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O PODER DO ARQUIVO E SEUS LIMITES

ACHILLE MBEMBE
TRADUZIDO POR: CAMILA MATOS.

O termo arquivo refere-se primeiro a um edifício, ao símbolo de uma instituição pública,


que é um dos órgãos de um Estado constituído. Entretanto, por arquivo, entende-se
também a coleção de documentos — normalmente documentos escritos — mantidos
nesse edifício. Portanto, não pode haver uma definição de arquivo que não contenha a
ambos, o edifício em si e os documentos guardados ali.

DE DOCUMENTO A ARQUIVO

O status e o poder do arquivo derivam do emaranhado formado pelo edifício e pelos


documentos. O arquivo não possui status ou poder sem uma dimensão arquitetônica que
abranja o espaço físico do lugar do edifício, seus motivos e colunas, o modo como
arranjam-se suas salas, a organização dos documentos, o labirinto de corredores e o grau
de disciplina, meia-luz e austeridade que confere ao lugar a natureza de um templo e de
um cemitério: um espaço religioso, devido à série de rituais que constantemente têm
lugar ali, os rituais que observaremos a seguir são de uma natureza quase mágica; e um
cemitério, no sentido em que fragmentos de vidas e pedaços de tempo estão enterrados
ali, suas sombras e pegadas inscritas em papel e preservadas como tantas relíquias. Então
chegamos à inescapável materialidade do arquivo bem como em seu papel resultante
enquanto imaginário instituinte, como este ensaio se esforçará em mostrar.

Em relação aos rituais envolvidos, devemos observar como um arquivo é produzido, quer
dizer, o processo que culmina em um texto “secular” diferente de sua função anterior,
terminando sua carreira nos arquivo — ou melhor, tornando-se arquivo. Frequentemente
esquecemos que nem todos os documentos estão destinados a se tornar arquivos. Em

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qualquer sistema cultural, apenas alguns documentos preenchem os requisitos de
“arquivabilidade”. Exceto pelos documentos privados (documentos de igrejas, de
instituições privadas, de famílias, de companhias etc.), a maior parte dos documentos
considerados arquiváveis tem relação com o trabalho geral realizado pelo estado. Uma
vez recebidos, eles devem ser codificados e classificados. Então serão distribuídos de
acordo com critérios cronológicos, temáticos ou geográficos. Qualquer critério pode ser
utilizado nas etapas de codificação, classificação e distribuição, esses procedimentos são
apenas um modo de ordená-los. Deste modo, os documentos são imediatamente
colocados em um sistema que facilita sua identificação e interpretação. De maneira mais
séria, os documentos são então armazenados sob um selo de sigilo — por um período de
tempo que varia de acordo com sua natureza e com a legislação local. O processo que
termina por tornar um documento “arquivável" revela que são apenas produtos que
foram deliberadamente destituídos daquilo que faria deles documentos simplesmente
“profanos”; embora documentos não sejam nunca profanos.

Arquivos são o produto de um processo que converte determinada quantidade de


documentos em itens avaliados como dignos de serem preservados e mantidos em um
lugar público onde possam ser consultados de acordo com procedimentos e
regulamentos bem estabelecidos. Como resultado, os arquivos passam a fazer parte de
um sistema especial, bem ilustrado pelo sigilo e pelo enclausuramento que marcam os
primeiros anos de suas vidas. Por muitos anos, esses fragmentos de vidas e porções de
tempo são ocultados à meia-luz, apartados do mundo visível. Uma proibição em
princípio lhes é imposta. Essa proibição transforma o conteúdo desses documentos em
algo ainda mais misterioso. Ao mesmo tempo, se desenrola um processo de espoliação e
desapropriação: acima de tudo, o documento arquivado, em grande medida, deixa de
pertencer ao seu autor para se tornar propriedade da sociedade como um todo,
justamente porque, a partir do momento em que é arquivado, qualquer pessoa pode
reivindicar acesso ao seu conteúdo. Para além do ritual de torná-lo secreto, parece claro
que o arquivo é primeiramente o produto de um julgamento, o resultado do exercício de
um poder e autoridade específicos que envolve guardar determinados elementos em um
arquivo ao mesmo tempo em que outros são descartados. Dessa forma, o arquivo é
fundamentalmente uma matéria de discriminação e seleção, que, no final das contas,
privilegia alguns documentos escritos e nega privilégios a outros julgados “inarquiváveis”.
O arquivo é, portanto, não um ajuntamento de dados, mas um status.

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O STATUS DE DESTROÇOS

De que status estamos efetivamente falando? Em primeiro lugar, de um status material. A


natureza material do arquivo — pelo menos antes de ser digitalizado — significa que ele
está inscrito no universo dos sentidos: um universo tátil, porque o arquivo pode ser
tocado, um universo visível, porque o arquivo ele ser visto, um universo cognitivo,
porque ele pode ser lido e decodificado. Consequentemente, por estar lá, o arquivo torna-
se algo que elimina a dúvida ao exercer um poder debilitante sobre a dúvida. Ele então
adquire um status de prova. Ele é a prova de que uma vida realmente existiu, de que algo
realmente aconteceu, o relato de algo que pode ser construído. O destino final do arquivo,
contudo, está sempre situado fora de sua materialidade, na história que ele possibilita.

O seu status é também imaginário. O imaginário caracteriza-se por duas propriedades já


mencionadas aqui: a natureza arquitetônica e a natureza religiosa do arquivo. Nenhum
arquivo pode ser o repositório da história inteira de uma sociedade, de tudo o que
aconteceu com aquela sociedade. Através de documentos arquivados, nos deparamos
com porções de tempo a serem montadas, com fragmentos de vida a serem organizados,
um após o outro, na tentativa de formular uma história cuja coerência advém da
habilidade de forjar conexões entre o início e o fim. Uma montagem de fragmentos que,
deste modo, cria uma ilusão de totalidade e de continuidade. Sendo assim, igualmente ao
processo arquitetônico, o tempo entrelaçado pelo arquivo é produto de uma composição.
Esse tempo possui uma dimensão política que resulta da alquimia do arquivo: ele deveria
pertencer a todos. A comunidade do tempo, a sensação de que todos seríamos herdeiros
de um tempo sobre o qual deveríamos exercer os direitos de uma propriedade coletiva:
esse é o imaginário que o arquivo procura disseminar.

Esse tempo propriedade comum, entretanto, repousa em um evento fundamental: a


morte. Morte à medida em que o documento arquivado costuma ser, por excelência, um
documento cujo autor está morto e que, obviamente, esteve enclausurado pelo período
exigido antes que pudesse ser acessado. O teste representado por essa clausura, a
extensão desse período de tempo e a distância resultante em relação ao presente
imediato adiciona ao arquivo o conteúdo do documento. A não ser em casos
excepcionais, somente ao final desse período de enclausuramento é que o documento
arquivado é despertado do sono e retorna à vida. A partir daí, ele pode ser “consultado”. O
termo “consultado” demonstra claramente que não estamos mais falando sobre um

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documento qualquer, mas de um documento particular que, devido a uma designação
legal, possui o poder de informar aqueles engajados em uma investigação sobre o tempo
herdado em propriedade comum.

Em um nível mais básico, o arquivo impõe uma diferença qualitativa entre a propriedade
comum do tempo morto (o passado) e o tempo vivo que é o presente imediato. Essa parte
do seu status que é regida pelo imaginário emerge do fato de que ele está enraizado à
morte enquanto evento arquitetônico. Uma morte tem de acontecer para que surja um
tempo caracterizado pelo fato de que não pertence a um indivíduo específico,
precisamente porque esse tempo, a partir daquele momento, funda ou institui alguma
coisa. O poder do arquivo enquanto “imaginário instituinte” origina-se largamente desse
intercâmbio com a morte. Há três dimensões desse intercâmbio. A primeira envolve a
luta contra os fragmentos de vida que em dispersão. De fato, a morte é um dos esforços
mais radicais de destruição da vida e anulação de qualquer dívida relacionada a ela. O
ato de morrer, à medida em que provoca o deslocamento do corpo físico nunca ataca
totalmente ou de maneira bem sucedida todas as propriedades dos falecidos (em sentido
literal ou figurativo). Há sempre vestígios dos mortos, elementos que atestam que uma
vida existiu, que ações foram realizadas, e lutas engajadas ou evitadas. Arquivos nascem
de um desejo de reconstituir esses vestígios e a possibilidade, sempre existente, de que se
deixados à própria mercê, eles possam ganhar vida própria. Fundamentalmente, os
mortos devem ser formalmente proibidos de causar desordem no presente.

A melhor maneira de garantir que os mortos não causarão desordem é, não apenas
enterrá-los, mas enterrar também os seus “restos”, seus “destroços.” Arquivos são uma
parte desses restos e destroços e, desse modo, eles desempenham um papel religioso nas
sociedades modernas. Entretanto — lembrando sempre a relação entre os documentos e
a arquitetura onde são armazenados — eles também constituem uma espécie de sepulcro
onde esses restos descansam. Nesse gesto de enterramento e em relação à sepultura,
encontra-se a segunda dimensão do intercâmbio entre arquivo e morte. Arquivar é um
tipo de sepultamento, colocar algo em um caixão, se não para descansar, ao menos para
entregar elementos daquela vida que não poderiam ser destruídos pura e simplesmente.
Esses elementos, removidos do tempo e da vida, são atribuídos a um lugar e a um
sepulcro perfeitamente reconhecíveis por serem consagrados: os arquivos. Colocá-los
nesse lugar possibilita que se estabeleça uma autoridade inquestionável sobre eles e que

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se dome a violência e crueldade de que os “restos” são capazes, especialmente quando
abandonados à própria sorte.

O ARQUIVO COMO TALISMÃ

Até agora temos tratado os arquivos na base de seu poder enquanto relíquia assim como
sua capacidade de funcionar enquanto imaginário instituinte. Nós deliberadamente
deixamos dois aspectos de lado: a experiência subjetiva que indivíduos têm do arquivo e
a relação entre o arquivo e o Estado. No que diz respeito ao primeiro, é suficiente dizer
que de qualquer maneira que possamos definir os arquivos, eles não possuem significado
a não ser no âmbito da experiência subjetiva daqueles indivíduos que, em certa altura,
venham a utilizá-los. É esta experiência subjetiva que define limites para o suposto poder
dos arquivos, revelando sua inutilidade e sua natureza residual e supérflua. Muitos
fatores estão envolvidos nessa experiência subjetiva dos arquivos: quem os possui; de
que autoridades eles dependem; em que contexto político eles são visitados; sob que
condições eles são acessados; a distância entre o que se procura e o que se encontra; a
maneira como são decodificados e como o que é encontrado ali é apresentado e tornado
público.

A relação entre arquivo e Estado é tão complexa quanto. Ela repousa em um paradoxo.
Por um lado, não existe Estado sem arquivo — sem os seus arquivos. Por outro, a própria
existência do arquivo constitui uma ameaça constante ao Estado. A razão para isso é
simples. Mas do que em sua capacidade de recordar, o poder do Estado localiza-se em
sua capacidade de consumir tempo, ou seja, de abolir o arquivo e anestesiar o passado. O
gesto que cria o estado é um gesto de “cronofagia”. É um gesto radical porque consumir o
passado possibilita que ele se libere de todas as dívidas. A violência que constitui o
Estado repousa, no final das contas, na possibilidade, que nunca deve ser ignorada, de
recusar-se em reconhecer (ou liquidar) uma ou outra dívida. Essa violência se define em
contraste com a essência mesma do arquivo, uma vez que a negação do arquivo é
equivalente à negação da dívida.

É por isso que, em certo casos, alguns estados pensaram poder sobreviver sem arquivos.
Deste modo tentaram reduzi-los ao silêncio ou, de forma ainda mais radical, destrui-los.
Ao fazer isso, pensaram poder adiar a capacidade do arquivo de servir como prova de

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um fragmento suspeito da vida ou de uma porção de tempo. Mais interessados no
presente que no futuro, eles pensaram que poderiam calar o passado de uma vez por
todas e assim escrever como se tudo começasse do zero. Porque, no final das contas, tais
métodos afetam mais a materialidade do arquivo do que sua dimensão enquanto
imaginário instituinte, esses estados têm, ocasionalmente, entrado em apuros.

O poder do arquivo, por tudo o que não foi anulado e que foi, ao contrário, deslocado. A
destruição material só conseguiu inscrever a memória do arquivo e seu conteúdo em um
duplo registro. Por um lado, na fantasia, na medida em que destruir ou proibir o acesso
ao arquivo apenas lhe fornece mais conteúdo. Nesse casos o conteúdo é o mais irreal o
possível porque foi retirado da vista e enterrado de uma vez por todas em uma esfera
onde permanecerá desconhecido, desta maneira, abrindo espaço para toda sorte de
pensamentos imaginários. Por outro lado, o arquivo destruído assombra o Estado na
forma de um espectro, um objeto que não possui substância objetiva, mas que, por ter
sido tocado pela morte, é transformado em um demônio, o receptáculo de todas as ideias
utópicas e de toda a fúria, a autoridade em um julgamento futuro.

Em contraste, outros estados procuraram “civilizar” os modos como o arquivo pode ser
consumido, não ao tentar destruir sua substância material, mas através da comemoração.
Nesse modelo, o objetivo final da comemoração é menos lembrar do que esquecer. Para
que uma memória exista, primeiro é preciso que haja a intenção de repetir um ato
original. A comemoração, em contraste, é parte do ritual do esquecimento: despede-se do
desejo ou da intenção de repetir algo. “Aprender” a esquecer é muito mais fácil se, de um
lado, o que há de ser esquecido transforma-se em folclore (quando é oferecido às pessoas
em geral) e se, de outro lado, torna-se parte do universo das mercadorias. Portanto
passamos de seu consumo por um Leviatã que tenta liberar-se de todas as suas dívidas (o
que significaria adquirir o direito de exercer violência absoluta) ao seu consumo pelas
massas — consumo em massa.

A transformação do arquivo em talismã, entretanto, também é acompanhada pelo


apagamento de todo e qualquer fator subversivo da memória. Quando oferecem àqueles
que o carregam (neste caso, àqueles que o consumem) a sensação de estarem protegidos
ou de serem compartes de um tempo ou coautores em um evento, mesmo passado, o
talismã abranda a raiva, a vergonha, a culpa e o ressentimento que o arquivo tende, se
não a incitar, então a manter graças à sua função recordar. O desejo de vingança é assim

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aplacado, bem como os deveres de arrependimento, justiça e reparação são afastados. A
mercantilização da memória oblitera a distinção entre vítima e carrasco e,
consequentemente, permite que o Estado realize aquilo que sempre sonhou: a abolição
da dívida e a possibilidade de começar tudo outra vez.

CONCLUSÃO

Examinar arquivos é se interessar por aquilo que a vida deixou para trás, se interessar
pela dívida [histórica]. Entretanto, é também estar preocupado com os destroços. Nesse
sentido, tanto o historiador quanto o arquivista habitam um sepulcro. Eles mantêm uma
relação íntima com um mundo que está vivo apenas pela força de um evento inicial,
representado pelo ato de morrer. Nesse caso, escrever a história envolve meramente
manipular arquivos. Seguir trilhas, juntar novamente restos e sobras, remontando o
remanescente, é estar implicado num ritual que resulta na ressurreição da vida, em trazer
os mortos de volta à vida e reintegrá-los no ciclo do tempo de maneira que eles
encontrem, num texto, num artefato ou num monumento, um lugar para habitar, onde
possam continuar se expressando.

Lidar com a morte também evoca a possibilidade do espectro. O arquivo não pode se
relacionar com a morte sem incluir outro remanescente da morte — o espectro. Em
grande medida, o historiador engaja em uma batalha contra esse mundo de espectros. Os
últimos encontram, através de textos escritos, um caminho para uma existência entre os
mortais — mas uma existência que não se desdobra mais de acordo com a mesma
modalidade que àquela com a qual se desdobrava em vida. Pode ser que a historiografia,
assim como a própria possibilidade de uma comunidade política (polis), só sejam
concebíveis sob a condição de que o espectro que foi trazido de volta à vida permaneça
em silêncio, aceite que de agora em diante só poderá falar através de outro ou que será
representado por algum símbolo, por algum objeto que, uma vez que não pertence a
ninguém em particular, agora pertence a todos.

Sendo este o caso, o historiador não se contenta em trazer a morte de volta à vida. Ele a
recupera exatamente para melhor silenciá-la, transformando-a de palavras autônomas
em um suporte sobre o qual possa se apoiar para falar e escrever além de um texto

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originário. É por meio desse ato de espoliação — desconsiderando o autor — que o
historiador estabelece sua autoridade e uma sociedade estabelece um domínio específico:
o domínio das coisas que, por serem compartilhadas, pertencem exclusivamente a
ninguém (o domínio público). E é por isso que o historiador e o arquivista têm sido muito
úteis ao Estado, especialmente em contextos em que o último foi estabelecido como um
guardião indicado daquele domínio de coisas que pertencem exclusivamente a ninguém.
De fato, tanto o historiador quanto o arquivista ocupam uma posição estratégica na
produção do imaginário institucional. Pode-se perguntar qual será seu papel a partir de
agora, especialmente em contextos em que o processo de democratização de um gesto
cronofágico — isto é, a abolição do arquivo — está em estágio avançado.

O curioso é a antiga crença de que o Estado repousava em alguma coisa que não no
desejo de abolir o arquivo, de libertar-se dos destroços. O que poderia ser mais nobre?
Mas talvez essa seja uma condição da existência de toda sociedade: a necessidade de
destruir permanentemente os "destroços" — a domesticação, violenta se necessário, do
demônio que eles carregam.

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