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A virada do século

Antonio Guedes

O conceito de encenação e, mais especificamente, o papel do ator na cena, sofreu uma


grande mudança ao longo do século passado. E, para entender o papel do ator na cena
contemporânea, me parece fundamental perceber a trajetória feita pelo encenador e
como ele se tornou uma figura hegemônica dentro do processo de criação do espetáculo.

A função surgiu no século XIX, precisamente no momento em que a busca pela construção,
em cena, de uma ilusão da realidade chegou ao seu auge com o Naturalismo. O encenador
aparecia como aquele que iria coordenar os criadores de cada elemento da cena no sentido
de dar unidade ao quadro cênico, buscando a perfeita ilustração do texto: o lugar, a lumino-
sidade, a ambientação sonora, a adequação dos figurinos à época em que a peça se desenro-
lava, a construção do personagem tendo como modelo o homem do cotidiano, com suas
ações compreendidas a partir de uma motivação psicológica. Com a chegada do encenador
o texto deixou definitivamente de ser sinônimo de teatro, pois os demais elementos é que
iriam produzir, em cena, a ilusão de realidade. Mesmo que o texto ainda fosse a referência a
partir da qual o espetáculo iria se constituir, o encenador era o responsável pela “tradução
cênica” que era operada com os demais elementos. Portanto, a fábula não dependia mais
apenas da descrição em palavras pois ela seria construída com a articulação das diversas
áreas de criação. O arco de proscênio passou a ter a mesma função da moldura de um qua-
dro renascentista construído a partir da técnica da perspectiva linear: separar a realidade
da plateia e a ilusão da realidade produzida pelo espetáculo. A linguagem da cena não se
constituía mais exclusivamente de palavras.

Como já vimos na primeira parte, a reflexão que levou alguns dramaturgos e encenado-
res a questionar a concepção tradicional da linguagem na virada do século XIX para o XX
está na gênese da ascensão em importância dessa nova função na prática do teatro.
Aqueles artistas insatisfeitos reclamavam do Realismo que utilizava os elementos visu-
ais e sonoros (cenário, luz, figurinos, sonorização) como meros acessórios descritivos
que reiteravam e davam volume ao que o texto dizia. O encenador procurava, por um
lado, maior autonomia dos elementos cênicos em relação ao texto e, por outro, o drama-
turgo procurava uma estrutura narrativa que pudesse recuperar a potência da palavra.
Maurice Maeterlinck, um dos principais autores do Simbolismo, elaborou o conceito de
“drama estático” no qual o movimento viria das palavras. Como já vimos, o objetivo era
sair do âmbito do visível para alcançar, pelas palavras, uma dimensão invisível da vida.

No início do século passado, as artes visuais, rompendo com o modelo de construção base-
ada na imitação, estavam destruindo paradigmas. No teatro, nenhuma área de criação esta-
va satisfeita com o papel que deveria desempenhar na encenação. O texto, assegurado des-
de o classicismo como o elemento fundamental da cena, tornou-se o principal foco de ques-
tionamento. A ordem do discurso revelava-se insuficiente para dar conta da realidade. Era
preciso encontrar uma articulação menos limitada e mais abrangente ou, dito de outra
forma, menos preocupada com a artificial precisão do discurso e mais atenta aos naturais
ruídos que se revelam no jogo que a linguagem teatral, por ser produzida no presente, pro-
duz. Era preciso correr o risco de construir discursos ambíguos, produzir menos explica-
ções das paisagens narrativas e mais silêncios. Em vez de descrever com precisão, sugerir –
como dizia Mallarmé, le suggérer voilà le rêve! (Trad.: sugerir, eis o sonho)1

Então, se por um lado o encenador – função já reconhecidamente fundamental na tarefa


de dar unidade à cena – começava a buscar uma nova estruturação da cena que tornasse
possível fugir à mentira da imitação para encontrar uma realidade exclusivamente cêni-
ca, por outro lado, o dramaturgo buscava uma estruturação da linguagem que revelasse,
sem descrever, temas abstratos e genéricos como a morte, o passado, o vazio, as forças
ocultas que convivem com as formas visíveis.

Trabalhando com elementos concretos além das palavras, o encenador começa a expandir
o conceito de linguagem. Todos os elementos da cena, incluída a palavra, passaram a se
entrelaçar para formar um tecido teatral. Uma urdidura concreta, que tinha realidade em si
mesma e não se constituía como uma cópia cujo modelo estava fora do teatro. E, ao pensar
a linguagem como uma experiência concreta, no presente – especificidade do teatro – colo-
cava-se em foco o ator, sua elocução e sua dança. O ator passava a ser uma preocupação
para além de sua fala: seu corpo retomava a importância que se tinha perdido quando o
foco se concentrou na recitação do texto. Se o encenador era aquele que iria orquestrar os
elementos da cena construindo sua “dicção”, era o ator que assumia o centro de sua preo-
cupação com essa construção. Porque ele era, por um lado, elemento da cena como o cená-
rio ou o figurino, mas por outro lado era um criador, como o cenógrafo ou o figurinista. En-
tretanto, diferentemente destes, era também seu próprio material. E, se os demais elemen-

1 HURET, Jules. Enquête sur L’évolution Littéraire. Paris, L’Echo de Paris, p. 1, 1891.
tos reclamavam autonomia na virada do século XIX para o XX, com o ator não seria diferen-
te. Assim como o texto havia perdido seu lugar hegemônico em relação à cena, o ator não
era mais apenas um veículo do autor. Ele era o próprio movimento da cena que precisaria
ajustar sua criação à ideia do encenador.

Assim, no auge da crise que tinha, em seu centro, o questionamento da linguagem como
veículo, o ator se configura como um problema. Para que o encenador pudesse reger a or-
questra na contramão da tradição, para que ele pudesse construir uma cena autônoma, cujo
modelo não seria exterior a ela própria, era preciso pensar o papel do ator nesse projeto.

Gordon Craig, em Da arte do teatro, no artigo “O ator e a supermarionete”, fala nos seguin-
tes termos do seu projeto de um novo caminho para o teatro: “O objetivo do teatro conside-
rado como um todo é restabelecer a sua arte. E para isso é preciso, antes de tudo, renunciar a
essa ideia da personificação, essa ideia da imitação da natureza; enquanto ela subsistir, o tea-
tro nunca se libertará.”2 E ainda, para situar o trabalho do ator neste projeto, apropriou-se
de uma fala de Eleonora Duse, grande atriz da época: "Para salvar o teatro, é preciso destruí-
lo; é preciso que todos os atores, todas as atrizes morram de peste. Por causa deles a atmos-
fera está viciada, a arte é impossível.”3 O encenador inglês considera que o ator não seria
capaz de realizar a despersonificação necessária para, em cena, poder representar uma
ideia porque não acredita que ele possa se desvincular de sua própria individualidade. Por
isso reivindica a figura da supermarionete, que seria capaz de obedecer às propostas esté-
ticas do encenador sem atribuir individualidade ao personagem.

Suprima-se a árvore autêntica que se colocou em cena, suprima-se o tom natural, o


gesto natural e chegar-se-á igualmente a suprimir o ator. É o que acontecerá um dia
e gosto de ver certos diretores de teatro encarar desde já essa ideia. Suprima-se o
ator e arrebatareis a um grosseiro realismo os meios da cena florescer. Não haverá
mais personagem viva para confundir, no nosso espírito, a arte e a realidade; perso-
nagem viva em que as fraquezas e os frêmitos da carne sejam visíveis. O ator desa-
parecerá e em seu lugar veremos uma personagem inanimada que usará, se quereis,
o nome de “sur-marionette” – até que tenha conquistado um nome mais glorioso.4

Embora esse texto seja lido, especialmente pelos atores, como um manifesto contra o
ator, vejo-o, ao contrário, como um manifesto que reivindica o surgimento de um novo

2 CRAIG, Gordon. Da arte do teatro. Tradução: Redondo Júnior. Lisboa: Editora Arcádia, s/d, p. 103.
3
Ibidem, p. 106.
4
Ibidem, p. 108-109.
ator. E olhando a partir de uma perspectiva atual, esse é o caminho que o trabalho do
ator irá tomar. Da desconstrução do personagem empreendida por Pirandello até o
completo esvaziamento psicológico das figuras beckettianas, os personagens serão cons-
tituídos apenas de palavras que não chegarão a defini-los, mas garantirão sua existência
porque alguém as profere. Esse alguém é o ator que, sem reproduzir o personagem a
partir de um modelo exterior ao teatro, garante sua existência cênica. Craig anunciava
algo que ele mesmo ainda não podia antever.

Além de Craig, outros encenadores irão mergulhar na mesma insatisfação com a lingua-
gem e na busca por um ator capaz de compreender seu trabalho como uma composição.
Meyerhold, na mesma época, elaborou, a exemplo de seu mestre Stanislavski, um cami-
nho no qual o ator pudesse ser efetivamente um criador e não um mero mediador entre
o texto e a plateia. Porque segundo ele, “Toda arte é a organização de um material (...) A
dificuldade e a especificidade da arte reside no fato de o ator ser, ao mesmo tempo, ma-
terial e organizador.”5 E, para vencer essa dificuldade, o treinamento dentro da técnica
da Biomecânica se tornava essencial.

O ator de Meyerhold trabalhava numa perspectiva estética. Seu esforço era conseguir ter
um “olhar de fora”, ou seja, uma observação analítica sobre seu trabalho. Para isso, a
Biomecânica – método de treinamento que tinha como base a ampliação das possibili-
dades técnicas do ator – dava subsídios para que ele tivesse total domínio e consciência
do corpo e sua relação com o espaço para construir seus movimentos a partir de diferen-
tes pontos de equilíbrio e com apurado sentido musical. O objetivo era criar um perso-
nagem que tivesse uma existência cênica e não construir uma figura copiada do mundo.
Nesse sentido, o encenador é aquele que vai orientá-lo porque esta é sua função: incor-
porar à criação da cena este “olhar de fora” para manter todos os elementos em coerên-
cia com um conceito que envolve todos.

A função do encenador foi criada para servir de maestro na composição da cena que
passou a incluir, além do texto, todos os elementos, visuais e sonoros, na construção da
linguagem teatral. Essa função coincidiu com o Naturalismo que lançava mão dos ele-
mentos para ilustrar e reiterar o texto teatral, dando a ele uma ilusão de realidade. En-
tretanto, em seguida, o encenador, ao questionar a cópia do real como modelo, iniciou
um período em que o teatro se voltou para a construção de uma cena cada vez mais con-

5 MEYERHOLD, Vsevolod. Principes de Biomécanique. In: Écrits sur le théâtre. Tradução de Béatrice Picon-
Vallin. Lausanne: Editions L’Age d’Homme, 2009. V. 2, p. 101. Tradução minha.
ceitual. Uma cena que, a exemplo dos girassóis de Van Gogh, teria uma existência autô-
noma em relação ao mundo. A realização de uma cena autônoma em relação ao mundo
determinou o surgimento de um ator cujo trabalho não compreenderia mais a imitação
de um indivíduo. Seu trabalho precisava dar corpo a uma ideia que se integraria à trama,
ao tecido teatral, à narrativa concreta da cena.

O encenador teve um papel fundamental no sentido de pensar sobre a linguagem no tea-


tro e expandi-la transformando todos os elementos da cena em fios de uma trama que
formariam o tecido do discurso. Dessa forma, todos os elementos expressivos da cena
encontraram-se num mesmo nível de importância, sem que houvesse uma hierarquia
entre eles. Salvo o próprio encenador que, não sendo um elemento da cena, torna-se o
articulador da criação dessa linguagem cada vez mais concreta.

Depois de algumas décadas em que o encenador exerceu sua soberania sobre os demais
elementos da cena, no limite entre aquele que determinava o que o ator deveria fazer e
aquele que abre espaço para o ator propositivo e criador, surgiu Grotowski que recupe-
rou uma prática do início do século XX para aplicá-la, em novo contexto, ao trabalho do
ator: a performance.

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