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O mapa é a representação de um todo estático que pretende revelar uma realidade física,
palpável, verificável. Nesse sentido, busca estabelecer verdades, definir certezas. A cartografia,
ao contrário do mapa, é um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os
movimentos de transformação da paisagem, dos sentimentos, dos desejos. Ela se constitui no
próprio movimento, se compõe ao mesmo tempo em que o território vai se apresentando, e se
desfaz.
Cristóvão Colombo possuía uma carta náutica, um astrolábio e navegava mirando as estrelas;
nas noites escuras confiava apenas na sua intuição de que encontraria terras nas quais se
acreditava existir criaturas marinhas que devoravam os navegadores, no fim do mundo que
então era quadrado. Apesar de valer-se de um mapa, construiu cartografias ao enfrentar o
desejante, o desafio de descobrir e construir o novo mundo.
Luis Alberto Warat tal como Colombo navegou por mares povoados por criaturas marinhas,
monstros terríveis, misticismos que se pretendiam científicos e verdadeiros. Da mesma forma
que Colombo deixou-se guiar pelas estrelas e nas noites de total escuridão, confiava na sua
intuição que, pouco a pouco, foi se tornando o seu maior guia. Os seus territórios desconhecidos
– ou, seus dragões como frequentemente referia-se –, foram-lhe guiando os passos que aos
poucos se afastavam das certezas prontas que aprendeu no círculo analítico de Ambrósio Gioja.
Olhando para a sua obra, as suas dobras e recantos, o que dizem, e tudo o quanto vai dizendo
por apreensões, por ondas, capturo os sentidos e estranhamentos que produziram os seus
movimentos sinfônicos. Com zelo examino e devoro as publicações, as datas, olho para o tempo.
E em meio ao tempo, questiono-me, como surgiu o desejo de transgressão em Warat, em que
momento ou que acontecimentos, leituras levaram a que desejasse o novo para o Direito?
Observando os caminhos, as bifurcações e os atalhos – várias entradas para possíveis começos
– centro-me, inicialmente, em uma linha que tomo como ponto de partida: a sua formação no
rigoroso círculo analítico de Ambrósio Gioja na Universidade de Buenos Aires, os movimentos
empreendidos rumo a semiologia, a epistemologia, a filosofia da linguagem, o ensino, a
carnavalização, o surrealismo, a psicanálise, o amor, a ecologia e a mediação. Movimentos
disruptores com a sua formação primeira, movimentos transgressores.
[...] as bases para esse empreendimento já haviam sido colocadas desde o Derecho al derecho,
obra publicada no ano de 1970. Verdadeiro manifesto surrealista e carnavalizado, onde o autor
pela primeira vez interpela o mundo jurídico acerca das suas verdades instituídas, suas certezas
e a sua mitologia, utilizando o potencial disruptor da arte. Coordenadas reveladas, que seriam
perseguidas passo a passo até a construção de uma gramática para o Direito onde a convivência,
o amor e a alteridade eram o seu centro.
Dizem os meus dragões que Warat desde sempre foi um transgressor – com classe como ele
referia– mas um transgressor. Construiu um sólido percurso teórico, um alicerce do qual ele
pode pouco a pouco desconstruir as verdades instituídas do mundo jurídico. Interpelou os
juristas, revelou-lhes as suas crenças mitológicas. E, à fluidez do seu conhecimento, que nada
tem de objetivo, ressaltou como poderia ser o que é só sendo linguagem. Um sistema de ilusões
– como diria anos mais tarde– , perverso, mas um sistema de ilusões. Realizou toda uma
trajetória de enfrentamento, para em seguida, propor a sua Epistemologia Carnavalizada e
Surrealista, o Ensino carnavalizado e surrealista, como forma de realizar uma concepção do
Direito que valorizasse o que realmente é essencial: a vida. Assim, entendia que a verdadeira
revolução é a revolução do homem.
Em sua trajetória de pesquisa e docência, produziu vários movimentos que marcam a procura
de lugares para a realização de um projeto de libertação do homem de todas as formas de
opressão, de legitimação do desejo, enquanto instâncias da vida e do conhecimento. O projeto
de revolução subjetiva. (GONÇALVES, 2007).
É certo que esse núcleo central se irradia para o campo do Direito, que ele entende como lugar
para construção dos vínculos e da alteridade e não apenas um local para a resolução dos
conflitos que emergem da sociedade, antes uma possibilidade de sua vivência. No início, esse
viés aparece como uma forte preocupação com o ensino jurídico, com a forma de produção de
conhecimento, com os vínculos entre professor e aluno para, em seguida, ser enraizado em seu
pensamento com o amadurecimento de suas ideias, em consonância com seus movimentos
incansáveis.
Para ele, a autonomia se revela na descoberta do sentido para a própria vida. Sem essa procura
não é possível a autonomia. Nesse caso, a aprendizagem de qualquer saber, a erudição
acumulada, as verdades assimiladas na academia, não tem o menor sentido ou valor se não
forem capazes de auxiliar o homem na construção desse processo (WARAT, 2006c).
Daí a sua crítica ao conjunto de crenças, instituições, valores, sentidos e significados que marca
o imaginário moderno capitalista. Um imaginário que alimenta os processos heterônomos de
produção de subjetividade. Um imaginário que anima a formação de corpos dóceis, a
domesticação, e termina por roubar a vida do homem.
Um Warat maduro escreve em tom quase confessional: “Aprendi filosofia no rigor dos conceitos
e o desprezo ao poético como forma de pensamento”(MONDARDO, 2000, p. 6).
Certamente a tentativa de imposição da frieza acadêmica não logrou êxito, pois, o poético e as
instâncias criativas da vida falaram mais alto. Dionísio produziu um encantamento maior do que
a estética apolínea. Assim, em meio a esses trânsitos, emerge a sua rebeldia com as verdades
instituídas do mundo jurídico, e a sua adesão às artes é então anunciada. E, no ano de 1970, ele
realiza o que pode ser considerada a sua primeira grande transgressão no mundo jurídico e no
círculo analítico de Buenos Aires. Refiro-me à publicação da obra Derecho al derecho, uma
coletânea de textos de sua autoria e de Ricardo Entelman. Essa é uma obra de subversão da
linguagem jurídica e de suas verdades, ou seja, do conjunto de crenças que animavam e animam
o mundo jurídico. É uma tentativa de produzir o novo, por meio da desmitificação e da crítica
ao saber tradicional. Nessa obra já está presente a crítica ao paradigma cientificista moderno e
a sua epistemologia que nega o sensível como instância criadora de mundo.
Para Warat o ensino do Direito também é fonte do Direito, isto porque a pedagogia tradicional
pretende a transmissão de um saber completo e o efeito dessa plenitude é a ideologia
funcionando no interior da própria educação. No Direito, a pedagogia ultrapassa as questões
meramente pedagógicas para situarse no lugar da gramática da produção de sentidos do Direito,
pois a plenitude da expressão pedagógica é um fluxo de crenças que reforçam o credo juridicista
da completa significação do Direito. Entende que, ao questionar as atitudes pedagógicas dos
docentes também estaria gerando um processo que serviria para que se desaprendesse a
perfeição das significações jurídicas. Assim, introduziu a problemática epistemológica no interior
da problemática pedagógica do ensino do Direito, tomando-a intrínseca à metodologia do
ensino.
Inquieto diante do ensino dogmático do Direito, da soberba “[...]e [d]a inércia expositiva que
dominavam o ensino jurídico: juízes, promotores e advogados bem sucedidos que ministravam
as aulas achando que a repetição mecânica dos conteúdos das leis, matizados com algumas
idealizações doutrinarias, fosse uma atitude pedagógica”(ROCHA; WARAT, 1991, p. 6), Warat
cria, juntamente com professores brasileiros e argentinos, a ALMED. Pretendiam uma nova
atitude pedagógica, um vínculo não autoritário entre professor e alunos, condições menos
arbitrárias e subjetivas de avaliação, um processo pedagógico mais participativo e menos
apegado às famosas e estéreis aulas magistrais (MONDARDO, 2000). Acreditavam na
possibilidade de aplicar, nos territórios jurídicos, as técnicas da dinâmica de grupo e as
contribuições da pedagogia científica; instrumentando, assim, técnicas operativas a serviço do
polo progressista do pensamento jurídico. Ao lado de suas preocupações epistemológicas e
metodológicas do ensino jurídico, Warat mantém suas reflexões semiológicas. No campo
semiológico ele tentou fornecer aos alunos um instrumental que pudesse desmanchar certas
ilusões que os juristas tinham sobre o funcionamento, a natureza e os efeitos da linguagem do
Direito e do ato de interpretação da lei.
Warat fala da pedagogia do desejo, e manifesta preocupação teórica pela dimensão afetiva do
processo de produção do conhecimento.
Nessa fase, ele trabalhava as questões políticas e afetivas de modo independente, entretanto,
dialeticamente vinculadas, como duas problemáticas que se vão interpenetrando, interferindo
e abalando-se mutuamente. Fala da absoluta impossibilidade de pensar o ensino do Direito
como lugar de neutralidade, política ou afetiva. A impossibilidade política ou afetiva de ensinar
sem uma tomada de posição sobre os destinos políticos daquilo que se ensina.
As ideias presentes na carnavalização também são trazidas para o ensino do Direito surgindo
assim a didática ou Ensino carnavalizado. Nesse sentido, o discurso monológico do professor é
substituído pelo discurso polifônico, em que todas as vozes são escutadas, todos produzem
conhecimento. A ausência de hierarquia entre os saberes acadêmico e popular também é uma
característica que afeta a sala de aula, pois, reconhece os alunos como potência criativa ao invés
de simples repositórios. A rua como instância do coletivo, do público ganha dimensão no ensino,
já que a sala de aula não é o único lugar de produção do saber. Por derradeiro, o riso, a alegria,
o lúdico, juntamente com a arte, ocupam relevante espaço porque diz de instâncias desejosas
da vida que precisam ser reconhecidas.
Em seguida à sua grande virada com a carnavalização, ele segue rumo ao surrealismo. Assim,
partindo dos aportes surrealistas, Warat (2004a) formulou o seu Manifesto do surrealismo
jurídico7 , uma inquietante proposta de reflexão e revolução da concepção do ensino do Direito,
um convite ao rompimento com as formas tradicionais do ensino jurídico e com a pedagogia
universitária que privilegiam o cientificismo, o racionalismo, o positivismo em detrimento da
dimensão poética.
Afirmo, pois, Warat como um eterno surrealista, anjo carnavalizado que não mediu esforços
para aproximar o Direito da vida, rompendo com os distanciamentos supérfluos inventados
pelos juristas.
Pois, para Warat o Surrealismo é mais que uma expressão estética, é uma concepção de vida,
um olhar diferente para o mundo, longe das convenções e dos lugares comuns. Uma radical
busca da alteridade, do reconhecimento do outro em sua expressão poética, porque propõe a
revolução da vida em todos os seus planos, nos seus valores, nas suas significações a partir da
imaginação, do sonho, do inconsciente e mostra o sentido singular de cada existência no
questionamento das formas oficiais da cultura.
Direito e Arte é uma proposta formulada a partir do pensamento de Warat, da sua atuação como
docente e pensador do Direito, em especial dos movimentos e reflexões sobre a Epistemologia
Jurídica, o ensino do Direito e as práticas jurídicas. De logo advirto que essa proposta, que
entendo como a síntese da obra de Warat, aponta para a minha própria leitura do seu trabalho.
Leitura que foi sendo esboçada no percurso da nossa intensa convivências afetiva e intelectual,
que teve início no ano de 2004, na cidade de Brasília, se expandiu rizomática e
desterritorializadamente, abrindo caminhos pelo Brasil e pela América Latina. Desde então,
tivemos oportunidade de compartilhar muitas ideias, em conversas formais e informais, em
salas de aula, auditórios e ambientes extramuros da academia.
Outras vozes artísticas foram sendo escutadas nesse caminho, ajudando a trilhar um universo
de polifonia criativa, assim Os quadrinhos puros do Direito, onde a Teoria Pura do Direito de
Hans Kelsen, é contada através da linguagem dos quadrinhos. Em um tom que se aproxima do
humor, que parodia a seriedade da obra, Warat cria a mulata fundamental como tentativa de
definir a norma fundamental kelseniana. Nada mais original, nada mais subversivo.