo o real auxílio do colaborador com as autoridades após
tal ato, cuja efetividade seria avaliada na sentença, a qual inexistirá na hipótese.
Da mesma forma, o requisito de que o colaborador não seja líder da organi-
zação criminosa só pode ser constatado durante o processo penal, com a pro-
dução e valoração de provas. Se não houver oferecimento da denúncia, sua
verificação resta igualmente impossibilitada, ficando a constatação submetida à
processual, na prática, os acordos têm negociado prêmios que não estão previs-
tos na legislação. Em acordos de Colaboração Premiada no âmbito da Operação
Lava-Jato, em 2014, houve fixação de benefícios como: a substituição da prisão
cautelar pela domiciliar somada ao uso de tornozeleira eletrônica; a limitação
do tempo de prisão cautelar (em 30 dias a partir do acordo); fixação do tempo
máximo de duração da pena privativa de liberdade (máximo de dois anos, por
exemplo) e do regime inicial (semiaberto ou aberto), independentemente da
quantidade de pena fixada na sentença; progressão automática de regime após
certo período de tempo, independentemente do preenchimento dos requisitos
legais; autorização para utilização de bens produto do crime; obrigação do Mi-
nistério Público de pleitear a não aplicação de sanções ao colaborador e suas em-
presas em processos cíveis e de improbidade; entre outros.71
Por um lado, argumenta-se que a fixação de benefícios não previstos em lei
violaria o princípio da legalidade das penas, frustrando a separação das funções
do poderes Legislativo e Judiciário na determinação da sanção aplicável.72 Con-
tra-argumenta-se que o princípio da legalidade tem como finalidade a proteção
do indivíduo contra o arbítrio estatal, de modo que não poderia ser interpretado
em prejuízo do réu para vetar a possibilidade de concessão de benefícios mais fa-
voráveis do que aqueles previstos em lei – o que estaria, inclusive, amparado pelo
texto constitucional, que admite a analogia in bonam partem ao permitir expres-
samente que a lei penal retroaja em benefício do réu (art. 5º, XL, da Constitui-
ção). Além disso, afirma-se que a homologação da colaboração se caracterizaria
como uma jurisdição voluntária, não havendo conflito de interesses entre as par-
tes, de modo que o juiz não precisaria se submeter à legalidade estrita (art. 723,
parágrafo único, do CPC).73
71. Assim, descrevendo alguns dos benefícios específicos negociados em acordos entre o
Ministério Público e Paulo Roberto Costa, Alberto Youssef e Pedro José Barusco Filho,
veja-se BOTTINO, Colaboração premiada e incentivos à cooperação no processo penal,
p. 7-8. Analisando, também, benefícios concedidos em acordos da Operação Lava-Jato:
CANOTILHO/BRANDÃO, Colaboração premiada, p. 156-164. VASCONCELLOS, Co-
laboração Premiada no processo penal, p. 151-158.
72. Conforme Canotilho e Bandão: “o princípio da separação de poderes, que se procura
garantir e efectivar através da prerrogativa de reserva de lei formal ínsita no princípio
da legalidade penal, seria frontal e irremissivelmente abatido se ao poder judicial fosse
reconhecida a faculdade de ditar a aplicação de sanções não previstas legalmente ou
de, sem supedâneo legal, poupar o réu de uma punição”. (CANOTILHO/BRANDÃO,
Colaboração premiada, p. 147).
73. MENDONÇA, Os benefícios possíveis na colaboração premiada, p. 79-84.
74. Roxin assevera que: “La aplicación de la pena constituye una ingerencia tan dura en
la libertad del ciudadano que la legitimación para determinar sus presupuestos sólo
puede residir en la instancia que representa más directamente al pueblo como titular
del poder del Estado: el Parlamento como representación electa del pueblo. Mediante
la división de poderes, que se expresa en el principio de legalidad, se libera al juez de la
función de creación del Derecho y se le reduce a la función de aplicar el Derecho, mien-
tras que al ejecutivo se le excluye totalmente de la posibilidad de cooperar en la pu-
nición y de ese modo se impide cualquier abuso de poder del mismo en este campo.”
(ROXIN, Derecho penal, p. 145).
75. Conforme Bottino: “São fruto de uma ponderação do legislador sobre quais benefícios
deveriam ser concedidos para estimular o criminoso a cooperar, e quais não deveriam
ser concedidos.” (BOTTINO, Colaboração premiada e incentivos à cooperação no proces-
so penal, p. 8).
Ademais, essa prática também é criticável sob o aspecto da teoria das nor-
mas. Enquanto a norma de comportamento cria um imperativo para o cidadão
agir de uma determinada forma (por exemplo: “não se deve matar pessoas”),
79. Sobre a distinção entre normas de comportamento (ou primárias) e normas de sanção
(ou secundárias), veja-se: SILVA SÁNCHEZ, Aproximación al derecho penal contemporâ-
neo, p. 311 e ss.
80. Nesse sentido, Bottino: “Se é certo que tudo aquilo que a lei não proíbe é lícito ao in-
divíduo realizar, também é certo que os agentes públicos só podem atuar nos limites
que a lei estabeleceu.” (BOTTINO, Colaboração Premiada e incentivos à cooperação no
processo penal, p. 7-8). Criticando, também, a concessão de benefícios não previstos em
lei: VASCONCELLOS, Colaboração Premiada no processo penal, p. 147 e ss.
81. ZIFFER, Lineamientos de la determinación de la pena, p. 99.
preventivas, que estão voltados para o futuro.82 É notável uma tendência atual a
se destacar o papel do ilícito culpável, vinculando-se, assim, a determinação da
pena a conceitos desenvolvidos pela teoria do crime83, cuja graduação ofereceria
os critérios para a medida da pena e permitiria uma maior segurança e uniformi-
dade nas decisões sobre a sanção imposta. As necessidades preventivas, por sua
vez, se relacionam com os benefícios sociais da punição para a redução da prática
de crimes, tendo importância secundária. Entendo que elas podem atuar apenas
reduzindo a pena; nunca a aumentando-a para além do merecimento decorrente
da realização culpável do ilícito. Desse modo, como o foco deve estar no ilícito
culpável, especial importância deve ser dada ao desvalor do resultado (relevân-
cia do bem jurídico e grau de ofensividade), ao desvalor da ação (dolo e culpa) e
ao grau de culpabilidade (previsibilidade e evitabilidade).84
Viu-se que os vetores fixados pela Lei 12.850/2013 para concessão da sanção
premial foram: (i) a personalidade do colaborador; (ii) a natureza, as circunstâncias,
a gravidade e a repercussão social do fato criminoso; e (iii) a eficácia da colabora-
ção. Primeiramente, é necessário apontar que a personalidade do autor não é crité-
rio idôneo para influenciar a escolha do benefício, pois absolutamente incompatível
com uma responsabilidade penal pelo fato. Uma análise acerca do caráter moral do
colaborador é completamente irrelevante para se definir sua punição ou premia-
ção, as quais devem levar em conta apenas a conduta delitiva e suas consequências
sociais.85 As pautas para tanto devem ser, por isso, apenas o fato (natureza, circuns-
tância, gravidade e repercussão social) e a utilidade (eficácia) da colaboração.86 Por-
tanto, o critério da personalidade deveria ser, de lege ferenda, excluído.
Particularmente relevantes no ponto são, contudo, os problemas gerados pe-
la preponderância dada à eficácia da colaboração na escolha do benefício. Essa
93. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. p. 39. Parece ser, também, a
posição de Bitencourt/Busato, ao afirmarem que “a colaboração deve gerar, obrigatoria-
mente, resultado específico, ao menos um dentre os cinco elencados”. (BITENCOURT/
BUSATO, Comentários à lei de organização criminosa, p. 126).
94. GARRO CARRERA, Comportamiento postdelictivo positivo y delincuencia asociativa,
p. 15.
95. PEREIRA, Delação premiada, p. 146. BITTAR, Delação premiada, p. 180-181.
96. Nesse sentido, conforme Pereira: “A razão de ser do prêmio ao colaborador com a jus-
tiça está na concretização integral das informações relevantes aos fins investigativos e
probatórios e não no resultado, do ponto de vista punitivo, advindo dessas revelações.”
(PEREIRA, Delação premiada, p. 148).
97. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. p. 36-37.
98. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. Acórdão e p. 38-39.
99. STF, HC 127.483/PR, rel. Min. Dias Toffoli, j. 27.08.2015. p. 63.
102. Assim, Canotilho e Brandão asseveram que “a circunstância de a pena ou o seu regime
de execução poderem decisivamente resultar daquilo que houver sido pactuado entre
o Ministério Público e o réu é susceptível de comprometer o monopólio judicial em
matéria de aplicação de penas criminais se determinadas cautelas não forem observa-
das. (...) relativo ao princípio da jurisdicionalidade, o regime da Lei 12.850/2013 só será
constitucionalmente solvente no que a ele diz respeito se o tribunal competente para
homologação do acordo de Colaboração Premiada e para efectivação das vantagens
convencionada tiver um real poder decisório sobre a outorga de benefícios penais que
constem de tal acordo. Não sendo esse o caso, se na prática, a obtenção de um regime pu-
nitivo de favor decorrer exclusiva e materialmente do pactuado entre Ministério Públi-
co e réu, será manifesta a afronta à máxima da jurisdicionalidade em sede de aplicação
e execução de penas” (CANOTILHO/BRANDÃO, Colaboração premiada, p. 151-152).
Afirmando a existência de uma “reserva de jurisdição” relativa às sanções criminais,
também: JESCHECK/WEIGEND, Tratado de derecho penal, p. 28.
103. Nesse sentido, ainda, a decisão monocrática do Min. Ricardo Lewandowski na PET
7.265/2017: “o Poder Judiciário detém, por força de disposição constitucional, o mono-
pólio da jurisdição, sendo certo que somente por meio de sentença penal condenatória,
proferida por magistrado competente, afigura-se possível fixar ou perdoar penas priva-
tivas de liberdade relativamente a qualquer jurisdicionado.” (STF, PET 7.265/DF, Min.
Ricardo Lewandowski (Decisão Monocrática), j. 14.11.2017. p. 21-22).
Considerações finais
A finalidade última do direito penal é a proteção de bens jurídicos. O meio
que utiliza para isso é o estabelecimento de imperativos e de ameaças de pena,
que objetivam prevenir condutas perigosas – criação de normas penais. Quan-
do uma norma primária é infringida, deve-se aplicar a pena para reafirmar a
validade da norma, o valor do bem jurídico e a seriedade da ameaça. A deter-
minação da pena é a atividade realizada pelo juiz que tem como finalidade fi-
xar uma punição adequada (necessária e suficiente) à reprovação e prevenção
do crime e que deve respeitar os princípios da culpabilidade e da legalidade. A
verificação da existência de um crime, entretanto, depende do esclarecimento
de uma suspeita por meio do processo penal, que dá suporte probatório para a
aplicação do direito material.112
A Colaboração Premiada é um mecanismo de facilitação da produção de pro-
va em casos de difícil investigação pelos métodos tradicionais – é, portanto, um
instrumento do processo penal. Desse modo, a Colaboração Premiada está, me-
diatamente, submetida aos princípios e finalidades do direito penal, não poden-
do a eles se opor. O instrumento, embora tenha finalidades imediatas, nunca
pode contrariar o fim ao qual é instrumental. Por isso, os prêmios concedidos ao
colaborador para a finalidade utilitária de dar efetividade à aplicação das normas
penais não podem contrariar os fundamentos materiais para a criação e impo-
sição dessas mesmas normas. Do contrário, a Colaboração Premiada perde sua
justificativa – que é contribuir para a realização do direito penal. Assim, a con-
cessão dos benefícios ao colaborador deve ser reconduzida aos fundamentos e à
metodologia geral de determinação da pena, o que se buscou fazer na última par-
te deste artigo (item 4).
Em síntese, as propostas em relação à determinação dos benefícios são as se-
guintes:
1) A redução da pena de até 2/3 é uma causa especial de redução de pena de
caráter procedimental, que deve incidir na terceira fase de aplicação da pena (fi-
xação da pena definitiva), após a aplicação das demais causas materiais de redu-
ção da pena (majorantes e minorantes), acarretando uma redução global da pena
privativa de liberdade.
112. TIEDEMANN, O direito processual penal, p. 147. Acerca da relação entre direito penal
e processo penal e de sua compreensão como subsistemas em um sistema integral: DE-
-LORENZI, O contributo da proposta de um sistema integral para a relação entre direito
penal e processo penal, p. 227 e ss.
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334 Revista Brasileira de Ciências Criminais 2019 • RBCCrim 155
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