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LEANDRO R. PINHEIRO
Ciências Sociais
Seminário de Antropologia I
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................03
PÃO DOS POBRES: CONTROLE, DISCIPLINA E UMA “CHANCE NA VIDA”............04
1. Minhas Referências ...........................................................................................................05
2. Aprender fazendo ..............................................................................................................07
2.1. Pão dos Pobres, o campo de pesquisa ........................................................................07
2.2. Personagens em cena ..................................................................................................11
CONCLUSÃO ........................................................................................................................18
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................20
ANEXOS .................................................................................................................................21
Anexo 1 – Pia União do Pão dos Pobres - Planta.....................................................................22
Anexo 2 – Prédio Principal - Internato.....................................................................................23
Anexo 3 – Sala de Estudos e Dormitório.................................................................................24
Anexo 4 – Recreação no Pão dos Pobres..................................................................................25
2
INTRODUÇÃO
3
PÃO DOS POBRES: CONTROLE, DISCIPLINA E UMA “CHANCE NA
VIDA”
4
1. Minhas Referências
1
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 107.
5
hábitos e valores morais; semelhante à iniciativa dos Pão dos Pobres como poderemos
observar mais adiante.
Passamos a Erving Goffman, interessa a esta investigação uma introdução ao que o
mesmo entende por “instituição total”. Segundo o autor, “pode ser definida como um local de
residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante,
separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida
fechada (inclusive fisicamente) e formalmente administrada”2.
O universo criado em tais instituições destina-se ao mantimento de pessoas julgadas
incapazes de garantir sua própria subsistência e são inofensíveis (exemplo dos órfãos), ou
ainda, à recuperação de indivíduos considerados perigosos para a sociedade, como o fazem os
sanatórios. Normalmente constitui-se uma polarização entre dirigentes e dirigidos, pela qual
os primeiros (em grande número) são submetidos à execução das mesmas tarefas em
conjunto, sob vigilância atenta e autoridade unilateral dos segundos, conforme uma rotina
rígida de horários imposta e racionalmente estabelecida. Neste ínterim, a postura da equipe
dirigente tende a inspirar superioridade, como grupo representante de respeitabilidade e
idoneidade.
Estes empreendimentos exercem sobre os indivíduos que admitem o que Goffman
chama de “mortificação”, isto é, a alienação de exterior. Esta “anulação do eu” começa no ato
de internar-se e prossegue com o despojamento de bens pessoais, de direitos presentes na
sociedade como um todo e na impossibilidade de usar qualquer subterfúgio de defesa frente a
autoridade unívoca do internato, a qual almeja instaurar um novo modelo comportamental.
A regulamentação de tarefas e horários é complementada por um sistema de castigos e
privilégios, onde a “insolência” é reprimida e a obediência exposta como exemplo. E o
enquadramento nesta estrutura varia, segundo Goffman, em quatro direções básicas:
afastamento da situação, pelo qual o interno ignora os acontecimentos a sua volta que não
dizem respeito especificamente a si; a intransigência, configurando como o desafio à
instituição ou negação de participação nas atividades impostas; a terceira possibilidade seria a
colonização, compreendida como a adesão do internado ao padrão de vida da instituição total,
numa fuga das tensões que encontrara no mundo exterior; e, finalmente, a aceitação “da
interpretação oficial” e a tentativa de “representar o papel do internado perfeito”3, intitulada
de conversão.
Tendo colocado os pontos relevantes das obras de Erving Goffman e Michel Foucault
na realização deste trabalho, e não me preocupando em relatar contribuições bibliográficas
2
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 11.
3
Idem, p. 59-61.
6
ministradas em aula, comuns a todos, descreverei a seguir as peculiaridades de minha prática
de pesquisa.
2. Aprender fazendo
Passo, então, a narrar as observações por mim efetuadas junto aos alunos 4 e
funcionários da Pia União do Pão dos Pobres, sendo que iniciarei pelo reconhecimento deste
campo de pesquisa, trazendo um breve histórico acompanhado da descrição local.
Quando, pela primeira vez, cheguei à portaria do Pão dos Pobres senti-me em um
ambiente que inspirava “caridade”. O local destina-se também ao recebimento de donativos, e
estava repleto de alimentos doados, mensagens convocativas e solicitações de doações, bem
como de artefatos postos a venda e imagens de Santo Antônio, padroeiro da escola e fonte de
grande parte dos recursos obtidos junto a comunidade (devota).
A íntima relação com a comunidade porto-alegrense, evidenciada nas contribuições
materiais e nos serviços que a Instituição presta à população carente, remonta a um passado
de mais de cem anos.
Em síntese, três fatores levaram ao surgimento de escolas de ofício católicas a partir de
fins do século XIX na capital gaúcha5. Em primeiro lugar, a publicação da encíclica “Rerum
Novarum”, de 1891, destinada a reorientar a atuação da Igreja, no sentido de voltar-se às
classes populares e ampliar suas bases. A doutrina positivista (segundo), predominante na
política do Rio Grande do Sul durante a República Velha, que previa a incorporação do
proletariado à sociedade moderna, e, principalmente, o desenvolvimento industrial, que aliado
a imigração, (de fins do século XIX), ocasionou o crescimento desordenado da capital gaúcha
e o aumento da população carente.
Então, Porto Alegre exigia um novo habitante, formado para as novas oportunidades
de trabalho, bem como requeria agentes que incorporassem as populações desprivilegiadas à
nova sociedade. É sob estas determinações que as escolas de ofício católicas vêm a contribuir
para a comunidade porto-alegrense, mantendo uma proposital relação de extrema proximidade
com a mesma; fundamental para suas subsistências.
4
Farei referência aos internos, em certos momentos, usando o termo “alunos”, pois estão sujeitos também a
formação regular.
5
Todos os dados usados para contextualização e histórico das escolas porvêm da tese de doutorado da Prof.
Julieta B. R. Desaulniers (TITULO, de 1993), bem como de relatórios de bolsistas orientados por ela, nos
últimos anos.
7
Fundado em 1895 pelo Cônego Marcellino Bittencourt, como abrigo para viúvas
pobres e seus filhos. Logo em seguida, em 1898, o Cônego lança o “Boletim do Pão de Santo
Antônio” (publicado até 1967), buscando, mais que simples doações, a adesão à causa do
trabalho comunitário. Nesse sentido trazia, então, relatos dos donativos recebidos, ou ainda,
da realização de eventos e da participação de benfeitores nas obras de ampliação das
instalações, bem como explicitava suas necessidades em artigos convidativos. Os benfeitores,
em geral, são membros da elite social porto-alegrense,. Inclusive, no caso específico do Pão
dos Pobres, os colaboradores tinham poder de intervenção na administração.
Em 1916 a instituição torna-se um orfanotrófio para meninos (já com um prédio na
Cidade Baixa), respondendo ao aumento de demanda. Sendo ampliado em 1930 com o Liceu
de Artes e Ofício. É justamente de 1925 a 1970 o período de maior correspondência entre
comunidade e escola.
A contribuição durante as obras de ampliação do orfanotrófio são evidentes,
visualizada na comissão de auxílio, ou então, na comissão posterior destinada essencialmente
aos momentos de crise., mantendo a interação, que, por sua vez, estava alicerçada, além da
retórida dos impressos, na na prestação do ensino, não só profissonalizante, mas constituinte
do “Homem Integral” (social, moral e religiosamente), no intuito de fazê-lo um cidadão (da
época); através da valorização da imagem de Santo Antônio; e da propagação dos resultados
da obra, mostrando os orfãos para comunidade.
A década de 70 marca o fim forte relacionamento com a comunidade e o declínio do
poder de persuasão do discurso da Igreja. A partir deste período a Fundação passa a trabalhar
em regime de semi-internato e a sua escola é aberta à sociedade em forma de instituição
particular, priorizando a obtenção de recursos para manutenção da obra.
As dependências do Pão dos Pobres são praticamente as mesmas desde 1930 (ver
anexos). O período principal possui três pisos onde ocorrem a maior parte das atividades do
internato. No térreo encontram-se uma sala com a televisão e vídeo para horários de recreação
e o refeitório. Como nas demais partes da edificação a mobília e as instalações denunciam o
desgaste do tempo. O refeitório é composto por duas salas interligadas por uma porta, e nas
proximidades desta permanece a mesma dos funcionários, pois deste ponto podem visualizar
as duas alas e a todos os internos. As mesas onde comem os internos são idênticas à citada
anteriormente, móveis velhos e castigados pelo tempo, alinhadas transversalmente no espaço
das salas.
O primeiro piso possui alguns ambientes usados para aulas de reforço ou orientação
psico-pedagógica. Ademais, aqui localiza-se também um salão para realização de peças e
apresentações dos alunos. A particularidade deste recinto é a presença de fotografias dos
8
fundadores distribuídas ao redor da sala. Também nos corredores encontram-se placas
comemorativas de agradecimento aos colaboradores da obra.
O segundo piso restringe-se à sala de computação, sala para aulas de canto e à sala de
estudos. Esta, um recinto de grandes dimensões, comporta carteiras antigas, um número
suficiente para agrupar os internatos antes da hora do almoço. O ambiente possui um quadro
negro a frente das classes dos alunos, indicando permanentemente a necessidade de silêncio.
Próximo às janelas está um armário com medicamentos, e do outro lado da sala existem ainda
os lavabos, oriundos de tempos pretéritos, quando o recinto era usado como dormitório (ver
anexo 3).
Por fim, o terceiro piso comporta essencialmente os dormitórios e banheiros. Estes são
peças simples, provavelmente sob as mesmas condições da edificação do prédio, pelo que se
observa nas paredes descascadas e nas janelas envelhecidas. Os dormitórios tem distribuídas
em seu espaço camas de estrutura metálica acompanhadas de bidês onde os internos guardam
seus pertences. De um lado estão as janelas e de outro os lavabos e espelhos para higiene dos
internos. Um pequeno corredor liga as entradas das aulas do dormitório, do banheiro (não há
portas) e saída para escada, esta sim com porta e trancas. Este ambiente, sem dúvida alguma,
é que mais lembra o passado, toda estrutura e mobília é a mesma desde 1930 (ver anexo 3)
Sob as dependências do Pão dos Pobres consta ainda o prédio das oficinas: Tipografia,
Mecânica Automotiva, Eletricidade/Eletrônica e Marcenaria, que ficam junto a portaria, a
livraria e a escola regular, todas próximas à entrada e em certo grau distintas da área de
circulação dos internados.
Os pontos de circulação mais freqüentes entre os internos inclui também os prédios
que completam um círculo de concreto, não fechado em definitivo, mas que delimitam a
maior parte das atividades do internato. São eles a cozinha a escritórios (em prédio novo), à
direita do prédio principal; a área de recreação, à esquerda do mesmo; e, para finalizar, a
dispensa com material de limpeza e os banheiros no lado oposto a antiga edificação. No
centro existem duas canchas de futebol de salão feitas em asfalto e rodeadas por uma cerca
metálica em precário estado de conservação (ver anexo 1 e 4).
Além disso, existem ainda algumas salas vazias e outras usadas como depósitos de
doações (roupas, cobertores, calçados), quando estas não ficam empilhadas nos escritórios dos
Irmãos responsáveis até a distribuição ou a troca por um lugar melhor para serem guardadas.
De maneira genérica, o local demonstra simplicidade e precariedade de condições, em função
mesmo da forma como a obra conduz sua subsistência. Hoje as fontes de recursos são a escola
de 1º grau (que para externos é particular), a lancheria localizada nas proximidades da
portaria, trabalhos realizados pelas oficinas ao mercado e, como gostam de salientar os
9
Irmãos, os benfeitores, sobretudo os devotos de Santo Antônio, imagem cultuada pela
Instituição toda terça-feira e que traz consideráveis rendimentos. A obra, enfim, foi idealizada
pelos lassalistas e construída pela comunidade.
O mundo do internato conta com Irmãos e funcionários leigos, entre professores,
orientadores e, digamos instrutores6. As funções que exigem contatos mais freqüentes com os
alunos são destinadas, em geral, a leigos. Atualmente, os Irmãos encarregam-se de questões
administrativas; mesmo na escola regular onde o atendimento realiza-se também fora do
âmbito do internato há presença de um Irmão, para que a formação siga os moldes lassalistas;
a formação do “homem integral”, referida anteriormente. Somente a profissionalização fica a
cargo de leigos de início ao fim, pois a especialidade católica é a constituição humana.
Através das visitas que realizei posso delimitar o campo de observação às relações
entre os dois instrutores que orientam os meninos pela manhã e à noite (“Ir. Dorremi” e “Ir.
Valério”7), a senhora que os assessora no horário de almoço e janta (a “Tia” como dizem os
meninos), o Ir. João, cuja atribuição é cuidar da cozinha e alimentação e, finalmente, o Ir.
Dércio, o diretor do internato. Os demais membros da equipe dirigente possuem contato
restrito com os alunos ou estão presos à formação curricular, que este trabalho não dará conta,
tendo em vista que delimitou seu objeto de estudo às relações disciplinares da rotina do
internato.
Do outro lado deste universo, seguindo a “divisão básica entre um grande grupo
controlado, que podemos denominar o grupo dos internados, e uma pequena equipe de
supervisão”8, encontramos a massa de 220 meninos visivelmente carentes. Enquanto a equipe
dirigente mantém a imagem de austeridade e respeito no convício do internato, os alunos,
como quaisquer criança, demonstram a todo tempo a necessidade de atenção para si, e não é
por acaso.
[...] Não são pobres, são miseráveis mesmo. A procura é grande mas não podemos
atender todo mundo. Primeiro a gente escolhe os órfãos, de direito e fato. É porque
tem crianças que os pais não querem saber deles. Depois a gente pega os pobres [...] 9
Na maioria são negras, oriundas da periferia de Porto Alegre, usam roupas surradas
pelo tempo, e tem consciência dos motivos pelos quais estão ali. Todavia não escondem sua
vontade de comentar seus problemas, muitas vezes falando em tom de desabafo. A dificuldade
em obter relatos completos de fatos ocorridos através dos Irmãos invertia-se junto aos
6
Chamo de instrutores o profissional responsável pelo acompanhamento e fiscalização dos internos nas mais
diversas atividades (exceto aulas). O que poderíamos chamar de vigilante.
7
Os internos costumam chamar todos os funcionários de Irmãos indiscriminadamente. Adoto a linguagem.
8
GOFFMAN, op. cit., p. 18.
9
Palavras do diretor Administrativo, Ir. Valério (não confundir com o instrutor).
10
meninos, devido a carga sentimental contida em suas falas, preocupando-me quanto a sua
veracidade.
Falemos agora, depois de colocar algumas informações sobre a unidade de pesquisa,
da rotina diária no internato e sua organização.
O contato com os alunos no princípio foi desastroso. Imaginei que poderia usar o
gravador durante as conversas, mas fui literalmente boicotado pela minha ingenuidade. Os
internos ficaram mais interessados no aparelho do que em estabelecer um diálogo. Todos
falavam ao mesmo tempo e qual desejava realçar-se mais na entrevista do “cara da
faculdade”. Naquele momento percebi, não só que o gravador seria inútil, mas que teria de
explicar inúmeras vezes o que é Antropologia. Por outro lado, a postura dos internos,
excessivamente participantes e questionadores, era o primeiro sinal da necessidade de
compartilharem suas dificuldades, de sentirem-se importantes.
Também foi a primeira conversa com os garotos o instante no qual ficou claro o
quanto limitada minha pesquisa, em função do restrito número de observações que poderia
fazer e do quão complexo é meu objeto de estudo. Mesmo sendo um semi-internato (os alunos
vão para casa aos fins-de-semana) cria-se no Pão dos Pobres um ambiente a parte,
relativamente isolado do sociedade, que, por isso mesmo, está repleto de atividades em seu
interior, de modo a preencher e organizar os tempos e movimentos, configurando, também,
uma metodologia de formação inserida no propósito da fundação de “iluminar as mentes,
acalentar os corações e preparar as mãos”, conforme mencionou Ir. Valério (Diretor
Administrativo). Ou, em outras palavras “impor-lhes (aos internos) novos hábitos intelectuais
e morais”10, para que tenham “uma chance na vida”.
O dia no Internato começa às 6:30 h. Os garotos levantam e logo arrumam suas camas.
Isto da melhor forma possível, porque “se ficar uma pontinha dobrada errada eles
desmancho tudo e a gente tem que fazer tudo de novo” diz um interno. Em seguida fazem sua
higiene junto ao lavabo para que as 7:00 h estejam enfileirados na porta do refeitório para o
café; sempre acompanhados de um instrutor.
[...] A gente até brinca com eles: Se demora demais vai acabar quebrando o espelho.
Quando tão mais crescido eles gostam de ficar se olhando. A idade desperta a
vaidade [...]11
10
FOUCAULT, op. cit., p. 126.
11
Depoimento do Ir. Dércio (Diretor do Internato).
11
Das 7:00 às 7:30 h tomam o café (no refeitório preparado por um grupo de internos
que desce antes), para em seguida das 7: 30 às 8: 00 h executarem a limpeza de todas as
dependências: banheiros, corredores, salas, pátio, cozinha. As tarefas são distribuídas entre os
internos em forma de rodízio semestral.
O horário seguinte é o melhor do dia para os alunos. Possuem uma hora para
recreação: futebol, ping-pong, assistir TV, ou simplesmente conversar. O descanso acaba com
a chegada dos instrutores à área de recreação às 9: 20 aproximadamente. Eles postam-se
próximos a entrada para o prédio do internato e automaticamente os internados organizam-se
em filas a sua frente (divididas por série escolar). Duas peculiaridades: os meninos devem
ficar de braços cruzados enquanto estão na fila, para que não toquem uns aos outros e a partir
daí comecem a desorganização. Além disso, cada fila tem um responsável pela ordem e bom
comportamento, requisito para que as filas se desloquem para o dormitório.
O mais interessante é o fato do “chefe-de-fila” ser um interno como qualquer outro,
escolhido anualmente. Este ganha autoridade e não perde tempo em exercê-la. “Ele pode
mandar a gente pro canto”12, diz um internado; e outro corrobora “o Vidal dá chute na gente”.
Em outra ocasião, o Marinho, um dos chefes-de-fila, prontamente mandou um outro garoto
“calar a boca” e olhou-me estendendo um sorriso, indicador do orgulho do dever cumprido.
Evidencia-se assim a aquisição temporária de um “status” típico do grupo de fiscalização (em
outros momentos não se diferencia dos demais), pois “os participantes da equipe dirigente
13
tendem a sentir-se superiores e corretores” , diante da sua atribuição de disciplinares e
moralizadores, neste caso, de jovens a serem encaminhados ao convívio social.
O chefe-de-fila simboliza um artifício de valorização dos alunos exemplares ou de
chamada à responsabilidade pela escolha, certas vezes, de alunos indisciplinados. Há também
os “chefes-de-mesa”, responsabilizados de recolher a louça e talheres após as refeições e
levarem para cozinha. Mas o maior incentivo são os quinze dias de férias na praia de Cidreira,
destinados somente aos alunos com melhores notas e comportamentos (num total de 70 alunos
aproximadamente).
[...] A gente aqui tem cuidar, senão eles deixam os prato pelos canto do pátio [...]
12
Mandar para o canto significa isolar um garoto, considerando desobediente, num dos cantos do pátio,
proibindo-o de conversar com os demais.
13
GOFFMAN, Erving. Manicômios, Prisões e Conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 19.
12
totais”14. Normalmente as penalizações são efetivadas pelo corte do que para os internados é
positivo, como o jogo de futebol, a TV; também podem castigar com trabalhos extras como a
limpeza; ou pagando diretamente pela irresponsabilidade, ficando isolado “no canto”, tendo
de correr ao redor das quadras de futsal.
Em uma de minhas visitas o fato mais discutido era um incidente ocorrido próxima à
lancheria, entre um casal e um pequeno grupo de internos.
[...] Parece que uma moça aí tava fazendo ginástica e os guris viram e começaram a
mexer com ela. Sabe como é que esses guri nessa idade. Aí o companheiro dela não
gostou e quis engrossar e eu interpelei pelos meninos. Mas também o que que essa
mulher tem que tá fazendo ginástica ali. Não é lugar para ginástica, todo mundo sabe
que aqui só tem menino [...] 15
14
Idem, p. 51.
15
Depoimento do “Irmão” Dorremi.
16
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 106.
13
por exemplo), visam construir um profissional que prime pela pontualidade e pela
responsabilidade.
Embora os Irmãos salientem a Agenda como principal fator corretivo, eventualmente
ocorrem fatos que parecem fugir do controle.
[...] Um Irmão, era interno aqui antes, jogou um molho de chave na cabeça dum guri
aí, saiu sangue da cabeça dele [...]
[...] Uma vez tinha uns guri brigando, assim rolando no chão. O Irmão chegou e não
deixou eles levanta. Mandou eles continua agarrado, bem ali no chão. [...]
[...] Um dia só porque eu tava ali conversando com uma moça dessas que vende
bilhete17, o Ir. João me deu uma batida bem aqui (altura das costelas) e mandou para
dentro. Disse que tava me passando [...]
[...] Ah, um dia aprontei demais e o Ir. Dércio me mando pra casa. Eu não foi.
Escondi minhas coisas num canto ali atrás e fiquei aqui na volta. Uns três dias eu
acho [...]
[...] Ele tava insuportável e eu fui obrigado a manda ele para casa. Ele fico uns três
dias rodando aí em volta da escola. Eu sabia mais deixei para ele sentir o peso da
responsabilidade. Fico três dias sem tomar banho, comer, e roubaram a roupa dele,
que ele tinha escondido [...]
Voltando ao roteiro diário, uma vez que todos os internos devidamente posicionados
na fila esta sobe ao dormitório para que todos tomem banho até às 10: 00h. Durante o banho
um determinado grupo é encarregado de distribuir shampoo e outro as toalhas. Após o banho,
o horário das 10: 00 às 12: 00 é destinado a catequese (obrigatória) para os alunos de 3º série
(os novatos), aulas de computação para 4º série, aulas de reforço para alguns, aulas de canto
para outros (conforme necessidades e capacidades). A ocupação deste horário pode variar
conforme o dia: quarta-feira, por exemplo, os internos são levados para o Parque Marinha do
Brasil para recreação, em outros dias são encaminhados para sala de estudo para fazerem as
tarefas escolares. O importante é que ninguém fique parado, pois isto facilita a adequação às
“regras da casa”, para este caso efetivada na maioria das vezes, dentro da tipologia de
Goffman, por “uma existência estável, relativamente satisfatória (...) construída com o
máximo de satisfação possíveis na instituição”18, ou seja, pela “colonização”. No entanto,
tenha-se claro que a fundação analisada não se enquadra perfeitamente nos moldes definidos
17
A referida moça estava fora da área de circulação dos internados.
18
GOFFMAN, op. cit., p. 60.
14
pelo supracitado autor para instituições totais, seja pela forma de adequação do internado (que
é uma criança e por isso pronta a aprender), seja pelo caráter de “mortificação” que o Pão dos
Pobres realiza hoje de formas bem menos intensa do que em seu passado, já que os internados
mantêm contato semanalmente com a comunidade externa e não são despojados de seus bens;
há sim o estabelecimento de uma autoridade e normas a serem seguidas sem questionamento,
considerado, porém, pela valorização da auto-estima.
[...] Eles vem pra cá já inferiorizados por sua condição de vida. Essa gente precisa de
auto-estima. [...]19
Antes do horário de almoço todos os internos são reunidos na sala de estudo 20. Neste
recinto são colocados novamente em fila e descem para o refeitório somente quando
estiverem em ordem. Para que isto ocorra um funcionário (como sempre) chama atenção
permanentemente dos alunos.
[...]Já me arrependi do que disse ontem, já levaram 8 minutos, o dobro do tempo [...]
19
Depoimento do Ir. Valério (Diretor Administrativo)
20
Os alunos de 7º e 8º série freqüentam o curso profissionalizante pela manhã e não participam da rotina diária
na parte da manhã.
21
FOUCAULT, op. cit., p. 106.
15
[...] Aquele lá não tá enxaguando direito. Tem que tirar bem o sabão. Aí a gente tem
que controlar né [...]
Embora na minha frente não tenha feito nada, um interno comentou comigo sobre uma
medida tomada pelo Ir. João.
[...] Tinha que tirar água dos pratos eu não tava tirando, aí o Ir. João derramou a água
na minha cabeça [...]
No final do dia, ao final da aula, tomam novo banho e às 19:00 h voltam ao refeitório
para jantar. Às 22:00 h tem horário reservado para estudo 22. O silêncio é obrigatório e os
instrutores se asseguram de que todos fiquem virados para frente em suas carteiras.
Logicamente, por ser um grupo grande, sempre há alguém fora do lugar ou conversando com
outro aluno e, por isso, a todo momento os “Irmãos” estão chamando a atenção dos internos.
Tive a chance de assistir um caso em que um aluno estava de joelhos em sua cadeira virado
para trás e o Irmão Dércio logo resolveu o problema: deu-lhe um bilisquão, e o menino não
fez outra coisa senão sacudir a cabeça.
Às 21: 00 h vão para o dormitório, acompanhados dos instrutores, os quais ficam
acordados (com lanternas) até entre 23: 30 e 24: 00 h..
[...] Temos que cuida, são 200 guri né. Se a gente não abre o olho com eles pula um
para cama do outro, e aí, já viu né! [...]
22
Às quartas-feiras são realizadas missas na Igreja do Pão dos Pobres e, logicamente, os internos comparecem.
23
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 106.
16
mais novos basta uma pergunta para ocasionar várias colocações e reclamações. Os alunos de
maior idade, em síntese, demonstram maior adequação ao regime do internato.
17
CONCLUSÃO
É incrível o prestígio que o Pão dos Pobres ainda mantém em sua comunidade.
Oriundo da ação comunal e destinado para o atendimento de populações carentes, até hoje
carrega consigo a imagem de alternativa de êxito profissional e pessoal; o que considero
impressionante, em nome dos meios que utiliza e da doutrina comportamental que visa
imprimir em seus internos: postura de moralização advinda do período da constituição da
obra, quando a polarição entre o cidadão-trabalhador e o vagabundo (caso de polícia)
permeava as mentes dos indívíduos. Esta instituição guarda, mesmo sendo hoje um semi-
internato, características tanto da “instituição total” de Goffman, como da disciplina de asilos
de séculos passados, analisados por Foucault, trabalhando verdadeiramente para constituição
do que julga ser um profissional e um cidadão: o sujeito que prima pela pontualidade, pela
responsabilidade, pela obediência, pela fraternidade e solidariedade presentes nos preceitos
cristãos. Mas, sobretudo, representa um meio de adentrar à sociedade para as massas
desprivilegiadas, as quais se submetem-se ao rigor como saída mais oportuna de sucesso
social.
O verdadeiro valor deste trabalho está na experiência de realizar (ou pelo menos
tentar) um trabalho de campo: sentir o quanto é difícil fazer ciência. É perceber através da
tentativa de observar um fato micro, o quanto é complexo e detalhado o objeto de estudo
antropológico, o quanto a realidade guarda segredos e peculiaridades, descobertas somente
com observações intensas. É ter a impressão de que sempre ficou algo para traz, pois não
podemos dar conta de tudo.
Sou obrigado a relativizar toda as minhas análises pela simples falta de observações
suficientes, as quais pudessem garantir-me uma certa margem de segurança. Porém, relativizo
também as pesquisas sociológicas demasiadamente presas a dados formais. Ficou claro em
minha investigação o quanto uma entrevista formal pode deturpar as informações, uma vez
que tive a oportunidade conversar com uma mesma pessoa em situações distintas e
nitidamente a presença do gravador a intimou.
18
Outra descoberta gratificante foram as obras de Goffman e de Foucault. Elaborações
interessantíssimas acerca do poder e da formação (ou deformação) intelectual de indivíduos,
cujo primeiro contato real me foi possibilitado nesta pesquisa.
19
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeira: Graal, 1992, p. 99-143; 179-
191.
VELHO, Gilberto. Individualismo e Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987, p. 105-109.
20
ANEXOS
21
22
Prédio Principal (Internato) – Pão dos Pobres
Vista frontal – 31/ 10/ 97
23
Sala de Estudos
Pão dos Pobres – 31/ 10/ 97
24
Cancha de Futsal – “Pão dos Pobres”
31/ 10/ 97
(Ao fundo o prédio do internato e área de recreação, à esquerda.)
25