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Residência em Psicologia Clínica Institucional

O primeiro jubileu de uma experiência

Alberti, S. & Vorsatz, I. (Orgs.)

2018
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ruy Garcia Marques
Vice-Reitora
Maria Georgina Muniz Washington
Sub-reitora de Graduação
Tania Maria de Castro Carvalho Netto
Sub-reitor de Pós-graduação e Pesquisa
Egberto Gaspar de Moura
Sub-reitora de Extensão e Cultura
Elaine Ferreira Torres
Centro de Educação e Humanidades
Lincoln Tavares Silva
Instituto de Psicologia
Márcia Maria Peruzzi Elia da Mota
Hospital Universitário Pedro Ernesto
Edmar José Alves dos Santos
Coordenadoria de Desenvolvimento Acadêmico do HUPE
João José Abraão Caramez
Coordenação da Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde
COREMU-UERJ
Ingrid de Mello Vorsatz
Coordenação do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade
Residência Hospitalar
Michelle Menezes Wendling

CATALOGAÇÃO NA FONTE

UERJ/REDE SIRIUS/NÚCLEO MID

R433 Residência em Psicologia Clínica Institucional: O primeiro jubileu


de uma experiência / Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz
[Organizadoras]. - Rio de Janeiro: CEPCI-MRH, 2018.
252 p.

e-ISBN 978-85-906657-0-0

1. Psicologia Clínica. 2. Psicologia institucional. I. Alberti,


Sonia. II. Vorsatz, Ingrid. III. Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Psicologia.

CDU 159.9:614.254

Bibliotecária: Luciana Avellar CRB7/4544


PROMOÇÃO
Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar
(IP-UERJ)

COMISSÃO EDITORIAL

Sonia Alberti
Ingrid de Mello Vorsatz

COMISSÃO CIENTÍFICA

Andréia Hortélio Fernandes (UFBA)

Anna Carolina Lo Bianco (UFRJ)

Camila Lopes (UFCE)

Ilka Franco Ferrari (PUC-MG)

Maria Lívia Tourinho Morreto (USP)

Marcos Vinicius Brunhari (UNIAN-SP)

Nádia Pinheiro (UFPR)

Rogério Paes Henriques (UFSE)

Roseane Freitas Nicolau (UFPA)

Zaeth Aguiar do Nascimento (UFPB)


SUMÁRIO

Prefácio .............................................................................................................................................. 1
Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz
Derivações de uma trajetória: a práxis na clínica ampliada em Saúde Mental .................................. 9
Ademir Pacelli Ferreira
A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado na assistência psicológica aos pacientes
cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde ............................................................................ 27
Cristiane Ferreira Esch, Narcisa Silveira de Paula Fonseca, Mariana Silveira Córdova, Liana Ling
Gonçalves Setianto, Clareana Velasco Silva de Paula, Alessandro de Magalhães Gemino

A práxis dos residentes no ambulatório NAI: psicanálise e velhice ................................................ 56


Gloria Castilho, Ana Beatriz Raimundo de Castro, Cristiane Bueno Iatauro, Lívia Azevedo
Carvalho, Rafaela Ferreira de Souza Gomes, Renata de Oliveira Fidelis
A passagem pelo NESA e os ritos de passagem ............................................................................... 88

Sonia Alberti (Relatora). Selma Correia da Silva, Adriana Dias de Assumpção Bastos, Aline
Martins, Aline Souza, Bruna Americano, Camila Cardozo Melo Sales, Claudia Politano, Daniela
Barros da Silveira, Heloene Ferreira da Silva e Luiza de Sá Quirino Câmara

Gravidez e psicanálise: considerações institucionais e clínicas .................................................... 123


Ester Susan Guggenheim

Psicodiagnóstico: paradigmas, experiências, histórias cruzadas e desafios futuros .....................144


Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e Cidiane Vaz Gonçalves
Psicanálise e família: percalços do édipo e seus destinos trágicos ............................................... 162

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado e Bruna Montechiari Guimarães Vohs

Notas psicanalíticas sobre o hospital e a criança .......................................................................... 180


Michelle Menezes Wendling, Liana Ling Gonçalves Setianto, Talita Alves Barbosa da Silva,
Fernanda Nogueira Klumb
Um lugar possível para a psicanálise no contexto médico: sobre a construção do trabalho em
âmbito multidisciplinar na Unidade de Pediatria do HUPE
......................................................................................................................................................... 200
Vinicius Anciães Darriba e Flavia Lana Garcia de Oliveira

Prática clínica e supervisão na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE


......................................................................................................................................................... 216
Ingrid Vorsatz e Penélope Esteves Raposo Mathias
Sobre os autores .............................................................................................................................. 244
Prefácio

O Programa de Residência em Psicologia Clínico-Institucional do Instituto de Psicologia da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi criação pioneira no Brasil de uma residência

em psicologia no contexto hospitalar.

A partir de um projeto que se desenvolveu por mais de uma década, alguns professores se

associaram a psicólogos supervisores do Serviço de Psicologia Aplicada do Instituto de Psicologia e

montaram a proposta de sua inserção no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ,

originalmente em cinco de suas clínicas especializadas. Em 2002, o Programa passou a se chamar

Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar,

permitindo atribuir a cada residente formado o título de Especialista em Psicologia Hospitalar. Reis

et alii (2016) observam que é apenas no Brasil que se desenvolve tal especialidade, pois em outros

países o trabalho do psicólogo nos hospitais é inscrito na especialidade da Psicologia da Saúde. Em

vista do crescimento e aprofundamento da prática da psicologia hospitalar no país, os autores

sustentam que a área está “em franca evolução” (Reis et alii, 2016, p. 22) e apostam que o

desenvolvimento das “questões de intersecção da psicologia nos hospitais com a psicologia em

geral no campo da saúde, certamente permitirá no Brasil uma consolidação definitiva das práticas

dos psicólogos nos hospitais” (Reis et alii, 2016, p. 23).

A coletânea que ora trazemos a público é um produto das diferentes clínicas especializadas

em que atuamos e se associa à nossa publicação, Práxis e formação, publicada desde 1996, com os

trabalhos apresentados no Fórum anual pelos residentes e seus supervisores1. É a associação com as

publicações do nosso Fórum que nos levou a decidir trazer esta coletânea a público no exato

momento em que realizamos o XXII Fórum da Residência em Psicologia Clínica Institucional,

aberto ao público em geral, neste ano de 2018, no qual os psicólogos nela atuantes apresentam seus

trabalhos em que articulam um caso clínico com sua elaboração teórica conforme a orientação do

serviço em que o caso foi atendido que, no Curso, é de referência plural, como sói ocorrer no campo

da Psicologia.
1
Na ausência de outro critério para a ordenação dos capítulos, optamos por adotar a ordem

alfabética referente aos programas especializados que compõem – ou compuseram – o Curso de

Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar. Assim, o

primeiro capítulo concerne ao programa especializado inserido no Centro de Atenção Psicossocial

(CAPS-UERJ)/Policlínica Piquet Carneiro, seguido dos programas especializados inseridos em

diferentes serviços e/ou setores do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ), a saber,

Cirurgia Cardíaca e Unidade Cardio Intensiva, Núcleo de Atenção ao Idoso-Universidade Aberta da

Terceira Idade (NAI-UnaTI), Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), Núcleo

Perinatal, Psicodiagnóstico, Terapia Familiar Psicanalítica, Unidade Docente Assistencial de

Pediatria (Ambulatório), Unidade Docente Assistencial de Pediatria (Enfermaria) e Unidade

Docente Assistencial de Psiquiatria.

Não data de hoje a ideia de um livro sobre a experiência que esse grupo de professores e de

supervisores – com a colaboração inicial de Lucília Pires, secretária hoje aposentada –, o Instituto

de Psicologia e a UERJ bancaram de forma pioneira. Em 2013, cinco ex-residentes fizeram um

projeto de publicação de um livro com suas respectivas monografias2, objetivando contribuir com

“trabalhos teóricos sobre a atuação do psicólogo clínico no contexto do hospital geral que levem em

consideração a complexidade desta atividade e que incluam a dimensão do sujeito”3. Isso porque,

diziam as autoras do projeto, os psicólogos residentes da UERJ passam por uma formação que

“durante seus dois anos de duração, concilia a atuação [em serviço] com a constante construção de

um saber sobre sua prática. A partir dos grupos de estudo, das supervisões, das aulas e das trocas

diárias entre os residentes há sempre um questionamento e indagação sobre a prática e sobre qual é

o papel do psicólogo clínico [...] na instituição hospitalar” 4. Se na ocasião o projeto não foi adiante,

até porque hoje essas monografias estão disponíveis para leitura do público em geral, a ideia

amadureceu e, num ato que não deixa de equivaler a uma garrafa de Klein – figura topológica –, a

proposta atual reinsere aquele projeto no próprio projeto original da Residência, inserindo-se a si

mesmo nisso, enquanto um work in progress, constante mas, ao mesmo tempo, trazendo sempre

2
algo novo a partir de cada experiência que a prática clínica do psicólogo no hospital promove.

Como observava uma das ex-residentes – Claudia Politano – a quem solicitamos, neste ano de

2018, uma contribuição para este livro:

“Escrever ou relembrar fatos marcantes da época em que fui residente em Psicologia Clínica

Institucional no Hospital Universitário Pedro Ernesto é como fazer uma viagem no túnel do tempo.

Foram bem vividos aqueles anos de 2000 e 2001, logo após a minha graduação em Psicologia.

Concluir a universidade e me tornar uma profissional pronta para atuar no mercado de trabalho era

algo, naquele momento, ao mesmo tempo excitante e assustador. A ideia de disputar uma concorrida

vaga na residência do Hospital Universitário Pedro Ernesto surgiu, portanto, como uma sedutora

opção. Trabalhar em um hospital considerado de excelência, com uma boa remuneração e, além

disso, ter supervisão, tornou-se minha meta para o que fazer após o término da faculdade.

Relembrando aquele período, me parece algo como um rito de passagem: a saída da vida de

estudante e a entrada no mercado de trabalho. Na Residência, a experiência de ser profissional e

supervisionando(a) ao mesmo tempo, por dois anos, marcava uma transição, transição esta que foi

determinante para o meu amadurecimento e uma grande oportunidade de ganhar mais confiança

para a atuar enquanto psicóloga.”

[...]

O hospital é a casa dos médicos, dizia minha supervisora, somos convidados na casa deles e

é como tal que devemos nos comportar. Moura (1996) expressa a mesma orientação quando observa

que o desafio ético colocado ao psicanalista no hospital é o de oferecer-se diante da demanda

inespecífica, na medida em que o que levou o paciente ao hospital foi uma demanda dirigida à

medicina. Não é necessário que a priori haja demanda para a escuta e intervenção, precisamos

apresentar o que fazemos para criar, portanto, essa demanda, tanto por parte de nossos anfitriões

quanto por parte dos pacientes que buscam atendimento no hospital. Muitas vezes, o sujeito se

encontra passivo, em seu leito, aguardando apenas os cuidados e a intervenção médica. Oferecendo

3
a nossa escuta, entretanto, podemos criar a demanda e favorecer o trabalho no ambiente

hospitalar”5.

Se nas clínicas específicas em que os residentes de Psicologia são inseridos é possível

promover um acompanhamento regular dos pacientes, e não apenas nas enfermarias como,

inclusive, nos ambulatórios de cada uma dessas clínicas, a situação na qual melhor se verifica a

importância da presença do psicólogo para criar a demanda – tanto por parte do paciente, quanto de

sua família, assim como da equipe hospitalar –, é aquela em que os residentes em Psicologia

trabalham junto ao serviço de Plantão Geral do HUPE, em que acompanham casos que são

internados em caráter emergencial em razão da gravidade dos quadros clínicos que apresentam.

Nem sempre, nesses casos, o trabalho realizado seria necessariamente da alçada de um psicólogo –

como, por exemplo, é uma atitude de oferecer algum conforto para o paciente, insistir com a

enfermagem que se alimente o paciente que não come desde que saiu de casa de manhã cedo e

agora já é de noite, ajeitar o paciente no leito para que encontre uma posição mais confortável,

ajudá-lo a tomar um gole d’água entre outros –, mas se justifica na medida em que é somente assim

que o psicólogo constrói as condições mínimas para que o paciente possa falar com ele, o que é a

visada do nosso trabalho, em última instância. Como se sabe, a clínica é sempre imprevisível e é

com essa imprevisibilidade que é preciso aprender a atuar, e quanto melhor o psicólogo puder se

situar diante dela, mais facilmente promoverá a criação de uma demanda por seu atendimento. Nem

sempre ele deve responder a demandas daquele tipo, mas deve poder avaliar a importância de fazê-

lo em situações nas quais o paciente não puder nem mesmo dirigir-lhe a palavra caso alguma coisa

não seja feita na imediatez do momento. O trabalho do psicólogo no hospital introduz questões da

clínica que nos exigem revisitar a própria origem grega desse termo – kliné –, equivalente em

português à palavra “leito”, situação com a qual o psicólogo normalmente só tem oportunidade de

se encontrar quando trabalha, justamente, no hospital. Freud (1890/1996) já destacava que, além de

considerarmos que os distúrbios orgânicos influenciam a vida psíquica, temos de pensar também no

quanto os problemas psíquicos têm incidência no corpo. A Residência em Psicologia da UERJ

4
testemunha amplamente dos efeitos positivos de uma equipe multidisciplinar na qual estejam

incluídos psicólogos, quando se trata do plantão de um hospital geral. Desde 2006, com a

reformulação do trabalho dos residentes junto ao Plantão Geral do HUPE 6, sua supervisão é

sustentada pela professora Sonia Alberti.

O trabalho no hospital geral deve ser pensado na contramão de um saber previamente

estabelecido e na contramão da simples compreensão que implica uma com-paixão (cf. Lacan,

1985). Ao psicólogo cabe ajudar o médico e a “tantos outros agentes de saúde” [...] “a suportar o

fato de que o bem do próximo muitas vezes mais o anula que o sustenta, uma vez que o próximo,

como Freud alertou em 1930, é somente uma projeção narcísica de si mesmo” (Alberti & Almeida,

(2005, p. 68). Nem sempre coincidem “o que a equipe multidisciplinar pode identificar como um

bem para seu paciente” e o que este identifica como tal (Alberti & Almeida, (2005, p. 68).

“A prática no espaço hospitalar introduz variáveis que suscitam uma série de reflexões sobre

a nossa atuação clínica: diante da ausência de uma demanda explícita de atendimento, das variações

em relação ao tradicional setting terapêutico e/ou diante da brevidade em relação ao tempo de

trabalho possível, a sustentação do nosso desejo se faz ainda mais necessária. Na Residência,

aprendi a importância de nos posicionarmos enquanto profissionais e lutarmos pelo que

acreditamos. O reconhecimento do nosso trabalho enquanto psicólogos e a interlocução com outros

saberes foi um aprendizado construído no período da Residência e até hoje, em um a posteriori,

identifico marcas dessa experiência presentes ao longo de todo meu percurso profissional” 7.

Além disso, o fato de a residência se dar num hospital público também articula

moebianamente o que Figueiredo (1997) já punha em relevo quando publicava Vastas confusões e

atendimentos imperfeitos, ou seja, a articulação entre 1) a ideia do atendimento público, ofertando

atendimento dito “gratuito” quando, na realidade, o pagamos com os pagamentos dos impostos; 2) o

direito de qualquer pessoa de ser atendida, e 3) “a ideia de tornar público, visível, e deixar

transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como privativo de alguém” ( p. 11),

em oposição portanto, à privação desse direito.

5
O tornar público é, também, a oportunidade de produzir estudos de caso, trabalhos e

pesquisas e, com isso, redimensionar a teoria em relação à clínica, o que não cessa de trazer

desafios. Eis o ponto de interseção da Residência com pesquisas acadêmicas, sobre o que

testemunham as diversas demandas de ex-residentes ao Programa de Pós-graduação stricto sensu

criado, em fins de 1998, no então Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da

UERJ, hoje Departamento de Psicanálise. Com efeito, muitas dissertações e, mais recentemente,

teses nele defendidas, são produto de um aprofundamento das questões das monografias da

Residências, ou mesmo, resultado de uma ampliação do trabalho no Hospital, após a Residência. Na

medida em que esse Programa stricto sensu é em Psicanálise, essas dissertações e teses são

contribuições do trabalho no campo da saúde mental para a teoria psicanalítica 8. A percepção da

indissolubilidade entre a teoria e prática torna patente a importância de um espaço de formação

como o da Residência na continuidade da produção de saber na universidade e fora dela. Como

observa Vorsatz (2018), há “uma diferença fundamental entre experiência e démarche científica,

sendo que não basta submeter a primeira à segunda para autorizar sua cientificidade” (p. 218) e,

sim, curiosamente, para validar a experiência é preciso verificar nela o desejo, “agente e operador

de transformação” (p. 219). O desejo, a título de operador clínico por excelência – Jacques Lacan

assim especificou o desejo do analista, que não se confunde com os anseios ou ainda com a vontade

daquele que encarna essa função –, é o que permite sustentar a experiência clínica, a cada vez.

Ainda segundo Figueiredo (1997), no que se refere à psicanálise, o tornar público é fazer

circular, entre os profissionais que trabalham no ambulatório, o cotidiano da clínica, com seus

sucessos, suas adversidades e seus fracassos. Daí também o ensino dessa prática que os residentes

aprendem e desenvolvem em serviço só pode se transmitir de um sujeito a outro, criando um lugar

em que é possível subverter a ordem dominante que, no contexto desta Residência busca garantir a

cada sujeito que está no hospital, seja como paciente, técnico, médico ou mesmo professor, garantir

seu lugar de sujeito que Lacan já definia – entre outras definições – como o lugar daquele que fala.

É com sua presença, finalmente, que o psicólogo pode, cotidianamente, contribuir nas discussões

6
com as equipes, buscando transmitir aos profissionais uma outra maneira de lidar com os casos,

introduzindo a direção de tratamento que é, necessariamente, singular, o que as políticas públicas

em saúde identificam como “projeto terapêutico” específico a cada paciente. O verdadeiro “projeto

terapêutico” norteia-se a partir do momento em que assegura a cada paciente “um lugar ao sol”,

expressão que aqui retomamos de Erico Veríssimo, fazendo valer o desejo do paciente,

independente do que, na equipe, se acredita ser melhor para ele. Mas isso não pode ser feito sem as

contribuições da mesma equipe, a ser sempre tão levada em conta quanto cada paciente.

Através do testemunho de um percurso realizado ao longo dos últimos vinte e cinco anos,

com a experiência dos fundadores e a inserção daqueles que, no decorrer desse percurso, se

incluíram no trabalho – a um só tempo coletivo e absolutamente singular –, convidamos a todos a

celebrar o seu relançamento.

Rio de Janeiro, 5 de agosto de 2018.

Sonia Alberti e Ingrid Vorsatz

Notas

1. A Revista é publicada desde o primeiro Fórum da Residência, mas sua digitalização apenas

começou. É possível adquirir os números antigos na Secretaria da Residência no Instituto de

Psicologia da UERJ. Consultar também os sites: http://www.praxiseformacao.uerj.br e

http://www.psicologia.uerj.br/praxis.html

2. Americano, B. P. A realidade psíquica e o atendimento no hospital geral; Castro, A. B. R. É

preciso tempo: reflexões sobre o luto e a urgência subjetiva no hospital geral; Donati, T. D.

Medicina e psicanálise: o analista na clínica hospitalar; Fidelis, R. O. Algumas

considerações acerca da chegada de idosos a um espaço de escuta psicanalítica, e Rosso,

C. I. Considerações acerca dos estados depressivos a partir da psicanálise com idoso.

3. Projeto de Bruna Americano e Ana Beatriz Raimundo de Castro.

4. Idem.

5. Do depoimento da ex-residente Claudia Politano.

7
6. Cf. o trabalho de Danielle Monteiro Câmara apresentado no XIX Fórum da Residência,

“Emergências subjetivas no Plantão Geral do HUPE”.

7. Do depoimento da ex-residente Claudia Politano.

8. Trata-se da pesquisa “Contribuições dos dispositivos clínicos em saúde mental à teoria

psicanalítica: os nós e os discursos”, atualmente em realização com bolsa de pesquisa no

CNPq (2018-2022) e sustentada pelo programa Prociência da UERJ.

Referências

Alberti, S. & Almeida, C. P. (2005). Relatos sobre o nascimento de uma prática: psicanálise em
hospital geral. In Altoé, S. & Lima, M. (Orgs.). Psicanálise, clínica e instituição. Rio de Janeiro:
Rios Ambiciosos. (pp.55-71).

Figueiredo, A. C. (1997). Vastas confusões e atendimentos imperfeitos. Rio de Janeiro: Relume


Dumará.

Freud, S. (1996). Tratamento psíquico (ou anímico). In Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX. (Obra originalmente
publicada em 1890).

Lacan, J. (1985). O Seminário, livro 3: As psicoses (1955-56). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Moura, M. D. de (Org.). (1996). Psicanálise e hospital. Rio de Janeiro: Revinter.

Reis, J. de A. Rodrigues; Machado, M. de A. R.; Ferrari, S.; Santos, N. de O.; Bentes, A. Q., e
Lucia, M. C. S. de (2016). Prática e inserção do psicólogo em instituições hospitalares no Brasil:
revisão da literatura. In Psicologia Hospitalar, 2016, 14(1), 2-26.

Vorsatz, I. (2018). O conceito, o desejo e a ética: o desejo como móbil do conceito fundamental. In
Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 21(2). [pp.215-223]. Disponível em
https://dx.doi.org/10.1590/s1516-14982018002007 . Acesso em 3 ago 2018.

8
Derivações de uma trajetória: a práxis na clínica ampliada em Saúde Mental

Ademir Pacelli Ferreira

Resumo: Neste trabalho propomos repassar um pouco de nossa trajetória no campo da assistência e

ensino e ao mesmo tempo cotejar a importância de Nise da Silveira (Nise) e de sua obra neste percurso.

Será, portanto, pontuado elementos e acontecimentos que compõem o percurso de várias décadas de

atuação como professor, supervisor clínico e coordenador de programas de pesquisa e assistência em

saúde mental, onde será assinalada a importância do programa de residência em psicologia e da

experiência através da práxis chamada de clínica ampliada, em internação, ambulatório e CAPS.

Palavras-chave: residência, ensino, formação, saúde mental.

Abstract: In this work we propose to pass on a little of our trajectory in the field of assistance and

education and at the same time comparing the importance of Nise da Silveira (Nise) and your work in this

way. Will be thus punctuated elements and events that make up the course of several decades of

experience as a teacher, clinical supervisor and coordinator of research and assistance programs in mental

health, where it is reported the experience through the Praxis expanded clinic, call in hospitalization,

outpatient and CAPS.

Keywords: residence program, education, training, mental health.

Resumen: En este trabajo nos proponemos transmitir un poco de nuestra trayectoria en el campo de la

asistencia y educación y a la vez comparar la importancia de Nise da Silveira (Nise) y su trabajo nesta

trajetoria. Así puntuados elementos y eventos que componen el curso de varias décadas de experiencia

como profesor, supervisor clínico y coordinador de investigación y programas de asistencia en salud

mental, donde se indica la importancia de la residência em psicologia y la experiencia a través de la

Praxis clínica ampliada, llamada en hospitalización, atención ambulatoria y CAPS.

Palabras-clave: programa residencia, educación, capacitación, salud mental.

9
Introdução

Neste trabalho propomos repassar um pouco de nossa trajetória no campo da assistência e ensino

ao mesmo tempo cotejar a importância de Nise da Silveira (Nise) e de sua obra neste percurso. Surgiu a

partir do convite do professor Walter Melo Jr. do Departamento de Psicologia da UFSJ, que em 2016

organizou evento com vários colegas cujas práticas denotam a reflexividade da práxis de Nise da Silveira.

O tempo vai tornando-se longo e temos uma certa premência de falar de nossa história. Não sei se

conseguirei pontuar de forma objetiva as derivações destes quarenta anos de vida no campo da saúde

mental onde mantive meus estudos, pesquisas e ensino. Esta práxis, que chamamos de clínica ampliada, é

uma concepção surgida no final da década de setenta. O adjetivo ampliada passou a ser utilizado

principalmente a partir da entrada de profissionais com referência psicanalítica para atuar em instituições

psiquiátricas e hospitalares, seja na internação, ambulatórios e, mais tarde, nos CAPS. Isto para

diferenciar do modelo padrão de atendimento psicanalítico, isto é, divã, várias sessões semanais e

transferência/interpretação. Ao mesmo tempo, esta perspectiva rompia também com a tradição da clínica

médica clássica no sentido de centrar o atendimento na anamnese, sumula psicopatológica, diagnóstico e

tratamento sintomatológico.

Na clínica ampliada há uma abertura para o relacionamento mais próximo com o cliente, contato

com seu meio, acompanhamento de suas soluções e arranjos e atenção sensível para com a relação

terapêutica. Sustenta-se aí o lugar de testemunho (Halbwachs,1950) das produções dos sujeitos,

investindo em práticas que contribuam para a sua construção de recursos próprios e de laços sociais. Este

trabalho diário com pacientes graves, psicóticos, internados ou em regime externo, foi caracterizado como

acompanhamento terapêutico.

Minha trajetória partiu de um marco decisivo na minha vida pessoal e profissional, que foi meu

encontro com Nise da Silveira. Tentarei situá-lo no tópico seguinte.

Do asilo ao hospital psiquiátrico

10
Como é sabido, pode-se falar da internação para tratamento a partir da criação da instituição

hospitalar. A prática do isolamento e do asilamento geral dos chamados loucos até o séc. XIX, não tinha

esta característica, pois sua função era somente social. Mas desde a medicina antiga, dos médicos-

filósofos gregos, a loucura passou a ser matéria para a medicina iluminar (Pessotti,1999). A partir da

modernidade, a sociedade passou a atribuir ao médico este lugar e esta função junto ao hospício ou asilo.

Desta forma, os médicos reformistas na Inglaterra, França, Estados Unidos, sendo Pinel o mais

conhecido, tentaram instituir no hospício o método clínico, onde a observação criteriosa e diária, a

classificação dos sinais e sintomas e o estabelecimento das síndromes, pudessem criar um corpo de

conhecimento das doenças mentais, permitindo o controle e o tratamento destas. O hospício deveria ser o

lugar de identificar e tratar o doente, produzir o conhecimento sobre a loucura e proteger o doente e o

outro dos desvarios e das ações da alienação. Desta prática nasceram o alienista, o alienado e o alienismo,

mais tarde, constituindo-se como disciplina médica - a medicina da alma ou psiquiatria.

Tratar medicamente o alienado, sempre foi o grande problema da psiquiatria. Não havia doenças

precisas e nem remédios específicos para elas. Com a concepção da loucura como sendo da ordem do

desvio da razão, devido aos efeitos da paixão, foi possível criar um método psicoterápico

comportamental, o chamado tratamento moral (Leuret, 1846), que lançava mão de recursos variados para

influenciar o doente ou suprimir seus sintomas, delírios, visando recolocá-lo nos trilhos (lírios) corretos e

sensatos (sem de-lírios).

Mas, principalmente na década de trinta do séc. XX, foi criado um aparatus de intervenção que

restaurou o orgulho dos psiquiatras. Através da eletroconvulsoterapia (ECT), da lobotomia, do coma

insulínico e do cardiazol, acreditava-se, até o início da década de cinquenta que, enfim, os psiquiatras

dispunham de uma verdadeira medicina, e o hospício transformara-se em hospital, onde o paciente era

avaliado, diagnosticado, tratado e recebia alta. Este era o modelo encontrado por Nise ao retornar ao

hospício em 1944, após seu exílio voluntário no interior do país em virtude das ameaças sofridas no

Estado Novo (Mello, 2014). Não era difícil observar que a crença na utopia biologista era questionada

11
pelos seus pífios resultados. O confronto de Nise com os médicos e suas concepções e crenças deste

período é bem ilustrada no filme de Berliner (2013).

Em 1952, com o advento da criação dos psicotrópicos, uma nova onda de orgulho veio para

rematar o modelo médico: diagnosticar, tratar, prognosticar. Os psicotrópicos, neurolépticos, drogas

potentes na alteração do funcionamento psíquico (neuronal) e comportamental, trouxeram sustentação

para a prática do psiquiatra, capaz de tratar seu paciente tanto na internação quanto no consultório. Esta

perspectiva medicamentosa também não entusiasmou Nise. A psicanálise – que apesar de ser lida por

muitos psiquiatras brasileiros desde o início do século XX, inclusive fundaram em 1929 a primeira

Associação Brasileira de Psicanálise - não iluminava as práticas psiquiátricas em relação as psicoses e nos

hospícios. Nise tinha dificuldades de entender isso, colegas que tinham a psicanálise como referência em

seus consultórios, mas que no hospício mantinham a posição biologista clássica. Na verdade, a tensão

bio-psíquico, sempre acompanhou a história da psiquiatria (Serpa Jr., 1998; Ferreira, 2012).

Este foi o hospício - prefiro este termo ao de hospital e este é também a marca registrada no

imaginário social - que conheci no início dos anos setenta, onde a medicalização era generalizada, em

altas dosagens e as prescrições muito pouco criteriosas, muitas vezes a cargo dos atendentes de

enfermagem. Praticava-se aí a intensa sedação, o chamado sossega leão ou entorta (enrijecimento e

contrações motoras devido a impregnação cortical ou extrapiramidal). Dos instrumentos mais radicais da

década de trinta, a ECT continuou sendo utilizada em larga escala, inclusive como punição e forma de

controle comportamental pela ameaça. Mas tive muita sorte de entrar neste campo pelo viés do encontro

com Nise da Silveira e sua pioneiríssima e revolucionária prática.

O encontro com Nise

Como sabemos e como mostrou o filme de Berliner (2013), a práxis de Nise representa uma

mutação na psiquiatria brasileira (Ferreira, 2015). Como afirmou ela,

12
Aquilo que se impõe à psiquiatria é uma verdadeira mutação, tendo por princípio a abolição total

dos métodos agressivos, do regime carcerário, e a mudança de atitude face ao indivíduo, que

deixará de ser o paciente para adquirir a condição de pessoa, com direito a ser respeitada

(www.ms.gov.NisedaSilveira:vida e obra.2005).

Eu gostei bastante da forma enfática de Berliner iniciar seu filme com Nise tentando abrir a porta

do hospício. A abertura das portas, a oposição ao isolamento social e ao hospício cárcere, são indicadores

emblemáticos de sua práxis.

O ato inicial de Nise é paradigmático, ao retornar ao Hospício, agora Centro Psiquiátrico Pedro II,

ela recusa praticar os chamados métodos inovadores da época e a aplicação da ECT e prefere abrir

espaços terapêuticos ativos e criativos dentro da própria enfermaria. Inicia-se ali uma clínica respaldada

no respeito pela pessoa e sua singularidade, oferecendo atenção e recursos para que estes indivíduos

pudessem expressar e dar forma às suas imagens internas e aos seus processos subjetivos e estabelecer

laços de interação com o mundo. Do espaço fechado, através da criatividade e da acolhida empática, as

janelas e portas foram se abrindo e outros espaços foram sendo criados. De uma tacada ela se contrapôs

ao “clinicismo” - que não receitava atividades para pacientes em crise, já que estes deveriam ser tratados

no leito – e também ao isolamento e a segregação como prática comum das políticas institucionais

(Ferreira, 2015).

A partir dessa experiência, nasceu a ideia precursora da Casa das Palmeiras em 1956. Época,

portanto, pós-psicotrópicos. Ela observava os processos profundos e múltiplos vivenciados pelos sujeitos

nas condições psicóticas e como, com a sedação neuroléptica e consequente inibição psíquica, os

sintomas eram apagados e os indivíduos devolvidos a sociedade, sem elaboração e integração de seus

conteúdos. Desta forma, saíam da internação empobrecidos e embotados. Se os pacientes tinham altas

mais rápido da internação, voltavam também mais rápido, como ela constatou na observação diária e com

a pesquisa intensiva. Com a Casa das Palmeiras, ela demonstrou que era possível ao chamado

esquizofrênico criar um espaço mediador e viver sem a internação (Silveira,1982;1992).

13
Retomando o filme de Berliner, ao assisti-lo, lembrei-me que eu também havia, há alguns anos,

fixado uma imagem inicial para um filme imaginário sobre Nise, que seria a cena de seu velório e do

adeus a ela no cemitério São João Batista.

Como sabemos, seu fim foi bastante triste. Ninguém quer morrer no hospital e Nise tinha aversão

a hospitais, mas por ironia da vida ela acabou morrendo em um. Na premência da dor do braço fraturado

ela foi levada para cirurgia, apesar de sempre ter avisado de que não poderia tomar anestesia devido a sua

síndrome neurológica rara. Com a anestesia, ela não poderia respirar e foi o que aconteceu, pois

decidiram pela cirurgia e logo após tiveram que abrir sua traqueia (traqueostomia) para que respirasse e

não tinha mais como sair do CTI, outro lugar sinistro. O hospital era privado, custo absurdo para uma

servidora pública que não teve como manter seu plano de saúde na velhice. Foi então transferida para

hospital público. Apesar de bem assistida e o CTI ser bem equipado, ninguém gosta de estar aí. Ao

encontrá-la naquela triste situação anexada às máquinas de sobrevivência, me pediu desesperadamente,

por gestos, para tirá-la de lá. Disse-lhe que seria impossível, não teria como fazer isso, não seria possível

desconectá-la das máquinas. Ela então fechou-se no mutismo, olhos cerrados, semblante de amargura.

Não me olhou mais nas visitas que se seguiram até a sua morte.

No cortejo fúnebre, com a bandeira da escola de samba cobrindo o seu caixão e os surdos

ecoando, ouvíamos os brados de “viva Nise e abaixo o manicômio”. No final, enquanto Tomás (do grupo

musical Homem de Bem) e eu depositávamos seu corpo na urna funerária, escutava-se a despedida com o

ressoar do surdo, palmas e vivas a Nise.

Naquele momento de velório e de despedida - na verdade o rito de passagem para esta experiência

da ausência, pois não teria mais os encontros tão reconfortantes em sua casa, onde conversávamos sobre

tantas coisas e sobre nossa paixão comum em relação às pessoas chamadas psicóticas e suas múltiplas

experiências e desdobramentos dos vários estados do ser, expressão de Artaud que Nise lembrava sempre

- uma lembrança se fazia viva em minha mente, meu primeiro encontro com ela.

O encontro
14
Na época, 1972, apenas três anos no Rio de Janeiro, vindo do interior de Minas Gerais, me

preparava para o vestibular e já havia escolhido a psicologia. Um dia, no cursinho, observei que um

colega conversava com o professor num clima meio misterioso e, ao me aproximar, descobri que ele

falava de Nise, do Grupo de Estudos Junguiano, do MII (Museu da Imagem do Inconsciente). Fiquei

fascinado com o que escutei. Depois de certa sabatina, o colega me levou ao Grupo de Estudos e

apresentou-me a Nise, que me recebeu com sua cordialidade e simplicidade e me senti muito bem entre

aquelas pessoas diversificadas (intelectuais de diferentes áreas, estudantes de psicologia e outras áreas,

artistas, hippies, donas de casa). Pairava ali um certo clima underground. Logo estimulado por Nise,

passei a frequentar o STOR (Setor de Terapia Ocupacional) e o atelier junto ao Museu Imagens do

Inconsciente e depois a Casa das Palmeiras. Entrei assim nesta rica universidade antes de entrar na outra

(UERJ).

Do encontro aos desdobramentos: marcas de um ensino

Neste sentido, revisitar meu percurso e a importância de Nise é, também, indicar o sentido para

aqueles que puderam beneficiar-se e levar para as suas práticas este aprendizado. Eu era na época um

jovem em intensa busca, só havia lido alguns livros de auto-ajuda e tinha ouvido falar de Freud, achando

estranho a história de Édipo.

Naqueles anos de miséria cultural brasileira, o maior fechamento da ditadura no início de 1970, era um

privilégio ter contato com este espaço rico de estudos, discussões e inscrições de cultura densa e

profunda. Pela sua generosidade pude desfrutar de sua rica biblioteca; belos livros de arte, história,

religião, psicanálise, filosofia, antropologia, psicologia, sociologia, literatura - em português, francês,

inglês, espanhol. Esta relação que aí se iniciou durou até a sua morte e de cujo ensino pude desfrutar e dar

continuidade através de uma prática que suponho refletir sua posição ética e metodológica.

Considero muito rica minhas experiências de formação; além do Serviço de Psicologia Aplicada do

IP/UERJ, dos estudos e supervisões psicanalíticas, os estágios nos ateliê do MII, escola viva, como dizia

Nise, na Casa das Palmeiras, com realização do curso de Terapia Ocupacional (TO) por ela organizado,
15
experiência nas emergências psiquiátricas do Centro Psiquiátrico Pedro II e do Instituto Philippe Pinel. O

que foi uma novidade, uma experiência precursora, pois não havia essa possibilidade antes. Na

emergência do CPP II, já observava que por qualquer crise aqueles que lá chegavam eram internados. No

Pinel, em dupla com uma residente de psiquiatria, Marilda Barbosa, conseguíamos evitar a internação

combinando com o cliente o seu retorno no próximo plantão. Aí observamos que a emergência, que era a

entrada para a carreira de “psiquiatrizado” (Brody, 1959), tinha que ser mudada. Das derivações desta

experiência surgiu a temática da migração em meus estudos. Observava o aumento de surtos psicóticos

em migrantes recentes, época esta do boom da construção civil no Rio e em São Paulo. Entendemos o

surto aí como resultante deste tempo de deslocamento, onde o estranhamento e a estranheza deste novo

lugar abrem para a emergência de outro território estrangeiro (Freud,1919), o inconsciente. Resultou daí a

tese, A migração e suas vicissitudes (1996), o livro, O migrante na rede do outro (1999) e vários outros

artigos.

Minha última experiência no CPP II foi na enfermaria M2, masculina, onde o Dr. Paulo Pavão

coordenava um excelente trabalho de equipe seguindo a linha do Prof. Loyello de internação curta. Ele

contava com ótimos estagiários compondo uma equipe interdisciplinar que funcionava muito bem. Fiquei

responsável pelas atividades terapêuticas expressivas, levando as propostas de Nise. Era mantido também

um grupo de estudo e discussão dos casos. Em 1975, o professor Loyello foi convidado para a UDAP-

HUPE/UERJ, levou o Dr. Paulo Pavão, e fomos também todos para lá como estagiários e aí incentivei e

participei da oferta de várias atividades para os internos. A partir desta formação tive a sorte de ser

convidado para implantar um setor de terapêutica ocupacional no Sanatório Espírita de Anápolis, Goiás,

em 1977, onde permaneci durante três meses escolhendo monitores, estabelecendo três setores de

atividades expressivas, artes aplicadas, música, atividades corporais, esportivas e passeios externos.

Estabelecemos também um grupo de estudo com os médicos, enfermeiros, assistentes sociais e

monitores das atividades terapêuticas. Antes de ir sugeri que construíssem um prédio com três salas

externas às enfermarias para a implantação do Setor de Atividades. Quando lá cheguei, já encontrei o

16
prédio pronto. O Sanatório ainda funcionava nos tradicionais galpões como enfermarias, com dezenas de

camas e sem nenhuma individualidade para os internos. Propus que os dividissem em quartos, o que

também foi feito.

Com o funcionamento do setor de atividades, com a quebra dos espaços fechados, saídas para

atividades de grupo, artes plásticas, música, passeios externos, a mudança do ambiente e dos

relacionamentos foi enorme. As atividades eram desenvolvidas em grupos mistos, homens e mulheres,

pois a separação dos sexos era a prática institucional. Pudemos avaliar uma melhoria acentuada dos

internos, da relação com os profissionais e do ambiente institucional. Em consequência, houve aumento

significativo do número de altas da internação e nos deparamos com uma situação absurda, o INAMPS só

pagava a passagem para os internos até 80km de distância do sanatório. Muitos internos moravam em

municípios mais distantes. Mas, para completar o absurdo, continuavam pagando a internação. Avaliamos

que esta foi uma importante experiência de realização de um trabalho de mudança de uma instituição e

meu primeiro trabalho como profissional.

Depois de formado, graças ao convite de Gina Ferreira, trabalhei no HMSA (Hospital Municipal

Souza Aguiar) por três anos. Lá também pude observar a importância do trabalho do psicólogo, tanto na

enfermaria, quanto no ambulatório.

Em 1979, ingressei no Instituto de Psicologia/UERJ como supervisor clínico e professor de

psicopatologia. Criei então, na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE/UERJ (UDAP), O

Espaço de Atividades e Acompanhamento Terapêutico, que em 1992 mudamos o nome para Espaço de

Atividades e Convivência Nise da Silveira (EAC-NS), contando com a sua presença na inauguração.

Foi neste espaço que recebi o hoje professor Walter Melo, anfitrião do Encontro da Universidade

Federal São João del Rei, na época estagiário da residência de psicologia que criamos em 1993. Já em

1997, me substituiu por alguns meses como supervisor em um momento difícil de minha vida. Seu

trabalho foi de grande valor neste tempo em que lá esteve como residente e como supervisor. Deixou a

sua marca pela sensibilidade e capacidade singular no manejo com os internos e frequentadores da
17
psiquiatria. Destacando-se em sua dedicação e habilidade de oferta de acolhimento às pessoas com

transtornos psicóticos. Derivado desta experiência, temos o seu livro, O terapeuta como comparável

mítico (Melo Jr., 2009), título derivado dos termos que na época caracterizei a modalidade de relação

entre Walter e um rapaz psicótico que vivia de sua intensa atividade delirante e que o elegeu de pronto

como o Cristo que veio salvá-lo (Walter tinha as características físicas da representação do Cristo).

Walter encontrou Nise e sua obra em um Evento que eu havia proposto ao Departamento de

Cultura/UERJ, e que chamei: Encontro Nise e a Universidade (1988). Proposta que foi apropriada e

ampliada pela Reitoria na época, já que precisava de maior aceitação e visibilidade na instituição e viu

nesta proposta uma boa chance, pois Nise abria portas ideológicas cerradas. O evento constou da

homenagem que lhe concedeu o título de Doutora Honoris Causa da UERJ, além do programa amplo

com os trabalhos do MII e de sua presença para a satisfação dos participantes, que como Walter, muitos

ficaram fascinados.

Voltando ao meu percurso, meus laços com Nise continuaram ajudando no meu trabalho

profissional e pessoal. Mesmo não frequentando mais os espaços por ela criados, eu sempre precisei de

nossos encontros em sua casa, os intervalos dos encontros eram marcados geralmente por sonhos

transferenciais. Encontros esses reconfortantes onde havia alguma análise de sonhos e conversas livres, o

que me refaziam por algum tempo.

Voltando ao EAC-NS, prática que sustentamos por mais de 30 anos, penso que teve importante

função ao ser desenvolvida numa enfermaria de internação através do acompanhamento terapêutico, da

elaboração deste tempo mais crítico, com utilização de recursos verbais e não verbais, além de cultivar a

prática de manter a interação dos internos com frequentadores do ambulatório que vinham participar das

atividades criativas, expressivas e grupais aí desenvolvidas (artes plásticas, teatro, Grupo Operativo,

grupo de familiares, passeios). Foi um importante espaço de experiência para muitos estudantes de

graduação e especialização, e fico contente de encontrar muitos deles hoje atuando na chamada clínica da

reforma.

18
A partir desta experiência surgiu a demanda de um espaço externo mais organizado e ampliado para

receber maior número de pessoas com transtornos mais graves e que exigiam acompanhamento intensivo

e prolongado. Foi criado então o Hospital Dia (HD) em 1993 onde mantivemos estagiários de extensão,

iniciação científica, curriculares e residentes durante toda a sua existência até 2009, cujas atividades

foram transpostas para o CAPS UERJ, primeiro CAPS universitário, localizado na Policlínica Piquet

Carneiro.

Portanto, em 2009, criamos o CAPS UERJ, uma nova perspectiva assistencial e de formação, HD

encontrava-se em condições degradantes, já o novo espaço, apesar de não ser o que idealizamos

(preferíamos uma casa), é muito superior. Além de melhores condições físicas, sua organização contou

com parcerias ampliadas entre unidades da UERJ, HUPE, Secretaria Municipal e Secretaria Estadual de

Saúde, além do apoio entusiasmado do diretor da Policlínica Piquet Carneiro (PPC), na época o médico

João Caramez, que tem ótima visão da função dos programas assistenciais na universidade em sua relação

com o ensino e a pesquisa. Tudo isto possibilitou compor um quadro técnico e de professores-

supervisores com inclusão de seus estagiários de graduação e especialização, que vem garantindo a

assistência em conformidade com as políticas do SUS. Hoje o CAPS UERJ é referência para a AP2.2, que

engloba uma população de quase quatrocentos mil habitantes. Aí centrei minha prática nos últimos anos,

como supervisor clínico e membro da equipe e assumindo a sua coordenação em 2017 com a saída da

coordenadora Neilanza Coe, que sustentou este lugar desde a sua criação.

Voltando ao paralelo proposto, entendemos que esta prática reflete a clínica criada e ensinada por

Nise, ao receber no dia a dia, pessoas cujos laços sociais e sócio-afetivos são muito tênues ou que estão

mesmo privados destes. Portanto, os CAPS vêm efetivando esta clínica externa para pacientes graves,

iniciada em 1956 com a criação da Casa das Palmeiras, cuja função de ponte entre o sujeito com sua

subjetividade desordenada e o mundo externo, foi enfocada por Nise. Para isto, ela entendia que através

da possibilidade de expressão, sentido e manejo de seus tumultos internos e da criação de laços afetivos,

seus frequentadores poderiam reordenar o caos resultante da fragmentação esquizofrênica e assim

19
assegurarem a sua existência fora dos muros da instituição psiquiátrica, ao disporem deste espaço de

referência e de suporte.

Residência em Psicologia Clínica Institucional

Também em 1993, criamos no IP/HUPE, a primeira Residência em Psicologia Clínico

Institucional, bandeira por mim defendida desde 1979. Bandeira, porque eu já havia descoberto a

importância da prática do psicólogo não só nas instituições psiquiátricas, mas também no hospital geral,

onde ainda não estava muito claro para os dirigentes e também para a própria categoria. Em

consequência, estranhávamos o fato de não contarmos com projetos de residência nestas instituições.

Poucos eram também os hospitais públicos e privados que contavam com psicólogos em suas equipes.

Através do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental e do CRP-05, realizamos uma enquete junto

aos hospitais e constatamos que seus dirigentes valorizavam e desejavam a prática dos psicólogos em suas

instituições. Através do Sindicato dos Psicólogos e do Conselho Regional de Psicologia (CRP05) e da

liderança e empenho de Margarete Ferreira junto às secretarias de saúde foi realizado o primeiro concurso

para psicólogos do Estado em meados da década de oitenta.

No HUPE/UERJ, por iniciativas de professores de medicina e a procura de psicólogos, a entrada

de psicólogos se deu em meados da década setenta e a pedido do diretor do HUPE, logo depois, a diretora

do IP/UERJ, professora Yonne Muniz, contratou seis psicólogos que vieram depois receber estagiários.

Mas com a criação do SPA, estes receberam a função de supervisores de graduação neste espaço. Mais

tarde alguns programas voltaram a ser desenvolvidos no HUPE. Portanto, se a prática dos psicólogos era

de grande importância, a experiência neste espaço era também fundamental para a formação em

especialização clínica destes profissionais. Seguindo esta direção, em 1989, partimos desses projetos já

implantados junto as UDA’s (Unidades Docentes Assistenciais) de Psiquiatria (terapia de

família/psicodiagnóstico), de pediatria, maternidade/pré-natal, adolescência, idosos, que compunham seis

programas e formulamos nosso projeto de residência em 1989. Infelizmente por falta de empenho da

direção do IP/UERJ na época, não foi possível implantá-la. Com a aprovação da nova direção em 1993 e

20
o apoio da direção do HUPE, que sempre foi favorável, implantamos a primeira residência em psicologia

do país. Inicialmente quatro vagas, depois cinco e em 2010 conseguimos passar para as dez vagas anuais.

Tem havido uma interação da especialização em residência com a pós de psicanálise,

principalmente como continuidade de estudos acadêmicos para muitos egressos, tanto no mestrado como

no doutorado. Foi em 1999 que criamos no IP o Programa de Pós-graduação em Clínica e Pesquisa em

Psicanálise, onde sou membro do colegiado. Um programa com enfoque clínico e tem sido importante

suporte para elaborações e teorizações das práticas neste campo e na saúde mental. Os orientandos da pós

que venho acompanhando são sempre profissionais que atuam em instituições de saúde, a maioria no

campo da saúde mental, o que cria uma interlocução com os residentes. A vinda dos residentes para o

campo assistencial foi de grande valor para os setores e para a efetivação das práticas de formação e

assistência. No CAPS UERJ, projeto que sustento, os residentes, tanto o R1, de seis meses, quanto o R2,

de um ano, vêm participando ativamente deste dispositivo que é referência clínica para a rede assistencial

em saúde mental. Um importante aprendizado do trabalho em rede e de estudo das políticas e das

formulações teórico conceituais do campo. Vários trabalhos também vêm sendo elaborados pelos

residentes, individuais ou com o supervisor, para congressos e eventos na área, o que será referido na

bibliografia.

Mudanças e desafios atuais

As mudanças propostas pela chamada reforma psiquiátrica exigiram escolhas conceituais que

objetivaram desvencilhar a prática assistencial dos efeitos estigmatizantes da ideia de doença mental.

Também as classificações internacionais das doenças (CID-10; DSM.III-V), procuraram abrir mão da

concepção de entidade nosológica a favor da ideia de síndrome, preferindo o termo transtorno mental.

Para o campo, optou-se pelo termo saúde mental, por influência da reforma operada nos Estado Unidos na

década de sessenta que adotou a concepção de mental health (Zorzanelli, Bezerra Jr. e Costa, 2014).

A perspectiva da reforma implica a ideia de sujeitos que possuem potencialidades subjetivas e

objetivas de viverem suas vidas em sociedade e que devem receber ofertas de cuidados e tratamentos que

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os facilitem no desenvolvimento e sustentação de condições para viverem como pessoas e como cidadãos.

Uma perspectiva, como sabemos, que teve grande influência da reforma italiana liderada por Basaglia

(Barros; Nicácio e Amarante, 1997).

O diagnóstico de doença mental é feito tradicionalmente da exterioridade da vida da pessoa e não

de sua experiência subjetiva. Este recebe um veredito do médico, mas não pode se entender nesta

designação nosológica. Torna-se necessário sair da exterioridade e aproximar-se de suas vivências e

acompanhar as suas possibilidades narrativas e criativas para construir arranjos de sua vida e de sua

sobrevivência no mundo (Serpa Jr. et alii, 2014). Para o diagnóstico, exige-se categorias nosológicas que

são estabelecidas arbitrariamente e nasceram antes de mais nada do estabelecimento de noções de

normalidade e de patologia. Sabemos que a marca hospitalar como modelo, seccionou o homem da

doença, centrando principalmente na tentativa de estudar a doença em si sem levar em conta a pessoa ou a

subjetividade daquele que é designado como doente (Zorzanelli; Bezerra Jr. e Costa, 2014).

Tendo como referência a realidade tenebrosa que encontramos nos inícios dos anos 70, são

importantes as mudanças alcançadas. De um sistema desumano, segregador e de desrespeito aos sujeitos

tidos como doentes mentais, à perspectiva da acolhida e da oferta de operadores terapêuticos externos em

unidades menores, onde é incentivado as interações interpessoais, a criatividade, a preparação para a

produção e inserção no campo econômico e garantia dos direitos de cidadão. Esta abordagem vem

criando novas condições para aqueles que sofrem de transtornos psíquicos e para seus familiares, além de

servir de reflexividade para a mudança dos estereótipos e representações sociais da loucura e de novas

possibilidades de pensar os seus destinos na sociedade. Ou seja, quebrar a crença de que lugar de louco é

no hospício, máxima fixada no final do século XIX.

Mas, observamos hoje que a complexa e heterogênea demanda feita aos CAPS vem acarretando a

perda dos limites de suas condições de funcionamento enquanto dispositivo terapêutico e psicossocial.

Além das dificuldades de contar com equipe suficiente e bem preparada, os CAPS são implantados em

áreas programáticas (AP) extensas, que envolvem vastos contingentes populacionais, situando-se nesta

AP como referência para as Residências Terapêuticas (RT), criadas para receber os “psiquiatrizados” ou

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institucionalizados que não possuem acesso a locais ou a condições de moradia; recepção de pacientes de

longas internações, através do projeto de desinstitucionalização ou Volta para Casa1; referência para o

estabelecimento de laços com internados em unidades de curta duração, para assegurar a continuidade da

assistência externa; referência para receber jovens adultos que estão saindo das unidades que assistem

crianças e adolescentes com autismo e outros transtornos graves, muitas vezes portadores de lesões e

deficiências mentais graves, além da atuação junto aos projetos de assistência às famílias (PSF).

Considerações finais

Para finalizar, retomo o paralelo das mudanças ocorridas neste campo e a reflexividade da obra de

Nise, que é um vetor de inspiração. Consideramos fundamental para sustentar hoje as práticas da reforma

o compromisso com a pesquisa. Diz-se, com frequência, que temos uma prática sem teoria. E nisso Nise

foi também um exemplo. Para aqueles que conheceram a sua práxis, sabem que, junto aos métodos

terapêuticos ativos e criativos por ela orientados, associava-se a pesquisa profunda, visando conhecer o

mundo interno e enigmático dos chamados esquizofrênicos. Como disse Drummond de Andrade aquele

“ser distanciado da imprecisa fronteira do normal – o fechado em si, o supostamente ininteligível ... que

não participa do nosso modo comum de viver e exprimir-se.” (Andrade, 2000, p. 76). Aqueles, muitos

tidos como dementes crônicos, surgiram revelações de potenciais criativos e de habilidades artísticas que

confrontaram os frios diagnósticos de degeneração, que serviam para justificar a miséria dos hospícios.

Isto é, as mentes (dos internos) eram miseráveis (dementes) e nada poderia ser feito, pois eram

irrecuperáveis.

Esta pesquisa profunda da subjetividade - uma arqueologia da psique - com esses seres humanos

considerados despossuídos de subjetividade, poderia ser taxada de subjetivista, preconceituosamente, por

intérpretes apressados e de viés mais sociologista, por acharem que Nise só se preocupava com o mundo

interno. Para àqueles que conheceram seu trabalho mais de perto e mais profundamente, trata-se do

contrário. Sua pesquisa confrontou os métodos agressivos, invasivos e opressivos dos hospícios

tradicionais. A produção dos internos revelou muito das opressões sociais, das tensões nas relações

familiares e sócio-econômicas, do abismo na comunicação com o outro que estiveram presentes em suas
23
biografias e continuavam depois de seus rompimentos psíquicos. Provou, portanto, que o asilo era

justificado socialmente como ponto final para aqueles que já tinham sido empurrados para fora de seu

convívio sócio-afetivo (Silveira, 1981;1992). Um muro que separava e bania o chamado doente mental e

sua loucura do convívio social, resultando em empobrecimento das representações sociais, pois descartar

esta dimensão da experiência humana significa uma redução do seu ser (Ferreira, 2015; Mello, 2014).

Desta forma, afirmamos que a práxis de Nise se sustentou no compromisso permanente com o ser

humano em seu mundo. A divisão artificial interno–externo é confrontada a todo o tempo em seu

trabalho, seja pelo uso dos espaços e do tempo no hospício – onde, com atividades criativas, produtivas e

culturais, subverteu a pontuação burocrática do tempo e produziu novos ritmos e novos deslocamentos;

das enfermarias fechadas para oficinas de artes aplicadas, ateliês e espaços externos - seja mais tarde, ao

criar a Casa das Palmeiras (CP) no bairro da Tijuca, totalmente fora e distante do espaço asilar (Silveria,

1986; Melo JR., 2005). Como afirma Bezerra Jr. (2011, p.14),

O asilo era um não-lugar, um espaço desvitalizado no qual o tempo se estagnava, transformando

seus habitantes em não-sujeitos que perambulavam por um limbo existencial. O ateliê que Nise

criou era a antítese disto: uma ilha de emoções, de relações afetivas, de expressão subjetiva, um

lugar de convívio e exploração da singularidade.

Em anexo, exponho minha aventura de dar forma poética para falar da importância do meu encontro

com Nise e sua universidade nessa trajetória de vida e trabalho.

Nota

1. Referência que se tornou paradigmática a partir do importante trabalho de resgate dos asilados em

hospício do município de Angra dos Reis liderado pela psicóloga Gina Ferreira.

Anexo

Na seara de Nise (Ferreira, 1994, p. 58).

De que mágicos teares Se tece as trilhas dos encontros

24
Que nos alenta a caminhada Nos impermeáveis da cronicidade

Fazendo fluir as fontes Do eterno muro asilar

Na intensa busca e confrontos Com argúcia e sensibilidade

Nesta estrada da vida Soube ativar a célula viva

Surge uma luz que ilumina Se do homem grande amigo

As incertas e sombrias esquinas O cão pode ser

Frequentar esta lavoura de Nise Para aqueles no hospício

Para este camponês dos Gerais Que do isolamento fizeram abrigo

Foi uma fascinação Nise lança mão desse fiel companheiro

Que não se perde jamais Que ninguém poderá esquecer

Neste longo trajeto de sua companhia Do novo terapeuta: o cão

Aprendemos com maestria e ardor Com seu afeto assim terno

Da arte de curar Acolhe a alma em tormento

Curar com arte e amor E pode aplacar uma aflição

Nos campos agrestes de amarguras Se há sofrimento

Sulcando, semeando, capinando Numa viagem profunda

Ela fez nascer a flor O que resgato desta trajetória

Telas e cores aos milhares foram surgindo Com grande alegria

Num espaço de trabalho e ternura Foi ter Nise como guia

25
Nessa longa travessia

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Silveira, N. da (1986). Casa das Palmeiras: a emoção de lidar. Rio de Janeiro: Alhambra.
Silveira, N. da (1992). O mundo das imagens. São Paulo: Ática.

26
A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado na assistência psicológica aos

pacientes cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde

Cristiane Ferreira Esch, Narcisa Silveira de Paula Fonseca, Mariana Silveira Córdova, Liana Ling
Gonçalves Setianto, Clareana Velasco Silva de Paula, Alessandro de Magalhães Gemino

Resumo: O artigo tem como objetivo apresentar o trabalho realizado pela Psicologia no Serviço de

Cirurgia Cardíaca e Unidade Cardio Intensiva do Hospital Universitário Pedro Ernesto. Fragmentos

de casos clínicos ilustram nossa atuação no manejo de casos graves, tendo o cuidado como principal

referência e orientação. Ressaltamos a importância de espaços de diálogo e do trabalho

multiprofissional para que pacientes, familiares e equipe de saúde sejam assistidos em suas

diferentes demandas de cuidado.

Palavras-chave: cuidado, psicologia da saúde, subjetividade, sofrimento psíquico, doenças

cardiovasculares.

Abstract: The article aims to present the work carried out by Psychology in the Cardiac Surgery

Service and Cardio Intensive Unit of the University Hospital Pedro Ernesto. Fragments of clinical

cases illustrate our actions in the management of severe cases, with care as the main reference and

orientation. We emphasize the importance of spaces for dialogue and multiprofessional work so that

patients, family and health team are assisted in their different demands for care.

Keywords: care, health psychology, subjectivity, psychic suffering, heart diseases.

Resumen: El artículo tiene como objetivo presentar el trabajo realizado por la Psicología en el

Servicio de Cirugía Cardiaca y Unidad Cardio Intensiva del Hospital Universitario Pedro Ernesto.

Los fragmentos de casos clínicos ilustran nuestra actuación en el manejo de casos graves, teniendo

el cuidado como principal referencia y orientación. Resaltamos la importancia de espacios de

diálogo y del trabajo multiprofesional para que pacientes, familiares y equipo de salud sean

asistidos en sus diferentes demandas de cuidado.

27
Palabras-clave: cuidado, psicología de la salud, subjetividad, sufrimiento psíquico, enfermedades

cardiovasculares.

Introdução

O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) é vinculado à Universidade do Estado do

Rio de Janeiro tendo sido inaugurado no ano de 1950. A Unidade Docente Assistencial de Cirurgia

Cardíaca do HUPE, por sua vez, foi criada em setembro de 1975, pelo Dr. Waldir Jazbik, que esteve

à frente da unidade até 2001, quando então se aposentou. Atualmente, o Serviço atua a partir de

duas vertentes: a assistencial, sob a chefia do Dr. Joaquim Henrique de Souza Aguiar Coutinho, e a

docente, sob a coordenação do Dr. João Carlos Jazbik.

A tecnologia sofisticada tem sido marca do setor, que chegou a ter o maior número de

cirurgias cardíacas realizadas por dia em nosso Estado. Além disso, o Serviço foi pioneiro em

cirurgia de revascularização do miocárdio sem circulação extracorpórea. Infelizmente, anos de falta

de recursos fizeram encolher o Serviço de Cirurgia Cardíaca, mesmo que ainda hoje seja

reconhecido como referência em cirurgia cardíaca no Rio de Janeiro.

O CTI Cardíaco se destina, prioritariamente, a pacientes em situações de pré e pós-

operatórios de cirurgia cardíaca, sendo a revascularização do miocárdio e as trocas valvares as

principais cirurgias realizadas no HUPE. Nesse contexto, o serviço recebe internações breves,

porém cheias de expectativas por parte do paciente e seus familiares sobre o evento cirúrgico a ser

realizado. Acreditamos que essas expectativas estejam presentes de forma ainda mais intensa em

pacientes que, ao serem usuários do Sistema Único de Saúde, aguardaram a cirurgia por longos

períodos, podendo exceder anos de espera.

A cirurgia cardíaca constitui-se, em geral, como uma vivência de grande impacto na vida do

paciente, seja em seu aspecto físico ou em seu aspecto psicológico. É um tratamento invasivo,

muitas vezes considerado agressivo e que, simbolicamente, irá mexer com o centro da vida, o

28
templo dos sentimentos (Oliveira e Luz, 1992). Não raramente, a cirurgia cardíaca provoca no

paciente algumas reações como o medo, a ansiedade e a incerteza quanto aos riscos do

procedimento, bem como sobre a sua capacidade de retorno às atividades físicas e intelectuais após

o procedimento (Oliveira e Oliveira, 2010). Sendo assim, considera-se que o tratamento cirúrgico

traz consigo uma carga significativa de dramaticidade para os indivíduos que a ele se submetem.

O ingresso da psicologia no Serviço de Cirurgia Cardíaca do HUPE aconteceu, por

solicitação médica da própria unidade, em 19961, e foi possível a partir de uma parceria com o

Instituto de Psicologia da UERJ, através do Curso de Especialização em Psicologia Clínica

Institucional – modalidade Residência Hospitalar e, mais recentemente, através da oferta de estágio

para alunos de graduação em Psicologia da UERJ2. Mais recentemente, em meados de 2015, por

solicitação da equipe de enfermagem da Unidade Cardio Intensiva, e em acordo, com a chefia desse

serviço, a psicologia passou a ocupar também essa enfermaria.

A Unidade Cardio Intensiva (UCI), também conhecida como Unidade Coronariana, no

HUPE, faz parte do Serviço de Cardiologia da UERJ, e funciona como um centro de referência do

SUS, no Estado do Rio de Janeiro, para pacientes portadores de cardiopatias, que chegam à unidade

via sistema de regulação. Trata-se de uma Unidade de Tratamento Intensivo, especializada no

acolhimento de pacientes cardiopatas descompensados e/ou submetidos a procedimentos

cardiovasculares como angioplastias ou mesmo procedimentos cirúrgicos. As principais patologias

encontradas nesta unidade são: síndromes coronarianas aguda e crônica, insuficiência cardíaca,

doenças arrítmicas, doenças orovalvares, sendo que, na maioria das vezes, os pacientes apresentam

comorbidades. A unidade dispõe de equipamentos e tecnologia necessários para oferecer um

cuidado intensivo, a saber: monitoração, suporte hemodinâmico e ventilatório. Nesse setor, as

internações tendem a ser mais longas e marcadas pelas dificuldades e implicações psicológicas

decorridas da doença de base.

29
São bastante conhecidas por parte da equipe de saúde as potencialidades de uma unidade

fechada (CTI) em desencadear reações fisiológicas e psíquicas nos pacientes. Também para os

familiares, ter um ente querido internado e sob os cuidados de profissionais é um evento, na maioria

das vezes, vivido com estresse e angústia.

Assim, tanto para o paciente grave como para seus familiares, a internação hospitalar, em

geral, está atrelada a uma série de aspectos capazes de suscitar fortes reações emocionais. Podemos

considerar que uma internação representa um momento de crise na vida do sujeito, com a presença

de angústia, solidão e impotência. Do ponto de vista objetivo, alguns fatores concorrem para esse

fato, tais como: a saúde da pessoa encontra-se ameaçada; o hospital é um ambiente estranho e

alheio à rotina de vida dessas pessoas; a dificuldade de se obter informações, além da possibilidade

de chegarem informações desencontradas por parte dos diversos membros da equipe; o tratamento

que pode ser impessoal e descomprometido. Tais elementos reunidos podem levar a vivência do

desamparo.

Em nosso caso, ambos os setores funcionam em regime intensivo, sendo o paciente

constantemente manipulado e monitorado pela equipe. Nas unidades intensivas, os pacientes

despem-se de suas próprias roupas e de seus bens pessoais, são reconhecidos e nomeados por suas

patologias e frequentemente estão restritos ao leito. O tempo cronológico, o passar do dia, é

marcado pelos horários de visitas ou de refeições (quando elas são feitas oralmente), já que não

existem janelas. Além disso, a questão do enclausuramento, típico do setor, é um fator determinante

para alterações da percepção temporal dos pacientes. Isso, sem contar com a falta de privacidade e

de sossego ocasionados pela disposição padronizada dos leitos, pelos bips das máquinas e pela

checagem dos profissionais, que não cessam em incomodar.

Internado nesse local, o doente torna-se um paciente, sem trocadilhos, uma pessoa resignada

aos cuidados médicos, que deve esperar serenamente a melhora de sua doença. Esse paciente,

desnudado por uma instituição total, perde sua identidade, transforma-se em número, em um

30
caso clínico, deixa de ser responsável por si mesmo, sua doença e vida. O paciente é

vulnerável, submisso e dependente (Oliveira, 2002, p. 35).

Podemos dizer, inclusive, que esse é o tipo de paciente que realmente se espera. Pacientes

que se manifestam trazendo questionamentos, queixas, apontando falhas, ou apresentam-se

agitados, chorosos, e mesmo aqueles implicados com sua doença e situação de saúde, mostrando-se,

na medida do possível, mais ativos e atuantes, costumam não serem bem vistos, são tidos como

chatos e difíceis.

Sendo assim, quase tudo nesse ambiente colabora para a perda de autonomia. O aumento

das restrições e a radicalidade das experiências vividas em uma unidade intensiva reforçam a

importância da atuação da psicologia. Nesse sentido, frente às diversas angústias que a internação

pode suscitar, nossa atuação tem como direção o acompanhamento dos pacientes internados, de

seus familiares e o da equipe multiprofissional que atua no cuidado desses pacientes.

O presente capítulo tem, portanto, o objetivo de apresentar o que tem sido realizado pela

Psicologia ao longo desses vinte e dois anos de inserção na UDA (Unidade Docente Assistencial)

de Cirurgia Cardíaca e, mais recentemente, na Unidade Cardio Intensiva. Para tanto, traremos

como eixo norteador o tema do cuidado, tão caro ao nosso fazer.

Trata-se de um escrito feito a muitas mãos. A diversidade está presente neste trabalho.

Temos diferentes olhares, permeados por distintas filiações teóricas na clínica. Também os

diferentes profissionais que atuam/atuaram na Cirurgia Cardíaca e na Unidade Cardio Intensiva do

HUPE exercem/exerceram a clínica a partir de distintas correntes teóricas da Psicologia/Psicanálise.

Assim, além do cuidado se apresentar como o principal alicerce de nosso trabalho, tivemos ainda

outro motivo para elegê-lo como tema central desse artigo: o fato de ser um tema abordado por

diferentes correntes teóricas da Psicologia Clínica.

O cuidado/cuidar como eixo do trabalho da psicologia

31
Poderíamos falar de qualquer órgão, mas estamos falando do coração: coração que possui

todo um simbolismo no imaginário, coração que pulsa, que vibra, que sofre, que ama...

Poderíamos falar de qualquer pessoa, mas estamos falando do João, ou ainda, da Maria, que

chegam ao hospital e passam por uma internação. Ao chegarem, não vêm sós. Estão

acompanhados. Vem junto deles sua bagagem: sua história, seus modos de ser, seus amores e suas

dores, os quais os tornam únicos. Vem suas famílias e suas diferentes dinâmicas, configurações.

Vem histórias e mais histórias. Então, junto com o João, ou a Maria, vem junto tanta, tanta coisa,

sendo dessa complexidade que nós da equipe de saúde precisamos cuidar. Para oferecer um

cuidado, que busca ser integral, é necessária uma equipe. Algo tão complexo exige complexidade:

múltiplos olhares, múltiplos saberes, interlocuções, integração... Reunião de esforços, ações,

procedimentos, condutas para oferecer o melhor cuidado! Isso porque, não fazemos nada sozinhos:

precisamos de um outro para nascer, precisamos de um outro para crescer, precisamos de um outro

para viver e precisamos de um outro para morrer!

Ainda hoje é comum a ideia de que o acolhimento ao paciente e a sua família é algo para

psicólogos, no máximo, para assistente social. No entanto, o acolhimento é tarefa de toda uma

equipe de saúde. O acolhimento perpassa todo o período em que o paciente se encontra no hospital.

A família é o suporte emocional do paciente. Ao apoiar e oferecer suporte à família,

contribui-se para que a mesma possa oferecer suporte ao familiar internado. E ainda, quando o

paciente morre, seus familiares continuam sendo nossos clientes.

Sobre o acolhimento familiar, podemos dizer que é um processo contínuo; é uma postura

ética; busca valorizar as queixas e identificar as necessidades dos familiares. Na prática, o

acolhimento familiar representa: ter responsabilidade e compromisso com as necessidades que os

familiares apresentam; respeitar as diferenças; reconhecer a família como protagonista do processo.

A fábula de Higino: o cuidado como condição do humano

32
Costa (2009), ao introduzir o tema do cuidado, traz-nos uma fábula acerca do tema,

conforme relato a seguir:

Certa vez, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de terra argilosa. Ocorreu-lhe então a

ideia de moldá-lo, dando-lhe forma. Enquanto pensava sobre o que acabara de criar, interveio

Júpiter. Cuidado pediu-lhe que insuflasse espírito à forma que ele moldara, no que Júpiter o

atendeu prontamente. Cuidado quis, então, dar um nome à sua criação, mas Júpiter se opôs,

exigindo que ele, que lhe dera espírito, fosse também quem lhe desse o nome. Enquanto

Cuidado e Júpiter disputavam sobre quem lhe daria o nome, apareceu a Terra que, tendo

cedido parte de seu corpo para o que fora criado, queria também nomeá-lo. Diante de tamanha

contenda, decidiram que Saturno seria o juiz da disputa. Saturno tomou então uma decisão

equânime, proferindo a sentença: “tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na

morte o espírito de volta; tu, Terra, que cedeste do teu corpo, receberás o corpo de volta. Mas

como foi Cuidado quem primeiro o formou, pertencerá a ele enquanto viver. E havendo entre

vós disputa insolúvel sobre o seu nome, eu o nomeio: chamar-se-á ‘homem’, pois foi feito de

húmus (terra fértil) (p. 30).

Costa (2009) propõe uma interpretação acerca dessa fábula, conhecida como “o mito do

cuidado”, da qual nos utilizaremos a fim de salientar alguns pontos importantes para o trabalho em

saúde. O autor afirma que a decisão de Saturno, ao tentar conciliar a vontade de todos os três é

geralmente considerada justa. Porém, adverte que o caráter equitativo de sua sentença, não deve

deixar passar despercebida uma diferença fundamental: Júpiter e Terra somente terão o homem de

volta após a sua morte. O mito estabelece assim uma interpretação clara a respeito do destino do

homem após a dissolução do seu corpo. Uma vez sem ânimo, esse corpo volta à Terra,

indiferenciando-se. É a parte retornando ao todo do qual surgiu. Já o espírito, que não se corrompe,

volatiza-se ao domínio das almas, dos vapores, reino de Júpiter por excelência. “Cuidado,

entretanto, possuirá o homem enquanto viver. Enquanto houver vida, o homem pertencerá ao

33
cuidado ... Com isso se quer dizer que não há distinção entre cuidado e vida humana ... O homem,

vivendo, cuida; cuidando, vive” (Costa, 2009, p. 30, grifo nosso).

De acordo com Costa (2009), há ainda, no mito, a presença de um elemento a partir do qual

se pode pensar que a decisão de Saturno privilegia, de alguma forma, Cuidado. É que ao homem

pertence radical e impulsivamente o desejo de vida. Situar Júpiter e Terra no âmbito de sua morte

significa entregar-lhes o homem quando este já não é mais o que quer ser, quando já não é homem.

Sua inteireza e integridade, entretanto, ficam com Cuidado.

O homem deseja manter-se vivo, preservando a sua vida. Por isso mesmo, sua vida se

caracteriza pelo cuidado que toma para não perdê-la. Sendo assim, o cuidado figura como a arma

primordial na vida do homem, de forma a manter o seu interesse mais radical.

Para Costa (2009), “a mortalidade do homem é o fundamento a partir do qual o cuidado se

instaura como seu elemento e caráter mais próprio” (p. 31). Com a morte o homem já não é homem

e, nesta condição, extingue-se o cuidado, porque o cuidado é a sua condição de vida, não de morte.

O mito diz que o homem pertence ao cuidado enquanto viver. Mas tão somente enquanto viver.

Assim sendo, podemos considerar que a morte é o fator que provoca esse zelo no homem.

Por fim, Costa (2009) faz menção, no mito, à presença de Saturno como aquele que profere

a decisão. Para o autor, não é por acaso que a fábula coloque nas mãos de Saturno, deus do tempo, a

decisão sobre a contenda. “Saturno pontua no mito como o definidor. Ele define o que é vida e

morte para o homem, distingue o seu liame, o seu ‘ser homem’ e o seu ‘não poder mais ser

homem’” (p. 32).

Desse modo, é o tempo quem determina a finitude do homem. Vida e morte encontram-se na

temporalidade. Enquanto o homem viver haverá cuidado, e também no morrer, que é parte do

viver!

34
Optamos por trazer a interpretação de Costa sobre o mito do cuidado, na medida em que a

mesma explora temas fundamentais quando pensamos nossa atuação como psicólogos inseridas em

uma equipe de saúde: cuidado, mortalidade e angústia.

A atuação da psicologia na Cirurgia Cardíaca e na Unidade Cardio Intensiva

A insegurança e o grau de ansiedade causados pelo medo da morte e a expectativa de

sofrimento podem levar o paciente a uma regressão emocional que requerem uma atenção especial

por parte da equipe profissional. Neste caso, o adoecimento coloca o paciente num lugar de

dependência total do médico, tal como um bebê que depende de seus pais.

Frente ao desamparo do inesperado encontro com a morte, o hospital e seus profissionais

aparecem como símbolo de verdade absoluta e são inquestionáveis sobre o que é melhor para o

sujeito. É assim que o sujeito passa de forma fluida para o lugar de objeto: suas roupas são trocadas;

seu nome substituído pelo número do leito; seus pertences tomados e suas decisões pouco levadas

em conta.

Ao mesmo tempo que o CTI é um espaço para ser cuidado, promovendo a continuidade do

ser, implica em invasões para o sujeito: perda da singularidade, abrir mão da privacidade, invasões

no corpo... tal como se, para curar o corpo, fosse necessário abrir mão de ser sujeito.

Buscando abrir espaço para a subjetividade, o trabalho da Psicologia com o paciente

hospitalizado visa perceber o sujeito em sua singularidade, expandindo a assistência para além de

questões meramente orgânicas. Nesse momento, ser escutado e acolhido a respeito de seus medos e

esperanças por um profissional pode levar o sujeito a localizar sua angústia e apaziguá-la. O

profissional de psicologia no hospital convida o doente do corpo a tomar a palavra, autorizando

assim a subjetividade em um local em que a singularidade do sujeito está ameaçada.

O médico, por sua vez, frente à necessidade de tomar decisões de grande responsabilidade,

acaba por desenvolver durante sua formação, uma autoridade e confiança necessárias para a

35
resolução de problemas. A fragilidade do paciente, nessa dinâmica, passa a ser um estímulo para o

médico assumir o lugar daquele que pode curar, resvalando para o risco de acreditar que tudo pode,

inclusive, impedir o inevitável da morte.

À medida que a psicologia foi ganhando espaço no setor, foi possível implementar uma

reunião multidisciplinar a fim de discutir os casos e fazer circular as informações sobre os pacientes

dentre as diferentes especialidades. Tendo como referência os Grupos Balint (Brandt, 2009), a

discussão de caso foi proposta, baseada na associação livre e sem temática preestabelecida. Com

esse formato, pretendíamos abrir espaço para reflexões, sentimentos e reações que surgissem dos

profissionais frente ao difícil trabalho que realizam e não só focar no conteúdo objetivo relativo à

conduta frente aos pacientes.

A seguir apresentaremos dois casos clínicos, de Inês e Rosa, ambos nomes fictícios,

acompanhados pela psicologia no setor de cirurgia cardíaca. Pretendemos, por meio deles, ilustrar

nossa atuação no setor diante de diferentes intercorrências, junto ao paciente, sua família e equipe.

Inês3 era uma mulher jovem, em torno dos quarenta e cinco anos, ativa, casada e mãe de três

filhos. Possuía doença coronariana, mas sua condição clínica não tinha grande impacto em sua

autonomia ou qualidade de vida. Foi admitida no Centro de Terapia Intensiva (CTI) cardíaco para o

pré-operatório sentindo-se bem, assintomática e ansiosa para realizar a cirurgia pela qual já

esperava há muitos anos. No período breve que antecedeu à cirurgia, foi atendida pela equipe da

psicologia sem apresentar maiores demandas. Contou-nos sobre sua longa espera por essa

oportunidade e se mostrava tranquila frente ao procedimento cirúrgico.

No dia seguinte da cirurgia de Inês, a equipe estava muito abalada. A cirurgia que, segundo

os médicos cirurgiões, a princípio consistiria em uma operação simples e pouco invasiva, acabou

transcorrendo com complicações e Inês perdeu muito sangue, comprometendo em muito o seu

prognóstico. Retornou ao CTI depois de muitas horas de cirurgia e necessitou de novo

procedimento pela equipe vascular. A equipe do CTI cardíaco, como um todo, estava muito
36
chocada e angustiada com a gravidade que o caso tomou e pela possibilidade de morte da paciente.

A fala de alguns profissionais trazia significantes como “desgraça” e “tragédia”, outros falavam

sobre como a paciente era jovem e saudável, dentro do possível, ao mesmo tempo em que se

indagavam sobre como ficariam sua família e seus filhos.

De nossa parte, colocamo-nos à disposição dos médicos para uma abordagem à família, no

horário de visita. O médico explicou a situação grave em que se encontrava Inês aos familiares.

Estava sedada e necessitando de muitas drogas para manter os sinais vitais estáveis. A preocupação

maior era a respeito de quanto o sangramento poderia ter afetado sua atividade cerebral, e a resposta

a esse questionamento seria determinante da capacidade da paciente para acordar novamente. Era o

nosso primeiro contato com a família, que se encontrava muito confusa e surpresa com o quadro

apresentado. Procuramos acolher a angústia de cada membro da família que se deparava com a

notícia de seu próprio modo e possibilidade de significar aquela experiência.

Nos dias que se seguiram, Inês permaneceu desacordada, mesmo sem o uso de sedativos e a

equipe começou a pensar no diagnóstico de morte encefálica. A família seguiu comparecendo às

visitas no CTI cardíaco, onde, a cada vez, era informada sobre a gravidade de seu estado de saúde.

Inês acabou indo a óbito em um dia em que ninguém da equipe cirúrgica estava presente no setor. A

notícia foi dada, no corredor do andar, por um médico plantonista que pouco tinha acompanhado o

caso, em companhia da psicóloga que estava acompanhando mais de perto a família. Na sequência

da notícia da morte de Inês, a psicóloga pôde ouvir o genro da paciente, que muito abalado,

procurava sustentar a angústia de sua companheira e, também, dos demais filhos de Inês. Falou um

pouco sobre o papel que Inês ocupava na família, dizendo que estavam todos “devastados”, e que

não sabia como seria dali para frente. Agradeceu muito o atendimento da psicologia. Infelizmente

não foi possível estar com o restante da família nesse momento.

O caso de Inês suscitou grande angústia também na equipe cirúrgica. Um médico que

participou da cirurgia pôde falar abertamente sobre como era difícil estar na posição de cirurgião

37
cardíaco, quando fatalidades como essa aconteciam. Ainda que seja um risco inerente à prática

cirúrgica, o significante “culpa” apareceu em seu discurso sem possibilidade de ser relativizado.

Nesse sentido, cabe ao psicólogo acolher tanto a família quanto a equipe.

Sua atuação tem, na contratransferência, uma ferramenta capaz de apontar alguns dos

sentimentos que atravessam a condução do caso e que podem ser trabalhados no a posteriori. O

acompanhamento desse caso pela psicóloga, no que teve de inesperado e fatal, acabou por suscitar

sentimentos de desamparo, impotência e inconformismo, que muito dizem da experiência da família

e da equipe.

Nas reuniões multiprofissionais seguintes, alguns temas puderam ser elaborados pela equipe

médica. Notamos, a partir das falas dos cirurgiões, como era presente a angústia frente à

responsabilidade de “ter uma vida nas mãos”. Eles diziam lembrar apenas dos nomes daqueles que

faleceram na mesa de cirurgia, sentindo-se responsáveis por escolher o dia da morte desses

pacientes. Relataram dificuldade de conversar com o paciente grave, e o consequente afastamento

desse tipo de paciente, pelo medo de se envolverem emocionalmente, evidenciando claramente uma

atitude defensiva.

Foi discutido em reunião como era difícil para os cirurgiões considerarem que os pacientes,

ao operar, realizavam uma escolha. Em suas falas pareciam entender a opção pela cirurgia como

decisão unilateral, realizada pelo corpo médico, desconsiderando a implicação e escolha do

paciente, e assim, tomando para eles próprios a responsabilidade integral sobre o evento. Nesse

sentido, trabalhamos a ideia de que o médico indicava a cirurgia, mas ao paciente cabia escolher se

tinha o desejo de fazê-la, uma vez que entendia os riscos envolvidos e tinha tempo de elaborar a

decisão.

Nessa mesma reunião, mencionaram um caso que gerava muita angústia por se tratar de uma

paciente com grande risco de morte. Rosa possuía cardiopatia grave e já havia passado por três

cirurgias cardíacas em diferentes hospitais. Apesar do sucesso temporário das cirurgias prévias,
38
continuava apresentando sintomas e se mostrava necessária nova abordagem cirúrgica para a

implantação de uma válvula especial. Ela já havia aceitado fazer o procedimento e aguardava na

enfermaria. A equipe de psicologia questionou se a paciente e seus familiares haviam entendido os

altos riscos dessa nova intervenção cirúrgica e acabou por se propor uma nova consulta com a

paciente e seus familiares, a fim de melhor esclarecê-los.

Os familiares de Rosa foram convidados para uma conversa junto com uma psicóloga e um

cirurgião. Foram expostos os riscos e possibilidades para o caso: apesar de muito risco a cirurgia se

mostrava como a única aposta possível, o outro caminho era conviver com a doença por um tempo

também incerto. Enquanto equipe, colocamos para Rosa que ela e sua família poderiam ter tempo

para pensar juntos e elaborar a decisão.

Depois da conversa com os familiares, Rosa pôde escolher operar. Tinham muita fé de que

tudo daria certo e ela afirmava que “a vontade de Deus seria feita”. Dizia que do jeito que sua vida

estava não poderia permanecer, os sintomas a impediam de viver e precisava fazer alguma coisa.

Estava em paz com sua decisão. Rosa esperou por dois meses na enfermaria até que sua válvula

chegou ao hospital. Durante esse período, seguiu sendo atendida pela psicologia. Sempre muito

convicta de que estava no caminho certo, seu único pedido, no dia da cirurgia, foi que

amparássemos seu filho.

No dia da cirurgia, foram muitas horas de procedimento. Rosa sobreviveu e mesmo muito

debilitada conseguiu abrir os olhos e ver sua família. Nos dias que se seguiram, seu quadro se

agravou de forma drástica e foi necessário passar por mais duas intervenções cirúrgicas. Sua família

oscilava entre continuar tendo fé de que depois do coma ela iria acordar, como já havia ocorrido em

cirurgias anteriores, com momentos em que o desânimo e a falta de esperança pareciam dominar.

Seguimos acolhendo seu desamparo de talvez não terem feito a “escolha correta” e ao mesmo

tempo compreendendo o mecanismo de negação diante da real possibilidade de morte. Em reunião

multiprofissional, a equipe se mostrava angustiada e os cirurgiões comentavam como se sentiam

39
responsáveis pelo que estava por vir. Ao falar sobre a condição da paciente, não conseguiram

mencionar a palavra “morte”.

Quando o caso se aproximou do limite médico, entramos em contato com a família

explicando que talvez fosse importante uma visita. Mencionamos que a equipe estava muito

preocupada. A família buscava explicações para o que estava acontecendo, se questionava se havia

sido erro médico. Era difícil conceber que a morte se apresentava como real possibilidade depois de

tanta espera e tanto investimento.

Rosa foi a óbito, se foi. A família foi chamada para receber a notícia, e a psicóloga e o

médico cirurgião que mais estiveram à frente do caso conversaram com eles com calma e em um

espaço privado. Foi possível fazer uma retrospectiva do caso de Rosa desde que optaram pela

cirurgia até o seu desfecho, e abrir espaço para a família falar sobre suas impressões e expor seus

pensamentos.

Embora com características e contextos diferentes, em ambos os casos apresentados, houve

a dificuldade de lidar com os limites da profissão médica e da própria vida, com seus

desdobramentos. Observamos a importância de um espaço de discussão, como o da reunião

multiprofissional, para a elaboração de alguns temas fundamentais que atravessam a prática médica

e a qualidade do atendimento. Enquanto para a equipe cirúrgica esses casos são de derrota, para a

psicologia resta a questão de como poder enfrentar esses eventos de modo a prestar toda assistência

necessária para uma morte digna de seu paciente e para o acolhimento da família frente a algo

impossível de simbolizar. Pensamos que, enquanto psicólogos, procuramos sustentar a posição de

sujeito de pacientes, família e equipe diante do irrefutável da morte.

As diversas faces do cuidar

Figueiredo (2009) também se ateve ao tema do cuidado. Para o autor, o cuidado envolve

uma dimensão ética essencial para a vivência do “fazer sentido”, ao longo da vida: “(...) fazer

40
sentido implica estabelecer ligações, dar forma, sequência e inteligibilidade aos acontecimentos...

equivale a constituir para o sujeito uma experiência integrada, uma experiência de integração” (p.

123).

De acordo com o autor, o cuidado é exercido pelo agente de cuidados, a partir de duas

vertentes: como presença implicada (comprometido e atuante) e como presença em reserva. Cabe

assinalar, que ao longo da vida, diferentes pessoas, em diferentes espaços, podem ocupar a função

de agente de cuidados: pais, médicos, enfermeiros, professores, amigos.

O sujeito implicado é o que faz coisas. A presença implicada do cuidador se apresenta em

diferentes modalidades: sustentar e conter (funções do acolhimento); reconhecer; interpelar e

reclamar (Figueiredo, 2009).

Ao apresentar cada uma dessas modalidades, ilustraremos a partir de casos clínicos, como

estas se manifestam na instituição hospitalar, especificamente, na atuação da psicologia, no CTI

cardíaco e Unidade Cardio Intensiva. Vale ressaltar que os casos trazidos podem conter, em seus

diversos momentos, diferentes modalidades do cuidado, sendo todas resultado da presença

implicada do cuidador.

A função de holding oferece a sustentação, garantindo-nos assim a continuidade, enquanto a

função de containing oferece a continência, proporcionando-nos as experiências de transformação.

A continuidade é fundamental para a nossa existência: “não existimos, não nos sentimos

existir, não conquistamos um senso de realidade se alguma continuidade não estiver sendo oferecida

e experimentada” (Figueiredo, 2009, p. 125). Em contrapartida, vimos que a continuidade se

encontra ameaçada diante de uma doença grave, ou ainda, da necessidade de realizar uma cirurgia

cardíaca. Nestas situações, referências identitárias e simbólicas construídas ao longo da vida,

podem ser postas em xeque. É, portanto, tarefa do agente de cuidados que dá sustentação operar

nesse momento. Frequentemente, são famílias, grupos e instituições os dispositivos mais aptos a

41
oferecer holding ao longo da vida, principalmente quando o que está em jogo é a continuidade na

posição simbólica do sujeito no mundo.

Flora era uma senhora que esteve internada por meses, tanto na unidade coronariana, como

no CTI cardíaco. Já havia feito uma cirurgia cardíaca anos antes que, segundo ela, não havia dado

certo e por isso teve que retornar ao hospital, quando já não conseguia respirar ou se alimentar

direito.

Inicialmente, por conta da impossibilidade de alimentação, foi colocada uma sonda

nasogástrica para alimentá-la, retirando assim, de sua rotina, um dos principais marcadores

temporais. Depois, foi constatado que tinha uma doença grave com alta taxa de mortalidade, um

aneurisma de aorta abdominal.

Nas primeiras vezes em que ela foi acolhida pela psicologia contou sobre sua experiência

cirúrgica anterior. Disse que ficou em coma por alguns dias e que esteve muito mal. Conta que os

médicos não acreditavam em sua sobrevivência, mas ela acordou, "foi um milagre". Flora estava

com medo, disse que não suportaria passar por isso novamente e que pensava em desistir. Foi

pontuado que ela poderia pensar em escolher realizar a cirurgia, mas ela respondeu que era o único

recurso para melhorar seu estado. Foi possível à psicóloga mais próxima dela estar ao seu lado,

ouvindo a trajetória de sua doença e acolhendo seu medo.

Com o passar do tempo, seu humor deprimido transformou-se em alguma esperança. Sua

cirurgia necessitava de uma prótese especial que viria de outro país e agora restava esperar. Nesse

período, ganhou um livro religioso. Gostava muito de uma passagem, que pontuava a limitação

humana e explicava sobre tudo ter um tempo determinado.

No dia da cirurgia não era apenas a paciente que estava ansiosa. Todos os profissionais do

CTI estavam apreensivos, por conhecerem a gravidade e a delicadeza do procedimento. Os

familiares estavam presentes, angustiados e, também puderam ser escutados e acolhidos. Flora

estava nervosa e, diferente dos outros dias, dizia poucas palavras.

42
Antes de descer para o centro cirúrgico, Flora ficou bastante nervosa e a equipe, depois de

acalmá-la, criou espontaneamente uma ciranda, dando as mãos para rezar. Ela acabou por ser

acompanhada, pela psicologia, ao centro cirúrgico, até o momento da sedação. Muitos profissionais

olhavam a psicóloga de referência, questionando sua presença. Foi observado pela psicóloga, que

grande parte dos profissionais não cumprimentou a paciente, tampouco informou-a sobre os

procedimentos e manipulações que realizavam em seu corpo. Ela foi invadida por acessos e toques

sem receber explicações sobre sua finalidade ou propósito. Diante desse cenário, o papel da escuta

oferecida pela psicóloga ali consistiu em, além de sustentar/acolher, buscar mediar e explicar, da

melhor forma possível, aquelas invasões, na tentativa de acalmá-la e de dar significado àqueles

procedimentos. Flora sobreviveu, mas os resultados não foram bons. Os médicos pareciam

entristecidos ao relatar sobre as dificuldades da cirurgia. Flora permaneceu sedada, dependente de

aparelhos e precisou passar por um novo procedimento cirúrgico. Infelizmente, ela morreu em

cirurgia. A equipe ficou profundamente marcada pelo seu falecimento. O tempo prolongado de

internação, nesse caso, fortaleceu o vínculo da paciente com todos os profissionais do setor, não

somente com a equipe de psicologia.

A continência, ao ser oferecida pelo agente de cuidados, permite ao outro vivenciar

experiências de transformação. Isso porque, mais do que garantir continuidade, “é preciso crescer,

expandir-se, se possível, sem rupturas excessivas, mas também sem meras repetições” (Figueiredo,

2009, p. 127).

Para ilustrar o cuidado a partir da função de continência, abordaremos o trabalho da

Psicologia desenvolvido junto ao Programa de Reabilitação Cardíaca do HUPE.

Um programa de reabilitação cardíaca possui como finalidade melhorar a condição de vida e

o condicionamento físico do paciente, além de diminuir os fatores de risco que estão atrelados às

doenças cardiovasculares (Roselino e Évora, 1996). Ela deve ter início ainda no interior da

instituição hospitalar da maneira mais antecipada possível, com o intuito de auxiliar na recuperação

43
da capacidade funcional dos pacientes. Faz-se necessário que os progressos e acompanhamento das

atividades sejam lentos e individualizados por causa dos inúmeros problemas originados pela

cirurgia e o posterior repouso no leito.

O programa de reabilitação cardíaca no HUPE envolve três fases, com atividades que vão

desde o pós-operatório imediato até o preparo para a realização de atividades físicas de forma

independente. De modo a possibilitar o atendimento dos objetivos de uma reabilitação, encontram-

se envolvidos profissionais de diversos saberes clínicos em atenção à saúde cardiovascular: Assim,

na nossa realidade, estão presentes médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, profissionais de Educação

Física, psicólogos e nutricionistas.

A fase I é o período que se estende do pós-operatório imediato, o qual o paciente permanece

no CTI cardíaco, até a alta hospitalar. Os objetivos dessa fase incluem o acompanhamento

psicológico do paciente e sua família. O profissional de fisioterapia é um grande aliado nesta fase,

pois é assistido por ele que o paciente é incentivado a realizar exercícios físicos e respiratórios de

pequena intensidade. As equipes de medicina e enfermagem orientam quanto aos cuidados e

medicações no ato da alta hospitalar.

A fase II é a ocasião em que o paciente retorna ao hospital, logo após a alta e que pode durar

em média de quatro a seis meses. Por duas vezes na semana, os pacientes realizam em grupo,

atividades de moderada intensidade sob a supervisão dos profissionais de fisioterapia. Essa fase se

estende até a realização do teste ergométrico, que avalia as condições físicas do paciente para iniciar

a fase III do programa de reabilitação cardíaca.

A fase III dura em torno de seis meses a um ano. Nela, os sujeitos já são capazes de realizar

exercícios físicos um pouco mais intensos, com a frequência de três vezes na semana, sendo

assistidos por educadores físicos.

As fases II e III acontecem no HUPE, em regime ambulatorial e, em ambas as fases, os

participantes do Programa são convidados a frequentar o grupo psicoterapêutico conduzido por

psicólogas da equipe, uma vez por semana.

44
Na fase IV, os pacientes devem estar em condição de exercer seu automonitoramento em

meio externo ou domiciliar. A prescrição das atividades deve ser realizada por profissionais de

saúde especializados para melhora clínica do paciente, já que é uma fase de tempo indeterminado e

de manutenção.

A psicologia acompanha os pacientes durante todo o processo, – isto é, do pós-operatório

imediato até a fase III do Programa de Reabilitação Cardíaca – e é através de uma escuta mais

sensível que é possível fazer emoções emergirem e encontrarem uma forma de simbolização, seja

no laço social ou na própria vida psíquica do sujeito. Em nossa atuação, optamos pelo modelo de

intervenção grupal, pois acreditávamos que a troca entre pares seria benéfica.

Apesar de algumas correntes teóricas considerarem que os grupos podem fazer com que o

paciente dilua sua subjetividade, se identificando apenas com o significante tema do grupo, - por

exemplo “cardiopata” - apostamos que a troca entre os sujeitos poderia ser proveitosa. Nossa

estratégia se baseou na consideração de que algumas questões essenciais da condição pela qual

estavam passando - incluindo temas de ordem prática, burocrática e até política - só poderiam ser

respondidas por seus semelhantes.

A equipe de psicologia conduz o grupo de modo que o mesmo funcione como um espaço de

acolhimento das dificuldades trazidas e de elaboração do momento vivido, favorecendo a

construção de novos significados. A possibilidade desses pacientes olharem mais para si mesmos e

refletirem sobre suas vidas, oferecida pelos grupos psicoterapêuticos, juntamente com o cuidado

integrado prestado pela equipe multiprofissional, contribuem, pouco a pouco, para a recuperação da

autonomia e para a ressignificação da situação de adoecimento.

Nesse dispositivo, os pacientes têm a oportunidade de trocar experiências com outros

pacientes que estão na mesma fase de seus tratamentos, trabalhar suas angústias relativas ao

binômio saúde-doença e refletir sobre o significado da reabilitação, em um sentido amplo,

45
abordando-a em seus diversos aspectos, entre outras demandas singulares que se revelam com certa

frequência.

Em nossa experiência, observamos como é comum os pacientes ingressarem na fase II ainda

muito fragilizados pela cirurgia cardíaca, trazendo sentimentos como medo, insegurança e muito

marcados por limitações e restrições, não somente do ponto de vista físico, mas também e,

especialmente psíquicas. Na fase III, por sua vez, é comum surgir o medo da alta hospitalar,

dificuldades de interação social e até isolamento social, devido às restrições alimentares,

insegurança quanto ao retorno ao trabalho e incertezas quanto à vida sexual.

No entanto, nossa prática, ao se ater e buscar enfocar o que é possível para cada indivíduo, a

cada momento, também nos coloca diante de soluções e novos rumos de vida encontrados pelos

integrantes desse programa, nos apresentando belos resultados nesse percurso.

Não raramente somos surpreendidos com situações e falas em que é notório observar que

houve a construção de um novo entendimento sobre o processo de adoecer e reabilitar-se na atual

configuração de vida. Cesar, sempre nos fala que após o término da reabilitação irá se mudar para o

interior do Rio, a cada semana traz detalhes desse plano que também irá afetar a sua esposa e seu

filho. Coloca que longe do centro urbano poderá finalmente ter um estilo de vida que sempre

sonhou, no meio do mato e pescando. Tivemos outro paciente, Silvio, de 78 anos, sempre muito

participativo no grupo, que permaneceu por seis meses em reabilitação e solicitou por antecipar a

sua alta para se dedicar aos cuidados da sua esposa portadora de Alzheimer. Para isso, fez todos os

exames que atestaram a sua capacidade de seguir sozinho, se matriculou em uma academia próxima

de sua casa e comprou uma esteira ergométrica a fim de se exercitar nos dias em que não pudesse

estar na academia. Em seu último dia no grupo trouxe uma fala onde ficou marcada a sua disposição

em viver mais e melhor: “Eu estou fazendo tudo isso pela minha saúde, quero chegar bem a velhice,

com energia, fazendo tudo o que eu gosto e longe de hospital”.

46
Passando à função do reconhecer, esta requer a presença de dois sujeitos frente a frente,

exercendo um para o outro o reconhecimento – embora uma responsabilidade especial caiba ao

agente cuidador. Esta função pode ser desdobrada em dois níveis: o do testemunhar e o do

refletir/espelhar, sendo o segundo dependente do primeiro.

Ao discorrer sobre esta modalidade de cuidados, Figueiredo (2009) nos fala:

Muitas vezes, cuidar é, basicamente, ser capaz de prestar atenção e reconhecer o objeto dos

cuidados no que ele tem de próprio e singular, dando disso testemunho e, se possível, levando

de volta ao sujeito sua própria imagem. Esta modalidade de cuidados pode passar

desapercebida, tão discreta ela pode ser (...) porque é discreta e aparentemente anódina, pouco

se valoriza, a não ser quando falta ou falha, a disponibilidade deste cuidar silencioso que se

resume a prestar atenção e responder na medida, quando e se for pertinente (p. 127).

A fim de ilustrar a função de reconhecer, traremos o caso de Ricardo, paciente de 35 anos,

transferido de um hospital do município do Rio de Janeiro para o HUPE para realização de cirurgia

de um aneurisma de aorta. Abordaremos a primeira e a segunda visitas de Rose, sua esposa, no CTI

Cardíaco.

No primeiro dia de visita ao paciente, Rose é recebida no CTI com um pedido de uma

enfermeira para não se aproximar dele, visto que o paciente se encontrava muito agitado, podendo

ficar ainda mais agitado com a sua aproximação. Ao se dirigir ao médico, tem a informação de que

a cirurgia havia sido um sucesso, mas que a recuperação agora só dependia do paciente.

Imaginando o possível impacto causado por essas falas, a psicóloga de referência se aproximou de

Rose na tentativa de ofertar um espaço em que esta pudesse se expressar. Ela fez muitas perguntas

sobre o estado geral de Ricardo, e buscando atendê-la, foi mediado o contato de Rose com uma

enfermeira. Esta prestou esclarecimentos iniciais, autorizou a aproximação de Rose a seu esposo e

solicitou ao médico que pudesse prestar informações mais específicas sobre a cirurgia.

47
Percebemos nesta situação, a importância de o psicólogo estar atento aos fenômenos que

emergem no contexto hospitalar, já que existem neste espaço uma dinâmica própria e uma rapidez

no ritmo em que os acontecimentos se dão. Assim, faz parte do trabalho deste profissional no

hospital, a observação, a disponibilidade para estar presente e ofertar um espaço de acolhimento,

para então, se possível, colaborar com a expressão, a aceitação e a integração dos conteúdos que

mobilizam os pacientes e seus familiares.

A psicóloga permaneceu ao lado de Rose durante estes momentos e, na sequência, foi

possível para ela falar um pouco de Ricardo e do cuidado que estava prestando a ele até a cirurgia.

Ricardo descobriu a necessidade de se submeter a uma cirurgia cardíaca no hospital em que estava

internado anteriormente e, desde então, encontrava-se em “depressão”, dependendo de sua esposa

até mesmo para se alimentar.

No segundo dia, o paciente faleceu no horário da visita. A presença da Psicologia foi

solicitada pela equipe do CTI a fim de acompanhar a comunicação do óbito. Esta notícia foi dada

pelo médico cirurgião na companhia do médico do CTI e da psicóloga que acompanhava o caso. O

médico comunicou o falecimento de forma bastante cuidadosa, se mostrando, inclusive, impactado

pelo acontecimento. Após a retirada dos médicos, entre muitos momentos de silêncio, Rose passou

a falar da sua relação com seu marido, das coisas que gostavam de fazer juntos, das expectativas

que tinha quanto à recuperação dele, de sua visita no dia anterior ao falecimento, da dor de pensar a

vida sem a presença dele, dentre outras falas. Com a chegada dos demais familiares, Rose

manifestou o desejo de ver o corpo de seu marido.

Surgiu então um impasse. A equipe negou seu pedido, seu desejo, ainda que o mesmo

tivesse sido autorizado anteriormente pelo médico cirurgião. Alegaram que o corpo se encontrava

inchado, podendo esta imagem causar nela um grande impacto e, sobretudo, alegaram que este

ambiente não permitia esse tipo de visita. Esta decisão causou profundo descontentamento nos

familiares, reação esta que foi levada pela psicóloga à equipe, na tentativa de encontrar uma solução

para este impasse. As enfermeiras que cuidavam do corpo, por sua vez, mostraram-se disponíveis,

48
de modo a arrumá-lo para que ele pudesse ser visto naquele momento. Foi assim, satisfeito seu

desejo. Durante o tempo em que a família esteve junto ao corpo de Ricardo, a enfermeira-chefe deu

sinais de sua desaprovação.

Entendemos que Rose pôde expressar seus sentimentos e expor sua necessidade frente à

morte de seu marido, na medida em que esteve diante de alguém que esteve disponível para estar

com ela, acompanhando-a neste momento, e reagindo com sensibilidade ao seu apelo. Não restam

dúvidas de que o rumo desse atendimento esteve totalmente relacionado à postura da profissional de

psicologia, de abertura para o outro, enxergando e reconhecendo esse outro, a cada etapa do

processo.

Os impasses surgidos no contato com alguns profissionais e destes com os familiares de

Ricardo demandaram intervenções, no sentido de amparar Rose frente à dor e ao sofrimento em que

se encontrava. Esta situação exigiu, ainda, que Psicologia atuasse no sentido de estabelecer um

diálogo com a equipe, na tentativa de relativizar as distintas opiniões, apostando na premissa de que

é somente o outro quem pode dizer o que é melhor para si e questionando a rigidez das regras, que

não levam em consideração a particularidade da situação.

Acreditamos que a existência de regras necessárias ao bom funcionamento de uma

instituição, não seja incompatível com a necessidade de que haja margem para a reflexão do que

está estabelecido a priori, neste caso, a proibição de visitação ao corpo no CTI. Neste sentido,

notamos que as habilidades interpessoais e a capacidade de reconhecer as necessidades do outro são

os possíveis aspectos que poderiam gerar a flexibilização das regras em determinadas

circunstâncias.

Por fim, temos a função de interpelar, seduzir e reclamar exercida pelo agente de cuidado.

Tal função acaba por provocar no outro, que é cuidado, uma exigência de resposta. Trata-se de uma

forma de recepção bastante ativa, que equivale a uma intimação.

Um modo muito primitivo e aparentemente casual de intimar ocorre quando damos um nome

– ou um apelido – a alguém, isto é, nomeamos e forçamos o sujeito a responder pelo seu


49
nome, pela sua pessoa, por sua existência. A isto corresponde a função de ex-citar, chamar

para fora, chamar às falas. (...) Esta modalidade de cuidado é, por exemplo, a do professor que

chama o aluno à lousa para resolver um problema, a do juiz que ouve depoimentos, a do padre

que ouve confissões ou a do médico que solicita ao paciente uma descrição de suas dores e

sintomas, de seus hábitos alimentares etc., ou ainda a da mãe que conversa com o filho que

ainda nem sabe falar. (Figueiredo, 2009, p. 128).

Na esteira do que expõe Figueiredo, podemos afirmar que esta modalidade de cuidados é

também exercida pelo profissional de psicologia, quando indaga o paciente internado sobre o que o

trouxe para o hospital.

Para exemplificar, seguem alguns fragmentos dos atendimentos com Douglas, paciente da

Unidade Coronariana, que se encontrava internado há meses e sem perspectiva de alta. A equipe

relatava que o paciente aparentava bastante insatisfação, irritação e não gostava de conversar.

Em uma ocasião, foi oferecido atendimento a Douglas, momento em que ele disse que a

psicóloga de referência era muito repetitiva e “pau mandado” do chefe. Expressou também sua

insatisfação e descontentamento ao dizer que todos falavam a mesma coisa: “você não está bem”,

“não vai sair”, “não pode”, e queixava-se sobre “ser tudo sempre igual toda semana”. Foi apontado

para Douglas que ele devia estar cansado dessa repetição própria do hospital e que devia ser muito

difícil estar tanto tempo nessa rotina. Ele confirmou, dizendo que não aguentava mais e queria ir

para casa.

No decorrer dos atendimentos, o vínculo com a psicóloga foi sendo fortalecido. Afinal,

dentre muitos “nãos” e “tem que” o atendimento da psicologia permitiu que o paciente pudesse ser

implicado na rotina hospitalar, ofereceu um poder de escolha ao sujeito. Permitiu um “quando” e

“como”, respeitando o seu lugar como sujeito responsável pelo seu desejo.

Douglas pôde recontar a sua história, em que nunca tinha passado pela experiência de ser

mandado, sempre teve liberdade para fazer o que queria.

50
Ele comparou sua vivência com levar uma “vida de cão”, se sentia em um pequeno canil, onde era

acordado apenas para comer. “Eu rodo, rodo para escolher a melhor posição para dormir, e quando

consigo me acordam para me alimentar ou me dar remédio. Isso não é vida de gente, é vida de cão”.

Nos atendimentos, ele repetia: “Um dia de cada vez, afinal deixa a vida me levar”. Ele dizia

estar dançando conforme a música e quando questionado sobre estar no ritmo, respondia que achava

que sim. Foi pontuado que era possível sair do ritmo às vezes, afinal, na dança em alguns momentos

guiamos, noutros somos guiados. Douglas relatou ter descoberto isso tarde, só agora que percebia

que não tinha o controle de tudo e que também poderia ser controlado. Disse gostar de música e que

escutava em casa. Perguntei se ele gostaria de ter um rádio, ele retribuiu dizendo que seria ótimo e

disse “de resto está tudo bem, cada dia, um outro dia.”

Através do vínculo que foi construído, Douglas pôde falar sobre a experiência hospitalar, os

sentimentos e a nova percepção que era suscitada pela perda de controle em sua vida. Ele trazia a

todo o momento questões próprias da internação em uma Unidade Intensiva e do adoecimento pela

patologia cardíaca. No entanto, até que fosse possível chegar a esse ponto, ele precisou da presença

de um outro que, ao dirigir-se a ele, o interpelasse e o convocasse, possibilitando assim que se

implicasse em sua história.

Até o momento, estivemos abordando a presença implicada. Ao lado dela, apresenta-se

como uma forma decisiva do cuidar, a presença em reserva, sendo que esta não envolve o fazer. A

condição de presença reservada, sinaliza a necessidade do agente de cuidados oferecer ao objeto do

seu cuidado um espaço vital desobstruído, não-saturado por sua presença e afazeres (Figueiredo,

2009). Conforme salienta Figueiredo (2009), se ocorre, contudo, o exagero da reserva, o resultado é

a distância afetiva e a indiferença.

Temos relatos de membros da equipe médica sobre a dificuldade de conversar com o

paciente grave, e o consequente afastamento desse tipo de paciente, pelo medo de se envolverem

emocionalmente, evidenciando claramente uma atitude defensiva. Desse modo, ouvimos falas

como: “se o caso é grave prefiro nem atender o paciente no ambulatório, melhor nem falar com o
51
paciente porque ele pode morrer e eu vou ficar mal”, ou “esse é daqueles pacientes que é melhor

nem chegar perto, que eu prefiro não ter contato”. No entanto, o resultado dessa postura, pode trazer

consequências nefastas para o paciente.

Diante da dificuldade em lidar com o caso grave, o paciente acaba sendo condenado à uma

morte prematura, e pode receber pouco investimento da equipe médica. E junto com isso, ocorre

uma morte simbólica, na medida em que se está morto para o outro.

Assim, é frequente o uso de mecanismos de defesa para proteger-se da angústia de não

poder salvar. A fragmentação da relação com paciente e família, através do afastamento da equipe,

a negação da subjetividade do paciente ou dos próprios sentimentos e a fragmentação das tarefas, a

fim de diluir a responsabilidade entre os profissionais, são alguns dos mecanismos de defesa que se

estruturam para que o profissional possa lidar com o sofrimento. Outro caminho para se proteger da

angústia é deixar-se afetar intensamente, mantendo uma ferida aberta constante (Pitta, 1994 citado

por Monteiro, 2017, p. 106).

No que concerne à presença implicada e a presença em reserva, Figueiredo (2009) segue

advertindo sobre o emprego extremado de ambas. Assim, se é óbvia a insuficiência da pura reserva,

entendida como neutralidade, indiferença e silêncio, por outro lado, em qualquer experiência de

cuidado, são inegáveis os malefícios da implicação pura – os extravios e excessos das funções

cuidadoras – mesmo quando, e principalmente quando, são justificados pelas melhores razões

humanitárias: salvar, socorrer, curar a todo custo! Desse modo, para que se dê o equilíbrio dinâmico

entre os três eixos dos cuidados – acolher, reconhecer e questionar – e, mais ainda, para que este

equilíbrio ocorra de modo espontâneo, é necessário que o agente cuidador possa moderar seus

fazeres.

Considerações finais

Em unidades fechadas, principalmente por conta da necessidade do uso de tecnologias para

o cuidado, há uma tendência a associar a competência ao conhecimento formal e às habilidades

52
técnicas, em detrimento daquelas não formais, que prezam pelo cuidado, por meio da empatia e

compaixão. Nesse sentido, há culturalmente uma primazia do saber sobre o sentir, o que acaba por

categorizar a sensibilização do profissional como uma qualidade negativa.

Somado a isso, a maior parte do investimento nos serviços de saúde se dá na busca e na

valorização de uma padronização das atividades. Uma vez em que há a valorização do protocolo,

guia, evidências e controle, produz-se sentimentos de fracasso ou ocorre o desprezo para aquilo que

é incontrolável, obscuro, subjetivo, espontâneo, singular.

A fim de estabelecer um contraponto ao que costuma imperar neste ambiente e seu apreço à

lógica e à razão, traremos o depoimento de um residente médico a respeito da especificidade da

relação médico-paciente. Ele dizia que a posição em que os médicos se encontram é de intensa

responsabilidade, pois há uma confiança que é depositada pelo paciente neles, mesmo sem conhecê-

los.

Esse médico, mesmo sem se dar conta, falava da dimensão da transferência, da suposição de

saber depositado nele e que leva o paciente a colocar a vida literalmente nas mãos de outra pessoa,

acreditando ser esta capaz de curá-lo. Ele dizia: “É uma relação que não existe com mais

ninguém”.

Pois bem, apesar de não parecer lógico, a postura do paciente, descrita pelo médico, parece

fazer sentido! Diante da vulnerabilidade e desamparo vividos pelo paciente, realmente, pode fazer

muito sentido, confiar cegamente em alguém, pode ser até mesmo que se faça necessário, a fim de

tornar suportável o insuportável.

A fala do médico, ao abrir caminho para outras dimensões do humano para além da razão,

traz uma abertura para questionarmos a valorização excessiva que existe no ambiente hospitalar à

objetividade, racionalidade, e uma total desconsideração de aspectos subjetivos, calorosos,

espontâneos e, portanto, distanciados de protocolos e controle.

53
De nossa parte e com o nosso saber-fazer, buscamos com nossa atuação, apresentar um

contraponto a este movimento e a esta postura. E, em nosso caso, sem abrir mão da habilidade

técnica. Pois, para o profissional de psicologia, cabe sim, ser solidário, se comover, se impactar, se

revoltar, desde que isso aconteça na medida, e que mantenhamos nosso lugar de profissional,

estando ali para o outro e reagindo com sensibilidade ao que chega até nós.

Não à toa intitulamos este artigo: “A experiência de “fazer sentido”: a primazia do cuidado

na assistência psicológica aos pacientes cardiopatas, seus familiares e à equipe de saúde”. Fazer

sentido, expressão que pode abrigar diferentes sentidos, todos muito sentidos. Fazer sentido para o

outro, fazer sentido para mim, um fazer que faz sentido e ainda, um fazer que faz bem ao coração,

pois é sentido.

Notas

1. Em seu início, 1996, o Serviço de Psicologia esteve sob a preceptoria da psicóloga Norma Pace.

No ano de 1999, a psicóloga Sheila Orgler assumiu a função de preceptoria na qual permaneceu até

o seu falecimento, o que ocorreu no ano de 2008. Ainda nesse ano, a psicóloga Cristiane Esch

assumiu a referida função na qual permanece até o momento. Entre os anos de 2016 e 2017, o

professor Alessandro Gemino respondeu pelo serviço de psicologia, em função de um período de

licença maternidade-amamentação e licença prêmio desta profissional. No ano de 2018, o serviço

contrata a psicóloga Narcisa Silveira de Paula Fonseca (residente durante os anos de 2016 e 2017)

que passa a atuar em parceria com a Residência em Psicologia no referido serviço.

2. Os alunos de graduação podem ser inseridos no Serviço como bolsistas vinculados ao Projeto de

Estágio Interno Complementar “Psicologia e Cirurgia Cardíaca: capacitação em Psicologia

Hospitalar”, em vigor desde 2010 e financiado pelo CETREINA/UERJ e ao Projeto de Extensão

“Começar de novo: assistência psicológica junto à reabilitação cardíaca do Serviço de Cirurgia

Cardíaca do Hospital Universitário Pedro Ernesto sob uma perspectiva gestáltica”, em vigor desde

54
2012 e financiado pelo DEPEXT/UERJ, ambos sob a coordenação da psicóloga Cristiane Ferreira

Esch.

3. Os nomes dos pacientes e familiares citados nos casos clínicos, ao longo do texto, foram fictícios,

de modo a garantir o sigilo profissional.

Referências

Brandt, J. A. (2009). Grupos Balint: Aspectos que marcam sua especificidade. Vínculo,
6(2), (p. 199-208). Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/vinculo/v6n2/v2n6a09.pdf
Costa, A. (2009). A fábula de Higino em Ser e Tempo: das relações entre cuidado,
mortalidade e angústia. In Maia, M. S. (Org.). Por uma ética do cuidado. (pp. 29-51).
Rio de Janeiro: Garamond.
Figueiredo, L. C. (2009). As diversas faces do cuidar: considerações sobre a clínica e a
cultura. In Maia, M. S. (Org.). Por uma ética do cuidado. (pp. 121-140). Rio de Janeiro:
Garamond.

Monteiro, M. C. (2017). A morte e o morrer em UTI: família e equipe médica em cena.


Curitiba: Appris.
Oliveira, M. F. P. de; Luz, P. L. (1992). O impacto da cirurgia cardíaca. In Mello Filho,
J.de (Org.). Psicossomática hoje. (pp. 253-258). Porto Alegre: Artes Médicas Sul.
Oliveira, E. C. do N. (2002). O psicólogo na UTI: reflexões sobre a saúde, vida e morte
nossa de cada dia. Psicologia: Ciência e profissão, 22(2), 30-41. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932002000200005
Oliveira, S. A. de; Oliveira, M. de F. P. de. (2010). Psicologia e Cardiologia: um desafio
que deu certo. In Ribeiro, A. L. A.; Gagliani, M. L. (Orgs.). Psicologia e Cardiologia.
Um desafio que deu certo (pp. 1-5). São Paulo: Atheneu.

Roselino, C. H. C. D.; Évora, P. R. B. (1996). Noções gerais sobre cirurgia cardíaca –


O que o cardiologista deve saber para orientar o seu paciente. Boletim da Sociedade de
Cardiologia de Ribeirão Preto, 5, 19-54.

55
A práxis dos residentes no ambulatório NAI: psicanálise e velhice

Gloria Castilho, Ana Beatriz Raimundo de Castro, Cristiane Bueno Iatauro, Lívia Azevedo
Carvalho, Rafaela Ferreira de Souza Gomes, Renata de Oliveira Fidelis

Resumo: O texto articula a Residência do IP com a equipe NAI interdisciplinar. Situa o recorte de

significantes que nomeiam o mal-estar na cultura, como próprio à atual conjunção

tecnociência/capitalismo. Destaca questões recolhidas pela escuta psicanalítica de “idosos”: queixas

de dores, quedas recorrentes, problemas de memória que abarcam lembranças, esquecimentos,

vivências marcadas por um sentimento de estranheza e a distinção entre Depressão e estados

depressivos, inerentes ao trabalho de luto.

Palavras-chave: psicanálise, Ambulatório Núcleo de Atenção ao Idoso, Residência do Instituto de

Psicologia/UERJ, estados depressivos, trabalho de luto.

Abstract: The text articulates the IP Internship with the interdisciplinary NAI team. It situates the

cutting of signifiers which name the discontent in culture as inherent to current conjunction between

techno-science /capitalism. It highlights issues raised in psychoanalytic treatment of elderly such as

pains complaints, repetitive falls, memory problems concerning evoked memories, forgetfulness,

experiences accompanied by strangeness feelings and the distinction between Depression and

depressive states, inherent to grief work.

Keywords: psychoanalysis, Ambulatory Center for Attention to the Elderly, Institute of Psychology/

UERJ internship, depressive states, grief work.

Resumen: El texto articula la Residencia del IP con el equipo NAI interdisciplinario. Presenta el

recorte de significantes que nombra el malestar en la cultura, como propio a la actual conjunción

tecnociencia / capitalismo. En el caso de las “personas mayores”, las denuncias de dolor, caídas

recurrentes, problemas de memoria que abarcan recuerdos, olvidos, vivencias marcadas por un

sentimiento de extrañeza y la distinción entre Depresión y estados depresivos, inherentes al trabajo

de duelo.
56
Palabras-clave: psicoanálisis, Ambulatorio Núcleo de Atención al Anciano, Residencia del Instituto

de Psicología/UERJ, estados depresivos, trabajo de luto.

Introdução

O Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência

Hospitalar – IP/UERJ foi criado em 1993, em uma parceria entre o Instituto de Psicologia/UERJ e o

CDA/HUPE/UERJ1. A proximidade do vigésimo quinto aniversário dessa Residência atualizou o

desejo de dizer algo acerca do trabalho em um dos setores por onde circulam os residentes 2: o

Núcleo de Atenção ao Idoso/UnATI/UERJ. Nos primeiros anos o trabalho de supervisão e

preceptoria foi sustentado por Jaime Lisandro Pacheco e Teresinha Mello da Silveira, psicóloga do

Instituto de Psicologia, na ocasião. Assim, a história da Residência do IP articula-se à história do

Ambulatório NAI, por meio do rodízio de residentes que passou a incluir o NAI, no final dos anos

noventa.

Dados do IBGE3, referentes ao Censo 2010, confirmam que a população acima de sessenta

anos foi a que mais cresceu nos últimos dez anos, fato que norteia projeções para 2050 que apontam

cerca de sessenta e cinco milhões de idosos no país (Veras, Caldas, & Cordeiro, 2013). Em torno

destes dados, vale lembrar que “um problema social é antes de tudo uma construção social”

(Debert, 1999a, p. 30), o que esclarece a importância de que seja considerada a dimensão discursiva

(Mucida, 2004) de um fato social.

O fato é que a demanda de atenção multiprofissional a “idosos4” tem se apresentado como

uma questão de relevância social, em nossos dias. Os constantes avanços da tecnociência têm

indicado como tendência – no Brasil e no mundo – o aumento da expectativa de vida, a diminuição

da taxa de natalidade, a diminuição da taxa de mortalidade em geral e o decorrente envelhecimento

da população. Em resposta a essa tendência, nas últimas décadas foram criados espaços como a

Universidade Aberta da Terceira Idade – UnATI/UERJ – que promove o laço social entre “idosos”

– a partir de sessenta anos – através de oficinas e cursos com temas diversificados.

57
O Núcleo de Atenção ao Idoso – NAI/UnATI – constitui a face assistencial do trabalho

desenvolvido pela UnATI. Localizado no décimo andar do Campus Maracanã da UERJ, configura-

se como uma Unidade Docente Assistencial do Hospital Universitário Pedro Ernesto

(UDA/HUPE/UERJ). O ambulatório NAI conta com uma equipe multiprofissional – geriatras,

enfermeiras, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicóloga e nutricionistas – e interdisciplinar que

presta assistência também a “idosos” internados nas enfermarias do HUPE/UERJ. Esse enquadre

articulado ao ensino e à pesquisa e implicado na transmissão da experiência clínica de diversas

áreas – mas também “dentro-fora” da cintura hospitalar do HUPE – confere ao ambulatório um

ambiente, em certos aspectos, mais aberto à interlocução entre os pares da equipe multiprofissional

e interdisciplinar.

É nesse contexto que se situa desde 2011 o treinamento em serviço da Residência

Multiprofissional em Saúde do Idoso, criada em parceria entre o NAI/UnATI e o CDA/HUPE. A

Área de Psicologia dessa nova Residência (Castilho, 2016) passou a funcionar em 2013 e, desde

então, têm se inserido no NAI residentes de duas Residências distintas de Psicologia: a Residência

do Instituto de Psicologia e a Residência multiprofissional em saúde do idoso do NAI.

O ambulatório NAI sustenta ações diversas que serão abordadas, ao longo do texto, em

maior detalhe. Cabe ressaltar a relevância, o valor do trabalho desenvolvido pelo NAI. Há vários

relatos de “idosos” que encontram em iniciativas como essa uma via para encaminhar dificuldades,

bem como estabelecer e consolidar laços sociais ou mesmo inventar algo a partir do seu repertório

singular de interesses.

Constata-se que o “idoso” assistido por diferentes profissionais da área de saúde requer, com

frequência, uma escuta que acolha e possa dar direção a conjunturas que se apresentam em seu

relato como traumáticas e implicam sofrimento psíquico. Assim, iniciamos afirmando a importância

de que o analista dirija-se ao sujeito dividido, ou à bela por detrás do postigo (Lacan, 2008b) e não

ao “idoso” como categoria construída (Groisman, 1999).

58
Há como resposta ao mal-estar na cultura (Freud, 1996k), em nossos dias, uma inequívoca

prevalência de significantes veiculados pelo discurso científico. A chegada ao tratamento analítico é

fortemente marcada pela presença desses significantes: Depressão 5, síndrome do pânico,

fibromialgia, déficit de memória, fragilidade óssea, dentre outros. Tais significantes obscurecem e

dificultam que se estabeleça um sintoma analisável e, por isso, requerem certo tratamento na

chegada, tratamento da demanda inicial que permita abrir espaço para que um “idoso” se implique e

situe em sua história, por exemplo, o que há de singular em seu estado depressivo. Questões tais

como: “... por que será que eu deprimi naquele momento?” ou a respeito das dores: “por que as

dores que sinto diminuem quando viajo ou estou na casa da minha filha?” Ou ainda com relação às

recorrentes queixas de quedas: “... por que será que eu caía tantas vezes naquela época?”. Questões

como essas se contrapõem à ideia – corrente entre os especialistas – de que as quedas na velhice

sejam apenas uma consequência natural da fragilidade própria à velhice. É também considerada

natural, pela equipe de saúde, a recorrência da Depressão na velhice e ainda o fato de que o “idoso”

sinta dores em decorrência de doenças crônicas que vão sendo administradas, por meio de técnicas e

procedimentos, pelos diversos especialistas da equipe multiprofissional, ao longo do tempo.

Vale assinalar que na velhice considera-se natural que haja todo tipo de déficits, com relação

ao padrão adulto normal, ideal, já que a falta e a perda são lidas como insuficiência ou déficit pelo

discurso tecnocientífico. Nessa direção, Góes (2008) esclarece que: “De um desejo articulado à falta

enquanto dado estrutural, o capitalista não quer ouvir falar. Em seu lugar, formula a promessa de

eliminar a falta pela aplicação da ciência à tecnologia que ofereça, no mercado, os meios de obter

satisfação e negar a falta” (p. 47).

A atual conjunção da ciência tecnológica com o discurso capitalista (Lacan, 2001) e a

decorrente ênfase em técnicas, procedimentos e protocolos engendra um contexto que tem

consequências específicas. O “idoso” costuma encarnar, rapidamente, a figura do velho, do

obsoleto, do ultrapassado, ali onde predominam as máscaras do novo (Mucida, 2004), do

descartável. Além disso, abre-se – em torno do envelhecimento – todo um viés de mercado de

59
consumo que implica a incessante oferta de produtos, técnicas e procedimentos que visam

escamotear o inexorável processo de envelhecimento e transformar a juventude em um bem, um

valor que pode ser conquistado em qualquer faixa etária (Debert, 1999b).

O fato é que nas duas vertentes, seja como objeto de cuidados, seja através do combate ao

envelhecimento, tornado um mercado de consumo, é como objeto que o “idoso” é abordado pelo

discurso científico. Ainda que existam indiscutíveis efeitos de socialização decorrentes da

construção da categoria “idoso”, é preciso considerar também inequívocos efeitos de segregação e

isolamento. Tais efeitos tendem a ser exacerbados pela conjunção entre tecnociência e capitalismo

que deixa, muitas vezes, a velhice sem lugar, reduzida ao silêncio (Beauvoir, 1990; Debert, 1999a).

Por esse viés, Groisman (2013) esclarece que alguns autores chegam a falar em uma morte social na

velhice.

Na contramão da naturalização das questões, a práxis psicanalítica com alguns “idosos”

recolhe uma forte e talvez específica aderência aos significantes veiculados pelo discurso científico,

em um vão esforço de que respondam por todo o seu mal-estar. Essa dimensão clínica esclarece a

dificuldade de subjetivação de algumas questões na velhice, além de situar o grau de fechamento

com que se confronta a escuta do analista, em certas conjunturas. Consideramos que seja em torno

deste ponto que Freud (1972) chegue a formular a contraindicação da psicanálise com “pessoas

idosas” (p. 274), afirmando certa inércia psíquica, certa perda de plasticidade que aumentaria com o

passar dos anos. Cabe lembrar, entretanto, que para Freud (196l), é preciso considerar a inércia

psíquica entre jovens, deslocando, até certo ponto, a questão da mera faixa etária.

Freud (2006a) introduz a concepção de um desamparo fundamental, Hilflösigkeit, do ser

falante no Projeto para uma psicologia científica, diante da impossibilidade de satisfazer ou aliviar

o excesso de excitação corporal. A criança pequena depende, em absoluto, de alguém que lhe dê

afago e que responda aos seus anseios através de uma ação específica que lhe proporcione alívio de

sua excitação. Nas palavras de Freud (2006a): “o organismo humano é, a princípio, incapaz de

promover essa ação específica. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa

60
experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna” (p.

370). A via de descarga possibilitada pela ação específica do outro semelhante adquire uma

importante função secundária, a comunicação. A experiência mítica de satisfação diz respeito à

primeira intervenção deste semelhante capaz de proporcionar prazer, ou seja, responsável por

diminuir a tensão do organismo promotora de desprazer. Inaugura-se uma espécie de caminho, de

“rodeio” (Freud, 2008, p. 558), de trilhamento, Bahnung, através do qual será buscada a satisfação

outra vez, obtida sempre parcialmente.

Freud (2006a) utiliza a expressão “a Coisa” (p. 380), das Ding, para falar de um componente

inassimilável, irredutível da experiência mítica de satisfação, que localiza a perda como estrutural.

É através deste outro semelhante, o qual efetua a ação específica, que o processo se desdobra. O

complexo do próximo, Nebenmensch, diz respeito à primeira apreensão da realidade. Esse

semelhante foi ao mesmo tempo um objeto hostil, quando, por exemplo, emitiu um grito, e a “força

auxiliar” que realizou a ação específica garantindo o aporte de alguma satisfação. Em A ética da

psicanálise, após haver delimitado no texto de Freud (1895) a noção de das Ding, Lacan (2008a) a

situa como alteridade absoluta, “[...] fora-do-significado” (p. 71). O Nebenmensch articula o à-parte

e a similitude. O complexo do próximo divide-se em dois componentes. Um deles pode ser

compreendido por meio da atividade da memória, o outro promove uma impressão por sua estrutura

constante e permanece coeso “como uma coisa”, das Ding (Freud, 2006a, p. 384). Há na

experiência algo inassimilável, que não se inscreve, escapando à memória. O limite da memória, do

que é passível de inscrição, pode ser pensado por referência à das Ding como perda, falta estrutural

em torno da qual só resta à pulsão fazer o contorno (Lacan, 2008b). Nessa direção, o Outro

inesquecível, da primeira experiência mítica de satisfação, está desde sempre perdido. Inaugura-se

uma repetição comandada pelo princípio do prazer que visa o reencontro falho, com o objeto desde

sempre perdido, ou seja, que mobiliza o desejo enquanto rodeio que implica alguma circulação da

falta.

61
A psicanálise apresenta-se como um dispositivo aberto àqueles que sofrem caso desejem

tratar algo de seu sofrimento pela via da fala. Talking cure (Freud, 1996a, p. 65), a aposta em jogo é

de que se ofereça uma escuta àqueles que se dirigem ao Outro para falar do seu sofrimento e de suas

questões, sempre singulares. Nessa direção, uma pergunta que importa situar na chegada de um

“idoso” ao tratamento é: de que lugar ele será ouvido? Trata-se aí do lugar do especialista em

envelhecimento ou de uma escuta capaz de acolher e recolher as questões de um sujeito confrontado

com a velhice, como evento inexorável da vida? Localizar-se a partir do discurso analítico 6 permite

interrogar aquilo que um “idoso” – ao tomar a palavra sob transferência – tem a dizer sobre o seu

processo de envelhecimento, bem como sobre as demais questões, sempre singulares, que vierem a

se apresentar.

Encontra-se no NAI/UnATI/UERJ um contexto institucional e público propício à pesquisa e

à práxis psicanalítica, já que muitos “idosos” precisam trabalhar – trabalho de luto – a partir das

inúmeras e, por vezes, concomitantes perdas com que o processo de envelhecimento os confronta,

de forma inexorável. Em torno do trabalho de luto – muitas vezes necessário em um primeiro tempo

da análise de um idoso – cabe aqui indicar a articulação, bem como a necessária distinção entre as

perdas que se apresentam ao longo da vida, de forma contingente, e uma dimensão de perda

estrutural e estruturante, compatível com a estrutura de linguagem ou ainda, como Freud (2008) o

situa, compatível com o rodeio próprio ao desejo.

1. O NAI e suas ações

A equipe de saúde multiprofissional define o ambulatório NAI menos por seu espaço físico

e mais por suas ações, dentre outras: a intervenção da equipe NAI na enfermaria de Cirurgia

Vascular; o Acolhimento e os distintos Ambulatórios. Cada uma dessas ações abarca para a equipe

multiprofissional a ideia de treinamento em serviço de residentes inseridos nos diversos cenários de

atuação.

1.1 A intervenção da equipe NAI na enfermaria de Cirurgia Vascular

62
A enfermaria onde a equipe NAI presta atendimentos é a Cirurgia Vascular/HUPE. Em

várias discussões tem sido pensada a importância de uma enfermaria específica para a internação de

“idosos”, assim como existe a enfermaria para crianças e para os adolescentes. Mas, para isso

interferem questões estruturais, políticas e gerenciais do hospital e, até o momento, essa vem sendo

a localização possível para a equipe.

A escuta de “idosos” em uma enfermaria de cirurgia vascular suscita inúmeros

questionamentos devido à radicalidade de alguns procedimentos utilizados no tratamento, dos quais

se destaca a amputação de membros. O envelhecimento é atravessado por inúmeras perdas

simbólicas e nos laços sociais, mas no trabalho em uma enfermaria de cirurgia vascular temos,

muitas vezes, somado a estas, uma perda no real do corpo.

O hospital, com frequência, é um local de sofrimento, dor, angústia e de confronto com a

morte. A internação é um momento de crise, no qual muitas vezes o sujeito se vê destituído de um

lugar e tem que lidar com uma alteração no curso da sua vida. A perda (mesmo temporária) dos

laços sociais e o afastamento das atividades cotidianas se dão de modo inesperado e repentino e

funcionam como um corte na vida do sujeito, que de uma hora para outra se vê tendo que dar conta

de toda essa nova situação (Moura 2000).

Espaço privilegiado do discurso biomédico, o hospital visa atender com rapidez às urgências

médicas, deixando de lado o que é singular e subjetivo. Neste contexto, o que faz um psicólogo

atravessado pelo discurso analítico no hospital?

Apesar do setting diferente, a ferramenta do analista é a mesma: a escuta analítica. Diante

de tantos procedimentos, por vezes invasivos, e uma rotina marcada pelo ritmo do hospital, levamos

em conta a urgência subjetiva, quando vem à tona aquilo que está angustiando o sujeito em

determinado momento e pode ser minimamente elaborado (Moura, 2000).

A oferta da presença e da escuta do analista é uma aposta de que seja possível dar algum

contorno ao que se mostra traumático para o paciente hospitalizado e pode reintroduzir a questão

sobre o sujeito e sobre a urgência subjetiva e funcionar como um convite de trabalho frente à

63
urgência. Pois “ao falar o sujeito pode se inserir no tempo de sua história e esperar o tempo do

Outro” (Moura, 2000, p. 10), saindo da impotência para a impossibilidade, abrindo assim, caminho

para o possível a ser feito. A paciente T., internada na enfermaria de cirurgia vascular, teve uma de

suas pernas amputada. Após alguns atendimentos e confrontada com o risco iminente de sua morte

refere que estar sendo escutada lançou-a para a realização de um balanço de parte de sua história.

Diz que nunca foi carinhosa com a filha e que gostaria de dizer a ela o quanto a amava. E assim o

fez pela primeira vez em sua vida. A escuta sustentou que algo de um dizer (Lacan, 2003a) no final

de sua vida fosse dirigido à sua filha.

Percebemos que na situação de urgência há uma ruptura aguda para o sujeito. Este se depara

com algo do Real sem recobrimentos e se vê tendo que dar conta dos efeitos deste encontro. A

escuta pode, nessas situações de urgência, produzir algum contorno significante para o sujeito.

Conforme já indicado anteriormente, a medicina atual é um produto da conjunção entre

ciência e capitalismo. Ela lida com o Real do mesmo modo que a ciência, ou seja, como algo que

ainda não foi simbolizado pelo seu discurso. Diferentemente do discurso da psicanálise onde o Real

faz referência à castração e à falta, o discurso científico “foraclui” (Quinet, 1999b, p. 28) o limite e

a falta para a qual a condição de sujeito aponta.

O hospital geral é um espaço dinâmico com uma série de respostas prontas e rápidas ao

sofrimento humano, a partir de sentidos muito codificados que deixam de lado, na maioria das

vezes, a dimensão subjetiva e a singularidade. Como aponta Silvestre (1999): “[...] tudo se passa

como se a regra fosse não sofrer moralmente pelo sofrimento físico e pelas coerções da doença.” (p.

115).

Há, portanto, no hospital, uma legitimação do sofrimento orgânico, com o qual, de certo

modo, a instituição está acostumada a lidar. Tendo esta, muitas vezes, subsídios para responder a

este tipo de sofrimento por um procedimento ou medicação, que vise propiciar ao sujeito alívio ou

cura. Por outro lado, há um afastamento da dimensão do sofrimento que não pode ali ser respondida

e que equivoca o funcionamento institucional. Percebemos que grande parte dos encaminhamentos

64
e solicitações de atendimentos dirigidos à Psicologia está ligada a situações que angustiam a equipe

ou quando um paciente chora ou se entristece. Independentemente da notícia que ele tenha acabado

de receber ou da situação que esteja enfrentando, a tristeza e o choro dos pacientes raramente são

acolhidos no hospital. Neste contexto, cabe ao analista escutar o sujeito que sofre e, por vezes, o

acolhimento a essa equipe. O analista vem, por vezes, situar que há um limite das ações, quando

muitas vezes se confunde impossibilidade com impotência, pois a primeira inclui o real da

castração.

Algumas situações trazem questões complexas também para a equipe, como o caso de um

paciente diagnosticado com câncer, em estágio terminal. Ele estava lúcido e queria ir para casa. A

família temia não conseguir lidar com os cuidados necessários e presenciar o sofrimento e morte

dele, em casa. Diante dessa situação, a esposa sentiu-se pressionada pela equipe e não acolhida.

Nesse contexto, foi preciso situar para a equipe sua própria dificuldade em presenciar o sofrimento

do paciente e os limites de sua própria atuação, já que não havia mais proposta curativa de

tratamento para o caso dele.

O psicólogo no hospital vai lidar com a equipe, pacientes e familiares que se deparam com o

limite, o caráter transitório, efêmero da vida (Freud, 2009), a inevitabilidade da morte, enquanto

universal. Nossa aposta ao convidar o sujeito a falar a partir do encontro com a finitude é que este

possa, a partir da fala, minimamente enlaçar a questão da perda com a pergunta em torno do desejo,

com relação ao tempo que resta.

1.2 O acolhimento

Podemos traçar uma distinção entre o Acolhimento institucional e o acolhimento enquanto

ato que se dirige ao sujeito dividido. O primeiro constitui-se como o espaço reservado para receber

os pacientes encaminhados à instituição (NAI/UnATI), sendo realizado por profissionais de

diferentes especialidades e pode se desdobrar em sua inserção na instituição ou encaminhamento

externo. O ambulatório NAI é voltado para “idosos” com questões de saúde complexas e que

demandam um acompanhamento multiprofissional.

65
Já o segundo, o ato de acolhimento pelo psicólogo, torna-se importante a cada vez que ao

receber o paciente se considere a singularidade, sem a emissão de um julgamento e delineando-se os

encaminhamentos necessários com a participação do próprio paciente, na medida do possível.

Freud (1913) e Lacan (1971) aqui nos orientam ao indicar a função das entrevistas preliminares. O

momento de chegada ao tratamento é crucial para que se situe a especificidade da escuta analítica

em meio às especialidades que se debruçam sobre o paciente com uma exigência de fornecer um

diagnóstico e seu respectivo tratamento. Enquanto o médico, assistente social, nutricionista, entre

outros, apresentam um determinado protocolo de anamnese, o psicanalista se baseia na escuta que

considera que o discurso na associação livre tem uma determinação inconsciente e que o sentido só

é recolhido a posteriori. Deste modo, observamos a importância de considerar um tempo de

acompanhamento no qual algo se esclarecerá no decorrer dos acontecimentos (Freud, 1996m),

situando desta maneira o analista no lugar do não-saber a priori. O paciente irá supor um saber ao

analista, e isto é fundamental para o estabelecimento da transferência, mas não é deste lugar que ele

irá conduzir o tratamento. Esta posição permite que se promova uma abertura no discurso do

paciente, que poderá produzir uma cadeia de significantes que lhe conduzirá a um saber parcial e

radicalmente singular sobre o seu mal-estar.

Apesar das diferenças na forma de acolher tem se mostrado importante e com efeitos a

inclusão do psicanalista no Acolhimento institucional. Algum direcionamento de questões por parte

do “idoso” ao psicanalista já pode indicar uma demanda para acompanhamento, com a Psicologia.

Por vezes, a equipe encaminha alguns casos em que a pergunta sobre a distinção entre Depressão e

luto é colocada, de saída, o que indica uma interessante suspensão no diagnóstico. Há, portanto, no

ambulatório NAI, uma abertura para que os pacientes cheguem a uma escuta. Como deve o

psicanalista se posicionar neste contexto?

Lacan nos dá algumas indicações sobre essa questão quando declara que o lugar da

psicanálise na medicina é marginal, extraterritorial, na medida em que se furta ou está para além de

responder aos imperativos da ciência (Lacan, 2001). A posição que o psicanalista pode ocupar deve

66
levar em conta a demanda. Lacan pontua, a partir da linguística, a diferença marcada, desde Freud,

entre a demanda e o desejo. Haveria entre eles uma distância no nível inconsciente, sendo a

demanda, às vezes, diametralmente oposta ao desejo. Há “[...] um desejo porque existe algo de

inconsciente, isto é, algo de linguagem que escapa ao sujeito em sua estrutura e seus efeitos [...]”

(Lacan, 2001, p. 12). Segundo Lacan, haveria sempre no nível da linguagem algo que estaria para

além da consciência. A função do desejo se colocaria aí. Sendo assim, a demanda deve ser

trabalhada no início do tratamento.

É comum que a demanda para tratamento do “idoso” parta de um familiar que se encontre

angustiado e deve ser acolhido também. Algumas vezes, não há demanda do “idoso” naquele

momento, e é necessário o manejo do analista para a construção de uma demanda. No entanto, é

preciso que fique claro que o “idoso” pode falar, mas isto não deve equivaler a uma exigência de

fala.

Por vezes ocorrem atravessamentos de questões institucionais nos atendimentos, tais como

uma demanda da equipe que é colocada para o paciente e pode gerar efeitos na transferência. É o

caso de uma senhora que foi encaminhada pelo médico para tratar do tabagismo, mas não sabia que

“era este o motivo”. Nos atendimentos com a residente, a paciente apresentava uma resistência em

falar livremente e questionava o porquê de ser atendida pela psicóloga. Uma dificuldade a mais em

se estabelecer a transferência houve quando o médico pediu que ela conversasse com a preceptora

da residente para entender melhor como era o processo de tratamento. Essa situação mostra a

importância, em algumas ocasiões, de um manejo junto à equipe para sustentar a demanda do

próprio paciente no início do tratamento. É fundamental incluir o “idoso” nas decisões que lhe

dizem respeito, sempre que possível. Uma postura que o infantiliza, pressupondo uma fragilidade e

dependência, não considera a dimensão de sujeito.

1.3 - Os ambulatórios

É importante distinguir as ações ambulatoriais que acontecem no NAI. Há uma linha de ação

voltada para queixas relacionadas à memória nos ambulatórios de Cognição I e II e outra voltada

67
para lidar com demandas variadas, constituindo um Ambulatório Geral. Apresentaremos algumas

questões suscitadas por cada uma dessas linhas de atuação recortadas pela equipe de saúde.

1.3.1– O Ambulatório da Memória e o Ambulatório CIPI

No NAI há dois ambulatórios orientados para a investigação, acompanhamento e tratamento

de pacientes ditos com transtornos neurocognitivos: o ambulatório de cognição I ou ambulatório da

memória, e o ambulatório de cognição II ou Ambulatório de Cuidado Integral à Pessoa Idosa

(CIPI). A direção do trabalho, contudo, não é a mesma, uma vez que no ambulatório da memória a

investigação com fins diagnósticos tem prevalência por se tratar de pacientes com queixas de

esquecimento, de “problemas de memória” e que, muitas vezes, não chegam a preencher os critérios

diagnósticos de uma determinada patologia. Este ambulatório realiza, ainda, o acompanhamento da

evolução desses casos, uma vez diagnosticados, como também orienta e acolhe os familiares

envolvidos no cuidado do “idoso”. Já no CIPI são atendidos casos considerados de maior gravidade,

geralmente aqueles que foram acompanhados durante algum tempo no Ambulatório da Memória.

As queixas referentes à memória são frequentes entre os “idosos”. A abordagem das mesmas

pelo discurso médico tende a aproximá-las ao declínio da função cognitiva da memória. O DSM-5

(APA, 2014), Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, apresenta a entidade

nosológica “transtorno neurocognitivo maior”, quadro conhecido pelo senso comum como

demência, cuja principal característica é a perda gradual das funções da memória. Esse nome

evidencia a forte tendência da medicina atual pela compreensão cognitiva dos transtornos. Dos seis

domínios cognitivos que podem estar comprometidos (atenção complexa, função executiva,

aprendizagem e memória, linguagem, perceptomotor e cognição social), basta que um apresente

sinais de um “declínio substancial” para que se receba o diagnóstico. Outra novidade do DSM-5 é a

indicação de um “transtorno cognitivo leve”, em que está em jogo um nível “menos grave de

prejuízo cognitivo [...] que também pode ser foco de cuidado” (APA, 2014, p. 591). Dentro dessa

lógica, resta pouco espaço para a dúvida e o questionamento diante das queixas de memória, algo

como um afã por diagnosticar e, em seguida, intervir.


68
Os dois espaços ambulatoriais possuem como premissa o trabalho em equipe

multiprofissional. São realizadas reuniões para discussão dos casos clínicos. Nelas o psicólogo é

solicitado a responder, através de intervenções pontuais junto à equipe, pacientes ou familiares.

Também se constroem demandas para o trabalho a partir da fala, de modo que os encaminhamentos

de casos considerados mais graves, aos psicólogos, são crescentes.

É através da escuta, sustentada pelo desejo do analista, que um idoso poderá reabrir alguma

pergunta acerca de seus laços, sua relação ao Outro. Por essa via, a paciente L., recebida e acolhida

por uma escuta analítica, chega a formular a diferença introduzida em sua vida, a partir da fala

endereçada ao psicólogo. Muitas vezes comparava seus sintomas, ainda brandos, aos da irmã,

também diagnosticada com Alzheimer e que se encontrava em estágio avançado da doença,

segundo o seu relato. A equipe médica se surpreendia com certa estagnação do curso da sua doença,

que costuma apresentar uma evolução menos lenta. O que terá havido? A questão que a equipe se

colocou permanece; não se trata de respondê-la. O que se pode apreender pela fala dessa paciente é

que o espaço de escuta foi muito importante. Em suas palavras: “Minha irmã está assim, fora do ar,

porque não teve isso que estou tendo, essas conversas”, disse ela várias vezes, ao longo de anos.

Poder falar deu-lhe meios, ou foi o próprio meio, para que fizesse alguma barreira à identificação

com o pai e com essa irmã, que “ficaram fora do ar e fazendo maluquices” em decorrência do

avançar da doença.

Cabe esclarecer que muitas vezes a demanda dirigida pela equipe ao psicólogo é de que

responda como especialista. Operando a partir do discurso da psicanálise, o psicólogo não responde

desse lugar, mas sim nas brechas discursivas e, com isso, favorece que as dúvidas diagnósticas

sejam sustentadas e possam aparecer questões da equipe em torno de determinado caso. No

seminário sobre o desejo e sua interpretação, Lacan (2016) aponta o lugar vazio constitutivo do

desejo como aquilo que marca a posição ética que sustenta uma análise. O analista se oferece como

suporte para todas as demandas, mas não responde a nenhuma. Se a medicina se dirige à memória

como função cognitiva, com intenção de compreender e intervir em seu funcionamento, a


69
psicanálise se dirige ao sujeito dividido. Essa diferença discursiva promove abertura, uma vez que,

ao não atribuir a priori o valor de déficit àquilo que escapa ao funcionamento esperado, viabiliza o

deslizamento de um determinado sintoma que poderá, em outro tempo, ser lido como resposta do

próprio sujeito.

1.3.1.1 – Acerca da memória: lembranças e esquecimentos

A maneira como as lembranças, o esquecimento e a memória têm sido apreendidos

socialmente revela o destaque que o cérebro tem tido na descrição da individualidade e da

subjetividade, indica Groisman (2013). Em um mundo marcado pela constante aceleração e

transformação, em que o novo, o último modelo são rapidamente ultrapassados, exige-se que nossas

memórias sejam cada vez mais exercitadas para corresponder às exigências mercadológicas. Ortega

(2009) aponta que as descobertas das neurociências têm dado lugar a um mercado de best-sellers de

ginástica e autoajuda cerebral, que promete desenvolver determinadas regiões do cérebro e, assim,

“aumentar a performance do raciocínio e da memória, combater depressão, ansiedade, adições e

compulsões diversas, até melhorar a performance sexual, atingir a felicidade” (p. 253). É veiculada,

no imaginário social, a ideia de que o cérebro responde por tudo que diz respeito ao sujeito (Ortega,

2009).

Diagnosticada com a dita doença de Alzheimer, J. queixava-se de esquecer-se das “coisas

recentes”. Uma lembrança infantil traumática concernente a seu pai irrompeu e foi relatada com

insistência peculiar ao longo do tratamento. Se, para a medicina, é natural que um paciente em

processo de demência “repita-se na conversação” (APA, 2014, p. 594) e lembre-se mais de seu

passado remoto (Dalgalarrondo, 2008), para a psicanálise, todo o material trazido pelo paciente para

a transferência interessa. Daí o surgimento de uma lembrança em análise, da mesma forma que um

esquecimento, requer trabalho do sujeito para que se estabeleça o seu valor, a cada vez. Poderíamos

supor que a insistência, a re-petição do relato dessa lembrança traumática da paciente remeteria à

tentativa, ao esforço, sempre falho, de ligar no solo do prazer, um gozo que transborda o princípio

70
de prazer (Vidal, 1992)? Poderíamos situar aí a pergunta por algo da compulsão à repetição, tal

como Freud (1996h) a formula em Além do princípio do prazer?

Freud não chegou a formalizar uma teoria geral sobre a memória. No entanto, ao longo de

seus estudos fez várias considerações a esse respeito, muitas vezes aproximando, até certo ponto,

memória do funcionamento do aparelho psíquico. Ao analisar o sintoma histérico, nomeia como

“reminiscências” os fragmentos da memória relatados pelas pacientes. No início da psicanálise,

acreditava que a cura sintomática devia-se à recordação do material esquecido, relativo ao trauma.

Mais tarde, reformula a questão quando constata que as reminiscências diziam respeito à realidade

psíquica (Freud, 1996g).

As lembranças mostravam-se enigmáticas na medida em que o recordado estava enlaçado às

fantasias, falsificações ou ilusões de memória, às lembranças encobridoras, ou seja, encontravam-se

sujeitas às leis do inconsciente: condensação e deslocamento. Na Carta 52, Freud (2006b) formula a

tese de que a memória não se faz presente de uma única vez, mas que ela se traduz e se desdobra em

vários tempos. Ele acentua que as transcrições sucessivas representam a realização psíquica de

épocas da vida. No intervalo dessas épocas, Freud sugere que haja uma tradução do material

psíquico da época anterior.

Além da importante contribuição da Carta no que tange ao esclarecimento da complexidade

da memória, há outro ponto: trata-se do uso da palavra Niederschrift. Para Garcia-Roza (1991), essa

noção de inscrição traz uma nova dimensão à concepção freudiana da memória e do próprio

aparelho psíquico. Em Uma nota sobre o bloco mágico, Freud (2006e) explica o funcionamento da

memória através da metáfora do bloco mágico. A memória consistiria na inscrição permanente que

se faz na camada mais profunda do brinquedo, como correlata àquilo que se inscreve no

inconsciente, de modo indelével. No entanto, por ação do recalque, esse material não fica disponível

à rememoração. Lacan (1964-65) situa o esquecimento freudiano como uma forma de memória e a

qualifica de “[...] a mais precisa” (lição de 06 de janeiro de 1965, seminário Problemas cruciais

71
para a psicanálise, inédito). Sob as leis do inconsciente, mesclas de vivências, esquecimentos,

lembranças, fabulações, invenções situam a eficácia, a efetividade da realidade psíquica (Freud,

1996g). Assim, a leitura de um esquecimento relança a pergunta pelo recalcado, mas não se limita a

ele já que nem tudo no inconsciente é recalcado (Freud, 1996i). Há um limite próprio à estrutura,

fora do significante, “fora-do-significado” (Lacan, 2008a, p. 71).

Em O mecanismo psíquico do esquecimento (Freud, 1996b), Freud se interessou por saber

mais acerca de um esquecimento experimentado por ele, dando-lhe relevância ao se interrogar sobre

sua causa. O nome Signorelli, artista que pintara os afrescos de Orvieto, lhe escapou e, em seu

lugar, dois outros foram evocados, Botticelli e Boltraffio. Por associação, Freud chegou aos nomes

Bósnia, Herzegovina e Trafoi, que lhe remeteram a histórias cuja temática eram morte e

sexualidade, esta última tendo sido suprimida por ele. O Signor, de Signorelli, por traduzir o Herr,

elevado a representante da morte foi, segundo Freud (1996b), o meio pelo qual a história que ele

havia suprimido arrastara consigo para o recalcamento o nome que estava procurando.

Lacan (1999) sublinhou que o esquecimento do nome Signorelli não é “um esquecimento

absoluto, um vazio, uma hiância” (p. 41), já que se apresentaram substitutos; os nomes Botticelli e

Boltraffio, além da revivescência da pintura e do rosto do pintor. Se há relação, entre os três nomes

próprios, trata-se de “relações indiretas, ligadas unicamente a fenômenos do significante” (p. 42). O

lapso de Freud é um dos elementos que faz com que Lacan ratifique o modo de funcionamento de

um sujeito dividido, efeito das operações inconscientes.

No lugar de atribuir a “distúrbios da circulação e das funções cerebrais em geral” (Freud,

1996c, p. 39) o seu frequente esquecimento de nomes, Freud confere sua causa a pensamentos

inconscientes a serem buscados, a cada vez. O mesmo se aplica ao que Freud (1996c) registra como

atos falhos e lapsos da fala, em seu trabalho Sobre a psicopatologia da vida cotidiana. Não se trata

de ignorar que haja processos fisiológicos em curso durante um esquecimento ou qualquer outro

72
desses fenômenos; apenas não é o caso de considerá-los como sua causa, e sim “fatores

favorecedores” (p. 39), que, além de variáveis, não são necessários.

1.3.1.2 – Nem tudo no inconsciente é recalcado

Na velhice, as perdas no corpo, acometido pelo avançar da idade, e as perdas de laços

sociais, situam-se como pontos de tensão que podem desestabilizar a imagem especular, uma vez

que fazem vacilar a pergunta do sujeito acerca de seu lugar no desejo do Outro. Alguns “idosos”

sentem-se obsoletos e inadequados: “um escombro”, como se define o poeta Manuel de Barros

(Cezar, 2009). Em Reflexões sobre os tempos de guerra e morte, Freud (2006c) assegura que em

nosso inconsciente cada um está convencido de sua imortalidade, isso porque não possuímos

representação da própria morte no inconsciente. No entanto, em algumas situações essa convicção

se esvanece. Segundo Castilho (2011), “é o que ocorre frente a uma perda valiosa – mas também

em acontecimentos com valor de trauma que nos confrontem com a própria finitude” (p. 47).

Algumas experiências relatadas na clínica, por “idosos” com queixas de alterações da

memória, como certos esquecimentos e episódios de estranheza, colocam em cena um mais além,

marcado pela angústia e pelo fenômeno do estranho. Algo dessa ordem comparece no relato de um

“idoso” em sua análise. Ele conta que, recorrentemente, perde-se em locais conhecidos. Nesses

episódios, sempre se coloca em situação de perigo. A repetição produz mais angústia do que o

esquecimento em si. Escuta-se algo de um sentimento de desamparo frente à natureza imperiosa

dessa repetição. Em O estranho, Freud (2006d) relata uma repetição ocorrida consigo próprio e

chama a atenção para o fator da repetição da mesma coisa que evoca a estranheza e uma sensação

de desamparo como a que é experimentada em alguns estados oníricos.

Outro relato encontra-se no texto O estranho (Freud, 2006d). Freud o utiliza como exemplo

para tratar da ocorrência do duplo relacionado ao não reconhecimento da imagem própria, que pode

acontecer em circunstâncias nas quais o reflexo da imagem própria se apresenta de modo

espontâneo e inesperado. O duplo é encontrado no homem primitivo e no narcisismo primário, nos


73
dois casos como consequência do amor próprio ilimitado e funcionando como garantia de

imortalidade. Contudo, quando esta fase é superada, a ocorrência do duplo tem um valor inverso,

torna-se anunciador da morte.

Se o velho é sempre o outro, certas vivências revelam as mudanças inexoráveis do corpo

submetido à ação do tempo. Nessa linha, a velhice como um sinal do avançar da idade, podendo

confrontar o sujeito com o limite da existência, pode propiciar experiências estranhas semelhantes

àquelas relatadas por Freud, onde o duplo faz às vezes de anunciador da morte, da finitude e a

repetição convoca algo do fenômeno do estranho, do sentimento de estranheza e do desamparo.

O lugar obsoleto, muitas vezes atribuído aos “idosos”, bem como as recorrentes e, por vezes,

simultâneas perdas significativas fazem vacilar a pergunta acerca do lugar do sujeito no desejo do

Outro, fazendo aparecer sua posição como resto, “um cacareco”, como afirma uma “idosa” em

análise. Essa posição mobiliza angústia, e muitas vezes, nesses momentos marcados por um

sentimento de luto, aparecem relatos de vivências estranhas. Tais vivências podem ser recolhidas

por uma escuta que se dirija ao sujeito dividido e sustente um trabalho pela fala que permita alguma

leitura, por vezes alguma escrita. Foi o caso de S. que chegou ao ambulatório NAI com queixa de

esquecimento e após avaliações recebeu o diagnóstico de Alzheimer pela equipe de saúde. Passado

um tempo, foi encaminhada à psicologia. Situando sua chegada ao ambulatório, diz: “eu procurei

ajuda no ambulatório quando queimei a panela de feijão. Foi quando eu percebi que não estava

bem. Eu estava esquecendo tudo...”. Ao longo dos atendimentos, sob transferência, S. falou de

várias e difíceis perdas que teve em sua vida e da escassez dos laços sociais. “Quando eu esqueci a

panela de feijão no fogo eu estava tentando não lembrar todas essas perdas”. Evidencia-se aqui o

esforço deste sujeito de proceder alguma leitura, a partir da vivência que o levou a buscar ajuda.

Deste modo, e de acordo com o que foi escrito anteriormente percebemos que as questões

da memória e do esquecimento são complexas. Há algo na memória, na lembrança e no

esquecimento que diz respeito ao sujeito. S. ao falar do que foi o percurso dos atendimentos, diz:

74
“Antes de vir para cá eu tinha me abandonado. Ficava só pensando em tudo isso que me aconteceu.

Agora não esqueço mais as coisas que tenho que fazer. Acho que já estou quase boa, pois pude falar

disso que não esquecia... dessas perdas. Devo estar só com um pouquinho de Alzheimer”. Com

humor, S. localiza que algo de seus esquecimentos estava ligado ao sentimento de luto, por suas

perdas significativas, que “não lhe saíam da memória”.

Tomemos ainda um terceiro relato autobiográfico de Freud sobre o fenômeno do estranho

(Unheimlich) e o sentimento de estranheza (Entfremdung). Na carta escrita a Romain Rolland,

publicada com o título Uma perturbação da lembrança na Acrópole, Freud (2006f) faz menção a

um sentimento de estranheza experimentado ao visitar a Acrópole e constatar sua existência real.

Este episódio ocorreu em 1904 durante uma viagem na qual era acompanhado por seu irmão mais

novo. Ao encontrar-se de pé frente a Acrópole veio-lhe um pensamento: “Então efetivamente existe

tudo isso como aprendemos na escola?” (p. 13). Ao longo do texto busca situar algo em torno do

“sentimento de estranheza” experimentado e formula: “São fenômenos muito singulares [...]

observados em duas formas diferentes: ou bem um pedaço da realidade nos parece estranho, ou bem

um pedaço do próprio eu” (p. 19). Freud utiliza a expressão “perturbação da lembrança” para

designar o efeito da vivência estranha, já que nela acontece algo equivalente a uma perda

momentânea da realidade. Esse episódio foi acompanhado por muita angústia e produziu um efeito

significativo em Freud, tanto que o relato do mesmo acontece muitos anos depois, deixando

entrever seu valor enigmático e a forma como uma vivência desta ordem pode propiciar trabalho do

sujeito a partir da divisão subjetiva, inclusive na velhice, já que Freud empreende sua escrita aos

oitenta anos.

1.3.2- O Ambulatório Geral:

Dando seguimento às distinções entre as ações ambulatoriais lançaremos mão do que foi

abordado até aqui acerca da perda como estrutural e não apenas contingente e acerca das queixas de

“problemas de memória”. Tais queixas abarcam lembranças, esquecimentos, bem como vivências

75
complexas e diversas que relançam a pergunta pelo funcionamento da estrutura de linguagem e não

apenas pelo envelhecimento cerebral. A partir da práxis com “idosos” procuramos marcar a

fundamental distinção entre a Depressão e os estados depressivos compatíveis, em algumas

ocasiões, com um primeiro tempo do trabalho de luto, frente a uma perda significativa, tão

recorrente no início da análise de um “idoso”.

Na atualidade vivenciamos uma generalização do termo Depressão que faz com que ela

ganhe status de uma “epidemia com entidade própria e independente da subjetividade” (Quinet,

1999a, p. 87). Por outro lado, embora haja uma generalização da Depressão pelo discurso científico,

há também uma intolerância e um combate à mesma, por contrariar a lógica da produtividade e a

exigência da saúde, bem-estar e bom humor, característicos do discurso capitalista. A fala de uma

enfermeira do setor de cirurgia cardíaca: “acho que a senhora x está deprimida, pois anda chorando

muito”, ilustra que o rótulo de Depressão pode se dar meramente pelo humor ou comportamento do

paciente, sem haver uma indagação sobre a singularidade em questão, indicando a rapidez com que

ocorre certa patologização dos afetos.

Assim, o discurso pregnante nos dias de hoje, marcadamente capitalista, atrelado aos

progressos e descobertas da ciência tecnológica faz com que a depressão seja tratada como um

déficit, como um defeito em relação à saúde – o que requer um tratamento à base de medicamentos

– ou como uma falha com relação ao imperativo de otimismo e felicidade que a nossa sociedade

exalta.

O discurso psicanalítico, em contrapartida, afirma que a “Depressão” no singular, isolada

como uma entidade própria não se sustenta (Soler, 1999). Diferentemente do discurso médico que

pensa o sintoma como um sinal ou signo que representa algo para alguém, a psicanálise aponta que

o sintoma implica uma dimensão subjetiva, pois é o resultado de um conflito psíquico que indica a

divisão do sujeito. Sendo assim, a Depressão, a priori, não seria um sintoma analisável. Para que

76
um estado depressivo se constitua como um sintoma analítico, deve haver alguma implicação do

sujeito, que se diz deprimido.

Em Inibição, sintoma e angústia, Freud (1996j) fala sobre “estados de depressão” (p. 94) e

descreve um quadro de inibição generalizada, uma “fadiga paralisante” que acontece quando o eu

do sujeito se vê envolvido em uma tarefa psíquica particularmente difícil, como acontece no

trabalho de luto (Freud, 1996j, p. 94). Torna-se importante ressaltar que, contrariamente ao discurso

médico atual, que associa a dimensão de inibição presente nos estados depressivos a um suposto

déficit do eu, ignorando seus aspectos subjetivos, Freud via na inibição um efeito da divisão do

sujeito, situando-a como um retraimento do eu que se expressaria na forma de uma cristalização do

conjunto de suas funções libidinais (Soler, 1999).

A clínica com “idosos” é permeada pelas inúmeras e concomitantes perdas que atingem o

sujeito e que suscitam um “sentimento de luto” (Lacan, 2005, p. 160). Vale salientar, que frente a

esse sentimento torna-se necessário um trabalho de elaboração a partir da perda. Freud (1996f)

indica que uma perda importante convoca o sujeito a um árduo trabalho que requer tempo e

esforços para que seja possível ressituar o campo narcísico e o rodeio próprio ao desejo (Freud,

2008). Há, portanto uma radicalidade do sofrimento na clínica com os “idosos”, onde se escancaram

e acumulam-se perdas, em vários níveis.

Freud (1996f), em Luto e melancolia, afirma que quando o sujeito é confrontado com uma

perda significativa pode haver uma abertura ao trabalho psíquico de elaboração do luto, processo

que é executado pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e energia, através do qual “cada

uma das lembranças e expectativas em relação ao objeto perdido é evocada e hiperinvestida, e o

desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas” (p. 251). Trata-se de um processo

extremamente doloroso que exige uma “restrição temporária do eu, devido à devoção do sujeito ao

trabalho” (p. 251).

Em oposição ao trabalho de luto que seria, segundo Freud, uma reação possível, dita

“normal”, diante de uma perda cara ao sujeito, Freud aponta um nexo entre um “luto patológico”
77
(Freud, 1996f, p. 256) e os estados depressivos. Segundo Freud, o “luto patológico” pode ocorrer

quando o conflito devido à ambivalência nas relações afetivas, que é atualizado frente a uma perda

objetal, assume o primeiro plano ocasionando uma série de autoacusações que fariam obstáculo ao

trabalho de luto. Essa passagem freudiana nos permite localizar os estados depressivos ao lado de

um luto inoperante, a uma ausência de trabalho de luto. A depressão, de certa maneira, seria o

contrário do trabalho de luto, pois se trata, nos estados depressivos, “de um luto congelado,

eternizado, pela falta de trabalho de elaboração” (Jimenez, 1997, p. 201). Como fazer falar alguém

que se apresenta como um deprimido? Como causar uma movimentação nesses momentos em que o

sujeito está tão tomado por seu sofrimento, a ponto de desinteressar-se pelas coisas do mundo que o

cerca? (Freud, 1996e).

Nos estados depressivos o sujeito muitas vezes está em uma indiferença em relação aos seus

afetos, quadro que aponta para uma inibição generalizada, um congelamento das vontades e ações.

Tais estados, portanto, esbarram em uma dimensão ética, havendo um recuo do sujeito perante as

questões referentes ao campo do desejo. A partir de Spinoza, Lacan (2003b) situa o afeto triste no

terreno da ética e qualifica-o como um pecado, uma “covardia moral” (p. 524), indicando haver

neste estado um recuo do sujeito diante do dever ético de bem-dizer o desejo.

Assim, nos estados depressivos, ao contrário do luto, o sujeito esquiva-se da fala e não

consegue se referenciar no trabalho, a partir da perda, o que o levaria a reconhecer-se como sujeito

faltoso e o remeteria à castração (Jimenez, 1997). A aposta do trabalho analítico, que tem como lei

ética o bem dizer, a partir da fala, é de que o sujeito possa fazer a passagem do estado depressivo ao

luto como trabalho, ou seja, possa realizar o trabalho de elaboração, a partir da perda. Esse trabalho,

realizado por meio de significantes, para Lacan (1986) desdobra-se, a cada vez – frente à

contingência de uma perda significativa – da privação à castração simbólica (Lacan, 1986).

Freud (1996j) volta a abordar a questão do luto trabalhando a economia da dor e relançando

a pergunta: porque o luto dói? Para Freud não é casual encontrarmos na língua o mesmo

78
significante – dor – tanto para a dor física como para a dor psíquica, já que ambas criam “as

mesmas condições econômicas” (p. 160). Uma senhora que perdera, há três anos, uma filha relata

que ainda não “teve coragem” de ir à casa do genro pegar as coisas da mesma. Fala que se olhar

para a foto dela chora, “se pensar nisso é uma dor que acho que não vou aguentar, vou ficar louca”.

A paciente, que se encontra em um estado depressivo, vem apresentando atualmente umas dores

fortes no peito, mas em seus exames não apareceu nenhuma alteração. Em seu próprio discurso,

alterna momentos em que fala da dor física e da dor da perda e emenda dizendo: “é uma dor que

nunca acaba, acho que vou morrer com essa dor”. Outra questão que essa paciente apresentou à

analista foi a sua dificuldade de aceitar que seu ex-genro já arrumou uma nova companheira, tendo

se casado novamente. Indignada, ela pergunta: “como é que ele consegue botar outra mulher nas

coisas dela, usando tudo que era dela?” uma pergunta que talvez possa assim ressoar: como o ex-

genro foi capaz de substituir integralmente sua filha?

A indagação da paciente nos remete às dificuldades, aos impasses e limites aos quais o

trabalho de luto encontra-se submetido, talvez de forma radical na velhice. Todo sujeito é único, e a

magnitude das perdas só pode ser dimensionada a cada vez. Nem sempre ao final do luto o sujeito

será capaz de substituir o objeto perdido ou mesmo de vincular-se a outros objetos.

Freud nos aponta essa dimensão ao dar indícios da dor que sofrera com a perda de um neto

muito querido que morrera aos quatro anos e meio na mesma época em que ele próprio sofria com

as agruras de seu câncer. Teria confidenciado a Ernest Jones, referindo-se à morte do neto, que

“sentiu o golpe de maneira quase insuportável, muito mais do que o seu próprio câncer” (Jones,

1979, p. 652). Freud conta que esta perda o havia afetado de uma maneira diferente de todas as

outras, nas palavras de Jones: “as outras causaram apenas sofrimento, mas esta havia feito sucumbir

alguma coisa dentro dele e para sempre” (Jones, 1979, p. 652). Anos mais tarde, teria ainda dito a

Marie Bonaparte que “nunca mais tivera a capacidade de apegar-se a quem quer que fosse e que

79
meramente retinha as suas antigas vinculações” (Jones, 1979, p. 653). Poderíamos supor que por

essa via Freud transmite algo da complexidade do luto na velhice?

Torna-se importante salientar que na velhice a capacidade de substituição encontra algo do

limite, já que o isolamento predomina sobre a criação de novos laços e a dor prevalece. Neste

contexto, lutos difíceis podem se interpor advindo maiores perturbações na realização do trabalho

de luto (Castilho & Bastos, 2013). Além disso, essa clínica escancara o caráter inexorável e

doloroso da perda. Como lidar com a perda de um filho, de um companheiro de toda vida? Haveria

substituição possível aí? Ou frente ao limite da capacidade de substituição poder-se-ia apostar em

alguma singular invenção (Lacan, 2007), sob transferência?

F. foi encaminhada para a psicologia por estar muito triste devido à morte recente de seu

marido com quem era casada há mais de cinquenta anos. Refere estar muito ansiosa, triste e sem

vontade de “fazer nada”. Escuta-se uma perda de interesse pelas atividades e pelo mundo externo,

que podem ser explicados pelo trabalho de luto no qual o Eu está absorvido. Este trabalho não é

simples, pois “é notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem

mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena” (Freud, 1996f, p. 250). F. associa uma

queda por ela sofrida a duas outras perdas significativas que teve: a do filho (há muitos anos atrás) e

a da irmã (há um ano). A fala de F. nos aponta que a perda do marido atualizou as perdas do filho e

da irmã, ou seja, uma perda importante atualizou outras perdas. Relançando para o sujeito algo da

perda como estrutural, e não apenas contingente, e convocando-o ao trabalho de luto.

Com o percurso dos atendimentos F. formula que com a morte do marido, havia perdido

também um lugar, e diz: “eu era como um escudo para ele”. Castilho e Bastos (2015) apontam que

Lacan, no seminário A Angústia, “encaminha a especificidade do luto como trabalho, procurando

demarcar sua função com relação ao campo do Outro” (p. 5). Em uma frase, equivalente àquela

formulada acima por essa senhora enlutada, Lacan (2005) aborda a questão afirmando que “[...] só

nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta” (p. 156).

80
Cabe ao analista acolher e sustentar o singular percurso, a ser feito no trabalho de luto,

acompanhando, a cada vez, o que destas perdas é reordenável a partir da entrada da escuta, o que é

permeável num trabalho pela fala. F. marca a importância de estar falando e sendo escutada:

“Quando eu cheguei aqui era como se eu estivesse num poço bem fundo, cheio de água sem saber

nadar. Agora não, eu estou me sentindo bem melhor e podendo me abrir para fazer coisas que eu

nem imaginava que iria fazer na vida”. É preciso, portanto, salientar que cada luto, quando

perdemos alguém que amamos, comporta algo de insubstituível, mesmo que, ao final do trabalho de

luto, possa tornar-se possível alguma substituição ou mesmo, nesse ponto onde a substituição

encontra algo do limite, possa advir uma “invenção” (Lacan, 2007).

Considerações finais

A experiência clínica e institucional em um ambulatório permite acompanhar ocasiões em

que a forte prevalência da técnica, em nossa época, contribui para diluir responsabilidades, ao

prescrever procedimentos e protocolos. Nesse contexto, a permanente construção do trabalho da

área de psicologia articulada à equipe de saúde ganha expressão na práxis dos residentes de

psicologia que vêm sustentando, a partir da psicanálise, a pergunta pelo sujeito nos diferentes

cenários de ação do Núcleo de Atenção ao Idoso.

A referência às contribuições de Freud e Lacan na interlocução com os pares da equipe

multiprofissional e interdisciplinar tem tornado possível distinguir a perda, em sua dimensão

estrutural, de perdas contingentes que ocorrem ao longo da vida, o que aponta ao trabalho de luto,

como necessário.

A escuta psicanalítica permite introduzir, a cada vez, a complexidade em jogo em algumas

queixas de dores, bem como de quedas recorrentes. Há ainda queixas de “problemas de memória”

que abarcam lembranças, esquecimentos, vivências complexas e diversas que relançam a pergunta

acerca do funcionamento da estrutura de linguagem e não apenas a pergunta pelas consequências do

envelhecimento cerebral. A partir da escuta de “idosos” no NAI procuramos demarcar a

fundamental distinção entre Depressão e estados depressivos compatíveis, por vezes, com um
81
primeiro tempo do trabalho de luto – frente à perda de alguém amado – tão recorrente no início da

análise de um “idoso”.

Não são raras as ocasiões em que os pedidos de parecer dirigidos à área de psicologia

incluem – como efeito da interlocução com a equipe multiprofissional e interdisciplinar – a

expressão “luto não elaborado” no lugar do diagnóstico de Depressão. Esse deslocamento viabiliza

certa escansão entre a queixa de tristeza e a entrada de um protocolo medicamentoso avalizado pelo

DSM-5, decorridas apenas duas semanas de uma perda significativa. Tal escansão mostra-se

relevante na práxis com “idosos”, pois introduz, com frequência, o intervalo de tempo necessário

para que o trabalho de luto possa chegar a ter direção.

Notas

1.Vale conferir o artigo do Prof. Ademir Pacelli disponível no link:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-

98932001000200002&lng=pt&tlng=pt

2. Para a realização do presente artigo, em coautoria, foram convidadas algumas ex-residentes que

se interessaram em abordar pontos de sua própria trajetória, como residentes do segundo ano da

Residência, no NAI.

3. Esses dados podem ser obtidos no site https://censo2010.ibge.gov.br/sobre-censo.html

4. Ao longo do texto utilizaremos aspas no significante “idoso” como indicativas da dissimetria

entre o idoso como categoria construída (Groisman, 1999) e o sujeito dividido da práxis

psicanalítica.

5. Ao longo do texto utilizaremos o termo Depressão, no singular e com maiúscula para situar a

entidade nosológica circunscrita pelo discurso científico. Em outra direção e para situar questões

próprias à psicanálise, utilizaremos estados depressivos (Freud, 1926), com letras minúsculas e no

plural, para assinalar a inconsistência da doença e a referência, a cada vez, à singularidade. Vale

lembrar que para Freud a pergunta acerca da distinção entre luto e melancolia remete à

82
singularidade de um estado depressivo, que pode apresentar-se tanto na neurose como na psicose.

Sobre essa discussão em Freud, conferir Quinet (1999a).

6. No NAI a práxis da área de psicologia orienta-se por uma pergunta acerca da incidência e

sustentação do discurso analítico, em um ambulatório de geriatria público e universitário. O

presente capítulo refere-se à experiência da Residência em Psicologia Clínica Institucional do IP no

ambulatório NAI e utilizaremos, ao longo do texto, os termos área de psicologia, psicólogo e

psicanalista considerando sempre esta referência à práxis da psicanálise.

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87
A passagem pelo NESA e os ritos de passagem

Sonia Alberti (Relatora). Selma Correia da Silva, Adriana Dias de Assumpção Bastos, Aline
Martins, Aline Souza, Bruna Americano, Camila Cardozo Melo Sales, Claudia Politano, Daniela
Barros da Silveira, Heloene Ferreira da Silva e Luiza de Sá Quirino Câmara

Resumo: Com a colaboração de alguns ex-residentes que passaram pelo NESA, assim como da

atual Coordenadora do Setor de Psicanálise e Saúde Mental do NESA, a Relatora construiu um

texto com muitos depoimentos. Dentre eles, alguns relatos de casos tanto do ambulatório quanto da

enfermaria, e tratando-se de uma clínica com adolescentes, testemunhando de uma pluralidade de

questões, frequentemente contemporâneas, exigindo rigorosa ancoragem teórica e ética, para o que

nos situamos na psicanálise.

Palavras-chave: adolescência, psicanálise, clínica, equipe.

Abstract: With the collaboration of a number of former residents who have passed through the

NESA, as well as the current NESA Coordinator of the Psychoanalysis and Mental Health Sector,

the Rapporteur has constructed a text with many testimonies. Among them, there are some reports

of cases from both the outpatient clinic and the infirmary, and since it is a clinic with adolescents,

testifying of a plurality of questions, often contemporary, demanding a rigorous theoretical and

ethical anchorage, to which we place ourselves in psychoanalysis.

Keywords: adolescence, psychoanalysis, clinic, team.

Resumen: Con la colaboración de algunos ex-residentes que pasaron por el NESA, así como de la

actual Coordinadora del Sector de Psicoanálisis y Salud Mental del NESA, la Relatora construyó un

texto con muchos testimonios. Entre ellos, algunos relatos de casos tanto del ambulatorio quanto de

la enfermería, y tratándose de una clínica con adolescentes, testimoniando de una pluralidad de

cuestiones, frecuentemente contemporáneas, exigiendo riguroso anclaje teórico y ético, para lo que

nos situamos en el psicoanálisis.

Palabras-clave: adolescencia, psicoanálisis, clínica, equipo.

Para começar, um depoimento


88
Para além da lembrança do contexto prévio que mapeou a minha escolha em fazer a

Residência, rapidamente, quase como em um processo de associação livre, uma série de fatos e

momentos marcantes passam pela minha cabeça quando relembro aquele período de minha vida. De

início posso destacar uma frase de Sonia Alberti em nosso primeiro encontro de supervisão, assim

que eu e minhas colegas de residência chegamos no Ambulatório do NESA cheias de vontade de

atender. Constatada a carência de salas disponíveis para começarmos a agendar o atendimento de

inúmeros pacientes que estavam na fila de espera aguardando para serem chamados, lembro de suas

palavras: “vocês podem atender no banquinho que tem lá perto do estacionamento!” A nossa

primeira reação foi de indignação: “como assim, atender no banquinho do estacionamento?!”, “e o

setting terapêutico, como fica?!”, “agora que somos formadas, gostaríamos de ter uma sala para

atender os pacientes!” Demorou algum tempo, mas em seguida ficou clara a mensagem que ela

estava querendo nos transmitir: o que estava em jogo e o que realmente era determinante para o

início de nosso trabalho clínico não era propriamente o espaço físico, mas o nosso desejo e a nossa

escuta. Driblando alguns imprevistos e dificuldades reais em relação ao espaço físico, aos poucos, o

setting terapêutico acontecia onde estivéssemos e as salas de atendimento foram se articulando. Lá

onde oferecemos nossa escuta, onde convocamos o sujeito a falar, ali mesmo é onde criamos a

demanda de um trabalho que o próprio adolescente, seu familiar, o membro da equipe

multidisciplinar pode fazer. Frequentando as reuniões dos médicos, trocando informações com a

equipe de saúde e circulando pelos corredores da Enfermaria, discutindo casos no Ambulatório, a

solicitação de pareceres e a demanda por acompanhamento do setor de Psicologia foi se

constituindo e, conforme havíamos debatido, nossa função era atender somente as demandas que

fossem de tratamento o que, por si só implicava também transformar toda e qualquer demanda em

demanda de tratamento.

Inúmeras foram as situações em que testemunhei o reconhecimento do nosso trabalho.

Lembro de uma paciente que internava e reinternava na Enfermaria do NESA em função de uma

ferida que não cicatrizava em seu braço. Por se tratar de uma dermatite factícia, ou seja, uma ferida

89
provocada pela própria pessoa, o trabalho do Setor de Psicanálise e Saúde Mental do NESA foi

determinante no seu tratamento. Discussões clínicas semanais ocorriam sobre a importância do

nosso trabalho e de uma possível interlocução entre medicina e psicanálise. “A ferida em aberto: De

que corpo se trata?” foi tema de um dos trabalhos científicos apresentados no Congresso anual do

HUPE/UERJ e realizado conjuntamente com a equipe médica que acompanhava o caso.

A importância da prática psicanalítica no espaço hospitalar pode ser ilustrada também

através de uma breve intervenção na qual, após o recebimento de um diagnóstico muito grave, um

jovem paciente se dirigiu para as proximidades da varanda aberta da Enfermaria do NESA, que se

localiza no 3o andar do hospital, com o risco de cometer um ato contra a sua própria vida. Em

questão de segundos, a equipe de enfermagem, que estava totalmente mobilizada com o caso, se

preocupou e prontamente solicitou a minha presença para, acolhendo a dor psíquica do paciente,

contornar a situação e evitar as graves consequências de um possível ato de desespero.

Outra intervenção ilustra os efeitos que podem advir da nossa escuta, muitas vezes simples e

pontual. Um médico residente, dando orientações para um paciente que estava restrito ao leito na

Enfermaria do NESA, disse: “você precisa mudar de posição na cama porque senão você ficará

cheio de escaras!!!” Eu estava junto ao paciente nesse momento e pensei: “será que esse

adolescente sabe o que são escaras?!!” Me dirigi a ele e lhe fiz essa pergunta, incluindo-o

subjetivamente na conversa e favorecendo um diálogo entre ele e seu médico. Esse cuidado com o

outro e com sua singularidade permeavam todos os atendimentos clínicos na Enfermaria e no

Ambulatório do NESA. Construir um trabalho de escuta psicanalítica muitas vezes em semanas ou

apenas dias, favorecendo algum tipo de elaboração psíquica por parte do paciente, seu familiar ou

mesmo da equipe multidisciplinar, não era tarefa fácil, porém grandiosa e frutífera (depoimento de

uma ex-residente).

O Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente e a Residência em Psicologia Clínica

Institucional

90
Em 2008 publicamos uma pequena história desse ambicioso projeto original que é hoje o

Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA), Unidade Docente-Assistencial (UDA) da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) responsável pela atenção integral à saúde do

adolescente, nos três níveis de atenção: primário, secundário e terciário. Desde o início “a idéia

incluía a presença da Psicologia e é interessante notar que foram necessários anos de trabalho para

que a aposta num intercâmbio entre Medicina e Psicologia apresentasse seus primeiros frutos”

(Alberti, 2008, p. 143). Em sua trajetória de quarenta e quatro anos, o NESA tornou-se um centro de

referência nacional e internacional, constituído por equipe multidisciplinar que desenvolve

atividades de assistência, ensino, pesquisa, extensão e consultoria, com metodologia interdisciplinar

de trabalho, função que permite maior aproximação dos discursos em termos de poder, fato gerador

de condutas integradas. Remetemos o leitor àquele artigo para uma melhor compreensão da relação

da psicologia com o NESA ao longo de seus muitos anos, não sem chamar a atenção para o fato,

nele observado, da coincidência da data da efetivação do NESA como uma unidade autônoma – ou

seja, de Unidade Clínica de Adolescentes que era originalmente, à independência do Núcleo de

Estudos da Saúde do Adolescente – e a aprovação pelo Conselho Universitário, do Curso de

Residência em Psicologia Clínica Institucional.

Desde o início do Curso de Residência em Psicologia Clínica Institucional da UERJ, a área

de adolescentes o integra com a preceptoria da professora Sonia Alberti, uma das fundadoras do

Curso, e se é na Enfermaria do NESA que o residente pode acompanhar diariamente o trabalho

multidisciplinar, no Ambulatório do NESA se depara com as mais diferentes questões que uma

clínica com adolescentes oferece à formação. Desde o início, a orientação do Setor de Psicanálise e

Saúde Mental do NESA – originalmente coordenado pela professora Sonia Alberti e atualmente

pela psicóloga e Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise, Selma Correia da Silva – é de

orientação freudiana e lacaniana. A partir dela, salientamos a importância da teoria psicanalítica da

formação do sujeito, sua necessária definição como aquele que fala, sua imprescindível interseção

com o Outro, a articulação com os quatro discursos, o interesse pelos conceitos fundamentais da

91
psicanálise e todo aprofundamento da teoria da clínica estrutural que inclui o diagnóstico a partir da

transferência e, last but not least, as diferentes manifestações do sintoma como presentificação

subjetiva e da angústia como afeto diante do impossível. Para além de toda essa fundamentação

teórica, o trabalho da Residência no NESA está referido à interseção do campo da psicanálise com o

da saúde mental que baliza as possíveis respostas que nos cabe dar à miríade de demandas que nos

são dirigidas no hospital. Buscamos um diálogo com as outras especialidades pois, não raro, as

histórias clínicas promovem comoção na equipe. Além disso, é fundamental assegurar o sigilo

necessário para a continuidade do caso e fazer valer o discurso da psicanálise numa equipe

multidisciplinar. A psicanálise caminha na contramão à posição dos bens, pois, só em sua

articulação significante, o sujeito emerge como efeito para dizer sobre seu “bem maior”: o seu

desejo. Difícil tarefa para o analista – sustentar, na clínica do cuidar, a ética da psicanálise, tão

diferenciada das demais. Evidenciamos que os profissionais que no hospital fazem falar já foram

convocados, de alguma maneira, à ordem da compaixão. Se o psicanalista não a desconhece, nem

mesmo é isento totalmente dela, a ética da psicanálise, por sua vez, enquanto ética do desejo, dela

se distingue (Silva, 2001). É essa ética que é apresentada a todos os residentes em psicologia que

passam pelo NESA. A grande maioria nela busca inscrever-se.

O ambulatório: “espaço privilegiado de atuação do psicanalista” (Figueiredo, 1997/2000)

O livro de Ana Cristina Figueiredo (1997/2000), resultado de uma pesquisa de doutorado,

foi o primeiro a especificar o trabalho do psicanalista no ambulatório público, publicado numa

época em que se colhiam os primeiros frutos dessa prática que então completava uma ou no

máximo duas décadas em alguns poucos serviços. O histórico que a autora constrói, as entrevistas

que realiza para sua pesquisa – inclusive conosco, como se pode verificar na nota de pé de página

em que cita as unidades enfocadas (Figueiredo, 1997/2000, p. 38) –, retomam as dúvidas que então

existiam por parte de vários psicanalistas formados sobre a possibilidade de se fazer psicanálise nos

hospitais e nas instituições de saúde de forma geral, ao mesmo tempo em que respondem que sim,

há psicanálise nas instituições, não sem confusões e imperfeições. Por exemplo a observação da

92
página 113, na qual se lê que, na contramão da indignação de uma entrevistada que julgava

impossível um atendimento com divã em ambulatório, uma outra “conta como em seu serviço, um

hospital universitário” – na realidade o NESA – “conseguiu, após um bom e paciente empenho,

colocar um divã em sua sala onde atende há cerca de dez anos” (idem, p. 113). O Ambulatório do

NESA situa-se no Pavilhão Floriano Stoffel do HUPE, onde os residentes atendem, de preferência,

em pequenas salas. Figueiredo (1997/2000), ao colocar na berlinda o lugar da psicanálise no espaço

público de ambulatório, no qual nos deparamos com as misérias de cada um e, sobretudo,

frequentemente em “situações-limite” (p. 94), aponta que a tarefa do analista consiste, mais do que

nunca, em franquear ao sujeito a possibilidade de tematizar, ressignificar e elaborar sua desgraça

cotidiana, tomando uma outra posição em sua história, responsabilizando-se pela sua posição de

sujeito desejante, mesmo se isso é sempre de alguma forma uma tarefa impossível – como já

observava Freud (1937/1980, p. 282). Mas há mais um impossível na clínica com adolescentes pois

suas travessias – como Freud as definia (1905/2005a) – implicam o encontro com o impossível da

própria relação sexual (Lacan, 1972-73/1985).

A enorme gama de questões que a clínica traz para o exercício da psicanálise tem, sem

dúvida, o ambulatório como fonte inesgotável. Mais especialmente, o ambulatório voltado para a

clínica com adolescentes que, por sua própria posição na sociedade e na história, introduzem e

presentificam conflitos os mais atuais. Dentre eles as questões que atualmente surgem no campo da

sexualidade, porque cabe justamente ao adolescente situar-se nesse campo cada vez mais complexo

e fluido, para não retormarmos o conceito de líquido, que o sociólogo polonês radicado na

Inglaterra Zygmunt Bauman utilizou para tentar especificar os problemas que a sociedade de

consumo introduz no cotidiano quando as hierarquias se dissolvem e os indivíduos passam de

produtores a consumidores de uma cultura de grupos, de guetos (Bauman, 2013). Foi nesse contexto

que se iniciou o acompanhamento de Gabriela, adolescente transexual.

A relevância da Enfermaria do NESA para a formação de residentes em psicologia

93
Destacamos, neste Núcleo, a atenção terciária, a Enfermaria Aloysio Amâncio da Silva

(EAAS) como espaço importante para o treinamento e formação de alunos tanto de graduação

quanto de pós-graduação. Ela dispõe de dezesseis leitos, oito para o sexo feminino e oito para o

masculino. É pioneira na internação de adolescentes, na faixa etária entre doze e dezoito anos de

idade, com quadros orgânicos agudos e/ou crônicos e também cirúrgicos, que necessitam de

investigação diagnóstica e tratamento especializado quando, muitas vezes, também sustenta uma

interlocução com outros serviços do HUPE que ali tratam os adolescentes cujos quadros clínicos

exigem cuidados ainda mais especializados.

Recebe cerca de quinhentos e cinquenta internações por ano, com tempo médio de oito dias

de permanência e, conforme o banco de dados criado em 1990, as causas mais frequentes para

internação são: doenças inflamatórias, hematolinfopoiéticas, infecciosas, urinárias e digestivas,

sendo o Lúpus Eritematoso Sistêmico (LES) o quadro de maior prevalência, em decorrência de suas

complicações. Independentemente do quadro clínico, o perfil dos adolescentes internados é de

vulnerabilidade em suas diferentes dimensões: orgânica, social, econômica, nutricional e

psicológica, constituindo um grande desafio, demandando a realização de pesquisas que possam

embasar a criação de políticas públicas específicas para a faixa etária.

Em 19 de fevereiro de 2013, o Ministério da Saúde criou a Portaria de nº 252, que instituiu a

Rede de Atenção à Saúde da Pessoa com Doenças Crônicas, no Sistema Único de Saúde/SUS. Nos

dias 18 e 19 de setembro do mesmo ano, o NESA foi convidado, por sua larga experiência e

importância, a participar do “Fórum de Ambulatórios: Adolescente com Doença Crônica”, em

Brasília, que particularizava a formação no nível terciário do NESA com o objetivo de treinar

profissionais de todo o país a exercer suas atividades nesta linha de cuidado prioritário. O Setor de

Psicanálise e Saúde Mental do NESA estava ali, representado pela psicóloga Selma Correia da

Silva.

As atividades clínicas dos Residentes em Psicologia na Enfermaria do NESA possibilitam

uma especialização diferenciada e única, direcionada à Atenção Integral ao Adolescente com

94
Doença Crônica, linha de cuidado que exige ações voltadas para a prevenção de agravos,

diagnósticos, tratamento, reabilitação e redução de danos, entre outros, em articulação com o SUS,

fato que permite ao residente em psicologia ter uma visão ampliada da universidade com a rede

pública de saúde do País.

Das atividades da Enfermaria

São diversas as atividades no cotidiano da Enfermaria, nas quais os alunos de psicologia

estão inseridos. Os Residentes, que têm a sua prática supervisionada pela teoria psicanalítica,

interagem com médicos, enfermeiros, assistentes sociais, nutricionistas e fisioterapeutas num

diálogo constante. Algumas atividades são da particularidade do trabalho do psicólogo e outras são

do psicólogo participante de uma equipe, o que facilita o entendimento e a importância da sua

atuação no nível terciário de atenção. Daí a inclusão do aluno em todas as atividades, a saber:

1. Atendimento individual. O atendimento psicológico é ofertado a todo adolescente internado,

fazendo parte da própria rotina diária da Enfermaria. O residente é capacitado a atender no leito,

configurando a intervenção na hospitalização. Distingue a resistência psicológica da

impossibilidade como consequência, por exemplo, de um estado álgico agudo, quando as palavras

poderão faltar. Dá também suporte psicológico ao paciente que é transferido para a Unidade de

Tratamento Intensivo/UTI Pediátrica.

2. Atendimento ao acompanhante. Todo acompanhante tem acolhimento através da escuta do

residente responsável pelo leito que, constantemente, é convocado pela equipe multidisciplinar a

falar sobre as figuras de referência na internação do paciente. O Estatuto da Criança e do

Adolescente garante este direito fundamental de o menor de idade ter acompanhante, desde 1990.

3. Supervisão clínica. Realizada duas vezes por semana e, quando necessário, logo após algum

pronto atendimento. O residente tem ciência, de imediato, de como atuar com o paciente, o

acompanhante e a equipe, sabendo da complexidade dos casos relacionada à doença e à

vulnerabilidade que os acompanha. É esclarecido sobre a internação que não é de saúde mental e

sim de clínica médica e/ou cirúrgica. Nisso consiste a particularidade do treinamento do psicólogo

95
nesta Enfermaria: escutar “o indizível” do sofrimento como consequência da doença orgânica e

intervir nesta clínica com adolescentes, permitindo a eles expressar sintomas psicológicos durante a

hospitalização.

4. Estudo de textos sobre psicanálise e medicina. Consiste na apresentação semanal, por um dos

residentes, de textos relacionados à prática psicanalítica no hospital, correlacionando a leitura com

os casos clínicos atendidos na Enfermaria e os questionamentos que os mesmos provocam.

Podemos citar como exemplo o texto do psicanalista belga Pierre Malengreau (1995) “Para uma

clínica dos cuidados paliativos”, em que o autor discute a diferença da ética humanista de algumas

profissões, diante da ética da psicanálise aberta ao humano. O estudo dirigido contribui para a

confecção de trabalhos científicos, como o Fórum da Residência do IP, o Congresso Científico do

HUPE, as monografias de final do curso etc.

5. Visita médica. Atividade diária coordenada por um médico staff, permitindo ao residente de

psicologia maior interlocução com o discurso da medicina, seja no aprendizado sobre as doenças, o

significado de termos técnicos, procedimentos realizados, terapêuticas a serem instituídas,

possibilidades de alta etc. Pode ser convocado a falar, dando o seu parecer sobre casos que

demandam a continuidade de atendimento psicológico, pós-alta, no tradicional Ambulatório de

Altas da Enfermaria, às quartas-feiras de manhã.

6. Reunião com acompanhantes. Nesta atividade semanal, os residentes de psicologia participam

como colaboradores, pois é uma reunião coordenada pelo Serviço Social da Enfermaria, parceiro

fundamental dos psicólogos da atenção terciária. O espaço permite que os responsáveis pelos

pacientes verbalizem suas queixas pertinentes ao período de internação, a partir de um tema já

previamente trazido pelos profissionais, como os direitos do adolescente e/ou familiares. Os

residentes revezam sua participação, contribuindo nas demandas que poderão advir para a

psicologia.

7. Visitas domiciliares e institucionais. São instrumentos fundamentais preconizados pela

metodologia interdisciplinar que aproximam a rede pública do território com os diferentes

96
profissionais envolvidos com o atendimento do adolescente. Dentre as visitas institucionais, citamos

a escola, o Conselho Tutelar, a Clínica da Família, a Defensoria Pública e o Ministério Público. A

inclusão dependerá da avaliação, em supervisão, da demanda do caso. Será importante o residente

conhecer, quando necessário, as instituições das quais o adolescente participa ou tem contato,

visando a sua contribuição para o bom prognóstico do paciente.

8. A psicanálise na “Reunião das segundas-feiras”. Dentre as atividades estruturadas na Enfermaria

do NESA, uma delas merece atenção especial, permitindo a transmissão da psicanálise à equipe

técnica e treinando os residentes de Psicologia a dialogarem com outros discursos: a reunião

multidisciplinar.

Legitimada pelo NESA desde os seus primórdios, esta reunião tem seu espaço na Enfermaria

de Adolescentes todas as segundas-feiras, no horário das 11:00 às 12:00h, sendo coordenada,

semanalmente, por um diferente representante de cada Setor. Segundo Messias (1999) – Professor

José Augusto Messias, atual Diretor do NESA e um de seus médicos fundadores –, essa reunião

tomou como modelo os grupos Balint, cuja formação se deu, à época, na Quarta Clínica Médica da

UERJ. Na origem, os grupos Balint discutiam a relação médico/paciente-adolescente com a

participação de médicos (staffs, residentes e internos) e duas psicólogas. A expansão desses grupos

deveu-se à difusão das ideias sobre multidisciplinaridade, difundidas nos anos 1970 e assimiladas

pelos interessados na abordagem de atenção integral ao adolescente. A reunião multidisciplinar foi

ganhando corpo ao longo dos anos, até constituir-se em atividade fundamental para o bom

funcionamento da Enfermaria; sua origem foi anterior à própria fundação do Serviço, possibilitando

mesmo os seus primeiros alicerces.

Desde 1991, a psicanálise, através de seus representantes, tem sua participação efetiva na

reunião, muito embora enfrente algumas resistências na transmissão de seu discurso. Essas

resistências têm longa data: o próprio Freud já teve de lidar com elas em seu tempo e no decorrer da

história do movimento psicanalítico, levando-o inclusive a levantar questões sobre a dificuldade de

médicos sustentarem o discurso da psicanálise (Freud, 1927/2009) propondo, em consequência, a

97
necessidade ética de a psicanálise ser um campo leigo em relação à medicina. Ao longo dos anos,

porém, essas resistências diminuíram no NESA, devido à construção e à continuidade do trabalho.

A clínica que exemplificaremos, talvez permita verificá-lo.

Depoimentos de ex-residentes do NESA sobre o trabalho na Enfermaria

Uma ex-residente em Psicologia relata que a primeira vez em que entrou na Enfermaria do

NESA, ouviu gritos que a assustaram. Vinham de um menino de doze anos que, de tanta dor que

sentia nas pernas, precisava mantê-las, praticamente o dia todo, dentro de um balde com água. Na

época a graduanda de psicologia buscava um estágio e, no final da entrevista com Selma Correia da

Silva, pensou em desistir, mas, em um ato impensado, disse “sim” à pergunta que a supervisora lhe

fez sobre se persistia no interesse de ali estagiar. “Comecei então minha história com o NESA, e lá

descobri que trabalhar com psicanálise em hospital exigia o tripé formado pelo estudo teórico, a

supervisão e a análise pessoal para não recuar”. Dois anos depois já era residente, retornando aos

atendimentos dos adolescentes e seus acompanhantes, seguindo a técnica da psicanálise. Observa

que quando chegou no NESA, a psicanálise já tinha um espaço conquistado e um trabalho

reconhecido, o que facilitava a inserção junto à equipe de saúde e a participação nas reuniões

semanais da equipe multidisciplinar da Enfermaria “nas quais sempre podíamos contribuir com a

discussão de cada caso”.

Como os adolescentes poderiam se proteger de procedimentos invasivos ou de cirurgias de

alto risco ou do horror de se ver furado várias vezes em tentativas de colocação de um acesso

venoso que podem malograr? No hospital, o excesso de estímulos e as normalmente necessárias

intervenções médicas, contrariam o princípio do prazer que visa manter as excitações o mais baixo e

homeostático possível (Freud, (1926/1996b, p. 132). O horror, a angústia, situações das quais não é

possível fugir, tornam o real uma presença constante no contexto hospitalar, e sua mais evidente

presença se dá com a da morte, derradeira castração da qual não é possível escapar.

Em seu depoimento, a ex-residente diz que retomar a experiência de ter sido residente de

psicologia do HUPE/UERJ, mais especificamente do NESA em um escrito, é retomar um

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importante momento de sua formação profissional em que a prática clínica sustentada pela

supervisão – refere-se às contribuições fundamentais de ambas as supervisoras, Sonia Alberti e

Selma Correa da Silva –, “permitiu que pudéssemos aprender a orientar um trabalho analítico,

mesmo diante de situações em que o real do corpo e mesmo da morte atravessam a vida”. A morte

aqui, não é apenas a de alguns dos adolescentes que chegam gravemente doentes, também pode ser

a de um ente querido, de um filho, de maneira que se é convocado a ouvir a dor de uma mãe ou de

um pai. O acontecimento do real, da angústia que é sua marca, que deixa o sujeito “sem palavras”,

faz com que o sujeito precise fazer um trabalho psíquico, um trabalho simbólico, introduzindo

significantes no real da experiência para que alguma elaboração possa ser feita que permita ao

sujeito ligar-se à vida. Se por um lado, em um hospital geral podemos atender casos cuja

determinação inconsciente se demonstra de forma clara, por outro lado, há momentos em que o

residente de psicologia tem de lidar com a contingência: algo acontece, um acidente, uma doença

que se impõe ao sujeito, ou um tiro. Foi o caso de um adolescente que ficou tetraplégico ao reagir a

um assalto. Há uma presentificação do real no tiro pelo qual se é atravessado e nos efeitos da

doença no corpo apontando sua face real. Quando, no contexto do indizível, o médico pode dizer:

você está tetraplégico, ou você tem leucemia, isso facilita simbolizar. É com o fio dos significantes

que se dá a possibilidade de tecer uma teia em torno desse real indizível, fazendo com que algo

possa ser dito. Elaborar é ir amarrando o trauma com significantes.

Mas diante da proximidade do real, o sujeito pode “nada querer saber”. Ele pode também,

por exemplo, não seguir o tratamento proposto pelo médico. Casos assim, de pacientes que “não

aderem ao tratamento”, comumente são encaminhados pelos médicos aos residentes de psicologia,

oportunidade para uma interlocução entre psicanálise e medicina. Até porque, alguns médicos

imaginam a função do psicólogo no hospital como sendo a de usar argumentos para convencer o

paciente a seguir as recomendações médicas. Mas, como destaca Szpirko (2000), combater a não

adesão com argumentos seria desprezar a dimensão inconsciente. Não poucas vezes, quando algo

escapa ao saber médico, surge um pedido de ajuda ao Setor de Psicanálise e Saúde Mental. Como,

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por exemplo, no caso de Ana – nome fictício –, adolescente de dezesseis anos que chegou à

Enfermaria do NESA andando com muletas, devido a uma paralisia na perna. A mãe de Ana veio de

outra cidade em busca de tratamento para a filha. Ela já havia passado por vários hospitais e

acreditava que a adolescente tinha alguma doença rara. Na Enfermaria do NESA, após uma bateria

de exames, constatou-se que Ana não tinha nenhum problema orgânico, e ela passou a ser atendida

somente pela residente em psicologia, inicialmente na Enfermaria e, após a alta hospitalar, no

Ambulatório.

Cabe destacar que, quando os médicos não encontram nenhum motivo orgânico para os

sintomas de um paciente, isso algumas vezes os deixam irritados. Eles acham que o paciente esteve,

durante toda a internação, simulando, fingindo, e se sentem enganados. Se com Freud a psicanálise

pode mostrar que o sofrimento psíquico do paciente é verdadeiro, encontrar uma paralisia histérica

nos dias de hoje não deixa de surpreender. Até porque frequentemente se ouve dizer – e mesmo

entre psicanalistas – que isso já não mais existe. Se para uma residente em psicologia é

surpreendente, imagine-se a reação de um residente de medicina... Mas porque estamos no Serviço,

é possível nos servirmos da própria clínica para transmitir algo que não se aprende num curso de

medicina. No caso, o residente de medicina passou a querer saber mais, causado por aquele sintoma

que apontava um furo em seu saber ainda em construção. Os atendimentos em interconsulta – na

presença tanto da residente em psicologia quanto do de medicina – foram acontecendo na própria

Enfermaria do NESA, e um dia, a adolescente se levantou normalmente ao final de um atendimento

e saiu andando da sala.

O sintoma é metáfora da carne, “símbolo escrito na areia da carne e no véu de Maia” (Lacan,

1953/1998a, p.282). Tal como concebido por Freud, ele é uma formação do inconsciente cujo saber

se tece em significantes, em decorrência de o inconsciente ser estruturado como uma linguagem. Se

o sintoma é uma formação do inconsciente, seu deciframento só é possível a partir da fala. Letra

escrita na carne, o sintoma também presentifica um núcleo real, que “participa da linguagem através

da ambigüidade semântica de sua própria constituição” (idem).

100
Para o médico recém-formado tudo isso era absolutamente novo, a residente em psicologia,

apesar de ter apenas dois anos de formada, já havia feito uma pós-graduação em psicologia clínica e

começado uma formação analítica. Mesmo assim, deparar-se com alguém com paralisia histérica,

parecia algo que só pertencia ao texto freudiano. Novamente a supervisão sustentou o trabalho “e

muita vontade de ouvir”, relata. “Minha lembrança de hoje não me permite saber o que fez com que

a paciente andasse, se foi uma interpretação, um ato, realmente não sei dizer. Mas ela, como cada

um dos pacientes que tomamos em atendimento, nos ensina que é com nosso não saber – ainda que

não sem conhecimento teórico imprescindível para a prática analítica – que promovemos a

possibilidade de o sujeito saber algo de sua verdade”.

Ao sair da sala andando, essa moça ensinou o poder do tratamento analítico, que advém da

fala (Lacan, 1958/1998b). Para além disso, mostrou que quando trabalhamos interdisciplinarmente,

é a partir do caso clínico que podemos transmitir algo do saber da psicanálise. Trabalhar junto com

o residente em medicina permitiu uma abertura dele a esse outro discurso. O NESA promove essa

abertura, mas tal como no um a um dos casos clínicos, talvez essa transmissão também precise ser

feita no um a um, ainda que por uma residente que na época talvez só pudesse transmitir seu

entusiasmo pelo texto freudiano.

Outro caso da Enfermaria do NESA que marcou outra residente, foi o de uma adolescente de

quinze anos, com o diagnóstico de anorexia nervosa. Ela pesava como uma criança, assim era dito

na Enfermaria. A paciente não queria comer e houve muita dificuldade com a nutrição parenteral

(administração, por via endovenosa, de nutrientes e líquidos). Nos atendimentos, revelou que parou

de comer por conta de macumba. Havia uma intriga entre mulheres, que identificava a “galinhas”, o

que a levou a pensar que se comesse galinha seria envenenada. Tal pensamento foi contagiando

outros alimentos, ela foi parando de comer. Supunha que, envenenada, a mulher da macumba, toda

poderosa, poderia vir roubar algo de dentro dela. Sua anorexia a levou quase à morte, mas escutar

essa paciente permitiu identificar a conexão delirante como determinante, de modo que o

diagnóstico estrutural foi fundamental para a direção do tratamento.

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A clínica no Ambulatório do NESA

Para melhor exemplificar o trabalho que se realiza no Ambulatório do NESA, escolhemos

dois casos que puderam ser retomados seja nas monografias que os residentes escreveram ao final

do Curso, seja em pesquisas que depois continuaram, em nível de mestrado ou mesmo de

doutorado. O tratamento de ambos esses casos não terminou com o fim da residência de suas

psicólogas, que levaram seus pacientes para continuar o tratamento quando terminaram o Curso.

Nessas situações, a orientação dada na supervisão é que jamais o paciente deve ser cobrado para

além de um preço simbólico perfeitamente possível de ser pago por ele já que a proposta de dar

continuidade ao tratamento depois da partida do residente do hospital é a de efetivamente viabilizar

tal continuidade, além de permitir ao psicólogo que recém terminou sua residência, de poder

continuar seu aprendizado para além dos muros do hospital. Franqueia-se ao adolescente a escolha

de permanecer no NESA com outro psicólogo, ou seguir com o ex-residente a partir do vínculo

transferencial já estabelecido.

Sherlock e uma análise possível no Ambulatório

O depoimento dado por esta ex-residente ressalta que, “no que tomamos um paciente em

análise não podíamos simplesmente dizer que ao terminar a residência a transferência também

terminaria, não é assim que funciona”. Daí ela ter oferecido a possibilidade, para aqueles que assim

o desejassem, de darem continuidade a suas análises no consultório. Nem sempre os residentes têm

a disponibilidade de ofertá-lo. No caso, o ganho que esta psicóloga obteve foi, segundo sua

observação, o de ter tido “a primeira experiência de acompanhar um paciente da entrada à saída de

uma análise”. Consideramos que o analista orienta um trabalho no sentido do desejo, ou seja, dá

sustento às pulsões de vida (Freud, 1920/2010). Em um hospital geral, o trabalho do analista dá voz

ao sujeito, ajuda-o a dar algum sentido àquilo que é absolutamente sem sentido, promovendo, não

poucas vezes, inegáveis efeitos terapêuticos.

Gabriel se identificava com Sherlock Holmes e iniciou os atendimentos no NESA quando

estava com doze anos, cursando a quinta série. Sua mãe apresentava várias queixas sobre ele:

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dificuldade de aprendizagem, se deixava bater pelos colegas da escola, era incapaz de reagir, sendo

ao mesmo tempo muito agressivo em casa, principalmente com o pai. Tal como descrito na

monografia de fim do curso:

Sua mãe mostrava-se muito preocupada também por sua aparência de “maluco”, dizia que

Gabriel parecia um “bobalhão”. Segundo sua mãe o que conferia a Gabriel esta aparência de

maluco era, em primeiro lugar, e o que mais a incomodava, a “mania” de Gabriel ficar

falando ou brincando o tempo todo com alguém que não existia. Outras coisas aumentavam

essa “maluquice”, Gabriel fazia coisas tais como: lavar as mãos com muita frequência, era

“proibido” tocar o interruptor de luz pois este, segundo ele, é “sujo”. “Sujas” também eram

cortinas e janelas que ficavam interditadas ao toque. Contudo, estes atos foram revelados

pela mãe sem que esta lhes conferisse muita importância, faziam parte das “bobagens” do

filho (Bastos, 2000, p. 36).

Como Sherlock falava o tempo todo com alguém, como se estivesse ouvindo vozes, no

início foi difícil levantar uma hipótese diagnóstica para uma orientação da direção do tratamento.

Mas aos poucos surgiram as primeiras falas à então residente, ainda em tom de queixa, reclamava

de ser chamado de Da’Lua – personagem de uma telenovela da Rede Globo, que aparentava um

“retardamento” –, e de seu pai que “faz promessas que não cumpre”, como dizia.

A possibilidade de definição da hipótese de neurose obsessiva se deu com o estabelecimento

da transferência, momento em que a analista em formação passou a ser Watson. Ficamos sabendo

que esse era o nome de seu “amigo imaginário” com quem ele, Sherlock Holmes, empreendia

verdadeiras investigações. Em verdade, as respostas de Watson, como explicou, eram dadas por ele

próprio, Sherlock. Era esse diálogo imaginário que tinha dado a impressão de ele estar ouvindo

vozes. Os seus sintomas, como a impossibilidade de tocar o interruptor, o “joelho aberto” como ele

chamava sua incontinência noturna, entre outros, foram desaparecendo na medida em que Sherlock

desenrolava sua trama edípica.

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A saída da análise se deu quatro anos depois, seu interesse se voltou para um namoro, ele já

vinha fazendo várias “investigações” sobre as meninas em articulação com as questões sexuais que

se colocavam para ele. Aos dezesseis anos, a vinda à análise era intermitente, estudava bastante e

pensava em ser advogado. No último encontro, disse para a analista que havia se apaixonado. Pediu

seu cartão de visitas e queria que a analista garantisse que um dia, quando fosse mais velho, com

uns vinte e poucos anos, se precisasse, poderia ligar. O fim da análise de Sherlock foi, em verdade,

o fim de sua neurose infantil para que sua adolescência trouxesse consigo a possiblidade de sua

separação da autoridade dos pais que, como Freud já nos ensinara em 1905/2005a, é a tarefa mais

difícil da adolescência.

Gabriela e as novas sexualidades

Apesar de sua anatomia, Gabriela – nome fictício – dizia não se sentir um menino e, por

isso, querer um corpo de mulher. Disse que isso ocorria desde seus doze anos de idade, não se

reconhecia como Diego – nome fictício – e não usava roupas de menino. Se perguntava muito sobre

a ineficácia da quantidade e diversidade de consultas que tinha – na UDA de Urologia, no Instituto

Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE) e no Ambulatório de

Endocrinologia que acompanha adolescentes que se dizem transexuais –, consultas que, segundo

ela, nunca resolviam nada, não lhe davam uma resposta quanto à possibilidade de realizar a cirurgia

de redesignação sexual, nem introduziam hormônios em seu tratamento. Na realidade, Gabriela fora

muito bem informada nesses serviços de que toda intervenção no corpo só seria iniciada quando

tivesse dezoito anos.

Além de suas queixas, a adolescente trazia incontáveis relatos de seus encontros e,

principalmente, de seus desencontros amorosos. Eram muitos os rapazes com quem Gabriela se

encontrava. Havia também a presença de Amanda – nome fictício –, uma moça com quem mantinha

um relacionamento e o temor de que, como trans-mulher, pudesse engravidá-la. Apesar desses

relatos de um comportamento que poderia parecer incomum na vida de um adolescente, Gabriela

relutou em contar que fazia programas. Depois de tentar falar disso algumas vezes, relatou que

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começou a fazer “PG” (sic) com uma amiga durante o carnaval para ganhar dinheiro, pois queria

“curtir”, sair, e resolveu “juntar o útil ao agradável”. Mas em um desses relacionamentos Gabriela

contraiu o HPV e, ao ser informada disso e do tratamento a que teria que se submeter, ficou muito

assustada. Com o decorrer do tempo, achou bom ter se contaminado com o HPV, porque poderia ter

sido algo mais grave. Deixou de fazer sexo sem preservativo.

A adolescente mora com sua mãe, faxineira. Quando tinha cinco anos, seu pai vendeu a casa,

todos os móveis e foi morar com outra mulher. Isso levou Gabriela, a mãe e as irmãs a irem morar

de favor na casa de uma tia. Nunca se esqueceu do que o pai fez com elas e, por isso, o odeia. As

poucas vezes que o viu depois, não conseguiu olhá-lo. Gabriela raramente falava sobre sua família,

o tema a deixava muito triste e rapidamente tentava mudar de assunto.

Em uma dessas tentativas de fazer calar isso que a deixava tão triste, pode associar a miríade

de encontros sexuais com o vazio que sente, tentativas de preenchê-lo, e observou: “se tivesse

nascido mulher seria diferente”, não sentiria esse vazio. Julgava que as mulheres não sentem esse

vazio, não precisam preencher a falta, razão de querer sê-lo.

Uma das falas mais repetidas de Gabriela era sobre sua complexidade e sobre a dificuldade

do seu caso, a gama de especialistas que procurava tentando resolver seus problemas. Mas o fato de

ter podido começar a falar sobre tudo isso com a psicóloga residente, diante da qual não precisava

defender nada, permitiu com que aparecessem algumas dúvidas, o medo de estar passando pelo

processo de mudança de sexo e de se arrepender depois, inquietações sobre o fato de não saber

como será. Ao mesmo tempo, julgava que por ter chegado até ali, agora tinha que ir até o fim. Já

passara por muita coisa, fora a muitos médicos, a consultas demais.

Com a proximidade do aniversário de dezoito anos, foi adicionada a um grupo de mulheres

transexuais numa rede social e disse ter feito várias descobertas. Contou que no grupo descobriu

que tem direito a cirurgias plásticas que dependeriam de autorizações médicas para o que seriam

necessários alguns laudos. Mas por algum motivo que Gabriela não conseguia explicar, em suas

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consultas médicas sempre esquecia de perguntar sobre tudo. Assim como nas consultas com o

psiquiatra, nas quais sempre esquecia de pedir esses laudos.

Na realidade, a assunção da maioridade acirrou questões e mudou o rumo de algumas coisas.

O medo de que Amanda engravidasse passou a se apresentar como desejo de que a moça pudesse

conceber um filho seu – antes de qualquer cirurgia que tornaria isso impossível. Também começou

a poder falar do receio de que, após o início da administração de hormônios sexuais femininos, não

conseguisse mais gerar uma criança. Mesmo assim, mantinha-se na expectativa do que vinha

aguardando há tanto tempo, o momento de se tornar uma mulher, com um corpo lindo e cheio de

curvas. Uma semana antes de dar início ao tratamento hormonal, Gabriela marcou de se encontrar

com Amanda, que estava em seu período fértil, ao qual acabou faltando por ter adoecido. Assim,

começou sua terapia hormonal. No mês seguinte marcaram um novo encontro com o mesmo

propósito, no entanto, não houve ereção. Associou esse acontecimento aos hormônios que tinha

começado a ingerir. Diante do que, parou de tomá-los, não sem ainda buscar outra justificativa, a

falta de dinheiro para comprá-los com o que, no entanto, não mais se preocupava. Gabriela continua

os atendimentos com a ex-residente, o que permite com que sua divisão subjetiva possa continuar a

ser elaborada e, com o auxílio do trabalho em supervisão – que também continua –, lhe foi proposto

pensar na possibilidade de Diego e Gabriela co-existirem. Diego gostava muito de ir ao colégio e,

diferente de Gabriela, Diego não precisava investir somente em relações sexuais. A partir de

algumas colocações como essas, Gabriela está podendo se implicar mais em suas escolhas, se

questionando, inclusive, sobre seu futuro profissional.

O atendimento misto, na Enfermaria e no Ambulatório

Nathália – nome fictício – é uma adolescente de dezessete anos que chega ao Ambulatório do

NESA através de um pedido de encaminhamento feito pelo Instituto Nacional de Câncer – INCA,

onde é acompanhada anualmente após a retirada de um osteossarcoma operado quando tinha treze

anos. Retomamos esse caso aqui por se tratar de um exemplo do trabalho integrado que os

residentes em psicologia fazem no Ambulatório e na Enfermaria. O encaminhamento original foi

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para o Programa de Transtornos Alimentares do NESA, pois a equipe do INCA constatara uma

significativa perda de peso e de apetite nos últimos seis meses. No atendimento médico e

nutricional verificou-se que a paciente estava em grave desnutrição e com alterações na frequência

cardíaca e respiratória, o que levou à imediata internação na Enfermaria do NESA.

A mãe de Nathália contou que há mais ou menos seis meses sua filha decidiu iniciar uma dieta

para emagrecer que ela havia achado normal, porém agora estava muito magra e muito fraca. Havia

aproximadamente um mês que a mãe percebeu que Nathália começou a dormir muito, a ter

dificuldade para se concentrar na escola onde chegou a desmaiar algumas vezes. Não sabia explicar

muito bem os pormenores da rotina alimentar de Nathália, conseguiu apenas relatar que a filha se

recusava a comer e que havia descoberto há pouco tempo que ela estava induzindo vômitos após as

refeições e, sorrateiramente, jogando comida no lixo.

Para a equipe multidisciplinar do NESA a imagem de Nathália era impactante. Primeiro

porque, devido à operação do osteossarcoma, teve seu membro inferior esquerdo amputado e

andava com a ajuda de muletas. Segundo porque seus ossos estavam bem marcados por uma fina

camada de pele, de tão emagrecida que estava. Olheiras e olhos fundos expressavam cansaço e

davam a impressão de tristeza a qualquer um que a olhasse. Demonstrava-se muito irritada, dizendo

que não poderiam obrigá-la a comer e afirmando desejar emagrecer ainda mais.

Nathália contou que sua meta era ingerir apenas 250 kcal por dia e que havia uma voz em

sua cabeça que mandava fazer tudo isso e temia que se fosse obrigada a comer, seria punida, a voz

brigaria, a chamaria de gorda. Diante de tudo isso, a psiquiatria entrou no caso. Sem sabermos ainda

a que exatamente se referia quando designava a voz em sua cabeça, era necessário fazer um

diagnóstico estrutural. Não há psiquiatra na equipe do NESA e o fato de tal profissional ter sido

chamado de fora do cotidiano da equipe multidisciplinar da Enfermaria, comprometeu bastante o

diálogo e a troca de informações sobre o acompanhamento da paciente.

Para que saísse da zona de risco e de desnutrição, a equipe médica decidiu-se por uma

alimentação por sonda nasogástrica que foi vivida pela adolescente como uma extrema invasão de

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seu corpo. Chamaram a residente em psicologia que a acompanhava para que estivesse presente no

momento de ela receber a informação de que se faria tal procedimento o que acarretou numa recusa

de continuar os atendimentos com essa psicóloga a quem Nathália dizia responsabilizar pela

experiência vivida como uma violência.

Como dito, o residente em psiquiatria que a acompanhava, externo à equipe, acabou por

escutar as queixas de Nathália para com a psicóloga ao pé da letra, propondo à paciente uma

mudança de psicóloga. Nathália prontamente respondeu com um “não”. Não se tratava disso.

Nathália apenas sintomatizava sua insatisfação e desagrado, e isso era com esta psicóloga que,

podendo suportar a transferência, continuou indo visitar Nathália cotidianamente ao leito,

franqueando à adolescente falar, o que foi muito salutar. Para esta residente, o caso exemplificou

perfeitamente a diferença entre a clínica em psicanálise e a psiquiátrica, definida assim por Miller

(1981/1997): “No caso da psicanálise, trata-se de um impossível de suportar para o sujeito; no caso

da psiquiatria, trata-se do impossível de suportar para o corpo social” (p. 124).

Após a alta clínica da Enfermaria do NESA, Nathália retornou aos atendimentos no

Ambulatório, e cada vez mais levantávamos a possibilidade de Nathália ser histérica com um

quadro anoréxico, decorrente das dificuldades de o sujeito significar o vivido em função do câncer e

de seu tratamento. Certo dia, mais de seis meses após a alta, acompanhada por sua mãe, a

adolescente chegou com uma paralisia aguda que havia acometido repentinamente seus membros

superiores, impedindo-a de andar, já que necessitava de muletas devido à amputação. Falava de

pensamentos suicidas, tendo já havido duas tentativas: em uma delas, Nathália se jogara de uma

escada consideravelmente alta e, em outra, mais recente, lançara-se na frente de um ônibus em

movimento.

Ao final do atendimento, a psicóloga residente acionou imediatamente a clínica médica para

avaliá-la. Era preciso verificar se a paralisia tinha uma razão orgânica ou era uma conversão

histérica. O exame clínico foi realizado, confirmando a ausência de um motivo orgânico. A

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residente em psicologia decidiu, então, entrar em contato com a psiquiatria solicitando que a

atendessem imediatamente para poderem discutir a melhor intervenção na situação.

Em conjunto com as supervisoras, a residente em psicologia sustentou a necessidade de uma

internação imediata na Enfermaria do NESA, tendo em vista os relatos de recentes tentativas de

suicídio e agora uma conversão histérica, a paralisia, apelo ao Outro, no caso, o NESA. Mas essa

não foi a opinião da residente em psiquiatria, dizendo que, se a internássemos, iríamos “fazer o que

ela quer” e isso intensificaria os sintomas. Decidiu medicá-la imediatamente com um ansiolítico,

orientando-a a ir para casa e “conversar com seus braços, pedindo-lhes que melhorem logo”.

Passados poucos minutos da saída da adolescente do hospital, ela e sua mãe retornam à

Enfermaria demandando a presença da psicóloga, com a queixa de que agora todo o corpo de

Nathália estava paralisado. A equipe médica do NESA, familiarizada com o discurso da psicanálise,

pode então escutar os apontamentos da psicóloga e solicitaram a internação de Nathália.

Comunicada dessa decisão, a residente de psiquiatria, um pouco contrariada, retornou à Enfermaria

para ver a adolescente. Ao chegar, encontrou Nathália aos prantos, gritando que queria ir embora e

ameaçando se cortar com uma tesoura. Conteve-a, para evitar que se machucasse. Braços e a perna

foram amarrados ao leito. A psicóloga tentou se aproximar de Nathália que já parecia mais calma,

porém não querendo falar, pediu-lhe que fosse embora – reatualizando a situação transferencial

anterior.

No dia seguinte, Nathália já havia sido desamarrada e não apresentava mais nenhum sinal de

paralisia. Quando a residente em psicologia sentou-se a seu lado, Nathália lhe disse: “Obrigada, tá?

Eu precisava disso”. Após a discussão do caso com toda a equipe da Enfermaria do NESA, em

conjunto com a psiquiatra, decidiu-se dar a alta para Nathália, já que durante o dia a adolescente

permaneceu mais calma e não apresentou mais conversões.

A interlocução entre o discurso da psicanálise e o discurso da psiquiatria sofreu impasses

desde o início dos atendimentos de Nathália. Enquanto os psiquiatras inseridos no caso se

utilizaram de regras e saberes prévios, a psicóloga, pautada no discurso da psicanálise, privilegiou a

109
singularidade da adolescente e, ao invés de se apresentar com um saber fechado, optou por nada

saber sobre o sujeito senão aquilo o que ele próprio pode ir construindo.

Para além e aquém do adolescente: sua família.

Não é raro podermos observar uma situação familiar pouco articulada, em que o sujeito é

deixado largado no mundo em função das dificuldades desses outros sujeitos, sua família. Quando

os pais desistem de seus filhos antes que estes possam se separar deles – trabalho próprio da

adolescência –, o efeito é assustador, “o adolescente se vê deixado cair. Desesperado e perdido, [...]

inicia uma busca que pode ser uma completa catástrofe na tentativa de alcançar novamente a mão

dos pais, o que, como numa bola de neve, tem cada vez mais dificuldade de conseguir” (Alberti,

2004, p. 22). Os casos a seguir testemunham da importância de às vezes promover uma demanda de

tratamento de algum familiar quando se trata da clínica com adolescentes. O primeiro demonstra

que é possível intervir numa relação mãe-filho sem qualquer separação entre eles.

A mãe de Jonas

Maria – nome fictício – é a mãe de Jonas – nome fictício – que, aos três meses de idade, teve

uma meningite com complicações neurológicas graves que o levavam a frequentes internações.

Mantinha um olhar vago, sem interagir, ficando sempre deitado, totalmente dependente. Isso levava

Maria a dizer que não só ele dependia dela para viver, mas que a vida dela também dependia dele.

Na primeira entrevista, a mãe diz: “Eu não sei o que vai ser da minha vida se ele morrer. Eu não vou

saber nem quem sou eu. É ele quem dorme comigo. Ele é meu companheiro. Falo que ele é meu

marido. Aquele amor de um homem de dar carinho e dizer que ama, Jonas supre todas as

necessidades. Só a necessidade de desejo sexual que não, tadinho, meu filho” (sic). Tomamos essa

observação para dirigir o tratamento começando a interrogá-la sobre seu desejo sexual.

Surgiu, aos poucos, sua vida, não somente como mãe de Jonas, mas como mulher, como

sujeito. Inicialmente relata que acha que não tem desejo sexual, que ela não permite aos homens

entrarem em sua vida. Lembrando de um antigo namorado, pergunta: “Quem vai querer ficar com

alguém que tem que cuidar do filho o tempo todo e vive no hospital?” (sic). Diz: “Ele não entendia,

110
eu perguntei a ele: ‘meu filho, por que não entende?’” (sic). Surpresa com essa fala de Maria, a

residente interrompe: “meu filho?”, e Maria diz: “pois é, eu chamava todos eles de filhos. Todos os

homens achavam que eu tratava eles mais como filhos” (sic). Não havia mesmo um espaço para um

homem entrar... Novamente a residente interrompe a fala de Maria quando a escuta dizer, mais uma

vez: “A minha vida é ele. A minha vida toda” (sic). “Toda não, e o tempo antes de Jonas?”,

perguntou. E recebeu como resposta: “Ah não! Antes não conta” (sic).

Maria lhe diz que antes de ele nascer foram só dezoito anos, não tinha vivido nada, já que

começou a trabalhar aos dez anos. Mas começou a falar de sua história. Sua mãe a proibiu de

estudar quando ela chegou à 5ª série lhe dizendo que ela não seria ninguém na vida mesmo, a

colocando para trabalhar em uma casa de família. “Eu dependia da minha mãe para me colocar na

escola, eu era menor de idade. Naquela época não tinha Conselho Tutelar”. Aos treze anos surgiu

uma oportunidade de ser modelo, mas seu pai não deixou “porque isso é coisa de piranha” (sic).

Conheceu o pai de Jonas aos dezesseis anos e o namorou mais para afrontar o pai. Pouco

tempo depois, foi morar com ele para sair de casa, engravidando de Jonas. “O pai dele bebia e usava

drogas, acabei voltando para casa com vinte e um anos. Foi um inferno”. Relata que sua irmã deu

uma casa para ela morar ao lado da casa de sua mãe que, no entanto, jamais a ajudou a cuidar do

filho. Recomeçou a trabalhar fazendo unha e vendendo salgados, e com esse dinheiro conseguiu

comprar todos os móveis de sua casa. Identifica Jonas como aquele que a livrou de uma “vida

errada” (sic) porque quando passou fome quando ele era pequeno, chegou a procurar uma vaga de

emprego como prostituta de luxo nos classificados – talvez obedecendo ao vaticínio paterno que

identificara seu desejo de ser modelo como coisa de piranha.

Atender a mãe de Jonas na Enfermaria do NESA começou a dialetizar algumas situações.

Uma delas, dizia respeito à proposta médica de uma gastrostomia em Jonas, já que ele estava

broncoaspirando com a comida artesanal que recebia em casa, feita por Maria. Maria resistia a essa

cirurgia, não podia imaginar o filho recebendo comida por uma sonda no estômago em vez da

comida artesanal que ela própria preparava. Temia que Jonas não fosse aguentar a intervenção, ele

111
poderia fazer uma parada respiratória com a anestesia geral, lembrando-se de que já fizera uma, há

um tempo atrás, durante uma neurocirurgia. Mas depois, em atendimento, chegou a dizer: “eu tenho

uma posição de dar comida para ele. Eu não quero perder isso”. Com o sucesso da gastrostomia,

alguma dependência dela para com o filho seria perdida, a nutrição enteral poderia ser adquirida no

próprio hospital e manipulada por qualquer pessoa que tivesse o conhecimento especializado em

seu manuseio. Acabou aquiescendo, mas ao se aproximar o dia da intervenção, diz: “Eu estou muito

apreensiva com a cirurgia, o que eu queria era ser o cirurgião e fazer a cirurgia de Jonas, estou com

muito medo de ele morrer” (sic). Escutar esse dito permitiu introduzir uma barra para essa mãe:

“isso não é possível, você não é cirurgiã. Você não pode fazer tudo pelo seu filho”. Havia ali um

limite claro e, confrontada a ele, o único que Maria ainda consegue dizer, chorando muito, é: “como

fica a renúncia que fiz da minha vida, todos os sonhos que eu tinha pra ele, se ele morrer?” (sic).

Aos poucos, Maria conseguiu ir dormir em casa por algumas noites, o pai de Jonas pode vir ficar

com ele no hospital, mesmo Maria dizendo que ele não sabia exatamente quando Jonas sentia dor

ou precisava trocar a fralda, por exemplo. A residente em psicologia a tranquilizava, Jonas não

estava sozinho, estava com o pai no hospital onde, além disso, havia a assistência de toda uma

equipe técnica.

Aos poucos Maria foi falando de seus interesses e sonhos para além de ser mãe de Jonas.

Falou que, modéstia à parte, fazia unha muito bem, o que voltou a fazer a partir desse atendimento,

ganhando um dinheiro extra. Apesar de ser formada em técnica de enfermagem, nunca exercera a

profissão. Animou-se e começou a querer trabalhar. “Sabe o que todo mundo faz, de se arrumar de

manhã e sair para trabalhar? Esse é o meu sonho” (sic).

Jonas já não broncoaspirava depois da bem-sucedida gastrostomia. Maria conseguiu pagar

uma vizinha para ficar com o filho e começou, aos poucos, a colocar seus currículos em algumas

instituições. Nos últimos atendimentos realizados com Maria, ela contou que casou e estava

construindo um quartinho para Jonas dormir sozinho com uma enfermeira, de modo a poder ter sua

privacidade. Foi assumindo uma nova vida, investindo em sua profissão e em um casamento, a

112
entrada da enfermeira e do pai não foram sem o auxílio do corte no estômago operado pela equipe

médica, além do acompanhamento que a residente de psicologia pode oferecer.

Sílvia, uma mãe que passa mal diariamente

Silvia – nome fictício – era a mãe de uma adolescente atendida por uma psicóloga residente

no Ambulatório do NESA que disse: “quero uma psicóloga para minha mãe”. Silvia já fazia

acompanhamento com um neurologista, mas disse que ele só a medicava, o que não estava surtindo

efeito. Durante as entrevistas, tentava dar um sentido a seus sintomas – ficava nervosa, tonta,

trêmula, suando frio, mesmo sem um motivo aparente, e sentia medo de desmaiar e de morrer. Ao

ser convidada a falar, começou a associar o seu “passar mal” a ficar sozinha, a ter enviado os

móveis da sua casa no Rio de Janeiro para o Ceará (onde ela e o marido pretendiam voltar a morar),

à gravidez e ao problema de alcoolismo do marido. Foi então que a psicóloga residente começou a

fazer mais perguntas sobre a infância dela, a adolescência, sobre a maneira como ela conheceu o

marido, o namoro, o casamento, sua sexualidade, a vinda para o Rio de Janeiro etc. Silvia começou

a falar sobre sua história de vida e não somente sobre o sintoma de “passar mal”. Abandonou o

tratamento com o neurologista, apostando mais no tratamento que fazia no NESA. Aos poucos

deixou de falar dos sintomas que tentara significar, e eles foram se extinguindo. Para sua psicóloga

ficou evidenciada a advertência de Freud (1916/2005b): não focar no sintoma! Para a adolescente

que encaminhou sua mãe, a vida ficou bem mais fácil!

Duas gêmeas

Júlia – nome fictício –, 14 anos, foi encaminhada pela escola ao Setor de Psicanálise e Saúde

Mental do NESA juntamente com sua irmã gêmea para atendimento ambulatorial. Diante da filha, a

mãe relatou estar muito preocupada com o fato de ela só ficar no celular, não cumprir com os

acordos que fazem, como por exemplo o do horário de voltar para casa, com as notas baixas na

escola e com a fixação da filha em uma banda americana, Jonas Brothers, além das influências de

amizades estranhas. Em especial, se preocupava com uma amiga mais velha de Júlia, que diz ser

113
homossexual e maior de idade, e avisa à filha que, se essa amizade continuar, vai denunciar a amiga

à polícia. Na entrevista, Júlia ri e comenta: “nada a ver mãe, que exagero!”.

Muitas vezes a demanda de atendimento no NESA é indireta, ou seja, são os pais, a escola,

ou os médicos que fazem o encaminhamento para o atendimento do adolescente (Alberti et al,

1994). É preciso estar atento aos efeitos disso no sujeito adolescente pois, sendo “falado” por

outros, pode emudecer. Nosso trabalho então consiste em recolocar a demanda de atendimento de

forma que o próprio adolescente possa se responsabilizar por seu tratamento. Ao facilitamos esse

processo, a demanda passa a ser própria (p 25).

No caso de Júlia, a questão da demanda indireta aparece com alguma relevância nos

atendimentos iniciais. Em determinado atendimento, ao falar do quanto sua mãe está “enchendo o

saco”, Júlia declara: “Já falei para ela que não adianta vir para psicóloga, que não vai resolver

nossos problemas em casa”. Frase que a residente em psicologia aproveita: “Mas é para isso que

você vem?”, recebendo como resposta: “não, eu venho para tratar das minhas coisas”.

Começa a falar sobre uma história de conflito com uma amiga, mas avisa que não dará

tempo para contar porque é muito longa. Na realidade, logo confessa que tem dificuldade de falar

sobre isso, “ainda não contei para ninguém”. Acreditamos que essa fala inaugura um certo lugar de

trabalho que marca uma diferença. Em tratamento, se fala sobre algo que não se fala em outros

espaços e a relutância inicial testemunha da resistência que é, para a psicanálise, signo da presença

da transferência. Com ela, foi possível levantar uma hipótese diagnóstica de histeria. Esse ponto

adquire especial relevo no caso em questão: é a fala de Júlia que tem valor de diagnóstico e somente

a dela.

Sobre suas experiências com garotos, ela conta que na sua escola só tem “lixo”, diz que até

ficou com um amigo, que era muito bonito, mas só porque ele teria insistido muito. Fica com vários

rapazes, sempre impelida pela insistência deles. A única vez em que era ela quem quis ficar, tratava-

se de um amigo, mas ele era gay e tinha namorado. Júlia certamente não é a primeira que se dá

conta de um interesse quando o outro não pode corresponder.

114
Ao que nos parece, tal como no caso de Freud (1900/1988), trabalhado por Lacan (1957-

58/1999) como o da bela açougueira, Júlia põe em xeque a questão do desejo, no que paira uma

insatisfação: tudo bem desejar um homem, se ele for gay e não puder satisfazê-la. Na realidade, há

aqui uma denúncia desse desencontro entre homens e mulheres. Independentemente de ser gay ou

não, um homem não seria capaz de satisfazer, bastar a uma mulher... e vice-versa.

Como a psicóloga que atende a irmã de Júlia também trabalhava no NESA, sabemos que a

hipótese diagnóstica daquela jovem era de psicose. Não cabe aqui entrarmos em detalhe sobre sua

irmã, mas nos importa que, enquanto histérica, opera em Júlia uma identificação na qual busca

salvar a irmã. Basta dizer que em um atendimento Júlia chegou com o rosto todo arranhado, brigara

com a irmã porque ela estava com cigarro e bebida na mochila, afirmando, ao mesmo tempo, não se

importar com o destino dela: “não tô nem aí pra minha irmã. Quero que ela se dane. Tomara que ela

se ferre mesmo”. Com uma irmã gêmea psicótica, Júlia tinha uma tarefa dupla pela frente: aquela

que é comum a todo adolescente, de se separar dos pais e, ao mesmo tempo, a de poder ser diferente

da irmã, dita idêntica por ser gêmea. Como bancar suas escolhas percebendo a gravidade da

situação de sua irmã? Com o trabalho no NESA pode se verificar que o interesse pelos Jonas

Brothers, pelos amigos, pelas pessoas fora de casa, respondia à necessária referência de que Júlia

precisava para poder ser, e ser diferente de sua irmã.

Freud (1905/2005a) nos ensina que na adolescência há um retorno às questões edípicas

adormecidas no período de latência. Porém não é um simples retorno, é uma avalanche. O sujeito se

depara com o vazio, com a incompletude. Ele vai verificar que existem muito mais desencontros do

que encontros nas suas escolhas amorosas e que não há complementaridade entre os sexos. A

separação das figuras idealizadas dos pais, o encontro com o sexo e a constatação das

impossibilidades, deixam o sujeito no desamparo e, por conta disso, certas questões se intensificam

no percurso da adolescência. Como já dissemos (Alberti, 2004, p. 22), o maior trabalho da

adolescência é o desligamento da autoridade dos pais, mas para atravessar tal trabalho, é preciso

que eles estejam presentes.

115
Joana e as mentiras

Escutamos que o dia-a-dia da Enfermaria de Adolescentes revela conflitos entre pais e

filhos. As querelas familiares podem eclodir durante uma internação, quando não faltam expressões

de paixões. O Édipo é revivido com um elemento a mais: a doença. É comum os romances

familiares (Freud, 1909/1976) se expressarem através dos afetos de amor, de alegria, de raiva, de

tristeza etc. Verificamos que o desligamento das figuras parentais da infância poderá ser retardado;

adoecer exige aproximação, principalmente da mãe como primeiro Outro do sujeito. O cair doente,

nessa fase da existência humana – sobretudo quando isso acontece sem o olhar materno dos

cuidados, no afastamento da mãe – pode funcionar como um fator que potencializa o retorno dos

impulsos e desejos edipianos, o que demanda a escuta das figuras de referência para o sujeito

adolescente. Esse foi o caso de Joana – nome fictício.

A situação familiar era pouco articulada, Joana era um sujeito deixado largado no mundo em

função das dificuldades dos outros sujeitos da família. Podemos dizer que, depois da morte do pai, a

família perdeu suas referências. A mãe foi apenas uma vez ao Serviço e mesmo sendo chamada

novamente e tendo todos os contatos, não apareceu mais. Após a morte do marido, Cristina – nome

fictício –, provavelmente, se viu imersa numa avalanche de problemas que a ultrapassavam e usava

seu trabalho como um refúgio. A razão do encaminhamento de Joana ao Ambulatório do NESA

foram suas mentiras, em particular a última, em que dissera que iria à casa de uma amiga e, na

realidade, sumiu por dezenove dias (depois relatou à residente em psicologia que, no período, ficou

num abrigo). Cristina se queixou na primeira entrevista: “Parece que ela pega a história de uma

outra pessoa e acredita que é a dela, porque em casa ela é muito diferente”.

A mentira é anterior a Joana. Percebemos uma dificuldade da mãe em se defrontar com a

realidade à sua volta, com o envolvimento de seu filho em assaltos e drogas e com as fabulações de

sua filha. Ela também fabulava ao relatar sua vida com filhos muito bem criados, convivendo muito

bem. O sintoma de Joana denunciava um sintoma da família e sua mentira servia para desvelar o

que realmente acontecia, a começar, o fato de Cristina ter querido abortá-la.

116
Joana era atendida em emergências de hospitais, ia sozinha com uma gastrite grave, isto é,

uma úlcera no estômago aberta, sintoma possivelmente referido à morte do pai que faleceu em

decorrência de uma “hemorragia no estômago”, que Cristina não sabia explicar muito bem, quando

nossa paciente tinha oito anos.

Pudemos levantar duas hipóteses, que não se excluem. Uma, a de que havia sim uma

questão física, mas a questão psíquica era mais complicada, a ponto de impedir que ela tratasse sua

doença orgânica. Outra, de que ela poderia estar repetindo no corpo uma ideia de reencontrar o pai.

Talvez essa fosse a sua maneira de falar do pai e dos sentimentos ambivalentes que vieram à tona

após a sua morte, em particular por sua ausência, que desestruturou a família e a deixou sozinha

sem poder contar com ninguém, conforme ela se referia à vida que levava.

Diante do encontro com o real do sexo da adolescência e da busca por uma separação do

Outro, Joana não pôde contar com a presença dos pais (ou substitutos). A paciente respondeu a isso

fabulando e criando o seu mundo de tragédias que retratam a forma pela qual ela via e sentia os

acontecimentos de sua vida. As tragédias que criava eram, por outro lado, aquelas que sua mãe

parecia não querer ver. A realidade psíquica, além de designar uma outra realidade para o

psiquismo, é também o real singular de cada sujeito do inconsciente (Alberti, 2009).

A psicanálise no NESA e o desejo de ver surgir o novo

As questões da adolescência implicam paradigmaticamente que a inquietação quanto ao

próprio sexo é a regra para todos, mas sabemos também que tal inquietação só se resolve no

momento em que se lastreia na impossibilidade de uma resposta a priori. O sentido sexual “indica a

direção na qual ele fracassa” (Lacan, 1972-73/1985, p. 106) e é esse o ponto em que o sujeito

neurótico pode responder à questão. Eis onde neurose e adolescência se encontram: todo sujeito

adolescente é neurótico e, rigorosamente falando, não há adolescência na psicose (Alberti, 2009).

Verifica-se tal enunciado tanto em articulação à frase de Freud (1950 [1895]/1996a) segundo a qual

o adolescente porta em si o gérmen da histeria – ou seja, o gérmen do sujeito em questão –, quanto

em articulação àquela de Lacan, em que observa a importância da função da demanda na neurose da

117
mesma maneira como podemos observá-la na adolescência: “Ele depende tanto da demanda do

Outro, que o que [ele] demanda ao Outro em sua demanda de amor [...] é que se permita que ele

faça alguma coisa” (Lacan, 1960–61/1992, p. 257). Lacan enuncia essa frase acerca do neurótico,

mas podemos transpô-la facilmente para os adolescentes de que tratamos (Alberti e Ferreira da

Silva, 2018).

Louise – nome fictício –, portadora de síndrome de Turner, ao endereçar a questão à

psicóloga residente: “uma mulher com síndrome de Turner é uma mulher normal”? pode pôr à

prova a articulação entre clínica com adolescentes e hospital universitário. A síndrome genética, de

Turner, caracteriza-se por o que no discurso médico é chamado de “aberração cromossomial”, e faz

de sua portadora uma 45 X com a ausência do outro cromossomo X, de modo que aparece uma

série de estigmas impedindo o que os médicos chamam de “desenvolvimento normal da mulher”. A

partir da psicanálise, a questão foi devolvida à adolescente que, assim, recebeu sua própria

mensagem sob forma invertida: “mas o que é uma mulher normal?”.

Em seu depoimento sobre o caso, a ex-residente relata: Após este primeiro atendimento,

lembrei-me da seguinte frase: “Chamei imediatamente o Dr. M...”, frase presente no sonho da

“injeção de Irma”, que consta da Interpretação dos sonhos (Freud, 1900/1988, p. 128), sonho

inaugural da psicanálise. Cinco anos mais tarde, Freud chegara a escrever em carta a Fliess: “você

acredita que haverá um dia nesta casa uma placa de mármore com esta inscrição: Foi nesta casa que,

em 24 de julho de 1895, o mistério do sonho foi revelado ao doutor Sigmund Freud? Mas por ora as

perspectivas são mínimas” (Freud, 1887-1904/1986, p. 418). Nesse sonho destaca-se algo sobre a

importância da supervisão, o pedido, que aparece na ordem da urgência. Diante da angústia de

Freud ao se deparar com a visão da cavidade bucal de Irma, ele chama o Dr. M. De igual feita,

chamei imediatamente Sonia Alberti para supervisionar o caso. Em minha passagem pelo NESA

como residente de psicologia, deparei-me com um corpo que tem reações e ao qual acontecem

coisas que, com exceção das tentativas do discurso médico em fazê-lo, não podem ser mapeadas por

nenhum simbólico, tampouco imaginarizadas.

118
De “mulher normal”, Louise deslizou para: “mulher com peitão e bundão”, “mulher com um

corpo real”, “sindromizenta” (sic) e “mulher feita”, numa tentativa de simbolizar um real do corpo

impossível de especularizar devido à anomalia genética (Ferreira da Silva e Alberti, 2018). Na

construção do caso, ficou evidente a importância da supervisão clínica.

Dos ditos do pai da infância que sustentavam Louise como “não tendo nada”, aos dos

médicos que garantiam que ela poderia ter uma vida normal, Louise ao mesmo tempo em que

substituía a sexualidade pela demanda de amor, procurava por sua resposta. E o sujeito não é antes

de tudo uma pergunta? “Che vuoi? - O que quer você?” (Lacan 1960/1998c, p. 829). A entrada em

análise não se dá por uma questão enigmática? Laço analítico no primeiro encontro. Desejo

decidido de ali permanecer. Poder acompanhar Louise em seu trabalho, ver surgir o novo, surgir o

sujeito em seu desejo que é sempre efeito da fala, construir com as palavras que ela foi me dando,

implicou meu desejo nessa escuta. Sua morte, em consequência das várias complicações que podem

ser provocadas pela síndrome, última castração, não deixou de ser um dos corolários para o

nascimento de uma analista, esta que a acompanhou durante toda sua elaboração. Louise me

ensinou que é preciso uma escolha do adolescente pelo trabalho e a importância de levar em conta o

Outro, mas me ensinou também a necessidade de que haja uma demanda do Outro para que o

sujeito adolescente se posicione sexualmente e é o que o leva a isso. Seu pai o permitiu e ela pode,

no final de seu trabalho, disso se servir. Um dia ainda conseguirei publicar seu caso.

Considerações finais

Esse texto, ponta do iceberg que é o trabalho da Residência em Psicologia no NESA, foi

redigido com a contribuição de Selma Correia da Silva, coordenadora do Setor de Psicanálise e

Saúde Mental do NESA e de pequenos textos enviados por ex-residentes que participaram dessa

experiência desde os primeiros anos até os mais recentes. Sua redação final buscou articulá-los, mas

também manter a forma de testemunho que os ex-residentes davam em suas contribuições.

Atravessar a residência no NESA foi para esses autores também uma passagem, entre o momento da

119
graduação e a vida profissional. Um atravessamento no qual – e todos o observaram – receberam o

bilhete de passagem para entrar, definitivamente, na clínica e na psicanálise.

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122
Gravidez e psicanálise: considerações institucionais e clínicas

Ester Susan Guggenheim

Resumo: O trabalho dos psicólogos no Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro data do início da década de 1970. Ele é descrito em sua evolução no

atendimento às gestantes e puérperas do Núcleo Perinatal. A teoria utilizada é a psicanálise e a

prática desta clínica é realizada pelos residentes, a partir da criação da Residência em Psicologia

Clínica Institucional. Descreve-se neste trabalho os aspectos da clínica psicanalítica com gestantes

de alto risco que são atendidas no ambulatório e na enfermaria do hospital. Por meio de três

exemplos de casos atendidos, dá-se uma pequena mostra de como são as consultas com os

psicólogos residentes. A descrição do programa, das supervisões e do grupo de estudos demonstram

a função da preceptoria da residência no referido Núcleo, bem como sua contribuição teórica.

Palavras-chave: psicanálise, gravidez, instituição hospitalar.

Abstract: The work carried out by psychologist in Pedro Ernesto University Hospital, which

belongs to the State University of Rio de Janeiro (UERJ), started at the beginning of the year 1970.

It is described in its evolution in the assistance given to women in high-risk pregnancy and to those

in the puerperal period from Núcleo Perinatal. The theoretical approach of this work is

psychoanalytical and its practice has been performed by the residentes of psychology since the

creation of the Residency of Psychology in Institutonal Clinic. In this paper, we describe the aspects

of psychoanalytic practice in women in high-risk pregnancy who are assisted in the clinic and the

Ward of the forementioned hospital. By means of three clinical psychoanalitic cases, we give a

short view of the work of the psychology residentes. The descriptions of the program, the

supervisions and the study grups demonstrate how the preceptor responsible for this sector does her

work as well as her theoretical contribution.

Keywords: psychoanalysys, pregnancy hospital, institution.

123
Resumen: El trabajo de los psicologos en el Hospital Universitário Pedro Ernesto del Estado do

Rio de Janeiro empezó en el año del 1970. El es descripto en su evolución en los atendimientos a

las mujeres embarazadas del Nucleo Perinatal. La psicoanalisis és la teoria utilizada en el trabajo

clínico. La actividad clinica és realizada por los psicologos residentes a partir de la creación de la

Residencia em Psicologia Clínica Institucional. Se describe en eso texto como és el trabajo en

ambulatorio y em la enfermaria. Con tres ejemplos de la clinica psicoanalitica se tiene una pequeña

muestra do es hecho en la práctica. La descripción de las superviciones y de los grupos de estudio

muestra como la preceptora responsable por lo sector hace su trabajo y suja contribuición teorica.

Palabras-clave: psicoanálisis, embarazo, instituición hospitalar.

O contexto institucional

As considerações aqui descritas são o resultado de um trabalho que vem sendo realizado por

psicólogos no Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro –

HUPE / UERJ desde a década de 1970 até o presente com a comemoração dos 25 anos do Curso de

Especialização em Psicologia Clínica Institucional, na modalidade Residência Hospitalar.

O setor denominado Núcleo Perinatal é composto de maternidade e ambulatório para

gestantes e puérperas. A realização do trabalho envolve a preceptoria do Instituto de Psicologia da

UERJ e os residentes do curso acima mencionado, em nível de pós-graduação latu sensu. Para

melhor entendimento da evolução do trabalho realizado pela equipe de psicologia será necessário

um relato histórico da sua inserção institucional no Núcleo Perinatal, ao longo das últimas décadas.

Nos meados dos anos de 1970 alguns psicólogos a convite de vários médicos e da direção do

HUPE iniciaram uma série de trabalhos nas diversas enfermarias do hospital geral e na psiquiatria.

Coube a psicóloga Sonia Glasser implementar o trabalho junto às gestantes da maternidade e do

ambulatório. O trabalho iniciado com grupos no ambulatório teve a participação de alguns

estudantes estagiários de psicologia, vindo das diversas universidades do Rio de Janeiro. Após esta

124
etapa do trabalho da psicologia no setor, o Instituto de Psicologia designou a atual preceptora para

realizar o planejamento e a supervisão dos alunos de psicologia da UERJ na clínica obstétrica. O

trabalho de implantação da nova atividade foi bastante desafiador em função da abrangência que se

pretendeu implantar e a inexistência, na época, de bibliografia no Brasil sobre o tema da psicologia

hospitalar. Foram utilizadas muitas referências acerca da experiência internacional, especialmente a

europeia e a argentina. Houve um grande empenho de estudo e busca de novas orientações no

campo da psicologia institucional e da psicanálise no hospital.

O trabalho no Núcleo Perinatal obteve um valioso incremento a partir da inauguração do

novo prédio da maternidade e da reforma do ambulatório. Várias chefias se sucederam no campo da

medicina, enfermagem, serviço social, nutrição, fonoaudiologia. A equipe, com muito raras

exceções, valorizava o trabalho da psicologia e reconhecia a sua necessidade e importância. A

chefia do setor, na pessoa do professor titular da cadeira de Obstetrícia Alexandre Trajano, muito

consciente das dificuldades emocionais das gestantes de alto risco e puérperas, empenhou-se junto à

direção do hospital na contratação de psicólogas e na expansão do nosso trabalho.

O Instituto de Psicologia (IP) trabalhava no projeto da Residência em Psicologia Clínica

Institucional, através de um grupo que incluiu psicólogos, professores do IP e a preceptora do

Núcleo Perinatal, para a criação do projeto de residência com apoio da direção do Instituto e da sub-

reitoria de pós-graduação da UERJ. Mais uma vez, um grande empenho foi necessário pelo

pioneirismo do projeto no Brasil. Pretendíamos criar uma Residência que tivesse o formato

acadêmico, como uma especialização de pós-graduação para psicólogos e que oferecesse um campo

de atuação prática nas diversas clínicas do hospital e não somente na psiquiatria, como já acontecia

no âmbito da residência em Saúde Mental em outros locais. A Residência foi criada em 1992. A

partir desta data, o Núcleo Perinatal passou a receber os residentes do Curso de Especialização em

Psicologia Clínica Institucional, na modalidade de Residência Hospitalar.

125
Nos primeiros processos seletivos, a residência trouxe de início cinco R1 (residentes de

primeiro ano) que atuaram, no Núcleo Perinatal, em rodízio com as outras clínicas e dois R2

(residentes de segundo ano). Atualmente, o processo seletivo para ingresso na residência oferece

dez vagas para R1, o que reverte em vinte residentes no total de R1 e R2 para todo o HUPE.

O Núcleo Perinatal do HUPE

O Núcleo Perinatal é um campo de atendimento, estudo e pesquisa da especialidade

obstétrica, de formação acadêmica do hospital universitário da Faculdade de Ciências Médicas, que

atende gestantes e puérperas de alto risco pelo SUS. A clínica obstétrica oferece formação aos

diferentes profissionais residentes em saúde que atuam junto a gestantes e puérperas. Possui um

espaço físico situado no corpo do hospital no bairro de Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro. A

sua clientela é oriunda de inúmeros bairros, das comunidades de favelas e até de outras cidades e

estados.

O HUPE recebe gestantes de alto risco. Na gestação, este tipo de risco corresponde às

morbidades em casos como hipertensão, lúpus, diabetes, cardiopatias, HIV e outras doenças que são

diagnosticadas, muitas vezes, em consultas do pré-natal. Atualmente as pacientes são encaminhadas

ao setor em sua maioria através do sistema SISREG proposto pelo Ministério da Saúde ao

Município do Rio de Janeiro. Desse modo, chegam ao ambulatório e, em alguns casos, diretamente

à enfermaria da maternidade os mais variados casos de gestantes. Não só as patologias orgânicas

são múltiplas, mas também as demandas subjetivas são inumeráveis. Caberá aos psicólogos e

residentes de psicologia o acompanhamento das pacientes que demandam espontaneamente um

atendimento psicoterápico ou aquelas encaminhadas pelas demais equipes de saúde do Núcleo

Perinatal. A residência em psicologia inicia o seu trabalho no ambulatório e segue na maternidade

até a alta das pacientes.

No ambulatório a demanda é inicialmente de psicoterapia individual. No trabalho com

grupos de pré-consulta a abordagem é multidisciplinar. Estes grupos se caracterizam pela atuação


126
dos vários profissionais, em especial, enfermagem, serviço social, nutrição e psicologia com a

proposta de “educação para a saúde”. Os grupos de pré-consulta têm frequência espontânea e

variada, eles ocorrem antes da consulta médica no ambulatório. A proposta é oferecer informações

sobre os diversos aspectos da gravidez. As mudanças no corpo, os direitos trabalhistas, alimentação

e outros assuntos são tratados nos grupos coordenados por no mínimo dois profissionais das áreas

diversas da saúde. Nestes grupos, o psicólogo residente recolhe as demandas relacionadas às

dificuldades emocionais vividas pelas grávidas, como também participa da dinâmica da

coordenação dos grupos. A partir do atendimento com diferentes profissionais e dos grupos de pré-

consulta são agendados para os residentes de psicologia os atendimentos individuais. Os casos são

encaminhados através de pareceres dos médicos, dos enfermeiros, dos nutricionistas ou dos

assistentes sociais.

As pacientes em acompanhamento no ambulatório seguem seus tratamentos com os mesmos

psicólogos residentes na enfermaria da Maternidade. Na enfermaria, o trabalho toma um outro

aspecto. As pacientes estão num leito antes do parto ou após a realização do mesmo. Nem sempre

os partos têm um final esperado. Há perdas fetais, prematuridades, agravamento de um quadro

relacionado a doença pregressa da gestante ou as más formações dos bebês. Caberá ao psicólogo

residente acompanhar sua paciente enquanto ela estiver internada e oferecer um acompanhamento

após a alta, quando for necessário.

As consultas poderão ocorrer na beira do leito ou na sala de atendimento da enfermaria da

Maternidade. As famílias são atendidas em alguns casos específicos. Todo o trabalho é

acompanhado em supervisões semanais e na realização de grupos de estudos. Nas supervisões

temos a presença de estagiários da graduação em psicologia que acompanham o desenvolvimento

dos casos atendidos pelos residentes e participam das leituras dos textos propostos para o estudo. O

objetivo é estimular e preparar os futuros psicólogos a atuarem visando a saúde mental em suas

demandas emocionais específicas, nas unidades de saúde pública.

127
A preceptoria: supervisão de casos de gestantes e puérperas do Núcleo Perinatal

Supervisão é uma prática rotineira da residência e da clínica psicanalítica em que a análise

pessoal, o estudo teórico e a supervisão são recomendados. Como cada clínica tem a sua

especificidade, a clientela de um hospital público no Rio de Janeiro, formado por grávidas e

puérperas de risco se mostra muito diversa da clínica em consultórios, clínicas e hospitais privados.

O hospital, lugar entendido como aquele que trata de doenças, é tido como parte integrante da

compreensão do sofrimento psíquico. Estamos lidando constantemente com demandas institucionais

e pessoais subjetivas de toda equipe distinguindo-se de uma clínica voltada à família. Uma paciente

gestante pode estar “submetida”, por exemplo, às regras de sua família nuclear, do grupo social ou

de seu trabalho. Mas no hospital ela também terá que se “submeter”, muitas vezes, a normas

diversas de seus valores ou desejos. O psicólogo tem, também, um limite de atuação estabelecida

pelas circunstâncias institucionais oriundas tanto do hospital quanto do próprio enquadre

acadêmico, necessário para a formação de especialistas pós-graduados. O trabalho de supervisão se

atém a essas circunstâncias. É um lugar de muito aprendizado para o preceptor supervisor e

residentes supervisionados. A cada semana, todos os casos são apresentados e acompanhados

detalhadamente em sua evolução. Quando ocorrem altas precoces na enfermaria (do ponto de vista

psicológico), os atendimentos podem ter uma continuidade oferecida no ambulatório para as

pacientes que assim o desejarem. Caso a distância de moradia da paciente for um impedimento para

o retorno ao hospital, elas são orientadas na busca de locais próximos às suas residências, onde

poderão dar continuidade à psicoterapia.

Como são trabalhados e interpretados os casos? Os residentes, por serem psicólogos

autorizados pelo Conselho Regional de Psicologia, têm certa autonomia para encaminharem as suas

escutas e intervenções. Na supervisão, a preceptora supervisora interfere na sugestão e no

desenvolvimento de outras possibilidades de trabalho, ouvindo e mostrando as dificuldades

128
apresentadas pelos residentes e como contorná-las. Criamos um espaço de trocas, questionamentos

e aprendizados.

Torna-se impossível ignorar as realidades sociais, econômicas e as referências culturais das

pacientes que se queixam de variados sintomas, sofrimentos psíquicos, angústias e medos. A

realidade do hospital e da universidade também estão presentes, mesmo que não verbalizado nas

consultas. Vamos a cada caso tomando contato com as patologias médicas, síndromes,

medicamentos, procedimentos obstétricos e aprendendo como pensam e atuam as outras áreas de

conhecimento da saúde. As falas e procedimentos de enfermeiras, de médicos, de assistentes sociais

ou de nutricionistas reverberam nas pacientes e em nós. Somos a cada dia envolvidos por falas e

acontecimentos dos mais diversos. Tudo isto está presente nas supervisões.

Acreditamos que de algum modo o nosso trabalho também amplia o campo de saber das

outras especialidades. O entendimento da importância dos diferentes saberes e do lugar específico

da abordagem psicanalítica dos psicólogos residentes tem sido um importante espaço de trocas.

O Grupo de Estudos

Como psicólogos clínicos estudamos sempre a teoria psicanalítica de Sigmund Freud

(1856-1939) e Jacques Lacan (1901-1981). Torna-se necessário ler também bibliografias que

abordam as experiências da clínica com gestantes ou os trabalhos de psicanálise em hospitais

brasileiros ou estrangeiros, aprofundando os temas com que lidamos rotineiramente.

São realizados anualmente os Fóruns da Residência onde os casos são reescritos,

trabalhados, apresentados e publicados. São dois dias no preparo dos textos do Núcleo Perinatal

quando “paramos” todos para nos ouvir. Na apresentação dos residentes, eles debatem com um

público composto na grande maioria de psicólogos, de estudantes de psicologia e das áreas da saúde

afins. Assim, cada residente tem a oportunidade de não só mostrar, mas também de compartilhar e

aperfeiçoar sua formação.

129
Atuamos na postura reflexiva e crítica diante do que é a saúde pública, a formação dos

nossos profissionais, o trabalho de psicólogos no hospital e o lugar da psicanálise neste contexto.

Renovamos nossa atuação a toda mudança circunstancial necessária. Recolhemos da experiência os

novos ensinamentos, a possibilidade de atuações criativas e cada vez mais efetivas. Têm-se a cada

momento novos desafios. Desde os problemas políticos institucionais até a não resposta procurada

na teoria, uma vez que o lidar com o humano aponta para o caso a caso. Isto é, cada mulher ao ser

atendida é única no modo como vive as suas angústias e dificuldades.

A abordagem psicanalítica na compreensão do trabalho

A partir do já exposto pensamos na nossa clínica com gestantes como o lugar privilegiado

para estudar e pensar a mulher, o feminino e a gravidez. A psicanálise é o nosso instrumento de

trabalho e pesquisa. Freud em todos os seus textos e, em particular, nos Três ensaios sobre a teoria

da sexualidade (1905), em Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos

(1925), O mal-estar na civilização (1930), Sexualidade feminina (1931) e Feminilidade (1933)

oferecem a bases teóricas do nosso trabalho. As inovações trazidas por Lacan, após o seu retorno a

Freud abriram um espaço para uma nova clínica onde não só o setting, o “contrato”, mas

principalmente a escuta e trabalho do analista tomaram uma outra dimensão. Mas como usar todos

estes conhecimentos no hospital? Como ler as demandas destas mulheres e encontrar nestes teóricos

alguma resposta para seus sintomas?

Consideramos que o tema da sexualidade feminina ocupa na obra de Freud um lugar

significativo. A centralidade da descoberta inicial se refere ao Complexo de Édipo quando o próprio

Freud teoriza sobre sua clínica com mulheres. Se para o menino, Freud tentava encontrar respostas,

no caso da menina encontrava interrogações. Desse modo, a sua obra e de seus respectivos

seguidores oferecem importantes contribuições para pensar e atuar nos casos de gestantes e

puérperas que demandam a psicanálise.

130
O que ocorre no psiquismo dito feminino ocupa parte significativa das supervisões e dos

nossos estudos. Do apelo feito aos poetas por Freud para “descrever a mulher” até hoje a clínica

psicanalítica exige muitas reflexões para que se possa atuar durante uma gravidez, que é um período

específico no trajeto de uma existência.

Estar grávida é até hoje uma condição exclusiva da mulher. Ela tem um período fértil a

partir da primeira menstruação até a menopausa. Este fato é um acontecimento no corpo marcado

no imaginário de toda mulher. Não são poucos os mitos e as lendas criadas em torno da mulher

grávida em todas as culturas. A maior parte das religiões veem no ato de gerar um filho algo do

divino. Como psicanalistas tentamos compreender os temas que podem não ser excludentes como:

mulher, gravidez e feminilidade que apresentam pela própria especificidade teórica, na psicanálise,

algumas dificuldades observadas nas gestantes durante a nossa prática.

A psicanálise não é uma moral, mas uma ética do desejo de cada sujeito. A nossa escuta se

encaminha na desconstrução do que é carregado de preconceitos. As variadas histórias de vida de

cada gestante só devem ser ouvidas despojadas dos nossos valores pessoais. Tentamos escutar sem

julgar e ouvir o sujeito do inconsciente no ambiente hospitalar, onde o corpo biológico é

privilegiado e os conflitos emocionais se apresentam simultaneamente.

A mulher pode ser vista do ponto de vista do gênero, num sentido de que ela tem um corpo

que é geneticamente determinado. A ela é dado um nome, uma educação específica. Podemos aqui

lembrar a afirmação de Simone de Beauvoir de que não se nasce mulher, torna-se mulher. Do ponto

de vista psíquico, a condição feminina também não se constitui ou é determinada apenas por um

corpo físico ou por uma determinação social.

Tornar-se mulher incluirá também a possibilidade de gerar um filho. Mesmo as mulheres

que optam por não terem filhos ou por alguma condição são inférteis e por isto deixam de procriar

não estarão excluídas das possibilidades de considerar a possibilidade de uma gravidez em algum

131
período de suas vidas. Podem criar formas de lidar com esta condição sem conflitos ou buscar

modos substitutivos de realização pessoal.

No entanto, quando o corpo se expressa na concretude de uma gravidez a mulher poderá

experimentar uma hiância entre o seu corpo imaginário e simbólico. Esta torção nos parece, muitas

vezes, mais abrupta do que a passagem do corpo infantil ao do adolescente e do corpo adulto para a

velhice. As transformações no corpo grávido podem deixar marcas no corpo imaginário de cada

uma das mulheres que atravessam esta experiência. Tal hipótese se estabeleceu a partir da nossa

clínica com gestantes.

As mudanças que são corporais num tempo determinado cronologicamente, tanto pelo

conhecimento do fato de que os bebês nascem depois de 7 a 9 meses, quanto internamente pelas

sensações físicas consequentes do desenvolvimento do feto que faz a barriga crescer, o peito

aumentar e assim por diante. Neste breve tempo linear, pode não corresponder ao tempo do

inconsciente para que a mulher absorva esta nova condição. Condição que envolve para a mulher

questões muito complexas como: a função materna que a gestante cria fantasmaticamente na

relação com a sua própria mãe, o lugar do pai e dos homens em seu imaginário, a maneira como ela

lida com a sua castração e a fantasia imaginária de completude que pode advir com o

“preenchimento”, com o futuro bebê.

A ligação com a própria figura materna ou com quem exerceu esta função tem um sentido

particular e é marcado com significantes construídos ao longo da vida. A futura mãe, não raramente,

oferece esta relação fantasmática como uma possível elaboração quando está numa análise. As suas

próprias mães relatadas pelas gestantes, por exemplo, como ausentes, simbióticas ou devastadoras

podem servir como anteparo às inúmeras queixas resultantes da própria condição feminina ou de

situações vividas como traumáticas.

Ao engravidar, o parceiro a quem ela se colocou como objeto de desejo, objeto a para

Lacan, sofre um deslocamento. O feto e o futuro filho poderão começar, também, a ocupar este
132
lugar. O objeto a não é algo representado, não existe de fato, apenas os seus simulacros. Ele está

entre o simbólico, quando colocado em palavras, e o imaginário que no discurso, diante do

psicanalista, dá a gestante um caminho de associações que permitirão a ela tecer a sua nova posição

diante desta gestação.

Sabemos que na gravidez podem, às vezes, advir variadas intercorrências não desejadas

como prematuridade fetal, morte do feto e outras. Neste período emergem questões para além da

gravidez idealizada de um casal que se ama e planeja ter um filho ou filha. As variadas formas de

encontros, casais com filhos de relacionamentos anteriores, mulheres que engravidam de relações

sem vínculos claramente estabelecidos ou de relações ocasionais, lapsos no uso de contraceptivos,

assunção de riscos de vida decorrência de doença prévia. Enfim, temos um campo de inúmeras

possibilidades que se mesclam ao desejo de serem mães que não raramente acompanham aquelas

intercorrências.

Muitos são os casos atendidos em que ouvimos o desejo inconsciente de serem mães em

mulheres que dizem que não queriam engravidar. Apesar dos métodos contraceptivos amplamente

divulgados e oferecidos gratuitamente na rede de saúde, as falhas no uso destes procedimentos, nos

levam a pensar na via delicada do desejo que, muitas vezes, não pode ser expressado em palavras,

mas que se realiza no ato de engravidar.

Ao descrevermos os impasses da mulher gestante percebemos a importância de trazermos o

tema da feminilidade não só pelo seu valor semântico e pela confusão no uso do termo, mas por ser

algo imbricado conceitualmente em nossa experiência na psicanálise com mulheres gestantes.

A feminilidade é entendida como uma posição em deslocamentos constantes. Por ser uma

posição assumida diante do falo em qualquer sujeito do inconsciente, o homem evidentemente se

inclui, pondo à prova o sentido dado pela castração que é comum a ambos os sexos. Apesar do

sexo masculino ter um representante do falo e a mulher não, isto se traduzirá no modo como cada

sujeito lida com a sua castração nos mais variados períodos e momentos da sua vida.
133
Na gestante, a feminilidade pode ser exigida a todo momento nos signos culturais e de

comportamento por imposições categóricas, como por exemplo, “ser feminina é se apresentar

fisicamente de determinada maneira, desenvolver habilidades no cuidado com a casa, com os

filhos” e assim por diante. O fato de ser mulher e estar grávida é visível ao outro, mesmo que esta

condição não seja confortável para ela própria. Mas a feminilidade como posição está para além

deste tipo de constatação e exigências.

O processo de tessitura de uma posição feminina que em poucos meses e após o parto

continuará seu percurso passará pelos impasses de ser mulher e da longa duração da ligação pré-

edípica da menina com a mãe, associada as manifestações de hostilidade à mãe por esta não lhe ter

dado “o que poderia ter” e que não tem, isto é, um representante do falo. Foi, talvez, a partir desse

argumento que Lacan cria a famosa fórmula da sexuação e inscreve na teoria psicanalítica a mulher

“como não-toda”.

A psicanálise permitirá dar um lugar no discurso às angústias das mulheres em nosso

trabalho com gestantes e puérperas. Assim, os seus sintomas através de novas palavras ditas, numa

fala que se pretende desejante desliza e podemos trazer um aplacamento dos conflitos que emergem

na mulher grávida. São nelas que observamos muitas vezes “o inconsciente à flor da pele”.

Com a ideia de que as gestantes que nos procuram e aquelas que a nós são encaminhadas

apresentam sintomas nos quais a psicanálise, ao longo do último século pode demonstrar a sua

eficácia é que apostamos no trabalho que realizamos. Temos recolhido ao longo destes muitos anos,

resultados positivos no campo da psicanálise em hospitais. São os casos já atendidos que trazem

uma grande contribuição no aperfeiçoamento de nossa abordagem e da criação de pequenas

inferências teóricas.

A apresentação a seguir é de alguns fragmentos de casos atendidos e descritos pelas

residentes Aline Monteiro Pinheiro, Clareana Velasco Silva de Paula e Thamires de Souza Cardoso

Mayrink Paiva e poderão dar uma breve noção do que é realizado pela equipe de psicologia no
134
Núcleo Perinatal. Os casos aqui apresentados e seus desdobramentos se apresentam com nomes

fictícios. Os comentários que demandaram muitas supervisões foram aqui resumidos.

Caso atendido pela residente do primeiro ano – R1 Aline Monteiro

“Sou chamada por uma enfermeira para avaliar uma paciente com 38 semanas de gestação,

que se encontra na sala de admissão, relatando ideação suicida. Dirijo-me a Maria, que se diz muito

angustiada com a gravidez que não foi desejada e atrapalhou seus planos. Além disto, diz que o

planejado é que seu parto seja normal e esse também não é o seu desejo. Afirma que tem medo de

‘fazer uma besteira’ ao retornar para casa.

Maria diz: ‘não consigo terminar nada em minha vida, estudos, moradia, trabalho’. Nesse

momento entendo que o prosseguimento da gravidez também pudesse fazer parte dessas tantas

coisas que Maria diz não conseguir finalizar. Durante o atendimento a paciente relata que tentou

suicídio a alguns anos atrás devido a uma separação e nesse momento também e recentemente

também havia tentado interromper a vida, apesar de ficar dividida em relação aos sentimentos

dirigidos ao bebê que espera. “Sinto que algo vai acontecer... queria logo ter este filho, talvez

olhando para ele possa gostar, algo mudar”. Maria estava bastante angustiada e seu caso comoveu a

equipe, que decidiu a internação.

Após a internação encontro a paciente bem mais calma e diz ‘estou mais tranquila, me sinto

protegida’. A paciente relata não dividir as suas preocupações e angústias com ninguém e talvez,

por este motivo a equipe tenha tido uma atitude acertada em acolher e poder escutar o pedido de

ajuda desta paciente. Relembra o meu atendimento anterior e afirma que precisa dividir seus

pensamentos com alguém, pois quando se frustra se desequilibra. Afirma: ‘estou passando por

muitas mudanças, preciso me acostumar’. Maria teve seu filho durante a internação e segue em

atendimento comigo no ambulatório.

135
A supervisão do caso focalizou, entre outros, o fato da paciente ter relatado tentativas de

suicídio e a sua expressão em torno do não desejo de engravidar. O risco de suicídio foi descartado

na medida em que os atendimentos prosseguiram e a paciente estabeleceu uma relação

transferencial de muita confiança na psicoterapeuta Aline. O fato de a paciente perceber o quanto

era necessário falar de suas dificuldades, favoreceu a sua demanda em prosseguir com os

atendimentos após o parto, no ambulatório do Núcleo Perinatal.

Caso atendido pela residente de segundo ano R2 Clareana Velasco de Paula

“Amélia, 34 anos, 1 filha de 16 anos do seu primeiro relacionamento no Ceará. Veio para o

Rio de Janeiro com 19 anos. Mora junto com o seu atual companheiro há cerca de 1 ano. Há 6 anos

foi diagnosticada com câncer de mama e precisou fazer mastectomia e completou todo o tratamento

no INCA.

Conheci a paciente na Recepção do Núcleo Perinatal situada no ambulatório. Ela estava

dando entrada na admissão manifestando fortes dores na coluna. Apresentei me como psicóloga do

setor e me coloquei à disposição de ouvi-la. Diz, em seguida, que precisava mesmo falar com uma

psicóloga e que já se tratava com uma psicóloga na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro,

devido ao câncer de mama que teve há alguns anos atrás.

No atendimento na enfermaria, no dia seguinte, Amélia me relatou que estava começando a

sentir falta de sua casa e da rotina. Mesmo com a recomendação de repouso absoluto não conseguia

ficar “à toa em casa”. Dizia que não conseguia ver bagunça e não fazer nada. Relata que seu esposo

e filha são muito bagunceiros. Refere também sentir saudades de seus bichos de estimação.

Amélia diz estar na mesma idade gestacional de quando a sua primeira filha nasceu e isto a

tem assombrado de alguma forma, digo-lhe de como as coisas estão diferentes nesse momento da

sua vida. Ela me conta que o nascimento da primeira filha se deu quando ela ainda morava no

136
Nordeste de parto cesário antecipado devido a hipertensão, entretanto a filha nasceu saudável sem a

necessidade de cuidados intensivos.

Nosso atendimento posterior se deu de forma inesperada. Amélia havia me solicitado na

enfermagem, devido estar muito nervosa com o desentendimento que teve com sua colega do leito

ao seu lado, durante a madrugada. O desentendimento se deu devido ela ter sido chamada de

drogada por estar com o nariz fungando. A enfermagem a colocou em outro quarto em que ficaria

sozinha. Ela me relatou ter medo de dormir sozinha no hospital.

O atendimento posterior foi marcado por choros, gritos e desespero. Amélia estava

apavorada com a possibilidade de ter que se submeter a um parto normal. Fato que não ocorreu. Ela

deu à luz a sua filha após 39 semanas através de parto cesariano. Decidiu amamentar a filha apesar

da contraindicação médica devido ao câncer de mama recente.

Amélia prossegue as consultas no ambulatório após a sua alta da maternidade. Relata as

dificuldades de relacionamento com as filhas de seu marido, sua preocupação excessiva com a

limpeza. Ao ser questionada de quando isto se iniciara conta que desde a infância, aos 8 anos,

quando da morte de uma de suas irmãs com apenas 3 anos que morreu em acidente doméstico.

Interrompe os atendimentos alegando estar muito atarefada e retorna um contato um mês

depois, dizendo ter ficado muito nervosa e agitada quando de seu retorno ao INCA para fazer

exames. Os exames não acusaram nada de grave, mas isto a perturbou muito. Disse-lhe que

continuava à sua disposição até fevereiro de 2018, quando encerro o período da residência.

Nas supervisões sobre o caso pode-se destacar o quanto o fato da paciente ter sido alertada

do perigo de uma gravidez devido ao câncer de mama, de nada valeu a contraindicação dos

oncologistas. O desejo de engravidar e ser mãe prevaleceu e a paciente assumiu os riscos negando a

sua condição de saúde. Os aspectos de sua excessiva preocupação com a limpeza e arrumação não

137
puderam ser trabalhados em maior profundidade devido ao pouco tempo em que ficou em

atendimento”.

Caso atendido pela R2 Thamires de Souza Cardoso Mayrink Paiva

“Julia foi encaminhada ao serviço de psicologia pela equipe médica após a primeira consulta

no pré-natal. Ela descobriu a gestação atual com cerca de 24 semanas e foi encaminhada ao HUPE.

Sua doença de base, que justificava seu pré-natal como de alto risco, era um quadro de hipertensão

arterial. Em seu primeiro atendimento, ela conta ter sido encaminhada para a psicóloga porque

“sofreu uma perda”. Julia relata que cerca de 10 meses atrás ‘perdeu uma filha’. Ela estava se

referindo a experiência de ter tido um feto natimorto. Pouco tempo após esta perda, Julia

engravidou novamente.

A gestação atual que ocorreu de forma não planejada e pouco tempo após uma perda

gestacional tardia, demarca o início de seu tratamento no HUPE. Julia conta que tinha descoberto a

gravidez recentemente. Ela tem 38 anos e relata que estava sem menstruar há alguns meses, porém

atribuía este fato a possibilidade de estrar entrando na menopausa. A ausência da menstruação, por

si só não a fez desconfiar da gravidez. A paciente também percebeu um aumento de peso, e devido

a isto resolveu fazer dieta. Mesmo com dieta, continuava engordando e por este motivo, após 6

meses de gestação, desconfia da possibilidade de estar grávida.

Ao ter sua suspeita confirmada, Julia disse que se sentiu muito culpada e cogita fazer um

aborto. ‘Eu fiquei muito triste ao saber da gravidez. Não parava de chorar. Parecia que este bebê

estava vindo para substituir Natália’ (o feto natimorto). Em seguida ela conta que a Natália foi uma

filha muito desejada. A gravidez de Natália não fora planejada, pois Julia acreditava que não

poderia engravidar, segundo as informações médicas. Quando descobre a gravidez - “seu milagre” -

fica extremamente feliz e começou a fazer planos. Estes planos se encerraram abruptamente,

quando Julia dá à luz um feto morto com cerca de 41 semanas de gestação.

138
Durante os atendimentos ficou possível perceber uma preocupação de Julia com o fato de

não conseguir investir na gestação atual. O bebê que está gestando não tem nome. Somado a isto

Julia não conseguiu comprar nada para este bebê. Apesar desta preocupação aparecer em

determinadas falas, Julia utiliza grande parte do tempo dos atendimentos para falar de Natália, a

filha que perdeu.

Julia viveu uma perda muito significativa e não teve tempo de elaborar esta perda ao

engravidar novamente, logo em seguida. Durante algum tempo nega a sua condição de gestante, e

ao não conseguir mais negá-la, se culpa. Somado a isto, a gestação com todas as sensações e

mudanças que dela decorrem a lembram ainda mais da gestação da filha que perdeu.

Com a oferta de uma escuta, abriu-se um espaço para um trabalho de luto. Julia pode falar

sobre a perda que sofreu, e, com o tempo novas questões foram surgindo. A paciente relatou o medo

de passar por aquela experiência novamente. Associou que o fato de não conseguir investir na

gravidez atual poderia estar na tentativa de se defender do medo de uma nova perda. Aos poucos,

Julia começou a dar lugar à filha que estava esperando. Escolheu um nome, fez um chá de bebê,

mostrou-se ansiosa com a sua chegada. Não podemos dizer que o trabalho se encerrou. O trabalho

com Julia prossegue e algo se movimentou no que diz respeito ao que a levou para uma análise.

Nas supervisões trabalhou-se o fato de uma gestante conviver com perdas fetais pode

repercutir em uma nova gestação. O caso mostra claramente como um luto não elaborado trouxe

consequências importantes para a paciente atendida em psicanálise. Como dar lugar a uma filha se a

perda recente de um feto natimorto não pode ser aceito? Diante dessa realidade a possibilidade de

falar, exprimir a dor e o medo diante de uma possível nova perda se fez presente nas sessões do

atendimento. Trabalhada esta grande dificuldade em aceitar uma nova gravidez abriu- se para este

bebê um lugar no imaginário desta mãe.

139
Poder vir ao mundo com um nome, festejada num chá de bebê foi o que este atendimento

pode dar a esta criança como prova de que houve uma elaboração na mãe ainda gestante, de uma

perda anterior muito dolorosa”.

Os casos atendidos são em número muito elevado e os aqui expostos servem como pequenos

fragmentos exemplares do que é realizado pela equipe de residentes do Núcleo Perinatal, sob

supervisão. Os casos e os resultados obtidos são derivados de todo o trabalho descrito acima ao

longo das últimas décadas e especialmente a partir da Residência em Psicologia Clínica

Institucional. Fizemos a escolha na utilização da psicanálise como instrumento de trabalho e de

reflexão de uma prática institucional, o que tem trazido bons resultados na formação dos residentes

e nas práticas dos atendimentos.

Comentários finais

A instituição hospitalar seria para Lacan a expressão do discurso do mestre e do discurso

universitário. O saber do discurso médico, por exemplo, parte de verdades científicas apoiadas em

ciências como a biologia e várias outras. Assim como o campo do Serviço Social se apoia nas

Ciências Sociais e assim por diante.

Quando o discurso do psicanalista penetra na instituição surge evidentemente um outro

saber. É um dado inquestionável que os hospitais são o campo da verdade médica, onde tudo

converge para a cura da doença, para evitar a morte ou mesmo seu adiamento. A psicanálise cria

um campo de atuação aliada aos outros campos de saberes, no sentido em que ela também pretende

uma melhora na condição do sofrimento. Ela parte da escuta do sujeito, onde emerge através dos

sintomas psíquicos ou mesmo corporais, a proteção contra algo que se teme ou mesmo se deseja,

mas não pode ser expressado ou realizado. Como um paciente hospitalar se vê como sujeito e como

ele se sente ao ser diagnosticado? No caso particular das gestantes, o que pensam e sentem ao se

saberem grávidas de risco?

140
A psicanálise escuta as gestantes de um lugar específico. O lugar no discurso proposto por

Lacan e já definido por Freud. Não é uma postura fácil de ser sustentada em meio a uma rotina de

enfermarias e ambulatórios no serviço público. Há falta de espaços físicos para consultórios

apropriados, há as interrupções devido aos procedimentos necessários como exames, curativos e

outros. Mas estes fatos são contornados e o trabalho integra as contingências que surgem e se

realiza plenamente.

Se o discurso capitalista, definido por Lacan, não está tão visível em um hospital

universitário e público ele, mesmo assim, está presente. Na nossa sociedade, onde a população que

vem ao serviço de saúde pode estar carente de inúmeros direitos sociais, este fato se refletirá em

todas as práticas. Estas dificuldades se apresentam no discurso das pacientes e o psicanalista tem

uma mostra dos muitos sofrimentos causados pelas desigualdades econômicas, educacionais em

nossa população. Do mesmo modo que os demais agentes da saúde encontram obstáculos para o

pleno exercício de suas práticas.

É justamente por pensarmos o lugar da psicanálise no mundo de hoje, em nossa cidade e

país que o trabalho da Residência se tornou um campo de pesquisa para aqueles que se interessam

em entender o que é um psicanalista hoje. A teoria não pode dar conta do inesperado, do que

emerge nas falas dos pacientes. Se tratamos da fala num corpo adoecido, cercado por uma

linguagem médica será preciso ter uma delicada escuta no trabalho do manejo das sessões

terapêuticas e na compreensão dos textos dos autores na psicanálise.

Nos últimos anos a Residência no HUPE se tornou uma referência para muitos jovens

psicólogos e isto é demonstrado a cada ano na grande procura pelo processo seletivo anual. Mais do

que um lugar de prática e de estudo, da possibilidade de uma bolsa remunerada por dois anos, a

experiência vivida por estes jovens contribui para que tenham uma nova visão da psicanálise. A

psicanálise no hospital é outra, sendo a mesma em seus princípios éticos.

141
A especialização de residentes em Psicologia num tradicional hospital Universitário,

conhecido pela sua importância na formação de profissionais como é o HUPE nos leva a refletir

sobre o lugar do ensino público no campo da saúde. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

umas das pioneiras no Rio de Janeiro na criação do curso de medicina, pôde, em sua evolução, criar

um corpo docente e técnico de excelência.

Através de concursos públicos e na exigência de quadros cada vez mais bem formados, o

Instituto de Psicologia garante, na preceptoria, pessoas dedicadas ao trabalho de formação de

futuros psicólogos aptos ao atendimento em geral, como também nos hospitais e nos ambulatórios.

Os residentes relatam a importância da residência no HUPE após ou mesmo durante as experiências

vividas, reconhecendo a formação como motivadora para prosseguirem na busca de novos

conhecimentos e na ampliação da prática em psicologia.

A residência em Psicologia Clínica Institucional no Núcleo Perinatal é hoje, após 25 anos,

uma conquista comemorada, graças ao empenho de muitos. Lá onde as adversidades se

transformam em aprendizado e se busca novos aprimoramentos práticos e teóricos. Esperamos que

as experiências aprendidas, as trocas e os desafios de cada dia nos levem a realizações cada vez

mais eficazes e inovadoras no futuro.

Referências

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142
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proferido em 1970)
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Wanderley, B. D. (1997). Palavras em torno do berço. Salvador: Ágalma.


Zalcberg, M. (2003). Relação mãe e filha. Rio de Janeiro: Campus.

143
Psicodiagnóstico: paradigmas, experiências, histórias cruzadas e desafios futuros

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado


Cidiane Vaz Gonçalves

Resumo: O psicodiagnóstico vem passando por profundas mudanças desde a sua emergência até a

atualidade. Neste trabalho, apresentamos o percurso desenvolvido no Setor de Psicodiagnóstico da

UDA de Psiquiatria do HUPE desde a sua fundação até o presente momento, articulada à história do

psicodiagnóstico no Brasil. Apresentamos algumas concepções que foram sendo desenvolvidas ao

longo do trabalho no Setor e assinalamos o papel de resistência do psicodiagnóstico no cenário

atual.

Palavras-chave: psicodiagnóstico, avaliação psicológica, instrumentos de avaliação.

Abstract: Psychodiagnosis has undergone profound changes from its emergence to nowadays. In

this work, it is presented the course developed in the Psychodiagnosis Sector of the Psychiatric

UDA of HUPE from its foundation to the current moment, articulated to the history of

Psychodiagnosis in Brazil. Some conceptions that were developed during the work in the Sector are

presented and the role of resistance of psychodiagnosis in the current scenario is pointed out.

Keywords: psychodiagnosis, psychological evaluation, evaluation instruments.

Resumen: El psicodiagnóstico pasa por profundos cambios desde su emergencia hasta la

actualidad. En este trabajo, presentamos el trayecto desarrollado en el Sector de Psicodiagnóstico de

la UDA de Psiquiatría del HUPE desde su fundación hasta el presente momento, articulada a la

historia del psicodiagnóstico en Brasil. Presentamos algunas concepciones que se han desarrollado a

lo largo del trabajo en el Sector y señalamos la función de resistencia del psicodiagnóstico en la

escena actual.

Palabras-clave: psicodiagnóstico, evaluación psicológica, instrumentos de evaluación.

Introdução

144
O psicodiagnóstico constitui-se como um tipo de avaliação psicológica que tem como

particularidade a escuta clínica, concebida como o elemento organizador de todo o processo. Nesse

sentido, durante um psicodiagnóstico a relação estabelecida entre o examinador, o examinando e a

escuta clínica tem um papel relevante na condução do processo, sendo a entrevista psicológica o

principal instrumento de trabalho, apesar de serem frequentemente utilizados testes psicológicos

para compor a avaliação. Para além de um processo avaliativo, trata-se de uma atitude terapêutica

levada à situação.

A palavra psicodiagnóstico associa etimologicamente dois termos que o caracterizam,

ambos de origem grega: o psíquico, relacionado à phsyche que corresponde a “sopro de vida, alma,

princípio da vida” e o diagnóstico, derivado do termo diagnostikos que significa “capaz de

distinguir, de discernir”. Nesse sentido o termo psicodiagnóstico se refere a uma tentativa de

distinguir, de discernir elementos atuantes no psiquismo.

O processo psicodiagnóstico em seus primórdios organizava-se de maneira

significativamente diferente de sua concepção mais atual em termos de objetivos e de seus

procedimentos técnicos. Araújo (2007) assinala que o modelo médico influenciou enormemente as

práticas de avaliação psicológica, sobretudo no período inicial da regulamentação da Psicologia

enquanto profissão. Nessa perspectiva, o papel do psicólogo ao atuar nessa área estava limitado a

endossar diagnósticos psicopatológicos, ocupando, nesse sentido, uma posição bastante subalterna

em relação aos médicos. Tendo como referência o modelo médico, a ênfase das avaliações recaia

sobre os sintomas, o uso da classificação nosológica e o emprego de testes, sobretudo os

psicométricos, para identificar determinadas características patológicas da personalidade do

indivíduo. Observa-se, assim, que o início das práticas avaliativas se mostrou muito marcado por

inseguranças em relação ao papel do psicólogo, pela falta de uma identidade profissional mais

consolidada e pela busca por parâmetros quantitativos na tentativa de conferir maior cientificidade

ao trabalho desenvolvido.

145
Fundamental para as mudanças sobre a concepção de diagnóstico psicológico e sobre a

avaliação psicológica foi a lei 4.119 de 27 de agosto de 1962, que regulamentou os cursos de

formação em Psicologia e as práticas associadas à profissão de psicólogo no Brasil, incluindo o

diagnóstico psicológico. Nesse sentido, a prática avaliativa e as construções diagnósticas passaram,

a partir de então, a ser concebidas não apenas com referências ao saber médico, mas sobretudo a

partir de referências da área da Psicologia que envolvem contribuições relevantes de autores

argentinos, como Ocampo (1981) e Arzeno (1999), bem como de brasileiros, tais como Trinca

(1983) e Augras (1986), entre outros.

Com o fortalecimento da profissão de psicólogo no Brasil e com a consolidação de uma

identidade afinada às especificidades das práticas profissionais e dos princípios éticos que regem a

profissão, o psicodiagnóstico também passou por transformações bastante significativas em termos

de suas concepções e aplicações práticas. De acordo com Araújo (2007), essa mudança vai incidir

sobre o próprio termo diagnóstico que atualmente tem sido utilizado de forma ampla, com sentido

mais próximo de seu significado etimológico, evocando sempre um estudo aprofundado realizado

com o objetivo de conhecer determinado fenômeno ou realidade, por meio de um conjunto de

procedimentos técnicos e metodológicos, calcados em embasamento teórico referendado. A autora

assinala ainda que no âmbito da Psicologia, as práticas de diagnóstico e avaliação psicológica

tiveram, e ainda têm, um papel fundamental na formação e constituição da identidade profissional

do psicólogo. Entretanto, apesar da constatação de sua importância, observamos ainda hoje um

grande desconhecimento e consequente despreparo no que diz respeito à área, a suas propostas

metodológicas, teóricas e práticas no próprio meio profissional. Essa realidade foi abordada em

estudo desenvolvido por Noronha (2002) que constatou:

Se por um lado existe o psicólogo que está atuando na prática, que não está preparado para

as solicitações do mercado profissional e que não está atualizado, por outro lado, têm-se

instituições formadoras que não estão formando de acordo com as necessidades


146
profissionais, e por outro lado ainda, têm-se os pesquisadores cujos conhecimentos e

descobertas não estão sendo transmitidos de maneira eficiente (Noronha, 2012, p. 140).

Desde as primeiras publicações sobre psicodiagnóstico até as contribuições atuais,

observamos mudanças bastante significativas, tanto em relação à concepção do processo que pode

ser pensado em associação ou não com testes psicológicos, até a postura do psicólogo e do cliente,

os alcances do processo e seu papel interventivo. Nessas mudanças inclui-se o Setor de

Psicodiagnóstico da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro

Ernesto, único na cidade do Rio de Janeiro, que desde sua fundação em 1982 acompanhou

transformações pelas quais o processo psicodiagnóstico passou, sendo ele próprio propositor de

mudanças a partir da atuação prática que veio desenvolvendo ao longo dos anos e pela interlocução

com outras áreas hospitalares, além da própria Psiquiatria, como Nutrição, Cardiologia,

Neurocirurgia, Saúde do Adolescente, Psicologia Médica, entre outras. Além de responder a

demandas de serviços de saúde de outros municípios, passou a desenvolver parcerias com o

Judiciário através de seus diversos órgãos, não apenas do município do Rio de Janeiro, mas também

de outros municípios fluminenses e até mesmo de outro Estado (Minas Gerais). Tais parcerias

envolvem basicamente situações de violência contra crianças e adolescentes, bem como violência

doméstica.

Neste trabalho apresentamos a atuação desenvolvida no Setor de Psicodiagnóstico da

Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto, bem como

concepções teórico-práticas que nortearam sua atuação docente-assistencial. Concluímos com nosso

posicionamento em relação ao processo psicodiagnóstico e com alguns assinalamentos sobre

expectativas e desafios futuros relativos a essa área tão importante de atuação exclusiva do

psicólogo.

O Setor de Psicodiagnóstico (IP/HUPE/UERJ): o relato de um percurso

147
O Setor de Psicodiagnóstico foi criado a partir de uma demanda da Unidade Docente

Assistencial de Psiquiatria ao Instituto de Psicologia em 1982, quando se iniciaram as articulações

para sua implementação, tendo iniciado suas atividades em janeiro de 1983, ao responder aos

primeiros pedidos de parecer advindos da própria Unidade de Psiquiatria (Almeida-Prado, 1999).

Desde então vem atuando não apenas em termos assistenciais, mas também quanto à capacitação de

estagiários do Curso de Graduação em Psicologia da UERJ, de alunos de cursos de Psicologia de

outras universidades e psicólogos em treinamento em serviço, conforme oferecido pela

Coordenação de Desenvolvimento Acadêmico (CDA) do HUPE. A partir de 1993 o Setor passou a

compor com o projeto do Curso de Especialização em Psicologia Clínico-Institucional –

modalidade Residência, passando a receber residentes.

Tratando-se de área bastante complexa, sua capacitação é exigente e requer a integração de

conhecimentos em Psicologia do Desenvolvimento, Psicopatologia, Psicodinâmica Familiar, além

daqueles específicos em técnicas de entrevista, testes psicológicos e elaboração de documentos

calcados em avaliação psicológica. Estando a formação na cidade do Rio de Janeiro bastante

insuficiente em termos acadêmicos, seja por restrições quanto à carga horária destinada às

disciplinas dirigidas especificamente à área, seja pelo desinteresse de docentes que não a valorizam

ou não estejam devidamente capacitados para dar-lhe o devido valor, dá-se um contraste expressivo

entre a demanda de trabalho existente no mercado e a capacitação precária de profissionais para

atuarem na área, o que se evidencia pelo número expressivo de processos e representações éticas

junto a Conselhos Regionais de Psicologia. Tal situação denigre não apenas os profissionais

diretamente implicados, mas a própria classe de psicólogos, já que são muitos, como se pode

constatar.

Avaliação psicológica e psicodiagnóstico: paradigmas e definições

A avaliação psicológica tem sido definida na atualidade como a busca pela construção de

um saber sobre a vida mental de indivíduos e grupos. Sendo assim, trata-se de um procedimento

148
investigativo a respeito de diversos elementos que compõem o funcionamento psíquico e dizem

respeito à dinâmica da personalidade, como afetividade, funções cognitivas, padrões de relação

pessoais e familiares, dentre outros aspectos. Envolve um corpo organizado de princípios teóricos,

métodos e técnicas de investigação como entrevista e observações clínicas, testes psicológicos,

técnicas projetivas e outros procedimentos de investigação clínica, como as técnicas expressivas,

com jogos, desenhos e recursos diversos. A escolha das estratégias e dos instrumentos empregados

é feita sempre de acordo com o referencial teórico, o objetivo da avaliação, isto é, os elementos que

se deseja investigar, e a finalidade, o contexto para o qual se destina.

A Cartilha sobre Avaliação Psicológica (CFP, 2007) a define como:

[...] um processo técnico e científico realizado com pessoas ou grupos de pessoas que, de

acordo com cada área do conhecimento, requer metodologias específicas. Ela é dinâmica, e

se constitui em fonte de informações de caráter explicativo sobre os fenômenos

psicológicos, com a finalidade de subsidiar os trabalhos nos diferentes campos de atuação do

psicólogo, dentre eles, saúde, educação, trabalho e outros setores em que ela se fizer

necessária. Trata-se de um estudo que requer um planejamento prévio e cuidadoso, de

acordo com a demanda e os fins aos quais a avaliação se destina. (Conselho Federal de

Psicologia, 2013, p. 8).

Podemos afirmar que atualmente as concepções sobre o psicodiagnóstico se mostram

bastante afinadas à perspectiva de avaliação psicológica apresentada pelo Conselho Federal de

Psicologia, sendo ele próprio um elemento fundamental na construção desse entendimento. Sendo

assim, podemos afirmar que o psicodiagnóstico teve um papel muito relevante para a construção da

atual visão de avaliação psicológica, uma vez que abrange possibilidades de atuação bastante

diferenciadas dos “testólogos”, como assinala Cunha (2000), ou das preocupações com os

diagnósticos psicopatológicos. Ao adotar uma perspectiva clínica mais identificada com a teoria

psicanalítica ou fenomenológica, o psicodiagnóstico distanciou-se da preocupação com a

149
neutralidade e a objetividade, passando a enfatizar a importância da subjetividade e dos aspectos

transferenciais e contratransferenciais presentes no enquadre. Assim, ao uso de testes foram

acrescentados outros procedimentos, com o objetivo de complementar dados obtidos através da

testagem, com ênfase nas técnicas de entrevista, no que se passa no aqui-agora da sessão, na história

de vida do examinando, com vistas à obtenção de uma compreensão global de seu estar no mundo.

O psicodiagnóstico contou com uma série de contribuições, conforme mencionamos acima.

Entretanto, tendo em vista o trabalho desenvolvido no Setor de Psicodiagnóstico, cuja referência

teórica se fundamenta na psicanálise, apresentaremos brevemente concepções de Ocampo, Arzeno e

cols. (2005), de Arzeno (2003) e de Trinca (1983) por serem psicanalistas. Pretendemos assim

situar o psicodiagnóstico a partir do referencial psicanalítico e apresentar algumas reflexões

decorrentes do trabalho no Setor.

Ocampo e Arzeno sistematizaram o psicodiagnóstico com ênfase na entrevista clínica, na

observação da dinâmica da transferência/contratransferência presente em todas as relações, e na

devolução dos resultados ao final do processo. Para as autoras, o psicodiagnóstico apresenta-se

como uma prática clínica avaliativa bem delimitada quanto ao tempo, aos objetivos, aos papéis e

diferenciada de um processo analítico. Nesse sentido, a partir do psicodiagnóstico busca-se obter

uma compreensão profunda e a mais completa possível da personalidade do paciente, incluindo

elementos constitutivos, patológicos e adaptativos. O psicodiagnóstico nesse modelo abrange não

apenas aspectos presentes referidos ao diagnóstico em si, mas também futuros, com a busca de uma

perspectiva prognóstica. Dessa forma, o processo é considerado a partir de etapas delineadas

previamente, desde o contato inicial à entrevista de devolução. Os instrumentos incluem a entrevista

clínica, a aplicação de testes e técnicas projetivas. Essa perspectiva mostra-se estreitamente afinada

com o modelo clínico e a partir dela, o psicólogo deve, através das entrevistas e dos testes, construir

um conhecimento sobre o examinando, que por sua vez deve colaborar com o processo e receber

uma devolutiva sobre si ao final.

150
Enquanto Ocampo e Arzeno delimitam o psicodiagnóstico em etapas que devem ser

seguidas de maneira mais rígida e levam em consideração uma situação na qual uma pessoa pede

ajuda a outra supostamente em condições de vir a ajudá-la, Trinca (1983) concebe o processo

psicodiagnóstico de maneira bastante peculiar, dando ênfase à relação construída entre o psicólogo

e o cliente, à criatividade do examinando e do examinador e à construção conjunta de conhecimento

sobre o funcionamento mental do examinando a partir de um viés relacional. O modelo de atuação

proposto pelo autor foi muito difundido entre os profissionais brasileiros que trabalham com

avaliação psicológica na abordagem psicanalítica.

Trinca (1983) busca no psicodiagnóstico desenvolver uma visão abrangente e integradora da

personalidade, por meio da compreensão das dinâmicas psíquicas, intrafamiliares e socioculturais.

Para isso, dialoga com outros campos do conhecimento que não apenas a psicanálise. Desse modo,

a análise é complementada com interlocuções com teorias do desenvolvimento, as relativas à

dinâmica de grupo, à dinâmica familiar, psicopatologia, dentre outras. Tem ainda como

características importantes a valorização do pensamento clínico e uma maior flexibilidade, na

estruturação do processo que deixa de ser pensado a partir de etapas pré-estabelecidas, como as

definidas por Ocampo e Arzeno (2005). A relação e o vínculo desenvolvidos entre o psicólogo e o

cliente são valorizados como um dos principais elementos do processo psicodiagnóstico. Neste

sentido, o uso de testes psicológicos ou qualquer outro procedimento clínico de investigação da

personalidade, torna-se dependente do pensamento clínico empregado, sistematizado a partir do que

é próprio à relação estabelecida entre examinador e examinando (Trinca, 1983). Assim, a clínica se

coloca como princípio organizador na interpretação dos dados, definindo os critérios, os

procedimentos e os esquemas de raciocínio, para integração dos dados e para sua análise. Cabe

salientar que esta forma de atuação se mostra referida ao modelo clínico, porém tendo em vista as

articulações propostas com outros campos do saber, torna-se mais adequada ao exame de situações

que extrapolam a clínica, como por exemplo as perícias psicológicas ou assistências técnicas

solicitadas no âmbito judiciário.


151
A partir do ano 2000 fez-se uma proposta de psicodiagnóstico fortemente influenciada pelo

modelo desenvolvido por Trinca (1983), na qual a avaliação e a intervenção são pensadas

simultaneamente. Este modelo passa a ser denominado de psicodiagnóstico interventivo e, apesar de

não ser um processo psicoterápico, visa produzir efeitos terapêuticos a partir da reflexividade

promovida durante o processo e das devoluções realizadas a cada encontro.

Milani, Tomael e Greinert (2014) assinalam que a aplicação do psicodiagnóstico no modelo

interventivo vem sendo utilizada desde a década de 1990 por alguns profissionais da área de

Psicologia. Em alguns atendimentos constataram-se efeitos terapêuticos nos pacientes após

passarem pelo processo psicodiagnóstico sem que houvesse, por parte dos profissionais, a intenção

de interferência. Esses resultados levaram-nos a questionar se o simples fato do contato

examinando-examinador já não provocaria reações que propiciariam certa reorganização mental do

examinando.

Barbieri (2010) define o psicodiagnóstico interventivo como “um procedimento clínico que

consiste em efetuar intervenções já no momento de realização de entrevistas e aplicação de testes,

oferecendo ao paciente devoluções durante todo o processo avaliativo e não somente ao seu final”

(p. 210). De acordo com a autora, no psicodiagnóstico interventivo há a priorização de instrumentos

pouco estruturados e baseados na associação livre, como as entrevistas. Assim, o uso de técnicas

projetivas faz com que as preocupações sobre validade, precisão e padronização estatística não

tenham muito sentido nesse contexto. Os objetivos da avaliação abrangem as dinâmicas

intrapsíquica, intrafamiliar e sociocultural como forças em interação, formando uma trama que pode

resultar em sofrimento e desajuste. A análise dos elementos psíquicos é sempre referida a seu

caráter idiossincrático e pessoal. Nessa perspectiva, pode-se afirmar que o psicodiagnóstico

interventivo se baseia numa postura criativa e que integra compreensão e intervenção (Tardivo,

2007).

152
Nesse entendimento, o manejo relacional, a análise da transferência e da contratransferência,

a emergência de aspectos inconscientes e o desenvolvimento de pesquisas que apontam para os

aspectos singulares da psicodinâmica do sujeito avaliado são muito valorizados. Para Barbieri

(2010), a psicoterapia e o psicodiagnóstico interventivo se mostram afinados uma vez que vão de

encontro à proposta de Bleger (1980) quando assinala que uma boa observação requer formular

hipóteses durante a entrevista e verificá-las no momento mesmo em que elas ocorrem, de acordo

com as observações subsequentes; assim, do seu ponto de vista, observar, pensar e imaginar

compõem um único processo dialético, indissociável e complementar. Entretanto cabe a pergunta: é

possível realizar o psicodiagnóstico interventivo em todas as situações de avaliação

psicodiagnóstica? Seria todo psicodiagnóstico interventivo? Conforme vimos, a resposta é não, pois

dependerá da técnica e da postura teórica adotadas pelo examinador, além de ter-se que considerar a

própria abertura do examinando quanto ao processo em andamento.

De acordo com Barbieri (2010), o psicodiagnóstico interventivo poderia ser estruturado a

partir de alguns eixos comuns àqueles apresentados por Trinca (1983), como a busca pela

elucidação do significado latente e as origens das perturbações psíquicas, a ênfase na dinâmica

emocional inconsciente do paciente e de sua família, a consideração do conjunto do material clínico

apresentado e a busca por uma compreensão globalizada do examinando. Neste modelo, o

psicólogo seleciona os aspectos centrais e nodais para a compreensão dos focos de angústia, das

fantasias e mecanismos de defesa, utiliza, predominantemente, o julgamento clínico, estando

implicada a utilização de recursos mentais do psicólogo para avaliar a importância e o significado

dos dados. Durante o processo, o diagnóstico mostra-se subordinado ao pensamento clínico e ao

referencial teórico utilizado pelo profissional, sendo privilegiadas as entrevistas, a análise da

transferência e da contratransferência e as técnicas projetivas.

Mais recentemente tem se observado que apesar de a entrevista e as técnicas projetivas

serem consideradas elementos prioritários na condução do psicodiagnóstico, observa-se cada vez

153
mais a utilização de outros recursos complementares, como os testes objetivos ou psicométricos.

Esse uso mostra-se justificado na medida em que os instrumentos são concebidos como recursos

auxiliares na investigação de problemas variados do funcionamento psicológico, sendo o sujeito

avaliado o beneficiário do processo. Assim, são as hipóteses formuladas a partir do contato com

determinado sujeito que nortearão a escolha dos instrumentos mais adequados para sua avaliação.

Essa perspectiva já vem sendo descrita na literatura, conforme contribuições de Cunha (2005) e

Primi (2010).

Caracterizando uma prática

Ao longo do trabalho que foi desenvolvido no Setor de Psicodiagnóstico, uma identidade

relativa à concepção de psicodiagnóstico e o direcionamento das práticas foram sendo consolidados.

Assim, cabe retomarmos alguns pontos importantes que caracterizaram o trabalho no Setor. Nesse

sentido o psicodiagnóstico passou a ser pensado para além de seus aspectos clínicos, mas

especialmente como uma forma de organização do raciocínio investigativo, apoiado em uma

concepção de avaliação como produção de conhecimento sobre a vida psíquica em seus aspectos

conscientes e inconscientes, no caráter interventivo do trabalho, na escuta da transferência e da

contratransferência, e nas marcas produzidas no e pelo vínculo intersubjetivo.

Assim, um primeiro elemento que se destaca é o caráter interventivo do psicodiagnóstico.

Apesar de a proposta ser avaliativa, sempre foi sustentada a compreensão de que o psicodiagnóstico

produz efeitos terapêuticos decorrentes do vínculo intersubjetivo, da proposta e da sustentação de

uma perspectiva reflexiva. Nesse sentido, busca-se explicitar os sentimentos relativos à avaliação,

bem como as fantasias que, conforme sinaliza Isaacs (2007), produzem efeitos reais, não apenas no

próprio indivíduo, como também em seu entorno. Neste sentido, o trabalho avaliativo envolve em

grande medida a possibilidade de se examinar a história pessoal do sujeito avaliado, buscando

compreender suas marcas subjetivas, seus vínculos, conflitos, desejos e estratégias defensivas.

Observamos que o exame compartilhado desses aspectos permite, em muitos casos, a ocorrência de

154
uma comunicação autêntica não apenas do sujeito examinado em direção ao examinador, mas

também voltada para seus próprios elementos internos. Essa comunicação, possível pela

compreensão de elementos atuantes no aqui-agora da sessão, permite com frequência o

deslocamento do sujeito frente a situações incompreendidas e estagnadas.

Outro ponto que caracteriza a prática do psicodiagnóstico no referido Setor é a valorização

não apenas de elementos transferenciais, mas também da análise da contratransferência. Cabe

salientar que tal análise difere daquela feita no contexto psicanalítico a partir do uso de

interpretações. Apesar disso, tais elementos são considerados norteadores segundo a perspectiva de

Heimann (1950, 1960) e Racker (1948).

A transferência é definida por Freud (2003b) como a repetição de clichês estereotípicos por

parte do paciente em relação à figura do analista. Nesse sentido, para Freud, o paciente impedido de

recordar, repetia com o analista posturas, pensamentos e sentimentos relativos às relações primárias,

frequentemente as figuras parentais. Durante um psicodiagnóstico observamos a reatualização de

sentimentos, posturas e expectativas que não serão interpretadas como em trabalho psicanalítico,

mas que serão escutadas e consideradas durante todo o andamento do processo.

A contratransferência é definida como o conjunto de reações inconscientes do analista à

transferência do paciente (Bokanowski, 2002; Mijolla, 2005; Sandler, 1986; Steiner, 1997). Nos

primórdios da psicanálise, foi considerada como resistência do analista provocada por conflitos

inconscientes relacionados ao conteúdo do relato do paciente. Era vista, portanto, como um

obstáculo a ser superado pelo analista através do autoexame (Freud, 2003b; Sandler, 1986).

Posteriormente, com os trabalhos de Racker (1973) e Heimann (1950), a contratransferência passou

a ser entendida como uma importante ferramenta para a compreensão do paciente e para as

intervenções do analista. Trata-se de um fenômeno que diz respeito não apenas ao analista ou ao (s)

paciente (s) atendido (s), mas à nova grupalidade formada por todos os presentes durante as sessões

(Baranger & Baranger, 1969).

155
A partir de suas formulações, Heimann (1960) tratará a contratransferência como um fenômeno

comum na clínica analítica e a olhará de modo mais positivo, enfatizando os aspectos relativos à

comunicação. Tal entendimento trouxe mudanças não só em relação a posicionamentos teóricos,

mas especialmente quanto à técnica, uma vez que as comunicações recebidas pelo analista podem

ser utilizadas para a compreensão da psicodinâmica envolvida, bem como nas intervenções clínicas.

Durante o psicodiagnóstico as reações contratransferenciais devem ser observadas atentamente, pois

se mostram preciosas na medida em que permitem a compreensão de situações e experiências que

nem sempre são possíveis de serem postas em palavras (Melo, Magalhães & Féres-Carneiro, 2014).

Outro ponto fundamental que caracteriza o trabalho em psicodiagnóstico realizado no Setor

é a escuta da dinâmica familiar, com ênfase a questões relacionadas às vivências familiares (Meyer,

2002; Eiguer, 1995), comuns a todos os sujeitos. Desse modo, busca-se compreender a constituição

psíquica a partir de seus vínculos intersubjetivos, sobretudo aqueles relacionados à experiência

grupal e familiar em seus primórdios. Para Kaës (1997), o grupo cumpre funções fundamentais na

estruturação da psique e na determinação de posições subjetivas, uma vez que todo sujeito nasce

como herdeiro, servidor e beneficiário de uma cadeia de subjetividades que o precede e da qual se

torna contemporâneo. Essa cadeia subjetiva veicula discursos, sonhos e conteúdos recalcados,

fazendo com que cada sujeito seja, ao mesmo tempo, parte constituída e constituinte desse conjunto.

Esta concepção fundamenta-se em uma lógica dialética que considera o sujeito do grupo e o grupo

como as duas faces da mesma moeda.

Destacamos que a escuta da familidade (Meyer, 2002) é realizada não apenas quando a

avaliação se mostra relativa ao funcionamento subjetivo de determinado grupo familiar, mas

também quando avaliamos um sujeito individualmente. Assim, as contribuições de psicanalistas

franceses referidos como grupalistas, como Anzieu, Kaës, Ruffiot, Eiguer, entre outros, marcam de

maneira significativa a característica do processo psicodiagnóstico realizado e ensinado em

instituição, bem como a identidade do examinador.

Perspectivas atuais e desafios futuros


156
No presente momento é possível afirmar que, apesar de terem sido produzidos avanços

significativos em relação à avaliação psicológica e, especificamente, ao psicodiagnóstico, tais

avanços têm sido marcados por muitas tensões, ataques, estagnações e ameaças de retrocesso. É

inegável que a partir dos anos 2000 uma série de mudanças relativas à área da avaliação psicológica

propostas pelo Conselho Federal de Psicologia em parceria com pesquisadores da área e entidades

como a Associação Brasileira de Rorschach ( ASBRO) e o Instituto Brasileiro de Avaliação

Psicológica (IBAP), será decisiva para o cenário atual de maior valorização. Essas iniciativas

incluem a criação da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica, a criação do Sistema de

Avaliação de Testes Psicológicos (SATEPSI) e a publicação de várias resoluções e notas técnicas

pelo Conselho Federal de Psicologia. Dessas parcerias decorrem diretrizes para o ensino da

avaliação no Brasil, bem como artigos que discutem as particularidades desse campo e

desconstroem uma série de equívocos, mormente em relação às diferenças entre o processo de

avaliação psicológica e a testagem. Assim, o momento atual se mostra inegavelmente mais fértil e

marcado pela pesquisa científica que em períodos anteriores. Além disso, cada vez mais temos

observado o crescimento das demandas por avaliações a serem realizadas por psicólogos, com o

reconhecimento de sua especificidade em termos de complementação a outros campos de saber e de

atuação. Apesar disso, paradoxalmente a todo o crescimento, observa-se também que os avanços

são acompanhados por retrocessos, baseados em preconceitos infundados e falta de conhecimento

fundamentado, inclusive dentro do próprio campo de formação do psicólogo.

Já em 2005 Araújo assinalava que muitos cursos de Psicologia reduziam a oferta de

disciplinas de testes psicológicos e técnicas projetivas conforme apontavam os resultados das

pesquisas de Alves, Alchieri e Marques (2001) e de Noronha (2002) sobre o panorama geral do

ensino das técnicas de exame psicológico no Brasil. Primi (2010) frisa que de 2001 a 2010 houve

um aumento significativo no número de publicações sobre avaliação psicológica, porém mesmo

diante desse avanço, questionamos se este não se dá também e/ou principalmente por certo retorno à

busca de parâmetros psicométricos para “validar” os instrumentos e justificar o uso de determinados

157
recursos em detrimentos de outros. Dessa forma, o avanço na área parece alavancado em grande

medida pelas mesmas buscas por cientificidade que marcaram o início das práticas avaliativas no

Brasil, sobretudo alavancadas pelos parâmetros psicométricos. Primi (2010) faz a seguinte

afirmação:

Por ocasião da criação e implementação do SATEPSI, essa discussão foi aprofundada e

felizmente se construiu um consenso de que os princípios de validação psicométricos são

adequados para todos os tipos de técnicas, incluindo as projetivas [grifo nosso]. Mas ponto

central situa-se na constatação de que essas técnicas têm peculiaridades que requerem

métodos psicométricos mais avançados, diferentes dos habitualmente empregados. (Primi,

2010, p. 33).

Nesse sentido, a expectativa de validação, confiabilidade e cientificidade parece residir na

suposição de que o emprego de técnicas psicométricas melhores e diferenciadas das atuais possam

validar os recursos psicológicos, dentre os quais se incluem as técnicas projetivas. Assim, apesar da

constatação de que os métodos projetivos não se adequam à análise psicométrica pelos parâmetros

atuais, a esperança de que esses parâmetros sejam desenvolvidos permanece latente. Um dado

interessante que serve para ilustrar as nossas colocações pode ser observado em relação às

publicações da Revista Avaliação Psicológica, importante periódico da área. Em uma pesquisa em

seu portal eletrônico, contata-se que de 2002 a 2017, ou seja, em um período de quinze anos, apenas

sete artigos contam com a palavra psicodiagnóstico nos descritores. Mesmo assim, nem todos os

artigos abordam o processo psicodiagnóstico, mas referem-se a testes projetivos que podem ser

empregados neste tipo de avaliação. Desse modo, observamos, conjuntamente aos avanços, um

distanciamento cada vez maior dos aspectos centrais que marcam o psicodiagnóstico.

Atualmente, o psicodiagnóstico ocupa um necessário lugar de resistência, em muitos

momentos, de incômodo e, nesse sentido, parece ser ainda marginal tanto para alguns psicólogos

158
que consideram o processo de avaliação e o uso de testes procedimentos rotuladores e sujeitadores,

quanto para aqueles que buscam neutralidade científica a partir de parâmetros psicométricos vistos

como garantidores de validade e cientificidade. Entretanto, apesar das dificuldades, podemos dizer

que o psicodiagnóstico resiste!

No que diz respeito especificamente ao Setor de Psicodiagnóstico, podemos afirmar que ele

teve papel fundamental na formação de muitos profissionais no Rio de Janeiro, não apenas do ponto

de vista técnico, mas, sobretudo, do ponto de vista ético e da conscientização sobre as

possibilidades de atuação do psicólogo e sua grande responsabilidade, haja vista as consequências

reais que enseja, como se constata em termos de decisões judiciais, por exemplo.

Ao trabalhar em grande medida com a perspectiva histórica, o psicólogo considera que

apenas quando um sujeito ou um grupo se apropria de sua história, terá condições de vir a

compreender sua condição presente de estar no mundo, para então poder se projetar no futuro,

desejavelmente de uma forma mais criativa. A partir dessa perspectiva, podemos afirmar que o

trabalho desenvolvido no Setor tem uma importante dimensão histórica e social para o

reconhecimento das práticas avaliativas e para formação no Rio de Janeiro. Assim, conhecer um

pouco da história do Setor é também conhecer um pouco das várias histórias que se cruzam e

constituem quem dele se beneficiou, sejam pacientes, estudantes ou demais profissionais. Poder dar

testemunho de uma história tão rica, de tantas superações e que continua em processo de

transformação é, em grande medida, participar processo de construção da identidade profissional do

psicólogo no Brasil e no Rio de Janeiro e se articular frente aos desafios e perspectivas que estão

por vir.

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161
Psicanálise e família: percalços do édipo e seus destinos trágicos

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado


Bruna Montechiari Guimarães Vohs

Resumo: Aborda-se a psicodinâmica familiar constituída de diversos sujeitos do Inconsciente, da e

na intersubjetividade. Focaliza-se a família com funcionamento prevalentemente narcísico,

intolerante ao luto originário e carente de interdição, o que se evidencia no figurante predestinado.

Preso a veleidades infantis, enreda-se em relação perversa narcísica pautada pelo ant’édipo mal

temperado, na qual cada genitor tem parte ativa. Fragmentos clínicos ilustram tal sofrimento

psíquico compartilhado.

Palavras-chave: família, narcisismo, perversão narcísica, complexo de Édipo, ant’édipo, incestual.

Abstract: Family psychodynamics is constituted of several subjects of the Unconsciousness, each

of them deriving from the inter-subjectivity and as being in it as well. Family with prevalent

narcissistic functioning is intolerant to originate mourning and lacks interdiction, what is evident

through the predestined figurant. Trapped in infantile fancies, he is entangled with his parents in a

narcissistic perverted relationship derived from badly tempered antoedipus. Some clinical fragments

are presented.

Keywords: family, narcissism, narcissistic perversion, Oedipus complex, antoedipus, incestual.

Resumen: Aborda-se la psicodinámica familiar constituida de varios sujetos del Inconsciente, de la

e en la intersubjetividad. Centra-se en la familia con predominante funcionamiento narcisista,

intolerante al duelo originario y que carece de interdicción, lo que se evidencia en lo figurante

predestinado. Atrapado en veleidades infantiles, enreda-se con sus padres en relación perversa

narcisista pautada por el ant’edipo mal templado. Fragmentos clínicos ilustran tal sufrimiento

psíquico compartido.

Palabras-clave: familia, narcisismo, perversión narcisista, complejo de Edipo, ant’edipo, incestual.

162
Introdução

A terapia de família a partir da escuta psicanalítica vem sendo praticada na Unidade Docente

Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto desde 1972, a partir da fundação

do Setor de Terapia de Família pelo Psicólogo Antônio Celso, que encabeçou-o até 1976, quando

sua coordenação foi assumida pela psicóloga Drª. Malvine Zalcberg até 1990. A partir dessa data,

ficou sob a responsabilidade da psicóloga Drª. Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado até 2017.

O setor dedica-se basicamente a assistir famílias de pacientes psiquiátricos, mas também de outros

setores do hospital e, mais recentemente, aquelas encaminhadas pelo Judiciário, comumente

envolvendo situações de abuso e/ou violência doméstica.

O interesse no estudo da família partiu de Palo Alto, quando Bateson e sua equipe se

dedicaram nos anos 1950 a pesquisas envolvendo comunicação e relacionamento em famílias de

esquizofrêncicos. A princípio se considerava que as dificuldades nessas famílias derivavam da

presença do paciente esquizofrênico, depois passou-se a constatar a disfuncionalidade parental,

como mãe intrusiva, pai ausente, até se chegar a um terceiro momento em que se compreendeu

estarem todos envolvidos em uma rede patogênica de relacionamento.

Muitos psicanalistas se ocuparam com questões familiares sem serem terapeutas de família

(Mannoni, Dolto, Winnicott, Searls, Bowlby, Bleger, entre outros), mas grande contribuição se dará

à compreensão de processos familiares inconscientes a partir daqueles referidos como grupalistas,

justamente por seu interesse específico em psicose, família, grupos e instituições (entre eles,

Racamier, Anzieu, Decherf, Caillot, Kaës, Ruffiot, Tisseron, Almeida-Prado, etc.). Bion se

apresenta como um pioneiro no que diz respeito à compreensão dos processos grupais a partir da

perspectiva psicanalítica e suas contribuições continuam a ser referidas e retomadas nesse campo.

Além da compreensão de processos próprios presentes na psicodinâmica inconsciente do

grupo familiar, estudos revelaram mecanismos relativos à transmissão psíquica entre as gerações.

Conforme Freud já assinalava em 1913, seria impossível não transmitir porque, em caso contrário,

teria que se começar sempre do zero. A transmissão se dá tanto de elementos elaborados, referida
163
como intergeracional, quanto daqueles in bruto, que correspondem à transmissão transgeracional,

relativos ao que não foi superado, como traumas precoces promotores de transtornos identitários

graves, luto, vergonha, humilhação, violência, abuso. Trata-se de situações inomináveis, que se

tornam indizíveis e impensáveis, mas nem por isto deixam de ser efetivas no psiquismo individual

ao assombrar gerações futuras (Tisseron, 1996).

A família tem suas raízes na escolha de parceiros, que se dá pautada basicamente por

aspectos insconscientes, e envolve quotidianidade, espaços partilhados, projetos de vida em comum,

sexualidade e nascimento de filhos (Puget e Berenstein, 1993). Organizadores psíquicos

inconscientes dinamizam e estruturam a vida grupal na direção de uma homomorfia crescente, e

Anzieu (1975, 1984) refere cinco deles: a ressonância fantasiosa, a imago, as fantasias originais, o

complexo de Édipo como organizador específico do grupo familiar e metaorganizador grupal, e a

imagem do corpo próprio e o envelope psíquico do aparelho psíquico grupal. Ruffiot (1981) afirma

ter constatado o valor do esquema proposto por Anzieu para o conjunto dos grupos em evolução,

em formação ou em terapia, bem como para o grupo familiar em terapia, na regressão instada pela

situação psicanalítica e na retomada de sua maturação, com suas devidas nuanças clínicas.

Os períodos de desorganização social e cultural se caracterizam, afirma Kaës (2017), pelo

enfraquecimento de garantias metassociais e metapsíquicas, pelo desregramento de suas funções de

enquadramento, de crenças compartilhadas e representações comuns. O autor considera que tal

circunstância atinge, particularmente, os fundamentos da ordem simbólica: a lei que se impõe a

todos e organiza o conjunto é substituída pelo arbitrário e pela anomia, tema do qual se ocupou

Freud (1974b) em O mal-estar na civilização.

Kaës assinala que, no presente, esse mal-estar pode ser qualificado em três tipos de

transtornos, sendo que as patologias do vínculo se sustentam numa espécie de círculo vicioso. Cita

primeiramente aquele derivado das falhas nos sustentáculos da pulsão e no pacto das renúncias

pulsionais parciais necessárias à vida em comum, transtornos estes que se expressam pela defusão

pulsional, pelas correspondentes clivagens do eu e pelo fracasso das sublimações. Aborda em

164
seguida o transtorno que se dá nas identificações e nos sistemas de vínculos, que se manifestam pela

desorganização de marcos identificatórios e das fronteiras do Eu. Tal situação se expressa pelas

falhas dos contratos intersubjetivos sobre os quais se assentam as garantias do espaço onde o Eu

pode advir e se historizar como pertencendo a um Nós. Por fim, refere-se ao transtorno nas certezas

e nos sistemas de representações partilhadas, fonte de intenso mal-estar no trabalho do sentido e da

interpretação, e que se vê acentuado pelo enfraquecimento dos marcos identificatórios, pela

deterioração dos processos de sublimação, o que reforça os efeitos tribais.

Diante desses mal-estares e transtornos, nos diz Kaës, o grupo se inventa e se reinventa para

restaurar as funções metapsicológicas sobre as quais se assentam os suportes e os pactos de

renúncia, a eficácia dos interditos estruturantes, os marcos identificatórios, as crenças e as

representações compartilhadas. O autor considera a especificidade do interesse psicanalítico nos

grupos como dizendo respeito à atenção dada aos efeitos do inconsciente sobre os processos

grupais, bem como destes sobre os processos psíquicos considerados individualmente. A família

constitui um grupo específico, no qual tais efeitos estão operando e justamente atuantes na

constituição de cada sujeito, necessariamente a partir de um outro, ele próprio fruto de uma história

cujas raízes se encontram em seu grupo de pertença, familiar e social, do qual é porta-voz.

O nexo do enquadre e do objeto próprio à psicanálise de família tem que levar em conta as

formações e processos inconscientes implicados nos efeitos da intersubjetividade que os constituem,

bem como considerar a realidade psíquica própria à família enquanto conjunto específico, com sua

particular intersubjetividade vincular constituída de diversos sujeitos do Inconsciente, enquanto

sujeito da e na intersubjetividade.

Neste trabalho focaliza-se a família com funcionamento prevalentemente narcísico,

intolerante ao luto originário e carente de interdição, o que pode se evidenciar na relação com um de

seus membros em particular, referido como figurante predestinado (Racamier, 1989). Preso a suas

veleidades infantis, ele se vê enredado em relação perversa narcísica pautada pelo ant’édipo mal

165
temperado, na qual cada genitor tem parte ativa numa psicodinâmica caracterizada pelo incestual

(Racamier, 1989). Fragmentos clínicos ilustram esta forma de sofrimento psíquico compartilhado.

Interditos e interdições: duas faces de uma mesma moeda

Apresentamos uma família constituída por casal beirando os sessenta anos, ambos com nível

de instrução superior, Helena e João, e três filhos, duas mulheres, Lúcia e Inês, e o caçula, então

com trinta anos, que tinha o mesmo nome que o pai e ao qual nos referiremos como Joãozinho.

Lúcia era profissional independente, já casada e morava com o marido e suas duas filhas. Inês era

policial e se encontrava em vias de sair de casa para casar-se. Joãozinho não tinha nenhuma

autonomia financeira, nunca trabalhara, embora tivesse formação de nível superior. Isolado, não

possuía círculo de amizades, nem nunca tivera algum envolvimento afetivo. Encontrava-se em

acompanhamento psiquiátrico após episódio de agressividade para com o pai, o que o levou à

internação em clínica psiquiátrica. Haja vista evidentes dificuldades nas relações familiares, deu-se

encaminhamento para terapia de família.

Chamada para assistência, compareceu apenas o casal parental: Lúcia já tinha família

constituída, Inês considerou que a proposta não lhe dizia respeito e Joãozinho recusou-se a

participar. Ao se abordarem as circunstâncias em que se deu o descontrole agressivo que levara à

internação, foi relatado que Joãozinho permanecia o dia todo em casa atrás da mãe demandando

atenção, pedindo que fizesse comida para ele ou querendo conversar. Para tanto, costumava chamá-

la a seu quarto, mas muitas vezes a agredia. Segundo Helena, quando "perdeu a vergonha" (sic),

passou a dar beliscões nela na frente dos outros, inclusive do pai. Este justificou não se interpor

entre mãe e filho porque, ao fazê-lo, ela passaria mal (sic), além de afirmar já tê-lo enfrentado

fisicamente e ter sido agredido por ele.

Nesse acolhimento à família, uma situação se esboçava: Helena dizer que o filho perdera a

vergonha sugere que ele passara a fazer algo que deveria ser mantido em segredo entre eles, longe

de olhos alheios, inclusive – ou sobretudo? –, os do pai. João, por outro lado, justifica sua falta de

intervenção para que Helena não passe mal – então é ela quem detém o poder –, mas assinala a

166
seguir que, diante do filho, ele não tem força, nem moral, nem física. Constata-se que o interdito do

tocar não está operante entre mãe e filho, e sexualidade e agressividade, misturadas, expressam a

violência pulsional. A conotação sexual se acentua através da aliança “secreta” entre mãe e filho,

sugestiva de outra transgressão, a edípica, pelas costas do marido-pai, mantido à parte não apenas

por eles, mas também por suas próprias razões: João se via e era visto como sem força.

Anzieu (1985) aborda questões conexas em jogo referentes à necessidade de um

reconhecimento da interdição do tocar e recorda a constatação freudiana – e também clínica –

segundo a qual a vida psíquica tem por base as qualidades sensíveis. O autor questiona, segundo os

modos de organização psíquica, quais seriam os efeitos das estimulações táteis: restauração

narcísica, excitação erógena, violência traumática? Pergunta-se também quais consequências

estimuladoras ou inibidoras sobre a vida sexual ulterior provêm do êxito ou das falhas do aparelho

psíquico em constituir um eu-pele e depois ultrapassá-lo num eu-pensante. Assinala que todo

interdito diz respeito, ao mesmo tempo, a pulsões sexuais e pulsões agressivas ao canalizar sua

pressão, delimitar fontes corporais, reorganizar seus objetos e fins, e estruturar as relações entre

elas. Se isto é mais evidente em se tratando do interdito edípico, não deixa de ser válido para o do

tocar. No entender do autor, para este, sexualidade e agressividade não estão estruturalmente

diferenciadas, sendo assimiladas enquanto expressão da violência pulsional em geral. No que diz

respeito ao incesto, ao contrário, o interdito as diferencia e as situa numa relação de simetria

inversa, não de similitude.

Todo interdito se caracteriza por sua bilateralidade, isto é, se aplica ao emissor das

interdições bem como a seu destinatário. Para que exerça seu efeito de reestruturação do

funcionamento psíquico, o interdito do tocar, assim como o edípico, requer que seja respeitado

pelos pais. Quando isto não ocorre, dão-se faltas graves e repetitivas das quais decorre um

traumatismo cumulativo, com importantes consequências psicopatológicas.

Ao tratar do interdito primário do tocar, Anzieu assinala que ele impõe uma existência

separada ao ser em vias de se individuar e envolve experiências que terão daí por diante que ser

167
fantasiadas. A interdição é significada à criança pela mãe sob a forma ativa de uma tomada de

distância física. Quando ela falha nesse sentido, é relevante que alguém do meio possa intervir

como porta-voz do interdito para que o filho cresça e tenha espaço e tempo para viver por si

mesmo. O interdito primário do tocar se opõe especificamente à pulsão de apego e de se agarrar. Já

o interdito secundário do tocar se aplica à pulsão de dominação: não se pode tocar em tudo, tomar

posse de tudo, ser mestre de tudo. A interdição é formulada tanto pela linguagem gestual, quanto

pela verbal. O sentido explícito implicado é que não apenas não se pode pegar, mas tem-se que

aceitar o risco da recusa ou do adiamento. A transgressão do interdito do tocar se apresenta como

terreno fértil para a perversão narcísica, cuja origem se encontra no universo megalomaníaco

infantil e primitivo, na esteira da sedução narcísica perpetuada (Racamier, 1987).

Do ponto de vista do sujeito, o complexo de Édipo diz respeito ao parricídio e ao incesto,

mas ao apresentar a noção de configuração edípica Faimberg (2001) acentua uma extensão maior,

na qual se associa certo funcionamento narcisista a um contexto edípico, que envolve a

identificação com a forma como os pais possam ter resolvido um conflito narcísico. Se a aquisição

psíquica das diferenças dos seres, dos sexos e das gerações é fundamental para o sujeito, apresenta-

se como essencial que este seja reconhecido como diferenciado da própria história edípica dos pais,

mesmo que isto se dê necessariamente de forma parcial, haja vista estarem sempre presentes os

desejos inconscientes deles. Assim, o conceito de configuração edípica inclui relações recíprocas

entre pais e filhos, ainda que assimétricas, considerando-se a condição de desamparo própria àquele

que nasce. Anzieu (1985) assinala que não importa quão intensos venham a ser os desejos edípicos

incestuosos e hostis despertados nos pais por ocasião da maturação sexual de seus filhos, eles não

devem ser neles depositados.

Winnicott (1980) reconhece a importância do interdito na medida em que apresenta o

complexo de Édipo como um alívio para a criança, pois na situação triangular a terceira figura, na

verdade uma condição psíquica do genitor, tornaria possível a conservação do amor e do desejo que

168
ela nutre pelo outro genitor. O autor acrescenta que, se não fosse por esse terceiro, haveria apenas

duas opções para a criança: a de ser “engolida” ou “afastar-se violentamente”.

Desejos inconscientes na relação do filho para com ambos os pais envolvem anseios

incestuosos e mortíferos, encadeados na relação entre gerações, considerando-se que os pais tiveram

pais e depois vieram a ter filhos. Em seu mundo interior o filho capta, de certa forma, o modo como

seus pais o reconhecem em sua alteridade e o que possa ter representado para eles o sexo com o

qual nasceu. Como serão organizados seus conflitos edípicos dependerá dessa captação (Faimberg,

2001).

No caso em tela, buscando-se averiguar sobre as agressões físicas do filho para com a mãe,

descobrimos que estas se davam há muito tempo, desde que Joãozinho contava quinze anos, quando

começou a dar-lhe “soquinhos” ao estarem a sós. Com o tempo, passou a agredi-la com beliscões,

socos, chutes e puxões de cabelo, numa violência sempre crescente, causando-lhe hematomas,

escondidos por ela. Seu silêncio se justificava por “querer que tudo fosse como era antes, que a

família não se separasse” (sic). No entender dela, a descoberta do que se passava entre ela e o filho

“estragara tudo” (sic), pois suas filhas se posicionaram de forma bastante radical diante da situação,

vista por elas como inaceitável: Lúcia deixou de frequentar a casa dos pais, privando-os do convívio

com as netas, e Inês afastou-se da convivência com o irmão.

Esboçam-se aqui dificuldades inerentes ao tempo e às mudanças que forçosamente implica,

inclusive relativas à separação, intrínseca ao próprio crescimento. Ser como era antes, mas “antes”

do que? Um tempo mítico, eterno, sem evolução, de permanência contínua, portanto sem separação.

Joãozinho nada tem na vida, a não ser a mãe, sendo apenas ela que deseja, exclusiva para si, e nada

mais lhe importa. Por sua vez, ela o privilegia em detrimento do marido e, assim, mãe e filho

permanecem presos em uma sedução narcísica interminável, que corresponde à fascinação mútua,

originalmente entre o bebê e sua mãe, com vistas a um ser simbiótico único, todo-poderoso, ao

abrigo das vicissitudes pulsionais e da ambivalência, das separações e dos lutos, de forma que a

rivalidade edípica fique fora do circuito (Racamier, 1987).

169
João assinalou não ter bom relacionamento com o filho, que chegara a chamá-lo de “zero à

esquerda” (sic). Relatou que costumava tentar uma aproximação, convidava-o a jogar futebol e

passarem um tempo juntos, mas ele se recusava, pois desejava sair apenas quando a mãe estivesse

presente e preferia mesmo estar a sós com ela. Além disso, afirmou não conseguir estar com o filho

porque Helena “sempre arrumava algum impedimento” (sic). Após algum tempo de terapia, revelou

sentir-se “deixado de lado” (sic) e ter ciúmes da esposa, que privilegiava a companhia do filho.

Afirmou ter sempre sentido “como se estivesse atrapalhando alguma coisa entre eles” (sic).

Do ant’édipo mal temperado ao incestual

Racamier (1992) assinala que o incesto, é o incesto e não é o édipo, é mesmo o contrário.

Em ação, o incesto não se limita a sua prática genital, ele tem equivalentes, que não são poucos. O

autor nomeia e qualifica como incestual o que, na vida psíquica individual e familiar, leva a marca

do incesto não fantasiado, sem que estejam necessariamente presentes as formas físicas. O incestual

é mais amplo em sua área e mais complexo que o incestuoso; designa os equivalentes do incesto,

seus substitutos, sem omitir, e nós tendemos a esquecê-lo, observa Caillot (1995), os equivalentes

do assassinato, muitas vezes muito bem escondidos. Ressaltemos, portanto, que o complexo de

Édipo implica não apenas na proibição do incesto, mas também na de matar e na do tocar (Anzieu,

1985).

Beliscar a mãe pelas costas do pai em pacto secreto mantido por ambos por quase quinze

anos equivale ao incesto, prática oculta que se torna pública quando o filho “perde a vergonha”,

como se um ato sexual passasse a se dar na frente de todos, sem nenhum pudor. A sedução narcísica

se apresenta como “motor” essencial para o ant’édipo mal temperado – “ante”, que antecede, “anti”,

que se opõe, o ant’édipo com essa dupla face estará sempre presente como antecessor do édipo. Tal

configuração se apresenta bem temperada a partir de fantasias que envolvam uma inversão ou uma

igualdade geracional com deslocamentos simbólicos mais ou menos importantes. Para que o

registro edípico se desenvolva plenamente, supõe-se o declínio da megalomania maligna própria ao

ant’édipo mal temperado, no qual falha o interdito estruturante. O desenvolvimento do complexo de

170
Édipo na posição depressiva de M. Klein (1975) remete ao luto originário conforme descrito por

Racamier (1992), que o designa como o processo psíquico fundamental através do qual o eu, desde

a primeira infância, antes mesmo de sua emergência e até sua morte, renuncia à possessão total do

objeto, faz seu luto de um uníssono narcísico absoluto e de uma constância de ser indefinida. Será

através desse luto, fundador das próprias origens do eu, que se operam a descoberta do objeto bem

como a de si, e a invenção da interioridade.

A sedução narcísica perpetuada e a impossibilidade de fazer face ao luto originário

favorecem uma organização psíquica referida como perversão narcísica (Racamier, 1987), que pode

se apresentar durável ou transitória e que visa que o sujeito se coloque ao abrigo dos conflitos

internos, em particular justamente os decorrentes do luto, fazendo-se valer à custa de um outro,

manipulado como utensílio. A perversão narcísica se constitui antes de mais nada de ação e de

condutas. Racamier chama a atenção sobre o pouco que se conhece das fantasias a elas subjacentes,

mas aponta uma, bem existente: a da criança-desde sempre-e-para-sempre-irresistível, a nosso ver

pedestal da sedução narcísica interminável. A conduta narcisicamente perversa será sempre uma

predação moral, um ataque ao eu do outro em benefício do próprio narcisismo. Uma

desqualificação ativa, mais ou mesmo sutil, do eu do outro e de seu narcisismo legítimo. Tal

situação implica em um aspecto paradoxal, pois a tarefa psíquica a ser processada e injetada no

psiquismo do outro se torna irrealizável.

Com vistas à imunidade conflitual, a sedução narcísica, ao se perpetuar, desembocará no

ant’édipo mal temperado que abre as portas para a perversão narcísica e o incesto ou seus

equivalentes. Assim, no complexo de Édipo parricídio e incesto podem ser considerados, ainda que

não somente, como uma luta narcisista que se origina da ilusão de existir apenas um espaço

psíquico, no qual nunca haverá mais do que um único objeto erótico (Faimberg, 2001). Para

Helena se mostrava inadmissível que o filho tivesse outros vínculos significativos, além dela

própria, especialmente com mulheres. Quando Joãozinho aceitou fazer psicoterapia individual, ele

exigiu que fosse com uma psicóloga que o havia atendido na adolescência, com quem

171
aparentemente tinha estabelecido vínculo expressivo. Helena se opôs radicalmente, ao ponto de

confundir a situação e dizer que a referida psicóloga teria morrido. Esclarecido o equívoco e

iniciada a psicoterapia, revelou preferir que o filho fosse atendido por um homem, por considerar

que a psicoterapeuta seria “como uma mãezona para ele” (sic) e que “passaria a mão na sua cabeça”

(sic) – conforme ela própria o fazia.

Repetiam-se padrões na relação entre mãe, pai e filho, conforme pode ser ilustrado na

seguinte circunstância: quando combinavam sair juntos, o pai tendia a ser excluído, pois Joãozinho

costumava pedir à mãe que se encontrassem antes para conversarem a sós, o que era visto por ela

como “normal” (sic). Em uma dessas ocasiões, foi relatado um desentendimento entre pai e filho,

no qual o primeiro se retirou do restaurante em que estavam por considerar ter sido desrespeitado.

Helena ficou com o filho, indo ambos ao cinema em seguida. A desvalorização de João se

confirmava absoluta: um zero à esquerda.

Cotidianamente, mãe e filho assistiam novela juntos, na cama do casal. Ao chegar para

dormir, João se incomodava, porém não esboçava nenhuma reação, e assim ficavam os três na

cama, com Helena no meio. Esta relaciona esse fato aos pedidos do filho quando pequeno, de ficar

na cama com ela na ausência do pai, “ao ver que estava muito sozinha” (sic). Nessa época, afirma,

ambos “adoravam” ficar no quarto do casal ouvindo músicas juntos (sic).

Joãozinho costumava dizer não ter ninguém para conversar, somente a mãe. Por ocasião de

seu aniversário, propôs-lhe que viajassem juntos para um hotel, porém, diante de sua negativa,

agrediu-a, ocasião em que Inês, policial, ameaçou-o com sua arma, expulsando-o de casa.

Preocupada, Helena solicitou socorro ao marido e ao cunhado, que se depararam com ele fugindo

pelas escadas do prédio em que moravam. Após dar um soco no pai, veio a ser internado.

Se por um lado se apresentava inaceitável para Joãozinho que a mãe tivesse outro homem

além dele próprio, a recíproca se mostrava verdadeira. Quando de sua internação, “uma coisa muito

estranha” (sic), no entender de Helena, se passou: ele conversava com os demais pacientes, dava-

lhes conselhos e ficou amigo de todos. Ademais, para seu total desconcerto, uma moça se

172
“encantara” por ele (sic) e passou-lhe seu número de telefone. Ao mexer nas coisas dele e encontrar

o papel com números de telefones, rasgou-o e jogou-o fora, alegando como justificativa preocupar-

se com o envolvimento do filho com “pessoas com problemas sérios que podiam ser perigosas”

(sic). Perigosas em que sentido? Por interporem-se entre mãe e filho?

João considerava que o filho fora tratado pela mãe diferentemente das irmãs, pois sendo

muito apegada a ele, mimou-o demais. Relata que quando as meninas eram pequenas, ela trabalhava

em tempo integral, mas para ficar com o caçula, passou a trabalhar meio período. Helena negou

haver qualquer diferença no tratamento para com os filhos. Assinala, no entanto, que ele sempre

fora muito sensível e recorda sua reação, aos três anos de idade, quando tomou ciência da morte da

primeira filha do casal, falecida quando contava um ano devido a catapora não devidamente tratada:

“Diferente das irmãs, ele chorou muito, questionava, fazia perguntas, enquanto elas não ficaram

daquele jeito” (sic). Contudo, o encantamento de Helena para com Joãozinho antecede esse fato,

pois ele “fazia coisas diferentes” (sic) como, com dois anos de idade, esconder-se debaixo da cama

quando voltava do trabalho, o que favoreceu sua opção por trabalhar meio período. Diante dessas

lembranças, admitiu que talvez tivesse realmente sido diferente para com ele – vimos que, a seu ver,

ele o fora para com ela.

A menção da perda dessa filha produziu retraimento no casal parental que ficou muito

emocionado. Helena afirmou não conseguir viver esse luto, reconhecendo-o. Contou não ter entrado

mais no quarto da filha por ter feito uma viagem em seguida a sua morte; ao retornar, o cômodo já

havia sido reformado, bem como tinham sido retiradas as coisas da criança. Reconheceu ter

desejado engravidar logo depois, como se pudesse substituir a perda.

Lutos paradoxais

No que diz respeito à compreensão do trabalho de luto e dos lutos patológicos, novos

esclarecimentos são alcançados ao se opor o registro incestuoso ao registro edípico. As relações

narcísicas incestuosas ou incestuais, com seus profusos desdobramentos paradoxais, lutam

tragicamente contra as angústias de separação, vivenciada como catastrófica. O édipo diferencia os

173
seres e as gerações, as realidades interna e externa, o interior da família e o exterior dela, mas é

preciso acrescentar também, conforme tão bem assinala Caillot (1995), os mortos dos vivos, o

animado do inanimado. Seu organizador é o interdito do incesto, ou melhor, seu balanço

organizador é o duplo interdito do incesto, o duplo interdito do tocar (Anzieu, 1985), conforme

vimos acima.

Britton (2003) sugere que somente quando a relação exclusiva é perdida torna-se possível

deixar para trás ilusões edípicas, nas quais não se reconhecem as diferenças entre os

relacionamentos parental e progenitor-criança. Isto porque o luto por essa perda traria a percepção

de que o triângulo edipiano não prediz a morte do relacionamento, apenas a morte de uma ideia:

aquela que supõe que a chegada de um terceiro sempre assassina a relação de um casal, seja o

parental, seja o par da amamentação. Em contrapartida, quando esta ideia se instala com convicção,

leva à psicopatologia.

Helena e João afirmam que nunca brigaram desde que estão casados, no entanto, na família

diferenciada certa conflitualidade é admissível, reconhecendo-se os contrários, a ambivalência, os

riscos de separação e de união, corporais e psíquicos. Sem o recalque, não havendo a integração das

grandes diferenças, na ausência do interdito do incesto e não havendo o reconhecimento da

dependência dos pais – nem o dos pais da independência dos filhos –, a organização edípica não se

situa ou não o faz plenamente. A família edípica se opõe ao incesto e ao assassinato, bem como à

destruição do indivíduo, do casal e da família.

Caillot (1995) considera essencial constatar que o interdito do incesto organiza a diferença

geracional e o luto originário, que condicionam a diferença entre os mortos e os vivos (itálicos do

autor). Em seu entender, as confusões paradoxais morto-vivo pertencem bem ao registro incestuoso:

aliás, assinala ele, talvez possamos falar de vivo-não-vivo para as pessoas em vida, que

correspondem aos objetos-fantasmas de P.-C. Racamier (1992), com sua dupla propriedade de estar

morto/vivo ou, conforme precisa, de estar ao mesmo tempo não-morto e não-vivo. Submetidos a

uma dupla recusa, sem o selo de um reconhecimento, nem o de um luto, Racamier considera que o

174
objeto fantasma faz parte eminente dos objetos paradoxais, como o é o filho de substituição, aquele

que ocupa o lugar de um filho morto, cujo nome muitas vezes ele carrega, e que será o “tapa-luto”,

o “para-luto”. Assim, nos lutos paradoxais, também podemos falar de morto-não-morto.

No registro incestual aqui abordado nos deparamos com uma mãe-não mãe, a mãe-amante

do filho pelas costas do pai-marido-zero-à-esquerda, com o filho-amante que a compreende e acolhe

face ao luto não elaborado da filha e que passa a funcionar como “tapa-luto”. Destaca-se o

estabelecimento de um funcionamento psíquico paradoxal, permanecendo a morta investida desse

mesmo modo paradoxal.

Considerações finais

O registro incestuoso/incestual oposto ao registro edipiano esclarece a dinâmica familiar

aqui abordada, sugestiva de lutos patológicos que têm por base a sedução narcísica interminável e o

luto originário não elaborado. Busca-se uma situação aconflitual, com aspirações relacionais muito

idealizadas, observáveis no comentário feito por Helena de que ela e o marido nunca brigaram

desde que se casaram.

A separação, envolvendo o medo de colapso, que corresponde ao medo da agonia primitiva,

mobiliza angústias como se estivesse em risco a própria vida, só que o colapso tão temido já foi

experienciado, em um momento em que o eu se encontrava imaturo demais para dar conta da

experiência de forma a integrá-la (Winnicott, 1994). Assim, relações narcísicas pautadas pela

paradoxalidade, pelo incesto e pelo incestual, buscam evitar o que é vivido como uma ameaça de

rompimento, visam aproximar o que prenuncia se afastar. O incesto, sendo uma questão

fundamentalmente narcísica mais do que sexual (Racamier, 1989), tem uma função anti-separadora

corporal, uma função anti-luto.

Considerando Helena de uma perspectiva individual, podemos designar um componente de

sua personalidade próprio à perversão narcísica, a princípio inaparente, mas que se apresenta

invariável a partir de sedimentos defensivos que o escondem. Muito defensiva, portando de acesso

difícil, Helena age e tende a banalizar situações, nas quais não vê nada demais, como quando o filho

175
se recusa a sair do quarto do casal parental à noite e ela dorme entre ele e o marido, ou quando

busca relação exclusiva com ela pelo fato de ser sua mãe, o que ela acha natural. Helena justifica a

manutenção de posturas dependentes ou suas reações agressivas “por ele ser doente”, como se ela

buscasse um ganho secundário através da “doença” do filho, que “não sabe fazer as coisas” (sic), no

que está implicada a necessidade de ele receber seus cuidados sempre. As defesas se organizam

como uma fortaleza que se pretende inviolável e a ameaça de uma falha na estrutura defensiva

implica em o eu ficar perigosamente vulnerável, ameaçado pela depressão ou, pior ainda, pelo

colapso.

Tal dimensão repercute na família com o pressentimento que, se há separação, a unidade

coletiva se rompe, com fratura e dissolução. Mais do que nunca é válida a divisa de Caillot e

Decherf (1982) de que viver junto é impossível, mas separar-nos é mortal. Contudo, tal situação

não apenas é sustentada pelo grupo familiar, como também se nutre do meio em que se forma, no

que está presente o aspecto econômico próprio aos vasos comunicantes.

Lutos congelados “protegem” da depressão profunda, mas provocam um desperdício de vida

por todas as impossibilidades que acarretam e pela estreiteza de perspectivas que geram, com o

tempo paralisado em termos psíquicos, já que ele não para nunca. Nessas circunstâncias, demandas

e expectativas se mostram fora de lugar, como as de um homem que não abre mão de suas

veleidades infantis, como se permanecesse com três anos quando de fato conta trinta, e uma mãe de

cinquenta be sete anos que se encanta com esse homem que não tem olhos para nenhuma outra

mulher e interesse por mais nada, além dela.

Nessas circunstâncias, outro interdito é transgredido, e se matar não é possível, existem

outros meios... Sem trabalho, sem estudo, sem relações sociais, sem vida amorosa, sem nenhuma

perspectiva, sem nenhum recurso sublimatório, a existência de Joãozinho é a de um vivo-morto.

Helena demonstra não desejar abrir mão da intimidade com ele pelas gratificações narcísicas que

lhe proporciona, mas sobretudo como uma garantia de evitar a depressão e o que seja temido como

176
um desmoronamento psíquico. João, inseguro, preterido, sem valor, conforma-se à situação e

paradoxalmente a sustenta ativamente com sua passividade e impotência.

Apenas a referência ao lugar que ocupa o pai da criança ou seu próprio pai no desejo

materno preservaria a referência fálica. Um lugar desprezível ou desvalorizado interfere

negativamente nos marcos identificatórios do filho e em sua unificação como sujeito, de modo que

ele permanece alienado no desejo materno. Joãozinho não se identifica com o pai e não renuncia a

seus desejos incestuosos, alimentados pela mãe em pacto narcísico, que não suporta transformação.

Dão-se alianças calcadas na recusa comum, pelo segredo compartilhado e pela dominação que o

perverso narcísico exerce sobre seus parceiros, com sua cumplicidade, consciente ou inconsciente.

Constatamos que diversas operações estão implicadas no vínculo intersubjetivo, requeridas

de cada sujeito de modo que o vínculo possa se constituir e se manter de forma complementar e

recíproca em seus aspectos organizadores e defensivos. Dessa maneira, em se tratando de ant’édipo

mal temperado, cria-se no conjunto a impossibilidade de significar e de transformar, com bolsões de

intoxicação psíquica ou linhas de fuga que mantêm o sujeito do vínculo estrangeiro a sua própria

história. Sem a emergência e o desenvolvimento da capacidade de pensar, não há como considerar a

própria situação subjetiva no grupo familiar.

Pouco se sabe sobre as famílias de origem de Helena e João. Ela perdeu o pai em acidente

quando era ainda adolescente, situação abordada por João como muito sofrida em sessão em que ela

não comparecera. Helena contou que mantinha relacionamento mais próximo com a mãe do que os

outros irmãos. João refere ao próprio pai, já falecido, como não lhe dando atenção, o que o fez ficar

mais próximo dos irmãos. Não fez nenhuma referência a sua mãe. Esses fiapos de história são

sugestivos de vivências de carência e desamparo, além de indicarem a evitação do trabalho do luto:

nada se fala a respeito na presença do outro.

Materiais intrapsíquicos insuficientemente elaborados pelo sujeito se transformam em

venenos psíquicos expulsados no meio; à desproporção quantitativa se acrescenta um contraste

qualitativo espantoso (Racamier, 1992). Recusa, clivagem e denegação correspondem a defesas

177
poderosas para impedir o pensar e, em família, seus membros se apresentam como complemento

operatório das defesas em jogo. A perversão narcísica, portanto, está longe de ser um assunto

intrapsíquico, já que é altamente interativo. Sem pactos de renúncia, não há condição de ser.

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179
Notas psicanalíticas sobre o hospital e a criança

Michelle Menezes Wendling, Liana Ling Gonçalves Setianto, Talita Alves Barbosa da Silva,
Fernanda Nogueira Klumb

Resumo: Ao partir de inquietações vindas do campo de práticas da Residência em Psicologia

Clínica e Institucional no ambulatório de Pediatria do HUPE, o texto destaca duas linhas gerais, o

hospital e a criança, a fim de explorar o lugar da instituição hospitalar e das representações sobre a

criança e a infância na cultura e discutir algumas contribuições da psicanálise para os dois temas.

Aborda a singularidade da orientação psicanalítica no trabalho clínico e institucional com crianças

norteado pela ideia de infantil na psicanálise. Os fragmentos da clínica no ambulatório trazem a

escuta como busca de sustentar a singularidade da fala das crianças, operação que dá lugar ao

estranho, num deslocamento dos discursos universalizantes da cultura e da ciência.

Palavras-chave: criança, discursos universalizantes, escuta, hospital, infantil.

Abstract: Starting from concerns by a study of the Residency in Clinical and Institutional

Psychology at HUPE Pediatric ambulatory, the text highlights two general issues, the hospital and

the child, in order to explore the hospital institution and the representations about the child and

childhood into culture and to discuss some contributions of psychoanalysis for both themes. It talks

about the singularity of psychoanalytic orientation in clinical and institutional work with children

guided by the idea of infant in psychoanalysis. The fragments of the clinical ambulatory bring the

listening as a search of sustaining a singularity of children’s speech, operation that gives place to

the strange, in a displacability of universal discourses of culture and science.

Keywords: child, universal discourses, listening, hospital, infant.

Resumen: Al partir de inquietudes provenientes del campo de prácticas de la Residencia en

Psicología Clínica e Institucional en el ambulatorio de Pediatría del HUPE, el texto destaca dos

líneas generales, el hospital y el niño, para explorar el lugar de la institución del hospital y de las

180
representaciones sobre el niño y la infancia en la cultura y discutir algunas contribuciones del

psicoanálisis para los dos temas. Aborda la singularidad de la orientación psicoanalítica en el

trabajo clínico e institucional con niños orientado por la idea de infantil en el psicoanálisis. Los

fragmentos de la clínica en el ambulatorio traen la escucha como búsqueda de sostener la

singularidad del habla de los niños, operación que da lugar al extraño, en un desplazamiento de los

discursos universales de la cultura y de la ciencia.

Palabras-clave: niño, discursos universales, escucha, hospital, infantil

Restar no irrespirável
Enquanto acento tônico
Ponto de interrogação
Ou até mesmo ponto de exclamação
Ou como exemplo de estilo sem pontuação (...)
(Waly Salomão)

Dois disparadores compõem o ponto de partida para a escrita deste texto: a atuação num

serviço público ambulatorial hospitalar e a especificidade do público recebido pelo setor, as

crianças. A partir de inquietações vindas do trabalho na Especialização em Psicologia Clínica

Institucional no Ambulatório de Pediatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ)

esperamos traçar algumas linhas sobre a singularidade de um trabalho de orientação psicanalítica.

Embora a ideia da escrita esteja relacionada às supervisões e à atuação da equipe de residentes de

Psicologia, a discussão aqui proposta pretende abordar algumas consequências das relações entre

psicanálise e hospital, inserindo-as num exercício de leitura que leva em conta uma perspectiva

histórica dessas relações. No quadro dessa perspectiva de abordagem, pretendemos ressaltar alguns

posicionamentos da psicanálise quanto ao hospital e ao tema da criança.

No Ambulatório da Unidade Docente Assistencial de Pediatria os residentes de psicologia

compõem uma equipe multidisciplinar composta por médicos, nutricionistas, fonoaudiólogos,


181
assistentes sociais, enfermeiros. Há também residentes de medicina, de enfermagem, serviço social,

nutrição e fisioterapia. Quanto à inserção da psicologia nesse setor, há atividades de interconsulta e

de participação em grupos coordenados por outros profissionais, além da possibilidade de

atendimento clínico individual. Quanto à atuação nos serviços ambulatoriais, os residentes de

psicologia estão presentes no Ambulatório Geral, no Ambulatório de Doenças Infecto-Parasitárias,

no Ambulatório de Follow up, de Genética, de Síndrome de Down (a partir de agosto de 2017) e

Neuropediatria. De um modo geral, as demandas de atendimento vêm de algum profissional que

trabalha no serviço ou diretamente das interconsultas e outras atividades com a presença dos

residentes de psicologia. Talvez por conta de recebermos pacientes não internados, não há um

espaço de discussão coletiva de alguns casos atendidos pelo serviço.

Na organização do Sistema Único de Saúde (SUS), os serviços ambulatoriais foram

considerados um desafio ao novo modelo de cuidado proposto, não centrado na ação médica. No

domínio da chamada saúde mental, durante a década de 80, os ambulatórios pensados para

substituir os asilos não foram uma saída eficaz para o modelo hospitalocêntrico (Tenório, 2001).

Esses serviços acabavam constituindo um local de passagem para a internação. Os Núcleos de

Atenção Psicossocial (NAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tiveram um papel

estratégico na nova rede de cuidados proposta, a atenção psicossocial. Dispositivos como “clínica

ampliada” e “projeto terapêutico singular” passaram a oferecer diversidade na trajetória dos

tratamentos. Quanto aos ambulatórios gerais, talvez caiba positivar sua importância quanto ao

acolhimento de sujeitos que dificilmente teriam acesso a serviços oferecidos pela psicologia

(Tenório, 2001). Mesmo que os ambulatórios hospitalares apresentem uma organização centrada

nas especialidades médicas, proposta que marca uma dinâmica diferente dos NAPS e CAPS, a

presença de equipes multiprofissionais relacionadas à Universidade como instituição de ensino,

pesquisa e extensão fazem do hospital universitário um dinâmico e diverso campo de práticas.

182
Caracterizado o campo a partir do qual surgiram inquietações que deram matéria a este

texto, cabe iniciarmos nossa incursão nos disparadores acima destacados, o hospital e a criança. À

primeira vista, eles constituem um plano comum, norteador das práticas da equipe multidisciplinar

no ambulatório de Pediatria.

Algumas considerações sobre o hospital

No texto “O nascimento do hospital”, Foucault (1996b) articula o surgimento do hospital à

tecnologia médica. Antes do século XVIII o hospital era um espaço de assistência, de separação e

exclusão dos pobres (pelo perigo de contágio), espaço para onde iam morrer. Junto a essas funções,

também se apresentava como um espaço de salvação espiritual. Nele, leigos e religiosos cumpriam

também uma função de caridade ao tentar assegurar a salvação na passagem vida-morte. A

medicina, por sua vez, não atribuía a esse espaço uma posição privilegiada de campo de práticas e

de formação, tal como ocorre hoje. Foucault defende que o hospital e a medicina eram duas séries

distintas: a medicina não era hospitalar, nem o hospital médico.

Foucault (1996b) nos fala do percurso de transformação do hospital em “máquina de curar”.

Nesse espaço antes confuso, a técnica médica assume seu lugar preponderante no curso de um

processo de introdução de mecanismos disciplinares, os quais comportam a individualização do

poder e preocupações com a saúde das populações, consolidando a nova função complexa do

hospital. Ele passa a ser misto de instrumento terapêutico por excelência, guiado pelo saber médico,

sistema de registros permanente (identificação dos doentes, registro de entradas e saídas, mortes,

diagnósticos, etc.) e local de formação e de transmissão de saber científico.

Figura central dessa passagem, o “grande médico” pode ser compreendido como encarnação

de uma certa operação de saber-poder. A hipótese foucaultiana de que as críticas à psiquiatria têm

como base principalmente a relação de poder do médico e os efeitos produzidos nos pacientes

utiliza o exemplo de Charcot em La Salpêtrière (Foucault, 1996a). Segundo o autor, a paciente

histérica ocuparia o lugar de “doente perfeito”, por sintetizar o alcance da “limpidez do


183
conhecimento” almejada pela ciência, numa espécie de tradução dócil e miraculosa dos efeitos do

poder médico em formas acessíveis a uma descrição em termos científicos. No texto em questão,

são essas relações de poder que interessam a Foucault. Hipótese do autor: uma crise na medicina se

inicia quando se desconfia que é exatamente o contato com o médico que produz a crise histérica.

Movimentos de antipsiquiatria e de “despsiquiatrização” tornaram-se então possíveis.

A partir do século XIX, proliferam-se discursos críticos quanto ao saber e ao poder médicos,

quanto à verdade sobre a doença fabricada pela medicina (Foucault, 1996b). Muitos desses

discursos críticos inserem, aliás, a medicina num quadro amplo de saberes ligados a instituições

(escola, fábrica, prisão). Não se trataria de problematizar a eficácia ou a importância dela, mas a

violência e a exclusão resultantes desse jogo de poder e submissão

O que nos interessa nos referidos textos abordados acima é parte da história da psicanálise

contada pelo autor: ela não poderia ser pensada sem nos remetermos às críticas à instituição asilar.

Foucault a insere no campo da despsiquiatrização, não da antipsiquiatria. Ela operaria, no espaço

mesmo do hospital, um deslocamento de poder para evitar o que ele produz. A relação entre o

paciente e o médico passa a situar-se no discurso. Aqui, o autor destaca o domínio da regra do

encontro privado, marca da tentativa de operar um efetivo afastamento do espaço do hospital.

Operação que silenciaria, privatizaria e tornaria invisível o poder médico, sem modificá-lo

fundamentalmente.

Hoje, a pretensa colagem da psicanálise a um imaginário social sobre um legítimo exercício

apenas num espaço privado – desdobrado em “ela não é eficaz para este tipo de lugar” - tenta

diminuir a importância de sua presença no hospital. Mascara-se o fato dela ser herdeira, de certo

modo, da tradição clínica francesa ligada a Charcot em La Salpêtrière. Esquece-se das atuações de

Freud no Hospital Geral de Viena, de Lacan em Saint Anne e, mesmo no Brasil, do exercício da

psicanálise em hospitais antes de terem surgido os cursos de psicologia (Dunker, 2002). Do

estranhamento, não raro, em face da presença da psicanálise no hospital é preciso tirar

184
consequências. Se Foucault fala em relações de poder, da submissão e exclusão da loucura como

inseparáveis do hospital transformado em locus científico sob o domínio da medicina, podemos,

com Lacan (1992), localizar a medicina no discurso do mestre e suas universalizações de saber. Na

ciência, o discurso do mestre gera um saber que se autoriza por ele mesmo, o que tira a potência

dinâmica da verdade e exclui qualquer narrativa fora desse ciclo que o sujeito possa produzir.

Lebrun (2004) diferencia ciência como produção de conhecimento e como laço social. Interessam,

para a psicanálise, as consequências para o social de uma modalidade de discurso largamente

consumido que elide a enunciação como constituinte do laço social e deixa crer que pode se

autofundar.

Segundo Clavreul (1983), o discurso médico opera uma separação entre a doença e aquilo

que o doente sente dela. Do mesmo modo, ela também “despossui” o médico de sua posição

subjetiva. Na ordem médica não há sujeito da enunciação, os ditos são puros enunciados numa

relação anônima. Ela funciona como um imperativo, não precisa ser defendida e demonstrada, “se

impõe por ela mesma”, em nome da vida como valor absoluto (Clavreul, 1983, p. 7). Está aí para

ser cumprida e sempre chegará o dia em que recorreremos a ela. Nesse sentido, os ditos dos

funcionários anônimos dessa ordem (os médicos) devem ser obedecidos, para o nosso bem.

No entanto, algo fracassa, falha, nesse anonimato. É evidente que o excluído por atrapalhar o

bom percurso da cura, faz seu trabalho (Moretto, 2002). O doente pode adotar, acreditar no

discurso médico, mas os mecanismos de dessubjetivação não o recobrem totalmente. Por isso, a

histeria compõe a antinomia medicina-psicanálise. Longe de delimitar o que seria a paciente ideal,

de desempenhar o papel esperado pelo médico, ela traz a céu aberto o que retorna desse apagamento

dos aspectos subjetivos. Não à toa, a histeria está sempre referida, no discurso da medicina, à

relação do doente com o saber médico. Composta por sintomas definidos pela medicina como

migratórios, capazes de mudar sem intervenção, ou inalterados, uma vez esgotados todos os

recursos de tratamento, a histeria comporta um impasse (Moretto, 2002).

185
Se não seria possível pensar o hospital sem sua função de templo da ciência guiado pela

ordem médica, não se trata de concorrer com ele no hospital ou destituí-lo de sua importância. O

fato é que tal ordem ajuda a produzir o que não consegue tratar. Mesmo com a resposta “você não

tem nada” dada à histérica, o médico sabe que há algo aí. A psicanálise se propõe justamente a

ouvir esses restos excluídos pela medicina. Ao invés de tentar reduzir a fala dos sujeitos ao que

interessa ao diagnóstico da doença, a psicanálise dá abertura para proliferar a fala, para possibilitar

assim que o desejo apareça. Desse modo, a proposta da psicanálise é ajudar a restituir ao sujeito seu

lugar escamoteado pela redução à doença (Moretto, 2002).

Nessa leitura da ordem médica é relevante fazer um deslocamento: não tomá-la como

propriedade exclusiva da medicina ou dos profissionais desse campo específico. Se levarmos em

conta, aliás, a lógica dos discursos na psicanálise lacaniana, consideramos que não há um discurso

que deva ser prevalente, há passagens entre eles e o inconsciente é o motor dessa circulação.

Moretto nos fala da função tranquilizante, “mágica” do diagnóstico em alguns casos: ele apazigua a

angústia por nomear uma dor, um sofrimento. Ele é um dentre vários mecanismos para amenizar as

inquietudes vindas de um encontro com um “não saber o que fazer”, com os ditos “casos difíceis”.

Nas instituições, por exemplo, podemos nos servir de certas prerrogativas de tratamento

(“reinserção social”, “reabilitação psicossocial”) como imperativos, ou seja, como aquilo que se

deve obter ou seguir, sem implicar os sujeitos, sua fala e singularidade, no trabalho (Rinaldi, 2015).

Podemos dizer que um dos efeitos possíveis do encontro dos saberes com seus limites é

abertura a outros campos (Rinaldi, 2015). O hospital de que trata este texto é um hospital público,

dentro da proposta do SUS. Há equipes multiprofissionais, trabalho em interconsultas, grupos com

função terapêutica. Não se pode esquecer que esse modelo de atenção proposta pelo SUS é

inseparável de críticas aos limites da ordem médica e do “hospital tradicional” e incluiu em suas

propostas a participação dos usuários dos serviços, da sociedade civil, dos movimentos sociais, dos

profissionais de saúde. Questionamentos que colocaram na ordem do dia as condições sociais,

186
políticas, econômicas e subjetivas como inseparáveis dos tratamentos. Nesse contexto também

permeado pela pluralidade de orientações, a psicanálise está lançada numa “prática entre vários” e

depende dela para operar como uma política que possa ajudar a equipe a sustentar os furos no saber,

as passagens entre os discursos (Rinaldi, 2015, p. 316).

Sobre a infância ou o que se diz da criança

No campo da psicologia, quando se trata de questões em torno da infância ou da criança, são

recorrentes estudos cujas discussões remetem à ideia de desenvolvimento, de transformações

descritas de modo semelhante ao entendimento biológico de evolução. Quanto às teorias do

desenvolvimento, o domínio dos estudos da cognição trouxe uma novidade que nos interessa aqui: a

introdução do tempo cronológico, ou seja, a descrição da genealogia e das modificações das

estruturas cognitivas numa ordem sucessiva (Kastrup, 2000). Se tais estruturas na criança ou no

adulto são entendidas num nexo que inclui o tempo cronológico na transformação das formas e a

genealogia que nos fala de formas compreensíveis em termos de linhagens e descendências, pode-se

dizer que o adulto seria o previsível ponto final do processo de mudança. Por conta disso, Kastrup

defende que há uma ideia de progresso nesses estudos. Como resto dessas operações comparativas,

que, veremos, não é exclusividade das psicologias do desenvolvimento, o fantasma de um déficit, de

um menos que o adulto parece assombrar o universo infantil.

Em suas investigações sobre o sujeito epistêmico, Piaget nos apresenta passo a passo a

construção de novas estruturas que culminarão no modo adulto de conhecer. Acognição da criança

está longe das operações lógico-formais, condição de possibilidade do conhecimento científico:

como a criança alcança a forma adulta de conhecer? (Kastrup, 2000). Tomemos a ideia de

progresso– de origem latina, a palavra remete a um “avanço de processo”, “marcha ou movimento

para adiante”, “desenvolvimento”, “aperfeiçoamento” - no quadro da expectativa de se atingir um

fim estabelecido como modelo. Esse significante nos interessa pela semelhança discursiva com os

pedidos de atendimento endereçados à clínica com crianças hoje. Ele nos ajuda a historicizar, aliás,

187
a invenção de novos modos de entender a infância, de nomeá-la, de pedir à ciência que nos ajude ao

se ocupar dela.

Pode-se dizer que usos atribuídos às palavras criança e infância que conhecemos hoje se

relacionam a um longo processo de transformação começado no ocidente, que se estende na Idade

Média até o século XVIII (Ariès, 1986). A infância, antes inserida com mais liberdade no mundo

adulto, passaria a ser, inicialmente para a burguesia, um período de preparação especial de

quarentena para a idade adulta. Essa passagem ao mundo adulto nos fala de uma separação radical

entre o mundo infantil e adulto. Nos conta também, algo sobre os instrumentos criados levando em

conta essa diferença. Nesse sentido, a especificidade dada à infância fez da escola núcleo

obrigatório de formação para a entrada no mundo adulto. Junto às inquietações sobre educação, as

preocupações acerca da saúde da criança constituíram uma marca dessa transformação. A partir do

século XIX, tornaram-se possíveis discursos científicos que lidavam com questões atribuídas

especialmente à infância, como a pedagogia, a pediatria e a psicologia do desenvolvimento.

Sabemos da posição radicalmente crítica de Freud quanto às promessas de felicidade e

progresso social da modernidade, amparadas pelo discurso da ciência e da técnica. “O mal-estar na

civilização” (Freud, 2010b) é um texto que recolhe os restos dessa operação em forma de

adoecimento, mal-estar, infelicidade, destruição. Aponta para o impossível na busca de melhoria

geral das condições de existência humana e na crença no aperfeiçoamento do processo civilizatório.

Não surpreende que os discursos da ciência sobre a criança possuam também essa marca. É preciso

pensar sobre os desdobramentos dessa promessa malograda hoje. Há muitos discursos críticos sobre

a modernidade e suas consequências, que abordam o uso da ciência para fins totalitários ou que

consideram ser a pretensão totalizadora uma marca indelével do discurso da ciência (Lebrun, 2004).

Não nos dedicaremos aqui a um aprofundamento desse debate, interessa-nos como a psicanálise se

posiciona entre os ideais de progresso na compreensão da infância.

188
Segundo Joel Birman (1997), é importante acompanhar as descontinuidades no discurso

psicanalítico na abordagem do tema da infância. Para o autor, um dos acontecimentos fundamentais

para a discursividade da psicanálise foi a introdução do “infantil” como adjetivo. Se há semelhanças

desse adjetivo com os termos criança e infância, é preciso não nos enganarmos com a suposta

proximidade entre significantes. O entendimento da transmutação da infância ao infantil nos diz da

invenção mesma da psicanálise, da nova leitura do espírito humano feita por ela.

Num texto sobre as críticas de Adorno ao progresso, Löwy e Varikas (1992) apresentam

uma imagem evocada por Hegel: a chegada triunfal de Napoleão em sua cidade descrita como visão

do espírito do mundo sobre um cavalo1. Nas Luzes, a ideologia moderna do progresso tem como

“suprema expressão filosófica” a obra hegeliana. Nela, cada acontecimento histórico é tomado

como “marcha da humanidade em direção à liberdade” (Löwy & Varikas, 1992, p. 201). Birman

(1997) vê nesse discurso sobre o progresso a marcada da historicidade e da temporalidade, presente

em campos diversos: na anatomia comparada, na gramática comparada, na economia política, na

teoria da evolução das espécies.

Inicialmente, Freud compreende o sujeito como historicizável, inscrito numa temporalidade.

Esse entendimento foi inspirado na inscrição do homem na ordem da natureza feita pela obra de

Darwin. No entanto, Freud retira qualquer substancialidade absoluta do sujeito e o desloca do

registro do pensamento, da “marcha conquistadora da Razão dominante” (Lowy & Varikas, 1992,

p. 201). É que as pulsões e seus imperativos regulam as produções do espírito. Os sujeitos teriam

como tarefa historicizar o corpo, pulsional e sexual, tornar possível uma “encorpação”. Trata-se de

construir um espírito no corpo. Assim, há infância do espírito e a vida do corpo é possível pela

mediação do outro. Aqui temos um ponto crucial: a ordem vital humana é marcada pela

insuficiência, remetendo-nos, por mais que haja um trabalho de historicização, à nossa finitude.

Essa seria a passagem da infância ao infantil na psicanálise, irredutível a uma visão cronológica e

evolutiva e à referência do adulto como etapa final do desenvolvimento (Birman, 1997).

189
Entre os anos de 1915 e 1920, pode-se dizer que o infantil remete ao inconsciente e ao

processo primário. Os sonhos, os atos falhos e a formação dos sintomas remetem à associação do

infantil ao registro da sexualidade e do desejo (Birman, 1997). Os “Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade” (Freud, 1982) afirmam as pulsões perverso-polimorfas como base do infantil e como

elemento fundamental da sexualidade humana. Não à toa, Lacan (1988), ao retomar o essencial nas

lições freudianas, reafirma o mal-estar na civilização e a falta de garantia “no macrocosmo, nem no

microcosmo” contra a pastoral analítica e sua vocação para uma ortopedia (p. 17; 23). Um dos

ideais dessa visão dos sujeitos passa pela crença na maturidade, na genitalização do desejo,

modelando uma relação de objeto satisfatória.

Com as formulações sobre a pulsão de morte ocorre um deslocamento: as pulsões sexuais

são apenas uma modalidade pulsional, na qual encontramos uma inscrição no campo das

representações; há pulsão de morte, sem representação. O infantil como adjetivo remete agora a

algo exterior ao domínio do desejo: o trauma e a angústia do real. A ideia de desamparo sintetiza a

posição de clivagem do sujeito em face da força pulsional, lançado sem garantias ao excesso da

pulsão (Birman, 1997).

Na decalagem entre o excesso da força da pulsional e a impossibilidade de tudo interpretar,

domar, docilizar, está aberta a possibilidade de historicização para o sujeito, a fim de contornar,

sempre parcialmente, a morte e tornar enfim suportável esse “território apátrida e sem nome”.

Trata-se da fabricação mesma da temporalidade, inscrição do “puro acontecimento” do infantil para

tornar o sujeito possível (Birman, 1997, pp. 27-28). É assim que em meio a uma discussão sobre

neurose traumática Freud refere-se a uma brincadeira de criança (Freud, 2010a). O fort-da: no

movimento do carretel, o papel ativo da criança, jogo de repetição significante, de simbolizar

ausência. Se a educação impõe pouco a pouco o proibido e o permitido pela razão, afastando-nos do

trato lúdico das palavras e das coisas, o jogo aponta para uma outra via na lida com o estranho

construída pela criança e pelo adulto (Ferreira, 2017). Poeta e criança que brinca têm em comum a

190
criação de um outro mundo, ambos fazem um tratamento daquilo que é penoso pelo jogo infantil e

pela criação poética.

Se é o outro quem nos convoca para a tarefa de inscrição do sujeito, é fundamental

compreender qual é a posição ocupada pela criança no discurso do Outro. Numa passagem da

análise do pequeno Hans, Freud (2015) diz que o adulto deseja, em geral, “ser deixado em paz e não

ter problemas, em suma, criar um filho bem-comportado” quando se trata da educação das crianças.

Ele completa: “pouco nos importando se esse curso de desenvolvimento é vantajoso para a criança”

(p. 278). O que resta dessa operação, não completamente realizável, de apaziguar, conformar?

No texto “Alocução sobre as psicoses da criança”. Lacan (2003) remete ao “termo criança

generalizado” (p. 367). Teríamos nos distanciado da criança vista segundo um ideal adulto de

sujeito acabado, maduro, racional? O que seria hoje a criança ideal? Passone (2016) toma o termo

A-Criança, de Voltolini (2008) para delimitar o Outro social contemporâneo. Este poderia ser um

dos sentidos da criança generalizada, “certa ‘hipertrofia’ da infância no imaginário social”. Longe

de significar a generalização do lúdico na lida com o real, do brincar no social, o termo quer dizer

que a criança está sujeita aos excessos de nosso tempo: produção de objetos de consumo junto;

pretensão totalizadora da ciência ao tentar dar conta do real (Lebrun, 2004). O desejo adulto de uma

infância sem limites para lidar com a criança e o real do infantil pode levar ao apagamento de uma

dissimetria de entre gerações, fundamental no trabalho de historicização do sujeito. Se o mundo

adulto coincide com o da criança imaginariamente entendido como tempo de toda satisfação

possível, nos parece que são as crianças quem ficam “à mercê da própria sorte, tanto de suas

pulsões quanto do gozo infantil do Outro” (Passone, 2016, p. 130). Aqui reafirmamos a importância

do infantil para a psicanálise. Como se pode suportá-lo não somente como impossível, mas como

abertura para a invenção?

Fragmentos da clínica: algumas considerações sobre o infantil e o hospital

191
Letícia era acompanhada pelo Projeto Obesidade Infantil Multidisciplinar do HUPE há oito

meses. No encaminhamento para a psicologia2 surgiu a descrição de “padrões de comportamento

ansioso e déficit de atenção e hiperatividade”. A mãe dizia que a filha havia recebido o diagnóstico

de TDAH, mas nunca fez tratamento para tal. A garota mostrava-se confortável em seu assento. Nas

mãos trazia uma pasta com seus exames e documentos. Comunicava-se bem e respondia a maioria

das perguntas, mas não fazia contato visual direto com nenhum dos residentes. A mãe chamava a

atenção da menina com frequência, pedindo para ajeitar as roupas e sentar-se adequadamente na

cadeira, e mandava que respondesse às perguntas. Dizia que Letícia era muito agitada e ansiosa, o

que a fazia comer compulsivamente e sem limites, até o ponto de comer uma cebola crua. A garota

diz sempre conseguir seguir a dieta prescrita.

Após o início do tratamento, o contato com os pais aponta para o fator familiar presente no

“transtorno alimentar” de Letícia: todos da família tinham problemas de sobrepeso. Tanto a mãe

quanto o pai tinham um discurso bastante crítico em relação à filha. Segundo os dois, a garota não

seguia a dieta; não dormia cedo porque ficava até tarde no celular; fazia “cenas na escola”- seus

pais foram convocados pela direção. Em determinado atendimento, muito angustiada, a mãe diz “já

não sei o que fazer”. A garota não quer ir à aula e chega sempre atrasada, os colegas e a professora

se queixam dela. Recentemente, houve um contratempo na colônia de férias: saiu nua do vestiário

feminino se dirigindo até o equivalente masculino, comportamento cuja repreensão não a fez parar

de repeti-lo.

Os atendimentos eram difíceis. A paciente tinha uma postura dominadora e competitiva.

Numa das primeiras sessões encontrou na sala de atendimento um jogo de tabuleiro chamado

“Combate” e quis jogar. As sessões eram uma zona de confronto, com soldados fardados dos dois

lados, em embate do início ao fim. Letícia sentia prazer em competir e assumia uma posição de

rivalidade. Tinha o costume de tentar trapacear para ganhar nos jogos. As tentativas de propor

outras brincadeiras eram sempre rechaçadas e quando era convidada ao diálogo, Letícia não

192
respondia ou respondia brevemente e voltava a atenção ao jogo. Predominava nas sessões uma

atmosfera hostil e ela mantinha a dificuldade de olhar nos olhos. Nos relatos das sessões, a residente

diz que frequentemente sente sono durante as sessões e cansaço ao final.

Um dia, Letícia falou sobre um “jogo de dança” que gostava de brincar no celular. A

residente propôs jogar junto. Ela selecionou os vídeos das músicas de que gostava, com entusiasmo.

Dançaram juntas. Na leveza da sessão, uma nova dinâmica transferencial surgiu. Ela passou a

chamar a residente pelo nome. O jogo “Combate” ficou de lado. Desenhos e bonecas interessavam

mais. O olhar já não desviava todas as vezes e, mesmo sem ele, Letícia contemplava a psicóloga de

outras formas: narrativas sobre sua vida e possibilidade da residente escolher um jogo também.

Cecília, dez anos, foi encaminhada por um médico sob suspeita de “Transtorno de

Aprendizagem”. Nas falas sobre ela aparecia a marca de uma defasagem, referências a uma criança

talvez infantil demais. Ela era paciente do HUPE há alguns anos e tinha duas irmãs, uma irmã mais

velha e uma irmã gêmea. Seus pais eram separados e as três moravam com a mãe. Era a avó paterna

quem levava Cecília às sessões.

Desde a primeira vez, Cecília questionou com empolgação com empolgação à residente:

“você vai ser a minha psicóloga?”. Nas sessões, costumava escolher as bonecas “Polly” e montar

uma casa em que moravam ela e a irmã, cada uma em um quarto. Elas recebiam visitas dos pais

nessa casa. Nessa brincadeira, a residente representava a irmã que morava com ela. Havia também

uma terceira pessoa, para quem ela criava “várias armadilhas” - mordidas de cachorro, dar comida

estragada, veneno, ou então queimar o vestido dessa outra, identificada apenas como menina. Esta

era “a chata”, aquela que só aparecia para perturbar, inclusive no meio da noite. Vale destacar que a

“chata” era também aquela que roubava seus pais e tinha um nome diferente enunciado a cada hora.

Toda semana, Cecília escolhia as mesmas bonecas e mobílias para a casa, colocando os

móveis exatamente como estavam na sessão anterior. Durante muitas sessões, a configuração da

brincadeira se manteve a mesma e Cecília perguntava – “Vamos brincar de novo de Polly, né?”,
193
“Você se incomoda? Você já está de saco cheio?”. Toda a dinâmica familiar e conflitos existentes

surgiam a partir dessa mesma brincadeira. Em uma das sessões, Cecília foi reiteradamente em

direção à porta da sala onde ocorriam as sessões para verificar se a irmã gêmea estava esperando

fora da sala, além de pedir que a irmã participasse da sessão. A irmã mais velha até agora não tem

lugar nas sessões, não aparece falada por Cecília.

Se o pai aparecia constantemente anulado no discurso da mãe das meninas e, de certo modo,

também da fala avó paterna, no discurso de Cecília ele estava sempre colado à mãe (da menina) –

os dois eram apenas “papai e mamãe”. Em uma das sessões, ela diz: “Por fora ele é pai dela, por

dentro é nosso pai”. A misteriosa referência ao “dela” parecia remeter aos discursos outros sobre o

pai, a avó parafraseando a mãe e as referências que a própria avó trazia dele. O “nosso” pai parecia

indicar um deslocamento dessa constante descrição desvalorizada e problemática do pai, sempre

referido pela avó como “usuário de drogas”, e aquele com quem sua ex-mulher queria evitar

qualquer tipo de contato, inclusive, se necessário, não permitindo que a menina fosse às sessões,

para evitar um envolvimento da avó (conteúdo que apareceu na fala da mãe numa conversa), pessoa

que sempre acompanhava Cecília e dizia estar sobrecarregada pelos cuidados com as netas.

Lucas tem cinco anos e passou a frequentar os atendimentos por um pedido da mãe, Ana. A

questão inicial trazida por ela era não ter coragem para contar a “verdade sobre a morte do pai” para

o filho. Ela contou à criança que o pai “morreu porque comeu muito”. Lucas, paciente do setor de

Nutrição do hospital, indagou: “muita besteira?”. Ao que ela teria dito “sim”. Apesar dessa resposta,

a mãe vivenciava um conflito: contaria ou não a verdade ao filho e, se assim o fizesse, como faria

isso?

Quanto aos atendimentos, nas primeiras sessões Lucas desenhava vários corações. Muitas

vezes entregava-os a sua mãe. Dizia que a amava muito. Algumas semanas depois, a mãe relatava o

choro do filho ao se lembrar do pai. Ele a perguntava: “mãe, por que o papai tinha que comer tanta

besteira?”. Essa fala incomodava tanto a mãe que ela decidiu contar a verdade. Processo
194
acompanhado pelo acolhimento da fala angustiada da mãe. Após a mãe contar que o pai morreu

assassinado, a residente percebeu uma alteração significativa nas sessões. Lucas começou a

desenhar e representar super-heróis e vilões envolvidos em histórias com cenas violentas, com

mortes e salvamentos. Apesar disso, os corações, entregues à mãe com mais frequência, ainda

faziam parte das sessões.

Apareciam nas sessões desenhos de uma pessoa toda cortada em um leito de hospital. Lucas

refere-se aqui ao próprio hospital, “pessoas internadas” poderiam ser cortadas ou estar em perigo de

morte. Nessa situação, Lucas disse: “existem pessoas horríveis que nós amamos, mas não

gostamos”. Fala que podemos relacionar à mudança no relato materno sobre a morte do pai e ao

trabalho de luto realizado por Lucas.

Em um dos atendimentos, o garoto produziu três desenhos. Um deles envolvia um assassino,

uma vítima e uma testemunha. Ele me contou que a vítima, caída no chão, foi morta por um

“assassinador”. Este, por sua vez, seria denunciado pela testemunha à polícia, que mataria o

acusado. Tal cena de violência se relacionava com seu segundo desenho, o de uma criança em casa,

sozinha, morta por uma pessoa que entrou na casa. No terceiro desenho, finalmente, ele se referiu a

um homem que matou outro homem. A sequência fala de um trabalho de elaboração do filho para

se apropriar da verdade contada pela mãe.

Dias antes do dia dos pais, por exemplo, o garoto demonstrou raiva nas falas e nas

brincadeiras: jogou objetos de forma abrupta e furou várias vezes o quadro de recados da sala.

Quando perguntado sobre essas ações, dizia não querer falar sobre o que estava fazendo, afirmando

poder fazer o que quisesse na sala. Durante essa semana, a mãe relata que o filho chorou muito e

buscava um culpado para morte do pai.

No trabalho clínico com os casos relatados acima, podemos situar a importância da escuta.

Ela não busca fazer conjunto, não faz um, não tende à uniformidade. Os pedidos de atendimento

chegam atravessados pelas falas e pelas demandas adultas, pais, cuidadores e profissionais: vimos o
195
pedido de atendimento para ajudar a manejar a mentira da mãe e ajudar a contar a verdade sobre a

morte do pai. Acompanhamos também a profusão de diagnósticos, de nomeações universalizantes

para o que não vai bem. Letícia tinha TDHA, postura desafiadora, “compulsão alimentar”; Cecília

teria um “déficit de aprendizagem”, remetida à marca de um atraso, constantemente comparada à

irmã gêmea, mais viva, mas próxima do esperado para a idade. É fundamental acolher esses

pedidos, a angústia veiculada às falas adultas a fim de compreender a posição atribuída à criança

nessas relações, situar os atravessamentos contidos nas produções discursivas sobre as crianças em

questão. Proliferar as falas, deslocá-las de uma espécie de síntese que parece naturalizar os ditos:

“não tem jeito”, “não se adequa”.

Mais que constatar a postura competitiva e desafiadora de Letícia, produtora de cansaço

nesse jogo de afirmar-se maciçamente, entender do que nos fala essa repetição, como a criança se

posiciona em face dessas falas dos adultos. O olhar que ela nega à residente não nos diz de uma

posição já bastante olhada? Contra a posição de “criança problema” - resultante de uma gravidez

não permitida pela doença da mãe - , desafios, nudez, combate para ganhar. Se fazer presente num

desarranjo do esperado e pedido pelos adultos. Quando nos deslocamos da posição de simplesmente

coadunar com o que vem pronto, não somos mais um. O olhar e o lúdico se apresentam e, quem

sabe, também o desejo: o dançar juntos, não os imperativos e a competição.

Junto ao acolhimento das falas adultas, muitas vezes carregadas de angústia, a escuta

também oferece um tempo de pausa nos pedidos de solução e de respostas imediatas. Às vezes o

tratamento parece não andar, dá sono, cansa. Precisamos nos perguntar como nos localizamos

nesses pedidos, se não estamos deslizando para uma escuta surda, capaz de reafirmar verdades todas

sobre as crianças. Aberturas nessas produções discursivas sempre buscadas na singularidade do

caso a caso mostram efeitos em direção ao desejo, ao sujeito que propomos escutar. A escuta dá

espaço para a criança elaborar, tomar alguma distância dos discursos adultos. Permite tocar estes

discursos por outras vias, singulares. Na mesmice da brincadeira de casinha e bonecas de Letícia,

196
um trabalho sobre o impossível das relações familiares conflituosas. Na passagem dos desenhos de

corações aos desenhos sobre feridos no hospital e narrativas sobre violência e assassinatos,

elaborações sobre morte e destruição, permissão para o aparecimento das ambiguidades dos afetos,

para reconstruir uma história por seus próprios meios, se contar nas palavras.

A postura ética da psicanálise acolhe os restos que tombam da ordenação, da normatização,

dos ideais. Há também aqui uma tarefa política: ao sustentar também na “prática entre vários”

(Rinaldi, 2015) a possibilidade de “restar no irrespirável”, levar à política o sujeito. Uma outra

política, possível, no quadro do SUS, pela sustentação dos furos com a equipe, nas brechas abertas

para a invenção e movimento, presentes no “não sei o que fazer”.

Notas

1.Os autores citam a reformulação de Adorno, digna de nota, em Minima Moralia, texto escrito

durante a segunda guerra mundial: “Eu vi o espírito do mundo, mas não a cavalo: eu o vi nas asas

de um míssil” (Löwy & Varikas, 1992, p. 201).

2.Narrativas referentes aos dois primeiros semestres de atendimentos.

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199
Um lugar possível para a psicanálise no contexto médico: sobre a construção do trabalho em

âmbito multidisciplinar na Unidade de Pediatria do HUPE

Vinicius Anciães Darriba


Flavia Lana Garcia de Oliveira

Resumo: Evidenciamos as linhas gerais que orientam o trabalho em âmbito multidisciplinar na

UDA de Pediatria desde 2012, quando foi retomada a inserção dos residentes na mesma. A ênfase

recai sobre o lugar da escuta psicanalítica no contexto do discurso médico, tomando-o pela

configuração que assume com os efeitos do avanço da ciência. Por meio de vinhetas clínicas,

evidenciamos como sustentar o desejo do analista implica refundar por meio do ato analítico a

experiência do inconsciente a cada vez.

Palavras-chave: psicanálise, pediatria, discurso médico, hospital geral.

Abstract: We present the general guidelines that inform the work in a multidisciplinary field in the

Pediatrics unit since 2012, when the residents' reintegration was resumed. The emphasis is on the

place of psychoanalytic listening in the context of the medical discourse, analyzing the

configuration it assumes with the advancement of medical science. Through clinical vignettes, we

show how sustaining the analyst's desire entails refounding the experience of the unconscious

through the analytic act time after time.

Keywords: psychoanalysis, paediatrics, medical speech, general hospital.

Resumen: Evidenciamos las líneas generales que orientan el trabajo en el ámbito multidisciplinario

en la unidad de Pediatría desde 2012, cuando se reanudó la inserción de los residentes en la misma.

El énfasis recae sobre el lugar de la escucha psicoanalítica en el contexto del discurso médico,

tomándolo por la configuración que asume con los efectos del avance de la ciencia. Por medio de

viñetas clínicas, evidenciamos cómo sostener el deseo del analista implica refundar por medio del

acto analítico la experiencia del inconsciente cada vez.

Palabras-clave: psicoanálisis, pediatria, discurso médico, hospital general.

200
Estabelecendo uma nova inserção para os residentes na Unidade Docente Assistencial de

Pediatria: passos iniciais

No ano de 2012, a Unidade Docente Assistencial (UDA) de Pediatria do Hospital

Universitário Pedro Ernesto (HUPE) foi restabelecida como campo de prática para os psicólogos

residentes. Esse passo foi possível em função do ingresso de um novo docente como preceptor no

curso. Consequentemente, por não figurarem profissionais de psicologia entre o staff do

ambulatório de Pediatria, foi assim também retomada a presença de psicólogos na prática

multidisciplinar do setor. Não havia, portanto, uma modalidade de trabalho já constituída para os

psicólogos. Por outro lado, não trazíamos nós, tampouco, uma proposta a priori.

O modo de trabalho dos residentes foi se delineando, deste modo, no decorrer de sua

inserção nas diferentes equipes. Duas linhas gerais, no entanto, estiveram sempre presentes:

▪ A UDA de Pediatria é composta por diferentes ambulatórios de especialidades. A presença

dos residentes nas equipes dos ambulatórios foi sendo definida segundo as demandas

manifestadas pelas equipes destes ambulatórios de que os psicólogos passassem a estar

presentes nas mesmas. Demandas estas que puderam ser, em alguns casos, com o tempo, por

nós trabalhadas quanto à sua formulação, levando-nos a rever nossa inserção em certos

ambulatórios. Mantendo-nos nesta posição, passamos a estar presentes posteriormente na

enfermaria, na unidade de terapia intensiva e no ambulatório geral da Unidade. Os residentes

atuam ou já atuaram nos ambulatórios de neuropediatria, genética, endocrinopediatria,

gastropediatria, doenças infecto-parasitárias, disfunções miccionais, AMAR – seguimento

ambulatorial multidisciplinar e folllow up – seguimento de prematuros.

▪ Desde o início, ficou definido que o trabalho em âmbito multidisciplinar seria privilegiado.

Isso quer dizer que não inauguraríamos um ambulatório de psicologia dentro da UDA de

Pediatria, para receber os encaminhamentos da equipe. A prática clínica estaria, antes,

referenciada ao acompanhamento dos casos também no campo dos outros profissionais.


201
Devido a esta orientação, ficou demarcado nosso lugar dentro das equipes, o que nos

provocou algumas questões. Primeiramente, a evidência de nossa responsabilidade quanto à

invenção de modos e estratégias próprios para a consolidação do trabalho em equipe

multidisciplinar, conforme as condições específicas encontradas em cada ambulatório e enfermaria.

Em seguida, a própria interrogação que suscita este lugar dentro; a qual, em nosso caso, deriva em

particular do fato de que é como psicanalistas que nos dirigimos a essa prática. Tal questão, que

decorre da própria relação do psicanalista com seu ato, converteu-se em tema de investigações

associadas à experiência da prática multidisciplinar na Unidade de Pediatria. Desse modo,

atualmente, existem dois projetos a isso voltados, subsidiados por agências de fomento em pesquisa

universitária: “O que pode o psicanalista em uma unidade médica: trabalho em equipe

multiprofissional em ambulatório e enfermaria pediátricos” (FAPERJ) e “Psicanálise e ciência: o

lugar do psicanalista em trabalho multidisciplinar no hospital” (CNPq e FAPERJ).

O lugar da escuta psicanalítica no âmbito do discurso médico

Lembremos que, em 1966, Lacan foi convidado a um colóquio organizado por Jeanne Aubry

sobre o lugar da psicanálise na medicina no Collège de Médecine à La Salpetrière, onde há três

anos ela sustentava a presença de psicanalistas junto às equipes médicas. Em sua intervenção

(Lacan, 2001), ele anunciou querer considerar este lugar da psicanálise na medicina do ponto de

vista da modificação muito rápida que se produzia no que chamou de função do médico. Somos aí

remetidos ao que ele articulara meses antes, na lição de abertura do seu seminário inaugurado em 1º

de dezembro de 1965, a qual veio a ser publicada nos Escritos com o título A ciência e a verdade

(Lacan, 1998). Isto porque a dita mudança na função do médico é associada, na intervenção de

Lacan (2001, p. 8) em La Salpetrière, à “espécie de aceleração que vivemos quanto ao lugar da

ciência na vida comum”. Essa afirmação se reporta ao que Lacan (1998, p. 869) introduzira em A

ciência e a verdade, no que concerne à ciência, em termos de uma “radical mudança de estilo no

tempo de seu progresso pela forma galopante de sua imisção em nosso mundo, pelas reações em

202
cadeia que caracterizam o que podemos chamar de expansões de sua energética”. Tomando o

historiador e filósofo Alexandre Koyré como guia, esta mudança é por ele conjugada à “mutação

decisiva que, por intermédio da física, fundou A ciência no sentido moderno, sentido que se postula

como absoluto” (Lacan, 1998, p. 869).

Para Lacan, portanto, é preciso articular essa mudança na função do médico aos efeitos do

discurso da ciência. Trata-se do discurso da ciência que se estabeleceu, segundo o que Lacan situou

em A ciência e a verdade, a partir desta mutação operada pela ciência moderna. Lacan (2001, p. 9)

define o que teria determinado esta mudança na função do médico ao afirmar que “a medicina

entrou em sua fase científica no ponto em que um mundo nasceu, mundo que a partir de então exige

os condicionamentos necessários na vida de cada um à medida da parte que cada um desempenha

na ciência, presente a todos em seus efeitos”. Se Lacan se volta para a questão da mudança na

função do médico quando se trata de discutir o lugar da psicanálise na medicina, podemos entender

que, no âmbito do psicanalista, esta é uma questão preliminar à possibilidade de sua ação nesse

terreno. Por outro lado, vemos que se trataria também ali da formalização do que permitiria ao

próprio médico responder aos problemas consequentes às injunções do discurso da ciência.

Quando Lacan (2001, p. 10) pergunta: “onde está o limite em que o médico deve agir e a quê

deve ele responder?”, dizendo ser a posição do psicanalista “a única de onde o médico pode manter

a originalidade de sempre da sua posição” (p. 13), ele evoca uma elucubração recorrente em sua

obra de que, no que toca à relação com o saber, é na experiência do psicanalista que se encontra, a

partir de um certo momento, uma chance de resposta. Tal conjectura se apoia na definição do

psicanalista como “alguém para quem existe a questão da dependência do sujeito em relação ao

discurso que o sustenta e não que ele sustenta” (Lacan, 2008, p. 158). Esta passagem, que se

encontra no Seminário livro 16: De um Outro ao outro é antecedida pela seguinte observação:

(...) Em suma, cheguei à exorbitância delirante – porque, faz um tempinho, deliro cá comigo

que essas coisas sempre saem um dia, de uma forma ou de outra – que consistiu em dizer (é

203
um delírio meu, ou não) que eu gostaria que as pessoas se dessem conta de que já não é

possível desempenhar o papel que convém à transmissão do saber sem ser psicanalista.

A transmissão do saber não é a transmissão de um valor, embora isso agora se inscreva em

registros, as unidades de valor. Pois bem, justamente por ter acontecido alguma coisa com o

valor do saber, quem quiser, no futuro, assenhorear-se dos meios do que se pode chamar de

um efeito de formação e ocupar um lugar pertinente aos locais em que ele deve ser produzido,

mesmo que se trate de matemática, de bioquímica ou de qualquer outra coisa, fará bem em ser

psicanalista (...). (Lacan, 2008, p. 158)

Posteriormente, em um texto intitulado Talvez em Vincennes, referindo-se à iniciativa de

criação de um Departamento de Psicanálise na Universidade Paris VIII, Lacan (2003, p. 316)

afirma: “Agora não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda

universitária, mas de que essas ciências encontrem em sua experiência uma oportunidade de se

renovar”.

No colóquio em La Salpetrière, no que diz respeito aos novos problemas colocados pela

incidência do progresso da ciência sobre a função do médico, Lacan (1966/2001) propunha que os

médicos se balizassem pelo que o discurso analítico conjuga e que são estruturas de falha.

Primeiramente, a falha entre demanda e desejo, que ele diz se tratar de experiência banal mesmo

para os médicos, embora seja seriamente interrogada apenas pela psicanálise. E a falha epistemo-

somática, com a qual Lacan (2001, p. 11) propõe reanimar o que o termo psicossomática colocava

em questão. Referindo-se à “extensão mais e mais eficaz de nossos procedimentos de intervenção

no que concerne ao corpo humano”. Ele ressalta que a proposta do corpo em seu pretenso registro

purificado, passível de ser radiografado, diagramado, calibrado e fotografado, em suma, dissociado

de sua substância gozante, torna falha a relação epistemo-somática da medicina com a dimensão

corporal. Lacan (2001) destaca, assim, que algo não se acomoda à lógica purificante da relação

204
epistemo-somática, fruto dos impactos que o progresso da ciência produziu sobre a concepção

médica do corpo. Em razão disso, um gozo do corpo se apresenta sem relação ao saber.

A localização desta falha por Lacan expressa o modo de incidência da psicanálise quanto à

articulação do discurso científico. Tal aspecto está sintetizado, por exemplo, na passagem do

Seminário livro 18: De um discurso que não fosse semblante, em que ele afirma que o discurso

científico “só tem como referência a impossibilidade a que conduzem suas deduções” (Lacan, 2009,

p. 27). Já em A ciência e a verdade, Lacan (1998, p.875) dizia que “a ciência mostra-se definida

pela impossibilidade do esforço de suturá-lo [o sujeito]”. Retrocedendo a Freud (1996b), em seu

passo inaugural da psicanálise, foi também nos impasses do método (científico) que a verdade do

objeto (psicanalítico) veio a se afirmar. É na delimitação de um impossível com relação ao que se

afigura como contexto do impasse, do fracasso, da insuficiência que Lacan (1991) apoiará a divisa

ética legada por Freud ao analista.

Bem cedo, Freud (1996a) se deparou com o valor traumático da sexualidade infantil na

constituição subjetiva e, com isso, da função estruturante da fantasia nas neuroses. Foi desse modo

que, enquanto a medicina se tornou progressivamente dualista, restringindo-se à realidade biológica

do corpo, a psicanálise se endereçou para o corpo entendendo a sua materialidade como

essencialmente delimitada pela realidade psíquica. Neste esteio, a abordagem lacaniana das relações

entre psicanálise e medicina veio a se inscrever no que vinha sendo desenvolvido pela tradição de

pensamento francesa de sua época em torno de uma ruptura epistemológica entre os dois campos

(Birman, 2010).

Nos termos de nossa discussão, a abertura para a escuta psicanalítica se instala nas situações

em que a ordem médica se vê desestabilizada pelos impasses psíquicos gerados pelo encontro com

as diferentes faces que o real assume no cenário do hospital. Ou seja, quando algo da falha vem para

o primeiro plano de modo a provocar angústia. A fragilidade do corpo, a doença incurável, a morte,

a impossibilidade de tudo curar. Eis alguns nomes para o real que incide sobre médicos, outros

205
profissionais da saúde e pacientes. O não tratamento pela via do simbólico das defesas e modos de

gozo inconscientes erigidas por cada sujeito como resposta a tais embaraços pode retornar na forma

de atuações e irrupções da pulsão de morte avassaladoras.

Seguindo a transmissão de Lacan, como vimos, tanto a psicanálise quanto a medicina se

inscrevem discursivamente na constituição da modernidade (Birman, 2010). Dependeram, portanto,

do advento da ciência moderna, do nascimento da lógica matemática e da suspensão das crenças

imaginárias que organizavam a visão de mundo religiosa. Uma atuação de orientação psicanalítica

em um contexto médico requer, contudo, o desafio de descortinar uma nova dimensão do corpo que

não o reduz a um organismo compartimentalizado em sistemas dos quais os médicos se ocupam em

suas diversas especialidades. Como dissemos ter Lacan (2010) sublinhado, a psicanálise surgiu na

mesma época em que a medicina entrou em sua chamada fase científica, o que, indiquemos agora,

ocorreu através da descoberta do corpo com a introdução do método anatomoclínico. Segundo

Foucault (1977), até o final do século XIX, a medicina era eminentemente classificatória e procedia

catalogando as enfermidades em hierarquias de famílias, gêneros e espécies com o acréscimo de

temas de natureza imaginária. Com a ascensão da medicina social, a doença passou a ser

rigorosamente espacializada no corpo pelo privilégio concedido à anatomia patológica.

O ingresso da medicina na era científica ocorreu de forma tardia devido a obstáculos morais

que impediam o estudo objetivo do corpo por meio da investigação de cadáveres (Barreto &

Iannini, 2017). Desse modo, a prática médica encontrou no método anatomoclínico o crivo de sua

legitimidade epistêmica. A vinculação dos quadros nosológicos a uma determinada lesão orgânica

passou a constituir uma base explicativa segura para a medicina. O adoecimento histérico, contudo,

configurou um ponto cego ao engenhoso mapa anatomoclínico, evidenciando lacunas quanto à

etiologia, ao diagnóstico e à terapêutica desta manifestação psicopatológica. Charcot, que era um

professor da Faculdade de Medicina de Paris de respeitada autoridade clínica e institucional no

meio médico de sua época, deslocou a histeria do discurso da clínica médica, voltada para o cuidado

geral de mulheres, para o da neurologia. Freud herdou essa problemática durante sua formação

206
neurológica iniciada com Charcot, posteriormente com Bernheim e Breuer. O modelo neurológico

enfatizava a dimensão involuntária do sujeito e a ação terapêutica pautada inteiramente nos efeitos

da palavra e do poder da figura do médico.

Lacan (2001) observa que é na relação forjada e nada assegurada da medicina com a ciência

que as funções do organismo humano são moldadas em termos de organizações ou montagens

diferenciadas que são oferecidas como campo de trabalho ao médico. Sem estes deslizamentos

dentro do próprio campo da medicina, não teria havido terreno fértil para a emergência da

psicanálise. Freud rompeu com essa perspectiva ao demonstrar que a matriz da miscelânea

sintomática da histeria não reside em uma disfunção orgânica, mas nas marcas psíquicas deixadas

pela experiência traumática do encontro com a diferença sexual (Freud, 1996c). As balizas

conceituais da psicanálise permitem situar como ocorre a emergência do sujeito. A boa coordenação

do funcionamento orgânico também depende, em certa medida, da inscrição da castração e do laço

com o desejo do Outro como organizadores dos circuitos pulsionais. Ansermet (2003) enfatiza que

o organismo não é suficiente para fazer um corpo, visto que é a linguagem que propicia a

experiência de um corpo que o sujeito refere como corpo próprio. A hipótese do inconsciente indica

que o corpo anatômico é afetado pelos modos de satisfação pulsional que recortam as zonas

corporais a partir do que é transmitido pelo discurso do Outro.

Fazendo existir a experiência do inconsciente em diversos contextos de uma Unidade de

Pediatria

Se retomamos agora nossa questão quanto ao lugar do analista no trabalho em âmbito

multidisciplinar no hospital, é também a partir dos impasses que este pode vir a se instituir,

impasses a serem lidos como falhas engendradas pelo discurso. É preciso que já haja uma

descontinuidade, uma vacilação, para que o analista possa operar do lugar de resto do discurso.

Enquanto há continuidade, não há o que o analista escutar, falar ou calar. É também a esta

descontinuidade, a esta vacilação que se podem associar os momentos de emergência de angústia do

lado dos membros da equipe, médicos e demais profissionais.


207
Sustentar o desejo do analista implica em refundar por meio do ato analítico a experiência

do inconsciente a cada vez (Cottet, 1982). Fazer operar o desejo do analista no espaço hospitalar

implica frequentemente em atualizar a subversão freudiana frente ao discurso médico. Trata-se de

demonstrar a impossibilidade de tratar certas incidências do excesso pulsional e de diversas

respostas defensivas por explicações organicistas. Em muitas situações, a intervenção analítica

consiste essencialmente em mediar a nomeação e a elaboração das angústias da equipe médica

frente a casos mais mobilizadores. Como o da criança internada na enfermaria, com indicação de ter

um de seus membros amputados. Quando a psicóloga foi chamada a conversar com ela, com a

demanda de que fossem realizados um trabalho pré-amputação e um trabalho pós-amputação,

descobriu que, com a cirurgia iminente, ninguém ainda havia informado à criança de que a mesma

seria realizada.

A primeira alegação que recolheu foi a de que supunham que o pai, ciente da situação, teria

conversado com a filha. Depois, soube que era um caso que envolvia um conflito entre o pai e a

mãe da menina com relação à situação da mesma no hospital. Finalmente, foi visto que a equipe da

enfermaria também não tinha toda a clareza sobre o desenrolar do procedimento sob

responsabilidade da equipe cirúrgica, não havendo por exemplo uma data prevista. A psicóloga,

então, ao invés de preparar a paciente para uma intervenção que ela desconhecia, perguntou de seu

interesse em conversar com algum membro da equipe médica. Diante da concordância da menina,

pode-se observar aspectos de relutância dos médicos em ter essa conversa, o que revelava certa

divisão com relação aos eventos que se sucediam. E, talvez, a antecipação do que viria a ocorrer: a

menina disse que não queria que lhe tirassem o braço.

A cirurgia acabou acontecendo muito rapidamente a partir daquele momento, sendo

informada nas vésperas de sua realização, e a reação sofrida da menina consequente ao

procedimento fez com que viessem a se referir posteriormente à paciente que foi amputada à

revelia. Independentemente das indicações cirúrgicas no caso dessa paciente, ao cabo desse

episódio algo foi nomeado daquilo de que não se queria saber da própria relação dos membros da

208
equipe com o caso, de seus lugares de sujeito. Em outra ocasião, a notícia de que a crença religiosa

dos pais de uma criança poderia ser um obstáculo à realização de uma transfusão de sangue

desencadeou uma forte angústia na equipe. As conversações nos rounds possibilitaram discussões

acerca das tensões e dos limites da autoridade médica e da autoridade parental no espaço hospitalar.

Em um Breve discurso aos psiquiatras (inédito), comentando sobre o que poderia suscitar a

angústia do médico no encontro com o louco, Lacan fala das barreiras protetoras que o médico

adota para não se sentir concernido. Trata-se aí, como ele dirá, da tomada do louco como objeto de

estudo, da objetivação, que consistiria no isolamento de um sujeito puro; deixando velada outra

parte, aquela pela qual o psicanalista situa a divisão do sujeito em sua práxis (Lacan, 1998, p. 869).

Lacan (1967/inédito) se refere à relação com o objeto a, deixada de fora na manobra que supunha

abolir a angústia.

Clavreul (1983) situa o discurso médico na clave do discurso do mestre. Destaca que o saber

médico sobre a causa é direcionado exclusivamente para a doença. De tal modo, o objeto a

desaparece como causa do desejo, reaparecendo como achado do discurso. O médico só se

autorizaria por ser ele próprio o menos possível, anulando sua subjetividade. Nessa circunstância,

ao psicanalista é destinada a tarefa, como ressalta Lacan (1998), de reintroduzir o Nome-do-Pai na

consideração científica. Ou seja, de acolher e intervir, no caso, para a subjetivação dos conflitos

psíquicos que podem atravessar o exercício desses profissionais na assistência hospitalar.

A atuação nas diversas frentes que compõem a UDA de Pediatria também nos confronta

com o “surgimento de novos saberes que se apoiam na ciência, mas integram dispositivos

discursivos com propósitos muito distantes dela” (Coelho dos Santos & Santiago, 2010, p. 48). Na

medicina contemporânea, constata-se um empuxo extra-científico às evidências estatísticas e às

ofertas da indústria farmacêutica. Lacan (2001, p. 9) demarcava esse desdobramento em sua

conferência de La Salpêtrière, ao situar que, em sua nova função, o médico é convocado a assumir o

lugar de “agente distribuidor” das novas terapêuticas, sejam elas químicas ou biológicas. Fica

209
evidente, assim, que a absorção da ciência pela medicina na modernidade é entremeada pelos

avanços do capitalismo.

O culto a um padrão de homem médio, assim como às promessas imediatistas de felicidade,

culmina no apagamento do valor enigmático do sintoma naquilo que ele contém de decifrável

acerca da singularidade de cada sujeito. Caminhamos na contramão disso ao apontar a lógica

singular de cada caso. Podemos verificar, por exemplo, que nossa participação no Ambulatório de

Neuropediatria instalou uma transferência de saber nos profissionais que viabilizou, em muitos

casos, uma escuta mais particularizada de cada caso, em um ambiente institucional no qual a lógica

da medicalização de sintomatologias comportamentais na infância é, em princípio, bastante

favorecida.

Um menino de dez anos chegou ao atendimento realizado em interconsulta médica e

psicológica apresentando distração excessiva, sonolência diurna, insônia noturna, tristeza,

rebaixamento da concentração e dificuldades de aprendizagem. A mãe apresentava excessivo

desânimo. A neuropediatra decidiu recuar na prescrição medicamentosa para o sofrimento psíquico

do menino, apostando em nossa avaliação clínica. A abordagem psicanalítica permitiu ao menino

associar sua tristeza ao desaparecimento de seu pai. Sua constelação sintomática se remetia a esse

apelo à figura paterna frente a um desejo materno fortemente marcado pela ambivalência em

relação ao filho (Oliveira, 2014). Um esforço a mais é requisitado ao residente no sentido de

sustentar a emergência do inconsciente ali onde se exacerbam artifícios de defesa contra o real

traumático baseados em diferentes mentalidades, também alimentadas por uma lógica de mercado.

Em nossa experiência no Ambulatório de Endocrinopediatria, casos que os médicos chamam

de DDS – Distúrbios da Diferenciação Sexual colocaram-nos também diante de tal problemática.

São casos em que não é possível fazer a atribuição do sexo a partir da anatomia. A operação

discursiva É um menino / É uma menina não segue a rotina de seu agenciamento pelo médico.

Procede-se a um diagnóstico de definição do sexo: sexo genético, sexo gonadal, sexo hormonal,

210
sexo genital interno, sexo genital externo, sexo social, sexo psicológico, sexo de criação. As últimas

modalidades dão lugar ao trabalho multidisciplinar que convoca nossa presença.

A aparente conformidade das posições na abordagem desses casos é confrontada à

circunstância de que, para o médico, a impossibilidade de definir o sexo a partir do biológico

decorre de contingências, especificadas na ideia de anomalia, constituindo, assim, exceções à

norma. Para o psicanalista, por sua vez, trata-se de casos particulares de uma impossibilidade que é

estrutural. No que pretende significar o termo ambiguidade genital, categoria a partir da qual a

medicina se engajaria em “evitar que o paciente seja criado num sexo inadequado” (Damiani,

Setian, Kuperman, Manna & Dichtchekenian, 2001, p. 37), a psicanálise situaria um real, se Lacan

(2009, p. 27) define o real como “aquilo que faz furo nesse semblante articulado que é o científico”.

Em nossa prática, verificamos que a incumbência de designar o sexo sem o regular marcador

biológico pode despertar a angústia do médico diante do risco de se revelar, posteriormente, uma

incongruência de gênero. A este ato médico faltaria, então, um saber que o garantisse. Há algo aí,

para o médico, de precário, na medida em que o saber não consegue dar essa garantia. O ato médico

aspiraria se deduzir de um saber inequívoco.

É então que, nos casos aqui em jogo, recorre-se ao saber derivado dos estudos de longo

prazo, ou seja, estudos que acompanham esses sujeitos ao longo da vida e que tentam fornecer,

através da ferramenta estatística, parâmetros relativos a mudanças no sexo atribuído e a variáveis de

influência. Passaríamos à estatística é o destino? O que aí nos chama a atenção, sobretudo, é o fato

de que este saber estatístico promete suprir o não-saber biológico, operando, em última instância, a

supressão da angústia. Com isto, se vedaria a abertura para o real contingencialmente propiciada

pela impossibilidade de apoiar a designação do sexo na biologia. De nosso lado, portanto, não nos

acumpliciamos, na medida em que o passo ético da psicanálise consiste em afirmar que o

impossível é o real (Lacan, 2012, p. 40). Diferente de saberes e práticas psi que vemos se somar à

promessa de dar consistência ao semblante.

211
A questão não está, portanto, em se ser médico ou psicólogo. Como diz Lacan (1960/1998,

p.735), ao abordar, a seu tempo, justamente “as novas aquisições da fisiologia, as realidades do sexo

cromossômico, por exemplo, e seus correlatos genéticos, sua distinção do sexo hormonal e a

proporção que lhes cabe na determinação anatômica”, o corte não tem que ser feito entre um

somático e um psíquico que são solidários. Eles podem complementar-se como protótipos da

objetivação. O corte se impõe entre o organismo e o sujeito. Anos antes, ao se debruçar sobre o

desenvolvimento de outro campo, ele alertara “que os melhores espíritos não se sintam tentados,

sob a denominação de criminologia, pelo sonho de um tratamento inteiramente objetivo do

fenômeno criminal” (Lacan, 2003, p. 129).

Fazemos referência a essas Premissas a todo desenvolvimento possível da criminologia,

título do texto de Lacan, porque, considerando que a experiência analítica impõe como premissa

uma verdade que não se conjuga ao “ideal de uma adaptação do sujeito a uma realidade sem

conflitos” (Lacan, 2003, p. 128), ele afirma ali: “a verdade a que a psicanálise pode conduzir o

criminoso não pode ser desvinculada da base da experiência que a constitui, e essa base é a mesma

que define o caráter sagrado da ação médica – ou seja, o respeito pelo sofrimento do homem”

(Lacan, 2003, p. 131). Sobre essa passagem, Milner (2011) dirá que, tanto quanto Lacan se

preocupa, ao longo de seu ensino, em situar a distância entre a psicanálise e a medicina, cuida para

que uma e outra sejam distinguidas de um dispositivo de controle, representado aqui pela repressão

e a prevenção ao crime. Entendemos, nesse caso, que o respeito pelo sofrimento do homem, base

comum a ambas segundo Lacan, deveria constituir a borda, a margem que faz obstáculo à

objetivação.

É nesta direção que se estendeu a orientação ética derivada da experiência analítica, e

também nela, como vimos no início, que residira a singularidade da função do médico. No entanto,

como diz Lacan (2001, p. 10):

212
[...] à medida que o registro da relação médica com a saúde se modifica, em que esta espécie

de poder generalizado, que é o poder da ciência, dá a todos a possibilidade de virem pedir ao

médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato, vemos desenhar-se a

originalidade de uma dimensão que denomino demanda.

Demanda cuja resposta, para preservar este ponto de encontro da psicanálise com a

medicina, dependeria da possibilidade de se situar a falha no discurso. O que Ansermet (2014, p. 5),

psicanalista e médico com longa experiência de trabalho em hospitais, já mencionado acima,

enuncia como “levar o real do inconsciente aos limites do real da ciência”. Na via em que Lacan

(2012, p. 136) observava que “o discurso analítico não é um discurso científico, mas um discurso

cujo material a ciência nos fornece”. O próprio analista, contudo, se vê desafiado, na prática

multidisciplinar no hospital, por uma demanda que, em sentido contrário, faz apelo, como dissemos,

a que venhamos a dar consistência ao semblante.

Como no caso que comentamos, em que se pretendia que a criança fosse preparada para a

situação de ter o braço amputado, numa demanda indistinta, que se esquivava de todas as

particularidades da situação, não apenas as que concerniam à paciente. Em outro exemplo, quando

da morte de uma criança, foi dito por uma profissional, à mãe da criança vizinha de leito da outra e

portadora da mesma doença, que não lhe deveria ser contado sobre o que aconteceu. Foi no

contexto deste saber sobre o bem da criança que a psicóloga foi introduzida ao caso, no decorrer do

qual presenciou um diálogo em que os nomes das crianças foram trocados. Por atuarmos em uma

unidade pediátrica, constatamos o não-lugar de sujeito em vias de advir da criança, que entendemos

denunciar ali, contudo, em sentido amplo, o próprio impasse quanto ao lugar de sujeito no hospital.

Neste sentido, o objeto da psicanálise não é nem a criança, nem o adulto. Não é o comportamento,

nem o eu ou a personalidade, mas o sujeito. Portanto, é importante que a ele nos voltemos,

esquivando-nos igualmente de uma especialização assentada em parâmetros cronológicos que, em

213
uma acentuada tendência à objetalização, acaba por desconsiderar a importância da subjetivação das

perdas e do trabalho psíquico em jogo na singularidade de cada caso.

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215
Prática clínica e supervisão na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do HUPE-UERJ

Ingrid Vorsatz
Penélope Esteves Raposo Mathias

Resumo: Tomando por guia a proposição de Freud de que no trabalho analítico pesquisa e

tratamento coincidem e considerando a transferência como o campo privilegiado dessa

coincidência, intentamos discutir as condições de possibilidade da sustentação de um trabalho de

orientação psicanalítica no âmbito da formação em serviço que caracteriza a prática institucional do

residente de Psicologia. A discussão é proposta a partir de dois vieses: a experiência da residente e a

perspectiva da supervisão.

Palavras-chave: formação em serviço, supervisão, psicanálise, transferência.

Abstract: Taking as a guide Freud's proposition that in analytic work research and treatment

coincide – and considering transference as the privileged field of this coincidence – we attempt to

discuss the conditions of possibility for sustaining psychoanalytic orientation in the scope of in-

service training that characterizes the institutional practice of residents in Psychology. The

discussion proposes two biases: the resident's experience and the supervision’s perspective.

Keywords: in-service training, supervisory, psychoanalysis, transference.

Resumen: Tomando por guía la proposición de Freud de que en el trabajo analítico investigación y

tratamiento coinciden y considerando la transferencia como el campo privilegiado de esa

coincidencia, intentamos discutir las condiciones de posibilidad de la sustentación de un trabajo de

orientación psicoanalítica en el ámbito del entrenamiento en servicio que caracteriza práctica

institucional del residente de Psicología. La discusión se propone a partir de dos sesgos: la

experiencia de la residente y la perspectiva de la supervisión.

Palabras-clave: entrenamiento en servicio, supervisión, psicoanálisis, transferencia.

216
[...] para o psicanalista existe uma aspiração por afeto mais
perigosa, que é a ambição terapêutica de realizar, através de
seu meio novo e muito criticado, algo que seja convincente
para outros.

(Sigmund Freud, 1912)

Introdução

Pretendemos abordar a proposta contida na convocatória desta publicação comemorativa, a

saber, aquilo que, emergindo do trabalho clínico no âmbito da Residência em Psicologia poderia

contribuir para o campo da psicologia hospitalar, a partir de um duplo viés: a experiência da própria

arresidente do Curso, e a reflexão que se impõe desde a função de supervisão sustentada no âmbito

do programa especializado do Curso inserido na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do

Hospital Universitário Pedro Ernesto. Nosso objetivo é o de problematizar especificidade do

trabalho que intentamos realizar levando em consideração o campo da transferência como sendo

aquele em que pesquisa e tratamento coincidem, consoante a precisa e não menos preciosa

indicação legada por Freud.

Em se tratando de uma edição comemorativa, consideramos relevante traçar um histórico

sucinto tanto do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional na modalidade

Residência Hospitalar - que ora completa vinte e cinco anos de existência -, como também da

inserção do programa especializado do Curso na Unidade Docente Assistencial do Hospital

Universitário Pedro Ernesto (UDAPq-HUPE). Co-memorar é trazer à memória, juntos, de modo a

inscrever no tempo um percurso de trabalho, com alegria e celebração.

A Residência em Psicologia Clínica Institucional

Embora a implementação do projeto de Residência em Psicologia da Universidade do Estado do

Rio de Janeiro tenha iniciado suas atividades como um Curso de Especialização em 1994, a história

de sua idealização e desenvolvimento remete à década de ‘70 do século XX, com as iniciativas

precursoras de implementação de cursos de Residência em Psicologia. Essa trajetória é relatada por


217
Ferreira (1997) na apresentação da primeira edição da publicação intitulada Práxis e formação, a

saber, os Anais da I Jornada da Residência em Psicologia Clínico-Institucional, atual Fórum Anual

da Residência em Psicologia Clínica Institucional. O autor aponta que no final daquela década a

Direção do Instituto de Psicologia da UERJ propôs a criação do Curso de Especialização em

Psicologia Clínica; defendeu-se, então, pela criação de um programa de Residência em Psicologia

como forma de proporcionar aos profissionais recém-formados um treinamento em serviço no

âmbito da saúde pública, em regime intensivo. Contudo, naquele momento, a proposta não obteve

êxito (Ferreira, 1997). Apenas em 1993 esta iniciativa foi retomada, sendo aprovada através do

apoio obtido junto a Direção do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (UERJ), bem como do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), "O que garantiu os

recursos financeiros e materiais para oferecer o campo da prática e cinco bolsas anuais para os

residentes" (Ferreira, 2001, p. 6).

No ano de 1994 a proposta de uma Residência em Psicologia da UERJ foi colocada em prática,

tendo se transformado em um Curso de Especialização a título de Pós-graduação lato sensu em

2002, após sua legitimação pela Sub-Reitoria de Pós-graduação e Pesquisa (SR2) da UERJ. Os

Programas de Residência Multiprofissional e Uniprofissional teriam seu estatuto reconhecido em

2005 como modalidade de ensino de pós-graduação lato sensu (BRASIL, 2005); no ano de 2011 o

programa passou a se denominar Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional -

Modalidade Residência Hospitalar, ofertando inicialmente cinco vagas para graduados em

Psicologia vagas através de processo seletivo realizado anualmente. Desde 2013 passou a oferecer

dez vagas de ampla concorrência, passando a reservar, a partir do ano de 2016, três vagas

destinadas aos candidatos selecionados através de sistema de cotas, conforme a legislação vigente,

através de Edital público específico.

Ainda de acordo com Ferreira (1997) tal modalidade de formação profissional oferece uma

prática intensiva exigindo, portanto, dedicação exclusiva às atividades propostas pelo Programa de

Residência, em conformidade com a legislação que rege os Programas de Residência

218
Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde. Essas atividades incluem a inserção do residente

nas equipes multiprofissionais que atuam nas enfermarias e ambulatórios dos diferentes programas

especializados que compõem o referido curso de especialização, o atendimento clínico, a orientação

e supervisão sistemáticas, o estudo individual e em grupo, as aulas teóricas, os seminários docentes

e discentes, a participação nas sessões clínicas dos serviços em que o residente está inserido, o

registro em prontuários e a confecção de relatórios, além da elaboração de monografia de conclusão

de curso. Para tanto, o residente de Psicologia recebe uma bolsa auxílio cujo valor, equivalente à do

residente médico, é estabelecido pela Comissão Nacional de Residência Multiprofissional e em

Área Profissional de Saúde do Ministério da Educação e Cultura juntamente com o Ministério da

Saúde, para que possa se dedicar integralmente ao treinamento em serviço que caracteriza a

Residência em saúde, em regime de dedicação exclusiva.

O Programa de Residência em Psicologia Clínica Institucional é desenvolvido em parceria com

três instâncias da Universidade: o Instituto de Psicologia (IP), o Hospital Universitário Pedro

Ernesto (HUPE) e a Coordenadoria de Desenvolvimento Acadêmico (CDA) do HUPE, que

garantem, respectivamente, o corpo docente e a preceptoria, o cenário de práticas e o repasse

financeiro, sendo que este último é realizado através da Diretoria de Administração Financeira

(DAF) da UERJ. O curso é coordenado por um docente do Instituto de Psicologia que integra o

Núcleo Docente Assistencial Estruturante do Curso, composto por docentes e psicólogos do IP que

atuam na supervisão e na preceptoria. As diretrizes pedagógicas e acadêmicas do Programa de

Residência em Psicologia Clínica Institucional são de responsabilidade do IP-UERJ.

O Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE), é o principal cenário de práticas dos programas

especializados do Curso, bem como a Policlínica Piquet Carneiro, cujo cenário de práticas é o

CAPS-UERJ. Esse complexo hospitalar de saúde instalado na cidade do Rio de Janeiro oferece

atenção à saúde em âmbito primário, secundário e terciário, além de um Centro de Atenção

Psicossocial, integrando assistência, ensino e pesquisa. Cabe ressaltar que o HUPE é referência em

219
assistência especializada para todo o Estado do Rio de Janeiro, disponibilizando 525 (quinhentos e

vinte e cinco) leitos distribuídos entre mais de 60 (sessenta) especialidades e subespecialidades.

Assim, a Residência em Psicologia Clínica Institucional dispõe de um hospital universitário

para o exercício de práticas que contribuem para a formação de psicólogos aptos a atuar em nível

primário, secundário e terciário de atenção à saúde, uma vez que o HUPE adota o modelo de ações

integradas de Serviços de Saúde como regionalização e hierarquização dos atendimentos à

população. Além disso, no âmbito do Programa de Residência em Psicologia, promove-se a

articulação entre assistência, ensino e pesquisa.

A partir de sua inserção nos Programas especializados, o residente tem a oportunidade de

trabalhar junto aos outros membros da equipe multiprofissional, conhecendo, portanto, diferentes

modalidades de atenção à saúde da população. Conforme afirma Ferreira (2011), é franqueada ao

residente de Psicologia a vivência no campo da saúde pública, que inclui internações hospitalares,

atendimentos ambulatoriais, visitas domiciliares e programas de reabilitação. O autor acrescenta

que o profissional residente será devidamente capacitado para a prática junto à equipe

multiprofissional, aos pacientes e seus familiares, e ao próprio ambiente de trabalho, tendo nas

supervisões um momento privilegiado de elaboração de sua prática.

Conclui-se que este curso pioneiro, sendo a primeira Especialização na Modalidade de

Residência Hospitalar, tem contribuído de forma relevante para a formação de psicólogos clínicos

aptos a atuar nos mais diferentes níveis de atenção à saúde. Além disso, a produção científica e

teórica resultante de tais experiências têm se mostrado relevante no enriquecimento de discussões e

pesquisas acerca do tema da Psicologia na saúde pública.

Breve histórico da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário

Pedro Ernesto

A Unidade Docente-Assistencial de Psiquiatria, criada na década de 60 do século XX, é uma

das unidades do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) que desenvolve atividades de
220
assistência, ensino e pesquisa através de equipe multidisciplinar composta por médicos,

enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e alunos de cursos de pós-

graduação lato sensu na modalidade especialização e de Residência em Psiquiatria, Psicologia,

Enfermagem e Serviço Social. O espaço físico se assemelha a uma pequena vila com oito casas,

compostas de dois quartos, uma sala e banheiro privativo.

Com uma capacidade inicial de 30 (trinta) leitos, a partir do final da década de 1990 o serviço

reduziu a oferta de leitos para internação psiquiátrica, contando atualmente com quinze leitos. A

redução do número de leitos deveu-se, primeiramente, à oferta de três casas para o funcionamento

do Hospital-Dia Ricardo Montalban, além da cessão uma dessas casas para o Ambulatório de

Psiquiatria Infantil. O novo dispositivo assistencial foi criado no intuito de acompanhar pacientes

mais graves que sentiam dificuldade em frequentar outros espaços de atividades e de vida social, e

que não tinham indicação clínica de internação. Um dos objetivos dessa proposta seria, portanto, o

de favorecer as transformações nas relações dos usuários com o meio em que vivem, propiciando a

criação e o restabelecimento de vínculos que possibilitassem a sua sustentação fora da internação

hospitalar.

Essa demanda começou a surgir a partir dos próprios pacientes, que, fora do momento de crise

da doença, ansiavam por um espaço em que pudessem se engajar e se expressar, o que levou à

criação, no âmbito do curso de Residência de Psicologia, do Espaço de Atividades e Convivência

Nise da Silveira (EACNS). Esse dispositivo pioneiro foi o precursor do HD, na medida em que a

constatação dos resultados positivos que tal iniciativa trazia para o tratamento dos pacientes

contribuiu para que a Instituição voltasse sua atenção para esse modelo de cuidado.

Visando, portanto, o acompanhamento de pacientes egressos da internação, o então chefe da

UDAPq-HUPE, propôs, em 1992, a criação de um grupo multiprofissional para a elaboração de um

projeto que favorecesse a criação de redes de sustentação para que os pacientes tivessem melhores

condições de vida e laços sociais, iniciativa que contribuiria, inclusive, para a sustentação do

221
próprio tratamento ambulatorial por parte dos pacientes. Após quatro meses de trabalho o projeto

foi apresentado ao Colegiado da UDAPq, tendo sido aprovado. Através do apoio da Sub-Reitoria de

Extensão (SR-3) da UERJ, que garantiu alguns contratos de técnicos e bolsas para estagiários de

várias áreas, iniciaram-se as atividades do Hospital-Dia Ricardo Montalban (HD). A preferência era

que se chamasse CAPS da Vila, por se tratar de um dispositivo inspirado pela Reforma Psiquiátrica

na consolidação dos direitos do usuário da rede de saúde mental. No entanto, devido à tradição

médica, a designação Hospital-Dia foi melhor aceita, sendo, assim, adotada.

Após mais de dez anos e um longo processo de discussão e de adequação que inclui, em um

primeiro momento, a transferência do HD para a Policlínica Piquet Carneiro, constatou-se que

apesar de atender às diversas propostas da Reforma, o HD ainda estava atrelado à lógica do

tratamento hospitalar. A partir disso, uma alternativa a esse modelo começou a ser desenvolvida,

levando à inauguração, no dia 28 de maio de 2009, do Centro de Atenção Psicossocial da UERJ, o

CAPS-UERJ.

Atualmente, o Espaço de Atividades e Convivência Nise da Silveira, projeto de extensão

iniciado e coordenado pelo então supervisor e preceptor do programa especializado na UDAPq,

tornou-se o Núcleo de Atividades Integradas em Saúde Mental (NAISM), funcionando em uma das

casas da vila sob supervisão da terapeuta ocupacional do serviço.

O então supervisor do Programa especializado na enfermaria da UDAPq, passou a atuar no

CAPS-UERJ a partir de 2009. Naquele ano uma docente do Instituto de Psicologia da UERJ passou

a integrar do Núcleo Docente Assistencial Estruturante do curso, assumindo as funções de

preceptoria e supervisão dos residentes de Psicologia na enfermaria e no ambulatório da UDAPq até

a sua aposentadoria em 2012. Nos três anos seguintes o Curso de Especialização em Psicologia

Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar não manteve um programa especializado

na UDAPq-HUPE, até o segundo semestre de 2015, com o ingresso da atual supervisora, docente

do IP-UERJ, no NDAE do curso.

222
O trabalho foi retomado, então, em novas bases. Inicialmente os residentes de Psicologia se

inseriram na enfermaria da UDAPq; a partir do segundo semestre de 2016, também no ambulatório,

vencidas algumas resistências institucionais iniciais. Nesse período teve início a instauração do

dispositivo clínico da Recepção de Psicologia no Ambulatório da UDAPq (Mathias & Vorsatz,

2017). No primeiro semestre de 2017 os residentes de Psicologia também se inseriram no

Ambulatório de Psiquiatria Infantil da UDAPq, atuando em equipe multiprofissional e realizando

atendimentos a crianças, adolescentes e seus familiares. Lamentavelmente essa frente de atuação

não prosperou em virtude da recente aposentadoria da psiquiatra responsável pelo serviço.

Desde o início de 2018 os residentes de Psicologia vêm sustentando a proposta de um

dispositivo terapêutico mensal – o Cineclube -, com exibição de filmes seguida de debates no

auditório da enfermaria da UDAPq, atividade que inclui a participação de pacientes (internados ou

não), seus familiares, residentes médicos, de Enfermagem e de Serviço Social e equipe de

profissionais da UDAPq, promovendo um espaço de reflexão cujos temas concernem a questão do

adoecimento psíquico e, também, do campo da saúde mental. Atualmente os residentes de

Psicologia se encontram amplamente integrados ao funcionamento institucional nos diferentes

dispositivos clínicos da UDA de Psiquiatria, tanto na enfermaria como no ambulatório -

participando de atividades como supervisão de equipe, Sala de Acolhida multiprofissional, sessão

clínica, oficinas conduzidas pela terapeuta ocupacional, entre outras -, tendo sua participação ativa

no serviço reconhecida de forma elogiosa pelo atual chefe da UDAPq, em diversas oportunidades.

A experiência como residente de Psicologia na Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do

HUPE

O Hospital Pedro Ernesto, fundado em 1950 e incorporado à Faculdade de Ciências Médicas da

Universidade do Estado da Guanabara (atual UERJ) em 1962, manteve seu foco em atividades que

privilegiavam exclusivamente as questões acadêmicas de ensino e pesquisa até 1975, quando

223
tornou-se um hospital geral de natureza pública, ampliando a assistência e adequando-se às

necessidades da população.

Os profissionais do hospital, em geral, demonstram uma atitude de cooperação e de autenticação

do trabalho realizado por todos os profissionais que compõem as equipes. Essa postura se deve a

diferentes determinantes, podendo-se apontar, entre eles, o fato de o HUPE ser um hospital

universitário, espaço privilegiado de transmissão e de produção de saberes distintos. Há, por parte

de seus profissionais, o compromisso com a formação dos alunos oriundos da Faculdade de

Ciências Médicas, assim como de outras unidades acadêmicas da UERJ, entre elas, o Instituto de

Psicologia Por outro lado, tem como principal objetivo a prestação da assistência em consonância

com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS), dentre os quais encontramos o

atendimento integral à população, com o reconhecimento da atuação multiprofissional para a

efetivação de tal diretriz.

Conforme mencionado, nos dois anos do curso de Residência o residente se insere em diferentes

clínicas especializadas oferecidas pelos programas como campos de atuação, sendo que no primeiro

ano em sistema de rodízio. Em meu primeiro ano de Residência, optei por realizar meu treinamento

em serviço na Unidade Docente Assistencial de Cirurgia Cardíaca, na Enfermaria do Núcleo de

Estudos da Saúde do Adolescente - NESA, e, também, nos dispositivos de saúde mental ofertados

pelo Programa de Residência, a saber, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) - Policlínica

Piquet Carneiro/UERJ, no primeiro semestre, e a Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria no

segundo semestre.

No segundo ano, minha inserção no Programa de Residência se deu em duas clínicas distintas

do HUPE: na Unidade Docente Assistencial de Cirurgia Cardíaca e na Unidade Docente

Assistencial de Psiquiatria, dando continuidade ao trabalho desenvolvido desde o segundo semestre

letivo do primeiro ano de Residência. Tratarei aqui apenas da minha experiência na UDA de

Psiquiatria, pois, além de ter dedicado três quartos do meu treinamento em serviço nesse programa

especializado do Curso, recolhi contribuições muito relevantes para minha formação nas

224
supervisões de orientação psicanalítica, linha teórica pela qual opto para me nortear na realização de

meu trabalho.

De uma maneira geral, os profissionais que atuam na UDA de Psiquiatria conduzem o trabalho

de maneira coerente com as propostas da Reforma Psiquiátrica que, dentre outros legados, trouxe à

baila a importância de um acompanhamento multiprofissional aos pacientes da rede de saúde

mental, tendo os saberes e práticas da Psicologia colaborado para a construção de um novo modelo

de assistência a pacientes portadores de sofrimento psíquico (Silva, 1992). Assim sendo,

testemunhamos neste dispositivo uma espécie de reconhecimento da especificidade do trabalho do

psicólogo.

É importante salientar que ter um lugar legitimado é diferente de ter um lugar dado, visto que,

conforme apontam Moretto e Priszkulnik (2014), a entrada de um psicanalista - ou de um

profissional que opera a partir do viés psicanalítico, como no meu caso – numa instituição de saúde

não se traduz, necessariamente, na sua inserção, devendo esse lugar ser construído para que se possa

ali operar.

Na UDA de Psiquiatria, o trabalho caracteriza-se pelo acompanhamento dos pacientes

internados na enfermaria e de seus familiares, bem como da inserção do residente de Psicologia nos

dispositivos multiprofissionais, figurando, entre eles, as sessões clínicas, as oficinas terapêuticas e

as supervisões multiprofissionais no serviço, experiências que são reportadas nas supervisões

semanais, de orientação psicanalítica e específica para os residentes de Psicologia. Atuei, também,

no ambulatório da UDAPq, experiência que me possibilitou presenciar o primeiro contato dos

pacientes com a instituição através da minha inserção na Sala de Acolhida multiprofissional, assim

como participei do trabalho de Recepção de Psicologia desde o seu início, iniciativa da atual

supervisora do Programa especializado do Curso, que será relatada mais à frente. Por um breve

período, participei também do Ambulatório de Psiquiatria Infantil, que em razão da aposentadoria

da psiquiatra responsável pelo serviço, teve suas atividades suspensas.

225
Vale salientar que a supervisão clínica de orientação psicanalítica convida os residentes à

reflexão sobre quais efeitos podem ser recolhidos a partir da ocupação de tais dispositivos clínicos

institucionais. Conforme afirmam Moretto & Priszkulnik (2014), a inserção do profissional que

opera a partir do viés psicanalítico não é sinônimo de presença física em reuniões ou ainda de

recebimento de encaminhamentos, visto que tal inserção concerne muito mais ao modo como o

profissional responde às demandas que recebe, bem como de sua resposta a estas.

Só foi possível conduzir o trabalho a partir de uma orientação psicanalítica, referencial teórico

que parte da utilização da palavra como ferramenta fazendo valer, a partir da escuta, aquilo que é

endereçado pelo sujeito. Sustentar um trabalho utilizando como instrumento a palavra causou-me

certo embaraço de início, pois, abrir um espaço de escuta para o paciente, demanda, por parte do

profissional, disponibilidade para receber tudo o que pode advir da clínica, estando este profissional

sujeito, portanto, a entrar em contato com questões que podem suscitar experiências vivenciadas

como desagradáveis, sem ter nenhuma indicação prévia do que poderá emergir.

Longe de pretender dar início a uma querela, há de se convir que a atuação profissional por

parte de diferentes especialidades do hospital, apesar das constantes intercorrências que exigem

criatividade e determinação por parte dos demais profissionais de saúde, parece estar pautada em

manuais e protocolos que os orientam. Este é um dos primeiros impasses enfrentados pelo residente

de Psicologia que se propõe a atuar no hospital. É necessário, portanto, sustentar um trabalho

clínico a partir de algo que não está posto, operando a cada vez, respondendo ao que aparece no

caso-a-caso, isto é, na experiência singular de cada sujeito/paciente, levando em conta a dimensão

subjetiva daquilo que está sendo enunciado como queixa – seja por parte do paciente e/ou de seus

familiares, seja por parte da equipe.

No serviço de Psiquiatria, tanto na enfermaria quanto no ambulatório, somos constantemente

convocados a fornecer respostas para os sintomas que se impõem ao sujeito sem que ele e os que

estão em seu entorno compreendam a causa. Perguntas como "Por que isso está acontecendo

comigo?" ou "O que devo fazer então?", por parte dos pacientes, e ainda "Por que meu filho age

226
dessa maneira?", vindas dos familiares, são comuns e apontam para um grande sofrimento psíquico.

Mas, de outra parte, também apontam para um endereçamento, germe da transferência, campo a

partir do qual, uma vez instituído de acordo com as balizas fornecidas por Freud, poderemos

ancorar a nossa atuação.

A especificidade de nosso trabalho consiste em fazer algo a partir daquilo que a clínica nos

lança como desafio, recolhendo os efeitos somente a posteriori. Essa é a única maneira possível de

conduzir um trabalho sob o viés psicanalítico visto que, em psicanálise, a soberania é da clínica,

sendo a teoria um subsídio ao qual se recorre para dar conta das questões que a clínica impõe. A

partir da escuta clínica, vamos adentrando essas questões na perspectiva de que algo da verdade do

sujeito possa se exprimir, o que não significa aplacar a sua angústia.

A equipe também apresenta diversas demandas aos residentes de Psicologia, indagando,

constantemente, o que deve ser feito com um paciente considerado ‘difícil’. De fato, em um serviço

de saúde mental, os endereçamentos feitos ao psicólogo podem ser numerosos e diferenciados.

Recorrendo à teoria psicanalítica para a resolução desse impasse, Moretto e Priszkulnik (2014)

propõem um contraponto entre o encaminhamento ao analista, por parte da equipe, sem demanda de

saber e o encaminhamento com demanda de saber ao analista. Segundo as autoras, um

encaminhamento sem demanda de saber, diferente de uma demanda consistente, pode indicar uma

dificuldade da equipe de saúde frente à subjetividade do paciente, e, consequentemente, uma

dificuldade frente à própria subjetividade, visto que o discurso médico, adotado por muitos

profissionais, “se sustenta pelo imperativo metodológico da exclusão da subjetividade tanto do

paciente quanto da pessoa do médico em nome da própria execução do ato médico de salvar vidas”

(Moretto & Priszkulnik, 2014, p. 295). Por outro lado, a especificidade de uma demanda consistente

reside no fato de existir, por parte da equipe, um desejo de que as dificuldades frente à

subjetividade, ainda que em alguns casos imperativa, seja tratada.

Em nossa prática, nos deparamos com um fato que parece corroborar tal consideração,

concernente ao volume de encaminhamentos inicialmente destinados à psicoterapia que os

227
residentes de Psicologia recebiam no Ambulatório da UDAPq-HUPE por parte de outros

profissionais. Percebemos que estes encaminhamentos, muitas vezes inespecíficos, em sua maior

parte se tratavam de casos que, apenas por não necessitarem de internação ou ainda tratamento de

ambulatorial medicamentoso, eram destinados à Psicologia. De início, não tivemos a iniciativa de

problematizar junto aos demais profissionais tais encaminhamentos. A maneira como lidamos com

essa questão foi levá-la para discussão em nossas supervisões semanais. A supervisora propôs,

então, que implementássemos um dispositivo clínico os grupos de Recepção de Psicologia,

iniciativa que já havia sido conduzida com êxito em outras instituições de saúde mental (Oliveira,

2000). Esta modalidade de intervenção clínica tem por objetivo propiciar uma espécie de ensaio

prévio ao tratamento propriamente dito, também inspirada na proposta de Freud em relação ao

início de um tratamento analítico (2016c).

A proposta de implementação desse novo dispositivo, a Recepção de Psicologia, consistiu em

oferecer a possibilidade de decantar a queixa inicial por parte dos pacientes - que muitas vezes são

inespecíficas, assim como são grande parte dos encaminhamentos - de modo a facultar ou ainda

propiciar que uma demanda de tratamento pudesse ser formulada transferencialmente. A partir

disso, a oferta de um atendimento individual pode ter lugar, através de um pedido implicado por

parte do sujeito (Bauerfeldt, Mendes & Vorsatz, 2017).

Assim, partimos da premissa de que aceitar o sujeito em atendimento psicológico sem interrogar

o próprio encaminhamento por parte da equipe – no qual, muitas vezes, o próprio não estava

implicado – seria desconsiderá-lo enquanto sujeito, tomando-o como objeto de intervenção

(Mathias & Vorsatz, 2017). O risco em submeter alguém a uma espécie de atendimento

compulsório reside no fato de que tal atitude pode se traduzir em uma intervenção de caráter tutelar,

modelo de atuação que o campo da saúde mental vem interrogando desde a crítica acerca do modelo

asilar empreendida pela Reforma Psiquiátrica.

Por operar a partir de uma orientação psicanalítica, questionamos o procedimento, às vezes

automático, de encaminhamento para psicoterapia sem uma prévia discussão sobre o caso e sobre a

228
própria pertinência do encaminhamento. De outro lado, o trabalho de recepção clínica visa apostar

na implicação do sujeito com aquilo mesmo de que ele se queixa, na sustentação de um dispositivo

clínico que possa permitir, a partir da decantação da queixa inicial, um pedido de tratamento no qual

o sujeito esteja implicado - sem contudo, considerar essa possibilidade como um ideal a ser

atingido. Se, por um lado, casos considerados ‘difíceis’ podem impulsionar a equipe a persuadir o

sujeito para que consinta em determinado tratamento, pacientes com quadros complexos também

podem gerar uma espécie de renúncia por parte dos profissionais.

A equipe, muitas vezes, espera que o paciente seja dócil e que responda da maneira prevista ao

tratamento e às ações do serviço. Os profissionais do hospital, de forma geral, pautam suas práticas

em procedimentos, muitas vezes padronizados, que visam a cura, a saúde e o bem-estar dos

pacientes, o que nem sempre é possível. No serviço de Psiquiatria essa tendência também pode ser

observada em determinadas situações que atestam a impossibilidade do modelo biomédico em

efetivar a reabilitação pretendida. Observamos condutas que concentram todos os seus esforços na

cura do sofrimento mental, ou, pelo menos, na remissão dos sintomas. Essa perspectiva, que pode

resultar na exclusão da dimensão subjetiva, vai de encontro às premissas da psicanálise, que se

propõe a operar a partir daquilo que é articulado pelo sujeito em sua fala. Percebe-se, portanto, que

outro impasse enfrentado pelo residente de Psicologia que atua no hospital a partir de um viés

psicanalítico está em sustentar um lugar que não visa propriamente a cura, em um "lugar de cura".

Isso significa dizer que para nós, a direção do tratamento não está na resolução dos sintomas,

mas na escuta, sob transferência, daquilo que só o próprio sujeito poderá dizer sobre aquilo de que

ele padece. Freud (2016e) recomendava aos profissionais que se propunham a exercer o tratamento

psicanalítico cautela em relação à expectativa de fazer com que o paciente alcance um ideal pré-

concebido graças ao tratamento, visto que na prática psicanalítica o paciente e suas capacidades

devem ser usados como guia, e não de acordo com a expectativa do profissional. Retomando a

advertência freudiana a respeito da evitação do furor sanandis por parte do psicanalista, Lacan

destaca que se Freud “[...] admite a cura como um benefício adicional do tratamento psicanalítico,

229
ele se precavém contra qualquer abuso do desejo de curar [...] inquieta-se em seu foro íntimo [...]:

‘será que isso ainda é psicanálise?’” (Lacan, 1998b, p. 327, grifo nosso).

Assim, nossa proposta é a de pôr em trabalho aquilo que se apresenta na e pela clínica,

apostando que o sujeito possa, em algum momento, se situar diante do que diz. Sendo a nossa

ferramenta a palavra, e trabalhando na direção de fazer valer aquilo que o paciente diz, não

podemos ignorar a dimensão clínica existente em sustentar o compromisso com a nossa própria

palavra. Quando, por exemplo, dizemos a um paciente internado na enfermaria que iremos ao

serviço no feriado, devemos sustentar a nossa palavra em ato, visto que a nossa presença poderá

servir como uma espécie de sustentação para o sujeito que se encontra no momento mais agudo de

seu padecimento psíquico.

Cabe ao residente, portanto, fazer valer sua posição enquanto profissional em formação no

campo da saúde pública, o que implica estar comprometido com o atendimento da população e

orientando-se pelas diretrizes do SUS, bem como pela ética profissional. Pode ser difícil sustentar

esse trabalho quando se tem um prazo para permanecer no serviço estipulado a priori, sabendo que

sua saída já tem data marcada. Além disso, enquanto jovem profissional, sentia-me particularmente

intimidada ao atender pacientes graves, impressão contraditória para uma residente que pauta seu

trabalho no princípio de que todos os cidadãos têm direito ao atendimento integral na rede pública.

Tais sensações de angústia e desamparo somente puderam ser suportadas por saber que poderia

contar com as orientações da supervisora, visto que a supervisão é um momento privilegiado da

clínica, quando podemos retomar e elaborar nossas práticas, de modo que possamos nos

reposicionar frente ao que nos vem ao encontro na clínica.

Portanto, os residentes de Psicologia, ao contrário dos profissionais de outras especialidades,

são convidados a refletir sobre o trabalho e aposta-se que é daí que poderá vir nossa contribuição,

visto que a partir do estranhamento de determinados procedimentos que poderiam ser considerados

corriqueiros, temos a oportunidade de refletir e propor uma espécie de rearranjo do trabalho,

apontando para aquilo que nos causa estranhamento e apostando que essa atitude poderá gerar

230
alguma mudança. É importante sustentar esse lugar de diferença, mas sem que isso implique num

embate com os demais membros da equipe multiprofissional.

Dessa forma, percebe-se que o trabalho com a equipe também tem uma dimensão clínica e não

meramente burocrático, posicionamento que poderia gerar resistências por parte dos demais

profissionais (Figueiredo, 1997). Considera-se, entretanto, que não se deve esperar o

reconhecimento de nosso lugar a partir do outro, mas, sim, em sustentar esse lugar a partir de nosso

próprio trabalho. A aposta é a de que, como profissionais em formação no SUS, orientados pela

psicanálise, nossa presença não seja inócua na rede de saúde – mental ou não.

A supervisão e o campo da transferência – considerações sobre a prática clínica institucional

A partir da especificidade do treinamento em serviço dos residentes de Psicologia na Unidade

Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto procuraremos abordar

algumas questões que permitam problematizar as condições de possibilidade da sustentação de uma

prática de orientação psicanalítica no campo da saúde mental. Prática que se efetiva com a inserção

do profissional residente em uma equipe multiprofissional, de acordo com as diretrizes do Sistema

Único de Saúde bem como da Política Nacional de Saúde Mental, no caso da Unidade Docente

Assistencial de Psiquiatria. Cabe ressaltar a característica desse programa especializado, cujo

campo de práticas concerne menos a psicologia hospitalar e mais o campo de saúde mental lato

sensu. Contudo, não é nossa proposta tratar dessa questão aqui, em que pese a sua relevância.

Encontramos a primeira especificidade no que concerne a relação entre a psicanálise – no caso,

a supervisão de orientação psicanalítica – e o hospital, isto é, o HUPE, que vem a ser o campo de

práticas dos residentes, no que tange a função que ocupamos. O Curso de Especialização em

Psicologia Clínica Institucional na modalidade Residência Hospitalar encontra-se vinculado ao

Instituto de Psicologia da UERJ e este é o estatuto de nosso pertencimento: somos, em sua maioria,

docentes da Universidade, exercendo a função de supervisionar a prática clínica – mas não apenas –

231
dos residentes que atuam nos programas especializados que compõem o Curso – no caso, o

programa especializado inserido da UDA de Psiquiatria do HUPE.

Portanto, não somos profissionais de saúde do hospital. Isso demarca um lugar. Seria este de

caráter extraterritorial, conforme assinalou Lacan ao abordar a relação entre psicanálise e medicina?

Afirmá-lo a priori parece um tanto apressado. Cabe lembrar que ao indicar o lugar marginal da

psicanálise em relação à medicina Lacan explicitou a posição da medicina a respeito da psicanálise,

que seria admitida “[...] como uma espécie de ajuda externa, comparável a dos psicólogos e a de

outros assistentes terapêuticos.” (Lacan, 1985, p.86, grifo nosso). Quanto ao reconhecimento da

psicanálise como profissão e como ciência, Lacan destaca a questão da extra-territorialidade como

um princípio, “[...] ao qual é tão impossível ao psicanalista renunciar quanto o é não negá-lo: o que

o obriga a colocar qualquer validação de seus problemas sob o signo do duplo pertencimento [...]”

(Lacan, 1998b, p. 327). Consideramos que a questão concernente à extraterritorialidade deverá ser

abordada a partir daquele em que consiste o campo próprio da psicanálise, isto é, a transferência.

Aí já estamos no segundo ponto de inflexão, decorrente do primeiro: enquanto supervisores, não

escutamos os pacientes, mas os residentes. É desse lugar de escuta que nos inserimos –

extraterritorialmente - nas práticas hospitalares. Vale dizer, nossa intervenção não ocorre no campo

próprio da clínica psicanalítica, que é, desde Freud e com Lacan, a transferência – aquele no qual

“pesquisa e tratamento coincidem” (Freud, 2016e, p. 97). Essa co-incidência assinalada por Freud

não é gratuita; antes, demarca os contornos da práxis psicanalítica estritamente no âmbito da

transferência, e em nenhum outro. Trata-se da instauração de uma ‘doença artificial’, em relação a

qual o psicanalista poderá intervir uma vez que “[...] substitui a sua [do paciente] neurose comum

por uma neurose de transferência, da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico.” (Freud,

2016g, p. 160). Nós, supervisores, não estamos submetidos às injunções da transferência como

sendo o campo próprio da clínica psicanalítica, o único em que o tratamento do real pelo simbólico

232
(Lacan, 1988b) pode vir a ter lugar. Não obstante, é possível considerar que nossa função opera a

partir de uma transferência de trabalho por parte dos residentes, se e quando isso vem a ocorrer.

Avançando um pouco mais em relação as considerações freudianas, caberia interrogar se o

campo da transferência estaria franqueado ao residente de saída, apenas pela oferta de uma escuta

diferenciada, que não visa a supressão do sintoma ou ainda do mal-estar de que o paciente (ou a

equipe) se queixa. Não parece possível que a transferência possa ser considerada como um dado

apriorístico. Aqui, acompanhamos Freud (2016f): ‘sondagem’, ‘ensaio prévio’, período probatório’

(p. 122), ‘tratamento probatório’ (pp. 122-123) são os termos que ele utiliza para denominar o

período – indeterminável, a priori – que antecede, a posteriori, o tratamento propriamente dito. Isto

é, apenas com o estabelecimento do campo da transferência – e, com isso, o início do tratamento

analítico tout court – é possível considerar o trabalho anterior (“sondagem”, “ensaio prévio”,

“período probatório”) como sendo-lhe antecedente, de acordo com a temporalidade que rege o

funcionamento psíquico, Nachtraglichkeit. Assim, não há tratamento prévio antes, mas só depois –

da instauração da transferência, bem entendido. De acordo com Lacan, a transferência é a

atualização da realidade sexual do inconsciente (Lacan, 1988b, pp. 139; 143) – fato de estrutura que

o amor de transferência vem, precisamente, velar. Assim, seria preciso cernir, a cada vez e em

relação a cada caso, a emergência da realidade sexual do inconsciente para que se possa então

considerar o campo da transferência como instaurado, no qual pesquisa e tratamento coincidem.

Para tanto, um psicanalista deve se valer do operador clínico nomeado por Lacan como desejo

do analista (que não se confunde com a vontade ou ainda com os anseios daquele que, pontualmente

e a cada vez, encarna esta função), operando um corte frente ao apelo amoroso da transferência em

seu viés de resistência (Vorsatz, 2018). De acordo com Freud, “[...] as únicas dificuldades realmente

sérias são encontradas no manejo da transferência” (2016h, p. 165); Lacan, por sua vez, articula o

amor de transferência ao fechamento do inconsciente (1988b, p. 121). Contudo, cabe observar que a

experiência formativa do residente de Psicologia não se confunde com a função do psicanalista,

233
ainda que sua prática possa ser orientada pelos princípios da psicanálise, conforme a orientação

recebida em supervisão. Tampouco a formação em serviço no âmbito do Programa de Residência

em Psicologia tangencia a formação em psicanálise – visto que esta exige a experiência do

inconsciente (isto é, a análise pessoal do candidato a analista) enquanto parte constitutiva dessa

formação, conforme o dito tripé indicado por Freud, a saber, análise, supervisão e formação.

Cabe ainda destacar que a prática clínica exercida pelo residente de Psicologia ocorre na

perspectiva de sua qualificação profissional. Ao final do curso e uma vez cumpridas todas as

exigências previstas nas normativas legais às quais os programas de Residência em Saúde estão

subordinados, o residente-aluno recebe uma certificação, no caso, o título de especialista (cf.

Vorsatz, Martins, Gomes & Santos, 2018). Há, assim, um ganho - para além da própria formação

em serviço e da bolsa auxílio mensal -, ao revés do que ocorre na prática clínica psicanalítica

propriamente dita, que implica em sustentar um campo que se perde, conforme a paradoxal

afirmação de Lacan (1988b), prenhe de consequências.

Talvez seja possível apostar em uma certa transmissão através de um laço de trabalho

sustentado pelo supervisor fora do âmbito da mestria, permitindo, assim que o residente se

inclua do ponto em que se encontra em seu percurso. Transmissão que se articula em perda – e

não por meio de um acúmulo de saber – consoante a própria estrutura do saber inconsciente

enquanto saber que não se sabe, vale dizer, que se furta a ser positivado de modo exaustivo. A

aposta a sustentar diria respeito ao estabelecimento de uma transferência de trabalho que

temperasse o amor de transferência, laço dessimétrico que sustenta o lugar do Outro como

possibilidade de uma relação ao trabalho que não seja alienada – ao saber, ao amor e,

sobretudo, ao amor ao saber -, mas, sim, de alegria, conforme aponta Melman (1992).

O jogo de xadrez psicanalítico

No artigo intitulado Sobre o início do tratamento, Freud tece considerações sobre as condições

indispensáveis para que um tratamento analítico possa vir a ocorrer. Aludindo ao aprendizado do
234
jogo do xadrez a partir dos livros, afirma que apenas se pode ter conhecimento das jogadas de

abertura e das jogadas finais. A única forma efetiva de aprendizado é observação dos mestres em

ação (Freud, 2016f). Desdobrando a metáfora freudiana, podemos extrair dela a seguinte

consideração: conforme primeiros movimentos das peças do jogo – no xadrez e na clínica –

descortinam-se alguns caminhos (jogadas); outros ficam impossibilitados por esses mesmos

movimentos. Os primeiros movimentos são, portanto, decisivos.

De outra parte, Freud (2016f) destaca que esse tratamento preliminar deverá seguir as regras da

psicanálise. Quais seriam estas? Quanto a isso, ele é preciso: só há uma regra, fundamental

(Grundregel) no tratamento psicanalítico, a saber, a associação livre. Sua contrapartida do lado do

psicanalista é a regra de abstinência: o analista deve se abster, em primeiro lugar, de compreender

(aquilo que o sujeito diz), bem como de intervir a partir dessa compreensão, caso em que sua

intervenção se daria a título de sugestão, via di porre, acréscimo, e não análise, decomposição, via

di levare (2016c). Entendemos que esta regra também vale para a supervisão, em que não se trata de

compreender e acrescentar o nosso saber – suposto – ao que o residente traz como questão, mas,

sim, de um segundo momento de trabalho, no qual o este poderá retomar o que pôde fazer,

relançando o trabalho.

Tempo e dinheiro

Freud problematiza as questões referentes ao tempo e ao dinheiro (Freud, 2016c)

considerando-as internas ao tratamento analítico – o primeiro, como sendo indeterminado e o

segundo como uma questão incontornável. Há aqui dois pontos importantes a considerar em

relação a oferta de escuta pelo residente no ambiente hospitalar, seja nas enfermarias ou nos

ambulatórios: quanto ao tempo, este está determinado de antemão, pois esta o ferta depende da

duração do Curso. Quanto ao pagamento, este não se coloca: o tratamento é gratuito, visto

tratar-se de uma unidade pública de saúde.

235
Em relação ao tempo do tratamento, Freud evoca a fábula de Esopo para afirmar que

este não pode ser conhecido de antemão – cabe ao sujeito se pôr a caminho, acrescentando que

“A questão em torno da provável duração do tratamento praticamente não pode ser respondida”

(Freud, 2016f, pp. 127-128). Em relação ao dinheiro, considera que as sessões devem ser pagas

mesmo se o paciente não comparece, indicando a dimensão de responsabilidade subjet iva pelo

tratamento implicada no pagamento: “A cada paciente é atribuída uma determinada hora

disponível do meu dia de trabalho; essa hora será sua e ele será responsável por ela, mesmo se

não vier a usá-la.” (Freud, 2016f, pp. 125-126). Ao adotar essa posição – não sem ponderar que

“[...] no caso do médico pode parecer dura ou mesmo indigna de sua função” (Freud, 2016f, p.

126) – Freud parece tomar a ausência do paciente (o não comparecimento à sessão previamente

agendada) como um elemento clínico cuja relevância não é passível de ser desconsiderada, e

não de forma pragmática.

Ainda em relação à dimensão clínica implicada no pagamento do tratamento analítico,

Freud assinala que “[...] há poderosos fatores sexuais que participam da apreciação do

dinheiro.” (Freud, 2016f, p. 131), destacando que “Algumas das resistências dos neuróticos

aumentam enormemente no tratamento gratuito [...]” (p. 133), advertindo para a dimensão de

regulação operada pelo pagamento no que tange a transferência. Afirma que “A ausência de

regulação que se dá a partir do pagamento ao médico se faz presente de forma muito

desconcertante; (...) é tirado do paciente um bom motivo para se empenhar pelo fim do

tratamento” (p. 133). Conclui as suas considerações acerca da função do pagamento como

parte constitutiva do tratamento analítico de modo agudo e contundente: “Não há nada mais

caro na vida do que a doença – e a estupidez.” (p. 134).

Assim, não parece possível minimizar as consequências clínicas decorrentes de um

tratamento gratuito, visto que, se acompanhamos Freud, a doença – neurótica, no caso, mas em

determinados casos a própria doença orgânica – é cara ao paciente. Na dupla acepção do termo

236
‘cara’: a um só tempo dispendiosa e estimada. Eis porque o pagamento cumpre uma função de

regulação, referente a economia da libido. Ainda de acordo com Freud, “Pela psicanálise

reconhecemos que os destinos da libido são decisivos para a saúde ou para a doença nervosa ”

(Freud, 2016d, p. 71). Vemos que a questão do adoecimento (neurótico ou não) se decide em

termos libidinais – e não por razões que lhe são alheias – cujo manejo clínico referente ao

pagamento pode operar uma regulação libidinal.

Psicanálise e universidade: a interrogação freudiana

É conhecida a interrogação freudiana acerca da inserção da psicanálise na universidade (Freud,

1976) – o título original do artigo é “Deve a psicanálise ser ensinada na universidade?” -, colocando

o problema sob dois pontos de vista distintos: o da universidade e o da psicanálise. Em relação à

segunda, Freud afirma que o psicanalista prescinde da universidade sem qualquer prejuízo para o

exercício de seu ofício, bem como para a sua formação – estas dependem exclusivamente da análise

pessoal e da supervisão dos tratamentos por psicanalistas que deram prova de seu percurso. Quanto

a primeira, afirma que depende do valor que a universidade pretende atribuir à psicanálise no que

tange a formação acadêmica e, também, prática – à época, dos médicos, e hoje também dos

psicólogos, dada a inclusão de disciplinas de psicanálise na grade curricular de grande parte dos

cursos universitários de Psicologia, como é o caso brasileiro.

Ainda que considerando a pertinência da inclusão da psicanálise na formação universitária,

incluindo o acesso a um “departamento hospitalar de pacientes externos”, que suprisse “as

finalidades de pesquisa” dos professores de psicanálise, Freud faz uma importante ressalva: ainda

assim, “(...) o estudante jamais aprenderia a psicanálise propriamente dita (...) se temos em mente a

verdadeira prática da psicanálise” (1976, p. 219, grifo nosso). Se hoje a psicanálise – e os

psicanalistas – estão, de fato e de direito, inseridos nas instituições de ensino e de saúde, entre

outras, caberia interrogar a que título que se deve esta inserção: se o de um aggiornamento, ou, ao

revés, sustentando a especificidade de seu campo, o do inconsciente como um saber que não pode

237
ser apre(e)ndido enquanto tal, visto que o inconsciente é um campo que se perde (Lacan, 1988b), a

ser garantido em ato e a cada vez. Talvez o encaminhamento a esta questão tenha sido indicado pelo

próprio Freud em relação a pergunta-título do artigo a que nos referimos, ao afirmar que “(...) para

os objetivos que temos em vista [a inclusão da psicanálise na academia], será suficiente que ele [o

aluno] aprenda algo sobre a psicanálise e que aprenda algo a partir dela” (Freud, 1976, pp. 219-

220, grifos do original). Mutatis mutandi, consideramos pertinente estender esta proposição

freudiana ao percurso do residente, isto é, de que este possa aprender algo sobre e a partir da

psicanálise, fazendo a experiência de sustentar um lugar de endereçamento orientado pelas balizas

da teoria da clínica psicanalítica.

Por fim, caberia destacar a preocupação assinalada por Freud de que a psicanálise viesse a se

tornar uma técnica a mais, um saber prêt-à-porter, disponível no mercado – no caso da saúde, no

hospital – e equivalente aos demais. Assimilada ao campo médico, a psicanálise se veria reduzida a

encontrar “seu depósito definitivo no livro didático de Psiquiatria, no capítulo sobre terapia, ao lado

de procedimentos como sugestão hipnótica, auto-sugestão, persuasão [...]. Ela merece um destino

melhor.” (Freud, 2016j, pp. 286-287). Nesse caso, a psicanálise perderia a sua especificidade. De

acordo com Freud, a psicanálise não poderia vir a tornar-se um coadjuvante em relação a medicina,

um auxiliar em relação ao pleno restabelecimento do doente inserido na instituição hospitalar. Mas,

como sabemos, muitas vezes é justamente esta a solicitação ao residente de Psicologia: que ele

compareça com o seu saber, supostamente especializado, para com ele compor o trabalho em equipe

multiprofissional, cuja finalidade é o restabelecimento da saúde e, por extensão, do doente.

Não é sem consequências o fato de que, ao considerar a possibilidade de a psicanálise ser

ofertada nos serviços públicos de saúde patrocinados pelo Estado, Freud tenha afirmado que, nesse

caso, o tratamento psicanalítico se visse obrigado a se adequar, fundindo “[...] o ouro puro da

análise [...] com o cobre do sugestionamento direto [...]”, ainda que “suas partes mais eficazes e

importantes certamente serão aquelas da Psicanálise propriamente dita, livre desta ou daquela

238
tendência” (Freud, 2016i, p. 202). Embora Freud sustente este como sendo um campo de práticas

legítimo para o exercício da psicanálise, ressalva que não se trata da psicanálise propriamente dita.

Há, portanto, especificidades a considerar. Não obstante, o próprio Freud não hesita em afirmar que

“[...] não há praticamente nada a criticar quando um psicoterapeuta mistura uma parte de análise

com uma porção de influência por sugestão, [...] tal como se torna necessário em instituições [...].”

(Freud, 2016e, p. 102, grifo nosso). Vê-se que não se trata de um julgamento de cunho moral –

sobre o que seria correto, ou não -, mas de salvaguardar aquilo que distingue um tratamento

analítico tout court de suas possíveis (e não menos legítimas) declinações.

Assim, como considerar – e sustentar – a escuta psicanalítica em um campo que lhe é, a

princípio, alheio, como o hospital geral – e, mais especificamente, no âmbito da saúde mental?

Como, e em que condições, é possível distinguir aí o campo da transferência, o único que pode

legitimar um tratamento como sendo psicanalítico? Como restaurar, em ato e a cada vez, o fio de

sua lâmina cortante? (Lacan, 1988b). São questões que atravessam o trabalho institucional, sem que

isso implique em considerar a psicanálise como um saber de ordem superior, que viria a derrogar os

demais (no caso, o saber médico).

A psicanálise opera por disjunção, não se acrescenta ao que está posto ou ainda instituído.

Sabemos, com Lacan, que o discurso analítico é aquele que, ao interrogar os demais discursos,

permite o quarto de giro que faz com que estes não se tornem hegemônicos – sem pretender, ele

mesmo (o discurso analítico) uma hegemonia sobre os demais discursos. O discurso analítico

implica em uma nova modalidade de laço social, diferenciada dos demais, no qual o sujeito produz,

sob transferência, os significantes aos quais se encontra submetido. A ética está posta; logo, já não

há lugar para a queixa, menos ainda para qualquer forma de restauração ou ainda de acesso a um

bem – como o restabelecimento da saúde, por exemplo. De resto, cabe lembrar a advertência

freudiana de que “O caminho do analista é outro, é aquele para o qual a vida real não fornece um

modelo” (Freud, 2016h, p. 173).

239
Considerações finais

Procurou-se aqui problematizar as questões que atravessam a prática clínica institucional, ao

invés de buscar uma solução para estas – procedimento consoante a práxis analítica, advertida de

que a totalidade do real não pode ser subsumida ao simbólico – embora não haja outro meio de

abordá-lo, exceto pela dimensão da palavra e da linguagem, e da verdade que se decanta dessa

démarche como semi-dizer. Acreditamos que, através desta problematização, seja possível

contribuir com o campo da psicologia hospitalar, ao relançar a permanente interrogação da

psicanálise sobre os seus fundamentos, conforme articulado por Lacan através da interrogação: “O

que é que a funda como práxis?” (Lacan, 1988b, p. 14). Questão a sustentar como parte

incontornável da tarefa analítica.

A práxis analítica não se orienta por uma dimensão teleológica – são inúmeras as considerações

de Freud nesse sentido 1. Antes, o fundador da psicanálise considera que o objetivo do tratamento

analítico visa tão-somente o estabelecimento (e não o restabelecimento) da capacidade de realizar

(leisten) e fruir (genieβen), que ele nomeia como ‘cura prática’ (praktische Genesung) (Freud,

2016b, p. 57). Vale dizer, da possibilidade de realizar algo e de fruir de algo, parcialmente - na

contramão do ideal de cura ou ainda do furor curandis.

Por fim, evocamos as palavras candentes de Lacan a propósito do lugar que o psicanalista ocupa

frente àquele que vem lhe confiar a sua dor de existir:

No homem “liberado’ da sociedade moderna, eis que esse despedaçamento [originário]

revela, até o fundo do ser, sua pavorosa fissura. [...] É essa vítima comovente, evadida de

alhures, inocente, que rompe com o exílio que condena o homem moderno à mais

assustadora galé social, que acolhemos quando ela vem a nós; é para esse ser de nada que

nossa tarefa cotidiana consiste em reabrir o caminho de seu sentido, numa fraternidade

discreta em relação à qual sempre somos por demais desiguais. (Lacan, 1998a, p. 126).

240
Quanto aos resultados de sua práxis, ao psicanalista resta a impressão de escrever sobre a

água (Freud, 2016k). Ofício impossível, que não cessa de não se escrever.

Nota

1. Já nos primórdios de sua prática, Freud indica que o trabalho clínico implica em “transformar o

[...] sofrimento histérico em infelicidade comum” (Freud, 1974, p. 363).

Referências

Bauerfeldt, M. M., Mendes, R. R. S. & Vorsatz, I. (2017). Recepção da Psicologia: Avanços e


impasses na implementação do dispositivo. In Vorsatz, I. (org). Anais do XXI Fórum da Residência
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Jovens – Projovem; cria o Conselho Nacional da Juventude (CNJ) e a Secretaria Nacional da
Juventude; altera as Leis nº 10.683, de 28 de maio de 2003, e 10.429, de 24 de abril de 2002; e dá
outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 jun. 2005.
Ferreira, A. P. (1997). Apresentação. I Jornada da Residência em Psicologia Clínico-Institucional.
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243
Sobre os autores

Ademir Pacelli Ferreira

Pós-doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Professor

associado do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço

eletrônico: pacelli.ferreira@gmail.com

Adriana Dias de Assumpção Bastos

Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ. Mestre em Pesquisa e Clínica

em Psicanálise (IP-UERJ). Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade

Residência Hospitalar (IP-UERJ). Especialista em Psicologia Clínica pela PUC-RJ. Psicóloga da

Secretaria Municipal de Saúde de São Gonçalo - Saúde Mental - Serviço de atendimento a usuários

de álcool e drogas. Psicóloga concursada da UERJ. Professora convidada do Curso de

Especialização em Psicologia Hospitalar HUCFF-UFRJ. Professora convidada da Pós-graduação

em Teoria Psicanalítica e Prática Clínico-Institucional da UVA. Membro da Escola de Psicanálise

dos Fóruns do Campo Lacaniano. Endereço eletrônico: adrianadab@gmail.com

Alessandro de Magalhães Gemino

Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Professor adjunto do Instituto de

Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico:

alessandrogemino@gmail.com

Aline Martins

Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (IP-UERJ). Especialista em Psicologia Clínica

Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Graduada em Psicologia pela

Universidade Federal Fluminense. Professora substituta da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Endereço eletrônico: alinemartins1508@gmail.com

244
Aline Souza

Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (IP-UERJ). Especialista em Psicologia Clínica

Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Especialista em Psicanálise e Saúde

Mental pela Universidade Federal Fluminense. Psicóloga do Colégio Pedro II. Endereço eletrônico:

aline-fnd@hotmail.com

Ana Beatriz Raimundo de Castro

Especialista em Psicologia Clínica Institucional - Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Especialista em Psicologia em Oncologia (INCA). Especialista em Gestão de Saúde (IMS-UERJ).

Psicóloga do Instituto Nacional do Câncer - Unidade de Cuidados Paliativos (INCA/ HC IV).

Endereço eletrônico: biapsi@hotmail.com

Bruna Montechiari Guimarães Vohs

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Psicóloga clínica do Laboratório Interdisciplinar de Pesquisa e Intervenção Social (LIPIS) - Vice-

Reitoria Comunitária da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico:

brunamcguimaraes@gmail.com

Bruna Paranhos Americano

Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (IP-UERJ). Especialista em Psicologia Clínica

Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Graduação em Psicologia pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo

Lacaniano Endereço eletrônico: brunapa@hotmail.com

Camila Cardozo Melo Sales

Mestranda no Programa de Pós-graduação em Psicanálise (IP-UERJ). Especialista em Psicologia

Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Graduada em Psicologia pela

Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço eletrônico: camilacdz@yahoo.com.br

245
Cidiane Vaz Gonçalves

Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em

Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Especialista em

Psicologia Clínico Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Professora auxiliar

da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Membro Associado do Instituto Brasileiro de

Avaliação Psicológica (IBAP). Membro Associado da Associação Brasileira de Rorschach e

métodos projetivos (ASBRo). Endereço eletrônico: cidianevaz@gmail.com

Clareana Velasco Silva de Paula

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Especialista em Avaliação Psicológica e Psicodiagnóstico (IBF). Endereço eletrônico:

claryana@gmail.com

Claudia Politano

Mestranda em Disability Studies at School of Education / Syracuse University (NY-E.U.A.).

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Psicóloga clínica da Marinha do Brasil (2003-2015). Endereço eletrônico:

claudiapolitano@outlook.com

Cristiane Bueno Iatauro

Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicóloga do

Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares (NIAP) da Secretaria Municipal de

Educação do Rio de Janeiro (SME-RJ). Psicóloga da Unidade Docente-Assistencial de Psiquiatria

(HUPE-UERJ). Endereço eletrônico: cristiane_iatauro@hotmail.com

Cristiane Ferreira Esch

Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Preceptora na Clínica

Especializada em Cirurgia Cardíaca e Unidade Cárdio Intensiva do HUPE pelo Curso de

Especialização em Psicologia Clínica Institucional - Modalidade Residência Hospitalar (IP/UERJ).


246
Supervisora de estágio nas áreas de Gestalt-terapia e Psicologia Hospitalar. Psicóloga do Instituto

de Psicologia da UERJ, com atuação no Serviço de Psicologia Aplicada. Endereço eletrônico:

esch.cristiane@gmail.com

Daniela Barros da Silveira

Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (IP-UERJ). Especialista em Psicanálise e Saúde

Mental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialista em Psicologia Clínica

Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Psicóloga do Instituto Nacional de

Cardiologia (INC). Participante de Formações Clínicas do Campo Lacaniano. Endereço eletrônico:

danibsilveira@hotmail.com

Ester Susan Guggenheim

Doutora pelo Instituto de Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre

pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicanalista

pela Formação Freudiana. Endereço eletrônico: esusang@gmail.com

Fernanda Nogueira Klumb

Residente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência

Hospitalar (IP-UERJ). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense Endereço

eletrônico: fernanda.klumb@gmail.com

Flavia Lana Garcia de Oliveira

Pós-doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal

do Rio de Janeiro (bolsista CAPES). Professora Substituta de Psicologia Clínica e Psicanálise da

UFF. Membro do Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa de Orientação Lacaniana (ISEPOL).

Endereço eletrônico: flavialanago@gmail.com

Gloria Maria Castilho

247
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Supervisora/Preceptora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional –

Modalidade Residência Hospitalar/IP/UERJ. Integrante da equipe clínica do Núcleo de Atenção ao

Idoso/UnATI/UERJ. Coordenadora da Área de Psicologia da Residência Multiprofissional em

Saúde do Idoso/NAI/UnATI/UERJ. Psicanalista, Membro da Escola de Psicanálise Letra Freudiana.

Endereço eletrônico: gloria.castilho@gmail.com

Heloene Ferreira da Silva

Doutoranda em Psicanálise (PGPSA-UERJ). Especialista em Psicologia Clínica Institucional –

Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Psicóloga do setor de Urologia (HUPE-UERJ).

Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (IP-UERJ). Participante de Formações Clínicas do

Campo Lacaniano, RJ. Endereço eletrônico: heloeneferreira@hotmail.com

Ingrid Vorsatz

Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora adjunta do

Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora colaboradora do

Programa de Pós-graduação em Psicologia Social (IP-UERJ). Docente e supervisora do Curso de

Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Coordenadora da Comissão de Residência Multiprofissional e em Área Profissional de Saúde da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (COREMU-UERJ). Endereços eletrônicos:

ingrid.vorsatz@uerj.br / ingrid.vorsatz.uerj@gmail.com

Liana Ling Gonçalves Setianto

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Endereço eletrônico: lianasetianto@gmail.com

Lívia Azevedo Carvalho

248
Especialista em Psicologia Clínica Institucional - Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Psicóloga clínica. Endereço eletrônico: carvalholivia@globo.com

Luiza de Sá Quirino Câmara

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Psicóloga do Colégio Pedro

II. Endereço eletrônico: luqcamara@gmail.com

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Psicóloga

do Instituto de Psicologia da UERJ. Coordenadora dos Setores de Psicodiagnóstico Diferencial

(1982-2017) e de Terapia de Família (1990-2017) da Unidade Docente-Assistencial de Psiquiatria

do Hospital Universitário Pedro Ernesto-UERJ. Membro Efetivo e Docente da Sociedade

Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). Membro Efetivo da International Psychoanalytical

Association (IPA). Membro Associado da Association Internationale de Psychanalyse du Couple et

de la Famille (AIPCF). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Avaliação Psicológica

(IBAP). Endereço eletrônico: cintradealmeidaprado@yahoo.com.br

Mariana Silveira Córdova

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Psicóloga da Marinha do Brasil (RM2). Endereço eletrônico: mariana.cordova@gmail.com

Michelle Menezes Wendling

Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Adjunta

do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Docente e coordenadora do

Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar

(IP-UERJ). Endereço eletrônico: michelle.wendling@uerj.br

Narcisa Silveira de Paula Fonseca

249
Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Psicóloga contratada pela Unidade Docente-Assistencial de Cirurgia Cardíaca do Hospital

Universitário Pedro Ernesto (HUPE-UERJ). Endereço eletrônico: narcisadepaula@gmail.com

Penélope Esteves Raposo Mathias

Especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ).

Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Psicóloga voluntária no

Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas (NEPAD-UERJ). Endereço

eletrônico: penelope.erm@gmail.com

Rafaela Ferreira de Souza Gomes

Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Psicóloga clínica. Endereço

eletrônico: rafaelafsgomes@gmail.com

Renata de Oliveira Fidelis

Mestre em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Psicóloga do Núcleo de

Atenção ao Idoso (UnATI/UERJ). Endereço eletrônico: renata-of@hotmail.com

Selma Correia da Silva

Mestre em Pesquisa e Clínica em Psicanálise (IP-UERJ). Pesquisadora da FAPERJ. Coordenadora

do Setor de Psicanálise e Saúde Mental do Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente (NESA).

Psicanalista Endereço eletrônico: correia.selma@hotmail.com

Sonia Alberti

Doutora em Psicologia pela Universidade de Paris X – Nanterre, Pós-doutora pelo Instituto de

Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Associada e Procientista na

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisadora do CNPq. Coordenadora Adjunta

do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, nível Mestrado e Doutorado, do Instituto de

250
Psicologia da UERJ. A.M.E. da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano. Endereço

eletrônico: sonialberti@gmail.com

Talita Alves Barbosa da Silva

Residente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência

Hospitalar (IP-UERJ). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense. Endereço

eletrônico: talita.psiuff@yahoo.com.br

Vinicius Anciães Darriba

Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto do

Instituto de Psicologia - Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade do Estado do

Rio de Janeiro. Docente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica Institucional –

Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ). Endereço eletrônico: viniciusdarriba@gmail.com.br

251
Núcleo Docente-Assistencial Estruturante do Curso de Especialização em Psicologia Clínica
Institucional – Modalidade Residência Hospitalar (IP-UERJ)

Prof. Dr. Ademir Pacelli Ferreira (IP-UERJ)

Prof. Dr. Alessandro de Magalhães Gemino (IP-UERJ)

Drª Andréa Barbosa Albuquerque (HUPE/IP-UERJ)

Ms. Cristiane Ferreira Esch (IP-UERJ)

Drª Ester Susan Guggenheim (IP-UERJ)

Drª Glória Maria Castilho (IP-UERJ)

Profª Drª Ingrid de Mello Vorsatz (IP-UERJ)

Dr. Luiz Fernando Chazan (FCM-UERJ)

Profª Drª Michelle Menezes Wendling (IP-UERJ)

Ms. Renata de Oliveira Fidelis (NAI-UnaTI-UERJ)

Profª Drª Sonia Alberti (IP-UERJ)

Prof. Dr. Vinicius Anciães Darriba (IP-UERJ)

Apoio administrativo: Roberta Balthazar Ramos

Secretaria: Rua São Francisco Xavier nº 524. UERJ, campus Maracanã. Pavilhão Reitor João Lyra
Filho 10º andar – sala 10.034/2 - Bloco E

Telefone: (21) 2334 02 30

Observação: O conteúdo dos manuscritos que compõem este volume é de exclusiva


responsabilidade dos respectivos autores.

Imagem da capa: N. 3. Mark Rothko, 1949.

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