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Novas tecnologias: o redimensionamento do espaço e do tempo e os


impactos no trabalho docente

Article  in  Revista Brasileira de Educação · August 1998

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Vani Moreira Kenski


University of São Paulo
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Vani Moreira Kenski

Novas tecnologias
O redimensionamento do espaço e do
tempo e os impactos no trabalho docente

Vani Moreira Kenski


Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo

Trabalho apresentado na XX Reunião Anual da ANPEd, Caxambu, setembro de 1997.

Este artigo originou-se da minha participa- Na impossibilidade de abordar todas as ques-


ção em Sessão Especial na XX Reunião Anual da tões decorrentes dessas múltiplas interrogações, res-
ANPEd. O tema sugerido para a apresentação — trinjo-me àquelas que considero prioritárias em ter-
novas tecnologias, o redimensionamento do espa- mos de análise. Começo, assim, minha reflexão pelo
ço e do tempo e os impactos no trabalho docente professor e suas inter-relações com o início do tema:
— foi extremamente provocativo, desafiador. Sua novas tecnologias. A primeira sensação que essa
amplitude possibilitou a realização de inúmeras re- relação me provoca é a de desencontro. Para uma
flexões e encaminhamentos, a partir das idéias de grande parte dos professores o termo “novas tec-
vários autores que escrevem sobre a sociedade con- nologias” está associado ao uso da televisão e do
temporânea e os impactos e transformações nela computador em sala de aula e, principalmente este
ocorridos com a proliferação das novas tecnologias último (pelo desconhecimento da lógica de seu fun-
eletrônicas de comunicação e de informação. cionamento), assusta. Sinto então a necessidade de
A segunda parte da proposta, no entanto, co- reorientar minhas reflexões para realizar, inicial-
locou-me na relação espaço-temporal da temática: mente, uma tentativa de esclarecer o sentido do ter-
a prática docente. Deveria circunscrever minha re- mo tecnologias, novas ou velhas. Posteriormente,
flexão aos limites espaciais e temporais em que então, procurarei refletir sobre o (re)dimensiona-
ocorre a prática docente na atualidade. Onde? Quan- mento do espaço e do tempo e as suas implicações
do? Como? Com quem?... perguntas tradicionais, na prática docente na atualidade.
que informam sobre o processo comunicativo e que,
neste momento, tornam-se difíceis de serem respon- Tecnologias, novas ou velhas
didas ao se considerarem as diversas possibilidades
educativas que foram estabelecidas na nova socie- Na perspectiva de Simondon (1969, p. 19) o
dade digital. homem iniciou seu processo de humanização, dis-

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tinguindo-se dos demais seres vivos, a partir do mo- A tecnologia moderna reestrutura ainda mais
mento em que se utilizou dos recursos existentes na profundamente a consciência e a memória, impon-
natureza, dando-lhes outras finalidades que trou- do uma nova ordem nas formas tradicionais de com-
xessem algum novo benefício à sua vida. Assim, preender e de agir sobre o mundo. De um lado, es-
quando os nossos ancestrais pré-históricos utiliza- sas tecnologias fixam lembranças de fatos concre-
ram-se de galhos, pedras e ossos como ferramentas, tamente vividos; por outro, elas derrubam as bar-
dando-lhes múltiplas finalidades que garantissem a reiras entre os acontecimentos reais e a ficção.
sobrevivência e uma melhor qualidade de vida, es- No plano coletivo, conforme afirma Steven
tavam produzindo e criando tecnologias. Rose, as novas tecnologias oferecem perspectivas
A relação entre memória e tecnologias não é sem precedentes ao desenvolvimento não apenas
algo novo ou inusitado. Pelo contrário, Steven Rose da memória social, baseada em fatos vividos. Me-
chega a afirmar que a cada época corresponde uma mórias artificiais, criadas a partir das interações
tecnologia. E, “a cada tecnologia, uma memória” com imagens e sons apresentados pelos meios de
(1994, p. 81). Nesse sentido, ao depositar suas comunicação; “lembranças totalmente inventadas
marcas e lembranças nas tecnologias (desde as mais do tipo daquelas evocadas por Woody Allen, ou
primitivas — como a cerâmica, o barro, o ferro, o mesmo de uma forma de amnésia social, como os
bronze, a pedra... — até as mais atuais — como a que tiraram Trotski das fotografias em que se a-
fotografia, a gravação em vídeo ou por meio do presentam os artífices da revolução bolchevique”
computador), o homem altera as suas próprias for- (idem, p. 123).
mas de se lembrar do passado. Esta é a principal Essas mixagens e reinterpretações influenciam
razão por que Sócrates já era contrário ao registro diretamente não apenas a memória pessoal mas,
escrito, pois considerava que a escrita “enfraque- principalmente, a memória coletiva, refletida na
cia a memória estabelecida no interior do espírito cultura, no conhecimento científico e na forma co-
humano” (apud idem, p. 83). mo a sociedade identifica seus valores e comporta-
As tecnologias, em todos os tempos, alteraram mentos, sua ideologia, o seu momento.
as formas de retentiva e lembrança, funções usuais
com que os homens armazenam e movimentam suas Panorama da sociedade atual
memórias humanas, seus conhecimentos. Na atua-
lidade, as novas tecnologias de comunicação não A partir da banalização das tecnologias eletrô-
apenas alteram as formas de armazenamento e aces- nicas de comunicação e de informação, a socieda-
so das memórias humanas como, também, mudam de atual adquiriu novas maneiras de viver, de tra-
o próprio sentido do que é memória. Através de balhar, de se organizar, de representar a realidade
imagens, sons e movimentos apresentados virtual- e de fazer educação.
mente em filmes, vídeos e demais equipamentos ele- Tradicionalmente, a aprendizagem de infor-
trônicos de comunicação, é possível a fixação de mações e conceitos era tarefa exclusiva da escola.
imagens, o armazenamento de vivências, sentimen- Os conhecimentos teóricos eram apresentados gra-
tos, aprendizagens e lembranças que não neces- dativamente às crianças após o ingresso nas insti-
sariamente foram vivenciadas in loco pelos seus es- tuições formais de ensino. Eles eram finitos e deter-
pectadores. minados. Ao final de um determinado grau de es-
A evolução tecnológica conduziu o desenvol- colarização a pessoa podia considerar-se formada,
vimento humano para o registro de situações que ou seja, já possuía conhecimentos e informações
vão da memória fluida dos relatos orais às interfaces suficientes para iniciar-se em alguma profissão.
com as memórias tecnológicas gravadas nos equi- O espaço e tempo de ensinar eram determina-
pamentos eletrônicos de última geração. dos. “Ir à escola” representava um movimento, um

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deslocamento até a instituição designada para a ta- O impacto temporal das tecnologias
refa de ensinar e aprender. O “tempo da escola”,
também determinado, era considerado o tempo diá- O homem vive entre diversos tipos de tempo-
rio que, tradicionalmente, o homem dedicava à sua ralidades. Na realidade, há uma percepção geral e
aprendizagem sistematizada. Correspondia, tam- intuitiva de que os múltiplos sentidos de tempo se
bém, à época, na sua história de vida, que o homem entrecruzam na vida cotidiana. A percepção mecâ-
dedicava à formação escolar. nica e objetiva, definida pelos relógios e calendári-
As velozes transformações tecnológicas da a- os, orienta as nossas atividades rotineiras. Estabe-
tualidade impõem novos ritmos e dimensões à ta- lece ritmos e nos auxilia operacionalmente a defi-
refa de ensinar e aprender. É preciso que se esteja nir prazos e compromissos. Em um sentido consen-
em permanente estado de aprendizagem e de adap- sual geral, o tempo determinado espacialmente pe-
tação ao novo. Não existe mais a possibilidade de los cronômetros, pela periodicidade dos meses e das
considerar-se alguém totalmente formado, inde- estações do ano ou pela delimitação de períodos ou
pendentemente do grau de escolarização alcança- eras é uma imensa abstração. O homem ocidental
do. Além disso, múltiplas são as agências que apre- subordina-se pragmaticamente às suas determina-
sentam informações e conhecimentos a que se po- ções — horas, minutos, segundos, meses, anos... —
de ter acesso, sem a obrigatoriedade de desloca- e orienta as ações de acordo com a sua imagem de
mentos físicos até as instituições tradicionais de “continuidade” e progressão.
ensino para aprender. Escolas virtuais oferecem A relatividade do tempo estudada pela física
vários tipos de ensinamentos on-line, além das inú- aparentemente não interfere no sentido em que o
meras possibilidades de se estar informado, a par- homem compreende o tempo na vida cotidiana.
tir das interações com todos os tipos de tecnologias Nesta, o tempo do trabalho ou o tempo industrial,
mediáticas. como denomina Anders (1994), é praticamente o
“Na atualidade, o que se desloca é a informa- denominador comum através do qual a grande
ção”, diz Virilio (1993, p. 110). E esses novos co- maioria da população urbana atual se orienta e obe-
nhecimentos deslocam-se em dois sentidos: o pri- dece. Essa temporalidade industrial, típica da socie-
meiro, o da espacialidade física, em tempo real, sen- dade capitalista, é vivida em todos os momentos,
do possível serem acessados através das tecnologias no trabalho ou fora dele, ou, como diz Anders,
mediáticas de última geração. O segundo, pela sua
quando a sirene da fábrica anuncia o término
alteração constante, transformações permanentes,
do trabalho, ela anuncia, ao mesmo tempo, também,
sua temporalidade intensiva e fugaz.
que se inicia a inevitável dominação do mundo sirênico
Velocidade. Esse é o termo-síntese do status es-
dos meios de comunicação e da publicidade. Anuncia
pácio-temporal do conhecimento na atualidade. Ve-
que nós dependemos dele, que aí começam as horas
locidade para aprender e velocidade para esquecer.
de nosso emprego sem limites e sem contrato, as ho-
Velocidade para acessar as informações, interagir
ras por cuja lama temos que atravessar batalhando no
com elas e superá-las com outras inovações. Essa
suor de nosso rosto de ócio (p. 170).
“explosão de informação”, como diz Galvão (1997,
p. 26), se, de um lado, presta-se “a criar meios cada As tecnologias — velhas, como a escrita, ou
vez mais eficientes para o armazenamento e a circu- novas, como as agendas eletrônicas — transformam
lação instantânea de informações, de outro, desen- o modo como dispomos, compreendemos e repre-
volve softwares e programas de busca e de filtro que sentamos o tempo e o espaço à nossa volta. O uni-
nos ajudam a administrar um espaço que já beira verso de aparelhagens de que nos servimos diaria-
o infinito”. mente redimensionam as nossas disponibilidades
temporais e os nossos deslocamentos espaciais. O

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tempo, o espaço, a memória, a história, a noção de Em rápidas observações, procuro apresentar,


progresso, a realidade, a virtualidade e a ficção são a seguir, algumas características dessas três formas
algumas das muitas categorias que são reconside- de apreensão de conhecimentos (oral, escrita e di-
radas em novas concepções a partir dos impactos gital), tal como são considerados por Pierre Lévy,
que, na atualidade, as tecnologias eletrônicas têm e as implicações que as novas tecnologias vão oca-
em nossas vidas. sionar a todas elas.

O conhecimento na nova era A linguagem falada

Pierre Lévy (1993) categoriza o conhecimen- A apreensão e uso dos conhecimentos através
to existente nas sociedades em três formas diferen- da linguagem falada é a forma mais antiga e a mais
tes: a oral, a escrita e a digital. Embora essas formas utilizada pelos homens em todos os tempos. Atra-
tenham se originado em épocas diferentes, elas coe- vés dela estabelecem-se diálogos, conversas, trans-
xistem e estão todas presentes na sociedade atual. mitem-se informações, avisos e notícias. É a lin-
No entanto, elas nos encaminham para percepções guagem básica dos meios de comunicação mais po-
diferentes, racionalidades múltiplas e comporta- pulares: rádio e televisão. É também a forma de
mentos de aprendizagem diferenciados. apresentação e de ensino mais utilizada: a exposi-
A forma escrita de apreensão do conheci- ção oral.
mento é a que prevalece em nossas culturas letra- Vários são os autores que consideram que a
das, mas a linguagem oral ainda é a que predomi- nossa primeira tecnologia foi a linguagem falada.
na em todas as formas comunicativas vivenciais. Uma “tecnologia da inteligência”, diz Pierre Lévy
Em meio a elas, e utilizando-se de ambas, o estilo (1993, p. 7), sem instrumentos concretos para a ma-
digital de apreensão de conhecimentos é ainda in- nipulação, mas evidentemente um recurso ou “uma
cipiente, mas sua proliferação é veloz. O estilo di- extraordinária construção viva”. A linguagem, com
gital engendra, obrigatoriamente, não apenas o toda a sua complexidade, é uma criação artificial
uso de novos equipamentos para a produção e a- em que se encontra o projeto tecnológico de estru-
preensão de conhecimentos mas também novos turação da fala significativa com o próprio projeto
comportamentos de aprendizagem, novas racio- biológico de evolução humana.
nalidades, novos estímulos perceptivos. Seu rápi- Pierre Lévy diz que é também a partir da lin-
do alastramento e multiplicação, em novos produ- guagem que o homem se distingue do restante da
tos e em novas áreas, obriga-nos a não mais igno- natureza e “dispõe desse extraordinário instrumen-
rar sua presença e importância. to de memória e de propagação das representações”
Favoráveis ou não, é chegado o momento em (idem, p. 76). Essa oralidade primária, que nomeia,
que nós, profissionais da educação, que temos o define e delimita o mundo a sua volta, cria também
conhecimento e a informação como nossas maté- uma concepção particular de espaço e de tempo.
rias-primas, enfrentamos os desafios oriundos das No início da civilização, nas sociedades orais,
novas tecnologias. Esses enfrentamentos não signi- a localização fisicamente próxima dos homens que
ficam a adesão incondicional ou a oposição radi- utilizavam a mesma “fala” definia o espaço da tri-
cal ao ambiente eletrônico, mas, ao contrário, sig- bo e da cultura. A oralidade primária requeria a pre-
nificam criticamente conhecê-los para saber de suas sença e a proximidade entre os seus interlocutores.
vantagens e desvantagens, de seus riscos e possibi- Incorporada aos seus próprios sistemas físico-cor-
lidades, para transformá-los em ferramentas e par- porais, a linguagem falada limitava o homem ao
ceiros em alguns momentos e dispensá-los em ou- espaço circunscrito do seu grupo, onde ele circula-
tros instantes. va e se comunicava.

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Vani Moreira Kenski

Baseada nas lembranças dos seus membros, a Na escola, a “nova sociedade oral” coloca o
sociedade oral caracteriza-se pela repetição. Circu- professor, o vídeo e todos os demais media “nar-
lares, as histórias se repetem pelas gerações e adqui- rativos” no papel de contadores de histórias e os
rem novos contornos mas são, estruturalmente, as alunos, em seus “ouvintes”. A sociedade oral, de
mesmas. “Possuindo apenas os recursos de sua me- todos os tempos, aposta na continuidade.
mória de longo prazo para reter e transmitir as re-
presentações que lhes parecem dignas de perdurar, A linguagem escrita
os membros das sociedades orais exploraram ao
máximo o único instrumento de inscrição de que A sociedade da escrita surge em um outro mo-
dispunham” (idem, 1993, p. 77). mento da civilização, quando os homens ocupam
Conhecimentos, tradições, culturas e valores um determinado espaço, onde praticam a agricul-
do grupo são mantidos através de músicas e versos, tura. A previsibilidade da plantação e da colheita
de histórias contadas e transmitidas através das ge- interferem na criação de suportes para a escrita.
rações. Rimas, danças e rituais são formas didáti- Segundo Lévy (1993, p. 87), a própria origem da
cas de transmitir os conhecimentos considerados palavra página viria de pagus, o campo arado e pre-
valiosos e que precisam ser preservados. parado para o plantio.
Circulares e repetitivas são as cantigas e len- A disposição das linhas na página estaria tam-
das que dizem das tradições e culturas dos povos. bém ligada à simetria do campo cultivado. Se nas
Circular era a disposição dos homens em volta da sociedades orais prevalecia/prevalece a memoriza-
fogueira para ouvir as histórias e os ensinamentos ção e a repetição como formas de aquisição de co-
dos sábios das tribos. As trocas de informações vi- nhecimentos, na sociedade da escrita há necessida-
nham carregadas de sentimentos e afetos. Em ge- de de compreensão do que está sendo comunicado
ral, eram acompanhadas por movimentos, danças, graficamente. Existe uma distância — correspon-
gestos, músicas e expressões faciais. dente ao plantar e colher da agricultura — entre a
Na atual e “nova” sociedade oral, em que pre- pessoa que escreve e a outra que lê e interpreta o
valecem as imagens e sons dos diversos media, so- escrito. Os tempos em que ocorrem esses dois pro-
bretudo da televisão, é também através do apelo à cessos — escrever e ler — podem estar defasados
afetividade, à repetição, a memorização de músicas, de muitos séculos, milênios até.
jingles, gestos e enredos, envolvendo personagens A partir da escrita se dá a autonomia do co-
ficcionais, que se pretende que as idéias, informa- nhecimento. Não há mais a necessidade presencial
ções, valores, comportamentos, mensagens e ape- do comunicador, informando, observando e orien-
los (principalmente comerciais) sejam apreendidos. tando seus discípulos. Os conhecimentos são apre-
É ainda na forma circular que se senta em torno da endidos não na forma como foram enunciados, mas
televisão (a fogueira), para ouvir as histórias e as no contexto em que o escrito é lido e analisado. A
notícias do dia. A espacialidade próxima do locu- análise do escrito, por sua vez, distante do calor do
tor ou do narrador televisivo é agora virtual, mas momento em que o texto foi produzido, é realiza-
também exige a atenção e a presença do ouvinte. da através da compreensão racional do que está
A proximidade simbólica dos media coloca no mes- sendo apresentado. A comunicação escrita é apre-
mo círculo os atores e os (tele)espectadores do ato endida através de critérios em que predominam a
comunicativo. razão e os aspectos cognitivos da personalidade,
O círculo se fecha e todos apostam na repeti- pretensamente isentos de emocionalidade.
ção, na continuidade, no eterno retorno do mesmo Por outro lado, a previsibilidade da agricultura
(a novela, o filme, o jogo, o telejornal), sempre di- influi também na forma seqüencial do espaço escrito
ferente em seu conteúdo, mas igual em sua forma. e na disposição linear do que está sendo apresen-

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tado. À circularidade da sociedade oral antepõe-se liberados em biografias, diários, agendas, textos e
a linearidade da sociedade da escrita. redações. Mais ainda, possibilita ao homem a ex-
A preocupação de vários estudiosos nas últi- posição de suas idéias e pensamentos, tornando-o
mas décadas tem sido a de identificar a influência autoconsciente e livre em sua capacidade de refle-
que essa linearidade do alfabeto greco-romano e o xão e apreensão da realidade. Como apresenta Ha-
direcionamento da escrita, da esquerda para a di- velock, citado por Kerckhove, com a escrita “a in-
reita, tem exercido na maneira de pensar e nas for- teligência humana libertou-se do peso da lembran-
mas de compreensão e percepção ocidental. Foi ça para se aplicar na inovação” (idem, p. 258).
nesse sentido que Kerckhove realizou uma pesqui- Dessa forma, o tempo é compreendido em no-
sa comparando os sistemas escritos conhecidos no vas complexidades: o tempo vivido, o tempo recu-
mundo. Observou então que “todos os sistemas perado na lembrança ou no relato escrito é o tem-
escritos que representam sons (fonéticos) são escri- po perspectivo e espacialmente definido, simbolica-
tos horizontalmente, mas todos os que representam mente direcionado da esquerda para a direita em
imagens, como os ideogramas chineses ou os hie- direção ao alto, ao firmamento, ao desconhecido.
róglifos egípcios, são escritos verticalmente. As co-
lunas verticais dos sistemas baseados em imagens A linguagem digital
são geralmente lidas da direita para a esquerda. To-
dos os sistemas de escrita com vogais, com exceção Ainda segundo Lévy, a terceira forma de apro-
do etrusco, são escritos da direita para a esquerda” priação do conhecimento — a linguagem digital —
(1997, p. 59). dar-se-ia no espaço das novas tecnologias eletrôni-
Em suas análises, Kerckhove considera que o cas de comunicação e de informação.
processamento seqüencial, ordenado pelo tempo, Neste momento não podemos mais identificar
observado na escrita alfabética, afeta a organização todas essas novas tecnologias como orientadas para
da linguagem e, por sua vez, a organização do pen- as mesmas finalidades e com os mesmos graus de
samento. Segundo ele, a partir do momento em que complexidade. Múltiplos são os equipamentos ele-
aprendemos a ler, a escrita alfabética influencia nos- trônicos e diversas as suas finalidades e funções. A
sa relação com o tempo e o espaço. Para os ociden- velocidade dos avanços tecnológicos pode ser veri-
tais, por exemplo, o passado está sempre à esquer- ficada através dos desdobramentos e multiplicidades
da e o “futuro é o lugar para onde corre a escrita, de tecnologias que foram aparecendo nos últimos
para a direita” (idem, p. 60). anos e também nos novos espaços — das nanotec-
A complexidade dos códigos da escrita, o do- nologias, desvelando microcosmos até então “invi-
mínio das representações alfabéticas, cria uma ver- síveis” às nossas percepções, até as tecnologias “in-
dadeira “literacia”, da qual são excluídos todos os vasoras”, próteses que, introduzidas no corpo, poten-
“iletrados”, os analfabetos. A escrita reorienta a cializam as capacidades naturais dos seres vivos.
estrutura social legitimando o conhecimento erudito Vê-se então que a amplitude das novas tecno-
como mecanismo de poder e de ascensão. logias nos coloca diante de escolhas de possibilida-
A perspectiva espaço-temporal definida pela des variadas de ação e de comunicação. Através de
escrita influi no pensamento científico e na manei- todas as novas formas tecnológicas somos perma-
ra como o homem ocidental apreende e se orienta nentemente convidados a “ver mais, a ouvir mais,
no mundo. A escrita, interiorizada como compor- a sentir mais”, como diz Stockhausen, citado por
tamento humano, interage com o pensamento liber- Kerckhove (1997, p. 126), enfim, a viver muitas
tando-o da obrigatoriedade de memorização perma- vidas em uma só vida e a compreender que, ao con-
nente. Torna-se, assim, ferramenta para a memó- trário do que se afirma, “não é o mundo que é glo-
ria e, através dela, os fatos da vida cotidiana são bal, somos nós”. Ou, como diz Kerckhove, “como

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nômades telemáticos libertamo-nos dos constran- Prevalece neste tipo de pensamento a lógica
gimentos de uma coincidência histórica entre o es- binária que predomina em múltiplas áreas tradicio-
paço e o tempo e ganhamos o poder de estar em nais do conhecimento e mesmo nas mais modernas
todos os lugares sem sairmos do mesmo lugar” como a psicanálise, o estruturalismo e até a infor-
(idem, p. 237). mática. Ou seja, um “tronco” que simbolicamente
A tecnologia digital rompe com a narrativa se refere a um segmento específico do saber, que se
contínua e seqüencial das imagens e textos escritos desdobra em ramos específicos que, em geral, não
e se apresenta como um fenômeno descontínuo. Sua se relacionam entre si e se ligam, exclusivamente,
temporalidade e espacialidade, expressa em imagens com a idéia central (raiz e tronco) do conhecimento.
e textos nas telas, estão diretamente relacionadas ao Esta estrutura se mantém, mesmo quando à
momento de sua apresentação. Verticais, descon- raiz principal de uma área específica do conheci-
tínuas, móveis e imediatas, as imagens e textos di- mento vem se enxertar “uma multiplicidade imedia-
gitalizados a partir da conversão das informações ta e qualquer de raízes secundárias [...] manifes-
em bytes, têm o seu próprio tempo, seu próprio tando-se a exigência de unidade secreta ainda mais
espaço: o tempo e o espaço fenomênico da exposi- compreensiva, ou de uma totalidade mais extensi-
ção. Elas representam portanto um outro tempo, va” (p. 14) entre os diversos ramos da ciência.
um outro momento, revolucionário, na maneira hu- O estudo nas variadas áreas (ou “árvores”) do
mana de pensar e de compreender. Esse novo modo conhecimento humano não considera essas inter-
de compreender pode ser explicado a partir das me- ligações subterrâneas e, ao contrário, o pensamen-
táforas apresentadas por Deleuze e Guattari: a ár- to estruturado trata de identificar e definir as espe-
vore e o rizoma. cificidades dos saberes, em delimitar os campos
de cada ciência, isolando-a e valorizando sua pseu-
Diferentes modos de compreender: do “autonomia arbórea”.
a árvore e o rizoma Os galhos inclinam-se em outras direções, for-
mam novas linhas de pensamento, rupturas ao pen-
A árvore samento-raiz e tronco originais (dicotomias) mas,
mesmo assim, nas referências, há um permanente
A compreensão das metáforas relacionadas retorno (círculo ou ciclo) à estrutura.
ao conhecimento e às formas de sua apreensão nos Estes sistemas arborescentes de compreensão
mostram que a referência clássica para dizer das são sistemas hierárquicos “que comportam centros
estruturas dos saberes e das ciências é a imagem da de significância e de subjetivação, autômatos cen-
árvore. Em Mil platôs, Deleuze e Guattari (1995) trais como memórias organizadas”. Nestes sistemas,
a apresentam como a imagem do pensamento e do um elemento só recebe suas informações de uma
conhecimento no mundo ocidental, a forma clás- unidade superior, à qual é determinado o poder de
sica de reflexão a que “até uma disciplina ‘avan- memória. Uma memória poderosa e central de onde
çada’ como a Lingüística retém como imagem de emanam todas as ramificações do conhecimento
base” (p. 13). Para os autores, a imagem da árvo- com sua lógica evolutiva e orgânica como são as
re relaciona-se com um pensamento que “nunca estabelecidas para as máquinas eletrônicas e os sis-
compreendeu a multiplicidade: ele necessita de temas informáticos. Ou ainda para a árvore lingüís-
uma forte unidade principal, unidade que é supos- tica à maneira de Chomsky, que começa num pon-
ta para chegar a duas [...] (três, quatro, cinco) mas to S e procede por dicotomia.
sempre com a condição de dispor de uma forte A linearidade desses sistemas arborescentes
unidade principal, a do pivô que suporta as raízes de pensamento exclui qualquer possibilidade de se
secundárias” (p. 13). atingir a multiplicidade. A informação não o-

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Novas tecnologias

riunda dos canais hierarquicamente designados é modos de codificação muito diversos, cadeias bioló-
falsa ou incompetente, distante da “linhagem” a gicas, políticas, econômicas, etc.[...] colocando em
que pertencem os galhos e ramos do conhecimen- jogo não somente regimes de signos diferentes, mas
to arborescente. também estatutos de estados de coisas (idem, p. 15).
A lógica da árvore baseia-se no decalque e na
No rizoma conectam-se cadeias semióticas, or-
reprodução. Decalcar significa retirar de um con-
ganizações de poder, ocorrências artísticas, cientí-
texto para ressignificá-lo em outro lugar sem per-
ficas, lutas sociais. Não existe um ponto central,
der de vista a sua origem. Na lingüística e na psi-
escalas de importância ou tipologia ideal. Todos os
canálise, por exemplo, a lógica “consiste em decal-
tipos de associações são possíveis de serem realiza-
car algo que se dá já feito, a partir de uma estrutu-
das através das interações.
ra que o sobrecodifica ou de um eixo que o supor-
Uma outra característica do rizoma é a sua
ta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os
multiplicidade. Ou seja, a inexistência de qualquer
decalques são como folhas da árvore” (p. 21).
relação com o uno — com o específico, com o in-
A metáfora da árvore, portanto, nos remete ao
dividual, como ocorre no modelo da árvore — co-
conhecimento temporal e espacialmente articulado,
mo sujeito ou como objeto, como realidade natu-
estruturado em uma continuidade determinada e
ral ou espiritual, como imagem e mundo. “Uma
que, para ser compreendido, precisa respeitar os
multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas
desdobramentos hierarquicamente estabelecidos
somente determinações, grandezas, dimensões que
nos campos específicos de cada ciência.
não podem crescer sem que se mude de natureza”
(idem, p. 17).
O rizoma No rizoma não existem pontos ou posições
definidas mas somente linhas, interconectadas, pla-
A metáfora de Deleuze e Guattari para o atual nas, em que se inter-relacionam as mais variadas
estágio do conhecimento humano — em que a di- possibilidades: “acontecimentos vividos, determina-
fusão da multiplicidade de conhecimentos inter- ções históricas, conceitos pensados, indivíduos, gru-
cambiáveis prolifera através das novas tecnologias pos e formações sociais” (idem, p. 18).
de comunicação, sobretudo nas redes — é a de com- Outro princípio apontado por Deleuze e Guat-
preensão da “imagem do mundo”, sob a forma de tari para o rizoma é o de ruptura a-significante. Uma
rizoma. idéia, um conceito ou saber, zelosamente retido no
Os rizomas, espécies de hastes ou caules sub- tronco de uma ciência específica, pode assim ser
terrâneos, diferenciam-se dos demais tipos de raí- retomado em outra área, ressignificado e conectado
zes pois têm formas muito diversas. “Desde sua ex- a outras concepções que satisfaçam as necessidades
tensão superficial ramificada em todos os sentidos momentâneas de conceitualização. Ela deriva da
até suas concreções em bulbos e tubérculos [...] há possibilidade de o rizoma ser
o melhor e o pior no rizoma: a batata e a grama, a
rompido, quebrado em um lugar qualquer, e
erva daninha” (Deleuze & Guattari, 1995, p. 15).
também retomar segundo uma ou outra de suas linhas
O conhecimento rizomático teria como carac-
e segundo outras linhas. Deste modo, conceitos oriun-
terísticas os princípios de conexão e de heterogenei-
dos da Física — como os de fenômeno, fractais ou
dade, ou seja,
atrator estranho — são ressignificados e utilizados em
qualquer ponto do rizoma pode ser conectado outros campos do conhecimento para definir compor-
a qualquer outro e deve sê-lo. [...] cada traço não re- tamentos sociais e humanos na atualidade, por exem-
mete necessariamente a um traço lingüístico: cadeias plo. Segundo este princípio, o rizoma compreende li-
semióticas de todas as naturezas são aí conectadas a nhas de segmentaridade, segundo as quais ele é estra-

Revista Brasileira de Educação 65


Vani Moreira Kenski

tificado, territorializado, organizado, significado, atri- considerada a possibilidade da existência de árvores,


buído, etc; mas compreende também linhas de des- campos específicos e hierárquicos do conhecimen-
territorialização, pelas quais ele foge sem parar [...] to. Eles existem não mais como únicas possibilida-
essas linhas não param de se remeter umas às outras des, mas como momentos. Assim, o estudo em uma
(idem, p. 18). determinada área do conhecimento é possível de ser
realizado com a perspectiva prevista na metáfora da
Compreender, portanto, a aquisição do conhe- árvore, para atingir objetivos específicos.
cimento através da metáfora do rizoma é entender Diferente deste, o princípio da cartografia (ma-
que as ciências, assim como as memórias, conjugam pa ou hipertexto) garante ao rizoma um novo modo
fluxos desterritorializados. Ou seja, não se limitam de compreender. Uma abordagem em que não vigore
e funcionam apenas em “territórios” determinados, a reprodução e o decalque mas sim a possibilidade
em estruturas arborescentes e hierárquicas. Ao con- de indicar os pontos importantes de uma experimen-
trário, mesmo nas tentativas de fixar limites seguin- tação totalmente ancorada no real. “O mapa não
do círculos de convergência, novos pontos se esta- reproduz um inconsciente fechado nele mesmo, ele
belecem dentro e fora desses círculos. Conexões são o constrói” (idem, p. 22). Pode ser aberto, conectável
instituídas em múltiplas outras direções. Como o- em todas as suas dimensões, desmontável, reversí-
corre nas interações com as imagens e textos digi- vel, suscetível de receber modificações constantes,
tais apresentados nas redes, onde tudo é possível. com múltiplas entradas e possibilidades de uso, e sem
Ou, em um exemplo de movimentações de imagens necessariamente a volta ao mesmo lugar (decalque).
virtuais em permanentes interações, em que: No mapa hipertextual as possibilidades estão
A orquídea se desterritorializa, formando uma
apresentadas e o ato de aprender é orientado pelas
imagem, um decalque de vespa; mas a vespa se re-
escolhas das ligações e interconexões entre os diver-
territorializa sobre esta imagem. A vespa se dester-
sos campos de conhecimentos ali representados, que
ritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma se comunicam de múltiplas formas interdisciplina-
peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela res, englobando a totalidade dos pensamentos e ca-
reterritorializa a orquídea, transportando o pólen. A
pacidades (cognitivas, afetivas, motoras, intuiti-
vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogenei-
vas...) construídas pelos sujeitos. Essas inúmeras
dade (idem, p. 18).
possibilidades de percursos e envolvimentos é ca-
racterizada por Rosenstiehl como pontos de entre-
Não mais imitação, nem semelhança, mas cap- cruzamento de “quaisquer objetos: lugares, memó-
tura de código, em que duas séries heterogêneas rias, centros de seleção ou de correspondência, má-
compõem um rizoma comum, ao qual não pode ser quinas para a informação” (apud Machado, 1995,
atribuído nenhum tipo de significante. p. 141.). São como nós que, ligados entre si, formam
Os dois últimos princípios do rizoma que De- uma teia, a rede onde os conhecimentos são perma-
leuze e Guattari consideram são os de cartografia nentemente reconstruídos, a partir das inter-relações
e de decalcomania. No de decalcomania a intenção ocasionais que o sujeito é estimulado (ou obrigado)
é a de não-exclusão, mas também a de não-vincula- a enfrentar no seu processo de aprendizagem.
ção a um modelo. Para os autores, “um rizoma não O pensamento rizomático, no entanto, não é
pode ser justificado por nenhum modelo estrutural excludente, ao contrário, “no coração de uma ár-
ou gerativo. Ele é estranho a qualquer idéia de eixo vore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho,
genético ou de estrutura profunda” (idem, p. 21). um novo rizoma pode se formar. Ou então é um
A imagem de eixo ou de estrutura liga-se ao modelo elemento microscópico da árvore raiz, uma radícu-
representativo da árvore. No entanto, isto não signi- la, que incita a produção de um rizoma” (Deleuze
fica que na estrutura rizomática não seja também & Guattari, 1995, p. 22). O conhecimento rizomor-

66 Mai/Jun/Jul/Ago 1998 N º 8
Novas tecnologias

fo produz hastes e filamentos que se conectam com de acordo com o interesse e sensibilidade dos in-
as raízes das árvores, penetram nos troncos e fazem terlocutores. Como diz Lévy, “as mudanças das eco-
que elas sirvam para usos novos e diferenciados. logias cognitivas devidas, entre outros, à aparição
O rizoma, em síntese, “não é feito de unida- de novas tecnologias intelectuais ativam a expan-
des, mas de dimensões, ou antes, de direções mo- são de formas de conhecimentos que durante mui-
vediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre to tempo estiveram relegadas a certos domínios,
um meio pelo qual ele cresce e transborda” (idem, bem como o enfraquecimento de certo estilo de sa-
p. 32). É um conhecimento com a memória curta ber, mudanças de equilíbrio, deslocamentos de cen-
ou uma antimemória, ou seja, sem uma estrutura tro de gravidade” (1994, p. 129).
organizadora central, e que é definido unicamente Nesta perspectiva, não resta apenas ao sujeito
pela circulação e pela velocidade com que são rea- adquirir os conhecimentos operacionais para poder
lizadas as conexões. desfrutar das possibilidades interativas com as novas
O rizoma encontra-se sempre no meio, e o tecnologias. O impacto das novas tecnologias reflete-
meio não significa a média, mas o espaço de fluxo se de maneira ampliada sobre a própria natureza do
entre as extremidades — como entre as margens de que é ciência, do que é conhecimento. Exige uma re-
um rio —, o lugar onde as coisas adquirem veloci- flexão profunda sobre as concepções do que é o sa-
dade. E essa velocidade transforma pontos em li- ber, e sobre as novas formas de ensinar e aprender.
nhas que se interligam entre si. Movimentos trans- Exige também a apropriação e uso dos conhe-
versais de múltiplos conhecimentos singulares nos cimentos e saberes disponíveis não como uma for-
quais se interconectam e se articulam todas as pos- ma artificial, específica e distante de comportamen-
sibilidades do pensar e do agir entre o homem e a to intelectual e social, mas integrada e permanen-
natureza vegetal e animal; entre a natureza huma- te, inerente à própria maneira de ser do sujeito. Nas
na e a industrial; entre o pensamento humano e o palavras de Nóvoa: “a inovação só tem sentido se
maquínico. Essas inter-relações e interconexões passar por dentro de cada um, se for objeto de re-
criam caminhos individuais e personalizados, atra- flexão e de apropriação pessoal” (1996, p. 17).
vés dos quais o homem da era digital se relaciona Estas alterações nas estruturas e na lógica dos
com o conhecimento e aprende. conhecimentos caracterizam-se como desafios para
Assim, a nova sociedade digital não se carac- a educação e, sobretudo, requerem novas orienta-
teriza pela exclusão ou oposição aos modelos an- ções para o que se vai ensinar, novas metodologias
teriores de aquisição e utilização dos conhecimen- e novas perspectivas para a ação docente.
tos armazenados na memória, humana ou ciberné- Assim, como diz Steven Rose, “se eu podia
tica. Sua característica é a ampliação de possibili- antigamente pedir a minha memória para reter na
dades e o envolvimento; sua prática, a mixagem. ordem toda uma série de temas, o poder libertador
Mesclam-se nas redes informáticas — na própria da técnica me impede, hoje, de lhe impor esta dis-
situação de produção — aquisição de conhecimen- ciplina” (1994, p. 120). Ou seja, já deixamos para
tos — autores e leitores, em tempo real. A veloci- trás nossas vivências lineares, para nos tornarmos
dade das alterações na esfera de produção de conhe- seres hipertextuais.
cimentos e informações ocasiona a duração efêmera
das múltiplas mensagens e desobriga os sujeitos do Os impactos na prática docente
exercício de retê-las, como verdades.
Por outro lado, cada vez mais é exigida a ma- A perspectiva rizomática de apreensão do co-
nifestação dos sentidos humanos — a audição, a nhecimento, ao ser assumida como possibilidade
visão, o tato, a emoção, a voz... — no envolvimen- didática, exige que, em termos metodológicos, tam-
to e compreensão das mensagens multimediáticas, bém se oriente a prática docente a partir de uma

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Vani Moreira Kenski

nova lógica. A solução real, diz Kerckhove, “está de caminhos e de alternativas possíveis, de diálogos
em mudarmos as nossas percepções e não apenas e trocas sobre os conhecimentos em pauta, de re-
as nossas teorias” (1997, p. 245). Compreender este ciclagem permanente de tudo e de todos.
novo mundo no qual estamos entrando com uma Dianna Laurrillard (1995) apresenta em um
nova lógica, uma nova cultura, uma nova sensibi- gráfico (quadro 1) os papéis do professor e do aluno
lidade, uma nova percepção. em quatro diferentes tipos de ensino que podem ser
Não mais, apenas, a perspectiva estrutural e desenvolvidos através de novas tecnologias de co-
linear de apresentação e desenvolvimento metodo- municação e informação. No primeiro, o professor
lógico do conteúdo a ser ensinado; nem tampouco é o “contador de histórias” e pode ser substituído
a exclusiva perspectiva dialética. Uma outra lógi- por um vídeo, um programa de rádio ou uma tele-
ca, baseada na exploração de novos tipos de racio- conferência, por exemplo. No segundo tipo, o pro-
cínios nada excludentes, em que se enfatizem vari- fessor assume o papel de negociador e o ensino se
adas possibilidades de encaminhamento das refle- dá através da “discussão” do que foi aprendido fora
xões, se estimule a possibilidade de outras relações da sala de aula (a leitura de um texto, observação,
entre áreas do conhecimento aparentemente distin- visita a determinado lugar, ou assistir a um filme,
tas. A apropriação dos conhecimentos neste novo por exemplo). Uma terceira possibilidade exclui in-
sentido envolve aspectos em que a racionalidade se clusive a ação direta do professor. Neste caso, o
mistura com a emocionalidade; em que as intuições aluno assume o papel de “pesquisador” e interage
e percepções sensoriais são utilizadas para a com- com o conhecimento através dos mais diferenciados
preensão do objeto do conhecimento em questão. recursos multimediáticos. O aluno aprende “por
Nesta abordagem alteram-se principalmente descoberta” e ao professor cabe um encontro final
os procedimentos didáticos, independentemente de com o aluno, para “ordenar” os conhecimentos a-
uso ou não das novas tecnologias em suas aulas. É preendidos nos outros espaços do saber. A quarta
preciso que o professor, antes de tudo, se posicione e última modalidade de ensino apresenta professo-
não mais como o detentor do monopólio do saber res e alunos como “colaboradores”, utilizando os
mas como um parceiro, um pedagogo, no sentido recursos multimediáticos em conjunto, para realiza-
clássico do termo, que encaminhe e oriente o alu- rem buscas e trocas de informações, criando um
no diante das múltiplas possibilidades e formas de novo espaço de ensino — aprendizagem em que am-
se alcançar o conhecimento e de se relacionar com bos aprendem.
ele. Como diz Michel Serres, “no sentido etimo- Espaço social por excelência, a sala de aula,
lógico, a pedagogia significa a viagem da criança em nesta última perspectiva, pode assumir para si a pers-
direção às fontes do saber. Até agora existiam lu- pectiva rizomática de interação com o conhecimento
gares de saber, um campus, uma biblioteca, um la- e com os atores do ato educativo. Assume também
boratório [...] Com os novos meios é o saber que a função de ser o principal lugar em que se desen-
viaja” (1994, p. 134). E essa inversão transforma volva a inteligência coletiva, como é defendida por
completamente a idéia de sala de aula, de escola ou Lévy (1994), em que ocorra a negociação permanen-
mesmo de campus universitário. te da ordem das coisas, da linguagem, do papel de
Nesse sentido, a dinâmica da sala de aula em cada um, do recorte e da definição dos objetos, da
que alunos e professores encontram-se fisicamente reinterpretação da memória social da comunidade.
presentes também se altera. As atividades didáticas Nessa nova sala de aula (e, obrigatoriamente,
orientam-se para privilegiar o trabalho em equipe, nova escola) nada é fixo, mas não reina a desordem
em que o professor passa a ser um dos membros nem o relativismo absoluto. Os atos são coordena-
participantes. Nestas equipes, o tempo e o espaço dos e avaliados em tempo real de acordo com um
são os da experimentação e da ousadia em busca grande número de critérios, constantemente reava-

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Novas tecnologias

Quadro 1
Modos de ensino: papéis do professor/aluno

a) aprendizagem através da aquisição: b) aprendizagem através da discussão:


professor como “contador de histórias” professor e aluno como “negociadores”

CCP CCA CCP CCA

CEP CEA CEP CEA

c) aprendizagem através da descoberta: d) aprendizagem através da


aluno como “pesquisador” descoberta orientada:
professor e alunos como “colaboradores”

CCP CCA CCP CCA

CEP CEA CEP CEA

Laurillard, D. (1995), traduzido e adaptado por Kenski, Vani M.


CCP: conhecimento conceitual do professor; CCA: conhecimento conceitual do aluno; CEP: conhecimento estruturado
do professor; CEA: conhecimento empírico do aluno.

liados conforme o contexto. A ordem aqui não é ção e de troca com as demais instituições culturais,
pensada no sentido positivista de adaptação às re- no sentido de promover a “educação” em um sen-
gras. Ao contrário, a ordem neste caso significa pul- tido amplo. Garantir a necessária adesão social a
sação e funcionamento, um processo de reequili- um projeto de convivência integrada com os outros
bração permanente a partir das trocas intensas rea- espaços sociais e as mais recentes tecnologias, essa
lizadas com o exterior, ou seja, com o ruído, que é a necessidade educacional da nova era.
lhe traz a cada momento mais informação, mais
complexidade. A concepção de ordem neste caos Impactos na formação docente
informacional estaria, assim, mais próxima da a-
daptação realizada pelo coração no corpo humano Não é possível pensar na prática docente sem
de acordo com as diferentes oscilações e adversida- pensar, antecipadamente, na pessoa do docente que
des vindas do mundo exterior. está em pauta e em sua formação que, como vimos,
Interagindo com diversas outras “comunida- não se dá apenas durante o seu percurso nos cur-
des” reais ou virtuais, os seres que animam este no- sos de formação de professores mas, permanente-
vo espaço do saber, longe de serem “membros in- mente, durante todo o seu caminho profissional,
tercambiáveis de castas imutáveis” (Baudrillard, dentro e fora da sala de aula.
1995), são, cada vez mais, singulares, múltiplos, Antes de tudo a esse professor devem ser da-
nômades e em meio à metamorfose (ou à aprendi- das oportunidades de conhecimento e de reflexão
zagem) permanente. sobre sua identidade pessoal como profissional do-
A escola, portanto, como uma das instituições cente, seus estilos e seus anseios. Em uma outra ver-
de memória social, coloca-se como ponto de recep- tente, é preciso que este profissional tenha tempo e

Revista Brasileira de Educação 69


Vani Moreira Kenski

oportunidades de familiarização com as novas tec- essas novas competências. Que ao lado do saber
nologias educativas, suas possibilidades e limites científico, do saber pedagógico, seja oferecido ao
para que, na prática, faça escolhas conscientes so- professor a capacidade de ser agente, produtor, ope-
bre o uso das formas mais adequadas ao ensino de rador e crítico das novas tecnologias educativas.
um determinado tipo de conhecimento, em um de- Sobre esse assunto vários educadores brasilei-
terminado nível de complexidade, para um grupo ros já se pronunciaram. Bernadete Gatti posiciona-
específico de alunos e no tempo disponível. Ou en- se, por exemplo, dizendo que quem deve capitane-
caminhe sua prática para uma abordagem que dis- ar a preocupação com a melhor qualidade do en-
pense totalmente a máquina, e os alunos aprendam sino “é o educador, e não o programador, nem o
até com mais satisfação. As atividades de narrati- dono da empresa que está elaborando o software”.
va oral e de escrita não estão descartadas. A dife- E indaga: “será que vamos delegar essa função, que
rença didática não está no uso ou não-uso das no- nos é — específica dos professores — a outros
vas tecnologias, mas na compreensão das suas pos- técnicos que não vivenciam o cotidiano escolar?”
sibilidades. Mais ainda, na compreensão da lógica (1993, p. 25-26).
que permeia a movimentação entre os saberes no O domínio das novas tecnologias educativas
atual estágio da sociedade tecnológica. pelos professores pode lhes garantir a segurança
para, com conhecimento de causa, sobrepor-se às
Desintermediação entre o imposições sociopolíticas das invasões tecnológicas
professor e as novas tecnologias indiscriminadas às salas de aula. Criticamente, os
professores vão poder aceitá-las ou rejeitá-las em
Todos aqueles que já “cruzaram a fronteira”, suas práticas docentes, tirando o melhor proveito
ou seja, procuraram relacionar-se com as novas tec- dessas ferramentas para auxiliar o ensino no mo-
nologias educativas, têm queixas e observações se- mento adequado.
melhantes: a baixa qualidade didática de muitos
dos programas que são comercializados e introdu- Espaço e tempo docente
zidos como pacotes pedagógicos nas escolas de di-
versos níveis de ensino. A queixa procede. Na ver- As tecnologias redimensionaram o espaço da
dade, um pouco da culpa não está nos programas sala de aula em, pelo menos, dois aspectos. O pri-
em si, mas nos produtores desses programas e soft- meiro diz respeito aos procedimentos realizados
wares e aí, nós, educadores, também temos parte pelo grupo de alunos e professores no próprio es-
da responsabilidade. paço físico da sala de aula. Neste ambiente, a pos-
Realizados por técnicos que, em geral, não en- sibilidade de acesso a outros locais de aprendizagem
tendem de educação, estes programas são impostos — bibliotecas, museus, centros de pesquisas, outras
pelas escolas e empresas como potencialmente re- escolas etc... com os quais alunos e professores po-
volucionadores do ensino. Intimidados, os profes- dem interagir e aprender — modifica toda a dinâ-
sores que desconhecem os fundamentos da técnica mica das relações de ensino—aprendizagem. Em um
não são ouvidos em suas queixas e se submetem aos segundo aspecto, é o próprio espaço físico da sala
técnicos e aos programas de baixa qualidade edu- de aula que também se altera.
cativa por eles produzidos. Deslocamentos são necessários, momentos dos
Uma das soluções para esse impasse está na alunos diante das máquinas alternam-se com mo-
possibilidade de o professor também assumir um mentos em que discutem em equipe os resultados de
papel na equipe produtora dessas novas tecnologias suas interações com o ambiente tecnológico e com
educativas. Outra é a de que os cursos de forma- outros momentos em que refletem ou se concentram
ção de professores se preocupem em lhes garantir em atividades isoladas, sem os recursos tecnológicos.

70 Mai/Jun/Jul/Ago 1998 N º 8
Novas tecnologias

As novas formas de movimentação e a reorganiza- EDELMAN, Gerald, (1987) Neural darwinism: the theory
ção da sala de aula criam “uma nova distribuição of neuronal group selection. Nova York: Basic Books.

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A rotina da escola também se modifica. Aos GATTI, Bernadete, (1993). Os agentes escolares e o compu-
tador no ensino. Acesso, ano 4. São Paulo: FDE/SEE, dez.
professores é necessária uma reorientação da sua
carga horária de trabalho para incluir o tempo em HARVEY, David, (1992). A condição pós-moderna. São
Paulo: Loyola.
que pesquisam as melhores formas interativas de
desenvolver as atividades fazendo uso dos recursos JAMESON, Fredric, (1996). Pós-modernismo. São Paulo:
Ática.
multimediáticos disponíveis. Incluir um outro tem-
po para a discussão de novos caminhos e possibili- KENSKI, Vani, (1997). Memórias e formação de professo-
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dades de exploração desses recursos com os demais
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professores e os técnicos e para refletir sobre todos
tudos sobre formação. São Paulo: Escrituras.
os encaminhamentos realizados, partilhar experiên-
KERCKHOVE, Derrick, (1997). A pele da cultura: uma
cias e assumir a fragmentação das informações, co-
investigação sobre a nova realidade eletronica. Lisboa:
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