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Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2015-2 _ anpola@gmail.

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SEMÂNTICA

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Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2015-2 _ anpola@gmail.com

I- O que é semântica? Qual o seu objeto?

A semântica é o estudo do significado (linguístico). Mas o que se entende por significado? Onde ele é
encontrado na língua? Quais são as suas fontes?
Defina língua. Defina significado. Reserve.

Leitura
No terceiro parágrafo deste trecho de As Viagens de Gulliver, temos uma ideia bastante popular de como
a língua funciona. Que ideia é essa?
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/gulliver.html#b

As viagens de Gulliver - Parte II - CAPÍTULO V

O autor visita a academia e descreve-a.

Depois de ter visitado o edifício das artes, passei a um outro


corpo da casa, onde estavam os fatores dos sistemas em relação
às ciências. Entramos primeiro na escola de linguagem, onde
nos encontramos com três acadêmicos que discutiam juntos o
modo de embelezar a língua.

Um deles era de opinião, para abreviar o discurso, que se reduzissem todas as palavras a
simples monossílabos e se banissem todos os verbos e particípios.

O outro ia mais longe e propunha um modo de abolir todas as palavras, de maneira que se
discutisse sem falar, o que seria favorável ao peito, porque está claro que, à força de falar,
os pulmões se gastam e a saúde se altera. O expediente, por ele achado, era trazer cada
qual consigo todas as coisas de que quisesse tratar. Este novo sistema, dizia-se, seria
seguido, se as mulheres se lhe não tivessem oposto. Muitos espíritos superiores desta
academia não deixavam, no entanto, de conformar-se com essa maneira de exprimir as
coisas, o que só se tornava embaraçoso quando tinham de falar em diversos assuntos,
porque então lhes era preciso trazer às costas enormes fardos, salvo se eles tivessem dois
criados bastante robustos para se pouparem esse trabalho; supunham que, se esse sistema
se generalizasse, todas as nações poderiam facilmente compreender-se (o que seria de
grande comodidade), pois não se perderia muito tempo em aprender línguas estrangeiras.

Discussão:
A proposta dos sábios daria certo? Como carregar objetos para palavras como ‘paz’, ‘que’, ‘sobre’,
‘encontrar’, ‘ligeiramente’? A língua é uma coleção de palavras? Será que as palavras de uma língua nomeiam
coisas no mundo? E nesse caso, será que elas equivalem aos objetos que nomeiam?
Vamos debater sobre as definições de língua e significado dadas na sua turma. Você quer rever as suas?

Exercício 1
Tome uma folha de papel. Olhando à sua volta, anote rapidamente os nomes de tudo o que estiver
percebendo. Você tem 5min. Quem anotará o maior número de palavras? Daqui a 5min vamos comparar as
anotações de cada um.

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Após o exercício: Há itens em comum nas listas da classe? Há sentenças, sintagmas (fraseados,
pedaços de sentenças) ou apenas palavras? Observe as classes de palavras aparecem em sua lista. Há itens
funcionais (conjunções, artigos) ou apenas lexicais (substantivos)? Há mais nomes abstratos ou concretos? Há
mais nomes contáveis (que nomeiam unidades discretas, como ‘janela’, ‘aluno’) ou de massa (que nomeiam
substância, como ‘sangue’, ‘vidro’)? O que isso nos diz sobre a natureza da língua, e sobre a noção dos sábios
de Gulliver? Como haveria de ser a tradução de uma língua para a outra, se os sábios tivessem razão? Tente
fazer um texto só com as palavras de sua lista. Dá?
Há dois pontos cruciais aqui. O primeiro é o de que nem toda palavra nomeia um objeto no mundo.
Considere palavras como ‘se’, em ‘ele se chama Gulliver’, ou ‘que’, em ‘o aluno que passou de ano’. O outro (não
menos importante) é que a língua não é uma mera coleção de palavras. Ela tem estrutura, uma armação
invisível, regras combinatórias que não podem ser desobedecidas. A isso chamamos sintaxe. O significado de
uma língua depende da sintaxe, da interpretação de objetos estruturados. Uma mudança na ordem das palavras
de uma sentença vai corresponder a estruturas diferentes, ganhando interpretações distintas (i); e ainda as
mesmas palavras, na mesma sequência, podem receber mais de uma interpretação, conforme seja sua estrutura
(ii):

(i) a. O gato mordeu o cão.


b. O cão mordeu o gato.

(ii) a. João enviou para Maria a foto de Salvador.


= enviou de Salvador (para cá) a foto (do Rio)?
ou
= enviou (de Brasília para cá) a foto de Salvador?

Então a semântica está imbrincada com a sintaxe? Teremos de responder que sim, se concordarmos com o fato
de que interpretamos objetos das línguas naturais que já foram dotados de estrutura, e que a estrutura dada
influenciará o significado atribuído ao tal objeto. Esses objetos terão tamanhos diferentes, como ‘a foto’ (sem
ambiguidade), ‘a foto de Salvador’ (com duas interpretações: numa Salvador é o ponto de partida da remessa,
noutra é o tema da foto), ou ‘João enviou para Maria a foto de Salavdor’ (com a mesma ambiguidade já
apontada) etc. Podemos tratar então na semântica de palavras ou da semântica lexical, em que a estrutura só
interfere na composição interna: podemos formas ‘mord-ida’, ‘mord(e)-ção’, ‘mord(e)-dura’, ‘mord(e)-ndo’ etc., na
ordem raiz-afixo, mas não *ida-mord(e), *ção-mord(e), ou qualquer outra combinação na ordem afixo-raiz; nem
podemos formar *cãomente, porque o afixo _mente se combina a adjetivos para formar um advérbio de maneira,
e ‘cão’ é um nome ). Podemos tratar na semântica dos sintagmas ou fraseados ou das sentenças (que depende
da estrutura), falando de como cada parte contribui para a compreensão do todo. Podemos tratar da contribuição
dada por um fraseado escolhido pelo falante, entre as opções disponibilizas pela língua. Por exemplo, não é a
mesma coisa dizer que João não estuda e dizer que João parou de estudar. Só a segunda opção faz a gente
assumir que João estudou em algum momento anterior. Esse significado é contribuição de parar. (Tanto que a
versão sem o verbo parar pode ser empregada para falar de alguém que nunca estudou na vida, mas a que tem
parar não pode!) Podemos também tratar das relações entre sentenças, como homonímia, hiperonímia,
acarretamento, contrariedade...

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Bem, Chomsky tentou desfazer o nó que amarra a sintaxe à semântica, argumentando a favor de sua
independência ao apresentar a versão em inglês da seguinte sentença:
(1) Ideias verdes incolores dormem furiosamente.

Você consegue interpretar essa sentença? Observe que ela satisfaz todas as regras sintáticas. O verbo ‘dormir’
pede um único argumento, realizado por ‘ideais verdes incolores’. E recebe um advérbio de maneira,
‘furiosamente’ numa posição possível na língua para ele. O sujeito é formado de um nome (substantivo), ‘ideias’,
seguido de dois modificadores (adjetivos), o que também é uma boa formação na língua. A concordância de
gênero e número foi realizada entre o núcleo nominal e os modificadores, assim como a concordância de pessoa
e número entre o sujeito e o verbo. A formação morfológica dos vocábulos seguiu todas as regras. A flexão foi
afixada ao verbo após a raiz, por exemplo. Porém, embora esteja de acordo com as regras sintáticas, a
sentença desrespeita a seleção semântica. Daí sua estranheza. Por exemplo, ‘ideias’ é um nome abstrato, e um
objeto sem superfície física não pode refletir a luz, daí não poder exibir cor alguma. Daí ‘ideais verdes’ ser
estranho. Além disso, um objeto, aso seja verde, tem uma cor, e não poderá ser também considerado incolor, o
que faz de ‘verdes incolores’ uma contradição. ‘Dormir’ é uma atividade restrita a animais; como ‘ideias’ não
dormem, não atendem à seleção semântica desse verbo. Por fim, o sono pode ser tranquilo ou agitado, mas não
pode ser furioso, pois há uma intencionalidade em agir com fúria que quem dorme não pode apresentar. Daí a
sentença (1) ser um famoso exemplo de anomalia semântica: ela é bem formada sintaticamente, mas não
semanticamente. O que Chomsky defendia é que sentenças desse tipo podem ser interpretadas (ainda que
poetica ou fantasiosamente) mais facilmente do que sentenças com má formação sintática, que não poderiam
sequer ser processadas, como:
(2) De cama mentetranquila na dorme Maria bruços.

Essa versão embaralhada de Maria dorme de bruços tranquilamente na cama faz menos sentido que (1): é
improcessável, por não seguir as regras sintáticas, embora a seleção semântica não tenha sido desrespeitada
em nenhum ponto. Para percebermos como é mais fácil compreender sentenças sintaticamente bem formadas
mas semanticamente falhas (as tais anomalias semânticas), basta lermos Manoel de Barros:

Leitura

Os deslimites da palavra Uma didática da invenção - I

Ando muito completo de vazios. Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
Meu órgão de morrer me predomina. a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
Estou sem eternidades. b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
Não posso mais saber quando amanheço ontem. c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm
Está rengo de mim o amanhecer. devoção por túmulos
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha. d) Se o homem que toca de tarde sua existência num
Atrás do ocaso fervem os insetos. fagote, tem salvação
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais
destino. ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
Essas coisas me mudam para cisco. f) Como pegar na voz de um peixe
A minha independência tem algemas g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios.

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Então a sintaxe tem primazia sobre a semântica? Na medida em que a compreensão de um objeto depende de
que objeto é esse que se quer compreender, sim, já que o objeto foi construído com as regras da língua a que
chamamos de gramática ou sintaxe. Mas existem significados que não dependem da sintaxe? Sim. Quando
examinamos objetos maiores ou distintos de sentenças e de suas partes, tais como enunciados, textos ou
discursos, chegamos a sentidos que não vieram (inteiramente) do material linguístico presente. O mesmo
material linguístico, com a mesma sintaxe, sem anomalia semântica, pode constituir significados distintos em
condições diversas. Pense na sentença A porta está aberta. Dita pela mulher ao marido, durante uma
discussão, após ele ter dito que não sabe como consegue conviver com ela, significa Se é assim, vá embora da
minha vida. Mas essa ideia de separação conjugal não é um significado do material linguístico da sentença. Ela
não está presente, por exemplo, quando o médico, de dentro de seu consultório, a pronuncia para o paciente que
aguarda do lado de fora da porta. Nessa outra situação, o enunciado é entendido como um convite para o
paciente entrar no consultório. Imaginemos uma terceira cena, em que ladrões estão procurando meios de
invadir uma loja inexpugnável, protegida por cadeados, travas, grades, cães bravos, muros... depois de tentar
explodir a grossa parede sem sucesso, chamando a atenção da polícia, pouco antes de ser detido, um deles
mexe na maçaneta da porta e diz A porta está aberta... Nesse caso, ele está expressando seu desconsolo
pelo insucesso da empreitada, ao desconsiderarem processos mais fáceis de entrada. Um chefe que se despede
de uma funcionária muito capaz, que decidiu parar de trabalhar para ter um filho, ao dizer A porta está aberta
na despedida está comunicando que, se ela decidir voltar a trabalhar, o emprego será dado a ela de volta. Para
cada nova situação de uso, teremos um novo significado, e perderemos os demais. O único significado que
independe da situação é o de que estamos falando de uma porta (e não de uma mesa), um objeto que, por sua
natureza, pode se apresentar aberto ou fechado; a sentença diz que está num desses estados, e não no outro;
logo, alguém pode passar pela abertura, ingressando num local interno ou indo para o lado de fora dele. Os
demais significados são construídos sobre esse, que é o único permanente, indissociável do material linguístico.
É obvio que uma sentença como A mesa está posta não serviria para veicular os significados mencionados.
Mas eles não estão sempre ligados à sentença A porta está aberta.

Leitura

Nos trechos de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, como o que está fora da língua interfere na
compreensão / criação dos sentidos?

- Veja, agora a senhora está bem melhor! Mas, francamente, acho que a senhora
devia ter uma dama de companhia!
- Aceito-a com todo prazer! - disse a Rainha. - Dois pence por semana e doce todos
os outros dias.
Alice não pôde deixar de rir, enquanto respondia:
- Não estou me candidatando... e não gosto tanto assim de doces.
- É doce de muito boa qualidade - afirmou a Rainha.
- Bom, hoje, pelo menos, não estou querendo.
- Hoje você não poderia ter, nem pelo menos nem pelo mais - disse a Rainha. -
A regra é: doce amanhã e doce ontem - e nunca doce hoje.
- Algumas vezes tem de ser "doce hoje" - objetou Alice.
- Não, não pode - disse a Rainha. Tem de ser sempre doce todos os outros dias; ora,
o dia de hoje não é outro dia qualquer, como você sabe.

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Num dado momento, Alice encontrou muitos caminhos, que seguiam em


diferentes direções. Então ela perguntou a um gato, que estava sentado
numa árvore:
- Pode me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
- Isso depende muito de para onde você quer ir — respondeu o gato.
- Eu não sei.
O gato, então, respondeu sabiamente:
- Sendo assim, qualquer caminho serve.

Exercícios
_ Que dia é amanhã? Que dia é ontem? De que depende essa resposta?
_ Como definir o caminho por que Alice procura?

Há contribuições para aquilo que entendemos numa comunicação com palavras que não se restringem ao que é
dito, mas dependem também de informações não-linguísticas, ligadas à situação de uso. Há várias fontes de
significação. Uma boa forma de identificá-las é procurar o responsável pela ambiguidade. Dê os vários
significados dos exemplos abaixo e indique o “culpado” pela diversidade de sentidos:

(1) O irmão de Maria bateu seu carro.


(2) Os estudantes revoltados reclamaram da nota na prova.
(3) O marido pegou o amigo da mulher entrando pela janela.
(4) No programa de hoje, Jô Soares vai discutir sexo com o Dr. Dráuzio Varella.
(5) Uma mulher gosta de um homem romântico.
(6) Quando tirei a foto das crianças, elas estavam subindo a escada.
(7) O cliente prefere frango ao molho de mostarda.
(8) Os coelhos estão prontos para comer.
(9) Júnior não trabalha oito horas por dia.
(10) Maria perdeu um papel da peça.
(11) Ontem vi a cadela da sua irmã na rua.
(12) João não pode nem passar perto de um bar.
(13) A crítica do autor foi dura.
(14) Romeu não chora mais porque Julieta partiu.
(15) A vaca foi pro brejo.
(16) Todas as setas atingiram um alvo.
(17) Não comprei os livros porque custavam R$120,00.
(18) João nunca mais comeu dessa fruta.
(19) Julieta esqueceu Romeu.
(20) Ele não vai à praia duas vezes na semana.
(21) Flamenguistas e Botafoguenses vivem felizes naquela rua.
(22) Ele chutou o balde!
(23) Maria foi à universidade.
(24) Relógio que atrasa não adianta.
(25) Acabou a festa, os músicos foram embora.
(26) Eles cobriram o chão de rosa.
(27) João ficou de esperar Maria ao lado do banco.
(28) As mangas foram cortadas.
(29) Maria vai à praia duas vezes por semana.
(30) Pedro pediu a José para sair.
(31) Crianças que comem doce frequentemente têm cáries.
(32) Macarrão levou Eliza Samudio para ser morta por amar Bruno.
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(33) Doutro Pedro operou o nariz.


(34) Maria cortou o cabelo.
(35) Dois alunos tomaram quatro garrafas de cerveja.
(36) Estando atrasado, João não entrou.
(37) A vaca se diverte sujando a pata na lama.
(38) A Maria saiu do banco.
(39) Macaco esquecido no porta-malas é motivo de confusão.
(40) A rede caiu.

Há nomes para classificar os tipos de ambiguidade: ambiguidade lexical, ambiguidade sintática, ambiguidade de
escopo, ambiguidade situacional, ambiguidade semântica. Procure exemplos de cada uma nos exercícios, e
tente distinguir uma da outra. Qual elemento é o responsável por mais de uma interpretação?

Neste curso, vamos estudar em separado as várias fontes de significado. Começando pelas previsíveis,
indissociáveis da expressão linguística, do nível da sentença, e chegando ao texto, que pode ter tantas
interpretações quantas forem as ouvidas/leituras.

A semântica nos níveis de descrição linguística

Nesta faculdade, os cursos de Língua Portuguesa seguem um caminho entre os níveis de descrição e análise
linguística ou gramatical: fonologia, morfologia, morfossintaxe, sintaxe e semântica. A esta altura, você já
completou todos eles, à exceção de semântica. Portanto, você já sabe dizer de que fenômenos e que aspectos
da língua cada um deles ocupa. Proponho que você encontre, no material linguístico abaixo, aspectos de
interesse de cada um desses níveis (adaptação de Perini 1996):
fonologia:
morfologia:
‘Ana despreza Ricardo’ morfossintaxe:
sintaxe:
semântica:

Não é possível estudar todos os aspectos e componentes de uma gramática ao mesmo tempo. O pesquisador
tem de eleger um fenômeno, olhá-lo pelo ponto de vista de determinado nível e definir um problema de pesquisa.
Isso você já sabia. A questão que proponho é: onde está a semântica em cada um desses níveis?

Por exemplo, em fonologia, você aprendeu que nem todos os sons que o sistema fonador produz constituem
fonemas. Fonemas são as unidades do sistema linguístico capazes de distinguir significados. Por exemplo, a
distinção entre as palavras ‘pata’, ‘bata’, ‘cata’ e ‘mata’ se baseia na troca do fonema inicial. Um experimento
sobre reconhecimento de palavras (Ting & Snedeker 2010) mostrou que a visão (ou audição) do primeiro pedaço
de uma palavra aciona em nossa memória não só aquelas que começam com os mesmos fonemas (ativadas por
associação fonológica), mas também aquelas que estão ligadas às possíveis continuações sonoras pelo
significado (ativadas por associação semântica). Por exemplo, os falantes de inglês participantes do
experimento, viam num painel quatro figuras: um tronco (‘log’), uma chave (‘key’), uma maçã (‘apple’) e uma
corsa (‘deer’), quando instruídos a tocar no tronco, pensavam em cadeado (em inglês ‘lock’), por associação
fonológica, e olhavam por mais tempo para a chave que para a maçã ou a corsa, por associação semântica.
Então a semântica já importa quando ainda estamos no meio do processamento de uma palavra.

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Um constituinte morfológico, um morfema gramatical, é definido como o fragmento mínimo capaz de expressar
significado ou a menor unidade significativa que se pode identificar. Por exemplo, o prefixo _in é associado à
negação (‘incerto’), o sufixo _dade a estados ou propriedades (‘tranquilidade’) etc.

Até aqui, recordamos que critérios semânticos são usados para distinguir unidades fonológicas e morfológicas.
Em morfossintaxe, estudamos as relações combinatórias entre as palavras num sintagma e/ou numa frase, como
nos fenômenos de concordância nominal e verbal. À primeira vista, não é evidente como o significado é
operacional aí. Mas, por exemplo, há com formas exclusivas, dedicadas, como o pronome ‘eu’, que significa
invariavelmente primeira pessoa, número singular e caso nominativo. Outros morfemas, como ‘você’, podem vir
como sujeito ou complemento verbal por não estarem restritos a um só caso, nominativo ou acusativo. As
conjunções que ligam orações num período composto também apresentam significados especializados: por
exemplo, ‘mas’, ‘porém’, ‘contudo’, ‘entretanto’ indicam oposição entre as ideias veiculadas pelas orações que
ligam. Mas talvez o ângulo mais interessante para examinar a ligação entre semântica e morfossintaxe seja o de
examinar como mecanismos do tipo da concordância e da marcação de caso estão a serviço da interpretação.
Numa sentença como ‘João disse a seu amigo que viu o vizinho saindo com a sua mulher’ não sabemos se essa
mulher é a esposa de João, a do amigo ou a do vizinho, porque o pronome ‘sua’ pode tomar qualquer desses
sintagmas nominais como antecedente. E mais: se essa frase é dita por Maria a José, o falante (Maria) pode
estar se referindo à esposa da pessoa a quem se dirige (José). Entretanto, a dúvida não se coloca na sentença
‘João e Maria disseram a seus amigos que viram o vizinho saindo com a sua mulher’, em que fica claro que o
fato testemunhado pela foi a saída de um casal de vizinhos, ou seja, que o vizinho saiu na companhia da própria
esposa.

Na sintaxe, a ambiguidade de uma sentença ou de um sintagma é apontada como evidência de que a mesma
expressão tem duas ou mais estruturas subjacentes. Por exemplo, o fato de entendermos de dois jeitos o
segmento ‘Eu li a notícia sobre a greve na faculdade’ mostra que sob essa forma há duas estruturas possíveis.
Numa, ‘a greve na faculdade’ está na função de complemento da preposição ‘sobre’, e a notícia, lida por mim,
por exemplo, na sala de espera do dentista, versa sobre o fato de a faculdade estar em greve. Na outra o
complemento da preposição ‘sobre’ é apenas ‘a greve’, e ‘na faculdade’ é adjunto adverbial, resultando na
interpretação de que, enquanto estava no prédio da faculdade eu li uma notícia sobre a greve (a dos bancários).
O diagnóstico da ambiguidade também indica estruturas distintas subjacentes à forma ‘os alunos acharam o
filme chato’. Numa interpretação, temos um verbo ‘achar’ sinônimo de ‘encontrar’. Imaginemos que, para passar
o tempo, os alunos decidiram ver um filme; havia dois filmes (em DVD) guardados na sala, um chato e outro
divertido. O filme chato foi localizado, só o divertido é que não. Essa leitura provém de o verbo ter um
complemento do tipo sintagma nominal, que faz o papel da coisa encontrada. Em outra interpretação possível,
‘achar’ é sinônimo de ‘considerar’, e toma uma minioração (um conjunto de sujeito e predicado, sem verbo de
ligação) como complemento. Entendemos daí que, na opinião dos alunos, determinado filme é chato.

Está visto que a semântica desempenha um importante papel em todos os níveis de descrição e análise
linguística. No curso de semântica, em vez de tomar a interpretação e o entendimento que temos de expressões
linguísticas como diagnóstico para fenômenos fonológicos, sintáticos etc., vamos examinar o significado por
interesse nele próprio. Mas o que é significado? Um mistério é: como os falantes de uma língua se entendem?
Uma das faces desse mistério é o aspecto criativo das línguas naturais (Chomsky 2002:66), que é a nossa
capacidade de produzirmos e compreendermos, sem esforço, expressões linguísticas nunca antes ouvidas.
Outro ponto de interesse é o impacto dos usos da língua sobre a vida em sociedade: se a língua é vista como
“um conjunto de práticas sociais e cognitivas historicamente situadas”, (MARCUSCHI 2005:31), então se pode
“agir por meio de palavras”. Como abordar o significado depende do recorte, e, portanto, da teoria adotada.

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II- As escolas, as perguntas-guia e as ferramentas da investigação semântica

Leitura

PIRES DE OLIVEIRA, Roberta. Capítulo I: Semântica. In: MUSSALIN, Fernanda: BENTES, Anna Christina
(orgs.). Introdução à Linguística: domínios e fronteiras. Vol 2. São Paulo, Cortez, 2001.

Exercícios
Resolver e entregar as respostas dos “intervalos” do texto, três por aula, aqui copiados para sua conveniência:

Intervalo I: - Diga qual a referência de: (i) a capital da França, (ii) Paris, (iii) Paris é a capital da França.
- Descreva o Rio de Janeiro através de vários sentidos.
Intervalo II: 1. Identifique argumentos e predicados nas sentenças abaixo, segundo Frege:
(a) João é casado com Maria / (b) Maria é brasileira / (c) Oscar é jogador de basquete.
2. A partir dos conceitos de quantificador universal e existencial e da noção de escopo, descreva as
sentenças abaixo:
(a) Todo homem é casado com alguma mulher./ (b) Um homem é casado com todas as mulheres.
(c) A Maria não dançou só com o Pedro.
Intervalo III: - Partindo das noções de escopo e operador descreva a ambiguidade da sentença O rei da França
não é calvo.
- Determine se há pressuposição na sentença João lamenta a morte do pai e justifique sua resposta.
Intervalo IV: - Descreva as leituras possíveis do enunciado Meu livro não foi reeditado, segundo a Semântica da
Enunciação.
- Descreva a ambiguidade da mesma sentença, por meio da noção de escopo da Semântica Formal.
Intervalo V: - O mas de cada sentença é PA ou PN? Justifique.
(1) João não está cansado, mas deprimido. / (2) João foi ao cabelereiro, mas não cortou o cabelo.
- Descreva a negação dos exemplos: (1) O João não saiu./ (2) O céu não está azul.
Intervalo VI - Em termos de valor de verdade, as sentenças abaixo são idênticas. No entanto, do ponto de vista
argumentativo, elas se comportam de forma bem diferente. Procure descrever a contribuição de sentido
proporcionada pelo até nas sentenças.
(1) O presidente do Brasil esteve na festa. / (2) Até o presidente do Brasil esteve na festa.
- A partir da análise de pouco e um pouco, reflita sobre o par: (1) João dormiu um pouco. / (2) João
dormiu pouco.
Intervalo VII - Descreva as sentenças conforme a Semântica Cognitiva.
(1) Gastei cinco horas para chegar aqui./ (2) Economizei duas horas vindo por este caminho.
- Dê exemplos da metáfora conceitual ARGUMENTAÇÃO É UMA GUERRA.
Intervalo VIII - Mostre que a propriedade “voar” não é nem necessária nem suficiente para que algo pertença à
categoria AVE.
- Descreva, a partir do conceito de protótipo, a categoria MÃE.
- Explique por que a sentença A Maria saiu com o seu animal de estimação é uma metonímia.

A- O olhar da Semântica Formal

A.1- A LÍNGUA COMO INSTRUMENTO DE RACIOCÍNIO E AMPLIAÇÃO DO CONHECIMENTO

A geração de inferências data da Grécia Antiga. Aristóteles via em raciocínios baseados em processos
inferenciais fornecidos pela língua um instrumento de conhecimento científico e filosófico. Por meio de inferência
baseadas em proposições encadeadas, faz-se um processo de raciocínio lógico que gera uma conclusão.
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Proposições (sentenças declarativas) são manifestações de juízos sobre propriedades e indivíduos. Partindo de
afirmações verdadeiras e de relações lógicas entre elas, chega-se a novas proposições verdadeiras. Tomando a
língua como uma estrutura do pensamento lógico, capaz de produzir conhecimento, há duas direções de
raciocínio: partindo do (mais) particular e chegando ao (mais) geral, o raciocínio é indutivo; na direção inversa,
partindo do (mais) geral para chegar ao (mais) particular, o raciocínio é dedutivo. O método indutivo é típico das
ciências empíricas. Podemos, por exemplo, pensar num biólogo. Para estudar os macacos bonobos (uma
espécie de chimpanzés), esse pesquisador vai até o Congo e fica observando o comportamento de alguns
indivíduos de um certo grupo, por determinado tempo. Ele observa que o bonobo 1 pode anda sobre a terra ou
pula de galho em galho, que o bonobo 2 faz a mesma coisa, o bonobo 3 também e assim sucessivamente.
Obviamente, esse biólogo não observou todos os bonobos do mundo, nem os de outros tempos, aqueles que já
morreram ou os que ainda não nasceram. Ainda assim, ele vai generalizar o comportamento observado naqueles
indivíduos para toda a espécie. Como fruto desse raciocínio indutivo, lemos o seguinte na Wikipedia:

Os bonobos são tanto terrestres como arborícolas. São animais quadrúpedes,


podendo locomover-se de forma bípede quando têm as mãos ocupadas. A
espécie distingue-se por uma postura ereta, uma organização social matriarcal,
e o papel proeminente da atividade sexual em sua sociedade.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bonobo

O método dedutivo procede de proposições (mais) universais para proposições (mais) particulares,
proporcionando o que chamamos de demonstração, pois que sua inferência (a conclusão que é extraída das
premissas) é a inclusão de um termo menos extenso em outro com maior extensão. O exemplo mais comum é o
silogismo: “Todo homem é mortal (premissa maior); Sócrates é homem (premissa menor); logo, Sócrates é
mortal (conclusão)”. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão é inescapavelmente verdadeira. Toda a
informação ou conteúdo presente na conclusão já estava, ao menos implicitamente, nas premissas. Tanto no
método indutivo quanto no indutivo, é a estrutura da língua que cria relações entre sentenças, libertando o
pensador de esperar pelos fatos do mundo para que seu conhecimento avance. Não é preciso passar pela
experiência de observar cada bonobo para se saber algo sobre a espécie; nem é preciso ter testemunhado a
morte de Sócrates para saber que ele era mortal.

Exercício 1
Classifique os raciocínios abaixo ou como indutivo ou como dedutivo:
(1) O sol nasceu no último domingo. O sol nasceu ontem. O sol nasceu hoje. Logo, o sol nasce todos os dias.
(2) Tiramos uma amostra do sangue do paciente para examinar. Os testes feitos com ela mostraram que a
presença proporcional de hemoglobina na composição sanguínea está abaixo dos valores de referência. Logo,
diagnosticamos que o paciente está com anemia.
(3) Cada criança colocou seu grão de feijão num potinho vazio e o cobriu com algodão molhado. Mantendo a
umidade e deixando o potinho exposto à luz, depois de alguns dias as crianças observaram que um caule verde
cresceu, assim foram projetadas raízes; assim, as crianças concluíram que, em condições apropriadas, todo grão
de feijão germina e dá uma planta.
(4) A receita dizia para levar o bolo ao forno médio por 45min. A massa que eu preparei já está no forno há 44
min. Portanto, em um minuto meu bolo estará assado.

A.2- A VISÃO ARISTOTÉLICA

Sentenças estabelecem relações entre particulares e categorias. Um particular é um indivíduo existente no


mundo, como Sócrates. Categorias são conjuntos. Os particulares são elementos. As sentenças declarativas
afirmam que os particulares são elementos do conjunto dado pelo predicado.

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Sócrates é mortal = Sócrates é um elemento do conjunto dos seres mortais = s M

.......................................................

A capacidade humana de se comunicar pela linguagem envolve julgamentos sobre a verdade de proposições.
Como sabemos o que significa ser mortal, sabemos que elementos pertencem ao conjunto dos seres mortais e
quais não pertencem. Isso nos permite afirmar muitas coisas:

- Sabemos que a sentença a carpa é mortal é verdadeira por podermos decidir quais são os elementos do
conjunto dos mortais, dado entendermos o critério (só viventes podem morrer), daí julgarmos c  M.

- Sabemos que a sentença o garfo é mortal é falsa por podermos decidir quais são os elementos do conjunto
dos mortais, dado entendermos o critério (só viventes podem morrer), daí julgarmos g M.

- Uma sentença negativa significa que afirmamos que o particular está fora do conjunto. Assim, sabemos que a
sentença o garfo não é mortal é verdadeira por julgarmos g M.

Nessa visão, a estrutura mais transparente das sentenças é sujeito+ verbo de ligação + predicado nominal:

Sócrates é mortal

nome do relação de pertencimento (positiva ou negativa) nome do


elemento conjunto

As sentenças com predicado verbal são menos transparentes e precisam ser reanalisadas:

Sócrates corre é uma abreviação para Sócrates é um corredor.

Sócrates corre

Sócrates é alguém que corre

Sócrates é um corredor

nome do relação de pertencimento (positiva ou negativa) nome do


elemento conjunto

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Exercício 2

Represente na anotação de conjuntos as sentenças abaixo.


(1) Ana é professora.
(1) Ana ensina.
(3) Ana é paulista.
(4) Ana não é carioca.
(5) Ana é brasileira.
(6) Ana está na Ilha do Fundão.
(7) Ana está no Rio de Janeiro.
(8) Ana é mulher.
(9) Ana é gente.
(10) Ana é mortal.

As relações entre as sentenças podem ser expressas como relações entre conjuntos. Primeiramente, as
verdades de todas as sentenças de (1) a (10) são compatíveis, isto é, Ana pode pertencer a diversos conjuntos
ao mesmo tempo.
Vamos relacionar (1) a (2). Todos os elementos do conjunto designado por professora pertencem
necessariamente ao conjunto designado por ensina, já que professor e “ensinante” são a mesma coisa. Assim,
se eu julgo (1) verdadeira, necessariamente vou julgar (2) verdadeira; se uma for falsa, as duas são falsas. Isso
porque as duas afirmam a mesma coisa: que certo particular, Ana, é elemento de certo conjunto, os dos
ensinantes ou dos professores. Dizemos que uma sentença acarreta outra quando, se a primeira for verdadeira,
a segunda necessariamente tiver de ser verdadeira. Podemos dizer que (1) acarreta (2), pois, assumindo a
verdade de (1), teremos de tomar (2) como verdadeira. Inversamente, se partirmos da ideia de que (2) é
verdadeira, necessariamente julgaremos (1) como verdadeira. Nesse caso, dizemos que temos duplo
acarretamento entre as sentenças (1) e (2). Podemos entender duplo acarretamento como formas diferentes de
expressar a mesma verdade, ou seja, a mesma relação entre um elemento e um conjunto.
Agora vamos relacionar (3) a (4). Sabemos que não é possível para uma pessoa nascer em dois lugares
diferentes. Ou bem Ana nasceu no Rio, ou bem nasceu em São Paulo. Portanto, assumindo a verdade de (3),
tem de ser falso que Ana tenha nascido em qualquer outro lugar, o que significa que (3) acarreta (4). Isso
significa que sabemos que quem nasceu no Rio não pode pertencer ao conjunto dos que nasceram em São
Paulo.
Consideremos agora (3) e (5). São Paulo é um pedaço do Brasil, ou seja, o conjunto dos paulistanos é
parte do conjunto dos brasileiros. Não é possível pertencer ao subconjunto, o conjunto interno, sem pertencer ao
superconjunto, o maior, em que ele esta contido. Logo, (3) acarreta (5). Por que (5) não acarreta (3)? Por que é
possível estar dentro do conjunto dos brasileiros e ainda assim fora do conjunto dos paulistas. Baianos são
brasileiros, mas não são paulistas. Isso indica que o acarretamento acontece do mais geral (superconjunto,
hiperônimo) para o mais particular (subconjunto, hipônimo). Essa direção do acarretamento pode ser verifica pela
relação entre (6) e (7). A Ilha do Fundão é uma parte do Rio, ou seja, o conjunto daqueles que estão na Ilha do
Fundãoestá contido no conjunto daqueles que estão no Rio. Se Ana é elemento do conjunto menor, tem de ser
elemento do maior, que o contém. Assim, (6) acarreta (7). Mas (7) não acarreta (8). Isso porque alguém pode
estar dentro do Rio mas fora da quinta. É o caso da pessoa que está em Ipanema, por exemplo.

Também verificamos a direção do acarretamento em subconjuntos ligando (8) a (9) e a (10). Sabemos que toda
mulher é gente. Logo, o conjunto das mulheres está contido no das pessoas. Sabemos também que toda gente é
mortal. Logo, o conjunto das pessoas está contido no conjunto dos seres mortais. Assim, (8) acarreta (9) e (8)
também acarreta (10); além disso, (9) acarreta (10). Mas (10) não acarreta (9), pois há seres mortais que não
são gente, como a carpa, por exemplo. Nem (9) acarreta (8), pois há pessoas que não são mulheres.

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Professora Ana Paula Quadros Gomes _ 2015-2 _ anpola@gmail.com

Uma linguagem formal, como a matemática conjuntística, pode ser adotada como metalinguagem semântica
para evitar a ambiguidade das línguas naturais. A anotação dos conjuntos é um dos exemplos da formalização
em semântica. Vimos que mais de uma sentença pode expressar uma mesma relação entre certo particular e
certo conjunto, o que vai se manifestar no fato de as condições de verdade serem as mesmas para essas duas
(ou mais) sentenças distintas. Vejamos, por exemplo, como representar em forma de relações entre conjuntos
algumas estruturas sentenciais:

(i) Todo A é B A

(ii) Nenhum A é B

A B

A B
(iii) Algum A é B ---------------------------------------------

Exercícios 3

Desenhe, usando diagramas circulares para conjuntos/classes e pontinhos para elementos/particulares, as


relações descritas por cada sentença. Depois, diga se o silogismo é válido ou não (ou seja, se, considerando a
premissa 1 e a premissa 2 verdadeiras, é inescapável a verdade da sentença dada como conclusão).

Premissa 1 Todo metal é matéria. Premissa 1 Nenhum mamífero é pássaro.

Premissa 2 Todo ferro é metal. Premissa 2 Algum mamífero é animal que voa

Conclusão Todo ferro é matéria. Conclusão Algum pássaro é animal que voa.

Premissa 1 Alguns sapos são venenosos. Premissa 1 Todo peixe nada.

Premissa 2 Alguns peixes são venenosos. Premissa 2 A baleia nada.

Conclusão Alguns sapos são peixes. Conclusão A baleia é um peixe.

Premissa 1 Schwarzenegger é australiano.

Premissa 2 Estrangeiros não podem concorrer a cargos públicos nos EUA.

Conclusão Schwarzenegger nunca foi governador da Califórnia.

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Agora que já sabemos como verificar se um raciocínio lógico é válido, vamos nos concentrar em como
demonstrações estão ligadas a uma concepção de língua. Para checarmos se, dadas a verdade da premissa 1,
e ada premissa 2, a conclusão tem de ser verdadeira, precisamos assumir uma semântica veridicacional
/denotacional para a sentença. Precisamos assumir que a verdade de uma sentença pode ser determinada pela
sua adequação para representar nosso juízo sobre um estado de coisas. Não se trata de um juízo pessoal, mas
de um mesmo juízo para todos os falantes. A compreensão do significado de uma sentença envolve e afeta a
compreensão de outras expressões linguísticas. Isso significa enxergar uma estrutura lógica nas línguas
naturais que confira às sentenças condições de verdade.

Julgamentos de valor de verdade

Ele está nadando? A Semântica Formal se ocupa de como temos uma resposta para casa situação (foto).

Exercícios 4
Verifique se a primeira sentença do par acarreta ou não a segunda. Se a resposta for não, descreva pelo menos
uma situação em que a primeira sentença seja verdadeira e a segunda, falsa:
(1) a. A carta chegou hoje de manhã. (3) a. O copo caiu.
b. A carta chegou hoje. b. O copo quebrou.
(2) a. Maria é irmã de João. (4) a. Está fazendo sol.
b. João é irmão de Maria. b. Está chovendo.
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Verifique se a primeira sentença do par contraria ou não a segunda. Se a resposta for não, descreva pelo menos
uma situação em que a primeira sentença seja verdadeira e a segunda também:
(1) a. A carta não chegou hoje de manhã. (3) a. O copo não caiu.
b. A carta chegou hoje de tarde. b. O copo não quebrou.
(2) a. Maria é casada. (4) a. Está fazendo sol.
b. Maria é solteira. b. Não está fazendo sol.

Acarretamento versus pressuposição

São dois tipos distintos de significado que é compreendido sem ter sido dito abertamente. A noção de
acarretamento não envolve o contexto, mas se limita à relação entre a verdade/ falsidade de duas sentenças. A
noção de pressuposição envolve as suas condições de uso, a relação com o discurso. O conteúdo pressuposto
não pode ser debatido ou questionado pelo ouvinte que aceita prosseguir a conversa de que faz parte a
sentença. O único jeito de rejeitar a pressuposição é quebrar a continuidade da conversa. O falante escolhe usar
uma expressão na construção da sentença, em vez de outra com significado semelhante, por querer incluir a
pressuposição no que está dizendo. A informação pressuposta é condição de emprego da oração que a
pressupõe. Há uma expressão linguística, chamada de gatilho da pressuposição, que é quem contribui com esse
conteúdo pressuposto. Enquanto o gatilho estiver presente, a sentença continuará vinculada àquela
pressuposição, mesmo que seu valor de verdade seja suspenso ou alterado.

(11) Maria comeu duas pizzas acarreta...


a. Alguém comeu duas pizzas.
b. Maria fez alguma coisa com as duas pizzas.
c. Maria comeu duas unidades de alguma coisa.
d. Algo ocorreu.

Se o interlocutor discordar da verdade de (11), ele pode negá-la, dizendo: Você está errado, Maria não comeu
duas pizzas, comeu uma só; ou Maria não comeu duas pizzas, comeu dois pasteis; ou Maria não comeu duas
pizzas, Pedro comeu duas pizzas. Nenhuma dessas novas sentenças acarreta (11a, 11b, 11c, 11d). Por quê?
Porque a negação de uma sentença P (~P ou P) muda o valor de verdade dela para o seu contrário: sempre
que P = V, ~P = F; sempre que P = F, ~P = V.

Há maneiras diferentes de construir (11), usando clivagem (ensanduichando um constituinte entre o verbo ser
flexionado e a conjunção que):

(12) a. Foi a Maria que comeu as duas pizzas. (e não o João)


b. Foi comer o que a Maria fez com as duas pizzas. (e não vender)
c. Foram duas as pizzas que Maria comeu. (e não quatro)
d. Foram as duas pizzas que Maria comeu. (e não os três bifes)
e. O que aconteceu foi que Maria comeu duas pizzas. (e não que ela quebrou o braço.)

Por que alguém usaria as construções de (12) em lugar de (11)? Parece que em (12) temos alguma polêmica,
uma discussão. Há dúvida sou desacordo sobre a identidade do comedor das duas pizzas (12a), ou sobre o que
Maria fez deles (dar, jogar fora, congelar, comer...) (12b), ou sobre quantas eram (12c), ou sobre o que foi
consumido por Maria (uma lasanha, duas maçãs, três amendoins...) (12d), ou sobre que acontecimento ou
ocorrência está em debate (12e). Já (11) não está associado a polêmica ou discórdia alguma. Aquilo sobre o
qual há discórdia ou debate em (12) é o constituinte clivado. O resto da sentença é dado como certo, não
passível de discussão, ou seja, aceito tacitamente pelos falantes.
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Pergunta: (12a) acarreta (11a)?


Sim. Se for verdade que Foi a Maria que comeu as duas pizzas, será necessariamente verdade que alguém
comeu as duas pizzas. Mas há uma diferença crucial na relação entre (11) e (11a), quando comparada à relação
entre (12a) e (12a). A negação de (11) não acarreta (11a). Vejamos:

Se Maria não comeu as duas pizzas, não será necessariamente verdade que alguém comeu as duas pizzas.

O acarretamento não se mantém se mexemos na verdade da primeira sentença. Agora examinemos como a
negação de (12a) afeta sua relação com (12a): assumindo que não foi Maria que(m) comeu as duas pizzas,
continua sendo necessariamente verdade que alguém comeu as duas pizzas. A ligação entre (11a) e (12a) não
depende da verdade de (12a). A presença da construção da clivagem obriga a assumir como verdadeira (11a). A
negação inverteu o valor de verdade de (12a) sem que pudéssemos deixar de considerar (11a) como verdadeira.
Vejamos outras situações em que o valor de verdade de (12a) fica suspenso:

-Interrogação (perguntas podem receber resposta positiva ou negativa)


(13) Foi Maria quem comeu as duas pizzas?
Para fazer a pergunta em (13), o falante ainda precisa considerar que alguém comeu as duas pizzas, ou seja,
(11a) continua verdadeiro.

-Condicional (hipotético, não se assume o antecedente como factual, há incerteza)


(14) Se foi Maria quem comeu as duas pizzas, então ela saiu da dieta.
(14’) Caso tenha sido Maria quem comeu as duas pizzas, então vamos fazer com que seja ela a pagar a conta.
Para dizer a condicional em (14), o falante ainda precisa considerar que alguém comeu as duas pizzas, ou seja,
(11a) continua verdadeiro.

Os exemplos da negação, da interrogação e da condicional estabelecem que a relação entre o conteúdo


proposicional de (12a) e (11a) não depende do valor de verdade da primeira sentença, mas é desencadeado
pela presença da clivagem. Enquanto a clivagem estiver dentro da construção, é preciso assumir (12a); dizemos
então que (12a) pressupõe (11a), e que a clivagem é o gatilho da pressuposição. Observe que o falante tem a
escolha de expressar-se usando clivagem (12a) ou não (11). Ao decidir usar (12a) em lugar de (11), ele está
escolhendo trazer o conteúdo de (11a) como pressuposição, como algo que o seu interlocutor não pode
cancelar.

Exercícios:
Verifique se a primeira sentença do par pressupõe ou não a segunda, suspendendo a verdade da primeira
sentença e mantendo seu conteúdo proposicional:
(1) a. Foi comer o que a Maria fez com as duas pizzas.
b. Maria fez alguma coisa com as duas pizzas.
(2) a. Foram duas as pizzas que Maria comeu.
b. Maria comeu duas unidades de alguma coisa.
(3) a. O que aconteceu foi que Maria comeu duas pizzas
b. Algo ocorreu.

Gatilhos de pressuposição
(15) a. João parou de fumar pressupõe que __________________________________________
b. João continua fumando pressupõe que ________________________________________
c. João começou a fumar pressupõe que ________________________________________

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Os verbos acima operam sobre uma das fases de um processo (início, meio ou fim); eles pressupõem a
existência desse processo. É impossível não assumir o processo como verdade quando um desses verbos é
usado. Por exemplo, afirmar que Pedro parou de bater na mulher estabelece que ele batia na mulher. Perguntar
Quando foi que você parou de cheirar cocaína? estabelece que o interlocutor fumava cocaína. E não adianta só
negar: quem responder eu não parei de cheirar cocaína não conseguirá se livrar da acusação de ter cheirado
cocaína por algum tempo. Será preciso cortar a conversa de outro jeito, mais contundente: Pera aí! O quê disse?
Eu nunca cheirei cocaína na minha vida, pare de falar bobagem!

(16) Bin Laden (não) morreu. (pressupõe: ele vivia)


Fonte: semântica do verbo (só viventes podem morrer)

(17) Luís (não) voltou a beber. (pressupõe: ele bebia e tinha parado)
Fonte: voltar a, recomeçar a, reatar com etc. significam que isso já foi feito antes

(18) Eu percebi que estava sem dinheiro. (pressupõe: eu estava sem dinheiro)
Fonte: perceber que, descobrir que, dar-se conta de, saber que tomam fatos como argumento interno

(19) Estou feliz por você ter vindo. (pressupõe: você veio)
Fonte: expressões da reação emocional de um falante a um acontecimento tomam como argumento interno um
fato. Assim é com Lamento que Pedro tenha sido demitido, Sinto muito pela morte de seu gato, Adorei sua
visita, Não gostei de ele ter telefonado pra casa a essa hora, Detestei o fim do filme etc.

(20)a. Quando você terminou seu doutorado? (pressupõe: você terminou seu doutorado)
b. Onde você comprou esse vestido? (pressupõe: você comprou esse vestido)
c. Por que João parou de fumar? (pressupõe: João parou de fumar)
d. Pra que você quer um carro? (pressupõe: você quer um carro)
Fonte: adjuntos adverbiais exprimem “circunstâncias” (local, tempo etc.) de um acontecimento (evento), por isso
seu uso assume que esse acontecimento é fato. Vale para subordinadas adverbiais:
e. Quando João chegou, eu estava em casa. (pressupõe que João chegou e que eu estava em casa)
f. Sempre que João sai, Maria dorme. (pressupõe que João sai e afirma que Maria dorme)
g. Estudei a fim de passar na prova. (pressupõe: estudei)

Pressuposições desencadeadas ou subordinadas temporais


(21) P a. Maria já estava dormindo quando José chegou.
a'. Maria ainda não estava dormindo quando José chegou.
a''. Maria já estava dormindo quando José chegou?
a'''. Se Maria já estava dormindo quando José chegou, então Maria dorme cedo.
Q. José chegou. (P pressupõe Q)
(22) Se eu fosse rica, moraria no Leblon. (pressupõe: eu não sou rica)
Fonte: condicionais apresentam como “antecedente” (a parte entre se e então) uma fantasia, uma hipótese, que,
caso se realizasse, teria certamente como consequência a segunda parte, a que viria depois de então, conhecida
como “consequente”. Normalmente os antecedentes apresentam uma situação alternativa à realidade, portanto,
algo que não é um fato.

Pressuposições desencadeadas por comparativas


(23) P a. Ele está bem mais pobre do que eu.
a'. Ele está bem mais pobre do que eu.
a’’. Ele está bem mais pobre do que eu?
á’’. Se ele está bem mais pobre do que eu, ele não ter como pagar a dívida.
Q. Eu estou pobre (P pressupõe Q)
(24) Porto Alegre é bem mais longe do Rio que São Paulo pressupõe _______________________
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Predicados factivos: certos predicados só podem ocorrer com complementos associados a um valor de verdade:
(25) a. Maria descobriu/ pediu/ quis saber/ sabe o meu número de telefone.
b. *Maria acredita em/ duvida de/ assume/ comprova o meu número de telefone.
c. *O meu número de telefone é verdadeiro / falso.
d. Maria acredita em / duvida de/ assume/ comprova a minha história.
e. A minha história é verdadeira / falsa.
f. Alice descobriu a que horas o metrô para de funcionar.
g. *Alice assume/ rechaça/ lamenta a que horas o metrô para de funcionar.
h. O fato de o metro parar de funcionar às 23h incomoda Maria.
i. *O fato de o metro parar de funcionar às 23h é verdadeiro/é falso.

Gatilhos são expressões linguísticas que acionam conteúdos pressupostos; se o falante não quer veicular esses
conteúdos, precisa deixar de lado os gatilhos, usando formas alternativas, equivalente ou sinônimas, que não
constituam gatilhos pressuposicionais, para se expressar.
Existem sentenças entre as quais há tanto acarretamento quanto pressuposição:
(26)Q: Foi João quem escreveu o livro.
P: Alguém escreveu o livro.
Q acarreta P e Q pressupõe P
Existem sentenças entre as quais há acarretamento, mas não pressuposição:
(27)Q: João ama Maria.
P: Maria é amada por João.
Q acarreta P mas Q não pressupõe P
Existem sentenças entre as quais há pressuposição, mas não há acarretamento:
(28)Q: Antes de sair, João checou se a janela estava fechada.
P: A janela estava fechada.
Embora Q não acarrete P, Q pressupõe P
O acarretamento e a contrariedade dependem do valor de verdade da primeira sentença;
a pressuposição, não.

Exercícios:
Indique o conteúdo pressuposto e seu gatilho nas sentenças:
(1) Cristiano Ronaldo lança seu filme em Londres.
(2) Foi a mesma equipe responsável pelos filmes de Senna e Amy Winehouse que cuidou do documentário
estrelado por Cristiano Ronaldo.
(3) Diretora de escola salva 58 crianças de desastre em Mariana.
(4) Lima Duarte vira editor do Meia Hora por um dia.
(5) Ator revela que gostaria que seu personagem de “I love Paraisópolis” se casasse.
(6) Por que você comeu o meu doce?
(7) Morte de menino de 7 anos é confirmada em Mariana.
(8) Apple vai continuar revistando a bolsa de funcionários, diz Justiça dos EUA.
(9) Do underground ao palco principal, drag queens conquistam espaço na cena cultural de BH.
(10) Conservadores vencem na Croácia.
(11) Neymar: "Estou feliz pelos gols".
(12) Moradores tentam recuperar pertences após tragédia em Minas.
(13) Guerrilha colombiana do ELN disposta a libertar sequestrados
(14) Jennifer Lawrence esclarece que lava as mãos após usar o banheiro e posta vídeo zoando rumores
(15) Dois novos ataques com faca em Jerusalém.
(16) Cunha diz que vai provar que não mentiu na CPI da Petrobras

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III- Frege: Sentido e Referência

Se alguém lhe disser: foi feito um filme com o melhor jogador de futebol todos os tempos, você vai
entender que o filme é sobre... Cristiano Ronaldo, Pelé, Messi, Maradona, Neymar, Figo, Garrincha, Zidane,
Roberto Baggio ou outro? Será que todos os seus colegas vão achar a mesma coisa?

Nos anos de chumbo, qualquer crítica ao governo estava proibida. Para escapar
à fúria dos censores, que viravam do avesso qualquer obra sua, Chico criou a
personagem Julinho da Adelaide, um sambista ingênuo do morro. Canções
assinadas por Julinho da Adelaide passavam facilmente pelo crivo da censura.
Só na época da abertura viria a público que Julinho da Adelaide e Chico Buarque
de Holanda eram a mesma pessoa.

(1) Julinho da Adelaide é autor de “Acorda Amor”. (sucesso da MPB de 1974)


(2) Na década de 70, as músicas de Chico Buarque eram censuradas, mas as de Julinho da Adelaide passavam
pelos censores.
(3) Mario Prata entrevistou Julinho da Adelaide em 1970 e afirmou que Julinho, ao contrário do Chico, não era
tímido.
(4) O Chico já havia topado e marcado [a entrevista] para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Chico
subiu. Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho.
(5) Chico Buarque era Julinho da Adelaide. (mesma referência)

O que acontece quando há substituição de um nome pelo outro?


(1a) Chico Buarque é autor de “Acorda Amor”. (sucesso da MPB de 1974)
(2a)# Na década de 70, as músicas de Julinho da Adelaide eram censuradas, mas as de Julinho da Adelaide
passavam pelos censores.
(3a) #Mario Prata afirmou que Chico, ao contrário do Chico, não era tímido.
(4a) #Quando [Chico] desceu, não era mais o Julinho. Era o Julinho.
(5a) Julinho da Adelaide era Chico Buarque. (mesma referência)
(5b) #Julinho da Adelaide era Julinho da Adelaide.

Por que não se pode trocar Julinho da Adelaide por Chico Buarque em qualquer contexto, com o mesmo efeito,
se estamos tratando da mesma pessoa? Os censores que deixavam passar as músicas de Julinho mas não as
de Chico se comportariam do mesmo modo se soubessem que se tratava do mesmo compositor?

Dois tipos de equativa: identificacional (mesma referência, como (5)) e predicativa (6):

(6) Chico é um compositor popular.

Mesma referência, sentidos diferentes:


(i) tanto para x(x – 4) = 0 quanto para x2 – 4x = 0, x =2
(ii) [[ Está nevando no Rio]] e [[ Eu nasci hoje]] têm como referência a FALSIDADE
(iii) {x | é um bípede naturalmente desprovido de penas} = {x | é um é um animal racional}
(iv) A estrela d‘alva é a estrela Vésper.

Diversos sentidos para a mesma referência: Lula é ...


... o presidenciável com maior intenção de voto para 2018 (IBOPE)
... a versão piorada do São Jorge do Bordel (José Tomaz)
... o chefe do petrolão (Ronaldo Caiado)
... o trigésimo quinto presidente do Brasil
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... o pai de Fábio Luís Lula da Silva, Luís Cláudio, Marcos Cláudio Lula da Silva, Lurian Cordeiro Lula da Silva e
Sandro Luís
... o líder operário do ABC paulista
... o dono de 27 títulos de doutor Honoris Causa
...o candidato que não tem competência nem pra falar português direito, quanto mais pra governar
...o torcedor mais fanático do Corinthians
...o sapo barbudo
...o político de 9 dedos que rouba mais do que os que tem 10
... o palestrante que proferiu a conferência de abertura do CLACSO (Conselho Latino-americano de Ciências
Sociais, órgão deliberativo da ONU) em 2015

A referência da descrição definida ‘o presidente do Brasil’ muda ao longo do tempo:

(e)
(f)
atual 2003-2011 1995-2003 1930-1945 1979-1985

Para que sentido/conceito?


Sentido 1 de ‘o presidente do Brasil’ = “Chefe de Estado da República do Brasil” (qualquer das opções acima)
Sentido 2 de ‘o presidente do Brasil’ = “pessoa eleita para exercer mandato no Poder Executivo” (exclui
Figueiredo)

Exercícios:
(1) dê dois sentidos/conceitos para a mesma referência:
(a) Dilma; (b) Rio de Janeiro; (c) UFRJ
(2) Dê a referência comum às intensões / aos conceitos:
(a) revolução de 1964, golpe militar
(b) maior mamífero do planeta, gigante do mar, animal dentro do qual o profeta Jonas viveu
(c) uma compulsiva colecionadora de jóias, a filha famosa de Sara Viola Rosemond Warmbrodt, a agraciada de
2001 com a medalha Presidential Citizens Medal, a atriz principal de Cleópatra (1963), uma grande amiga do
cantor pop Michael Jackson, a esposa de Richard Burton.

O problema do valor de verdade em sentenças encaixadas:

(7) a. Édipo queria desposar Jocasta.


b. Jocasta era a mãe de Édipo.
c. Édipo queria desposar sua mãe.

Tem algo de errado com (7c), apesar de aceitarmos (7) e (7b) como verdadeiras, já que Édipo não sabia que
Jocasta era a sua mãe.

Enquanto a referência de expressões como ‘Jocasta’ ou ‘o trigésimo quinto presidente do Brasil’ são o indivíduo
para que cada uma delas aponta no mundo, a referência de uma sentença declarativa é o seu valor de verdade,
falso ou verdadeiro. Assim, a referência de (7a) e a de (7b) são a verdade. Mas, como (7c) não parece ser uma
descrição justa daquilo que Édipo desejava, não sabemos qual a sua referência. Vejamos um par de sentenças:

(8) a. O Papai Noel vai trazer uma bicicleta para Jorginho.


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b. Jorginho acredita que o Papai Noel vai lhe trazer uma bicicleta.

As pessoas que não acreditam em papai Noel tenderiam a dizer que (8a) é uma sentença falsa (porque são os
pais de Jorginho que vão lhe dar uma bicicleta no Natal, não o bom velhinho), mas e quanto a (8b)? Não parece
tão fácil dizer que a sentença é falsa em decorrência de não ser o Papai Noel quem de fato traz o presente. Se
Jorginho realmente acredita que a bicicleta vem de Papai Noel, tendemos a dar (8b) como verdadeira. Isso indica
que a verdade de uma sentença complexa não depende da verdade da oração interna, da encaixada (o
complemento de ‘acreditar’). Estamos diante de um contexto opaco: entendemos a ideia da oração encaixa, mas
não exigimos que seja verdadeira, bastando que ela represente uma crença de Jorginho para que toda a (8b)
seja verdadeira. Ou seja: a oração encaixada, a parte que vem depois da conjunção ‘que’, ‘o Papai Noel vai lhe
trazer uma bicicleta’, tem sentido, mas não tem referência. Para Frege, ‘Papai Noel’ é uma expressão sem
referência, pois não aponta para nenhum indivíduo existente no mundo, mas tem sentido, pois sabemos bem
qual figura o representa entre as opções abaixo:

Ao separar sentido de referência, Frege cria o conceito de “expressão saturada”. ‘Chico Buarque’ é uma
expressão saturada, pois tem sentido (o conceito, a ideia que temos desse indivíduo) e referência (aponta para
uma pessoa no mundo). Já ‘Saci Pererê’ tem sentido (menino pretinho de uma perna só e barrete vermelho que
faz diabruras), mas não têm referência (não aponta para ninguém no mundo real). Toda sentença tem sentido.
Para chegarmos à referência de uma sentença, precisamos fazer com que os argumentos, que são as
expressões saturadas, saturem os predicados, que só têm sentido, mas não referência (predicados são
insaturados). Por exemplo, ‘correr’ não aponta para nada no mundo, mas sabemos que ideia é essa: é um
movimento veloz sobre superfície terrestre, diferente de andar ou nadar ou voar. ‘Correr’ é, como todo e qualquer
predicado’, uma expressão insaturada. Mas quando damos a ele o número de argumentos requerido, ela se
torna saturada. Não podemos dizer se ‘ correr’ é falso ou verdadeiro, a não ser com respeito a alguém. ‘Ana está
correndo’ sim, será uma expressão saturada, com sentido (o de que esse indivíduo de nome Ana se movimenta
rapidamente sobre superfície terrestre agora) e referência (verdade se de fato houver essa situação no mundo,
falsidade se não houver). Portanto, se o contexto não for opaco, isto é, se estivermos falando de uma sentença
principal, e não de complementos oracionais de verbos como ‘acreditar’, ‘querer’, ‘procurar’, será o argumento
que vai satura o predicado: de certo modo, a referência do argumento contaminará o predicado. Assim sendo,
temos uma composicionalidade: temos partes de uma sentença que são saturadas e partes que são insaturadas,
até que todas se combinem. Por outro lado, se o argumento não tiver referente, ele não terá a capacidade de
saturar o predicado, e não poderemos decidir se a sentença é verdadeira ou falsa. Vamos comparar a reação da
turma diante das seguintes afirmações da professora:

(9) a. O elevador da Faculdade de Letras está quebrado.


b. A escada rolante da Faculdade de Letras está quebrada.

O que a teoria de Frege prediz é que a turma saberá dizer sem hesitação que (9a) é falsa ou verdadeira,
dependendo da situação do elevador no dia desse proferimento. Tendo referente, o argumento ‘o elevador da
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Letras’ irá saturar o predicado de um lugar ‘está quebrado’, que, sem o argumento, tem sentido (significa uma
coisa diferente de ‘está em funcionamento’), mas não tem referente. Já em (9b) ‘a escada rolante da Letras’ tem
sentido (entendemos o conceito), mas não tem referente, pois não existe isso no nosso prédio. Assim, ‘a escada
rolante da Letras’ é uma expressão insaturada, sem capacidade de saturar o predicado ‘está quebrada’. Toda a
sentença (9b) é insaturada, e não podemos dizer se ela é falsa ou verdadeira. A reação seria de espanto: “Quê?!
Mas de que você está falando? Não temos escada rolante na Letras!!”

Expressões (in)saturadas e saturação de predicados:


Devemos a Frege o conceito moderno de combinação entre predicado e argumento (s). Predicados são
insaturados, pois têm conceito, mas não referente; só quando recebem todos os argumentos requeridos,
ciclicamente, é que formar uma sentença saturada (verdadeira ou falsa). Um argumento pode saturar um
predicado se, além do sentido, tiver um referente. O predicado é alimentado com um argumento por vez:

comprou
predicado de 2 lugares ou de valência 2(precisa de 2 argumentos)
+ o livro
expressão saturada
= comprou o livro
= predicado de 1 lugar ou de valência 1(precisa de mais um argumento)
João +
expressão saturada
= João comprou o livro
um predicado saturado ou de valência zero (não precisa de mais nenhum argumento)
= sentença com sentido e referência (falsidade ou verdade)

Exercícios:
A- Em cada sentença, separe a parte saturada da insaturada, recortando argumentos e predicados com as
diversas valências:
i. Maria viajou de Belo Horizonte para São Paulo.
ii. Pedro telefonou.
iii. Sócrates é mortal.
iv. Jocasta é a mãe de Édipo.
v. Édipo furou os próprios olhos.
vi. Diretora de escola salva 58 crianças de desastre em Mariana
vii. Sertanejo Marrone gasta mais de R$ 1,5 milhão em festa
viii. Tragédia em Minas: equipes levam água e mantimentos aos isolados

B- Dê exemplos de predicados de um lugar, de dois lugares e de três lugares.

Pressuposição de existência e unicidade em argumentos

(10) Aqueles alunos (não) faltaram à aula (pressupõe: existem esses alunos)

Uma declaração acarreta a referência do argumento sobre o qual se predica. Quando uma asserção é feita,
pressupõe-se obviamente que os nomes próprios usados, simples ou compostos, têm referência. Na asserção
de que 'Kepler morreu na miséria', pressupõe-se que o nome Kepler designa alguém existente. (Frege, 1892
(1978: 75)). Nomes próprios (Kepler), descrições definidas (‘o astrônomo, matemático e astrólogo alemão do
século XVII que formulou as três leis fundamentais da mecânica celeste’) e pronomes (‘ele’) são usados para
representar diretamente um indivíduo existente no mundo, isto é, para referir.

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A proposição P pressupõe a proposição Q se, e somente se todos os membros da família de P acarretarem a


verdade de Q. Família de uma proposição (P): todas as forças ilocutórias em que ela pode vir revestida:
asserção, interrogação, negação, restrição de condicional (se P então...), avaliação de P (lamento / adorei / é
pena/ é ótimo que P) e clivagem (Não foi/ Foi x que P).

(P) Kepler morreu na miséria  Existiu uma pessoa de nome Kepler


(Q) Kepler não morreu na miséria  Existiu uma pessoa de nome Kepler
(R) Kepler morreu na miséria?  Existiu uma pessoa de nome Kepler
(S) Se Kepler morreu na miséria, então ele sofre uma grande injustiça   Kepler
(T) Não foi Kepler quem morreu na miséria  Existiu uma pessoa de nome Kepler
(U) É lamentável que Kepler tenha morrido na miséria   Kepler

Segundo Frege:
(i) expressões referenciais e certas subordinadas (temporais) carregam a pressuposição de
que elas de fato referem
(ii) uma sentença e sua contraparte negativa compartilham o mesmo conjunto de pressuposições
(iii) para que uma asserção sobre um referente ou uma sentença complexa, com subordinada adverbial temporal,
seja verdadeira ou falsa, suas pressuposições devem ser verdadeiras ou estar satisfeitas.

Não se sabe como julgar a verdade de uma sentença que tenha um argumento sem existência. Como decidir se
um particular que não existe está ou não dentro de um conjunto?

(11) Papai Noel está aguardando o médico na sala de espera. (# Não existe Papai Noel)
(12) O médico sabe que Papai Noel está esperando por ele. (# Não existe Papai Noel)

A. A pressuposição de unicidade (artigo definido)

Ao escolher usar o artigo definido (em vez do indefinido), o falante se compromete com um conteúdo
pressuposicional, o de que ele v ai fazer referencia a algo que existe, que é único e familiar. O indefinido não
carrega tias pressuposições. Veja o texto de Luis Fernando Veríssimo com esses olhos:

Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de autoestima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago
do seu castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e
constituir lar feliz no teu lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas,
criar os nossos filhos e seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho
acebolado e de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:
- Eu, hein?... nem morta!

Familiaridade: artigo definido versus indefinido:


Na primeira vez em que se fala de um lugar ou de um indivíduo, quando esse indivíduo ou lugar é introduzido na
história, usa-se o artigo indefinido: uma vez, uma terra distante, uma princesa linda, uma rã...
Quando o autor retoma a personagem ou local, quando menciona o que já foi apresentado, já é familiar para o
leitor, ele usa o artigo definido: a rã, esta rã asquerosa, a princesa.

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Unicidade: artigo definido versus indefinido:


(A princesa saboreava) pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo
vinho branco... Ela não tomou nessa noite o único vinho branco fino que existia no mundo. Havia mais, além do
que ela bebeu nessa ocasião.

Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu
castelo era relaxante e ecológico...
O maravilhoso lago do seu castelo era o único lago junto ao castelo da princesa.

O artigo definido, além da pressuposição de existência, é gatilho de uma pressuposição de unicidade. Compare
as interpretações:

(13) a. Um gato entrou. O gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)


b. O gato entrou. Um gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)
c. Um gato entrou. Um gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)
d. O gato entrou. O gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)

(14) a. Um professor está dentro da sala e um professor está fora da sala. (contradição?)
b. O professor está dentro da sala e o professor está fora da sala. (contradição?)

(15) a. Maria precisa ver um médico. (ela precisa de cuidados médicos - qualquer profissional serve)
b. Maria precisa ver o médico. (ela não precisa de cuidados médicos – ela está em perfeita saúde, mas tem
uma mensagem secreta urgente para esse médico, confiada a ela por um espião da resistência francesa na II
Grande Guerra)

Voltemos ao exemplo (9b): A escada rolante da Faculdade de Letras está quebrada.


Para Frege, já que não existe uma escada rolante na Letras, há uma falha de pressuposição nessa sentença.
Expressões definidas como ‘a escada rolante da Letras’ carregam pressuposição de existência e unicidade. Já
que essa pressuposição não é satisfeita, não vamos reagir a essa sentença e do mesmo modo que reagimos a
outra em que a pressuposição seja satisfeita: (9a): O elevador da Faculdade de Letras está quebrado.
A falha da pressuposição de unidade causa efeitos semelhantes. Se, numa sala com trinta cadeiras e uma única
mesa, o professor pede aos alunos, sem destacar nenhuma delas com gestos nem olhares: ‘Por favor, coloquem
a cadeira para fora da sala’, os alunos não saberão como atender a esse pedido. Eles vão perguntar: ‘Que
cadeira?’. Mas quando o professor pedir: ‘Por favor, levem a mesa para fora’, não haverá desconforto, pois há só
uma mesa na sala, e a pressuposição de unicidade foi satisfeita. Vejamos a sentença (16), proferida hoje,
quando a França é uma república:

(16) O rei da França é calvo.

Para Frege, a sentença (16) pressupõe a existência do rei da França (que exista um rei na França) e sua
unicidade (que ele seja o único rei da França) e afirma desse indivíduo que ele é calvo. Porém, há falha de
pressuposição: já que a França é uma república, não há um rei que a governe hoje. Sem referente, ‘o rei da
França’ permanece uma expressão insaturada. Daí a sentença inteira permanecer insaturada, já que o predicado
‘é calvo’, de um lugar, não recebe um argumento saturado que possa lhe transmitir referência. Assim, (16) não é
nem falsa nem verdadeira, mas causa estranheza. A reação do falante à falha de pressuposição seria algo
como: “Mas do que você está falando? A França não tem rei!” Não caberia discutir se um indivíduo que não
existe pertence ou não à classe dos calvos. Muito diferente seria a reação a uma declaração como:

(17) O presidente da França é calvo.


Em (17), a pressuposição de existência da descrição definida ‘o presidente da França’ é satisfeita; a expressão é

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Frege separou sentido de referencia para dar conta de um emaranhado de problemas semânticos tais como o
papel exercido pelas variáveis, epla quantificação e pelos condicionais. Por exemplo:

(18) O quadrado de um número par é par.


(19) Se um número é par, então seu quadrado é par.
(20) x [par (x)  par (x2)](Para todo x, se esse x é par, então o quadrado dele é par.)

Tanto (18) quanto (19) precisam ser lidos como (20): qualquer número pode substituir a variável (x), e temos de
usar o mesmo número em todos os lugares em que a variável aparece. Nessa análise, (18) tem (19) e (20) como
estrutura subjacente. Ora, uma variável não tem um referente fixo, mas tem sentido: podemos substituir x por 2,
4, 8 etc., e as sentenças de (18) e (19) serão sempre verdadeiras. Em (19), precisamos entender que há duas
sentenças, uma funcionando como antecedente e a outra como consequente do condicional, cada uma com uma
lacuna ou valor não saturado (a variável), e que o mesmo número par tem de ser alimentado no antecedente e
no consequente, pois estão ligados. A condicional não é lida como dizendo, por exemplo, que se 8 for par, o
quadrado de 2 será par; vamos de substituir ‘número par’ e a base do quadrado com o mesmo referente: se
usarmos 8 na parte de se..., também usaremos 8 na parte de então...
Vemos de (18) a (20) a representação de uma verdade matemática, indisputável, incontestável. Mas como
chegamos a interpretá-la? Sem separar sentido de referência, teria sido impossível concluir que o conteúdo da
parte iniciada por então... é uma consequência lógica da parte iniciada por se... (ou seja, que não
encontraremos nenhum número par cujo quadrado seja ímpar).

B. Pressuposição de existência

(21) Aqueles alunos (não) faltaram à aula (pressupõe: existem esses alunos)

Uma declaração acarreta a referência do argumento sobre o qual se predica

Quando uma asserção é feita, pressupõe-se obviamente que os nomes próprios usados, simples ou compostos,
têm referência. Na asserção de que 'Kepler morreu na miséria', pressupõe-se que o nome Kepler designa
alguém existente. (Frege, 1892 (1978: 75))

Nomes próprios (Kepler), descrições definidas (o astrônomo, matemático e astrólogo alemão do século XVII que
formulou as três leis fundamentais da mecânica celeste) e pronomes (ele) são usados para representar
diretamente um indivíduo existente no mundo, isto é, para referir.

A proposição P pressupõe a proposição Q se, e somente se todos os membros da família de P acarretarem a


verdade de Q. Família de uma proposição (P): todas as forças ilocutórias em que ela pode vir revestida:
asserção, interrogação, negação, restrição de condicional (se P então...), avaliação de P (lamento / adorei / é
pena/ é ótimo que P) e clivagem (Não foi/ Foi x que P).

(P) Kepler morreu na miséria  Existiu uma pessoa de nome Kepler


(Q) Kepler não morreu na miséria  Existiu uma pessoa de nome Kepler
(R) Kepler morreu na miséria?  Existiu uma pessoa de nome Kepler
(S) Se Kepler morreu na miséria, então ele sofre uma grande injustiça   Kepler
(T) Não foi Kepler quem morreu na miséria  Existiu uma pessoa de nome Kepler
(U) É lamentável que Kepler tenha morrido na miséria   Kepler

Segundo Frege:
(i) expressões referenciais e certas subordinadas (temporais) carregam a pressuposição de
que elas de fato referem

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(ii) uma sentença e sua contraparte negativa compartilham o mesmo conjunto de pressuposições
(iii) para que uma asserção sobre um referente ou uma sentença complexa, com subordinada adverbial temporal,
seja verdadeira ou falsa, suas pressuposições devem ser verdadeiras ou estar satisfeitas.

Não se sabe como julgar a verdade de uma sentença que tenha um argumento sem existência. Como decidir se
um particular que não existe está ou não dentro de um conjunto?

(22) Papai Noel está aguardando o médico na sala de espera. (# Não existe Papai Noel)
(23) O médico sabe que Papai Noel está esperando por ele. (# Não existe Papai Noel)

A. Pressuposição de unicidade (artigo definido)

Era uma vez... numa terra muito distante...uma princesa linda, independente e cheia de autoestima.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu
castelo era relaxante e ecológico...
Então, a rã pulou para o seu colo e disse: linda princesa, eu já fui um príncipe muito bonito.
Uma bruxa má lançou-me um encanto e transformei-me nesta rã asquerosa.
Um beijo teu, no entanto, há de me transformar de novo num belo príncipe e poderemos casar e constituir lar
feliz no teu lindo castelo.
A tua mãe poderia vir morar conosco e tu poderias preparar o meu jantar, lavar as minhas roupas, criar os
nossos filhos e seríamos felizes para sempre...
Naquela noite, enquanto saboreava pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e
de um finíssimo vinho branco, a princesa sorria, pensando consigo mesma:
- Eu, hein?... nem morta!
(Luis Fernando Veríssimo)

Familiaridade: artigo definido versus indefinido:


Na primeira vez em que se fala de um lugar ou de um indivíduo, quando esse indivíduo ou lugar é introduzido na
história, usa-se o artigo indefinido: uma vez, uma terra distante, uma princesa linda, uma rã...
Quando o autor retoma a personagem ou local, quando menciona o que já foi apresentado, já é familiar para o
leitor, ele usa o artigo definido: a rã, esta rã asquerosa, a princesa
Unicidade: artigo definido versus indefinido:
(A princesa saboreava) pernas de rã sautée, acompanhadas de um cremoso molho acebolado e de um finíssimo
vinho branco... Ela não tomou nessa noite o único vinho branco fino que existia no mundo. Havia mais, além do
que ela bebeu nessa ocasião.
Ela se deparou com uma rã enquanto contemplava a natureza e pensava em como o maravilhoso lago do seu
castelo era relaxante e ecológico...
O maravilhoso lago do seu castelo era o único lago junto ao castelo da princesa.

O artigo definido, além da pressuposição de existência, é gatilho de uma pressuposição de unicidade. Compare
as interpretações:

(24) a. Um gato entrou. O gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)


b. O gato entrou. Um gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)
c. Um gato entrou. Um gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)
d. O gato entrou. O gato miou. (o mesmo gato entrou e miou?)
(25) a. Um professor está dentro da sala e um professor está fora da sala. (contradição?)
b. O professor está dentro da sala e o professor está fora da sala. (contradição?)
(26) a. Maria precisa ver um médico. (ela precisa de cuidados médicos - qualquer profissional serve)
b. Maria precisa ver o médico. (ela não precisa de cuidados médicos – ela está em perfeita saúde, mas tem
uma mensagem secreta urgente para esse médico, confiada a ela por um espião da resistência francesa na II
Grande Guerra)
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B- A Semântica da Enunciação

A Semântica da Argumentação tem como principais expoentes Oswald Ducrot e Jean Claude Anscombe. Ela
assume uma perspectiva imanente à língua, propondo que a atividade argumentativa é inerente à atividade
linguística. Sempre que alguém fala, esse alguém está argumentando para conduzir a certa conclusão,
direcionar sentidos, ou seja, a língua serve para orientar argumentativamente. Apresenta-se o argumento A para
fazer com que o interlocutor concluir C. O conteúdo de A é dado como a razão para se crer em C. Os elementos
da gramática de uma língua que marcam a força argumentativa em enunciados são chamados de operados
argumentativos (Ducrot 1987).

Falando em conjunções, fica claro que o valor de verdade de uma sentença não dá conta de como ela será
interpretada em termos de qual é a conclusão C o falante quer seu interlocutor aceite. Vejamos uma tabela de
valor de verdade:

P Q P&Q
V V V
F V F
V F F
F F F

A tabela lógica acima diz que, sempre que as duas orações ligadas pela conjunção aditiva forem verdadeiras, o
complexo todo (o período composto) também será verdadeiro; em todos os outros casos, ou seja, na condição
de que uma ou ambas das sentenças seja falsa, o conjunto (o período composto) será falso. Por exemplo,
vamos considerar que P seja o nome da sentença ‘Dorotheia é mulher’, e Q seja o nome da sentença ‘Dorotheia
é inteligente’. Se P for V (No caso de Dorotheia ser mesmo mulher) e também Q for V (caso Dorotheia seja
mesmo inteligente), será P & Q = V (Será necessariamente verdadeira a sentença ‘Dorotheia é mulher e é
inteligente’). É isso que diz a linha um da tabela. A linha dois da tabela diz que, se Dorotheia for homem, então
‘Dorotheia é mulher e é inteligente’ será uma sentença falsa. A terceira linha diz que, se Dotrotheia for mulher,
mas for burra, ‘Dorotheia é mulher e é inteligente’ será falsa. E a última linha diz que, se Dorotheia não for mulher
nem for inteligente, então ‘Dorotheia é mulher e é inteligente’ será falsa. Essa tabela de verdade serve
indistintamente para todas as sentenças compostas abaixo:

(27) a. Dorotheia é mulher e é inteligente. (P & Q)


b. Dorotheia é mulher, mas é inteligente. (P mas Q)
c. Dorotheia é inteligente, pois é mulher. (Q, pois P)

Embora seja preciso, para assumir qualquer das sentenças em (27), considerar tanto P quanto Q verdadeiras,
isso não diz nada sobre a diferença de significado que há entre elas: (27b) implica que o falante não espera das
mulheres em geral que sejam inteligentes, mas que Dorotheia é uma exceção; já (27c) implica que o falante
acredita que todas as mulheres sejam tipicamente inteligentes, e que a inteligência observada por ele em
Dorotheia decorre naturalmente de seu sexo. Isto é, é perfeitamente claro par qualquer falante de nossa língua
que quem enuncia (27b) e quem enuncia (27c) têm opiniões contrárias sobre a relação entre ser mulher e ter
inteligência. A tabela de verdade não faz essa distinção importante. Em 1989, pela primeira vez, o Brasil teve
uma mulher chefiando o Ministério da Economia. No exercício do cargo, ela participou de um grupo de trabalho
na FIESP (Federação da Indústrias de São Paulo), que era Amato foi também muito criticado por, quando,
terminada a reunião, ao pedirem sua opinião sobre a competência da ministra, ter dito: "Ela é inteligente, apesar
de ser mulher". não haveria protesto se ele tivesse dito algo como (27a) ou (27c).

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Polifonia na conjunção adversativa: a metáfora da balança

Para a semântica da enunciação, ao argumentar, as pessoas


assumem vozes diferentes, favoráveis ou desfavoráveis a uma
conclusão. Assim, o enunciado (27b) se desdobra em dois,
correspondentes às nossas sentenças P e Q da tabela lógica. O
enunciado um (P) é desfavorável à conclusão de que Dorotheia é
competente, mas o enunciado dois (Q) é favorável.
O conjunto todo (P mas Q) favorece a conclusão de que a ministra é
competente. A balança sempre se inclina para o enunciado que é
colocado depois do mas: por estar aí, ele é visto como o de maior peso. Isso quer dizer que quem fala está
pesando os prós e os contras para a conclusão C, e que conclui por C ao apresentar o argumento de E2 como
mais forte que o argumento E1, que levaria à conclusão contrária. Uma voz, a do enunciador um, defende o
argumento desfavorável, e outra voz, a do enunciador dois, defende o argumento favorável. Ganha o favorável.
Esse mas, operador discursivo, que apresenta um argumento desfavorável só para desbancá-lo com um
argumento favorável mais forte, conduzindo à conclusão desejada, é chamado de mas PA, ou de mas parataxe.

Mas PA e mas SN

Mas pode também ligar dois argumentos que estejam na mesma direção argumentativa, mas apresentem forças
diferentes. Nesse caso, e o falante expressa sua discordância do grau de força do primeiro argumento (E1), e
apresenta o segundo argumento (E2) como a descrição mais apropriada. Exemplos:

(28) Einstein não era inteligente, mas brilhante!


E1 = Einstein era inteligente
E2 = Einstein era brilhante

O falante de (28) discorda de E1, por achar que dizer que Einstein era inteligente é pouco: a descrição correta
para Einstein (apresentada como E2) precisa ser mais forte. Observe-se que tanto E1 quanto E2 são
julgamentos favoráveis à pessoa de Einstein. Tanto E1 quanto E2 conduzem a uma mesma conclusão (ambos
equivaleriam a uma resposta afirmativa para a pergunta “Einstein era inteligente?”). Observe-se ainda que a
diferença entre E1 e E2 é apenas a troca do adjetivo (tudo o mais permanece igual). Daí esse mas ser conhecido
como mas SN: opera apenas a troca de um sintagma nominal. Os dois argumentos podem ainda estar na
mesma direção argumentativa sendo desfavoráveis a quem descrevem.

(29) Ela não é feia, é horrorosa!


E1 = Ela é feia.
E2 = Ela é horrorosa.

O falante de (29) discorda de E1, por achar que dizer que certa mulher é feia não lhe faz justiça: na sua opinião,
a descrição correta (apresentada como E2) precisa ser mais forte. Observe-se que tanto E1 quanto E2 são
julgamentos desfavoráveis a essa mulher. Tanto E1 quanto E2 conduzem a uma mesma conclusão (ambos
equivaleriam a uma resposta negativa para a pergunta “João deve sair com ela?”). Observe-se novamente que a
diferença entre E1 e E2 é apenas a troca do adjetivo (tudo o mais permanece igual): estamos diante de um mas
SN. Os dois argumentos estão na mesma direção argumentativa, ambos desfavoráveis àquela que descrevem.
O antagonismo entre E1 e E2 quando temos mas SN não é causado por direções argumentativas opostas, mas
apenas pro diferentes graus de força argumentativa.

Exercícios: classifique o mas nas sentenças abaixo como PA ou SN. Apresente os dois enunciados e a
conclusão a que cada um conduz.

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(1) Av. Vieira Souto com fluxo intenso, mas sem retenções, nos dois sentidos (O Globo, 23/09/2013)
(2) CENÁRIOS-TIM precisará ser vendida no Brasil, mas há comprador? (O Globo, 23/09/2013)
(4) Ele é gay, mas é legal.
(5) Bonitinha, mas ordinária! (Nelson Rodrigues)
(6) Rir de tudo é coisa dos tontos, mas não rir de nada é coisa dos estúpidos. (Erasmo de Rotterdam)
(7) O dinheiro não dá felicidade, mas paga tudo o que ela gasta.... (Millôr Fernandes)
(8) Eu sou firme; você é obstinado; mas ele é teimoso como uma mula. (Russel)
(9) É claro que uma relação platônica é possível; mas só entre marido e mulher.
(10) Devo tudo a minha mãe, mas já estou negociando.
(11) A democracia neste país é relativa, mas a corrupção é absoluta. (Paulo Brossard)
(12) A corrupção não é uma invenção brasileira, mas a impunidade é uma coisa muito nossa. (Jô Soares)
(13) Anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor. (Millôr)
(14) Quem perde seus bens perde muito; quem perde um amigo perde mais; mas quem perde a coragem perde
tudo. (M. de Cervantes)
(15) “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” (Voltaire nunca disse
isso)
(17) Nunca comece uma briga, mas sempre a termine.
(18) Ela não anda, mas desfila.

Conjunções

Em 10/12/2015, os jornais noticiaram um episódio de grande repercussão, ocorrido na noite anterior. A ministra
Katia Abreu e o senador José Serra estavam na casa de um amigo comum. Aproximando-se da roda em que a
ministra conversava com outros senadores, Serra disparou: “Kátia, dizem por aí que você é muito namoradeira".
A ministra contou que, sentindo-se ofendida na honra, jogou seu vinho na cara de Serra e lhe respondeu: "Você
é um homem deselegante, descortês, arrogante, prepotente. É por isso que você nunca chegará à Presidência
da República. E, de mais a mais, nunca traí ninguém na minha vida. Nunca lhe dei esse direito nem essa
ousadia. Por favor, saia dessa roda, saia daqui imediatamente".

Exercícios:

I- Considerando os fatos expressos por P e Q, dê forma aos enunciados abaixo, construindo sentenças que os
relacionem de formas diversas. Faça os ajustes requeridos por cada conjunção para que o período composto
fique bem formado:

P = José Serra chamou Kátia Abreu de namoradeira.


Q = Kátia Abreu jogou vinho na cara de Serra.

(1) P mas Q
(2) Q mas P
(3) Q porém P
(4) Q entretanto P
(5) Tanto P que Q
(6) Nem P nem Q
(7) Q, pois P
(8) Porque P, Q
(9) Q porque P
(10) Q, contudo P
(11) Quanto mais Q, mais P
(12) Se Q, então P

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(13) Se P, então Q
(14) Quando P, Q
(15) Após P, Q
(16) P, apesar de Q
(17) P, consequentemente Q
(18) Uma vez que P, Q
(19) P, a fim de que Q
(20) P, a menos que Q

II- Entre as sentenças que você elaborou no exercício anterior, escolha uma que demonstre claramente
que quem a enuncia está a favor de Serra, e outra que indique que seu enunciador simpatiza com Kátia Abreu.
Descreva a relação que cada uma das conjunções escolhidas cria entre os fatos.

Um pouco versus pouco

Tenho sede (Gil) Muito e do pouco (Zé Ramalho - Oswaldo


Traga-me um copo d'água, tenho sede
Montenegro)
(...)
E essa sede pode me matar É muito quadro pr'uma parede
Minha garganta pede um pouco d'água É muita tinta pr'um só pincel
E os meus olhos pedem teu olhar É pouca água pra muita sede
(...)
Muita cabeça pr'um só chapéu

Todo Camburão Tem um Pouco de Navio Muita cachaça pra pouco leite
Negreiro (O Rappa) Muito deleite pra pouca dor
(...)
É muito feio pra ser enfeite
É mole de ver Muito defeito pra ser amor
Que para o negro
Mesmo a aids possui hierarquia É muita rede pra pouco peixe
Na África a doença corre solta Muito veneno pra se matar
E a imprensa mundial Muitos pedidos pra que se deixe
Dispensa poucas linhas Muitos humanos a proliferar
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer
Figurinha do cinema Muito Gelo e Pouco Whisky (Wesley Safadão)
Comparado, comparado
Ao que faz com qualquer Diz que ia me pegar
Figurinha do cinema E hoje tinha sacanagem
Ou das colunas sociais Que era maluca, que era da malandragem
Mas na hora "h", virxii
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro Tô vendo que você é muito gelo e pouco whisky
(...)
Todo camburão tem um pouco de navio negreiro

Exercícios:

Examinando as letras de canções acima, especialmente quanto ao uso das expressões um pouco / pouco, qual
discurso vai na direção da falta de algo, e qual discurso vai na direção da presença de alguma coisa (mesmo que
essa coisa esteja em baixa quantidade)?

Exercícios:

I- Dê a conclusão para a qual o operador argumentativo orienta

(1) Grifar é forma de estudo pouco eficiente.


(2) São notícias pouco animadoras.
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(3) Você acha que dorme pouco?


(4) Antes de viajar, eu preciso dormir um pouco.
(5) O produto está um pouco caro.
(6) ‘É muito pouco para ele', diz irmã de professora sobre pena de 16 anos e 8 meses dada ao assassino.
(7) Empresas investem pouco em condições de acessibilidade .
(8) Entrada de estrangeiros pouco qualificados divide governo.
(9) Ponha um pouco de arte para sua vida.
(10) “É mais fácil dirigir de madrugada porque tem pouco movimento, mas é muito mais perigoso” (motorista de
ônibus)
(11) Crianças com doença celíaca crescem pouco.
(12) Brasil ainda investe pouco em ensino superior, avalia OCDE.

II- Nas sentenças acima, substitua pouco por um pouco e vice-versa. E agora? A conclusão continua sendo a
mesma?

Exemplo: “Esse mignon está um pouco duro.”


Argumentação contra o consumo da carne: isso dito pela esposa ao marido, que indicou a ela os restos de
refeições anteriores estocados na geladeira como o que tem para o jantar, é uma argumentação contrária a que
se consuma essas sobras na refeição que estão por fazer, pois diz que ao grau de rigidez é considerável.
Após a troca do operador argumentativo: “Esse mignon está pouco duro.”
Argumentação a favor do consumo da carne: isso dito pelo marido à esposa, como resposta à proposta dela de
que se jogue fora as sobras e se peça comida a domicilio, pode entrar numa argumentação contrária a que se
gaste dinheiro, e favorável a que se coma as sobras de filé, pois diz que ao grau de rigidez é desprezível, e,
portanto, suportável.

A Negação

Para a semântica formal, a negação é um operador que inverte o valor de verdade da sentença. Por exemplo,
numa situação em que a referência de ‘Está chovendo’ for a verdade, a referência de sua negação (‘Não está
chovendo’) será necessariamente a falsidade. Quando, pelo contrário, a referência de ‘Está chovendo’ for a
falsidade, a referência de sua negação (‘Não está chovendo’) será a verdade. Mas, como já vimos, o valor de
verdade não informa nada sobre a direção argumentativa. Numa perspectiva como a da semântica enunciativa, a
negação expressa a discordância de um dos enunciados. Portanto, devemos considerar o tema em debate e a
conclusão a que o enunciador quer que seu interlocutor chegue para entender melhor essa operação.

Caso 1: negação descritiva

Ao sair de casa num dia muito bonito, a caminho do trabalho, João olha para o céu e comenta com o porteiro do
seu prédio:

(1) Não há nenhuma nuvem no céu.

Quem proferiu essa sentença acabou de descobrir essa qualidade do dia. Não há qualquer debate em
andamento, não houve nenhum comentário anterior que tenha apresentado um enunciado de que essa pessoa
pudesse discordar. Esse tipo de negação é chamado de “negação descritiva”. Em lugar de ‘Não há nenhuma
nuvem no céu’, o falante poderia ter dito ‘O céu está azul’.

Caso 2: negação metalinguística

Ao provar o feijão, o marido diz:

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(1) O feijão está salgado.

Ao que a esposa retruca:


(2) O feijão não está salgado. Está como sempre. Você é que está com a boca ruim.

Ao enunciar (2), a esposa expressa seu desacordo com o enunciado (1). Esse tipo de negação é chamado de
“negação metalinguística”. Observe-se que não é preciso que haja pessoas em carne e osso, distintas,
debatendo. Num outro cenário, a cozinheira, preparando o almoço, pode desconfiar de que tenha colocado sal
demais da conta, e pensar (1). Ao provar, ela pode descobrir que estava enganada, que a dosagem do sal está
correta, e dizer o enunciado (2) em pensamento para expressar que sua suspeita não foi confirmada. A
concepção de negação aqui é polifônica, ou seja, há várias vozes presentes em cada pedaço do discurso, e elas
nem sempre concordam uma com a outra.

Caso 3: negação polêmica – a negação da pressuposição

Um enunciado com conteúdo pressuposto é tratado na semântica da enunciação como se desdobrando em


vozes ou enunciados distintos. Por exemplo, temos dois enunciados em (1):

(1) João parou de fumar.


E1 = João fumava.
E2 = João parou de fazer isso.

Pode haver discordância tanto com o primeiro quanto com o segundo enunciado. Entretanto, essa discordância
só pode ser expressa pela negação do enunciado complexo, assim:

(2) João não parou de fumar.

Em (2), a negação pode estar incidindo tanto sobre E2...


E1 = João fumava.
E2 = João não parou de fazer isso.

... o que vai gerar uma negação metalinguística, quanto a negação pode incidir sobre E1...

(2) João não parou de fumar.


E1 = João não fumava.
E2 = João parou de fazer isso.

... formando uma negação mais forte, porque, recusando E1, não é possível concordar com E2. Era
perfeitamente possível aceitar E1 e recusar E2; mas o contrário não dá. A negação de E1 impede que se efetive
a aceitação de E2. Essa negação do conteúdo pressuposto, mais forte, ao impedir a aceitação do outro
enunciado, é chamada de “negação polêmica”.

Escalas argumentativas: Até / Nem mesmo

‘Até’ tem propriedades muito peculiares. Se alguém teve insônia e ficou acordado das 4h até às 7h, a qualquer
momento dentro desse intervalo, digamos, por exemplo, às 5h40min, essa pessoa estava acordada. O que vale
até às 7h vale continuamente entre 4h e 7h. Mas é possível não mencionar a hora inicial da insônia, bastando
dar a hora final da insônia após ‘até’: ‘Eu fiquei acordada até às 7h’. ‘Até’ precede o nome do ponto final de
trajetórias não só tempo, mas também no espaço. Se ‘João empurrou o carro do quilômetro 37 até o quilômetro
39 da estrada’, então ele permaneceu empurrando o carro por cada fração dos 2 quilômetros compreendidos
entre o ponto inicial e o final desse trajeto. Posso expressar isso nomeando apenas o ponto final do trajeto
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imediatamente após ‘até’: ‘João empurrou o carro até o quilômetro 39 da estrada’. A incorporação de toda a
trajetória, ainda que apenas o ponto final seja mencionado sem seguida a ‘até’, ocorre também na escala
argumentativa. Comparemos as duas sentenças a seguir:

(i) Maria faltou à aula.


(ii) Até Maria faltou à aula.

A sentença (i) fala apenas sobre Maria. Ela seria verdadeira se todos os demais alunos tivessem comparecido
àquela aula, e Maria fosse a única ausente. Mas (ii) é diferente: ela nos diz que todos os alunos faltaram, não
apenas Maria. E ainda fica subentendido que Maria era a aluna que menos esperávamos que faltasse a aula.
Como a inserção de uma palavrinha como ‘até’ na sentença pode fazer tanta diferença? Para a semântica da
enunciação, ‘até’ é um operador argumentativo que introduz uma escala. Essa escala é uma ordem contínua,
organizada em graus. Por exemplo, digamos que a turma de Maria seja composta por 6 pessoas: João, Pedro,
Marcelo, Laura, Maria e Bianca. Até hoje, Maria nunca faltou a uma aula sequer. Por isso, ela é a aluna que o
professor menos espera que falte. Maria nunca falta. Pedro é assíduo, mas já faltou certa vez. Laura falta
razoavelmente. Então uma véspera de feriado seria propícia para mais uma falta. Porém, Laura vem mais à aula
que Marcelo; e Marcelo é mais assíduo que Bianca. João mais falta do que vem. Com esse conhecimento,
podemos ordenar os alunos conforme nossa expectativa de que faltassem na aula em questão, que é uma
véspera de feriado, chegando ao seguinte arranjo:

ao menos provável que falte Maria


Pedro
Laura
Marcelo
Bianca
do mais provável que falte João

A escala acima mostra os alunos da turma ordenados segundo o grau de expectativa de que faltassem à aula.
Depois de ‘até’, temos apenas um aluno nomeado, Maria, que é aquela que menos esperamos que faltasse.
Dado que mencionamos o ponto final dessa trajetória metafórica, estamos incluindo todos os demais como
ausentes da aula, assim como em ‘fiquei acordado até às 7h’ entendemos que a insônia se estendeu das 4h até
as 7h, e não ocupou apenas um instante. Em outras palavras, se até o que menos provavelmente faltaria faltou
hoje, que dirá daqueles com maior probabilidade de faltar?
Outro operador argumentativo escalar é ‘nem mesmo’. Comparemos:

(iii) João não faltou à aula.


(iv) Nem mesmo João faltou à aula.

A sentença (iii) afirma apenas que João estava presente em certo dia do curso. Pode ser que todos os outros
alunos tenham faltado. De (iv), porém, entendemos que ninguém faltou: nessa aula, todos estiveram presentes.
Como a presença de ‘nem mesmo’’ constrói essa negação tão abrangente? Tomando a mesma escala que
construímos para as chances de os alunos da turma faltarem, constatamos que ‘nem mesmo’ precede o nome
do aluno com o maior grau de probabilidade de faltar. Ao observarmos que nem ele faltou, implicamos que os
alunos com menor probabilidade de faltar também compareceram. Ou seja, ‘nem mesmo’ trabalha na mesma
escala de ‘até’, só que na ponta oposta.

Exercícios:

Crie escalas que expliquem o modo abrangente como compreendemos as seguintes sentenças:
(1) Até uma criança saberia a resposta para essa pergunta!
(2) Nem mesmo um gênio saberia a resposta para essa pergunta!
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III – Teorias da Enunciação

A- Implícitos e implicaturas: significado da sentença X significado da enunciação

Grice defendeu que se distinguisse entre o conteúdo literal da sentença (semântica) e uma gama de inferências
que os ouvintes faziam a partir do uso daquela expressão em dado contexto (pragmática). É preciso distinguir
entre acarretamento e pressuposição, de um lado (que são indissociáveis da expressão linguística ou da verdade
da sentença), de inferências de outro tipo: os implícitos ou implicaturas conversacionais, que são altamente
dependentes do contexto. Pensemos no emprego de uma sentença como A porta está aberta. Dita pela mulher
ao marido, durante uma discussão, após ele ter dito que não sabe como consegue conviver com ela, significa Se
é assim, vá embora da minha vida. Mas essa ideia de separação conjugal não é um significado do material
linguístico da sentença. Ela não está presente, por exemplo, quando o médico, de dentro de seu consultório, a
pronuncia para o paciente que aguarda do lado de fora da porta. Nessa outra situação, o enunciado é entendido
como um convite para o paciente entrar no consultório. Imaginemos uma terceira cena, em que ladrões estão
procurando meios de invadir uma loja inexpugnável, protegida por cadeados, travas, grades, cães bravos,
muros... depois de tentar explodir a grossa parede sem sucesso, chamando a atenção da polícia, pouco antes
de ser detido, um deles mexe na maçaneta da porta e diz A porta está aberta... Nesse caso, ele está
expressando seu desconsolo pelo insucesso da empreitada, ao desconsiderarem processos mais fáceis de
entrada. Um chefe que se despede de uma funcionária muito capaz, que decidiu parar de trabalhar para ter um
filho, ao dizer A porta está aberta na despedida está comunicando que, se ela decidir voltar a trabalhar, o
emprego será dado a ela de volta. Para cada nova situação de uso, teremos um novo significado, e perderemos
os demais. O único significado que independe da situação é o de que estamos falando de uma porta (e não de
uma mesa), um objeto que, por sua natureza, pode se apresentar aberto ou fechado; a sentença diz que está
num desses estados, e não no outro; logo, alguém pode passar pela abertura, ingressando num local interno ou
indo para o lado de fora dele. Os demais significados são construídos sobre esse, que é o único permanente,
indissociável do material linguístico. É obvio que uma sentença como A mesa está posta não serviria para
veicular os significados mencionados. Mas eles não estão sempre ligados à sentença A porta está aberta.

Vamos olhar agora para entendimentos que dependem da situação de enunciação, os que variam com o
contexto.

B- ATOS DE FALA

Austin e Searle criticaram a semântica aristotélica. Primeiramente, houve uma distinção entre usar a linguagem
para descrever o mundo e usos da linguagem em que não se pode atribuir um valor de verdade à sentença.
Como estabelecer se uma sentença no subjuntivo/imperativo é falsa ou verdadeira? Por exemplo, “Saia já daqui”
certamente não descreve um acontecimento no mundo. Se o ouvinte atender o falante, ele vai se retirar do
recinto; mas o ouvinte pode desobedecer à ordem. Seja como for, quem usa um modo diferente do indicativo em
português não descreve um fato ou acontecimento, mas dá instruções que podem ou não resultar num
acontecimento futuro. Dai a proposta inicial de que há duas situações gerais de uso da linguagem: uma,
correspondente à visão aristotélica, descreve coisas e fatos pré-existentes no mundo (os enunciados são
constativos); na outra, a linguagem é que cria novos fatos no mundo (os enunciados são performativos). Por
exemplo, os dizeres “Saia já daqui” (caso sua ordem seja obedecida) causam a saída do ouvinte daquele recinto.
Para ilustrar essa divisão, vamos imaginar que uma esposa, desconfiada de que seu marido a trai com outra
mulher, contrata um detetive para segui-lo o tempo todo. Todos os dias, o detetive entrega à esposa um relatório

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pormenorizado das atividades do marido. Hoje, a esposa solicitou ao marido que fosse às compras, entregando
a ele a seguinte lista, com suas anotações:

- 3 tomates maduros De posse dessa lista, o marido vai ao supermercado, pega uma cesta, e vai colocando nela
os produtos, `a medida que os vai retirando das prateleiras. Nesse caso, as ações desse
- 1 litro de leite homem no supermercado foram claramente guiadas por um ato de linguagem, representado
- 6 ovos pela lista de compras. Antes dessa lista, não havia esses produtos nem na cesta dele nem na
dispensa/ geladeira do casal. Conduzido pela lista, o marido produziu uma mudança
-1 kg de café de estado nos produtos, que, de localizados nas prateleiras da loja, passaram a estar na sua
-2 cebolas cesta, e, mais tarde, na sua casa. Conduzido pela lista, o marido também mudou a situação
de abastecimento de sua casa. Temos aí, então, um ato performativo.

Mas o detetive estava seguindo o marido, de uma distância segura para não ser notado, e
registrando tudo o que ele fazia, para depois fazer um relatório bem minucioso para a
- 3 tomates maduros
esposa ciumenta. Assim, o detetive também entrou no supermercado, e foi tomando nota de - 1 litro de leite
tudo o que o seu alvo e observação colocava no carrinho. A lista produzida pelo detetive,
intitulada “coisas coladas no carrinho de supermercado”, está reproduzida aqui à direita. É
- 6 ovos
claro que os dois documentos, a lista produzida pela esposa, com itens a comprar, e a lista -1 kg de café
produzida pelo detetive, são idênticos. Porem, no caso do detetive, ele estava descrevendo -2 cebolas
um fato que se desenrolava perante seus olhos. Trata-se, então, de um ato de linguagem
constativo.

A conclusão é que, em alguns casos, dizer é fazer. Eu não perco dez quilos quando digo “agora estou perdendo
10 quilos”. Um político não convence quem o ouve a elegê-lo quando profere as palavras: “você devem votar em
mim”. Mas um documento que diz “nomeio Fulano de Tal meu bastante procurador” torna Fulano capaz de me
representar legalmente para as finalidades explicitadas. As palavras apropriadas têm de ser proferidas pela
autoridade socialmente reconhecida e autorizada, às pessoas que devem ouvi-la/lê-la, no lugar e momento
apropriado aos rituais sociais, no suporte certo, para ter validade. Mas sim, a publicação de minha nomeação no
D.O.U. muda a minha vida, pois passo de alguém que não é funcionário público, no período anterior à data de
publicação, para alguém que é funcionário público, a partir da edição em que aparece minha nomeação.
Chamamos a isso agir por meio de palavras, por atos de fala bem sucedidos ou felizes.

Austin: “How to Do Things with Words”- Dizer é fazer(?)

Num segundo momento, a teoria dos atos de fala defende que dizer é sempre fazer. Mesmo nos atos que
chamávamos de constativos, pois estamos trabalhando para convencer os outros de que essa descrição dos
fatos é correta e apropriada. Nesse caso, estamos agindo para persuadir e convencer. Então, podemos dizer que
estamos sempre agindo por meio de palavras.

Independência entre força e conteúdo proposicional

_ Frege (1879) distinguiu entre o conteúdo de uma proposição assertiva (aquilo que é assertado), e os juízos
sobre a veracidade desse conteúdo. Juízos sempre contêm pensamentos ou conceitos, e podem ser complexos.
Leis da lógica podem levar a concluir um juízo a partir de outro:

Asserção: se Φ então Ψ (sentença condicional)

Asserção de Φ conduz à asserção de Ψ

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_ Wittgenstein (1922): uma proposição mostra um possível estado de coisas, aquele que vale caso ela seja
verdadeira.

_ O modo (indicativo, imperativo, interrogativo) é separado do conteúdo proposicional (Stenius 1967, Searle
1968): só use o modo indicativo se você se compromete com a verdade do conteúdo proposicional

Paradoxo de Moore: #está chovendo, mas eu não acredito que esteja chovendo.

Não é um paradoxo de conteúdo, mas de ação: usar o indicativo viola as regras do Jogo de Reportar.

Divisão entre o mundo dos conceitos/ pensamentos (conteúdos proposicionais) e o mundo das ações (por
meio de dizeres), ou seja, entre semântica e pragmática

O ato de fala assertivo afirma algo sobre algo. O ato de fala performativo muda situação de alguém no mundo
por meio do proferimento de certas palavras rituais na situação. As palavras “eu vos declaro marido e mulher”
transformam um homem e uma mulher solteiros em marido e mulher. Quem profere as palavras tem de ser
alguém imbuído de autoridade pela sociedade para performar certo ato de fala (por exemplo, para casar duas
pessoas por meio dessas palavras, quem as profere tem de ser um padre ou um juiz de paz; a mãe da noiva não
tem o poder de tornar a filha casada dizendo isso). As condições (os rituais e as convenções envolvidos) de
proferimento precisam ser respeitadas (se o padre disser as mesmas palavras debaixo da ducha do chuveiro,
ninguém vai se tornar casado). Mesmo dentro da igreja, saindo da boca do padre, se estiver acontecendo um
ensaio do casamento, essas palavras não serão consideradas como oficiando o casamento, não irão valer.

Exercícios

Veremos alguns atos performativos abaixo. Diga qual a mudança no mundo (que ação) pode ser obtida pelo
proferimento. Descreva a autoridade a quem a sociedade conferiu o poder de performar tal ato. E descreva as
condições de sucesso (onde as palavras devem ser ditas, quando, para quem etc.)

Ato de fala autoridade ação/ mudança no mundo condições de sucesso

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Ato de fala autoridade ação/ mudança no mundo condições de sucesso

ATOS DE FALA (Austin 1962, Searle 1969).

Ao se comunicarem, os falantes usam proposições para performar atos com consequências sociais, tais como
declarar que certos conteúdos proposicionais são verdadeiros, questionar se outros conteúdos proposicionais
são verdadeiros ou não, expressar estranheza, surpresa etc.

proposições operadores ilocucionais atos de fala

 “Camadas” de um ato de fala

Ao analisarmos um ato de fala, podemos separá-lo em três camadas. Já que é preciso proferir certas palavras,
as palavras escolhidas para agir aquela situação, por seu conteúdo, são a primeira camada: o ato locucionário,
em que o locutor dá voz a algo que deseja que aconteça no mundo. O ato locucionário é o proferimento de uma
frase que respeite as as regras gramáticas e faça sentido. Caso esse proferimento seja feito em tom adequado,
de acordo com o a sociedade convencionou usar nesse ato de fala, terá uma força: sua entonação, curva
melódica, o tempo e o modo verbais, a modulação da voz, sua altura, enfim, o modo como a frase é proferida,
constituirão a segunda camada: o ato ilocucionário. Por exemplo, um cumprimento a um recém-chegado não é
pronunciado da mesma maneira que um grito de socorro. O ato ilocucionário dá as características que as

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palavras escolhidas devem ter para constituir um ato de fala adequado: tempo verbal, modo verbal, exclamação,
interrogação etc. Uma pergunta é uma forma adequada a um pedido, mas não a uma ordem/um comando. A
terceira e última camada é chamada de ato perlocucionário. São os certos resultados obtidos no mundo por meio
do uso daquelas palavras (convencer, persuadir, impedir, convidar, casar etc.). É a parte que vai além da
linguagem, é a ação no mundo realizada por meio do proferimento. Muitas vezes, os atos de fala flaham, ou seja,
o resultado esperado não é obtido. Diz-se que o ato de fala não foi feliz. As condições de felicidade de um ato
envolvem a escolha certa das palavras (ato locucionário), as condições convencionalizadas de proferimento (ato
ilocucionário, mais intenção do falante, mais rituais sociais, autoridade etc.) e a aceitação social e do interlocutor.
Um ato de fala bem sucedido/feliz alcança os resultados esperados, isto é, produz a mudança desejada no
estado de coisas.

Exercícios

Analise um ato de fala por tirinha, dizendo se foram ou não bem sucedidos, e descrevendo suas camadas (ato
locutório, ilocutório e perlocutório).
(a) Chico Bento _Maurício

(b) Mônica _ Maurício

(c) Chico Bento_ Maurício

(d) Armandinho

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Por que o ato de fala do caçador não foi feliz? Explique a não-comunicação entre o caçador e Deus,
segundo o modelo de Searle: que intenções tinha o caçador; o que ele esperava que acontecesse; e o que
ele efetivamente disse. Classifique o ato de fala, em suas três camadas.

CUIDADO COM O QUE VOCÊ PEDE!


Encurralado, sem munição, e percebendo que o leão já se preparava para devorá-lo, o caçador rezou:
_ Senhor, minha vida está em suas mãos: transforme esse leão em cristão!
Ouviu-se um estrondo. Imediata e milagrosamente, o leão interrompeu seu salto diante do caçador,
ajoelhou-se e começou a falar:
_ Senhor, dou graças pela refeição de hoje e peço que abençoe este alimento!
A seguir, devorou o caçador.

C- AS MÁXIMAS CONVERSACIONAIS DE GRICE

Ao estudarmos atos de fala, vimos que, desse viés semântico, Searle e Austin defendem que a
linguagem cria fatos novos e relações sociais no mundo. A sociedade humana opera ritos sociais que dependem
do proferimento de determinadas palavras, por alguém que detém a autoridade para presidir tal rito, na situação
requerida e com o respeito a diversos detalhes ritualísticos. No texto “Performativo-Constativo” (Austin, 1958) o
termo “performativo” designa enunciados que, sendo uma forma de agir por meio de palavras, não poderiam ser
falsos nem verdadeiros; os enunciados declarativos, que descrevessem um pedaço de uma realidade, podendo
ter valor de verdade, foram chamados de constativos. Entre os exemplos corriqueiros de atos performativos
estão: convite, cumprimento, ameaça, promessa, advertência, pedido, demissão, proposta de casamento,
orçamento de serviços etc. Atos performativos não podem ser avaliados quanto ao seu valor de verdade, mas
podem muito bem ser avaliados segundo seu sucesso ou felicidade. Quando aquilo que se desejava que ocorre
como resultado do ato não acontece, quando o ato é malogrado, diz-se que houve sua infelicidade ou seu
insucesso. O insucesso pode se dar por nulidade, quando o enunciador não tem autoridade social para operar o
rito social. Por exemplo, numa festa junina, o folião fantasiado de padre, ainda que pronuncie direitinho as
palavras “eu vos declaro marido e mulher” para os foliões fantasiados de noivos, não os tornará casados perante
a sociedade. Outra razão para o insucesso é o abuso. O vendedor que firma um contrato verbal de venda de um
carro com outro cidadão, recebe um sinal de 40% e some no mundo sem entregar o veículo ao comprador, em
sua desonestidade, não permitiu que a transação fosse concluída. Ao prometer o carro pela quantia ajustada, o
vendedor não foi sincero. Há também nesse exemplo um terceiro fator que impede o sucesso do ato de fala
performativo: a quebra de compromisso. É possível prometer e não cumprir, mesmo tendo sido sincero ao fazer
a promessa. Posso combinar ver um filme com uma amiga e não estar na hora marcada na porta do cinema
porque algo escapou ao meu controle, embora eu quisesse estar lá. Posso ter ficado presa no trânsito por causa
de uma passeata, por exemplo. Toda essa abordagem semântica já é bastante “antropológica”. Ela será levada
ainda mais longe, na proposta de que todos os atos de fala, sem exceção, são performativos: convencer alguém
da verdade do que eu digo é também um agir com a linguagem.

Searle e Austin partiram do trabalho de outro filósofo, Paul Grice, que também tratou do contrato social
da linguagem, por meio de convenções culturais. Grice refletiu sobre relação entre os conteúdos ditos ou
explícitos de um enunciado e os seus conteúdos implícitos. Ele queria explicar como é possível entender mais de
uma sentença do que aquilo que seu significado literal informa. Esses entendimentos ou subentendidos são
muito comuns nas nossas interações sociais do dia a dia, além de apresentarem um caráter coletivo, e não
individual. Por exemplo, se alguém diz ‘Eu vi o João ontem jantando no Leblon com uma mulher muito bonita’,
qualquer ouvinte com bom domínio da língua e da cultura vai perceber aí a insinuação de que João estava num
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encontro romântico ilícito, não obstante o fato de que “uma mulher”, do ponto de vista lógico, pode descrever a
esposa, a irmã, a filha ou a mãe de João, e apesar de nenhuma palavra do que foi dito classificar o jantar de
João como extraconjugal ou escuso. Parafraseando Levinson (2000), o conteúdo associado aos enunciados que
proferimos é apenas uma fração daquilo que realmente comunicamos nesses proferimentos. A interpretação de
enunciados envolve interações complexas entre (i) o conteúdo semântico; (ii) o contexto de enunciação; e (iii)
pressões gerais pragmáticas complexas (das quais as máximas de Grice são apenas uma concepção). O ponto
de partida da pragmática formal é a observação de que os falantes convergem num grau impressionante quanto
às interpretações dos enunciados que ouvem, sugerindo que há profundas regularidades entre os falantes,
contextos de enunciação, tipos de sentença e nos modos como (i)–(iii) interagem.

Para além daquilo que as palavras dizem claramente, há muitos conteúdos comunicados na enunciação. As
informações que não correspondem ao que dizemos explicitamente são os implícitos. Há diversos tipos de
implícitos: os lógicos, como o acarretamento e a contrariedade, valem para todas as enunciações em que aquela
sentença seja tida como verdadeira, e, por isso, não podem ser cancelados. A pressuposição também não
poderá ser cancelada enquanto seu gatilho, seja uma palavra (‘começar’, na sentença “Meu filho começou a falar
aos 18 meses”, pressupõe que o bebê não falava até essa idade) ou uma construção sintática (A construção de
foco em “Foi o seu filho que bateu no meu?” pressupõe que o filho de quem faz a pergunta apanhou de alguém
_ mesmo se a reposta seja “Não”, vamos entender que outra criança é responsável pela agressão, mas não há
como negar a ocorrência dessa agressão; sem o foco, a resposta negativa admite a negação da agressão. “Seu
filho bateu no meu?” pode ser respondida assim: “Não. Na verdade, ninguém bateu no seu filhinho. Ele mesmo
se machucou batendo a cabeça, numa das diversas vezes em que pulou da cadeira, desobedecendo as nossas
instruções para que parasse de fazer isso.”) estiver presente na sentença. Mas há implícitos canceláveis. Por
exemplo, quem disse ‘Eu vi o João ontem jantando no Leblon com uma mulher muito bonita’ pode falar, em
seguida: ‘Era a filha caçula dele. Como está linda!’. Pronto, a suspeita da relação extraconjugal se dissipou.
Depois dessa segunda parte, ninguém mais poderá acusar o enunciador de estar envenenando seu ouvinte com
a crença de uma conduta marital infiel de João.

Wittgenstein (sempre lembrado em associação com o slogan “o significado está no uso”) já havia falado de
“jogos” de representação. Para Grice, a comunicação humana é estabelecida por meio de interações
conversacionais, e a conversação é um jogo praticado em sociedade por meio da observação de regras
inconscientes. Como todo jogo, esse também tem de ser praticado em cooperação pelos adversários: só se
considera que os jogadores estão praticando um jogo se as partes estão observando as regras desse jogo.
Não se pode jogar futebol jogando a bola com a mão, nem jogar xadrez manipulando cartas de baralho.
Todo jogo envolve a aceitação tácita e prévia de suas regras, antes de iniciada uma partida. Nesse sentido,
jogar um jogo, seja ele qual for, envolve cooperação. Para o jogo da conversação, Grice formula o seguinte
Princípio:

Princípio da Cooperação: “faça sua contribuição conversacional tal como requerida, no momento em que for
requerida, pelo propósito e na direção do intercâmbio conversacional em que está engajado.” (Grice 1989: 26).

Isso quer dizer que, quando alguém aborda você para propor uma conversação, você pode recusar a proposta.
Se você ignorar o proponente, nenhuma conversa irá se desenrolar; você pode aceitar falar com o proponente,
mas recusar o tema proposto. Se um tema não for mantido e desenvolvido, a interação linguística não vai contar
como uma conversação. Cada mudança de tema vale por uma conversa nova. Observe os diálogos a cada
quadrinho, na tirinha de Quino (o pai de Mafalda). É uma conversa? Por quê?

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O Princípio da Conversação, mais geral, se desdobra em diversas máximas:

A máxima da relevância/ relação: mantenha o assunto/ seja relevante


A máxima da qualidade: não diga nada que acredite ser falso; não afirme coisas para as quais não tem
evidência
A máxima da quantidade: faça sua contribuição tão informativa quanto o requerido (para os propósitos da
conversação)
A máxima do modo: evite a obscuridade, procure ser claro, seja breve, seja ordenado

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A implicatura conversacional (o significado que não é literal) pode ser gerada por meio da...

...observação das máximas


(Contexto: um passante aborda um homem parado junto ao carro, com o capô aberto e cara de contrariado)
A:_ O que aconteceu?
B:_Acabou a gasolina.
A: _Tem um posto 2km mais à frente.

Comentário: ninguém disse que o posto está em funcionamento, nem que o percurso dos 2km pode ser
percorridos a pé, nem que o motorista do carro consegue carregar alguma gasolina num galão do posto até o
lugar em que está parado seu carro, mas tudo isso é inferido, pois, de outra maneira (considerando que o posto
fosse inacessível vindo da estrada, ou que estivesse fechado, ou que não tivesse embalagens para portar
gasolina ou que seja proibido por lei de vender gasolina para ser transportada fora do carro), a segunda fala de A
deixaria de apontar uma solução para o problema de B e não seria relevante. Assumindo que A é cooperativo,
precisamos assumir que aquilo que ele disse tem ligação com o assunto proposto por B. Assim, preenchemos as
entrelinhas com implicaturas conversacionais.

....violação das máximas


A:_ Como C está se saindo no seu novo cargo no banco?
B:_Acho que ele está indo bem... ele gosta dos colegas, e ainda não foi preso.

Comentário: ninguém disse que C não é um funcionário exemplar, mas A tem de assumir que B deseja que se
entenda que C não é a pessoa mais talhada do mundo para a função, visto que suas maiores qualidades
profissionais, as dignas de menção, são evitar a prisão (ser honesto) e apreciar a companhia daqueles que
trabalham com ele. Assumindo que B é cooperativo, precisamos assumir que ele mencionou as melhores
qualidades profissionais de C. Assumimos também que B sabe que, para ser um funcionário de sucesso num
banco, é preciso ter outras habilidades: ser bom de contas, ser rápido na solução de conflitos, vender produtos
com facilidade, entender de informática etc. As qualidades que ele nomeou são pouco importantes: todo mundo
exibe tais qualidades, e elas não garantem o destaque nem a progressão de ninguém. Caso C possua as
qualidades de maior destaque, B estará violando a Máxima da Quantidade ao dizer coisas menos importantes,
deixando de lado as mais importantes. Uma vez que B é cooperativo, A raciocina que B deve ter uma razão para
não ter falado em qualidades mais apropriadas a descrever C como estando bem encaminhado e tendo futuro no
novo emprego. O motivo só pode ser o seguinte: B fez isso por ser cooperativo. Se B mencionasse alguma das
qualidades de maior impacto, estaria violando a máxima da qualidade, C não tem as qualidades requeridas para
ter sucesso no novo emprego. Então, sendo impossível a B observar todas as máximas, ele tem de escolher qual
infringir. Ele escolhe infringir a máxima da quantidade para não infringir a da qualidade. Assim, inferimos, do fato
de B ter falado apenas em qualidades desimportantes, que C não terá uma carreira promissora à frente.

Cálculo das implicaturas


“Ele disse p; não há razão para supor que ele não esteja sendo cooperativa, ou tentando observar as máximas;
ele não diria isso a menos que ele pensasse q; ele sabe (e sabe que eu sei que ele sabe) que eu posso ver que
a suposição de que ele pensa q é requerida; ele não fez nada para me demover de supor que q; então ele
pretende que eu pense, ou ao menos está disposto a permitir que eu pense que q; assim ele está implicando q.”

Exercícios: calcule a(s) implicatura dos exemplos abaixo. Depois, diga como elas poderiam ser canceladas.

(i) Crônica de LFV


Dois homens se encontram.
A_ Êpa! Mas há quanto tempo!
B_27 dias, 14 horas e dezessete minutos!
A _O quê?
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B _Que não nos vemos.


A _Ah… Mas, como é? Começando a esfriar, não?
B _ Vinte e um graus e um décimo.
A _ Mas eu não perguntei a temperatura.
B _ Você disse “começando a esfriar”. Eu confirmei. A temperatura é de…

(ii) Tirinha do Hagar

Aplicações: escalas

O significado do conectivo ‘ou’: inclusivo ou exclusivo?


P Q PQ PQ
V V V F
V F V V
F V V V
F F F F

Leitura exclusiva de ‘ou’:


(1) Ana está no Rio ou Ana está em São Paulo. (mutuamente exclusivos: ela só pode estar num desses dois
lugares, nunca em ambos ao mesmo tempo)
(1’) Ana está no Rio e em São Paulo neste momento. (contradição)

Leitura inclusiva de ‘ou’:


(2) Ana tem um filho ou uma filha. (os dois são possíveis)
(2’) Ana tem um filho e uma filha. (não é contraditório)

Será que o exemplo (2), com a leitura inclusiva, mostra que ‘ou’ das línguas naturais é ambíguo?
Segundo Grice, não. A máxima da quantidade diz: “faça a sua contribuição tão informativa quanto o requerido”.
Se o falante tivesse evidência sobre Ana ter um casal de filhos, ele poderia ter dado uma informação mais forte,
usando (2’’). Se ele é cooperativo e decidiu não usar a forma mais informativa, é porque ou isso não importava
no contexto ou ele não podia afirmar isso com certeza. Caso ele usasse (2’’), na segunda opção, poderia estar
dando uma informação falsa, que violaria a máxima da qualidade. Ele escolheu violar a máxima da quantidade
para evitar violar a da qualidade.
Sempre que o falante tem uma escolha entre dar uma informação mais forte (específica) e uma mais fraca
(vaga), se todas as demais condições forem as mesmas, ele opta pela mais forte. O uso da mais fraca implica
que ele não tem evidência suficiente para usar a mais forte. Inversamente, em contextos nos quais se presume
que o falante tenha evidencia suficiente, a escolha da forma mais fraca cria a implicatura de que a forma mais
forte é falsa.

ou + presunção de que o falante sabe tudo a respeito = “mas não e” (Ana tem um filho, mas não uma filha)

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Argumento da Negação:

(1’’) Ana nem está no Rio ou em São Paulo. = Ana nem está no Rio nem em São Paulo.
(2’’) Ana não tem um filho ou uma filha. = Ana não tem um filho nem uma filha.

Se ‘ou’ fosse ambíguo entre uma leitura inclusiva e uma exclusiva, sua negação também deveria ser. Mas
entendemos de (1’’) que Ana está em algum lugar distinto dos dois mencionados, e de (2’’) que ela não é mãe de
ninguém. É o mesmo resultado que a negação de P & Q. Então a semântica de ‘ou’ não é ambígua. O outro
sentido é derivado pragmaticamente. Veja como a negação preserva ambiguidades reais:

(i) João achou seu canto.


(ii) João não achou seu canto.

Tanto em (i) quanto em (ii) ‘canto’ pode ser entendido como sua forma de cantar, ou como o seu lugar de
moradia ou trabalho. Compare. No caso de (1’’) e (2’’), as formas afirmativas têm interpretação inclusiva e
exclusiva, mas a negativa só tem uma interpretação.

Implicaturas escalares

 alguns + presunção de que o falante sabe tudo a respeito = nem todos (‘Maria comeu alguns biscoitos’ =
(‘Maria comeu alguns biscoitos, mas não todos eles’)

todos = 20
muitos = 14
metade = 10
vários = 6
alguns = 4
poucos = 2
nenhum = 0

Se, num pacote, vierem 20 biscoitos, até comer ‘todos’ o comensal terá de passar por diversos estágios: ele vai
comer primeiro 2 (até esse momento ele comeu ‘poucos’), depois 4 (até esse ponto ele comeu ‘alguns’), depois 6
(quando ele terá comido ‘vários’), depois 10 (metade), depois 14 (‘muitos’) e depois muitos mais, até chegar ao
último biscoito do pacote. Só então será possível dizer que ela comeu todos os biscoitos. Por isso, do ponto de
vista lógico, se for verdade que João comeu 10 biscoitos, tem de ser verdade que ele comeu 2; se João comeu
metade do pacote, então necessariamente é verdade que ele comeu alguns biscoitos. Quantidades maiores
incluem as menores. Nesse raciocínio, ‘todos’ inclui ‘alguns’. Logo, do ponto de vista lógico haveria um
acarretamento entre (3) e (3’),ou seja, se (3) for verdadeiro, (3’) necessariamente seria verdadeiro:

(3) João comeu todos os biscoitos.


(3’) João comeu alguns biscoitos.

No outro sentido, de (3’) para (3), não há uma relação de acarretamento, mas há compatibilidade ou verdade
contingente: João pode ter comido alguns biscoitos e continuado a comer até acabar o pacote, ou pode ter
parado no 4º. biscoito. No primeiro cenário, ele começou comendo alguns e terminou comendo todos os
biscoitos. Aí, tanto (3) quanto (3’) são verdadeiras. Já no segundo cenário, só (3’) é verdadeira, e (3) é falsa.

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Entretanto, mesmo com essa lógica, a maior parte das pessoas vê (3’) como sinônimo de (4), que é o contrário, a
negação de (3):

(3’) João comeu alguns biscoitos. = (4) João não comeu todos os biscoitos (= ~(3))

Por que se infere (4) de (3’) (mas não se infere (3))? Por causa da máxima da quantidade de Grice. Dado que o
falante cooperativo deve dar sempre a informação mais forte, no caso em que João tivesse comido os 20
biscoitos dizer que ele comeu 4 seria dizer muito pouco, embora (3) e (3’) sejam logicamente compatíveis.
Assumindo que o falante é cooperativo, tem de haver uma razão para ele ter optado pela informação mais fraca.
Essa razão só pode ser uma: o falante teve de infringir uma máxima para evitar a infração de outra, já que seria
impossível observar as duas. O ouvinte infere que o falante optou por (3’) porque, caso o falante dissesse que
João comeu 20 biscoitos (3), estaria violando a máxima da qualidade. Isto é, ele não tem evidências que
sustentem a informação mais forte. Nesse caso, fica entendido que, dado o que ele sabe, ele só pode se
comprometer com a informação mais fraca: com João ter comido alguns, mas não todos os biscoitos.

De acordo a teoria pragmática das implicaturas conversacionais, expressões de quantidade presentes nos
enunciados são entendidas como informando a máxima quantidade apenas em alguns contextos. Esse
entendimento é cancelável:

(5) A – João comeu algum biscoito hoje?


B _ João comeu alguns biscoitos hoje sim. Na verdade, ele comeu todos, o pacote inteiro, alguns no café da
manhã e o restante depois do almoço.

Implicaturas generalizadas:

Há entendimentos que são culturais, compartilhados por toda a sociedade, independentemente do contexto
específico de uso, mas que dependem do uso de uma expressão mais fraca.

Encontre as implicaturas nos exemplos abaixo. Explique como elas são criadas, usando as máximas de Grice.
Que continuação de conversa cancelaria as implicaturas encontradas?

(6) Ontem à noite eu vi o José na festa com certa pessoa...


(7) Chega! Eu vou pra casa!
(8) Você soube? Maria caiu, bateu a cabeça e precisou levar pontos!
(9) A- Você vai terminar o artigo no prazo?
B- Eu vou tentar...

Em (6), não dar o nome da pessoa específica que estava com José cria a sensação de que é um segredo, uma
relação escusa. Em (7), entenderemos que o falante vai para a própria residência, e não para a casa de outra
pessoa, apesar de não haver possessivo algum na sentença. Em (8), entendemos que Maria bateu a própria
cabeça. Em (9), o uso de ‘tentar’ implica que B não tem certeza de conseguir.

Exercícios: uma máxima é violada para que a outra não o seja

Diga qual foi a máxima preservada, priorizada, e qual a máxima sacrificada para isso.

(10) A - Que significa "implicatura conversacional"?


B - Consulte uma obra de pragmática.

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(11) A - Que horas são?


B – Ainda é cedo!

(12) Julieta diz para Romeu: _ Você já vai partir? Não vá ainda...O dia ainda demora. Não foi a cotovia, foi
o rouxinol ... foi ele que cantou, foi sim, amor.

(13) A - Você me ama?


B - Eu gosto muito de você.

(14) (uma professora pergunta à colega:)


A- O que achou da prova do meu sobrinho?
A- Bom, ele tem uma letra linda!

(15) (a namorada pergunta ao namorado, querendo planejar filhos:)


A- Você gosta de crianças?
B-Ô, se gosto! Ensopado, com batatas, então, é uma de-lí-ci-a!

D- Steven Pinker sobre atos de falas indiretos (relacionamentos governam a interação linguística)

Para assistir (desenhado): https://www.youtube.com/watch?v=3-son3EJTrU

Para a Teoria da Polidez, a língua serve a dois propósitos: veicular uma proposição (de suborno, comando,
oferecimento) e negociar ou manter um relacionamento. A forma literal da sentença é consistente com uma
relação assegurada entre falante e ouvinte. Por outro lado, contando com o entendimento de implícitos por parte
do ouvinte, o falante pode iniciar uma relação diferente. Por exemplo, “Se você pudesse me buscar em casa
seria maravilhoso” viola as máximas conversacionais de Grice por ser irrelevante e por não ser verídico (é
exagerado). O ouvinte calcula que, se o falante declara que o resultado de uma ação futura do ouvinte seria
positivo para o falante, o falante deve estar lhe fazendo um pedido. Com efeito, o conteúdo da intenção (um
imperativo) é transmitido, mas sem a presunção de dominância que costuma vir junto.
Vou tratar de como os tipos de relacionamento que governam a interação social humana, novamente, como
refletida na linguagem. E vou começar com um problema: o problema dos atos de fala indireta. Estou certo que a
maioria de vocês viu o filme "Fargo". E vocês podem se lembrar da cena na qual o sequestrador é parado por um
policial, que pede a ele que mostre sua carteira de motorista; o sequestrador segura a carteira para fora do
carro com uma nota de 50 dólares escapando um pouquinho para fora da carteira. E ele diz, "Eu estava
pensando que talvez nós pudéssemos resolver isso aqui em Fargo" o que todo mundo, inclusive a
plateia, interpreta como um suborno velado. Este tipo de fala indireta é abundante na linguagem.
O exemplo mais simples disso está no pedido educado. Se você expressa seu pedido de forma condicional: "Se
você pudesse abrir a janela, seria ótimo", mesmo embora o conteúdo seja um imperativo, o fato de que você não
está usando a voz imperativa significa que você não está atuando como se estivesse num relacionamento de
dominância, onde você poderia pressupor a obediência da outra pessoa. Por outro lado, você quer a maldita
guacamole. Expressando-o como "se-então", você transmite a mensagem sem parecer que quer mandar na
outra pessoa.
E de uma maneira mais sutil, eu acho, isto funciona para todos os atos velados da fala envolvendo negação
plausível: os subornos, ameaças, proposições, solicitações e assim por diante. Uma maneira de pensar sobre
isso é imaginar como seria se a linguagem só pudesse ser usada literalmente. E você pode pensar nisso em
termos de uma matriz de ganhos da teoria dos jogos. Ponha-se na posição do sequestrador querendo subornar o
policial. Há muito em jogo nas duas possibilidades de se ter um policial desonesto ou um policial honesto. Se
você não subornar o policial, então você vai levar uma multa ou, no caso de "Fargo", pior seja o policial
honesto ou desonesto: quem não arrisca, não petisca. Naquele caso, as consequências são bastante
severas. Por outro lado, se você oferece o suborno, e o policial for desonesto, você obtém um enorme ganho de

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ficar livre. Se o policial for honesto, você toma uma grande penalidade de ser preso por suborno. Então esta é
uma situação bastante preocupante.
Por outro lado, com linguagem indireta, se você oferece um suborno velado, então o policial desonesto poderia
interpretá-lo como um suborno, o que no caso você obteria o ganho de ficar livre, o policial honesto não pode te
prender por ser tentativa de suborno, e, portanto, você fica com o incômodo da multa. Então você tem o melhor
dos dois mundos. E uma análise similar, penso eu, pode ser aplicada ao desconforto potencial de uma
solicitação sexual, e em outros casos onde a negação plausível é uma possibilidade. Acho que isso afirma algo
que é conhecido há bastante tempo por diplomatas, a saber: a vagueza, a indeterminação da linguagem, longe
de ser um erro ou imperfeição, pode realmente ser uma característica da linguagem que exploramos para tirar
vantagem em interações sociais. (Palavras de Pinker)

escolha racional: a atitude mais barata é a linguagem indireta

chance de 50% chance de 50% cálculo


guarda honesto guarda desonesto risco médio
suborno aberto detenção por suborno: $1000 suborno aceito: $50 $525
suborno velado multa (excesso de velocidade): $100 suborno aceito: $50 $75
não tentar subornar multa (excesso de velocidade): $100 multa: $100 $100

Nessa visão, a linguagem é uma criação coletiva humana, que reflete a natureza humana – espelha como nós
conceitualizamos a realidade, como nós nos relacionamos uns com os outros.

Tipos de relação social

(i) Relação de dominação ou autoridade: governada pelo ethos “Não mexa comigo.” No reino animal já há
hierarquias de poder; entre humanos, elas são muito mais complexas.

(ii) O compartilhamento ou comunitarismo segue o ethos “O que e meu é seu; e o que é seu é meu.” É o
relacionamento de afinidades, de associações por interesses em comum, de casais monogâmicos, de grupos de
amigos, de famílias.

(iii) o relacionamento de reciprocidade ou paridade obedece ao ethos “Uma mão lava a outra”, baseado em
altruísmo e reciprocidade, negociado explicitamente por contratos.

Conhecimento mútuo ou compartilhado?

A sabe x e B sabe x, e ainda A sabe que B sabe x, e B sabe tanto que A


sabe x quanto que A sabe que B sabe que A sabe x... ao infinito.

A língua é um instrumento eficiente de gerar conhecimento compartilhado.

Atos de fala indiretos permitem a transmissão de que um conhecimento


individual para outra pessoa, enquanto que atos de fala diretos produzem o
compartilhamento do conhecimento (por muita gente); ora, relacionamentos
_ O rei está nu!
podem ser mantidos ou aniquilados pelo fato de o seu tipo se tornar de
conhecimento compartilhado.

http://web.stanford.edu/~cgpotts/entries/potts-routledge08-formal-pragmatics.pdfPragmatics

Processos de elaboração da face (Goffman): preservação da face X ameaça à face


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Mais uma máxima conversacional: a Máxima da Polidez (Brown & Levison 1987)

Lakoff (1973): não imponha, dê opções, seja amigável

Efeitos linguísticos: pesquisas sobre diminutivos mostram que os chamados redutores/ minimizadores (os que
expressam um grau baixo da propriedade), como a little, a bit, slightly, são usados mais frequentemente antes de
adjetivos de avaliação negativa (um pouquinho gordo, um tantinho chato), para atenuar a crítica negativa
(ameaça à face alheia). No Brasil também usamos em pedidos:

(16) A _Quer mais cerveja?


B _Só mais um pouquinho, por favor...
(17) A _Pode falar um pouquinho mais baixo, por favor? O bebê está dormindo...

(18) A _Fazia tempo que eu não via a Maria! Ela está um bocadinho menos magra, não acha?

(19) A _Gostou do meu feijão?


B _ Gostei. Só está um tantinho salgado pro meu paladar...

Exercícios
Dê a implicatura conversacional e quais as máximas conversacionais envolvidas; explique se cada máxima é
preservada ou violada.

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A DÊIXIS NA SEMÂNTICA DA ENUNCIAÇÃO

Identifique o referente de ‘você’ e ‘aqui’ (1a. coluna, 1ª. linha), de ‘hoje’ e ‘meu’ (2a. coluna, 1ª. linha), de ‘amanhã’
(3a. coluna, 1ª. linha), de ‘nós’, ‘aqui’ e ‘vós’ (4a. coluna, 1ª. linha), do sujeito nulo e do evento de ficar cansado
(2a. coluna, 2ª. linha), do sujeito nulo e do pronome ‘sua’(2a. coluna, 2ª. linha), do sujeito de ‘acredite’, do evento
de acreditar e de ‘você’ (3a. coluna, 3ª. linha), e do sujeito nulo da forma verbal ‘respeite’ (4a. coluna, 2ª. linha).
Esses referentes não são fixos, mas variam conforme a situacão de uso dessa expressão linguística. Como
descobrimos a que uma expressão dêitica se refere? Precisamos conhecer o contexto de enunciação. Por
exemplo, para saber que dia é ‘amanhã’, temos de saber em que dia essa palavra foi usada; para sabermos
quem é você, temos de ver a quem se dirige o falante que proferiu o pronome de segunda pessoa.
Dêixis - faculdade que tem a linguagem de designar mostrando, em vez de conceituar. A designação dêitica, ou
mostrativa, figura assim ao lado da designação simbólica ou conceptual em qualquer sistema linguístico. (...). O
pronome é justamente o vocabulário que se refere aos seres por dêixis em vez de o fazer por simbolização como
os nomes. Essa dêixis se baseia no esquema linguístico das três pessoas gramaticais que norteia o discurso: a
que fala, a que ouve e todos os mais situados fora do eixo falante-ouvinte. (Câmara Junior, 2002:90)
Benveniste estudou os pronomes detalhadamente: Estrutura das relações de pessoa no verbo (1946), A
natureza dos pronomes (1956), Da subjetividade na linguagem (1958) e A linguagem e a experiência humana
(1965) entre outros.
Para a semântica da enunciação, a ideia de uma realidade extralinguistica ou prelinguística, ou seja, fora da
lingua, é uma ilusão criada pela dêixis. A referência dêitica é entendida como sui-referencial, ou seja, como
fazendo referencia aos próprios participantes da enunciação. O contexto dêitico não é exterior (ontológico), mas
subjetivo. A dêixis comporta as categorias de pessoa, espaço e tempo.
Para Barthes (1988: 182): “(...) Benveniste (...) funda uma linguística nova (...), da interlocução; a linguagem, e,
portanto, o mundo inteiro, articula-se sobre essa forma eu-tu.”

EXEMPLO
Um novo gerente, determinado a fazer subir a pordutividade, queria punir os vagabundos e recompensar
os muito aplicados. Em certo departamento, todos estavam ocupados, menos um jovem, que não fazia nada de
útil, só olhava o celular, encostado à parede, junto à porta. Pensando em fazer dele um caso exemplar, o gerente
o chamou e propôs:
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- Eu te dou agora R$1.000,00 e você vai para casa, o.k.?


- Só se for agora! - respondeu o rapaz.
O gerente tirou o dinheiro da carteira e deu ao jovem, dizendo bem alto, para que todos os demais
ouvissem:
- É isso o que ganha quem não faz nada aqui!
O rapaz pegou o dinheiro e saiu rapidinho, bem contente.
O gerente ficou bem satisfeito, pensando que agora todos os acomodados teriam medo de demissão e
não encostariam mais o corpo. Por curiosidade, perguntou a um funcionário, que estava mais próximo:
- Ei, você! Pode me dizer o que aquele jovem fazia aqui na empresa?
- Ele veio entregar uma pizza, respondeu o funcionário.

Identifique, nos momentos de discurso direto sublinhados, as marcas linguísticas que permitem completar a
tabela fornecida.
Questões Marcas Linguísticas Identificação Referencial

Quem fala? Eu (implícito no diálogo) Designa o Gerente.


Com quem fala? Teu (Tu) Designa o entregador de pizzas.
Você Designa o trabalhador mais próximo dele.
Onde fala? Aqui, daqui Designa a sala da empresa em que o gerente estava (espaço na
vizinhança do locutor).
Quando fala? Agora Designa o momento em que a frase é produzida, pelo locutor (o
gerente).

Eu, aqui e agora

(...) como se coloca a língua em funcionamento? Alguém assume a palavra e dirige-se a outra pessoa e, ao fazer
isso, instaura-se como um eu e erige a pessoa a quem se endereça como "tu" (que, na maior parte do Brasil, é
realizado como "você"). Esse ato de dizer realiza-se num tempo (agora) e num espaço (aqui). Por isso, a
enunciação é a instância, denominada por Benveniste, do ego, hic et nunc, ou seja, do eu, do aqui e do agora. A
partir dessa instância do falante, do seu espaço e do seu tempo, criam-se todas as distinções de pessoa, espaço
e tempo na língua. O linguista francês nomeia as categorias da enunciação com palavras latinas, para indicar
que elas existem em todas as línguas, em todas as linguagens (por exemplo, as visuais).

Benveniste vai chamar aparelho formal da enunciação as categorias de pessoa, de espaço e de tempo, que são
centrais no exercício da língua. Os elementos dessas categorias foram denominados embreadores, termo tirado
da mecânica. Embreagem é um mecanismo que permite unir um motor em rotação ao sistema de rodas que não
estão girando. Palavras como "eu", "tu", "aqui", "aí", "ali", "agora", "então" são chamados embreadores,
embreantes ou dêiticos, porque só ganham referência quando se conecta a língua à situação de comunicação.
Se lermos, num quadro de recados, o seguinte texto: "Estive procurando-o hoje. Esteja lá amanhã sem falta",
não saberemos quem é que esteve procurando, quem ele esteve buscando, quando esteve fazendo isso,
quando e onde a pessoa procurada deve estar sem falta. Isso, porque alguém deve ter apagado os elementos da
situação de comunicação que permitiriam ancorar os dêiticos: nome do destinatário do recado, local e data em
que a mensagem foi escrita, nome do destinador. Esses dados são obrigatórios, por exemplo, numa carta,
exatamente para que possamos saber os referentes dos dêiticos que aparecem no texto.

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Benveniste (1995) mostra que a enunciação é a instância do “ego, hic et nunc”. O “eu” é instaurado no ato de
dizer: “eu” é quem diz “eu”. A pessoa a quem o “eu” se dirige é estabelecida como “tu”. O “eu” e o “tu” são os
participantes da ação enunciativa. “Ele” é a não-pessoa, aquele ausente sobre quem se fala. “Aqui” é o espaço
do “eu”, a partir do qual todos os espaços são ordenados “aí”, “lá” etc.; “agora” é o momento em que o “eu” toma
a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade linguística é organizada. A enunciação deixa marcas no
enunciado e, com elas, pode-se reconstruir o ato enunciativo. O enunciado é o produto da enunciação, despido
das marcas enunciativas. A enunciação é a instância linguística logicamente pressuposta pela existência
do enunciado. Se existe um dito, obviamente há um dizer que o produziu.

O mecanismo básico com que se instauram no texto pessoas, tempos e espaços é a debreagem. Ela pode ser
de dois tipos: a enunciativa e a enunciva. A primeira projeta no enunciado o “eu-aqui-agora” da enunciação, ou
seja, instala no interior do enunciado os actantes enunciativos “eu/tu”, os espaços enunciativos “aqui, aí
etc.” e os tempos enunciativos (presente, pretérito perfeito 1, futuro do presente2). A debreagem enunciva
constrói-se com o “ele, o alhures e o então”, o que significa que, nesse caso, ocultam-se os actantes, os
espaços e os tempos da enunciação. A debreagem enunciativa produz, basicamente, um efeito de sentido de
subjetividade, enquanto a enunciva gera, fundamentalmente, um efeito de sentido de objetividade. Como se vê,
A debreagem enunciativa produz, basicamente, um efeito de sentido de subjetividade, enquanto a enunciva gera,
fundamentalmente, um efeito de sentido de objetividade. (Trecho do artigo “Maravilhas da enunciação”, de José
Fiorin http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12024)

A categoria de tempo

É preciso distinguir bem entre três noções de tempo:


Tempo físico: intervalo entre o princípio e o fim de um movimento
Tempo cronológico: sucessão de acontecimentos desde um marco
Tempo linguístico: estabelecido em função do momento da enunciação

Só nos interessa o tempo linguístico. Quando alguém está falando sobre um acontecimento, todos nós
compreendemos quando ele ocorreu. Como isso funciona? Como localizamos no tempo os
eventos/acontecimentos sobre os quais conversamos? Tempo é a categoria linguística que localiza os
acontecimentos na fala. O ponto de partida é o momento em que se fala. A enunciação estabelece um eu-tu, um
aqui e um agora. Os acontecimentos são localizados a partir desse agora: ou o fato é simultâneo à conversa
/concomitante ou não é. Se o fato não é concomitante à conversa, é preciso sinalizar sua anterioridade ou
posteridade. Temos assim três tempos linguísticos gerais: PRESENTE (evento concomitante à conversa),
PASSADO (evento não concomitante à conversa, anterior a ele – primeiro acontece algo, depois falamos sobre
aquilo que ainda vai acontecer).

Na tirinha, no primeiro quadrinho, a multidão fala de uma pegada / um evento de pegar que não é concomitante
com o momento da fala, que não ocorreu ainda. O evento ocorre depois. No segundo quadrinho, vemos o autor
da façanha informando em sua fala justamente isso: que a pegada ocorreu num momento anterior a ele contar
isso aos outros (a pegada é posterior à fala do quadrinho um, mas anterior à do quadrinho dois). O mesmo
acontecimento é FUTURO no primeiro quadrinho, e PASSADO no segundo quadrinho.
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No primeiro verso do poema “motivo”, de Cecília Meireles, temos um acontecimento, um cantar, que acontece
enquanto o poema se desenvolve: o eu lírico fala do motivo de seu canto no próprio canto. A fala é simultânea
com o ato de cantar. O tempo linguístico é o PRESENTE.

Eu canto porque o instante existe


e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Temos de tomar cuidado para não confundir as formas da língua (e aqueles nomes do nosso sistema de
conjugação verbal) com o tempo linguístico. Na teoria de Benveniste, há 9 tempos linguísticos possíveis, em
qualquer língua natural. A mesma forma linguística (um verbo conjugado de certo jeito) pode ser interpretada
como tempos diferentes. Para chegar a essas possibilidades lógicas, combina-se um momento de referência a
um momento do evento e ao momento da fala. O Momento de Referência é um marco temporal da
concomitância (presente), da anterioridade (passado) ou da posteridade (futuro), geralmente realizado na forma
de um adjunto adverbial de tempo, como, por exemplo, ‘agora’ em ‘O ônibus está saindo agora’. Nesse caso, o
momento do evento (a saída do ônibus) o momento da fala (um agora instaurado pela conversação) e o
momento de referência dado pelo adjunto adverbial ‘agora’ são concomitantes. Temos então o esquema: MR =
MF = ME. O momento de referência pode não vir explícito, mas implícito no texto, como na sentença ‘O ônibus
está saindo’; aí não vemos a palavra ‘agora’, mas podemos entender as duas sentenças da mesma maneira,
quanto à localização temporal do evento de saída, o que indica a utilidade de considerar que é como se aí
estivesse um MR implícito simultâneo ao ME.

Relação entre o MF e o MR:


MR = MF (concomitantes) resulta em MR presente (ex.: ‘agora’)
MR < MF (anterioridade) resulta em MR passado (ex.: ‘ontem’)
MR  MF (posterioridade) resulta em MR futuro (ex.: ‘amanhã’)

Tempos formados com MR presente (ex.: ‘agora’)


MA = MR presente (concomitantes) resulta em PRESENTE DO PRESENTE (ex.: ‘Estou no Rio agora’)
MA < MR presente (anterioridade) resulta em PASSADO DO PRESENTE (ex.: ‘Agora já gastei o dinheiro’)
MA  MR presente (posterioridade) resulta em FUTURO DO PRESENTE (ex.: ‘Eu vou dormir’)

Acima, vemos que a estada no Rio ocorre ao mesmo tempo em que se fala nela, que o gasto do dinheiro ocorreu
antes de se falar sobre ele e que a dormida será depois de ela ser mencionada.

Tempos formados com MR passado (ex.: ‘ontem’)


MA = MR passado (concomitantes) resulta em PASSADO (ex.: ‘Fui à praia ontem’)
MA < MR passado (anterioridade) resulta em PASSADO DO PASSADO (ex.: ‘Em 1985, ao completar 15 anos,
ele já tinha escrito 32 poemas’)
MA  MR passado (posterioridade) resulta em FUTURO DO PRETÉRITO (ex.: ‘Dois anos depois, com 17 anos,
ele publicaria seu segundo livro’)

Acima, vemos que a ida à praia coincide com o marco temporal passado (‘ontem’); que, em 1985) (um marco
temporal passado), a escrita de 32 poemas já estava concluída; e que a publicação do segundo livro ocorreu
depois de um marco temporal passado (1985): essa publicação saiu em 1987, quando o poeta tinha 17 anos.

Tempos formados com MR futuro (ex.: ‘amanhã’)

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MA = MR futuro (concomitantes) resulta em PRESENTE DO FUTURO (ex.: ‘Amanhã, às 15h30, estarei


chegando ao Rio’)
MA < MR futuro (anterioridade) resulta em PASSADO DO FUTURO (ex.: ‘Quando ela casar, já terá engravidado)
MA  MR futuro (posterioridade) resulta em FUTURO DO FUTURO (ex.: ‘Quando o bebê nascer, já terei
comprado todo o enxoval)

Acima, vemos que a chegada no Rio coincide com o momento de referencia futuro (três e meia da tarde de
amanhã), que a gravidez precede o casamento (embora os dois sejam futuros), e que o nascimento do bebê é
posterior a outro fato futuro, que é a compra do enxoval do bebê.

São então nove as possibilidades lógicas de tempo linguístico. Tempo é a localização de um acontecimento (MA)
em relação a um MR estabelecido em relação ao ME. Cada tempo pode ser expresso por mais de uma forma
verbal. A mesma forma verbal pode servir para a expressão de mais de um tempo.

Tempos do momento de referência presente

1 Presente - Concomitante em relação a um momento de referência presente:


"O ator emociona a todos"
A emoção ocorre no momento da enunciação.
Temos um presente que coincide com o momento da enunciação, o presente pontual (Um raio risca o céu); um
presente, em que o tempo do acontecimento é maior do que o momento da enunciação (nesse caso, a
coincidência diz respeito ao fato de que o acontecimento engloba o momento da enunciação), o presente durativo
(No século 20, a pesquisa brasileira dá um salto de qualidade); um presente que indica que a duração do
acontecimento é ilimitada, o presente omnitemporal ou gnômico (As placas tectônicas são subdivisões da crosta
terrestre que se movimentam de forma lenta e contínua e, às vezes, se chocam).
2 Pretérito perfeito 1 - Anterior a um momento de referência presente:
"Emagreci trinta e dois quilos"
O emagrecimento se dá num momento anterior ao agora.

3 Futuro do presente - Posterior a um momento de referência presente:


"O Brasil será uma grande potência"
O país se tornará uma potência num momento posterior ao agora.

Tempos do momento de referência pretérito

1 Presente do pretérito: Concomitante a um momento de referência pretérito. Esse tempo é expresso pelas
formas que denominamos "pretérito perfeito", aqui chamadas "pretérito perfeito 2", para distinguir do tempo
anterior do presente, e "pretérito imperfeito"; a distinção entre elas é aspectual: a primeira assinala um aspecto
limitado, acabado, pontual, dinâmico; a segunda marca um aspecto não limitado, inacabado, durativo, estático:

"Quando você entrou na Faculdade, eu já estava no último "No mês de janeiro, choveu muito"
ano" A chuva é concomitante ao marco temporal
Estar no último ano é concomitante ao marco temporal pretérito "quando você entrou na
pretérito "mês de janeiro" e denota
Faculdade" e indica uma duratividade no passado.
um acontecimento acabado.

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2 Pretérito mais-que-perfeito simples ou composto - Anterior a um momento de referência pretérito:

"Ele viajou para o exterior com o dinheiro que juntara em "Quando cheguei, ele já tinha saído"
seu trabalho"
Juntar dinheiro é anterior ao momento de referência passado "viajar para o exterior". A saída é anterior ao marco temporal pretérito "quando cheguei ".

3 Futuro do pretérito - Posterior a um momento de referência pretérito. É expresso pelas formas que
denominamos "futuro do pretérito simples" e "futuro do pretérito composto"; a diferença é aspectual: o primeiro
indica a imperfectividade (o não acabamento); o segundo indica a perfectividade (o acabamento):

"Naquele jogo, senti que meu time não ganharia o "No início da CPI, estava previsto que, no
campeonato". começo do recesso legislativo, ela teria
terminado os trabalhos".
Não ganhar é ação que se realizaria posteriormente ao marco temporal pretérito "naquele jogo";
O término dos trabalhos é posterior ao marco temporal pretérito "início"
é ação não realizada e, portanto, não acabada no momento do marco temporal.
da CPI, mas é anterior em relação a outro marco temporal "começo do
recesso legislativo", indicando, portanto, uma ação acabada em
referência a ele.

1 Presente do futuro - Concomitante a um momento de referência futuro:

"No ano que vem, trabalharei e estudarei"


Trabalhar e estudar são ações que ocorrem concomitantemente ao momento de referência futuro "no ano que vem"; observ
não indica uma posterioridade em relação ao momento presente, como no caso do futuro do presente.

2 Futuro anterior - Anterior em relação a um momento de referência futuro (expresso pela forma que denominamos futuro d

"No ano que vem, terei terminado o curso"


O término do curso é anterior ao marco temporal futuro "no ano que vem".

3 Futuro do futuro - Posterior ao marco temporal futuro:

"Viajaremos, depois que o ano letivo terminar"

Exercícios:
A- indique o MR, o MA e a relação entre eles nas sentenças abaixo:

(1) Presidente do clube promete apresentar reforços na próxima semana.


(2) No final do ano passado, o presidente do clube prometera apresentar reforços no mês seguinte.
(3) Pelé é considerado o maior jogador da história do futebol.
(4) Pelé foi apelidado de "O Rei" pela imprensa francesa, em 1961.
(5) Vinte anos depois de ter recebido o apelido de “O Rei”, Pelé receberia na França o título de Atleta do Século
(20).
(6) O milésimo gol foi marcado em 19 de novembro de 1969, às 23h11, no Maracanã.
(7) O último jogo pela seleção também foi no Maracanã, em 18 de julho de 1971.

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(8) Depois que pendurou as chuteiras número 39, Pelé se tornou embaixador para Ecologia e Meio ambiente
(ONU 1992), embaixador da Boa Vontade (UNESCO 1993) e embaixador para a Educação, Ciência e Cultura
(Unesco 1994).
(9) Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, foi Ministro dos Esportes do Brasil - de 1995 a 1998.
(10) Eu queria um café, por favor.
(12) Eu lhe daria o céu meu bem, e o meu amor também.
(13) Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar...
(14) Eu só sei que nada sei.
(15) Ela era uma criança muito bonita.
(16) Fazia um sol de rachar.
(17) Ninguém conseguia dormir.
(18) Vou sair agora.
(19) Ele foi embora nesse minuto.
(20) Se isso acontecesse comigo, eu morreria de susto.

B- Vamos analisar a letra da canção ’Saiba’, de Arnaldo Antunes

Saiba: todo mundo foi neném Saiba: todo mundo vai morrer
Einstein, Freud e Platão também Presidente, general ou rei
Hitler, Bush e Sadam Hussein Anglo-saxão ou muçulmano
Quem tem grana e quem não tem Todo e qualquer ser humano

Saiba: todo mundo teve infância Saiba: todo mundo teve pai
Maomé já foi criança Quem já foi e quem ainda vai
Arquimedes, Buda, Galileu Lao Tsé Moisés Ramsés Pelé
e também você e eu Ghandi, Mike Tyson, Salomé

Saiba: todo mundo teve medo Saiba: todo mundo teve mãe
Mesmo que seja segredo Índios, africanos e alemães
Nietzsche e Simone de Beauvoir Nero, Che Guevara, Pinochet
Fernandinho Beira-Mar e também eu e você

Aspecto verbal

(5) a. Ele é cozinheiro.

b. Ele está cozinhando.

Embora as duas sentenças (5) estejam no mesmo tempo (presente), as condições de verdade são diferentes,
pois elas diferem em aspecto. O aspecto interage com o tempo verbal (tense), que trata da localização temporal
de uma eventualidade na linha do tempo e em relação ao momento da fala. Segundo Comrie (1976), o aspecto
se define em função dos diferentes modos de observar a constituição temporal interna de uma situação (durativo
X instantâneo). Klein (1994) propõe que o aspecto corresponda à relação de inclusão ou não entre ME e MR,
enquanto que o tempo dependo do MF.

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