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2018
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora
Maria Georgina Muniz Washington
Sub-reitora de Graduação
Tania Maria de Castro Carvalho Netto
Sub-reitor de Pós-graduação e Pesquisa
Egberto Gaspar de Moura
Sub-reitora de Extensão e Cultura
Elaine Ferreira Torres
Centro de Educação e Humanidades
Lincoln Tavares Silva
Instituto de Psicologia
Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota
Hospital Universitário Pedro Ernesto
Edmar José Alves dos Santos
Coordenadoria de Desenvolvimento Acadêmico do HUPE
João José Abraão Caramez
Coordenação da Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde
COREMU-UERJ
Ingrid de Mello Vorsatz
Coordenação do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar
Michelle Menezes Wendling
CATALOGAÇÃO NA FONTE
e-ISBN 978-85-906657-0-0
CDU 159.9:614.254
COMISSÃO EDITORIAL
Sonia Alberti
Ingrid de Mello Vorsatz
COMISSÃO CIENTÍFICA
Prefácio .............................................................................................................................................. 1
Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz
Derivações de uma trajetória: a práxis na clínica ampliada em Saúde Mental .................................. 9
Ademir Pacelli Ferreira
A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado na assistência psicológica aos pacientes
cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde ............................................................................ 27
Cristiane Ferreira Esch, Narcisa Silveira de Paula Fonseca, Mariana Silveira Córdova, Liana Ling
Gonçalves Setianto, Clareana Velasco Silva de Paula, Alessandro de Magalhães Gemino
Sonia Alberti (Relatora). Selma Correia da Silva, Adriana Dias de Assumpção Bastos, Aline
Martins, Aline Souza, Bruna Americano, Camila Cardozo Melo Sales, Claudia Politano, Daniela
Barros da Silveira, Heloene Ferreira da Silva e Luiza de Sá Quirino Câmara
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi criação pioneira no Brasil de uma residência
A partir de um projeto que se desenvolveu por mais de uma década, alguns professores se
permitindo atribuir a cada residente formado o título de Especialista em Psicologia Hospitalar. Reis
et alii (2016) observam que é apenas no Brasil que se desenvolve tal especialidade, pois em outros
sustentam que a área está “em franca evolução” (Reis et alii, 2016, p. 22) e apostam que o
geral no campo da saúde, certamente permitirá no Brasil uma consolidação definitiva das práticas
A coletânea que ora trazemos a público é um produto das diferentes clínicas especializadas
em que atuamos e se associa à nossa publicação, Práxis e formação, publicada desde 1996, com os
trabalhos apresentados no Fórum anual pelos residentes e seus supervisores1. É a associação com as
publicações do nosso Fórum que nos levou a decidir trazer esta coletânea a público no exato
aberto ao público em geral, neste ano de 2018, no qual os psicólogos nela atuantes apresentam seus
trabalhos em que articulam um caso clínico com sua elaboração teórica conforme a orientação do
serviço em que o caso foi atendido que, no Curso, é de referência plural, como sói ocorrer no campo
da Psicologia.
1
Na ausência de outro critério para a ordenação dos capítulos, optamos por adotar a ordem
diferentes serviços e/ou setores do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ), a saber,
Não data de hoje a ideia de um livro sobre a experiência que esse grupo de professores e de
supervisores – com a colaboração inicial de Lucília Pires, secretária hoje aposentada –, o Instituto
projeto de publicação de um livro com suas respectivas monografias2, objetivando contribuir com
“trabalhos teóricos sobre a atuação do psicólogo clínico no contexto do hospital geral que levem em
consideração a complexidade desta atividade e que incluam a dimensão do sujeito”3. Isso porque,
diziam as autoras do projeto, os psicólogos residentes da UERJ passam por uma formação que
“durante seus dois anos de duração, concilia a atuação [em serviço] com a constante construção de
um saber sobre sua prática. A partir dos grupos de estudo, das supervisões, das aulas e das trocas
diárias entre os residentes há sempre um questionamento e indagação sobre a prática e sobre qual é
o papel do psicólogo clínico [...] na instituição hospitalar” 4. Se na ocasião o projeto não foi adiante,
até porque hoje essas monografias estão disponíveis para leitura do público em geral, a ideia
amadureceu e, num ato que não deixa de equivaler a uma garrafa de Klein – figura topológica –, a
proposta atual reinsere aquele projeto no próprio projeto original da Residência, inserindo-se a si
mesmo nisso, enquanto um work in progress, constante mas, ao mesmo tempo, trazendo sempre
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algo novo a partir de cada experiência que a prática clínica do psicólogo no hospital promove.
Como observava uma das ex-residentes – Claudia Politano – a quem solicitamos, neste ano de
“Escrever ou relembrar fatos marcantes da época em que fui residente em Psicologia Clínica
Institucional no Hospital Universitário Pedro Ernesto é como fazer uma viagem no túnel do tempo.
Foram bem vividos aqueles anos de 2000 e 2001, logo após a minha graduação em Psicologia.
Concluir a universidade e me tornar uma profissional pronta para atuar no mercado de trabalho era
algo, naquele momento, ao mesmo tempo excitante e assustador. A ideia de disputar uma concorrida
vaga na residência do Hospital Universitário Pedro Ernesto surgiu, portanto, como uma sedutora
opção. Trabalhar em um hospital considerado de excelência, com uma boa remuneração e, além
disso, ter supervisão, tornou-se minha meta para o que fazer após o término da faculdade.
Relembrando aquele período, me parece algo como um rito de passagem: a saída da vida de
supervisionando(a) ao mesmo tempo, por dois anos, marcava uma transição, transição esta que foi
determinante para o meu amadurecimento e uma grande oportunidade de ganhar mais confiança
[...]
O hospital é a casa dos médicos, dizia minha supervisora, somos convidados na casa deles e
é como tal que devemos nos comportar. Moura (1996) expressa a mesma orientação quando observa
inespecífica, na medida em que o que levou o paciente ao hospital foi uma demanda dirigida à
medicina. Não é necessário que a priori haja demanda para a escuta e intervenção, precisamos
apresentar o que fazemos para criar, portanto, essa demanda, tanto por parte de nossos anfitriões
quanto por parte dos pacientes que buscam atendimento no hospital. Muitas vezes, o sujeito se
encontra passivo, em seu leito, aguardando apenas os cuidados e a intervenção médica. Oferecendo
3
a nossa escuta, entretanto, podemos criar a demanda e favorecer o trabalho no ambiente
hospitalar”5.
promover um acompanhamento regular dos pacientes, e não apenas nas enfermarias como,
inclusive, nos ambulatórios de cada uma dessas clínicas, a situação na qual melhor se verifica a
importância da presença do psicólogo para criar a demanda – tanto por parte do paciente, quanto de
sua família, assim como da equipe hospitalar –, é aquela em que os residentes em Psicologia
trabalham junto ao serviço de Plantão Geral do HUPE, em que acompanham casos que são
internados em caráter emergencial em razão da gravidade dos quadros clínicos que apresentam.
Nem sempre, nesses casos, o trabalho realizado seria necessariamente da alçada de um psicólogo –
como, por exemplo, é uma atitude de oferecer algum conforto para o paciente, insistir com a
enfermagem que se alimente o paciente que não come desde que saiu de casa de manhã cedo e
agora já é de noite, ajeitar o paciente no leito para que encontre uma posição mais confortável,
ajudá-lo a tomar um gole d’água entre outros –, mas se justifica na medida em que é somente assim
que o psicólogo constrói as condições mínimas para que o paciente possa falar com ele, o que é a
visada do nosso trabalho, em última instância. Como se sabe, a clínica é sempre imprevisível e é
com essa imprevisibilidade que é preciso aprender a atuar, e quanto melhor o psicólogo puder se
situar diante dela, mais facilmente promoverá a criação de uma demanda por seu atendimento. Nem
sempre ele deve responder a demandas daquele tipo, mas deve poder avaliar a importância de fazê-
lo em situações nas quais o paciente não puder nem mesmo dirigir-lhe a palavra caso alguma coisa
não seja feita na imediatez do momento. O trabalho do psicólogo no hospital introduz questões da
clínica que nos exigem revisitar a própria origem grega desse termo – kliné –, equivalente em
português à palavra “leito”, situação com a qual o psicólogo normalmente só tem oportunidade de
se encontrar quando trabalha, justamente, no hospital. Freud (1890/1996) já destacava que, além de
considerarmos que os distúrbios orgânicos influenciam a vida psíquica, temos de pensar também no
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testemunha amplamente dos efeitos positivos de uma equipe multidisciplinar na qual estejam
incluídos psicólogos, quando se trata do plantão de um hospital geral. Desde 2006, com a
reformulação do trabalho dos residentes junto ao Plantão Geral do HUPE 6, sua supervisão é
estabelecido e na contramão da simples compreensão que implica uma com-paixão (cf. Lacan,
1985). Ao psicólogo cabe ajudar o médico e a “tantos outros agentes de saúde” [...] “a suportar o
fato de que o bem do próximo muitas vezes mais o anula que o sustenta, uma vez que o próximo,
como Freud alertou em 1930, é somente uma projeção narcísica de si mesmo” (Alberti & Almeida,
(2005, p. 68). Nem sempre coincidem “o que a equipe multidisciplinar pode identificar como um
bem para seu paciente” e o que este identifica como tal (Alberti & Almeida, (2005, p. 68).
“A prática no espaço hospitalar introduz variáveis que suscitam uma série de reflexões sobre
a nossa atuação clínica: diante da ausência de uma demanda explícita de atendimento, das variações
trabalho possível, a sustentação do nosso desejo se faz ainda mais necessária. Na Residência,
identifico marcas dessa experiência presentes ao longo de todo meu percurso profissional” 7.
Além disso, o fato de a residência se dar num hospital público também articula
moebianamente o que Figueiredo (1997) já punha em relevo quando publicava Vastas confusões e
atendimento dito “gratuito” quando, na realidade, o pagamos com os pagamentos dos impostos; 2) o
direito de qualquer pessoa de ser atendida, e 3) “a ideia de tornar público, visível, e deixar
transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como privativo de alguém” ( p. 11),
5
O tornar público é, também, a oportunidade de produzir estudos de caso, trabalhos e
pesquisas e, com isso, redimensionar a teoria em relação à clínica, o que não cessa de trazer
desafios. Eis o ponto de interseção da Residência com pesquisas acadêmicas, sobre o que
UERJ, hoje Departamento de Psicanálise. Com efeito, muitas dissertações e, mais recentemente,
teses nele defendidas, são produto de um aprofundamento das questões das monografias da
medida em que esse Programa stricto sensu é em Psicanálise, essas dissertações e teses são
observa Vorsatz (2018), há “uma diferença fundamental entre experiência e démarche científica,
sendo que não basta submeter a primeira à segunda para autorizar sua cientificidade” (p. 218) e,
sim, curiosamente, para validar a experiência é preciso verificar nela o desejo, “agente e operador
de transformação” (p. 219). O desejo, a título de operador clínico por excelência – Jacques Lacan
assim especificou o desejo do analista, que não se confunde com os anseios ou ainda com a vontade
daquele que encarna essa função –, é o que permite sustentar a experiência clínica, a cada vez.
Ainda segundo Figueiredo (1997), no que se refere à psicanálise, o tornar público é fazer
circular, entre os profissionais que trabalham no ambulatório, o cotidiano da clínica, com seus
sucessos, suas adversidades e seus fracassos. Daí também o ensino dessa prática que os residentes
em que é possível subverter a ordem dominante que, no contexto desta Residência busca garantir a
cada sujeito que está no hospital, seja como paciente, técnico, médico ou mesmo professor, garantir
seu lugar de sujeito que Lacan já definia – entre outras definições – como o lugar daquele que fala.
É com sua presença, finalmente, que o psicólogo pode, cotidianamente, contribuir nas discussões
6
com as equipes, buscando transmitir aos profissionais uma outra maneira de lidar com os casos,
em saúde identificam como “projeto terapêutico” específico a cada paciente. O verdadeiro “projeto
terapêutico” norteia-se a partir do momento em que assegura a cada paciente “um lugar ao sol”,
expressão que aqui retomamos de Erico Veríssimo, fazendo valer o desejo do paciente,
independente do que, na equipe, se acredita ser melhor para ele. Mas isso não pode ser feito sem as
contribuições da mesma equipe, a ser sempre tão levada em conta quanto cada paciente.
Através do testemunho de um percurso realizado ao longo dos últimos vinte e cinco anos,
com a experiência dos fundadores e a inserção daqueles que, no decorrer desse percurso, se
Notas
1. A Revista é publicada desde o primeiro Fórum da Residência, mas sua digitalização apenas
http://www.psicologia.uerj.br/praxis.html
preciso tempo: reflexões sobre o luto e a urgência subjetiva no hospital geral; Donati, T. D.
4. Idem.
7
6. Cf. o trabalho de Danielle Monteiro Câmara apresentado no XIX Fórum da Residência,
Referências
Alberti, S. & Almeida, C. P. (2005). Relatos sobre o nascimento de uma prática: psicanálise em
hospital geral. In Altoé, S. & Lima, M. (Orgs.). Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro:
Rios Ambiciosos. (pp.55-71).
Freud, S. (1996). Tratamento psíquico (ou anímico). In Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX. (Obra originalmente
publicada em 1890).
Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Reis, J. de A. Rodrigues; Machado, M. de A. R.; Ferrari, S.; Santos, N. de O.; Bentes, A. Q., e
Lucia, M. C. S. de (2016). Prática e inserção do psicólogo em instituições hospitalares no Brasil:
revisão da literatura. In Psicologia Hospitalar, 2016, 14(1), 2-26.
Vorsatz, I. (2018). O conceito, o desejo e a ética: o desejo como móbil do conceito fundamental. In
Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 21(2). [pp.215-223]. Disponível em
https://dx.doi.org/10.1590/s1516-14982018002007 . Acesso em 3 ago 2018.
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Derivações de uma trajetória: a práxis na clínica ampliada em Saúde Mental
Resumo: Neste trabalho propomos repassar um pouco de nossa trajetória no campo da assistência e
ensino e ao mesmo tempo cotejar a importância de Nise da Silveira (Nise) e de sua obra neste percurso.
Será, portanto, pontuado elementos e acontecimentos que compõem o percurso de várias décadas de
Abstract: In this work we propose to pass on a little of our trajectory in the field of assistance and
education and at the same time comparing the importance of Nise da Silveira (Nise) and your work in this
way. Will be thus punctuated elements and events that make up the course of several decades of
experience as a teacher, clinical supervisor and coordinator of research and assistance programs in mental
health, where it is reported the experience through the Praxis expanded clinic, call in hospitalization,
Resumen: En este trabajo nos proponemos transmitir un poco de nuestra trayectoria en el campo de la
asistencia y educación y a la vez comparar la importancia de Nise da Silveira (Nise) y su trabajo nesta
trajetoria. Así puntuados elementos y eventos que componen el curso de varias décadas de experiencia
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Introdução
Neste trabalho propomos repassar um pouco de nossa trajetória no campo da assistência e ensino
ao mesmo tempo cotejar a importância de Nise da Silveira (Nise) e de sua obra neste percurso. Surgiu a
partir do convite do professor Walter Melo Jr. do Departamento de Psicologia da UFSJ, que em 2016
organizou evento com vários colegas cujas práticas denotam a reflexividade da práxis de Nise da Silveira.
O tempo vai tornando-se longo e temos uma certa premência de falar de nossa história. Não sei se
conseguirei pontuar de forma objetiva as derivações destes quarenta anos de vida no campo da saúde
mental onde mantive meus estudos, pesquisas e ensino. Esta práxis, que chamamos de clínica ampliada, é
uma concepção surgida no final da década de setenta. O adjetivo ampliada passou a ser utilizado
principalmente a partir da entrada de profissionais com referência psicanalítica para atuar em instituições
psiquiátricas e hospitalares, seja na internação, ambulatórios e, mais tarde, nos CAPS. Isto para
diferenciar do modelo padrão de atendimento psicanalítico, isto é, divã, várias sessões semanais e
transferência/interpretação. Ao mesmo tempo, esta perspectiva rompia também com a tradição da clínica
tratamento sintomatológico.
Na clínica ampliada há uma abertura para o relacionamento mais próximo com o cliente, contato
com seu meio, acompanhamento de suas soluções e arranjos e atenção sensível para com a relação
investindo em práticas que contribuam para a sua construção de recursos próprios e de laços sociais. Este
trabalho diário com pacientes graves, psicóticos, internados ou em regime externo, foi caracterizado como
acompanhamento terapêutico.
Minha trajetória partiu de um marco decisivo na minha vida pessoal e profissional, que foi meu
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Como é sabido, pode-se falar da internação para tratamento a partir da criação da instituição
hospitalar. A prática do isolamento e do asilamento geral dos chamados loucos até o séc. XIX, não tinha
esta característica, pois sua função era somente social. Mas desde a medicina antiga, dos médicos-
filósofos gregos, a loucura passou a ser matéria para a medicina iluminar (Pessotti,1999). A partir da
modernidade, a sociedade passou a atribuir ao médico este lugar e esta função junto ao hospício ou asilo.
Desta forma, os médicos reformistas na Inglaterra, França, Estados Unidos, sendo Pinel o mais
conhecido, tentaram instituir no hospício o método clínico, onde a observação criteriosa e diária, a
classificação dos sinais e sintomas e o estabelecimento das síndromes, pudessem criar um corpo de
conhecimento das doenças mentais, permitindo o controle e o tratamento destas. O hospício deveria ser o
lugar de identificar e tratar o doente, produzir o conhecimento sobre a loucura e proteger o doente e o
outro dos desvarios e das ações da alienação. Desta prática nasceram o alienista, o alienado e o alienismo,
Tratar medicamente o alienado, sempre foi o grande problema da psiquiatria. Não havia doenças
precisas e nem remédios específicos para elas. Com a concepção da loucura como sendo da ordem do
desvio da razão, devido aos efeitos da paixão, foi possível criar um método psicoterápico
comportamental, o chamado tratamento moral (Leuret, 1846), que lançava mão de recursos variados para
influenciar o doente ou suprimir seus sintomas, delírios, visando recolocá-lo nos trilhos (lírios) corretos e
Mas, principalmente na década de trinta do séc. XX, foi criado um aparatus de intervenção que
insulínico e do cardiazol, acreditava-se, até o início da década de cinquenta que, enfim, os psiquiatras
dispunham de uma verdadeira medicina, e o hospício transformara-se em hospital, onde o paciente era
avaliado, diagnosticado, tratado e recebia alta. Este era o modelo encontrado por Nise ao retornar ao
hospício em 1944, após seu exílio voluntário no interior do país em virtude das ameaças sofridas no
Estado Novo (Mello, 2014). Não era difícil observar que a crença na utopia biologista era questionada
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pelos seus pífios resultados. O confronto de Nise com os médicos e suas concepções e crenças deste
Em 1952, com o advento da criação dos psicotrópicos, uma nova onda de orgulho veio para
para a prática do psiquiatra, capaz de tratar seu paciente tanto na internação quanto no consultório. Esta
perspectiva medicamentosa também não entusiasmou Nise. A psicanálise – que apesar de ser lida por
muitos psiquiatras brasileiros desde o início do século XX, inclusive fundaram em 1929 a primeira
Associação Brasileira de Psicanálise - não iluminava as práticas psiquiátricas em relação as psicoses e nos
hospícios. Nise tinha dificuldades de entender isso, colegas que tinham a psicanálise como referência em
seus consultórios, mas que no hospício mantinham a posição biologista clássica. Na verdade, a tensão
bio-psíquico, sempre acompanhou a história da psiquiatria (Serpa Jr., 1998; Ferreira, 2012).
Este foi o hospício - prefiro este termo ao de hospital e este é também a marca registrada no
imaginário social - que conheci no início dos anos setenta, onde a medicalização era generalizada, em
altas dosagens e as prescrições muito pouco criteriosas, muitas vezes a cargo dos atendentes de
contrações motoras devido a impregnação cortical ou extrapiramidal). Dos instrumentos mais radicais da
década de trinta, a ECT continuou sendo utilizada em larga escala, inclusive como punição e forma de
controle comportamental pela ameaça. Mas tive muita sorte de entrar neste campo pelo viés do encontro
Como sabemos e como mostrou o filme de Berliner (2013), a práxis de Nise representa uma
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Aquilo que se impõe à psiquiatria é uma verdadeira mutação, tendo por princípio a abolição total
dos métodos agressivos, do regime carcerário, e a mudança de atitude face ao indivíduo, que
deixará de ser o paciente para adquirir a condição de pessoa, com direito a ser respeitada
(www.ms.gov.NisedaSilveira:vida e obra.2005).
Eu gostei bastante da forma enfática de Berliner iniciar seu filme com Nise tentando abrir a porta
do hospício. A abertura das portas, a oposição ao isolamento social e ao hospício cárcere, são indicadores
O ato inicial de Nise é paradigmático, ao retornar ao Hospício, agora Centro Psiquiátrico Pedro II,
ela recusa praticar os chamados métodos inovadores da época e a aplicação da ECT e prefere abrir
espaços terapêuticos ativos e criativos dentro da própria enfermaria. Inicia-se ali uma clínica respaldada
no respeito pela pessoa e sua singularidade, oferecendo atenção e recursos para que estes indivíduos
pudessem expressar e dar forma às suas imagens internas e aos seus processos subjetivos e estabelecer
laços de interação com o mundo. Do espaço fechado, através da criatividade e da acolhida empática, as
janelas e portas foram se abrindo e outros espaços foram sendo criados. De uma tacada ela se contrapôs
ao “clinicismo” - que não receitava atividades para pacientes em crise, já que estes deveriam ser tratados
no leito – e também ao isolamento e a segregação como prática comum das políticas institucionais
(Ferreira, 2015).
A partir dessa experiência, nasceu a ideia precursora da Casa das Palmeiras em 1956. Época,
portanto, pós-psicotrópicos. Ela observava os processos profundos e múltiplos vivenciados pelos sujeitos
nas condições psicóticas e como, com a sedação neuroléptica e consequente inibição psíquica, os
sintomas eram apagados e os indivíduos devolvidos a sociedade, sem elaboração e integração de seus
conteúdos. Desta forma, saíam da internação empobrecidos e embotados. Se os pacientes tinham altas
mais rápido da internação, voltavam também mais rápido, como ela constatou na observação diária e com
a pesquisa intensiva. Com a Casa das Palmeiras, ela demonstrou que era possível ao chamado
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Retomando o filme de Berliner, ao assisti-lo, lembrei-me que eu também havia, há alguns anos,
fixado uma imagem inicial para um filme imaginário sobre Nise, que seria a cena de seu velório e do
Como sabemos, seu fim foi bastante triste. Ninguém quer morrer no hospital e Nise tinha aversão
a hospitais, mas por ironia da vida ela acabou morrendo em um. Na premência da dor do braço fraturado
ela foi levada para cirurgia, apesar de sempre ter avisado de que não poderia tomar anestesia devido a sua
síndrome neurológica rara. Com a anestesia, ela não poderia respirar e foi o que aconteceu, pois
decidiram pela cirurgia e logo após tiveram que abrir sua traqueia (traqueostomia) para que respirasse e
não tinha mais como sair do CTI, outro lugar sinistro. O hospital era privado, custo absurdo para uma
servidora pública que não teve como manter seu plano de saúde na velhice. Foi então transferida para
hospital público. Apesar de bem assistida e o CTI ser bem equipado, ninguém gosta de estar aí. Ao
por gestos, para tirá-la de lá. Disse-lhe que seria impossível, não teria como fazer isso, não seria possível
desconectá-la das máquinas. Ela então fechou-se no mutismo, olhos cerrados, semblante de amargura.
Não me olhou mais nas visitas que se seguiram até a sua morte.
No cortejo fúnebre, com a bandeira da escola de samba cobrindo o seu caixão e os surdos
ecoando, ouvíamos os brados de “viva Nise e abaixo o manicômio”. No final, enquanto Tomás (do grupo
musical Homem de Bem) e eu depositávamos seu corpo na urna funerária, escutava-se a despedida com o
Naquele momento de velório e de despedida - na verdade o rito de passagem para esta experiência
da ausência, pois não teria mais os encontros tão reconfortantes em sua casa, onde conversávamos sobre
tantas coisas e sobre nossa paixão comum em relação às pessoas chamadas psicóticas e suas múltiplas
experiências e desdobramentos dos vários estados do ser, expressão de Artaud que Nise lembrava sempre
- uma lembrança se fazia viva em minha mente, meu primeiro encontro com ela.
O encontro
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Na época, 1972, apenas três anos no Rio de Janeiro, vindo do interior de Minas Gerais, me
preparava para o vestibular e já havia escolhido a psicologia. Um dia, no cursinho, observei que um
colega conversava com o professor num clima meio misterioso e, ao me aproximar, descobri que ele
falava de Nise, do Grupo de Estudos Junguiano, do MII (Museu da Imagem do Inconsciente). Fiquei
fascinado com o que escutei. Depois de certa sabatina, o colega me levou ao Grupo de Estudos e
apresentou-me a Nise, que me recebeu com sua cordialidade e simplicidade e me senti muito bem entre
aquelas pessoas diversificadas (intelectuais de diferentes áreas, estudantes de psicologia e outras áreas,
artistas, hippies, donas de casa). Pairava ali um certo clima underground. Logo estimulado por Nise,
passei a frequentar o STOR (Setor de Terapia Ocupacional) e o atelier junto ao Museu Imagens do
Inconsciente e depois a Casa das Palmeiras. Entrei assim nesta rica universidade antes de entrar na outra
(UERJ).
Neste sentido, revisitar meu percurso e a importância de Nise é, também, indicar o sentido para
aqueles que puderam beneficiar-se e levar para as suas práticas este aprendizado. Eu era na época um
jovem em intensa busca, só havia lido alguns livros de auto-ajuda e tinha ouvido falar de Freud, achando
Naqueles anos de miséria cultural brasileira, o maior fechamento da ditadura no início de 1970, era um
privilégio ter contato com este espaço rico de estudos, discussões e inscrições de cultura densa e
profunda. Pela sua generosidade pude desfrutar de sua rica biblioteca; belos livros de arte, história,
inglês, espanhol. Esta relação que aí se iniciou durou até a sua morte e de cujo ensino pude desfrutar e dar
continuidade através de uma prática que suponho refletir sua posição ética e metodológica.
Considero muito rica minhas experiências de formação; além do Serviço de Psicologia Aplicada do
IP/UERJ, dos estudos e supervisões psicanalíticas, os estágios nos ateliê do MII, escola viva, como dizia
Nise, na Casa das Palmeiras, com realização do curso de Terapia Ocupacional (TO) por ela organizado,
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experiência nas emergências psiquiátricas do Centro Psiquiátrico Pedro II e do Instituto Philippe Pinel. O
que foi uma novidade, uma experiência precursora, pois não havia essa possibilidade antes. Na
emergência do CPP II, já observava que por qualquer crise aqueles que lá chegavam eram internados. No
Pinel, em dupla com uma residente de psiquiatria, Marilda Barbosa, conseguíamos evitar a internação
combinando com o cliente o seu retorno no próximo plantão. Aí observamos que a emergência, que era a
entrada para a carreira de “psiquiatrizado” (Brody, 1959), tinha que ser mudada. Das derivações desta
experiência surgiu a temática da migração em meus estudos. Observava o aumento de surtos psicóticos
em migrantes recentes, época esta do boom da construção civil no Rio e em São Paulo. Entendemos o
surto aí como resultante deste tempo de deslocamento, onde o estranhamento e a estranheza deste novo
lugar abrem para a emergência de outro território estrangeiro (Freud,1919), o inconsciente. Resultou daí a
tese, A migração e suas vicissitudes (1996), o livro, O migrante na rede do outro (1999) e vários outros
artigos.
Minha última experiência no CPP II foi na enfermaria M2, masculina, onde o Dr. Paulo Pavão
coordenava um excelente trabalho de equipe seguindo a linha do Prof. Loyello de internação curta. Ele
contava com ótimos estagiários compondo uma equipe interdisciplinar que funcionava muito bem. Fiquei
responsável pelas atividades terapêuticas expressivas, levando as propostas de Nise. Era mantido também
um grupo de estudo e discussão dos casos. Em 1975, o professor Loyello foi convidado para a UDAP-
HUPE/UERJ, levou o Dr. Paulo Pavão, e fomos também todos para lá como estagiários e aí incentivei e
participei da oferta de várias atividades para os internos. A partir desta formação tive a sorte de ser
convidado para implantar um setor de terapêutica ocupacional no Sanatório Espírita de Anápolis, Goiás,
em 1977, onde permaneci durante três meses escolhendo monitores, estabelecendo três setores de
atividades expressivas, artes aplicadas, música, atividades corporais, esportivas e passeios externos.
monitores das atividades terapêuticas. Antes de ir sugeri que construíssem um prédio com três salas
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prédio pronto. O Sanatório ainda funcionava nos tradicionais galpões como enfermarias, com dezenas de
camas e sem nenhuma individualidade para os internos. Propus que os dividissem em quartos, o que
Com o funcionamento do setor de atividades, com a quebra dos espaços fechados, saídas para
atividades de grupo, artes plásticas, música, passeios externos, a mudança do ambiente e dos
relacionamentos foi enorme. As atividades eram desenvolvidas em grupos mistos, homens e mulheres,
pois a separação dos sexos era a prática institucional. Pudemos avaliar uma melhoria acentuada dos
significativo do número de altas da internação e nos deparamos com uma situação absurda, o INAMPS só
pagava a passagem para os internos até 80km de distância do sanatório. Muitos internos moravam em
municípios mais distantes. Mas, para completar o absurdo, continuavam pagando a internação. Avaliamos
que esta foi uma importante experiência de realização de um trabalho de mudança de uma instituição e
Depois de formado, graças ao convite de Gina Ferreira, trabalhei no HMSA (Hospital Municipal
Souza Aguiar) por três anos. Lá também pude observar a importância do trabalho do psicólogo, tanto na
Espaço de Atividades e Acompanhamento Terapêutico, que em 1992 mudamos o nome para Espaço de
Atividades e Convivência Nise da Silveira (EAC-NS), contando com a sua presença na inauguração.
Foi neste espaço que recebi o hoje professor Walter Melo, anfitrião do Encontro da Universidade
Federal São João del Rei, na época estagiário da residência de psicologia que criamos em 1993. Já em
1997, me substituiu por alguns meses como supervisor em um momento difícil de minha vida. Seu
trabalho foi de grande valor neste tempo em que lá esteve como residente e como supervisor. Deixou a
sua marca pela sensibilidade e capacidade singular no manejo com os internos e frequentadores da
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psiquiatria. Destacando-se em sua dedicação e habilidade de oferta de acolhimento às pessoas com
transtornos psicóticos. Derivado desta experiência, temos o seu livro, O terapeuta como comparável
mítico (Melo Jr., 2009), título derivado dos termos que na época caracterizei a modalidade de relação
entre Walter e um rapaz psicótico que vivia de sua intensa atividade delirante e que o elegeu de pronto
como o Cristo que veio salvá-lo (Walter tinha as características físicas da representação do Cristo).
Walter encontrou Nise e sua obra em um Evento que eu havia proposto ao Departamento de
Cultura/UERJ, e que chamei: Encontro Nise e a Universidade (1988). Proposta que foi apropriada e
ampliada pela Reitoria na época, já que precisava de maior aceitação e visibilidade na instituição e viu
nesta proposta uma boa chance, pois Nise abria portas ideológicas cerradas. O evento constou da
homenagem que lhe concedeu o título de Doutora Honoris Causa da UERJ, além do programa amplo
com os trabalhos do MII e de sua presença para a satisfação dos participantes, que como Walter, muitos
ficaram fascinados.
Voltando ao meu percurso, meus laços com Nise continuaram ajudando no meu trabalho
profissional e pessoal. Mesmo não frequentando mais os espaços por ela criados, eu sempre precisei de
nossos encontros em sua casa, os intervalos dos encontros eram marcados geralmente por sonhos
transferenciais. Encontros esses reconfortantes onde havia alguma análise de sonhos e conversas livres, o
Voltando ao EAC-NS, prática que sustentamos por mais de 30 anos, penso que teve importante
elaboração deste tempo mais crítico, com utilização de recursos verbais e não verbais, além de cultivar a
prática de manter a interação dos internos com frequentadores do ambulatório que vinham participar das
atividades criativas, expressivas e grupais aí desenvolvidas (artes plásticas, teatro, Grupo Operativo,
grupo de familiares, passeios). Foi um importante espaço de experiência para muitos estudantes de
graduação e especialização, e fico contente de encontrar muitos deles hoje atuando na chamada clínica da
reforma.
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A partir desta experiência surgiu a demanda de um espaço externo mais organizado e ampliado para
receber maior número de pessoas com transtornos mais graves e que exigiam acompanhamento intensivo
e prolongado. Foi criado então o Hospital Dia (HD) em 1993 onde mantivemos estagiários de extensão,
iniciação científica, curriculares e residentes durante toda a sua existência até 2009, cujas atividades
foram transpostas para o CAPS UERJ, primeiro CAPS universitário, localizado na Policlínica Piquet
Carneiro.
Portanto, em 2009, criamos o CAPS UERJ, uma nova perspectiva assistencial e de formação, HD
encontrava-se em condições degradantes, já o novo espaço, apesar de não ser o que idealizamos
(preferíamos uma casa), é muito superior. Além de melhores condições físicas, sua organização contou
com parcerias ampliadas entre unidades da UERJ, HUPE, Secretaria Municipal e Secretaria Estadual de
Saúde, além do apoio entusiasmado do diretor da Policlínica Piquet Carneiro (PPC), na época o médico
João Caramez, que tem ótima visão da função dos programas assistenciais na universidade em sua relação
com o ensino e a pesquisa. Tudo isto possibilitou compor um quadro técnico e de professores-
supervisores com inclusão de seus estagiários de graduação e especialização, que vem garantindo a
assistência em conformidade com as políticas do SUS. Hoje o CAPS UERJ é referência para a AP2.2, que
engloba uma população de quase quatrocentos mil habitantes. Aí centrei minha prática nos últimos anos,
como supervisor clínico e membro da equipe e assumindo a sua coordenação em 2017 com a saída da
coordenadora Neilanza Coe, que sustentou este lugar desde a sua criação.
Voltando ao paralelo proposto, entendemos que esta prática reflete a clínica criada e ensinada por
Nise, ao receber no dia a dia, pessoas cujos laços sociais e sócio-afetivos são muito tênues ou que estão
mesmo privados destes. Portanto, os CAPS vêm efetivando esta clínica externa para pacientes graves,
iniciada em 1956 com a criação da Casa das Palmeiras, cuja função de ponte entre o sujeito com sua
subjetividade desordenada e o mundo externo, foi enfocada por Nise. Para isto, ela entendia que através
da possibilidade de expressão, sentido e manejo de seus tumultos internos e da criação de laços afetivos,
19
assegurarem a sua existência fora dos muros da instituição psiquiátrica, ao disporem deste espaço de
referência e de suporte.
Institucional, bandeira por mim defendida desde 1979. Bandeira, porque eu já havia descoberto a
importância da prática do psicólogo não só nas instituições psiquiátricas, mas também no hospital geral,
onde ainda não estava muito claro para os dirigentes e também para a própria categoria. Em
consequência, estranhávamos o fato de não contarmos com projetos de residência nestas instituições.
Poucos eram também os hospitais públicos e privados que contavam com psicólogos em suas equipes.
Através do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e do CRP-05, realizamos uma enquete junto
aos hospitais e constatamos que seus dirigentes valorizavam e desejavam a prática dos psicólogos em suas
liderança e empenho de Margarete Ferreira junto às secretarias de saúde foi realizado o primeiro concurso
de psicólogos se deu em meados da década setenta e a pedido do diretor do HUPE, logo depois, a diretora
do IP/UERJ, professora Yonne Muniz, contratou seis psicólogos que vieram depois receber estagiários.
Mas com a criação do SPA, estes receberam a função de supervisores de graduação neste espaço. Mais
tarde alguns programas voltaram a ser desenvolvidos no HUPE. Portanto, se a prática dos psicólogos era
de grande importância, a experiência neste espaço era também fundamental para a formação em
especialização clínica destes profissionais. Seguindo esta direção, em 1989, partimos desses projetos já
programas e formulamos nosso projeto de residência em 1989. Infelizmente por falta de empenho da
direção do IP/UERJ na época, não foi possível implantá-la. Com a aprovação da nova direção em 1993 e
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o apoio da direção do HUPE, que sempre foi favorável, implantamos a primeira residência em psicologia
do país. Inicialmente quatro vagas, depois cinco e em 2010 conseguimos passar para as dez vagas anuais.
principalmente como continuidade de estudos acadêmicos para muitos egressos, tanto no mestrado como
Psicanálise, onde sou membro do colegiado. Um programa com enfoque clínico e tem sido importante
suporte para elaborações e teorizações das práticas neste campo e na saúde mental. Os orientandos da pós
que venho acompanhando são sempre profissionais que atuam em instituições de saúde, a maioria no
campo da saúde mental, o que cria uma interlocução com os residentes. A vinda dos residentes para o
campo assistencial foi de grande valor para os setores e para a efetivação das práticas de formação e
assistência. No CAPS UERJ, projeto que sustento, os residentes, tanto o R1, de seis meses, quanto o R2,
de um ano, vêm participando ativamente deste dispositivo que é referência clínica para a rede assistencial
em saúde mental. Um importante aprendizado do trabalho em rede e de estudo das políticas e das
formulações teórico conceituais do campo. Vários trabalhos também vêm sendo elaborados pelos
residentes, individuais ou com o supervisor, para congressos e eventos na área, o que será referido na
bibliografia.
As mudanças propostas pela chamada reforma psiquiátrica exigiram escolhas conceituais que
objetivaram desvencilhar a prática assistencial dos efeitos estigmatizantes da ideia de doença mental.
Também as classificações internacionais das doenças (CID-10; DSM.III-V), procuraram abrir mão da
concepção de entidade nosológica a favor da ideia de síndrome, preferindo o termo transtorno mental.
Para o campo, optou-se pelo termo saúde mental, por influência da reforma operada nos Estado Unidos na
década de sessenta que adotou a concepção de mental health (Zorzanelli, Bezerra Jr. e Costa, 2014).
objetivas de viverem suas vidas em sociedade e que devem receber ofertas de cuidados e tratamentos que
21
os facilitem no desenvolvimento e sustentação de condições para viverem como pessoas e como cidadãos.
Uma perspectiva, como sabemos, que teve grande influência da reforma italiana liderada por Basaglia
de sua experiência subjetiva. Este recebe um veredito do médico, mas não pode se entender nesta
acompanhar as suas possibilidades narrativas e criativas para construir arranjos de sua vida e de sua
sobrevivência no mundo (Serpa Jr. et alii, 2014). Para o diagnóstico, exige-se categorias nosológicas que
normalidade e de patologia. Sabemos que a marca hospitalar como modelo, seccionou o homem da
doença, centrando principalmente na tentativa de estudar a doença em si sem levar em conta a pessoa ou a
subjetividade daquele que é designado como doente (Zorzanelli; Bezerra Jr. e Costa, 2014).
Tendo como referência a realidade tenebrosa que encontramos nos inícios dos anos 70, são
tidos como doentes mentais, à perspectiva da acolhida e da oferta de operadores terapêuticos externos em
produção e inserção no campo econômico e garantia dos direitos de cidadão. Esta abordagem vem
criando novas condições para aqueles que sofrem de transtornos psíquicos e para seus familiares, além de
servir de reflexividade para a mudança dos estereótipos e representações sociais da loucura e de novas
possibilidades de pensar os seus destinos na sociedade. Ou seja, quebrar a crença de que lugar de louco é
Mas, observamos hoje que a complexa e heterogênea demanda feita aos CAPS vem acarretando a
perda dos limites de suas condições de funcionamento enquanto dispositivo terapêutico e psicossocial.
Além das dificuldades de contar com equipe suficiente e bem preparada, os CAPS são implantados em
áreas programáticas (AP) extensas, que envolvem vastos contingentes populacionais, situando-se nesta
AP como referência para as Residências Terapêuticas (RT), criadas para receber os “psiquiatrizados” ou
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institucionalizados que não possuem acesso a locais ou a condições de moradia; recepção de pacientes de
longas internações, através do projeto de desinstitucionalização ou Volta para Casa1; referência para o
estabelecimento de laços com internados em unidades de curta duração, para assegurar a continuidade da
assistência externa; referência para receber jovens adultos que estão saindo das unidades que assistem
crianças e adolescentes com autismo e outros transtornos graves, muitas vezes portadores de lesões e
deficiências mentais graves, além da atuação junto aos projetos de assistência às famílias (PSF).
Considerações finais
Para finalizar, retomo o paralelo das mudanças ocorridas neste campo e a reflexividade da obra de
Nise, que é um vetor de inspiração. Consideramos fundamental para sustentar hoje as práticas da reforma
o compromisso com a pesquisa. Diz-se, com frequência, que temos uma prática sem teoria. E nisso Nise
foi também um exemplo. Para aqueles que conheceram a sua práxis, sabem que, junto aos métodos
terapêuticos ativos e criativos por ela orientados, associava-se a pesquisa profunda, visando conhecer o
mundo interno e enigmático dos chamados esquizofrênicos. Como disse Drummond de Andrade aquele
“ser distanciado da imprecisa fronteira do normal – o fechado em si, o supostamente ininteligível ... que
não participa do nosso modo comum de viver e exprimir-se.” (Andrade, 2000, p. 76). Aqueles, muitos
tidos como dementes crônicos, surgiram revelações de potenciais criativos e de habilidades artísticas que
confrontaram os frios diagnósticos de degeneração, que serviam para justificar a miséria dos hospícios.
Isto é, as mentes (dos internos) eram miseráveis (dementes) e nada poderia ser feito, pois eram
irrecuperáveis.
Esta pesquisa profunda da subjetividade - uma arqueologia da psique - com esses seres humanos
intérpretes apressados e de viés mais sociologista, por acharem que Nise só se preocupava com o mundo
interno. Para àqueles que conheceram seu trabalho mais de perto e mais profundamente, trata-se do
contrário. Sua pesquisa confrontou os métodos agressivos, invasivos e opressivos dos hospícios
tradicionais. A produção dos internos revelou muito das opressões sociais, das tensões nas relações
familiares e sócio-econômicas, do abismo na comunicação com o outro que estiveram presentes em suas
23
biografias e continuavam depois de seus rompimentos psíquicos. Provou, portanto, que o asilo era
justificado socialmente como ponto final para aqueles que já tinham sido empurrados para fora de seu
convívio sócio-afetivo (Silveira, 1981;1992). Um muro que separava e bania o chamado doente mental e
sua loucura do convívio social, resultando em empobrecimento das representações sociais, pois descartar
esta dimensão da experiência humana significa uma redução do seu ser (Ferreira, 2015; Mello, 2014).
Desta forma, afirmamos que a práxis de Nise se sustentou no compromisso permanente com o ser
humano em seu mundo. A divisão artificial interno–externo é confrontada a todo o tempo em seu
trabalho, seja pelo uso dos espaços e do tempo no hospício – onde, com atividades criativas, produtivas e
culturais, subverteu a pontuação burocrática do tempo e produziu novos ritmos e novos deslocamentos;
das enfermarias fechadas para oficinas de artes aplicadas, ateliês e espaços externos - seja mais tarde, ao
criar a Casa das Palmeiras (CP) no bairro da Tijuca, totalmente fora e distante do espaço asilar (Silveria,
1986; Melo JR., 2005). Como afirma Bezerra Jr. (2011, p.14),
seus habitantes em não-sujeitos que perambulavam por um limbo existencial. O ateliê que Nise
criou era a antítese disto: uma ilha de emoções, de relações afetivas, de expressão subjetiva, um
Em anexo, exponho minha aventura de dar forma poética para falar da importância do meu encontro
Nota
1. Referência que se tornou paradigmática a partir do importante trabalho de resgate dos asilados em
hospício do município de Angra dos Reis liderado pela psicóloga Gina Ferreira.
Anexo
24
Que nos alenta a caminhada Nos impermeáveis da cronicidade
25
Nessa longa travessia
Referências
Barros, D. D.; Nicácio, F.; Amarante, P. Franco Basaglia e la riforma psichiatrica brasiliana. Rio de
Janeiro: DIALOGHI/UERJ, 1997.
Bezerra Jr., B. Os sentidos da arte na Atenção à Saúde Mental: considerações sobre o cenário pós-
manicomial. In Melo, W. & Ferreira, W. (Org.). A sabedoria que a gente não sabe. Coleção Arte &
Saúde Mental 2. Rio de Janeiro: Espaço Artaud, 2011. (p. 14-24).
Andrade, C. D. de (2001). A doutora Nise. Jornal do Brasil, 04/01/1975. In Quaterno. Revista do
G.E.C.G. JUNG, N. 8. Rio de Janeiro.
Berliner, R. (2015). Nise - O coração da loucura. Brasil.
26
A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado na assistência psicológica aos
Cristiane Ferreira Esch, Narcisa Silveira de Paula Fonseca, Mariana Silveira Córdova, Liana Ling
Gonçalves Setianto, Clareana Velasco Silva de Paula, Alessandro de Magalhães Gemino
Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar o trabalho realizado pela Psicologia no Serviço de
Cirurgia Cardíaca e Unidade Cardio Intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Fragmentos
de casos clínicos ilustram nossa atuação no manejo de casos graves, tendo o cuidado como principal
multiprofissional para que pacientes, familiares e equipe de saúde sejam assistidos em suas
cardiovasculares.
Abstract: The article aims to present the work carried out by Psychology in the Cardiac Surgery
Service and Cardio Intensive Unit of the University Hospital Pedro Ernesto. Fragments of clinical
cases illustrate our actions in the management of severe cases, with care as the main reference and
orientation. We emphasize the importance of spaces for dialogue and multiprofessional work so that
patients, family and health team are assisted in their different demands for care.
Resumen: El artículo tiene como objetivo presentar el trabajo realizado por la Psicología en el
Servicio de Cirugía Cardiaca y Unidad Cardio Intensiva del Hospital Universitario Pedro Ernesto.
Los fragmentos de casos clínicos ilustran nuestra actuación en el manejo de casos graves, teniendo
diálogo y del trabajo multiprofesional para que pacientes, familiares y equipo de salud sean
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Palabras-clave: cuidado, psicología de la salud, subjetividad, sufrimiento psíquico, enfermedades
cardiovasculares.
Introdução
Rio de Janeiro tendo sido inaugurado no ano de 1950. A Unidade Docente Assistencial de Cirurgia
Cardíaca do HUPE, por sua vez, foi criada em setembro de 1975, pelo Dr. Waldir Jazbik, que esteve
à frente da unidade até 2001, quando então se aposentou. Atualmente, o Serviço atua a partir de
duas vertentes: a assistencial, sob a chefia do Dr. Joaquim Henrique de Souza Aguiar Coutinho, e a
A tecnologia sofisticada tem sido marca do setor, que chegou a ter o maior número de
cirurgias cardíacas realizadas por dia em nosso Estado. Além disso, o Serviço foi pioneiro em
de recursos fizeram encolher o Serviço de Cirurgia Cardíaca, mesmo que ainda hoje seja
principais cirurgias realizadas no HUPE. Nesse contexto, o serviço recebe internações breves,
porém cheias de expectativas por parte do paciente e seus familiares sobre o evento cirúrgico a ser
realizado. Acreditamos que essas expectativas estejam presentes de forma ainda mais intensa em
pacientes que, ao serem usuários do Sistema Único de Saúde, aguardaram a cirurgia por longos
A cirurgia cardíaca constitui-se, em geral, como uma vivência de grande impacto na vida do
paciente, seja em seu aspecto físico ou em seu aspecto psicológico. É um tratamento invasivo,
muitas vezes considerado agressivo e que, simbolicamente, irá mexer com o centro da vida, o
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templo dos sentimentos (Oliveira e Luz, 1992). Não raramente, a cirurgia cardíaca provoca no
paciente algumas reações como o medo, a ansiedade e a incerteza quanto aos riscos do
procedimento, bem como sobre a sua capacidade de retorno às atividades físicas e intelectuais após
o procedimento (Oliveira e Oliveira, 2010). Sendo assim, considera-se que o tratamento cirúrgico
traz consigo uma carga significativa de dramaticidade para os indivíduos que a ele se submetem.
solicitação médica da própria unidade, em 19961, e foi possível a partir de uma parceria com o
para alunos de graduação em Psicologia da UERJ2. Mais recentemente, em meados de 2015, por
solicitação da equipe de enfermagem da Unidade Cardio Intensiva, e em acordo, com a chefia desse
HUPE, faz parte do Serviço de Cardiologia da UERJ, e funciona como um centro de referência do
SUS, no Estado do Rio de Janeiro, para pacientes portadores de cardiopatias, que chegam à unidade
encontradas nesta unidade são: síndromes coronarianas aguda e crônica, insuficiência cardíaca,
doenças arrítmicas, doenças orovalvares, sendo que, na maioria das vezes, os pacientes apresentam
internações tendem a ser mais longas e marcadas pelas dificuldades e implicações psicológicas
29
São bastante conhecidas por parte da equipe de saúde as potencialidades de uma unidade
fechada (CTI) em desencadear reações fisiológicas e psíquicas nos pacientes. Também para os
familiares, ter um ente querido internado e sob os cuidados de profissionais é um evento, na maioria
Assim, tanto para o paciente grave como para seus familiares, a internação hospitalar, em
geral, está atrelada a uma série de aspectos capazes de suscitar fortes reações emocionais. Podemos
considerar que uma internação representa um momento de crise na vida do sujeito, com a presença
de angústia, solidão e impotência. Do ponto de vista objetivo, alguns fatores concorrem para esse
fato, tais como: a saúde da pessoa encontra-se ameaçada; o hospital é um ambiente estranho e
alheio à rotina de vida dessas pessoas; a dificuldade de se obter informações, além da possibilidade
de chegarem informações desencontradas por parte dos diversos membros da equipe; o tratamento
que pode ser impessoal e descomprometido. Tais elementos reunidos podem levar a vivência do
desamparo.
despem-se de suas próprias roupas e de seus bens pessoais, são reconhecidos e nomeados por suas
marcado pelos horários de visitas ou de refeições (quando elas são feitas oralmente), já que não
existem janelas. Além disso, a questão do enclausuramento, típico do setor, é um fator determinante
para alterações da percepção temporal dos pacientes. Isso, sem contar com a falta de privacidade e
de sossego ocasionados pela disposição padronizada dos leitos, pelos bips das máquinas e pela
Internado nesse local, o doente torna-se um paciente, sem trocadilhos, uma pessoa resignada
aos cuidados médicos, que deve esperar serenamente a melhora de sua doença. Esse paciente,
desnudado por uma instituição total, perde sua identidade, transforma-se em número, em um
30
caso clínico, deixa de ser responsável por si mesmo, sua doença e vida. O paciente é
Podemos dizer, inclusive, que esse é o tipo de paciente que realmente se espera. Pacientes
agitados, chorosos, e mesmo aqueles implicados com sua doença e situação de saúde, mostrando-se,
na medida do possível, mais ativos e atuantes, costumam não serem bem vistos, são tidos como
chatos e difíceis.
Sendo assim, quase tudo nesse ambiente colabora para a perda de autonomia. O aumento
das restrições e a radicalidade das experiências vividas em uma unidade intensiva reforçam a
importância da atuação da psicologia. Nesse sentido, frente às diversas angústias que a internação
pode suscitar, nossa atuação tem como direção o acompanhamento dos pacientes internados, de
O presente capítulo tem, portanto, o objetivo de apresentar o que tem sido realizado pela
Psicologia ao longo desses vinte e dois anos de inserção na UDA (Unidade Docente Assistencial)
de Cirurgia Cardíaca e, mais recentemente, na Unidade Cardio Intensiva. Para tanto, traremos
Trata-se de um escrito feito a muitas mãos. A diversidade está presente neste trabalho.
Temos diferentes olhares, permeados por distintas filiações teóricas na clínica. Também os
Assim, além do cuidado se apresentar como o principal alicerce de nosso trabalho, tivemos ainda
outro motivo para elegê-lo como tema central desse artigo: o fato de ser um tema abordado por
31
Poderíamos falar de qualquer órgão, mas estamos falando do coração: coração que possui
todo um simbolismo no imaginário, coração que pulsa, que vibra, que sofre, que ama...
Poderíamos falar de qualquer pessoa, mas estamos falando do João, ou ainda, da Maria, que
chegam ao hospital e passam por uma internação. Ao chegarem, não vêm sós. Estão
acompanhados. Vem junto deles sua bagagem: sua história, seus modos de ser, seus amores e suas
dores, os quais os tornam únicos. Vem suas famílias e suas diferentes dinâmicas, configurações.
Vem histórias e mais histórias. Então, junto com o João, ou a Maria, vem junto tanta, tanta coisa,
sendo dessa complexidade que nós da equipe de saúde precisamos cuidar. Para oferecer um
cuidado, que busca ser integral, é necessária uma equipe. Algo tão complexo exige complexidade:
procedimentos, condutas para oferecer o melhor cuidado! Isso porque, não fazemos nada sozinhos:
precisamos de um outro para nascer, precisamos de um outro para crescer, precisamos de um outro
Ainda hoje é comum a ideia de que o acolhimento ao paciente e a sua família é algo para
psicólogos, no máximo, para assistente social. No entanto, o acolhimento é tarefa de toda uma
equipe de saúde. O acolhimento perpassa todo o período em que o paciente se encontra no hospital.
contribui-se para que a mesma possa oferecer suporte ao familiar internado. E ainda, quando o
Sobre o acolhimento familiar, podemos dizer que é um processo contínuo; é uma postura
32
Costa (2009), ao introduzir o tema do cuidado, traz-nos uma fábula acerca do tema,
Certa vez, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa. Ocorreu-lhe então a
ideia de moldá-lo, dando-lhe forma. Enquanto pensava sobre o que acabara de criar, interveio
Júpiter. Cuidado pediu-lhe que insuflasse espírito à forma que ele moldara, no que Júpiter o
atendeu prontamente. Cuidado quis, então, dar um nome à sua criação, mas Júpiter se opôs,
exigindo que ele, que lhe dera espírito, fosse também quem lhe desse o nome. Enquanto
Cuidado e Júpiter disputavam sobre quem lhe daria o nome, apareceu a Terra que, tendo
cedido parte de seu corpo para o que fora criado, queria também nomeá-lo. Diante de tamanha
contenda, decidiram que Saturno seria o juiz da disputa. Saturno tomou então uma decisão
equânime, proferindo a sentença: “tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na
morte o espírito de volta; tu, Terra, que cedeste do teu corpo, receberás o corpo de volta. Mas
como foi Cuidado quem primeiro o formou, pertencerá a ele enquanto viver. E havendo entre
vós disputa insolúvel sobre o seu nome, eu o nomeio: chamar-se-á ‘homem’, pois foi feito de
Costa (2009) propõe uma interpretação acerca dessa fábula, conhecida como “o mito do
cuidado”, da qual nos utilizaremos a fim de salientar alguns pontos importantes para o trabalho em
saúde. O autor afirma que a decisão de Saturno, ao tentar conciliar a vontade de todos os três é
geralmente considerada justa. Porém, adverte que o caráter equitativo de sua sentença, não deve
deixar passar despercebida uma diferença fundamental: Júpiter e Terra somente terão o homem de
volta após a sua morte. O mito estabelece assim uma interpretação clara a respeito do destino do
homem após a dissolução do seu corpo. Uma vez sem ânimo, esse corpo volta à Terra,
indiferenciando-se. É a parte retornando ao todo do qual surgiu. Já o espírito, que não se corrompe,
volatiza-se ao domínio das almas, dos vapores, reino de Júpiter por excelência. “Cuidado,
entretanto, possuirá o homem enquanto viver. Enquanto houver vida, o homem pertencerá ao
33
cuidado ... Com isso se quer dizer que não há distinção entre cuidado e vida humana ... O homem,
De acordo com Costa (2009), há ainda, no mito, a presença de um elemento a partir do qual
se pode pensar que a decisão de Saturno privilegia, de alguma forma, Cuidado. É que ao homem
pertence radical e impulsivamente o desejo de vida. Situar Júpiter e Terra no âmbito de sua morte
significa entregar-lhes o homem quando este já não é mais o que quer ser, quando já não é homem.
O homem deseja manter-se vivo, preservando a sua vida. Por isso mesmo, sua vida se
caracteriza pelo cuidado que toma para não perdê-la. Sendo assim, o cuidado figura como a arma
instaura como seu elemento e caráter mais próprio” (p. 31). Com a morte o homem já não é homem
e, nesta condição, extingue-se o cuidado, porque o cuidado é a sua condição de vida, não de morte.
O mito diz que o homem pertence ao cuidado enquanto viver. Mas tão somente enquanto viver.
Assim sendo, podemos considerar que a morte é o fator que provoca esse zelo no homem.
Por fim, Costa (2009) faz menção, no mito, à presença de Saturno como aquele que profere
a decisão. Para o autor, não é por acaso que a fábula coloque nas mãos de Saturno, deus do tempo, a
decisão sobre a contenda. “Saturno pontua no mito como o definidor. Ele define o que é vida e
morte para o homem, distingue o seu liame, o seu ‘ser homem’ e o seu ‘não poder mais ser
Desse modo, é o tempo quem determina a finitude do homem. Vida e morte encontram-se na
temporalidade. Enquanto o homem viver haverá cuidado, e também no morrer, que é parte do
viver!
34
Optamos por trazer a interpretação de Costa sobre o mito do cuidado, na medida em que a
mesma explora temas fundamentais quando pensamos nossa atuação como psicólogos inseridas em
sofrimento podem levar o paciente a uma regressão emocional que requerem uma atenção especial
por parte da equipe profissional. Neste caso, o adoecimento coloca o paciente num lugar de
dependência total do médico, tal como um bebê que depende de seus pais.
aparecem como símbolo de verdade absoluta e são inquestionáveis sobre o que é melhor para o
sujeito. É assim que o sujeito passa de forma fluida para o lugar de objeto: suas roupas são trocadas;
seu nome substituído pelo número do leito; seus pertences tomados e suas decisões pouco levadas
em conta.
Ao mesmo tempo que o CTI é um espaço para ser cuidado, promovendo a continuidade do
ser, implica em invasões para o sujeito: perda da singularidade, abrir mão da privacidade, invasões
no corpo... tal como se, para curar o corpo, fosse necessário abrir mão de ser sujeito.
hospitalizado visa perceber o sujeito em sua singularidade, expandindo a assistência para além de
questões meramente orgânicas. Nesse momento, ser escutado e acolhido a respeito de seus medos e
esperanças por um profissional pode levar o sujeito a localizar sua angústia e apaziguá-la. O
O médico, por sua vez, frente à necessidade de tomar decisões de grande responsabilidade,
acaba por desenvolver durante sua formação, uma autoridade e confiança necessárias para a
35
resolução de problemas. A fragilidade do paciente, nessa dinâmica, passa a ser um estímulo para o
médico assumir o lugar daquele que pode curar, resvalando para o risco de acreditar que tudo pode,
À medida que a psicologia foi ganhando espaço no setor, foi possível implementar uma
reunião multidisciplinar a fim de discutir os casos e fazer circular as informações sobre os pacientes
dentre as diferentes especialidades. Tendo como referência os Grupos Balint (Brandt, 2009), a
discussão de caso foi proposta, baseada na associação livre e sem temática preestabelecida. Com
esse formato, pretendíamos abrir espaço para reflexões, sentimentos e reações que surgissem dos
profissionais frente ao difícil trabalho que realizam e não só focar no conteúdo objetivo relativo à
A seguir apresentaremos dois casos clínicos, de Inês e Rosa, ambos nomes fictícios,
acompanhados pela psicologia no setor de cirurgia cardíaca. Pretendemos, por meio deles, ilustrar
nossa atuação no setor diante de diferentes intercorrências, junto ao paciente, sua família e equipe.
Inês3 era uma mulher jovem, em torno dos quarenta e cinco anos, ativa, casada e mãe de três
filhos. Possuía doença coronariana, mas sua condição clínica não tinha grande impacto em sua
autonomia ou qualidade de vida. Foi admitida no Centro de Terapia Intensiva (CTI) cardíaco para o
pré-operatório sentindo-se bem, assintomática e ansiosa para realizar a cirurgia pela qual já
esperava há muitos anos. No período breve que antecedeu à cirurgia, foi atendida pela equipe da
psicologia sem apresentar maiores demandas. Contou-nos sobre sua longa espera por essa
No dia seguinte da cirurgia de Inês, a equipe estava muito abalada. A cirurgia que, segundo
os médicos cirurgiões, a princípio consistiria em uma operação simples e pouco invasiva, acabou
transcorrendo com complicações e Inês perdeu muito sangue, comprometendo em muito o seu
procedimento pela equipe vascular. A equipe do CTI cardíaco, como um todo, estava muito
36
chocada e angustiada com a gravidade que o caso tomou e pela possibilidade de morte da paciente.
A fala de alguns profissionais trazia significantes como “desgraça” e “tragédia”, outros falavam
sobre como a paciente era jovem e saudável, dentro do possível, ao mesmo tempo em que se
De nossa parte, colocamo-nos à disposição dos médicos para uma abordagem à família, no
horário de visita. O médico explicou a situação grave em que se encontrava Inês aos familiares.
Estava sedada e necessitando de muitas drogas para manter os sinais vitais estáveis. A preocupação
maior era a respeito de quanto o sangramento poderia ter afetado sua atividade cerebral, e a resposta
a esse questionamento seria determinante da capacidade da paciente para acordar novamente. Era o
nosso primeiro contato com a família, que se encontrava muito confusa e surpresa com o quadro
apresentado. Procuramos acolher a angústia de cada membro da família que se deparava com a
Nos dias que se seguiram, Inês permaneceu desacordada, mesmo sem o uso de sedativos e a
visitas no CTI cardíaco, onde, a cada vez, era informada sobre a gravidade de seu estado de saúde.
Inês acabou indo a óbito em um dia em que ninguém da equipe cirúrgica estava presente no setor. A
notícia foi dada, no corredor do andar, por um médico plantonista que pouco tinha acompanhado o
caso, em companhia da psicóloga que estava acompanhando mais de perto a família. Na sequência
da notícia da morte de Inês, a psicóloga pôde ouvir o genro da paciente, que muito abalado,
procurava sustentar a angústia de sua companheira e, também, dos demais filhos de Inês. Falou um
pouco sobre o papel que Inês ocupava na família, dizendo que estavam todos “devastados”, e que
não sabia como seria dali para frente. Agradeceu muito o atendimento da psicologia. Infelizmente
O caso de Inês suscitou grande angústia também na equipe cirúrgica. Um médico que
participou da cirurgia pôde falar abertamente sobre como era difícil estar na posição de cirurgião
37
cardíaco, quando fatalidades como essa aconteciam. Ainda que seja um risco inerente à prática
cirúrgica, o significante “culpa” apareceu em seu discurso sem possibilidade de ser relativizado.
Sua atuação tem, na contratransferência, uma ferramenta capaz de apontar alguns dos
sentimentos que atravessam a condução do caso e que podem ser trabalhados no a posteriori. O
acompanhamento desse caso pela psicóloga, no que teve de inesperado e fatal, acabou por suscitar
e da equipe.
Nas reuniões multiprofissionais seguintes, alguns temas puderam ser elaborados pela equipe
médica. Notamos, a partir das falas dos cirurgiões, como era presente a angústia frente à
responsabilidade de “ter uma vida nas mãos”. Eles diziam lembrar apenas dos nomes daqueles que
faleceram na mesa de cirurgia, sentindo-se responsáveis por escolher o dia da morte desses
desse tipo de paciente, pelo medo de se envolverem emocionalmente, evidenciando claramente uma
atitude defensiva.
Foi discutido em reunião como era difícil para os cirurgiões considerarem que os pacientes,
ao operar, realizavam uma escolha. Em suas falas pareciam entender a opção pela cirurgia como
paciente, e assim, tomando para eles próprios a responsabilidade integral sobre o evento. Nesse
sentido, trabalhamos a ideia de que o médico indicava a cirurgia, mas ao paciente cabia escolher se
tinha o desejo de fazê-la, uma vez que entendia os riscos envolvidos e tinha tempo de elaborar a
decisão.
Nessa mesma reunião, mencionaram um caso que gerava muita angústia por se tratar de uma
paciente com grande risco de morte. Rosa possuía cardiopatia grave e já havia passado por três
cirurgias cardíacas em diferentes hospitais. Apesar do sucesso temporário das cirurgias prévias,
38
continuava apresentando sintomas e se mostrava necessária nova abordagem cirúrgica para a
implantação de uma válvula especial. Ela já havia aceitado fazer o procedimento e aguardava na
altos riscos dessa nova intervenção cirúrgica e acabou por se propor uma nova consulta com a
Os familiares de Rosa foram convidados para uma conversa junto com uma psicóloga e um
cirurgião. Foram expostos os riscos e possibilidades para o caso: apesar de muito risco a cirurgia se
mostrava como a única aposta possível, o outro caminho era conviver com a doença por um tempo
também incerto. Enquanto equipe, colocamos para Rosa que ela e sua família poderiam ter tempo
Depois da conversa com os familiares, Rosa pôde escolher operar. Tinham muita fé de que
tudo daria certo e ela afirmava que “a vontade de Deus seria feita”. Dizia que do jeito que sua vida
estava não poderia permanecer, os sintomas a impediam de viver e precisava fazer alguma coisa.
Estava em paz com sua decisão. Rosa esperou por dois meses na enfermaria até que sua válvula
chegou ao hospital. Durante esse período, seguiu sendo atendida pela psicologia. Sempre muito
convicta de que estava no caminho certo, seu único pedido, no dia da cirurgia, foi que
No dia da cirurgia, foram muitas horas de procedimento. Rosa sobreviveu e mesmo muito
debilitada conseguiu abrir os olhos e ver sua família. Nos dias que se seguiram, seu quadro se
agravou de forma drástica e foi necessário passar por mais duas intervenções cirúrgicas. Sua família
oscilava entre continuar tendo fé de que depois do coma ela iria acordar, como já havia ocorrido em
cirurgias anteriores, com momentos em que o desânimo e a falta de esperança pareciam dominar.
Seguimos acolhendo seu desamparo de talvez não terem feito a “escolha correta” e ao mesmo
39
responsáveis pelo que estava por vir. Ao falar sobre a condição da paciente, não conseguiram
explicando que talvez fosse importante uma visita. Mencionamos que a equipe estava muito
preocupada. A família buscava explicações para o que estava acontecendo, se questionava se havia
sido erro médico. Era difícil conceber que a morte se apresentava como real possibilidade depois de
Rosa foi a óbito, se foi. A família foi chamada para receber a notícia, e a psicóloga e o
médico cirurgião que mais estiveram à frente do caso conversaram com eles com calma e em um
espaço privado. Foi possível fazer uma retrospectiva do caso de Rosa desde que optaram pela
cirurgia até o seu desfecho, e abrir espaço para a família falar sobre suas impressões e expor seus
pensamentos.
a dificuldade de lidar com os limites da profissão médica e da própria vida, com seus
multiprofissional, para a elaboração de alguns temas fundamentais que atravessam a prática médica
e a qualidade do atendimento. Enquanto para a equipe cirúrgica esses casos são de derrota, para a
psicologia resta a questão de como poder enfrentar esses eventos de modo a prestar toda assistência
necessária para uma morte digna de seu paciente e para o acolhimento da família frente a algo
Figueiredo (2009) também se ateve ao tema do cuidado. Para o autor, o cuidado envolve
uma dimensão ética essencial para a vivência do “fazer sentido”, ao longo da vida: “(...) fazer
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sentido implica estabelecer ligações, dar forma, sequência e inteligibilidade aos acontecimentos...
equivale a constituir para o sujeito uma experiência integrada, uma experiência de integração” (p.
123).
De acordo com o autor, o cuidado é exercido pelo agente de cuidados, a partir de duas
vertentes: como presença implicada (comprometido e atuante) e como presença em reserva. Cabe
assinalar, que ao longo da vida, diferentes pessoas, em diferentes espaços, podem ocupar a função
Ao apresentar cada uma dessas modalidades, ilustraremos a partir de casos clínicos, como
cardíaco e Unidade Cardio Intensiva. Vale ressaltar que os casos trazidos podem conter, em seus
implicada do cuidador.
A continuidade é fundamental para a nossa existência: “não existimos, não nos sentimos
existir, não conquistamos um senso de realidade se alguma continuidade não estiver sendo oferecida
encontra ameaçada diante de uma doença grave, ou ainda, da necessidade de realizar uma cirurgia
podem ser postas em xeque. É, portanto, tarefa do agente de cuidados que dá sustentação operar
nesse momento. Frequentemente, são famílias, grupos e instituições os dispositivos mais aptos a
41
oferecer holding ao longo da vida, principalmente quando o que está em jogo é a continuidade na
Flora era uma senhora que esteve internada por meses, tanto na unidade coronariana, como
no CTI cardíaco. Já havia feito uma cirurgia cardíaca anos antes que, segundo ela, não havia dado
certo e por isso teve que retornar ao hospital, quando já não conseguia respirar ou se alimentar
direito.
nasogástrica para alimentá-la, retirando assim, de sua rotina, um dos principais marcadores
temporais. Depois, foi constatado que tinha uma doença grave com alta taxa de mortalidade, um
Nas primeiras vezes em que ela foi acolhida pela psicologia contou sobre sua experiência
cirúrgica anterior. Disse que ficou em coma por alguns dias e que esteve muito mal. Conta que os
médicos não acreditavam em sua sobrevivência, mas ela acordou, "foi um milagre". Flora estava
com medo, disse que não suportaria passar por isso novamente e que pensava em desistir. Foi
pontuado que ela poderia pensar em escolher realizar a cirurgia, mas ela respondeu que era o único
recurso para melhorar seu estado. Foi possível à psicóloga mais próxima dela estar ao seu lado,
Com o passar do tempo, seu humor deprimido transformou-se em alguma esperança. Sua
cirurgia necessitava de uma prótese especial que viria de outro país e agora restava esperar. Nesse
período, ganhou um livro religioso. Gostava muito de uma passagem, que pontuava a limitação
No dia da cirurgia não era apenas a paciente que estava ansiosa. Todos os profissionais do
familiares estavam presentes, angustiados e, também puderam ser escutados e acolhidos. Flora
42
Antes de descer para o centro cirúrgico, Flora ficou bastante nervosa e a equipe, depois de
acalmá-la, criou espontaneamente uma ciranda, dando as mãos para rezar. Ela acabou por ser
acompanhada, pela psicologia, ao centro cirúrgico, até o momento da sedação. Muitos profissionais
olhavam a psicóloga de referência, questionando sua presença. Foi observado pela psicóloga, que
grande parte dos profissionais não cumprimentou a paciente, tampouco informou-a sobre os
procedimentos e manipulações que realizavam em seu corpo. Ela foi invadida por acessos e toques
sem receber explicações sobre sua finalidade ou propósito. Diante desse cenário, o papel da escuta
oferecida pela psicóloga ali consistiu em, além de sustentar/acolher, buscar mediar e explicar, da
melhor forma possível, aquelas invasões, na tentativa de acalmá-la e de dar significado àqueles
procedimentos. Flora sobreviveu, mas os resultados não foram bons. Os médicos pareciam
aparelhos e precisou passar por um novo procedimento cirúrgico. Infelizmente, ela morreu em
cirurgia. A equipe ficou profundamente marcada pelo seu falecimento. O tempo prolongado de
internação, nesse caso, fortaleceu o vínculo da paciente com todos os profissionais do setor, não
experiências de transformação. Isso porque, mais do que garantir continuidade, “é preciso crescer,
expandir-se, se possível, sem rupturas excessivas, mas também sem meras repetições” (Figueiredo,
2009, p. 127).
o condicionamento físico do paciente, além de diminuir os fatores de risco que estão atrelados às
doenças cardiovasculares (Roselino e Évora, 1996). Ela deve ter início ainda no interior da
instituição hospitalar da maneira mais antecipada possível, com o intuito de auxiliar na recuperação
43
da capacidade funcional dos pacientes. Faz-se necessário que os progressos e acompanhamento das
atividades sejam lentos e individualizados por causa dos inúmeros problemas originados pela
O programa de reabilitação cardíaca no HUPE envolve três fases, com atividades que vão
desde o pós-operatório imediato até o preparo para a realização de atividades físicas de forma
no CTI cardíaco, até a alta hospitalar. Os objetivos dessa fase incluem o acompanhamento
psicológico do paciente e sua família. O profissional de fisioterapia é um grande aliado nesta fase,
pois é assistido por ele que o paciente é incentivado a realizar exercícios físicos e respiratórios de
A fase II é a ocasião em que o paciente retorna ao hospital, logo após a alta e que pode durar
em média de quatro a seis meses. Por duas vezes na semana, os pacientes realizam em grupo,
atividades de moderada intensidade sob a supervisão dos profissionais de fisioterapia. Essa fase se
estende até a realização do teste ergométrico, que avalia as condições físicas do paciente para iniciar
A fase III dura em torno de seis meses a um ano. Nela, os sujeitos já são capazes de realizar
exercícios físicos um pouco mais intensos, com a frequência de três vezes na semana, sendo
44
Na fase IV, os pacientes devem estar em condição de exercer seu automonitoramento em
meio externo ou domiciliar. A prescrição das atividades deve ser realizada por profissionais de
saúde especializados para melhora clínica do paciente, já que é uma fase de tempo indeterminado e
de manutenção.
imediato até a fase III do Programa de Reabilitação Cardíaca – e é através de uma escuta mais
sensível que é possível fazer emoções emergirem e encontrarem uma forma de simbolização, seja
no laço social ou na própria vida psíquica do sujeito. Em nossa atuação, optamos pelo modelo de
intervenção grupal, pois acreditávamos que a troca entre pares seria benéfica.
Apesar de algumas correntes teóricas considerarem que os grupos podem fazer com que o
paciente dilua sua subjetividade, se identificando apenas com o significante tema do grupo, - por
exemplo “cardiopata” - apostamos que a troca entre os sujeitos poderia ser proveitosa. Nossa
estratégia se baseou na consideração de que algumas questões essenciais da condição pela qual
estavam passando - incluindo temas de ordem prática, burocrática e até política - só poderiam ser
A equipe de psicologia conduz o grupo de modo que o mesmo funcione como um espaço de
construção de novos significados. A possibilidade desses pacientes olharem mais para si mesmos e
refletirem sobre suas vidas, oferecida pelos grupos psicoterapêuticos, juntamente com o cuidado
integrado prestado pela equipe multiprofissional, contribuem, pouco a pouco, para a recuperação da
pacientes que estão na mesma fase de seus tratamentos, trabalhar suas angústias relativas ao
45
abordando-a em seus diversos aspectos, entre outras demandas singulares que se revelam com certa
frequência.
muito fragilizados pela cirurgia cardíaca, trazendo sentimentos como medo, insegurança e muito
marcados por limitações e restrições, não somente do ponto de vista físico, mas também e,
especialmente psíquicas. Na fase III, por sua vez, é comum surgir o medo da alta hospitalar,
No entanto, nossa prática, ao se ater e buscar enfocar o que é possível para cada indivíduo, a
cada momento, também nos coloca diante de soluções e novos rumos de vida encontrados pelos
Não raramente somos surpreendidos com situações e falas em que é notório observar que
configuração de vida. Cesar, sempre nos fala que após o término da reabilitação irá se mudar para o
interior do Rio, a cada semana traz detalhes desse plano que também irá afetar a sua esposa e seu
filho. Coloca que longe do centro urbano poderá finalmente ter um estilo de vida que sempre
sonhou, no meio do mato e pescando. Tivemos outro paciente, Silvio, de 78 anos, sempre muito
participativo no grupo, que permaneceu por seis meses em reabilitação e solicitou por antecipar a
sua alta para se dedicar aos cuidados da sua esposa portadora de Alzheimer. Para isso, fez todos os
exames que atestaram a sua capacidade de seguir sozinho, se matriculou em uma academia próxima
de sua casa e comprou uma esteira ergométrica a fim de se exercitar nos dias em que não pudesse
estar na academia. Em seu último dia no grupo trouxe uma fala onde ficou marcada a sua disposição
em viver mais e melhor: “Eu estou fazendo tudo isso pela minha saúde, quero chegar bem a velhice,
46
Passando à função do reconhecer, esta requer a presença de dois sujeitos frente a frente,
agente cuidador. Esta função pode ser desdobrada em dois níveis: o do testemunhar e o do
Muitas vezes, cuidar é, basicamente, ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto dos
cuidados no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho e, se possível, levando
de volta ao sujeito sua própria imagem. Esta modalidade de cuidados pode passar
desapercebida, tão discreta ela pode ser (...) porque é discreta e aparentemente anódina, pouco
se valoriza, a não ser quando falta ou falha, a disponibilidade deste cuidar silencioso que se
resume a prestar atenção e responder na medida, quando e se for pertinente (p. 127).
transferido de um hospital do município do Rio de Janeiro para o HUPE para realização de cirurgia
de um aneurisma de aorta. Abordaremos a primeira e a segunda visitas de Rose, sua esposa, no CTI
Cardíaco.
No primeiro dia de visita ao paciente, Rose é recebida no CTI com um pedido de uma
enfermeira para não se aproximar dele, visto que o paciente se encontrava muito agitado, podendo
ficar ainda mais agitado com a sua aproximação. Ao se dirigir ao médico, tem a informação de que
a cirurgia havia sido um sucesso, mas que a recuperação agora só dependia do paciente.
Imaginando o possível impacto causado por essas falas, a psicóloga de referência se aproximou de
Rose na tentativa de ofertar um espaço em que esta pudesse se expressar. Ela fez muitas perguntas
sobre o estado geral de Ricardo, e buscando atendê-la, foi mediado o contato de Rose com uma
enfermeira. Esta prestou esclarecimentos iniciais, autorizou a aproximação de Rose a seu esposo e
solicitou ao médico que pudesse prestar informações mais específicas sobre a cirurgia.
47
Percebemos nesta situação, a importância de o psicólogo estar atento aos fenômenos que
emergem no contexto hospitalar, já que existem neste espaço uma dinâmica própria e uma rapidez
no ritmo em que os acontecimentos se dão. Assim, faz parte do trabalho deste profissional no
para então, se possível, colaborar com a expressão, a aceitação e a integração dos conteúdos que
possível para ela falar um pouco de Ricardo e do cuidado que estava prestando a ele até a cirurgia.
Ricardo descobriu a necessidade de se submeter a uma cirurgia cardíaca no hospital em que estava
solicitada pela equipe do CTI a fim de acompanhar a comunicação do óbito. Esta notícia foi dada
pelo médico cirurgião na companhia do médico do CTI e da psicóloga que acompanhava o caso. O
pelo acontecimento. Após a retirada dos médicos, entre muitos momentos de silêncio, Rose passou
a falar da sua relação com seu marido, das coisas que gostavam de fazer juntos, das expectativas
que tinha quanto à recuperação dele, de sua visita no dia anterior ao falecimento, da dor de pensar a
vida sem a presença dele, dentre outras falas. Com a chegada dos demais familiares, Rose
Surgiu então um impasse. A equipe negou seu pedido, seu desejo, ainda que o mesmo
tivesse sido autorizado anteriormente pelo médico cirurgião. Alegaram que o corpo se encontrava
inchado, podendo esta imagem causar nela um grande impacto e, sobretudo, alegaram que este
ambiente não permitia esse tipo de visita. Esta decisão causou profundo descontentamento nos
familiares, reação esta que foi levada pela psicóloga à equipe, na tentativa de encontrar uma solução
para este impasse. As enfermeiras que cuidavam do corpo, por sua vez, mostraram-se disponíveis,
48
de modo a arrumá-lo para que ele pudesse ser visto naquele momento. Foi assim, satisfeito seu
desejo. Durante o tempo em que a família esteve junto ao corpo de Ricardo, a enfermeira-chefe deu
Entendemos que Rose pôde expressar seus sentimentos e expor sua necessidade frente à
morte de seu marido, na medida em que esteve diante de alguém que esteve disponível para estar
com ela, acompanhando-a neste momento, e reagindo com sensibilidade ao seu apelo. Não restam
dúvidas de que o rumo desse atendimento esteve totalmente relacionado à postura da profissional de
psicologia, de abertura para o outro, enxergando e reconhecendo esse outro, a cada etapa do
processo.
Ricardo demandaram intervenções, no sentido de amparar Rose frente à dor e ao sofrimento em que
se encontrava. Esta situação exigiu, ainda, que Psicologia atuasse no sentido de estabelecer um
diálogo com a equipe, na tentativa de relativizar as distintas opiniões, apostando na premissa de que
é somente o outro quem pode dizer o que é melhor para si e questionando a rigidez das regras, que
instituição, não seja incompatível com a necessidade de que haja margem para a reflexão do que
está estabelecido a priori, neste caso, a proibição de visitação ao corpo no CTI. Neste sentido,
circunstâncias.
Por fim, temos a função de interpelar, seduzir e reclamar exercida pelo agente de cuidado.
Tal função acaba por provocar no outro, que é cuidado, uma exigência de resposta. Trata-se de uma
Um modo muito primitivo e aparentemente casual de intimar ocorre quando damos um nome
para fora, chamar às falas. (...) Esta modalidade de cuidado é, por exemplo, a do professor que
chama o aluno à lousa para resolver um problema, a do juiz que ouve depoimentos, a do padre
que ouve confissões ou a do médico que solicita ao paciente uma descrição de suas dores e
sintomas, de seus hábitos alimentares etc., ou ainda a da mãe que conversa com o filho que
Na esteira do que expõe Figueiredo, podemos afirmar que esta modalidade de cuidados é
também exercida pelo profissional de psicologia, quando indaga o paciente internado sobre o que o
Para exemplificar, seguem alguns fragmentos dos atendimentos com Douglas, paciente da
Unidade Coronariana, que se encontrava internado há meses e sem perspectiva de alta. A equipe
relatava que o paciente aparentava bastante insatisfação, irritação e não gostava de conversar.
Em uma ocasião, foi oferecido atendimento a Douglas, momento em que ele disse que a
psicóloga de referência era muito repetitiva e “pau mandado” do chefe. Expressou também sua
insatisfação e descontentamento ao dizer que todos falavam a mesma coisa: “você não está bem”,
“não vai sair”, “não pode”, e queixava-se sobre “ser tudo sempre igual toda semana”. Foi apontado
para Douglas que ele devia estar cansado dessa repetição própria do hospital e que devia ser muito
difícil estar tanto tempo nessa rotina. Ele confirmou, dizendo que não aguentava mais e queria ir
para casa.
No decorrer dos atendimentos, o vínculo com a psicóloga foi sendo fortalecido. Afinal,
dentre muitos “nãos” e “tem que” o atendimento da psicologia permitiu que o paciente pudesse ser
“como”, respeitando o seu lugar como sujeito responsável pelo seu desejo.
Douglas pôde recontar a sua história, em que nunca tinha passado pela experiência de ser
50
Ele comparou sua vivência com levar uma “vida de cão”, se sentia em um pequeno canil, onde era
acordado apenas para comer. “Eu rodo, rodo para escolher a melhor posição para dormir, e quando
consigo me acordam para me alimentar ou me dar remédio. Isso não é vida de gente, é vida de cão”.
Nos atendimentos, ele repetia: “Um dia de cada vez, afinal deixa a vida me levar”. Ele dizia
estar dançando conforme a música e quando questionado sobre estar no ritmo, respondia que achava
que sim. Foi pontuado que era possível sair do ritmo às vezes, afinal, na dança em alguns momentos
guiamos, noutros somos guiados. Douglas relatou ter descoberto isso tarde, só agora que percebia
que não tinha o controle de tudo e que também poderia ser controlado. Disse gostar de música e que
escutava em casa. Perguntei se ele gostaria de ter um rádio, ele retribuiu dizendo que seria ótimo e
disse “de resto está tudo bem, cada dia, um outro dia.”
Através do vínculo que foi construído, Douglas pôde falar sobre a experiência hospitalar, os
sentimentos e a nova percepção que era suscitada pela perda de controle em sua vida. Ele trazia a
todo o momento questões próprias da internação em uma Unidade Intensiva e do adoecimento pela
patologia cardíaca. No entanto, até que fosse possível chegar a esse ponto, ele precisou da presença
como uma forma decisiva do cuidar, a presença em reserva, sendo que esta não envolve o fazer. A
seu cuidado um espaço vital desobstruído, não-saturado por sua presença e afazeres (Figueiredo,
2009). Conforme salienta Figueiredo (2009), se ocorre, contudo, o exagero da reserva, o resultado é
paciente grave, e o consequente afastamento desse tipo de paciente, pelo medo de se envolverem
emocionalmente, evidenciando claramente uma atitude defensiva. Desse modo, ouvimos falas
como: “se o caso é grave prefiro nem atender o paciente no ambulatório, melhor nem falar com o
51
paciente porque ele pode morrer e eu vou ficar mal”, ou “esse é daqueles pacientes que é melhor
nem chegar perto, que eu prefiro não ter contato”. No entanto, o resultado dessa postura, pode trazer
Diante da dificuldade em lidar com o caso grave, o paciente acaba sendo condenado à uma
morte prematura, e pode receber pouco investimento da equipe médica. E junto com isso, ocorre
poder salvar. A fragmentação da relação com paciente e família, através do afastamento da equipe,
fim de diluir a responsabilidade entre os profissionais, são alguns dos mecanismos de defesa que se
estruturam para que o profissional possa lidar com o sofrimento. Outro caminho para se proteger da
angústia é deixar-se afetar intensamente, mantendo uma ferida aberta constante (Pitta, 1994 citado
advertindo sobre o emprego extremado de ambas. Assim, se é óbvia a insuficiência da pura reserva,
entendida como neutralidade, indiferença e silêncio, por outro lado, em qualquer experiência de
cuidado, são inegáveis os malefícios da implicação pura – os extravios e excessos das funções
cuidadoras – mesmo quando, e principalmente quando, são justificados pelas melhores razões
humanitárias: salvar, socorrer, curar a todo custo! Desse modo, para que se dê o equilíbrio dinâmico
entre os três eixos dos cuidados – acolher, reconhecer e questionar – e, mais ainda, para que este
equilíbrio ocorra de modo espontâneo, é necessário que o agente cuidador possa moderar seus
fazeres.
Considerações finais
52
técnicas, em detrimento daquelas não formais, que prezam pelo cuidado, por meio da empatia e
compaixão. Nesse sentido, há culturalmente uma primazia do saber sobre o sentir, o que acaba por
valorização de uma padronização das atividades. Uma vez em que há a valorização do protocolo,
guia, evidências e controle, produz-se sentimentos de fracasso ou ocorre o desprezo para aquilo que
A fim de estabelecer um contraponto ao que costuma imperar neste ambiente e seu apreço à
relação médico-paciente. Ele dizia que a posição em que os médicos se encontram é de intensa
responsabilidade, pois há uma confiança que é depositada pelo paciente neles, mesmo sem conhecê-
los.
Esse médico, mesmo sem se dar conta, falava da dimensão da transferência, da suposição de
saber depositado nele e que leva o paciente a colocar a vida literalmente nas mãos de outra pessoa,
acreditando ser esta capaz de curá-lo. Ele dizia: “É uma relação que não existe com mais
ninguém”.
Pois bem, apesar de não parecer lógico, a postura do paciente, descrita pelo médico, parece
fazer sentido! Diante da vulnerabilidade e desamparo vividos pelo paciente, realmente, pode fazer
muito sentido, confiar cegamente em alguém, pode ser até mesmo que se faça necessário, a fim de
A fala do médico, ao abrir caminho para outras dimensões do humano para além da razão,
traz uma abertura para questionarmos a valorização excessiva que existe no ambiente hospitalar à
53
De nossa parte e com o nosso saber-fazer, buscamos com nossa atuação, apresentar um
contraponto a este movimento e a esta postura. E, em nosso caso, sem abrir mão da habilidade
técnica. Pois, para o profissional de psicologia, cabe sim, ser solidário, se comover, se impactar, se
revoltar, desde que isso aconteça na medida, e que mantenhamos nosso lugar de profissional,
estando ali para o outro e reagindo com sensibilidade ao que chega até nós.
Não à toa intitulamos este artigo: “A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado
na assistência psicológica aos pacientes cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde”. Fazer
sentido, expressão que pode abrigar diferentes sentidos, todos muito sentidos. Fazer sentido para o
outro, fazer sentido para mim, um fazer que faz sentido e ainda, um fazer que faz bem ao coração,
pois é sentido.
Notas
1. Em seu início, 1996, o Serviço de Psicologia esteve sob a preceptoria da psicóloga Norma Pace.
No ano de 1999, a psicóloga Sheila Orgler assumiu a função de preceptoria na qual permaneceu até
o seu falecimento, o que ocorreu no ano de 2008. Ainda nesse ano, a psicóloga Cristiane Esch
assumiu a referida função na qual permanece até o momento. Entre os anos de 2016 e 2017, o
contrata a psicóloga Narcisa Silveira de Paula Fonseca (residente durante os anos de 2016 e 2017)
2. Os alunos de graduação podem ser inseridos no Serviço como bolsistas vinculados ao Projeto de
Cardíaca do Hospital Universitário Pedro Ernesto sob uma perspectiva gestáltica”, em vigor desde
54
2012 e financiado pelo DEPEXT/UERJ, ambos sob a coordenação da psicóloga Cristiane Ferreira
Esch.
3. Os nomes dos pacientes e familiares citados nos casos clínicos, ao longo do texto, foram fictícios,
Referências
Brandt, J. A. (2009). Grupos Balint: Aspectos que marcam sua especificidade. Vínculo,
6(2), (p. 199-208). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/vinculo/v6n2/v2n6a09.pdf
Costa, A. (2009). A fábula de Higino em Ser e Tempo: das relações entre cuidado,
mortalidade e angústia. In Maia, M. S. (Org.). Por uma ética do cuidado. (pp. 29-51).
Rio de Janeiro: Garamond.
Figueiredo, L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: considerações sobre a clínica e a
cultura. In Maia, M. S. (Org.). Por uma ética do cuidado. (pp. 121-140). Rio de Janeiro:
Garamond.
55
A práxis dos residentes no ambulatório NAI: psicanálise e velhice
Gloria Castilho, Ana Beatriz Raimundo de Castro, Cristiane Bueno Iatauro, Lívia Azevedo
Carvalho, Rafaela Ferreira de Souza Gomes, Renata de Oliveira Fidelis
Resumo: O texto articula a Residência do IP com a equipe NAI interdisciplinar. Situa o recorte de
Abstract: The text articulates the IP Internship with the interdisciplinary NAI team. It situates the
cutting of signifiers which name the discontent in culture as inherent to current conjunction between
pains complaints, repetitive falls, memory problems concerning evoked memories, forgetfulness,
experiences accompanied by strangeness feelings and the distinction between Depression and
Keywords: psychoanalysis, Ambulatory Center for Attention to the Elderly, Institute of Psychology/
Resumen: El texto articula la Residencia del IP con el equipo NAI interdisciplinario. Presenta el
recorte de significantes que nombra el malestar en la cultura, como propio a la actual conjunción
tecnociencia / capitalismo. En el caso de las “personas mayores”, las denuncias de dolor, caídas
recurrentes, problemas de memoria que abarcan recuerdos, olvidos, vivencias marcadas por un
de duelo.
56
Palabras-clave: psicoanálisis, Ambulatorio Núcleo de Atención al Anciano, Residencia del Instituto
Introdução
Hospitalar – IP/UERJ foi criado em 1993, em uma parceria entre o Instituto de Psicologia/UERJ e o
desejo de dizer algo acerca do trabalho em um dos setores por onde circulam os residentes 2: o
preceptoria foi sustentado por Jaime Lisandro Pacheco e Teresinha Mello da Silveira, psicóloga do
Ambulatório NAI, por meio do rodízio de residentes que passou a incluir o NAI, no final dos anos
noventa.
Dados do IBGE3, referentes ao Censo 2010, confirmam que a população acima de sessenta
anos foi a que mais cresceu nos últimos dez anos, fato que norteia projeções para 2050 que apontam
cerca de sessenta e cinco milhões de idosos no país (Veras, Caldas, & Cordeiro, 2013). Em torno
destes dados, vale lembrar que “um problema social é antes de tudo uma construção social”
(Debert, 1999a, p. 30), o que esclarece a importância de que seja considerada a dimensão discursiva
uma questão de relevância social, em nossos dias. Os constantes avanços da tecnociência têm
da população. Em resposta a essa tendência, nas últimas décadas foram criados espaços como a
Universidade Aberta da Terceira Idade – UnATI/UERJ – que promove o laço social entre “idosos”
57
O Núcleo de Atenção ao Idoso – NAI/UnATI – constitui a face assistencial do trabalho
desenvolvido pela UnATI. Localizado no décimo andar do Campus Maracanã da UERJ, configura-
presta assistência também a “idosos” internados nas enfermarias do HUPE/UERJ. Esse enquadre
ambiente, em certos aspectos, mais aberto à interlocução entre os pares da equipe multiprofissional
e interdisciplinar.
Área de Psicologia dessa nova Residência (Castilho, 2016) passou a funcionar em 2013 e, desde
então, têm se inserido no NAI residentes de duas Residências distintas de Psicologia: a Residência
O ambulatório NAI sustenta ações diversas que serão abordadas, ao longo do texto, em
maior detalhe. Cabe ressaltar a relevância, o valor do trabalho desenvolvido pelo NAI. Há vários
relatos de “idosos” que encontram em iniciativas como essa uma via para encaminhar dificuldades,
bem como estabelecer e consolidar laços sociais ou mesmo inventar algo a partir do seu repertório
singular de interesses.
Constata-se que o “idoso” assistido por diferentes profissionais da área de saúde requer, com
frequência, uma escuta que acolha e possa dar direção a conjunturas que se apresentam em seu
relato como traumáticas e implicam sofrimento psíquico. Assim, iniciamos afirmando a importância
de que o analista dirija-se ao sujeito dividido, ou à bela por detrás do postigo (Lacan, 2008b) e não
58
Há como resposta ao mal-estar na cultura (Freud, 1996k), em nossos dias, uma inequívoca
fibromialgia, déficit de memória, fragilidade óssea, dentre outros. Tais significantes obscurecem e
dificultam que se estabeleça um sintoma analisável e, por isso, requerem certo tratamento na
chegada, tratamento da demanda inicial que permita abrir espaço para que um “idoso” se implique e
situe em sua história, por exemplo, o que há de singular em seu estado depressivo. Questões tais
como: “... por que será que eu deprimi naquele momento?” ou a respeito das dores: “por que as
dores que sinto diminuem quando viajo ou estou na casa da minha filha?” Ou ainda com relação às
recorrentes queixas de quedas: “... por que será que eu caía tantas vezes naquela época?”. Questões
como essas se contrapõem à ideia – corrente entre os especialistas – de que as quedas na velhice
sejam apenas uma consequência natural da fragilidade própria à velhice. É também considerada
natural, pela equipe de saúde, a recorrência da Depressão na velhice e ainda o fato de que o “idoso”
sinta dores em decorrência de doenças crônicas que vão sendo administradas, por meio de técnicas e
Vale assinalar que na velhice considera-se natural que haja todo tipo de déficits, com relação
ao padrão adulto normal, ideal, já que a falta e a perda são lidas como insuficiência ou déficit pelo
discurso tecnocientífico. Nessa direção, Góes (2008) esclarece que: “De um desejo articulado à falta
enquanto dado estrutural, o capitalista não quer ouvir falar. Em seu lugar, formula a promessa de
eliminar a falta pela aplicação da ciência à tecnologia que ofereça, no mercado, os meios de obter
59
consumo que implica a incessante oferta de produtos, técnicas e procedimentos que visam
valor que pode ser conquistado em qualquer faixa etária (Debert, 1999b).
O fato é que nas duas vertentes, seja como objeto de cuidados, seja através do combate ao
envelhecimento, tornado um mercado de consumo, é como objeto que o “idoso” é abordado pelo
isolamento. Tais efeitos tendem a ser exacerbados pela conjunção entre tecnociência e capitalismo
que deixa, muitas vezes, a velhice sem lugar, reduzida ao silêncio (Beauvoir, 1990; Debert, 1999a).
Por esse viés, Groisman (2013) esclarece que alguns autores chegam a falar em uma morte social na
velhice.
recolhe uma forte e talvez específica aderência aos significantes veiculados pelo discurso científico,
em um vão esforço de que respondam por todo o seu mal-estar. Essa dimensão clínica esclarece a
com que se confronta a escuta do analista, em certas conjunturas. Consideramos que seja em torno
deste ponto que Freud (1972) chegue a formular a contraindicação da psicanálise com “pessoas
idosas” (p. 274), afirmando certa inércia psíquica, certa perda de plasticidade que aumentaria com o
passar dos anos. Cabe lembrar, entretanto, que para Freud (196l), é preciso considerar a inércia
psíquica entre jovens, deslocando, até certo ponto, a questão da mera faixa etária.
falante no Projeto para uma psicologia científica, diante da impossibilidade de satisfazer ou aliviar
o excesso de excitação corporal. A criança pequena depende, em absoluto, de alguém que lhe dê
afago e que responda aos seus anseios através de uma ação específica que lhe proporcione alívio de
sua excitação. Nas palavras de Freud (2006a): “o organismo humano é, a princípio, incapaz de
promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa
60
experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna” (p.
370). A via de descarga possibilitada pela ação específica do outro semelhante adquire uma
primeira intervenção deste semelhante capaz de proporcionar prazer, ou seja, responsável por
“rodeio” (Freud, 2008, p. 558), de trilhamento, Bahnung, através do qual será buscada a satisfação
Freud (2006a) utiliza a expressão “a Coisa” (p. 380), das Ding, para falar de um componente
inassimilável, irredutível da experiência mítica de satisfação, que localiza a perda como estrutural.
É através deste outro semelhante, o qual efetua a ação específica, que o processo se desdobra. O
semelhante foi ao mesmo tempo um objeto hostil, quando, por exemplo, emitiu um grito, e a “força
auxiliar” que realizou a ação específica garantindo o aporte de alguma satisfação. Em A ética da
psicanálise, após haver delimitado no texto de Freud (1895) a noção de das Ding, Lacan (2008a) a
situa como alteridade absoluta, “[...] fora-do-significado” (p. 71). O Nebenmensch articula o à-parte
compreendido por meio da atividade da memória, o outro promove uma impressão por sua estrutura
constante e permanece coeso “como uma coisa”, das Ding (Freud, 2006a, p. 384). Há na
experiência algo inassimilável, que não se inscreve, escapando à memória. O limite da memória, do
que é passível de inscrição, pode ser pensado por referência à das Ding como perda, falta estrutural
em torno da qual só resta à pulsão fazer o contorno (Lacan, 2008b). Nessa direção, o Outro
inesquecível, da primeira experiência mítica de satisfação, está desde sempre perdido. Inaugura-se
uma repetição comandada pelo princípio do prazer que visa o reencontro falho, com o objeto desde
sempre perdido, ou seja, que mobiliza o desejo enquanto rodeio que implica alguma circulação da
falta.
61
A psicanálise apresenta-se como um dispositivo aberto àqueles que sofrem caso desejem
tratar algo de seu sofrimento pela via da fala. Talking cure (Freud, 1996a, p. 65), a aposta em jogo é
de que se ofereça uma escuta àqueles que se dirigem ao Outro para falar do seu sofrimento e de suas
questões, sempre singulares. Nessa direção, uma pergunta que importa situar na chegada de um
“idoso” ao tratamento é: de que lugar ele será ouvido? Trata-se aí do lugar do especialista em
com a velhice, como evento inexorável da vida? Localizar-se a partir do discurso analítico 6 permite
interrogar aquilo que um “idoso” – ao tomar a palavra sob transferência – tem a dizer sobre o seu
processo de envelhecimento, bem como sobre as demais questões, sempre singulares, que vierem a
se apresentar.
à práxis psicanalítica, já que muitos “idosos” precisam trabalhar – trabalho de luto – a partir das
inúmeras e, por vezes, concomitantes perdas com que o processo de envelhecimento os confronta,
de forma inexorável. Em torno do trabalho de luto – muitas vezes necessário em um primeiro tempo
da análise de um idoso – cabe aqui indicar a articulação, bem como a necessária distinção entre as
perdas que se apresentam ao longo da vida, de forma contingente, e uma dimensão de perda
estrutural e estruturante, compatível com a estrutura de linguagem ou ainda, como Freud (2008) o
A equipe de saúde multiprofissional define o ambulatório NAI menos por seu espaço físico
e mais por suas ações, dentre outras: a intervenção da equipe NAI na enfermaria de Cirurgia
Vascular; o Acolhimento e os distintos Ambulatórios. Cada uma dessas ações abarca para a equipe
atuação.
62
A enfermaria onde a equipe NAI presta atendimentos é a Cirurgia Vascular/HUPE. Em
várias discussões tem sido pensada a importância de uma enfermaria específica para a internação de
“idosos”, assim como existe a enfermaria para crianças e para os adolescentes. Mas, para isso
interferem questões estruturais, políticas e gerenciais do hospital e, até o momento, essa vem sendo
simbólicas e nos laços sociais, mas no trabalho em uma enfermaria de cirurgia vascular temos,
lugar e tem que lidar com uma alteração no curso da sua vida. A perda (mesmo temporária) dos
laços sociais e o afastamento das atividades cotidianas se dão de modo inesperado e repentino e
funcionam como um corte na vida do sujeito, que de uma hora para outra se vê tendo que dar conta
Espaço privilegiado do discurso biomédico, o hospital visa atender com rapidez às urgências
médicas, deixando de lado o que é singular e subjetivo. Neste contexto, o que faz um psicólogo
de tantos procedimentos, por vezes invasivos, e uma rotina marcada pelo ritmo do hospital, levamos
em conta a urgência subjetiva, quando vem à tona aquilo que está angustiando o sujeito em
A oferta da presença e da escuta do analista é uma aposta de que seja possível dar algum
contorno ao que se mostra traumático para o paciente hospitalizado e pode reintroduzir a questão
sobre o sujeito e sobre a urgência subjetiva e funcionar como um convite de trabalho frente à
63
urgência. Pois “ao falar o sujeito pode se inserir no tempo de sua história e esperar o tempo do
Outro” (Moura, 2000, p. 10), saindo da impotência para a impossibilidade, abrindo assim, caminho
para o possível a ser feito. A paciente T., internada na enfermaria de cirurgia vascular, teve uma de
suas pernas amputada. Após alguns atendimentos e confrontada com o risco iminente de sua morte
refere que estar sendo escutada lançou-a para a realização de um balanço de parte de sua história.
Diz que nunca foi carinhosa com a filha e que gostaria de dizer a ela o quanto a amava. E assim o
fez pela primeira vez em sua vida. A escuta sustentou que algo de um dizer (Lacan, 2003a) no final
Percebemos que na situação de urgência há uma ruptura aguda para o sujeito. Este se depara
com algo do Real sem recobrimentos e se vê tendo que dar conta dos efeitos deste encontro. A
escuta pode, nessas situações de urgência, produzir algum contorno significante para o sujeito.
ciência e capitalismo. Ela lida com o Real do mesmo modo que a ciência, ou seja, como algo que
ainda não foi simbolizado pelo seu discurso. Diferentemente do discurso da psicanálise onde o Real
faz referência à castração e à falta, o discurso científico “foraclui” (Quinet, 1999b, p. 28) o limite e
O hospital geral é um espaço dinâmico com uma série de respostas prontas e rápidas ao
sofrimento humano, a partir de sentidos muito codificados que deixam de lado, na maioria das
vezes, a dimensão subjetiva e a singularidade. Como aponta Silvestre (1999): “[...] tudo se passa
como se a regra fosse não sofrer moralmente pelo sofrimento físico e pelas coerções da doença.” (p.
115).
Há, portanto, no hospital, uma legitimação do sofrimento orgânico, com o qual, de certo
modo, a instituição está acostumada a lidar. Tendo esta, muitas vezes, subsídios para responder a
este tipo de sofrimento por um procedimento ou medicação, que vise propiciar ao sujeito alívio ou
cura. Por outro lado, há um afastamento da dimensão do sofrimento que não pode ali ser respondida
e que equivoca o funcionamento institucional. Percebemos que grande parte dos encaminhamentos
64
e solicitações de atendimentos dirigidos à Psicologia está ligada a situações que angustiam a equipe
ou quando um paciente chora ou se entristece. Independentemente da notícia que ele tenha acabado
de receber ou da situação que esteja enfrentando, a tristeza e o choro dos pacientes raramente são
acolhidos no hospital. Neste contexto, cabe ao analista escutar o sujeito que sofre e, por vezes, o
acolhimento a essa equipe. O analista vem, por vezes, situar que há um limite das ações, quando
muitas vezes se confunde impossibilidade com impotência, pois a primeira inclui o real da
castração.
Algumas situações trazem questões complexas também para a equipe, como o caso de um
paciente diagnosticado com câncer, em estágio terminal. Ele estava lúcido e queria ir para casa. A
família temia não conseguir lidar com os cuidados necessários e presenciar o sofrimento e morte
dele, em casa. Diante dessa situação, a esposa sentiu-se pressionada pela equipe e não acolhida.
Nesse contexto, foi preciso situar para a equipe sua própria dificuldade em presenciar o sofrimento
do paciente e os limites de sua própria atuação, já que não havia mais proposta curativa de
O psicólogo no hospital vai lidar com a equipe, pacientes e familiares que se deparam com o
limite, o caráter transitório, efêmero da vida (Freud, 2009), a inevitabilidade da morte, enquanto
universal. Nossa aposta ao convidar o sujeito a falar a partir do encontro com a finitude é que este
possa, a partir da fala, minimamente enlaçar a questão da perda com a pergunta em torno do desejo,
1.2 O acolhimento
ato que se dirige ao sujeito dividido. O primeiro constitui-se como o espaço reservado para receber
externo. O ambulatório NAI é voltado para “idosos” com questões de saúde complexas e que
65
Já o segundo, o ato de acolhimento pelo psicólogo, torna-se importante a cada vez que ao
Freud (1913) e Lacan (1971) aqui nos orientam ao indicar a função das entrevistas preliminares. O
momento de chegada ao tratamento é crucial para que se situe a especificidade da escuta analítica
em meio às especialidades que se debruçam sobre o paciente com uma exigência de fornecer um
diagnóstico e seu respectivo tratamento. Enquanto o médico, assistente social, nutricionista, entre
considera que o discurso na associação livre tem uma determinação inconsciente e que o sentido só
situando desta maneira o analista no lugar do não-saber a priori. O paciente irá supor um saber ao
analista, e isto é fundamental para o estabelecimento da transferência, mas não é deste lugar que ele
irá conduzir o tratamento. Esta posição permite que se promova uma abertura no discurso do
paciente, que poderá produzir uma cadeia de significantes que lhe conduzirá a um saber parcial e
Apesar das diferenças na forma de acolher tem se mostrado importante e com efeitos a
do “idoso” ao psicanalista já pode indicar uma demanda para acompanhamento, com a Psicologia.
Por vezes, a equipe encaminha alguns casos em que a pergunta sobre a distinção entre Depressão e
luto é colocada, de saída, o que indica uma interessante suspensão no diagnóstico. Há, portanto, no
ambulatório NAI, uma abertura para que os pacientes cheguem a uma escuta. Como deve o
Lacan nos dá algumas indicações sobre essa questão quando declara que o lugar da
psicanálise na medicina é marginal, extraterritorial, na medida em que se furta ou está para além de
responder aos imperativos da ciência (Lacan, 2001). A posição que o psicanalista pode ocupar deve
66
levar em conta a demanda. Lacan pontua, a partir da linguística, a diferença marcada, desde Freud,
entre a demanda e o desejo. Haveria entre eles uma distância no nível inconsciente, sendo a
demanda, às vezes, diametralmente oposta ao desejo. Há “[...] um desejo porque existe algo de
inconsciente, isto é, algo de linguagem que escapa ao sujeito em sua estrutura e seus efeitos [...]”
(Lacan, 2001, p. 12). Segundo Lacan, haveria sempre no nível da linguagem algo que estaria para
além da consciência. A função do desejo se colocaria aí. Sendo assim, a demanda deve ser
É comum que a demanda para tratamento do “idoso” parta de um familiar que se encontre
angustiado e deve ser acolhido também. Algumas vezes, não há demanda do “idoso” naquele
preciso que fique claro que o “idoso” pode falar, mas isto não deve equivaler a uma exigência de
fala.
Por vezes ocorrem atravessamentos de questões institucionais nos atendimentos, tais como
uma demanda da equipe que é colocada para o paciente e pode gerar efeitos na transferência. É o
caso de uma senhora que foi encaminhada pelo médico para tratar do tabagismo, mas não sabia que
“era este o motivo”. Nos atendimentos com a residente, a paciente apresentava uma resistência em
falar livremente e questionava o porquê de ser atendida pela psicóloga. Uma dificuldade a mais em
se estabelecer a transferência houve quando o médico pediu que ela conversasse com a preceptora
da residente para entender melhor como era o processo de tratamento. Essa situação mostra a
próprio paciente no início do tratamento. É fundamental incluir o “idoso” nas decisões que lhe
dizem respeito, sempre que possível. Uma postura que o infantiliza, pressupondo uma fragilidade e
1.3 - Os ambulatórios
É importante distinguir as ações ambulatoriais que acontecem no NAI. Há uma linha de ação
voltada para queixas relacionadas à memória nos ambulatórios de Cognição I e II e outra voltada
67
para lidar com demandas variadas, constituindo um Ambulatório Geral. Apresentaremos algumas
questões suscitadas por cada uma dessas linhas de atuação recortadas pela equipe de saúde.
(CIPI). A direção do trabalho, contudo, não é a mesma, uma vez que no ambulatório da memória a
investigação com fins diagnósticos tem prevalência por se tratar de pacientes com queixas de
esquecimento, de “problemas de memória” e que, muitas vezes, não chegam a preencher os critérios
evolução desses casos, uma vez diagnosticados, como também orienta e acolhe os familiares
envolvidos no cuidado do “idoso”. Já no CIPI são atendidos casos considerados de maior gravidade,
geralmente aqueles que foram acompanhados durante algum tempo no Ambulatório da Memória.
As queixas referentes à memória são frequentes entre os “idosos”. A abordagem das mesmas
pelo discurso médico tende a aproximá-las ao declínio da função cognitiva da memória. O DSM-5
nosológica “transtorno neurocognitivo maior”, quadro conhecido pelo senso comum como
demência, cuja principal característica é a perda gradual das funções da memória. Esse nome
evidencia a forte tendência da medicina atual pela compreensão cognitiva dos transtornos. Dos seis
domínios cognitivos que podem estar comprometidos (atenção complexa, função executiva,
sinais de um “declínio substancial” para que se receba o diagnóstico. Outra novidade do DSM-5 é a
indicação de um “transtorno cognitivo leve”, em que está em jogo um nível “menos grave de
prejuízo cognitivo [...] que também pode ser foco de cuidado” (APA, 2014, p. 591). Dentro dessa
lógica, resta pouco espaço para a dúvida e o questionamento diante das queixas de memória, algo
multiprofissional. São realizadas reuniões para discussão dos casos clínicos. Nelas o psicólogo é
Também se constroem demandas para o trabalho a partir da fala, de modo que os encaminhamentos
É através da escuta, sustentada pelo desejo do analista, que um idoso poderá reabrir alguma
pergunta acerca de seus laços, sua relação ao Outro. Por essa via, a paciente L., recebida e acolhida
por uma escuta analítica, chega a formular a diferença introduzida em sua vida, a partir da fala
endereçada ao psicólogo. Muitas vezes comparava seus sintomas, ainda brandos, aos da irmã,
segundo o seu relato. A equipe médica se surpreendia com certa estagnação do curso da sua doença,
que costuma apresentar uma evolução menos lenta. O que terá havido? A questão que a equipe se
colocou permanece; não se trata de respondê-la. O que se pode apreender pela fala dessa paciente é
que o espaço de escuta foi muito importante. Em suas palavras: “Minha irmã está assim, fora do ar,
porque não teve isso que estou tendo, essas conversas”, disse ela várias vezes, ao longo de anos.
Poder falar deu-lhe meios, ou foi o próprio meio, para que fizesse alguma barreira à identificação
com o pai e com essa irmã, que “ficaram fora do ar e fazendo maluquices” em decorrência do
avançar da doença.
Cabe esclarecer que muitas vezes a demanda dirigida pela equipe ao psicólogo é de que
responda como especialista. Operando a partir do discurso da psicanálise, o psicólogo não responde
desse lugar, mas sim nas brechas discursivas e, com isso, favorece que as dúvidas diagnósticas
seminário sobre o desejo e sua interpretação, Lacan (2016) aponta o lugar vazio constitutivo do
desejo como aquilo que marca a posição ética que sustenta uma análise. O analista se oferece como
suporte para todas as demandas, mas não responde a nenhuma. Se a medicina se dirige à memória
ao não atribuir a priori o valor de déficit àquilo que escapa ao funcionamento esperado, viabiliza o
deslizamento de um determinado sintoma que poderá, em outro tempo, ser lido como resposta do
próprio sujeito.
transformação, em que o novo, o último modelo são rapidamente ultrapassados, exige-se que nossas
memórias sejam cada vez mais exercitadas para corresponder às exigências mercadológicas. Ortega
(2009) aponta que as descobertas das neurociências têm dado lugar a um mercado de best-sellers de
ginástica e autoajuda cerebral, que promete desenvolver determinadas regiões do cérebro e, assim,
compulsões diversas, até melhorar a performance sexual, atingir a felicidade” (p. 253). É veiculada,
no imaginário social, a ideia de que o cérebro responde por tudo que diz respeito ao sujeito (Ortega,
2009).
recentes”. Uma lembrança infantil traumática concernente a seu pai irrompeu e foi relatada com
insistência peculiar ao longo do tratamento. Se, para a medicina, é natural que um paciente em
processo de demência “repita-se na conversação” (APA, 2014, p. 594) e lembre-se mais de seu
passado remoto (Dalgalarrondo, 2008), para a psicanálise, todo o material trazido pelo paciente para
a transferência interessa. Daí o surgimento de uma lembrança em análise, da mesma forma que um
esquecimento, requer trabalho do sujeito para que se estabeleça o seu valor, a cada vez. Poderíamos
supor que a insistência, a re-petição do relato dessa lembrança traumática da paciente remeteria à
tentativa, ao esforço, sempre falho, de ligar no solo do prazer, um gozo que transborda o princípio
70
de prazer (Vidal, 1992)? Poderíamos situar aí a pergunta por algo da compulsão à repetição, tal
Freud não chegou a formalizar uma teoria geral sobre a memória. No entanto, ao longo de
seus estudos fez várias considerações a esse respeito, muitas vezes aproximando, até certo ponto,
acreditava que a cura sintomática devia-se à recordação do material esquecido, relativo ao trauma.
Mais tarde, reformula a questão quando constata que as reminiscências diziam respeito à realidade
sujeitas às leis do inconsciente: condensação e deslocamento. Na Carta 52, Freud (2006b) formula a
tese de que a memória não se faz presente de uma única vez, mas que ela se traduz e se desdobra em
vários tempos. Ele acentua que as transcrições sucessivas representam a realização psíquica de
épocas da vida. No intervalo dessas épocas, Freud sugere que haja uma tradução do material
da memória, há outro ponto: trata-se do uso da palavra Niederschrift. Para Garcia-Roza (1991), essa
noção de inscrição traz uma nova dimensão à concepção freudiana da memória e do próprio
aparelho psíquico. Em Uma nota sobre o bloco mágico, Freud (2006e) explica o funcionamento da
memória através da metáfora do bloco mágico. A memória consistiria na inscrição permanente que
se faz na camada mais profunda do brinquedo, como correlata àquilo que se inscreve no
inconsciente, de modo indelével. No entanto, por ação do recalque, esse material não fica disponível
à rememoração. Lacan (1964-65) situa o esquecimento freudiano como uma forma de memória e a
qualifica de “[...] a mais precisa” (lição de 06 de janeiro de 1965, seminário Problemas cruciais
71
para a psicanálise, inédito). Sob as leis do inconsciente, mesclas de vivências, esquecimentos,
1996g). Assim, a leitura de um esquecimento relança a pergunta pelo recalcado, mas não se limita a
ele já que nem tudo no inconsciente é recalcado (Freud, 1996i). Há um limite próprio à estrutura,
mais acerca de um esquecimento experimentado por ele, dando-lhe relevância ao se interrogar sobre
sua causa. O nome Signorelli, artista que pintara os afrescos de Orvieto, lhe escapou e, em seu
lugar, dois outros foram evocados, Botticelli e Boltraffio. Por associação, Freud chegou aos nomes
Bósnia, Herzegovina e Trafoi, que lhe remeteram a histórias cuja temática eram morte e
sexualidade, esta última tendo sido suprimida por ele. O Signor, de Signorelli, por traduzir o Herr,
elevado a representante da morte foi, segundo Freud (1996b), o meio pelo qual a história que ele
havia suprimido arrastara consigo para o recalcamento o nome que estava procurando.
Lacan (1999) sublinhou que o esquecimento do nome Signorelli não é “um esquecimento
absoluto, um vazio, uma hiância” (p. 41), já que se apresentaram substitutos; os nomes Botticelli e
Boltraffio, além da revivescência da pintura e do rosto do pintor. Se há relação, entre os três nomes
próprios, trata-se de “relações indiretas, ligadas unicamente a fenômenos do significante” (p. 42). O
lapso de Freud é um dos elementos que faz com que Lacan ratifique o modo de funcionamento de
1996c, p. 39) o seu frequente esquecimento de nomes, Freud confere sua causa a pensamentos
inconscientes a serem buscados, a cada vez. O mesmo se aplica ao que Freud (1996c) registra como
atos falhos e lapsos da fala, em seu trabalho Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Não se trata
de ignorar que haja processos fisiológicos em curso durante um esquecimento ou qualquer outro
72
desses fenômenos; apenas não é o caso de considerá-los como sua causa, e sim “fatores
sociais, situam-se como pontos de tensão que podem desestabilizar a imagem especular, uma vez
que fazem vacilar a pergunta do sujeito acerca de seu lugar no desejo do Outro. Alguns “idosos”
sentem-se obsoletos e inadequados: “um escombro”, como se define o poeta Manuel de Barros
(Cezar, 2009). Em Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, Freud (2006c) assegura que em
nosso inconsciente cada um está convencido de sua imortalidade, isso porque não possuímos
se esvanece. Segundo Castilho (2011), “é o que ocorre frente a uma perda valiosa – mas também
em acontecimentos com valor de trauma que nos confrontem com a própria finitude” (p. 47).
memória, como certos esquecimentos e episódios de estranheza, colocam em cena um mais além,
marcado pela angústia e pelo fenômeno do estranho. Algo dessa ordem comparece no relato de um
“idoso” em sua análise. Ele conta que, recorrentemente, perde-se em locais conhecidos. Nesses
episódios, sempre se coloca em situação de perigo. A repetição produz mais angústia do que o
dessa repetição. Em O estranho, Freud (2006d) relata uma repetição ocorrida consigo próprio e
chama a atenção para o fator da repetição da mesma coisa que evoca a estranheza e uma sensação
Outro relato encontra-se no texto O estranho (Freud, 2006d). Freud o utiliza como exemplo
para tratar da ocorrência do duplo relacionado ao não reconhecimento da imagem própria, que pode
imortalidade. Contudo, quando esta fase é superada, a ocorrência do duplo tem um valor inverso,
submetido à ação do tempo. Nessa linha, a velhice como um sinal do avançar da idade, podendo
confrontar o sujeito com o limite da existência, pode propiciar experiências estranhas semelhantes
àquelas relatadas por Freud, onde o duplo faz às vezes de anunciador da morte, da finitude e a
O lugar obsoleto, muitas vezes atribuído aos “idosos”, bem como as recorrentes e, por vezes,
simultâneas perdas significativas fazem vacilar a pergunta acerca do lugar do sujeito no desejo do
Outro, fazendo aparecer sua posição como resto, “um cacareco”, como afirma uma “idosa” em
análise. Essa posição mobiliza angústia, e muitas vezes, nesses momentos marcados por um
sentimento de luto, aparecem relatos de vivências estranhas. Tais vivências podem ser recolhidas
por uma escuta que se dirija ao sujeito dividido e sustente um trabalho pela fala que permita alguma
leitura, por vezes alguma escrita. Foi o caso de S. que chegou ao ambulatório NAI com queixa de
esquecimento e após avaliações recebeu o diagnóstico de Alzheimer pela equipe de saúde. Passado
um tempo, foi encaminhada à psicologia. Situando sua chegada ao ambulatório, diz: “eu procurei
ajuda no ambulatório quando queimei a panela de feijão. Foi quando eu percebi que não estava
bem. Eu estava esquecendo tudo...”. Ao longo dos atendimentos, sob transferência, S. falou de
várias e difíceis perdas que teve em sua vida e da escassez dos laços sociais. “Quando eu esqueci a
panela de feijão no fogo eu estava tentando não lembrar todas essas perdas”. Evidencia-se aqui o
esforço deste sujeito de proceder alguma leitura, a partir da vivência que o levou a buscar ajuda.
Deste modo, e de acordo com o que foi escrito anteriormente percebemos que as questões
esquecimento que diz respeito ao sujeito. S. ao falar do que foi o percurso dos atendimentos, diz:
74
“Antes de vir para cá eu tinha me abandonado. Ficava só pensando em tudo isso que me aconteceu.
Agora não esqueço mais as coisas que tenho que fazer. Acho que já estou quase boa, pois pude falar
disso que não esquecia... dessas perdas. Devo estar só com um pouquinho de Alzheimer”. Com
humor, S. localiza que algo de seus esquecimentos estava ligado ao sentimento de luto, por suas
publicada com o título Uma perturbação da lembrança na Acrópole, Freud (2006f) faz menção a
Este episódio ocorreu em 1904 durante uma viagem na qual era acompanhado por seu irmão mais
tudo isso como aprendemos na escola?” (p. 13). Ao longo do texto busca situar algo em torno do
observados em duas formas diferentes: ou bem um pedaço da realidade nos parece estranho, ou bem
um pedaço do próprio eu” (p. 19). Freud utiliza a expressão “perturbação da lembrança” para
designar o efeito da vivência estranha, já que nela acontece algo equivalente a uma perda
momentânea da realidade. Esse episódio foi acompanhado por muita angústia e produziu um efeito
significativo em Freud, tanto que o relato do mesmo acontece muitos anos depois, deixando
entrever seu valor enigmático e a forma como uma vivência desta ordem pode propiciar trabalho do
sujeito a partir da divisão subjetiva, inclusive na velhice, já que Freud empreende sua escrita aos
oitenta anos.
Dando seguimento às distinções entre as ações ambulatoriais lançaremos mão do que foi
abordado até aqui acerca da perda como estrutural e não apenas contingente e acerca das queixas de
“problemas de memória”. Tais queixas abarcam lembranças, esquecimentos, bem como vivências
75
complexas e diversas que relançam a pergunta pelo funcionamento da estrutura de linguagem e não
apenas pelo envelhecimento cerebral. A partir da práxis com “idosos” procuramos marcar a
ocasiões, com um primeiro tempo do trabalho de luto, frente a uma perda significativa, tão
Na atualidade vivenciamos uma generalização do termo Depressão que faz com que ela
ganhe status de uma “epidemia com entidade própria e independente da subjetividade” (Quinet,
1999a, p. 87). Por outro lado, embora haja uma generalização da Depressão pelo discurso científico,
exigência da saúde, bem-estar e bom humor, característicos do discurso capitalista. A fala de uma
enfermeira do setor de cirurgia cardíaca: “acho que a senhora x está deprimida, pois anda chorando
muito”, ilustra que o rótulo de Depressão pode se dar meramente pelo humor ou comportamento do
paciente, sem haver uma indagação sobre a singularidade em questão, indicando a rapidez com que
Assim, o discurso pregnante nos dias de hoje, marcadamente capitalista, atrelado aos
progressos e descobertas da ciência tecnológica faz com que a depressão seja tratada como um
déficit, como um defeito em relação à saúde – o que requer um tratamento à base de medicamentos
– ou como uma falha com relação ao imperativo de otimismo e felicidade que a nossa sociedade
exalta.
como uma entidade própria não se sustenta (Soler, 1999). Diferentemente do discurso médico que
pensa o sintoma como um sinal ou signo que representa algo para alguém, a psicanálise aponta que
o sintoma implica uma dimensão subjetiva, pois é o resultado de um conflito psíquico que indica a
divisão do sujeito. Sendo assim, a Depressão, a priori, não seria um sintoma analisável. Para que
76
um estado depressivo se constitua como um sintoma analítico, deve haver alguma implicação do
Em Inibição, sintoma e angústia, Freud (1996j) fala sobre “estados de depressão” (p. 94) e
descreve um quadro de inibição generalizada, uma “fadiga paralisante” que acontece quando o eu
trabalho de luto (Freud, 1996j, p. 94). Torna-se importante ressaltar que, contrariamente ao discurso
médico atual, que associa a dimensão de inibição presente nos estados depressivos a um suposto
déficit do eu, ignorando seus aspectos subjetivos, Freud via na inibição um efeito da divisão do
A clínica com “idosos” é permeada pelas inúmeras e concomitantes perdas que atingem o
sujeito e que suscitam um “sentimento de luto” (Lacan, 2005, p. 160). Vale salientar, que frente a
esse sentimento torna-se necessário um trabalho de elaboração a partir da perda. Freud (1996f)
indica que uma perda importante convoca o sujeito a um árduo trabalho que requer tempo e
esforços para que seja possível ressituar o campo narcísico e o rodeio próprio ao desejo (Freud,
2008). Há, portanto uma radicalidade do sofrimento na clínica com os “idosos”, onde se escancaram
Freud (1996f), em Luto e melancolia, afirma que quando o sujeito é confrontado com uma
perda significativa pode haver uma abertura ao trabalho psíquico de elaboração do luto, processo
que é executado pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e energia, através do qual “cada
desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas” (p. 251). Trata-se de um processo
extremamente doloroso que exige uma “restrição temporária do eu, devido à devoção do sujeito ao
Em oposição ao trabalho de luto que seria, segundo Freud, uma reação possível, dita
“normal”, diante de uma perda cara ao sujeito, Freud aponta um nexo entre um “luto patológico”
77
(Freud, 1996f, p. 256) e os estados depressivos. Segundo Freud, o “luto patológico” pode ocorrer
quando o conflito devido à ambivalência nas relações afetivas, que é atualizado frente a uma perda
objetal, assume o primeiro plano ocasionando uma série de autoacusações que fariam obstáculo ao
trabalho de luto. Essa passagem freudiana nos permite localizar os estados depressivos ao lado de
um luto inoperante, a uma ausência de trabalho de luto. A depressão, de certa maneira, seria o
contrário do trabalho de luto, pois se trata, nos estados depressivos, “de um luto congelado,
eternizado, pela falta de trabalho de elaboração” (Jimenez, 1997, p. 201). Como fazer falar alguém
que se apresenta como um deprimido? Como causar uma movimentação nesses momentos em que o
sujeito está tão tomado por seu sofrimento, a ponto de desinteressar-se pelas coisas do mundo que o
Nos estados depressivos o sujeito muitas vezes está em uma indiferença em relação aos seus
afetos, quadro que aponta para uma inibição generalizada, um congelamento das vontades e ações.
Tais estados, portanto, esbarram em uma dimensão ética, havendo um recuo do sujeito perante as
questões referentes ao campo do desejo. A partir de Spinoza, Lacan (2003b) situa o afeto triste no
terreno da ética e qualifica-o como um pecado, uma “covardia moral” (p. 524), indicando haver
Assim, nos estados depressivos, ao contrário do luto, o sujeito esquiva-se da fala e não
consegue se referenciar no trabalho, a partir da perda, o que o levaria a reconhecer-se como sujeito
faltoso e o remeteria à castração (Jimenez, 1997). A aposta do trabalho analítico, que tem como lei
ética o bem dizer, a partir da fala, é de que o sujeito possa fazer a passagem do estado depressivo ao
luto como trabalho, ou seja, possa realizar o trabalho de elaboração, a partir da perda. Esse trabalho,
realizado por meio de significantes, para Lacan (1986) desdobra-se, a cada vez – frente à
Freud (1996j) volta a abordar a questão do luto trabalhando a economia da dor e relançando
a pergunta: porque o luto dói? Para Freud não é casual encontrarmos na língua o mesmo
78
significante – dor – tanto para a dor física como para a dor psíquica, já que ambas criam “as
mesmas condições econômicas” (p. 160). Uma senhora que perdera, há três anos, uma filha relata
que ainda não “teve coragem” de ir à casa do genro pegar as coisas da mesma. Fala que se olhar
para a foto dela chora, “se pensar nisso é uma dor que acho que não vou aguentar, vou ficar louca”.
A paciente, que se encontra em um estado depressivo, vem apresentando atualmente umas dores
fortes no peito, mas em seus exames não apareceu nenhuma alteração. Em seu próprio discurso,
alterna momentos em que fala da dor física e da dor da perda e emenda dizendo: “é uma dor que
nunca acaba, acho que vou morrer com essa dor”. Outra questão que essa paciente apresentou à
analista foi a sua dificuldade de aceitar que seu ex-genro já arrumou uma nova companheira, tendo
se casado novamente. Indignada, ela pergunta: “como é que ele consegue botar outra mulher nas
coisas dela, usando tudo que era dela?” uma pergunta que talvez possa assim ressoar: como o ex-
A indagação da paciente nos remete às dificuldades, aos impasses e limites aos quais o
trabalho de luto encontra-se submetido, talvez de forma radical na velhice. Todo sujeito é único, e a
magnitude das perdas só pode ser dimensionada a cada vez. Nem sempre ao final do luto o sujeito
Freud nos aponta essa dimensão ao dar indícios da dor que sofrera com a perda de um neto
muito querido que morrera aos quatro anos e meio na mesma época em que ele próprio sofria com
as agruras de seu câncer. Teria confidenciado a Ernest Jones, referindo-se à morte do neto, que
“sentiu o golpe de maneira quase insuportável, muito mais do que o seu próprio câncer” (Jones,
1979, p. 652). Freud conta que esta perda o havia afetado de uma maneira diferente de todas as
outras, nas palavras de Jones: “as outras causaram apenas sofrimento, mas esta havia feito sucumbir
alguma coisa dentro dele e para sempre” (Jones, 1979, p. 652). Anos mais tarde, teria ainda dito a
Marie Bonaparte que “nunca mais tivera a capacidade de apegar-se a quem quer que fosse e que
79
meramente retinha as suas antigas vinculações” (Jones, 1979, p. 653). Poderíamos supor que por
limite, já que o isolamento predomina sobre a criação de novos laços e a dor prevalece. Neste
contexto, lutos difíceis podem se interpor advindo maiores perturbações na realização do trabalho
de luto (Castilho & Bastos, 2013). Além disso, essa clínica escancara o caráter inexorável e
doloroso da perda. Como lidar com a perda de um filho, de um companheiro de toda vida? Haveria
F. foi encaminhada para a psicologia por estar muito triste devido à morte recente de seu
marido com quem era casada há mais de cinquenta anos. Refere estar muito ansiosa, triste e sem
vontade de “fazer nada”. Escuta-se uma perda de interesse pelas atividades e pelo mundo externo,
que podem ser explicados pelo trabalho de luto no qual o Eu está absorvido. Este trabalho não é
simples, pois “é notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem
mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena” (Freud, 1996f, p. 250). F. associa uma
queda por ela sofrida a duas outras perdas significativas que teve: a do filho (há muitos anos atrás) e
a da irmã (há um ano). A fala de F. nos aponta que a perda do marido atualizou as perdas do filho e
da irmã, ou seja, uma perda importante atualizou outras perdas. Relançando para o sujeito algo da
Com o percurso dos atendimentos F. formula que com a morte do marido, havia perdido
também um lugar, e diz: “eu era como um escudo para ele”. Castilho e Bastos (2015) apontam que
demarcar sua função com relação ao campo do Outro” (p. 5). Em uma frase, equivalente àquela
formulada acima por essa senhora enlutada, Lacan (2005) aborda a questão afirmando que “[...] só
nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta” (p. 156).
80
Cabe ao analista acolher e sustentar o singular percurso, a ser feito no trabalho de luto,
acompanhando, a cada vez, o que destas perdas é reordenável a partir da entrada da escuta, o que é
permeável num trabalho pela fala. F. marca a importância de estar falando e sendo escutada:
“Quando eu cheguei aqui era como se eu estivesse num poço bem fundo, cheio de água sem saber
nadar. Agora não, eu estou me sentindo bem melhor e podendo me abrir para fazer coisas que eu
nem imaginava que iria fazer na vida”. É preciso, portanto, salientar que cada luto, quando
perdemos alguém que amamos, comporta algo de insubstituível, mesmo que, ao final do trabalho de
luto, possa tornar-se possível alguma substituição ou mesmo, nesse ponto onde a substituição
Considerações finais
que a forte prevalência da técnica, em nossa época, contribui para diluir responsabilidades, ao
área de psicologia articulada à equipe de saúde ganha expressão na práxis dos residentes de
psicologia que vêm sustentando, a partir da psicanálise, a pergunta pelo sujeito nos diferentes
estrutural, de perdas contingentes que ocorrem ao longo da vida, o que aponta ao trabalho de luto,
como necessário.
queixas de dores, bem como de quedas recorrentes. Há ainda queixas de “problemas de memória”
que abarcam lembranças, esquecimentos, vivências complexas e diversas que relançam a pergunta
fundamental distinção entre Depressão e estados depressivos compatíveis, por vezes, com um
81
primeiro tempo do trabalho de luto – frente à perda de alguém amado – tão recorrente no início da
análise de um “idoso”.
Não são raras as ocasiões em que os pedidos de parecer dirigidos à área de psicologia
expressão “luto não elaborado” no lugar do diagnóstico de Depressão. Esse deslocamento viabiliza
certa escansão entre a queixa de tristeza e a entrada de um protocolo medicamentoso avalizado pelo
DSM-5, decorridas apenas duas semanas de uma perda significativa. Tal escansão mostra-se
relevante na práxis com “idosos”, pois introduz, com frequência, o intervalo de tempo necessário
Notas
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932001000200002&lng=pt&tlng=pt
2. Para a realização do presente artigo, em coautoria, foram convidadas algumas ex-residentes que
se interessaram em abordar pontos de sua própria trajetória, como residentes do segundo ano da
Residência, no NAI.
entre o idoso como categoria construída (Groisman, 1999) e o sujeito dividido da práxis
psicanalítica.
5. Ao longo do texto utilizaremos o termo Depressão, no singular e com maiúscula para situar a
entidade nosológica circunscrita pelo discurso científico. Em outra direção e para situar questões
próprias à psicanálise, utilizaremos estados depressivos (Freud, 1926), com letras minúsculas e no
plural, para assinalar a inconsistência da doença e a referência, a cada vez, à singularidade. Vale
lembrar que para Freud a pergunta acerca da distinção entre luto e melancolia remete à
82
singularidade de um estado depressivo, que pode apresentar-se tanto na neurose como na psicose.
6. No NAI a práxis da área de psicologia orienta-se por uma pergunta acerca da incidência e
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87
A passagem pelo NESA e os ritos de passagem
Sonia Alberti (Relatora). Selma Correia da Silva, Adriana Dias de Assumpção Bastos, Aline
Martins, Aline Souza, Bruna Americano, Camila Cardozo Melo Sales, Claudia Politano, Daniela
Barros da Silveira, Heloene Ferreira da Silva e Luiza de Sá Quirino Câmara
Resumo: Com a colaboração de alguns ex-residentes que passaram pelo NESA, assim como da
texto com muitos depoimentos. Dentre eles, alguns relatos de casos tanto do ambulatório quanto da
questões, frequentemente contemporâneas, exigindo rigorosa ancoragem teórica e ética, para o que
Abstract: With the collaboration of a number of former residents who have passed through the
NESA, as well as the current NESA Coordinator of the Psychoanalysis and Mental Health Sector,
the Rapporteur has constructed a text with many testimonies. Among them, there are some reports
of cases from both the outpatient clinic and the infirmary, and since it is a clinic with adolescents,
Resumen: Con la colaboración de algunos ex-residentes que pasaron por el NESA, así como de la
actual Coordinadora del Sector de Psicoanálisis y Salud Mental del NESA, la Relatora construyó un
texto con muchos testimonios. Entre ellos, algunos relatos de casos tanto del ambulatorio quanto de
cuestiones, frecuentemente contemporáneas, exigiendo riguroso anclaje teórico y ético, para lo que
Residência, rapidamente, quase como em um processo de associação livre, uma série de fatos e
momentos marcantes passam pela minha cabeça quando relembro aquele período de minha vida. De
início posso destacar uma frase de Sonia Alberti em nosso primeiro encontro de supervisão, assim
inúmeros pacientes que estavam na fila de espera aguardando para serem chamados, lembro de suas
palavras: “vocês podem atender no banquinho que tem lá perto do estacionamento!” A nossa
setting terapêutico, como fica?!”, “agora que somos formadas, gostaríamos de ter uma sala para
atender os pacientes!” Demorou algum tempo, mas em seguida ficou clara a mensagem que ela
estava querendo nos transmitir: o que estava em jogo e o que realmente era determinante para o
início de nosso trabalho clínico não era propriamente o espaço físico, mas o nosso desejo e a nossa
escuta. Driblando alguns imprevistos e dificuldades reais em relação ao espaço físico, aos poucos, o
onde oferecemos nossa escuta, onde convocamos o sujeito a falar, ali mesmo é onde criamos a
multidisciplinar pode fazer. Frequentando as reuniões dos médicos, trocando informações com a
constituindo e, conforme havíamos debatido, nossa função era atender somente as demandas que
fossem de tratamento o que, por si só implicava também transformar toda e qualquer demanda em
demanda de tratamento.
Lembro de uma paciente que internava e reinternava na Enfermaria do NESA em função de uma
ferida que não cicatrizava em seu braço. Por se tratar de uma dermatite factícia, ou seja, uma ferida
89
provocada pela própria pessoa, o trabalho do Setor de Psicanálise e Saúde Mental do NESA foi
nosso trabalho e de uma possível interlocução entre medicina e psicanálise. “A ferida em aberto: De
que corpo se trata?” foi tema de um dos trabalhos científicos apresentados no Congresso anual do
através de uma breve intervenção na qual, após o recebimento de um diagnóstico muito grave, um
jovem paciente se dirigiu para as proximidades da varanda aberta da Enfermaria do NESA, que se
localiza no 3o andar do hospital, com o risco de cometer um ato contra a sua própria vida. Em
questão de segundos, a equipe de enfermagem, que estava totalmente mobilizada com o caso, se
preocupou e prontamente solicitou a minha presença para, acolhendo a dor psíquica do paciente,
Outra intervenção ilustra os efeitos que podem advir da nossa escuta, muitas vezes simples e
pontual. Um médico residente, dando orientações para um paciente que estava restrito ao leito na
Enfermaria do NESA, disse: “você precisa mudar de posição na cama porque senão você ficará
cheio de escaras!!!” Eu estava junto ao paciente nesse momento e pensei: “será que esse
adolescente sabe o que são escaras?!!” Me dirigi a ele e lhe fiz essa pergunta, incluindo-o
subjetivamente na conversa e favorecendo um diálogo entre ele e seu médico. Esse cuidado com o
apenas dias, favorecendo algum tipo de elaboração psíquica por parte do paciente, seu familiar ou
mesmo da equipe multidisciplinar, não era tarefa fácil, porém grandiosa e frutífera (depoimento de
uma ex-residente).
Institucional
90
Em 2008 publicamos uma pequena história desse ambicioso projeto original que é hoje o
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) responsável pela atenção integral à saúde do
adolescente, nos três níveis de atenção: primário, secundário e terciário. Desde o início “a idéia
incluía a presença da Psicologia e é interessante notar que foram necessários anos de trabalho para
que a aposta num intercâmbio entre Medicina e Psicologia apresentasse seus primeiros frutos”
(Alberti, 2008, p. 143). Em sua trajetória de quarenta e quatro anos, o NESA tornou-se um centro de
de trabalho, função que permite maior aproximação dos discursos em termos de poder, fato gerador
de condutas integradas. Remetemos o leitor àquele artigo para uma melhor compreensão da relação
da psicologia com o NESA ao longo de seus muitos anos, não sem chamar a atenção para o fato,
nele observado, da coincidência da data da efetivação do NESA como uma unidade autônoma – ou
de adolescentes o integra com a preceptoria da professora Sonia Alberti, uma das fundadoras do
multidisciplinar, no Ambulatório do NESA se depara com as mais diferentes questões que uma
clínica com adolescentes oferece à formação. Desde o início, a orientação do Setor de Psicanálise e
Saúde Mental do NESA – originalmente coordenado pela professora Sonia Alberti e atualmente
formação do sujeito, sua necessária definição como aquele que fala, sua imprescindível interseção
com o Outro, a articulação com os quatro discursos, o interesse pelos conceitos fundamentais da
91
psicanálise e todo aprofundamento da teoria da clínica estrutural que inclui o diagnóstico a partir da
transferência e, last but not least, as diferentes manifestações do sintoma como presentificação
subjetiva e da angústia como afeto diante do impossível. Para além de toda essa fundamentação
teórica, o trabalho da Residência no NESA está referido à interseção do campo da psicanálise com o
da saúde mental que baliza as possíveis respostas que nos cabe dar à miríade de demandas que nos
são dirigidas no hospital. Buscamos um diálogo com as outras especialidades pois, não raro, as
histórias clínicas promovem comoção na equipe. Além disso, é fundamental assegurar o sigilo
necessário para a continuidade do caso e fazer valer o discurso da psicanálise numa equipe
articulação significante, o sujeito emerge como efeito para dizer sobre seu “bem maior”: o seu
desejo. Difícil tarefa para o analista – sustentar, na clínica do cuidar, a ética da psicanálise, tão
diferenciada das demais. Evidenciamos que os profissionais que no hospital fazem falar já foram
mesmo é isento totalmente dela, a ética da psicanálise, por sua vez, enquanto ética do desejo, dela
se distingue (Silva, 2001). É essa ética que é apresentada a todos os residentes em psicologia que
época em que se colhiam os primeiros frutos dessa prática que então completava uma ou no
máximo duas décadas em alguns poucos serviços. O histórico que a autora constrói, as entrevistas
que realiza para sua pesquisa – inclusive conosco, como se pode verificar na nota de pé de página
em que cita as unidades enfocadas (Figueiredo, 1997/2000, p. 38) –, retomam as dúvidas que então
existiam por parte de vários psicanalistas formados sobre a possibilidade de se fazer psicanálise nos
hospitais e nas instituições de saúde de forma geral, ao mesmo tempo em que respondem que sim,
há psicanálise nas instituições, não sem confusões e imperfeições. Por exemplo a observação da
92
página 113, na qual se lê que, na contramão da indignação de uma entrevistada que julgava
impossível um atendimento com divã em ambulatório, uma outra “conta como em seu serviço, um
colocar um divã em sua sala onde atende há cerca de dez anos” (idem, p. 113). O Ambulatório do
NESA situa-se no Pavilhão Floriano Stoffel do HUPE, onde os residentes atendem, de preferência,
frequentemente em “situações-limite” (p. 94), aponta que a tarefa do analista consiste, mais do que
cotidiana, tomando uma outra posição em sua história, responsabilizando-se pela sua posição de
sujeito desejante, mesmo se isso é sempre de alguma forma uma tarefa impossível – como já
observava Freud (1937/1980, p. 282). Mas há mais um impossível na clínica com adolescentes pois
suas travessias – como Freud as definia (1905/2005a) – implicam o encontro com o impossível da
A enorme gama de questões que a clínica traz para o exercício da psicanálise tem, sem
dúvida, o ambulatório como fonte inesgotável. Mais especialmente, o ambulatório voltado para a
clínica com adolescentes que, por sua própria posição na sociedade e na história, introduzem e
presentificam conflitos os mais atuais. Dentre eles as questões que atualmente surgem no campo da
sexualidade, porque cabe justamente ao adolescente situar-se nesse campo cada vez mais complexo
e fluido, para não retormarmos o conceito de líquido, que o sociólogo polonês radicado na
Inglaterra Zygmunt Bauman utilizou para tentar especificar os problemas que a sociedade de
produtores a consumidores de uma cultura de grupos, de guetos (Bauman, 2013). Foi nesse contexto
93
Destacamos, neste Núcleo, a atenção terciária, a Enfermaria Aloysio Amâncio da Silva
(EAAS) como espaço importante para o treinamento e formação de alunos tanto de graduação
quanto de pós-graduação. Ela dispõe de dezesseis leitos, oito para o sexo feminino e oito para o
masculino. É pioneira na internação de adolescentes, na faixa etária entre doze e dezoito anos de
idade, com quadros orgânicos agudos e/ou crônicos e também cirúrgicos, que necessitam de
investigação diagnóstica e tratamento especializado quando, muitas vezes, também sustenta uma
interlocução com outros serviços do HUPE que ali tratam os adolescentes cujos quadros clínicos
Recebe cerca de quinhentos e cinquenta internações por ano, com tempo médio de oito dias
de permanência e, conforme o banco de dados criado em 1990, as causas mais frequentes para
sendo o Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) o quadro de maior prevalência, em decorrência de suas
Rede de Atenção à Saúde da Pessoa com Doenças Crônicas, no Sistema Único de Saúde/SUS. Nos
dias 18 e 19 de setembro do mesmo ano, o NESA foi convidado, por sua larga experiência e
Brasília, que particularizava a formação no nível terciário do NESA com o objetivo de treinar
profissionais de todo o país a exercer suas atividades nesta linha de cuidado prioritário. O Setor de
Psicanálise e Saúde Mental do NESA estava ali, representado pela psicóloga Selma Correia da
Silva.
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Doença Crônica, linha de cuidado que exige ações voltadas para a prevenção de agravos,
diagnósticos, tratamento, reabilitação e redução de danos, entre outros, em articulação com o SUS,
fato que permite ao residente em psicologia ter uma visão ampliada da universidade com a rede
estão inseridos. Os Residentes, que têm a sua prática supervisionada pela teoria psicanalítica,
diálogo constante. Algumas atividades são da particularidade do trabalho do psicólogo e outras são
atuação no nível terciário de atenção. Daí a inclusão do aluno em todas as atividades, a saber:
fazendo parte da própria rotina diária da Enfermaria. O residente é capacitado a atender no leito,
impossibilidade como consequência, por exemplo, de um estado álgico agudo, quando as palavras
poderão faltar. Dá também suporte psicológico ao paciente que é transferido para a Unidade de
residente responsável pelo leito que, constantemente, é convocado pela equipe multidisciplinar a
Adolescente garante este direito fundamental de o menor de idade ter acompanhante, desde 1990.
3. Supervisão clínica. Realizada duas vezes por semana e, quando necessário, logo após algum
pronto atendimento. O residente tem ciência, de imediato, de como atuar com o paciente, o
vulnerabilidade que os acompanha. É esclarecido sobre a internação que não é de saúde mental e
sim de clínica médica e/ou cirúrgica. Nisso consiste a particularidade do treinamento do psicólogo
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nesta Enfermaria: escutar “o indizível” do sofrimento como consequência da doença orgânica e
intervir nesta clínica com adolescentes, permitindo a eles expressar sintomas psicológicos durante a
hospitalização.
4. Estudo de textos sobre psicanálise e medicina. Consiste na apresentação semanal, por um dos
Podemos citar como exemplo o texto do psicanalista belga Pierre Malengreau (1995) “Para uma
clínica dos cuidados paliativos”, em que o autor discute a diferença da ética humanista de algumas
profissões, diante da ética da psicanálise aberta ao humano. O estudo dirigido contribui para a
5. Visita médica. Atividade diária coordenada por um médico staff, permitindo ao residente de
psicologia maior interlocução com o discurso da medicina, seja no aprendizado sobre as doenças, o
possibilidades de alta etc. Pode ser convocado a falar, dando o seu parecer sobre casos que
como colaboradores, pois é uma reunião coordenada pelo Serviço Social da Enfermaria, parceiro
fundamental dos psicólogos da atenção terciária. O espaço permite que os responsáveis pelos
residentes revezam sua participação, contribuindo nas demandas que poderão advir para a
psicologia.
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profissionais envolvidos com o atendimento do adolescente. Dentre as visitas institucionais, citamos
conhecer, quando necessário, as instituições das quais o adolescente participa ou tem contato,
do NESA, uma delas merece atenção especial, permitindo a transmissão da psicanálise à equipe
multidisciplinar.
Legitimada pelo NESA desde os seus primórdios, esta reunião tem seu espaço na Enfermaria
semanalmente, por um diferente representante de cada Setor. Segundo Messias (1999) – Professor
José Augusto Messias, atual Diretor do NESA e um de seus médicos fundadores –, essa reunião
tomou como modelo os grupos Balint, cuja formação se deu, à época, na Quarta Clínica Médica da
participação de médicos (staffs, residentes e internos) e duas psicólogas. A expansão desses grupos
deveu-se à difusão das ideias sobre multidisciplinaridade, difundidas nos anos 1970 e assimiladas
ganhando corpo ao longo dos anos, até constituir-se em atividade fundamental para o bom
funcionamento da Enfermaria; sua origem foi anterior à própria fundação do Serviço, possibilitando
Desde 1991, a psicanálise, através de seus representantes, tem sua participação efetiva na
reunião, muito embora enfrente algumas resistências na transmissão de seu discurso. Essas
resistências têm longa data: o próprio Freud já teve de lidar com elas em seu tempo e no decorrer da
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necessidade ética de a psicanálise ser um campo leigo em relação à medicina. Ao longo dos anos,
Uma ex-residente em Psicologia relata que a primeira vez em que entrou na Enfermaria do
NESA, ouviu gritos que a assustaram. Vinham de um menino de doze anos que, de tanta dor que
sentia nas pernas, precisava mantê-las, praticamente o dia todo, dentro de um balde com água. Na
época a graduanda de psicologia buscava um estágio e, no final da entrevista com Selma Correia da
Silva, pensou em desistir, mas, em um ato impensado, disse “sim” à pergunta que a supervisora lhe
fez sobre se persistia no interesse de ali estagiar. “Comecei então minha história com o NESA, e lá
descobri que trabalhar com psicanálise em hospital exigia o tripé formado pelo estudo teórico, a
supervisão e a análise pessoal para não recuar”. Dois anos depois já era residente, retornando aos
reconhecido, o que facilitava a inserção junto à equipe de saúde e a participação nas reuniões
semanais da equipe multidisciplinar da Enfermaria “nas quais sempre podíamos contribuir com a
alto risco ou do horror de se ver furado várias vezes em tentativas de colocação de um acesso
intervenções médicas, contrariam o princípio do prazer que visa manter as excitações o mais baixo e
homeostático possível (Freud, (1926/1996b, p. 132). O horror, a angústia, situações das quais não é
possível fugir, tornam o real uma presença constante no contexto hospitalar, e sua mais evidente
Em seu depoimento, a ex-residente diz que retomar a experiência de ter sido residente de
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importante momento de sua formação profissional em que a prática clínica sustentada pela
Selma Correa da Silva –, “permitiu que pudéssemos aprender a orientar um trabalho analítico,
mesmo diante de situações em que o real do corpo e mesmo da morte atravessam a vida”. A morte
aqui, não é apenas a de alguns dos adolescentes que chegam gravemente doentes, também pode ser
a de um ente querido, de um filho, de maneira que se é convocado a ouvir a dor de uma mãe ou de
um pai. O acontecimento do real, da angústia que é sua marca, que deixa o sujeito “sem palavras”,
faz com que o sujeito precise fazer um trabalho psíquico, um trabalho simbólico, introduzindo
significantes no real da experiência para que alguma elaboração possa ser feita que permita ao
sujeito ligar-se à vida. Se por um lado, em um hospital geral podemos atender casos cuja
determinação inconsciente se demonstra de forma clara, por outro lado, há momentos em que o
residente de psicologia tem de lidar com a contingência: algo acontece, um acidente, uma doença
que se impõe ao sujeito, ou um tiro. Foi o caso de um adolescente que ficou tetraplégico ao reagir a
um assalto. Há uma presentificação do real no tiro pelo qual se é atravessado e nos efeitos da
doença no corpo apontando sua face real. Quando, no contexto do indizível, o médico pode dizer:
você está tetraplégico, ou você tem leucemia, isso facilita simbolizar. É com o fio dos significantes
que se dá a possibilidade de tecer uma teia em torno desse real indizível, fazendo com que algo
Mas diante da proximidade do real, o sujeito pode “nada querer saber”. Ele pode também,
por exemplo, não seguir o tratamento proposto pelo médico. Casos assim, de pacientes que “não
aderem ao tratamento”, comumente são encaminhados pelos médicos aos residentes de psicologia,
oportunidade para uma interlocução entre psicanálise e medicina. Até porque, alguns médicos
imaginam a função do psicólogo no hospital como sendo a de usar argumentos para convencer o
paciente a seguir as recomendações médicas. Mas, como destaca Szpirko (2000), combater a não
adesão com argumentos seria desprezar a dimensão inconsciente. Não poucas vezes, quando algo
escapa ao saber médico, surge um pedido de ajuda ao Setor de Psicanálise e Saúde Mental. Como,
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por exemplo, no caso de Ana – nome fictício –, adolescente de dezesseis anos que chegou à
Enfermaria do NESA andando com muletas, devido a uma paralisia na perna. A mãe de Ana veio de
outra cidade em busca de tratamento para a filha. Ela já havia passado por vários hospitais e
acreditava que a adolescente tinha alguma doença rara. Na Enfermaria do NESA, após uma bateria
de exames, constatou-se que Ana não tinha nenhum problema orgânico, e ela passou a ser atendida
Ambulatório.
Cabe destacar que, quando os médicos não encontram nenhum motivo orgânico para os
sintomas de um paciente, isso algumas vezes os deixam irritados. Eles acham que o paciente esteve,
durante toda a internação, simulando, fingindo, e se sentem enganados. Se com Freud a psicanálise
pode mostrar que o sofrimento psíquico do paciente é verdadeiro, encontrar uma paralisia histérica
nos dias de hoje não deixa de surpreender. Até porque frequentemente se ouve dizer – e mesmo
entre psicanalistas – que isso já não mais existe. Se para uma residente em psicologia é
é possível nos servirmos da própria clínica para transmitir algo que não se aprende num curso de
medicina. No caso, o residente de medicina passou a querer saber mais, causado por aquele sintoma
O sintoma é metáfora da carne, “símbolo escrito na areia da carne e no véu de Maia” (Lacan,
1953/1998a, p.282). Tal como concebido por Freud, ele é uma formação do inconsciente cujo saber
o sintoma é uma formação do inconsciente, seu deciframento só é possível a partir da fala. Letra
escrita na carne, o sintoma também presentifica um núcleo real, que “participa da linguagem através
100
Para o médico recém-formado tudo isso era absolutamente novo, a residente em psicologia,
apesar de ter apenas dois anos de formada, já havia feito uma pós-graduação em psicologia clínica e
começado uma formação analítica. Mesmo assim, deparar-se com alguém com paralisia histérica,
parecia algo que só pertencia ao texto freudiano. Novamente a supervisão sustentou o trabalho “e
muita vontade de ouvir”, relata. “Minha lembrança de hoje não me permite saber o que fez com que
a paciente andasse, se foi uma interpretação, um ato, realmente não sei dizer. Mas ela, como cada
um dos pacientes que tomamos em atendimento, nos ensina que é com nosso não saber – ainda que
não sem conhecimento teórico imprescindível para a prática analítica – que promovemos a
Ao sair da sala andando, essa moça ensinou o poder do tratamento analítico, que advém da
fala (Lacan, 1958/1998b). Para além disso, mostrou que quando trabalhamos interdisciplinarmente,
é a partir do caso clínico que podemos transmitir algo do saber da psicanálise. Trabalhar junto com
o residente em medicina permitiu uma abertura dele a esse outro discurso. O NESA promove essa
abertura, mas tal como no um a um dos casos clínicos, talvez essa transmissão também precise ser
feita no um a um, ainda que por uma residente que na época talvez só pudesse transmitir seu
Outro caso da Enfermaria do NESA que marcou outra residente, foi o de uma adolescente de
quinze anos, com o diagnóstico de anorexia nervosa. Ela pesava como uma criança, assim era dito
na Enfermaria. A paciente não queria comer e houve muita dificuldade com a nutrição parenteral
(administração, por via endovenosa, de nutrientes e líquidos). Nos atendimentos, revelou que parou
de comer por conta de macumba. Havia uma intriga entre mulheres, que identificava a “galinhas”, o
que a levou a pensar que se comesse galinha seria envenenada. Tal pensamento foi contagiando
outros alimentos, ela foi parando de comer. Supunha que, envenenada, a mulher da macumba, toda
poderosa, poderia vir roubar algo de dentro dela. Sua anorexia a levou quase à morte, mas escutar
essa paciente permitiu identificar a conexão delirante como determinante, de modo que o
101
A clínica no Ambulatório do NESA
dois casos que puderam ser retomados seja nas monografias que os residentes escreveram ao final
doutorado. O tratamento de ambos esses casos não terminou com o fim da residência de suas
psicólogas, que levaram seus pacientes para continuar o tratamento quando terminaram o Curso.
Nessas situações, a orientação dada na supervisão é que jamais o paciente deve ser cobrado para
além de um preço simbólico perfeitamente possível de ser pago por ele já que a proposta de dar
tal continuidade, além de permitir ao psicólogo que recém terminou sua residência, de poder
continuar seu aprendizado para além dos muros do hospital. Franqueia-se ao adolescente a escolha
de permanecer no NESA com outro psicólogo, ou seguir com o ex-residente a partir do vínculo
transferencial já estabelecido.
O depoimento dado por esta ex-residente ressalta que, “no que tomamos um paciente em
análise não podíamos simplesmente dizer que ao terminar a residência a transferência também
terminaria, não é assim que funciona”. Daí ela ter oferecido a possibilidade, para aqueles que assim
o desejassem, de darem continuidade a suas análises no consultório. Nem sempre os residentes têm
a disponibilidade de ofertá-lo. No caso, o ganho que esta psicóloga obteve foi, segundo sua
uma análise”. Consideramos que o analista orienta um trabalho no sentido do desejo, ou seja, dá
sustento às pulsões de vida (Freud, 1920/2010). Em um hospital geral, o trabalho do analista dá voz
ao sujeito, ajuda-o a dar algum sentido àquilo que é absolutamente sem sentido, promovendo, não
estava com doze anos, cursando a quinta série. Sua mãe apresentava várias queixas sobre ele:
102
dificuldade de aprendizagem, se deixava bater pelos colegas da escola, era incapaz de reagir, sendo
ao mesmo tempo muito agressivo em casa, principalmente com o pai. Tal como descrito na
Sua mãe mostrava-se muito preocupada também por sua aparência de “maluco”, dizia que
Gabriel parecia um “bobalhão”. Segundo sua mãe o que conferia a Gabriel esta aparência de
maluco era, em primeiro lugar, e o que mais a incomodava, a “mania” de Gabriel ficar
falando ou brincando o tempo todo com alguém que não existia. Outras coisas aumentavam
essa “maluquice”, Gabriel fazia coisas tais como: lavar as mãos com muita frequência, era
“proibido” tocar o interruptor de luz pois este, segundo ele, é “sujo”. “Sujas” também eram
cortinas e janelas que ficavam interditadas ao toque. Contudo, estes atos foram revelados
pela mãe sem que esta lhes conferisse muita importância, faziam parte das “bobagens” do
Como Sherlock falava o tempo todo com alguém, como se estivesse ouvindo vozes, no
início foi difícil levantar uma hipótese diagnóstica para uma orientação da direção do tratamento.
Mas aos poucos surgiram as primeiras falas à então residente, ainda em tom de queixa, reclamava
de ser chamado de Da’Lua – personagem de uma telenovela da Rede Globo, que aparentava um
“retardamento” –, e de seu pai que “faz promessas que não cumpre”, como dizia.
da transferência, momento em que a analista em formação passou a ser Watson. Ficamos sabendo
que esse era o nome de seu “amigo imaginário” com quem ele, Sherlock Holmes, empreendia
verdadeiras investigações. Em verdade, as respostas de Watson, como explicou, eram dadas por ele
próprio, Sherlock. Era esse diálogo imaginário que tinha dado a impressão de ele estar ouvindo
vozes. Os seus sintomas, como a impossibilidade de tocar o interruptor, o “joelho aberto” como ele
chamava sua incontinência noturna, entre outros, foram desaparecendo na medida em que Sherlock
103
A saída da análise se deu quatro anos depois, seu interesse se voltou para um namoro, ele já
vinha fazendo várias “investigações” sobre as meninas em articulação com as questões sexuais que
se colocavam para ele. Aos dezesseis anos, a vinda à análise era intermitente, estudava bastante e
pensava em ser advogado. No último encontro, disse para a analista que havia se apaixonado. Pediu
seu cartão de visitas e queria que a analista garantisse que um dia, quando fosse mais velho, com
uns vinte e poucos anos, se precisasse, poderia ligar. O fim da análise de Sherlock foi, em verdade,
o fim de sua neurose infantil para que sua adolescência trouxesse consigo a possiblidade de sua
separação da autoridade dos pais que, como Freud já nos ensinara em 1905/2005a, é a tarefa mais
difícil da adolescência.
Apesar de sua anatomia, Gabriela – nome fictício – dizia não se sentir um menino e, por
isso, querer um corpo de mulher. Disse que isso ocorria desde seus doze anos de idade, não se
reconhecia como Diego – nome fictício – e não usava roupas de menino. Se perguntava muito sobre
Endocrinologia que acompanha adolescentes que se dizem transexuais –, consultas que, segundo
ela, nunca resolviam nada, não lhe davam uma resposta quanto à possibilidade de realizar a cirurgia
de redesignação sexual, nem introduziam hormônios em seu tratamento. Na realidade, Gabriela fora
muito bem informada nesses serviços de que toda intervenção no corpo só seria iniciada quando
principalmente, de seus desencontros amorosos. Eram muitos os rapazes com quem Gabriela se
encontrava. Havia também a presença de Amanda – nome fictício –, uma moça com quem mantinha
relutou em contar que fazia programas. Depois de tentar falar disso algumas vezes, relatou que
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começou a fazer “PG” (sic) com uma amiga durante o carnaval para ganhar dinheiro, pois queria
“curtir”, sair, e resolveu “juntar o útil ao agradável”. Mas em um desses relacionamentos Gabriela
contraiu o HPV e, ao ser informada disso e do tratamento a que teria que se submeter, ficou muito
assustada. Com o decorrer do tempo, achou bom ter se contaminado com o HPV, porque poderia ter
A adolescente mora com sua mãe, faxineira. Quando tinha cinco anos, seu pai vendeu a casa,
todos os móveis e foi morar com outra mulher. Isso levou Gabriela, a mãe e as irmãs a irem morar
de favor na casa de uma tia. Nunca se esqueceu do que o pai fez com elas e, por isso, o odeia. As
poucas vezes que o viu depois, não conseguiu olhá-lo. Gabriela raramente falava sobre sua família,
Em uma dessas tentativas de fazer calar isso que a deixava tão triste, pode associar a miríade
de encontros sexuais com o vazio que sente, tentativas de preenchê-lo, e observou: “se tivesse
nascido mulher seria diferente”, não sentiria esse vazio. Julgava que as mulheres não sentem esse
Uma das falas mais repetidas de Gabriela era sobre sua complexidade e sobre a dificuldade
do seu caso, a gama de especialistas que procurava tentando resolver seus problemas. Mas o fato de
ter podido começar a falar sobre tudo isso com a psicóloga residente, diante da qual não precisava
defender nada, permitiu com que aparecessem algumas dúvidas, o medo de estar passando pelo
processo de mudança de sexo e de se arrepender depois, inquietações sobre o fato de não saber
como será. Ao mesmo tempo, julgava que por ter chegado até ali, agora tinha que ir até o fim. Já
transexuais numa rede social e disse ter feito várias descobertas. Contou que no grupo descobriu
que tem direito a cirurgias plásticas que dependeriam de autorizações médicas para o que seriam
necessários alguns laudos. Mas por algum motivo que Gabriela não conseguia explicar, em suas
105
consultas médicas sempre esquecia de perguntar sobre tudo. Assim como nas consultas com o
O medo de que Amanda engravidasse passou a se apresentar como desejo de que a moça pudesse
conceber um filho seu – antes de qualquer cirurgia que tornaria isso impossível. Também começou
a poder falar do receio de que, após o início da administração de hormônios sexuais femininos, não
conseguisse mais gerar uma criança. Mesmo assim, mantinha-se na expectativa do que vinha
aguardando há tanto tempo, o momento de se tornar uma mulher, com um corpo lindo e cheio de
curvas. Uma semana antes de dar início ao tratamento hormonal, Gabriela marcou de se encontrar
com Amanda, que estava em seu período fértil, ao qual acabou faltando por ter adoecido. Assim,
começou sua terapia hormonal. No mês seguinte marcaram um novo encontro com o mesmo
propósito, no entanto, não houve ereção. Associou esse acontecimento aos hormônios que tinha
começado a ingerir. Diante do que, parou de tomá-los, não sem ainda buscar outra justificativa, a
falta de dinheiro para comprá-los com o que, no entanto, não mais se preocupava. Gabriela continua
os atendimentos com a ex-residente, o que permite com que sua divisão subjetiva possa continuar a
ser elaborada e, com o auxílio do trabalho em supervisão – que também continua –, lhe foi proposto
diferente de Gabriela, Diego não precisava investir somente em relações sexuais. A partir de
algumas colocações como essas, Gabriela está podendo se implicar mais em suas escolhas, se
Nathália – nome fictício – é uma adolescente de dezessete anos que chega ao Ambulatório do
NESA através de um pedido de encaminhamento feito pelo Instituto Nacional de Câncer – INCA,
onde é acompanhada anualmente após a retirada de um osteossarcoma operado quando tinha treze
anos. Retomamos esse caso aqui por se tratar de um exemplo do trabalho integrado que os
106
para o Programa de Transtornos Alimentares do NESA, pois a equipe do INCA constatara uma
significativa perda de peso e de apetite nos últimos seis meses. No atendimento médico e
nutricional verificou-se que a paciente estava em grave desnutrição e com alterações na frequência
A mãe de Nathália contou que há mais ou menos seis meses sua filha decidiu iniciar uma dieta
para emagrecer que ela havia achado normal, porém agora estava muito magra e muito fraca. Havia
aproximadamente um mês que a mãe percebeu que Nathália começou a dormir muito, a ter
dificuldade para se concentrar na escola onde chegou a desmaiar algumas vezes. Não sabia explicar
muito bem os pormenores da rotina alimentar de Nathália, conseguiu apenas relatar que a filha se
recusava a comer e que havia descoberto há pouco tempo que ela estava induzindo vômitos após as
porque, devido à operação do osteossarcoma, teve seu membro inferior esquerdo amputado e
andava com a ajuda de muletas. Segundo porque seus ossos estavam bem marcados por uma fina
camada de pele, de tão emagrecida que estava. Olheiras e olhos fundos expressavam cansaço e
davam a impressão de tristeza a qualquer um que a olhasse. Demonstrava-se muito irritada, dizendo
que não poderiam obrigá-la a comer e afirmando desejar emagrecer ainda mais.
Nathália contou que sua meta era ingerir apenas 250 kcal por dia e que havia uma voz em
sua cabeça que mandava fazer tudo isso e temia que se fosse obrigada a comer, seria punida, a voz
brigaria, a chamaria de gorda. Diante de tudo isso, a psiquiatria entrou no caso. Sem sabermos ainda
a que exatamente se referia quando designava a voz em sua cabeça, era necessário fazer um
diagnóstico estrutural. Não há psiquiatra na equipe do NESA e o fato de tal profissional ter sido
Para que saísse da zona de risco e de desnutrição, a equipe médica decidiu-se por uma
alimentação por sonda nasogástrica que foi vivida pela adolescente como uma extrema invasão de
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seu corpo. Chamaram a residente em psicologia que a acompanhava para que estivesse presente no
momento de ela receber a informação de que se faria tal procedimento o que acarretou numa recusa
de continuar os atendimentos com essa psicóloga a quem Nathália dizia responsabilizar pela
Como dito, o residente em psiquiatria que a acompanhava, externo à equipe, acabou por
escutar as queixas de Nathália para com a psicóloga ao pé da letra, propondo à paciente uma
mudança de psicóloga. Nathália prontamente respondeu com um “não”. Não se tratava disso.
Nathália apenas sintomatizava sua insatisfação e desagrado, e isso era com esta psicóloga que,
franqueando à adolescente falar, o que foi muito salutar. Para esta residente, o caso exemplificou
perfeitamente a diferença entre a clínica em psicanálise e a psiquiátrica, definida assim por Miller
(1981/1997): “No caso da psicanálise, trata-se de um impossível de suportar para o sujeito; no caso
Ambulatório, e cada vez mais levantávamos a possibilidade de Nathália ser histérica com um
quadro anoréxico, decorrente das dificuldades de o sujeito significar o vivido em função do câncer e
de seu tratamento. Certo dia, mais de seis meses após a alta, acompanhada por sua mãe, a
adolescente chegou com uma paralisia aguda que havia acometido repentinamente seus membros
pensamentos suicidas, tendo já havido duas tentativas: em uma delas, Nathália se jogara de uma
movimento.
avaliá-la. Era preciso verificar se a paralisia tinha uma razão orgânica ou era uma conversão
108
residente em psicologia decidiu, então, entrar em contato com a psiquiatria solicitando que a
suicídio e agora uma conversão histérica, a paralisia, apelo ao Outro, no caso, o NESA. Mas essa
não foi a opinião da residente em psiquiatria, dizendo que, se a internássemos, iríamos “fazer o que
ela quer” e isso intensificaria os sintomas. Decidiu medicá-la imediatamente com um ansiolítico,
orientando-a a ir para casa e “conversar com seus braços, pedindo-lhes que melhorem logo”.
Passados poucos minutos da saída da adolescente do hospital, ela e sua mãe retornam à
Enfermaria demandando a presença da psicóloga, com a queixa de que agora todo o corpo de
Nathália estava paralisado. A equipe médica do NESA, familiarizada com o discurso da psicanálise,
para ver a adolescente. Ao chegar, encontrou Nathália aos prantos, gritando que queria ir embora e
ameaçando se cortar com uma tesoura. Conteve-a, para evitar que se machucasse. Braços e a perna
foram amarrados ao leito. A psicóloga tentou se aproximar de Nathália que já parecia mais calma,
porém não querendo falar, pediu-lhe que fosse embora – reatualizando a situação transferencial
anterior.
No dia seguinte, Nathália já havia sido desamarrada e não apresentava mais nenhum sinal de
paralisia. Quando a residente em psicologia sentou-se a seu lado, Nathália lhe disse: “Obrigada, tá?
Eu precisava disso”. Após a discussão do caso com toda a equipe da Enfermaria do NESA, em
conjunto com a psiquiatra, decidiu-se dar a alta para Nathália, já que durante o dia a adolescente
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singularidade da adolescente e, ao invés de se apresentar com um saber fechado, optou por nada
saber sobre o sujeito senão aquilo o que ele próprio pode ir construindo.
Não é raro podermos observar uma situação familiar pouco articulada, em que o sujeito é
deixado largado no mundo em função das dificuldades desses outros sujeitos, sua família. Quando
os pais desistem de seus filhos antes que estes possam se separar deles – trabalho próprio da
inicia uma busca que pode ser uma completa catástrofe na tentativa de alcançar novamente a mão
dos pais, o que, como numa bola de neve, tem cada vez mais dificuldade de conseguir” (Alberti,
2004, p. 22). Os casos a seguir testemunham da importância de às vezes promover uma demanda de
tratamento de algum familiar quando se trata da clínica com adolescentes. O primeiro demonstra
que é possível intervir numa relação mãe-filho sem qualquer separação entre eles.
A mãe de Jonas
Maria – nome fictício – é a mãe de Jonas – nome fictício – que, aos três meses de idade, teve
uma meningite com complicações neurológicas graves que o levavam a frequentes internações.
Mantinha um olhar vago, sem interagir, ficando sempre deitado, totalmente dependente. Isso levava
Maria a dizer que não só ele dependia dela para viver, mas que a vida dela também dependia dele.
Na primeira entrevista, a mãe diz: “Eu não sei o que vai ser da minha vida se ele morrer. Eu não vou
saber nem quem sou eu. É ele quem dorme comigo. Ele é meu companheiro. Falo que ele é meu
marido. Aquele amor de um homem de dar carinho e dizer que ama, Jonas supre todas as
necessidades. Só a necessidade de desejo sexual que não, tadinho, meu filho” (sic). Tomamos essa
observação para dirigir o tratamento começando a interrogá-la sobre seu desejo sexual.
Surgiu, aos poucos, sua vida, não somente como mãe de Jonas, mas como mulher, como
sujeito. Inicialmente relata que acha que não tem desejo sexual, que ela não permite aos homens
entrarem em sua vida. Lembrando de um antigo namorado, pergunta: “Quem vai querer ficar com
alguém que tem que cuidar do filho o tempo todo e vive no hospital?” (sic). Diz: “Ele não entendia,
110
eu perguntei a ele: ‘meu filho, por que não entende?’” (sic). Surpresa com essa fala de Maria, a
residente interrompe: “meu filho?”, e Maria diz: “pois é, eu chamava todos eles de filhos. Todos os
homens achavam que eu tratava eles mais como filhos” (sic). Não havia mesmo um espaço para um
homem entrar... Novamente a residente interrompe a fala de Maria quando a escuta dizer, mais uma
vez: “A minha vida é ele. A minha vida toda” (sic). “Toda não, e o tempo antes de Jonas?”,
perguntou. E recebeu como resposta: “Ah não! Antes não conta” (sic).
Maria lhe diz que antes de ele nascer foram só dezoito anos, não tinha vivido nada, já que
começou a trabalhar aos dez anos. Mas começou a falar de sua história. Sua mãe a proibiu de
estudar quando ela chegou à 5ª série lhe dizendo que ela não seria ninguém na vida mesmo, a
colocando para trabalhar em uma casa de família. “Eu dependia da minha mãe para me colocar na
escola, eu era menor de idade. Naquela época não tinha Conselho Tutelar”. Aos treze anos surgiu
uma oportunidade de ser modelo, mas seu pai não deixou “porque isso é coisa de piranha” (sic).
Conheceu o pai de Jonas aos dezesseis anos e o namorou mais para afrontar o pai. Pouco
tempo depois, foi morar com ele para sair de casa, engravidando de Jonas. “O pai dele bebia e usava
drogas, acabei voltando para casa com vinte e um anos. Foi um inferno”. Relata que sua irmã deu
uma casa para ela morar ao lado da casa de sua mãe que, no entanto, jamais a ajudou a cuidar do
filho. Recomeçou a trabalhar fazendo unha e vendendo salgados, e com esse dinheiro conseguiu
comprar todos os móveis de sua casa. Identifica Jonas como aquele que a livrou de uma “vida
errada” (sic) porque quando passou fome quando ele era pequeno, chegou a procurar uma vaga de
emprego como prostituta de luxo nos classificados – talvez obedecendo ao vaticínio paterno que
Uma delas, dizia respeito à proposta médica de uma gastrostomia em Jonas, já que ele estava
broncoaspirando com a comida artesanal que recebia em casa, feita por Maria. Maria resistia a essa
cirurgia, não podia imaginar o filho recebendo comida por uma sonda no estômago em vez da
comida artesanal que ela própria preparava. Temia que Jonas não fosse aguentar a intervenção, ele
111
poderia fazer uma parada respiratória com a anestesia geral, lembrando-se de que já fizera uma, há
um tempo atrás, durante uma neurocirurgia. Mas depois, em atendimento, chegou a dizer: “eu tenho
uma posição de dar comida para ele. Eu não quero perder isso”. Com o sucesso da gastrostomia,
alguma dependência dela para com o filho seria perdida, a nutrição enteral poderia ser adquirida no
próprio hospital e manipulada por qualquer pessoa que tivesse o conhecimento especializado em
seu manuseio. Acabou aquiescendo, mas ao se aproximar o dia da intervenção, diz: “Eu estou muito
apreensiva com a cirurgia, o que eu queria era ser o cirurgião e fazer a cirurgia de Jonas, estou com
muito medo de ele morrer” (sic). Escutar esse dito permitiu introduzir uma barra para essa mãe:
“isso não é possível, você não é cirurgiã. Você não pode fazer tudo pelo seu filho”. Havia ali um
limite claro e, confrontada a ele, o único que Maria ainda consegue dizer, chorando muito, é: “como
fica a renúncia que fiz da minha vida, todos os sonhos que eu tinha pra ele, se ele morrer?” (sic).
Aos poucos, Maria conseguiu ir dormir em casa por algumas noites, o pai de Jonas pode vir ficar
com ele no hospital, mesmo Maria dizendo que ele não sabia exatamente quando Jonas sentia dor
ou precisava trocar a fralda, por exemplo. A residente em psicologia a tranquilizava, Jonas não
estava sozinho, estava com o pai no hospital onde, além disso, havia a assistência de toda uma
equipe técnica.
Aos poucos Maria foi falando de seus interesses e sonhos para além de ser mãe de Jonas.
Falou que, modéstia à parte, fazia unha muito bem, o que voltou a fazer a partir desse atendimento,
ganhando um dinheiro extra. Apesar de ser formada em técnica de enfermagem, nunca exercera a
profissão. Animou-se e começou a querer trabalhar. “Sabe o que todo mundo faz, de se arrumar de
uma vizinha para ficar com o filho e começou, aos poucos, a colocar seus currículos em algumas
instituições. Nos últimos atendimentos realizados com Maria, ela contou que casou e estava
construindo um quartinho para Jonas dormir sozinho com uma enfermeira, de modo a poder ter sua
privacidade. Foi assumindo uma nova vida, investindo em sua profissão e em um casamento, a
112
entrada da enfermeira e do pai não foram sem o auxílio do corte no estômago operado pela equipe
Silvia – nome fictício – era a mãe de uma adolescente atendida por uma psicóloga residente
no Ambulatório do NESA que disse: “quero uma psicóloga para minha mãe”. Silvia já fazia
acompanhamento com um neurologista, mas disse que ele só a medicava, o que não estava surtindo
efeito. Durante as entrevistas, tentava dar um sentido a seus sintomas – ficava nervosa, tonta,
trêmula, suando frio, mesmo sem um motivo aparente, e sentia medo de desmaiar e de morrer. Ao
ser convidada a falar, começou a associar o seu “passar mal” a ficar sozinha, a ter enviado os
móveis da sua casa no Rio de Janeiro para o Ceará (onde ela e o marido pretendiam voltar a morar),
à gravidez e ao problema de alcoolismo do marido. Foi então que a psicóloga residente começou a
fazer mais perguntas sobre a infância dela, a adolescência, sobre a maneira como ela conheceu o
marido, o namoro, o casamento, sua sexualidade, a vinda para o Rio de Janeiro etc. Silvia começou
a falar sobre sua história de vida e não somente sobre o sintoma de “passar mal”. Abandonou o
tratamento com o neurologista, apostando mais no tratamento que fazia no NESA. Aos poucos
deixou de falar dos sintomas que tentara significar, e eles foram se extinguindo. Para sua psicóloga
ficou evidenciada a advertência de Freud (1916/2005b): não focar no sintoma! Para a adolescente
Duas gêmeas
Júlia – nome fictício –, 14 anos, foi encaminhada pela escola ao Setor de Psicanálise e Saúde
Mental do NESA juntamente com sua irmã gêmea para atendimento ambulatorial. Diante da filha, a
mãe relatou estar muito preocupada com o fato de ela só ficar no celular, não cumprir com os
acordos que fazem, como por exemplo o do horário de voltar para casa, com as notas baixas na
escola e com a fixação da filha em uma banda americana, Jonas Brothers, além das influências de
amizades estranhas. Em especial, se preocupava com uma amiga mais velha de Júlia, que diz ser
113
homossexual e maior de idade, e avisa à filha que, se essa amizade continuar, vai denunciar a amiga
Muitas vezes a demanda de atendimento no NESA é indireta, ou seja, são os pais, a escola,
1994). É preciso estar atento aos efeitos disso no sujeito adolescente pois, sendo “falado” por
outros, pode emudecer. Nosso trabalho então consiste em recolocar a demanda de atendimento de
forma que o próprio adolescente possa se responsabilizar por seu tratamento. Ao facilitamos esse
No caso de Júlia, a questão da demanda indireta aparece com alguma relevância nos
atendimentos iniciais. Em determinado atendimento, ao falar do quanto sua mãe está “enchendo o
saco”, Júlia declara: “Já falei para ela que não adianta vir para psicóloga, que não vai resolver
nossos problemas em casa”. Frase que a residente em psicologia aproveita: “Mas é para isso que
você vem?”, recebendo como resposta: “não, eu venho para tratar das minhas coisas”.
Começa a falar sobre uma história de conflito com uma amiga, mas avisa que não dará
tempo para contar porque é muito longa. Na realidade, logo confessa que tem dificuldade de falar
sobre isso, “ainda não contei para ninguém”. Acreditamos que essa fala inaugura um certo lugar de
trabalho que marca uma diferença. Em tratamento, se fala sobre algo que não se fala em outros
espaços e a relutância inicial testemunha da resistência que é, para a psicanálise, signo da presença
da transferência. Com ela, foi possível levantar uma hipótese diagnóstica de histeria. Esse ponto
adquire especial relevo no caso em questão: é a fala de Júlia que tem valor de diagnóstico e somente
a dela.
Sobre suas experiências com garotos, ela conta que na sua escola só tem “lixo”, diz que até
ficou com um amigo, que era muito bonito, mas só porque ele teria insistido muito. Fica com vários
rapazes, sempre impelida pela insistência deles. A única vez em que era ela quem quis ficar, tratava-
se de um amigo, mas ele era gay e tinha namorado. Júlia certamente não é a primeira que se dá
114
Ao que nos parece, tal como no caso de Freud (1900/1988), trabalhado por Lacan (1957-
58/1999) como o da bela açougueira, Júlia põe em xeque a questão do desejo, no que paira uma
insatisfação: tudo bem desejar um homem, se ele for gay e não puder satisfazê-la. Na realidade, há
aqui uma denúncia desse desencontro entre homens e mulheres. Independentemente de ser gay ou
não, um homem não seria capaz de satisfazer, bastar a uma mulher... e vice-versa.
Como a psicóloga que atende a irmã de Júlia também trabalhava no NESA, sabemos que a
hipótese diagnóstica daquela jovem era de psicose. Não cabe aqui entrarmos em detalhe sobre sua
irmã, mas nos importa que, enquanto histérica, opera em Júlia uma identificação na qual busca
salvar a irmã. Basta dizer que em um atendimento Júlia chegou com o rosto todo arranhado, brigara
com a irmã porque ela estava com cigarro e bebida na mochila, afirmando, ao mesmo tempo, não se
importar com o destino dela: “não tô nem aí pra minha irmã. Quero que ela se dane. Tomara que ela
se ferre mesmo”. Com uma irmã gêmea psicótica, Júlia tinha uma tarefa dupla pela frente: aquela
que é comum a todo adolescente, de se separar dos pais e, ao mesmo tempo, a de poder ser diferente
da irmã, dita idêntica por ser gêmea. Como bancar suas escolhas percebendo a gravidade da
situação de sua irmã? Com o trabalho no NESA pode se verificar que o interesse pelos Jonas
Brothers, pelos amigos, pelas pessoas fora de casa, respondia à necessária referência de que Júlia
adormecidas no período de latência. Porém não é um simples retorno, é uma avalanche. O sujeito se
depara com o vazio, com a incompletude. Ele vai verificar que existem muito mais desencontros do
que encontros nas suas escolhas amorosas e que não há complementaridade entre os sexos. A
separação das figuras idealizadas dos pais, o encontro com o sexo e a constatação das
impossibilidades, deixam o sujeito no desamparo e, por conta disso, certas questões se intensificam
adolescência é o desligamento da autoridade dos pais, mas para atravessar tal trabalho, é preciso
115
Joana e as mentiras
filhos. As querelas familiares podem eclodir durante uma internação, quando não faltam expressões
familiares (Freud, 1909/1976) se expressarem através dos afetos de amor, de alegria, de raiva, de
tristeza etc. Verificamos que o desligamento das figuras parentais da infância poderá ser retardado;
adoecer exige aproximação, principalmente da mãe como primeiro Outro do sujeito. O cair doente,
nessa fase da existência humana – sobretudo quando isso acontece sem o olhar materno dos
cuidados, no afastamento da mãe – pode funcionar como um fator que potencializa o retorno dos
impulsos e desejos edipianos, o que demanda a escuta das figuras de referência para o sujeito
A situação familiar era pouco articulada, Joana era um sujeito deixado largado no mundo em
função das dificuldades dos outros sujeitos da família. Podemos dizer que, depois da morte do pai, a
família perdeu suas referências. A mãe foi apenas uma vez ao Serviço e mesmo sendo chamada
novamente e tendo todos os contatos, não apareceu mais. Após a morte do marido, Cristina – nome
fictício –, provavelmente, se viu imersa numa avalanche de problemas que a ultrapassavam e usava
foram suas mentiras, em particular a última, em que dissera que iria à casa de uma amiga e, na
realidade, sumiu por dezenove dias (depois relatou à residente em psicologia que, no período, ficou
num abrigo). Cristina se queixou na primeira entrevista: “Parece que ela pega a história de uma
outra pessoa e acredita que é a dela, porque em casa ela é muito diferente”.
realidade à sua volta, com o envolvimento de seu filho em assaltos e drogas e com as fabulações de
sua filha. Ela também fabulava ao relatar sua vida com filhos muito bem criados, convivendo muito
bem. O sintoma de Joana denunciava um sintoma da família e sua mentira servia para desvelar o
116
Joana era atendida em emergências de hospitais, ia sozinha com uma gastrite grave, isto é,
uma úlcera no estômago aberta, sintoma possivelmente referido à morte do pai que faleceu em
decorrência de uma “hemorragia no estômago”, que Cristina não sabia explicar muito bem, quando
Pudemos levantar duas hipóteses, que não se excluem. Uma, a de que havia sim uma
questão física, mas a questão psíquica era mais complicada, a ponto de impedir que ela tratasse sua
doença orgânica. Outra, de que ela poderia estar repetindo no corpo uma ideia de reencontrar o pai.
Talvez essa fosse a sua maneira de falar do pai e dos sentimentos ambivalentes que vieram à tona
após a sua morte, em particular por sua ausência, que desestruturou a família e a deixou sozinha
sem poder contar com ninguém, conforme ela se referia à vida que levava.
Diante do encontro com o real do sexo da adolescência e da busca por uma separação do
Outro, Joana não pôde contar com a presença dos pais (ou substitutos). A paciente respondeu a isso
fabulando e criando o seu mundo de tragédias que retratam a forma pela qual ela via e sentia os
acontecimentos de sua vida. As tragédias que criava eram, por outro lado, aquelas que sua mãe
parecia não querer ver. A realidade psíquica, além de designar uma outra realidade para o
próprio sexo é a regra para todos, mas sabemos também que tal inquietação só se resolve no
momento em que se lastreia na impossibilidade de uma resposta a priori. O sentido sexual “indica a
direção na qual ele fracassa” (Lacan, 1972-73/1985, p. 106) e é esse o ponto em que o sujeito
neurótico pode responder à questão. Eis onde neurose e adolescência se encontram: todo sujeito
Verifica-se tal enunciado tanto em articulação à frase de Freud (1950 [1895]/1996a) segundo a qual
117
mesma maneira como podemos observá-la na adolescência: “Ele depende tanto da demanda do
Outro, que o que [ele] demanda ao Outro em sua demanda de amor [...] é que se permita que ele
faça alguma coisa” (Lacan, 1960–61/1992, p. 257). Lacan enuncia essa frase acerca do neurótico,
mas podemos transpô-la facilmente para os adolescentes de que tratamos (Alberti e Ferreira da
Silva, 2018).
psicóloga residente: “uma mulher com síndrome de Turner é uma mulher normal”? pode pôr à
prova a articulação entre clínica com adolescentes e hospital universitário. A síndrome genética, de
Turner, caracteriza-se por o que no discurso médico é chamado de “aberração cromossomial”, e faz
de sua portadora uma 45 X com a ausência do outro cromossomo X, de modo que aparece uma
partir da psicanálise, a questão foi devolvida à adolescente que, assim, recebeu sua própria
Em seu depoimento sobre o caso, a ex-residente relata: Após este primeiro atendimento,
lembrei-me da seguinte frase: “Chamei imediatamente o Dr. M...”, frase presente no sonho da
“injeção de Irma”, que consta da Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1988, p. 128), sonho
inaugural da psicanálise. Cinco anos mais tarde, Freud chegara a escrever em carta a Fliess: “você
acredita que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Foi nesta casa que,
em 24 de julho de 1895, o mistério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Mas por ora as
perspectivas são mínimas” (Freud, 1887-1904/1986, p. 418). Nesse sonho destaca-se algo sobre a
Freud ao se deparar com a visão da cavidade bucal de Irma, ele chama o Dr. M. De igual feita,
chamei imediatamente Sonia Alberti para supervisionar o caso. Em minha passagem pelo NESA
como residente de psicologia, deparei-me com um corpo que tem reações e ao qual acontecem
coisas que, com exceção das tentativas do discurso médico em fazê-lo, não podem ser mapeadas por
118
De “mulher normal”, Louise deslizou para: “mulher com peitão e bundão”, “mulher com um
corpo real”, “sindromizenta” (sic) e “mulher feita”, numa tentativa de simbolizar um real do corpo
Dos ditos do pai da infância que sustentavam Louise como “não tendo nada”, aos dos
médicos que garantiam que ela poderia ter uma vida normal, Louise ao mesmo tempo em que
substituía a sexualidade pela demanda de amor, procurava por sua resposta. E o sujeito não é antes
de tudo uma pergunta? “Che vuoi? - O que quer você?” (Lacan 1960/1998c, p. 829). A entrada em
análise não se dá por uma questão enigmática? Laço analítico no primeiro encontro. Desejo
decidido de ali permanecer. Poder acompanhar Louise em seu trabalho, ver surgir o novo, surgir o
sujeito em seu desejo que é sempre efeito da fala, construir com as palavras que ela foi me dando,
implicou meu desejo nessa escuta. Sua morte, em consequência das várias complicações que podem
ser provocadas pela síndrome, última castração, não deixou de ser um dos corolários para o
nascimento de uma analista, esta que a acompanhou durante toda sua elaboração. Louise me
ensinou que é preciso uma escolha do adolescente pelo trabalho e a importância de levar em conta o
Outro, mas me ensinou também a necessidade de que haja uma demanda do Outro para que o
sujeito adolescente se posicione sexualmente e é o que o leva a isso. Seu pai o permitiu e ela pode,
no final de seu trabalho, disso se servir. Um dia ainda conseguirei publicar seu caso.
Considerações finais
Esse texto, ponta do iceberg que é o trabalho da Residência em Psicologia no NESA, foi
Saúde Mental do NESA e de pequenos textos enviados por ex-residentes que participaram dessa
experiência desde os primeiros anos até os mais recentes. Sua redação final buscou articulá-los, mas
Atravessar a residência no NESA foi para esses autores também uma passagem, entre o momento da
119
graduação e a vida profissional. Um atravessamento no qual – e todos o observaram – receberam o
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122
Gravidez e psicanálise: considerações institucionais e clínicas
Estado do Rio de Janeiro data do início da década de 1970. Ele é descrito em sua evolução no
prática desta clínica é realizada pelos residentes, a partir da criação da Residência em Psicologia
Clínica Institucional. Descreve-se neste trabalho os aspectos da clínica psicanalítica com gestantes
de alto risco que são atendidas no ambulatório e na enfermaria do hospital. Por meio de três
exemplos de casos atendidos, dá-se uma pequena mostra de como são as consultas com os
a função da preceptoria da residência no referido Núcleo, bem como sua contribuição teórica.
Abstract: The work carried out by psychologist in Pedro Ernesto University Hospital, which
belongs to the State University of Rio de Janeiro (UERJ), started at the beginning of the year 1970.
It is described in its evolution in the assistance given to women in high-risk pregnancy and to those
in the puerperal period from Núcleo Perinatal. The theoretical approach of this work is
psychoanalytical and its practice has been performed by the residentes of psychology since the
creation of the Residency of Psychology in Institutonal Clinic. In this paper, we describe the aspects
of psychoanalytic practice in women in high-risk pregnancy who are assisted in the clinic and the
Ward of the forementioned hospital. By means of three clinical psychoanalitic cases, we give a
short view of the work of the psychology residentes. The descriptions of the program, the
supervisions and the study grups demonstrate how the preceptor responsible for this sector does her
123
Resumen: El trabajo de los psicologos en el Hospital Universitário Pedro Ernesto del Estado do
Rio de Janeiro empezó en el año del 1970. El es descripto en su evolución en los atendimientos a
las mujeres embarazadas del Nucleo Perinatal. La psicoanalisis és la teoria utilizada en el trabajo
clínico. La actividad clinica és realizada por los psicologos residentes a partir de la creación de la
ambulatorio y em la enfermaria. Con tres ejemplos de la clinica psicoanalitica se tiene una pequeña
muestra como la preceptora responsable por lo sector hace su trabajo y suja contribuición teorica.
O contexto institucional
As considerações aqui descritas são o resultado de um trabalho que vem sendo realizado por
HUPE / UERJ desde a década de 1970 até o presente com a comemoração dos 25 anos do Curso de
UERJ e os residentes do curso acima mencionado, em nível de pós-graduação latu sensu. Para
melhor entendimento da evolução do trabalho realizado pela equipe de psicologia será necessário
um relato histórico da sua inserção institucional no Núcleo Perinatal, ao longo das últimas décadas.
Nos meados dos anos de 1970 alguns psicólogos a convite de vários médicos e da direção do
HUPE iniciaram uma série de trabalhos nas diversas enfermarias do hospital geral e na psiquiatria.
estudantes estagiários de psicologia, vindo das diversas universidades do Rio de Janeiro. Após esta
124
etapa do trabalho da psicologia no setor, o Instituto de Psicologia designou a atual preceptora para
trabalho de implantação da nova atividade foi bastante desafiador em função da abrangência que se
medicina, enfermagem, serviço social, nutrição, fonoaudiologia. A equipe, com muito raras
chefia do setor, na pessoa do professor titular da cadeira de Obstetrícia Alexandre Trajano, muito
consciente das dificuldades emocionais das gestantes de alto risco e puérperas, empenhou-se junto à
Núcleo Perinatal, para a criação do projeto de residência com apoio da direção do Instituto e da sub-
reitoria de pós-graduação da UERJ. Mais uma vez, um grande empenho foi necessário pelo
pioneirismo do projeto no Brasil. Pretendíamos criar uma Residência que tivesse o formato
acadêmico, como uma especialização de pós-graduação para psicólogos e que oferecesse um campo
de atuação prática nas diversas clínicas do hospital e não somente na psiquiatria, como já acontecia
no âmbito da residência em Saúde Mental em outros locais. A Residência foi criada em 1992. A
partir desta data, o Núcleo Perinatal passou a receber os residentes do Curso de Especialização em
125
Nos primeiros processos seletivos, a residência trouxe de início cinco R1 (residentes de
primeiro ano) que atuaram, no Núcleo Perinatal, em rodízio com as outras clínicas e dois R2
(residentes de segundo ano). Atualmente, o processo seletivo para ingresso na residência oferece
dez vagas para R1, o que reverte em vinte residentes no total de R1 e R2 para todo o HUPE.
atende gestantes e puérperas de alto risco pelo SUS. A clínica obstétrica oferece formação aos
diferentes profissionais residentes em saúde que atuam junto a gestantes e puérperas. Possui um
espaço físico situado no corpo do hospital no bairro de Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro. A
sua clientela é oriunda de inúmeros bairros, das comunidades de favelas e até de outras cidades e
estados.
O HUPE recebe gestantes de alto risco. Na gestação, este tipo de risco corresponde às
morbidades em casos como hipertensão, lúpus, diabetes, cardiopatias, HIV e outras doenças que são
ao setor em sua maioria através do sistema SISREG proposto pelo Ministério da Saúde ao
Município do Rio de Janeiro. Desse modo, chegam ao ambulatório e, em alguns casos, diretamente
são múltiplas, mas também as demandas subjetivas são inumeráveis. Caberá aos psicólogos e
variada, eles ocorrem antes da consulta médica no ambulatório. A proposta é oferecer informações
e outros assuntos são tratados nos grupos coordenados por no mínimo dois profissionais das áreas
coordenação dos grupos. A partir do atendimento com diferentes profissionais e dos grupos de pré-
consulta são agendados para os residentes de psicologia os atendimentos individuais. Os casos são
encaminhados através de pareceres dos médicos, dos enfermeiros, dos nutricionistas ou dos
assistentes sociais.
aspecto. As pacientes estão num leito antes do parto ou após a realização do mesmo. Nem sempre
relacionado a doença pregressa da gestante ou as más formações dos bebês. Caberá ao psicólogo
residente acompanhar sua paciente enquanto ela estiver internada e oferecer um acompanhamento
dos casos atendidos pelos residentes e participam das leituras dos textos propostos para o estudo. O
objetivo é estimular e preparar os futuros psicólogos a atuarem visando a saúde mental em suas
127
A preceptoria: supervisão de casos de gestantes e puérperas do Núcleo Perinatal
pessoal, o estudo teórico e a supervisão são recomendados. Como cada clínica tem a sua
puérperas de risco se mostra muito diversa da clínica em consultórios, clínicas e hospitais privados.
O hospital, lugar entendido como aquele que trata de doenças, é tido como parte integrante da
e pessoais subjetivas de toda equipe distinguindo-se de uma clínica voltada à família. Uma paciente
gestante pode estar “submetida”, por exemplo, às regras de sua família nuclear, do grupo social ou
de seu trabalho. Mas no hospital ela também terá que se “submeter”, muitas vezes, a normas
diversas de seus valores ou desejos. O psicólogo tem, também, um limite de atuação estabelecida
detalhadamente em sua evolução. Quando ocorrem altas precoces na enfermaria (do ponto de vista
pacientes que assim o desejarem. Caso a distância de moradia da paciente for um impedimento para
o retorno ao hospital, elas são orientadas na busca de locais próximos às suas residências, onde
autorizados pelo Conselho Regional de Psicologia, têm certa autonomia para encaminharem as suas
128
apresentadas pelos residentes e como contorná-las. Criamos um espaço de trocas, questionamentos
e aprendizados.
realidade do hospital e da universidade também estão presentes, mesmo que não verbalizado nas
consultas. Vamos a cada caso tomando contato com as patologias médicas, síndromes,
ou de nutricionistas reverberam nas pacientes e em nós. Somos a cada dia envolvidos por falas e
acontecimentos dos mais diversos. Tudo isto está presente nas supervisões.
Acreditamos que de algum modo o nosso trabalho também amplia o campo de saber das
da abordagem psicanalítica dos psicólogos residentes tem sido um importante espaço de trocas.
O Grupo de Estudos
(1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981). Torna-se necessário ler também bibliografias que
trabalhados, apresentados e publicados. São dois dias no preparo dos textos do Núcleo Perinatal
quando “paramos” todos para nos ouvir. Na apresentação dos residentes, eles debatem com um
público composto na grande maioria de psicólogos, de estudantes de psicologia e das áreas da saúde
afins. Assim, cada residente tem a oportunidade de não só mostrar, mas também de compartilhar e
129
Atuamos na postura reflexiva e crítica diante do que é a saúde pública, a formação dos
novos ensinamentos, a possibilidade de atuações criativas e cada vez mais efetivas. Têm-se a cada
momento novos desafios. Desde os problemas políticos institucionais até a não resposta procurada
na teoria, uma vez que o lidar com o humano aponta para o caso a caso. Isto é, cada mulher ao ser
A partir do já exposto pensamos na nossa clínica com gestantes como o lugar privilegiado
trabalho e pesquisa. Freud em todos os seus textos e, em particular, nos Três ensaios sobre a teoria
oferecem a bases teóricas do nosso trabalho. As inovações trazidas por Lacan, após o seu retorno a
Freud abriram um espaço para uma nova clínica onde não só o setting, o “contrato”, mas
principalmente a escuta e trabalho do analista tomaram uma outra dimensão. Mas como usar todos
estes conhecimentos no hospital? Como ler as demandas destas mulheres e encontrar nestes teóricos
Freud teoriza sobre sua clínica com mulheres. Se para o menino, Freud tentava encontrar respostas,
no caso da menina encontrava interrogações. Desse modo, a sua obra e de seus respectivos
seguidores oferecem importantes contribuições para pensar e atuar nos casos de gestantes e
130
O que ocorre no psiquismo dito feminino ocupa parte significativa das supervisões e dos
nossos estudos. Do apelo feito aos poetas por Freud para “descrever a mulher” até hoje a clínica
psicanalítica exige muitas reflexões para que se possa atuar durante uma gravidez, que é um período
Estar grávida é até hoje uma condição exclusiva da mulher. Ela tem um período fértil a
partir da primeira menstruação até a menopausa. Este fato é um acontecimento no corpo marcado
no imaginário de toda mulher. Não são poucos os mitos e as lendas criadas em torno da mulher
grávida em todas as culturas. A maior parte das religiões veem no ato de gerar um filho algo do
divino. Como psicanalistas tentamos compreender os temas que podem não ser excludentes como:
mulher, gravidez e feminilidade que apresentam pela própria especificidade teórica, na psicanálise,
A psicanálise não é uma moral, mas uma ética do desejo de cada sujeito. A nossa escuta se
cada gestante só devem ser ouvidas despojadas dos nossos valores pessoais. Tentamos escutar sem
A mulher pode ser vista do ponto de vista do gênero, num sentido de que ela tem um corpo
que é geneticamente determinado. A ela é dado um nome, uma educação específica. Podemos aqui
lembrar a afirmação de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se mulher. Do ponto
de vista psíquico, a condição feminina também não se constitui ou é determinada apenas por um
que optam por não terem filhos ou por alguma condição são inférteis e por isto deixam de procriar
não estarão excluídas das possibilidades de considerar a possibilidade de uma gravidez em algum
131
período de suas vidas. Podem criar formas de lidar com esta condição sem conflitos ou buscar
experimentar uma hiância entre o seu corpo imaginário e simbólico. Esta torção nos parece, muitas
vezes, mais abrupta do que a passagem do corpo infantil ao do adolescente e do corpo adulto para a
velhice. As transformações no corpo grávido podem deixar marcas no corpo imaginário de cada
uma das mulheres que atravessam esta experiência. Tal hipótese se estabeleceu a partir da nossa
As mudanças que são corporais num tempo determinado cronologicamente, tanto pelo
conhecimento do fato de que os bebês nascem depois de 7 a 9 meses, quanto internamente pelas
sensações físicas consequentes do desenvolvimento do feto que faz a barriga crescer, o peito
aumentar e assim por diante. Neste breve tempo linear, pode não corresponder ao tempo do
inconsciente para que a mulher absorva esta nova condição. Condição que envolve para a mulher
questões muito complexas como: a função materna que a gestante cria fantasmaticamente na
relação com a sua própria mãe, o lugar do pai e dos homens em seu imaginário, a maneira como ela
lida com a sua castração e a fantasia imaginária de completude que pode advir com o
A ligação com a própria figura materna ou com quem exerceu esta função tem um sentido
particular e é marcado com significantes construídos ao longo da vida. A futura mãe, não raramente,
oferece esta relação fantasmática como uma possível elaboração quando está numa análise. As suas
próprias mães relatadas pelas gestantes, por exemplo, como ausentes, simbióticas ou devastadoras
podem servir como anteparo às inúmeras queixas resultantes da própria condição feminina ou de
Ao engravidar, o parceiro a quem ela se colocou como objeto de desejo, objeto a para
Lacan, sofre um deslocamento. O feto e o futuro filho poderão começar, também, a ocupar este
132
lugar. O objeto a não é algo representado, não existe de fato, apenas os seus simulacros. Ele está
psicanalista, dá a gestante um caminho de associações que permitirão a ela tecer a sua nova posição
Sabemos que na gravidez podem, às vezes, advir variadas intercorrências não desejadas
como prematuridade fetal, morte do feto e outras. Neste período emergem questões para além da
gravidez idealizada de um casal que se ama e planeja ter um filho ou filha. As variadas formas de
encontros, casais com filhos de relacionamentos anteriores, mulheres que engravidam de relações
assunção de riscos de vida decorrência de doença prévia. Enfim, temos um campo de inúmeras
possibilidades que se mesclam ao desejo de serem mães que não raramente acompanham aquelas
intercorrências.
Muitos são os casos atendidos em que ouvimos o desejo inconsciente de serem mães em
mulheres que dizem que não queriam engravidar. Apesar dos métodos contraceptivos amplamente
divulgados e oferecidos gratuitamente na rede de saúde, as falhas no uso destes procedimentos, nos
levam a pensar na via delicada do desejo que, muitas vezes, não pode ser expressado em palavras,
tema da feminilidade não só pelo seu valor semântico e pela confusão no uso do termo, mas por ser
A feminilidade é entendida como uma posição em deslocamentos constantes. Por ser uma
inclui, pondo à prova o sentido dado pela castração que é comum a ambos os sexos. Apesar do
sexo masculino ter um representante do falo e a mulher não, isto se traduzirá no modo como cada
sujeito lida com a sua castração nos mais variados períodos e momentos da sua vida.
133
Na gestante, a feminilidade pode ser exigida a todo momento nos signos culturais e de
comportamento por imposições categóricas, como por exemplo, “ser feminina é se apresentar
filhos” e assim por diante. O fato de ser mulher e estar grávida é visível ao outro, mesmo que esta
condição não seja confortável para ela própria. Mas a feminilidade como posição está para além
O processo de tessitura de uma posição feminina que em poucos meses e após o parto
continuará seu percurso passará pelos impasses de ser mulher e da longa duração da ligação pré-
edípica da menina com a mãe, associada as manifestações de hostilidade à mãe por esta não lhe ter
dado “o que poderia ter” e que não tem, isto é, um representante do falo. Foi, talvez, a partir desse
argumento que Lacan cria a famosa fórmula da sexuação e inscreve na teoria psicanalítica a mulher
“como não-toda”.
trabalho com gestantes e puérperas. Assim, os seus sintomas através de novas palavras ditas, numa
fala que se pretende desejante desliza e podemos trazer um aplacamento dos conflitos que emergem
na mulher grávida. São nelas que observamos muitas vezes “o inconsciente à flor da pele”.
Com a ideia de que as gestantes que nos procuram e aquelas que a nós são encaminhadas
apresentam sintomas nos quais a psicanálise, ao longo do último século pode demonstrar a sua
eficácia é que apostamos no trabalho que realizamos. Temos recolhido ao longo destes muitos anos,
resultados positivos no campo da psicanálise em hospitais. São os casos já atendidos que trazem
inferências teóricas.
residentes Aline Monteiro Pinheiro, Clareana Velasco Silva de Paula e Thamires de Souza Cardoso
Mayrink Paiva e poderão dar uma breve noção do que é realizado pela equipe de psicologia no
134
Núcleo Perinatal. Os casos aqui apresentados e seus desdobramentos se apresentam com nomes
“Sou chamada por uma enfermeira para avaliar uma paciente com 38 semanas de gestação,
que se encontra na sala de admissão, relatando ideação suicida. Dirijo-me a Maria, que se diz muito
angustiada com a gravidez que não foi desejada e atrapalhou seus planos. Além disto, diz que o
planejado é que seu parto seja normal e esse também não é o seu desejo. Afirma que tem medo de
Maria diz: ‘não consigo terminar nada em minha vida, estudos, moradia, trabalho’. Nesse
momento entendo que o prosseguimento da gravidez também pudesse fazer parte dessas tantas
coisas que Maria diz não conseguir finalizar. Durante o atendimento a paciente relata que tentou
suicídio a alguns anos atrás devido a uma separação e nesse momento também e recentemente
também havia tentado interromper a vida, apesar de ficar dividida em relação aos sentimentos
dirigidos ao bebê que espera. “Sinto que algo vai acontecer... queria logo ter este filho, talvez
olhando para ele possa gostar, algo mudar”. Maria estava bastante angustiada e seu caso comoveu a
Após a internação encontro a paciente bem mais calma e diz ‘estou mais tranquila, me sinto
protegida’. A paciente relata não dividir as suas preocupações e angústias com ninguém e talvez,
por este motivo a equipe tenha tido uma atitude acertada em acolher e poder escutar o pedido de
ajuda desta paciente. Relembra o meu atendimento anterior e afirma que precisa dividir seus
pensamentos com alguém, pois quando se frustra se desequilibra. Afirma: ‘estou passando por
muitas mudanças, preciso me acostumar’. Maria teve seu filho durante a internação e segue em
135
A supervisão do caso focalizou, entre outros, o fato da paciente ter relatado tentativas de
suicídio e a sua expressão em torno do não desejo de engravidar. O risco de suicídio foi descartado
era necessário falar de suas dificuldades, favoreceu a sua demanda em prosseguir com os
“Amélia, 34 anos, 1 filha de 16 anos do seu primeiro relacionamento no Ceará. Veio para o
Rio de Janeiro com 19 anos. Mora junto com o seu atual companheiro há cerca de 1 ano. Há 6 anos
foi diagnosticada com câncer de mama e precisou fazer mastectomia e completou todo o tratamento
no INCA.
dando entrada na admissão manifestando fortes dores na coluna. Apresentei me como psicóloga do
setor e me coloquei à disposição de ouvi-la. Diz, em seguida, que precisava mesmo falar com uma
psicóloga e que já se tratava com uma psicóloga na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro,
sentir falta de sua casa e da rotina. Mesmo com a recomendação de repouso absoluto não conseguia
ficar “à toa em casa”. Dizia que não conseguia ver bagunça e não fazer nada. Relata que seu esposo
e filha são muito bagunceiros. Refere também sentir saudades de seus bichos de estimação.
Amélia diz estar na mesma idade gestacional de quando a sua primeira filha nasceu e isto a
tem assombrado de alguma forma, digo-lhe de como as coisas estão diferentes nesse momento da
sua vida. Ela me conta que o nascimento da primeira filha se deu quando ela ainda morava no
136
Nordeste de parto cesário antecipado devido a hipertensão, entretanto a filha nasceu saudável sem a
enfermagem, devido estar muito nervosa com o desentendimento que teve com sua colega do leito
ao seu lado, durante a madrugada. O desentendimento se deu devido ela ter sido chamada de
drogada por estar com o nariz fungando. A enfermagem a colocou em outro quarto em que ficaria
O atendimento posterior foi marcado por choros, gritos e desespero. Amélia estava
apavorada com a possibilidade de ter que se submeter a um parto normal. Fato que não ocorreu. Ela
deu à luz a sua filha após 39 semanas através de parto cesariano. Decidiu amamentar a filha apesar
dificuldades de relacionamento com as filhas de seu marido, sua preocupação excessiva com a
limpeza. Ao ser questionada de quando isto se iniciara conta que desde a infância, aos 8 anos,
quando da morte de uma de suas irmãs com apenas 3 anos que morreu em acidente doméstico.
depois, dizendo ter ficado muito nervosa e agitada quando de seu retorno ao INCA para fazer
exames. Os exames não acusaram nada de grave, mas isto a perturbou muito. Disse-lhe que
continuava à sua disposição até fevereiro de 2018, quando encerro o período da residência.
Nas supervisões sobre o caso pode-se destacar o quanto o fato da paciente ter sido alertada
do perigo de uma gravidez devido ao câncer de mama, de nada valeu a contraindicação dos
oncologistas. O desejo de engravidar e ser mãe prevaleceu e a paciente assumiu os riscos negando a
sua condição de saúde. Os aspectos de sua excessiva preocupação com a limpeza e arrumação não
137
puderam ser trabalhados em maior profundidade devido ao pouco tempo em que ficou em
atendimento”.
“Julia foi encaminhada ao serviço de psicologia pela equipe médica após a primeira consulta
no pré-natal. Ela descobriu a gestação atual com cerca de 24 semanas e foi encaminhada ao HUPE.
Sua doença de base, que justificava seu pré-natal como de alto risco, era um quadro de hipertensão
arterial. Em seu primeiro atendimento, ela conta ter sido encaminhada para a psicóloga porque
“sofreu uma perda”. Julia relata que cerca de 10 meses atrás ‘perdeu uma filha’. Ela estava se
referindo a experiência de ter tido um feto natimorto. Pouco tempo após esta perda, Julia
engravidou novamente.
A gestação atual que ocorreu de forma não planejada e pouco tempo após uma perda
gestacional tardia, demarca o início de seu tratamento no HUPE. Julia conta que tinha descoberto a
gravidez recentemente. Ela tem 38 anos e relata que estava sem menstruar há alguns meses, porém
atribuía este fato a possibilidade de estrar entrando na menopausa. A ausência da menstruação, por
si só não a fez desconfiar da gravidez. A paciente também percebeu um aumento de peso, e devido
a isto resolveu fazer dieta. Mesmo com dieta, continuava engordando e por este motivo, após 6
Ao ter sua suspeita confirmada, Julia disse que se sentiu muito culpada e cogita fazer um
aborto. ‘Eu fiquei muito triste ao saber da gravidez. Não parava de chorar. Parecia que este bebê
estava vindo para substituir Natália’ (o feto natimorto). Em seguida ela conta que a Natália foi uma
filha muito desejada. A gravidez de Natália não fora planejada, pois Julia acreditava que não
poderia engravidar, segundo as informações médicas. Quando descobre a gravidez - “seu milagre” -
fica extremamente feliz e começou a fazer planos. Estes planos se encerraram abruptamente,
138
Durante os atendimentos ficou possível perceber uma preocupação de Julia com o fato de
não conseguir investir na gestação atual. O bebê que está gestando não tem nome. Somado a isto
Julia não conseguiu comprar nada para este bebê. Apesar desta preocupação aparecer em
determinadas falas, Julia utiliza grande parte do tempo dos atendimentos para falar de Natália, a
Julia viveu uma perda muito significativa e não teve tempo de elaborar esta perda ao
engravidar novamente, logo em seguida. Durante algum tempo nega a sua condição de gestante, e
ao não conseguir mais negá-la, se culpa. Somado a isto, a gestação com todas as sensações e
mudanças que dela decorrem a lembram ainda mais da gestação da filha que perdeu.
Com a oferta de uma escuta, abriu-se um espaço para um trabalho de luto. Julia pode falar
sobre a perda que sofreu, e, com o tempo novas questões foram surgindo. A paciente relatou o medo
de passar por aquela experiência novamente. Associou que o fato de não conseguir investir na
gravidez atual poderia estar na tentativa de se defender do medo de uma nova perda. Aos poucos,
Julia começou a dar lugar à filha que estava esperando. Escolheu um nome, fez um chá de bebê,
mostrou-se ansiosa com a sua chegada. Não podemos dizer que o trabalho se encerrou. O trabalho
com Julia prossegue e algo se movimentou no que diz respeito ao que a levou para uma análise.
Nas supervisões trabalhou-se o fato de uma gestante conviver com perdas fetais pode
repercutir em uma nova gestação. O caso mostra claramente como um luto não elaborado trouxe
consequências importantes para a paciente atendida em psicanálise. Como dar lugar a uma filha se a
perda recente de um feto natimorto não pode ser aceito? Diante dessa realidade a possibilidade de
falar, exprimir a dor e o medo diante de uma possível nova perda se fez presente nas sessões do
atendimento. Trabalhada esta grande dificuldade em aceitar uma nova gravidez abriu- se para este
139
Poder vir ao mundo com um nome, festejada num chá de bebê foi o que este atendimento
pode dar a esta criança como prova de que houve uma elaboração na mãe ainda gestante, de uma
Os casos atendidos são em número muito elevado e os aqui expostos servem como pequenos
fragmentos exemplares do que é realizado pela equipe de residentes do Núcleo Perinatal, sob
supervisão. Os casos e os resultados obtidos são derivados de todo o trabalho descrito acima ao
reflexão de uma prática institucional, o que tem trazido bons resultados na formação dos residentes
Comentários finais
universitário. O saber do discurso médico, por exemplo, parte de verdades científicas apoiadas em
ciências como a biologia e várias outras. Assim como o campo do Serviço Social se apoia nas
saber. É um dado inquestionável que os hospitais são o campo da verdade médica, onde tudo
converge para a cura da doença, para evitar a morte ou mesmo seu adiamento. A psicanálise cria
um campo de atuação aliada aos outros campos de saberes, no sentido em que ela também pretende
uma melhora na condição do sofrimento. Ela parte da escuta do sujeito, onde emerge através dos
sintomas psíquicos ou mesmo corporais, a proteção contra algo que se teme ou mesmo se deseja,
mas não pode ser expressado ou realizado. Como um paciente hospitalar se vê como sujeito e como
ele se sente ao ser diagnosticado? No caso particular das gestantes, o que pensam e sentem ao se
140
A psicanálise escuta as gestantes de um lugar específico. O lugar no discurso proposto por
Lacan e já definido por Freud. Não é uma postura fácil de ser sustentada em meio a uma rotina de
outros. Mas estes fatos são contornados e o trabalho integra as contingências que surgem e se
realiza plenamente.
Se o discurso capitalista, definido por Lacan, não está tão visível em um hospital
universitário e público ele, mesmo assim, está presente. Na nossa sociedade, onde a população que
vem ao serviço de saúde pode estar carente de inúmeros direitos sociais, este fato se refletirá em
todas as práticas. Estas dificuldades se apresentam no discurso das pacientes e o psicanalista tem
uma mostra dos muitos sofrimentos causados pelas desigualdades econômicas, educacionais em
nossa população. Do mesmo modo que os demais agentes da saúde encontram obstáculos para o
país que o trabalho da Residência se tornou um campo de pesquisa para aqueles que se interessam
em entender o que é um psicanalista hoje. A teoria não pode dar conta do inesperado, do que
emerge nas falas dos pacientes. Se tratamos da fala num corpo adoecido, cercado por uma
linguagem médica será preciso ter uma delicada escuta no trabalho do manejo das sessões
Nos últimos anos a Residência no HUPE se tornou uma referência para muitos jovens
psicólogos e isto é demonstrado a cada ano na grande procura pelo processo seletivo anual. Mais do
que um lugar de prática e de estudo, da possibilidade de uma bolsa remunerada por dois anos, a
experiência vivida por estes jovens contribui para que tenham uma nova visão da psicanálise. A
141
A especialização de residentes em Psicologia num tradicional hospital Universitário,
conhecido pela sua importância na formação de profissionais como é o HUPE nos leva a refletir
sobre o lugar do ensino público no campo da saúde. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
umas das pioneiras no Rio de Janeiro na criação do curso de medicina, pôde, em sua evolução, criar
Através de concursos públicos e na exigência de quadros cada vez mais bem formados, o
futuros psicólogos aptos ao atendimento em geral, como também nos hospitais e nos ambulatórios.
as experiências aprendidas, as trocas e os desafios de cada dia nos levem a realizações cada vez
Referências
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Barros R. R., Vieira, M. A. (2015). Mães. Rio de Janeiro: Subversos.
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Rio de Janeiro: Imago.
Lacan, J. (1998). A significação do falo. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Obra
originalmente publicada em 1996)
142
Lacan, J. (1985). O Seminário livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Seminário
proferido em 1970)
Maldonado, M. T. (1985). Psicologia da gravidez. Petrópolis: Vozes.
Nunes, A. S. (2000). O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha. Rio de Janeiro: Civilização
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Soifer, R. (1980). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Porto Alegre: RGS, Artes Médicas.
Stewart, R. & Szejwer M. (1997). Nove meses na vida da mulher: uma abordagem psicanalítica da
gravidez e do nascimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.
143
Psicodiagnóstico: paradigmas, experiências, histórias cruzadas e desafios futuros
Resumo: O psicodiagnóstico vem passando por profundas mudanças desde a sua emergência até a
UDA de Psiquiatria do HUPE desde a sua fundação até o presente momento, articulada à história do
atual.
Abstract: Psychodiagnosis has undergone profound changes from its emergence to nowadays. In
this work, it is presented the course developed in the Psychodiagnosis Sector of the Psychiatric
UDA of HUPE from its foundation to the current moment, articulated to the history of
Psychodiagnosis in Brazil. Some conceptions that were developed during the work in the Sector are
presented and the role of resistance of psychodiagnosis in the current scenario is pointed out.
la UDA de Psiquiatría del HUPE desde su fundación hasta el presente momento, articulada a la
historia del psicodiagnóstico en Brasil. Presentamos algunas concepciones que se han desarrollado a
escena actual.
Introdução
144
O psicodiagnóstico constitui-se como um tipo de avaliação psicológica que tem como
particularidade a escuta clínica, concebida como o elemento organizador de todo o processo. Nesse
escuta clínica tem um papel relevante na condução do processo, sendo a entrevista psicológica o
para compor a avaliação. Para além de um processo avaliativo, trata-se de uma atitude terapêutica
levada à situação.
ambos de origem grega: o psíquico, relacionado à phsyche que corresponde a “sopro de vida, alma,
procedimentos técnicos. Araújo (2007) assinala que o modelo médico influenciou enormemente as
enquanto profissão. Nessa perspectiva, o papel do psicólogo ao atuar nessa área estava limitado a
endossar diagnósticos psicopatológicos, ocupando, nesse sentido, uma posição bastante subalterna
em relação aos médicos. Tendo como referência o modelo médico, a ênfase das avaliações recaia
indivíduo. Observa-se, assim, que o início das práticas avaliativas se mostrou muito marcado por
inseguranças em relação ao papel do psicólogo, pela falta de uma identidade profissional mais
consolidada e pela busca por parâmetros quantitativos na tentativa de conferir maior cientificidade
ao trabalho desenvolvido.
145
Fundamental para as mudanças sobre a concepção de diagnóstico psicológico e sobre a
avaliação psicológica foi a lei 4.119 de 27 de agosto de 1962, que regulamentou os cursos de
a partir de então, a ser concebidas não apenas com referências ao saber médico, mas sobretudo a
argentinos, como Ocampo (1981) e Arzeno (1999), bem como de brasileiros, tais como Trinca
identidade afinada às especificidades das práticas profissionais e dos princípios éticos que regem a
de suas concepções e aplicações práticas. De acordo com Araújo (2007), essa mudança vai incidir
sobre o próprio termo diagnóstico que atualmente tem sido utilizado de forma ampla, com sentido
mais próximo de seu significado etimológico, evocando sempre um estudo aprofundado realizado
grande desconhecimento e consequente despreparo no que diz respeito à área, a suas propostas
metodológicas, teóricas e práticas no próprio meio profissional. Essa realidade foi abordada em
Se por um lado existe o psicólogo que está atuando na prática, que não está preparado para
as solicitações do mercado profissional e que não está atualizado, por outro lado, têm-se
descobertas não estão sendo transmitidos de maneira eficiente (Noronha, 2012, p. 140).
observamos mudanças bastante significativas, tanto em relação à concepção do processo que pode
ser pensado em associação ou não com testes psicológicos, até a postura do psicólogo e do cliente,
Ernesto, único na cidade do Rio de Janeiro, que desde sua fundação em 1982 acompanhou
transformações pelas quais o processo psicodiagnóstico passou, sendo ele próprio propositor de
mudanças a partir da atuação prática que veio desenvolvendo ao longo dos anos e pela interlocução
com outras áreas hospitalares, além da própria Psiquiatria, como Nutrição, Cardiologia,
Judiciário através de seus diversos órgãos, não apenas do município do Rio de Janeiro, mas também
de outros municípios fluminenses e até mesmo de outro Estado (Minas Gerais). Tais parcerias
envolvem basicamente situações de violência contra crianças e adolescentes, bem como violência
doméstica.
Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto, bem como
concepções teórico-práticas que nortearam sua atuação docente-assistencial. Concluímos com nosso
expectativas e desafios futuros relativos a essa área tão importante de atuação exclusiva do
psicólogo.
147
O Setor de Psicodiagnóstico foi criado a partir de uma demanda da Unidade Docente
para sua implementação, tendo iniciado suas atividades em janeiro de 1983, ao responder aos
Desde então vem atuando não apenas em termos assistenciais, mas também quanto à capacitação de
insuficiente em termos acadêmicos, seja por restrições quanto à carga horária destinada às
disciplinas dirigidas especificamente à área, seja pelo desinteresse de docentes que não a valorizam
ou não estejam devidamente capacitados para dar-lhe o devido valor, dá-se um contraste expressivo
atuarem na área, o que se evidencia pelo número expressivo de processos e representações éticas
junto a Conselhos Regionais de Psicologia. Tal situação denigre não apenas os profissionais
diretamente implicados, mas a própria classe de psicólogos, já que são muitos, como se pode
constatar.
A avaliação psicológica tem sido definida na atualidade como a busca pela construção de
um saber sobre a vida mental de indivíduos e grupos. Sendo assim, trata-se de um procedimento
148
investigativo a respeito de diversos elementos que compõem o funcionamento psíquico e dizem
pessoais e familiares, dentre outros aspectos. Envolve um corpo organizado de princípios teóricos,
com jogos, desenhos e recursos diversos. A escolha das estratégias e dos instrumentos empregados
é feita sempre de acordo com o referencial teórico, o objetivo da avaliação, isto é, os elementos que
[...] um processo técnico e científico realizado com pessoas ou grupos de pessoas que, de
acordo com cada área do conhecimento, requer metodologias específicas. Ela é dinâmica, e
psicólogo, dentre eles, saúde, educação, trabalho e outros setores em que ela se fizer
acordo com a demanda e os fins aos quais a avaliação se destina. (Conselho Federal de
Psicologia, sendo ele próprio um elemento fundamental na construção desse entendimento. Sendo
assim, podemos afirmar que o psicodiagnóstico teve um papel muito relevante para a construção da
atual visão de avaliação psicológica, uma vez que abrange possibilidades de atuação bastante
diferenciadas dos “testólogos”, como assinala Cunha (2000), ou das preocupações com os
diagnósticos psicopatológicos. Ao adotar uma perspectiva clínica mais identificada com a teoria
149
neutralidade e a objetividade, passando a enfatizar a importância da subjetividade e dos aspectos
testagem, com ênfase nas técnicas de entrevista, no que se passa no aqui-agora da sessão, na história
de vida do examinando, com vistas à obtenção de uma compreensão global de seu estar no mundo.
cols. (2005), de Arzeno (2003) e de Trinca (1983) por serem psicanalistas. Pretendemos assim
como uma prática clínica avaliativa bem delimitada quanto ao tempo, aos objetivos, aos papéis e
apenas aspectos presentes referidos ao diagnóstico em si, mas também futuros, com a busca de uma
clínica, a aplicação de testes e técnicas projetivas. Essa perspectiva mostra-se estreitamente afinada
com o modelo clínico e a partir dela, o psicólogo deve, através das entrevistas e dos testes, construir
um conhecimento sobre o examinando, que por sua vez deve colaborar com o processo e receber
150
Enquanto Ocampo e Arzeno delimitam o psicodiagnóstico em etapas que devem ser
seguidas de maneira mais rígida e levam em consideração uma situação na qual uma pessoa pede
ajuda a outra supostamente em condições de vir a ajudá-la, Trinca (1983) concebe o processo
psicodiagnóstico de maneira bastante peculiar, dando ênfase à relação construída entre o psicólogo
proposto pelo autor foi muito difundido entre os profissionais brasileiros que trabalham com
Para isso, dialoga com outros campos do conhecimento que não apenas a psicanálise. Desse modo,
dinâmica de grupo, à dinâmica familiar, psicopatologia, dentre outras. Tem ainda como
estruturação do processo que deixa de ser pensado a partir de etapas pré-estabelecidas, como as
definidas por Ocampo e Arzeno (2005). A relação e o vínculo desenvolvidos entre o psicólogo e o
cliente são valorizados como um dos principais elementos do processo psicodiagnóstico. Neste
é próprio à relação estabelecida entre examinador e examinando (Trinca, 1983). Assim, a clínica se
procedimentos e os esquemas de raciocínio, para integração dos dados e para sua análise. Cabe
salientar que esta forma de atuação se mostra referida ao modelo clínico, porém tendo em vista as
articulações propostas com outros campos do saber, torna-se mais adequada ao exame de situações
que extrapolam a clínica, como por exemplo as perícias psicológicas ou assistências técnicas
modelo desenvolvido por Trinca (1983), na qual a avaliação e a intervenção são pensadas
não ser um processo psicoterápico, visa produzir efeitos terapêuticos a partir da reflexividade
interventivo vem sendo utilizada desde a década de 1990 por alguns profissionais da área de
passarem pelo processo psicodiagnóstico sem que houvesse, por parte dos profissionais, a intenção
examinando.
Barbieri (2010) define o psicodiagnóstico interventivo como “um procedimento clínico que
oferecendo ao paciente devoluções durante todo o processo avaliativo e não somente ao seu final”
pouco estruturados e baseados na associação livre, como as entrevistas. Assim, o uso de técnicas
projetivas faz com que as preocupações sobre validade, precisão e padronização estatística não
intrapsíquica, intrafamiliar e sociocultural como forças em interação, formando uma trama que pode
resultar em sofrimento e desajuste. A análise dos elementos psíquicos é sempre referida a seu
interventivo se baseia numa postura criativa e que integra compreensão e intervenção (Tardivo,
2007).
152
Nesse entendimento, o manejo relacional, a análise da transferência e da contratransferência,
aspectos singulares da psicodinâmica do sujeito avaliado são muito valorizados. Para Barbieri
(2010), a psicoterapia e o psicodiagnóstico interventivo se mostram afinados uma vez que vão de
encontro à proposta de Bleger (1980) quando assinala que uma boa observação requer formular
hipóteses durante a entrevista e verificá-las no momento mesmo em que elas ocorrem, de acordo
com as observações subsequentes; assim, do seu ponto de vista, observar, pensar e imaginar
psicodiagnóstica? Seria todo psicodiagnóstico interventivo? Conforme vimos, a resposta é não, pois
dependerá da técnica e da postura teórica adotadas pelo examinador, além de ter-se que considerar a
partir de alguns eixos comuns àqueles apresentados por Trinca (1983), como a busca pela
psicólogo seleciona os aspectos centrais e nodais para a compreensão dos focos de angústia, das
153
mais a utilização de outros recursos complementares, como os testes objetivos ou psicométricos.
Esse uso mostra-se justificado na medida em que os instrumentos são concebidos como recursos
avaliado o beneficiário do processo. Assim, são as hipóteses formuladas a partir do contato com
determinado sujeito que nortearão a escolha dos instrumentos mais adequados para sua avaliação.
Essa perspectiva já vem sendo descrita na literatura, conforme contribuições de Cunha (2005) e
Primi (2010).
Assim, cabe retomarmos alguns pontos importantes que caracterizaram o trabalho no Setor. Nesse
sentido o psicodiagnóstico passou a ser pensado para além de seus aspectos clínicos, mas
concepção de avaliação como produção de conhecimento sobre a vida psíquica em seus aspectos
Apesar de a proposta ser avaliativa, sempre foi sustentada a compreensão de que o psicodiagnóstico
uma perspectiva reflexiva. Nesse sentido, busca-se explicitar os sentimentos relativos à avaliação,
bem como as fantasias que, conforme sinaliza Isaacs (2007), produzem efeitos reais, não apenas no
próprio indivíduo, como também em seu entorno. Neste sentido, o trabalho avaliativo envolve em
compreender suas marcas subjetivas, seus vínculos, conflitos, desejos e estratégias defensivas.
Observamos que o exame compartilhado desses aspectos permite, em muitos casos, a ocorrência de
154
uma comunicação autêntica não apenas do sujeito examinado em direção ao examinador, mas
também voltada para seus próprios elementos internos. Essa comunicação, possível pela
salientar que tal análise difere daquela feita no contexto psicanalítico a partir do uso de
interpretações. Apesar disso, tais elementos são considerados norteadores segundo a perspectiva de
A transferência é definida por Freud (2003b) como a repetição de clichês estereotípicos por
parte do paciente em relação à figura do analista. Nesse sentido, para Freud, o paciente impedido de
recordar, repetia com o analista posturas, pensamentos e sentimentos relativos às relações primárias,
sentimentos, posturas e expectativas que não serão interpretadas como em trabalho psicanalítico,
transferência do paciente (Bokanowski, 2002; Mijolla, 2005; Sandler, 1986; Steiner, 1997). Nos
primórdios da psicanálise, foi considerada como resistência do analista provocada por conflitos
obstáculo a ser superado pelo analista através do autoexame (Freud, 2003b; Sandler, 1986).
a ser entendida como uma importante ferramenta para a compreensão do paciente e para as
intervenções do analista. Trata-se de um fenômeno que diz respeito não apenas ao analista ou ao (s)
paciente (s) atendido (s), mas à nova grupalidade formada por todos os presentes durante as sessões
155
A partir de suas formulações, Heimann (1960) tratará a contratransferência como um fenômeno
comum na clínica analítica e a olhará de modo mais positivo, enfatizando os aspectos relativos à
mas especialmente quanto à técnica, uma vez que as comunicações recebidas pelo analista podem
ser utilizadas para a compreensão da psicodinâmica envolvida, bem como nas intervenções clínicas.
nem sempre são possíveis de serem postas em palavras (Melo, Magalhães & Féres-Carneiro, 2014).
é a escuta da dinâmica familiar, com ênfase a questões relacionadas às vivências familiares (Meyer,
2002; Eiguer, 1995), comuns a todos os sujeitos. Desse modo, busca-se compreender a constituição
grupal e familiar em seus primórdios. Para Kaës (1997), o grupo cumpre funções fundamentais na
estruturação da psique e na determinação de posições subjetivas, uma vez que todo sujeito nasce
como herdeiro, servidor e beneficiário de uma cadeia de subjetividades que o precede e da qual se
torna contemporâneo. Essa cadeia subjetiva veicula discursos, sonhos e conteúdos recalcados,
fazendo com que cada sujeito seja, ao mesmo tempo, parte constituída e constituinte desse conjunto.
Esta concepção fundamenta-se em uma lógica dialética que considera o sujeito do grupo e o grupo
Destacamos que a escuta da familidade (Meyer, 2002) é realizada não apenas quando a
franceses referidos como grupalistas, como Anzieu, Kaës, Ruffiot, Eiguer, entre outros, marcam de
avanços têm sido marcados por muitas tensões, ataques, estagnações e ameaças de retrocesso. É
inegável que a partir dos anos 2000 uma série de mudanças relativas à área da avaliação psicológica
propostas pelo Conselho Federal de Psicologia em parceria com pesquisadores da área e entidades
Psicológica (IBAP), será decisiva para o cenário atual de maior valorização. Essas iniciativas
pelo Conselho Federal de Psicologia. Dessas parcerias decorrem diretrizes para o ensino da
avaliação no Brasil, bem como artigos que discutem as particularidades desse campo e
avaliação psicológica e a testagem. Assim, o momento atual se mostra inegavelmente mais fértil e
marcado pela pesquisa científica que em períodos anteriores. Além disso, cada vez mais temos
observado o crescimento das demandas por avaliações a serem realizadas por psicólogos, com o
atuação. Apesar disso, paradoxalmente a todo o crescimento, observa-se também que os avanços
pesquisas de Alves, Alchieri e Marques (2001) e de Noronha (2002) sobre o panorama geral do
ensino das técnicas de exame psicológico no Brasil. Primi (2010) frisa que de 2001 a 2010 houve
diante desse avanço, questionamos se este não se dá também e/ou principalmente por certo retorno à
157
recursos em detrimentos de outros. Dessa forma, o avanço na área parece alavancado em grande
medida pelas mesmas buscas por cientificidade que marcaram o início das práticas avaliativas no
Brasil, sobretudo alavancadas pelos parâmetros psicométricos. Primi (2010) faz a seguinte
afirmação:
adequados para todos os tipos de técnicas, incluindo as projetivas [grifo nosso]. Mas ponto
central situa-se na constatação de que essas técnicas têm peculiaridades que requerem
2010, p. 33).
suposição de que o emprego de técnicas psicométricas melhores e diferenciadas das atuais possam
validar os recursos psicológicos, dentre os quais se incluem as técnicas projetivas. Assim, apesar da
constatação de que os métodos projetivos não se adequam à análise psicométrica pelos parâmetros
atuais, a esperança de que esses parâmetros sejam desenvolvidos permanece latente. Um dado
interessante que serve para ilustrar as nossas colocações pode ser observado em relação às
seu portal eletrônico, contata-se que de 2002 a 2017, ou seja, em um período de quinze anos, apenas
sete artigos contam com a palavra psicodiagnóstico nos descritores. Mesmo assim, nem todos os
artigos abordam o processo psicodiagnóstico, mas referem-se a testes projetivos que podem ser
empregados neste tipo de avaliação. Desse modo, observamos, conjuntamente aos avanços, um
distanciamento cada vez maior dos aspectos centrais que marcam o psicodiagnóstico.
momentos, de incômodo e, nesse sentido, parece ser ainda marginal tanto para alguns psicólogos
158
que consideram o processo de avaliação e o uso de testes procedimentos rotuladores e sujeitadores,
quanto para aqueles que buscam neutralidade científica a partir de parâmetros psicométricos vistos
como garantidores de validade e cientificidade. Entretanto, apesar das dificuldades, podemos dizer
No que diz respeito especificamente ao Setor de Psicodiagnóstico, podemos afirmar que ele
teve papel fundamental na formação de muitos profissionais no Rio de Janeiro, não apenas do ponto
reais que enseja, como se constata em termos de decisões judiciais, por exemplo.
apenas quando um sujeito ou um grupo se apropria de sua história, terá condições de vir a
compreender sua condição presente de estar no mundo, para então poder se projetar no futuro,
desejavelmente de uma forma mais criativa. A partir dessa perspectiva, podemos afirmar que o
trabalho desenvolvido no Setor tem uma importante dimensão histórica e social para o
reconhecimento das práticas avaliativas e para formação no Rio de Janeiro. Assim, conhecer um
pouco da história do Setor é também conhecer um pouco das várias histórias que se cruzam e
constituem quem dele se beneficiou, sejam pacientes, estudantes ou demais profissionais. Poder dar
testemunho de uma história tão rica, de tantas superações e que continua em processo de
psicólogo no Brasil e no Rio de Janeiro e se articular frente aos desafios e perspectivas que estão
por vir.
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159
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161
Psicanálise e família: percalços do édipo e seus destinos trágicos
Preso a veleidades infantis, enreda-se em relação perversa narcísica pautada pelo ant’édipo mal
temperado, na qual cada genitor tem parte ativa. Fragmentos clínicos ilustram tal sofrimento
psíquico compartilhado.
of them deriving from the inter-subjectivity and as being in it as well. Family with prevalent
narcissistic functioning is intolerant to originate mourning and lacks interdiction, what is evident
through the predestined figurant. Trapped in infantile fancies, he is entangled with his parents in a
narcissistic perverted relationship derived from badly tempered antoedipus. Some clinical fragments
are presented.
predestinado. Atrapado en veleidades infantiles, enreda-se con sus padres en relación perversa
narcisista pautada por el ant’edipo mal templado. Fragmentos clínicos ilustran tal sufrimiento
psíquico compartido.
162
Introdução
A terapia de família a partir da escuta psicanalítica vem sendo praticada na Unidade Docente
Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto desde 1972, a partir da fundação
do Setor de Terapia de Família pelo Psicólogo Antônio Celso, que encabeçou-o até 1976, quando
sua coordenação foi assumida pela psicóloga Drª. Malvine Zalcberg até 1990. A partir dessa data,
ficou sob a responsabilidade da psicóloga Drª. Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado até 2017.
O setor dedica-se basicamente a assistir famílias de pacientes psiquiátricos, mas também de outros
O interesse no estudo da família partiu de Palo Alto, quando Bateson e sua equipe se
como mãe intrusiva, pai ausente, até se chegar a um terceiro momento em que se compreendeu
Muitos psicanalistas se ocuparam com questões familiares sem serem terapeutas de família
(Mannoni, Dolto, Winnicott, Searls, Bowlby, Bleger, entre outros), mas grande contribuição se dará
justamente por seu interesse específico em psicose, família, grupos e instituições (entre eles,
Racamier, Anzieu, Decherf, Caillot, Kaës, Ruffiot, Tisseron, Almeida-Prado, etc.). Bion se
apresenta como um pioneiro no que diz respeito à compreensão dos processos grupais a partir da
perspectiva psicanalítica e suas contribuições continuam a ser referidas e retomadas nesse campo.
grupo familiar, estudos revelaram mecanismos relativos à transmissão psíquica entre as gerações.
Conforme Freud já assinalava em 1913, seria impossível não transmitir porque, em caso contrário,
teria que se começar sempre do zero. A transmissão se dá tanto de elementos elaborados, referida
163
como intergeracional, quanto daqueles in bruto, que correspondem à transmissão transgeracional,
relativos ao que não foi superado, como traumas precoces promotores de transtornos identitários
graves, luto, vergonha, humilhação, violência, abuso. Trata-se de situações inomináveis, que se
tornam indizíveis e impensáveis, mas nem por isto deixam de ser efetivas no psiquismo individual
A família tem suas raízes na escolha de parceiros, que se dá pautada basicamente por
Anzieu (1975, 1984) refere cinco deles: a ressonância fantasiosa, a imago, as fantasias originais, o
imagem do corpo próprio e o envelope psíquico do aparelho psíquico grupal. Ruffiot (1981) afirma
ter constatado o valor do esquema proposto por Anzieu para o conjunto dos grupos em evolução,
em formação ou em terapia, bem como para o grupo familiar em terapia, na regressão instada pela
situação psicanalítica e na retomada de sua maturação, com suas devidas nuanças clínicas.
todos e organiza o conjunto é substituída pelo arbitrário e pela anomia, tema do qual se ocupou
Kaës assinala que, no presente, esse mal-estar pode ser qualificado em três tipos de
transtornos, sendo que as patologias do vínculo se sustentam numa espécie de círculo vicioso. Cita
primeiramente aquele derivado das falhas nos sustentáculos da pulsão e no pacto das renúncias
pulsionais parciais necessárias à vida em comum, transtornos estes que se expressam pela defusão
164
seguida o transtorno que se dá nas identificações e nos sistemas de vínculos, que se manifestam pela
desorganização de marcos identificatórios e das fronteiras do Eu. Tal situação se expressa pelas
falhas dos contratos intersubjetivos sobre os quais se assentam as garantias do espaço onde o Eu
pode advir e se historizar como pertencendo a um Nós. Por fim, refere-se ao transtorno nas certezas
Diante desses mal-estares e transtornos, nos diz Kaës, o grupo se inventa e se reinventa para
grupos como dizendo respeito à atenção dada aos efeitos do inconsciente sobre os processos
grupais, bem como destes sobre os processos psíquicos considerados individualmente. A família
constitui um grupo específico, no qual tais efeitos estão operando e justamente atuantes na
constituição de cada sujeito, necessariamente a partir de um outro, ele próprio fruto de uma história
cujas raízes se encontram em seu grupo de pertença, familiar e social, do qual é porta-voz.
O nexo do enquadre e do objeto próprio à psicanálise de família tem que levar em conta as
bem como considerar a realidade psíquica própria à família enquanto conjunto específico, com sua
sujeito da e na intersubjetividade.
intolerante ao luto originário e carente de interdição, o que pode se evidenciar na relação com um de
seus membros em particular, referido como figurante predestinado (Racamier, 1989). Preso a suas
veleidades infantis, ele se vê enredado em relação perversa narcísica pautada pelo ant’édipo mal
165
temperado, na qual cada genitor tem parte ativa numa psicodinâmica caracterizada pelo incestual
(Racamier, 1989). Fragmentos clínicos ilustram esta forma de sofrimento psíquico compartilhado.
Apresentamos uma família constituída por casal beirando os sessenta anos, ambos com nível
de instrução superior, Helena e João, e três filhos, duas mulheres, Lúcia e Inês, e o caçula, então
com trinta anos, que tinha o mesmo nome que o pai e ao qual nos referiremos como Joãozinho.
Lúcia era profissional independente, já casada e morava com o marido e suas duas filhas. Inês era
policial e se encontrava em vias de sair de casa para casar-se. Joãozinho não tinha nenhuma
autonomia financeira, nunca trabalhara, embora tivesse formação de nível superior. Isolado, não
possuía círculo de amizades, nem nunca tivera algum envolvimento afetivo. Encontrava-se em
acompanhamento psiquiátrico após episódio de agressividade para com o pai, o que o levou à
internação em clínica psiquiátrica. Haja vista evidentes dificuldades nas relações familiares, deu-se
Chamada para assistência, compareceu apenas o casal parental: Lúcia já tinha família
constituída, Inês considerou que a proposta não lhe dizia respeito e Joãozinho recusou-se a
internação, foi relatado que Joãozinho permanecia o dia todo em casa atrás da mãe demandando
atenção, pedindo que fizesse comida para ele ou querendo conversar. Para tanto, costumava chamá-
la a seu quarto, mas muitas vezes a agredia. Segundo Helena, quando "perdeu a vergonha" (sic),
passou a dar beliscões nela na frente dos outros, inclusive do pai. Este justificou não se interpor
entre mãe e filho porque, ao fazê-lo, ela passaria mal (sic), além de afirmar já tê-lo enfrentado
Nesse acolhimento à família, uma situação se esboçava: Helena dizer que o filho perdera a
vergonha sugere que ele passara a fazer algo que deveria ser mantido em segredo entre eles, longe
de olhos alheios, inclusive – ou sobretudo? –, os do pai. João, por outro lado, justifica sua falta de
intervenção para que Helena não passe mal – então é ela quem detém o poder –, mas assinala a
166
seguir que, diante do filho, ele não tem força, nem moral, nem física. Constata-se que o interdito do
tocar não está operante entre mãe e filho, e sexualidade e agressividade, misturadas, expressam a
violência pulsional. A conotação sexual se acentua através da aliança “secreta” entre mãe e filho,
sugestiva de outra transgressão, a edípica, pelas costas do marido-pai, mantido à parte não apenas
por eles, mas também por suas próprias razões: João se via e era visto como sem força.
segundo a qual a vida psíquica tem por base as qualidades sensíveis. O autor questiona, segundo os
modos de organização psíquica, quais seriam os efeitos das estimulações táteis: restauração
estimuladoras ou inibidoras sobre a vida sexual ulterior provêm do êxito ou das falhas do aparelho
psíquico em constituir um eu-pele e depois ultrapassá-lo num eu-pensante. Assinala que todo
interdito diz respeito, ao mesmo tempo, a pulsões sexuais e pulsões agressivas ao canalizar sua
pressão, delimitar fontes corporais, reorganizar seus objetos e fins, e estruturar as relações entre
elas. Se isto é mais evidente em se tratando do interdito edípico, não deixa de ser válido para o do
tocar. No entender do autor, para este, sexualidade e agressividade não estão estruturalmente
diferenciadas, sendo assimiladas enquanto expressão da violência pulsional em geral. No que diz
Todo interdito se caracteriza por sua bilateralidade, isto é, se aplica ao emissor das
interdições bem como a seu destinatário. Para que exerça seu efeito de reestruturação do
funcionamento psíquico, o interdito do tocar, assim como o edípico, requer que seja respeitado
pelos pais. Quando isto não ocorre, dão-se faltas graves e repetitivas das quais decorre um
Ao tratar do interdito primário do tocar, Anzieu assinala que ele impõe uma existência
separada ao ser em vias de se individuar e envolve experiências que terão daí por diante que ser
167
fantasiadas. A interdição é significada à criança pela mãe sob a forma ativa de uma tomada de
distância física. Quando ela falha nesse sentido, é relevante que alguém do meio possa intervir
como porta-voz do interdito para que o filho cresça e tenha espaço e tempo para viver por si
o interdito secundário do tocar se aplica à pulsão de dominação: não se pode tocar em tudo, tomar
posse de tudo, ser mestre de tudo. A interdição é formulada tanto pela linguagem gestual, quanto
pela verbal. O sentido explícito implicado é que não apenas não se pode pegar, mas tem-se que
terreno fértil para a perversão narcísica, cuja origem se encontra no universo megalomaníaco
mas ao apresentar a noção de configuração edípica Faimberg (2001) acentua uma extensão maior,
identificação com a forma como os pais possam ter resolvido um conflito narcísico. Se a aquisição
psíquica das diferenças dos seres, dos sexos e das gerações é fundamental para o sujeito, apresenta-
se como essencial que este seja reconhecido como diferenciado da própria história edípica dos pais,
mesmo que isto se dê necessariamente de forma parcial, haja vista estarem sempre presentes os
desejos inconscientes deles. Assim, o conceito de configuração edípica inclui relações recíprocas
entre pais e filhos, ainda que assimétricas, considerando-se a condição de desamparo própria àquele
que nasce. Anzieu (1985) assinala que não importa quão intensos venham a ser os desejos edípicos
incestuosos e hostis despertados nos pais por ocasião da maturação sexual de seus filhos, eles não
complexo de Édipo como um alívio para a criança, pois na situação triangular a terceira figura, na
verdade uma condição psíquica do genitor, tornaria possível a conservação do amor e do desejo que
168
ela nutre pelo outro genitor. O autor acrescenta que, se não fosse por esse terceiro, haveria apenas
Desejos inconscientes na relação do filho para com ambos os pais envolvem anseios
incestuosos e mortíferos, encadeados na relação entre gerações, considerando-se que os pais tiveram
pais e depois vieram a ter filhos. Em seu mundo interior o filho capta, de certa forma, o modo como
seus pais o reconhecem em sua alteridade e o que possa ter representado para eles o sexo com o
qual nasceu. Como serão organizados seus conflitos edípicos dependerá dessa captação (Faimberg,
2001).
No caso em tela, buscando-se averiguar sobre as agressões físicas do filho para com a mãe,
descobrimos que estas se davam há muito tempo, desde que Joãozinho contava quinze anos, quando
começou a dar-lhe “soquinhos” ao estarem a sós. Com o tempo, passou a agredi-la com beliscões,
socos, chutes e puxões de cabelo, numa violência sempre crescente, causando-lhe hematomas,
escondidos por ela. Seu silêncio se justificava por “querer que tudo fosse como era antes, que a
família não se separasse” (sic). No entender dela, a descoberta do que se passava entre ela e o filho
“estragara tudo” (sic), pois suas filhas se posicionaram de forma bastante radical diante da situação,
vista por elas como inaceitável: Lúcia deixou de frequentar a casa dos pais, privando-os do convívio
inclusive relativas à separação, intrínseca ao próprio crescimento. Ser como era antes, mas “antes”
do que? Um tempo mítico, eterno, sem evolução, de permanência contínua, portanto sem separação.
Joãozinho nada tem na vida, a não ser a mãe, sendo apenas ela que deseja, exclusiva para si, e nada
mais lhe importa. Por sua vez, ela o privilegia em detrimento do marido e, assim, mãe e filho
permanecem presos em uma sedução narcísica interminável, que corresponde à fascinação mútua,
originalmente entre o bebê e sua mãe, com vistas a um ser simbiótico único, todo-poderoso, ao
abrigo das vicissitudes pulsionais e da ambivalência, das separações e dos lutos, de forma que a
169
João assinalou não ter bom relacionamento com o filho, que chegara a chamá-lo de “zero à
esquerda” (sic). Relatou que costumava tentar uma aproximação, convidava-o a jogar futebol e
passarem um tempo juntos, mas ele se recusava, pois desejava sair apenas quando a mãe estivesse
presente e preferia mesmo estar a sós com ela. Além disso, afirmou não conseguir estar com o filho
porque Helena “sempre arrumava algum impedimento” (sic). Após algum tempo de terapia, revelou
sentir-se “deixado de lado” (sic) e ter ciúmes da esposa, que privilegiava a companhia do filho.
Afirmou ter sempre sentido “como se estivesse atrapalhando alguma coisa entre eles” (sic).
Racamier (1992) assinala que o incesto, é o incesto e não é o édipo, é mesmo o contrário.
Em ação, o incesto não se limita a sua prática genital, ele tem equivalentes, que não são poucos. O
autor nomeia e qualifica como incestual o que, na vida psíquica individual e familiar, leva a marca
do incesto não fantasiado, sem que estejam necessariamente presentes as formas físicas. O incestual
é mais amplo em sua área e mais complexo que o incestuoso; designa os equivalentes do incesto,
seus substitutos, sem omitir, e nós tendemos a esquecê-lo, observa Caillot (1995), os equivalentes
do assassinato, muitas vezes muito bem escondidos. Ressaltemos, portanto, que o complexo de
Édipo implica não apenas na proibição do incesto, mas também na de matar e na do tocar (Anzieu,
1985).
Beliscar a mãe pelas costas do pai em pacto secreto mantido por ambos por quase quinze
anos equivale ao incesto, prática oculta que se torna pública quando o filho “perde a vergonha”,
como se um ato sexual passasse a se dar na frente de todos, sem nenhum pudor. A sedução narcísica
se apresenta como “motor” essencial para o ant’édipo mal temperado – “ante”, que antecede, “anti”,
que se opõe, o ant’édipo com essa dupla face estará sempre presente como antecessor do édipo. Tal
configuração se apresenta bem temperada a partir de fantasias que envolvam uma inversão ou uma
igualdade geracional com deslocamentos simbólicos mais ou menos importantes. Para que o
170
Édipo na posição depressiva de M. Klein (1975) remete ao luto originário conforme descrito por
Racamier (1992), que o designa como o processo psíquico fundamental através do qual o eu, desde
a primeira infância, antes mesmo de sua emergência e até sua morte, renuncia à possessão total do
objeto, faz seu luto de um uníssono narcísico absoluto e de uma constância de ser indefinida. Será
através desse luto, fundador das próprias origens do eu, que se operam a descoberta do objeto bem
favorecem uma organização psíquica referida como perversão narcísica (Racamier, 1987), que pode
se apresentar durável ou transitória e que visa que o sujeito se coloque ao abrigo dos conflitos
manipulado como utensílio. A perversão narcísica se constitui antes de mais nada de ação e de
condutas. Racamier chama a atenção sobre o pouco que se conhece das fantasias a elas subjacentes,
pedestal da sedução narcísica interminável. A conduta narcisicamente perversa será sempre uma
desqualificação ativa, mais ou mesmo sutil, do eu do outro e de seu narcisismo legítimo. Tal
situação implica em um aspecto paradoxal, pois a tarefa psíquica a ser processada e injetada no
ant’édipo mal temperado que abre as portas para a perversão narcísica e o incesto ou seus
equivalentes. Assim, no complexo de Édipo parricídio e incesto podem ser considerados, ainda que
não somente, como uma luta narcisista que se origina da ilusão de existir apenas um espaço
psíquico, no qual nunca haverá mais do que um único objeto erótico (Faimberg, 2001). Para
Helena se mostrava inadmissível que o filho tivesse outros vínculos significativos, além dela
própria, especialmente com mulheres. Quando Joãozinho aceitou fazer psicoterapia individual, ele
exigiu que fosse com uma psicóloga que o havia atendido na adolescência, com quem
171
aparentemente tinha estabelecido vínculo expressivo. Helena se opôs radicalmente, ao ponto de
confundir a situação e dizer que a referida psicóloga teria morrido. Esclarecido o equívoco e
iniciada a psicoterapia, revelou preferir que o filho fosse atendido por um homem, por considerar
que a psicoterapeuta seria “como uma mãezona para ele” (sic) e que “passaria a mão na sua cabeça”
Repetiam-se padrões na relação entre mãe, pai e filho, conforme pode ser ilustrado na
seguinte circunstância: quando combinavam sair juntos, o pai tendia a ser excluído, pois Joãozinho
costumava pedir à mãe que se encontrassem antes para conversarem a sós, o que era visto por ela
como “normal” (sic). Em uma dessas ocasiões, foi relatado um desentendimento entre pai e filho,
no qual o primeiro se retirou do restaurante em que estavam por considerar ter sido desrespeitado.
Helena ficou com o filho, indo ambos ao cinema em seguida. A desvalorização de João se
Cotidianamente, mãe e filho assistiam novela juntos, na cama do casal. Ao chegar para
dormir, João se incomodava, porém não esboçava nenhuma reação, e assim ficavam os três na
cama, com Helena no meio. Esta relaciona esse fato aos pedidos do filho quando pequeno, de ficar
na cama com ela na ausência do pai, “ao ver que estava muito sozinha” (sic). Nessa época, afirma,
Joãozinho costumava dizer não ter ninguém para conversar, somente a mãe. Por ocasião de
seu aniversário, propôs-lhe que viajassem juntos para um hotel, porém, diante de sua negativa,
agrediu-a, ocasião em que Inês, policial, ameaçou-o com sua arma, expulsando-o de casa.
Preocupada, Helena solicitou socorro ao marido e ao cunhado, que se depararam com ele fugindo
pelas escadas do prédio em que moravam. Após dar um soco no pai, veio a ser internado.
Se por um lado se apresentava inaceitável para Joãozinho que a mãe tivesse outro homem
além dele próprio, a recíproca se mostrava verdadeira. Quando de sua internação, “uma coisa muito
estranha” (sic), no entender de Helena, se passou: ele conversava com os demais pacientes, dava-
lhes conselhos e ficou amigo de todos. Ademais, para seu total desconcerto, uma moça se
172
“encantara” por ele (sic) e passou-lhe seu número de telefone. Ao mexer nas coisas dele e encontrar
o papel com números de telefones, rasgou-o e jogou-o fora, alegando como justificativa preocupar-
se com o envolvimento do filho com “pessoas com problemas sérios que podiam ser perigosas”
João considerava que o filho fora tratado pela mãe diferentemente das irmãs, pois sendo
muito apegada a ele, mimou-o demais. Relata que quando as meninas eram pequenas, ela trabalhava
em tempo integral, mas para ficar com o caçula, passou a trabalhar meio período. Helena negou
haver qualquer diferença no tratamento para com os filhos. Assinala, no entanto, que ele sempre
fora muito sensível e recorda sua reação, aos três anos de idade, quando tomou ciência da morte da
primeira filha do casal, falecida quando contava um ano devido a catapora não devidamente tratada:
“Diferente das irmãs, ele chorou muito, questionava, fazia perguntas, enquanto elas não ficaram
daquele jeito” (sic). Contudo, o encantamento de Helena para com Joãozinho antecede esse fato,
pois ele “fazia coisas diferentes” (sic) como, com dois anos de idade, esconder-se debaixo da cama
quando voltava do trabalho, o que favoreceu sua opção por trabalhar meio período. Diante dessas
lembranças, admitiu que talvez tivesse realmente sido diferente para com ele – vimos que, a seu ver,
A menção da perda dessa filha produziu retraimento no casal parental que ficou muito
emocionado. Helena afirmou não conseguir viver esse luto, reconhecendo-o. Contou não ter entrado
mais no quarto da filha por ter feito uma viagem em seguida a sua morte; ao retornar, o cômodo já
havia sido reformado, bem como tinham sido retiradas as coisas da criança. Reconheceu ter
Lutos paradoxais
No que diz respeito à compreensão do trabalho de luto e dos lutos patológicos, novos
173
seres e as gerações, as realidades interna e externa, o interior da família e o exterior dela, mas é
preciso acrescentar também, conforme tão bem assinala Caillot (1995), os mortos dos vivos, o
organizador é o duplo interdito do incesto, o duplo interdito do tocar (Anzieu, 1985), conforme
vimos acima.
Britton (2003) sugere que somente quando a relação exclusiva é perdida torna-se possível
deixar para trás ilusões edípicas, nas quais não se reconhecem as diferenças entre os
relacionamentos parental e progenitor-criança. Isto porque o luto por essa perda traria a percepção
de que o triângulo edipiano não prediz a morte do relacionamento, apenas a morte de uma ideia:
aquela que supõe que a chegada de um terceiro sempre assassina a relação de um casal, seja o
parental, seja o par da amamentação. Em contrapartida, quando esta ideia se instala com convicção,
leva à psicopatologia.
Helena e João afirmam que nunca brigaram desde que estão casados, no entanto, na família
riscos de separação e de união, corporais e psíquicos. Sem o recalque, não havendo a integração das
dependência dos pais – nem o dos pais da independência dos filhos –, a organização edípica não se
situa ou não o faz plenamente. A família edípica se opõe ao incesto e ao assassinato, bem como à
Caillot (1995) considera essencial constatar que o interdito do incesto organiza a diferença
geracional e o luto originário, que condicionam a diferença entre os mortos e os vivos (itálicos do
autor). Em seu entender, as confusões paradoxais morto-vivo pertencem bem ao registro incestuoso:
aliás, assinala ele, talvez possamos falar de vivo-não-vivo para as pessoas em vida, que
correspondem aos objetos-fantasmas de P.-C. Racamier (1992), com sua dupla propriedade de estar
morto/vivo ou, conforme precisa, de estar ao mesmo tempo não-morto e não-vivo. Submetidos a
uma dupla recusa, sem o selo de um reconhecimento, nem o de um luto, Racamier considera que o
174
objeto fantasma faz parte eminente dos objetos paradoxais, como o é o filho de substituição, aquele
que ocupa o lugar de um filho morto, cujo nome muitas vezes ele carrega, e que será o “tapa-luto”,
No registro incestual aqui abordado nos deparamos com uma mãe-não mãe, a mãe-amante
face ao luto não elaborado da filha e que passa a funcionar como “tapa-luto”. Destaca-se o
Considerações finais
aqui abordada, sugestiva de lutos patológicos que têm por base a sedução narcísica interminável e o
luto originário não elaborado. Busca-se uma situação aconflitual, com aspirações relacionais muito
idealizadas, observáveis no comentário feito por Helena de que ela e o marido nunca brigaram
mobiliza angústias como se estivesse em risco a própria vida, só que o colapso tão temido já foi
experiência de forma a integrá-la (Winnicott, 1994). Assim, relações narcísicas pautadas pela
paradoxalidade, pelo incesto e pelo incestual, buscam evitar o que é vivido como uma ameaça de
rompimento, visam aproximar o que prenuncia se afastar. O incesto, sendo uma questão
fundamentalmente narcísica mais do que sexual (Racamier, 1989), tem uma função anti-separadora
sua personalidade próprio à perversão narcísica, a princípio inaparente, mas que se apresenta
invariável a partir de sedimentos defensivos que o escondem. Muito defensiva, portando de acesso
difícil, Helena age e tende a banalizar situações, nas quais não vê nada demais, como quando o filho
175
se recusa a sair do quarto do casal parental à noite e ela dorme entre ele e o marido, ou quando
busca relação exclusiva com ela pelo fato de ser sua mãe, o que ela acha natural. Helena justifica a
manutenção de posturas dependentes ou suas reações agressivas “por ele ser doente”, como se ela
buscasse um ganho secundário através da “doença” do filho, que “não sabe fazer as coisas” (sic), no
que está implicada a necessidade de ele receber seus cuidados sempre. As defesas se organizam
como uma fortaleza que se pretende inviolável e a ameaça de uma falha na estrutura defensiva
implica em o eu ficar perigosamente vulnerável, ameaçado pela depressão ou, pior ainda, pelo
colapso.
coletiva se rompe, com fratura e dissolução. Mais do que nunca é válida a divisa de Caillot e
Decherf (1982) de que viver junto é impossível, mas separar-nos é mortal. Contudo, tal situação
não apenas é sustentada pelo grupo familiar, como também se nutre do meio em que se forma, no
por todas as impossibilidades que acarretam e pela estreiteza de perspectivas que geram, com o
tempo paralisado em termos psíquicos, já que ele não para nunca. Nessas circunstâncias, demandas
e expectativas se mostram fora de lugar, como as de um homem que não abre mão de suas
veleidades infantis, como se permanecesse com três anos quando de fato conta trinta, e uma mãe de
cinquenta be sete anos que se encanta com esse homem que não tem olhos para nenhuma outra
outros meios... Sem trabalho, sem estudo, sem relações sociais, sem vida amorosa, sem nenhuma
Helena demonstra não desejar abrir mão da intimidade com ele pelas gratificações narcísicas que
lhe proporciona, mas sobretudo como uma garantia de evitar a depressão e o que seja temido como
176
um desmoronamento psíquico. João, inseguro, preterido, sem valor, conforma-se à situação e
Apenas a referência ao lugar que ocupa o pai da criança ou seu próprio pai no desejo
negativamente nos marcos identificatórios do filho e em sua unificação como sujeito, de modo que
ele permanece alienado no desejo materno. Joãozinho não se identifica com o pai e não renuncia a
seus desejos incestuosos, alimentados pela mãe em pacto narcísico, que não suporta transformação.
Dão-se alianças calcadas na recusa comum, pelo segredo compartilhado e pela dominação que o
perverso narcísico exerce sobre seus parceiros, com sua cumplicidade, consciente ou inconsciente.
de cada sujeito de modo que o vínculo possa se constituir e se manter de forma complementar e
intoxicação psíquica ou linhas de fuga que mantêm o sujeito do vínculo estrangeiro a sua própria
Pouco se sabe sobre as famílias de origem de Helena e João. Ela perdeu o pai em acidente
quando era ainda adolescente, situação abordada por João como muito sofrida em sessão em que ela
não comparecera. Helena contou que mantinha relacionamento mais próximo com a mãe do que os
outros irmãos. João refere ao próprio pai, já falecido, como não lhe dando atenção, o que o fez ficar
mais próximo dos irmãos. Não fez nenhuma referência a sua mãe. Esses fiapos de história são
177
poderosas para impedir o pensar e, em família, seus membros se apresentam como complemento
operatório das defesas em jogo. A perversão narcísica, portanto, está longe de ser um assunto
intrapsíquico, já que é altamente interativo. Sem pactos de renúncia, não há condição de ser.
Referências
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72.
Britton, R. (2003) Crença e imaginação: explorações em psicanálise (L. P. Chaves, Trad.). Rio de
Janeiro: Imago. (Obra originalmente publicada em 1998)
Caillot, J.-P. (1995) Le deuil paradoxal. Groupal 1. Deuils dans la famille. Paris: Éditions du
Collège, 78-84.
Freud, S. (1974a) Totem e tabu. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas
completas de Sigmund Freud (Vol. 13). Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente publicada em
1913 [1912-13])
Freud, S. (1974b) O mal-estar na civilização. In: S. Freud, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Obra originalmente
publicada em 1930 [1929])
Klein, M. (1975) O sentimento de solidão (P. D. Corrêa, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Obra
originalmente publicada em 1963)
Puget, J. & Berenstein, I. (1993) Psicanálise do casal (F. F. Settineri, Trad.). Porto Alegre: Artes
Médicas. (Obra originalmente publicada em 1989)
Winnicott, D.W. (1980) A família e o desenvolvimento do indivíduo (J. Corrêa, Trad.). São Paulo:
Martins Fontes. (Obra originalmente publicada em 1965)
Winnicott, D.W. (1994) Explorações psicanalíticas (J. O. de A. Abreu, Trad.). Porto Alegre: Artes
Médicas Sul. (Obra originalmente publicada em 1989)
179
Notas psicanalíticas sobre o hospital e a criança
Michelle Menezes Wendling, Liana Ling Gonçalves Setianto, Talita Alves Barbosa da Silva,
Fernanda Nogueira Klumb
Clínica e Institucional no ambulatório de Pediatria do HUPE, o texto destaca duas linhas gerais, o
hospital e a criança, a fim de explorar o lugar da instituição hospitalar e das representações sobre a
criança e a infância na cultura e discutir algumas contribuições da psicanálise para os dois temas.
escuta como busca de sustentar a singularidade da fala das crianças, operação que dá lugar ao
Abstract: Starting from concerns by a study of the Residency in Clinical and Institutional
Psychology at HUPE Pediatric ambulatory, the text highlights two general issues, the hospital and
the child, in order to explore the hospital institution and the representations about the child and
childhood into culture and to discuss some contributions of psychoanalysis for both themes. It talks
about the singularity of psychoanalytic orientation in clinical and institutional work with children
guided by the idea of infant in psychoanalysis. The fragments of the clinical ambulatory bring the
listening as a search of sustaining a singularity of children’s speech, operation that gives place to
Psicología Clínica e Institucional en el ambulatorio de Pediatría del HUPE, el texto destaca dos
líneas generales, el hospital y el niño, para explorar el lugar de la institución del hospital y de las
180
representaciones sobre el niño y la infancia en la cultura y discutir algunas contribuciones del
trabajo clínico e institucional con niños orientado por la idea de infantil en el psicoanálisis. Los
singularidad del habla de los niños, operación que da lugar al extraño, en un desplazamiento de los
Restar no irrespirável
Enquanto acento tônico
Ponto de interrogação
Ou até mesmo ponto de exclamação
Ou como exemplo de estilo sem pontuação (...)
(Waly Salomão)
Dois disparadores compõem o ponto de partida para a escrita deste texto: a atuação num
Psicologia, a discussão aqui proposta pretende abordar algumas consequências das relações entre
psicanálise e hospital, inserindo-as num exercício de leitura que leva em conta uma perspectiva
histórica dessas relações. No quadro dessa perspectiva de abordagem, pretendemos ressaltar alguns
trabalha no serviço ou diretamente das interconsultas e outras atividades com a presença dos
residentes de psicologia. Talvez por conta de recebermos pacientes não internados, não há um
considerados um desafio ao novo modelo de cuidado proposto, não centrado na ação médica. No
domínio da chamada saúde mental, durante a década de 80, os ambulatórios pensados para
substituir os asilos não foram uma saída eficaz para o modelo hospitalocêntrico (Tenório, 2001).
estratégico na nova rede de cuidados proposta, a atenção psicossocial. Dispositivos como “clínica
tratamentos. Quanto aos ambulatórios gerais, talvez caiba positivar sua importância quanto ao
acolhimento de sujeitos que dificilmente teriam acesso a serviços oferecidos pela psicologia
(Tenório, 2001). Mesmo que os ambulatórios hospitalares apresentem uma organização centrada
nas especialidades médicas, proposta que marca uma dinâmica diferente dos NAPS e CAPS, a
182
Caracterizado o campo a partir do qual surgiram inquietações que deram matéria a este
texto, cabe iniciarmos nossa incursão nos disparadores acima destacados, o hospital e a criança. À
primeira vista, eles constituem um plano comum, norteador das práticas da equipe multidisciplinar
no ambulatório de Pediatria.
tecnologia médica. Antes do século XVIII o hospital era um espaço de assistência, de separação e
exclusão dos pobres (pelo perigo de contágio), espaço para onde iam morrer. Junto a essas funções,
também se apresentava como um espaço de salvação espiritual. Nele, leigos e religiosos cumpriam
medicina, por sua vez, não atribuía a esse espaço uma posição privilegiada de campo de práticas e
de formação, tal como ocorre hoje. Foucault defende que o hospital e a medicina eram duas séries
Nesse espaço antes confuso, a técnica médica assume seu lugar preponderante no curso de um
poder e preocupações com a saúde das populações, consolidando a nova função complexa do
hospital. Ele passa a ser misto de instrumento terapêutico por excelência, guiado pelo saber médico,
sistema de registros permanente (identificação dos doentes, registro de entradas e saídas, mortes,
Figura central dessa passagem, o “grande médico” pode ser compreendido como encarnação
de uma certa operação de saber-poder. A hipótese foucaultiana de que as críticas à psiquiatria têm
como base principalmente a relação de poder do médico e os efeitos produzidos nos pacientes
poder médico em formas acessíveis a uma descrição em termos científicos. No texto em questão,
são essas relações de poder que interessam a Foucault. Hipótese do autor: uma crise na medicina se
inicia quando se desconfia que é exatamente o contato com o médico que produz a crise histérica.
A partir do século XIX, proliferam-se discursos críticos quanto ao saber e ao poder médicos,
quanto à verdade sobre a doença fabricada pela medicina (Foucault, 1996b). Muitos desses
discursos críticos inserem, aliás, a medicina num quadro amplo de saberes ligados a instituições
(escola, fábrica, prisão). Não se trataria de problematizar a eficácia ou a importância dela, mas a
O que nos interessa nos referidos textos abordados acima é parte da história da psicanálise
contada pelo autor: ela não poderia ser pensada sem nos remetermos às críticas à instituição asilar.
mesmo do hospital, um deslocamento de poder para evitar o que ele produz. A relação entre o
paciente e o médico passa a situar-se no discurso. Aqui, o autor destaca o domínio da regra do
Operação que silenciaria, privatizaria e tornaria invisível o poder médico, sem modificá-lo
fundamentalmente.
apenas num espaço privado – desdobrado em “ela não é eficaz para este tipo de lugar” - tenta
diminuir a importância de sua presença no hospital. Mascara-se o fato dela ser herdeira, de certo
modo, da tradição clínica francesa ligada a Charcot em La Salpêtrière. Esquece-se das atuações de
Freud no Hospital Geral de Viena, de Lacan em Saint Anne e, mesmo no Brasil, do exercício da
184
consequências. Se Foucault fala em relações de poder, da submissão e exclusão da loucura como
com Lacan (1992), localizar a medicina no discurso do mestre e suas universalizações de saber. Na
ciência, o discurso do mestre gera um saber que se autoriza por ele mesmo, o que tira a potência
dinâmica da verdade e exclui qualquer narrativa fora desse ciclo que o sujeito possa produzir.
Lebrun (2004) diferencia ciência como produção de conhecimento e como laço social. Interessam,
consumido que elide a enunciação como constituinte do laço social e deixa crer que pode se
autofundar.
Segundo Clavreul (1983), o discurso médico opera uma separação entre a doença e aquilo
que o doente sente dela. Do mesmo modo, ela também “despossui” o médico de sua posição
subjetiva. Na ordem médica não há sujeito da enunciação, os ditos são puros enunciados numa
relação anônima. Ela funciona como um imperativo, não precisa ser defendida e demonstrada, “se
impõe por ela mesma”, em nome da vida como valor absoluto (Clavreul, 1983, p. 7). Está aí para
ser cumprida e sempre chegará o dia em que recorreremos a ela. Nesse sentido, os ditos dos
funcionários anônimos dessa ordem (os médicos) devem ser obedecidos, para o nosso bem.
No entanto, algo fracassa, falha, nesse anonimato. É evidente que o excluído por atrapalhar o
bom percurso da cura, faz seu trabalho (Moretto, 2002). O doente pode adotar, acreditar no
discurso médico, mas os mecanismos de dessubjetivação não o recobrem totalmente. Por isso, a
histeria compõe a antinomia medicina-psicanálise. Longe de delimitar o que seria a paciente ideal,
de desempenhar o papel esperado pelo médico, ela traz a céu aberto o que retorna desse apagamento
dos aspectos subjetivos. Não à toa, a histeria está sempre referida, no discurso da medicina, à
relação do doente com o saber médico. Composta por sintomas definidos pela medicina como
migratórios, capazes de mudar sem intervenção, ou inalterados, uma vez esgotados todos os
185
Se não seria possível pensar o hospital sem sua função de templo da ciência guiado pela
ordem médica, não se trata de concorrer com ele no hospital ou destituí-lo de sua importância. O
fato é que tal ordem ajuda a produzir o que não consegue tratar. Mesmo com a resposta “você não
tem nada” dada à histérica, o médico sabe que há algo aí. A psicanálise se propõe justamente a
ouvir esses restos excluídos pela medicina. Ao invés de tentar reduzir a fala dos sujeitos ao que
interessa ao diagnóstico da doença, a psicanálise dá abertura para proliferar a fala, para possibilitar
assim que o desejo apareça. Desse modo, a proposta da psicanálise é ajudar a restituir ao sujeito seu
Nessa leitura da ordem médica é relevante fazer um deslocamento: não tomá-la como
conta, aliás, a lógica dos discursos na psicanálise lacaniana, consideramos que não há um discurso
que deva ser prevalente, há passagens entre eles e o inconsciente é o motor dessa circulação.
Moretto nos fala da função tranquilizante, “mágica” do diagnóstico em alguns casos: ele apazigua a
angústia por nomear uma dor, um sofrimento. Ele é um dentre vários mecanismos para amenizar as
inquietudes vindas de um encontro com um “não saber o que fazer”, com os ditos “casos difíceis”.
Nas instituições, por exemplo, podemos nos servir de certas prerrogativas de tratamento
(“reinserção social”, “reabilitação psicossocial”) como imperativos, ou seja, como aquilo que se
deve obter ou seguir, sem implicar os sujeitos, sua fala e singularidade, no trabalho (Rinaldi, 2015).
Podemos dizer que um dos efeitos possíveis do encontro dos saberes com seus limites é
abertura a outros campos (Rinaldi, 2015). O hospital de que trata este texto é um hospital público,
função terapêutica. Não se pode esquecer que esse modelo de atenção proposta pelo SUS é
inseparável de críticas aos limites da ordem médica e do “hospital tradicional” e incluiu em suas
propostas a participação dos usuários dos serviços, da sociedade civil, dos movimentos sociais, dos
186
políticas, econômicas e subjetivas como inseparáveis dos tratamentos. Nesse contexto também
permeado pela pluralidade de orientações, a psicanálise está lançada numa “prática entre vários” e
depende dela para operar como uma política que possa ajudar a equipe a sustentar os furos no saber,
desenvolvimento, o domínio dos estudos da cognição trouxe uma novidade que nos interessa aqui: a
estruturas cognitivas numa ordem sucessiva (Kastrup, 2000). Se tais estruturas na criança ou no
adulto são entendidas num nexo que inclui o tempo cronológico na transformação das formas e a
genealogia que nos fala de formas compreensíveis em termos de linhagens e descendências, pode-se
dizer que o adulto seria o previsível ponto final do processo de mudança. Por conta disso, Kastrup
defende que há uma ideia de progresso nesses estudos. Como resto dessas operações comparativas,
Em suas investigações sobre o sujeito epistêmico, Piaget nos apresenta passo a passo a
construção de novas estruturas que culminarão no modo adulto de conhecer. Acognição da criança
como a criança alcança a forma adulta de conhecer? (Kastrup, 2000). Tomemos a ideia de
fim estabelecido como modelo. Esse significante nos interessa pela semelhança discursiva com os
pedidos de atendimento endereçados à clínica com crianças hoje. Ele nos ajuda a historicizar, aliás,
187
a invenção de novos modos de entender a infância, de nomeá-la, de pedir à ciência que nos ajude ao
se ocupar dela.
Pode-se dizer que usos atribuídos às palavras criança e infância que conhecemos hoje se
Média até o século XVIII (Ariès, 1986). A infância, antes inserida com mais liberdade no mundo
quarentena para a idade adulta. Essa passagem ao mundo adulto nos fala de uma separação radical
entre o mundo infantil e adulto. Nos conta também, algo sobre os instrumentos criados levando em
conta essa diferença. Nesse sentido, a especificidade dada à infância fez da escola núcleo
obrigatório de formação para a entrada no mundo adulto. Junto às inquietações sobre educação, as
preocupações acerca da saúde da criança constituíram uma marca dessa transformação. A partir do
século XIX, tornaram-se possíveis discursos científicos que lidavam com questões atribuídas
civilização” (Freud, 2010b) é um texto que recolhe os restos dessa operação em forma de
Não surpreende que os discursos da ciência sobre a criança possuam também essa marca. É preciso
pensar sobre os desdobramentos dessa promessa malograda hoje. Há muitos discursos críticos sobre
a modernidade e suas consequências, que abordam o uso da ciência para fins totalitários ou que
consideram ser a pretensão totalizadora uma marca indelével do discurso da ciência (Lebrun, 2004).
Não nos dedicaremos aqui a um aprofundamento desse debate, interessa-nos como a psicanálise se
188
Segundo Joel Birman (1997), é importante acompanhar as descontinuidades no discurso
desse adjetivo com os termos criança e infância, é preciso não nos enganarmos com a suposta
invenção mesma da psicanálise, da nova leitura do espírito humano feita por ela.
Num texto sobre as críticas de Adorno ao progresso, Löwy e Varikas (1992) apresentam
uma imagem evocada por Hegel: a chegada triunfal de Napoleão em sua cidade descrita como visão
do espírito do mundo sobre um cavalo1. Nas Luzes, a ideologia moderna do progresso tem como
“suprema expressão filosófica” a obra hegeliana. Nela, cada acontecimento histórico é tomado
como “marcha da humanidade em direção à liberdade” (Löwy & Varikas, 1992, p. 201). Birman
Esse entendimento foi inspirado na inscrição do homem na ordem da natureza feita pela obra de
registro do pensamento, da “marcha conquistadora da Razão dominante” (Lowy & Varikas, 1992,
p. 201). É que as pulsões e seus imperativos regulam as produções do espírito. Os sujeitos teriam
como tarefa historicizar o corpo, pulsional e sexual, tornar possível uma “encorpação”. Trata-se de
construir um espírito no corpo. Assim, há infância do espírito e a vida do corpo é possível pela
mediação do outro. Aqui temos um ponto crucial: a ordem vital humana é marcada pela
insuficiência, remetendo-nos, por mais que haja um trabalho de historicização, à nossa finitude.
Essa seria a passagem da infância ao infantil na psicanálise, irredutível a uma visão cronológica e
189
Entre os anos de 1915 e 1920, pode-se dizer que o infantil remete ao inconsciente e ao
processo primário. Os sonhos, os atos falhos e a formação dos sintomas remetem à associação do
infantil ao registro da sexualidade e do desejo (Birman, 1997). Os “Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade” (Freud, 1982) afirmam as pulsões perverso-polimorfas como base do infantil e como
elemento fundamental da sexualidade humana. Não à toa, Lacan (1988), ao retomar o essencial nas
lições freudianas, reafirma o mal-estar na civilização e a falta de garantia “no macrocosmo, nem no
microcosmo” contra a pastoral analítica e sua vocação para uma ortopedia (p. 17; 23). Um dos
ideais dessa visão dos sujeitos passa pela crença na maturidade, na genitalização do desejo,
são apenas uma modalidade pulsional, na qual encontramos uma inscrição no campo das
representações; há pulsão de morte, sem representação. O infantil como adjetivo remete agora a
algo exterior ao domínio do desejo: o trauma e a angústia do real. A ideia de desamparo sintetiza a
posição de clivagem do sujeito em face da força pulsional, lançado sem garantias ao excesso da
domar, docilizar, está aberta a possibilidade de historicização para o sujeito, a fim de contornar,
sempre parcialmente, a morte e tornar enfim suportável esse “território apátrida e sem nome”.
tornar o sujeito possível (Birman, 1997, pp. 27-28). É assim que em meio a uma discussão sobre
neurose traumática Freud refere-se a uma brincadeira de criança (Freud, 2010a). O fort-da: no
ausência. Se a educação impõe pouco a pouco o proibido e o permitido pela razão, afastando-nos do
trato lúdico das palavras e das coisas, o jogo aponta para uma outra via na lida com o estranho
construída pela criança e pelo adulto (Ferreira, 2017). Poeta e criança que brinca têm em comum a
190
criação de um outro mundo, ambos fazem um tratamento daquilo que é penoso pelo jogo infantil e
compreender qual é a posição ocupada pela criança no discurso do Outro. Numa passagem da
análise do pequeno Hans, Freud (2015) diz que o adulto deseja, em geral, “ser deixado em paz e não
ter problemas, em suma, criar um filho bem-comportado” quando se trata da educação das crianças.
Ele completa: “pouco nos importando se esse curso de desenvolvimento é vantajoso para a criança”
(p. 278). O que resta dessa operação, não completamente realizável, de apaziguar, conformar?
No texto “Alocução sobre as psicoses da criança”. Lacan (2003) remete ao “termo criança
generalizado” (p. 367). Teríamos nos distanciado da criança vista segundo um ideal adulto de
sujeito acabado, maduro, racional? O que seria hoje a criança ideal? Passone (2016) toma o termo
A-Criança, de Voltolini (2008) para delimitar o Outro social contemporâneo. Este poderia ser um
dos sentidos da criança generalizada, “certa ‘hipertrofia’ da infância no imaginário social”. Longe
de significar a generalização do lúdico na lida com o real, do brincar no social, o termo quer dizer
que a criança está sujeita aos excessos de nosso tempo: produção de objetos de consumo junto;
pretensão totalizadora da ciência ao tentar dar conta do real (Lebrun, 2004). O desejo adulto de uma
infância sem limites para lidar com a criança e o real do infantil pode levar ao apagamento de uma
adulto coincide com o da criança imaginariamente entendido como tempo de toda satisfação
possível, nos parece que são as crianças quem ficam “à mercê da própria sorte, tanto de suas
pulsões quanto do gozo infantil do Outro” (Passone, 2016, p. 130). Aqui reafirmamos a importância
do infantil para a psicanálise. Como se pode suportá-lo não somente como impossível, mas como
191
Letícia era acompanhada pelo Projeto Obesidade Infantil Multidisciplinar do HUPE há oito
ansioso e déficit de atenção e hiperatividade”. A mãe dizia que a filha havia recebido o diagnóstico
de TDAH, mas nunca fez tratamento para tal. A garota mostrava-se confortável em seu assento. Nas
mãos trazia uma pasta com seus exames e documentos. Comunicava-se bem e respondia a maioria
das perguntas, mas não fazia contato visual direto com nenhum dos residentes. A mãe chamava a
atenção da menina com frequência, pedindo para ajeitar as roupas e sentar-se adequadamente na
cadeira, e mandava que respondesse às perguntas. Dizia que Letícia era muito agitada e ansiosa, o
que a fazia comer compulsivamente e sem limites, até o ponto de comer uma cebola crua. A garota
Após o início do tratamento, o contato com os pais aponta para o fator familiar presente no
“transtorno alimentar” de Letícia: todos da família tinham problemas de sobrepeso. Tanto a mãe
quanto o pai tinham um discurso bastante crítico em relação à filha. Segundo os dois, a garota não
seguia a dieta; não dormia cedo porque ficava até tarde no celular; fazia “cenas na escola”- seus
pais foram convocados pela direção. Em determinado atendimento, muito angustiada, a mãe diz “já
não sei o que fazer”. A garota não quer ir à aula e chega sempre atrasada, os colegas e a professora
se queixam dela. Recentemente, houve um contratempo na colônia de férias: saiu nua do vestiário
feminino se dirigindo até o equivalente masculino, comportamento cuja repreensão não a fez parar
de repeti-lo.
Numa das primeiras sessões encontrou na sala de atendimento um jogo de tabuleiro chamado
“Combate” e quis jogar. As sessões eram uma zona de confronto, com soldados fardados dos dois
lados, em embate do início ao fim. Letícia sentia prazer em competir e assumia uma posição de
rivalidade. Tinha o costume de tentar trapacear para ganhar nos jogos. As tentativas de propor
outras brincadeiras eram sempre rechaçadas e quando era convidada ao diálogo, Letícia não
192
respondia ou respondia brevemente e voltava a atenção ao jogo. Predominava nas sessões uma
atmosfera hostil e ela mantinha a dificuldade de olhar nos olhos. Nos relatos das sessões, a residente
Um dia, Letícia falou sobre um “jogo de dança” que gostava de brincar no celular. A
residente propôs jogar junto. Ela selecionou os vídeos das músicas de que gostava, com entusiasmo.
Dançaram juntas. Na leveza da sessão, uma nova dinâmica transferencial surgiu. Ela passou a
chamar a residente pelo nome. O jogo “Combate” ficou de lado. Desenhos e bonecas interessavam
mais. O olhar já não desviava todas as vezes e, mesmo sem ele, Letícia contemplava a psicóloga de
outras formas: narrativas sobre sua vida e possibilidade da residente escolher um jogo também.
Cecília, dez anos, foi encaminhada por um médico sob suspeita de “Transtorno de
Aprendizagem”. Nas falas sobre ela aparecia a marca de uma defasagem, referências a uma criança
talvez infantil demais. Ela era paciente do HUPE há alguns anos e tinha duas irmãs, uma irmã mais
velha e uma irmã gêmea. Seus pais eram separados e as três moravam com a mãe. Era a avó paterna
Desde a primeira vez, Cecília questionou com empolgação com empolgação à residente:
“você vai ser a minha psicóloga?”. Nas sessões, costumava escolher as bonecas “Polly” e montar
uma casa em que moravam ela e a irmã, cada uma em um quarto. Elas recebiam visitas dos pais
nessa casa. Nessa brincadeira, a residente representava a irmã que morava com ela. Havia também
uma terceira pessoa, para quem ela criava “várias armadilhas” - mordidas de cachorro, dar comida
estragada, veneno, ou então queimar o vestido dessa outra, identificada apenas como menina. Esta
era “a chata”, aquela que só aparecia para perturbar, inclusive no meio da noite. Vale destacar que a
“chata” era também aquela que roubava seus pais e tinha um nome diferente enunciado a cada hora.
Toda semana, Cecília escolhia as mesmas bonecas e mobílias para a casa, colocando os
móveis exatamente como estavam na sessão anterior. Durante muitas sessões, a configuração da
brincadeira se manteve a mesma e Cecília perguntava – “Vamos brincar de novo de Polly, né?”,
193
“Você se incomoda? Você já está de saco cheio?”. Toda a dinâmica familiar e conflitos existentes
surgiam a partir dessa mesma brincadeira. Em uma das sessões, Cecília foi reiteradamente em
direção à porta da sala onde ocorriam as sessões para verificar se a irmã gêmea estava esperando
fora da sala, além de pedir que a irmã participasse da sessão. A irmã mais velha até agora não tem
Se o pai aparecia constantemente anulado no discurso da mãe das meninas e, de certo modo,
também da fala avó paterna, no discurso de Cecília ele estava sempre colado à mãe (da menina) –
os dois eram apenas “papai e mamãe”. Em uma das sessões, ela diz: “Por fora ele é pai dela, por
dentro é nosso pai”. A misteriosa referência ao “dela” parecia remeter aos discursos outros sobre o
pai, a avó parafraseando a mãe e as referências que a própria avó trazia dele. O “nosso” pai parecia
referido pela avó como “usuário de drogas”, e aquele com quem sua ex-mulher queria evitar
qualquer tipo de contato, inclusive, se necessário, não permitindo que a menina fosse às sessões,
para evitar um envolvimento da avó (conteúdo que apareceu na fala da mãe numa conversa), pessoa
que sempre acompanhava Cecília e dizia estar sobrecarregada pelos cuidados com as netas.
Lucas tem cinco anos e passou a frequentar os atendimentos por um pedido da mãe, Ana. A
questão inicial trazida por ela era não ter coragem para contar a “verdade sobre a morte do pai” para
o filho. Ela contou à criança que o pai “morreu porque comeu muito”. Lucas, paciente do setor de
Nutrição do hospital, indagou: “muita besteira?”. Ao que ela teria dito “sim”. Apesar dessa resposta,
a mãe vivenciava um conflito: contaria ou não a verdade ao filho e, se assim o fizesse, como faria
isso?
Quanto aos atendimentos, nas primeiras sessões Lucas desenhava vários corações. Muitas
vezes entregava-os a sua mãe. Dizia que a amava muito. Algumas semanas depois, a mãe relatava o
choro do filho ao se lembrar do pai. Ele a perguntava: “mãe, por que o papai tinha que comer tanta
besteira?”. Essa fala incomodava tanto a mãe que ela decidiu contar a verdade. Processo
194
acompanhado pelo acolhimento da fala angustiada da mãe. Após a mãe contar que o pai morreu
assassinado, a residente percebeu uma alteração significativa nas sessões. Lucas começou a
desenhar e representar super-heróis e vilões envolvidos em histórias com cenas violentas, com
mortes e salvamentos. Apesar disso, os corações, entregues à mãe com mais frequência, ainda
Apareciam nas sessões desenhos de uma pessoa toda cortada em um leito de hospital. Lucas
refere-se aqui ao próprio hospital, “pessoas internadas” poderiam ser cortadas ou estar em perigo de
morte. Nessa situação, Lucas disse: “existem pessoas horríveis que nós amamos, mas não
gostamos”. Fala que podemos relacionar à mudança no relato materno sobre a morte do pai e ao
uma vítima e uma testemunha. Ele me contou que a vítima, caída no chão, foi morta por um
“assassinador”. Este, por sua vez, seria denunciado pela testemunha à polícia, que mataria o
acusado. Tal cena de violência se relacionava com seu segundo desenho, o de uma criança em casa,
sozinha, morta por uma pessoa que entrou na casa. No terceiro desenho, finalmente, ele se referiu a
um homem que matou outro homem. A sequência fala de um trabalho de elaboração do filho para
Dias antes do dia dos pais, por exemplo, o garoto demonstrou raiva nas falas e nas
brincadeiras: jogou objetos de forma abrupta e furou várias vezes o quadro de recados da sala.
Quando perguntado sobre essas ações, dizia não querer falar sobre o que estava fazendo, afirmando
poder fazer o que quisesse na sala. Durante essa semana, a mãe relata que o filho chorou muito e
No trabalho clínico com os casos relatados acima, podemos situar a importância da escuta.
Ela não busca fazer conjunto, não faz um, não tende à uniformidade. Os pedidos de atendimento
chegam atravessados pelas falas e pelas demandas adultas, pais, cuidadores e profissionais: vimos o
195
pedido de atendimento para ajudar a manejar a mentira da mãe e ajudar a contar a verdade sobre a
para o que não vai bem. Letícia tinha TDHA, postura desafiadora, “compulsão alimentar”; Cecília
irmã gêmea, mais viva, mas próxima do esperado para a idade. É fundamental acolher esses
pedidos, a angústia veiculada às falas adultas a fim de compreender a posição atribuída à criança
nessas relações, situar os atravessamentos contidos nas produções discursivas sobre as crianças em
questão. Proliferar as falas, deslocá-las de uma espécie de síntese que parece naturalizar os ditos:
nesse jogo de afirmar-se maciçamente, entender do que nos fala essa repetição, como a criança se
posiciona em face dessas falas dos adultos. O olhar que ela nega à residente não nos diz de uma
posição já bastante olhada? Contra a posição de “criança problema” - resultante de uma gravidez
não permitida pela doença da mãe - , desafios, nudez, combate para ganhar. Se fazer presente num
desarranjo do esperado e pedido pelos adultos. Quando nos deslocamos da posição de simplesmente
coadunar com o que vem pronto, não somos mais um. O olhar e o lúdico se apresentam e, quem
Junto ao acolhimento das falas adultas, muitas vezes carregadas de angústia, a escuta
também oferece um tempo de pausa nos pedidos de solução e de respostas imediatas. Às vezes o
tratamento parece não andar, dá sono, cansa. Precisamos nos perguntar como nos localizamos
nesses pedidos, se não estamos deslizando para uma escuta surda, capaz de reafirmar verdades todas
caso a caso mostram efeitos em direção ao desejo, ao sujeito que propomos escutar. A escuta dá
espaço para a criança elaborar, tomar alguma distância dos discursos adultos. Permite tocar estes
discursos por outras vias, singulares. Na mesmice da brincadeira de casinha e bonecas de Letícia,
196
um trabalho sobre o impossível das relações familiares conflituosas. Na passagem dos desenhos de
corações aos desenhos sobre feridos no hospital e narrativas sobre violência e assassinatos,
elaborações sobre morte e destruição, permissão para o aparecimento das ambiguidades dos afetos,
para reconstruir uma história por seus próprios meios, se contar nas palavras.
dos ideais. Há também aqui uma tarefa política: ao sustentar também na “prática entre vários”
(Rinaldi, 2015) a possibilidade de “restar no irrespirável”, levar à política o sujeito. Uma outra
política, possível, no quadro do SUS, pela sustentação dos furos com a equipe, nas brechas abertas
Notas
1.Os autores citam a reformulação de Adorno, digna de nota, em Minima Moralia, texto escrito
durante a segunda guerra mundial: “Eu vi o espírito do mundo, mas não a cavalo: eu o vi nas asas
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199
Um lugar possível para a psicanálise no contexto médico: sobre a construção do trabalho em
UDA de Pediatria desde 2012, quando foi retomada a inserção dos residentes na mesma. A ênfase
recai sobre o lugar da escuta psicanalítica no contexto do discurso médico, tomando-o pela
configuração que assume com os efeitos do avanço da ciência. Por meio de vinhetas clínicas,
evidenciamos como sustentar o desejo do analista implica refundar por meio do ato analítico a
Abstract: We present the general guidelines that inform the work in a multidisciplinary field in the
Pediatrics unit since 2012, when the residents' reintegration was resumed. The emphasis is on the
place of psychoanalytic listening in the context of the medical discourse, analyzing the
configuration it assumes with the advancement of medical science. Through clinical vignettes, we
show how sustaining the analyst's desire entails refounding the experience of the unconscious
Resumen: Evidenciamos las líneas generales que orientan el trabajo en el ámbito multidisciplinario
en la unidad de Pediatría desde 2012, cuando se reanudó la inserción de los residentes en la misma.
El énfasis recae sobre el lugar de la escucha psicoanalítica en el contexto del discurso médico,
tomándolo por la configuración que asume con los efectos del avance de la ciencia. Por medio de
viñetas clínicas, evidenciamos cómo sostener el deseo del analista implica refundar por medio del
200
Estabelecendo uma nova inserção para os residentes na Unidade Docente Assistencial de
Universitário Pedro Ernesto (HUPE) foi restabelecida como campo de prática para os psicólogos
residentes. Esse passo foi possível em função do ingresso de um novo docente como preceptor no
multidisciplinar do setor. Não havia, portanto, uma modalidade de trabalho já constituída para os
psicólogos. Por outro lado, não trazíamos nós, tampouco, uma proposta a priori.
O modo de trabalho dos residentes foi se delineando, deste modo, no decorrer de sua
inserção nas diferentes equipes. Duas linhas gerais, no entanto, estiveram sempre presentes:
dos residentes nas equipes dos ambulatórios foi sendo definida segundo as demandas
presentes nas mesmas. Demandas estas que puderam ser, em alguns casos, com o tempo, por
nós trabalhadas quanto à sua formulação, levando-nos a rever nossa inserção em certos
▪ Desde o início, ficou definido que o trabalho em âmbito multidisciplinar seria privilegiado.
Isso quer dizer que não inauguraríamos um ambulatório de psicologia dentro da UDA de
Em seguida, a própria interrogação que suscita este lugar dentro; a qual, em nosso caso, deriva em
particular do fato de que é como psicanalistas que nos dirigimos a essa prática. Tal questão, que
decorre da própria relação do psicanalista com seu ato, converteu-se em tema de investigações
atualmente, existem dois projetos a isso voltados, subsidiados por agências de fomento em pesquisa
Lembremos que, em 1966, Lacan foi convidado a um colóquio organizado por Jeanne Aubry
anos ela sustentava a presença de psicanalistas junto às equipes médicas. Em sua intervenção
(Lacan, 2001), ele anunciou querer considerar este lugar da psicanálise na medicina do ponto de
vista da modificação muito rápida que se produzia no que chamou de função do médico. Somos aí
remetidos ao que ele articulara meses antes, na lição de abertura do seu seminário inaugurado em 1º
de dezembro de 1965, a qual veio a ser publicada nos Escritos com o título A ciência e a verdade
(Lacan, 1998). Isto porque a dita mudança na função do médico é associada, na intervenção de
ciência na vida comum”. Essa afirmação se reporta ao que Lacan (1998, p. 869) introduzira em A
ciência e a verdade, no que concerne à ciência, em termos de uma “radical mudança de estilo no
tempo de seu progresso pela forma galopante de sua imisção em nosso mundo, pelas reações em
202
cadeia que caracterizam o que podemos chamar de expansões de sua energética”. Tomando o
historiador e filósofo Alexandre Koyré como guia, esta mudança é por ele conjugada à “mutação
decisiva que, por intermédio da física, fundou A ciência no sentido moderno, sentido que se postula
Para Lacan, portanto, é preciso articular essa mudança na função do médico aos efeitos do
discurso da ciência. Trata-se do discurso da ciência que se estabeleceu, segundo o que Lacan situou
em A ciência e a verdade, a partir desta mutação operada pela ciência moderna. Lacan (2001, p. 9)
define o que teria determinado esta mudança na função do médico ao afirmar que “a medicina
entrou em sua fase científica no ponto em que um mundo nasceu, mundo que a partir de então exige
na ciência, presente a todos em seus efeitos”. Se Lacan se volta para a questão da mudança na
função do médico quando se trata de discutir o lugar da psicanálise na medicina, podemos entender
que, no âmbito do psicanalista, esta é uma questão preliminar à possibilidade de sua ação nesse
terreno. Por outro lado, vemos que se trataria também ali da formalização do que permitiria ao
Quando Lacan (2001, p. 10) pergunta: “onde está o limite em que o médico deve agir e a quê
deve ele responder?”, dizendo ser a posição do psicanalista “a única de onde o médico pode manter
a originalidade de sempre da sua posição” (p. 13), ele evoca uma elucubração recorrente em sua
obra de que, no que toca à relação com o saber, é na experiência do psicanalista que se encontra, a
partir de um certo momento, uma chance de resposta. Tal conjectura se apoia na definição do
psicanalista como “alguém para quem existe a questão da dependência do sujeito em relação ao
discurso que o sustenta e não que ele sustenta” (Lacan, 2008, p. 158). Esta passagem, que se
encontra no Seminário livro 16: De um Outro ao outro é antecedida pela seguinte observação:
(...) Em suma, cheguei à exorbitância delirante – porque, faz um tempinho, deliro cá comigo
que essas coisas sempre saem um dia, de uma forma ou de outra – que consistiu em dizer (é
203
um delírio meu, ou não) que eu gostaria que as pessoas se dessem conta de que já não é
possível desempenhar o papel que convém à transmissão do saber sem ser psicanalista.
registros, as unidades de valor. Pois bem, justamente por ter acontecido alguma coisa com o
valor do saber, quem quiser, no futuro, assenhorear-se dos meios do que se pode chamar de
um efeito de formação e ocupar um lugar pertinente aos locais em que ele deve ser produzido,
mesmo que se trate de matemática, de bioquímica ou de qualquer outra coisa, fará bem em ser
afirma: “Agora não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda
universitária, mas de que essas ciências encontrem em sua experiência uma oportunidade de se
renovar”.
No colóquio em La Salpetrière, no que diz respeito aos novos problemas colocados pela
incidência do progresso da ciência sobre a função do médico, Lacan (1966/2001) propunha que os
médicos se balizassem pelo que o discurso analítico conjuga e que são estruturas de falha.
Primeiramente, a falha entre demanda e desejo, que ele diz se tratar de experiência banal mesmo
para os médicos, embora seja seriamente interrogada apenas pela psicanálise. E a falha epistemo-
somática, com a qual Lacan (2001, p. 11) propõe reanimar o que o termo psicossomática colocava
no que concerne ao corpo humano”. Ele ressalta que a proposta do corpo em seu pretenso registro
de sua substância gozante, torna falha a relação epistemo-somática da medicina com a dimensão
corporal. Lacan (2001) destaca, assim, que algo não se acomoda à lógica purificante da relação
204
epistemo-somática, fruto dos impactos que o progresso da ciência produziu sobre a concepção
médica do corpo. Em razão disso, um gozo do corpo se apresenta sem relação ao saber.
A localização desta falha por Lacan expressa o modo de incidência da psicanálise quanto à
articulação do discurso científico. Tal aspecto está sintetizado, por exemplo, na passagem do
Seminário livro 18: De um discurso que não fosse semblante, em que ele afirma que o discurso
científico “só tem como referência a impossibilidade a que conduzem suas deduções” (Lacan, 2009,
p. 27). Já em A ciência e a verdade, Lacan (1998, p.875) dizia que “a ciência mostra-se definida
passo inaugural da psicanálise, foi também nos impasses do método (científico) que a verdade do
afigura como contexto do impasse, do fracasso, da insuficiência que Lacan (1991) apoiará a divisa
Bem cedo, Freud (1996a) se deparou com o valor traumático da sexualidade infantil na
constituição subjetiva e, com isso, da função estruturante da fantasia nas neuroses. Foi desse modo
essencialmente delimitada pela realidade psíquica. Neste esteio, a abordagem lacaniana das relações
entre psicanálise e medicina veio a se inscrever no que vinha sendo desenvolvido pela tradição de
pensamento francesa de sua época em torno de uma ruptura epistemológica entre os dois campos
(Birman, 2010).
Nos termos de nossa discussão, a abertura para a escuta psicanalítica se instala nas situações
em que a ordem médica se vê desestabilizada pelos impasses psíquicos gerados pelo encontro com
as diferentes faces que o real assume no cenário do hospital. Ou seja, quando algo da falha vem para
o primeiro plano de modo a provocar angústia. A fragilidade do corpo, a doença incurável, a morte,
a impossibilidade de tudo curar. Eis alguns nomes para o real que incide sobre médicos, outros
205
profissionais da saúde e pacientes. O não tratamento pela via do simbólico das defesas e modos de
gozo inconscientes erigidas por cada sujeito como resposta a tais embaraços pode retornar na forma
imaginárias que organizavam a visão de mundo religiosa. Uma atuação de orientação psicanalítica
em um contexto médico requer, contudo, o desafio de descortinar uma nova dimensão do corpo que
suas diversas especialidades. Como dissemos ter Lacan (2010) sublinhado, a psicanálise surgiu na
mesma época em que a medicina entrou em sua chamada fase científica, o que, indiquemos agora,
Foucault (1977), até o final do século XIX, a medicina era eminentemente classificatória e procedia
temas de natureza imaginária. Com a ascensão da medicina social, a doença passou a ser
O ingresso da medicina na era científica ocorreu de forma tardia devido a obstáculos morais
que impediam o estudo objetivo do corpo por meio da investigação de cadáveres (Barreto &
Iannini, 2017). Desse modo, a prática médica encontrou no método anatomoclínico o crivo de sua
legitimidade epistêmica. A vinculação dos quadros nosológicos a uma determinada lesão orgânica
passou a constituir uma base explicativa segura para a medicina. O adoecimento histérico, contudo,
meio médico de sua época, deslocou a histeria do discurso da clínica médica, voltada para o cuidado
geral de mulheres, para o da neurologia. Freud herdou essa problemática durante sua formação
206
neurológica iniciada com Charcot, posteriormente com Bernheim e Breuer. O modelo neurológico
enfatizava a dimensão involuntária do sujeito e a ação terapêutica pautada inteiramente nos efeitos
Lacan (2001) observa que é na relação forjada e nada assegurada da medicina com a ciência
diferenciadas que são oferecidas como campo de trabalho ao médico. Sem estes deslizamentos
dentro do próprio campo da medicina, não teria havido terreno fértil para a emergência da
psicanálise. Freud rompeu com essa perspectiva ao demonstrar que a matriz da miscelânea
sintomática da histeria não reside em uma disfunção orgânica, mas nas marcas psíquicas deixadas
pela experiência traumática do encontro com a diferença sexual (Freud, 1996c). As balizas
conceituais da psicanálise permitem situar como ocorre a emergência do sujeito. A boa coordenação
com o desejo do Outro como organizadores dos circuitos pulsionais. Ansermet (2003) enfatiza que
o organismo não é suficiente para fazer um corpo, visto que é a linguagem que propicia a
experiência de um corpo que o sujeito refere como corpo próprio. A hipótese do inconsciente indica
que o corpo anatômico é afetado pelos modos de satisfação pulsional que recortam as zonas
Pediatria
multidisciplinar no hospital, é também a partir dos impasses que este pode vir a se instituir,
impasses a serem lidos como falhas engendradas pelo discurso. É preciso que já haja uma
descontinuidade, uma vacilação, para que o analista possa operar do lugar de resto do discurso.
Enquanto há continuidade, não há o que o analista escutar, falar ou calar. É também a esta
do inconsciente a cada vez (Cottet, 1982). Fazer operar o desejo do analista no espaço hospitalar
frente a casos mais mobilizadores. Como o da criança internada na enfermaria, com indicação de ter
um de seus membros amputados. Quando a psicóloga foi chamada a conversar com ela, com a
descobriu que, com a cirurgia iminente, ninguém ainda havia informado à criança de que a mesma
seria realizada.
A primeira alegação que recolheu foi a de que supunham que o pai, ciente da situação, teria
conversado com a filha. Depois, soube que era um caso que envolvia um conflito entre o pai e a
mãe da menina com relação à situação da mesma no hospital. Finalmente, foi visto que a equipe da
enfermaria também não tinha toda a clareza sobre o desenrolar do procedimento sob
responsabilidade da equipe cirúrgica, não havendo por exemplo uma data prevista. A psicóloga,
então, ao invés de preparar a paciente para uma intervenção que ela desconhecia, perguntou de seu
interesse em conversar com algum membro da equipe médica. Diante da concordância da menina,
pode-se observar aspectos de relutância dos médicos em ter essa conversa, o que revelava certa
divisão com relação aos eventos que se sucediam. E, talvez, a antecipação do que viria a ocorrer: a
procedimento fez com que viessem a se referir posteriormente à paciente que foi amputada à
revelia. Independentemente das indicações cirúrgicas no caso dessa paciente, ao cabo desse
episódio algo foi nomeado daquilo de que não se queria saber da própria relação dos membros da
208
equipe com o caso, de seus lugares de sujeito. Em outra ocasião, a notícia de que a crença religiosa
dos pais de uma criança poderia ser um obstáculo à realização de uma transfusão de sangue
desencadeou uma forte angústia na equipe. As conversações nos rounds possibilitaram discussões
acerca das tensões e dos limites da autoridade médica e da autoridade parental no espaço hospitalar.
Em um Breve discurso aos psiquiatras (inédito), comentando sobre o que poderia suscitar a
angústia do médico no encontro com o louco, Lacan fala das barreiras protetoras que o médico
adota para não se sentir concernido. Trata-se aí, como ele dirá, da tomada do louco como objeto de
estudo, da objetivação, que consistiria no isolamento de um sujeito puro; deixando velada outra
parte, aquela pela qual o psicanalista situa a divisão do sujeito em sua práxis (Lacan, 1998, p. 869).
Lacan (1967/inédito) se refere à relação com o objeto a, deixada de fora na manobra que supunha
abolir a angústia.
Clavreul (1983) situa o discurso médico na clave do discurso do mestre. Destaca que o saber
médico sobre a causa é direcionado exclusivamente para a doença. De tal modo, o objeto a
autorizaria por ser ele próprio o menos possível, anulando sua subjetividade. Nessa circunstância,
consideração científica. Ou seja, de acolher e intervir, no caso, para a subjetivação dos conflitos
A atuação nas diversas frentes que compõem a UDA de Pediatria também nos confronta
com o “surgimento de novos saberes que se apoiam na ciência, mas integram dispositivos
discursivos com propósitos muito distantes dela” (Coelho dos Santos & Santiago, 2010, p. 48). Na
conferência de La Salpêtrière, ao situar que, em sua nova função, o médico é convocado a assumir o
lugar de “agente distribuidor” das novas terapêuticas, sejam elas químicas ou biológicas. Fica
209
evidente, assim, que a absorção da ciência pela medicina na modernidade é entremeada pelos
avanços do capitalismo.
culmina no apagamento do valor enigmático do sintoma naquilo que ele contém de decifrável
singular de cada caso. Podemos verificar, por exemplo, que nossa participação no Ambulatório de
Neuropediatria instalou uma transferência de saber nos profissionais que viabilizou, em muitos
casos, uma escuta mais particularizada de cada caso, em um ambiente institucional no qual a lógica
favorecida.
associar sua tristeza ao desaparecimento de seu pai. Sua constelação sintomática se remetia a esse
apelo à figura paterna frente a um desejo materno fortemente marcado pela ambivalência em
sustentar a emergência do inconsciente ali onde se exacerbam artifícios de defesa contra o real
traumático baseados em diferentes mentalidades, também alimentadas por uma lógica de mercado.
São casos em que não é possível fazer a atribuição do sexo a partir da anatomia. A operação
discursiva É um menino / É uma menina não segue a rotina de seu agenciamento pelo médico.
Procede-se a um diagnóstico de definição do sexo: sexo genético, sexo gonadal, sexo hormonal,
210
sexo genital interno, sexo genital externo, sexo social, sexo psicológico, sexo de criação. As últimas
norma. Para o psicanalista, por sua vez, trata-se de casos particulares de uma impossibilidade que é
estrutural. No que pretende significar o termo ambiguidade genital, categoria a partir da qual a
medicina se engajaria em “evitar que o paciente seja criado num sexo inadequado” (Damiani,
Setian, Kuperman, Manna & Dichtchekenian, 2001, p. 37), a psicanálise situaria um real, se Lacan
(2009, p. 27) define o real como “aquilo que faz furo nesse semblante articulado que é o científico”.
Em nossa prática, verificamos que a incumbência de designar o sexo sem o regular marcador
biológico pode despertar a angústia do médico diante do risco de se revelar, posteriormente, uma
incongruência de gênero. A este ato médico faltaria, então, um saber que o garantisse. Há algo aí,
para o médico, de precário, na medida em que o saber não consegue dar essa garantia. O ato médico
É então que, nos casos aqui em jogo, recorre-se ao saber derivado dos estudos de longo
prazo, ou seja, estudos que acompanham esses sujeitos ao longo da vida e que tentam fornecer,
influência. Passaríamos à estatística é o destino? O que aí nos chama a atenção, sobretudo, é o fato
de que este saber estatístico promete suprir o não-saber biológico, operando, em última instância, a
supressão da angústia. Com isto, se vedaria a abertura para o real contingencialmente propiciada
pela impossibilidade de apoiar a designação do sexo na biologia. De nosso lado, portanto, não nos
impossível é o real (Lacan, 2012, p. 40). Diferente de saberes e práticas psi que vemos se somar à
211
A questão não está, portanto, em se ser médico ou psicólogo. Como diz Lacan (1960/1998,
p.735), ao abordar, a seu tempo, justamente “as novas aquisições da fisiologia, as realidades do sexo
cromossômico, por exemplo, e seus correlatos genéticos, sua distinção do sexo hormonal e a
proporção que lhes cabe na determinação anatômica”, o corte não tem que ser feito entre um
somático e um psíquico que são solidários. Eles podem complementar-se como protótipos da
objetivação. O corte se impõe entre o organismo e o sujeito. Anos antes, ao se debruçar sobre o
desenvolvimento de outro campo, ele alertara “que os melhores espíritos não se sintam tentados,
título do texto de Lacan, porque, considerando que a experiência analítica impõe como premissa
uma verdade que não se conjuga ao “ideal de uma adaptação do sujeito a uma realidade sem
conflitos” (Lacan, 2003, p. 128), ele afirma ali: “a verdade a que a psicanálise pode conduzir o
criminoso não pode ser desvinculada da base da experiência que a constitui, e essa base é a mesma
que define o caráter sagrado da ação médica – ou seja, o respeito pelo sofrimento do homem”
(Lacan, 2003, p. 131). Sobre essa passagem, Milner (2011) dirá que, tanto quanto Lacan se
preocupa, ao longo de seu ensino, em situar a distância entre a psicanálise e a medicina, cuida para
que uma e outra sejam distinguidas de um dispositivo de controle, representado aqui pela repressão
e a prevenção ao crime. Entendemos, nesse caso, que o respeito pelo sofrimento do homem, base
comum a ambas segundo Lacan, deveria constituir a borda, a margem que faz obstáculo à
objetivação.
também nela, como vimos no início, que residira a singularidade da função do médico. No entanto,
212
[...] à medida que o registro da relação médica com a saúde se modifica, em que esta espécie
médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato, vemos desenhar-se a
Demanda cuja resposta, para preservar este ponto de encontro da psicanálise com a
medicina, dependeria da possibilidade de se situar a falha no discurso. O que Ansermet (2014, p. 5),
enuncia como “levar o real do inconsciente aos limites do real da ciência”. Na via em que Lacan
(2012, p. 136) observava que “o discurso analítico não é um discurso científico, mas um discurso
cujo material a ciência nos fornece”. O próprio analista, contudo, se vê desafiado, na prática
multidisciplinar no hospital, por uma demanda que, em sentido contrário, faz apelo, como dissemos,
Como no caso que comentamos, em que se pretendia que a criança fosse preparada para a
situação de ter o braço amputado, numa demanda indistinta, que se esquivava de todas as
particularidades da situação, não apenas as que concerniam à paciente. Em outro exemplo, quando
da morte de uma criança, foi dito por uma profissional, à mãe da criança vizinha de leito da outra e
portadora da mesma doença, que não lhe deveria ser contado sobre o que aconteceu. Foi no
contexto deste saber sobre o bem da criança que a psicóloga foi introduzida ao caso, no decorrer do
qual presenciou um diálogo em que os nomes das crianças foram trocados. Por atuarmos em uma
unidade pediátrica, constatamos o não-lugar de sujeito em vias de advir da criança, que entendemos
denunciar ali, contudo, em sentido amplo, o próprio impasse quanto ao lugar de sujeito no hospital.
Neste sentido, o objeto da psicanálise não é nem a criança, nem o adulto. Não é o comportamento,
nem o eu ou a personalidade, mas o sujeito. Portanto, é importante que a ele nos voltemos,
213
uma acentuada tendência à objetalização, acaba por desconsiderar a importância da subjetivação das
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215
Prática clínica e supervisão na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE-UERJ
Ingrid Vorsatz
Penélope Esteves Raposo Mathias
Resumo: Tomando por guia a proposição de Freud de que no trabalho analítico pesquisa e
perspectiva da supervisão.
Abstract: Taking as a guide Freud's proposition that in analytic work research and treatment
coincide – and considering transference as the privileged field of this coincidence – we attempt to
discuss the conditions of possibility for sustaining psychoanalytic orientation in the scope of in-
service training that characterizes the institutional practice of residents in Psychology. The
discussion proposes two biases: the resident's experience and the supervision’s perspective.
Resumen: Tomando por guía la proposición de Freud de que en el trabajo analítico investigación y
216
[...] para o psicanalista existe uma aspiração por afeto mais
perigosa, que é a ambição terapêutica de realizar, através de
seu meio novo e muito criticado, algo que seja convincente
para outros.
Introdução
saber, aquilo que, emergindo do trabalho clínico no âmbito da Residência em Psicologia poderia
contribuir para o campo da psicologia hospitalar, a partir de um duplo viés: a experiência da própria
arresidente do Curso, e a reflexão que se impõe desde a função de supervisão sustentada no âmbito
trabalho que intentamos realizar levando em consideração o campo da transferência como sendo
aquele em que pesquisa e tratamento coincidem, consoante a precisa e não menos preciosa
Residência Hospitalar - que ora completa vinte e cinco anos de existência -, como também da
Rio de Janeiro tenha iniciado suas atividades como um Curso de Especialização em 1994, a história
de sua idealização e desenvolvimento remete à década de ‘70 do século XX, com as iniciativas
da Residência em Psicologia Clínica Institucional. O autor aponta que no final daquela década a
âmbito da saúde pública, em regime intensivo. Contudo, naquele momento, a proposta não obteve
êxito (Ferreira, 1997). Apenas em 1993 esta iniciativa foi retomada, sendo aprovada através do
Janeiro (UERJ), bem como do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), "O que garantiu os
recursos financeiros e materiais para oferecer o campo da prática e cinco bolsas anuais para os
No ano de 1994 a proposta de uma Residência em Psicologia da UERJ foi colocada em prática,
2002, após sua legitimação pela Sub-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (SR2) da UERJ. Os
2005 como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu (BRASIL, 2005); no ano de 2011 o
Psicologia vagas através de processo seletivo realizado anualmente. Desde 2013 passou a oferecer
dez vagas de ampla concorrência, passando a reservar, a partir do ano de 2016, três vagas
destinadas aos candidatos selecionados através de sistema de cotas, conforme a legislação vigente,
Ainda de acordo com Ferreira (1997) tal modalidade de formação profissional oferece uma
prática intensiva exigindo, portanto, dedicação exclusiva às atividades propostas pelo Programa de
218
Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde. Essas atividades incluem a inserção do residente
nas equipes multiprofissionais que atuam nas enfermarias e ambulatórios dos diferentes programas
e discentes, a participação nas sessões clínicas dos serviços em que o residente está inserido, o
de curso. Para tanto, o residente de Psicologia recebe uma bolsa auxílio cujo valor, equivalente à do
Saúde, para que possa se dedicar integralmente ao treinamento em serviço que caracteriza a
financeiro, sendo que este último é realizado através da Diretoria de Administração Financeira
(DAF) da UERJ. O curso é coordenado por um docente do Instituto de Psicologia que integra o
Núcleo Docente Assistencial Estruturante do Curso, composto por docentes e psicólogos do IP que
O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), é o principal cenário de práticas dos programas
especializados do Curso, bem como a Policlínica Piquet Carneiro, cujo cenário de práticas é o
CAPS-UERJ. Esse complexo hospitalar de saúde instalado na cidade do Rio de Janeiro oferece
Psicossocial, integrando assistência, ensino e pesquisa. Cabe ressaltar que o HUPE é referência em
219
assistência especializada para todo o Estado do Rio de Janeiro, disponibilizando 525 (quinhentos e
para o exercício de práticas que contribuem para a formação de psicólogos aptos a atuar em nível
primário, secundário e terciário de atenção à saúde, uma vez que o HUPE adota o modelo de ações
trabalhar junto aos outros membros da equipe multiprofissional, conhecendo, portanto, diferentes
residente de Psicologia a vivência no campo da saúde pública, que inclui internações hospitalares,
que o profissional residente será devidamente capacitado para a prática junto à equipe
multiprofissional, aos pacientes e seus familiares, e ao próprio ambiente de trabalho, tendo nas
Residência Hospitalar, tem contribuído de forma relevante para a formação de psicólogos clínicos
aptos a atuar nos mais diferentes níveis de atenção à saúde. Além disso, a produção científica e
Pedro Ernesto
das unidades do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) que desenvolve atividades de
220
assistência, ensino e pesquisa através de equipe multidisciplinar composta por médicos,
Enfermagem e Serviço Social. O espaço físico se assemelha a uma pequena vila com oito casas,
Com uma capacidade inicial de 30 (trinta) leitos, a partir do final da década de 1990 o serviço
reduziu a oferta de leitos para internação psiquiátrica, contando atualmente com quinze leitos. A
redução do número de leitos deveu-se, primeiramente, à oferta de três casas para o funcionamento
do Hospital-Dia Ricardo Montalban, além da cessão uma dessas casas para o Ambulatório de
Psiquiatria Infantil. O novo dispositivo assistencial foi criado no intuito de acompanhar pacientes
mais graves que sentiam dificuldade em frequentar outros espaços de atividades e de vida social, e
que não tinham indicação clínica de internação. Um dos objetivos dessa proposta seria, portanto, o
de favorecer as transformações nas relações dos usuários com o meio em que vivem, propiciando a
hospitalar.
Essa demanda começou a surgir a partir dos próprios pacientes, que, fora do momento de crise
da doença, ansiavam por um espaço em que pudessem se engajar e se expressar, o que levou à
Nise da Silveira (EACNS). Esse dispositivo pioneiro foi o precursor do HD, na medida em que a
constatação dos resultados positivos que tal iniciativa trazia para o tratamento dos pacientes
contribuiu para que a Instituição voltasse sua atenção para esse modelo de cuidado.
projeto que favorecesse a criação de redes de sustentação para que os pacientes tivessem melhores
condições de vida e laços sociais, iniciativa que contribuiria, inclusive, para a sustentação do
221
próprio tratamento ambulatorial por parte dos pacientes. Após quatro meses de trabalho o projeto
foi apresentado ao Colegiado da UDAPq, tendo sido aprovado. Através do apoio da Sub-Reitoria de
Extensão (SR-3) da UERJ, que garantiu alguns contratos de técnicos e bolsas para estagiários de
várias áreas, iniciaram-se as atividades do Hospital-Dia Ricardo Montalban (HD). A preferência era
que se chamasse CAPS da Vila, por se tratar de um dispositivo inspirado pela Reforma Psiquiátrica
na consolidação dos direitos do usuário da rede de saúde mental. No entanto, devido à tradição
Após mais de dez anos e um longo processo de discussão e de adequação que inclui, em um
tratamento hospitalar. A partir disso, uma alternativa a esse modelo começou a ser desenvolvida,
CAPS-UERJ.
tornou-se o Núcleo de Atividades Integradas em Saúde Mental (NAISM), funcionando em uma das
CAPS-UERJ a partir de 2009. Naquele ano uma docente do Instituto de Psicologia da UERJ passou
a sua aposentadoria em 2012. Nos três anos seguintes o Curso de Especialização em Psicologia
na UDAPq-HUPE, até o segundo semestre de 2015, com o ingresso da atual supervisora, docente
222
O trabalho foi retomado, então, em novas bases. Inicialmente os residentes de Psicologia se
vencidas algumas resistências institucionais iniciais. Nesse período teve início a instauração do
clínica, oficinas conduzidas pela terapeuta ocupacional, entre outras -, tendo sua participação ativa
no serviço reconhecida de forma elogiosa pelo atual chefe da UDAPq, em diversas oportunidades.
HUPE
Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ) em 1962, manteve seu foco em atividades que
223
tornou-se um hospital geral de natureza pública, ampliando a assistência e adequando-se às
necessidades da população.
do trabalho realizado por todos os profissionais que compõem as equipes. Essa postura se deve a
diferentes determinantes, podendo-se apontar, entre eles, o fato de o HUPE ser um hospital
universitário, espaço privilegiado de transmissão e de produção de saberes distintos. Há, por parte
Ciências Médicas, assim como de outras unidades acadêmicas da UERJ, entre elas, o Instituto de
Psicologia Por outro lado, tem como principal objetivo a prestação da assistência em consonância
com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), dentre os quais encontramos o
Conforme mencionado, nos dois anos do curso de Residência o residente se insere em diferentes
clínicas especializadas oferecidas pelos programas como campos de atuação, sendo que no primeiro
ano em sistema de rodízio. Em meu primeiro ano de Residência, optei por realizar meu treinamento
Estudos da Saúde do Adolescente - NESA, e, também, nos dispositivos de saúde mental ofertados
segundo semestre.
No segundo ano, minha inserção no Programa de Residência se deu em duas clínicas distintas
letivo do primeiro ano de Residência. Tratarei aqui apenas da minha experiência na UDA de
Psiquiatria, pois, além de ter dedicado três quartos do meu treinamento em serviço nesse programa
especializado do Curso, recolhi contribuições muito relevantes para minha formação nas
224
supervisões de orientação psicanalítica, linha teórica pela qual opto para me nortear na realização de
meu trabalho.
De uma maneira geral, os profissionais que atuam na UDA de Psiquiatria conduzem o trabalho
de maneira coerente com as propostas da Reforma Psiquiátrica que, dentre outros legados, trouxe à
mental, tendo os saberes e práticas da Psicologia colaborado para a construção de um novo modelo
psicólogo.
É importante salientar que ter um lugar legitimado é diferente de ter um lugar dado, visto que,
profissional que opera a partir do viés psicanalítico, como no meu caso – numa instituição de saúde
não se traduz, necessariamente, na sua inserção, devendo esse lugar ser construído para que se possa
ali operar.
internados na enfermaria e de seus familiares, bem como da inserção do residente de Psicologia nos
pacientes com a instituição através da minha inserção na Sala de Acolhida multiprofissional, assim
como participei do trabalho de Recepção de Psicologia desde o seu início, iniciativa da atual
supervisora do Programa especializado do Curso, que será relatada mais à frente. Por um breve
225
Vale salientar que a supervisão clínica de orientação psicanalítica convida os residentes à
reflexão sobre quais efeitos podem ser recolhidos a partir da ocupação de tais dispositivos clínicos
institucionais. Conforme afirmam Moretto & Priszkulnik (2014), a inserção do profissional que
opera a partir do viés psicanalítico não é sinônimo de presença física em reuniões ou ainda de
recebimento de encaminhamentos, visto que tal inserção concerne muito mais ao modo como o
profissional responde às demandas que recebe, bem como de sua resposta a estas.
Só foi possível conduzir o trabalho a partir de uma orientação psicanalítica, referencial teórico
que parte da utilização da palavra como ferramenta fazendo valer, a partir da escuta, aquilo que é
endereçado pelo sujeito. Sustentar um trabalho utilizando como instrumento a palavra causou-me
certo embaraço de início, pois, abrir um espaço de escuta para o paciente, demanda, por parte do
profissional, disponibilidade para receber tudo o que pode advir da clínica, estando este profissional
sujeito, portanto, a entrar em contato com questões que podem suscitar experiências vivenciadas
como desagradáveis, sem ter nenhuma indicação prévia do que poderá emergir.
Longe de pretender dar início a uma querela, há de se convir que a atuação profissional por
parte de diferentes especialidades do hospital, apesar das constantes intercorrências que exigem
criatividade e determinação por parte dos demais profissionais de saúde, parece estar pautada em
manuais e protocolos que os orientam. Este é um dos primeiros impasses enfrentados pelo residente
clínico a partir de algo que não está posto, operando a cada vez, respondendo ao que aparece no
subjetiva daquilo que está sendo enunciado como queixa – seja por parte do paciente e/ou de seus
convocados a fornecer respostas para os sintomas que se impõem ao sujeito sem que ele e os que
estão em seu entorno compreendam a causa. Perguntas como "Por que isso está acontecendo
comigo?" ou "O que devo fazer então?", por parte dos pacientes, e ainda "Por que meu filho age
226
dessa maneira?", vindas dos familiares, são comuns e apontam para um grande sofrimento psíquico.
Mas, de outra parte, também apontam para um endereçamento, germe da transferência, campo a
partir do qual, uma vez instituído de acordo com as balizas fornecidas por Freud, poderemos
A especificidade de nosso trabalho consiste em fazer algo a partir daquilo que a clínica nos
lança como desafio, recolhendo os efeitos somente a posteriori. Essa é a única maneira possível de
conduzir um trabalho sob o viés psicanalítico visto que, em psicanálise, a soberania é da clínica,
sendo a teoria um subsídio ao qual se recorre para dar conta das questões que a clínica impõe. A
partir da escuta clínica, vamos adentrando essas questões na perspectiva de que algo da verdade do
constantemente, o que deve ser feito com um paciente considerado ‘difícil’. De fato, em um serviço
Recorrendo à teoria psicanalítica para a resolução desse impasse, Moretto e Priszkulnik (2014)
propõem um contraponto entre o encaminhamento ao analista, por parte da equipe, sem demanda de
encaminhamento sem demanda de saber, diferente de uma demanda consistente, pode indicar uma
dificuldade frente à própria subjetividade, visto que o discurso médico, adotado por muitos
paciente quanto da pessoa do médico em nome da própria execução do ato médico de salvar vidas”
(Moretto & Priszkulnik, 2014, p. 295). Por outro lado, a especificidade de uma demanda consistente
reside no fato de existir, por parte da equipe, um desejo de que as dificuldades frente à
Em nossa prática, nos deparamos com um fato que parece corroborar tal consideração,
227
residentes de Psicologia recebiam no Ambulatório da UDAPq-HUPE por parte de outros
profissionais. Percebemos que estes encaminhamentos, muitas vezes inespecíficos, em sua maior
parte se tratavam de casos que, apenas por não necessitarem de internação ou ainda tratamento de
problematizar junto aos demais profissionais tais encaminhamentos. A maneira como lidamos com
essa questão foi levá-la para discussão em nossas supervisões semanais. A supervisora propôs,
iniciativa que já havia sido conduzida com êxito em outras instituições de saúde mental (Oliveira,
2000). Esta modalidade de intervenção clínica tem por objetivo propiciar uma espécie de ensaio
oferecer a possibilidade de decantar a queixa inicial por parte dos pacientes - que muitas vezes são
inespecíficas, assim como são grande parte dos encaminhamentos - de modo a facultar ou ainda
propiciar que uma demanda de tratamento pudesse ser formulada transferencialmente. A partir
disso, a oferta de um atendimento individual pode ter lugar, através de um pedido implicado por
Assim, partimos da premissa de que aceitar o sujeito em atendimento psicológico sem interrogar
o próprio encaminhamento por parte da equipe – no qual, muitas vezes, o próprio não estava
(Mathias & Vorsatz, 2017). O risco em submeter alguém a uma espécie de atendimento
compulsório reside no fato de que tal atitude pode se traduzir em uma intervenção de caráter tutelar,
modelo de atuação que o campo da saúde mental vem interrogando desde a crítica acerca do modelo
automático, de encaminhamento para psicoterapia sem uma prévia discussão sobre o caso e sobre a
228
própria pertinência do encaminhamento. De outro lado, o trabalho de recepção clínica visa apostar
na implicação do sujeito com aquilo mesmo de que ele se queixa, na sustentação de um dispositivo
clínico que possa permitir, a partir da decantação da queixa inicial, um pedido de tratamento no qual
o sujeito esteja implicado - sem contudo, considerar essa possibilidade como um ideal a ser
atingido. Se, por um lado, casos considerados ‘difíceis’ podem impulsionar a equipe a persuadir o
sujeito para que consinta em determinado tratamento, pacientes com quadros complexos também
A equipe, muitas vezes, espera que o paciente seja dócil e que responda da maneira prevista ao
tratamento e às ações do serviço. Os profissionais do hospital, de forma geral, pautam suas práticas
em procedimentos, muitas vezes padronizados, que visam a cura, a saúde e o bem-estar dos
pacientes, o que nem sempre é possível. No serviço de Psiquiatria essa tendência também pode ser
efetivar a reabilitação pretendida. Observamos condutas que concentram todos os seus esforços na
cura do sofrimento mental, ou, pelo menos, na remissão dos sintomas. Essa perspectiva, que pode
propõe a operar a partir daquilo que é articulado pelo sujeito em sua fala. Percebe-se, portanto, que
outro impasse enfrentado pelo residente de Psicologia que atua no hospital a partir de um viés
psicanalítico está em sustentar um lugar que não visa propriamente a cura, em um "lugar de cura".
Isso significa dizer que para nós, a direção do tratamento não está na resolução dos sintomas,
mas na escuta, sob transferência, daquilo que só o próprio sujeito poderá dizer sobre aquilo de que
ele padece. Freud (2016e) recomendava aos profissionais que se propunham a exercer o tratamento
psicanalítico cautela em relação à expectativa de fazer com que o paciente alcance um ideal pré-
concebido graças ao tratamento, visto que na prática psicanalítica o paciente e suas capacidades
devem ser usados como guia, e não de acordo com a expectativa do profissional. Retomando a
advertência freudiana a respeito da evitação do furor sanandis por parte do psicanalista, Lacan
destaca que se Freud “[...] admite a cura como um benefício adicional do tratamento psicanalítico,
229
ele se precavém contra qualquer abuso do desejo de curar [...] inquieta-se em seu foro íntimo [...]:
‘será que isso ainda é psicanálise?’” (Lacan, 1998b, p. 327, grifo nosso).
Assim, nossa proposta é a de pôr em trabalho aquilo que se apresenta na e pela clínica,
apostando que o sujeito possa, em algum momento, se situar diante do que diz. Sendo a nossa
ferramenta a palavra, e trabalhando na direção de fazer valer aquilo que o paciente diz, não
podemos ignorar a dimensão clínica existente em sustentar o compromisso com a nossa própria
palavra. Quando, por exemplo, dizemos a um paciente internado na enfermaria que iremos ao
serviço no feriado, devemos sustentar a nossa palavra em ato, visto que a nossa presença poderá
servir como uma espécie de sustentação para o sujeito que se encontra no momento mais agudo de
Cabe ao residente, portanto, fazer valer sua posição enquanto profissional em formação no
campo da saúde pública, o que implica estar comprometido com o atendimento da população e
orientando-se pelas diretrizes do SUS, bem como pela ética profissional. Pode ser difícil sustentar
esse trabalho quando se tem um prazo para permanecer no serviço estipulado a priori, sabendo que
sua saída já tem data marcada. Além disso, enquanto jovem profissional, sentia-me particularmente
intimidada ao atender pacientes graves, impressão contraditória para uma residente que pauta seu
trabalho no princípio de que todos os cidadãos têm direito ao atendimento integral na rede pública.
Tais sensações de angústia e desamparo somente puderam ser suportadas por saber que poderia
clínica, quando podemos retomar e elaborar nossas práticas, de modo que possamos nos
são convidados a refletir sobre o trabalho e aposta-se que é daí que poderá vir nossa contribuição,
visto que a partir do estranhamento de determinados procedimentos que poderiam ser considerados
apontando para aquilo que nos causa estranhamento e apostando que essa atitude poderá gerar
230
alguma mudança. É importante sustentar esse lugar de diferença, mas sem que isso implique num
Dessa forma, percebe-se que o trabalho com a equipe também tem uma dimensão clínica e não
meramente burocrático, posicionamento que poderia gerar resistências por parte dos demais
reconhecimento de nosso lugar a partir do outro, mas, sim, em sustentar esse lugar a partir de nosso
próprio trabalho. A aposta é a de que, como profissionais em formação no SUS, orientados pela
psicanálise, nossa presença não seja inócua na rede de saúde – mental ou não.
prática de orientação psicanalítica no campo da saúde mental. Prática que se efetiva com a inserção
Único de Saúde bem como da Política Nacional de Saúde Mental, no caso da Unidade Docente
campo de práticas concerne menos a psicologia hospitalar e mais o campo de saúde mental lato
sensu. Contudo, não é nossa proposta tratar dessa questão aqui, em que pese a sua relevância.
a supervisão de orientação psicanalítica – e o hospital, isto é, o HUPE, que vem a ser o campo de
práticas dos residentes, no que tange a função que ocupamos. O Curso de Especialização em
Instituto de Psicologia da UERJ e este é o estatuto de nosso pertencimento: somos, em sua maioria,
docentes da Universidade, exercendo a função de supervisionar a prática clínica – mas não apenas –
231
dos residentes que atuam nos programas especializados que compõem o Curso – no caso, o
Portanto, não somos profissionais de saúde do hospital. Isso demarca um lugar. Seria este de
caráter extraterritorial, conforme assinalou Lacan ao abordar a relação entre psicanálise e medicina?
Afirmá-lo a priori parece um tanto apressado. Cabe lembrar que ao indicar o lugar marginal da
que seria admitida “[...] como uma espécie de ajuda externa, comparável a dos psicólogos e a de
outros assistentes terapêuticos.” (Lacan, 1985, p.86, grifo nosso). Quanto ao reconhecimento da
psicanálise como profissão e como ciência, Lacan destaca a questão da extra-territorialidade como
um princípio, “[...] ao qual é tão impossível ao psicanalista renunciar quanto o é não negá-lo: o que
o obriga a colocar qualquer validação de seus problemas sob o signo do duplo pertencimento [...]”
(Lacan, 1998b, p. 327). Consideramos que a questão concernente à extraterritorialidade deverá ser
abordada a partir daquele em que consiste o campo próprio da psicanálise, isto é, a transferência.
escutamos os pacientes, mas os residentes. É desse lugar de escuta que nos inserimos –
extraterritorialmente - nas práticas hospitalares. Vale dizer, nossa intervenção não ocorre no campo
próprio da clínica psicanalítica, que é, desde Freud e com Lacan, a transferência – aquele no qual
“pesquisa e tratamento coincidem” (Freud, 2016e, p. 97). Essa co-incidência assinalada por Freud
qual o psicanalista poderá intervir uma vez que “[...] substitui a sua [do paciente] neurose comum
por uma neurose de transferência, da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico.” (Freud,
2016g, p. 160). Nós, supervisores, não estamos submetidos às injunções da transferência como
sendo o campo próprio da clínica psicanalítica, o único em que o tratamento do real pelo simbólico
232
(Lacan, 1988b) pode vir a ter lugar. Não obstante, é possível considerar que nossa função opera a
partir de uma transferência de trabalho por parte dos residentes, se e quando isso vem a ocorrer.
campo da transferência estaria franqueado ao residente de saída, apenas pela oferta de uma escuta
diferenciada, que não visa a supressão do sintoma ou ainda do mal-estar de que o paciente (ou a
equipe) se queixa. Não parece possível que a transferência possa ser considerada como um dado
apriorístico. Aqui, acompanhamos Freud (2016f): ‘sondagem’, ‘ensaio prévio’, período probatório’
(p. 122), ‘tratamento probatório’ (pp. 122-123) são os termos que ele utiliza para denominar o
período – indeterminável, a priori – que antecede, a posteriori, o tratamento propriamente dito. Isto
analítico tout court – é possível considerar o trabalho anterior (“sondagem”, “ensaio prévio”,
“período probatório”) como sendo-lhe antecedente, de acordo com a temporalidade que rege o
funcionamento psíquico, Nachtraglichkeit. Assim, não há tratamento prévio antes, mas só depois –
atualização da realidade sexual do inconsciente (Lacan, 1988b, pp. 139; 143) – fato de estrutura que
o amor de transferência vem, precisamente, velar. Assim, seria preciso cernir, a cada vez e em
relação a cada caso, a emergência da realidade sexual do inconsciente para que se possa então
Para tanto, um psicanalista deve se valer do operador clínico nomeado por Lacan como desejo
do analista (que não se confunde com a vontade ou ainda com os anseios daquele que, pontualmente
e a cada vez, encarna esta função), operando um corte frente ao apelo amoroso da transferência em
seu viés de resistência (Vorsatz, 2018). De acordo com Freud, “[...] as únicas dificuldades realmente
sérias são encontradas no manejo da transferência” (2016h, p. 165); Lacan, por sua vez, articula o
amor de transferência ao fechamento do inconsciente (1988b, p. 121). Contudo, cabe observar que a
233
ainda que sua prática possa ser orientada pelos princípios da psicanálise, conforme a orientação
inconsciente (isto é, a análise pessoal do candidato a analista) enquanto parte constitutiva dessa
formação, conforme o dito tripé indicado por Freud, a saber, análise, supervisão e formação.
Cabe ainda destacar que a prática clínica exercida pelo residente de Psicologia ocorre na
perspectiva de sua qualificação profissional. Ao final do curso e uma vez cumpridas todas as
exigências previstas nas normativas legais às quais os programas de Residência em Saúde estão
Vorsatz, Martins, Gomes & Santos, 2018). Há, assim, um ganho - para além da própria formação
em serviço e da bolsa auxílio mensal -, ao revés do que ocorre na prática clínica psicanalítica
propriamente dita, que implica em sustentar um campo que se perde, conforme a paradoxal
Talvez seja possível apostar em uma certa transmissão através de um laço de trabalho
sustentado pelo supervisor fora do âmbito da mestria, permitindo, assim que o residente se
inclua do ponto em que se encontra em seu percurso. Transmissão que se articula em perda – e
não por meio de um acúmulo de saber – consoante a própria estrutura do saber inconsciente
enquanto saber que não se sabe, vale dizer, que se furta a ser positivado de modo exaustivo. A
temperasse o amor de transferência, laço dessimétrico que sustenta o lugar do Outro como
possibilidade de uma relação ao trabalho que não seja alienada – ao saber, ao amor e,
sobretudo, ao amor ao saber -, mas, sim, de alegria, conforme aponta Melman (1992).
No artigo intitulado Sobre o início do tratamento, Freud tece considerações sobre as condições
indispensáveis para que um tratamento analítico possa vir a ocorrer. Aludindo ao aprendizado do
234
jogo do xadrez a partir dos livros, afirma que apenas se pode ter conhecimento das jogadas de
abertura e das jogadas finais. A única forma efetiva de aprendizado é observação dos mestres em
ação (Freud, 2016f). Desdobrando a metáfora freudiana, podemos extrair dela a seguinte
descortinam-se alguns caminhos (jogadas); outros ficam impossibilitados por esses mesmos
De outra parte, Freud (2016f) destaca que esse tratamento preliminar deverá seguir as regras da
psicanálise. Quais seriam estas? Quanto a isso, ele é preciso: só há uma regra, fundamental
(aquilo que o sujeito diz), bem como de intervir a partir dessa compreensão, caso em que sua
intervenção se daria a título de sugestão, via di porre, acréscimo, e não análise, decomposição, via
di levare (2016c). Entendemos que esta regra também vale para a supervisão, em que não se trata de
compreender e acrescentar o nosso saber – suposto – ao que o residente traz como questão, mas,
sim, de um segundo momento de trabalho, no qual o este poderá retomar o que pôde fazer,
relançando o trabalho.
Tempo e dinheiro
segundo como uma questão incontornável. Há aqui dois pontos importantes a considerar em
relação a oferta de escuta pelo residente no ambiente hospitalar, seja nas enfermarias ou nos
ambulatórios: quanto ao tempo, este está determinado de antemão, pois esta o ferta depende da
duração do Curso. Quanto ao pagamento, este não se coloca: o tratamento é gratuito, visto
235
Em relação ao tempo do tratamento, Freud evoca a fábula de Esopo para afirmar que
este não pode ser conhecido de antemão – cabe ao sujeito se pôr a caminho, acrescentando que
“A questão em torno da provável duração do tratamento praticamente não pode ser respondida”
(Freud, 2016f, pp. 127-128). Em relação ao dinheiro, considera que as sessões devem ser pagas
mesmo se o paciente não comparece, indicando a dimensão de responsabilidade subjet iva pelo
disponível do meu dia de trabalho; essa hora será sua e ele será responsável por ela, mesmo se
não vier a usá-la.” (Freud, 2016f, pp. 125-126). Ao adotar essa posição – não sem ponderar que
“[...] no caso do médico pode parecer dura ou mesmo indigna de sua função” (Freud, 2016f, p.
126) – Freud parece tomar a ausência do paciente (o não comparecimento à sessão previamente
agendada) como um elemento clínico cuja relevância não é passível de ser desconsiderada, e
Freud assinala que “[...] há poderosos fatores sexuais que participam da apreciação do
dinheiro.” (Freud, 2016f, p. 131), destacando que “Algumas das resistências dos neuróticos
aumentam enormemente no tratamento gratuito [...]” (p. 133), advertindo para a dimensão de
regulação operada pelo pagamento no que tange a transferência. Afirma que “A ausência de
desconcertante; (...) é tirado do paciente um bom motivo para se empenhar pelo fim do
tratamento” (p. 133). Conclui as suas considerações acerca da função do pagamento como
parte constitutiva do tratamento analítico de modo agudo e contundente: “Não há nada mais
tratamento gratuito, visto que, se acompanhamos Freud, a doença – neurótica, no caso, mas em
determinados casos a própria doença orgânica – é cara ao paciente. Na dupla acepção do termo
236
‘cara’: a um só tempo dispendiosa e estimada. Eis porque o pagamento cumpre uma função de
regulação, referente a economia da libido. Ainda de acordo com Freud, “Pela psicanálise
reconhecemos que os destinos da libido são decisivos para a saúde ou para a doença nervosa ”
(Freud, 2016d, p. 71). Vemos que a questão do adoecimento (neurótico ou não) se decide em
termos libidinais – e não por razões que lhe são alheias – cujo manejo clínico referente ao
1976) – o título original do artigo é “Deve a psicanálise ser ensinada na universidade?” -, colocando
segunda, Freud afirma que o psicanalista prescinde da universidade sem qualquer prejuízo para o
exercício de seu ofício, bem como para a sua formação – estas dependem exclusivamente da análise
pessoal e da supervisão dos tratamentos por psicanalistas que deram prova de seu percurso. Quanto
a primeira, afirma que depende do valor que a universidade pretende atribuir à psicanálise no que
tange a formação acadêmica e, também, prática – à época, dos médicos, e hoje também dos
psicólogos, dada a inclusão de disciplinas de psicanálise na grade curricular de grande parte dos
finalidades de pesquisa” dos professores de psicanálise, Freud faz uma importante ressalva: ainda
assim, “(...) o estudante jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita (...) se temos em mente a
psicanalistas – estão, de fato e de direito, inseridos nas instituições de ensino e de saúde, entre
outras, caberia interrogar a que título que se deve esta inserção: se o de um aggiornamento, ou, ao
revés, sustentando a especificidade de seu campo, o do inconsciente como um saber que não pode
237
ser apre(e)ndido enquanto tal, visto que o inconsciente é um campo que se perde (Lacan, 1988b), a
ser garantido em ato e a cada vez. Talvez o encaminhamento a esta questão tenha sido indicado pelo
próprio Freud em relação a pergunta-título do artigo a que nos referimos, ao afirmar que “(...) para
os objetivos que temos em vista [a inclusão da psicanálise na academia], será suficiente que ele [o
aluno] aprenda algo sobre a psicanálise e que aprenda algo a partir dela” (Freud, 1976, pp. 219-
220, grifos do original). Mutatis mutandi, consideramos pertinente estender esta proposição
freudiana ao percurso do residente, isto é, de que este possa aprender algo sobre e a partir da
Por fim, caberia destacar a preocupação assinalada por Freud de que a psicanálise viesse a se
tornar uma técnica a mais, um saber prêt-à-porter, disponível no mercado – no caso da saúde, no
hospital – e equivalente aos demais. Assimilada ao campo médico, a psicanálise se veria reduzida a
encontrar “seu depósito definitivo no livro didático de Psiquiatria, no capítulo sobre terapia, ao lado
de procedimentos como sugestão hipnótica, auto-sugestão, persuasão [...]. Ela merece um destino
melhor.” (Freud, 2016j, pp. 286-287). Nesse caso, a psicanálise perderia a sua especificidade. De
acordo com Freud, a psicanálise não poderia vir a tornar-se um coadjuvante em relação a medicina,
como sabemos, muitas vezes é justamente esta a solicitação ao residente de Psicologia: que ele
compareça com o seu saber, supostamente especializado, para com ele compor o trabalho em equipe
ofertada nos serviços públicos de saúde patrocinados pelo Estado, Freud tenha afirmado que, nesse
caso, o tratamento psicanalítico se visse obrigado a se adequar, fundindo “[...] o ouro puro da
análise [...] com o cobre do sugestionamento direto [...]”, ainda que “suas partes mais eficazes e
importantes certamente serão aquelas da Psicanálise propriamente dita, livre desta ou daquela
238
tendência” (Freud, 2016i, p. 202). Embora Freud sustente este como sendo um campo de práticas
legítimo para o exercício da psicanálise, ressalva que não se trata da psicanálise propriamente dita.
Há, portanto, especificidades a considerar. Não obstante, o próprio Freud não hesita em afirmar que
“[...] não há praticamente nada a criticar quando um psicoterapeuta mistura uma parte de análise
com uma porção de influência por sugestão, [...] tal como se torna necessário em instituições [...].”
(Freud, 2016e, p. 102, grifo nosso). Vê-se que não se trata de um julgamento de cunho moral –
sobre o que seria correto, ou não -, mas de salvaguardar aquilo que distingue um tratamento
princípio, alheio, como o hospital geral – e, mais especificamente, no âmbito da saúde mental?
Como, e em que condições, é possível distinguir aí o campo da transferência, o único que pode
legitimar um tratamento como sendo psicanalítico? Como restaurar, em ato e a cada vez, o fio de
sua lâmina cortante? (Lacan, 1988b). São questões que atravessam o trabalho institucional, sem que
isso implique em considerar a psicanálise como um saber de ordem superior, que viria a derrogar os
A psicanálise opera por disjunção, não se acrescenta ao que está posto ou ainda instituído.
Sabemos, com Lacan, que o discurso analítico é aquele que, ao interrogar os demais discursos,
permite o quarto de giro que faz com que estes não se tornem hegemônicos – sem pretender, ele
mesmo (o discurso analítico) uma hegemonia sobre os demais discursos. O discurso analítico
implica em uma nova modalidade de laço social, diferenciada dos demais, no qual o sujeito produz,
sob transferência, os significantes aos quais se encontra submetido. A ética está posta; logo, já não
há lugar para a queixa, menos ainda para qualquer forma de restauração ou ainda de acesso a um
bem – como o restabelecimento da saúde, por exemplo. De resto, cabe lembrar a advertência
freudiana de que “O caminho do analista é outro, é aquele para o qual a vida real não fornece um
239
Considerações finais
invés de buscar uma solução para estas – procedimento consoante a práxis analítica, advertida de
que a totalidade do real não pode ser subsumida ao simbólico – embora não haja outro meio de
abordá-lo, exceto pela dimensão da palavra e da linguagem, e da verdade que se decanta dessa
démarche como semi-dizer. Acreditamos que, através desta problematização, seja possível
psicanálise sobre os seus fundamentos, conforme articulado por Lacan através da interrogação: “O
que é que a funda como práxis?” (Lacan, 1988b, p. 14). Questão a sustentar como parte
A práxis analítica não se orienta por uma dimensão teleológica – são inúmeras as considerações
de Freud nesse sentido 1. Antes, o fundador da psicanálise considera que o objetivo do tratamento
(leisten) e fruir (genieβen), que ele nomeia como ‘cura prática’ (praktische Genesung) (Freud,
2016b, p. 57). Vale dizer, da possibilidade de realizar algo e de fruir de algo, parcialmente - na
Por fim, evocamos as palavras candentes de Lacan a propósito do lugar que o psicanalista ocupa
revela, até o fundo do ser, sua pavorosa fissura. [...] É essa vítima comovente, evadida de
alhures, inocente, que rompe com o exílio que condena o homem moderno à mais
assustadora galé social, que acolhemos quando ela vem a nós; é para esse ser de nada que
nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade
discreta em relação à qual sempre somos por demais desiguais. (Lacan, 1998a, p. 126).
240
Quanto aos resultados de sua práxis, ao psicanalista resta a impressão de escrever sobre a
água (Freud, 2016k). Ofício impossível, que não cessa de não se escrever.
Nota
1. Já nos primórdios de sua prática, Freud indica que o trabalho clínico implica em “transformar o
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243
Sobre os autores
Pós-doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor
eletrônico: pacelli.ferreira@gmail.com
Secretaria Municipal de Saúde de São Gonçalo - Saúde Mental - Serviço de atendimento a usuários
alessandrogemino@gmail.com
Aline Martins
244
Aline Souza
Mental pela Universidade Federal Fluminense. Psicóloga do Colégio Pedro II. Endereço eletrônico:
aline-fnd@hotmail.com
brunamcguimaraes@gmail.com
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo
245
Cidiane Vaz Gonçalves
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em
claryana@gmail.com
Claudia Politano
claudiapolitano@outlook.com
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicóloga do
Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Preceptora na Clínica
esch.cristiane@gmail.com
danibsilveira@hotmail.com
Doutora pelo Instituto de Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre
eletrônico: fernanda.klumb@gmail.com
247
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Ingrid Vorsatz
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora adjunta do
ingrid.vorsatz@uerj.br / ingrid.vorsatz.uerj@gmail.com
248
Especialista em Psicologia Clínica Institucional - Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicóloga do Colégio Pedro
Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicóloga
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Adjunta
249
Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).
eletrônico: penelope.erm@gmail.com
Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Psicóloga clínica. Endereço
eletrônico: rafaelafsgomes@gmail.com
Sonia Alberti
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Psicologia da UERJ. A.M.E. da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Endereço
eletrônico: sonialberti@gmail.com
eletrônico: talita.psiuff@yahoo.com.br
Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto do
251
Núcleo Docente-Assistencial Estruturante do Curso de Especialização em Psicologia Clínica
Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ)
Secretaria: Rua São Francisco Xavier nº 524. UERJ, campus Maracanã. Pavilhão Reitor João Lyra
Filho 10º andar – sala 10.034/2 - Bloco E
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