Académique Documents
Professionnel Documents
Culture Documents
Margareth Rago
- Descobertas
Ouvi falar do Grupo Mujeres Libres por volta de 1998, numa conversa com a
anarquista italiana Luce Fabbri, que, muitos anos antes, tivera um breve contato com um
das fundadoras desta organização anarco-feminista. Amparo Poch y Gascón escrevera-lhe
uma carta, em 24 de maio de 1936, convidando-a a participar do grupo que estavam
formando, com algum artigo destinado à revista de nome homônimo. A carta, que
encontrei anos depois, numa pesquisa realizada no International Institute of Social History
(IISH), de Amsterdã, traz um timbre, como se lê abaixo:
“Mujeres Libres,
Periódico de cultura y Documentação social.1
confessional. Esperamos a sua colaboração que sentimos, por ora, não poder
retribuir, pois a Revista não conta com meios para isto.
Surpresa com o desconhecimento sobre esse grupo, mesmo nos meios libertários
brasileiros, parti para uma investigação histórica. Não demorou muito para que outra
anarquista, desta vez, a uruguaia Maria Eva Isquierdos sinalizasse para a importância do
contato com o passado das lutas femininas. Em depoimento concedido à Revista Diógenes,
de Buenos Aires, esta anarco-feminista afirma que se deparou com o grupo Mujeres Libres,
em 1993, por ocasião de um encontro libertário internacional, realizado em Barcelona.
Nesse contexto, conheceu não apenas as atuais militantes anarco-feministas, como suas
antecessoras:
Descobri que esse nome surge com a revolução espanhola, desde 1936, e que
depois se formou o primeiro grupo de mulheres anarquistas chamado Mujeres
Libres (...). Naquele momento, eu apresentava um texto, em Barcelona, que se
chamava “Feminismo e Anarquismo”, sobre esta problemática na Argentina e
tive o prazer de ter ao meu lado, uma companheira que pertencera ao Mujeres
Libres, Pepita Carpena, uma mulher mais velha que me contou sua história.
(Diógenes, 1998)
O contato foi suficiente para que Maria Eva decidisse constituir um grupo
semelhante na Argentina, onde residia, especialmente por sentir que as mulheres têm
necessidades, interesses e questões específicas, pouco contempladas pelos movimentos
sociais, mesmo entre os anarquistas, ainda relativamente desconectados das questões
feministas. Entendendo a importância de construir uma ponte entre anarquismo e
feminismo, recuperando laços constitutivos da própria origem dessas duas doutrinas, ela
afirma:
1
Essa carta encontra-se no Arquivo do IISH – pasta 1- 1930 – 38; veja-se referência a ela
em RODRIGO, Antonina. Una Mujer Libre: Amparo Poch y Gascon, médica y anarquista.
3
Ao lado dessas importantes publicações, a porta mais importante para o contato com
a organização Mujeres Libres se abriu através do contato com Antonia Fontanillas, nascida
em Barcelona, em 1917, “no velho Bairro de Raval, perto do porto, impregnado também de
história operária e libertária”, como ela mesma descreve. Ainda muito jovem, em 1936,
ela participa desse movimento revolucionário. Atualmente, reúne em seu arquivo privado
uma imensa quantidade de documentos sobre a Revolução espanhola e é, dentre as antigas
militantes anarquistas, uma das que mais se destaca na luta pela preservação desse rico
patrimônio da atuação feminina/feminista.9
Para encontrá-la, viajei a Dreux, pequena cidade localizada a 80 kms de Paris, para
onde Antonia se mudou muitas décadas atrás, por ocasião do exílio espanhol. Desde esse
local, onde se confundem sua casa e seu arquivo pessoal, ela articula-se com mulheres e
homens anarquistas de vários países do mundo, da Espanha ao Uruguai e ao Brasil,
cuidando da conservação do passado como de um refúgio seguro e acolhedor, organizando
publicações, escrevendo, incentivando pesquisas, fornecendo informações, recolhendo
fragmentos de memórias que as antigas ativistas puderam guardar em suas fugas
inesperadas e constantes, diante das perseguições dos franquistas, ou dos fascistas em
outras partes do mundo. Por seu intermédio, conheci outra antiga militante do Mujeres
Libres, Sara Berenguer, também nascida em Barcelona, em 1919, em uma família operária
anarquista. Começa a trabalhar aos 13 anos e aos 17, entra para o Comité Revolucionário
de Las Corts, integrado por militantes da CNT.
Depois de passar uma semana em casa de Antonia, pesquisando os jornais, revistas
e correspondências de seu arquivo, ouvindo suas estórias, escutando suas canções e
desfrutando de sua companhia tão envolvente, dirigi-me para Béziers, no sul da França,
onde encontrei Sara, em setembro de 2001. Esta é uma senhora de tez clara, bonita e serena,
embora agitada ao falar, como que convulsionada pela explosão das intensas recordações.
Com os cabelos loiros presos na nuca, anda com passos estreitos e rápidos de um lado para
o outro, na casa cercada por um lindo jardim florido e ensolarado. A cada momento, é
interrompida pela filha, ou pela neta, ou ainda por amigos/as, como Marianne Anckell e
9
Veja-se: FONTANILLAS, Antonia. “A la búsqueda de Lucía Sanchez Saornil, pionera
del humanismo integral”. ORTO, Revista Cultural de Ideas Ácratas, año XXIX, n.150,
julio-septiembre, 2008, p.28-32.
6
Vicente Martí, recentemente falecido, que chegam para um rápido almoço, ou que
simplesmente telefonam para dar um alô.
Em meio a tudo isso, Sara me trouxe à tona fragmentos de sua vida, da infância e da
adolescência, da descoberta da militância, de suas paixões, mas também dos momentos de
dor, desespero, medos, perseguições, lutas e do exílio. Minha sensação era a de que ela
tinha tudo bem organizado na cabeça, pois já havia vasculhado profundamente suas
próprias recordações, trabalhado ininterruptamente suas memórias, contando e recontando
inúmeras vezes essas mesmas histórias. Aliás, descubro em seguida, que já havia mesmo
escrito suas memórias, intituladas Entre el Sol y la Tormenta, Trinta y dos meses de guerra
(1936-1939)10. Neste livro, que me oferece de presente, dedica:
A Margareth Rago
Vivencias de una juventud lhena de ilusiones de cara a la libertad y a la
emancipación de la mujer.
Fraternalmente,
Sara Berenguer,
Montady, 28-8-2001.
- Impactos
10
BERENGUER, Sara. Entre el Sol y la Tormenta, Trinta y dos meses de
guerra (1936-1939). Barcelona: Seuba Ediciones, 1988.
7
desde o ano anterior. Em julho de 1936, o povo espanhol respondera com armas em punho
à invasão do exército do general Francisco Franco, vindo do Marrocos, apoiado pelas
forças ultra-reacionárias do país e do exterior. Tinha início um dos momentos mais
dramáticos da história da Espanha, a Guerra civil espanhola e simultaneamente uma
revolução social.
Nesse livro, Lucía lamenta os horrores da guerra que atinge também mulheres e
crianças. “Antes, a barbárie selecionava suas vítimas (...) Hoje, até a barbárie degenera”,
conclui. Denuncia as formas de boicote que os governos opõem ao movimento
revolucionário espanhol e incita os trabalhadores a unirem-se na ação direta, na criação de
brigadas e de extensas redes de solidariedade, em luta contra o fascismo espanhol e
internacional. A militante libertária, vinculada à CNT – Confederação Nacional do
Trabalho, desde a greve de 1931, reflete sobre as experiências autogestionárias em curso no
país, experiências das quais, vale lembrar, ainda pouco se fala. Expliquemos um pouco essa
questão.
Embora a historiografia sobre a Guerra civil espanhola seja imensa, grande parte foi
escrita por comunistas ou liberais, o que significa que muito pouco espaço foi destinado à
revolução social e ao movimento autogestionário que marca a história da Espanha, entre
1936 e 1939. Em meio à luta contra o fascismo internacionalmente articulado e contra a
invasão das tropas mouras e do exército espanhol liderado pelo general Franco, eclode uma
das mais importantes experiências de transformação radical da vida social, de
reorganização das relações produtivas e de distribuição das riquezas. Coletivizam-se as
fábricas, desapropriam-se as terras, abole-se o dinheiro e formam-se conselhos operários
que passam a gerir a vida econômica libertariamente.12 Desde as indústrias metalúrgicas às
farmacêuticas, das padarias, restaurantes e hotéis aos bondes e ônibus, tudo é colocado a
serviço do povo, organizado pelo poder conselhista. Como constata, em suas memórias, a
anarquista Federica Montseny (1905-1994), que se tornaria Ministra da Saúde e da
11
SAORNIL, Lucía Sanchez. Horas de Revolución. Barcelona: Sindicato Único del Ramo
de Alimentación de Barcelona, 1937.
12
PEIRATS, José. La CNT en la Revolución Española. 1ªed. Madrid: Ruedo Iberico, 1978;
2ªed. Cali-Colombia: La Cuchilla, 1988, 3 vols; MINTZ, Mintz. La Autogestión en la
España Revolucionaria. Madrid: Ediciones de La Piqueta, 1977.
8
Lucía se une a outra companheira, nesse mesmo ano de 1937, em que se pergunta
pelas possibilidades de se transformar não apenas a realidade exterior do cotidiano das
mulheres espanholas, tão submissas à religião, ao Estado e à família, mas sua própria
subjetividade, formando novas mulheres, nos novos contextos coletivistas que se
configuram sob o impulso da revolução social. Questiona a atuação pouco libertária dos
companheiros que se casam nos sindicatos anarquistas, revestindo práticas conservadoras
com roupagem libertária. Para ela, esses casamentos resultam numa traição da proposta
libertária do amor livre, tão cara ao anarquismo, como ela avalia:
13
MONTSENY, Federica. Mis primeros quarenta años. Barcelona: Plaza y Jane Editores,
1987, p.94.
9
14
SAORNIL, Horas de Revolución, op. cit., p.26.
15
FOUCAULT, M. História da Sexualidade. Vol.II O uso dos Prazeres. Rio de Janeiro:
Graal, 1984.
10
certa. “Estética da existência” é o conceito cunhado por Foucault, para dar conta dessas
práticas da liberdade, constituídas por “tecnologias de si”, através das quais os indivíduos
se elaboram, definem suas regras de conduta, ao mesmo tempo em que procuram
“modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de
certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo.” 16
O conceito é bastante operacional para nomear aquilo que Lucía, a seu modo,
reclama como tarefa revolucionária fundamental. Aqui, ética, liberdade e política confluem
na busca de construção tanto de novas formas de existência, quanto de outros modos de
sociabilidade. A tarefa revolucionária supõe a invenção de si para homens e mulheres como
atividade imediata e trabalho incessante, que não pode ser abandonado para o dia seguinte,
nem mesmo em função das pressões econômicas impostas pela guerra. Em outras palavras,
o cuidado de si para consigo supõe a recusa à obediência, pede uma crítica radical às
formas insidiosas de sujeição e aos modos de manifestação do poder, sobretudo no interior
dos próprios grupos revolucionários. Como analisa a anarquista em relação aos
deslocamentos que observa nos discursos dos grupos que lideram a ação política, são
crescentes as tentativas de inibição e freio às iniciativas populares de autogestão, pelo apelo
à obediência e à disciplina ao Partido:
16
IDEM, p.15; veja-se ainda FOUCAULT, M. “A propos de la généalogie de l´éthique: un
aperçu du travail en cours”.Dits et Ecrits, vol. II, Paris: Gallimard, 2001, p.1229.
11
reflexões e críticas dessa mulher, que denuncia, no calor da hora, as manobras que vão
sendo feitas à medida que o povo consegue maior liberdade e autonomia. No fragmento
intitulado “Soluções Imitativas. O Stakanovismo”, ela acusa a intensificação do processo
produtivo em moldes centralizadores, importados da experiência russa:
é sob pretexto de ganhar a guerra – sem dizer por que, nem para que -, que
vemos dia a dia morrer os organismos criados nos primeiros momentos pela
iniciativa popular; é, outras vezes, um afã imitativo – por desgraça nascido em
nossa juventude - , de que temos dito com freqüência que sua virtude maior é a
espontaneidade, o que vai incorporando ao nosso movimento com palavras
exóticas aspectos ou frases que, se não são em absoluto contrários à nossa
idiossincrasia, são, quando menos, em muitas ocasiões, inoportunos. (pg. 40)
Mas não se pode deixar de considerar o veio poético da libertária, que, anos antes,
participara do movimento de vanguarda denominado Ultraísmo. No “Romance del 19 de
Julio”, que publica na revista Mujeres Libres, sua sensibilidade aflora com muita
intensidade diante dos acontecimentos políticos:
17
SAORNIL, L.S.“Romance del 19 de Julio”, Revista Mujeres Libres, n.11,
Barcelona, dez.1937.
12
Amor Livre!
E então, mulher, apaixonadamente enamorada, não peça nada por seu amor.
Semeie-o, como a vida; faça-o florescer, como a roseira; levante-o, como o
eucalipto; sem perguntar nada, sem pedir nada para amanhã.
Nem a videira, nem a roseira, nem o eucalipto, antes de granar, antes de
florescer, antes de se levantar, pedem um jardineiro que os atenda; nem exigem
promessa de que o sol não haverá de secá-los, nem o vento haverá de quebrar
seus talos, nem a água impetuosa haverá de afogar suas raízes. Eles são
generosos e quando um deles perece, muitos mais nascem para a vida. Ame,
ame, mas que os braços não lhe sirvam como amarras, mas como coroa. Deixe
que tudo vá e venha, e você, sorria sempre, tenaz procuradora de todas as
alegrias terrenas. Sorria sempre, ágil e sentimental, doce e reflexiva, através do
esquecimento, do desprezo, da crítica. Alente sua criação: lance à Vida um novo
módulo para a valorização de seu sexo. A Vida já está farta da Mulher-esposa,
pesada, demasiada eterna, que perdeu as asas e o gosto pelo deliciosamente
pequeno e pelo nobremente grande; está farta da Mulher-prostituta, a que já não
toca senão a raiz sucintamente animal; está farta da Mulher-virtude, séria,
branca, insípida, muda...
Crie o novo tipo; ponha sal na Vida; cor e chama em beijos desiguais. Ame,
fale, trabalhe. Compreenda, ajude, console.
13
De nossas escolas atuais não se pode esperar uma educação e uma higiene
sexual, porque as professoras que as governam não estão capacitadas para isso
por haverem sido formadas em uma sociedade que não fala do sexo se não for
entre cochichos e reticências (...). 19
Como médica, a Dra. Amparo faz profunda crítica aos mitos construídos pela
medicina moderna sobre a economia desejante das mulheres. Questionando o mito da
frigidez feminina, explica que o prazer sexual não deve ser visto como um pecado e que o
sexo não deve se limitar à procriação. Do mesmo modo, critica os maridos que deformam
as esposas com a sua psicologia masculina da prostituição. O direito ao sexo para as
mulheres é, diz ela, uma necessidade fisiológica, tanto quanto para os homens. Amparo
18
POCH Y GASCON, Amparo. Revista Mujeres Libres n°3, julho de 1936 apud RAGO,
Margareth.;BIAJOLI, Maria Clara Pivato. Mujeres Libres da Espanha: Documentos da
Revolução Espanhola. Rio de Janeiro: Achiamé, 2007.
19
RODRIGO, Antonina (org.). Amparo Poch y Gascón, textos de una médica libertaria.
Zaragoza: Alcaraván, 2002, p.111.
14
denuncia a moral burguesa que abre as portas da prostituição para o homem, enquanto a
mulher deve esperar, antes do casamento, para poder ter qualquer atividade sexual.
Portanto, ensina vários métodos contraceptivos.
Contudo, mesmo defendendo o prazer sexual e as novas relações amorosas para as
mulheres, a Dra. Amparo é atenta, ao dizer que é necessário fundamentar-se uma nova
moral. Assim, estabelecendo as diferenças entre as antigas e as novas mulheres afirma que
se as mulheres do passado se educavam e viviam “exclusivamente para o amor, sem o que
a sua vida carecia de sentido e de fim”, a nova mulher já aponta para outras direções. Diz
ela:
A nova mulher não pode preencher sua existência com o amor. Necessita
buscar-se e encontrar-se a si mesma em várias atividades na profissão escolhida,
no estudo a que se consagrou, na oficina, na fábrica e na Universidade. (...)
As mulheres que renunciavam a tudo por amor, que não sabiam viver se não
sentissem uma forte mão masculina sobre as suas, vão ficando, pouco a pouco,
apenas para una categoria de romances; porque o novo tipo feminino nos brinda
com corajosas heroínas que suspiram de gozo ao encontrar sua liberdade perdida
entre as ruínas de um amor, e que não necessitam nem querem mãos alheias que
lhes afastem os obstáculos da vida.20
“Corajosas heroínas”, como ela mesma, ou ainda, como Lucía Sanchez Saornil, que
hoje valorizamos como guerreiras que souberam ousadamente alterar o curso da vida que
lhes havia sido destinada, ousando reinventar-se a partir de seus próprios desejos e
necessidades e referenciando-se por uma moral libertária, na qual ética, política e liberdade
estão intrinsecamente associadas.
20
POCH Y GASCON, Amparo. “La vida Sexual de la Mujer. Pubertad – Noviazgo –
Matrimonio”, apud RODRIGO, A. Amparo Poch y Gascón, textos de una médica
libertaria, op. cit, p.143.