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O destino parecia se divertir em maltratar Gail.

Primeiro aquele
acidente de carro, que deixou marcas profundas em seu corpo.
Depois, o noivo, que a abandonou! Ela já não tinha esperança de
ser feliz. De repente, porém, tudo mudou na vida de Gail: o
riquíssimo lorde escocês Andrew MacNeiil a pediu em casamento!
Mas não seria um casamento por amor. Nada de sentimentos,
intimidades... Andrew não confiava nas mulheres, queria apenas
uma "mãe” para seus filhos. Vítima de um matrimônio desastrado,
ele era um homem frio, desconfiado, quase cruel. Um perigo para
a sofrida alma de Gail. Desejosa de amor, ela aceitou o desafio...

Eu quero ser feliz!


Anne Hampson
“Dark hills rising”

CAPITULO 1
Dois imponentes cisnes brancos deslizavam pelo lago. Na margem,
patos e gansos se espreguiçavam sob o sol de fevereiro. A
temperatura extraordinariamente agradável tinha atraído para o
parque funcionários de escritórios e lojas, que passeavam ao
longo do lago.
Gail sentou-se num banco com um livro sobre o colo. Era seu
horário de almoço e durante vinte minutos ela ficou desfrutando
o ar fresco, o perfume das flores e o canto dos pássaros. De
repente, sobressaltou-se com a aproximação de duas crianças,
acompanhadas pelos pais.
Será que conseguiria escapar sem ser vista? Mas não havia
esconderijo possível em volta e ela teve que ficar quieta onde
estava, rezando para não ser notada.
— Papai, podemos dar comida aos cisnes? — perguntou a menina,
de uns quatro anos.
O pai pegou uma casca de pão do pacote que trazia nas mãos e
entregou a ela.
— Também quero um pouco. — O menino, uns três anos mais
velhos que a irmã, pegou um pedaço de pão e o atirou no lago.
— Não cheguem muito perto da água — alertou a mãe, uma
mulher de uns vinte e nove anos.

Ela estava ao lado de um carrinho de bebê, mas seus olhos


acompanhavam o movimento dos outros dois filhos, que riam e
conversavam, enquanto o bebê dormia tranqüilo. Era um menino
de poucas semanas de vida. . .
Os olhos de Gail se desviaram para o homem e foi com surpresa
que notou que os cabelos dele começavam a rarear. Faria trinta e
quatro anos no dia dez de julho...Já se haviam passado nove anos.
Como sempre, a amargura veio junto com a lembrança. Os lindos
olhos azuis de Gail se encheram de ternura quando ela olhou para
as crianças, embora em seu coração houvesse a dor da
desesperança. Aquelas lindas crianças poderiam ser dela... Se o
destino não tivesse decidido o contrário.
Durante muito tempo Gail ficara indecisa, mas agora sabia que
precisava arranjar um trabalho onde pudesse estar junto com
crianças. Ela iria mudar de emprego e muito em breve.
Para sua tristeza, a mulher a havia notado e falava com o marido.
Ele voltou-se e Gail se levantou, caminhando em direção à
margem do lago com os olhos na menininha, que pedia mais pão.
— Gail, como vai? Há quanto tempo!
— Vou bem, obrigada, Michael. — Ela sorriu e acenou para Joan.
Os olhos de Michael examinavam o rosto de Gail, sua pele
delicada e os longos cílios que, no passado, ele tanto elogiara.
Parecia fascinado pela mecha de cabelos que cobria parte de sua
testa. Gail enrubesceu, sabendo que ele devia se lembrar do que
havia por baixo daqueles cabelos. . .
— Você não mudou nada, Gail! Há quanto tempo não nos vemos?
Ela sabia a data com exatidão, mas respondeu vagamente: — Faz
muitos anos, Michael. Naquela época você só tinha Darryl.
— O garoto levantou a cabeça quando ouviu seu nome e ela sorriu
para ele. Gail então se inclinou sobre o carrinho de bebê e
perguntou:
— Que nome deram a ele?
— Você sabia que tínhamos outro menino? — A voz de Joan era
de surpresa.
— Sim, li a notícia no jornal,
— Nós pusemos o mesmo nome do pai de Michael, William.
— Ele deve ter ficado muito satisfeito com isso.
Gail e o pai de Michael tinham se dado muito bem. William a
adorava e não aceitara quando houve o rompimento, ficando de
relações cortadas com o filho durante uns tempos.
— Papai! Quero mais pão! — Patrícia puxava a manga do pai. — Os
cisnes estão indo embora, ande logo!
Gail olhou para o relógio.
— Preciso ir, senão vou me atrasar.
— Você ainda trabalha no mesmo escritório, Gail?
— Sim, Joan, ainda está lá. Bem, adeus para vocês.
— Adeus, Gail.
O encontro com o ex-noivo deixou Gail num estado de inquietação
que atravessou a tarde toda e continuou até que ela chegasse em
casa, às seis e meia da tarde. Desde a morte de sua mãe, ela
morava com a irmã Beth e o marido dela, Harvey. Ao entrar,
encontrou os sobrinhos à sua espera.
— Oi, tia Gail!
— Olá, meus queridinhos! — Gail os beijou e se preparou para
ouvir o relatório do dia.
— Fui escolhido para o time de futebol, tia Gail! Como ainda não
tenho nem onze anos, sou o mais novo do time!
— Isso é maravilhoso, Thomas. Eu tinha certeza de que você
seria escolhido. E você, Marilyn?
— Vou ajudar a tomar conta dos mais novos na escolinha!
Beth entrou na sala com uma bandeja.
— Muito bem, crianças, vão brincar em outro lugar! Queremos
tomar uma xícara de chá sossegada!
As crianças obedeceram imediatamente e Gail se voltou para a
irmã.
— Encontrei Michael e Joan hoje. Eles tiveram outro bebê. A
resposta de Beth veio em tom irônico:
— Ora, mas que ótimo para eles! E Michael ainda costuma ficar
bêbado antes de levar a família para um passeio de carro?
Gail ignorou o comentário.
— O bebê se chama William, o nome do pai de Michael! Beth
estava vermelha de raiva, como sempre ficava quando o nome de
Michael era mencionado. Mas ela tentou controlar seu humor,
— Sei que você adora crianças, Gail, mas tente esquecer Michael
e os filhos dele. Você é linda e mais cedo ou mais tarde alguém
irá...
— Linda? Com estas cicatrizes?
— Com exceção do rosto, todas estão num lugar onde não podem
ser vistas. E você não precisaria carregá-las, se quisesse. A
cirurgia plástica progrediu muito nos últimos nove anos.
Era verdade. Mas, embora a cirurgia pudesse apagar as marcas
do seu corpo. Não havia cura para o que Michael tinha feito
quando batera aquele carro.
—- Você é linda e inteligente, Gail. E se casará um dia, apesar de
não acreditar nisso.
— Tenho vinte e oito anos, Beth. E, depois, quem vai querer uma
mulher estéril?
— Não use nunca essa palavra, Gail!
— E existe outra? Não, Beth, não há a mais remota possibilidade
de eu me casar. — A voz de Gail era fria, mas seus pensamentos
estavam nas crianças de Michael.
Ela ainda tinha os desejos naturais de uma mulher, ainda ansiava
pela realização que apenas a maternidade poderia trazer. Mas a
sensação de perda e as palavras decisivas do médico não se
afastavam de seu pensamento.
— Esse maldito Michael Bankfoot! Por que ele escapou sem um só
arranhão? Por que ele não ficou aleijado pelo resto da vida?
— Beth, não fale assim!
— Gail! Sei que sou rancorosa e vingativa, mas você é minha irmã
e ele não significa nada para mim. Ele estava bêbado, e ainda
assim escapou ileso. Depois jogou você fora porque não poderia
ter filhos. E tudo aconteceu por culpa dele!
— Ele adora crianças, Beth, e...
— Você também adora! Ele foi terrivelmente baixo com você.
Agiu como um ordinário, um canalha, um... Homem sem alma! E o
que me revolta ainda mais é ver que tudo dá certo com ele,
enquanto você... — Ela se interrompeu quando o ouviu o barulho
do carro do marido chegando. — Mas você ainda achará alguém,
Gail. Alguém que valha mais do que Michael Bankfoot.
— Não. Beth, eu teria que dizer a verdade a qualquer homem que
quisesse casar comigo, assim como alertei Jerry Lathom.
— Jerry era um bom rapaz. Você contou cedo demais, Gail.
— Não concordo com você, Beth.
— Poderia ter esperado mais um pouco, até que ele se
apaixonasse por você. Mas você contou um mês depois que
começaram a sair!
— Porque percebi como as coisas estavam andando. Estávamos
nos apaixonando e eu sabia que precisava lhe dizer
imediatamente, para o nosso bem. Se ele não tivesse se
importado, o nosso relacionamento poderia ter continuado, mas
ele se importou, Jerry queria uma família, o que, afinal de contas,
é bem natural. Rompemos antes que a situação ficasse mais séria.
Ele me agradeceu pela honestidade e eu sei que fiz bem em
contar.
— Talvez, Gail, talvez. . . Mas eu queria perguntar uma coisa:
você ainda sente alguma coisa por Michael?
— Não, Beth, nada. Mas o encontro com as crianças fez com que
me sentisse... Infeliz, pois sei que elas poderiam ter sido minhas.
— Ela fez uma pausa. — Não, Beth eu não sinto nada por ele.
Michael matou o meu amor quando me rejeitou. Não sirvo para
heroína, sou humana. Ele foi o culpado pelo acidente e nunca
deveria ter rompido nosso noivado. De qualquer jeito, posso
encarar isso como um teste. O amor dele não sobreviveu ao
teste, portanto estou destinada a permanecer uma solteirona.
Beth suspirou com impaciência e voltou à cozinha, para terminar
o jantar.
Gail subiu para o banheiro e colocou uma touca de banho. Com os
cabelos presos sua cicatriz ficava à mostra; era uma mancha
escura e feia, contrastando com a pele clara e aveludada do
rosto. As outras cicatrizes estavam no corpo; duas nas coxas e
um grande talho que descia do ombro direito até o meio das
costas. Gail havia sofrido inúmeros ferimentos e os médicos
acharam um milagre que ela tivesse escapado com vida.
Muitas vezes ela havia pensado em fazer uma operação plástica,
mas sempre mudava de idéia, Ninguém veria seu corpo além dela
mesma, portanto por que e para que se sujeitar a tamanho
sacrifício?
Gail tinha direito a uma semana de férias em março e havia plane-
jado passá-la com Heather, sua irmã mais nova. Heather se
casara com um homem rico e morava numa casa magnífica nas
proximidades da floresta de Sherwood. Gail os visitava pelo
menos uma vez por ano e agora estava ansiosa para se deliciar
com o luxo de ter seu café da manhã servido no quarto, por uma
empregada que ficaria à sua disposição.
Na sexta-feira, ela viajou para a casa da irmã e foi recebida na
estação de trem pelo motorista. Isso a surpreendeu, pois sua
irmã sempre fazia questão de esperá-la. O motorista explicou
que a mãe de Roger, seu cunhado, havia levado um tombo e
Heather tinha ido vê-la.
— Levei sua irmã até lá antes de vir esperá-la. Depois de deixar a
senhorita em casa, irei buscá-la.
— A Sra Swinbourne se feriu muito?
— Não. A informação que temos é que ela está muito abalada,
mas não houve nenhum ferimento grave.
Chegando à casa de Heather, Gail foi recebida por Trudy, uma
das criadas, que a levou até o quarto que ela sempre ocupava, na
frente da casa.
— Vou desfazer a sua mala, srta. Kersley. Por que não vai tomar
um chá? Greta lhe servirá.
— Não, obrigada. Não estou cansada nem com sede. Vou ajudá-la.
Trudy continuou falando:
— Temos duas crianças nos visitando. Com elas, temos quatro
crianças aqui. Elas nos mantêm bastante ocupadas, sem dúvida.
Ainda bem que não vão ficar muito.
— Duas crianças? Minha irmã não disse nada quando liguei, na
terça-feira.
— Elas só chegaram na quarta à noite. O pai é um lorde escocês.
Ele é amigo do Sr. Swinbourne estudaram juntos.
— Um lorde escocês? Ah, sim, o lorde de Dunlochrie.
— Isso mesmo. Esqueci que a senhorita o conhecia.
— Não conheço, minha irmã o mencionou uma ou duas vezes. —
Heather não gostava dele. Achava-o ríspido e brusco, chegando
até a ser rude. — Ele não está aqui com as crianças?
— Não, ele tinha negócios a tratar em Londres e o Sr.
Swinbourne sugeriu que deixasse as crianças aqui. Ele deve voltar
na próxima semana para apanhá-las.
— Ele é viúvo, não é? — perguntou Gail, enquanto colocava sua
camisola embaixo do travesseiro.
— Sim. — Trudy fez uma pausa. — Não pude evitar ouvir parte da
conversa. O Sr. MacNeill disse que iria procurar uma governanta
em Londres para as crianças. Bem, suponho que seja para as três.
— Três?
— Ele tem uma filha de quinze anos, mas a deixou em casa.
Heather tinha mencionado apenas duas crianças. Robbie, de sete
anos, e Shena, de cinco e meio.
— Qual é o nome da filha mais velha?
— Morag. Existe uma grande diferença de idade entre eles, não
acha?
— Entre Robbie e Morag? Sim, há mesmo.
Heather uma vez mencionara que Andrew MacNeill tinha trinta e
sete anos. Ele deveria ter se casado muito jovem para ter uma
filha de quinze anos.
— Bem, terminei o meu serviço aqui, srta. Kersley. Quer que pre-
pare o seu chá agora?
— Sim, por favor, Trudy. Descerei logo.
Depois de lavar o rosto e escovar os cabelos, Gail desceu para a
sala de estar. Alguns segundos depois Heather chegou,
desculpando-se por não ter ido encontrá-la na estação.
— Prometi a Roger que voltaria mais tarde para ver a Sra Swin-
bourne, mas poderemos ficar juntas por umas duas horas. — Ela
parou de falar e ficou sorrindo para Gail.
Sempre houvera uma grande afeição entre as três irmãs. Fisica-
mente elas eram muito diferentes uma das outras. Heather era
loira e bonita. Beth era morena e sem grandes atributos físicos.
Gail também era loira, tinha traços clássicos e delicados e, à
primeira vista, dava uma impressão de fragilidade. Mas, em
caráter, era a mais forte e firme das três.
— Gail, você já comeu? — perguntou Heather.
— Trudy está preparando o chá. Aqui está ela.
— Preparei alguns sanduíches, srta, Kersley. Gostaria de mais
alguma coisa?
— Não, Trudy, isso está ótimo, obrigada. Onde estão as crianças?
Ah, Gail, Trudy já lhe contou sobre os nossos visitantes?
— Contou, sim.
As crianças estão brincando perto da casa, srta, Kersley. Eu pedi
que não fossem muito longe.
Assim que preparou a mesa, Trudy saiu e Gail perguntou à irmã
sobre os filhos do lorde Dunlochrie.
Eles são muito bonzinhos, especialmente Robbie. É O pai que eu
não consigo suportar.
— Trudy contou que ele está em Londres.
Sim, parece que ele tem tido dificuldades com as suas gover-
nantas.
— Do jeito que você fala parece que ele tem várias.
— Já tiveram várias — disse Heather, servindo chá à irmã. —
Não sei muito sobre ele. Como disse, ele é amigo de Roger, não
meu. Roger não fala muito, mas, pelo que pude perceber, a mulher
de Andrew não era flor que se cheirasse e a filha mais velha saiu
igual à mãe. E a menina quem causa confusão com as governantas.
Elas nunca param, pois não conseguem suportar o temperamento
e o comportamento dela.
— Mas ela já não está um pouco grande para ter uma governanta?
— A governanta é para Robbie e Shena, mas Morag lhes torna a
vida intolerável e por isso elas vão embora logo.
— E o Sr. Macneiil está procurando uma nova governanta? —
perguntou Gail, pensativa.
— Ele colocou anúncios nos jornais de Londres e agora foi entre-
vistar as pretendentes.
Gail mexia o chá, imersa em seus pensamentos.
— Por que será que há essa diferença tão grande entre a garota
mais velha e Robbie? Trudy me contou que ela tem quinze anos.
— Não sei muito, Gail. Como já lhe disse, Roger não conta nada
sobre o amigo. Pelo que entendi, a mulher de Andrew foi embora
com outro homem quando Morag tinha três anos e ficou fora um
ano.
— E ele a perdoou?
— Deve ter perdoado. Andrew é um homem que cumpre com as
suas promessas. Creio que para ele casamento é uma coisa
definitiva Desconfio que tentou evitar ter mais filhos para não
vê-los crescer sem a mãe caso sua mulher o deixasse novamente.
O que, aliás, ela acabou fazendo. Quando ela voltou para casa
pela segunda vez, eles tiveram Robbie, Creio que Andrew
resolveu ter um herdeiro. Dezoito meses mais tarde Shena
nasceu. A mãe deles morreu num acidente de esqui. Disseram que
ela estava de férias com uma velha amiga de escola, mas, na
realidade, estava na Áustria com um dos seus namorados.
— Um dos seus namorados?
— Roger diz que ela era doente, mas eu uso um nome diferente
para isso! A filha puxou à mãe e dá um trabalho enorme ao pai!
— Mas. . . Aos quinze anos, Heather!
— Sim, Gail, é triste, mas elas começam bem mais cedo hoje em
dia. É pena, pois a infância, um período tão bonito da existência,
acaba bem mais cedo e não volta mais.
— Pobre Sr. Macneiil. Como deve ser terrível para um homem na
posição dele ser assim tão infeliz!
— Não sei, Gail. Ele não é uma pessoa tão boa assim.
— É mesmo, Heather? Você não me falou muito sobre ele. Sei que
tem trinta e sete anos, que é um lorde escocês, e acho que é só.
Disse também que ele a convidou para visitar a Escócia, mas você
recusou porque não o suporta.
— Ele convidou Roger para a caçada aos veados e achou que
deveria me incluir. Mas eu recusei e Roger foi sozinho.
— Por que você não gosta dele?
— Porque é muito arrogante e presunçoso, Gail. Não sei o que
Roger vê nele. Ele se aborrece quando falo alguma coisa sobre
Andrew, por isso evito tocar no assunto. Nos encontramos em
três ocasiões e raras vezes ele se dignou a me dirigir à palavra.
E, quando o fez, foi tão seco que tenho certeza de que ele
detesta as mulheres.
— Pode ser, principalmente se ele sofreu muito nas mãos da
mulher e da filha.
— Mas Andrew não demonstra o seu sofrimento. É duro e insen-
sível demais pata isso. Um típico escocês, na realidade. Sempre
achei que a humilhação o aborrecia mais do que a dor. Acho que
ele não tirou nenhuma lição de vida das situações e dificuldades
pelas quais passou.
— Ele deve ter amado a mulher para aceitá-la de volta por duas
vezes!
— Não sei dizer. Andrew não me parece ser capaz de amar.
— Deve ser terrível, Heather, passar por toda essa humilhação
que a filha está causando, Mesmo porque todos devem saber, eu
suponho.
— Bem, não dá para manter uma coisa dessas em segredo. Como
já disse, não sei muito sobre ele, mas a segunda vez que o vi foi
na casa de um dos colegas de escola de Roger. Mary, a mulher
desse colega, é do tipo tagarela e me contou o pouco que sabia.
Não há dúvida que Morag é tão terrível quanto sua mãe foi e
exageradamente interessada em homens. Ela também é
desonesta; roubou dinheiro de uma amiga e foi passear fora do
país com um dos seus namorados.
— Mas ela é tão ruim assim?
— De acordo com Mary, Morag MacNeill não merecia estar viva!
— Heather fez uma pausa enquanto se servia de um sanduíche. —
Ela chegou a insinuar que Morag não é filha de Andrew...
— Mas isso não é coisa que se diga!
— Naquela época Andrew confiava na mulher e nunca suspeitaria
que ela fosse capaz de mentiras. Agora, se ele tem dúvidas sobre
a paternidade de Morag, ninguém sabe.
— Então, não é à toa que ele é insensível e duro. É um homem do
qual devemos sentir pena.
— Pena?! Andrew nunca agradeceria a você por sentir pena!
Espere até conhecê-lo!
— Vou conhecê-lo?
— Ele deve voltar na quarta-feira. E você ficará até sábado.
— E... Ele tem uma propriedade muito grande, não é mesmo?
— Claro, não seria um lorde se não tivesse. A propriedade onde
mora tem muitos hectares, mas ele tem outras propriedades
ainda maiores do que essa, no norte. E também deve ter outras
fontes de rendimento. Na indústria, se não me engano. Tenho que
admitir que ele trabalha muito e que é uma pessoa importante.
Andrew é membro da Guarda de Segurança da Rainha, dos
Arqueiros Reais e outras coisas. Olhe, Gail, lá vêm as crianças!
Gail olhou ansiosamente através da janela. As quatro crianças
chegaram correndo e gritando:
— Tia Gail! Faz tempo que você chegou? — Amanda a abraçou e
beijou carinhosamente. — Você viu? Temos visitas!
__ Estou vendo, meu amorzinho!
— Venha aqui cumprimentar a minha tia. — Amanda dirigiu-se às
duas crianças, que estavam paradas junto à porta.
— Eles são tímidos — comentou Simon, rindo. — Venham! Tia Gail
não vai morder vocês!
Robbie veio primeiro e estendeu a mãozinha.
— Muito prazer.
— Prazer em conhecê-lo, Robbie. — Ele era saudável e forte, com
traços firmes. — Essa é sua irmã?
— Eu sou Shena. — Ela examinou Gail com desconfiança, antes de
pegar-lhe a mão. Não era tão calorosa e espontânea como o
irmão. — Você vai morar aqui?
— Só por alguns dias, Shena.
— Venha brincar com a gente, tia Gail, como você sempre faz.
— Sua tia está tomando chá agora, Simon.
Mais tarde Gail saiu e eles todos jogaram peteca no gramado. No
dia seguinte, ela e Heather levaram as crianças ao bosque. No
domingo, Roger os levou para um passeio de carro e eles pararam
num pequeno restaurante no campo para tomar chá. Amanda e
Simon estavam de folga da escola e passaram os dois dias
seguintes se divertindo fora de casa.
— Você adora isso, não é mesmo, Gail? — perguntou Heather à
irmã.
Na verdade, Gail estava adorando a companhia das crianças, mas
os dias passavam depressa demais. Embora estivesse ansiosa
para conhecer o pai de Robbie e Shena, lamentava que as férias
estivessem terminando.
Andrew MacNeill chegou um pouco antes do jantar, na quarta-
feira. Gail o viu pela janela do quarto. Ele era alto, ereto, com
ombros largos e musculosos. Um tipo que realmente
impressionava quem o visse. De longe Gail não pôde ver seus
traços. Ela se examinou mais uma vez no espelho para se
certificar de que os cabelos puxados para frente lhe cobriam a
cicatriz e desceu para a sala de estar, onde sua irmã e seu
cunhado tomavam um drinque com o hóspede.
Andrew se voltou quando ela entrou, lançou-lhe um olhar indife-
rente e continuou sua conversa com Roger. Realmente, boas
maneiras não eram seu forte. Assim mesmo, por algum motivo
inexplicável, Gail o desculpou.
Roger sorriu para Gail e os apresentou. Depois de se apertarem
às mãos, Andrew perdeu o interesse por ela novamente. Ele
praticamente ignorava a presença de Heather. Ela fez uma
careta pelas costas dele e convidou a irmã a ajudá-la com o
jantar.
— Mas Louise e Trudy não estão cuidando do jantar, Heather? —
perguntou Gail, enquanto saíam.
— Sim, mas eu tinha que sair de lá! Ele não é insuportável? Roger
vai ficar irritadíssimo comigo, mas não pretendo aturar os seus
amigos presunçosos e mal-educados!
— Ele tem mais amigos assim, Heather?
— Não, Gail, é impossível que haja mais alguém como esse!
— Talvez ele prefira a companhia masculina — disse Gail, quando
entraram, na cozinha.
— Talvez? Você tem alguma dúvida? É mais do que óbvio que
Andrew odeia as mulheres, que as vê como objeto sexual e
subjugado à vontade dos homens. Para mim é evidente que ele
prefere a companhia de outros homens!
— Estão falando do Sr. MacNeill? — perguntou Louise.
— E de quem mais?
— Ele é o homem mais bonito que eu já conheci, Sra Swinbourne.
É tão sério tão atraente. Parece um galã de cinema.
Gail e a irmã se entreolharam e riram juntas; Trudy observou:
— Louise está apaixonada pelo Sr. MacNeill.
— Bem, Louise, gosto é uma coisa que não se discute. Como vão
indo as coisas aqui?
— Muito bem, Sra Swinbourne. Acho que desta vez me superei na
preparação dos pratos. Espero que o Sr. MacNeill aprecie o
jantar.
— Louise. . . Nós temos dois convidados à mesa — disse Heather.
— Oh, desculpe-me. Espero que a senhorita também aprecie a
refeição, srta. Kersley.
— Tenho certeza que sim, Louise.
Gail sentou-se em frente a Andrew à mesa do jantar e, como ele
não lhe prestou a mínima atenção durante a refeição, ela pôde
examinar-lhe o rosto com cuidado. Ele era moreno, esbelto, com
um queixo bem talhado e lábios firmes. Os cabelos eram negros,
ondulados e ligeiramente cinzentos nas têmporas. Seus olhos
eram azuis e penetrantes. Ele tinha um ar duro e firme, mas as
linhas do seu rosto demonstravam o ar de um membro da
aristocracia escocesa.
Ele acabou notando seu interesse e si; voltou com um olhar
interrogativo e arrogante. Ela enrubesceu e baixou o olhar para o
seu prato, mas pôde sentir que ele continuava a examiná-la. Gail
levou a mão aos cabelos que cobriam sua têmpora se perguntando
por que estaria tão preocupada em esconder sua cicatriz.
Pela conversa de Andrew com Roger ela percebeu que ele não
conseguira uma governanta. Mais tarde, quando Heather e Roger
tinham saído por um momento da sala, Gail se dirigiu a Andrew:
— Minha irmã me disse que o senhor esteve à procura de uma
governanta.
— Foi isso o que eu quis que ela e Roger entendessem. . .
A voz era profunda e fria, a resposta estranha e evasiva. Mas
Gail não teve tempo de prosseguir, pois Trudy entrou com uma
bandeja para servir o chá. Logo depois, Roger e Heather
entraram e ele perguntou a Andrew:
— Você precisa mesmo ir amanhã? Por que não fica mais algum
dia?
— Obrigado, ficarei. — A voz dele continuava sem expressão.
Robbie tinha aceitado Gail de imediato, o que não acontecera com
Shena. Ela era indiferente e orgulhosa, atitude estranha para
uma menina daquela idade. Assim mesmo, as quatro crianças
estavam sempre dispostas a brincar com Gail.
Uma tarde, Gail estava lendo para os quatro na sala de estar.
Todos estavam sentados sobre o tapete, à volta dela; Robbie,
acomodado bem perto, encostara sua cabeça sobre os joelhos de
Gail. Quando ela levantou os olhos percebeu que Andrew os
observava da porta e parou de ler, embaraçada.
— Oh, por favor, continue, tia Gail! Estou adorando — implorou
Robbie.
— Você está gostando mesmo? — perguntou Gail.
— Estou adorando! Ninguém lê para nós lá em casa!
Ela mais uma vez olhou para o homem, parado junto à porta.
— Não quero interrompê-la, srta. Kersley. Continue. As crianças
estão muito interessadas — disse Andrew, antes de sair e fechar
a porta.
Na noite seguinte ela parou no terraço antes de ir dormir. Já
tinha desejado boa-noite a todos e se despedido de Andrew, quê
partiria na manhã seguinte. A atmosfera era quente e agradável.
A noite estava calma e tranqüila, mas Gail sentia-se inquieta. Ela
sabia a razão dessa inquietação; tinha dito adeus a Robbie e
Shena para sempre. Era provável que nunca mais os visse. Robbie
havia tocado seu coração. Ela pensava que, se pudesse ter um
filho, gostaria que ele fosse como Robbie.
De repente, sobressaltou-se com a aproximação de Andrew. Ele
parou ao lado dela, alto e imponente. Gail comentou:
— A noite está muito agradável. Vim tomar um pouco de ar, antes
de ir dormir. — Ele continuou em silêncio. — Acho que o senhor
fará uma boa viagem amanhã.
— Sim, creio que sim.
— Heather me contou que o senhor viajará de carro.
— Sim.
Ela ficou imaginando por que ele teria se aproximado se não
desejava conversar. Depois de mais alguns minutos de silêncio,
Andrew falou:
— Srta. Kersley tenho observado o seu relacionamento com os
meus filhos. Como a senhorita sabe, estou à procura de alguém
que tome conta deles.
— Sim — respondeu ela, com a cabeça a girar. — Soube que o
senhor estava à procura de uma governanta.
— Quero alguém que cuide das minhas crianças.
— O senhor... N-não encontrou uma governanta que lhe agra-
dasse?
Era o trabalho que ela sempre desejara, mas o que deveria
responder se ele a convidasse?
— Eu não estava procurando uma governanta.
— N-não?! Mas Heather disse que o senhor tinha colocado um
anúncio e...
__ Sim, coloquei um anúncio para governanta, mas nenhuma das
candidatas me agradou.
__ Não estou entendendo. O senhor acabou de dizer que não
estava procurando uma governanta!
__ Estou procurando uma esposa. Mas, obviamente, não poderia
publicar um anúncio desses. Esperava que uma das candidatas
fosse conveniente, mas, como já disse, nenhuma serviu — ele
falava com frieza, sem demonstrar a mínima emoção.
— Uma esposa, Sr. Macneiil?
— Minhas crianças estão carentes desde o dia em que nasceram.
Mesmo que eu conseguisse alguém, uma governanta não seria a
solução para o problema. Quero que os meus filhos tenham uma
mãe.
Mas por que ele estava falando aquilo tudo? Ela teria aceitado o
emprego de governanta, sem hesitar.
— Acho que entendo, Sr. MacNeiil. É que por um momento pen-
sei... Pensei que o senhor fosse me oferecer o cargo de
governanta.
—- E a senhorita teria aceitado?
— Sim, Sr. Macneiil, eu teria aceitado.
— E se eu pedisse para cuidar deles como mãe?
Ser esposa e mãe... Era isso que Gail sempre desajara antes do
acidente. Mas, casar-se com um estranho...
— Não posso. Quero dizer. . . É impossível, Sr. MacNeiíl. Mal nos
conhecemos...
— Mas a senhorita estava inclinada a aceitar o cargo de
governanta.
— Sim, isso eu aceitaria.
— A posição que estou lhe oferecendo é apenas um pouco
diferente disso. Seria um acordo comercial, srta. Kersley.
Preciso me casar para o bem dos meus filhos. Talvez a senhorita
não esteja informada sobre a minha filha mais velha. Ela não teve
o amor da mãe e isso provocou efeitos desastrosos. Ela já não
tem mais salvação. Mas não permitirei que os pequenos sigam o
mesmo caminho.
— Não tem mais salvação?! Como pode dizer isso?
— É claro que detesto ter que admitir, mas é verdade. Não sei o
que será dela. Já tentei de tudo, mas ela já não me ouve. Ela está
perdida, mas Robbie e Shena ainda não.
— E nunca estarão! Eles o amam. Posso garantir que eles o amam
muito.
— Robbie me ama, é verdade, mas não tenho tanta certeza assim
no que diz respeito a Shena. Ela está começando a se tornar uma
criança difícil, arredia. — Ele fez uma pausa. Quando reiniciou,
sua voz estava vibrante de emoção: — Shena não pode ir pelo
mesmo caminho da irmã!
Gail pensou no que Heather havia dito; Mora talvez não fosse
filha de Andrew e, olhando para o rosto dele, ela de repente
sentiu que isso poderia ser verdade. Será que ela conseguiria
ajudar Morag?
Uma hora mais tarde, Andrew e Gail entraram em casa, Heather
e Roger tinham ido para a cama. Tudo estava em silêncio.
— Gail, você emende que precisa ser imediatamente?
— Sim, Andrew, eu entendo.

CAPÍTULO II

Heater andava de um lado para o outro no quarto da irmã, com o


rosto pálido e alterado.
— Você enlouqueceu, Gail! Essa obsessão por crianças afetou o
seu raciocínio!
— Serei esposa e mãe, tudo que eu sempre sonhei. Você não vai
me negar isso, vai?
— Você não será nem uma coisa nem outra, Gail! Você está se
iludindo! Ele mesmo deixou claro que tudo não será mais do que
um acordo de negócios! Como você pode dizer que será uma
esposa?
— Sexo não é tudo, Heather. .
— Mas você é uma mulher normal! Encontrará alguém que a ame,
com quem possa ter um relacionamento natural e sincero.
Ninguém pode se realizar num casamento falso como esse que
você está arranjando! Gail, pelo amor de Deus, pense!
— Já dei a ele a minha resposta e não pretendo voltar atrás.
— Mas, Gail, você já viu que tipo de homem ele é! Ele é duro e
cruel!
— Cruel?!
— Mas será que você não enxerga? Não consegue ler no rosto
dele? E, além do mais, Andrew não gosta de mulheres, você teve
prova suficiente disso nos últimos dias. Ele nem sequer se dignou
a dirigir a palavra a nós duas!
— Não tem importância que ele não goste de mulheres. Só
estarei ao lado dele para tomar conta das crianças. Não creio que
vá ter muito contato com Andrew.
— Você acha que não terá contato com seu próprio marido? Mas
que tipo de vida é essa?
Gail deu de ombros.
— Já expliquei tudo a você, Heather. Quero ter um marido como
todas as outras mulheres e serei esposa de Andrew. A única
diferença é que não haverá exigências de um sobre o outro.
— E você se satisfará com uma vida assim?
— Estou tomando uma decisão por mim mesma. Sei exatamente o
que me espera.
— Seja um negócio ou não, o fato de ele odiar as mulheres pode
afetar você.
— Acho compreensível que ele não goste de mulheres...
— Ah!, Não! Eu desisto! Mas sei que daqui a um mês você não
estará mais arranjando desculpas para o comportamento dele.
— Um mês? Você não está nos dando muito tempo.
— Ele mostrará a você do que é capaz assim que a tiver nas suas
garras.
— Ora, Heather, não seja tão exagerada!
— Não entendo como uma mulher sensata e esclarecida colocou
uma idéia dessas na cabeça. Gail, você não pode fazer isso!
— Mas o que ele pode fazer contra mim, Heather? Andrew é um
homem honrado e eu confio na sua palavra. Ele quer apenas uma
mãe para os filhos e com certeza tratará essa pessoa de maneira
cordial.
— Bem, Gail, não venha correndo na minha direção quando desco-
brir o erro que cometeu. — Heather começou a andar novamente
de um lado para o outro. — Beth não acreditará nisso!
— Heather! Sou adulta o suficiente para decidir a minha vida.
Sou capaz de amar aquelas crianças e, se puder ajudar Morag,
melhor ainda. Não pretendo desperdiçar a minha vida, Heather, e
do jeito que as coisas estão indo agora não tenho motivos para
me sentir realizada. Não tenho nenhum objetivo. Talvez seja
difícil para você entender, pois você tem Roger e as crianças.
Mas o meu futuro será muito, muito solitário se eu não me casar
com Andrew. Tenho certeza de que tomei a decisão mais
acertada.
— E você acha que pode ajudar a garota se o próprio pai a
declarou um caso perdido?
— Não sei. Mas posso tentar. . . Heather a encarou fixamente.
— Ela é filha da mãe que teve, Gail. Lembre-se que Mary disse
que ela não merece estar viva.
— Acho que isso é uma coisa muito dura de ser dita, Heather.
Ninguém pode ser tão ruim assim.
— Você acha que o pai dela exagera?
— Eu posso tentar, Heather...
— Você não conseguirá.
— Talvez. Mas, mesmo assim, tem Robbie e Shena. Posso criá-los
de maneira que Andrew se orgulhe deles. Isso compensará por
Morag.
— Bem, Gail, eu desisto!
Gail olhou para a irmã, Heather estava furiosa e falando coisas
que normalmente não diria. Mas toda a sua ansiedade era por
causa de Gail. Heather sentia mais medo que ela própria. Na
realidade, Gail não sentia medo algum. Um estranho instinto lhe
dizia que tinha escolhido o caminho certo e ela confiava nessa
intuição.
— Heather... Estou fazendo isso mais por mim do que pelas
crianças. É a única maneira de eu poder ser mãe. A oportunidade
caiu do céu e não vou jogá-la fora.
— Ah! Se eu pudesse voltar atrás no tempo... Você nunca o teria
conhecido!
— Nós todos gostaríamos de voltar no tempo, Heather. Mas isso
é uma coisa que nenhum de nós pode fazer. A realidade é que
conheci Andrew e pretendo me casar com ele, não importa o que
vocês digam a esse respeito.
— Beth e Harvey não irão concordar; você verá, Gail.
E foi o que aconteceu. Quando Gail voltou para casa, no dia
seguinte, teve que passar por tudo outra vez.
— Você só precisa ter paciência e esperar, Gail —- disse Beth.
—- Você terá ao seu lado alguém que a ame.
E Gail ouviu novamente os mesmos argumentos usados por
Heather. Mas ela ficou firme em sua decisão, pois não via nenhum
problema no casamento. E, para desgosto de todos, exceto de
Roger, ela se casou com Andrew na terça-feira seguinte. No
mesmo dia eles seguiram de carro para a propriedade dele, em
Perthshire.
Andrew e Shena não falaram muito durante a viagem. Robbie, por
outro lado, estava encantado, não tendo dificuldades em chamá-
la de mamãe, obedecendo às ordens do pai. Shena parecia
determinada a não fazê-lo, mas Gail não estava preocupada com
isso. Seu otimismo era tamanho que ela estava certa de que
ganharia a confiança da menina em breve.
— Você já esteve em Edimburgo antes? — perguntou Andrew,
assim que chegaram à capital da Escócia,
— Sim, quando eu era criança. Passamos umas férias na Escócia.
A sua casa é longe daqui?
— Moramos nas Terras Altas — informou Robbie. — Mas temos
outra casa bem longe daqui, não é papai?
— Sim, Robbie. E uma cabana de caça.
— Mas é grande, papai!
— Sim, Robbie, é grande.
Continuaram a conversar enquanto atravessavam a cidade. Gail
perguntou:
— O que vocês caçam?
— Veados.
— Vou caçá-los quando eu crescer. Papai, agora que temos uma
mamãe, você nos levará para caçar?
— Talvez, Robbie. Vou pensar sobre o assunto.
— E mamãe vai atirar também?
— Não, Robbie, eu não irei.
— Ela não saberia atirar bem, Robbie — concluiu Andrew.
— Acho uma judiação matar animais tão lindos — disse Gail.
— Faz parte do nosso modo de vida, você se acostumará —
comentou Andrew. — A seleção é necessária para o bem dos
próprios animais. Se fosse permitido que todos eles vivessem e
se multiplicassem, morreriam de fome. E, se isso lhe serve de
consolo, saiba que permito apenas atiradores peritos no meu
território.
— Mas sempre se pode errar o tiro...
— Melhor que não aconteça isso.
— Você que dizer que o animal é sempre acertado e morto?
__ Se isso não acontecer da primeira vez, o atirador deve seguir
o animal, leve o tempo que levar, e se certificar de que o matou.
Como já disse, permito apenas atiradores peritos nas minhas
terras. Não atiramos quando não há certeza de uma morte rápida
para o animal.
Gail deixou que o assunto morresse. Ainda não concordava com a
matança dos animais, apesar de toda a explicação de Andrew.
Eles continuaram a dirigir-se para o norte, em direção às Terras
Altas. Quando chegaram a Perthshire, antiga capital da Escócia,
Gail lembrou-se de todos os nomes famosos que estavam
associados à cidade e que tinham sido imortalizados pelos
personagens criados por sir Walter Scott em um dos seus
romances.
Pararam em Perthshire para tomar refrescos e Andrew fez um
retorno para que Gail apreciasse a paisagem.
Shena quebrou o silêncio pela primeira vez:
— Nós viemos aqui uma vez, não viemos? — Do alto das colinas ela
apontou para o imenso vale de Tay. — Olhe aquilo, lá longe!
— É uma vista maravilhosa! -— exclamou Gail, otimista com rela-
ção à nova vida que iniciava.
Abaixou o olhar para a mão de Robbie, entrelaçada à sua,
demonstrando a afeição que já sentia por ela.
Voltaram para o carro e seguiram caminho pelo vale, onde as mon-
tanhas se levantavam em direção ao céu. Algum tempo depois,
Andrew acabou saindo da estrada principal. Depois de viajarem
uns dois quilômetros pela estrada cercada de pinheiros, chegou a
casa, rodeada por cercas encobertas com trepadeiras. Por cima
da porta da entrada, estava o escudo do clã dos MacNeill,
desenhado numa placa de pedra.
Andrew estacionou o carro e um homem se aproximou.
— Fez uma boa viagem, senhor?
— Muito agradável, obrigado, Sinclair. — Andrew desceu do carro
e Sinclair abriu a porta para Gail, com um leve ar de surpresa no
rosto. As crianças correram para dentro da casa.
— Esta é minha esposa, Sinclair. Gail, este é o meu
administrador.
— Sua. . . — Sinclair se recuperou rapidamente e estendeu a mão,
observando atentamente o rosto de Gail. — Prazer em conhecê-
la, Sra MacNeill. A senhora trouxe junto um dia bonito.
— Obrigada — respondeu Gail, sorrindo.
Os criados começaram a aparecer assim que entraram na casa.
Mais apresentações foram feitas e mais expressões de surpresa
foram surgindo.
— Marie, acompanhe a Sra MacNeill até os aposentos dela, por
favor.
O quarto era ao lado do dele e Gail se perguntou se alguém
dormira lá depois da morte da esposa de Andrew. Ela imaginava
que não e não sentia vontade nenhuma de dormir lá. Mas não
poderia dizer isso ao marido. Como ela conhecia pouco de seu
marido, o lorde Dunlochrie!
— A senhora gostou da vista? — perguntou Marie, uma mulher
morena de meia-idade.
— É maravilhosa. Pode deixar as minhas coisas aí mesmo.
Gostaria de ficar sozinha.
— Pois não, senhora.
Gail olhou pela janela; os últimos raios de sol desapareciam no
horizonte e as montanhas estavam banhadas pelas sombras. No
jardim cercado por pinheiros havia uma piscina.
Ela se voltou para examinar o quarto; era quente, com aquecimen-
to central, como no resto da casa. Ao lado do quarto havia um
banheiro e uma sala de vestir. Cortinas de cetim creme chegavam
até o chão. Sobre os tapetes persas coloridos, havia móveis
valiosos e antigos. De repente, todo o impacto dos últimos
acontecimentos caiu em cheio sobre Gail. Será que todo aquele
esplendor era para ela? Seria um sonho? Ou ela havia realmente
se casado? Seus olhos pousaram na pesada porta de madeira que
se comunicava com o outro cômodo. Experimentou a fechadura;
estava trancada. Não havia nenhuma chave à vista. Logo os
criados iriam falar e a verdade chegaria aos ouvidos dos amigos
de Andrew.
Gail ouviu uma suave batida à porta.
— O jantar será servido dentro de uma hora, senhora — avisou
uma jovem sorridente.
— Obrigada.
O que ela deveria fazer? Sua maior obrigação era cuidar das
crianças, mas elas tinham desaparecido assim que chegaram. A
que horas costumavam ir para a cama? Será que deveria servir-
lhes o jantar, ou isso seria responsabilidade das criadas?
Ela deveria procurar Andrew para receber instruções? Era a
única coisa a ser feita, mas, quando Gail abriu a porta, ouviu-o se
movimentando no quarto ao lado.
Depois de um momento de hesitação, ela bateu à porta de
comunicação,
— Sim?
— Não sei o que fazer. Devo preparar as crianças para dormir?
Ele tentou abrir a porta.
— Você tem a chave, aí?
— Não.
— Então saia e venha até aqui.
Gail obedeceu, bateu à porta e entrou.
— Achei que deveria ver onde estão as crianças...
—Normalmente você deverá lhes servir o chá bem mais cedo, é
claro, e colocá-las na cama. Mas esta noite uma das criadas fará
isso. — Ele a examinou: — O seu quarto está em ordem?
— Sim, é muito agradável, obrigada.
— Não tem sido usado desde os tempos da minha avó. Reformei
esta ala da casa e me mudei para cá no ano passado. Espero que
tudo esteja do seu agrado, Gail; se não estiver, espero que me
informe.
— Eu informarei, obrigada.
Gail voltou para o seu quarto, agora mais contente por aquele não
ter sido o quarto da falecida esposa de Andrew.
Morag estava visitando alguns amigos, portanto Gail teve apenas
Andrew como companhia para o jantar.
A sala de jantar era muito grande, e isso não permitiu que ela se
sentisse à vontade. Uma sensação de irrealidade tomou conta
dela, com aquele estranho sentado do outro lado da mesa, com o
criado que os servia e, principalmente, com o silêncio. A refeição
foi um suplício para Gail e foi um alívio quando Andrew anunciou,
ao terminarem:
— Tomaremos o café na sala de estar.
A sala de estar era linda, com uma grande lareira de pedra, onde
toras de madeira ardiam, irradiando calor pelo ambiente.
Quadros e finas tapeçarias cobriam as paredes.
Andrew pegou uma revista para ler e Gail ficou sentada,
sentindo-se sozinha e solitária. Será que ela deveria ter dado
ouvidos às suas irmãs? Será que ela havia sido precipitada?
Assim que terminou o café disse a Andrew:
— Creio que vou para o meu quarto. Ele olhou para o relógio.
— Ainda é cedo, mas suponho que você deva estar cansada depois
da viagem.
— Sim, na realidade estou. — Ela se levantou e o deixou lendo a
revista.
"Esposa e mãe..."; Gail estava pensativa, parada do lado de fora
da casa com os cabelos agitados pelo vento.
Sentia um pouco de medo. Um mês depois de sua chegada a Casa
Dunlochrie, ela continuava sentindo-se uma estranha. Esposa e
mãe. . . Heather havia dito que ela não seria nenhuma das duas
coisas. E tudo indicava que a irmã tinha razão.
Robbie estava muito ligado a ela, mas Shena, conforme seu pai
havia dito, era uma criança muito difícil, e continuava fria e
introspectiva. Quanto a Morag...
Uma curva amarga nos lábios de Gail revelou seus pensamentos.
Morag a odiava e não fazia o menor esforço para disfarçar isso.
Ela não demonstrava o menor respeito pela madrasta. Declarava,
na presença dos criados, que não gostava dela, que seu pai tinha
se casado por conveniência e que nem sequer havia amizade entre
o casal. Felizmente Gail não tinha perdido o respeito dos criados.
Ao contrário, eles haviam se tornado caloroso e compreensivos, e
faziam pequenas coisas para agradá-la.
Gail tinha sido prevenida sobre Morag, mas estava totalmente
despreparada para a sogra de Andrew. Ela visitava a casa uma
vez por semana para ver os netos. Era alta, com traços duros e
cabelos negros. A Sra Davis, sempre que possível, demonstrava
não gostar de Gail. Gail detestava desentendimentos, era de uma
natureza pacífica, mas receava não poder se controlar por muito
tempo.
Dois dias após sua chegada, Gail foi apresentada a Sra Davis e
assim que ficaram sozinhas as primeiras pergunta da mulher foi:
— Há quanto tempo você conhece Andrew?
— Há pouco tempo.
— Quanto exatamente?
Gail a encarou, com as faces ardendo.
_ Eu o conhecia fazia alguns dias quando nos casamos.
__Então foi por interesse! Você se casou pelo dinheiro e pela
posição de Andrew é claro!
— Casei com Andrew, Sra Davis, porque ele me pediu em
casamento e porque eu acreditava que seria capaz de ajudá-lo a
criar os filhos.
— Os meus netos! — exclamou a mulher. — E você é capaz de
educar as crianças?
— Eu acabei de chegar aqui. Somente o tempo poderá provar se
sou capaz de criar Robbie e Shena.
— E Morag? O que espera fazer com ela?
— Morag é uma menina difícil, mas tenho esperança que mais
cedo ou mais tarde possamos ser amigas.
Isso tinha sido havia um mês e Gail já admitia que Andrew estava
certo quando dizia que Morag era um caso perdido.
Um dia Morag apareceu, montando um lindo cavalo. Cavalgava com
perícia, com seus cabelos dourados esvoaçantes, compridos,
soltos e não muito limpo.
De repente ela parou, mas permaneceu montada. Com o rosto
afogueado, e dando a impressão de que ainda não tinha visto água
naquele dia, seu ar era de arrogância.
— Como vai a minha nova madrasta?
— Vou bem, obrigada, Morag.
— Ora, mas que bela dama, a grã-senhora, esposa do lorde Dun-
lochrie!
Gail encarou Morag com calma.
— Diga-me, que satisfação você sente em me tratar desse modo
tão insolente? Nós poderíamos ser amigas, sabia?
— Sua amiga?! — Embora parecida com a avó, à garota era linda.
— Não estou desesperada para fazer amigo, muito obrigado! —
Ela desceu do cavalo e observou um jipe que se aproximava. —
Sinclair, mande alguém recolher Rusty.
— Certamente, senhorita. — Ele se afastou com o jipe.
— Mas que homem mais antipático! Ele vai ter notícias minhas
mais tarde — dizendo isso ela se dirigiu para casa sem olhar para
Gail.
Gail voltou para casa em seguida, sentindo um aperto no coração;
O que seria daquela menina? Com sua insolência, com o tipo de
amigos que tinha, com seu modo de vida... Gail tinha tentado, mas
admitia sua derrota no que se referia a Morag.
Como Andrew deveria sofrer! Gail se lembrou do rosto da garota.
Não havia sequer um traço que lembrasse Andrew. Mas, como às
vezes os filhos não se parecem com os pais, isso não comprovava
que ela não fosse filha dele.
Chegando a casa, Gail ouviu vozes alteradas na saia de visitas e
parou por um momento, escutando-as:
— Falo com Sinclair do jeito que eu bem entender! — Morag
estava gritando. — Ele é apenas um criado e deveria conhecer o
seu lugar!
— Você vai tratar os criados com o mesmo respeito que eles a
tratam.
— Eles nunca me tratam com respeito!
— Não me interrompa quando estou falando! — A voz de Andrew
estava áspera e alterada. — Tome cuidado, Morag, pois estou a
ponto de mandá-la embora!
A menina soltou uma gargalhada.
— Para onde? Para um internato? Já fui expulsa de dois e posso
ser expulsa de quantos forem necessários. Não serei
encarcerada, nem por você nem por ninguém. Será que é a sua
esposa platônica que quer se livrar de mim?
A voz dela foi subitamente interrompida e Gail entrou na sala. —-
Andrew, por favor. . posso falar com Morag? Morag estava
cobrindo o rosto com as mãos, mas podia-se ver a. marca dos
dedos da mão de Andrew.
— Saia daqui! — Ele explodiu. — Saia e cuide da sua vida!
Tremendo dos pés à cabeça, Gail subiu para o quarto. Tinha
percebido seu erro. Alguns minutos mais tarde, a porta do quarto
foi aberta e Andrew entrou, com os olhos faiscando sobre ela.
— Andrew... Sinto muito. Sei que não deveria ter interferido,
mas...
— Nunca mais se atreva a fazer isso de novo! — A voz dele pare-
cia um chicote. — Quando quiser a sua ajuda ou conselho, eu
pedirei Até lá, saiba qual é o seu lugar e fique nele.
— Sim. Sinto muito. Apenas achei que... Que poderia ser capaz
de ajudar.
__ Como já disse, se precisar de sua ajuda pedirei por ela. Será
que fui claro?
Gail acenou com a cabeça, sentindo-se infeliz, mas não conseguiu
dizer nada. Olhou-se no espelho; estava branca como cera.
Quando Andrew saiu ela afundou na cama, com a mão no coração,
que batia descontrolada mente. Encostada no travesseiro afastou
os cabelos das têmporas. Sentiu sua cicatriz. Sabia que ela
deveria estar lívida e saliente, como sempre acontecia quando
sofria o impacto de alguma emoção forte.
Pensou sobre a cena que acabara de viver. Aquele ser quase
selvagem era seu marido, o homem com o qual concordara em se
casar apenas alguns dias após tê-lo conhecido. Com ansiedade e
otimismo, Gail tinha feito votos e promessas sem qualquer
previsão de futuras dificuldades ou arrependimentos. Mas agora
ela se perguntava se poderia continuar assim pelo resto da vida.
A frieza de seu marido, o ódio de Morag, a hostilidade da avó das
crianças, a indiferença de Shena...
Se tivesse que ir embora, era melhor fazê-lo logo. Mas, não. Ela
não poderia submeter Andrew a tamanha humilhação. Além do
mais, Robbie a amava e precisava dela. Ela não aceitaria a derrota
assim, tão facilmente. Ficaria e Robbie a compensaria, tornando-
lhe a vida suportável. Talvez até mesmo Shena se abrisse mais
tarde, pois ela não era intratável. Gail achava que, mais cedo ou
mais tarde, a menina iria reagir ao tratamento de amor e de
paciência.
Levantando-se, Gail penteou os cabelos na posição habitual. Tinha
que ir buscar as crianças na escola. Pegou o carro e antes foi até
Pitlochry fazer algumas compras. Comprou uma blusa e uma saia
de tweed. Ficou encantada com um buquê de flores silvestres que
viu numa floricultura e resolveu comprá-lo. Colocou-o no assento
ao seu lado e quando o olhou seu espírito sentiu-se mais leve.
As crianças saíram correndo da escola e entraram no carro,
seguindo no assento traseiro.
— Olhe o que eu fiz! — Robbie mostrou seu cartão de Páscoa com
orgulho. — Eu mesmo escrevi: "Para mamãe e papai". A pro-
fessora nos ensinou.
— E lindo Robbie! E você, Shena, não fez um também?
— O meu não está pronto. A tinta não tinha secado e tive que
deixar na escola.
— Ela põe muita tinta, mamãe, é por isso que não secou. Eu costu-
mava fazer isso quando era pequeno. Todos os bebês usam tinta
demais.
— Mas eu não sou um bebê!
— Você está no jardim de infância, Shena, portanto deve ser um
bebê.
— Shena já está no pré-primário, Robbie. Ela não é mais um bebê.
— Vou fazer seis anos.
— Ah, mas vai demorar, Shena — disse Robbie. — O seu advir-
cario é em julho, nas férias de verão.
Shena ficou quieta. Essa falta de disposição para discutir não era
natural numa criança da idade dela e Gail passou o resto da
viagem até em casa tentando ganhar a atenção dela. Como não
conseguisse, entendeu que teria que ter paciência. Mesmo
Andrew já tinha admitido que Shena era uma criança difícil.
Morag estava sentada num dos degraus da entrada da casa
quando chegaram. As duas crianças correram para dentro e Gail
pegou os pacotes. Pegou as flores e as examinou, quando Morag
perguntou:
— Quem lhe deu essas flores?
— Eu mesma, comprei. Quer alguma?
O olhar insolente de Morag examinou Gail dos pés à cabeça.
— Não seja tão generosa assim. Nós temos três estufas enormes
cheias de flores. Se você queria flores, poderia ter apanhado
quantas quisesse nas estufas. É óbvio que alguém as comprou
para você. Quem é ele? É bonito? É escocês? Eu pessoalmente
prefiro os ingleses. São mais quentes, se é que você entende o
que quero dizer. . . — Ela caiu na gargalhada diante da expressão
chocada de Gail. — Talvez você ainda não tenha condições de
fazer comparações, já que não dormiu com um escocês, ou pelo
menos. . . Não com o seu marido escocês.
— Você é insuportável, Morag! Não tem vergonha de si mesma?
— E por que deveria ter? Não sou casada, enquanto que você é
uma esposa só de nome e...
_ Você não sabe nada sobre isso, Morag, portanto não toque
nesse assunto novamente!
A garota arregalou os olhos grandes.
— A porta que liga os dois quartos, Sra MacNeill, nunca foi
aberta desde que a senhora veio para cá.
— Você... Por acaso entra no meu quarto?
— Eu gosto de saber o que está acontecendo. A chave foi perdida
há alguns anos e nunca foi substituída. É claro que papai poderia
dar a volta, se tivesse vontade, mas ele não tem — Gail não disse
nada, apenas a encarou com imenso desagrado. — Mesmo que a
senhora seja uma esposa apenas no nome, não tem direito algum
de receber presentes de outro homem. Vergonha de mim? Você é
que deveria ter vergonha de si mesma! Permitir que outro homem
lhe compre flores!
As últimas palavras foram proferidas num tom de voz
deliberada-mente alto; Morag olhava para algo atrás de Gail.
Gail se voltou e viu Andrew parado, perto dali. Ela resolveu res-
ponder mais uma vez, mas não pôde evitar ficar com as faces
avermelhadas:
— Já disse, Morag, que eu mesma comprei as flores.
Andrew notou suas faces vermelhas e franziu a testa, seguindo
Gail até o hall.
— Nós temos muitas flores nas estufas. — A expressão dele em
de desconfiança.
— Eu sei, Andrew, mas confesso que não me lembrei. Vi estas
flores numa vitrine e quis para mim. — A explicação parecia sem
fundamento e ela mordeu os lábios. — Acho que isso se chama
compra de impulso. Elas eram tão bonitas que não pude resistir.
Ela sentiu-se tola e seu enrubescimento aumentou. O cenho
franziudo de Andrew se tornou mais carregado, quando ele disse:
— Se você quiser comprar flores, Gail, deve comprá-las. Mas
cultivamos uma quantidade suficiente para o nosso próprio uso.
Gail sentiu um aperto na garganta. Teve vontade de falar com ele
como uma esposa de verdade, compartilhando todas as suas
emoções e temores. Mas não conseguiu, pois ainda eram
estranhos. Só conseguiu dizer:
— Foi um impulso tolo da minha parte, nem sei explicar por que as
comprei. Posso colocá-las na sala de estar?
— Claro que sim. Você não precisa me perguntar isso, Gail.
Gail sorriu e suas dúvidas desapareceram por um momento. Sur-
preendeu-se até cantarolando enquanto procurava um vaso para
as flores.

CAPITULO III

Robbie e Shena iam correndo na frente. Gail e Andrew os


seguiam logo atrás, caminhando em ritmo normal. Era um domingo
à tarde, e a primeira vez em que Andrew acompanhava Gail e as
crianças para um passeio.
— Irei com vocês — anunciara ele, para alegria das crianças.
— Oh, papai, isso vai ser ótimo — dissera Robbie, com o rosto
radiante de felicidade.
— Gosto que meu papai passeie com a gente. — Shena sorria. A
menina ainda continuava arredia, mas aos poucos Gail estava
vencendo a resistência dela. As duas crianças tinham
personalidades completamente diferentes e Gail já as estava
compreendendo. Robbie era espontâneo e caloroso, entusiasmado
com todos os planos de Gail para a diversão deles. Ele confiava
inteiramente nela. Já Shena era mais arisca e cautelosa. Ela não
demonstrava confiar em Gail e sempre relutava em acompanhá-
los nas brincadeiras. Só à noite, quando punha as crianças na
cama e lia para elas, Gail sentia alguma receptividade na menina.
Nessas ocasiões ela sentia-se tranqüila e experimentava uma
completa sensação do real prazer da maternidade.
— Por favor, mamãe, leia mais um pouco — pedia Robbie e Shena
complementava:
— Sim, por favor, leia mais um pouco.
O grande sinal de vitória chegou numa noite, quando Shena a
chamou de volta, quando ela deixava o quarto:
— Mamãe...
Gail voltou-se ao ouvir sua voz, sentindo o coração saltar
de alegria.
— Sim, meu amor?
— Não estou coberta porque me mexi.
— Então preciso cobri-la de novo.
Shena ficou quietinha encarando Gail com aqueles olhos azuis tão
grandes, parecidos com os de Andrew.
— Você é minha mamãe?
Gail hesitou por um minuto e depois respondeu:
— Não sou sua mãe verdadeira, Shena. Você sabe disso, não
sabe?
— Sim. — Ela fez uma pausa e continuou: — Papai me falou muitas
vezes que preciso chamá-la de mamãe. Antes eu não queria, mas
agora quero, como Robbie.
Inclinando-se, Gail a beijou, incapaz de falar.
"A luta está terminada", ela pensou.
Mas logo percebeu que estava enganada. Embora dali para frente
Shena a tratasse como mãe, ainda se mantinha arredia às vezes,
não colaborando. Mas Gail sabia que precisava ter muita paciência
e muita compreensão, se quisesse ser bem-sucedida.
— Robbie! — A voz alterada de Andrew despertou Gail dos seus
pensamentos. — Desça dai, já!
Robbie obedeceu, pulando do galho da árvore onde tinha subido.
— Mas eu não ia cair da árvore, papai!
— Pode ser, mas você é muito pequeno para subir em árvores.
— Mas mamãe sempre me deixa subir! — exclamou ele, sorrindo
para o pai.
— Acho que não vou permitir mais, Robbie.
— Está bem — respondeu o menino, com bom humor. — Vou
esperar até crescer.
Continuaram a caminhar pela trilha quando de repente se
depararam com um veado, que ruminava calmamente. Um bando
de corvos observava de longe.
—- Corvos, papai! — gritou Robbie. — Você não vai atirar neles?
— Sem uma arma, Robbie?
— Você deveria ter trazido uma. Não queremos esses corvos aqui
— quando ele disse isso, ouviram um tiro a distância.
— O que foi isso? — perguntou Gail.
— Acho que é Meredíth destruindo um ninho — disse Andrew.
— Um ninho?
— Sim, de corvos. É uma boa oportunidade de nos livrarmos
deles. Não permitimos que esses bichos propaguem a sua raça, se
podemos evitá-lo.
— Mas é cruel matar os bebês — comentou Gail.
— Você não pensaria assim se visse uma ovelha doente e exausta,
com buracos vazios onde antes tinha os olhos. A vida é dura e
difícil nas Terras Altas, Gail, e pode parecer cruel. Mas você logo
perceberá que nós nunca matamos pelo simples prazer de matar.
Ela não disse mais nada e eles caminharam alguns metros em
silêncio. Depois de um certo tempo Gail falou:
— Tudo isso é seu... — Fez um gesto abrangente com a mão.
— Ainda não percorri nem uma centésima parte da sua
propriedade.
— Não se preocupe, Gail, você terá tempo suficiente para fazê-
lo. O tom da voz de Andrew foi um pouco menos frio que o
costumeiro e isso foi suficiente para que o coração de Gail
batesse mais depressa.
Eles chegaram à margem do lago. À beira dele havia uma pequena
casa e Gail quis saber o que era.
— É uma cabana de pesca.
— Vocês pescam no lago? — Ele acenou que sim. —- Vocês pescam
salmão?
— O salmão fica no rio — informou Robbie.
— Eles saltam — acrescentou Shena. —- Você precisa vê-los
saltar!
— Eles estão no nosso... No seu rio? — perguntou Gail.
— Sim. Eles nadam no nosso rio — respondeu Andrew. — Mas os
direitos de pesca do salmão pertencem ao duque.
— Aquela é a terra dele, do outro lado do rio?
— Sim, o rio faz a divisa.
— E ele saberia se você pescasse os salmões? Andrew levantou as
sobrancelhas ao comentário de Gail.
— Provavelmente não, mas não temos o hábito de tirar vantagens
através de métodos ilícitos.
Ela enrubesceu, mas assim mesmo se atreveu a dizer:
— Hoje em dia não, mas os escoceses têm uma reputação
péssima. Ele riu com gosto e Gail quase perdeu a respiração.
Louise havia dito que Andrew era o homem mais atraente que ela
já conhecera e Gail estava concordando com ela...
O sol começava a cair atrás das montanhas quando ele disse:
— Temos que ir andando. Esfria muito quando o sol começa a se
pôr.
Eles ainda caminharam um pouco e Andrew estava falante e de
bom humor. Quando estavam caminhando de volta para casa, Gail
começou a ponderar sobre o tipo de homem que ele era; casado
muito jovem com uma linda mulher e com uma filha sete meses
depois. De repente o conhecimento da infidelidade da mulher; o
perdão e a permissão para que ela voltasse para casa, duas vezes
ele a aceitara de volta.
Portanto, ele realmente via o casamento como um laço
permanente, para o melhor e para o pior.
Se Andrew odiava as mulheres realmente, seria até um fato com-
preensível, considerando-se os problemas com a esposa e a filha.
Mas, por algum motivo que não sabia ainda explicar, Gail não
acreditava que ele detestasse as mulheres. Ela achava que
Andrew não seria capaz da injustiça de considerar que todas as
mulheres fossem iguais. Ele tinha sofrido vergonha e desilusão e
tudo isso poderia facilmente se transformar em amargura. E para
Gail era essa a causa da dureza que ela via nos traços dele.
— Nós não tivemos um ótimo passeio, papai? — perguntou Robbie.
— Você virá de novo, num outro dia?
— Sim. Robbíe! Irei com vocês no próximo domingo, se tudo der
certo.
Mais tarde, deitada em sua cama, Gail concluiu que tinha sido um
dia maravilhoso, e resolveu revivê-lo na memória mais uma vez.
Tinham ido a igreja de manhã. Robbie insistira em usar seu saiote
escocês igual ao do pai. Depois, o almoço, sem a presença de
Morag para tirar o pai do bom humor em que se encontrava. Ele
até havia permitido que as crianças conversassem à mesa, coisa
bem rara. Depois daquela agradável refeição, Andrew havia
anunciado sua intenção de acompanhá-los no passeio de domingo à
tarde pela propriedade. Gail o tinha surpreendido examinando-lhe
o rosto de uma nova maneira e automaticamente ela levou sua
mão à têmpora, onde havia a cicatriz. Pela primeira vez ela
realmente se preocupou com aquela cicatriz. Morag havia dito
uma vez que Andrew não tolerava nada que tivesse uma qualidade
inferior. . .
Depois da caminhada, tomaram o chá da tarde. Mais uma vez foi
permitido a Robbie e Shena que conversassem. O pai, relaxado
em sua cadeira, ouvia-os, lançando de vez em quando um olhar a
Gail e até sorrindo para ela.
Ah se pudesse ser sempre assim. . .
Sonolenta, ela apagou a lâmpada: virou para o lado e dormiu.
Mas as coisas não continuaram como naquele domingo
inesquecível. Morag voltou logo da visita a seus amigos e uma
atmosfera pesada recaiu sobre a casa novamente.
Na sexta-feira seguinte, ao voltar para casa depois de ter levado
as crianças à escola. Gail descobriu que Morag tinha se levantado
mais cedo que de costume. Chovia a cântaros e uma neblina
espessa circundava a casa. Morag estava sentada na sala de
estar, com um copo de bebida nas mãos e um cigarro pendurado
na boca.
— Mas que tempo horroroso! Iria embora daqui se tivesse
dinheiro! Gail parou e ficou olhando para ela, indagando-se como
alguém poderia estar bebendo uísque àquela hora do dia, e
perguntou:
— Com quem você iria?
— Você gostaria de saber, não gostaria, Sra Macneiíl?
— Não estou interessada, Morag. Só estava tentando conversar
com você.
— Você me entedia com essa sua conversa tão benévola. Acho
que, se toda a verdade fosse descoberta, você não seria
considerada melhor do que qualquer um de nós.
— Nunca me considerei melhor do que ninguém, Morag, Mas
tenho os meus padrões de comportamento e sou leal a eles.
Morag gargalhou e Gail estremeceu.
— Ora, mas como ela é casta e pura! Quer saber de uma coisa?
Acho que isso não passa de um disfarce! — Ela encarou Gail, com
os olhos apertados. — Se uma esposa não consegue o que deseja
do marido dela, começa a procurar em outro lugar.
— Você parece muito interessado na minha vida particular, não é
mesmo, Morag?
— Você não vai enganar meu pai, estou avisando.
— Você poderia ser um pouco mais clara?
— Ele desconfia muito das mulheres, portanto tome cuidado. Se
você arranjar outro homem, ele vai descobrir imediatamente. A
não ser que você seja muito cuidadosa. Minha mãe não foi, aliás,
ela foi bem burra. Quando eu for casada tomarei muito cuidado
com meu marido.
Gail ficou pálida. Sentia-se mal, mas ao mesmo tempo sentia pena
da menina. Será que ela tinha culpa de ser assim? Ou seria um
problema genético?
— Você acha que vai encontrar um marido, com esse tipo de vida
que leva?
— Eu poderia me casar agora, se tivesse idade. — Ela deu de
ombros, bebeu o resto que havia no copo e o encheu novamente
com a garrafa que estava a seu lado. — Só não tenho muita
certeza se quero me casar. É muito mais divertido amar e ser
amada sem estar casada.
— Morag... Será que não podemos ser amigas? Se você quer
viajar para fora do país, pedirei a seu pai para que todos nós
possamos ir, depois que Robbie e Shena terminarem as aulas.
Que tal?
— Viajar com você? — Ela deu uma gargalhada. — Ter que ficar
ouvindo esses seus sermões, toda essa chatice? Não, vou por
minha própria conta, ou com um amigo que eu possa escolher.
— Seu pai não lhe dará dinheiro para isso!
— Posso infernizá-lo até que ele ceda.
— Você deveria ficar trancada no seu quarto!
— Ele já tentou isso. Durante quatro dias inteiros! Eu destruí
tudo que estava à vista. Custou uma pequena fortuna consertar
tudo. — Mais uma vez ela esvaziou o copo e o encheu. — Ele não
vai repetir o mesmo erro novamente.
— Você acha que pode continuar desafiando-o desse jeito?
— E o que ele pode fazer a esse respeito?
— Ele poderia rejeitá-la completamente. Deixá-la de lado para
sempre. Você nunca considerou isso?
— Ele nunca rejeitou minha mãe. ..
— Não vamos discutir sobre sua mãe, Morag. . .
—- Ah, mas é claro que você não quer conversar sobre ela! Ela é
uma sombra na sua vida. Papai a adorava e a lembrança dela nunca
se apagará! — Ela fez uma pausa, observando a expressão de Gail.
— Imagino que alguém deva ter-lhe contado sobre ela, não?
— Não estou discutindo sobre sua mãe, Morag. Gail se dirigiu
para a porta e a abriu.
—- Alguém deve ter lhe falado sobre ela, é evidente que sim. —
Gail não se voltou para olhá-la. — Meu pai a aceitou de volta duas
vezes. Duas! Isso não prova que ele a adorava? Ela era linda e
sem defeitos!
Gail se voltou, rapidamente.
— O que você quer dizer com isso?
— Apenas o que eu disse. — Morag parecia não saber de nada e
Gail suspirou de alívio. — Minha mãe era linda, era perfeita. Meu
pai a amava por causa disso. Eu já lhe disse que ele não tolera
nada de qualidade inferior!
E Morag continuou a falar sobre a mãe. Gail se afastou com a
cabeça ereta, mas com os lábios trêmulos, dirigindo-se para o
refúgio do seu quarto.
A falecida Sra MacNeill não era uma sombra em sua vida. Gail
ocupara a posição que esperara ocupar quando havia aceitado
proposta de Andrew. Tornara-se mãe das crianças e colaborava
para o funcionamento da casa. Nas noites em que Andrew tinha
visitas, ele a tratava como um marido trata a esposa, sem
sujeitá-la a embaraços claro que essa atitude era por causa das
aparências, mas ela não esperava nada, além disso.
Não. A lembrança da falecida esposa de Andrew não poderia
afetar a vida de Gail.
Entretanto, por que ela estaria sentindo aquele peso nas costas.

CAPITULO IV

Mais uma discussão estava acontecendo, mas dessa vez Gail, com
prudência, se manteve à distância. Mas logo ela ficou sabendo do
que se tratava, pois Morag foi até o quarto das crianças, onde
Gail estava separando algumas roupas para mandar para um bazar
de caridade.
— Com todo o dinheiro que tem ele, não me dá o que eu pedi! —
Os olhos de Morag brilhavam de raiva. — Que homem mais sovina,
mais unha-de-fome! Eu o odeio!
— Morag, não estou com disposição para discussões — respondeu
Gail, continuando sua tarefa. — Se você não tiver nada
interessante a dizer, por favor, me deixe em paz.
— Quem você pensa que é, falando desse jeito comigo? Eu, Morag
MacNeill?
— Sem dúvida você é alguém, Morag. Acontece que não julgo as
pessoas pela posição que ocupam na hierarquia social, mas pelo
modo como se comportam e tratam as outras pessoas. Tentei ser
sua amiga, mas você esta determinada a ser inimiga de todos. E,
infelizmente, cheguei ao limite da minha paciência.
— Eu poderia esbofeteá-la, Sra MacNeill.
— Eu a aconselharia a não fazer isso, Morag. Aliás, peço que se
retire daqui, por gentileza.
— Sairei quando bem entender! Esta é a casa do meu pai e você
nada mais é do que uma intrusa, uma criada bem remunerada. —
Acendendo um cigarro, Morag soltou uma baforada no rosto de
Gail e riu. — Diga-me, como consegue dinheiro dele? Ele a cobre
de dinheiro e eu não recebo nada!
— Recebo uma mesada, como presumo que você também receba
uma. Acontece que fazemos uso dela de maneiras diferentes,
pelo visto. — Ela sentia-se fraca, como sempre acontecia quando
discutia com Morag.
— Gostaria de saber quanto dinheiro você ganha. Está fazendo o
seu pé-de-meia para o caso de ele dispensá-la quando Robbie e
Shena não precisarem mais de você?
"Quando eles não precisarem mais de mim?" Gail nunca havia
pensado sobre aquilo. Mas, por outro lado, Andrew não tinha
enfatizado que o casamento seria para sempre?
— E então, Sra MacNeill, a senhora está fazendo o seu pé-de-
meia?
— Eu não gasto muito porque sou naturalmente uma pessoa eco-
nomica.
Com uma pilha de roupas na mão, Gail saiu do quarto, e foi levá-
las até a casa da Sra Stuart, antes de pegar as crianças.
Quando voltou para casa com Robbie e Shena, Morag não estava
à vista. Mais tarde, quando ouviu o ruído de um carro, Gail foi até
a janela e viu Morag dirigindo um automóvel em direção à
estrada. Ficou preocupada; e se a polícia a detivesse? Ela ainda
não tinha carta de motorista. . .
Logo a garota estava de volta e Gail a viu descer do carro com
alguns pacotes. Como ela poderia ter ido fazer compras, se não
tinha dinheiro?
Morag correu para o seu quarto e Gail a seguiu. Entrou no quarto
da garota sem bater e a pegou experimentando um vestido e
observando-se em frente ao. espelho.
— O que quer aqui? Como se atreve a entrar no meu quarto sem
ser convidada?
— O que você pretendia fazer dirigindo um carro na estrada?
— E o que você tem a ver com isso? Quando estou fora, dirijo o
carro dos meus amigos o tempo todo. Saia daqui e tome conta das
crianças. E para isso que você mora nesta casa!
— E você não leva em consideração as conseqüências, se for dês-
coberta? A polícia daqui deve saber que você é menor de idade.
— Ora, caia fora daqui! Você me aborrece muito com essas suas
preocupações cívicas! E por que está preocupada com as
consequências? Você não se importa comigo!
— Minha preocupação no momento é com seu pai.
— Ah, é? Que interessante! Você se apaixonou por ele? Bem, isso
costuma acontecer com as mulheres em geral. Ora, mas que
engraçado! Espere até que eu conte para todo mundo. Vai ser
muito engraçado, mesmo. Motivo de riso e piada para todos!
Gail sentiu o sangue lhe subir à cabeça.
— Será que você não tem um pingo de vergonha? Não se preocupa
com a humilhação que seu pai sofrerá se você for processada? O
que poderá facilmente acontecer se continuar a dirigir sem
carta.
— Chega de sermões! Saia do meu quarto!
Gail saiu, pois não podia fazer mais nada. Mas decidiu contar tudo
a Andrew ainda naquela tarde. Ela detestava essa atitude de
informar sobre a vida dos outros, mas Andrew precisava ser
avisado.
Morag nunca se atrasava para o jantar. Era a única coisa em que
se via forçada a obedecer ao pai. Se ela se atrasasse um minuto,
ele mandaria retirar o prato de!a e, se quisesse, teria que comer
sozinha em outro lugar.
Seu lugar tinha sido retirado da mesa e Gail sentia-se inquieta:
— Morag não está?
— Em casa? Acho que sim. Por quê? — indagou Andrew.
— Nada, pensei que ela tivesse saído. — Será que a garota teria
sofrido algum acidente? — Andrew, ela pegou o carro esta tarde,
para fazer compras. . .
— Pegou o carro? Tem certeza?
— Eu não queria interferir, pois sei que os seus atos nada têm a
ver comigo, mas a vi dirigindo na estrada e alertei-a a esse
respeito.
Um silêncio terrível caiu sobre o ambiente, O rosto de Andrew
estava transtornado. Ele se levantou e saiu da sala. Gail mordeu
os lábios, sentindo-se culpada e tentando imaginar se teria
havido uma outra forma de contornar a situação.
Logo Andrew voltou.
— Ela viajou com uns amigos. Deixou um bilhete sobre a mesa da
safa. Pediu que um dos criados da casa a levasse até a estação.
— Então, não foi de carro? Ainda bem! Mas ela não me falou nada
sobre visitar amigos.
— O bilhete diz que ela ficará fora por quinze dias. Mas você
disse que Morag foi fazer compras? O que ela comprou?
— Um vestido. Não vi se tinha mais alguma coisa.
— Mas ela me disse que não tinha dinheiro! Você emprestou
algum?
Gail fez um gesto negativo com a cabeça. De repente, sentiu um
frio na espinha ao lembrar-se de que tinha contado a Morag que
economizava sua mesada.
Ela guardava o dinheiro numa caixa, que ficava em cima da pen-
teadeira. A caixa não ficava trancada, pois nunca, em toda a sua
vida, tivera necessidade de desconfiar de alguém. Gail não
conhecia esse sentimento. Assim que terminaram de jantar, ela
correu para o seu quarto e abriu a caixa. Estava vazia. E havia
duzentas libras na caixa! Será que Morag tinha saído do país com
um dos seus namorados e por isso roubara o dinheiro? E o que
Gail deveria fazer? Ficou ali parada, tremendo, confusa e
culpando-se por ter deixado o dinheiro servindo de tentação para
Morag,
Mas logo ela decidiu que não contaria a Andrew. Não iria subme-
tê-lo a uma humilhação tão grande. Não. Salvar o orgulho de seu
marido era muito mais importante do que o dinheiro perdido.
Com o passar dos dias, e com a ausência de Morag, a
tranqüilidade voltou a reinar naquela casa. Até Andrew ficava
diferente quando a filha não estava. Como Gail gostaria que
Morag achasse um marido que soubesse domá-la e pudesse levá-
la dali!
Na quarta-feira as crianças tiveram um feriado na escola. Como
fazia frio e os dois estavam com um ligeiro resfriado, Gail
decidiu não levá-los para fora de casa.
A Sra Davis chegou logo depois do almoço para buscar Robbie e
Shena. Ela queria levá-los para a sua casa, ficando de trazê-los
depois do chá.
— Não gostaria que as crianças saíssem, Sra Davis. Elas estão
resfriadas e estou tentando mantê-las aquecida.
Gail, Robbie e Shena estavam sentados em volta da lareira,
jogando cartas. A expressão no rosto das crianças mostrava
claramente o desapontamento pela interrupção da avó.
A Sra Davis encarou Gail de modo arrogante.
— Eles estarão muito bem no carro. Robbie e Shena peguem os
seus casacos e venham comigo!
Está fazendo muito frio, Sra Davis..,
— Vou levar os meus netos para passear! Por gentileza, queira
aprontá-los.
— Não quero ir — protestou Robbie. — Estou jogando cartas com
mamãe!
— Eu também não quero ir — disse Shena. O rosto da senhora se
avermelhou.
— Mas que péssimas maneiras dessas crianças! Preciso falar com
Andrew a esse respeito! Pelo visto você não está cumprindo as
tarefas pelas quais é paga!
— Paga Sra Davis? Lembre-se que não sou uma empregada e sim a
esposa de Andrew.
— Você não é paga para ser insolente comigo! Pode ser a esposa
de Andrew, mas ele se casou com o objetivo específico de
encontrar alguém para tomar conta dos meus netos. Portanto,
você nada mais é do que uma criada remunerada. — Gail ficou
quieta, desarmada, pois o que aquela mulher dizia era a verdade
nua e crua. Ela devia ter conversado com Morag, pois usava as
mesmas palavras da neta. — Apronte as crianças, por gentileza.
Vamos, Shena! Faça o que estou dizendo. Você também, Robbie!
Vocês dois vão sair comigo!
Shena começou a chorar e a tossir. Se pelo menos Andrew
estivesse em casa, a decisão seria dele. Gail suspirou. Essa era
uma das ocasiões em que ela não era nem uma esposa nem uma
mãe. Se fosse esposa, teria o apoio do marido para todas as suas
atitudes. Se fosse mãe, sua autoridade junta às crianças seria
respeitada.
— Se a senhora realmente vai levá-los, aconselho-a a mantê-los
quentes, pois estão resfriados.
Um pouco mais tarde, ambos entraram no carro. Robbie estava
quieto e Shena, com sinais de ter chorado muito. Gail ficou
olhando o carro desaparecer e acenando para Robbie.
Andrew voltou na hora do chá, dirigindo o jipe.
Perguntou pelas crianças e Gail explicou que tinham saído com a
avó, acrescentando:
— Estava muito frio e não queria que eles saíssem.
— Bem, a avó deles gosta de levá-los para um passeio de vez em
quando e tem a minha permissão para fazê-lo. Já faz tempo que o
avô não os vê. Acho que ainda não lhe falei que ele está inválido. É
um homem solitário e lhe faz um grande bem ver Robbie e Shena,
pois os ama muito.
Gail sentiu-se melhor depois de ouvir isso. Ficou pensando sobre
o pobre homem. Como ele podia conviver com uma mulher como a
Sra Davis? Deveria sofrer muito com o temperamento dela.
Assim que as crianças voltaram, Gail percebeu que Shena estava
doente. Seus grandes olhos azuis brilhavam e lacrimejavam.
Tinha as faces afogueadas e o nariz escorrendo. Gail pegou um
lenço para limpar-lhe o nariz e tocou-lhe a testa. Estava pegando
fogo.
— Você tinha razão sobre o resfriado deles — disse a Sra Davis.
— Embora ainda ache que Shena esteja exagerando um pouco. Ela
realmente está uma menina estragada pelo mimo. Ponha-a na
cama e ela estará bem de manhã. Não há necessidade de chamar
um médico.
Mas Gail e Andrew resolveram chamar um médico, que constatou
que a menina estava com uma gripe muito forte.
— Ela já devia estar com gripe, antes mesmo de sair — disse
Andrew. Ele ficou com Gail ao lado da cama da filha depois que Q
médico saiu.
— Eu sabia que ela estava resfriada.
— Então deveria tê-la mantido em casa!
— Mas o resfriado dela só foi percebido depois do almoço. . .
— E assim mesmo você a deixou sair?
Gail ficou sem falar por um momento, mas acabou respondendo:
— Eu contei que não queria que eles saíssem com a Sra Davis.
Você disse que estava tudo bem.
— Você não me havia dito que Shena estava doente! De qualquer
forma agora já foi, você os deixou sair! — Shena gemeu na cama
e ele se inclinou, colocando a mão em sua testa. — Realmente não
consigo entender como você pôde ter sido tão negligente em não
perceber como ela estava doente. Shena deveria estar na cama
há horas!
A censura, a culpa e a injustiça das palavras dele trouxeram
lágrimas aos olhos de Gail.
— Eu os estava mantendo aquecidos. Eles ficaram junto comigo,
perto da lareira, até que a Sra Davis chegou e disse que queria
levá-los com ela para o chá. Se ela não os tivesse levado, eu teria
colocado Shena na cama bem mais cedo.
— Por que você não disse a Sra Davis que Shena estava
resfriada? — Ele a olhava, zangado. — Não posso entender a sua
negligência!
— Eu disse, mas a Sra Davis foi muito insistente.
— Ela não teria insistido se você tivesse se oposto com firmeza!
As crianças estão sob a sua responsabilidade e espero que você
use o seu bom senso quando a segurança delas estiver em jogo.
Gail teve vontade de perguntar até onde ia sua autoridade para
resolver os assuntos relacionados às crianças, mas Shena
começou a se virar na cama. Além disso, Andrew estava de
péssimo humor e ela resolveu ficar quieta.
Shena ficou de cama durante vários dias. O amor e os cuidados
de Gail não só fizeram com que a menina se recuperasse com
rapidez, como também contribuíram para que as duas se
aproximassem definitivamente. Uma semana depois, Andrew
levou-a para a sala onde estava a lareira.
— E então, Shena, como se está sentindo? — perguntou, depois
de colocá-la entre as almofadas que Gail tinha arrumado.
— Está muito gostoso e quentinho, papai, obrigado. — Ela sorriu
para o pai e depois para Gail.
Shena havia sido totalmente conquistada e Gail rezou,
agradecendo interiormente por isso. Sentou-se ao lado dela e
começou a contar histórias até que Shena adormecesse.
Robbie havia ficado dois dias afastados da escola por causa de
seu resfriado, o que o deixou satisfeito. Ele tinha noção de toda
a atenção que estava sendo dedicada à irmã e sentia-se
enciumado por essa preferência.
— Eu não estou nada bem — disse ele quando Gail o declarou em
condições de ir para a escola. — É o meu estômago. Acho que
tenho gota. Meu bisavô tinha gota.
— Robbie, as pessoas geralmente têm gota no pé. Nunca no estô-
mago. Portanto você vai ter que imaginar outra doença.
Ele tentou pensar em outra coisa, mas como todas as doenças que
imaginou só fizeram com que Andrew e Gail rissem acabou
desistindo. Mas não antes de alertá-los de que, caso morresse,
eles se arrependeriam pelo resto da vida.
Durante o tempo em que Gail se dedicou a cuidar de Shena,
Andrew pareceu vê-la pela primeira vez de forma diferente. Gail
sentia-lhe o olhar e levava a mão aos cabelos que cobriam a
cicatriz em sua têmpora. Ela chegou a pensar em procurar um
cirurgião plástico para remover aquelas marcas, agora tão
indesejáveis. Mas não poderia deixar as crianças; além do mais,
não queria que seu marido sequer soubesse que elas existiam.
Robbie entrou correndo na sala e Gail colocou o dedo sobre os
lábios, pedindo silêncio:
— Psiu... Shena está dormindo. Não faça barulho.
— Ela vai à escola amanhã?
— Ainda não, Robbie, só daqui a uma semana — respondeu Gail.
Andrew entrou na sala escurecida.
Robbie resolveu protestar:
— Isso não é justo! Ela já deve estar melhor se já saiu da cama.
Shena acordou e se defendeu:
— Eu ainda não sarei, só estou um pouquinho melhor. Não é,
mamãe?
— Sim, querida só um pouco melhor.
— Como vai o meu bebê? — perguntou Andrew aproximando-se da
cama, com o rosto bronzeado e radiante de quem trabalhava ao
ar livre e levava uma vida saudável.
Quando se inclinou sobre a cama, a menina sentou-se e jogou os
braços em volta do pescoço dele. Andrew recebeu um beijo
estalado no rosto.
— Não sou um bebê, papai.
— Bem, então você não vai ficar no meu colo.
— Você ia me pôr no seu colo?
— Claro, bem aqui, sobre os meus joelhos. Bem, quem eu deveria
pegar no colo, então? Robbie?
— Não! Pegue mamãe no colo! Imagine um homem como eu no
colo!
Fez-se silêncio depois das palavras de Robbie. Andrew parecia
estar se divertindo, enquanto Gail enrubescia. A luz das chamas
da lareira, ela estava adorável.
— Não se pegam mães no colo — exclamou Shena. — Elas são
muito grandes!
— Nossa mãe não é muito grande, Shena. Ela é bem menor do que
papai. Ela bate no ombro dele!
Desconcertada Gail se levantou e abriu as cortinas para iluminar
o cômodo. Com uma rápida lembrança do seu corpo coberto de
cicatrizes, ela perguntou a Shena:
— Você não vai deixar que seu papai a pegue no colo?
— Sim, mas eu não sou um bebê.
Ela sentou-se no colo do pai e colocou um dos braços em volta do
pescoço dele. Robbie ficou parado olhando-a, com a mão no braço
da cadeira de Gail. Ela colocou um braço em volta da cintura dele
e o puxou para mais perto de si. O rostinho de Robbie se iluminou
e ele descansou a cabeça sobre o peito de Gail. Andrew
observava a cena com uma expressão tranqüila. Aquela era uma
cena íntima e doméstica... Com apenas uma ligação de amor
faltando.
— Você quer tomar chá agora, Andrew? — perguntou Gail.
— Quando você quiser. Não estou com fome, mas creio que
Robbie deve estar. — Virou-se para Shena. — E você?
— Estou com fome. Quero sanduíches, biscoitos, mel e geléia.
— Bem, então vou providenciar — disse Gail. — Não quero que os
nossos doentinhos passem fome.
Mais tarde, quando estavam tomando chá, Shena perguntou:
— Será que Morag vai ficar chateada porque eu estive doente?
Gail sobressaltou-se com a pergunta, percebendo como a garota
era afastada dos dois irmãos. Era triste que ela aproveitasse tão
pouco a chance de dar e receber amor. Também era triste
constatar que os dias sem ela haviam sido tão pacíficos e calmos.
Andrew nem chegou a descobrir para onde a filha havia ido.
Realmente ele não tinha como controlar aquela garota. Gail
chegou a conclusão, por pior que pudesse parecer, de que a única
maneira de brecá-la era através da violência.
— Onde está Morag, papai? — perguntou Robbie.
— Está de férias, Robbie. Gail resolveu mudar o assunto:
— O que você fez hoje na escola?
— Ah, contas, composição, desenho e tive aula de ciências. Tive-
mos aula sobre as raposas e eu disse que elas estavam matando
as nossas ovelhas. A srta. Spencer deixou que eu contasse aos
meus colegas sobre isso. Gostei de contar tudo. Acho que vou ser
professor quando crescer.
— Ah, sei, Robbie. Então você poderá contar às outras crianças
sobre as raposas, não é? — perguntou Andrew, enquanto passava
geléias nas torradas de Shena. — Você disse que queria geléia,
Shena?
— Sim, mas não gosto dessa aí.
— De qual você gosta?
— Gosto da vermelha. Essa é preta.
— Acho que ela não gosta de geléia de uva, Vou pegar a de
morango — disse Gail.
— Não se levante — aconselhou Andrew. — Use o sino.
Gail sentiu um prazer inesperado com esse sinal de consideração.
— Papai, Meredith atirou nas raposas? — perguntou Robbie.
Meredith era um dos capatazes de Andrew-
— Em algumas, Robbie. já não perdermos tantas ovelhas.
— Elas sempre atacam o rebanho? —- perguntou Gail.
— Geralmente quando as ovelhas têm uma ninhada para cuidar.
Gail pensara que nunca se acostumaria àquela matança, mas sur-
preendeu-se ao perceber que concordava que fosse necessário.
— Você está se acostumando ao nosso modo de vida — observou
Andrew como se tivesse lido os pensamentos dela.
Ela concordou.
— Você vai aprender a atirar, mamãe?
— Não, Robbíe! Não vou aprender a atirar.

CAPITULO V

Quando as duas semanas terminaram, Morag ainda não tinha


voltado e a expressão de Andrew tornava-se cada vez mais
transtornada. Gail sentia pena dele, pois sua posição não lhe
permitia sujeitar-se a toda aquela publicidade negativa. O rosto
dele também revelava um grande cansaço, pois a temporada anual
de caça às raposas se aproximava e o trabalho era muito árduo
para que se evitasse a matança de ovelhas.
Com a passagem dos dias e a ausência de Morag, ele se tornou
cada vez mais distante de Gail, quase a ignorando.
Na manhã em que Shena deveria voltar à escola, Gail e as
crianças estavam tomando o café da manhã quando Andrew
entrou. Tinha uma expressão de cansaço, olheiras profundas e a
roupa toda suja de lama. Dirigiu-se a Gail:
— Você me faria um favor? Tenho aqui uma lista do material que
precisamos para a construção das cercas. Você poderia passar
peia loja quando voltar da escola?
— Sim, é claro.
— Pague com o seu próprio dinheiro que depois eu acerto com
você. Você disse que tem economizado, portanto o seu dinheiro
deve dar. Vou tomar um banho e dormir um pouco.
Gail se levantou para ir atrás dele e explicar que não tinha
dinheiro quando Shena derramou o leite sobre a roupa. Gail olhou
para o relógio. Teria que correr para trocar Shena. Depois
voltaria e falaria com Andrew.
Quando voltou da escola das crianças, soube que Andrew já tinha
ido dormir. Resolveu subir e escutar através da porta. Não ouviu
barulho algum. Bateu. Ninguém respondeu. Abriu a porta com
cuidado e entrou no quarto. O quarto estava na semi-escuridão e
Andrew dormia. Ela mordeu os lábios. Não queria acordá-lo, mas
tinha que comprar o material. Murmurou o nome dele, mas não
teve resposta. Falou em voz normal e ele abriu os olhos,
assustado.
— O que aconteceu?
— Nada de grave. É só que... as coisas que você pediu que eu
comprasse. Não tenho dinheiro suficiente. . .
— Esse material deve custar apenas umas doze libras!
— Eu não tenho essa quantia.
— Sei.
— Eu não o teria acordado, Andrew, se tivesse o dinheiro.
— Está bem. Eu pegarei no cofre.
Enquanto dirigia em direção de Perthshire, Gail sentia raiva e
tristeza. O que Andrew estaria pensando a respeito dela?
Ela sentiu que odiava Morag e, quando a garota voltou para casa,
bronzeada e bem disposta, Gail a abordou com violência. Ela
negou que tivesse roubado o dinheiro.
— Não acredito em você, Morag! Nada vai me convencer de que
não foi você quem roubou o dinheiro. Onde esteve esse tempo
todo, por falar nisso?
— Estive ao sol. Está com inveja?
— Seu pai quase enlouqueceu de preocupação. . .
— Ora, droga! Ele não se incomoda com o que eu faço. Ele fica
feliz por me ver fora de casa.
— Ninguém poderia culpá-lo se ele realmente se sentisse assim.
Mas isso não é verdade. Você tem apenas quinze anos e ainda
está sob os cuidados e a responsabilidade dele. Se você tivesse
alguma consideração por ele, tentaria se comportar.
— Bem, não sinto nada por ele. Nunca senti. Não sinto nada por
ninguém. É melhor assim porque desse jeito você nunca se
machuca. Minha mãe nunca sentiu nada por ninguém, e a vida dela
foi feliz.
— Não existe felicidade sem amor, Morag. Pelo bem do seu pai,
por que você não tenta?
Morag suspirou, já sem paciência.
— Ah, esses seus sermões! Você não percebe que é uma figura
ridícula, parada aí com esse ar caridoso de superioridade? Por
que não desiste? Você não está aqui para me converter e sim
para se certificar de que aqueles dois pequenos não sigam os
meus caminho degenerado e perdido. — Ela soltou uma
gargalhada. — Você disse a meu pai que eu roubei o dinheiro?
— Seu pai já tem coisas demais para se preocupar.
— Ah, sim, tinha me esquecido da sua dedicação para com ele. . .
A nobre e devota esposa protegendo o marido das atribulações
que sua filha desnaturada causa! — Ela olhou Gail de soslaio. —
Mas ele nem sequer nota a existência da esposa tão devota. Ou
será que houve alguma mudança desde que eu fui embora?
— Morag. . . Espero que você devolva cada penny que tirou de
mim.
A garota a interrompeu com uma gargalhada.
— Que esperança! Já disse e repito que não peguei o seu
dinheiro. Algum dos criados deve ter roubado. Se é que você foi
roubada.
— Você não tem jeito mesmo!
— Isso é o que meu pai costuma dizer. Pelo visto vocês
concordam em alguma coisa.
Acendendo um cigarro, Morag soltou a fumaça no rosto de Gail.
— Morag. . . Você é uma vergonha para as mulheres!
Quando Andrew voltou na hora do chá, houve outra discussão
entre pai e filha. Gail se manteve afastada, mas o que quer que
tenha acontecido levou a garota às lágrimas. O conflito também
afetou Andrew e Gail acabou sendo o bode expiatório do seu mau
humor. Tudo o que acontecia de errado, ou não dava certo, era
culpa dela.
Gail enfrentava tudo com paciência, justificando-o pelo trabalho
e aborrecimento que Morag estava causando. Mas, afinal de
contas, ela era um ser humano e uma hora isso teria que chegar a
um fim.
Alguns dias depois ela e Andrew receberam um convite para um
baile no castelo e ele disse:
— E uma festa formal e as senhoras em geral usam vestidos sem
mangas nessas ocasiões. Você tem um? Pergunto porque já notei
que você parece preferir vestidos com mangas.
— Sim, com mangas curtas. —Ela ficou pálida. A cicatriz em seu
ombro não era uma visão agradável.
— Eu gostaria que você usasse o vestido correto para a ocasião.
— Não posso, eu me sinto desconfortável.
— Ora, mas que bobagem! Se não tem uma roupa adequada, dou-
lhe o dinheiro e você pode ir até a cidade e comprar um vestido.
— Não posso! Acho que tenho o direito de usar aquilo que me
agrada mais, não? Prefiro usar aquilo de que gosto, Andrew,
aquilo no qual me sinto confortável.
— Faça o que estou dizendo, Gail. Aqui está o cheque. Compre o
que quiser, desde que seja sem mangas.
Como Gail usava um xale, Andrew só notou que ela estava com um
vestido com mangas depois que chegaram ao baile. Todas as
outras mulheres usavam vestidos decotados, menos ela. Mas ela
sentia-se mais à vontade do que se estivesse revelando sua
cicatriz.
— Como se atreve a me desobedecer?! — exclamou ele, assim que
ficaram sozinhos. — Como se atreve? O rosto de Gail ficou lívido
diante da fúria de Andrew.
— Lamento, mas não pude seguir a sua ordem. Sinto-me bem
melhor assim.
Ela estava tão infeliz que se ele tivesse perguntado a razão teria
dito. Durante a noite toda ela sentiu-lhe a fúria contida, mesmo
quando dançavam. Andrew ficou em silêncio até chegarem em
casa, quando então explodiu.
— Nunca mais se atreva a me desafiar assim, ou você se arrepen-
derá muito!
— Não considero isso um desafio, Andrew, Tem o direito de me
vestir como preferir.
— Mesmo que eu me sinta ridicularizado, como esta noite?
Ridicularizado. . . Ninguém havia prestado atenção à roupa dela.
— Lamento muito se você se sentiu ridicularizado.
— Sentir-me? Eu fui! Foi pura teimosia de sua parte não usar a
roupa correta.
— Você não sabe se foi teimosia.
— Sei que foi pura teimosia! Aliás, uma atitude bem típica das
mulheres!
Gail perdeu a cabeça.— Você julga que todas as mulheres são
iguais, não é? Você não me conhece o suficiente para me julgar,
portanto não tire conclusões precipitadas. De qualquer forma,
mesmo que você ache que é teimosia, continuarei a usar aquilo
que me agrada. E, se o meu gosto não coincidir com o seu, sinto
muito.
Um pesado silêncio caiu entre os dois. Até agora ele
provavelmente a considerava como uma pessoa totalmente
submissa. Foi com calma e frieza que respondeu:
— Deixe-me dar-lhe um bom conselho, Gail. Não alimente a idéia
de que, porque Morag me desafia, você pode fazer o mesmo. Ela
é rebelde porque é imune ao sofrimento. Ela é invulnerável, mas
você não. Desafie a minha autoridade e você se machucará. E
nunca mais se esquecerá disso. Siga as minhas ordens e a vida
será bem mais amena para você.
As palavras dele ficaram em sua cabeça a noite toda, pois Gail
não dormiu. Elas revelavam o quanto ele conhecia tanto o seu
caráter como o de Morag. Andrew era bem mais observador do
que demonstrava...
Maio chegou e a temperatura começou a ficar mais amena. Entre-
tanto, a atmosfera dentro da casa continuava tensa. Foi com
alivio que Gail ouviu Andrew mencionar a intenção de passar uns
dias na sua propriedade ao norte.
Durante a ausência dele ela ficou conhecendo Robin Sheldon, um
rapaz atraente. Os pais de Robin tinham liquidado seus negócios
e desfrutava uma aposentadoria precoce, vindo viver numa casa
de campo, pequena, mas bonita, perto das colinas, acima da
aldeia. A Sra Sheldon era escocesa, de Perthshire, e Robin
estava trabalhando naquela cidade já havia algum tempo. Vivia
com uma tia e viajava para a casa dos pais nos feriados.
Eles se conheceram na estrada, quando, com um pneu furado, Gail
tomara a atitude feminina mais óbvia e parou, olhando
desanimada para o carro. Mas, no fundo, estava torcendo para
que alguém passasse para ajudá-la. Robin havia parado seu carro
e perguntara:
— Qual é o problema?
— Um pneu furado. Pensei que pudesse trocá-lo, mas. . .
Gail tinha sorrido para ele e, minutos depois, Robin estava
trocando o pneu.
— Pronto! Já está em ordem!
— Muito obrigado! Preciso pedir a meu marido que me explique
como fazer isso, caso aconteça novamente.
— Marido?! Ora, mas que azar o meu! — exclamou ele bem-
humorado e Gail riu.
Eles se encontraram novamente no domingo seguinte, quando Gail
e as crianças saíam da igreja.
— São seus filhos? — perguntou ele.
— São meus enteados; Robbie e Shena. Ele a olhou com
curiosidade.
— Onde você mora?
Ela apontou para a mansão, no alto da colina.
— Aquela é a minha casa.
— Sei, a Casa Dunlochrie. Há uma garota lá, não é?
Gail acenou com a cabeça e pensou com tristeza em seu marido.
Com todos os problemas que ele tinha, ela ainda havia criado mais
um. Sentiu remorso pelo seu comportamento, e resolveu que
assim que Andrew voltasse lhe contaria sobre o acidente e sobre
as cicatrizes que carregava no corpo.
— Morag está em casa no momento? — perguntou Robin, enquan-
to caminhavam até o estacionamento.
— Sim, ela está em casa.
A resposta curta evitou maiores informações.
— Ela saí muito, não é?
— Ela tem muitos amigos e gosta de visitá-los. Aqui é sossegado
demais para uma garota de quinze anos — disse Gail.
— Ela deveria estar na escola — disse ele, quando chegaram ao
carro.
Gail o olhou fixamente e concluiu:
— Isso é assunto do pai dela. Eu nunca discuto isso com ninguém,
Robin deu de ombros e olhou para a grande casa, imponente à luz
do sol de maio.
— Seu marido não vem à igreja?
— Ele sempre vem à igreja conosco, mas está fora no momento.
— Gail e as crianças entraram no carro. Ela fechou a porta, mas
deixou a janela abaixada. — Nunca o vi na igreja, antes, Robin
sorriu.
— Não venho com freqüência. Vim esta manhã para me ocupar
com alguma coisa. É muito fácil se entediar por aqui.
— Mas seus pais gostam do lugar, não?
— Ah, sim e muito.
Gail deu a partida no carro, mas ele insistiu.
— Será que eu poderia pescar no lago?
— No lago? Não sei se meu marido permitiria.
— Não sabe?! — Ele levantou as sobrancelhas, com ar de
surpresa. — Ouvi dizer que ele permite. Posso falar com o
administrador?
— Creio que não há nenhum motivo para que você não fale com o
Sr. Sinclair.
— Ótimo. Passarei por lá esta tarde.
Despediram-se e Gail foi para casa com uma estranha sensação,
amenizada pelo barulho das duas crianças.
Robin chegou às duas horas. A Sra Birchan lhe abriu a porta e o
levou até Gail, que estava na sala de estar, ajudando Robbie a
vestir um casaco e o cachecol.
— Oh, você. . . Quer ver o Sr. Sinclair, não? Sra Birchan, por
favor, chame o Sr. Sinclair.
— Vocês vão sair? — perguntou Robin, sentando-se.
— Nós sempre damos um passeio nos domingos, à tarde — res-
pondeu Robbie. — Papai sempre vem junto, mas ele está viajando.
Você quer vir conosco?
— Você gostaria que eu fosse?
— Sim. — Robbie olhou para a mãe. — Se mamãe quiser.
— O Sr. Sheldon veio para pescar, Robbie — disse Gail. Sinclair
entrou, ela os apresentou e explicou a situação.
Sinclair pediu que Robin o acompanhasse ao escritório dele. A
permissão foi concedida e, quando Gail e as crianças saíram da
casa, Robin estava apanhando seu equipamento de pesca no carro.
— O lago é longe daqui — disse Gail. — É melhor ir de carro.
— A caminhada me fará bem. Você se importa se eu os acom-
panhar?
Gail hesitou um pouco, depois respondeu:
— Ainda não me decidi se vou para aquele lado.
— Oh, mamãe, mas nós quase sempre vamos para perto do lago.
Eu gostaria de ir ver o Sr. Robin pescar.
Gail uma vez tinha ouvido Andrew comentando que não era permi-
tido pescar da margem.
— Você não o verá pegar nenhum peixe, Robbie, porque ele estará
dentro de um bote, no meio do lago.
— Bem, então vamos andar com o Sr. Sheldon. Poderemos vê-lo
entrar no bote.
— Sim, vamos — disse Shena.
E Gail teve que concordar, apesar de sentir-se tão pouco à
vontade.

CAPÍTULO VI

Eles deixaram Robin no lago e começaram a caminhada. Com a


primavera, as plantações desabrochavam e as pastagens pareciam
um tapete de veludo verde.
Depois de caminharem bastante tempo, Robbie falou:
— Está ficando escuro, mamãe. Acho que vai chover. Havia um
cheiro de chuva no ar.
— Precisamos voltar, crianças.
O carro da Sra Davis estava estacionado na entrada da casa
quando chegaram. Ela e Morag estavam tomando chá junto à
lareira, na sala de estar.
As duas pararam de falar assim que Gail e as crianças entraram.
As crianças, quando viram a avó, pegaram na mão de Gail e esta
disse a Sra Davis:
— Sinto muito por estarmos fora, mas em geral a senhora não
vem aos domingos.
—Quando Andrew está em casa, não. Ele gosta de privacidade.
—Se a senhora tivesse telefonado, eu não teria levado as
crianças para passear.
—Tivemos uma tarde muito aconchegante e proveitosa — respon-
deu Morag, com olhar de provocação.
Só uma hora mais tarde, quando a Sra Davis foi embora, Gail
entendeu a observação da garota quando ela começou:
— Quem é seu namorado?
— Acho que não entendi o que você disse.
— Foi ele quem lhe comprou as flores?
— Conheci o Sr. Sheldon outro dia, Morag.
— Puxa! Então ele trabalha depressa. Vir visitar você assim... Oh,
sim, eu vi vocês dois. Vocês têm encontros clandestinos? Deve
ser divertido, . . — Ela riu. — Acho que vou acabar me casando,
afinal de contas. Vou arranjar um marido para ter um álibi. Você
vai arranjar encrenca se meu pai descobrir sobre o seu
namorado. Afinal, vai se repetir a mesma história de minha mãe.
Você sabe qual é, não?
Gail se levantou sem responder e saiu da sala.
Assim que Andrew voltou, foi à procura de Gail e a encontrou no
quarto das crianças, fazendo algumas arrumações.
— Quem é o homem que veio aqui vê-la?
— Você andou falando com Sinclair?
— Andei falando com Morag.
— Poderia me dizer exatamente o que ela lhe contou? Ele hesitou
e depois respondeu, com fúria:
— Ela disse que o viu passeando com você, no domingo ã tarde!
— E ela contou que as crianças estavam comigo? — Ele acenou
que sim e Gail continuou: — Eu o conheci quando ele trocou um
pneu furado do carro para mim.
— Um pneu furado? Mas que conveniente!
— A outra vez em que o vi estávamos saindo, da igreja. Ele me
pediu permissão para pescar aqui.
— E você lhe deu permissão? — A voz de Andrew estava gelada.
— Mandei que ele falasse com Sinclair. Creio que essa foi à
atitude correta a tomar, não foi?
— Tome cuidado, Gail. Lembre-se com quem você está falando...
Sinclair deu permissão ao seu amigo para pescar no lago?
— Meu amigo! Ele deu permissão ao Sr. Sheldon para pescar. E
por isso que estávamos andando com ele. As crianças queriam ir
até o lago e eu concordei.
— As crianças? — perguntou ele, com ar de surpresa. Levantando
a cabeça, ela o encarou com firmeza.
— Sim, Andrew, as crianças.
— Vou falar com Sinclair. Esse homem não deverá voltar aqui. E
você não falará mais com ele, entendeu?
— Não, Andrew, não entendi! Morag distorceu a verdade sobre o
meu relacionamento com o Sr. Sheldon. Se quiser acreditar nela,
faça isso, não posso controlar as suas suspeitas. Mas, quanto a
voltar a falar com ele, farei o que achar melhor! O que você
espera que eu faça? Que finja que não o conheço quando o
encontrar outra vez?
— Exatamente isso.
— Então você vai se desapontar. As minhas boas maneiras não
permitem que eu trate alguém de modo tão deselegante!
Andrew avançou para ela, que recuou, levando a mão à cicatriz
nas têmporas, que estava saliente. Recuou até se encostar à
parede.
— Então eu vou me desapontar, Gail? Se eu me desapontar, você
vai se arrepender muito!
O coração dela batia, disparado. Havia um ar selvagem em
Andrew que ela nunca tinha visto antes.
— Vamos esperar para ver se me arrependerei ou não.
— Você está me desafiando, Gail?
— Pretendo tratar o Sr. Sheldon com boas maneiras.
— Você não falará com ele novamente! — Ele explodiu. — Estou
ordenando que o ignore, não me importa que circunstâncias você
tenha que enfrentar!
Gail sentiu suas pernas fraquejarem. Nunca em sua vida tinha
enfrentado uma fúria tão grande.
— Andrew! Não posso ignorá-lo sem nenhum motivo. Andrew a
agarrou pelos braços e começou a chacoalhá-la. De repente parou
e se afastou, com os olhos fixos no rosto dela.
— Essa cicatriz. . . Como conseguiu?
Ela só conseguiu cair em prantos e murmurar:
— Foi... Foi...
E, colocando as mãos no rosto, chorou.
— Gail... — Ele estava perplexo, arrependido e gentil. — Minha
querida, não chore. Sinto muito por tê-la magoado. — De repente
ele a abraçou e ela sentiu-lhe os lábios sobre sua cicatriz. A
cicatriz que ela tinha por tanto tempo tentado esconder. —
Conte como isso aconteceu.
Entre soluços, Gail começou;
— Foi num acidente de carro. Tenho outra, menos à vista, no meu
ombro.
— No ombro? — Andrew ficou pálido. — Então foi por isso que
você não...Ah, Gail, sua menina tola. Por que você não me contou?
Ela se lembrou das palavras de Morag sobre Andrew não tolerar
nada inferior.
— Acho que foi por teimosia da minha parte... Eu não queria que
você soubesse das cicatrizes-
— Não queria? Mas por quê?
— Achava que você não tolerava coisas inferiores.
— E você se considera inferior? — A voz dele era suave. — E o
que lhe deu essa idéia?
— Era uma. . . Impressão que eu tinha. . — foi tudo o que ela
disse e, para seu alívio, ele não continuou mais o assunto.
Gail enxugou as lágrimas e sorriu, acalmada pela gentileza e pela
maneira como Andrew dera pouca importância às suas marcas. E
ela havia se preocupado tanto a esse respeito!
— Andrew... Posso lhe contar sobre Robin, então?
— Sim, Gail. Vamos nos sentar no sofá e você me contará
tudo. O que ela contou pouco acresceu ao que já havia dito.
Ele a ouviu com a atenção, pois estava de bom humor.
— Sinto muito, Gail. Peço que você me desculpe. — E ele sorriu.
Como era atraente quando sorria!
Esse incidente acabou por aproximá-lo mais e Andrew, sempre
que possível, se juntava a Gail e às crianças durante o chá.
Continuaram a passear todos juntos aos domingos e, quando não
estava muito ocupado, Andrew ia com Gail buscar as crianças na
escola. Começaram a receber amigos para o jantar e estes se
sentiam aliviados por ver que Andrew estava começando a ter
alguma felicidade de volta ã sua vida.
Mas Morag continuava a ser um empecilho a paz de espírito de
Andrew. Uma discussão entre os dois já era suficiente para
Andrew ficar de péssimo humor. Gail se perguntava se Andrew
suspeitava que Morag não era filha dele.
Um sinal de que o relacionamento entre Gail e Andrew tinha
melhorado era o fato de ele falar sobre Morag com ela:
— Estou pensando em mandá-la para um internato.
— Já tem alguma escola em vista?
— Existem duas; uma perto de Edimburgo e outra em Londres.
Escreverei para ambas.
A escola de Edimburgo não aceitou Morag. Tudo indicava que o
diretor tinha informações a respeito dela. Como não houve esse
problema com a escola em Londres, tudo foi arranjado para que
Morag começasse em setembro. Se ela iria aceitar ou não,
ninguém sabia.
Gail tinha que admitir que a vida seria um paraíso sem Morag.
Lembrou-se do seu otimismo em poder ajudar a garota. Tinha
falhado. Bem cedo teve que admitir que nada poderia ser feito
pela menina.
Será que Morag deveria levar a culpa por tudo que ela era? Até
certo ponto uma pessoa sozinha pode ser capaz de delinear seu
próprio caráter, diferenciar aquilo que é certo e o que é errado;
mas muitas características são inerentes, herdadas,
independentes da vontade do indivíduo. . .
No começo de julho Morag novamente saiu para visitar amigos.
Deixou um bilhete para Andrew dizendo que iria ficar fora por
três semanas. Não deixou nenhum endereço, nem indicação se
tinha dinheiro. Para surpresa de Gail, Andrew pareceu
desinteressado.
Andrew sorriu e disse: Logo depois, Robin apareceu. Gail ficou
com medo da reação de Andrew, mas este recebeu o rapaz
polidamente e lhe deu permissão para pescar. Mais tarde, Gail viu
Andrew conversando com Robin perto do carro.
Alguns dias depois da saída de Morag, Andrew perguntou a Gail
se ela gostaria que Heather e Roger viessem passar uns dias com
eles. Gail ficou surpresa e encantada com a sugestão.
— Será que mais tarde Beth e a família também poderiam vir,
Andrew?
Imediatamente Andrew sugeriu que todos viessem juntos.
— Ah, não. Andrew! São quatro crianças a mais. Daria muito
trabalho aos criados!
— Não se preocupe, os criados darão conta.
Para a felicidade de Gail suas irmãs aceitaram o convite e chega-
ram juntas, em dois carros separados. As crianças correram para
brincar no jardim e Gail acompanhou as irmãs, que subiram para
os quartos. Gail mostrou o quarto para Beth. O quarto das
crianças ficava ao lado. Acompanhou Heather até o quarto e ela
perguntou:
— Onde estão os homens?
— Estão tomando um aperitivo. Pode deixar as malas, Dora. Eu
ajudo minha irmã a desfazê-las.
A criada saiu.
— Quer dizer que Andrew continua preferindo a companhia dos
homens...
— Ele convidou você e Beth a se juntar a eles, mas você não
prestou atenção, Heather.
— Nossa, Gail, mas que sensível! Você está se apaixonando por
aquele bruto?
— Você gostou do seu quarto, Heather?
— Evitando a minha pergunta, mana? Sim, os quartos são magní-
ficos. E que vista! Essas montanhas e o céu azul! Pensei que
chovesse muito na Escócia.
— Eu também. Mas este ano foi excepcional. Não tivemos neve.
— Acho que teremos um tempo maravilhoso, Gail. Estou feliz por
você nos ter convidado.
— Também estou feliz por você ter vindo, Heather.
— Certamente se casou com um milionário, Gail. O que é uma
compensação para o que você está perdendo... — Gail nada comen-
tou a respeito. — Gail, e. Morag? Você é sempre tão evasiva com
as minhas perguntas. Estou louca para conhecê-la.
— Você não a conhecerá. Ela está fora, visitando amigos. Heather
quer ajuda para desfazer as malas?
Heather concordou e disse:
— Visitando amigos? Uma das suas escapadas, você quer dizer?
— É, talvez. . . Heather faremos um churrasco na quinta-feira, se
o tempo continuar bom.
Heather não se deu por vencida.
— Gail, você programou esta visita porque a menina estava fora?
— Não, Heather, isso foi sugestão de Andrew.
— Ela lhe dá muito trabalho?
— É, nós temos os nossos desentendimentos. Mas eu a vejo
pouco.
— Então, a sua boa intenção não deu certa? Você não conseguiu
mudá-la?
— Detesto admiti-lo, Heather, mas... Não creio que Morag possa
ser mudada.
— E se ela arranjasse um marido bom e decente? Gail suspirou.
— Acho que um rapaz decente não se interessaria por ela.
Heather começou a desfazer a outra mala.
— E os dois pequenos, Gail?
— São crianças maravilhosas. Eu os amo muito e eles me amam
também.
— Então conseguiu o que queria. Realmente seria um desperdício
se alguém como você não pudesse ter crianças para criar. Fico
feliz por você, Gail, de ver o seu sonho realizado. Mas diga. . . E
Andrew? Será que você pode estar se apaixonando por ele?
Como entre as duas irmãs nunca houvera segredos, Gail disse:
— Sim. Acho que me importo mais com ele do que deveria para a
minha paz de espírito.
— Será que você tem um problema nas mãos?
— Não, eu não o chamaria assim. . ,
— Não? Será que ele também está se apaixonando? Não, não é
possível, Gail. Ele é duro demais. Não poderia se apaixonar.
Gail se lembrou da doçura de Andrew quando descobrira a
cicatriz.
— Você não muda de opinião sobre ele, não é, Heather?
— Ele sempre foi tão arrogante e presunçoso em todas as
ocasiões em que nos encontramos, Gail. E você lembra muito bem
que ele mal nos dirigia a palavra quando esteve na minha casa.
Gail abriu uma gaveta e colocou a roupa de Heather dentro.
— Mas ele falou comigo! Pediu-me em casamento. . . — Ela olhou
para a irmã com um olhar divertido. — Falando sério, Heather,
ele não é tão ruim assim. Já passou por maus pedaços, mais do
que a maioria dos homens da sua idade. E se isso o tornou um
pouco amargo e duro não podemos culpá-lo. No fundo, ele é
tolerante e compreensivo e... Acho que poderia se apaixonar.
Será que ela estava se iludindo?
— Espero que você não esteja caminhando na direção de mais
uma mágoa. Andrew tem sido bem mais humano ultimamente. Se
não fosse por Morag. . . Ela o deixa tão bravo que ele perde a
paciência com todos. Mas só o tempo dirá. Até agora, pelo menos,
não fui enganada ou trapaceada. Andrew me fez entender que
não haveria nada além de um acordo no nosso casamento e eu
concordei porque era o que eu queria. . . Naquela época.
— Não é uma coisa natural que você continue assim. VOCÊ é
normal... E um homem como Andrew também deve ter todos os
desejos normais. Ele sai muito? Sozinho, quero dizer.
— Ele não tem amigas, se é isso que você está sugerindo.
— Desculpe, não pretendia ofendê-la. É, acho que ele não teria
amigas. Não desse tipo.
Depois disso, mudaram de assunto e se reuniram aos demais na
sala de visitas. Andrew observava o rosto da esposa e sorria para
ela sempre que seus olhares se cruzavam. Gail sentia-se
felicíssima por estar recebendo sua família. Ela sempre fora uma
hóspede, nunca tivera sua própria casa. Mais tarde, quando as
crianças entraram correndo, chamando-a de mamãe, ela sentiu
que sua vida estava completa e a felicidade bem ali, ao alcance de
sua mão.
— Mamãe... Estou morrendo de fome!
— Está, Robbie?
— Eu também, mamãe — declarou Shena.
— Creio que o chá já deve estar pronto — disse Andrew, pegando
o sino para chamar os criados.
Dora atendeu de imediato e disse que o chá estaria pronto
dentro de cinco minutos.
Os adultos sentaram-se a uma mesa e as crianças à outra.
Andrew estava simpático e relaxado, o que fez Beth comentar:
— Gosto de seu marido. De onde Heather tirou, a impressão de
que ele era horrível?
— Ela não o conhecia muito bem.
— É um mistério que você ainda não tenha se apaixonado por ele
— murmurou Beth.
— Mas eu estou apaixonada. Quer mais biscoitos?
— Você está apaixonada? Mas, Gail, sua boba!
— A manteiga está à sua esquerda. Quer mais chá?
— Você acha que ele pode se apaixonar por você?
— Acho que sim, se a minha estrela da sorte continuar me-aju-
dando.
— Mas e se não ajudar?
— Ainda terei as crianças. — Mas a voz dela tremeu. Será que ela
estava pedindo muito?
— Ele sabe de tudo, Gail?
— Ele sabe sobre o acidente, Beth. Viu a cicatriz no meu rosto e
tive que contar como aconteceu.
De repente a voz dela falseou. E se ele se apaixonasse por ela?
Será que iria querer mais filhos?
A idéia a apavorou e Gail tentou tirá-la da cabeça, juntando-se à
conversa.
Para sua surpresa e imensa satisfação, Gail soube que Andrew
não iria trabalhar enquanto as visitas estivessem ali.
Certas ocasiões, todos saíram para uma grande caminhada pela
propriedade. Andrew estava sendo crivado de perguntas pelas
crianças e sempre às respondia com paciência, pois tinha um
grande interesse por tudo que o rodeava.
De repente, ele chamou a atenção de todos para uma águia em
cima da colina. Todos pararam admirados, observando o grande
pássaro, com suas imensas asas e seu vôo majestoso.
— Elas atacam a gente, papai?
— Só se você chegar muito perto, Robbie. Mas é raro.
— Elas atacam ovelhas? — perguntou Thomas.
— Sim, Thomas, e atacam raposas também.
— Papai não se importa que elas ataquem as ovelhas, não é, papai?
— Claro que me importo, Robbie. Quem lhe disse isso?
— Você nunca atirou nas águias, nem Meredith.
— Sim, é verdade. Nunca atiramos nas águias. Mas não gostamos
que elas peguem as ovelhas.
— Parece que todos sempre têm alguém para matar — disse
Beth, um pouco triste.
— Isso é inevitável na vida selvagem — respondeu Andrew. —
Muitos animais matam para poder sobreviver e, às vezes, eu até
sinto pena das raposas. Elas devem ficar desesperadas quanto
têm muitas bocas para alimentar.
As palavras dele foram tão inesperadas que Gail levantou a
cabeça e o encarou. Ele sorriu e seu olhar parecia dizer: "Sim,
Gail, eu também tenho um coração".
Ela sorriu em resposta, porque se sentia feliz e recompensada.
CAPÍTULO VII

O tempo voou e a apenas dois dias da partida Heather estava


triste quando confessou a Gail:
— Nunca tive férias tão gostosas, Gail. Estou triste por ter que
ir embora. Gostaria que você nos convidasse outras vezes.
Gail acenou que sim e sorriu. A companhia tinha sido boa para ela,
mas muito mais importante do que isso fora o prazer que Andrew
sentira com essa mudança.
Na tarde anterior à partida, foi o aniversário de Shena. Andrew
havia sugerido que fosse antecipado, para que todos os primos
aproveitassem. As três irmãs resolveram fazer quase tudo
sozinhas, uma decisão que surpreendeu Andrew. Ele não
conseguia entender por que elas executariam uma tarefa que
poderia ser feita pelos criados.
— É o tipo de coisa que uma mãe gosta ela mesma de fazer. Uma
espécie de trabalho de amor — explicou Heather, o que fez com
que Andrew olhasse para a esposa e dissesse, em tom de
sussurro:
— Estou feliz por ter casado com você.
— Oh, Andrew, obrigada — respondeu Gail corando e se lembran-
do do beijo que ele havia dado em sua cicatriz.
Beth, de ótimo humor, se dirigiu a Harvey, seu marido:
— Vocês, homens, poderiam colaborar conosco, ficando com as
crianças enquanto preparamos a sala.
— Hei, espere aí! — exclamou Harvey. — Tomar conta de crianças
não é trabalho de homens!
Os olhos de Beth se arregalaram.
— Engraçado, não? Você colaborou para produzi-las, portanto
pode muito bem fazer a sua parte.
Andrew riu com gosto da conversa do casal, e respondeu:
— Nós as levaremos para fora da casa e as manteremos
ocupadas, Beth.
Usaram a grande sala de jantar, pois, além dos seis primos, mais
de vinte dos colegas de Robbie c Shena tinham sido convidados.
Gail e as irmãs trabalharam até a hora do almoço, decorando
todo o grande salão com luzes, balões e flores. A mesa de
aniversário seria arrumada logo após o almoço.
Na hora do almoço, Shena entrou em casa seguida por seu pai e
Robbie, que disse:
— Nós vamos lavar o rosto e as mãos, mamãe. E os dois correram
para o banheiro.
— Se fossem meus dois filhos, eles iriam pedir para ver a sala
decorada — disse Heather.
Andrew, com ar de gravidade, respondeu:
— Eles não estão acostumados a ter uma festa assim. É a
primeira vez que verão o salão decorado. ,
— A primeira?! — exclamou Heather, com falta de tato. — Então
será uma linda surpresa para eles!
— Sim, será — concluiu Andrew, com um olhar de gratidão para
as três irmãs.
E foi realmente uma grande surpresa. As outras festas de
aniversário, preparadas pelas governantas, sem interesse por
trabalho extra, representavam apenas uma mesa cheia de
sanduíches de presunto e bolo. Mas as três irmãs tinham grande
experiência em preparar festas para crianças.
E, por causa dessa experiência, o salão e a mesa estavam
magnificamente arrumados. Os sanduíches estavam cortados nas
formas mais variadas e com recheios diferentes. Os pequenos
bolos eram decorativos e os biscoitos tinham o formato de
animais. AS gelatinas, de várias cores, brilhavam na mesa.
Enquanto as mulheres estavam ocupadas com os preparativos
finais, os homens entretiam as crianças lá fora.
Heather sugeriu:
— Como Shena e Robbie nunca viram isso antes, sugiro que eles
sejam trazidos primeiro para dar uma boa olhada no salão, O que
acham?
— É uma boa idéia! — exclamou Beth. — Vou buscá-los lá fora.
Quando voltou, Andrew também estava com ela. Ficou parado na
porta e Gail percebeu que ele estava emocionado.
— Mamãe! — exclamou Shena. — Nunca tive uma festa assim! É
linda! — Ela e o irmão tinham os olhinhos brilhando. — Não é
linda, papai?
— Sim, Shena, é linda.
Ele não disse mais nada, mas olhou com afeição para a filha e lhe
disse para agradecer à mãe e às tias, o que ela fez de imediato.
Todas lhe sorriram de volta.
Robbie continuava parado em pé e de boca aberta.
— A minha festa também vai ser assim, mamãe?
— É claro que sim, Robbie.
— Nós teremos que pedir que as suas tias venham para ajudar,
não é, Robbie? O aniversário dele é na véspera do Natal — disse
Andrew, dirigindo-se a Beth e Heather.
As palavras dele eram um convite e as expressões delas
indicavam que o convite seria aceito. Gail virou a cabeça para
disfarçar um aperto na garganta, pois se sentia tão feliz que mal
podia acreditar que fosse verdade.
— Vamos deixar os outros entrar? — perguntou Andrew e
Heather concordou.
— Sim, estamos prontas para recebê-los.
Durante as horas seguintes a alegria foi geral. Logo os pais
começaram a chegar para buscar os filhos.
Shena foi levada para a cama, cansada, mas feliz. Depois de Gail
tê-la coberto, ela jogou os braços em volta do seu pescoço e,
abraçando-a, disse:
— Eu adoro você, mamãe. Obrigada pela festa linda!
— E eu também adoro você, minha gatinha. Boa noite, querida.
Seus olhos brilhavam quando se juntou aos outros, na sala de
estar.
Heather e Beth estavam no sofá, exaustas.
— Sempre digo que nunca mais farei outra festa quando uma ter-
mina! — Heather riu. — Estou absolutamente exausta!
— Não admira — disse Andrew, com um olhar de gratidão. Vocês
todas trabalharam muito. Shena vai se lembrar dessa festa para
o resto da vida.
Na manhã seguinte todos partiram bem cedo. Andrew os
convidara para voltar novamente dentro de algumas semanas,
para a abertura da temporada de caça. Harvey recusou por causa
do trabalho. Roger, como era seu próprio patrão, aceitou e as
crianças ficaram deliciadas com a idéia.
— Mas para o Natal vocês todos virão, não é mesmo? Harvey
concordou.
— Sim, Andrew, e obrigado pelo convite.
Subiram nos carros e logo partiram. Andrew, Gail e as duas
crianças ficaram na porta de entrada acenando.
— Por que será que a Sra Davis não apareceu aqui esses dias,
Andrew? — perguntou Gail, mais tarde.
— Eu pedi a ela que não viesse. Gail o olhou, admirada.
Depois que as visitas foram embora, Andrew voltou ao seu
trabalho e as crianças sentiram-se um pouco perdidas por não
terem a companhia dos primos.
— Mamãe, não temos nada para fazer. Vamos fazer um pique-
nique?
— Amanhã, Robbie.
— Por que não hoje?
— Porque sua avó vem aqui para vê-!os. Tenho certeza de que
vocês gostam de sua avó e se comportarão bem com ela.
— Eu não gosto dela! — exclamou Robbie.
— Nem eu! — Shena acompanhou o irmão. — Se você não nos
levar para um piquenique, não iremos vê-la.
— Shena... Já disse que sua avó está vindo para cá. Não seria
educado sair, não acha?
— E você gosta que ela venha? — perguntou Robbie.
— Ela vem aqui para ver vocês e não a mim, Robbie. Se amanhã o
tempo estiver bom faremos um piquenique no bosque. Está bem
assim para vocês?
Pareceram ficar satisfeitos, mas, quando a Sra Davis apareceu,
uma hora mais tarde, eles não tinham uma expressão alegre.
— Vou levá-los para a minha casa, para o chá. Meu marido quer
vê-los.
— Eu não quero!
— Robbie! Shena! Aprontem-se! Vamos, façam o que estou man-
dando — advertiu Gail.
— Essas crianças estão estragadas. Preciso falar com Andrew
sobre isso. Elas nunca foram assim antes — disse a Sra Davis.
— Isso vai passar. Nós tivemos visitas durante quinze dias e eles
estão se sentindo um pouco perdidos.
— O filho das suas irmãs, não é? Será que Andrew tem vergonha
deles? Ele me pediu que não aparecesse por aqui.
Os olhos de Gail brilharam.
— Andrew não se considera superior à minha família, Sra Davis!
— Então ele deve ter mudado.
— Bem, não estou disposta a discutir Andrew ou a minha família
com a senhora. As crianças estarão prontas quando a senhora
quiser ir.
Ela os observou ir embora, com o sangue fervendo. Para sua
infelicidade, Morag chegou naquele momento.
Chegou num carro dirigido por um rapaz que nem sequer a ajudou
a tirar a bagagem, e logo deu a partida e foi embora.
Gail percebeu que a garota andava com dificuldade para dentro
da casa. Será que ela estava bêbada? Morag entrou na sala e
deixou a bagagem no hall.
— Olá! — Riu, meio histérica. — Onde estão todos? Pegue-me um
drinque, sim?
— Eu pegar um drinque? Acho que você já deve ter bebido bas-
tante! E desde quando pensa que estou aqui para servi-la?
A garota se movia com dificuldade na cadeira.
— Puxa, como você está de mau humor! Teve uma discussão com
seu marido, Sra MacNeill?
— Você não acha melhor tomar um pouco de café forte?
— Café? Não, Sra MacNeiil, eu quero um pouco de conhaque.
— Você não tomará conhaque enquanto eu estiver aqui!
— Então saia porque é conhaque que eu quero!
Ela tentou se levantar, com os olhos no armário de bebidas. Gail a
empurrou de volta para a cadeira,
— Ou você toma café ou não toma nada! — Gail pegou a garrafa
de conhaque, guardou-a no armário e colocou a chave no bolso. —
Agora você pode ir para a cama e dormir até.., — Ela parou
quando viu Andrew chegar e parar ao lado da porta.
— Qual é o problema? — Ele entrou na sala com os olhos em
Morag e, para surpresa de Gail, com a fisionomia preocupada. —
Morag, você está doente?
"Doente”.Gail sentiu um aperto no coração. Será que ele não tinha
percebido o que se passava com a menina?
— Ora, não é nada, só estou um pouco indisposta. É que ela não
quis me dar um pouco de conhaque!
— Onde está o conhaque? — perguntou ele e Gail pegou a chave
do bolso.
— Sinto muito. . . Achei que era para o bem dela. Quer que eu
sirva um pouco?
Ele estava parado ao lado de Morag, tomando-lhe o pulso. — Sim,
mas não muito. Depois, chame o médico. Gail lhe passou o copo,
com o rosto pálido.
— É sério? — Corroída pelo remorso, ela pensou que não teria
sido agressiva com Morag se não estivesse de tão mau humor. -—
Será que teria feito alguma diferença se eu lhe tivesse dado o
conhaque imediatamente?
— Não se atormente, Gail. — Ele ajudava a garota, que estava
com os lábios sem cor, a tomar o conhaque; ela mal conseguia
engolir e de repente começou a tossir. — Gail, eu lhe pedi que
chamasse o médico.
— Ah, sim!
Gail correu para o telefone com o coração apertado. Será que
Morag estava muito doente?
Mais tarde, depois de o médico ter ido embora e Morag estar na
cama, Andrew perguntou:
— O que aconteceu? Por que você guardou o conhaque?
— Eu achei que ela... Que ela havia. . .
— Que ela já havia bebido muito, não é? Bem, acho que isso é
compreensível.
— Sinto-me péssima. Não há desculpa, realmente. Eu deveria ter-
me certificado. Você acha que é tão grave quanto o médico
disse?
— Acho que ele não exagerou. Morag tem um problema cardíaco
e, se os comprimidos não fizerem efeito, ela terá que ser
operada.
— Sinto-me péssima e culpada. Se ao menos eu a tivesse tratado
bem quando chegou! Fui ríspida com ela, até a empurrei de volta
na cadeira. Oh, Andrew, você acha que isso a prejudicou?
— Gail, minha querida, você não deve se culpar.
Ele levantou-lhe o queixo e a beijou nos lábios. Sorriu e Gail en-
rubesceu. Mas logo voltou a pensar em Morag.
— Temos que ser muito cuidadosos com ela, Andrew.
— Sim, Gail tem razão.
Mas, apesar de suas boas intenções, Gail teve muita dificuldade
em ser gentil com Morag. Ela continuava insensível ao carinho e a
atenção. A garota realmente parecia imune a qualquer tipo de
emoção.
Depois de quinze dias na cama, o médico permitiu que. Morag se
levantasse. Andrew e Gail sentiam-se aliviados, pois isso indicava
que o comprimido estava dando certo. Mas o médico avisara que
ela precisava tomar cuidado Isso, para a alegria de todos, punha
um fim as suas escapadas. Mas era motivo de desespero para
Morag, que dizia que não valia a pena viver.
O jovem que a havia trazido para casa não tinha telefonado.
Quando Andrew perguntou sobre ele, Morag disse que não era
ninguém importante, apenas um dos seus namorados.
— Com tantos amigos e ninguém procurou-saber como ela está —
murmurou Andrew, com tristeza. — Espero que agora ela
reconheça o valor deles.
Robin perguntou sobre Morag num dia em que viera para pescar.
— Você gostaria de entrar e conversar um pouco com ela? Gail
achou que Morag apreciaria um jovem visitante.
— Não sei. Com todo o respeito, Gail, ela não faz o meu gênero.
— E isso importa? Morag está confinada dentro de casa há dias e
sentindo-se entediada. Entre e converse um pouco com ela, Robin.
— Está bem. Farei o que você me pede.
Gail os apresentou sem sequer imaginar as repercussões que esse
fato teria. Quando Robin foi embora, Morag se dirigiu a Gail do
modo insolente de costume:
— Qual é a idéia, Sra MacNeill? Não pense que pode me usar
para conseguir os seus objetivos. Robin é seu namorado, não meu.
Não gostaria de ver meu pai enganado. Chocada Gail a encarou.
— Morag, mas como você pode?! Eu trouxe Robin aqui com a
melhor das intenções! Achei que a companhia dele seria boa para
você. Não estou interessada nele, nem ele em mim.
— Não consegue me enganar, Sra MacNeill. Nem conseguirá en-
ganar meu pai! Minha mãe era como você, uma infiel! É só ver o
modo como Robin a olha. . .
— O modo?! Ela enrubesceu lembrando-se da sua sensação de
mal-estar na presença de Robin. — Você está imaginando coisas,
Morag!
— Está assustada, Sra MacNeill? Ficará ainda mais assustada
quando meu pai começar a desconfiar. Se você o conhecesse bem,
nunca permitiria que o seu namorado entrasse aqui em casa. Se
eu fosse você, só me encontraria com ele lá fora.
— Você não mudou nada, não é, Morag?
— Mudar? E por que eu deveria mudar?
— Pensei que a sua doença a faria ver como é prejudicial o seu
tipo de vida.
— Que tipo de vida?
— Você costumava se vangloriar de que podia ficar acordada a
noite toda, como muitas vezes fez. Você fumava e bebia muito.
Essas coisas acabaram por prejudicar a sua saúde.
— Já estou bem melhor.
— Você não está melhor, Morag, e sabe disso.
— Estou, sim! E, mais, logo vou embora de novo! Liguei para um
amigo ontem e combinamos de sair para umas férias.
— Ah, não vai, não, Morag! Vou avisar seu pai. Seria perigoso
contrariar as ordens do médico. Você precisa de repouso.
— Se você contar a meu pai, vou dizer a ele sobre você e Robin.
Direi que você o trouxe aqui!
— Explicarei a ele por que fiz isso e ele acreditará em mim —
respondeu Gail com firmeza, mas estava pálida.
— Pois o que você disser não coincidirá com o que eu vou dizer.
Meu pai desconfia de todas as mulheres. Primeiro minha mãe, e
agora eu...
Ela riu e Gail saiu do quarto. Não podia suportar a expressão do
rosto de Morag.
Mas o deveria fazer? Tinha medo da fúria de Andrew e receava
estragar o relacionamento, que estava tão bom...
Nunca se havia sentido tão indecisa. Demorou muito ate que
chegasse a uma conclusão.
Ela sabia que teria que carregar o peso do remorso pelo resto da
vida, se alguma coisa acontecesse com Morag. E poderia evitar
isso.

CAPÍTULO VIII

Quando soube dos planos de Morag, Andrew caminhou com passos


firmes para a sala de estar e Gail foi para o quarto das crianças.
Estava ansiosa, aguardando os resultados da conversa de Andrew
com Morag e esperando que as mentiras dela não o
convencessem.
Ele foi procurá-la no quarto das crianças, com o maxilar apertado
e os olhos faiscando.
— É verdade que você trouxe Robin aqui dentro hoje?
— Sim, Andrew! Achei que ele poderia ser uma boa companhia
para Morag.
— Você espera que eu acredite nisso?
— Do que você está me acusando, Andrew?
— Falei para você não conversar com ele de novo! Ela o olhou
fixamente.
— Andrew. . . Eu fiz uma pergunta e você não me respondeu. Acho
que já nos entendemos com relação a esse assunto. Além do mais,
você ainda permite que ele venha pescar no lago.
— Quero saber a razão real da visita dele.
— Já disse, achei que seria boa companhia para Morag.
— Da outra vez você deu a desculpa das crianças.
— Não tenho necessidade de arranjar desculpas. Só arranja des-
culpas quem tem alguma coisa para esconder.
__ E você não está escondendo alguma coisa?
— Nada! Como se atreve a falar assim comigo? Sempre pensei
que você conhecesse suficientemente o caráter de Morag para
saber que ela é capaz de insinuações maldosas.
— Que razões tem para dizer que Morag é maldosa com você?
Tome cuidado, Gail. Já a preveni uma vez, lembra-se? Sobre esse
homem... Ele não deve voltar aqui! Fui claro?
Gail o encarou com firmeza.
— Se você diz que ele não pode vir, ele não virá. — Ela fez uma
pausa e voltou a insistir. — Eu perguntei do que você está me
acusando.
— No momento, de nada, mas quero me certificar de que nunca
passarei por tolo novamente. Você certamente está informada
sobre as minhas experiências anteriores; portanto não há mais
necessidade de silêncio da minha parte. Desta vez, minha mulher
irá se comportar com o decoro que a minha posição exige. Não
terei homens visitando a minha casa na minha ausência. Guarde
isso na sua cabeça, ou a sua vida se tornará muito desagradável.
— Com essa última advertência, ele se retirou.
Da outra vez, ele tinha suavizado, terminando por beijá-la. Ela só
fez sentar-se e chorar. Por que tinha salvado Morag a esse
preço? Mas Gail tinha agido de acordo com sua consciência. De
repente, ela se lembrou de que tinha que buscar as crianças e
correu para baixo.
Andrew comentou, quando a viu:
— Já ia mandar chamá-la. Você vai se atrasar para pegar as
crianças.
Sem responder, Gail entrou no carro. Pela primeira vez nem notou
a beleza ao seu redor; os vales, as montanhas e as pastagens. E
ela que tinha sido tão otimista com relação ao futuro. . . Ela não
fora feita para o amor. Agora aceitava essa realidade.
Morag havia afirmado com segurança que Andrew ainda sentia
falta da falecida esposa, mas Gail não conseguia acreditar nisso.
Não podia ter havido felicidade naquele casamento. O que ela
precisava combater era a suspeita, a desconfiança e a amargura
que tomavam conta de Andrew... No momento ele parecia usar
uma capa para evitar o sofrimento.
— Mamãe... — Shena, foi falando ao entrar no carro. — Quanto
tempo falta para que Simon e Amanda voltem?
— Somente três dias, meu bem.
— Que bom! Quanto tempo eles vão ficar?
— Acho que uma semana.
— Que legal! Puxa, queria que eles chegassem amanhã! Robbie,
quando entrou no carro, olhou para Gail e perguntou:
— Você chorou, mamãe?
— Chorar? Hum. . . Sim, Robbíe! Senti um pouco de dor.
— Uma dor? Está melhor agora?
— Sim, querido, estou melhor.
Assim que entraram em casa, Robbie dirigiu-se ao pai:
— Mamãe chorou porque sentiu uma dor. — Diante do olhar de
indiferença de Andrew, ele perguntou: — Você não liga para a dor
de mamãe?
— Já falei que estou melhor, Robbie — disse Gail.
— Mas deve ter doído muito, senão você não choraria. Papai...
— Sua mãe disse que a dor já passou, Robbie, portanto encerre o
assunto.
A criança olhou para o pai, espantada com a dureza de suas pala-
vras. Ele saiu em seguida e, pela primeira vez em semanas, eles
tomaram chá sem a presença de Andrew.
Morag estava furiosa com Gail. O pai tinha-lhe tirado todo o
dinheiro e dadas ordens a Sra Birchan para que a vigiasse. À
noite, uma das criadas deveria dormir com ela no quarto.
— Se você abusar, terá outro ataque e será levada para o
hospital. — Ele tinha advertido Morag.
— É tudo culpa sua! — Ela explodiu com Gail. — Odeio você!
— Fiz isso para o seu bem — respondia Gail com calma, pois temia
que a garota ficasse muita agitada. — Você precisa de repouso.
— Mas eu me vinguei de você, Sra MacNeill.
— Sim, Morag, você se vingou.
— Eu avisei que contaria a meu pai a verdade sobre você e Robin.
— Foram mentiras, Morag, puras mentiras!
— Não se faça de inocente, Sra MacNeill. Não foram mentiras!
Diga, meu pai ficou furioso com você? Ficou?
Gail tinha vontade de perder a cabeça com Morag, mas precisava
se controlar. Suspirou e respondeu:
— As suas mentiras causaram um desentendimento desnecessário
entre mim e seu pai. Você não tem consciência? Nunca sente
vergonha de si mesma, Morag?
— Nunca! — Ela riu. — E consciência deve ser uma coisa muito
desconfortável. Fico muito mais feliz sem ter uma. Então meu pai
ficou furioso com você? Ainda bem. Acho que estava ficando
mole demais para a idade dele.
— Ele estava se tornando um pouco mais feliz. E agora você
estragou tudo.
— Mas como você tem boa opinião de si mesma! Deixe-me dizer
uma coisa, Sra MacNeill: a senhora nunca passara da governanta
que é agora. Ele nunca se apaixonará por você, Você está
perdendo o seu tempo!
— Vou pegar o seu comprimido, Morag. — E Gail se levantou,
dando a discussão por encerrada.
Quando voltou, Morag estava deitada no sofá, com os lábios azu-
lados e a respiração ofegante.
— Morag! Você está se sentindo mal? Vamos, tome os seus com-
primidos. — Morag os engoliu e logo após começou a sentir-se
melhor. — Você está sentindo dor?
— Não seja idiota! É claro que sinto dor!
— Vou chamar a Sra Birchan e nós a colocaremos na cama.
— Não vou para a cama! Já estou cansada de ficar deitada!
— O que está acontecendo aqui? —Andrew estava parado ao lado
da porta. — Ela teve outro ataque? — Gail acenou que sim. — Foi
grave?
— Claro que não! — exclamou Morag. — Ela quer se livrar de mim,
mas eu não vou para a cama!
— Gail, vá chamar a Sra Birchan.
Sob protestos, a garota foi colocada na cama e Andrew chamou o
médico, que, assim que chegou, avisou:
— Mantenham-na na cama. Vou receitar comprimidos por mais
uns quinze dias e, então, veremos o que fazer.
Ele conversava com Andrew no hall; Gail ouviu a conversa quando
desceu, depois de deixar Morag com a criada. Andrew perguntou
angustiado;
— Não seria melhor se ela tosse operada de uma vez? O médico o
olhou, gravemente.
— Somos velhos amigos, Andrew. Vou ser franco e sincero com
você. A vida que Morag levava abalou a sua constituição física.
Uma operação agora seria muito arriscada.
— Sei...
O rosto de Andrew estava transtornado. Ele olhou para Gail sem
vê-la e acompanhou o médico até a porta.
Andrew e Gail continuaram como dois estranhos. Durante a tem-
porada de caça às aves, quando tinha convidados, Andrew
demonstrava uma cordialidade superficial com Gail. A temporada
afinal não foi adiada, pois Morag tinha uma enfermeira durante o
dia e, durante a noite, uma das criadas dormia com ela.
Como o tempo estava muito bom, os homens passavam o dia lodo
fora; Andrew, Roger e outros convidados. Durante o jantar
conversavam sobre as caçadas e Gail os observava se
perguntando como podiam sentir tanto prazer com aquela chacina
de aves inocentes.
— Gail detesta este esporte — comentou Andrew durante um dos
jantares, observando-lhe a falta de apetite. — Talvez fosse
melhor se mudássemos de assunto.
Ela lançou-lhe um olhar de agradecimento, mas ele já íinha virado
o rosto, frio e distante.
— Vamos para a sala de estar? O café logo estará pronto — con-
vidou Gail, após o jantar.
Heather, que havia notado a frieza do cunhado, murmurou para a
irmã:
— Ele não mudou nada! — As duas sentaram-se no sofá e os ho-
mens ficaram um pouco mais distantes, envolvidos na discussão
sobre a caça. — Pensei que ele tivesse mudado quando estive aqui
da outra vez, pois a tratava de maneira tão gentil Mas agora. . .
Andrew não gosta de mulheres, Gail. Como você consegue
conviver com ele? Se fosse meu marido, eu explodiria.
— Você se arrependeria. . .
— Por quê? Já aconteceu com você?
Notando o interesse da irmã, Gail fez um breve relato da sua re-
lação de amizade com Robin, e acrescentou:
— Não posso culpar Andrew. Ele já sofreu, Heather, já teve o or-
gulho ferido. E agora está com medo de que a história se repita
comigo. Fiquei zangada com a desconfiança, mas agora acho que
deveria ter sido mais compreensiva. Como resultado, não estamos
bem no momento.
— E você ainda está. . . Apaixonada por ele?
— Sim.
— Você é maluca, Gail! Poderia ter esperado por alguém que a
amasse. Isso aconteceria, mais cedo ou mais tarde.
— Não. Eu acredito no destino, Heather. Robbie e Shena
precisam de mim e eu deles. Se pudesse voltar atrás no tempo,
ainda aceitaria casar com Andrew.
De repente ela percebeu que Andrew a encarava de longe e enru-
besceu. O rosto dele estava endurecido. Ele devia ter percebido
que era o assunto da conversa.
Mais tarde, Andrew parou-a no hall e exclamou;
— Se você pretende falar de mim, por favor, faça isso na minha
ausência!
Gail sentiu-se muito magoada. Com os olhos rasos d'água disse:
— Se você soubesse o que eu estava falando, Andrew, talvez não
fosse tão indelicado comigo. — E se afastou, sem que ele pudesse
responder.
As quatro crianças mal podiam conter sua impaciência, esperando
que Gail e Heather preparassem a comida e os refrescos para o
piquenique.
— Vai demorar muito, mamãe? — perguntou Simon. — Não pre-
cisamos de tanta comida.
Heather, que cortava os sanduíches na mesa da cozinha, foi
firme com ele.
— Simon, vá para fora! Ou você não irá!
— Heather... — interveio Gail. — É natural que eles estejam
impacientes!
— Você é mole demais com eles, Gail. — A um sinal de Heather,
as crianças saíram da cozinha. — Espere para ver como eles
acabarão dominando você. E preciso ter energia com as crianças.
— Bem, pensamos de modos diferentes. Heather, você continua
sozinha? Vou dar uma olhada em Morag.
Morag estava sentada na cama, com uma expressão de tédio no
rosto. A enfermeira estava sentada numa cadeira, lendo um
jornal. Gail sentou-se na beirada da cama.
-— Como você se sente hoje, Morag? Está parecendo bem
melhor!
—- Estou bem melhor e quero me levantar!
— O médico recomendou que você repousasse por quinze dias. É
para o seu próprio bem. Você precisa de repouso absoluto.
— Eu sei o que é para o meu bem! Onde está meu pai?
— Logo ele irá subir.
— Ele não vai deixar que eu me levante! Oh, que droga!
Gail deu um suspiro fundo e tentou acalmá-la.
— Por que você não lê, Morag? Quer que eu escolha alguns livros
e traga para você?
— O tipo de livros que você escolheria não seria interessante
para mim. De qualquer forma, não quero ler. Quero um cigarro.
— Não, Morag, nada feito. O médico disse que você não deve
fumar em hipótese alguma.
— Você está recusando porque se preocupa comigo ou porque tem
medo do que meu pai iria dizer? — Como Gail não teve paciência
para responder, Morag mudou de assunto: — Sua irmã disse
ontem à noite que vocês planejavam levar as crianças a um
piquenique. Mas que jeito mais bobo de passar o tempo! Eu
morreria de tédio com quatro crianças à minha volta!
Gail se levantou sem responder e saiu do quarto. Sentiu-se com
remorso tão logo fechou a porta atrás de si, desabafando com a
irmã quando chegou à cozinha.
— Sinto-me tão má e egoísta. Gostaria de ter mais paciência com
ela.
— Paciência, com aquela lá? -— Heather despejava os jarros de
limonada nas garrafas térmicas. — Acho você uma santa com ela!
Estive com Morag duas vezes e não consegui agüentar que ela
dissesse uma dúzia de palavras. Ela não merece a mínima
consideração. As histórias sobre ela não eram exageradas.
— Mas o que vai ser dela?
— E por que você se preocupa, Gail?
— Porque é uma coisa terrível, Heather, você ver uma menina
como ela arruinando a sua vida e não poder fazer nada a respeito.
Heather suspirou e disse:
— Bem, esqueça tudo agora e vamos nos divertir. Vamos levar a
cesta para o carro e dizer à molecada que estamos prontas.
Heather dirigiu o carro de Roger, pegando a estrada para Killie-
crankie e depois seguindo a praia do lago Tummel, rodeado pelas
colinas escuras.
— Podemos parar? — perguntou Amanda quando chegou ao lado
oeste do lago. — Queremos brincar no bosque.
— Parar? Já? — perguntou Heather. — Você não está gostando
do passeio?
— Estou, sim, mas nós queremos brincar um pouco.
— O que você acha, Gail? Paramos um pouco?
-— Aqui é um lugar bonito. Talvez seja melhor deixar que eles
desçam e descarreguem um pouco de energia.
As duas ficaram tomando café na margem do rio, enquanto as
crianças brincavam.
— Esse lugar é muito bonito, Gail.
— Sim, Heather, realmente é.
Gail ficou quieta, observando os arredores. As colinas e as pas-
tagens verdejantes, as águas claras e tranqüilas do lago Tummel,
uma perfeição que só a natureza poderia conseguir.
— Isto aqui deve ser fantástico no inverno, Gail. Espero que te-
nhamos neve no Natal.
—- Acho que teremos, Heather.
Gail ficou sonhando com as colinas e as pastagens cobertas pelo
manto branco da neve, quando a irmã a despertou.
— Gail? Gail, você quer guiar?
— Oh, desculpe, Heather, eu estava tão longe daqui! Não,
obrigada, é bom ter alguém que dirija para a gente de vez em
quando.
— Andrew nunca a leva para passear?
— Ele não tem muito tempo livre, Heather.
— Mas ele poderia arranjar tempo, se quisesse. Ele parece ter
um grande número de empregados na propriedade.
Isso era verdade. Além dos numerosos empregados, Andrew
tinha o administrador, Sinclair.
— Acontece que Andrew gosta de trabalhar, Heather.
E Gail mudou de assunto, perguntando à irmã se ela gostaria de ir
era direção ao sul, para o lago Tay, ou em outra direção.
— Tanto faz, Gail. Podemos continuar nesta estrada. Parece
bonita.
— Heather chamou as crianças e todos entraram no carro.
— Sim, é uma estrada muito bonita. — Gail já tinha passeado por
ali, sozinha. — Poderemos lanchar em algum lugar ao lado do lago
Rannoch.
Depois de viajar por algum tempo, entraram na parte mais vasta
do vale, passando pela aldeia de Kinloch Rannoch. Depois da
aldeia, entraram numa zona mais agreste e rochosa. Rodando um
dez quilometros ao lado do lago, encontraram novamente uma
área de colinas verdes e aveludadas, que chegavam às margens do
lago.
— Podemos ir para o outro lado do lago, mamãe? Podemos ir â
Floresta Negra? —perguntou Robbie.
— Floresta Negra? — comentou Amanda. — Acho que... Tenho
medo.
— E é para ter medo mesmo — disse Robbie. — As árvores são
escuras, é cheio de sombras lá dentro e tem fantasmas!
— Fantasmas? — Amanda estremeceu. — Então eu não vou!
— Não existem fantasmas, não, Amanda. Robbie estava só provo-
cando você — esclareceu Gail.
As crianças pareceram mais aliviadas e Heather anunciou:
— Bem, então faremos o nosso piquenique aqui e depois iremos
para o outro lado.
A luz do sol não penetrava na Floresta Negra. As árvores eram
muito alias e grossas. Mas, apesar disso, as crianças entraram e
Heather e Gail brincaram de esconde-esconde com eles. Mais
tarde voltaram para o carro e partiram em direção de casa.
Assim que chegaram, Robbie disse ao pai;
— Papai, nós nos divertimos muito! Você deveria ter vindo com a
gente!
Andrew sorriu para Gail, mas foi um sorriso forçado, apenas para
salvar as aparências.
— Nós fomos à Floresta Negra — disse Simon e puxou um lenço
do bolso; junto com ele saíram um pedaço de corda, dois pregos,
duas balas e algumas fotografias amassadas.
Heather exclamou:
— Simon! Mas o que... Ah, as coisas que esse menino põe no bolso!
Todos riram e Andrew se abaixou para pegar as fotografias.
— Onde você conseguiu essas fotos, Simon? — Heather estava ao
lado de Andrew, observando as fotos.
— As fotos, mamãe? Ah! Você as estava jogando fora um dia,
dizendo que não tinham saído boas. São as fotos de casa e as de
tia Gail e os namorados dela. Você não se lembra, mamãe? — Ele
assoou o nariz e colocou o lenço de volta no bolso. — Eu as queria
para mim, por isso tirei do cesto de lixo e guardei.
Andrew devolveu as fotos a Heather e lançou um olhar para Gail.
Um olhar que a fez corar.
Na manhã seguinte, quando a viu sozinha, ele perguntou:
— Quem era o homem com quem você estava tomando sol?
— Era. . . Meu noivo. Andrew franziu a testa.
— Você já foi noiva? Nunca mencionou isso antes!
— Creio que nunca tivemos muita chance de conversar — disse
ela, sorrindo.
— Você rompeu o noivado?
Gail hesitou, mas sua honestidade a fez responder:
— Não, foi Michael quem rompeu o noivado.
— Foi ele? E por quê?
— Prefiro guardar o motivo para mim mesma.
— Quanto tempo você ficou noiva?
— Quase um ano.
— O acidente de carro. . . Foi depois daquela foto?
— Sim. Alguns meses depois.
A outra fotografia. . . Quem era o homem que estava com você?
— A voz de Andrew era fria e autoritária, como se fosse um juiz.
Gail sentiu o sangue lhe subir à cabeça e respondeu:
O que eu fiz antes de conhecê-lo só diz respeito a mim! Não fiz
perguntas sobre o seu passado, e você não tem o direito de per-
guntar sobre o meu!

CAPITULO IX
As palavras de Gail nada fizeram para melhorar a situação entre
os dois e foi com uma sensação de temor que ela observou o
carro se afastando, levando Heather e sua família e deixando-a
só com Andrew. A esperança que acalentara de que Andrew
pudesse se apaixonar por ela tinha ido por terra. Agora, era
forçada a aceitar o fato de que a felicidade que recebia de
Robbíe e Shena era tudo com que poderia contar. Na realidade,
era tudo o que ela desejara, se não tivesse se apaixonado
totalmente por seu marido.
Gail era grata à oportunidade de amar e ser amada por Robbíe e
Shena. Com o passar das semanas descobriu que, com resignação,
com a aceitação do seu destino, ela estava adquirindo paz de
espírito e percebendo a beleza à sua volta.
O outono estava chegando. Apesar de Gail adorar essa estação
do ano, era a época de caça aos veados adultos.
Entretanto, aos poucos, ela começava a aceitar essa prática.
Sinclair havia conversado seriamente com ela sobre os perigos da
superpopulação de veados nas Terras Altas. Os animais velhos e
doentes tinham que ser mortos para o bem do rebanho. Ele tinha
contado praticamente o mesmo que Andrew, apenas de uma
maneira mais gentil e mais paciente.
Essa temporada de caça acontecia nas outras propriedades de
Andrew, ao norte, mas por algum motivo ele não foi para lá. Gail
não lhe perguntou a razão, pois nada de pessoal entrava na
conversa dos dois.
Morag acabou fornecendo a resposta:
— Ele não vai para lá porque pensa que posso fugir! Eu o odeio! E
já disse isso a ele! Ele sempre foi para o norte em setembro.
Nunca poderia imaginar que ele deixasse de ir, só para ficar me
prendendo em casa!
Morag estava fora da cama e parecia bem melhor. Gail sabia que
ela queria sair, mas não poderia vigiá-la o tempo todo. Precisava
sair para levar e buscar as crianças na escola.
Andrew não dava mais mesada à filha. Só lhe fornecia um pouco
de dinheiro de vez em quando, com o qual ela comprava cigarros.
Fumava quando o pai não estava à vista e dizia:
— Vou cair fora daqui! Logo que conseguir juntar um pouco de
dinheiro! Ele não pode me vigiar o tempo todo!
— Você sabe que o que ele está fazendo é para o seu próprio
bem, Morag. Você ainda não está curada e...
— Estou muito bem! Mas ficarei doente se tiver que ficar presa
aqui! Vou enlouquecer!
Gail não discutiu mais e a rotina da casa continuou; Gail ocupada
com as crianças, Andrew com o trabalho dele, e Morag como uma
estranha na casa, sem falar com as crianças e nem sequer
aparecendo à mesa na hora das refeições.
Robin nunca mais aparecera para pescar, desde a última
discussão de Andrew com Gail, Ela sabia que ele tinha proibido
Robin de pescar no lago. Nunca mais o vira, mas sabia que a
qualquer hora o encontro se daria, como de fato aconteceu num
dia em que ela saía de uma loja na aldeia.
Ele a cumprimentou e pediu uma carona. Gail não poderia recusar
sem dar uma justificativa e acabou concordando. Mas sabia que a
carona nada mais era do que uma desculpa para Robin conseguir
uma explicação, que pediu assim que entrou no carro:
— Gail, o que aconteceu da última vez que fui lá? Seu marido foi
seco comigo. Disse para eu não pescar no lago e nunca mais
entrar na casa. Que eu saiba, não fiz nada de errado! Não sou
bobo, Gail. Percebi que seu marido guarda algum ressentimento
contra mim. O que foi que eu fiz?
Gail deu a partida no carro e recusou quando ele lhe ofereceu um
cigarro:
— Você não perguntou a ele, Robin?
— Não. Claro que não. Seu marido não estava com disposição para
responder a nenhuma pergunta.Mas você deve saber qual é o pro-
blema.
Ela pensou um pouco e decidiu que a franqueza era a melhor polí-
tica. Contou o que Morag havia feito e nunca poderia ter
imaginado a resposta que recebeu:
— Bem, Gail, Morag tinha razão. Gostei de você desde o primeiro
momento que a vi.
— Robin! Por favor. . ,
— Você foi franca comigo, portanto serei igualmente franco com
você. Todos na aldeia sabem que Andrew MacNeill decidiu que
uma mãe para as crianças era preferível a uma governanta. E isso
seria um mero arranjo de negócios. É verdade, Gail? Na
realidade, nem precisaria perguntar, pois Andrew MacNeill nunca
se apaixonará. Ele é duro demais. Gail, esse tipo de vida não é
para você.
Gail parou o carro numa pequena estrada vazia e disse:
— Robin, você não me conhece o suficiente para ter esse tipo de
conversa. O tempo que passamos em companhia um do outro não
foi mais do que algumas horas.
— Mas o que é o tempo? Por que você acha que eu queria ir para o
lago? Era para ve-la, claro. Mas você sempre me evitava. .
Gail deu uma olhada em volta com medo de que alguém a visse e
contasse a seu marido.
— Robin, Andrew me proibiu de falar com você. E agora, depois
do que você acabou de me dizer, resolvi acatar a vontade dele.
— Você não vai mais falar comigo? Mas espera-se. . . Que a
esposa do lorde seja gentil com todos. A sua posição exige isso.
O lorde deve ser amigo de todos na aldeia e ouvi-los sobre os
seus problemas. Você já está aqui o tempo suficiente para saber
disso.
— Você tornou impossível a nossa amizade. Sou uma mulher ca-
sada, Robin, e muito satisfeita com a minha vida. Não importa o
que os mexericos digam.
Houve um pesado silêncio entre os dois.
— Gail. . . Você está zangada comigo?
— Na verdade, não gostei do modo como você falou comigo.
Nunca o encorajei e nunca o faria. Como já disse, estou muito
satisfeita com a minha vida.
Ele a encarou, com dúvida.
— Não acredito em você. Quer dizer que vai passar por mim e
fazer de conta que não me conhece? — Gail concordou e ele
disse: — Você quer que eu desça aqui?
— Por favor, Robin. É melhor assim, alguém poderá nos ver.
— Ninguém se preocuparia com isso. É comum a esposa do lorde
oferecer carona às pessoas da aldeia.
— Talvez. Mas prefiro que seja assim.
Ela deu a partida, Robin apagou o cigarro no cinzeiro do carro,
desceu e se afastou sem olhar para trás.
Gail continuou pela estrada deserta, com os nervos tensos e o
coração batendo forte. Tinha havido algo de sórdido na conversa
que acabara de ter com Robin, pois ele parecera disposto a
flertar tom ela. Essa atitude dele demonstrava falta de
interesse pela esposa do lorde; na realidade, falta de respeito.
Uma semana mais tarde, Andrew usou o carro. Ele não fumava e
usava o cinzeiro apenas para guardar algumas coisinhas, como
cartões de estacionamento, por exemplo. E foi por isso que ele
viu o toco de cigarro que Robin tinha deixado.
Assim que voltou para casa, abordou Gail:
— Você fuma?
— Claro que não! Você sabe disso!
— Morag tem usado o carro pequeno?
— Não, só eu uso esse carro. Ou você, de vez em quando — ela
respondeu, confusa com as perguntas.
Ele a encarou com um olhar acusador.
— Então. . . Quem deixou aquele toco de cigarro no cinzeiro do
carro?
Gail empalideceu e logo se lembrou. Tentou consertar.
— Bem, às vezes eu fumo. Talvez o tenha deixado lá...
— Não minta! Você pôs aquele homem no meu carro!
Pálida e tremendo, ela admitiu ter dado uma carona a Robin. Por
causa da expressão sombria de Andrew, rapidamente completou
que dissera a Robin que nunca mais o veria. Mas suas explicações
não deram o resultado esperado.
— Quer dizer que você discutiu a minha pessoa com ele?
— Oh, não, Andrew. . .
-— Deve ter discutido! Deve ter havido alguma conversa nesse
sentido, caso contrário, como poderia explicar que nunca mais
voltaria a falar com ele?
— Bem... Tive que explicar por que não falaria mais com ele. Não
poderia simplesmente ignorá-lo sem maiores explicações, como
você queria. Mas não falei muito sobre o assunto.
Ele estava com os lábios apertados e a olhava com recriminação.
— Você! Discutir a minha pessoa com esse homem! Humilhar-me!
— Andrew! Eu não fiz isso! — Ela meneou a cabeça, com os olhos
rasos d'água. — Por que você pensa que eu quis humilhá-lo? Ah,
se pelo menos pudesse faze-lo entender que nunca quis magoá-lo,
você não iria suspeitar de mim, como faz. — Ela o olhou bem
dentro dos olhos. — Você me pediu que não voltasse a falar com
Robin e estou disposta a seguir a sua vontade. Acho que agora
podemos encerrar este assunto de uma vez por todas, não?
Gail estava perto dele, com uma expressão suplicante e humilde,
os braços caídos ao lado do corpo. Alguma coisa nisso tudo o
tocou. A fúria desapareceu dos olhos de Andrew. Ele se acalmou
um pouco e disse:
— Está bem, Gail, não falaremos mais sobre o assunto. Mas não
pediu desculpas pelas acusações.
A vida continuou como sempre, numa atmosfera de frieza e indi-
ferença. Andrew se tornava mais humano apenas na presença de
Robbíe e Shena.
Outubro chegou, e as crianças tinham uma semana de férias na
escola. Gail pediu permissão a Andrew para visitar Beth durante
essa semana.
— Seria uma boa mudança para Robbíe e Shena.
— Pensei que você quisesse descansar. Não o fará se levar às
crianças.
— Eu nunca iria sem elas, Andrew.
Ele a observou em silêncio, depois disse:
— Está bem. Você quer ir de carro?
— Se você concordar. Senão poderemos ir de trem e Beth ou
Harvey nos apanhará na estação.
— Acho melhor irem de irem. A viagem é longa e as crianças po-
dem dar trabalho.
Andrew os levou à estação e esperou que embarcassem,
comprando livros e chocolates para todos. Quando o trem partiu
as crianças ficaram na janela acenando para o pai. Depois se
sentaram e abriram os livros; Gail continuou na janela enquanto
via Andrew caminhar para o carro. De repente, ele se voltou e
Gail lhe acenou. Ele acenou de volta e Gail achou que Andrew
tinha sorrido para ela, mas, à distância, ela não podia ter certeza.
Beth foi buscá-los na estação e, mais tarde, Gail entrava
novamente na casa onde tinha ido morar depois da morte da mãe.
Thomas e Marilyn também estavam de férias na escola e logo
levaram Robbíe e Shena para brincar no jardim.
— Está com jeito de chuva, crianças — disse Beth. — Caso chova,
voltem imediatamente para dentro!
— Ah, que bom! É como nos velhos tempos! — exclamou Gail. Esse
comentário fez com que a irmã a olhasse de modo ansioso.
— Não está feliz, Gail?
— Feliz? Claro que estou feliz! Por que pergunta?
— Ora, não finja comigo, mana! Heather não acha que as coisas
entre você e Andrew andem bem.
— Ela andou comando coisas, não é?
— É natural, não acha? Parece que alguém deveria fazer alguma
coisa com relação a essa tal de Morag. Ela não pode ser internada
em algum lugar?
— Para quê?
— Para manter essa bruxinha fora do seu caminho. Por que ela
quer destruir o seu casamento?
— Não creio que ela queira isso. Acho apenas que fica muito
aborrecida por ficar presa e quer quebrar a monotonia.
— Ela não se sentiria entediada se fosse para a escola. Entendi
que seria mandada para a escola em setembro.
— Andrew tinha preparado tudo para mandá-la para o internato.
Mas ela ficou doente e o médico desaconselhou essa medida. Ele
disse que Morag tem que ficar em casa.
__ Se ela permanecer o tempo todo lá, ficará sempre entre você
e seu marido, com as suas mentiras e maldades.
Gail serviu-se de açúcar e mexeu o chá.
__ Já perdi a esperança de que Andrew e eu nos entendamos. É
assim que ele quer; nada mais do que um acordo de negócios. Ele
nunca me amará, Beth. Foi tolice minha alimentar essa idéia.
Beth franziu a lesta.
— Você não estava tão pessimista da última vez que a vi. Aliás,
tinha certeza de que ele se apaixonaria por você.
A chuva começou a cair e as quatro crianças correram para
dentro de casa.
— Podem ir para a sala de brincar — disse Beth. — Nós ainda não
tomamos o nosso chá.
— Acabei de dizer que fui uma tola — disse Gail, assim que as
crianças saíram. — Na realidade, Andrew nunca deu motivos para
que eu alimentasse essa esperança. — Ela sorriu com tristeza. —
Ele me beijou uma vez, mas agora, quando penso nisso, acho que
foi um ato de conforto espiritual.
— Ele a havia beijado duas vezes, mas Gail só mencionou a pri-
meira pois achava que era a mais importante. Gail contou em
detalhes para sua irmã o que havia acontecido quando sua
cicatriz tinha sido descoberta.
Beth ouviu com atenção e quando a irmã terminou ela disse, pen-
sativa:
— Mas por que ele iria querer confortá-la? Você nunca se
perguntou isso? — Gail abanou a cabeça e Beth continuou: —
Vocês têm um grande desentendimento e, de repente, ele se
torna gentil e beija você. Será que isso fazia parte do acordo de
negócios que ele estabeleceu com você?
— Não sei onde você está querendo chegar, Beth...
— Se não fosse por aquela pequena bruxa envenenando a vida
dele e relembrando tudo o que ele passou com a primeira mulher,
você e Andrew já estariam juntos agora. Você não vai conseguir
nada com aquela menina por perto. Não pode persuadir Andrew a
mandá-la para a escola?
— O médico não permitirá, Beth. Morag tem que ficar em casa.
— Ela não é apenas uma barreira entre você e Andrew. É um em-
pecilho à paz de espírito dele.
Gail ficou em silêncio, pensando sobre o que a irmã dissera. Sem
paz de espírito, Andrew nunca poderia ser feliz. . .
— Talvez Morag se case logo. — Gail suspirou.
— Bem, eu não iria querer essa menina para esposa nem do filho
do meu maior inimigo!
Elas foram interrompidas pelas crianças, que apareceram na
porta.
— Estamos com fome — disse Thomas, olhando para os biscoitos
sobre a bandeja. — Shena e Robbíe também estão!
Gail olhou para o sobrinho, com ternura.
— Está bem, Thomas. Sua mãe e eu vamos preparar alguma coisa
para vocês. Podem ir lavar as mãos e, assim que voltarem, o chá
estará pronto.
— Gail! Tenho hora marcada no cabeleireiro amanhã, tanto para
mim como para Thomas e Marilyn. Você gostaria de dar um
passeio pelas lojas? Depois poderíamos nos encontrar em algum
lugar para almoçar.
— Oh, Beth, eu adoraria dar uma olhada nas lojas!
Beth deixou Gail, Robbie e Shena na ma principal e foi para o ca-
beleireiro. Depois, todos se encontrariam no Hotel Grand, para o
almoço.
Segurando a mão de Gail e andando ao lado dela, Shena
perguntou:
— Posso lhe comprar um presente, mamãe? Robbie, que segurava
a mão da irmã, retrucou:
— Também quero comprar um presente, mamãe. E um também
para papai e Morag.
— Eu ia mesmo sugerir que vocês comprassem alguma coisa para
eles. Depois, se sobrar dinheiro, podem me comprar alguma coisa.
— Ah, não! Quero comprar o seu primeiro, mamãe! Depois, o de
papai e o de Morag. Olhe, mamãe! Bolsas! Quer uma bolsa nova?
— Eu não preciso de uma bolsa nova, Shena querida. Bem, vamos
entrar naquela loja e dar uma olhada?
Cada uma das crianças comprou um pequeno animal de vidro para
o escritório de Andrew. Para Morag compraram um vidro de
perfume. Gail completou com o seu dinheiro sem que eles
notassem. Para Gail, Shena comprou uma bonequinha francesa,
para colocar sobre a penteadeira. Robbíe lhe comprou um quadro
com rosas vermelhas, rodeando as paredes brancas de uma
casinha de campo.
Compraram presentes também para Thomas e Marilyn, e Gail
sugeriu que eles comprassem um presente para a tia Beth.
Depois de terem comprado todos os presentes, Gail pôde ir à sua
loja favorita. Comprou um bonito vestido de lã e um vestido para
a noite, com o comprimento exato de manga para esconder sua
cicatriz.
— Você está linda, mamãe! Vai usá-lo esta noite?
— Esta noite não, Robbie. Vou guardá-lo para quando eu for a
alguma festa.
— Posso carregá-lo para você?
— Não, obrigada, Shena. A caixa é muito grande, acho melhor
levá-la eu mesma. Você já tem outros pacotes para carregar.
Eles ainda tinham alguns minutos sobrando e estavam olhando as
vitrines quando Gail ouviu seu nome ser chamado.
— Michael?! Como você vai?
— Ela sorriu e percebeu o interesse dele em Robbíe e Shena.
— Eu vou bem, Gail. — Fez uma pausa. — Ouvi dizer que você se
casou.
Ela acenou que sim e seu sorriso se alargou. Já não sentia o
menor ressentimento por Michael. De repente, sentiu-se feliz
por não ter casado com ele.
— Michael, este é Robbíe e esta é Shena.
— Você se casou com um homem divorciado?
— A primeira esposa do meu marido morreu há alguns anos.
—Sinto muito, É que. . . As crianças são tão pequenas. Pensei que
a mãe delas ainda estivesse viva. Na realidade, não sabia nada
sobre o seu casamento, a não ser que seu marido tinha três
filhos.
— Sim. Ele tem outra filha, bem mais velha. — Michael perguntou
se ela estava hospedada na casa de Beth e Gail respondeu: —
Sim. As crianças estão de férias na escola, por isso aproveitei a
oportunidade para vir.
Ele a observou com atenção, reparando nas roupas caras que ela e
as crianças usavam.
— Seu marido. . . Ouvi dizer que ele é escocês, é verdade?
Ela sorriu. A curiosidade de Michael a divertia. Gail sentiu um
certo orgulho ao afirmar, com dignidade:
— Ele é o lorde Dunlochrie.
— Puxa! Soa muito importante! Vocês moram numa casa grande?
— Sim, ela é bem grande — declarou Robbíe, sorrindo para
Michael. — Mas tem que ser grande, pois muita gente mora lá. Às
vezes papai tem muitos visitantes em casa, não é, mamãe?
— Muita gente mora com vocês? — Michael se adiantou.
— Sim. Mamãe, papai, eu, Shena e Morag, Também temos três
empregadas, a Sra Birchan e...
— Robbíe! — Gail riu. — O Sr. Banksoat não quer saber isso tudo.
— Mas ele perguntou se muita gente mora conosco'. Devo contar
sobre os empregados homens, também?
— Não, meu querido, não é preciso. — Ela olhou para o relógio.
— Temos que ir andando. Beth está à nossa espera.
— Eu ia convidá-la para almoçar comigo. . .
— Obrigada, Michael, mas não podemos. Como vão os seus filhos?
— Vão bem! Muito bem.
— Ótimo. Dê lembranças a Joan, sim?
— Sim, darei.
— Bem, adeus, tem que nos apressar.
— Quem era ele, mamãe?
Um velho amigo de mamãe, Shena. — A voz dela tremeu.
Será que as crianças se lembrariam desse encontro e contariam
ao pai?
Gail se aborreceu por se preocupar com isso. Acabou dando de
ombros, pois nada poderia fazer a esse respeito. Se as crianças
mencionassem o fato, ela contaria a verdade a Andrew como
sempre fizera.

CAPÍTULO X

Eles voltaram a Casa Dunlochrie no sábado, pois Gail não queria


estar fora no domingo. Era o dia em que se reuniam como uma
família de verdade e todos apreciavam isso.
Andrew foi buscá-los na estação e durante todo o caminho de
volta para casa Robbie e Shena conversavam sem parar.
— Você sentiu saudade de nós, papai?
— Senti muita saudade, Robbie. — As palavras, para surpresa de
Gail, foram ditas de modo gentil.
— Nós também sentimos saudade, papai — disse Shena,
beijando-o no rosto. — Por que você não veio conosco?
— Porque eu tinha trabalho para fazer, Shena.
— Da próxima vez você irá, papai? É mais gostoso assim, todo
junto — disse Robbíe.
Gail olhou para o marido. O rosto dele estava firme, mas Andrew
pressentiu que estava sendo observado e se voltou para Gail. Ela
entendeu então como ele se sentira solitário!
Gail se surpreendeu com essa revelação e de repente sentiu que
poderia haver uma mudança no relacionamento deles.
— Robbíe e eu compramos presentes para você — começou a
dizer Shena. — O de Robbíe é...
— É uma surpresa, Shena!
— Por quê? Quero contar a papai sobre os nossos presentes!
— Shena. . . — interrompeu Gail. — Se Robbíe quer que o pre-
sente dele seja uma surpresa, fale somente sobre o seu.
— Mas nós compramos a mesma coisa, mamãe — disse Robbie.
— Não são iguais, Robbie! O meu é azul e o seu é verde. Que cor
você gosta mais, papai?
-— Gosto das duas cores, Shena —- respondeu Andrew, saindo da
estrada principal e entrando na pequena estrada que levava à
aldeia-
— Não deixe que Shena conte a papai, mamãe! Eu quero que o
meu presente seja uma surpresa!
— Shena, minha querida, logo chegaremos em casa. Você não pode
esperar?
— Está bem, mamãe. Vou esperar.
Mais tarde, em casa, depois de abrirem todos os presentes,
Robbie convidou a irmã para brincar com os brinquedos novos.
Andrew riu e disse:
— Parece que vocês passaram o tempo todo comprando
presentes.
— Não, papai! Só fomos uma manhã quando a tia Beth estava no
cabeleireiro. Nós três fomos fazer compras. . . — dizia Robbíe.
— E encontramos um homem simpático que queria nos levar para
almoçar — completou Shena, — Era um amigo de mamãe.
Andrew e Gail se olharam e ela continuou, com calma;
— Era Michael.
— Michael?
— Sim. Você viu uma fotografia dele.
— Ah, sim, eu me lembro. Você foi noiva dele. — Sim. Ele agora
está casado e tem três filhos.
— E você não foi almoçar com ele? — Não havia
recriminação no tom de voz dele.
— Não. Não tínhamos tempo. Beth nos esperava no Hotel Grand.
— E se vocês não tivessem que encontrar Beth?
— Eu não teria aceitado o convite dele. — Gail se lembrou do
desentendimento ocorrido da última vez em que o nome de
Michael havia sido mencionado. Não queria que a situação se
repetisse. — Michael e eu não temos mais nada em comum.
— Mas vocês são amigos?
Ela sorriu, antes de responder:
— Creio que seria mais apropriado dizer que não somos inimigos.
Andrew a observou por mais alguns minutos, depois desviou a
atenção para os presentes. Gail se encostou à cadeira e o
observou, com o coração bem mais leve. O fato de ele ter
cortado o assunto significava um sinal de confiança nela.
Gail havia trazido um presente para Andrew, embora as crianças
não tivessem visto essa compra. Ela demorou em entregá-lo,
esperando até que Shena e Robbie fossem para a cama. Sozinha
na sala de estar com Andrew, sentiu-se tímida e relutante em
pegá-lo, por causa da frieza que se estabelecera entre os dois.
Mas, observando-o sentado ali ao seu lado, calmo e relaxado, e
percebendo a solidão que ele deveria ter sentido na ausência das
crianças, Gail murmurou, sorrindo;
— Comprei um presente para você, Andrew. — E se inclinou para
pegar o pacote, que estava sobre a mesa ao seu tado. — Eu o ouvi
dizendo a Sra Birchan que havia quebrado o seu tinteiro. Andrew
levantou a cabeça, pego pela surpresa. — Obrigado Gail. — Ele
pegou o embrulho e o abriu. O tinteiro era uma peça antiga, de
cristal lapidado e prata. Gail gostara da peça logo que a vira na
loja. Não havia dúvida que Andrew também apreciara. — E uma
peça linda e requintada. . . — Ele ficou observando o tinteiro
durante um longo lempo. — Obrigado Gail. Apreciei muito o seu
presente.
— Fico feliz por você ter gostado, Andrew. Ela tentou disfarçar
a emoção que ambos demonstravam sentir. Mais tarde, quando se
levantaram para ir dormir, ele parou em sua frente e murmurou:
— Gail... — Fez uma pequena pausa, antes de continuar: —
Obrigado mais uma vez pelo presente. Foi muita delicadeza sua
lembrar de mim.
Enquanto subia as escadas às palavras de Andrew continuavam a
ecoar na cabeça de Gail, e essas palavras lhe embalaram o sono...
No dia seguinte, domingo, eles foram à igreja como sempre.
Andrew e Robbie usando as saias escocesas e Shena usando
casaco verde e chapéu, O colarinho do casaco era de pele
verdadeira. Gail usava um vestido caro de tweed. Mesmo que
Andrew não fosse um respeitável lorde, eles pareceriam uma
família fina e notável. As pessoas acenavam com a cabeça e
sorriam quando eles passavam.
Na saída, Andrew parou para conversar com alguns dos aldeões,
ouvindo seus problemas e prometendo tomar providências a
respeito. Depois, entraram no carro e voltaram para casa, com o
sol brilhando num céu sem nuvens.
Depois do almoço, saíram para a caminhada de sempre. Uma
sensação de paz e bem-estar tomou conta de Gail enquanto ela
caminhava ao lado do marido. Robbie e Shena brincavam e
corriam.
Mas no meio de toda essa tranqüilidade se erguia a imagem
sombria de Morag. Haviam dito que ela criara muitos problemas
durante a ausência de Gail e das crianças. Isso tinha sido dito
pela Sra Birchan, na noite anterior:
— A menina tentou fugir, Sra MacNeill, mas o pai a pegou em
flagrante. Por mim, eu a deixaria ir embora, e acho que ele teria
feito o mesmo se ela não estivesse doente. Teria permitido, se
ela não estivesse sob severas ordens médicas de repouso
absoluto. — A Sra Birchan havia meneado a cabeça. — Aquela
menina é má, Sra MacNeill. Ela tem coração duro dentro do peito.
Sim, um coração duro mesmo! Gail pensava sobre isso enquanto
caminhava ao lado de Andrew. Pensava também sobre as palavras
de Beth; Morag era uma barreira para a felicidade dos dois.
Esse pensamento a fez franzir a testa e Andrew, percebendo
isso, perguntou-lhe qual era o problema.
— Problema?!
— Você não está feliz.
— Mas. . . O que faz você pensar assim?
— A sua expressão é de tristeza.
— Não estou triste. Não tenho motivos para estar triste.
— Talvez eu tenha usado a palavra errada. — Ele fez uma pausa e
depois perguntou, pensativo: — Você é infeliz, Gail?
Mas por que Andrew estava fazendo essas perguntas a ela? Eram
perguntas muito pessoais.
Gail não estava acostumada com esse tratamento da parte dele,
mas respondeu:
— Existe alguém perfeitamente satisfeito com a sua vida?
— Eu não disse nada sobre perfeição. A perfeição é um assunto
muito complexo para poder entrar no terreno das emoções
humanas. As emoções também são um assunto complexo, mas não
creio que possamos nos referir à perfeição. — Sem vontade de
entrar em grandes elucubrações a respeito do assunto, Gail ficou
em silêncio. De repente, ele perguntou: — Você se arrepende de
alguma coisa, Gail?
Sem saber o que responder, ela levantou os olhos para ele. Só
conseguia vê-lo e mais nada, Andrew, seu marido. . . Tão alto e
tão forte... Tão atraente e tão másculo. . .
Ela havia perdido a noção de tudo que a rodeava; os raios do sol,
o céu azul e límpido. Nem sequer percebera que as crianças não
estavam mais correndo, e sim sentadas numa pilha de pedras,
esperando que os pais se aproximassem. Finalmente, falou:
— Você quer saber se me arrependi de ter casado com você?
Não, Andrew, eu não me arrependi.
— Não há nada que você gostaria de ter mudado?
Como ele está se comportando de modo estranho! Pensou Gail.
Andrew tinha parado e Gail também. Era como se ele estivesse
esperando que ela respondesse, para continuar o passeio. Ele
parecia tão tenso, como sé todo o seu destino dependesse da
resposta que ela iria dar.
E, de repente, Gail entendeu tudo. Andrew tinha medo que ela
estivesse insatisfeita com sua vida ali. Talvez ele achasse que a
vida que ela estava levando ali não correspondia às suas
expectativas, ou fosse muito entediante para ela.
"Sim, acho que é isso que o atormenta", pensou Gail. Mas ele não
deveria de forma alguma se sentir atormentado. Andrew já tinha
coisas demais para preocupá-lo.
Gail levantou a cabeça e sorriu para o marido.
— Não, Andrew, eu não teria mudado nada. Mas o coração dela
gritava outra coisa:
"Sim, há uma coisa que eu teria mudado! Eu mudaria o nosso rela-
cionamento. Eu faria você me amar”.
Andrew respirou fundo, com alívio, e continuou a pergunta:
— E você nunca me abandonaria, Gail?
Mais, uma vez ela ficou estarrecida com a pergunta. Mas o que
mais a surpreendeu foi o ar de insegurança que ele demonstrava.
Seria medo?
— Não, Andrew, eu nunca o abandonaria. Nunca deixaria você. Por
que o faria?
— Gail, nem mesmo quando as crianças crescerem? Quando se ca-
sarem e forem embora daqui?
Gail fechou os olhos. Quando as crianças se fossem dali. . .
O que restaria para ela? Uma existência mecânica; nem de
criada, nem de esposa. Será que ela seria capaz de enfrentar
uma vida assim, amando Andrew como amava? Resolveu não
arriscar.
— Andrew... É impossível saber quais serão os sentimentos de
uma pessoa daqui a muito tempo.
O rosto dele ficou tenso.
— Eu disse que o casamento seria para sempre. — O ar duro
voltou ao rosto de Andrew, mas mesmo assim ele resolveu
arriscar. — Da maneira como se sente agora, acha que existe a
possibilidade de você me deixar?
Ele parecia tão desesperado que era difícil para ela não tocá-lo.
Mas como isso não seria possível, Gail só pôde responder com
sinceridade:
— Da maneira como me sinto agora, essa possibilidade não existe,
Andrew.
Ele respirou fundo e voltaram a caminhar. Seus passos eram
largos e Gail teve que correr para acompanhá-lo.
— Estou andando depressa demais para você? — perguntou An-
drew, olhando para a mão dela, caída ao lado do corpo.
Gail teve a impressão de que ele gostaria de ter pegado sua mão.
Na quinta-feira Andrew teve que viajar, pois sua presença era
necessária em uma das fábricas de sua propriedade. A fábrica
era na região central da Inglaterra, e ele ficaria ausente por
vários dias.
— Fique de olho em Morag, Gail!. Sei que às vezes você precisa
sair, mas nessas horas ela ficará sob a guarda da Sra Birchan. Já
arranjei para que uma enfermeira fique com ela durante grande
parte do dia. Não há muito mais que eu possa fazer, além de
chegar a extremos como trancá-la no quarto. Mas isso deve ser
evitado, caso contrário ela ficará agitada demais. No entanto,
não precisa se atormentar, Gail, eu nunca culparia você por nada
que acontecesse. Morag é responsabilidade minha.
— Tenho medo, Andrew. É impossível controlá-la o tempo todo. .
— É um risco que tenho que assumir, Gail. Não posso negligenciar
o meu trabalho. E o que mais se pode fazer com uma garota
assim? Bater? Não, não permitirei que ela me leve a tamanha
degradação. Morag tem sido a minha cruz por muitos anos e creio
que será por outros tantos. Mas estou chegando ao limite de
minha paciência. Não quero que ela saia, pois a sua saúde pode
sofrer as conseqüências. Mas eu não posso ficar parado de
guarda durante as vinte e quatro horas do dia.
Gail estava feliz por ele estar desabafando.
— Você fez tudo o que pôde, Andrew. Não pode se recriminar por
nada.
Ele a olhou e respondeu, com amargura na voz:
— Não, Gail, eu não devo me recriminar.
Mas não houve amargura quando ele, mais tarde, se despedia dela
no carro.
— Cuide-se, Gail. Adeus.
Morag estava de péssimo humor e fazia ameaças a Gail:
— Vou dar um jeito de sair daqui e ele vai culpar você!
— Já discuti isso com seu pai, Morag. E ele me assegurou que não
me responsabilizará por nada!
— Ah, então andaram falando de mim, pelas minhas costas?
— Eu apenas quis me certificar, Morag que não ficaria
responsável pelos seus atos enquanto seu pai estivesse fora.
— Ainda tentando cercá-lo, Sra MacNeiil? A situação de celiba-
tária está lhe dando nos nervos?
Gail não respondeu. Estava sozinha com Morag, pois era horário
do almoço da enfermeira. Assim que ela voltou, Gail saiu, não sem
ouvir as palavras ditas em voz alia por Morag:
— Adeus, carcereira número dois! Vocês não me largam nem um
minuto, não é? Mas eu vou surpreendê-los a todos. Apenas
aguardem!
Gail foi até a cozinha e relataram a Sra Birchan a conversa com
Morag.
— Ela não tem como escapar, Sra MacNeill. O Sr. MacNeill disse
a Sinclair que guardasse o jipe longe daqui, pois Morag sabe dar a
partida nele sem usar as chaves. Como o único carro aqui é o seu,
ela não poderá sair com ele, a não ser que a senhora deixe as
chaves à vista.
— Não farei isso, mas Morag já saiu daqui sem um carro.
— Isso quando ela possuía dinheiro para o táxi e para a passagem
de trem. Ela teve uma grande discussão com o pai esta manha,
mas ele não lhe deu dinheiro algum.
— Mas que garota tola! Será que ela nunca irá aprender?
— Não, Sra MacNeill. Ela nunca aprenderá, simplesmente porque
não nasceu para receber ensinamentos. Foi um dia maldito quando
a sinistra Morag nasceu nesta casa. Não me olhe tão espantada
Sra MacNeill, é assim que ela é conhecida na aldeia. Foi um dia
maldito para o patrão, mas ele estava tão orgulhoso do bebê... Ele
era jovem e eu me lembro do brilho dos seus olhos. Era como se
tivesse presenciado um milagre. Era um moço gentil naquele
tempo, com um coração enorme... Hoje, às vezes, eu me pergunto
se ele ainda tem um coração, tantos foram os sofrimentos
causados pela sinistra Morag e a mãe dela. — Ela fez uma pausa.
— Talvez não devesse estar lhe dizendo estas coisas, Sra
MacNeill. Já uma vez eu afirmei que deixaria Morag ir embora
daqui se pudesse decidir. Se ela se prejudicasse, seria por sua
própria culpa.
— Bem, mas não podemos permiti-lo, Sra Birchan. Ela tem que ser
cuidadosamente vigiada, para o seu próprio bem. Estou muito
preocupada, embora meu marido tenha tomado todas as
providências necessárias.
— A enfermeira está com ela?
— Sim, mas vai embora às seis horas da tarde.
— Bem, Sra MacNeill, não creio que aconteça alguma coisa. Todos
estamos aqui à noite e Morag não sairá. Como já disse, ela está
sem transporte e sem dinheiro. Talvez a senhora devesse trancar
o seu carro em uma das garagens, em vez de deixá-lo em frente
da casa.
— Sim, eu farei isso, Sra Birchan.
Tudo parecia sob controle, mas não poderia passar pela cabeça
de ninguém que Morag conseguiria ajuda externa. . .
— Ela deve ter feito todos os arranjos por telefone — disse a
Sra Birchan, quando na manhã seguinte descobriram que a garota
havia desaparecido.
— Vou telefonar para Andrew. . . Ah, Sinclair, você está aqui!
Será que poderia levar Robbíe e Shena à escola?
— Claro Sra MacNeill.Eles estão prontos?
— Eles estão no carro, esperando. Obrigada Sinclair. Espero que
não seja um transtorno para você.
— Não é transtorno algum, Sra MacNeill. Há alguma coisa mais
que eu possa fazer pela senhora?
— Por ora é só. Obrigada Sinclair.
Andrew tinha deixado dois números de telefone; do hotel e da
fábrica onde poderia estar durante o dia. Mas ele não estava em
nenhum dos dois lugares.
— Ligarei mais tarde, novamente — disse Gail a Sra Birchan. Gail
não sossegou e foi até o quarto de Morag, para ver se descobria
algum indício do paradeiro da garota.
Num bloco de notas, perto do telefone, ela encontrou alguns
rabiscos. Continuou olhando e viu mais e mais rabiscos. De
repente, apareceu um endereço. Gail franziu a testa; era um
endereço na Escócia. Gail foi mostrá-lo à Sra Birchan.
— E o endereço da propriedade do Sr. MacNeill em Ross e
Cromarty, aonde ele vai para a caça aos veados. Ela não deve
estar lá.
— É, talvez não. . . — respondeu Gail, pensativa. —- Ela estava
falando ao telefone quando escreveu isso. Existem empregados
na cabana de caça do meu marido, Sra Birchan?
— Não, Sra MacNeill. Apenas quando o patrão está lá. Existe um
casal idoso que mora ali perto. Eles tomam conta da casa quando
o patrão não está e ficam na casa quando ele está presente.
— É muito longe daqui, Sra Birchan?
— A senhora não está pensando em ir para lá, está?
— Sim, estou. Alguma coisa me diz que devo ir.
— Morag não iria para um lugar solitário como esse. Ela gosta da
vida noturna, não aprecia ficar enterrada no campo. Quanto a
distância, não é muito longe para ir de carro, se é isso que a
senhora pensa fazer.
— Pode-se dirigir para qualquer lugar desde que haja estradas —
respondeu Gail.
Depois de mais uma tentativa frustrada de localizar Andrew, ela
decidiu agir imediatamente, sem dar ouvidos às advertências da
Sra Birchan e de Sinclair com relação ao mau tempo. Deu
instruções a governanta sobre as crianças, pediu a Sinclair que
levasse e buscasse as crianças no colégio e que continuasse
tentando localizar Andrew.
Depois disso, partiu debaixo de um céu ameaçador, que se
tornava mais negro a cada quilometro que viajava. Lá pelo meio da
tarde, a neve se amontoava contra o pára-brisa, obrigando Gail a
descer do carro para limpá-lo. Isso acontecia a todo instante e
suas roupas estavam ficando ensopadas, grudadas no corpo,
enquanto ela se arrastava pela estrada afora, quase cega pelos
maciços flocos de neve que caíam.
Enquanto avançava na estrada, já imaginando coisas; será que
Sinclair tinha conseguido contatar-se com Andrew?
Mais uma vez teve que parar para limpar o pára-brisa. O vento
uivava forte e ela mal conseguia se manter sobre as pernas para
executar sua tarefa.
"Mas que escuridão nesta terra deserta e isolada!" — ela pensou.
Quando o vento parou de soprar por alguns minutos, Gail ficou
impressionada com o silêncio que fazia. O único barulho que se
ouvia era o roído do motor do carro, que funcionava de uma
maneira estranha, como se fosse parar.
Parar! De repente, alarmada com essa possibilidade, ela entrou
novamente no carro e sentiu-se aliviada quando acelerou e o
motor continuou a funcionar.
Dirigir estava se tornando cada vez mais difícil e ela foi obrigada
a seguir cada vez mais lentamente. Será que seria arriscado
parar o carro para dar uma olhada no mapa? Será que ainda
faltava muito para chegar? De repente, Gail teve a impressão de
que a neve tinha parado de cair e se transformado em chuva fina.
Sim! De fato era verdade! Seu coração ficou mais leve diante
dessa descoberta. Ela parou e acendeu as luzes internas do carro
para dar uma olhada no mapa. Não estava muito longe.
Tinha sido uma viagem longa e árdua. As primeiras luzes da
manhã apareciam por trás das montanhas quando Gail se
aproximou da cabana. Não havia sinal de vida. Será que ela havia
feito aquela viagem a troco de nada? E como voltaria se a neve
estivesse caindo de novo? Será que Andrew ficaria furioso com
essa ação impulsiva?
Gail parou o carro e desceu. Logo notou o pára-choque de um
outro carro, no canto da casa. Foi em direção a ele. Viu que era
bem velho e estava todo amassado. Um outro carro estava parado
perto dali, coberto de neve.
Gail deu a volta na casa e achou a porta dos fundos. A maçaneta
cedeu ao seu foque e ela entrou na cabana de caça do marido pela
primeira vez, A casa estava fria, deserta e coberta por camadas
de poeira. Mas, quando entrou na sala de estar, sentiu que havia
alguém na casa. Havia cinzas de madeira recém-queimada na
lareira. Garrafas vazias e copos sujos estavam espalhados por
todo o lugar; havia um toca-disco sobre a mesa e discos
espalhados sobre as cadeiras e o chão. Num canto da sala, o
tapete estava enrolado. . .
— Mas. . , quem é você?
Uma luz foi acesa e Gail se voltou de repente, assustada e com o
coração disparado.
— Você me assustou! — exclamou ela. — Eu é que pergunto quem
é você!
O jovem estava de pijama e tinha a aparência de quem havia
passado a noite toda sem dormir. Os olhos dele examinaram a
roupa molhada e colada ao corpo de Gail. Depois, seu olhar se
deteve sobre o rosto dela.
— Meu nome é Paul. Sabe, até que você não é' nada má. Como
chegou até aqui? Dave havia dito mesmo que uma outra mulher
iria aparecer. Mas não deve ser você! Você é muito velha.
Gail respondeu, com voz firme:
— Onde está a minha enteada?
— Sua.. . Você é a esposa do velho de Morag? Mas... Como des-
cobriu que ela estava aqui? Ela jurou que não tinha contado a nin-
guém, senão não teríamos vindo! — Ele parou e ficou um pouco
pálido. — O pai dela... Ele também está aqui? — Ele olhou pela ja-
nela, tentando ver se havia mais alguém.
— Ele logo chegará. — Gail não teve escrúpulos em mentir e per-
guntou onde Morag estava.
— Na cama. Onde você acha que ela estaria a esta hora da
manhã? Eu também estaria na cama se não estivesse com dor de
cabeça. Desci para pegar um drinque, mas já não faço mais
questão. Vou cair fora daqui antes que o pai dela chegue. Morag
está no quarto próximo da escada. Ela estragou a nossa festa
ontem à noite, pois se sentiu mal. Carol a levou para a cama às
oito horas. Depois não a vimos, mais-..
— Não a viram mais? Ninguém foi vê-la mais tarde? Ele deu de
ombros.
— Nós estávamos tendo uma festa e esquecemos.
— Esqueceram que havia uma pessoa doente na cama?
Gail resolveu não perder mais tempo e correu escada acima. Ao
entrar no quarto, viu que Morag estava com os lábios azulados e a
respiração difícil.
A menina falava com dificuldade:
— Você. . . Como chegou até aqui? Uma bebida, pelo amor de
Deus. Arranje-me uma bebida!
Ao sair do quarto, Gail ouviu um burburinho de vozes que vinham
de outro quarto no corredor:
— Não acredito em você. . .
— A mulher disse que ele não vai demorar. Se você quiser ficar,
fique, mas eu vou cair fora já, neste instante!
Gail não ouviu mais nada, pois já tinha chegado à sala. Mais tarde,
no quarto, sentada na beirada da cama e levando um copo de
bebida aos lábios sem cor de Morag, Gail ouviu barulho de passos
em frente à porta.
Alguém gritou: "Adeus, Morag!" E então se ouviu o barulho dos
dois carros se afastando.
— Vou deixar você sozinha por alguns minutos, Morag. — Gail,
com delicadeza, fez com que a garota se deitasse. — Tenho
alguns telefonemas para dar, mas volto em seguida. Fique calma.
Sinclair tinha dado a Gail o número do telefone da fábrica de
Andrew e este lhe deu o telefone de um médico nas
proximidades, Barclay, o capataz da propriedade, chegou meia
hora depois de ela ter telefonado; era um homem alto e forte.
Ele ouviu o relato de Gail com uma expressão grave no rosto,
meneando a cabeça de vez em quando com tristeza.
— Como alguém poderia esperar uma coisa dessas? Ela nunca veio
aqui antes com os seus amigos!
Mais tarde Gail descobriu que eles tinham vindo para a cabana
porque estavam sem dinheiro. Embora Gail quisesse que Morag
descansasse, ela insistia em conversar:
— Todos eles trouxeram comida das suas casas. Com relação às
bebidas. . . Papai sempre teve bastante aqui, por causa dos
hóspedes nas temporadas de caça, embora ele mesmo não beba
muito.
— Não fale, Morag. A dor é muito forte?
— Terrível. Espero que o médico traga algum remédio com ele.—
Ela fez uma pausa, respirando com dificuldade. — Eles todos
foram embora sem se despedir de mim. . . Antes não os tivesse
convidado. . . E pensar que eu até permiti que atirassem. . .
— Atirassem? Atirassem no quê?
— Nos veados. Pelo menos foi para isso que os três rapazes
levaram as armas. Mas eles não eram muito bons atiradores. Dave
atingiu um veado, mas ele fugiu antes de ser morto.
— Você quer dizer... Que ele está ferido e... Vagando por aí, com
esse tempo?
— Ele vai acabar morrendo, porque se estiver muito ferido não
conseguirá arranjar comida. — Apesar da dor, Morag riu diante
da expressão de Gail. — Ora, mas como você é mole! É apenas um
animal!
Levantando-se, Gail deixou o quarto. Encontrou Barclay
examinando uma arma que ele tinha achado caída no portão de
entrada. Gail lhe contou as notícias quando Barclay garantiu que a
arma tinha sido disparada recentemente.
— Um veado ferido, Sra MacNeill? Vou chamar Roberlson ime-
diatamente. Ele é o melhor atirador do Sr. MacNeill por aqui.
Gail sentou-se perto da lareira, com os olhos fixos nas chamas,
mergulhada em seus pensamentos. As horas passavam. De vez em
quando, ela se inclinava e alirava alguns pedaços de lenha na
lareira. Seus olhos ardiam com a falta de sono. O dia estava
amanhecendo.
Foi de novo até a janela e abriram as grossas cortinas de veludo.
Era uma terra coberta pelo manto branco de neve,
aterrorizante. . . E seu marido estava lá fora, com Robertson,
caçando o pobre animal para livrá-lo do sofrimento. O veado
estava sofrendo bastante. Robertson o tinha visto arrastando
uma perna e emitindo gritos agudos de dor e fome.
Gail voltou a cadeira em frente à lareira e mergulhou de volta aos
seus pensamentos, lutando para ficar acordada.
Tanta coisa tinha acontecido, em tão pouco tempo. Aquela sirene
da ambulância, o veículo escorregando e deslizando sobre as
grossas camadas de neve, o alívio quando chegaram à estrada
principal e puderam ganhar alguma velocidade.
Mas tudo tinha sido em vão. Vinte minutos após dar entrada no
hospital, Morag estava morta.
O médico viera avisar Gail na gelada sala de espera, o pesadelo da
viagem de volta para a cabana, de táxi, a sensação de impotência
e vazio.
Gail sabia que jamais esqueceria aquela noite enquanto vivesse.
Chegando a cabana, ela soubera que Andrew tinha estado lá havia
alguns minutos. Informado da morte de Morag por Barclay, ele
resolvera que de nada adiantaria ir até o hospital e saíra com
Robenson atrás do veado ferido.
Tinha passado fora a noite toda. Quando ela voltara do hospital,
a chuva e a neve tinham parado e uma lua cheia brilhava no céu.
Isso significava frio intenso e Gail tremia de medo e de frio toda
vez em que ia até a janela.
Andrew lá fora, rastejando para encontrar o animal ferido e não
errar o tiro. . . Eles precisavam chegar bem perto para que não
houvesse dúvidas de que o animal seria sacrificado sem sentir
dor.
Mas quanto tempo isso iria levar? Eles não voltariam para casa
enquanto não aliviassem a dor daquele pobre animal. Mas a
preocupação por Andrew era tão grande que até doía. . Ele
poderia até ficar doente com todo aquele frio e umidade lá
fora. . .
Gail se levantou e logo se sentou novamente. Tinha que pensar em
outra coisa que não fosse Morag!
Alguém estava se movimentando na cozinha. Era a Sra Irvine e
seu marido, se preparando para acender o fogo, colocar a água
para ferver e preparar o café da manhã.
O senhor e a Sra Irvine eram o casal empregado por Andrew
para tomar conta da cabana. Eles estavam lá quando Gail voltara
do hospital, tendo sido enviados por Barclay. Eles tinham
arrumado toda a confusão da sala de estar e acendido o fogo.
Toda a sala havia se transformado durante a ausência de Gail.
Pela casa toda, a nuvem de poeira linha sido removido e os
lareiras estavam acesas.
— É para a cama que a senhora vai — disse a Sra Irvine, com
toda a rudeza de uma escocesa do campo. — A senhora está
muito abatida. Ouvi dizer sobre a sua viagem durante toda a
noite e da vigília junto com Morag, à espera da ambulância, já
arejei o colchão e acendi o fogo no seu quarto. Agora vou fazer a
cama e a chamarei assim que estiver pronta.
— Vou esperar até que meu marido volte.
— Mas por que deve esperar por ele? Ele não vai voltar esta
noite, a não ser que eu esteja muito enganada!
— Não vou conseguir dormir sabendo que ele está lá fora. Quero
esperar para ver se está bem.
— Bem? Mas é claro que ele está bem. Agora, a senhora virá
quando eu chamar. . . E chega de tolices!
Muito cansada para argumentar, Gail subiu com tmi ar de
resignação até que a velha senhora saísse do quarto. Meia hora
mais tarde, ao ouvir que o casal tinha ido para casa, Gail desceu
de volta à sala de estar.
Os passos da Sra Irvine podiam ser ouvidos vindos do hall. Ela
abriu a porta e encarou Gail sentada, completamente vestida, em
frente à lareira.
— Mas. . . O quê?! Sra MacNeill! A senhora não foi para a cama?
— Não. Sinto muito, mas eu não conseguiria dormir. Não, com meu
marido em perigo. . . Oh, Sra Irvine! O que pode ter acontecido
com eles? A senhora acha que eles podem ter caído no lago?
— Caído? — A Sra Irvine piscou. — Mas por que eles iriam cair no
lago?
— Se o lago estiver coberto com neve e gelo, eles podem não tê-
lo visto. . .
De repente ela parou, como se tivesse visto um fantasma.
Andrew estava parado na entrada, ensopado até os ossos,
coberto de lama e com os cabelos e a roupa cheia de musgo.
— Andrew, você esta salvo! — Gail deu alguns passos em direção a
ele, a cicatriz lívida. — Você está salvo.
Suas pernas fraquejaram, mas Andrew a apanhou antes que ela
caísse.
— Querida... — Com delicadeza, ele a colocou no sofá. — Querida
você está tão pálida! Por que não está na cama?
Gail fechou os olhos. Tentou falar, mas seus nervos estavam em
frangalhos e ela apenas conseguiu abanar a cabeça fracamente.
— Eu disse a Sra MacNeill que o senhor deveria estar bem.
Também disse que ela deveria ir para a cama. Já são duas noites
que ela não dorme. Mas ela não queria dormir com o senhor
estando lá fora. Parecia achar que o senhor estava passando por
algum perigo!
Os olhos de Gail se abriram. Andrew colocou um braço embaixo
dos seus ombros e a ergueu. Levou um copo até seus lábios. Ela
bebeu e sorriu de novo. Será que tinha sonhado ou ele realmente
a chamara de querida? Não havia dúvida sobre a ternura no olhar
dele, como se de repente tivesse feito uma grande descoberta.
— Andrew... — murmurou ela, enquanto ele a punha de volta
sobre as almofadas. — Você me chamou. . .
— Sra, Irvine — ele disse, voltando-se para ela —, a cama está
pronta?
— Vou aquecê-la novamente, senhor. E vou acender o fogo.
— Obrigado. Seja breve, por favor. Não quero que a Sra
MacNeill durma aqui.
— Não quero ir para a cama. — Gail tentou se levantar, mas a mão
firme de Andrew a reteve. — Não vou para a cama. . .
— Não vai? Mas por quê?
— Porque você me chamou de querida. . Ele sorriu.
— E isso é razão para que você não vã para a cama?
Ela corou, sentindo-se tola. Ele continuava a olhá-la com um
sorriso nos lábios,
Finalmente Gail conseguiu dizer:
— Você está ensopado. Precisa trocar de roupa e tomar um
banho. Os olhos dela se fecharam. Mal conseguia se manter
acordada.
— Gail, não vá dormir aqui.
Mas, embora tivesse lutado contra, o sono tomou conta dela e
Andrew a deixou dormindo no sofá. Cobriu-a com um xale e
fechou as cortinas para que a sala ficasse escura, com exceção
do brilho das chamas na lareira.
Ela acordou ainda sentindo-se cansada. Alguém tinha acendido o
fogo, mas o calor que envolvia Gail vinha de uma outra fonte.
Andrew a amava...
— Ah, acordou, Sra MacNeill... -— Da quietude do hall, apareceu
a Sra Irvine, com seu olhar perscrutador. — Sente-se melhor
depois de ter dormido?
— Sim, obrigada. Meu marido. . . ele está bem?
— Bem? É claro que ele está bem. Ele esteve dormindo, mas já
acordou. A senhora quer uma xícara de chá?
— Daqui a pouco. Quero tomar um banho primeiro.
Ela havia trazido algumas roupas íntimas numa maleta, mas a Sra
Birchan tinha insistido em colocar alguns vestidos, pelos quais
Gail era grata, pois passara quarenta e oito horas com o vestido
que estava usando.
A Sra Irvine colocou mais lenha na lareira.
— Pode ir tomar o seu banho. Terei um bule de chá pronto
quando a senhora descer. Estou preparando o jantar, mas creio
que a senhora não vai querer comer agora, logo depois de se
levantar.
— Que horas são?
— Quase sete da noite, A senhora e o patrão dormiram durante
o dia todo.
Quando Gail desceu, refrescada depois do banho, Andrew estava
de pé perto da lareira, limpo e bem disposto, como se não tivesse
passado pela penosa experiência nas montanhas geladas, Mas
havia um ar pesado em seu semblante, retratando a tragédia de
Morag.
Foi Gail quem falou primeiro, com um tom de profundo arrepen-
dimento na voz:
— Morag. . . Não havia esperança, Andrew. Cheguei tarde demais.
E quando a ambulância finalmente chegou seu percurso foi lento
demais até chegar à estrada principal. Sinto muito, Andrew.
O silêncio caiu na sala. Quando Andrew falou, seu tom de voz não
tinha a mesma emoção de Gail:
— Você fez tudo que podia, minha querida, e eu lhe agradeço. —
Seus olhares se cruzaram e os olhos dele estavam cheios de
ternura. — Você foi maravilhosa. Recebi um relato completo de
Sinclair, Barclay e da Sra Irvine. — Ele ficou em silêncio
novamente e Gail corou diante do elogio. — Tenho algumas
providências a tomar com relação a Morag. Essas coisas serão
feitas, é claro. Mas depois disso não falaremos nela novamente.
— Inclinando-se, ele levantou-lhe o queixo com as mãos. — Você
entendeu, Gail? Não quero que o nome dela volte a ser
mencionado.
Gail engoliu em seco e uma expressão de dor lhe cruzou o rosto.
Mas ela concordou e disse:
— Sim, Andrew, eu entendi.
Ele a olhou bem dentro dos olhos e disse:
— Acho que você realmente entendeu, Acho que você entendeu
tudo.
Gail abaixou a cabeça. Ele tinha certeza absoluta de que Morag
não era fiçla dele. E parecia convencido de que Gail adivinhara a
verdade.
Ambos levantaram a cabeça quando a Sra Irvine entrou com a
bandeja de chá e a deixou sobre a mesa.
— O senhor quer jantar? Tenho a comida pronta sobre o fogão.
— Mais tarde, talvez, Sra Irvine. — Ele olhou para Gail. — A não
ser que você esteja com fome.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não, obrigada, não poderia comer nada agora.
Quando a Sra irvine saiu e eles estavam tomando chá, Andrew
conversou com Gail de maneira muito íntima, como jamais havia
feito.
Disse que muito cedo começara a desconfiar que Morag não era
filha dele, mas quando ficara sozinho para criá-la tentara
esquecer isso e lhe dera uma afeição de pai. Quanto à sua esposa,
ele a aceitara de volta, mas não conseguira perdoá-la.
— Ela foi embora novamente e eu me atormentei achando que era
o responsável. Sentia-me um hipócrita, indo à igreja aos
domingos, mas não praticando o ato cristão do perdão. Por isso,
da vez seguinte em que ela voltou, tivemos Shena e Robbie. . .
— Por que você queria começar tudo de novo? Andrew meneou a
cabeça.
— Eu tentei, Gail, mas era impossível esquecer. E para que se
perdoe alguém é necessário esquecer o que se sofreu. Quando
Morag se transformou naquilo que você conheceu, concluí que era
o preço que eu tinha que pagar. Era a cruz que eu tinha que
carregar nesta vida.
O rosto dele estava transtornado, mas quando Gail o olhou com
paixão Andrew sorriu e sentou-se ao lado dela no sofá.
Ele a abraçou e ela se aninhou em seus braços, murmurando:
— Você não deve se culpar, Andrew. Às vezes, é muito difícil
perdoar.
Ela estava pensando em Michael e no mal que ele lhe havia feito,
mas Andrew a estava beijando e ela pôs de lado seus
pensamentos.
— Minha querida e doce esposa. . . Querida, quando perguntei se
havia alguma coisa que gostaria de ter mudado, você já me
amava?
— Sim, Andrew... E você, já me amava na ocasião?
— Eu te amava, Gail, e queria que você me desse alguma indicação
de que o meu amor era correspondido. Por isso fiz aquela
pergunta. — Ele a beijou novamente.
— Mas como fui tola! Não o entendi, Andrew!
— Não importa agora, meu amor.
Os cabelos dela estavam recuados e a cicatriz à mostra. Andrew
a beijou.
— Eu te amo, minha Gail... Minha linda esposa.
Durante algum tempo, ficaram em silêncio e, então, ela se
libertou do abraço dele, se levantou, e ficou de pé em frente ao
fogo, de costas para o marido. — Andrew. . .
— Sim, querida?
— Você me contou tudo e agora eu tenho uma coisa para lhe
dizer. E ela contou tudo sobre Michael, o acidente e as cicatrizes
em seu corpo. Contou que Michael fora o culpado pelo acidente
porque bebera demais. E deixou a coisa mais difícil de dizer por
último:
— O motivo real de ele ter rompido o noivado foi porque... Porque
eu tive vários ferimentos internos. — Um silêncio profundo caiu
entre os dois e ela olhou fixamente paia Andrew. — Andrew, você
se imporia que nunca mais possamos ter filhos?
Mais um silêncio se fez e ela se aninhou nos braços dele, a cabeça
descansando em seu peito. A expressão de Andrew era de
profundo remorso pelas suas suspeitas, mas Gail não permitiu que
ele falasse. Disse que pretendia se internar num hospital para se
submeter a uma cirurgia plástica e remover as cicatrizes.
— Não posso suportar a idéia de ficar longe de você, minha
querida. . .
— Não será por muito tempo, Andrew. Não quero ficar longe de
você e das crianças, mas... - eu me sentiria muito mais feliz sem
as cicatrizes.
— Então, será como você deseja, querida, embora eu vá detestar
cada minuto que você ficar longe de mim.
Ele a abraçou bem forte e disse que tinha decidido não mais per-
mitir que a avó das crianças os visitasse. Ele tinha descoberto
através de Robbíe que eles não gostavam dela e não via sentido
em fazê-los infelizes por causa de suas visitas.
À menção de Robbíe, Gail disse novamente:
— Você não se importa que não tenhamos mais filhos? Ele se
inclinou e a beijou com grande ternura.
— Querida. . . Nós temos duas crianças. Realmente não acho que
precisemos de mais, concorda?
A voz dele era tão terna que Gail sorriu quando respondeu:
— Sim, Andrew! Também acho que não precisamos de mais.

FIM

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