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Para Luca e Cintia

Apresentação

A presentado, inicialmente, como dissertação de Mestrado, no


programa de Pós-graduação em História da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, o livro, que agora chega ao leitor com
o título de “Saudades do Novo Mundo – A aventura de Jean de
Léry”, para além de proporcionar uma nova leitura sobre uma
personagem que há séculos vem desafiando os estudiosos, traz im-
portantes aportes sobre os relatos de viagem como fonte histórica.
Durante sete anos, desde sua primeira escritura, o texto “repou-
sou”. Nesse tempo pôde ser amadurecido, ganhando densidade
para se transformar em obra que, sem dúvida alguma, se tornará
referência para todo aquele que, daqui para a frente, se debruçar
sobre a obra emblemática e fundante de Léry.
Como o leitor poderá facilmente perceber, o texto, amadureci-
do, firma-se como caminho inovador para a leitura do passado, que
pode e deve ser lido a partir de uma perspectiva cultural, instiga-
dora e enriquecedora. Em última instância, Alexandre Belmonte
lembra ao leitor a proclamação, há décadas feita por Lucien Febvre
e só muito recentemente incorporada às preocupações dos historia-
dores: a ideia de que todos os textos são, inevitavelmente, “textos
humanos”. Dessa forma, “as palavras que os formam estão cheias
de substância humana”,1 resultado das circunstâncias que envol-
vem aquele que o escreve.
Essa “substância humana” o leitor vai encontrar a cada passo de
sua leitura, deparando-se com imagens e metáforas emblemáticas,

1. Lucien Febvre. Combates pela história, 1 [Trad.]. Lisboa, Presença, 1977, p.31.

vii
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
através das quais é demonstrado o processo de descoberta, descons-
trução e ressignificação vivido por Léry. Como diz Belmonte: “o
mundo pronto e organizado perde-se junto à fala sobre o tupinam-
bá”.
O primeiro aspecto a destacar na obra é o fato do autor efe-
tivamente ter ido ao encontro dos escritos de Léry, convicto da
essência “humana” que foi perdida nas várias edições e traduções
da obra. Dessa forma, mergulhou no francês medieval, trazendo
para o diálogo o que de mais puro pudesse ser encontrado do autor
quinhentista.
A partir do texto de Belmonte, que se reporta a Léry, somos
levados a adentrar em um tempo marcado por descobertas e per-
plexidades – algumas das quais já afetavam o viajante ao se deslocar
para o Novo Mundo – para afirmar que o encontro entre o “eu” e
um “outro” que se apresenta, inicialmente, como antítese absoluta,
representa, efetivamente, o início de novos tempos. Como nos diz
o autor do livro: “... os encontros e confrontos entre culturas torna-
ram possível uma transformação sem par na história cultural, nas
formas de conhecer e se relacionar, colocando a alteridade cultural
como uma das questões constitutivas do homem moderno”.
No contraponto permanente que Belmonte estabelece entre
alteridade e identidade, a questão da oposição entre civilizado e
selvagem esmaie-se na constatação de que os “europeus trazem seu
próprio selvagem com eles”. É essa desconstrução permanente de
verdades cristalizadas, apoiada em um contínuo diálogo intertextu-
al, que, a nosso ver, se destaca como uma das maiores contribuições
da obra que agora chega ao leitor.
Mas há outras contribuições. Dentre elas a proposição de que
sempre há a possibilidade de novos olhares sobre textos lidos e
relidos através dos séculos; a compreensão de que identidades e

viii
Alexandre Belmonte
alteridades, como “imagens de espelho”,2 são processos de contí-
nua ressignificação; a indicação de que a cultura – ou melhor, os
encontros e desencontros culturais são importante e gratificante
caminho para analisar o passado. Enfim, a convicção de que a ou-
sadia é comportamento que deve sempre afetar o historiador.
É esse espírito de ousadia no descobrir que deve orientar, tam-
bém, a leitura do livro. Afinal, o convite é para que o leitor, a partir
de um tempo de muitos encontros e desencontros, estabeleça uma
nova compreensão sobre o passado e, a partir dele, sobre o presen-
te. É uma aventura que, como a de Léry, merece ser vivida.

Rio de Janeiro, 21 de outubro de 2013.


Lená Medeiros de Menezes
Professora Titular de História Contemporânea da UERJ

2. Robert Frank. “Histoire des Relations Internationales et Images“. In: Maria


Matilde Benzoni; Robert Frank; Silvia Marie Oizetti (org.). Images des peuples et
histoire des relations internationales du XVIe siècle à nos jours. Paris, Publications de
la Sorbonne, 2008, p. XIV.

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Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Nota ao Leitor

A presente obra é originalmen


originalmente uma dissertação de Mestrado
2006 no Departamento de História
em História, defendida em 20
da Universidade do Estado do RioR de Janeiro. Gostaria de agra-
decer à orientadora, professora Lená
L Medeiros de Menezes, e à
banca examinadora, professores MMaria Teresa Toríbio B. Lemos e
Emmanuel Carneiro Leão, que recomendaram a publicação do
trabalho e o enriqueceram com comentários
c e questões. Agradeço
ainda à professora Tânia Bessone,
Bessone pelas observações mais que per-
qualificação.
tinentes durante o exame de qual
minha gratidão a pessoas que, de di-
Gostaria, ainda, de exprimir m
ferentes formas, participaram da execução deste trabalho, em suas
diversas fases, dentre elas Cintia Martins Dias, Philippe Ariagno,
Carmelo Belmonte, Édima Maria Boldrini, Marco Belmonte, Vera
Gomes, Marcio Coutinho, Marcos Miceli e Ribamar Lopes.
Agradeço ainda à Sub-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pela concessão de uma
bolsa de Professor Visitante quando da preparação do manuscrito
para publicação.

xi
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Sumário

Introdução , 01

Capítulo 1 – A circularidade das ideias: o impacto do


Novo Mundo na consciência europeia do século XVI
Imprensa, leitores e leituras no século XVI:
possibilidades de recepção, 20
Os selvagens: espelho do europeu, 31

Capítulo 2 – A especificidade do relato de Jean de Léry


em relação a outros relatos de viagens
Viagens e viajantes, textos e contextos, 46
Os primeiros relatos: a busca do Paraíso terrestre, 53
Identidade e alteridade no relato de Léry:
o discurso sobre o outro, 73

Capítulo 3 – Construção da narrativa e métodos da


História em Léry
Argumentos de autoridade e construção
do conhecimento, 90
Gastronomia grotesca: canibalismo no Brasil
e na França – o memorável, o notável
e o traduzível na escrita de duas Histórias, 104
O regresso à França: fome, tormentas e saudades, 115

xii
Alexandre Belmonte
Capítulo 4 – Transes e trânsitos, 122

Glossário do francês quinhentista, 127

Fontes e Bibliografia, 131

Anexos, 149

xiii
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
– Você viaja para reviver o seu passado? – era, a esta
altura, a pergunta do Khan, que também podia ser
formulada da seguinte maneira: – Você viaja para
reencontrar o seu futuro?
E a resposta de Marco:
– Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante
reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que
não teve e o que não terá.

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

xiv
Alexandre Belmonte
Introdução
E le veio para fabricar sapatos, mas acabou escrevendo um
verdadeiro best-seller do século XVI. “Com sua Histoire
d´un voyage faict en la terre du Brésil”, Jean de Léry (1534-
c.1611) gozou de admirável sucesso, não somente na França,
mas também na Suíça e na Alemanha. Em cem anos, sua
obra teve pelo menos sete edições em francês e algumas em
latim1. Trata-se, portanto, de um texto que tem uma longa
história intrínseca – não somente a história de sua escrita e
confecção, mas a de sua recepção e impacto nas culturas eru-
ditas francesa e europeia do século XVI.
As viagens do início da era moderna legaram à huma-
nidade um espólio literário, cartográfico e iconográfico
constituído principalmente por mapas, ilustrações, relações
de viagens e crônicas da conquista colonial. Possuem uma
natureza multidisciplinar e têm como temática comum o
desvendar da alteridade humana e geográfica, construindo,
em seu conjunto, uma representação do outro e a imagem
de uma natureza exótica. São diários de navegação, cartas
náuticas, relatos de viagens de descobrimento e de expan-
são, crônicas de conquista que, juntos, formam o que muitos

1. Após a primeira edição de 1578, são conhecidas as de 1580, 1585, 1594, 1599,
1600, 1677.

2
Alexandre Belmonte
autores chamam de “literatura de viagens”2, expressão con-
troversa e que identifica como gênero literário este enorme
corpus textual cujas balizas cronológicas se situam entre os
séculos XV e XIX3.
No século dos Descobrimentos, os relatos de viagens
transformaram-se em verdadeiro gênero literário na Europa.
Atraíam a curiosidade dos homens letrados e falavam ao seu
desejo de viajar rumo ao desconhecido – coisa difícil de con-
cretizar pelo custo elevado. Jean de Léry o conseguiu. Era um
jovem de pouco mais de 20 anos quando resolveu juntar-se a
outros adeptos do protestantismo numa missão, em 1556, ao
Rio de Janeiro, onde havia sido fundada a França Antártica,
tentativa de colonização francesa arrasada pelos portugueses.
Num terreno repleto de mangues e animais peçonhentos,
muitos padeciam de gangrenas nos pés, daí a presença do
sapateiro Léry. E era para essa terra cheia de indígenas a cate-
quizar que vinha o missionário Léry.
É flagrante a curiosidade que tais relatos suscitaram
na Europa, e muitos nativos ameríndios foram levados às
cortes europeias, para serem vistos, tocados, entrevistados, e
não apenas imaginados. A cultura do livro e a literatura de
viagens, à época das navegações e colonizações, marcavam e
definiam uma espacialidade para as colônias, transformavam
a terra distante e exótica em território transitável pelo leitor.
O discurso sobre a alteridade transformava-se, gradualmente,
em padrão cultural, uma vez que insistia em marcar as

2. Em Hernani Cidade, aparecem as denominações “Literatura de Expansão” e


“Literatura dos Descobrimentos”; Jaime Cortesão utiliza as denominações “Li-
teratura, Narrativas e Relações de Viagens” e “Literatura de Viagens e Descobri-
mentos”; Antônio José Saraiva e Oscar Lopes, em História da Literatura Portuguesa,
se referem a uma “literatura de viagens ultramarinas” ou “narrativas de viagens”.
3. Ana Paula P. Dias. Diário de navegação de Pero Lopes de Sousa: A representação do
real e os filtros da representação. Letras & Letras, Projeto Vercial, 1997, disponível
em http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/letras/ensaio39.htm, acesso em agosto de
2013.

3
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
diferenças em relação a um Outro muitas vezes considerado
bizarro, definindo aos poucos as especificidades culturais de
quem escrevia, garantindo-lhe uma identidade e um lugar do
qual podia apontar as diferenças.
Léry é um desses viajantes que, do Novo Mundo, leva um
‘fato’ antropológico novo para a Europa: o Outro. Os rela-
tos de viajantes pareciam satisfazer, para o homem do século
XVI, certa necessidade de evasão de sua realidade. Curio-
samente, porém, essa mesma realidade, que era o ponto de
partida do viajante, era também invariavelmente o ponto de
chegada. As longas viagens pareciam sempre reconduzi-lo ao
mesmo, à sua proveniência.
O relato levanta questões que têm sido discutidas desde
praticamente sua publicação, e parece ser um daqueles textos
aos quais sempre voltamos. A questão fundamental parece
ser a descoberta que o eu faz do outro, em seu sentido mais
amplo, não somente cultural, mas também antropológico e
filosófico. A propósito das Histórias de Heródoto, Hartog es-
creve:
Uma cultura (a nossa em todo caso) é feita de tal
modo que não cessa de retornar aos ‘textos’ que a
constituíram, de ruminá-los, como se sua leitura
fosse sempre uma releitura. Seja felicitando-se por
isso ou lamentando-se, seja embalsamando-os ou
recusando-os, ela parece tecida por seus fios – e
como que já ‘lida’ por eles.4
Mais adiante, o autor defende a ideia de que a tarefa de
um historiador da cultura pode, então, ser a tentativa de “re-
construir a questão que esses textos respondem”5. Estudar
o relato de Léry não significa modernizar ou simplesmente

4. François Hartog. O espelho de Heródoto – Ensaio sobre a representação do Outro.


Belo Horizonte, Editora da UFMG, 1999, pp. 15-16.
5. Idem. Ibidem, p. 16.

4
Alexandre Belmonte
“atualizar” as discussões sobre a aventura do calvinista francês.
Trata-se, no dizer de Hartog, de “fazer ver sua inatual atuali-
dade, suas respostas a questões que nós não mais levantamos,
não sabemos mais levantar, ou simplesmente ‘esquecemos’”6.
As questões que o texto de Léry nos coloca são indispensáveis
para a análise não somente da história de um ‘Brasil colo-
nial’, mas do próprio estatuto de indivíduo que se formava na
época e do qual são herdeiras as nossas possibilidades de iden-
tidades nacional, coletiva, cultural etc. É também um ponto
de partida para um estudo mais amplo sobre as relações en-
tre representações da alteridade e processos de formação de
identidades culturais no mundo moderno.
Várias questões têm sido levantadas a partir de leituras as
mais variadas do relato de Léry e dos intuitos de representar
a alteridade encontrada no Novo Mundo (levados a cabo a
partir do século XVI), e têm sido discutidas das mais variadas
formas. Michel de Certeau, em A Escrita da História, dedi-
ca um capítulo à análise da escrita de Léry em seu relato.
Certeau adverte que “não se pode identificar essas ‘lendas’
científicas com a organização das práticas”7, ou seja, a re-
presentação do outro que Léry faz não deve ser confundida
com o outro mesmo. Essa representação simboliza “as altera-
ções provocadas numa cultura pelo seu encontro com uma
outra”8. Centraliza seu estudo, assim, na análise de novas
funções da escrita e da palavra provocadas pela descoberta
do Novo Mundo, pelas reformas religiosas e pelas clivagens
sociais que acompanham esses processos.
Frank Lestringant estudou todas as edições da obra de Léry,
detendo sua atenção nos novos adendos a cada reedição. Em

6. Idem. Ibidem, p. 16.


7. Michel de Certeau. A Escrita da História. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1982, p. 213.
8. Idem. Ibidem, p. 213.

5
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
1994, reeditou o relato a partir da sua segunda edição, a de
1580, comentando, devidamente, as omissões e inserções de
Léry em relação às demais edições. Em seu livro Le Huguenot
et le Sauvage9, Lestringant busca analisar a relação dos fran-
ceses com o Novo Mundo através do protestantismo e da
experiência de Villegagnon na França Antártica, de Roberval
no Canadá e de Ribault e Laudonnière na Flórida. Uma das
suas ideias centrais é que, ao mesmo tempo em que os france-
ses criticavam as práticas imperialistas dos espanhóis no Novo
Mundo, eles próprios tiveram que lidar com o problema da
alteridade dos indígenas, diante dos quais a atitude francesa
oscilava entre a exaltação da liberdade dos índios e sua conde-
nação como herdeiros da maldição de Cam10.
Todorov, embora não tenha analisado propriamente o rela-
to de Léry, propôs-se a estudar a descoberta que o ‘eu’ faz do
‘outro’. Um tema central em sua obra é o de que, da viagem
de Colombo, descende não somente a América – Mundo
Novo – mas também a Europa e toda a modernidade de que
somos herdeiros em nossas possibilidades de cognição e de
relações com os outros e conosco mesmos. O autor parece
construir uma arqueologia dos primeiros encontros entre o
europeu e seu outro, o ameríndio, enquanto interpreta tanto
os modos em que se dá a conquista, como o paradoxo de uma
compreensão do outro que se tem no século XVI e que se tor-
na um dos motores para o extermínio desse mesmo outro11.
Sobre o tema da alteridade, Maria Teresa Toribio Brittes
Lemos analisou o encontro e confronto de duas sociedades

9. Frank Lestrngant. Le Huguenot et le sauvage – l’Amérique et la controverse coloniale,


en France, au temps des guerres de Religion (1555-1589). Paris, Klincksieck, 1999.
(primeira edição de 1990).
10. Sobre a maldição de Cam, cf. Genesis, 9:20-27.
11. Tzvetan Todorov. A Conquista da América – a questão do outro. São Paulo, Martins
Fontes, 2003. (primeira edição de 1982).

6
Alexandre Belmonte
profundamente religiosas, a espanhola e a asteca, cada qual
lutando por seus espaços sagrados. Ao invés de pensar a co-
lonização sob a clássica fórmula da ‘conquista’ e ‘dominação
colonial’, a autora estuda as formas de hibridismo cultural
– particularmente presentes no campo do sagrado – que
acabaram por formar o que quer que se entenda hoje por ‘cul-
tura mexicana’. Ela pretende, em última instância, analisar
o vigor originário da cultura mexicana, levando em conta os
agenciamentos entre a cosmovisão dos que chegavam e a dos
nativos12.
Klaas Woortmann estuda o impacto do selvagem brasileiro
na cosmologia e no pensamento teológico europeus, anali-
sando como foi construída a ideia de selvagem no imaginário
da época, e de que forma o autóctone americano passou
gradativamente a encarnar um selvagem que já existia no eu-
ropeu que o representava, desde pelo menos a Antiguidade13.
Algumas teses recentes, produzidas em universidades
brasileiras, têm procurado tratar da questão da alteridade sus-
citada a partir da conquista do Novo Mundo. É o caso da
tese de doutorado de Carmen Lúcia Palazzo de Almeida, que
estuda as transformações no modo como os franceses perce-
biam a colonização, entre os séculos XVI e XVII14. A tese de
Wilton Carlos Lima da Silva busca analisar as permanências
e mudanças nas formas de percepção e descrição da diver-
sidade natural do Novo Mundo. Ele trata, porém, o relato
de Léry no sentido de evidenciar uma visão de mundo em
que se mesclam referências renascentistas, ideais religiosos e

12. Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos. Corpo Calado: Imaginários em Confronto. Rio
de Janeiro, 7 Letras, 2001.
13. Klaas Woortmann. O selvagem e o Novo Mundo – ameríndios, humanismo e esca-
tologia. Brasília, Editora da UnB, 2004.
14. Carmen Lúcia Palazzo de Almeida. Entre mitos, utopias e razão: os olhares fran-
ceses sobre o Brasil (séculos XVI a XVIII) Washington - DF. 01/07/1999. 1v. 362p.
Universidade de Brasília – Tese de doutorado em História.

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Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
um acurado ‘relativismo cultural’15. Therezinha B. Baumann
Zavataro analisa o Thesaurus de viagem de Theodor de Bry,
buscando explicitar a gênese e o significado do Thesaurus
como um “percurso em direção à salvação”. A autora analisa,
na iconografia de De Bry, como este expressa a construção
do sujeito e sua relação com o outro16. Leyla Perrone-Moisés
estuda três momentos distintos da presença francesa no Novo
Mundo: a relação de Paulmier de Gonneville (1505) e os li-
vros de André Thevet (1557) e Jean de Léry (1578)17.
Outros autores, brasileiros e estrangeiros, têm estudado
questões inerentes a representações do outro, etnocentris-
mo, cosmovisões, alteridade e identidades. Laura de Mello e
Souza, em Inferno Atlântico, estuda as representações do de-
mônio no Novo Mundo, analisando as relações entre crenças
religiosas e colonialismo, e analisa a compreensão e rejeição
desse outro pelo colonizador português18. Ronaldo Vainfas,
em A Heresia dos Índios, procura mostrar, através da “santi-
dade”, uma forma de idolatria híbrida, que nega ao passo que
incorpora elementos e valores da dominação colonial19.
Para Gerd Bornheim, o conceito de descobrimento ca-
minha pari passu com a descoberta da alteridade, e este é

15. Wilton Carlos Lima da Silva. As Terras Inventadas: Discurso e Natureza em Viajan-
tes no Brasil (Léry, Antonil e Burton). Marília – SP, 01/09/2000. 1v. 410p.. Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho/Assis – Tese de doutorado em História.
16. Therezinha de Barcellos Baumann Zavataro. Thesaurus de Viagem -Theodore
de Bry: Identidade e Alteridade na Iconografia do Século XVI. Rio de Janeiro – RJ,
01/03/2001. 2v. 381p. Universidade Federal Fluminense – Tese de doutorado em
História.
17. Leyla Perrone-Moisés. “Alegres Trópicos: Gonneville,Thevet e Léry” In: Revista
USP, São Paulo (30): 84-93, junho/agosto de 1996.
18. Laura de Mello e Souza. Inferno Atlântico – demonologia e colonização, séculos
XVI-XVIII. São Paulo, cia. das Letras, 1993.
19. Ronaldo Vainfas. A heresia dos Índios – Catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São
Paulo, Cia. das Letras, 1995.

8
Alexandre Belmonte
todo o projeto da modernidade. O desígnio fundamental
de todo descobrimento é sempre o outro. O descobrimento
não é simplesmente um fato isolado no passado: “as águas
do descobrimento ainda hoje não se aquietam, nem mes-
mo na mais estável de todas as areias”20. O descobrimento
da alteridade não pode ser compreendido nem limitar-se
a um acontecimento factual, “bem estabelecido em suas
coordenadas históricas e geográficas”21. Pois o conceito de
descobrimento só existe em função das fronteiras que tei-
ma em devassar, e continua vivendo “da impossibilidade
de emparelhar-se com qualquer tipo de completeza”22. O
descobrimento traz em seu bojo a descoberta de um mun-
do novo. E todo esse mundo tem sido construído a partir
de uma radical ruptura – nós não tivemos uma Idade Mé-
dia... Esta ruptura veio com a tarefa de inventar um homem
e um mundo novos, e isso não ocorreu sem violência. É
assim que o descobrimento cria uma experiência inédita
de universalidade, e dele desponta mesmo uma ideia de
Humanidade. O outro passa a provocar uma nova cultura
da imaginação, e também uma nova atividade científica de
perscrutar as diferenças. Também o corpo humano passa
a exibir todo um modo de ser inédito a partir do encontro
com o selvagem nu. O corpo nu é integrado à Natureza, e
os ameríndios pareciam, aos olhos dos europeus, alheios a
qualquer convenção. Foi preciso inventá-los segundo para-
digmas definidos, e nem sempre o discurso sobre o outro foi
único.
Não pretendemos pensar os confrontos de culturas em ter-
mos de dominação, pois, em que pese a superioridade bélica
dos conquistadores, as relações culturais parecem, em alguns

20. Gerd Bornheim. O conceito de descobrimento. Rio de Janeiro: EdUerj, 1998, p. 11.
21. Idem, Ibidem, pp. 11-12.
22. Idem, Ibidem, p. 12.

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Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
níveis, fugir do alcance do poderio bélico. É ingênuo pensar
que os europeus encontraram culturas “verdes e incipientes”23
e que as tenham gradativamente substituído por um padrão
cristão e civilizado. Há registros de que médicos árabes, na
época das Cruzadas, consideravam os europeus em geral
como um povo “bárbaro e selvagem”, sobretudo pela forma
como lidavam com a higiene e a profilaxia e pelos modos
como cuidavam dos ferimentos e das doenças24.
Visamos a identificar os vínculos entre representação da
alteridade e construção de identidade presentes no relato de
Jean de Léry. Para tal, faremos um levantamento e uma análi-
se dos diferentes tipos de relatos, desde as cartas de Colombo
e Caminha até o relato de Léry, a fim de compreender a es-
pecificidade deste último na história das representações da
alteridade no século XVI. O relato de Léry será, pois, estu-
dado dentro do contexto de representações da alteridade
realizadas no século XVI.
É importante ressaltar que o período histórico ao qual
pertence o relato de Léry é profundamente marcado pelo iní-
cio do surgimento do modo moderno de conhecer, que se
expressa na transformação do estatuto de indivíduo ocorrida
neste período. Para podermos melhor compreender o relato
de Léry, deveremos, portanto, estudar textos referentes à dis-
cussão a respeito do surgimento do indivíduo moderno, da
transformação do homem medieval no homem moderno, do
humanismo renascentista e o que exatamente isto significa

23. Gilberto Freyre caracteriza esse encontro entre uma civilização “ciente de si”
e “tribos indígenas desarticuladas” como o encontro entre uma cultura exuberan-
te de maturidade com “bandos de crianças gigantes; uma cultura verde e incipiente,
ainda na primeira dentição”. Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. São Paulo. Ed.
do Círculo do Livro, 1988, p. 125.
24. Todorov. Op. Cit. A respeito de como os árabes percebiam os europeus na
época das cruzadas, ver A. Maalouf. As Cruzadas vistas pelos árabes. São Paulo, Bra-
siliense, 1988.

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Alexandre Belmonte
em termos de transformação das formas de conhecer e se re-
lacionar com o outro.
Nossa fonte de pesquisa fundamental será sempre a
História escrita por Jean de Léry, mais precisamente suas
duas primeiras edições, a de 1578 e a de 158025. A escolha
por tais edições justifica-se pelo próprio propósito de nosso
trabalho, qual seja, o de identificar, em última instância, o
impacto dos encontros de cultura na forma como Léry pôde
representar a si mesmo e uma cultura que emerge em seu
texto como sua própria, diversa da cultura dos ameríndios que
ele busca descrever e traduzir. Nesse sentido, optamos por
utilizar as primeiras edições, a fim de avaliar como se inicia
a representação do tupinambá em Léry. Achamos oportuno,
entretanto, verificar, nas edições precedentes, as alterações,
correções e adendos que Léry faz ao texto original, o que nos
permite avaliar o impacto de sua História e a interlocução
entre leitores, editores, autor e texto escrito.
Uma de nossas ideias centrais é a de que os encontros e
confrontos entre culturas tornaram possível uma transforma-
ção, sem par na história ocidental, nas formas de conhecer e
se relacionar, colocando a alteridade cultural como uma das
questões constitutivas do homem moderno. Nossa hipótese
principal é que a construção de uma identidade cultural, em
Léry, está vinculada à descoberta e representação da alteridade
do Novo Mundo enquanto fenômeno histórico. As fronteiras
e barreiras entre culturas aparentemente tão distintas parecem
desfazer-se à medida que Léry tem a possibilidade, através da
experiência presencial com o tupinambá, de revisitar questões
fundamentais do homem: nascimento, comunidade, cultura
material, morte, rituais, religião, tabus etc.

25. Ambas as edições fazem parte do Acervo de Obras Raras da Biblioteca Na-
cional do Rio de Janeiro. Trata-se de edições bastante parecidas do ponto de vista
formal (ambas publicadas em octavo), e no que se refere ao conteúdo (a segunda
edição é aumentada e traz algumas correções).

11
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Alguns problemas surgem quando trabalhamos com um
texto escrito no século XVI. No início de seu relato, Léry
não parece falar como um viajante desinteressado – não
parece haver na sua escrita, ao menos inicialmente, o que
Lévi-Strauss chama de “fraîcheur du regard”26. Ao contrário,
ele parece chegar ao Novo Mundo provido de uma maneira
de olhá-lo e compreendê-lo pré-moldada pelos estereótipos
culturais, religiosos e políticos recebidos de sua própria for-
mação cultural. Isso é evidente nos primeiros capítulos de seu
relato, onde há uma retórica de citações de autores latinos, de
passagens da Bíblia, que não somente dão credibilidade ao
que se está lendo, mas indicam também para quem escrevia
Jean de Léry.
Esses argumentos de autoridade vão dando lugar a
comparações entre “Léry e seu mundo” e o “mundo dos tu-
pinambás”. Enquanto Léry vê o Outro munido de um total
estranhamento, ele ainda não deixa esse Outro aparecer em
sua complexidade. No entanto, com o passar do tempo, ele
ganha proximidade com esse Outro, e é capaz de observar e
compreender os aspectos humanos mais profundos dos tupi-
nambás, começando a identificar-se com esse Outro nesses
aspectos mais humanos. É aí que o Outro pode começar a
aparecer, no relato de Léry, em sua complexidade cultural,
humana, histórica. O Outro não é mais simplesmente um es-
tranho total, uma aberração humana presa na primitividade.
A relação de poder inicial cede espaço a uma relação de so-
ciabilidade, de comunidade, pois é evidente que toda relação
de poder acaba, em última instância, pondo em comum o que
se encontrava aparentemente isolado.
Patrick Charaudeau indica-nos duas noções de lingua-
gem aparentemente antinômicas: 1) a linguagem como

26. “Entrétien avec Lévi-Strauss” In: Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil.
Paris, Centre National du Livre, 1994, p. 7.

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Alexandre Belmonte
própria teoria do mundo, como fenômeno que representa,
em si mesmo, a organização do mundo, em que o pesquisa-
dor busca qual mundo já organizado encontra-se subjacente
a essa linguagem; 2) a linguagem como fenômeno que se
dá em circunstâncias específicas que orientam sua constru-
ção; processo em que se busca saber como a significação é
significada27. Para Charaudeau, as duas atitudes diante de
um texto escrito são necessárias para uma análise semiolin-
güística, análise dos signos e da linguagem em si. O fato de
a linguagem esconder uma teoria do mundo se expressa,
justamente, pelas próprias condições em que a linguagem
se estrutura como linguagem; quais sejam, as próprias cir-
cunstâncias históricas em que a linguagem se estrutura
como discurso de uma língua. Ao desenvolvermos um saber
a respeito de como a significação é significada, entramos em
contato, necessariamente, com a compreensão de mundo
embutida no discurso de toda língua.
Nosso trabalho não nos levará, decerto, a fatos históricos,
mas sim a condições de possibilidades destes. Léry aparen-
temente inicia seu relato a partir de um mundo já dado. Ao
longo do texto, entretanto, percebemos que aquele mundo
e aquela experiência cultural que ele descreve são também
construídos através de empenhos de dar significação ao que
parece ser estranho àquele mundo pré-dado. O mundo pron-
to e organizado perde-se junto à fala sobre o tupinambá.
Cria-se outro texto, e a questão já não é mais analisar ‘quem
escreve o quê para quem’, mas sim quais as circunstâncias
comunicacionais e quais a relações de poder e sociabilidade
que permeiam a construção desse jogo de identidades e dife-
renças, de Identidade e Alteridade, do si-mesmo, do outro e
de uma comunidade, de um coletivo imaginado, experimen-
tado, sentido e descrito por Jean de Léry.

27. Patrick Charaudeau. Langage et discours. Paris, Hachette, 1983 e Idem,


Grammaire du sens et de l’expression. Paris, Hachette, 1992.

13
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
O texto de Léry dialoga com outros textos contemporâ-
neos, e, através da leitura dessas obras editadas ao longo do
século XVI, discutiremos como o encontro com o ameríndio
surtiu efeito na transformação dos paradigmas comunicacio-
nais e dos estereótipos culturais, políticos e religiosos que
Léry trazia ao Novo Mundo. Discutiremos, assim, o impacto
do Novo Mundo e de suas formas culturais na maneira de
escrever História no século XVI, analisando a construção, por
Léry, de uma identidade cultural através do confronto com a
alteridade.
Analisaremos o impacto das descobertas na consciência
europeia do século XVI, buscando encontrar outros senti-
dos para o texto de Léry em sua articulação com a rede de
discursos sobre religião e de narrativas sobre a alteridade
cultural e humana encontrada no Novo Mundo – discursos
produzidos e difundidos pelo século XVI europeu, sobretu-
do em França, Itália, Suíça, Espanha e Bélgica, através do
trabalho editorial, político, por vezes religioso, de editores
e livreiros das mais variadas origens. Discutiremos também
a articulação entre o surgimento da imprensa, a difusão do
livro, as práticas e modalidades de leitura e a difusão do co-
nhecimento sobre o Novo Mundo na Europa, bem como a
relação entre protestantismo e alfabetização, a alfabetização
no século XVI em geral, a função do autor no século XVI
etc. Através da iconografia sobre o Novo Mundo em geral, e
sobre o selvagem em particular, buscamos compreender de
que forma a conquista do Novo Mundo passa, aos poucos,
a figurar no imaginário europeu do século XVI, buscando
saber quais são as práticas e representações que balizam essa
nova relação entre culturas diversas.
Além disso, procuraremos mostrar a especificidade do
relato de Léry em relação a outros relatos de viajantes escri-
tos e editados ao longo do século XVI, analisando a relação
entre texto escrito e mundo, ou seja, de que forma o texto
escrito por Léry pode dar conta do mundo que ele descreve.

14
Alexandre Belmonte
Analisaremos a ideia de Paraíso terrestre e os paradigmas in-
terpretativos utilizados por Léry na compreensão do mundo
tupinambá: a importância da testemunha presencial em de-
trimento do conhecimento indireto, o referencial religioso, o
referencial das diferenças etc.
Apesar de ser constantemente citado como um exemplo
do deslumbre europeu em terras virgens, o relato de Léry não
é um relato inaugural. O Brasil que ele apresenta já é, de
certa forma, historicizado. Discutiremos a ideia de viagem no
contexto das descobertas levadas a cabo no decorrer do sécu-
lo XVI, assim como o tema do Paraíso terrestre, e a análise de
alguns aspectos discursivos que, na obra de Léry, permitem
acessar a construção do outro como objeto de investigação e
a construção do ‘eu’ como sujeito cognoscente e testemunha
ocular.
Por fim, analisaremos o impacto do Novo Mundo na ideia
de história de Léry, considerando a historicidade das formas
de etnocentrismo possibilitadas pelos encontros e confrontos
entre culturas. Buscamos analisar a forma de organização do
conhecimento utilizada por Jean de Léry. Que sabia Léry do
Novo Mundo antes de sua viagem? Como a experiência pre-
sencial de Léry no Novo Mundo transforma o conhecimento
prévio que ele tinha sobre essas terras? Buscamos mapear as
possíveis leituras de Léry dentro de um contexto de história
providencialista, de influência protestante, que se esboça no
decorrer do século XVI.
Analisaremos, ainda, o confronto de Léry com o caniba-
lismo em dois momentos: no sítio a Sancerre e no Brasil, e
o encontro possível entre as duas histórias que Léry escreve,
centrado na propagação do protestantismo na França. Abor-
daremos também a questão da escrita da História para os
protestantes franceses no século XVI, a finalidade da história
de Léry e a ideia de ‘histoire véritable’ e ‘mémorable’, história
verdadeira e memorável.

15
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Nosso trabalho busca contribuir com a historiografia sobre
as representações da alteridade no século XVI e os processos
de formação de identidades culturais, no sentido de eviden-
ciar as transformações na ideia de cultura possibilitadas pela
experiência presencial com o outro. Através da comparação
de seu texto com outros textos contemporâneos, o relato de
Léry adquire mais sentido religioso, antropológico e históri-
co. Podemos perceber não somente o impacto das culturas
europeias no Novo Mundo – tema já bastante explorado pela
historiografia tradicional – mas, sobretudo, o impacto das
culturas ameríndias na Europa, através das discussões sobre
religiosidade ameríndia, antropofagia, costumes dos nativos,
superioridade e inferioridade cultural etc., típicas das rela-
ções de viagens quinhentistas.

16
Alexandre Belmonte
– As cidades também acreditam ser obra da mente
ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam
para sustentar as suas muralhas. De uma cidade,
não aproveitamos as suas sete ou setenta e sete
maravilhas, mas a resposta que dá às nossas
perguntas.
– Ou as perguntas que nos colocamos para nos
obrigar a responder, como Tebas na boca da
Esfinge.

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.

18
Alexandre Belmonte
Capítulo 1
A circularidade das ideias:
o impacto do Novo Mundo
na consciência europeia do século XVI
Imprensa, leitores e leituras no século XVI:
possibilidades de recepção

É comum a referência às consequências do advento da im-


prensa mecânica em meados do século XV como uma
verdadeira revolução cultural, que ocasionaria no século se-
guinte uma crescente popularização do livro impresso em
muitos países europeus, transformando a relação dos homens
com o texto escrito, com a figura do auctor e estimulando
outros processos cognitivos, mediados pela palavra escrita.
Em 1470, é impresso o primeiro livro na França, vinte anos
após Gutenberg ter dado a Bíblia à estampa na Alemanha:
trata-se de uma edição das Espitolarum liber de Gasparino de
Bérgamo, um tratado da arte epistolar, iniciativa de dois pro-
fessores que tiveram a ideia de possibilitar aos alunos textos
corretos e relativamente baratos. Às cartas de Gasparino de
Bérgamo, segue-se a publicação de tratados de ortografia e
retórica latinas, e de clássicos gregos e romanos, em especial
Cícero. É ainda um trabalho bastante rudimentar, com tira-
gens pequenas (cerca de 200 exemplares).
Alguns anos depois, outras oficinas são abertas em Paris e
por toda a França, e começa um trabalho vigoroso, em terri-
tório francês, de publicação de obras clássicas latinas e gregas,
romances de cavalaria, teatro, obras técnicas (dicionários, gra-
máticas, tratados de medicina etc.). Até 1500, estimam-se em
4.000 as edições francesas, testemunhas tanto de uma alfabe-
tização crescente, ainda que bastante restrita a certos setores
da população, como também do uso do francês como língua
escrita, em detrimento do latim.
Roudaut, ao estudar essa dita revolução cultural, sustenta
que a imprensa somente proporcionou o estímulo material que

20
Alexandre Belmonte
até então impedia o desenvolvimento rápido de um processo
de trocas culturais que já vinha sendo estruturalmente posto
em prática há muitos séculos1. De fato, durante grande par-
te da Idade Média, o livro já se impunha como regulador de
certa ideia de civilização. Muitas das atividades monasteriais,
por exemplo, eram concentradas ao redor do livro: além do
trabalho do copista, havia o trabalho de preparar o couro do
carneiro para a confecção do pergaminho. O pergaminho me-
dieval era caro, e muitas vezes reaproveitado pela raspagem ou
lavagem do couro (palimpsesto). Havia também a pintura do
pergaminho, as iluminuras, a passagem de verniz, a costura e
colagem etc. Além dos aspectos materiais, várias outras ativida-
des concentravam-se ao redor do livro: alfabetização, leitura,
orações, prática de cantochões e hinários etc. A letra carolina
já havia revolucionado a escrita, facilitando a leitura e a cópia2.
O códice costurado substituía o antigo rolo de pele de carneiro,
facilitando o manuseio, o transporte, e permitindo já na Idade
Média a prática da leitura individual e pessoal.
Claro que a imprensa mecânica desmonta muita dessa
organização ao redor do livro. É importante ressaltar, nesse
sentido, alguns aspectos que diferenciam a relação das pesso-
as com o livro depois do advento da imprensa.
Em primeiro lugar, é ao longo de todo o século XVI que
o livro adquire uma forma material bastante diferenciada
do manuscrito. A variedade de formatos permite leituras di-
ferenciadas e pessoais. Manuzio passa a publicar in-octavo,

1. François Roudaut. Le livre au XVIe siècle: éléments de bibliologie matérielle et d’his-


toire. Paris, H. Champion, 2003.
2. Sobre o impacto da letra carolina e sua relação com outros tipos de letras,
consultar Giorgio Cencetti, Lineamenti di storia della scrittura latina. Dalle lezioni di
Paleografia (editado por Gemma Guerrini Ferri). Bolonna, Patron, 1997; Bernard
Bischoff. Paleografia latina. Antichità e Medioevo, (org. por Gilda P. Mantovani e
Stefano Zamponi) Padova, Antenore, 1992; Armando Petrucci, Breve storia della
scrittura latina, Roma, Jouvence, 1992; Leonard Boyle, Paleografia latina medievale.
Introduzione bibliografica. Roma, Quasar, 1999.

21
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
formato de livro portátil, permitindo mesmo uma ideia, até
então impossível, de “biblioteca sem muros”. O texto, como
demonstrou Chartier3, ganhava mais objetividade: a página
do título e do autor ganhava destaque, surgia a impressão de
gravuras, fotos do autor, marcas de impressores e ilustrações
etc.

Fig. 1. – Fac-símile da 1ª. edição da Histoire de Léry.


Fundação Biblioteca Nacional

3. Roger Chartier. L’Ordre des livres: Lecteurs, auteurs, bibliothèques en Europe entre
XIV e et XVIII e siècle. Aix-en-Provence, Alinéa, 1992.

22
Alexandre Belmonte
François Roudaut também chama atenção para mudanças
significativas nos aspectos materiais do livro. O alinhamento
da impressão, a supressão dos longos comentários, a cons-
trução geométrica das letras no início do século XVI, o uso
de citações – todo esse aperfeiçoamento visual certamente
ocasionou maior legibilidade e praticidade na relação com o
escrito. No lugar de longas glosas, surgem as citações, verda-
deiros argumentos de autenticidade e persuasão, sobretudo
em meios ainda pouco ou parcialmente letrados. Em Léry,
as citações surgem como manchettes às margens do texto, as-
sim como os destaques a algum assunto que ele ou seu editor
queiram evidenciar.
Através da análise das páginas de títulos de obras quinhentis-
tas, pode-se perceber que a função do autor já é determinante
no início do século XVI. O autor era o que detinha autoria e
auctoritas sobre o assunto. O título da obra é apresentado em
letras grandes, e o nome do autor vem destacado, geralmente
em itálico ou em caixa alta. As ilustrações ao longo do texto
fazem parte dos argumentos de persuasão e autoridade tão co-
muns durante todo o período quinhentista, são como provas
da autópsia realizada pelo autor, conforme Hartog4.
A circulação dos livros é outro aspecto importante no es-
tudo da recepção, não só dos relatos de viagens, mas de obras
em geral, publicadas pelo século XVI europeu. Roudaut afir-
ma que a imprensa transformou-se rapidamente em indústria,
e as escolhas editoriais passaram a ser ditadas por imperativos
econômicos. O temário das obras publicadas ao longo do sé-
culo XVI é um ponto importante para se compreender a ideia
de Renascimento. Através do retorno a autores gregos e lati-
nos, certo cânone medieval vai sendo aos poucos ‘soterrado’,
e com ele desaparece todo um painel cultural que imperava
nos mosteiros e cidades de grande parte da Europa. Novas

4. François Hartog. Op. Cit. pp. 271 e seguintes.

23
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
ideias e discussões passam a vigorar, novos temas são discu-
tidos e impressos em livros pequenos e acessíveis. Um tipo
de pensamento, tipicamente medieval, vai sendo esquecido,
deixa de circular pelas cidades.
O livro era emprestado, circulava, fazia parte de coleções
pessoais, como a de Pontus de Tyard, estudada por Roudaut,
ou a modesta coleção de livros do moleiro Menocchio, apre-
sentada por Ginzburg5, para quem havia uma “larga rede de
circulação [de livros] que envolve não só padres (como seria
previsível), mas até mesmo mulheres”6. A leitura podia ser
cada vez mais silenciosa, cada vez mais pessoal, ainda que
as taxas de alfabetização fossem baixas7. Estima-se que, nas
cidades francesas, cerca de 20% da população masculina era
alfabetizada. Nos campos, a taxa descia para 3 ou 4%. Em rela-
ção à alfabetização das mulheres, a escritora e poetisa francesa
Louïze Labé dizia, em meados do século XVI, que “le temps
[est] venue (...) que les severes loix des hommes n’empeschent
plus les femmes de s’appliquer aux sciences et disciplines”8. A
própria Labé é um exemplo de mulher culta no contexto do
Renascimento: filha de um rico artesão, estuda latim, grego,

5. Carlo Ginzbrug. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro persegui-


do pela inquisição. São Paulo, Cia. das Letras, 1987, 3ª. Edição de 2003.
6. Idem, Ibidem, p. 77.
7. Sobre a alfabetização no século XVI, consultar François Furet e Jacques Ozouf,
Lire et Écrire, l’alphabétisation des Français, de Calvin à Jules Ferry, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1977 ; “Alphabétisation et définition du petit peuple à la fin du Moyen
Age. Le cas des libraires parisiens” In P. Boglioni, R. Delort e C. Gauvard (org.), Le
petit peuple dans l’Occident médiéval. Terminologies, perceptions, réalités. Paris, Publi-
cations de la Sorbonne, 2002, p. 647-658 ; De l’alphabétisation aux circuits du livre
en Espagne (XVIe-XIXe s.) ouvrage collectif, Paris, C.N.R.S., 1987 e Natalie Zemon
Davis. “L’Imprimée et le Peuple” in Les Cultures du Peuple. Rituels, Savoirs et Résis-
tances au 16e Siècle. Paris, Aubier (col. Historique), 1979.
8. Apud Natalie Zemon Davis. “L’Imprimée et le Peuple” in Les Cultures du Peuple.
Rituels, Savoirs et Résistances au 16e Siècle. Paris, Aubier (col. Historique), 1979, p.
308. [Trad. nossa: “Chegou o tempo em que as severas leis dos homens não impe-
dem mais que as mulheres se apliquem às ciências e disciplinas.”]

24
Alexandre Belmonte
italiano, música etc., e publica em 1555, após privilégio real.
Outras femmes de lettres francesas, no contexto do Renasci-
mento, são Marguerite de Navarre, Anne d’Urfé, Pernette du
Guillet, Helisenne de Crenne e Marie de Gournay. Muitas
escreviam diretamente para outras mulheres, como o tratado
Instruction des jeunes pucelles de Gabrielle de Bourbon.
Roudaut estima em 200 milhões o número de exempla-
res de livros publicados ao longo do século XVI9 – de 150
a 200 mil edições – número surpreendente dada a limitada
capacidade de leitura. Em meios ainda bastante iletrados,
a leitura em voz alta continuava a ser uma prática comum.
Na verdade, muitas vezes procedia-se a tradução do texto em
vernáculo para dialetos em uso pelas populações. Conforme
alerta Zemon Davis, essas traduções muitas vezes eram acom-
panhadas de interpretações e comentários sobre as obras. É
difícil, portanto, precisar o impacto do livro, e em especial da
relação de viagem, em populações que liam e participavam
da leitura de formas tão diversas. O impacto da leitura em
voz alta em comunidades analfabetas é imprevisível, uma vez
que a cultura popular se apropria de textos de formas não
previstas na edição do impresso.
Em 1572, os impressores de Paris tentavam convencer
o Parlamento de que deveriam ser mais bem tratados pelos
patrões:

A imprensa é uma invenção tão admirável


e sua dignidade tão excelente e honrosa, e
para todos os franceses proveitosa: mesmo
em Paris ou Lyon, uma cidade fornece livros
em todas as línguas à toda a cristandade.10.

9. François Roudaut, Op. Cit.


10. Natalie Zemon-Davis, Op. Cit., p. 308. [Trad. Nossa do original: “L’imprimerie
est une invention si admirable et sa dignité si excellente et honorable, et par des-
sus tous autres François prouffitable: mesmement à Paris et Lyon, dont une ville

25
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Estes dados refletem alguns modos pelos quais a vida
literária foi afetada, no decorrer do século XVI, pela popula-
rização crescente da imprensa, que, segundo Zemon Davis,
oferecia às pessoas a possibilidade de novas escolhas, ao passo
que fornecia também novos meios de controlá-las.
O campo gozava de uma situação particular. Muitos dos
que aprendiam a ler migravam para as cidades. Foi somente
a partir de 1530 que o livro provavelmente passou a circular
mais pelos campos, pelo menos na França, com a impres-
são da Bíblia em vernáculo. A primeira edição da Bíblia em
francês data de 1530, da editora de Martin Lempereur, na
Antuérpia. Nela não consta o nome de seu tradutor, Jacques
Lefèvre d’Etaples, já que traduzir a Bíblia para línguas verná-
culas era ainda uma atitude perigosa. Durante algum tempo,
os doutores em teologia, sustentados pelo direito secular, de-
fenderam seu monopólio de exegese bíblica, recusando aos
ignorantes o direito de ler a Bíblia. De fato, os católicos so-
mente podiam ter acesso ao evangelho através da tradução e
interpretação do clérigo, durante as missas. O protestantismo,
entretanto, foi uma das vias possíveis para a chegada das letras
ao campo, e em língua vernácula, embora no século XVI sua
influência não tenha provavelmente sido muito ampla.
Lutero defendia a necessidade de uma leitura individual
da Bíblia, e é evidente que isso causou impacto nas taxas de
alfabetização em toda a Europa protestante. Em Genebra,
Calvino funda um Colégio e uma Academia, em 1559. O pri-
meiro reitor da Academia será Théodore de Bèze, importante
teólogo protestante, e a Reforma propaga, por toda a cida-
de, a instrução elementar. A circulação da Bíblia era, tanto
para Lutero quanto para Calvino, instrumento indispensável
para o contato direto entre homem e Deus. Não é à toa que,
após o Concílio de Trento (1545-1563), uma das medidas da

fournit toute la Chrestienté de livres en toutes langues”]

26
Alexandre Belmonte
Contrarreforma foi a divulgação da música e das artes em ge-
ral (algumas, como a dança, repudiadas pelos protestantes).
Através da música, pretendia-se promover uma exaltação da
fé dos católicos, pela magnificência das notas e dos cânticos
nas capelas e igrejas.
O editor calvinista Jean Crespin buscava louvar, assim
como Léry, a escrita como um dom. Refugiado em Genebra,
funda sua casa editorial em 1550. Sua Histoire des Martyrs
foi reeditada algumas vezes ao longo do século XVI, trazendo
sempre na página de rosto a marca de sua tipografia e dois
versículos do Apocalipse. Pela natureza da obra – um com-
pêndio de todos os mártires da religião reformada – não é
de se esperar que Crespin a tivesse publicado em octavo. De
fato, a 3ª edição, de 1597, é um volume grande (35 cm), di-
vidido em 12 livros. Na apresentação da obra, há aspectos
interessantes no que diz respeito aos usos do latim e do fran-
cês no século XVI. Após a folha de rosto, há uma dedicatória
do autor, em francês, intitulada À l’Eglise de nostre Seigneur,
à Igreja de Nosso Senhor. É uma mensagem aos calvinistas, e
era natural que viesse escrita em francês. Na página seguinte,
há outra dedicatória, desta vez escrita primeiramente em la-
tim e em seguida traduzida para o francês: Ad Ecclesiæ Christi
carnifices, seguida da tradução Aux persecuteurs de l’Eglise
de Iesu Christ, aos perseguidores da Igreja de Jesus Cristo.
É uma clara mensagem ao clero católico, e também mais
um indício do desuso do latim em detrimento do francês. O
ódio ao clero católico é recorrente na obra: no primeiro livro,
ele refere-se ao papa como l’Antechrist de Rome11. A questão
da tradução é também importante. Ao apresentar ao leitor a
obra, Crespin o faz em latim com tradução paralela em fran-
cês, argumentando que

11. Jean Crespin. Histoire des martyrs, persecutez et mis à mort pour la vérité de
l’Evangile depuis le temps des Apostres iusques à l’an 1597. Genebra, Jean Crespin,
1597, p. 21.

27
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Porque muitos que não sabem a língua latina
desejavam entender o sentido dos versos
latinos escritos no começo desta história
dos mártires, S.G.S. pôs-se a traduzi-los em
francês: e tendo no-lo comunicado, quisemos
levá-lo ao leitor, para que nada doravante
lhes impeça de entender todo o conteúdo
deste livro.12.

Jean-François Gilmont buscou analisar tanto o impacto do


livro na difusão da Reforma quanto o impacto da Reforma no
desenvolvimento da imprensa europeia. De acordo com ele, a
situação do livro acompanha o desenvolvimento da Reforma
em países de mentalidades diversas. O estudo da recepção do
livro e das práticas de leitura busca determinar de que formas
o livro impresso pôde agir em uma sociedade majoritaria-
mente analfabeta. Gilmont pesquisou qual era o público-alvo
dos editores protestantes, assim como as respostas católicas
aos escritos protestantes, testemunhas da influência cada vez
mais crescente destes. A análise das práticas de leitura cons-
titui o caminho mais fecundo, e também o mais difícil, para
se mostrar que a influência do livro somente pôde se exercer
através de leituras públicas e familiares em voz alta13. É assim
que o século XVI apresenta uma nova relação entre o autor e
um público anônimo.
O relato de Jean de Léry sobre o Brasil, como sabemos,
teve sete edições em francês entre 1578 e 1677, além de al-
gumas edições em latim. Se considerarmos a estimativa de

12. Idem, Ibidem. [Trad. Nossa do original: «Pour ce que plusieurs qui ne savent la
langue Latine, ont desiré entendre le sens des vers Latins mis au commencement
de ce recueil des Martyrs, S.G.S a esté esmeu de les traduire en vers François: et
les nous ayant communiquez, nous en avons voulu faire part au Lecteur, afin que
desormais rien ne les retarde d’entendre tout le contenu de ce Livre”]
13. Jean-François Gilmont. La Réforme et le livre: l’Europe de l’imprimé (1517-v. 1570).
Paris, Les Editions du Cerf, 1990.

28
Alexandre Belmonte
Roudaut, de cerca de 1.000 exemplares por edição, teremos
uma média de 7.000 exemplares da obra de Léry em francês,
em circulação durante 100 anos. É um número significati-
vo, tanto pela já comentada capacidade de leitura, bastante
limitada na época, quanto pelo número de habitantes em
Genebra e Paris. Estima-se que a Genebra de fins do século
XVI, por exemplo, contava com uma população de apenas
13 ou 14 mil habitantes14. Certo que Paris era muito mais
populosa, mas proporcionalmente contava com um número
muito maior de analfabetos.
Na 2ª. edição da Histoire de Léry, o editor Antoine
Chuppin dirige-se aos leitores, explicando o objetivo desta
nova impressão da História da viagem: o autor a havia au-
mentado, corrigido, “enrichie de choses bien remarquables et
dignes de memoire”15, adornado com figuras. Na 5ª edição da
Histoire, Léry indica que a edição precedente, de 1599, fora
muito bem recebida e encontrava-se esgotada, daí a necessi-
dade de uma nova edição16. Novamente surge a recorrência
às coisas “notáveis” e “dignas de memória”, e o recurso às ilus-
trações como provas da autópsia. Para Hartog, a animação das
figuras é parte da retórica da alteridade que “faz o destinatário
crer que a tradução é fiel”17.
Se, por um lado, a história da recepção dos relatos e narra-
tivas de viagens no século XVI deixam ainda muitas lacunas,
por outro lado, a iconografia referente ao Novo Mundo é, de

14. Louis Binz. Brève histoire de Genève. Genebra, Chancellerie d’Etat, 2000.
15. Léry, Op. Cit. p. 46. [Trad. nossa: “enriquecida de coisas mui notáveis e dignas
de memória”.]
16. “L’imprimeur m’ayant fuit entendre que la 4e. et dernière Edition de ceste
Histoire de l’Amerique avoit esté si bien recevuë, que n’ayant plus d’exemplaires
il decidoit la r’imprimer: cela m’ayant occasioné de la revoir et corriger par tout
où il failloit (…)”. Jean de Léry. Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, dit Amé-
rique… 5a. edição, Genebra, Jean Vignon, 1611, “avertissement du lecteur”.
17. François Hartog. Op. Cit. p. 273.

29
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
fato, outra via para se acessar o impacto das culturas amerín-
dias nas culturas europeias. Através das imagens, o europeu
representa não somente o outro, mas, fundamentalmente, a
si mesmo.

30
Alexandre Belmonte
Os selvagens: espelho do europeu

E m 1504, começou a circular, sobretudo na Itália, França


e Alemanha, uma carta traduzida em latim do origi-
nal italiano, intitulada Mundus Novus. A carta fora escrita
a Lorenzo de’ Medici por Vespucci, e era a relação de sua
viagem, com descrições das terras descobertas, nativos, geo-
grafia, clima, animais exóticos etc. Vespucci dizia tratar-se da
descoberta de um “mundo novo”, talvez aquela terra incóg-
nita que os antigos já acreditavam existir, e em torno da qual
várias lendas haviam sido criadas: terra sem males, terra onde
não se morria, Paraíso terrestre.
A carta teve inúmeras edições entre 1504 e 1516, em latim,
alemão, holandês e francês. Além disso, o conteúdo total ou
parcial da carta consta de inúmeras obras editadas ao longo
do século XVI, o que parece indicar uma circulação conside-
rável pela Europa continental.
De que forma a descoberta e subsequente conquista do
Novo Mundo passam, aos poucos, a figurar no imaginário
europeu do século XVI? Quais são as representações e as prá-
ticas que balizam essa nova relação entre culturas diversas?
Nesta carta de Vespucci a Lorenzo de’ Medici, a questão
da nudez dos indígenas é abordada como uma das visões do
Paraíso. Os nativos encontrados são gente mansa e tratável.
Todos andam nus, sem cobrir nenhuma parte do corpo, e
assim como saem do ventre materno, vão até a morte. São
selvagens.
O selvagem é, sem dúvida, uma peça fundamental nes-
se novo estatuto de indivíduo que se esboça publicamente
em vários contextos sociais europeus. Em Rouen, alguns

31
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
indígenas do Brasil foram apresentados publicamente, por
ocasião da visita dos reis à cidade, em 1550. Na Espanha,
nos Alpes italianos e por vários centros urbanos europeus,
começam a aparecer com mais frequência representações
dos selvagens, em que a questão do embate entre civilização
e barbárie parece ser o pano de fundo das discussões, assim
como a questão de saber-se se o homem possuía de fato uma
natureza.
A iconografia legada pelo Renascimento constitui-se em
um dos espólios privilegiados para se avaliar o impacto dos
encontros e confrontos entre europeus e ameríndios. Ela nos
dá uma ideia de como os nativos foram vistos e representa-
dos: é uma iconografia essencialmente ocidental, europeia se
pensarmos na auctoritas, mas híbrida e mestiça pela própria
possibilidade de representar.
No primeiro encontro entre Vespucci e uma indígena, as
tensões ficam por conta dos elementos simbólicos presentes
na gravura de Theodor Galle, sobre o desenho de Jan van der
Straet. Em primeiro lugar, Vespucci encontra-se vestido dos
pés à cabeça, contrastando com a indígena que, estendida em
uma rede, estaria nua, não fosse um cocar semelhante a um
chapéu e uns trapos ou penas à guisa de saia. A vestimenta,
conforme observou Todorov, é um símbolo de cultura, e a
sua falta é reveladora da falta de propriedades culturais do
indígena18.
A questão do corpo é um dos aspectos cruciais para se
compreender o impacto das culturas ameríndias nas culturas
europeias. Chegava-se sempre vestido à América, e um dos
escambos mais frequentes parecia ser, ao menos do ponto de
vista dos cronistas, o de roupas. Por que dar roupa ao indígena?
Por que vesti-lo, já que não somente os tecidos eram caros, mas

18. Tzvetan Todorov. Op. Cit. pp. 47-50.

32
Alexandre Belmonte
também os pigmentos, a tecelagem e a mão-de-obra especiali-
zada? A nudez parecia funcionar como o elemento selvagem
por excelência, prova de que os ameríndios desconheciam
o castigo perpetrado por Deus a Adão e Eva, desconheciam
os limites a que estava habituado o homem europeu: limites
fundados a partir de uma complexa relação entre religiões e se-
xualidade. A nudez também expunha a vergonha do europeu,
a dimensão não somente transcendente, mas sexual e finita,
do seu próprio corpo. É uma figura de retórica constante nas
crônicas e relatos a alusão à falta de vergonha do indígena em
mostrar o que deveria estar oculto.

Fig. 2 – Amerigo Vespucci et l’Amérique. Desenho de Jan Van der Straet


gravado por Théodore Galle, 1589.

A índia está desarmada, diferente de Vespucci, que tem


uma espada embainhada. Ela é dócil, embora haja ao fundo
outros nativos que provavelmente deleitam-se em carne huma-
na. A identidade cultural de Vespucci é bem sinalizada pela
vestimenta, pelas armas, pela cruz. Nessa pintura, não há um

33
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
plano mais importante e detalhes sem importância em segun-
do plano, apesar de aparentemente sobressaírem Vespucci e
a indígena. Já neste primeiro plano estão presentes de forma
sintética todos os elementos retratados: não somente os dois
personagens do encontro, mas também os navios, o astrolá-
bio, a cruz e a espada, os animais exóticos, as grossas raízes
das árvores e o verde de uma natureza que jamais deixou de
surpreender o homem.
Conforme Roger Bartra, parece uma ironia da história
que tenham sido os índios maia de Maní que, no século XVI,
esculpiram dois homens selvagens peludos, armados com
bastões, na fachada barroca da casa de Montejo, em Mérida,
Yucatán19. Assim como os selvagens representados no Colé-
gio de San Gregorio, em Valladolid, estes selvagens não são
os ameríndios encontrados nas descobertas. São uma espé-
cie de antípoda interno do europeu civilizado, um elemento
grotesco, mas ao mesmo tempo inofensivo, que figura no ima-
ginário popular medieval e, de acordo com Bartra, mesmo
antes do medievo. Essa imagem do selvagem peludo, o agrios
grego, associado ao campo, à floresta, perdurou durante todo
o período medieval, assumindo diferentes formas de acordo
com os contextos culturais em que era percebido, e chegou à
Renascença e ao Novo Mundo, de maneiras diversas.
Bernal Díaz del Castillo nos informa sobre a grande fes-
ta na Tenochtitlán conquistada, em 1538, celebrando a paz
entre as cortes francesa e espanhola. Tratava-se de uma festa
castelhana no Novo Mundo, com direito a corrida de touros
e bosques artificiais. Mais que castelhana ou espanhola, era
uma festa que concentrava um espírito ocidental da antiga
Roma. Luis de León, um romano que diziam pertencer à
linhagem dos patrícios, idealizou um estilo de festa seme-
lhante às triunfais entradas de cônsules e capitães, após as
batalhas, na antiga Roma.

19. Roger Bartra. El salvage en el espejo. Cidade do México, Ediciones Era, 1998, p. 9.

34
Alexandre Belmonte
A praça maior do México amanheceu como um bosque,
cheia de árvores de todos os tipos, “tan al natural como se
allí hubieran nacido”20 e muitos animais, “venados, y co-
nejos, y liebres, y zorros, (...) y dos leoncillos, y cuatro tigres
pequeños”21. Em meio a esse bosque, dois esquadrões de sel-
vagens pelejam: de um lado, selvagens munidos de bastões;
de outro, selvagens com arcos e flechas: “los unos salvages con
los otros revuelven una cuestión soberbia entre ellos, que fue
harto de ver cómo batallavan a pie”22, nos conta Bernal Díaz.
O que representavam esses dois grupos de selvagens? Por
que, nessa encenação, recorreu-se a dois grupos distintos?
Para Bartra, os selvagens com bastões são os mesmos que os
índios maias esculpiram na fachada da Casa de Montejo. De
fato, é possível que se trate dos mesmos selvagens peludos
representados no pórtico do Colégio de San Gregorio, em
Valladolid, e na fachada da Catedral de Ávila. São os selva-
gens internos que acompanham o colonizador até o Novo
Mundo, e que figuram a seu lado, embora em posição infe-
rior, na fachada da dita Casa de Montejo.
Sua encenação e representação no México é bastante
simbólica. Seria caso de se pensar que, encontrando o nativo
ameríndio e chamando-o selvagem, o europeu tenha reen-
contrado sua antiga sombra, seu antigo antípoda interno?
Se pensarmos nos embates e discussões sobre o bárbaro e o
selvagem, sobre civilização, governo e canibalismo, que atra-
vessaram o século XVI europeu, a resposta é provavelmente
afirmativa. De acordo com Bartra, esse selvagem é o próprio

20. Bernal Díaz del Castillo. Historia de la Conquista de Nueva España. México,
Porrúa, 1976, p. 545. [Trad. nossa: “tão ao natural como se alí tivessem nascido”.]
21. Idem, Ibidem, p. 545. [Trad. nossa: “veados, coelhos, lebres, raposas (...) e dois
leõezinhos e quatro pequenos tigres”.]
22. Idem, Ibidem, p. 545. [Trad. nossa: “os selvagens, uns contra os outros, revolvem
uma questão soberba entre si, que me cansei de ver como batalhavam a pé”.]

35
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
homem europeu, e a noção de selvageria foi aplicada a povos
não europeus “como una transposición de un mito perfecta-
mente estructurado cuya naturaleza sólo se puede entender
como parte de la evolución de la cultura occidental”23.
Os conquistadores trazem seu próprio selvagem com eles,
de acordo com Bartra,

para evitar que seu ego se dissolvesse na


extraordinária alteridade que estavam
descobrindo. Era como se os europeus
tivessem que tocar as cordas de sua identidade
ao recordar que o Outro – seu alter ego –
sempre havia existido, e com isso evitar cair
no rodamoinho da autêntica alteridade que
os rodeava24.

Desta forma, a encenação de uma selvageria artificial, em


um bosque artificial, com animais capturados, toda essa re-
presentação protegia o europeu não somente da alteridade,
de uma selvageria real, mas também de sua própria selvage-
ria e bestialidade, preservando-lhes a identidade de homens
civilizados.
De fato, a não compreensão do homem selvagem europeu
pode, conforme salienta Bartra, obscurecer nossa visão tanto
sobre a conquista como sobre a imagética ocidental acerca
dos habitantes do Novo Mundo. É evidente que tanto os in-
dígenas quanto os europeus são selvagens em igual medida,

23. Roger Bartra. Op. Cit. p. 13. [Trad. nossa: “como uma transposição de um mito
perfeitamente estruturado cuja natureza só se pode entender como parte da
evolução da cultura ocidental”.]
24. Idem. Ibidem, p. 13. [Trad. Nossa do original: “para evitar que su ego se disol-
viera en la extraordinaria otredad que estaban descubriendo. Parecía como si los
europeos tuviesen que templar las cuerdas de su identidad al recordar que el
Otro – su alter ego – siempre ha existido, y con ello evitar caer en el remolino de
la auténtica otredad que los rodeaba”.]

36
Alexandre Belmonte
ainda que de formas diferentes. Tanto uns quanto outros so-
freram o impacto do confronto de culturas. A cultura aparece,
em vários relatos de viajantes europeus, como uma forma de
salientar a selvageria do Outro, o selvagem que todo outro
sempre representa. A própria tradição antiga e medieval do
ocidente tratou o desconhecido de si-mesmo como o outro
selvagem, seja na ideia dos agrioi da Grécia, dos centauros
e sátiros, ou dos anacoretas peludos do cristianismo copta,
seja na imagem dos homines sylvestres dos Alpes, das bruxas
e alquimistas medievais, ou na figura do Louco, o primeiro
dos arcanos maiores do Tarô – em todos esses percursos, o
homem sempre lidou com sua própria natureza, sua própria
vitalidade, o embate entre apolíneo e dionisíaco, entre pul-
sões construtivas e destrutivas.

Fig. 3 – O Louco, um
dos arcanos maiores
do Tarô, em uma de
suas representações
renascentistas25.

25. http://www.tarotcours.com/hist_tar.php.acesso em agosto de 2013.

37
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Também na iconografia renascentista sobre os nativos do
Novo Mundo, era sempre, em última instância, o homem
metafísico que vinha representado, embora o foco de aten-
ção seja no indígena e nas suas práticas. Há desdobramentos
bastante complexos da compreensão e utilização, por deter-
minadas culturas, dessa imagética sobre o outro em geral, e
sobre o selvagem em particular, ao longo dos tempos. Não
há meios de se saber o exato impacto da difusão de imagens
sobre o Novo Mundo na cosmovisão popular europeia no
século XVI. É de se supor, entretanto, que o embate entre
cultura / civilização, de um lado, e selvageria, do outro, tenha
assumido dimensões inéditas: o europeu pretendeu, por fim,
exilar seu próprio selvagem de si mesmo, exorcizá-lo, sobre-
tudo entre os séculos XVII-XIX, adentrando no século XX26.
O selvagem ficou sendo somente o outro longínquo, cada
vez mais reconstruído e assimilado como um outro externo.
Os males são exorcizados para o Novo Mundo, e forja-se, na
Europa, a própria ideia de Paraíso terrestre que durante sé-
culos fora buscado, e que, em fins do século XV e início do
XVI, chegou a ser identificado com as terras então recém-des-
cobertas, mas que ao longo dos séculos XVIII e XIX, chega a
ser identificado com o espaço da civilização europeia. Muitos
são degredados para o Brasil pela Santa Inquisição, sobretudo
durante o século XVII, quando o Paraíso rapidamente se con-
verte em Purgatório.
Parece ser precisamente no embate entre homens civiliza-
dos e selvagens, entre selvageria, barbárie e civilização, que
se cria uma alteridade cultural. Ao mesmo tempo em que se
tornam selvagens através de uma encenação, os europeus con-
quistadores também civilizam o Outro, e, de uma forma ou de
outra, são também civilizados e conquistados pelo outro. É o

26. Ainda hoje, a identidade dos brasileiros é atravessada pela identificação com
uma natureza exótica.

38
Alexandre Belmonte
caso de alguns detalhes presentes na iconografia de Théodore
de Bry, desenhista, gravador e editor protestante nascido na
Bélgica, como as indígenas com longos cabelos cacheados, ou
com os cabelos presos em tranças, ou ainda as crianças indí-
genas que remetem aos putti renascentistas. Essa assimilação
dos valores e características dos indígenas é freqüente em Jean
de Léry. Ele admira-se com a capacidade de autogoverno dos
indígenas, surpreendente e exemplar para povos “civilizados”
como os franceses:

É coisa quase incrível e de envergonhar os


que consideram as leis divinas e humanas
como simples meios de satisfazer sua índole
corrupta, que os selvagens, guiados apenas
pelo seu natural, vivam com tanta paz e
sossego.27.

E mesmo esse lugar de perdição – verdadeiro Paraíso que


vai aos poucos sendo convertido em Purgatório e Inferno – é
mais casto do que se supõe, até para um religioso calvinista
como Léry:

Direi mais que apesar do clima da região em


que habitam e não obstante serem orientais,
nem os mancebos nem as donzelas núbeis
da terra se entregam à devassidão como fora
de supor; e prouvera a Deus que o mesmo
acontecesse por aqui.28

27. Léry, Op. Cit. p. 439. [Trad. Bras. Jean de Léry. Viagem... p. 229.]
28. Léry, Op.Cit. pp. 429-430. As experiências de Léry ficam de tal modo impressas
nele mesmo que, embora ele pretenda apresentar o relato de sua viagem ao Brasil
como uma história escrita in loco, com “tinta de pau-brasil”, Léry trai-se cons-
tantemente ao falar da terra distante (“par delà”) e da França (“par deçà”) – se a
passagem tivesse sido escrita na América, a referência deveria ser necessariamente
o contrário. [Trad bras. In Jean de Léry. Viagem... p. 224.]

39
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
O selvagem chega a ser, por vezes, um exemplo a ser se-
guido. Para que seja um verdadeiro selvagem, entretanto, é
necessário que careça de civilização, que seja promíscuo, que
prostitua a filha solteira, que seja sodomita29. Esta radicali-
dade entre o que é próprio do selvagem e o que é próprio
da civilização parece ser uma condição para a afirmação de
uma identidade em Léry, uma identidade primeiramente
calvinista, às vezes francesa, às vezes europeia, e às vezes sim-
plesmente judaico-cristã.
A iconografia parece, ironicamente, mergulhar mais
ainda na universalidade do homem, embora pretenda pin-
tar o indígena com tons exóticos, por vezes grotescos. Em
relação à antropofagia, é sempre um momento espantoso e
deslumbrante o relato das práticas de guerra e do destino dos
prisioneiros de guerra dado pelos indígenas. Ao observarmos
atentamente as ilustrações de De Bry, porém, nos indagamos
sobre a identidade dos canibais.

Fig. 4 – Theodor de Bry

29. Cf. Léry, Op. Cit. p. 430.

40
Alexandre Belmonte
Quem são os comensais deste banquete macabro, senão
os próprios europeus? É bastante evidente a forma como o
europeu está contido nestas imagens. Os longos cabelos ca-
cheados das indígenas contradizem as descrições de vários
cronistas, segundo as quais as indígenas possuíam cabelos
bem lisos e compridos.

Fig. 5 – Theodor de Bry.

Não tendo sido uma testemunha presencial das culturas


ameríndias, De Bry recorreu ao seu próprio entorno, à sua
própria cultura, para poder retratar o desconhecido. Na fi-
gura 6, o prisioneiro rodeado de indígenas selvagens pode
perfeitamente ser um outro selvagem – o selvagem peludo
que o europeu traz consigo.
É preciso que o europeu figure como aquele prestes a ser
devorado, para que não caia na tentação de devorar o outro.
Mas, estranhamente, ele aparece coberto de pelos da cabeça
aos pés, ele próprio um selvagem em meio a outros selvagens.

41
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Há, finalmente, algo em comum entre o canibal e sua refei-
ção.
Tanto uma cultura quanto a outra parecem civilizar-se
mutuamente, de acordo com suas possibilidades. Chama a
atenção o fato de que, mesmo nesse canibal desconhecido,
o europeu tenha podido enxergar-se e reconhecer-se a si pró-
prio.

Fig. 6 – Theodor de Bry.

42
Alexandre Belmonte
O Grande Khan sonhou com uma cidade – e
descreveu-a para Marco Polo. (...)

– Ponha-se em viagem, explore todas as


costas e procure essa cidade – diz o Khan
para Marco. – Depois volte para me dizer se
o meu sonho corresponde à realidade.

–Perdão, meu senhor: sem dúvida cedo ou


tarde embarcarei nesse molhe – diz Marco
–, mas não voltarei para referi-lo. A cidade
existe e possui um segredo muito simples: só
conhece partidas e não retornos.

Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.


Capítulo 2
A especificidade do relato de Léry
em relação a outros relatos de viagens
Viagens e viajantes, textos e contextos

A o passear pela Avenida Rio Branco quando de sua es-


tadia no Brasil, Lévi-Strauss carregava o relato de Léry
no bolso: “Passeio pela Avenida Rio Branco, onde outrora se
elevavam aldeias tupinambás, mas carrego no bolso Jean de
Léry, breviário de etnólogo.”1 A especificidade do relato de
Léry tem sido evidente na historiografia sobre as represen-
tações da alteridade feitas no século XVI através, sobretudo,
dos recorrentes estudos de sua obra. Seu relato apresenta inú-
meras diferenças de estilo, de interpretação e de método, em
relação a outros relatos e crônicas contemporâneas.
A Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil de Léry é
o relato de uma viagem, em um tempo em que as viagens ti-
nham significado e intenções totalmente diversas em relação
aos dias de hoje. Hoje, com as facilidades de locomoção e a
virtual abolição das fronteiras, as diferenças entre os homens
parecem dissolver-se na contiguidade das metrópoles ou na
fruição consumista do turismo de massa. Aquilo que constitui
o objeto e a paixão do etnólogo transformou-se, na moderni-
dade, em lazer, distração da mente, descobertas exóticas de
mundos de certa forma sempre conhecidos e reconhecidos
através de narrativas históricas, romances, mídias...

Vivemos numa sociedade em contínuo


movimento – diz Nicola Gasbarro – mas
fazemos viagens em vão. Quanto mais se

1. Apud Léry, Ibidem, p. 5. [Trad. nossa do original “Je foule l’Avenida Rio-Branco
(sic), où s’élevaient jadis les villages Tupinamba, mais j’ai dans ma poche Jean de
Léry, bréviaire de l’ethnologue”.]

46
Alexandre Belmonte
gira o mundo, mais se sai da estrutura que
torna possíveis o relato e a busca: ‘não há
retorno’ porque a viagem já se exaure num
‘transitar sem fim’, que a filosofia da crise faz
coincidir com a vida2.

No século XVI, as viagens tinham outro significado, e


estavam, evidentemente, inseridas em contextos bastante di-
versos. Em primeiro lugar, realizar uma viagem da Europa ao
Mundo Novo custava muito caro, e envolvia uma complica-
da rede de pessoas conhecedoras das técnicas de navegação,
outras dispostas a financiar a viagem, tripulação disposta a vir
ao Novo Mundo etc. Colombo, por exemplo, sai de sua cida-
de de origem para conseguir financiamento para seu projeto
de descobrir novas rotas marítimas para as Índias, e somen-
te na Espanha conseguiria financiamento para suas viagens.
Léry e muitos outros missionários chegaram ao Mundo Novo
financiados seja pelo Estado, pelo clero, pela discreta burgue-
sia em ascensão, ou por todos ao mesmo tempo – nos casos
em que os três “financiadores” não se resumissem em uma só
instância de poder.
Estima-se que, em 1492, ano que marca o início da
conquista da América, aproximadamente um terço da po-
pulação europeia era constituída de povos não europeus.
É este também o ano da queda do califado de Córdoba e
da subseqüente expulsão dos árabes da península Ibérica.
Os Bálcãs, a península grega e a Itália meridional encon-
travam-se controlados pelos otomanos. As rotas venezianas
de comércio, que seguiam as antigas rotas dos tempos de

2. Nicola Gasbarro. “Il ritorno di Colombo tra antropologia e storia” in: Guido
Giuffrè (org.). 1492: “... apparve la terra”. Milão, Giuffrè, 1992, p. 3. [Tradução nos-
sa do original “Viviamo dentro una società in continuo movimento, ma facciamo
viaggi a vuoto. Più si gira il mondo più si esce dalla struttura che rende possibili il
racconto e la ricerca: non si torna perché ormai il viaggio si esaurisce in un transitare
senza fine, che la filosofia della crisi fa coincidere con la vita”.]

47
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Marco Pólo, encontravam-se obstruídas, sobretudo pelo alto
risco de pirataria. Uma Europa não cristã ameaçava o ciclo
de circulação de ideias e mercadorias3. Foi nesse período,
em que expulsavam seu outro interno, que os ibéricos con-
frontaram-se com a alteridade cultural dos ameríndios.
Além do custo elevado, viagens tão longas eram acompa-
nhadas pelo fantasma do fracasso. Estão ainda presentes, na
cartografia europeia do século XV, as antigas inquietações
acerca do que poderia ser encontrado além da linha do ho-
rizonte. Monstros que devoravam embarcações, sereias que
as atraíam ao fundo do mar, serpentes e dragões gigantes
ainda figuravam nas representações cartográficas, e ainda
que o senso comum da época as percebesse possivelmente
como simples representações do desconhecido, eram figu-
ras grotescas diante das quais o homem nada podia, já que
subvertiam a ordem das coisas de forma absurda. De certa
forma, a mensagem era a de que havia perigos inimagináveis
no mar desconhecido. Para muitos viajantes e exploradores,
entretanto, desbravar mares e terras desconhecidos era quase
uma missão divina. Em carta a Luís de Santángel, Colombo
refere-se ao sucesso de sua viagem como “a grande vitória
concedida por Nosso Senhor”4.

3. É nessa conjuntura que a Gênova de Colombo se sobressai, através do acúmulo


de capitais provenientes do comércio com o Oriente, e, via Portugal e Espanha, é
Gênova que inicia a navegar pelo Atlântico. É também nessa época que o cristia-
nismo se modifica: constantemente ameaçada pela expansão do islamismo e pelas
práticas comerciais dos judeus da península Ibérica, torna-se cada vez mais uma
religião ofensiva, como nos tempos das Cruzadas, sobretudo após a conquista do
Novo Mundo. Com a substituição do domínio muçulmano e otomano, é a arti-
culação entre as coroas europeias, o cristianismo e uma poderosa burguesia em
ascensão que passam a constituir o primeiro sistema-mundo efetivo, colocando
o Novo Mundo como sua primeira periferia. A formulação e a extensão da lógica
do capital no Novo Mundo ocorrem sob o signo da conquista, que representou
um modelo político-militar funcionando a serviço do capital, e provocando o fe-
nômeno da polarização.
4. Cristóvão Colombo. “Lettera a Luìs de Santángel” in: Nuova Raccolta Colombiana.
Roma, Istituto Poligrafico dello Stato, 1988, vol. 1, tomo I, p. 309.

48
Alexandre Belmonte
Esse desmedido gosto pelo maravilhoso e pelo misterio-
so (que a história tradicional já desde o Iluminismo tem
percebido como profundamente encarnado no homem me-
dieval) pode ser encontrado em ampla literatura de viagens.
Já Marco Polo descrevia os habitantes das ilhas de Andaman
como tendo “cabeças de cão e dentes e focinho semelhantes
aos de um grande mastim”5. Em Lambri (provavelmente na
atual Sumatra), Marco Polo fala dos homens das montanhas,
“que têm uma cauda de mais de um palmo de comprimen-
to, grossa como as dos cães”6, que, segundo Sérgio Buarque
de Holanda, seria uma referência aos orangotangos.
Na cartografia, o mapa de Andrea Bianco de 1432 mostra
“homens sem cabeça e com os olhos e a boca no peito”7.
Outras representações do maravilhoso no mundo medieval
são a cosmografia fantástica, o satanismo, o sabá negro, a
bruxaria8, a alquimia, a astrologia e a mitologia em geral9 e,
em certa medida, os primeiros relatos de viagens, em que
vários desses elementos estão presentes no discurso sobre o
outro. Na história do Brasil escrita por Pero de Magalhães
de Gândavo, por exemplo, em que pese seu compromisso
com a história como “luz da verdade”, ele chega a descrever
como foi encontrado e morto um “monstro marinho” – pro-
vavelmente um leão marinho – que tinha “quinze palmos

5. Marco Polo. Il Milione, p. 282. Apud. Sérgio Buarque de Holanda. Visão do paraí-
so, p.18. Ou ainda As viagens de Marco Polo. Trad. De Carlos Heitor Cony. Rio de
Janeiro, Ediouro, 2001, p.200.
6. As viagens de Marco Pólo. Ibidem, p. 198.
7. Joachim Lelewel. Géographie du moyen Âge, II. p. 86. Apud. Sérgio Buarque de
Holanda, Op. Cit., p. 18.
8. Cf. Jules Michelet. A feiticeira. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1992.
9. Cf. Sérgio Buarque de Holanda. Ibidem, Laura de Melo e Souza. Inferno Atlân-
tico – demonologia e colonização, séculos XVI-XVIII. São Paulo, cia. das Letras,
1993, Jacques Le Goff. Pour un autre Moyen Age, Idem. L’imaginaire médiéval e
Carlo Ginzburg. Mitos, Emblemas, Sinais – morfologia e história. São Paulo, Cia.
das Letras, 1989, pp. 15-39.

49
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
de comprido e semeado de cabelos pelo corpo, e no focinho
tinha umas sedas mui grandes como bigodes”10.
Em terceiro lugar, superados os perigos da ida, a viagem
contava com o retorno; era o retorno a dar sentido a tudo o
que fora visto e vivido. Viajava-se para conhecer e também
para contar. O retorno evocava uma “operação escriturária”,
usando a terminologia de Certeau11, em que a alteridade era
definida por um corte que demarcava a diferença, a saber,
o próprio oceano, sendo o externo (o Outro) assimilado in-
ternamente. Foi o retorno de Colombo, Caminha, Gândavo,
Thevet, Léry etc. que gerou e fomentou, entre os séculos XVI
e XVII na Europa, a diferença como um fato antropológi-
co, e que lançou as bases do mundo moderno. O comércio
insinuou-se cada vez mais, quase como o derradeiro modo de
ser do homem, ao passo que o cristianismo atingia proporções
cada vez mais planetárias. Além disso, o encontro e confronto
entre culturas, cosmovisões e imaginários pôs o europeu em
contato com a alteridade cultural de forma abrupta e total.
A antiga humanitas greco-romana foi retomada por alguns
viajantes, que viam os indígenas como “crianças gigantes”,
dotados da força mais primordial e originária da humanida-
de, e por estar então essa força tão perdida e esquecida pelas
culturas europeias, as diferenças foram amadas e ao mesmo
tempo repudiadas ao longo de todo o período que se seguiu
às descobertas.
No caso do relato de Jean de Léry, sua publicação acontece
muitos anos após o retorno. Ao ter de publicar suas memórias
de viagens, Léry as reconduz a uma via literária; o passado é

10. Pero de Magalhães de Gândavo. A Primeira história do Brasil – História da província


de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. (texto modernizado e notas de
Sheila Moura Hue e Ronaldo Menegaz). Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, 2004.
p. 130.
11. Michel de Certeau. A Escrita da História. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1982. pp. 216-226.

50
Alexandre Belmonte
rememorado e analisado. Os fatos vividos passam a ser descri-
tos nos relatos de viagem, tornando-se narrativas exemplares.
Ao lê-los hoje, devemos pensar, como adverte Todorov, que
eles nos remetem mais ao conhecimento do verossímil do
que do verdadeiro12: devemos lê-los não como simples descri-
ções, mas como atos. Ao lidar com suas memórias de viagem
de forma literária, Léry reelabora a atividade política impli-
cada no encontro com os tupinambás do Novo Mundo. A
questão do poder está vinculada à produção de um discurso
sobre o outro – no caso de Léry, o outro estava constituído por
sociedades ágrafas, essencialmente orais, vivendo em estado
de natureza.
Há uma relação necessária entre o texto escrito e o mundo,
de acordo com Paul Ricoeur. Nem o mundo dos tupinambás,
nem o mundo de Léry podem ser apreendidos diretamen-
te através de um texto: o mundo é sempre inferido a partir
de suas partes, e “as partes devem estar separadas conceitual
e perceptualmente do fluxo da experiência”13. Assim como
o etnógrafo que vai embora do campo levando consigo tex-
tos para posterior interpretação, também no caso de Léry, a
real elaboração de seu texto é feita em outro lugar. As ex-
periências, no dizer de James Clifford, tornam-se narrativas,
ocorrências significativas e exemplares.
É esta operação de tradução da experiência num corpus
textual – afastado das condições discursivas e dialógicas de
sua produção – que está na base de uma certa autoridade
etnográfica. Autoridade não somente no sentido de alguém
ser autor de uma narrativa sobre outrem, mas também, e
essencialmente, da possibilidade de uma narrativa isolada

12. Tzvetan Todorov. A Conquista da América – a questão do outro. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1999, p. 64.
13. James Clifford. A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no Século XX.
Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 2a ed. 2002. p 40.

51
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
constituir-se como discurso de poder sobre outrem14; um po-
der sempre autoritário, pretensamente emanado a partir de
um autor, embora seja ingênuo pensar em poder nesses ter-
mos. Em todo caso, é um poder relativo e sujeito, por sua vez,
ao fascínio e poder exercido pelo outro que se tenta descrever.
Há, por um lado, a relação cultural da testemunha pre-
sencial com o conhecimento da realidade e sua relação
essencialmente política com o tupinambá, e, por outro, a
operação política que se dá na escrita (experiência corporal,
ao vivo, e elaboração literária a posteriori). De que forma essa
produção simbólica se apropria do outro? Qual é a sua fun-
ção política dentro do contexto em que é gerada?
As discussões levantadas por Clifford em relação às etno-
grafias são válidas também para um relato de viagem como
o de Léry. Em ambos os casos, o texto não é uma mera in-
terpretação de uma realidade abstraída e textualizada – a
linguagem é, tanto nas etnografias modernas como nas ‘etno-
grafias’ quinhentistas “atravessada por outras subjetividades
e nuances contextuais específicas, pois toda linguagem, na
visão de Bakhtin, é uma ‘concreta concepção heteroglota do
mundo’”15.

14. Esta é a discussão que Clifford faz ao falar da autoridade etnográfica: “(...) um
“autor” generalizado deve ser inventado, para dar conta do mundo ou contexto
dentro do qual os textos são ficcionalmente recolocados. (...) O processo de pes-
quisa é separado dos textos que ele gera e do mundo fictício que lhes cabe evocar.
A realidade das situações discursivas e dos interlocutores individuais é filtrada.”
Idem, Ibidem. pp. 41-42.
15. Idem, Ibidem. p. 44.

52
Alexandre Belmonte
Os primeiros relatos: a busca
do Paraíso terrestre

A s diferenças entre o relato de Léry e outros relatos con-


temporâneos seus não se resumem apenas à produção
simbólica sobre o outro – que, no caso de Léry, conta com
o referencial da igreja reformada e dos ideais calvinistas e as
controvérsias e questões político-religiosas que dominaram a
França na segunda metade do século XVI. O tipo de discurso
que Léry produz é diferente em vários sentidos, apesar de tra-
zer os mesmos estereótipos políticos, culturais e religiosos de
vários contemporâneos seus.
O tipo de pergunta que fazemos às primeiras cartas e
relatos (por exemplo, às cartas de Colombo, Caminha e
Vespucci) refere-se mais às possibilidades discursivas sobre o
outro do que propriamente aos modos de ser e viver do ou-
tro. Tentamos acessar um conjunto de crenças e estereótipos
que se perdem na história, e que subjazem às possibilidades
de narrar e construir uma abordagem da alteridade presen-
tes nessas primeiras cartas. Assim, nem os descobrimentos de
fins do século XV nem as possibilidades de narrar foram algo
fortuito – inscrevem-se no desenrolar da história europeia de
fins da Idade Média, no desenvolvimento das técnicas de na-
vegação, da cartografia, na história de guerras, peste negra
e fome que assolaram a Europa continental no século XIV.
Os descobrimentos inserem-se, igualmente, nos percursos do
cristianismo na Europa, nas guerras de religião, nas disputas
políticas, na história do acúmulo de riquezas pelas monar-
quias europeias, nos ofícios e atividades burguesas nos séculos
XIV e XV – e, sobretudo, num tipo de homem que deixava

53
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
aos poucos de ser feudal, no sentido de preso à gleba e ao
território, e aumentava a comunicação através do comércio,
tornando-se mais planetário.
Antes de sua quarta viagem, Colombo acreditava que o
Novo Mundo fosse de fato uma enorme ilha. Ao realizar
sua quarta viagem, entretanto, chegou à conclusão de que o
continente que explorava era parte da costa oriental da Ásia.
Os mapas que ele esboçou parecem mostrar isso. A confusão
que muitos viajantes, inclusive Colombo, experimentaram,
é bem representada tanto nos mapas esboçados quanto na
carta enviada por este ao rei Fernando da Espanha. Rejei-
tando algumas informações cartográficas e aceitando outras,
Colombo subestima a imensa distância entre Europa e Ásia
e superestima a dimensão das terras descobertas. É provável
que, a partir desse erro, ele tenha realizado suas descobertas.
Todorov fala do “erro” de Colombo como um “erro linguísti-
co”, dada a sua dificuldade em pensar nas línguas e medidas
métricas como convenções locais:

Colombo aceita a autoridade do astrônomo


árabe Alfragamus, que indica com bastante
correção a circunferência da Terra, mas
exprime-a em milhas árabes, de um terço
superior às milhas italianas, a que Colombo
está acostumado16.

A representação pré-colombiana do mundo, em especial


o mapa-múndi de Martellus, mostra ainda a influência direta
dos mapas criados a partir das informações de Marco Polo
sobre a Ásia, e das então recentes incursões portuguesas na
África. Martellus representa a transição entre a cartografia da
Alta Idade Média – emergindo de profundas transformações
sociais, religiosas, tecnológicas e científicas – e a cartografia

16. Tzvetan Todorov. Op. Cit. pp. 41-42.

54
Alexandre Belmonte
que reflete o espírito Renascentista das novas descobertas.
Era alemão, provavelmente de Nuremberg, e trabalhou na
Itália entre 1480 e 1496. Suas representações cartográficas
ajudaram a redefinir a forma como o globo era representado.
Acredita-se que uma cópia do mapa de Martellus tenha che-
gado às mãos de Colombo na Espanha.
Essa tradição cartográfica, desenvolvida a partir da proje-
ção de Ptolomeu, era sempre forçada a acomodar uma quarta
parte do mundo. Mesmo na Antigüidade, Cratos de Mallos,
por volta de 180 a.C., evitou representar a Oekumene isolada
(figura 7).

Fig. 7 – Reconstrução do Globo por Cratos de Mallos, circa 180 a.C17.

Possivelmente para não ferir o senso estético e matemático


dos gregos, Cratos deduziu a existência da Antipodes, quarta

17. http://cassian.memphis.edu/history/jmblythe/GlobalS10/GlobalS10.html. aces-


so em agosto de 2013.

55
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
parte do mundo, equilibrando o globo terrestre com quatro
grandes blocos continentais.
Os esboços de Colombo (figura 8), na verdade desenhados
por seu irmão Bartolomeu Colombo para ilustrar a quarta
viagem ao longo da costa da América Central, representam
suas conclusões mais amadurecidas em relação à proximida-
de entre o Novo Mundo e a Ásia.
Em relação às cartas escritas por Colombo, percebe-se
uma diferença muito grande entre estas e os relatos de via-
jantes elaborados no decorrer do século XVI. Tal como a
carta de Pero Vaz de Caminha, as de Colombo têm uma
preocupação em apresentar um panorama geral das terras
e dos nativos: conta o número de milhas entre uma ilha e
outra, descreve a topografia das regiões, a nudez dos nativos
etc. Colombo descreve efetivamente uma viagem. Fala dos
gentios, entre os quais não vê muita diversidade, e visto que
“todos se entendem”, imagina que será mais fácil convertê-los
ao cristianismo. Colombo diz não ter encontrado “homens
monstruosos, como muitos pensavam”.

Figura 8 – Esboço de mapa das Índias Orientais de Colombo e Alessan-


dro Zorzi18.

18. http://colombo.do.sapo.pt/indexPTColomboPort01Bartolomeu.html. acesso


em agosto de 2013.

56
Alexandre Belmonte
Quando fala de quão exuberante é a vegetação do Novo
Mundo, fornece ao leitor uma imagem do Éden. Sua curio-
sidade não é saber como os indígenas fazem suas casas,
preparam suas iguarias ou fumam suas ervas, como mos-
traram os viajantes ao longo do século XVI. Quer saber,
primeiramente, quem é esse outro dentro de seu habitat. É
uma perspectiva muito diferente da de Léry, por exemplo,
que buscava descrever as plantas e árvores inexistentes na Eu-
ropa, recorrendo a metáforas e comparações, desenhando-as,
descrevendo suas propriedades medicinais e seus usos pelos
indígenas – enfim, falava da vegetação mais como cientista,
ainda que o caráter edênico seja recorrente em toda a litera-
tura de viagens até praticamente o século XVIII.
Uma diferença marcante entre os relatos tipicamente ibé-
ricos e os da Europa continental foi percebida por Holanda
em Visão do Paraíso. Enunciando visões de mundo e manei-
ras de se relacionar com a realidade diferentes entre si, os dois
tipos de relatos – continental e ibérico – remetem o leitor a
ânimos igualmente diversos. Os franceses parecem ser mais
abertos ao maravilhoso e ao sobrenatural. No português, por
outro lado, Holanda enxerga um “realismo desencantado”,
em que a experiência imediata com a realidade é que vai re-
ger a noção de mundo.
No Brasil, sustenta Holanda, os portugueses contribuíram
muito pouco para a formação dos chamados mitos de con-
quista.

A atmosfera mágica de que se envolvem


para o europeu, desde o começo, as novas
terras descobertas, parece assim rarefazer-
se à medida que penetramos na América
lusitana.19

19. Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimen-


to e ciolonização do Brasil. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1992.

57
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Fazem referência, utilizando-se de metáforas, ao colorido
do lugar, ao verde da flora, à riqueza da fauna, à inocência
das gentes, mas não parecem enxergar nisso uma diferença tão
determinante em relação à Europa a ponto de impor um outro
tipo de relação que não uma colonização por vezes preguiço-
sa, daquelas em que, embalados na rede pelo mesmo vento,
igualam-se colonizador e colonizado.
Pero de Magalhães de Gândavo, que esteve no Brasil pro-
vavelmente na década de 1560, ao falar dos motivos que o
fizeram escrever sua história do Brasil, compara a escassez de
informações sobre as novas terras que se tem em Portugal em
relação a outros países:

(...) parece coisa decente e necessária terem


também os nossos naturais a mesma notícia,
especialmente para que todos aqueles que
nestes reinos vivem em pobreza não duvidem
escolhê-la para seu amparo; porque a terra é
tal e tão favorável aos que a vão buscar, que
a todos agasalha e convida com remédio, por
mais pobres e desamparados que sejam20.

De fato, longe de fazer uma narrativa maravilhada,


Gândavo apresenta a terra exótica como lugar a ser habitado,
ou conforme observou Sheila Hue, como “casa”, e é nesse
sentido que não produz, segundo Hue, um relato de viagem,
mas um tratado, uma história21. Ele dá importância à experi-
ência em detrimento da fantasia (“Tudo o que escrevo aqui,
vi e experimentei”22) – tanto é assim que, ao preparar a sua
história para ser publicada, reformula certas passagens que
constam de outros três manuscritos, omitindo e suprimindo

20. Pero de Magalhães de Gândavo. Op. Cit. p. 38.


21. Idem. Ibidem, p. 23.
22. Idem. Ibidem. p. 22.

58
Alexandre Belmonte
fatos que não podiam ser verificados. O episódio do monstro
marinho, entretanto, é mantido, se bem que acompanhado
por um desenho, “tirado pelo natural”23. Outro aspecto inte-
ressante de seu texto é sua noção de história. Embora não se
apresente como douto ou refinado nas artes e letras (ao con-
trário, ele diz escrever em estilo “fácil e chão”24), Gândavo
havia certamente tido contato, direta ou indiretamente, com
o De Oratore, de Cícero, já que fala da história como “luz da
verdade”.
Sérgio Buarque de Holanda argumenta, porém, que mes-
mo os ibéricos, em que pese sua propensão a um realismo
amargo e resignado, cético e empirista, não se encontravam
tão afastados de certas concepções correntes na Idade Média
sobre a realidade física do Éden. A tradição medieval, tanto a
europeia quanto a árabe, versava sobre o Éden havia séculos.
Essas histórias e lendas já se haviam transformado em ver-
dadeiros mitos, sobretudo após as viagens de Marco Pólo à
Ásia (1275-1295). A descoberta significou, em muitos aspec-
tos, a realização de uma profecia. O mito da conquista estava
de tal forma arraigado nas culturas e no imaginário europeu
medieval que, ao chegar às Antilhas, Colombo pensou ter
chegado ao Paraíso terrestre: “Estou convencido de que aqui
é o Paraíso terrestre, onde ninguém pode chegar se não for
pela vontade divina.”25
É a conquista de um mundo que se coloca, historicamen-
te, fora do mundo real, o que segue a tradição das descrições
maravilhosas de outros mundos por Marco Polo. Foi mais fácil
para Gândavo qualificar um novo e bizarro animal marinho
de “monstro marinho”, situando-o nos confins ou mesmo
fora do mundo. Mesmo que o seu relato seja, comparado aos

23. Idem. Ibidem. p. 130.


24. Idem. Ibidem. p. 40.
25. Colombo. Carta aos reis de 31/8/1498 Apud Todorov. Op. Cit. p. 22.

59
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
de outros, bastante verossímil, racional ou humanista, ele
está, entretanto, submerso em uma cosmovisão mais antiga
e irresistível, em que seres monstruosos habitam o além-mar.
Da mesma forma, do ponto de vista dos ameríndios – so-
bretudo dos astecas no México-Tenochtitlán – a conquista
representou a realização de uma profecia26. Assim, tanto a Amé-
rica, mundo novo, entra para a história, desde sua descoberta
e apropriação simbólica e material, como lugar irreal, fora do
mundo, como também os que chegam, europeus conquistado-
res, são vistos como entidades reconhecidas (sobretudos pelos
incas peruanos e pelos astecas) através dos inúmeros presságios
e profecias sobre a tomada das terras – preocupação antiquíssi-
ma com guerras e tomada de terras e poder. Algumas crônicas,
como as de José de Acosta, Martín Morua e Garcilaso de la
Vega, recolhem versões orais acerca dos presságios sobre a che-
gada dos espanhóis. Garcilaso relata:

Lembro-me que um dia, conversando com


aquele Inca velho (...) lhe disse: “Inca, sendo
essa terra de vocês tão áspera, e sendo vocês
tão belicosos e poderosos para ganhar e
conquistar tantas províncias e reinos, por que
deixaram que tão poucos espanhóis tomassem
tão depressa seu império?” Para responder-
me, tornou a repetir o prognóstico acerca dos
espanhóis (...) e contou-me como seu inca
lhes havia ordenado que os obedecessem e
servissem (...) e respondeu à minha pergunta
dizendo: ‘Estas palavras que nosso Inca nos
disse, que foram as últimas que proferiu,
foram mais poderosas para nos sujeitar e

26. Leopoldo Zea. Ideas y presagios del descubrimiento de América. México, Fondo de
Cultura Económica, 1991. Tvzetan Todorov. Op. Cit.

60
Alexandre Belmonte
toma nosso império do que as armas que teu
pai e seus companheiros trouxeram a esta
terra’.27

Alguns estudiosos, entre eles Todorov, estudam a derrocada


do Império Inca e da Confederação Asteca a partir das profe-
cias locais, como é o caso das palavras do inca Huaina Cápac
dirigidas a seus súditos, ou a capitulação de Montezuma a
partir de seu suposto temor que o deus Quetzalcoátl estivesse
voltando para reconquistar o que um dia fora seu e que os
astecas lhe haviam usurpado.
Se, por um lado, os presságios e profecias dos nativos refe-
riam-se à perda da terra local e seu subjugo por outro povo e
outro deus, as profecias dos europeus referiam-se à realidade
física do Éden, do Paraíso terrestre, terra de delícias criada
por Deus e destinada a alguns homens – não a todos, mas a
quem a achasse com a divina ajuda de Cristo. Para os nati-
vos, os deuses iriam conquistar o que os homens lhes haviam
usurpado. Para os europeus, os homens deveriam conquistar
o que Deus lhes havia reservado. Eis o que relata Vespucci a
Lorenzo de’ Medici:

Esta terra é muito amena e cheia de infinitas


árvores verdes e muito grandes, e nunca
perdem as folhas, e todas têm odores muito
suaves e aromáticos, e produzem infinitésimas
frutas, e muitas dessas são boas ao paladar
e saudáveis ao corpo. Os campos produzem
muitas ervas, flores e raízes muito suaves e
boas, e às vezes eu ficava maravilhado com
os suaves odores das ervas e flores, e com o
sabor dessas frutas e raízes, tanto é assim

27. Apud. María Luisa Rivara. “El mundo andino inmediatamente anterior al descu-
brimiento: pronósticos en el Imperio Incaico sobre la llegada de los españoles” In:
Leopoldo Zea. Op. Cit., p. 6. [Trad. nossa.]

61
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
que eu achei que estava no Paraíso terrestre:
entre esses alimentos, acreditei estar perto do
Paraíso.28
Colombo contava, também, com esse forte argumento bí-
blico, o da existência do Paraíso, e não é a experiência que
parece reger suas ações, mas sim a confirmação dessa reali-
dade. Conforme diz Todorov, “ele sabe de antemão o que vai
encontrar; a experiência concreta está aí para ilustrar uma
verdade que se possui, não para ser investigada (...).”29 No
prefácio de seu Livro das Profecias, Colombo explica a sim-
plicidade dos descobrimentos:

Já disse que, para a execução do


empreendimento das Índias, a razão, a
matemática e o mapa-múndi não me foram
de nenhuma utilidade. Tratava-se apenas da
realização do que Isaías havia predito30.

Em terras assim concebidas e assim engendradas às


possessões europeias, cabia aos conquistadores batizá-las,
‘limpando-as’ das marcas que os nativos pagãos haviam ne-
las deixado, reinaugurando-as. Colombo, ao passo que fazia
o reconhecimento das ilhas que acabara de descobrir, dá-lhes
novos nomes:

No trigésimo terceiro dia após minha


partida de Cádiz, cheguei ao mar Índico,
onde encontrei muitas ilhas habitadas
por inúmeros homens, as quais tomei por
possessão de nosso Felicíssimo Rei (...). Às

28. Amerigo Vespucci. “Notta d’una lettera venuta d’Amerigo Vespucci a Lorenzo
di Pietro Francesco de’ Medici l’anno 1502 da Lisbonna della loro tornata delle
nuove terre mandato a cercare per la Maestà de re di Portogallo” In: Luciano
Formisano. Lettere di viaggio. Milano: Mondadori, 1984, pp. 21-25. [Tradução nossa]
29. Todorov. Op. Cit. p. 23.
30. Idem. Ibidem. p. 31.

62
Alexandre Belmonte
primeiras dei-lhes o nome de nosso Santo
Salvador (...). Mas os índios as chamam
Guanahany. Também dei a cada uma
das outras [ilhas] um novo nome. Ordenei
que uma se chamasse Santa Maria da
Conceição, outra Fernandina, outra Isabela,
outra Joana, e assim por diante..31

A América é engendrada ao mundo, primeiramente, a


partir de uma operação de apropriação, na qual a atribuição
de novos nomes é a condição de cognição e de relaciona-
mento com o outro. Os nativos chamavam as Antilhas de
Guanahany, palavra que, para Colombo, não significava
nada, e, portanto, ele decidiu dar-lhes outros nomes, que evi-
dentemente as situavam dentro da cosmovisão daquele que
chegava: a reverência a Cristo, aos santos, ao Rei e à família
real, dentro da típica cosmovisão do Antigo Regime ibérico
que punha Cristo, santos e reis em um mesmo patamar.
Ao que tudo indica, Colombo fiava-se em velhas conven-
ções eruditas como orientação para sua experiência náutica:
historiadores, teólogos, cartógrafos, poetas, viajantes, geó-
grafos – muitos haviam já falado do além-mar. Essa tradição
erudita e ‘científica’, porém, continuava enlaçada ao tema
mítico do paraíso terreal. É por isso que há tanta semelhança
entre as descrições de Colombo sobre os indígenas e as de
Marco Polo sobre os habitantes da ilha de Ágama.
Colombo também faz alusão ao verde do Novo Mundo,
usando quase as mesmas palavras de Léry e de muitos outros
cronistas e historiadores das descobertas:

31. The Letter of Columbus on the Discovery of America: A Facsimile of the Pictorial
Edition, with a New and Literal Translation, and a Complete Reprint of the Oldest Four
Editions in Latin. New York:Trustees of the Lenox Library, 1892. [Tradução nossa do
original “Tricesimotercio die postquam Gadibus discessi: in mare Indicü perveni:
ubi plurimas Iunsulas innumeris habitatas hominibus reperi: quarü omnium pro
fœlicissimo Rege nostro: (...) primeque earum: divi Salvatoris nomě imposui. (...)
Eam vero Indi Guanahanyn vocant. Aliarum etiam unăquanque novo nomine nücu-
pavi. Quippe aliam Insulam Sancte Marie Conceptionis, aliam Fernandinam, aliam
Hysabellam, aliă Iohănam, et sic de reliquis appellari iussi”]

63
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Todas estas ilhas são muito bonitas, e se
distinguem por várias qualidades. São
acessíveis, e uma grande variedade de
árvores estende-se em direção ao céu, e creio
que suas folhas nunca caiam, pois as vi tão
verdes e florescentes como geralmente são na
Espanha no mês de maio. Algumas estavam
em flor, algumas davam frutos, algumas em
outras condições, cada qual em sua maneira
própria. O rouxinol e vários outros pássaros
sem número cantavam, no mês de novembro,
quando eu passava por lá.32

É interessante notar que, nesse tipo de relato, há sempre a


recorrência do mesmo deslumbre, sempre a alusão ao fato de
as árvores nunquam foliis privari (“nunca se desfolharem”); há
sempre também a alusão à primavera europeia como o que
mais se assemelhasse ao cenário edênico do Novo Mundo:
ceu mense Maio in Hispania solent esse (“como geralmente
são na Espanha no mês de maio”). Também Gândavo fala
do clima do Brasil como uma amena primavera portuguesa.
Filippo Sassetti, viajante, mercador e humanista florenti-
no, descreve a Índia de forma semelhante, cheia de “coisas
novas”, quando de sua chegada a Cochim, Malabar, em 1583:

Na terra se apresentavam à vista coisas


totalmente novas, seja em relação às plantas
ou aos animais e homens. Os frutos são
muitos e de várias formas (...)33

32. Idem, Ibidem. [Tradução nossa do original: “Omnes he insule sunt pulcerrime
et variis distincte figuris pervie et maxima arborum varietate sidera lambentium
plene, quas nunquam foliis privari credo, quippe vidi eas ita virětes atque decoras,
ceu mense Maio in Hispania solent esse. Quarum alie florětes, alie fructuose, alie
in alio statu, secundum uniuscuiusque qualitatem vigebant: garriebat philomena, et
alii passeres varii ac innumeri, mense Novembris quo ipse per eas deambulabam.”]
33. Filippo Sassetti. Lettera da Vari Paesi, 1570-1588. editadas por V. Bramanti, ed.
Longanesi, Milão, 1970. [Tradução nossa do original “In terra si rappresentano alla

64
Alexandre Belmonte
Vários relatos de viajantes à Índia entre os séculos XVI-
-XVII também fazem alusão ao encontro como novidade
histórica: o próprio Sassetti envia à Europa várias sementes
de árvores que considerava exóticas, e chega a montar um
jardim botânico em Goa. Os viajantes italianos na Índia, po-
rém, fazem mais referência às culturas humanas encontradas
do que propriamente ao caráter edênico da terra. Niccolao
Manucci (1653-1708) chega a descrever de forma sucinta o
funcionamento do sistema de castas na Índia34, e Pietro Della
Valle conjectura sobre a origem dradiviana da rainha de
Olaza, entre 1623-25, pelo fato de andar descalça “tal qual as
mulheres hindus”35. Esses relatos se colocam, temporalmen-
te, um século ou mais após as primeiras cartas sobre o novo
mundo, e tais quais os relatos contemporâneos sobre a Améri-
ca, estão mais preocupados em compreender como vivem as
culturas encontradas do que propriamente estabelecer uma
visão do Paraíso – embora este tema seja recorrente em quase
toda a literatura de viagens.
Os primeiros relatos sobre a América recém-desco-
berta parecem emergir, portanto, da busca pelo Éden,
pelo Paraíso terrestre, uma busca que a historiografia tem
visto como estritamente medieval. A natureza é exacerba-
da pelo observador: uma natureza semelhante à europeia,
mas infinitamente mais verde, mais colorida, que parecia
desafiar suas próprias leis, já que as árvores estavam sempre
verdes, os pássaros estavam sempre a cantar, os homens es-
tavam sempre como quando saíram do ventre.

vista tutte cose nuove, sì quanto alle piante come degli animali e degli uomini. I
frutti sono molti e di varia figura (...)”]
34. Niccolao Manucci. Storia do Mogor, 1653-1708. Niccolao Manucci, tr. William
Irvine, Royal Asiatic Society, Londres, 1900, pp. 34-35. (reeditado em 1989 por
Publishers and Distributors, Nova Delhi).
35. James Talboys Wheeler e Michael Macmillan. European Travellers in India. Calcutá,
Susil Gupta India Ltd., 1956, p. 30.

65
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
A nudez era um aspecto edênico por excelência: mito e
religião se confrontam de forma tensa na imagem do índio
nu. Adão e Eva, antes de caírem em tentação, andavam nus.
Thevet chega a fazer uma interessante comparação:

Afirmam alguns indivíduos que nos primeiros


tempos da colonização europeia homens e
mulheres viviam nus, escondendo suas partes
secretas, assim como está escrito com relação
aos nossos primeiros pais.36

Chegava-se vestido à América, e a nudez do outro apon-


tava não somente o modo de vida diverso desse outro, mas a
estranheza por parte de quem chegava de ter que se confrontar
com sua própria vestimenta, de ter que historicizá-la, de ter
que encontrar na religião e nos desígnios de Deus a justifica-
tiva maior para o uso da vestimenta. Colombo não deixou de
sentir esse estranhamento, de sentir-se inferior ao índio nu; tan-
to é assim que o obrigou a vestir-se antes que viesse a ter com
ele. O sentimento de inferioridade diante do índio nu tinha
origens explicitamente bíblicas: se os indígenas eram criaturas
de Deus, e se podiam andar nus, significava que eram então
puros e livres do pecado original assim como o haviam sido
Adão e Eva antes da Queda. Restavam duas atitudes, exercidas
e pensadas ao longo da conquista: ou via-se o indígena como
esse elemento puro, ou pensava-se nele como infiel e pagão,
infrator da lei de Deus, ousando andar nu mesmo após a expul-
são do primeiro pai e da primeira mãe do paraíso.
Muitos viajantes enxergavam, na nudez, não simplesmen-
te a humanidade em sua infância, mas uma humanidade
sexualizada ao extremo, tão adulta a ponto de andar nua e in-
fringir a ordem de Deus. Além disso, a nudez erotizava tanto
o outro como o si-mesmo: o encontro de culturas significava

36. André Thevet. As singularidades da França Antártica. Belo Horizonte, Itatiaia,


1978, p. 101.

66
Alexandre Belmonte
também encontros sexuais, jogos de sedução, e na falta da se-
dução recíproca, recorria-se a investidas violentas, tratando o
corpo do outro como objeto vivo a ser consumido, ato sexual
a ser consumado de uma maneira ou de outra. A nudez dos
nativos remetia não somente a um primitivismo cultural, mas
ao prazer do ato sexual. O paradisíaco do mundo novo deve-
ria contar também com a facilidade de se obter prazer carnal
num imenso jardim de delícias, e as índias, segundo Michele
de Cuneo, vencidas menos pelo prazer que por cordas que as
atavam, comportavam-se como experientes cortesãs37. A nu-
dez remetia à imagem de índios fortes e saudáveis, objetos de
desejo e repugnância – desejo do que é diferente e repugnân-
cia do que é igual, desejo do homem-besta e repugnância da
bíos, da cultura ameríndia, estranha e agressiva.
A esse tipo de relato, relacionado às primeiras viagens de
exploração, seguem-se os relatos ligados às viagens de expan-
são, como é o caso do Diário de navegação de Pero Lopes de
Souza. Neste, o outro deixa de ser a totalidade dos entes, e
passa a ser descrito em suas especificidades. Parece haver aí
uma transição entre formas de conhecer: enquanto nos pri-
meiros relatos ‘conhecer é saber’, nas viagens de expansão,
conhecer passa a ser ‘ver’. O relato de Gândavo é significativo
dessa relação entre a visão e o verossímil, entre o que se vê e
a história fidedigna que se propõe a contar.
Serão as viagens de colonização a consolidar a transição
entre formas distintas de conhecer. Para Léry, conhecer era
ver e experimentar. Não bastava o “eu vi com meus olhos”
– pois André Thévet havia evocado esta máxima e nem por

37. Assim relata Michele de Cuneo: “(...) capturei uma mulher belíssima (...) e es-
tando ela nua, como é costume deles, concebi o desejo de ter prazer. Queria pôr
meu desejo em execução, mas ela não quis, e tratou-me com suas unhas de tal
modo que eu teria preferido nunca ter começado. Porém, vendo isto (para contar-
-te tudo, até o fim), peguei uma corda e amarrei-a bem, o que a fez lançar gritos
inauditos (...). Finalmente, chegamos a um tal acordo que posso dizer-te que ela
parecia ter sido educada numa escola de prostitutas.” Apud. Todorov. p. 67.

67
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
isso seu relato era fidedigno – mas sim o “eu estive lá e ex-
perimentei junto aos nativos”. Connaître, ‘nascer com’: eis o
que recupera o olhar de Léry para o ocidente. É assim que as
viagens de colonização inauguram uma nova abordagem da
alteridade, uma nova retórica sobre o outro e também novas
reflexões sobre a alteridade cultural. Claro que Léry evoca
sempre o colorido do Novo Mundo, sua flora diversificada,
seus estranhos animais – justamente como nos relatos dos
viajantes que o antecederam. Será, porém, a espiritualidade
o paradigma por excelência a apontar diferenças essenciais
entre as culturas do lado de lá e as do lado de cá. A espiritua-
lidade será o paradigma essencial, tanto para católicos quanto
para protestantes, em suas descrições dos nativos. Os relatos
do século XVII deixam várias pistas sobre a evangelização e
sobre o fato de ter de se confrontar com a alteridade cultural:

Em relação aos Tapuias, não tinha sido


ainda possível persuadi-los, pois o diabo
lhes ameaçava e maltratava (...) e eles
não queriam reluzir de santidade entre os
cristãos. 38.

Os tapuias, segundo Rouloux Baro, “(...) vivoient comme


des bestes, sans autre soucy que d’en tirer service”39. No século
XVII, era já comum entre os cronistas descrever os tapuias
como povos bárbaros, mais selvagens que os tupinambás do
litoral. A própria palavra tapuia significava, em tupi, “aqueles

38. Relations de Madagascar de F Cauche, Du Bresil de Rouloux Baro avec l’Histoire dela
guerre faite ao Bresil entre les Portugais & les Hollandois. Paris, chez Augustin Courbé,
Traduict d’hollandois en Français par Pierre Moreav de Paray en Charluis, 1651.
[Tradução nossa do original « Pour les Tapoyos il n’avoit pas encore esté possible
de les persuader, à cause que le diable les menaçoit et mal-traittoit (...) et qu’ils ne
voyoient point reluire de sainteté entre les Chrestiens »]
39. Viviam como bestas, sem qualquer outra preocupação além de tirar proveito
disso. (tradução nossa) Relations de Madagascar... Op. Cit.

68
Alexandre Belmonte
que falam a língua travada”, “selvagens”40. Francisco de Brito
Freyre relata ao monarca português que os nativos desta parte
do mundo eram “incapazes dos Sacramentos, como animaes
brutos(...)”41. Esse tipo de narrativa prevalecia ainda no século
XVII, apesar de ser conhecida a Bula apostólica que decidia
sobre a racionalidade dos nativos:

Pelo que o Pontifice Paulo Terceiro declarou


por Bulla Apostollica, anno mil quinhentos
trinta e sete, que os Amèricos erão homes
racionaes; e podião ser admitidos no gremio
da igreja42.

Um projeto de evangelização deveria, portanto, levar em


conta as adversidades, que eram basicamente centradas nos
defeitos dos nativos em relação aos europeus (indisciplina,
preguiça, gula etc.) e na cosmovisão indígena estruturada de
forma mítica (adoração a deuses, transes e comunicação com
espíritos dos mortos etc.):

Inredusiueis [os Tapuyas] ao exemplo dos


que se converterão a nossa Fè, e tomárão
nossos costumes, cento e sessenta annos
havia, que sem quererem ouvila, bradava
no Estado do Brasil, a voz do Evangelho.
A nenhum Deos adorão; mas reconhecem
confusamente hũa excellencia Superior, a
que chamão Tupá; não ignorando de todo
o premio e o castigo, reservados para a
immortalidade”.43

40. Sheila Hue argumenta que os portugueses aliados dos tupinambás da costa
haviam já herdado o desprezo destes últimos por tribos não-tupis. Cf. Pero de
Magalhães de Gândavo. Op. Cit. p. 167.
41. Nova Lusitania - historia da guerra brasilica à purissima alma e savdosa memoria
do serenissimo principe Dom Theodosio principe de Portugal, e principe do Brasil. Por
Francisco de Brito Freyre, Lisboa, Officina de Joam Galram, 1675.
42. Nova Lusitania... Op. Cit.
43. Nova Lusitania... Op. Cit.

69
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
A percepção do transe indígena ainda intriga o coloniza-
dor, em fins do século XVII, seguindo uma já sesquicentenária
tradição de referir-se aos costumes dos nativos de forma etno-
cêntrica, comparando-os às bruxas e feiticeiras:

São muy viciosos na gula; na preguiça, e


em venerar copiosa canalha de Feiticeiros,
e Predicantes, que com espantosas vozes os
aconselhão todas as noites no modo de suas
vidas; e os chamão todas as madrugadas a
chorarem seus mortos, a que dão abomináveis
sepulcros dentro de sy mesmos”.44

É interessante a percepção do transe indígena pelos


catequistas do século XVII: tratava-se de dar aos mortos
“abominável sepulcro dentro de si”. Mais de um século an-
tes, Léry vira o transe de outra forma; seu olhar era outro. É
curioso que, passadas quase duas décadas desde que estivera
entre os tupinambás, Léry ainda se espanta ao falar do transe
dos indígenas em suas cerimônias. Ele diz, a propósito de sua
experiência numa assembleia tupi:

(...) Tive como recompensa uma tal alegria,


não apenas ouvindo os acordes tão bem
medidos de uma tal multidão, e sobretudo
pela cadência e pelo refrão da balada, a cada
estrofe todos conduziam suas vozes dizendo:
heu, heuaüre, heüra, heüraüre, heüra,
heüra, oueh, fiquei inteiramente encantado;
mas também todas as outras vezes que me
lembro disto, o coração sobressaltado, me
parece que ainda os tenho nos ouvidos45.

44. Nova Lusitania... Op. Cit.


45. Léry, Op. Cit, p. 403. [Trad. nossa adaptada de Michel de Certeau. Op. Cit. p.
215]

70
Alexandre Belmonte
O transe não é, antes de qualquer coisa, algo abominável;
Léry guarda a melodia na memória, o que faz com que seu co-
ração se sobressalte, mesmo passados 20 anos de seu encontro
com os tupinambás. Ele ouve muito, mas não consegue mais
recuperar o exato sentido das palavras em seu contexto de
origem, por isso deve transcrevê-las, deve até mesmo marcar
a notação musical e transcrever um longo diálogo com um
nativo em língua indígena. Mas Léry também vê, também
testemunha. Ele parece recuperar o sentido grego de histor
– testemunha ocular – em sua História do Brasil. A primazia
do olhar ressurge na história do ocidente, instaurando um
tipo de discurso sobre a alteridade onde não mais cabem os
antigos argumentos de autoridade utilizados por Colombo,
Vespucci, Cortés ou Pigafetta.
Preocupado em traduzir e compartilhar o outro que ele
constrói, Léry acaba elaborando uma nova retórica da alteri-
dade. Será a arqueologia desse olhar sobre o outro a nos dar
a dimensão das tensões e negociações entre culturas, identi-
dades e diferenças. Se Colombo, 50 anos antes, batizava as
ilhas e terras, Léry, por outro lado, as descreve na língua dos
nativos. É tão elaborada sua retórica sobre a alteridade que
chega a transcrever um colóquio em tupi-guarani, traduzin-
do-o para o francês.
A segunda edição do relato de Léry, de 1580, é dividida em
um prefácio e 22 capítulos. Os quatro primeiros dizem respei-
to à partida da França e à travessia do Atlântico, descrevendo
os preparativos, encontros com navios piratas, peixes avistados
em alto-mar, tormentas e incômodos da viagem. Do quinto
ao oitavo capítulos, é descrita a descoberta da terra nova e sua
geografia, a acolhida no forte de Coligny, bem como os pri-
meiros contatos com os nativos, sua indumentária e nudez. Do
capítulo 9 ao 13, Léry descreve a flora e fauna do Novo Mun-
do. Os capítulos 14 e 15 versam sobre as armas dos nativos e
suas maneiras de guerrear. O capítulo 16 fala sobre a religião
dos nativos. Entre os capítulos 17 e 19, Léry parece consolidar

71
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
sua etnografia, narrando graus de parentesco, casamento, po-
ligamia, leis, sepulturas e funerais dos nativos. O capítulo 20 é
um (controverso) colóquio entre Léry e um nativo, traduzido
por um intérprete, e transcrito em francês e em tupi. Os dois
capítulos restantes versam sobre a partida do Brasil e a peno-
sa viagem de retorno: perigo de naufrágios, tormentas, fome,
sede, e finalmente a chegada à França.

72
Alexandre Belmonte
Identidade e alteridade no relato de Léry:
o discurso sobre o outro

L éry inicia seu relato explicando ao leitor os motivos que o


fizeram realizar sua viagem ao Novo Mundo. Descreve a
atividade religiosa de Villegagnon na França, afirmando que
este, “ayant gagné les cœurs de quelques grans seigneurs de la
Religion reformée”46, com especial simpatia de Coligny, rece-
be a proposta de vir ao Novo Mundo.
Após chegar e se instalar numa ilha na baía de Guanabara,
à qual deu o nome de ilha de Coligny, Villegagnon construiu
um forte para proteger-se de ataques de portugueses e indíge-
nas. Tal como Colombo, ele também batiza o lugar, situa-o
dentro do contexto religioso que traz consigo. Mandou di-
versas cartas à Genebra, pedindo auxílio, “requerant l’Église
et les Ministres dudit lieu de luy ayder et de se secourir autant
qu’il leur seroit possible en ceste sienne tant saincte entreprin-
se”47. Em uma das cartas, Villegagnon pedia que lhe fossem
enviados “ministros da palavra de Deus”, para “attirer les sau-
vages à la cognoissance de leur salut”48.

46. Léry. Histoire... p. 108. (Trad. Bras. Por Sérgio Milliet: “conseguiu a boa vontade
de alguns fidalgos adeptos da religião reformada” In Jean de Léry. Viagem à terra do
Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia, 1980).
47. Idem, Histoire..., pp. 108-9. (Trad. Bras: “[mandou] ... requisitar ministros reli-
giosos para o ajudarem e socorrerem na medida d possível nessa sua tão santa
empresa”. Léry, Viagem... p. 55).
48. Léry. Histoire... p. 109. (Trad. Bras. “abrir aos selvagens o caminho da salvação”.
Léry. Viagem... p. 55).

73
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Em Genebra, há uma constante mobilização para se bus-
car pessoas aptas a realizar esse tipo de viagem. Villegagnon
deixara claro que os interessados deveriam estar dispostos a
aceitar uma mudança radical de vida:

(...) advertiu Du Pont que, em chegando


a essa terra da América, seria necessário
contentarem-se com certa farinha feita
de raízes em lugar de pão; que não teriam
vinho, nem notícias dele, pois aí não havia
parreira e finalmente que no novo mundo
(...) far-se-ia mister levar uma vida em tudo
e por tudo diferente da da nossa Europa.
Com isso todos aqueles que se compraziam
de preferência na teoria dessas coisas e aos
quais não apetecia mudar de ares nem
suportar as ondas e o calor da zona tórrida,
nem ver o Pólo Antártico, se recusaram a se
alistar e embarcar em tal viagem.49

É assim que Léry, “curieux de voir ce monde nouveau”50,


decide deixar a França em direção ao desconhecido mundo
novo. Nesse breve primeiro capítulo de seu relato, Léry nos
diz alguma coisa a respeito de sua proveniência. Não foi à toa
que Lévi-Strauss qualificou seu relato de “breviário do etnó-
logo”. Em seu despojamento da terra segura e ‘civilizada’ e
na viagem rumo a um mundo novo, há curiosidade e medo,
fé e coragem.
É somente no segundo capítulo da Histoire que se ini-
cia propriamente a relação de Léry com o mar. Todos os
suprimentos, bem como as peças de artilharia, haviam
sido financiados pelo rei, por intermédio de sieur de Bois
le Comte, sobrinho de Villegagnon. O capitão do navio,

49.Léry. Histoire... p. 111. (Trad. Bras. In Léry. Viagem... p. 56).


50. Léry. Histoire... p. 112. (“curioso de ver esse mundo novo”. Tradução nossa.)

74
Alexandre Belmonte
“fort bien experimenté en l’art de navigation”51, dá a Léry
confiança para embarcar.
Comecemos pela tripulação. Quem vinha para o Novo
Mundo? Certamente calvinistas como o próprio Léry, outros,
conforme reprova Léry, participariam de banquetes canibais.
Marinheiros experientes, jovens destinados ao aprendizado
rápido da língua dos indígenas, e cinco moças e uma go-
vernante, “as primeiras mulheres francesas vindas à terra do
Brasil e cuja chegada causou grande admiração aos selvagens
do país, os quais (...) jamais haviam visto mulheres vestidas”52.
O grupo avista a costa brasileira em 26 de fevereiro de 1557,
após uma experiência com o mar marcada pelo acaso e pela
deriva. A despeito da ciência cartográfica que se tinha então,
Léry chega a pensar que se encontravam num “exílio sem
solução”. Quando finalmente vêem terra firme, Léry e seus
companheiros de viagem rendem graças a Deus.

E porque nos vimos então não somente


livres dos perigos e adversidades às quais por
tantas em mar vezes estivéramos próximos,
mas também por termos sido tão felizmente
conduzidos ao porto desejado, a primeira
coisa que fizemos, todos juntos, após colocar
pé em terra firme, foi render graças a Deus53

O discurso é construído de forma a louvar Deus, mas é um


discurso claramente escrito por um cristão reformado – o su-
jeito emerge, em Léry, quase como um indivíduo, no sentido
moderno. Louis Dumont vê, no calvinismo, uma intensifica-
ção no que se refere à relação do homem enquanto indivíduo

51. Léry. Histoire... p. 114. (Trad. Bras. “bom piloto e experimentado na arte da
navegação”. Léry. Viagem...p. 59.)
52. Léry. Viagem à terra do Brasil, Op. Cit., p. 59.
53. Léry. Histoire... p. 161. [Tradução nossa]

75
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
com o mundo54. Em Léry, de fato, o indivíduo emerge como
aquele que atua no mundo – um indivíduo que, a despeito de
sua devoção a Deus, é livre não só para interpretar a Bíblia,
mas para agir sobre a realidade. Sob esse aspecto, a reinven-
ção, por Léry, de um fato antropológico – a diferença – tem
ligações estreitas não somente com a cultura do calvinismo
em sentido estrito, mas com a transformação no estatuto do
indivíduo possibilitada, por entre outros fatores, também
pelas práticas da Igreja Reformada e pelo ambiente cultural
reformado em certos lugares da França e Suíça.
Além do fator religioso, parece haver, junto ao processo de
expansão ultramarina na Europa dos séculos XV-XVI, uma
saturação das possibilidades de sociabilização do homem e
da cultura. As formas e possibilidades de interações sociais
encontravam-se limitadas, sobretudo pela ideia eclesiásti-
ca acerca do que fosse o homem. Apontando ao homem o
que ele deveria ser idealmente, essa ordem social excluía de
antemão quaisquer outras possibilidades de individuação,
criatividade e relacionamento com o mundo. Sob este as-
pecto, a expansão ultramarina funcionou como a fuga desse
homem de sua situação – uma fuga não apenas de seu mun-
do circundante, mas da própria realidade.
Márcio Gonçalves defende, referindo-se à busca de ou-
tros mundos dentro do ciberespaço, que a fuga da realidade
em favor de outra realidade, de um duplo da realidade, tem
sido constante no Ocidente.55 Citando Clément Rosset,
Gonçalves diz que essa esquiva do real tem seu fracasso e sua
maldição: o “indesejável ponto de partida”, ou seja, o próprio
real do qual se pensava estar protegido, é também o ponto

54. Louis Dumont. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia mo-


derna. Rio de Janeiro, Rocco, 2000, pp. 62-71.
55. Márcio Gonçalves. Amores Virtuais – uma minoria desejante. In: Revista eletrôni-
ca da ECO-UFRJ Semiosfera, n.º 3. http://www.eco.ufrj.br/semiosfera/anteriores/
semiosfera03/perfil/mat3/frmat3.htm. Acesso em agosto de 2004.

76
Alexandre Belmonte
de chegada (o outro, o “duplo protetor” transformado em
fantasma). As consequências dessa fuga, e desses encontros
e desencontros é o desenrolar de uma velha história: levando
seu mundo consigo e encontrando outros mundos possíveis,
os homens vão construindo cultura. No caso específico do
encontro entre culturas ocorrido nessas terras no século XVI,
seu estudo demanda necessariamente a análise do caráter do
ato comunicativo, dos modos em que se dá a comunicação, e
das relações intelectuais entre o homem e tudo aquilo que é
passível de ser comunicado. Em que consistia o universo de
comunicação de quem chegava e de quem aqui estava? De
que forma a questão da identidade do homem estava implica-
da em todo esforço por comunicar-se?
A identidade – seja ela individual ou coletiva – sempre se
constrói em um relacionamento com a alteridade. O indi-
víduo moderno surge em um momento singular da história
da humanidade: surge através dos encontros e desencontros
entre homens, entre homens e religiões, entre homens e ofí-
cios, entre homens e labor. As grandes navegações funcionam
como uma mola propulsora, revolucionando o estatuto do su-
jeito e incrementando a formação do indivíduo moderno. Pois
os encontros culturais que se seguem às grandes navegações
recolocam em jogo a questão das identidades e diferenças.
De acordo com E. C. Leão, na modernidade, o indivíduo
é o modo em que o homem se realiza como homem. Nem
sempre, porém, foi assim. Tempo houve em que o homem
não sentia que todo homem era um indivíduo. O indivíduo,
in-divisum56, reivindica sempre exclusividade: é por isso que
hoje não se consegue mais pensar em homem sem essa iden-
tificação quase necessária, como se o afrouxamento entre os
dois termos – homem e indivíduo – representasse uma terrível
ameaça à humanidade mesma. É próprio, pois, do indivíduo,

56. In-divisum é o particípio passado do verbo latino in-dividere: não dividir, individir.

77
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
não se identificar, mas sempre se discriminar e distinguir do
outro. O indivíduo não sente o outro dentro de si – o outro
está sempre fora57.
A individualidade pré-moderna, por outro lado, era tanto
vivida quanto conceitualizada de forma diferente. O nas-
cimento do que costuma ser caracterizado por indivíduo
moderno, entre os séculos XVI e XVII, representou uma
importante ruptura com o passado, abrindo novas formas de
ver e comunicar a realidade. A Reforma e o Protestantismo
expuseram o homem diretamente a Deus, sem o até então
necessário filtro da igreja. O Humanismo renascentista reco-
locou o homem no centro do universo – a antiga humanitas
greco-romana foi retomada não somente nas artes, embora
as artes sejam espaços privilegiados dessa experiência huma-
nista de outros relacionamentos possíveis com a alteridade.
As revoluções científicas também indicaram outras formas
de comunicação entre homem e natureza. Posteriormente,
a cultura da Ilustração, aparentemente libertando o homem
do dogma e da intolerância, fez emergir a imagem de um
homem racional e científico.
Léry reclama individualidade ao mesmo tempo em que
o Outro ainda não estava radicalmente fora dele mesmo. Os
indígenas faziam parte dele mesmo, e encontravam acolhi-
mento na cultura europeia, mais especificamente, na cultura
do calvinismo francês. Entretanto, é a liberdade do Léry cal-
vinista que lhe possibilita enxergar o tupinambá como o
outro – que ele não aniquila e destrói como um espanhol
destrói um asteca. Ao contrário, é precisamente a presença
do tupinambá que ajuda Léry a construir um lugar próprio
de onde lhe é possível falar. É nesse sentido que Léry jamais
poderia aniquilar o outro; é a presença do outro a condição
da sua escrita.

57. E. C. Leão. O indivíduo – uma experiência moderna. (manuscrito inédito).

78
Alexandre Belmonte
O encontro de Léry com o tupinambá não se dá numa
apreensão prévia em que um sujeito se distingue dos de-
mais a priori. Tampouco se estabelece primeiramente uma
visão de si mesmo, para então se construir o referencial da
diferença. A possibilidade de ver a diferença existe porque
o homem sempre encontra a si mesmo naquilo que ele vê,
usa, empreende, enfim, naquilo que Heidegger diz que “está
imediatamente à mão no mundo circundante”58. O mundo
já é sempre a totalidade referencial de toda significância, seja
no encontro em si, seja na escrita do relato desse encontro. O
outro não é somente apreendido como coisa-homem, como
mera estrutura biológica, mas sim inserido em uma rede de
referências, no próprio mundo enquanto espaço de todas as
possibilidades de ser homem. O outro não significa a totalida-
de dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria59. Sendo
aqueles dos quais ninguém se diferencia propriamente, o ou-
tro é aquele no qual também já sempre se está. Por isso é
que identidade e alteridade não são dois elementos distantes
e antônimos, mas partes necessárias de um mesmo processo.
Léry se vê no outro, e se vê de modo totalmente inusitado,
pois, na medida em que se identifica com os indígenas, Léry
se vê como indivíduo. Assim, pode até mesmo se dar conta de
que o homem pode ser tanto um francês calvinista como um
tupinambá “pagão”.
A chegada de Léry ao Mundo Novo supõe, desde o primei-
ro momento, uma interação com os nativos. É interessante
que mesmo esses primeiros contatos já são de certa forma
historicizados:

(...) fomos ancorar a meia légua de um


lugar montanhoso chamado Huuassú pelos
selvagens. Botamos nágua (sic) o escaler

58. Martin Heidegger. Ser e Tempo, vol 1. Petrópolis,Vozes, 1997, p. 170.


59. Idem, Ibidem, p.169.

79
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
e depois de ter disparado alguns tiros de
peça para avisar aos habitantes, conforme
o costume de quem chega a esse país, vimos
reunirem-se na praia homens e mulheres
em grande número. Nenhum de nossos
marinheiros, já viajados, reconheceu bem o
sítio; entretanto os selvagens eram da nação
dos margaiá, aliada dos portugueses e por
consequência tão inimiga dos franceses que
se nos apanhassem em condições favoráveis,
não só não nos teriam pago resgate algum,
mas ainda nos teriam trucidado e devorado.
60

Já há histórias e lendas acerca desse lugar. Cinquenta anos


de descoberta já haviam sido suficientes para motivar, na Eu-
ropa, uma organização das ideias acerca do Novo Mundo.
Essa sistematização do conhecimento acerca do Novo Mun-
do, típica da cultura do Renascimento, é também evidente
quando Léry parece, já de antemão, classificar os nativos,
chamando-os “nação”. Léry, antes mesmo de pisar em terra
firme, já divide os indígenas em grupos. O outro já é discipli-
nado através da escrita – é um outro que já existe, de certa
forma, no europeu. Sabia-se algo desse outro representado
pelo indígena, mesmo anteriormente a qualquer experiência
e contato, pois ele já fora engendrado não somente à história
da navegação francesa, mas também às disputas políticas e
econômicas entre Portugal e França, por exemplo.
É curioso, porém, que Léry não somente disciplina o ou-
tro a partir de seu engendramento à história europeia, mas
também disciplina o leitor em relação à diferença: o lu-
gar montanhoso de que fala Léry tem um nome indígena,
Huvassou (Iguaçu?). Essa disciplina que Léry impõe aos seus
leitores é parte da retórica da alteridade que ele constrói. Esse

60. Léry. Op. Cit. p. 147. (grifos nossos) [Trad. Bras. In Léry. Viagem..., p. 77]

80
Alexandre Belmonte
recurso, diferente de um Colombo, por exemplo, conferia ao
relato mais credibilidade. Através dos nomes em língua nati-
va, o leitor podia sentir-se mais próximo ao mundo distante.
Outro fator bastante recorrente durante grande parte do
relato é a alusão à aparência paradisíaca das terras novas.
Aqui, a natureza é o outro que se contrapõe à cultura, repre-
sentada pelo homem:

E logo pudemos admirar as florestas, árvores


e ervas desse país que, mesmo em fevereiro,
mês em que o gelo oculta ainda no seio da
terra todas essas coisas em quase toda a
Europa, são tão verdes quanto na França em
maio e junho.61

Chama também atenção a maneira como Léry descreve o


corpo do indígena. Suas descrições levam em conta relações
e interpretações quase etnológicas, no sentido que conhece-
mos hoje da palavra. Ele relata como os indígenas mantêm
os cabelos, como adornam o corpo com penas e plumagens,
como espetam paus e pedras no corpo à guisa de identificação
ou rituais etc. Mais tarde a etnologia diria que as tribos se di-
ferenciam pelo corte de cabelos, pela forma como adornam o
corpo, pelo sistema de parentesco, pelos totens e cosmogonias
diversas. Por isso Lévi-Srauss qualificou o relato de Léry como
breviário de etnólogo; por isso que, ao caminhar pela Avenida
Rio Branco, trazia no bolso e na mente o relato de Léry.
A nudez parece ser a diferença que, por razões óbvias, mais
surpreende o europeu:

embora os descreva minuciosamente noutro


lugar, quero desde já dizer alguma coisa
a seu respeito. Tanto os homens como as

61. Idem, Ibidem, p. 147. (Trad. Bras.: In Léry. Viagem... pp. 77-78)

81
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
mulheres estavam tão nus como ao saírem
do ventre materno (...)62

Mesmo ao escrever suas memórias a posteriori, e, portan-


to, tratar da nudez dos nativos em um capítulo especialmente
dedicado ao tema, a surpresa perante a nudez interpõe-se à
sua escrita – já disciplinada por quase duas décadas de leituras
e análises de sua experiência entre os selvagens. Nem mesmo
um texto escrito depois de passados quase 20 anos da viagem
deixa de dar conta da surpresa do encontro e da perplexidade
do confronto. Léry era um religioso calvinista – seus corre-
ligionários eram pastores, intelectuais, editores, escritores
religiosos que pregavam as ideias de Lutero e Calvino, que
falavam contra os jogos e as danças. Seu espanto perante a
nudez do selvagem é o confronto com o que a nudez repre-
sentava: a visão do corpo nu excita os prazeres; o corpo nu é o
corpo apenas saído do ventre, ainda sem inscrição da cultura,
sem batismo, e, entretanto, adulto, fecundo e fértil. A nudez
do selvagem é uma ameaça.
A descrição do corpo dos ameríndios é recorrente em toda
a literatura de viagens, desde Caminha:

A feição deles é serem pardos, maneira de


avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma
cobertura. Nem estimam de cobrir ou de
mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta
inocência como em mostrar o rosto.(...).63

A comunicação é, evidentemente, outro tema que parece


orientar o olhar de Léry. Em relação ao grupo de colonos

62. Idem. Ibidem, pp. 148-149. [Trad. Bras. In Léry. Viagem... p. 78]
63. Pero Vaz de Caminha. A Carta. Rio de Janeiro, MEC-Fundação Biblioteca Na-
cional, s/d., p. 3.

82
Alexandre Belmonte
portugueses já estabelecidos na costa brasileira, Léry diz: “(...)
mandou-nos três tiros de canhão aos quais respondemos com
juros”. Ao falar da comunicação com os indígenas, Léry rela-
ta a ferocidade de alguns grupos:

“[os waitacá] são índios tão ferozes que


não podem viver em paz com os outros e
se acham sempre em guerra aberta não só
contra os vizinhos mas ainda contra todos os
estrangeiros.” 64

A ferocidade desses indígenas “comme chiens et loups, man-


geans la chair crue”65 não limitava-se somente à antropofagia,
mas incluía a adversidade linguística, já que “mesme leur
langage n’estant point entendu de leurs voisins”66. Sem comu-
nicação não poderia haver comércio.
A todo instante, Léry aponta para diferenças e semelhan-
ças, especialmente ao tratar da fauna e da flora do Novo
Mundo:

aves de diversas espécies, aliás diferentes das


nossas”; “peixes de várias espécies diferentes
das nossas (...) Foi também aí que pela
primeira vez vimos papagaios voando alto
e em bandos como os pombos e gralhas na
França, e pude observar que andam sempre
acasalados à maneira das nossas rolas.67

64. Léry. Op. Cit. pp. 152-3. (Trad. Bras.:In Léry. Viagem... pp. 80-81.)
65. Idem. Ibidem. p. 153. (Trad. Bras.: “comedores de carne humana, como os cães
e lobos” In: Léry. Viagem... p. 80.)
66. Idem. Ibidem. p. 153. (Trad. Bras.: “donos de uma linguagem que seus vizinhos
não entendem” In Léry. Viagem... p. 80.)
67. Léry. Ibidem, pp. 157-9. (Trad. Bras. In Léry, Viagem... pp. 83-84.)

83
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Descreve o tamanho, forma, dentição e potência de um
peixe “difforme et monstrueux”68. Descreve também o que en-
sina esse novo peixe: mesmo fora d’água é forte o suficiente
para atacar as pernas do pescador desavisado.
O relato de Léry parece ser possível somente e na medida
em que ele faz aparecer o indígena em sua complexidade
cultural e humana. É possível, então, aparecer também a pró-
pria complexidade cultural, humana e existencial do autor.
O nativo é, a todo o momento, um referencial na organiza-
ção da história da viagem de Léry. Ao falar sobre a fome que
sentiu junto à tripulação na viagem de volta, Léry não se es-
quece dos tupinambás e do canibalismo que poderia ocorrer
ali mesmo no navio. Gândavo, por exemplo, quando falava
dos indígenas, fazia sempre generalizações. Indicava o que
o indígena era, e, de fato, em muitas passagens ele insistia
em dizer, assim como Colombo, que os nativos eram todos
iguais. A única experiência possível, portanto, era a de histo-
riar, narrar esse outro que era sempre e a cada vez igual:

Os quais ainda que estejam divisos, e haja


entre eles diversos nomes de nações, todavia
na semelhança, condição, costumes e ritos
gentílicos todos são um.69

Ao descrever os indígenas, Gândavo confia nas generaliza-


ções, como se, de fato, os nativos fossem uma única entidade,
produzindo passagens interessantes e ‘saborosas’:
São desagradecidos em grã maneira, e mui
desumanos e cruéis, inclinados a pelejar
e vingativos em extremo. Vivem todos mui
descansados sem terem outros pensamentos
senão comer, beber e matar gente, e por isso

68. Idem. Ibidem. p. 159. (“disforme e monstruoso”, tradução nossa)


69. Pero de Magalhães de Gândavo. Op. cit. p. 133.

84
Alexandre Belmonte
engordam muito, mas com qualquer desgosto
tornam a emagrecer. (...) São mui desonestos
e dados à sensualidade, e assim se entregam
aos vícios como se neles não houvera razão de
homens (...)70

Léry, embora por vezes se refira aos indígenas como uma


única entidade, compara e dialoga com um conhecimento
prévio que já devia ser comum na França, em meios letrados,
sobre os nativos americanos. No capítulo que escreve sobre
os nativos, Léry diz que eles não são nem maiores, nem me-
nores, nem mais gordos que os franceses, e que não têm a
aparência monstruosa. Os selvagens
não são maiores nem mais gordos do que
os europeus; são porém mais fortes, mais
robustos, mais entroncados, mais bem
dispostos e menos sujeitos a moléstias,
havendo entre eles muito poucos coxos,
disformes, aleijados ou doentios.71

Ao passo que Léry compara os indígenas aos europeus,


Thevet, por outro lado, parece insistir em mostrar a monstru-
osidade do selvagem, tema fascinante ao europeu do século
XVI:

Seus olhos, contudo, são mal feitos, ou


seja, são negros e vesgos. Esta característica
confere ao seu olhar um aspecto que lembra
o de feras selvagens.72

A comparação parece ser, para Léry, o método mais eficaz


de conhecer; será parte do método que ele utiliza para organi-
zar o conhecimento sobre os indígenas. E não é um método

70. Idem. Ibidem. P. 134.


71. Léry. Op. cit. p. 211. (Trad. Bras. In Léry. Viagem... p. 111)
72. Thevet. Op. Cit. p. 103.

85
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
óbvio. Muitos viajantes e exploradores, como vimos, não
conseguiam ter esse relativismo, cuja ausência é muito clara
em Colombo. Sua hesitação em comparar era equivalente
à sua hesitação em enxergar humanidade nos nativos. Nem
mesmo reconhecia que os indígenas falassem uma língua:
“Se Deus assim o quiser – escreve Colombo – no momento
da partida levarei seis deles a Vossas Altezas, para que apren-
dam a falar”73. Todorov lembra que os tradutores franceses de
Colombo, chocados com as palavras, traduziram a passagem
em “para que aprendam nossa língua”74...

73. Apud. Todorov. Op. cit. p. 42.


74. Idem. Ibidem, p. 42.

86
Alexandre Belmonte
(...) – Sire, já falei de todas as cidades que
conheço.
– Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
– Veneza – disse o Khan.
Marco sorriu.
– E de que outra cidade imagina que eu
estava falando?
O imperador não se afetou.
– No entanto, você nunca citou o seu nome.
E Polo:
– Todas as vezes que descrevo uma cidade
digo algo a respeito de Veneza.
– Quando pergunto das outras cidades,
quero que você me fale a respeito delas. E
de Veneza quando pergunto a respeito de
Veneza.
–Para distinguir as qualidades das outras
cidades, devo partir de uma primeira que
permanece implícita. No meu caso, trata-se
de Veneza.
– Então você deveria começar a narração de
suas viagens do ponto de partida, descrevendo
Veneza inteira, ponto por ponto, sem omitir
nenhuma das recordações que você tem dela.
(...)
– As margens da memória, uma vez fixadas
com palavras, cancelam-se – disse Polo. – Pode
ser que eu tenha medo de repentinamente
perder Veneza, se falar a respeito dela. Ou
pode ser que, falando de outras cidades, já a
tenha perdido pouco a pouco.
Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.
Capítulo 3
Construção da narrativa e
métodos da História em Léry
Argumentos de autoridade e
construção do conhecimento

Q ue sabia Jean de Léry acerca do Mundo Novo antes de


sua viagem? E de que forma esse conhecimento prévio
pôde aparecer – se é que pôde – em um texto escrito quase
20 anos após o regresso de seu autor? E, ainda, como é possí-
vel conjecturar sobre o impacto da experiência presencial de
Léry no Novo Mundo sobre o conhecimento que tinha des-
sas terras antes de sua viagem, abalando antigos preconceitos
e criando outras visões e representações? Em suma, como
podemos, hoje, interpelar um texto como o relato de viagem
de Léry, no que diz respeito às representações do outro e à
construção de uma identidade cultural para si mesmo?
Concordemos, a princípio, com a desculpa de Léry por
não ter publicado sua obra até então devido à perda do ma-
nuscrito original, o qual foi recuperado, novamente perdido
e finamente recuperado definitivamente pouco antes da pu-
blicação da Histoire d’un Voyage faict en la terre du Brésil, em
1578. Não há meios de saber os pormenores da epopeia de
suas anotações de viagens, senão pelo que dela conta o autor.
É de se supor, porém, a existência de algum registro escrito
no Novo Mundo, de outra forma, como pôde Léry lembrar-se
com exatidão de detalhes tão minuciosos acerca dos tupinam-
bás? Como poderia transcrever tantos nomes em tupi-guarani
– além de um inteiro colóquio em língua nativa – se não
através de algum suporte material, de anotações feitas in loco?
Frank Lestringant procurou marcar as fontes a que Léry
supostamente recorreu ao escrever a história de sua viagem.

90
Alexandre Belmonte
Muitas dessas obras foram, entretanto, editadas após o regres-
so de Léry à França, de modo que se torna difícil, senão pelas
próprias indicações do autor, estabelecer uma lista precisa de
suas leituras.
A análise de outra obra de Léry nos elucida alguns proble-
mas, ao passo que nos sugere outros. Em 1574, ou seja, quatro
anos antes da publicação da história de sua viagem ao Brasil,
Léry publica a Histoire de la ville de Sancerre1, seu testemu-
nho do ataque aos protestantes refugiados em Sancerre e da
fome imposta à cidade em 1573, que culmina, na escrita de
Léry, com o episódio de um pai e uma mãe surpreendidos
enquanto comiam o cadáver da filha, morta de fome aos três
anos.
Através de remissões a outros autores, tanto na Histoire
d’un voyage quanto na Histoire de la ville de Sancerre, po-
demos conjecturar sobre as possíveis leituras de Léry, assim
como através de sua relação com seus editores e com os escri-
tores protestantes do século XVI.
É de se supor que ele tivesse lido algumas das publicações
do primeiro editor de sua história do Brasil, Antoine Chuppin.
Várias de suas publicações são, entretanto, posteriores à primei-
ra edição do relato de Léry. No ano da publicação da primeira
edição da Histoire de Léry, Chuppin traduziu e publicou o re-
lato de Martin Frobisher, capitão inglês que buscou demarcar
os contornos das terras limítrofes ao pólo norte, e que, ao voltar
para a Inglaterra, trouxe consigo três esquimós capturados du-

1. Jean de Léry. Histoire mémorable de la vie de Sancerre. Contenant les Entreprises,


Siege, Approches, Bateries, Assaux et autres efforts des assiegeans: les resistences, faits
magnanimes, la famine extreme et delivrance notable des assiegez. Le nombre des coups
de Canons par journées distinguées. Le catalogue des morts et blessez à la guerre, sont
à la fin du Livre. Le tout fidelement recueilly sur le lieu, par Jean de Léry. Obra editada
muito provavelmente em Genebra, embora não conste na obra o local de publi-
cação.

91
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
rante a viagem, feita em 15772. Em 1581, Chuppin publica a
Histoire de Portugal de Jerónimo Osório da Fonseca, tradução
de De Rebus Emmanuellis Regis feita por Simon Goulart3. A
tradução de Goulart é permeada de juízos de valor, e nos in-
dica uma visão comum da história no século XVI, a história
como speculum vitæ, espelho da vida. Goulart argumenta que
as histórias, em sua maioria, são como espelhos bem limpos
que mostram, através de testemunhos, “os estados do mundo, e
a vida dos grandes e dos pequenos”. Um dos efeitos que tinham
as histórias, e, portanto, também os relatos de viagens, era fazer
o leitor “amar o bem e odiar o mal”4.
A relação de Chuppin com o protestantismo pode
ser feita não somente por sua casa editorial ter sido em
Genebra, Meca dos calvinistas, sobretudo após a noite de
São Bartolomeu, mas também pela publicação de Philippe
de Mornay, em 1579. Mornay era teólogo e ‘diplomata’
de Henrique IV, tendo prestado importante contribuição
na negociação do Edito de Nantes. Após a abjuração do
Protestantismo do rei Henrique IV, em 1593, Mornay dedi-
ca-se ao ensino de teologia protestante na Universidade de
Saumur. Chuppin publica, da autoria de Mornay, o Traité
de l’église ion traite des principales questions qui ont été mues

2. O título da obra em francês é La navigation du Capitaine Martin Forbisher Anglois, és


régions de west et nordwest, en l’année MDXXVII, contenant les moeurs et façons de
vivre des peuples et habitans d’icelles, avec le portrait de leurs habits et armes, et autres
choses mémorables et singulières, tout incognues par deça.
3. Jerónimo Osório da Fonseca. Histoire de Portugal, contenant les entreprises, naviga-
tions, et gestes memorables des portugallois, tant en la conqueste des Indes Orientales
par eux descouvertes, qu’ès guerres d’Afrique et autres exploits, depuis l’an mil quatre
cens nonante six, jusques à l’an mil cinq cens septante huit, sous Emmanuel premier,
Jean troi-siesme, et Sebastian premier du nom. Comprinse en vingt livres, dont les douze
premiers sont traduits du latin de Ierosme Osorius, Evesque de Sylves en Algarve, les huit
suivans prins de Lopez de Castagnede et d’autres historiens. Nouvellement mise en Fran-
çois par S[imon] G[oulart] [de] S[enlis]. Avec un discours du fruit qu’on peut recueillir
de la lecture de ceste histoire, et ample Indice des matieres principales y contenues. s.l.
[Genebra], François Estienne pour Antoine Chuppin, 1581.
4. Idem, Ibidem.

92
Alexandre Belmonte
sur ce point en nostre temps. É muito provável que Léry não
desconhecesse as questões veiculadas por Mornay – como o
tratado sobre a Eucaristia, tema, aliás, próximo a Léry pela
sua experiência com Villegagnon e a crise sobre a Eucaristia
na França Antártica5. É bastante possível que Léry também
conhecesse alguns escritos de autores que lhe escreveram
as dedicatórias e o sonnet que constam das várias edições da
Histoire d’un voyage:
Lambert Daneau, pastor refugiado em Sancerre com Léry,
escreveu livros contra a dança e os jogos6, e em 1577 escre-
veu uma dedicatória à Léry, que consta da primeira edição da
Histoire d’un voyage, em que louva-lhe a capacidade de trans-
portar o leitor diretamente à América através de uma escrita
bem conduzida:

(…) DE LERY, qui nous peins un monde tout


nouveau,
Et son ciel, et son eau, et sa terre, et ses fruits ;
Qui sans mouiller le pied nous traverses l’Afrique,
Qui sans naufrage et peur nous rend en l’Amerique
Dessous le gouvernail de ta plume conduits.7

Há nessa dedicatória a estupefação de ser transportado ao


Novo Mundo “sem molhar os pés”, “sem naufrágio ou medo”:
Lévi-Strauss parece reviver um encantamento semelhante,

5. A esse respeito, consultar Frank Lestringant. Le huguenot et le sauvage – L’Amé-


rique et la controverse coloniale en France, au temps des guerres de religion (1555-
1589). Paris, Klincksieck, 1990.
6. Lambert Daneau. Traite des Danses, Auquel est amplement resolue la question, a
savoir s’il est permis aux Chrestiens de Danser. Nouvellement mis en lumiere. Genebra,
François Estienne, 1579.
7. Jean de Léry. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. Paris, Librairie générale
française, Le livre de Poche, 1994, p. 51. (Tradução nossa: “De Léry, que nos pinta
um mundo inteiramente novo / e seu céu, e sua água, e sua terra, e seus frutos; /
que sem molhar os pés nos faz atravessar África, / e sem naufrágio e medo nos
leva à América/ sob a boa condução de tua pena.”

93
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
ao passear pela Avenida Rio Branco na década de 1950, com
Jean de Léry no bolso, “breviário de etnólogo”8, ou quando
diz que ao pensar no Brasil quinhentista, nas paisagens e nos
habitantes, e ao ler o relato de Jean de Léry, “on y est”9, somos
transportados para o Novo Mundo, e simplesmente colhe-
-se, para Lévi-Strauss, o momento do encontro e confronto
de culturas, através da “fraîcheur du regard”, da novidade do
olhar de Léry.
Léry mantivera contato com Daneau, já que estiveram
sitiados juntos em Sancerre. Daneau foi pastor, inicialmen-
te em Genebra, depois em vários lugares da França, e era
um dos grandes propagadores do calvinismo. Em 1566,
Jeanne d’Albret, rainha de Navarra, funda em Orthez uma
escola, onde se ensinam teologia, grego, hebraico, filosofia,
matemática e música. Henrique de Navarra lhe confere,
em 1583, o título de universidade real. É aí que Lambert
Daneau ensina teologia, de 1583 a 1593, após ter passa-
do rapidamente pela Universidade de Leide, e após longa
estadia em Genebra, ensinando teologia junto a de Bèze.
Daneau não se contenta em apenas comentar Aristóteles:
escreve vários tratados sobre ética cristã, dentre os quais
Ethices Christianae, publicado em Genebra em 1577, com
reedições em 1579, 1582, 1583, 1588, 1601 e 1614.
Daneau estuda, na Bíblia, todas as ocasiões em que fi-
guram as danças, e decide que esta deve ser proibida aos
cristãos: “Telles sont les voyes de peché, telles les ruses et artifi-
ces du Diable pour engendrer les convoitises et paillardises.”10
Em 1564, Daneau já havia escrito Les Sorciers, traduzida em
1575 para o inglês com o curioso título de A Dialogue of

8. Apud: Jean de Léry, op. cit., p. 5.


9. Jean de Léry. Op. Cit. p. 7.
10. Daneau, Op. Cit. p. 47. [Trad. nossa: “Eis as vias do pecado, eis as astúcias e artifí-
cios do Diabo para engendrar caprichos e lascividades.”]

94
Alexandre Belmonte
Witches. É também de sua autoria a tradução do Traité de dr.
Florent Tertullian tres-ancien, & voisin du temps des Apostres,
environ CLXX ans apres l’incarnation e Iesus Christ, tou-
chant l’Idolatrie. É neste aspecto que Daneau é, junto a Jean
Bodin e Nicholas Remy, um dos principais escritores religio-
sos do século XVI francês contra a idolatria, a bruxaria e as
‘imoralidades’.
Um outro companheiro de Léry presente no cerco a
Sancerre, o pastor Pierre Melet, lhe escreve uma dedicatória
que faz alusão à fome de Léry em sua viagem ao Brasil, que não
se fez extremada a ponto de comparar-se ao cerco a Jerusalém
por Tito, nem ao cerco a Sancerre pelos católicos, poupando
Léry do “ato enorme e cruel” representado pela ingestão da
carne humana, ato “abominável” cometido pela desesperada
família de Sancerre:

(...) Nous peignant ton retour du ciel Ameriquain,


Où tu te vis pressé d’une tres-aspre faim.
Mais telle faim, helas, ne fit pas si dure guerre,
Ni la faim de Juda, ni celle d’Israel,
Où la mere commit l’acte enorme et cruel,
Que celle qu’as ailleurs escrite de Sancerre.11

O próprio Léry, ao falar da fome por que passou a tripu-


lação do navio na volta a França, faz referência ao livro de
Flavius Josephus, La guerre des juifs, em que é narrada a
fome dos sitiados em Jerusalém por Tito, e onde há um epi-
sódio de uma mãe que come o corpo de seu filho12. Também

11. Idem. Ibidem. p. 52


12. Idem. Ibidem, p. 529.

95
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
na Histoire de la ville de Sancerre, Léry já havia traçado um
paralelo entre a fome dos protestantes e a fome imposta por
Tito a Jerusalém no ano 70 d.C.13
O soneto dedicado à Léry na primeira edição da Histoire
d’un voyage faz alusão às mentiras de Thevet, à fúria de
Villegagnon e às guerras de religião na França14, o que nos
leva a crer que a leitura tanto da Cosmographie quanto das
Singularitez de Thevet tivesse sido comum entre os protes-
tantes, bem como a leitura da obra de Jean Crespin sobre os
mártires protestantes desde a época de Huss. O próprio Léry
faz alusões tanto a Crespin quanto a Thevet: ele teria lido a
Cosmographie em 157715.
Esboça-se, nas duas obras de Léry, um cânone de leituras
“clássicas”, citadas constantemente, mas não sob a forma de
remissões, manchettes ao lado do texto, ou notas ao longo
do texto. A forma de citar Cícero, por exemplo, como se
ele fosse parte de um cânone obrigatório, como se fosse tão
óbvio que dispensava a indicação do livro e do editor, nos
indica quais são os autores que fazem parte desse cânone
especial, e quais outros autores Léry quer destacar, ou apre-
sentar ao leitor. Léry cita Cícero com naturalidade, como se
dialogasse com ele, como se devesse fazer menção ao que
Cícero escrevera e ao que era uma das principais matrizes
do pensamento ocidental. O texto de Léry comporta e aco-
lhe essa tradição greco-romana – percebe-se que a questão
da identidade em Léry leva em conta percursos históricos
da Europa greco-romana, peripécias do pensamento, da
linguagem, da poesia, da filosofia e, sobretudo, do cristia-
nismo. O próprio pensamento já é balizado nesse percurso

13.Ver a apresentação de G. Nakam à Histoire de la ville de Sancerre. Paris,Anthropos,


1975.
14. Idem, Ibidem, p. 53.
15. Idem, Ibidem, p. 63.

96
Alexandre Belmonte
histórico. Além dessa matriz clássica, Léry também apre-
senta uma interpretação alternativa da história, citando
constantemente Flavius Josephus, aproximando-se de uma
visão mais providencialista da história, inclusive quando
fala da catequização dos indígenas, do destino histórico dos
índios do Brasil, inconvertíveis à fé cristã por serem descen-
dentes diretos da raça maldita, filhos de Cam.
Léry havia sem dúvida lido Calvino, Lutero, de Bèze e ou-
tros protestantes. Certamente havia lido Ronsard e Rabelais,
ambos exaustivamente reeditados ao longo do Quinhentos,
e por vezes citados por Léry, e também algumas relações de
viagens: a Cosmographie Universelle, de Sebastien Münster,
publicada em Paris por Chesneau et Sonnius em 1575, a His-
toire generale des Indes Occidentales de López de Gómara,
publicada em francês por Sonnius em 1568, à qual Léry
recorre algumas vezes para provar as “mentiras” de André
Thevet. Hans Staden somente foi traduzido para o francês
após a primeira edição da Histoire d’un voyage de Léry, apesar
de ter sido publicado em 1557 em alemão, língua que Léry
muito provavelmente não dominava.
Possivelmente, Léry havia lido a Novus Orbis, de Grynaeus,
publicada em Bâle em 1555, antes de chegar ao Novo Mundo,
já curioso de conhecer essa quarta parte do mundo, antípoda
da Europa cristã. Suas referências a López de Gómara fa-
zem questão de citar seu tradutor para o francês. Sabemos,
entretanto, que o relato de Gómara fora publicado diversas
vezes em línguas que Léry provavelmente não desconhecia
de todo: antes de vir ao Mundo Novo, é possível que Léry
já tivesse lido Gómara. Só no ano de 1554, a relação de sua
viagem foi publicada 3 vezes em espanhol, por Pedro Bernuz
e Miguel Zapila, em Zaragoza, por Augustín Millan, também
em Zaragoza, e por Jan Steels, na Antuérpia. Em 1571, ou-
tro viajante espanhol, Las Casas, foi publicado em latim em
Frankfurt, por Hieronymi Feyerabend. As comparações que
Léry faz entre os tupinambás e outros ameríndios é bastante

97
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
rica em detalhes, bastante atenta a sutilezas e especificidades
de cada grupo indígena, sem que ele tivesse tido contato dire-
to com outras tribos.
No capítulo V, ele descreve a relação dos waitakás com
outras tribos, e a partir daí deduz que eles “n’ont, ni ne veu-
lent avoir nulle acointance ni traffique avec les François,
Espagnols, Portugallois, ni autres de ce pays d’outre mer de
pardeçà”16. Gabriel Soares de Souza e posteriormente Fernão
Cardim descreveram as peculiaridades culturais desses indí-
genas, conforme aponta Plínio Ayrosa17. Léry fala também,
no mesmo capítulo, dos carajás e margaiás, ao descrever as
trocas comerciais destes com os waitakás. As fórmulas que
utiliza para a autópsia dos fatos são indicações do tipo: “con-
forme vim a saber” e “como afirmam”, o que mostra que ele
próprio não tivera contato com essas tribos. Léry relata tam-
bém a proximidade dos waitaká com certas tribos da Flórida,
baseado nas suas leituras de Gómara:

Também poderíamos pôr em paralelo com esses


selvagens certos habitantes da Flórida, perto do
rio das Palmas, tão fortes e ágeis que correm um
dia inteiro sem parar e pega veados na carreira;
ou ainda os grandes gigantes que vivem no rio
da Prata e são igualmente tão fortes e ágeis que
agarram com as mãos os cabritos na corrida.18

16. Idem, Ibidem. p. 153. [Trad. Bras.: “não têm nem querem ter comércio com os
franceses, espanhóis e portugueses, nem com outros povos transatlânticos” In
Léry, Op. Cit. p. 80].
17. Léry, Viagem à terra do Brasil, op.Cit, p. 80, nota 118.
18. Léry. Op. Cit. p. 155. [Trad. Bras.In Lery. Op. Cit., pp. 81-82]

98
Alexandre Belmonte
Desta vez, entretanto, Léry indica o autor, através de uma
manchette ao lado do texto, que indica Francisco Lopez de
Gómara, Histoire generale des Indes, trad. M. Fumée, “liv.
2 ch. 46. & 89”. Faz questão de remeter à obra de Gómara
traduzida para o francês, o que ocorreu somente em 1568.
Entretanto, Léry parece trair-se, já que menciona “le fleuve
de la Plate”, afrancesando o original espanhol, que Gómara
lista como “Rio de la Plata” e que M. Fumée traduz como
“autrement dict de l’Argent”. Vale lembrar que Gómara fora
publicado diversas vezes em espanhol antes da viagem de
Léry ao Brasil.
Guillaume Gazeau e Jean de Tournes, primeiros editores
de Thevet, em 1554, publicaram várias obras em latim,
antes e depois da viagem de Léry: obras sobre astronomia
(Marc Manili, 1551); poesia (Octavianus Mirandula, 1553);
Prudêncio, 1553; vários livros de medicina, dentre os quais
Jérôme Monteaux, 1556, 1557, 1558; Jacques Dubois, 1555;
Erasmo, 1558; Phsysicorum Aristoteli Libri, 1559; Yuhanna Ibn
Massawayh (sec. IX), 1560 etc. Christophe Plantin, também
editor de Thevet (1558), publicou várias edições da Bíblia,
além de Epístolas e prosas eclesiásticas. Publicou gramáticas,
obras de Cícero e escritos de Aldo Manuzio. Publicou
em 1558, na Antuérpia, a tradução da relação de viagem
de Francisco Alvares, Historiale description de l’Ethiopie:
contenant vraye relation des terres, [et] pais du grand Roy, [et]
Empereur Prete-Ian, l’assiete de ses Royaumes [et] Prouinces,
leurs coutumes, loix, [et] religion, auec les pourtraits de leurs
temples [et] autres singularitez, cy deuant non cogneues.
É muito provável que Léry tivesse lido algumas obras pu-
blicadas por Jean Crespin. Havia certamente lido seu célebre
livro dos mártires, publicado em 1554, antes, portanto de sua
viagem, o qual cita por vezes em sua história do Brasil. Léry é
coautor de um artigo nesse livro, conforme conta no último

99
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
capítulo de sua Histoire.19 Crespin publicou também diversos
livros sobre história e religiões, além de Homero (1567), e
gramáticas grega e italiana.
Na mesma década em que Léry empreendeu sua viagem
ao Brasil, outras relações de viagens foram publicadas
na Europa: Luca Antonio Giunta publicou Gianbattista
Ramusio em 1556. O primeiro dos Giunta, ainda em Veneza,
publicara, entre 1489 e 1538, diversos “clássicos”, como
Ptolomeu, Dante, Aristóteles, Tomás de Aquino, Tito Lívio,
Virgílio, Máximo Valério, Eusébio de Cesarea etc. Seus
herdeiros publicaram, entre outros, Marco Polo, 1554-1559 (2
volumes, mais de uma edição), vários comentários jurídicos
e diversas publicações eclesiásticas, além dos clássicos São
Tomás de Aquino e Aristóteles. Publicaram também a Viagem
à Escandinávia de Olaus Magnus, bispo de Upsala, em 1565.
A análise da Histoire Memorable de la ville de Sancerre nos
fornece outras pistas de possíveis e prováveis leituras de Léry,
assim como nos dá indícios para tentar reconstruir ou ao me-
nos acessar um outro modo de fazer história que se esboça
em meados do século XVI.
Em sua tese sobre a Histoire Memorable de Jean de Léry,
Bruna Conconi20 analisa os prefácios de obras de autores
protestantes a fim de perceber como se esboça esse modo di-
ferente de fazer história e uma nova figura de historiador na
segunda metade do século XVI. Segundo Conconi, é nes-
se período que surge, na França, um autêntico movimento
historiográfico, ligado ao Parlamento de Paris, a Jean Bodin,
François Baudoin, Jean de Tillet etc.

19. Idem, Ibidem. p. 548.


20. Bruna Conconi. Le prove del testimone – scrivere di storia, fare letteratura nel-
la seconda metà del Cinquecento: l’Histoire memorable di Jean de Léry. Bolonha,
Patron Editore, 2000.

100
Alexandre Belmonte
Se até então a ars historica era uma ciência carente de
autonomia e desprovida de um objeto específico, o movi-
mento político e literário que agitou a França e outros países
europeus em meados do século XVI consagrou o Estado
como objeto dessa “nova” história. O fito da história conti-
nuava sendo o speculum vitae, o espelho da vida – à máxima
Historia est magistra vitæ (A história é mestra da vida), acres-
centa-se um novo aspecto da história como lux veritatis, luz
da verdade, através de exempla de repertórios a atingir, regras
de comportamento civil e modelos a seguir. Os paradigmas
metodológicos na busca dessa lux veritatis, entretanto, foram
bastante influenciados pela livre-interpretação da Bíblia e pe-
los escritos de Lutero e Calvino.
O editor calvinista Jean Crespin ocupa papel especial nes-
se movimento, e é através da atividade religiosa subjacente ao
seu ofício de editor que podemos relacionar essa transforma-
ção literária a uma operação propriamente política, em que
o pano de fundo parecia ser o embate político em torno da
religião.
Crespin nasceu em Arras, estudou Direito em Louvain e
posteriormente em Paris, onde tornou-se advogado do Parla-
mento. Aos 25 anos, conheceu Calvino e Théodore de Bèze.
Acusado de heresia, refugiou-se em Estrasburgo, de onde se-
guiu para Genebra com de Bèze. Foi em Genebra, em um
meio bastante influenciado pelos protestantes, que Crespin
fundou sua editora e publicou vários livros ao longo da segun-
da metade do século XVI, alguns propagando explicitamente
o protestantismo. Em 1554, conforme vimos, publicou sua
Histoire des Martyrs21, relatando o calvário dos protestantes
vítimas de perseguições religiosas, desde Jan Huss. Publicou,

21. Jean Crespin. Le Livre des Martyrs, qui est un recueil de plusieurs Martyrs qui ont
enduré la mort pour le Nom de nostre Seigneur Jesus Christ, depuis Jean Hus jusques
à ceste année presente MDLIIII. De l’Imprimerie de Jean Crespin, Au mois d’Aoust
de MDLIIII.

101
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
a partir da década de 1550, vários estudos sobre história e
história das religiões, como a de Jean de Hainault22, de 1556,
e a de Jean Sleidan23, em 1557. Publicou também clássicos
como A Odisséia de Homero (1567), além de gramáticas e
dicionários de grego (Guillaume Budé, 1562) e de italiano
(Scipione Lentulo, 1567).
É no momento político da ascensão do protestantismo na
Europa que se delineia uma ideia providencialista da história:
os textos da Bíblia são figuras que remetem à história do mun-
do, contendo a totalidade dos fatos sacros e profanos24. Todas
as experiências humanas eram passíveis de ser interpretadas,
portanto, à luz da Bíblia. Talvez tenha sido precisamente essa
abertura que assegurou à História do Brasil de Léry um aco-
lhimento em relação ao Outro sem par em toda a literatura
de viagens do século XVI. Léry compreende o selvagem tu-
pinambá em sua complexidade humana, diferentemente de
um Colombo ou Castillo. Além disso, a disputa pela evange-
lização dos ameríndios com missões cristãs não reformadas
possivelmente levaram o protestante a uma necessidade de
se relacionar com os nativos de outra forma, estabelecendo
novas formas de pactos e alianças, e, eventualmente, estimu-
lando uma outra abordagem da catequização, e mesmo da
alteridade humana em geral, embora o próprio Léry conside-
rasse os ameríndios inconvertíveis à fé cristã.

22. Jean de Hainault. L’Estat de l’Eglise, avec le discours des temps, depuis les Apostres
sous Neron, jusques à present, sous Charles V. Contenant en bref les histoires tant an-
ciennes que nouvelles, celles specialement qui concernent l’Empire et le siege Romain, la
vie et decrets des Papes, le commencement, accroissement et decadence de la Religon
Chrestienne. [Jean Crespin], MDLVI.
23. Jean Sleidan. Histoire de l’estat de la Religion, et Republique, sous l’Empereur Charles
V. Chez Jean Crespin, MDLVII.
24. Bruna Conconi, op. cit. cap. 3

102
Alexandre Belmonte
É nesse contexto que será dada à estampa, em 1574, a obra
de Léry sobre o cerco à cidade de Sancerre, em que ele relata
sua experiência como testemunha presencial, e fala da fome
que levaria à prática de antropofagia.

103
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Gastronomia grotesca:
canibalismo no Brasil e na França –
o memorável, o notável e o traduzível
na escrita de duas Histórias

C orre o ano de 1573. Estamos em meio às guerras reli-


giosas na França, decorrentes da Reforma Protestante
iniciada na Alemanha por Lutero, que, com a publicação de
suas 95 teses, propunha uma reforma no catolicismo. Esse
movimento se estendeu pela Suíça, França, Países Baixos,
Reino Unido, Escandinávia, além de outros países, irra-
diando-se pelo leste europeu. Na França, Calvino é a figura
central para o protestantismo. Refugiou-se na Suíça em 1536
devido à perseguição aos protestantes em seu país de origem.
Foi neste ano que publicou a obra A Instituição da Religião
Cristã.
Quarenta anos depois, as disputas religiosas significavam
verdadeiras guerras. Em 1572, uma verdadeira matança aos
protestantes é organizada pelo rei Carlos IX e, sobretudo, por
sua mãe Catarina de Médici, que era quem realmente de-
tinha o poder. O sangrento episódio ficou conhecido como
“O Massacre da Noite de São Bartolomeu” (23-24/08/1572)
e dizimou milhares de protestantes, inicialmente em Paris e,
numa série planejada de ataques, estendeu-se o massacre a
outras cidades francesas, durando meses.
Um ano após a onda de massacres, a situação ainda era
tensa para os protestantes. A cidade de Sancerre, no centro
da França, encontrava-se sitiada pelos católicos. Outrora
uma pacata cidadela, Sancerre perdeu sua identidade com a

104
Alexandre Belmonte
destruição de suas torres e de seu relógio, e, enfim, a imposi-
ção da fé católica. A destruição do relógio conseguiu retirar
Sancerre de seu tempo: passaram a confundir-se, aí, velhas e
recentes histórias de guerras de religião, intolerância religio-
sa, fome e carestia, tabus e violações...
Em março iniciou a escassez de comida; a população resis-
tia ao cerco, embora muitos já tivessem morrido de fome ou
de tiro proveniente dos canhões que cercavam a cidade. Um
cavalo morto a tiro de canhão foi comido pela população:
“ele foi esfolado, cortado, arrebatado e comido pelos mais
pobres vinhateiros e trabalhadores, os quais relatavam a qual-
quer um não terem nunca comido carne melhor”25. Mesmo
a fome passava ainda pela gastronomia, mesmo a escassez era
atravessada pelo gosto e pela vontade de comer.
Em abril, mataram e venderam um asno, comendo-o as-
sado com cravos-da-índia. Jean de Léry é o narrador desses
episódios, e dá atenção ao gosto, ao tempero – únicas armas,
em Sancerre, contra a fome e o isolamento. Em maio come-
çaram a matar cavalos, a vendê-los e comê-los. Entre julho e
agosto, disparou o preço da carne de cavalo no famélico co-
mércio de Sancerre. Mesmo cães e gatos foram transformados
em iguarias para a população faminta, sendo esses últimos
condimentados e preparados como se fossem coelhos. As re-
ceitas circulavam de boca em boca.
Comia-se de quase tudo na Sancerre sitiada: pergaminhos,
couro de cintos, sapatos, qualquer coisa que fosse mastigá-
vel, que pudesse ‘enganar’ o estômago. Quando não restavam
mais nem cães e nem gatos, recorria-se aos famintos ratos.
Comiam-se até mesmo excrementos na Sancerre sitiada.
E eis que em fins de julho, a desesperada gastronomia dá
espaço ao grotesco.

25. Léry. Sommaire discoursde la famine ... Apud Bruna Conconi, Op. Cit. p. 175. Tra-
dução nossa.

105
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
O ambiente é desolador: pratos e tigelas sobre a mesa, a
família preparando-se para a ceia. Um tal Symon Potard, sua
mulher Eugene e uma velha chamada Philippes de la Fuëille
são, entretanto, surpreendidos em seu banquete. Nada have-
ria de macabro se o prato principal não fosse o corpo da filha
dos Potard, uma menina de aproximadamente três anos, mor-
ta de fome. Seu corpo franzino fora cuidadosamente cortado
nas articulações, salgado, condimentado e cozido. Na panela
podiam ser vistas as pernas da menina. O ambiente cheirava
a vinagre e condimentos. A família e a velha de la Fuëille já
haviam comido as orelhas, a língua, a cabeça, o cérebro e o
fígado da criança.
Entre os que testemunham o evento está Jean de Léry, de-
parando-se com o canibalismo pela segunda vez – a primeira
fora quase 20 anos antes, entre os tupinambás. Desta vez,
Léry se revolta; sente-se aterrorizado ao ver a cena, ao cons-
tatar que o luto pela menina morta de fome é ironicamente
acompanhado pelo banquete de seu próprio cadáver. É claro
que não deixa de lembrar-se do canibalismo dos tupinambás:
um canibalismo que, ali em Sancerre, era para ele perfeita-
mente desculpável, aceitável, já que Léry compreendera seu
sentido dentro da cosmovisão e das práticas de guerra tupi-
nambás. A antropofagia da família francesa, por outro lado,
era absurda, perturbadora. Em primeiro lugar, a família era
cristã, e não selvagem; em segundo lugar, o ato extremo fora
consequência, em última instância, do cerco provocado pelos
católicos aos protestantes.
É notável o encontro entre sua história do Brasil e a de
Sancerre.
Seja em relação à história de sua viagem ao Brasil, seja
em relação à história de Sancerre, o papel da testemunha
presencial é fundamental para o estatuto de veracidade dos
eventos. Em ambas as histórias, Léry escreve em primeira
pessoa, como testemunha dos eventos que se propõe a contar.

106
Alexandre Belmonte
O uso do ‘eu’ marca o estatuto jurídico do nome e seu caráter
inalienável26. A veracidade das informações é evocada pelas
fórmulas “eu mesmo vi”, “conforme presenciei” etc. e, na fal-
ta de observação direta, Léry faz questão de dizer que narrava
um fato “como lhe fora dito”. Também no título de sua his-
tória de Sancerre, ele diz que foi tudo “fielmente recolhido
in loco”, e ao longo da história, fala “daqueles que estiveram
no lugar” assim como ele. As coisas eram observadas “bem de
perto”, estavam “diante dos olhos”, o que dava à história mais
gravidade, veracidade e credibilidade.
É igualmente notável o fato de que, em ambas as histó-
rias, é ele a testemunha que a todo o momento procura dar
provas do que registrara. É implícita a contraposição entre
história e natureza em seus dois escritos: a ideia de que os
fatos humanos, por terem uma natureza fenomênica, de-
viam ser registrados, ao contrário dos ‘dados’ da natureza,
que, por serem sempre presentes e atuais, não necessitavam
de rememoração. No prefácio da Viagem à terra do Brasil, é
significativa sua noção de história, bastante próxima da ideia
de história de Heródoto, que apresenta, em sua Historíai, os
resultados de suas investigações, “para que a memória dos
acontecimentos não se apague”. O termo istoría deriva de id-,
“ver”, e ístor, que originalmente tem o sentido de “testemu-
nha ocular”, e que posteriormente significa “a verdade que
se estabelece pela investigação”. Esse sentido de testemunha
que Heródoto deu à sua obra é recorrente nos escritos de Léry.
Na Histoire Memorable, é digna de nota a forma circular,
portanto perfeita, da cidade de Sancerre, situada no exato cen-
tro da França. Nesta história, tal qual na história do Brasil, Léry
fala dos motivos que o levaram a escrever: fala da impossibi-
lidade “de enterrar no silêncio coisas tão dignas de perpétua
memória”. Ele diz: “Não posso nem devo calar-me”, e o fato

26. Michel Pêcheux. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas,
Ed. Unicamp, 1988, p. 60 e ss.)

107
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
de não poder nem dever se calar inscreve-se, mais uma vez,
na própria história do calvinismo na França. Léry quer dar seu
testemunho a fim de perpetuar uma história que não pode ser
esquecida, mas também a fim de denunciar o que ele achava
serem “atrocidades” cometidas pelos católicos.
A finalidade da história liga-se à ação concreta: “a fim que
se possa recolher o fruto dessa história” – a ‘História’ acaba
sempre assumindo o papel de mestra da vida, e, através do que
ensinam os exemplos do passado, o presente pode conduzir
a um futuro melhor. Não se trata somente de um otimismo
ingênuo: os calvinistas parecem ter uma preocupação com a
ideia de justiça atestada pela história verossímil; não é à toa
que já em meados do século XVI o editor Jean Crespin pu-
blica sua Histoire des Martyrs, e que na segunda metade do
século XVII Louis Maimbourg já publica uma história do
calvinismo (Histoire du Calvinisme, 1682)
É importante não perder de vista que a Histoire d’un
voyage de Léry é também, em certa medida, uma réplica às
Sigularitez de la France Antarctique do franciscano Thevet,
obra, segundo Léry, recheada de mentiras e informações fan-
tasiosas e exageradas. Já no prefácio, Léry cita o tradutor de
López de Gómara, M. Fumée, para quem a obra do francis-
cano era “prenhe de mentiras”. É, a princípio, contra esse
“imprudente caluniador” e “refinado mentiroso” que Léry
busca escrever a história de sua viagem, sobretudo quando
Thevet lança, em 1577, sua Cosmographie:

Mas ao verificar, neste ano de 1577, pela leitura


da “Cosmografia” de Thevet, que ele somente
repetia suas mentiras e ampliava seus erros (sem
dúvida na esperança de que todos estivéssemos
enterrados ou não ousássemos contradizê-lo), mas
ainda se valia da oportunidade para detrair dos
ministros e imputar mil crimes aos que como eu

108
Alexandre Belmonte
os acompanharam em 1556 à terra do Brasil, com
digressões falsas e injuriosas, vi-me constrangido a
dar à luz o relato de nossa viagem.27

O relato de sua viagem é uma história que, para o autor,


não deve ficar enterrada – palavra que ele mesmo usa diversas
vezes – mas que deve vir à luz. É constante a dicotomia luz x
escuridão na obra de Léry. Lumière é uma palavra de força
em seu texto: o discurso sobre os “sauvages” deve ser trazido
à luz: “ce que j’avois escrit de l’Amerique (...) n’avoit pu venir
en lumiere”28. Léry fala de choses notables (“coisas notáveis”)
por ele observadas. Em primeiro lugar, é significativo, em
Léry, o fato de certas coisas serem notáveis, dignas de nota,
em detrimento de outras. É uma segunda questão de método:
a seletividade do olhar. Ele não é um observador passivo ou
indiferente; é justamente essa seleção das coisas “dignas de
nota” que nos permite acessar de que modo as culturas ame-
ríndias causaram impacto no observador e o modo como essa
diferença encontra acolhimento em sua escrita. Essa seleção
coloca Léry diante da diferença dos indígenas, e, curiosamen-
te, nos coloca diante da abertura de Léry ao que era próprio
do tupinambá. Ao apontar o que é digno de nota, a diferença
do outro não é acolhida tão-somente pelo padrão da escri-
ta. Léry transita entre significante e significado: o significado
que dá ao que, em seu discurso, é próprio do outro, liga-se à
sua própria possibilidade (linguística, cultural) de significar.
Outra identificação entre a História de Léry e a de
Heródoto é que ambos tentam, cada um conforme suas pos-
sibilidades, dar conta de um Outro: em ambos os casos esse
Outro é também um bárbaro, alguém que está para além das
fronteiras de uma dada visão de mundo, de um dado país ou

27. Léry. Op Cit. p. 63. [Trad. Bras. In Jean de Léry. Viagem à terra do Brasil. p. 36.]
28. Jean de Léry, Op. cit. p. 62. [Trad. nossa: O que eu havia escrito sobre a
América(...) não pôde vir à Luz.]

109
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
de uma dada cultura ou linguagem religiosa. Embora haja de
antemão uma contraposição – que a linguagem da Ilustração
do século XVIII chamará da tensão entre civilização e barbá-
rie – tanto Heródoto quanto Léry conseguem ver o bárbaro
como humanos antes de qualquer coisa. Heródoto escreve
sua história para que os “feitos maravilhosos e admiráveis dos
helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados”. Léry
quer escrever a história de sua viagem para fugir da condi-
ção de que as choses ... dignes de memoire (coisas ... dignas
de memória) não perecessem, nem ficassem enterradas no
esquecimento, ne demeurassent ensevelies. Para tal, conduz
suas memórias a um diálogo constante com um cânone que
aos poucos vemos emergir em seu texto.
A interlocução com Heródoto, embora não seja direta, é
de tal forma imbricada no pensamento de Léry que a atenção
de Heródoto parece ser o motor de toda investigação. Mas
a investigação, em Léry, exige ordem, e é feita aos poucos.
Suas memórias, diz ele, je les devois rediger plus au long et par
ordre29. A ordem do Léry autor é a ordem do agente da histó-
ria. A observação de algumas marcas em seu texto nos coloca
questões sobre a ordem de seu discurso. Logo no prefácio,
ele fala da língua dos selvagens, e escreve “selvagens” com
letra maiúscula, já na primeira edição, tal qual escreverá, ao
longo de sua história, os nomes próprios, as nacionalidades
e alguns substantivos como rei, pirata etc. Ao longo do tex-
to, alterna-se o uso de maiúscula e minúscula para a palavra
‘selvagens’: a letra minúscula surge quando ele usa ‘selvagens’
como adjetivo, por exemplo, ao falar de “algumas mulheres
selvagens”, ou de “costumes selvagens”. A maiúscula expressa
o substantivo, ou seja, o selvagem como entidade, substância:
“a língua dos Selvagens”, (“langage des Sauvages, qu’on verra

29. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. nossa: “eu tinha que descrevê-las minuciosa e orde-
nadamente”.]

110
Alexandre Belmonte
au vingtiesme chapitre”30), “costumes dos Selvagens” etc. An-
tes de ser mera convenção tipográfica, esse uso substantivado
de selvagens é uma marca importante no que diz respeito
à maneira de nomear o outro, de conferir-lhe substância e
quididade, de encará-lo propriamente como entidade. São
marcas que constam já da primeira edição de seu relato.
Outra marca constante em seu texto é o uso da voz passi-
va em determinados momentos. Quando as coisas fogem do
controle de seu olho observador e de sua ação, Léry recorre
à voz passiva. Ao desculpar-se pelo fato de não ter publicado
sua história imediatamente após sua chegada do Brasil, Léry
usa sempre a voz passiva: algo exterior a ele acontece, e ele
sofre a ação desse agente que está sempre implícito: je fus
pour la seconde fois privé de mon labeur31, ce que j’avois escrit
de l’Amerique, m’estant tousjours eschappé des mains, n’avoit
peu venir en lumiere32. É emblemático o uso que Léry faz da
voz passiva: ele não diz que observou as coisas, mas sim que as
coisas foram observadas por ele. É ele próprio o agente dessa
ação sobre as coisas, que, de certa forma, estavam à disposi-
ção de forma atemporal. O mundo a ser observado se reflete
não só nas formas gramaticais, mas também no próprio tex-
to que será publicado somente 18 anos após sua viagem ao
Brasil. As mémoires que Léry tinha, ele as quer transformar
em histoire – quer, de fato, mettre ceste histoire en lumiere33.
A memória é traiçoeira e obscura: os fatos devem ser vistos
à luz, e é esta a condição da escrita de sua história. Mais

30. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. nossa: “língua dos Selvagens, que veremos no capítulo
XX”.]
31. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. nossa: “fui pela segunda vez apartado de meu trab-
alho”.]
32. Idem. Ibidem, p. 62. [Trad. bras.: “o que escrevi sobre a América, tendo-me sem-
pre fugido das mãos, não pôde ser publicado antes.” In Léry. Viagem... p. 35]
33. Ver várias referências em todo o prefácio: Idem. Ibidem, pp. 61-99. [Trad. nos-
sa: “dar essa história à luz”]

111
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
uma vez, é importante pensar que, antes de ser meramente
um “estilo” do autor, por vezes o uso de determinadas formas
verbais em detrimento de outras pode fornecer chaves para
se compreender a própria relação do autor com o objeto de
sua escrita.
A questão da escrita, aliás, não era algo que passava ao lar-
go de Léry. Embora não pretendesse passar uma imagem de
douto ou refinado, Léry tem algumas leituras, e, sendo um
protestante quase de primeira geração, é bastante entusiasta
em relação à escrita e ao seu significado teológico e antropo-
lógico. Essa é uma questão presente na época. Em 1579, em
sua Introduzione a Artis historicae penus, Johann Wolf fala da
transmissão escrita dos exemplos do passado, “que permite
adquirir (...) a memória histórica, o que nos torna mais fortes
e poderosos que os povos que não a possuem, nos distingue
e torna superiores ao ‘outro’”34. Os historiadores protestan-
tes recorrem aos teóricos do cristianismo a fim de buscar um
método particular de tratamento de um documento como o
texto sagrado. É sobre a alegoria e o simbolismo bíblicos, se-
gundo Conconi, que se fundará o método crítico da história.
Léry, na história de sua viagem, também faz um elogio da
escrita como forma distintiva de conhecimento:

Eis portanto aí um tema de dissertação suscetível de


mostrar que os habitantes da Europa, da Ásia e da
África devem louvar a Deus pela sua superioridade
sobre os dessa quarta parte do mundo. Ao passo
que os selvagens nada podem comunicar-se entre si
a não ser pela palavra, nós, ao contrário, podemo-
nos entender e dizer os nossos segredos, por meio da
escrita, pelas cartas que enviamos de um a outro
extremo da terra. Além da invenção da escrita, os

34. Bruna Conconi. Op. Cit. p. 37. [Trad. Nossa do original “che permette di acquisire
(...) la memoria storica, ciò che ci rende più forti e potenti dei popoli che non la posseg-
gono, ciò che ci distingue e rende superiori all’‘altro’”.]

112
Alexandre Belmonte
conhecimentos de ciência que aprendemos pelos
livros e que eles ignoram, devem ser tidos como
dons singulares que Deus nos concedeu.35

A escrita foi constantemente louvada ao longo dos sécu-


los, sobretudo pela tradição eclesiástica, e a preocupação
com a transmissão de obras escritas era evidente na atuação
dos copistas no scriptorium das bibliotecas monasteriais. Ela
torna-se instrumento fundamental tanto para a nova aborda-
gem da história que se insinua no século XVI quanto para as
representações da alteridade e os processos locais de forma-
ção de identidades culturais. Para o calvinismo, a escrita, e,
sobretudo, as Escrituras sagradas, têm também a função de
pôr homem e Deus em contato. De acordo com Certeau,

A descoberta do Novo Mundo, o fracionamento da


cristandade, as clivagens sociais que acompanham
o nascimento de uma política e de uma razão
novas engendram um outro funcionamento da
escrita e da palavra.36

A oposição entre culturas possuidoras de escrita e culturas


ágrafas é fundamental para a compreensão dos mecanismos
da conquista da América e das representações da alterida-
de e das identidades que foram se construindo a partir dos
primeiros contatos. Todorov procurou demonstrar como foi
importante para Cortez a compreensão dos signos astecas, e
como isso funcionou como instrumento de poder37.
Através do estudo comparado de várias obras publicadas
ao longo do século XVI, vemos que se rascunha uma certa
concepção de história, com métodos próprios e passível de

35. Léry. Op. Cit. pp. 381-2. [Trad. bras. In Léry. Viagem... p. 206.]
36. Michel de Certeau. A escrita da história. Rio de Janeiro, Forense Universitária,
1992, p. 213.
37. Tvetan Todorov. Op. cit.

113
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
ser verificada através dos exempla dos antigos, mas sobretudo
através da Bíblia. Retornando sempre a um cânone greco-
-romano e cristão, esse não é propriamente um movimento
original, mas consegue reconstruir uma visão canonizada
da história. Não é fortuito o fato de várias obras da época
conterem tantas remissões a outros textos, seja em forma de
referências às margens do texto quanto ao longo do texto.
Dentre essas remissões, a Bíblia era, evidentemente, o argu-
mento de força por excelência dos escritores protestantes.
A história, tal como a conta Léry, e também Crespin, Paul
Eber, Sleidan e Wolf, buscava dar conta dos movimentos
da mão da Providência, de modo que nada era atribuído à
sorte. O homem, para Eber, não era fruto do acaso: “(…) le
genre humain n’est point né par cas d’aventure, et la nature des
choses n’est point forgée par accident des atomes: mais Dieu
par un certain conseil a créé les hommes.”38
Também Crespin, ao editar seu livro sobre a vida dos már-
tires, “ceux qui avoyent receu la grace de rediger par forme
d’histoire”39, louvava a escrita em suas implicações teológicas,
antropológicas e metafísicas.
Léry faz um dos topoi d’exorde40 recomendados pela his-
toriografia antiga: faz uma análise das origens da cidade de
Sancerre. Léry não faz isso na História do Brasil, seja pelo
caráter inaugural de sua história, ou por tratar-se, não pro-
priamente de uma história do Brasil, mas da história de uma
viagem ao Brasil, ou ainda, pelo fato de enxergar o Novo
Mundo nos confins do mundo, portanto uma terra ainda não
historicizada.

38. Paul Eber, apud Bruna Conconi, Op. Cit. p. 40. [Trad. nossa: “o gênero humano
não nasceu por acaso, e a natureza das coisas não foi forjada acidentalmente pelos
átomos, mas Deus, através de certa compreensão, criou os homens”.]
39. Jean Crespin apud Bruna Conconi. Op. cit, p. 40. [Trad. nossa:“os que receberam
a graça de escrever em forma de história”.]
40. tópicos preliminares.

114
Alexandre Belmonte
O regresso à França: fome,
tormentas e saudades

O que é mesmo que Léry aprende, afinal, com os civiliza-


dos indígenas? E o que é que lhes ensina? Será que, nos
encontros e confrontos entre culturas, caberiam relações de
aprender-ensinar?
Nos dois últimos capítulos de sua relação de viagem, Léry
apresenta o testemunho dramático das tormentas por que pas-
sou em seu regresso à França, após quase um ano em terras
tupinambás. A tripulação carrega muita coisa consigo, coisas
materiais, lembranças dos indígenas, animais exóticos, pau-
-brasil... Parecem levar uma miniatura do Mundo Novo, para
encenar aos seus financiadores, à sua Igreja, ao seu meio.
Nada disto chega, entretanto, ao Velho Mundo, salvo a
madeira do pau-brasil. Tudo o que é mastigável é devorado
na viagem. Os que levavam bugios e papagaios, aos quais en-
sinavam a falar, os comeram na falta de outros víveres. Dois
marinheiros morreram quatro meses após a partida, estando
toda a comida já esgotada. Muitos rezavam. Léry, claramente
contra a idolatria, conta como certos “marinheiros papistas”
faziam promessas a São Nicolau41, “inclusive a de uma ima-
gem de cera do tamanho de um homem”42. Léry conclui que
era como se apelassem a Baal, e que ele e os calvinistas julga-
vam melhor recorrer diretamente a Deus.

41. São Nicolau é conhecido, sobretudo entre os ortodoxos, como protetor dos
marinheiros e navegantes.
42. Léry. Op. Cit., p. 528.

115
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
A imagem que Léry retrata é de que todos no navio mal
podiam sustentar-se de pé, de tão magros, fracos e cansados
que estavam. À generosidade dos tupinambás – que dividiam
toda sorte de comida com os franceses, inclusive nacos de
coxas e braços humanos, assados ao moquém – contrapõe-
-se a avareza da tripulação, que escondia cuidadosamente
qualquer coisa mastigável. Os grumetes e pajens do navio,
conta-nos Léry, de tal forma apertados pela fome, comeram
todos os chavelhos das lanternas, e todas as velas de sebo que
encontraram a bordo. No último capítulo de sua epopeia, há
páginas e páginas de uma descrição que, em crescendo, mos-
tra como tudo o que era mastigável foi comido: primeiro os
víveres e bolachas, depois os animais, em seguida o couro do
tapir assado na brasa, por fim os famigerados ratos e rataza-
nas que, também assolados pela fome, saíam à luz do dia em
busca de comida. Até mesmo ossos velhos e “outras imundí-
cies” foram usados para saciar a fome. Tem-se a impressão
de que mesmo o casco do navio poderia ser, a qualquer ins-
tante, devorado pela famigerada tripulação: é bem verdade
que muitos, “levados pela miséria”, mascaram a madeira do
pau-brasil que transportavam.
Léry conta como a fome embrutece de tal forma as pesso-
as que, tirando-lhes o ânimo, torna-os ferozes e enraivecidos.
Ele diz compreender porque Deus ameaçara seu povo com
a fome caso não lhe obedecessem43. Enfim, tendo acabado
toda a criatividade gastronômica e tudo o que era mastigável
a bordo, Léry diz que somente o amor a Deus os reteve de se
devorarem uns aos outros, pois

mal podíamos falar uns com os outros sem nos


agastarmos e o que era pior (perdoe-me Deus) sem
nos lançarmos olhares denunciadores da nossa
disposição antropofágica.44

43. Deuteronômio, XXVIII, 53.


44. Léry. Op. Cit. p. 536. [Trad. Bras. In Léry, Viagem... op. Cit, p. 265.]

116
Alexandre Belmonte
O “ato bárbaro”, entretanto, não foi levado a cabo – ao
menos não a bordo, não naquele momento. Seria realizado
alguns anos depois, em Sancerre, durante o cerco. Enfim,
em 24 de maio de 1558, foi avistada terra firme. O mestre do
navio comunicou que, se a deriva tivesse se prolongado por
mais um dia, estava decidido a matar um dentre eles para a
alimentação dos demais “sem aviso prévio”. Léry ainda tem
bom-humor para lembrar-se que jamais o teriam escolhido,
“a menos que quisessem comer apenas pele e ossos”45.
Tendo encontrado um barco perto da costa, atiraram-se
sobre ele e devoraram o pão preto que ali encontraram. Mais
uma vez, contraposto à generosidade tupinambá, à generosi-
dade do Mundo Novo, Léry conta como um dos “miseráveis”
desse barco chegou a receber dele dois reales por um pedaço
de pão.
E é essa espécie de generosidade que faz falta a Léry. Livre
dos perigos do mar, já em terra firme, Léry é um homem
dividido entre sua devoção a Deus e à religião reformada, e a
saudade que sente de outro mundo, da possibilidade de um
novo começo, de uma nova história. Pois é entre os selvagens
que Léry reconhece um espírito de que carece a sua França
natal: entre eles não há dissimulação e deslealdade:

Assim, ao dizer adeus à América, aqui confesso,


pelo que me respeita, que, embora amando
como amo a minha pátria, vejo nela a pouca
ou nenhuma devoção que ainda subsiste e as
deslealdades que usam uns para com os outros, tudo
aí está italianizado46,e reduzido a dissimulações
e palavras vãs, por isso lamento muitas vezes
não ter ficado entre os selvagens nos quais como

45. Léry. Viagem... op. Cit, p. 265.


46. Referência a Catarina de Médicis e à sua influência no clero francês.

117
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
amplamente demonstrei, observei mais franqueza
do que em muitis patrícios nossos com rótulos de
cristãos47

É esta, afinal, a experiência maior de Léry, que se refle-


te não somente em nível pessoal, mas que, publicada, lida
e traduzida rapidamente, irradia-se pela Europa, na imagem
de um Paraíso, ou, na falta de qualidades paradisíacas no
Mundo Novo, na imagem de uma terra onde tudo era ainda
possível. Léry sente-se, enfim, tentado a renunciar à sua pró-
pria religião e ao seu meio social, para viver esse recomeço.
Por um motivo ou outro, por medo, acomodação ou excesso
de ocupações, não retorna ao Brasil, senão através das inúme-
ras reedições de seu relato.
Seria caso de se pensar que sua primeira edição, 20 anos
após o regresso do narrador, marca mesmo a chegada de Léry
à França, o fim de uma espécie de transe, o fim de um longo
trânsito. O texto, e, com ele, as experiências e memórias de
seu autor, voltam de terras tupinambás e são apresentados à
França em 1578. É uma transição. De um grande entusiasta
da religião reformada 20 anos antes, Léry está agora profunda-
mente abalado pelos conflitos entre católicos e protestantes.
Consegue ser, entretanto, um calvinista exemplar, mas talvez
para continuar a sê-lo, precise ainda revisitar muitas vezes sua
história entre os tupinambás do Novo Mundo, “gente perdi-
da”, perdida de Deus, longe de Cristo, mas também longe
da Europa, de culturas já massacradas pela historicidade de
Cristo. Se bem que inconvertíveis à fé em Cristo, os nativos
possuíam algo que faltava aos compatriotas de Léry: a liber-
dade que permite sempre um recomeço.
É o sonho de um início, de um novo começo, livre das ma-
zelas que assolavam os governos e o clero por toda a Europa,

47. Léry, op. Cit. pp. 507-508. (grifos nossos). [Trad. Bras. In Léry, op. Cit., p. 251
(grifos nossos)]

118
Alexandre Belmonte
livre de vícios, aberto à observação e à interação com a Natu-
reza – que é sempre uma Natureza divina. Léry é, finalmente,
conquistado pelos selvagens, carrega sua melodia nos ouvidos,
suas cores na retina; carrega o espanto e a abertura ao outro,
e busca escrevê-lo, rescrevê-lo, na tentativa de ainda sentir-se
par-delà.

119
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
O Grande Khan já estava folheando em seu Atlas
os mapas das ameaçadoras cidades que surgem
nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia,
Yahoo, Butua, Brave New World.
Disse:
– É tudo inútil, se o último porto só pode ser a
cidade infernal, que está lá no fundo e que nos
suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo:
– O inferno dos vivos não é algo que será; se existe,
é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos
todos os dias, que formamos estando juntos.
Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é
fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno
e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de
percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção
e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer
quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e
preservá-lo, e abrir espaço.
Italo Calvino. As Cidades Invisíveis.
Capítulo 4
Transes e trânsitos
U m relato de viagens não é somente um depósito de me-
mórias que o viajante traz consigo. Não é somente uma
compilação descritiva acerca de um lugar ou de um povo es-
trangeiro. Quase todos os relatos, quando revisitados em outro
tempo, quando interpelados por outro contexto, remetem o
pesquisador a outro tipo de informação além daquela a que se
propunham a divulgar em seu tempo. E o que é mesmo que
os relatos se propunham a divulgar? Seria possível tratar as
relações de viagens como narrativas que, de fato, se propõem
a divulgar alguma informação?
Mesmo quando quer falar da maneira como os indígenas
cozinham e comem os alimentos, por exemplo, o narrador
desvia-se do assunto: não fala somente da mandioca, do fogo
ou dos utensílios de cozinha. Vai além, explorando a rela-
ção do indígena com a agricultura praticada nessas terras,
sua relação com o fogo, os motivos com que decoravam seus
utensílios etc. E com isso, de forma muitas vezes ingênua e
deslumbrada, mostra algo que falta em si, mas que reconhece
como seu: a relação mágica com o fogo, os símbolos com que
eles próprios revestem não somente utensílios domésticos,
mas instituições sociais e comunais. A possibilidade de con-
tar e nomear o que se supõe ser digno de nota deixa aparecer
o vigor da abertura ao outro, de uma certa universalidade das
experiências do homem.
Muitas culturas, ao longo da história, percebem-se como
‘superiores’ a outras; muitas vezes as subjugam, dominam,
aniquilam. No século XVI, as culturas ameríndias foram con-
sideradas primitivas por aqueles que chegaram da Europa.
122
Alexandre Belmonte
Os nativos tendiam a ser vistos como gente bárbara e desgra-
çada, por não conhecerem a escrita, por andarem nus, pela
prática da antropofagia, por suas práticas sociais diferentes,
e, sobretudo, por não possuírem, como muitos supunham,
uma religião monoteísta. É interessante notar que nem to-
dos os nativos desconheciam a escrita, nem todos andavam
nus, nem todos eram canibais, e suas práticas sociais, embora
diversas, diziam respeito ao mesmo empenho de vida, morte
e sobrevivência de todo homem. Tantas tribos esparsas aca-
baram por ser reduzidas a ‘nativos’, ‘índios’, ‘autóctones’. E,
curiosamente, portugueses, genoveses e catalães, normandos
e bretões, espanhóis e franceses das mais diversas regiões e
origens, todos passaram a ser ‘europeus’, não mais um mero
referencial geográfico, mas uma demarcação de fronteira
identitária, cultural.
O europeu viu-se diante de culturas “não civilizadas”,
que ele repudiou e tentou transformar, e, na impossibilidade
de transformá-las, tentou aniquilá-las. Entretanto, no vigor
das relações que estabeleceu com estas novas e tão diversas
culturas, está presente uma tentativa de historicizá-las, de
compreendê-las, ao invés do simples impulso de dominá-las
e destruí-las.
Após a análise do relato de Léry e a investigação dos pro-
blemas que colocamos, podemos supor que é ingênuo e
simplista argumentar que os europeus simplesmente “domi-
naram” as culturas do Novo Mundo, pois desde o início da
descoberta e conquista, o Mundo Novo pareceu caracterizar-
-se pelo hibridismo, pela fusão e confusão de culturas, pela
mestiçagem. Poderíamos falar em uma descoberta mútua,
recíproca; uma conquista mútua, recíproca.
Em nosso trabalho, buscamos pensar a lógica discursiva que,
ao longo do relato de Léry, parece mostrar uma transformação
significativa da sua relação com sua própria cultura, com a pró-
pria ideia de cultura possível em seu tempo. Buscamos analisar

123
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
de que forma os encontros entre culturas impulsionaram os
viajantes em geral, e Léry em particular, a pensar sua própria
proveniência; em última instância, como estes reconstruíram,
textualmente, sua própria cultura através do encontro com a
alteridade.
O relato de Léry parece ser bastante diferente de outros
relatos contemporâneos. Parece haver uma diferença funda-
mental nas maneiras de perceber a alteridade e de pensar a
identidade. O indígena figura, na maioria dos relatos, como
uma aberração humana, um selvagem encerrado em sua pri-
mitividade. Em Léry, o indígena pode ser um outro qualquer,
e, como qualquer outro, possuidor de uma complexa perso-
nalidade, e de formas de se organizar, de (se) pensar e de se
relacionar igualmente complexas. Em Léry, o indígena é tão
nobre quanto o europeu. E tão selvagem quanto.
Poder-se-ia argumentar que Léry foi o único narrador cal-
vinista entre tantos católicos, e que a diferença na abordagem
da alteridade reside neste fato. Ora, vale lembrar que, para
Léry, os tupinambás eram inconvertíveis à fé cristã, já que
eram herdeiros da maldição de Cam. É por isso que Léry não
luta com os indígenas pela posse de um espaço sagrado no
Novo Mundo, como parecem ter feito outros viajantes e co-
lonos religiosos, como certamente o pretenderam os jesuítas.
Decerto, alguns detalhes da vida de Léry o levaram a perce-
ber o nativo de forma diversa: Léry era bastante jovem quando
chegou ao Mundo Novo, e, após seu regresso à França, viu-se
em meio a uma longa guerra civil que dividia franceses de
acordo com a religião. Viu-se, enfim, diante da antropofagia
praticada em sua própria terra natal, o que provavelmente o
levou a repensar a antropofagia dos tupinambás levando em
conta seu contexto no Mundo Novo.
Na história de sua viagem, Léry localiza a diferença do
outro, e, ao fazê-lo, localiza-se em sua própria singularidade.
Deixa, por vezes, de se identificar como calvinista, e passa a

124
Alexandre Belmonte
se perceber ora como francês, ora como europeu, ora como
humano. Isso é bastante claro nas comparações que faz entre
os nativos de “par delà” e os franceses de “par deçà”. O “par
deçà” passa a representar, enfim, toda a cultura judaico-cristã,
na qual Léry enxerga sua filiação.
Léry é também uma espécie de tradutor que dá espaço e
acolhe o mundo do outro, que compreende, ou acredita com-
preender, os signos que traduz. As diferenças entre as culturas
são, afinal, bastante tênues, e uma tradução dá conta do trân-
sito entre elas. A diferença do outro é até mesmo passível de
tradução e representação, não somente em outro idioma, mas
em outros valores, em outra compreensão de tempo, espaço e
sociabilidade. Em outras palavras, a diferença do tupinambá
consegue transitar, através de Léry, em uma outra dimensão
histórica: a do viajante europeu e sua cosmovisão.
Trata-se, então, de muitas culturas traduzíveis, passíveis de
compreensão recíproca. No fim das contas, Léry dá um trata-
mento bastante humanista à sua narrativa: a ideia de cultura
deixa de estar atrelada a uma perspectiva de cultura em curta
duração, e passa a ser percebida como um pano de fundo
universal, que tudo pode abranger e representar. A cultura
aparece, em Léry, como o tudo aquilo que é dizível e passível
de ser vivido, tudo o que é mastigável (inclusive a própria car-
ne humana em rituais canibais), todas as instâncias habitáveis
do homem.
O conhecimento sobre o outro representado pelo indí-
gena e sua compreensão como cultura foram agenciados
apenas segundo a ótica dos europeus, já que os nativos destas
terras não deixaram testemunhos escritos de suas impressões
e experiências com os europeus que chegaram. O cerne de
uma certa ‘cultura brasileira’ nunca pôde ser, portanto, con-
siderado em sua totalidade, em sua radicalidade e sob a ótica
dos que foram considerados os ‘perdedores’ de uma longa
conquista.

125
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Será que um tupinambá do século XVI considerava-se
conquistado, um perdedor? Quando zombam da ignorância
dos franceses em relação à natureza, não parecem sentir-se
perdedores, ou incivilizados; ao contrário: são eles que apre-
sentam a um francês ‘ingênuo’ as particularidades destas
terras. Sua cosmovisão de integração à Natureza é até mesmo
mais compatível com o que hoje é definido como um desen-
volvimento ecologicamente coerente e sustentável.
Uma investigação maior se faz necessária, no sentido de
evidenciar como se desenvolveram as transformações de
um homem europeu medieval a partir de seu contato com
a alteridade do Novo Mundo. Como se deram as transfor-
mações de tantos nativos tão diversos entre si a partir do
contato com novos e inusitados ‘vizinhos’ conhecedores da
pólvora, da espada, da Cruz e de refinadas técnicas agrícolas,
comunicacionais, econômicas. É nas lacunas de uma história
construída e reconstruída muitas vezes que podemos escrever
a história silenciosa das transformações mentais possibilitada
pelos encontros e confrontos entre culturas.

126
Alexandre Belmonte
Glossário do francês
quinhentista
Pequeno glossário do francês
do século XVI1

A
ains – mais
amour (pour l’amour de) – à cause de
apeter – désirer vivement
aucuns – quelques-uns, certains
avarice – avidité, cupidité

C
charge – tâche, mission
combien que – bien que
comme ainsi soit que – étant donné que
cri – annonce d’une nouvelle, proclamation

D
deduire – exposer en détail
depuis – après
discours – récit, exposé, histoire

1. Para uma lista mais completa, ver Bruna Conconi, Op. Cit. Apêndice.

128
Alexandre Belmonte
E
effect (pour l’effect de) – en vue de ; par effect: par actes
encore – même
espace – laps de temps

F
faillir – manquer

G
gourmander – manger avec excès, goulûment

H
herbe – légume

J
jeu (venir en) – avoir son tour
joint que – outre que

L
livre – unité de poids variable selon les provinces, de 380 à
552 grammes ; monnaie de compte qui se devisait en sous et
deniers ; livre tournois: 25 sous.
long (au) – complètement, en détail

129
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
M
mal (adj) – mauvais, violent.

P
participer de – avoir des traits commun avec
police – governement, administration publique
porter – garantir
prodigieux – monstrueux
protester – déclarer de manière solennelle

Q
quartier – quatrième partie de l’écu

R
remonstrer – montrer clairement, faire savoir
retenir – garder, conserver

S
selon que – comme, de la manière dont

T
tellement que – d’une manière telle que, de la même manière
que

130
Alexandre Belmonte
Fontes e Bibliografia
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Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
Anexos
TABELA 1
Edições da Histoire d’un Voyage faict en la terre
du Brésil de Jean de Léry:

EDITOR LÍNGUA LOCAL ANO


Antoine Chuppin Francês (1ª edição) La Rochelle 1578
(Genebra?)
Antoine Chuppin Francês (2ª edição) Genebra 1580
Antoine Chuppin Francês (3ª edição) Genebra 1585
Herdeiros de Francês Genebra 1594
Eustache Vignon (cópia da 2ª edição)

Herdeiros de Francês (4ª edição) Genebra 1599-1600


Eustache Vignon (2ª tiragem?)

Jean Vignon Francês (5ª edição) Genebra 1611


Eustache Vignon Latim (1ª edição) Genebra 1586
Herdeiros de Latim (2ª edição) Genebra 1594
Eustache Vignon
Théodore de Bry Latim Frankfurt 1592
(compilação, ed. reduzida,
várias gravuras da 3ª edição)
Théodore de Bry Alemão Frankfurt 1593
(1ª tradução parcial)
Cornelis Claesz Holandês Amsterdam 1597
(provável 1ª tradução)
?? Latim Lyon 1604
(Omnium gentes mores, de
Johannes Boemus, com
parte da História de Léry)
George Eld Inglês Londres 1611
(apenas parte da tradução da
História de Léry)
Pieter Van der Aa Holandês Leide 1706
Pieter Van der Aa Holandês Leide 1710
Verlag der Alemão Münster 1794
Platvoetischen
Buchhandlung

150
Alexandre Belmonte
TABELA 2
Edições de outras relações de viagens,
em diferentes línguas:

AUTOR EDITOR LÍNGUA LOCAL ANO


Pedro Bernuz e espanhol Zaragoza 1554
Miguel Zapila
Lopez de
Iuan Steelsio espanhol Antuérpia 1554
Gomara
(Jan Steels)
Augustin Millan espanhol Zaragoza 1554
Hieronymi Latim Frankfurt 1571
Feyerabend
Bartolomé Marco Ginami Italiano Veneza 1630,
de Las 1636,
Casas 1640
Antonio espanhol Barcelona 1646
Lacavalleria
Cristóvão Christophe Plantin Latim Antuérpia 1582
Acosta Giacomo Cornetti espanhol Veneza 1592

151
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
TABELA 3
O que publicavam os editores dos viajantes?

EDITOR VIAJANTE OUTRAS PUBLICAÇÕES


Antoine Jean de Léry, Plutarco. Les Oeuvres Morales,
Chuppin 1578, 1580, translatées de Grec en François, revues
1585 et corrigées... - Les Oeuvres Meslées..
Genebra ?, 1583-1584;
Jerónimo Osório. De rebus
Emmanuelis regis Lusitaniae ...
Frances Imprenta, Genebra?, 1581;
Innocent Gentille. Apologie, ou
défense pour les chrétiens de France,
qui sont de la religion évangélique ou
réformée: satisfaisant à ceux qui ne
veulent vivre en paix et concorde avec
eux. Par laquelle la pureté d’icelle
religion, ès principaux points qui sont
en différend, est clairement montrée,
non seulement par la sainte écriture
et la raison, mais aussi par les propres
canons du pape. Genebra, 1584.
Em 1578, Chuppin traduz e publica
uma relação de viagem à Europa
setentrional.
Jean Jean de Léry Homero, 1567; Gramática grega
Crespin (Histoire (Guillaume Budé, 1562) e italiana
Mémorable (Scipione Lentulo, 1567); História e
de la Ville de história das religiões (Jean Sleidan,
Sancerre), 1574 1557; Paul Eber 1561; Jean de
Hainault, 1556; O Livro dos Mártires,
de sua autoria, 1554) Reedição em
1597: Histoire des martyrs, persecutez
et mis a mort pour la verite de
l’Evagile, depuis le temps des Apostres
jusques a l’an 1597 .. Ainda de sua
autoria:
Actiones et Movimenta Martyrum:
qvia Wicleffo et Husso ad nostram
hanc aetate[m] in Germania, Gallia,
Anglia, Flandria, Italia, [et] ipsa
demum Hispania ..., Genebra, 1560.

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Alexandre Belmonte
EDITOR VIAJANTE OUTRAS PUBLICAÇÕES
Eustache Jean de Léry, Dicionário (Ambrogio Calepino,
Vignon (e 1586, 1594 1594); François de Belleforest, 1595).
herdeiros) (2 edições), Escritos religiosos.
1599-1600 Girolamo Benzoni. Histoire nouvelle
du nouveau monde: contenant
en somme ce que les Hespagnoles
fait iusqu’a present aux Indes
Occidentales, /et/ le rude traitement
qu’ils font a ces poures peuples-la /
Extraite de l’Italien de M. Hierolme
Benzoni ... ; enrichie de plusieurs
discours et choses dignes de memoire
por M. Vrbain Chavveton ... , 1579.
Pieter Van Jean de Léry, Especializado em publicações sobre
der Aa 1706, 1710 Botânica e curiosidades sobre outros
lugares, daí o interesse por Léry.
Cornelis Jean de Léry, Publicou a carta náutica de Lucas
Claesz 1597 Janszoon Waghenaer, 1598.
Theodore Jean de Léry, Descrições de viagens à Virgínia,
de Bry 1592 1590; Jardins Botânicos de Pádua, de
Melchior Guilandini, 1608; estudo
sobre monstros hermafroditas, de
Gaspard Bauhin, 1614.
Guillaume André Thevet, Várias publicações em latim, dentre
Gazeau 1554 as quais: Phsysicorum Aristoteli Libri,
e Jean de 1559; Prudêncio, 1553; Erasmo,
Tournes 1558; vários livros de medicina,
dentre os quais: Jérôme Monteaux,
1556, 1557, 1558; Jacques Dubois,
1555, Yuhanna Ibn Massawayh
(sec. IX), 1560; poesia (Octavianus
Mirandula, 1553) e astronomia (Marc
Manili, 1551) etc.

153
Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
EDITOR VIAJANTE OUTRAS PUBLICAÇÕES
Christophe André Thevet, Publicou várias edições da
Pantin 1558 Bíblia, além de Epístolas e prosas
eclesiásticas. Publicou gramáticas,
Cristóvão Cícero e escritos de Aldo Manuzio.
Acosta, 1582 Publica a tradução da relação
de viagem de Francisco Alvares.
Historiale description de l’Ethiopie:
contenant vraye relation des terres,
[et] pais du grand Roy, [et] Empereur
Prete-Ian, l’assiete de ses Royaumes
[et] Prouinces, leurs coutumes, loix,
[et] religion, auec les pourtraits de
leurs temples [et] autres singularitez,
cy deuant non cogneues ... Antuérpia,
1558.
Giacomo Cristóvão Lelio Zacchi, 1591; Leonardo
Cornetti Acosta, 1592 Fioravanti, 1591; Johan Boemus
(sobre viagens), 1585; Isabella
Cortese, 1584; vários escritos
religiosos: Caterina de Siena, 1589;
Luigi Bigi Pittorio, 1590; Marino
Negro, 1590; Francisco de Vitoria,
1588.
Antonio Bartolomé de Publicação de vários escritos católicos
Lacavalleria Las Casas, 1646 (sermões, ofícios, solilóquios etc.) e
militares (em catalão).
Marco Bartolomé de Maquiavel (1648); Duns Escoto
Ginami Las Casas, 1630, (1625).
1636, 1640

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Alexandre Belmonte
EDITOR VIAJANTE OUTRAS PUBLICAÇÕES
George Eld Jean de Léry, Editor de Shakespeare em Londres.
1611

Luca Giovanni O primeiro dos Giunta, em Veneza,


Antonio Battista Ramusio publicara, entre 1489 e 1538,
Giunta e (1556) Ptolomeu, Dante, Aristóteles,
herdeiros Tomás de Aquino, Tito Lívio,
Virgílio, Máximo Valério, Eusébio
de Cesarea etc. Seus herdeiros, os
filhos Giovanni Maria e Tommaso,
mantiveram o nome do pai e a marca,
e publicaram, entre outros, Marco
Polo, 1554-1559 (2 volumes, mais
de uma edição); vários comentários
jurídicos; São Tomás de Aquino,
Aristóteles, várias publicações
eclesiásticas; Viagem à Escandinávia
de Olaus Magnus, bispo de Upsala,
1565. O neto de Luca Antonio
Giunta, filho de Giovanni Maria,
torna-se único herdeiro da casa e
publica até o início do século XVII.

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Saudades do Novo Mundo - A aventura de Jean de Léry
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