Vous êtes sur la page 1sur 124

brotértci cultura e informação

LITERATURA E ECONOMIA

ECO-CIMEIRA NO RIO
F. HAYEK FALECIDO
GRACILIANO E DOSTOIEVSKI
EQUILÍBRIO DE RAMALHO
PERCURSO DE V. FERREIRA

RELIGIÃO E CULTURA

DIALOGAR / EVANGELIZAR
CONSAGRADOS NA CULTURA
BARTOLOMEU DE LAS CASAS
CIÊNCIA E RELIGIÃO
DIREITOS CULTURAIS

VOL. 135 - N.° 1 JULHO 1992


Brotéria
CULTURA E INFORMAÇÃO

DIRECTOR: António da Silva


CONSELHO DE REDACÇÃO: João Maia
Francisco Pires Lopes
Isidro Ribeiro da Silva
SECRETÁRIO: Francisco de Sales Baptista
ADMINISTRADOR: Januário Geraldes
PROPRIETÁRIO: Província Portuguesa da Companhia de Jesus

REDACÇÃO E ADMINISTRAÇÃO Rua Maestro António Taborda, 14


1293 LISBOA CODEX • Telefone 3 9616 60

Reg. da D.G.C.S. n.° 101763


Dep. Legal n.° 54960/92

CONDIÇÕES DE ASSINATURA PARA 1992

Portugal Espanha Outras Países

Série de Cultura (mensal) 2.500$00 Dói. $20.00 Dói. $35.00


Série de Genética 1.000$00 » $8.00 » $15.00

As duas séries conjuntas 3.400$00 x> $26.00 » $48.00

Número avulso: Cultura, 300$00; Genética, 350$00

Correspondente no Brasil: António Augusto Rodrigues


Rua Dr. Rodrigo Silva, 45 — 01501 SAO PAULO • SP.
Série mensal

Vol. 135 • N.° 1

JULHO 1992
cuHura e Informação ISSN 0870-7618

S U M Á R I O

Hervé Carrier, S.J.

• A CONCEPÇÃO MODERNA DOS DIREITOS CULTURAIS . . 3

Alves Pires

• GRACILIANO RAMOS E DOSTOIEVSKI. Alguma aproximação 17

Luís •Archer
CIÊNCIA E RELIGIÃO —Uma nova perspectiva 34
Mário Garcia ^
• INTERVENÇÃO PROFÉTICA DOS CONSAGRADOS EM POR-
TUGAL NO CAMPO CULTURAL 46

Paulo Erbrich, S.J.


• À MARGEM DA CIMEIRA DA TERRA NO RIO DE JANEIRO
(ou os desafios do ambiente) 59

J. Masson, S.J.
• DIALOGAR? / EVANGELIZAR 76

PARA O DIALOGO :
• O equilíbrio de Ramalho Ortigão (João Maia). Entre a emenda
e a contenda (X. de Assis). Percurso romanesco de Vergílio Fer-
reira (I. Ribeiro da Silva). Relembrando F. A. von Hayek (1899-
-1992) (J. Manuel Moreira).

BIBLIOGRAFIA
• Sociologia . Política . Religião . Bíblia

OBRAS RECEBIDAS NA REDACÇÃO


Composição e impressão:
Oficinas Gráficas de Barbosa & Xavier, Limitada
NIPC 500041539
BRAGA
Brotéria 135 (1992) 3-16

A CONCEPÇÃO MODERNA
DOS DIREITOS CULTURAIS

por HERVÉ CARRIER, S.J. (*)

Para compreender a problemática complexa dos direitos culturais,


partamos duma questão muito concreta: pode uma criança, nascida
num país pobre da África, aspirar legitimamente a um desenvolvimento
cultural comparável ao desenvolvimento que normalmente é oferecido
a um jovem europeu de família desafogada? Será a situação destes
dois jovens comparável, quanto ao direito a beneficiar das vantagens
da ciência, da arte, da civilização?
A percepção que temos actualmente dos Direitos do homem
inclina-nos a responder afirmativamente à questão acima posta. Mas
o carácter específico dos direitos culturais obriga-nos a examinar mais
atentamente o fundamento do direito à cultura e do direito da cul-
tura, porque o direito de participar nos (bens culturais levanta um
problema sui generis que requer ser aprofundado. As relações da
cultura e do direito põem questões novas e com constante evolução,
como demonstram os raros ensaios de sistematização que descrevem
a política cultural dos Estados e a jurisprudência à volta da cultura
e dos bens culturais.
Examinaremos a questão dum duplo ponto de vista: o da ética
e o dos direitos políticos, o que nos permite observar a evolução
progressiva do pensamento social e da jurisprudência na matéria.
Partamos do aspecto político.

(*) Secretário do Conselho Pontifício para a Cultura, Roma.

3
Direitos políticos

No plano propriamente político, o ponto essencial a notar é que


a cultura aparece hoje como um direito dos cidadãos, ao qual corres-
ponde uma obrigação do Estado.
Tradicionalmente, o direito comum reconhece ao artista ou ao
escritor um direito inalienável sobre as suas obras. De igual modo,
o detentor de bens culturais ou de obras de arte goza do direito de
posse garantido pela lei..
Na época moderna, a problemática dos direitos culturais desenvol-
veu-se consideravelmente por efeito de uma dupla evolução. Por uma
parte, a noção de cultura que outrora estava limitada à sua dimensão
intelectual, humanista ou artística, adquiriu hoje um significado socio-
-histórico, que abraça os traços distintivos dum igrupo humano e todos
os direitos relativos à sua identidade cultural.
Por outro lado, ie em relação precisamente com a emergência
desta concepção alargada da vida cultural, o Estado moderno foi levado
a considerar a cultura como objecto de uma política específica. A evo-
lução foi lenta e os seus desenvolvimentos são esclarecedores.
Num primeiro tempo, o Estado compromete-se «a não impedir»,
«a não entravar a liberdade». Por exemplo, a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão de 1789 declara: «A livre comunicação dos
pensamentos e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem:
todo o cidadão pode, pois, failar, escrever, imprimir livremente, con-
tanto que responda pelo abuso desta liberdade, nos casos determinados
pela lei» (art. 11).
O liberalismo subjacente a este 'artigo inspira ainda a política do
laissez-faire em matéria cultural em países como os Estados Unidos,
que não têm política oficial da cultura. O pressuposto é que o indi-
víduo deve ter liberdade de se exprimir, de se aperfeiçoar, de se cul-
tivar segundo as suas possibilidades e segundo os seus próprios meios.
A cultura, crê-se, resultará da livre iniciativa e da livre concorrência.
A crítica dirigida a esta tese é que ela deixa subsistir graves desigual-
dades culturais entre largos sectores da população, mesmo nos países
mais ricos.
Na Europa, ao contrário, impôs-se depois da segunda guerra
mundial uma orientação mais intervencionista do Estado no domínio
cultural. Sem nos demorarmos na experiência dos países de Leste,
onde os governos tinham a tendência, antes de 1989, a confundir a

4
ideologia marxista com a cultura oficial, os Estados da Europa ocidental,
agrupados no Conselho da Europa — que se tem aberto progressiva-
mente aos países de Leste — elaboraram um pensamento e uma prática
comuns, atribuindo aos poderes públicos uma responsabilidade positiva
na defesa dos direitos à cuítura e na promoção do desenvolvimento
cultural de todos os cidadãos e de todos os igrupos na nação.
As Nações Unidas, e sobretudo a UNESCO, contribuíram 'nota-
velmente para a maturação de uma 'consciência universal em matéria
de direitos culturais, de política da cultura e de desenvolvimento
cultural. Recordemos, em particular, a Declaração do México sobre as
Políticas Culturais (1982), là qual voltaremos mais adiante.

Instrumentos internacionais quanto a direitos culturais

Entre os principais instrumentos internacionais referentes aos


direitos culturais, mencionemos a Declaração Universal dos Direitos
do Homem, adoptada pelas Nações Unidas em 1948, <a qual estipula
formalmente o direito à educação e è cultura. É aí precisado que a
educação deve visar «o pleno desenvolvimento da personalidade
humana», a mútua compreensão e a paz i(art. 26). Notemos, em par-
ticular, o artigo 27 que trata mais directamente da cultura: «Qualquer
pessoa tem o direito de livremente tomar parte na vida cultural da
comunidade, de usufruir das artes e de participar no progresso cien-
tífico e nos benefícios que dele resultam. Cada um tem direito à pro-
tecção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer pro-
dução científica, literária ou artística de que seja autor». '
Em 1966, as Nações Unidas adoptavam o Pacto Internacional
relativo aos direitos económicos, sociais e culturais. Este pacto cons-
titui para os Estados signatários uma obrigação jurídica e não apenas
uma directiva moral, como a da Declaração de 1948. O artigo 15
precisa os direitos culturais de cada pessoa: «Os Estados participantes
no presente iPacto reconhecem a cada um o direito: a) de participar
na vida cultural; b) de beneficiar do progresso científico e das suas
aplicações; c) de beneficiar da protecção dos interesses morais e mate-
riais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística
de que seja autor». Os Estados comprometem-se, além disso, a tomar
as medidas necessárias para assegurar «a manutenção, o desenvolvi-
mento e a difusão da ciência e da cultura», e de facilitar «a coopera-

5
ção e os contactos internacionais no domínio da ciência e da cultura»
(art. 15).
Na Declaração sobre o direito <ao desenvolvimento de 1986, as
Nações Unidas davam um significado alargado aos direitos culturais,
assimilando-os aos direitos da «terceira geração» (os da primeira gera-
ção são os direitos civis e políticos; os da segunda geração são os
direitos económicos e sociais; os da terceira geração referem-se a um
direito de solidariedade, a ium direito colectivo do homem e aos direitos
das colectividades).
A Declaração estabelece uma espécie de solidariedade entre os
direitos civis, económicos e culturais: todos estes direitos são conside-
rados como «indivisíveis». O artigo 6 sublinha-o assim: «a realização,
a promoção e a protecção dos direitos civis, políticos, económicos,
sociais e culturais devem beneficiar de uma atenção igual, ser enca-
rados com igual urgência». Esta Declaração não tem força vinculante
ou obrigatória e certos especialistas não aceitam estes direitos das
colectividades, porque lhes falta precisão, são difíceis de reivindicar
juridicamente e arriscar-se-iam a entrar em conflito com os direitos da
pessoa.
Sem entrar neste debate jurídico, é interessante notar a amplidão
nova que esta Declaração dá ao direito ao desenvolvimento integral
da pessoa e dos povos: «O direito ao desenvolvimento é um direito
inalienável do homem em virtude do tqual toda a pessoa humana e
todos os povos têm1 o direito de participar <e de contribuir para um
desenvolvimento económico, social, cultural e político no qual todos
os direitos do homem e todas as liberdades fundamentais possam ser
realizadas plenamente, e de beneficiar deste desenvolvimento» (art. 1).
Embora notando a distinção entre os planos jurídico e moral,
importa reconhecer o princípio da solidariedade universal face às
exigências do crescimento humano. Dirigindo-se è Organização Inter-
nacional do Trabalho, Paulo VI não hesita em afirmar «o direito
solidário dos povos ao seu desenvolvimento integral» (6 Junho 1969).
Os mesmos princípios foram retomados pelas Nações Unidas, quando
lançaram o Decénio Mundial do Desenvolvimento Cultural (1988-1997).
A noção de direito cultural, como acabamos de ver, encontra
domínios de aplicação cada vez mais alargados: as pessoas, as nações,
os povos em desenvolvimento, a comunidade internacional. Uma apli-
cação particularmente significativa refere-se à criança. As Nações

6
Unidas asseguraram-no com a Convenção Internacional dos direitos da
criança de 1989.
Esta Convenção, contrariamente à Carta de 1959 chamada Decla-
ração dos direitos da criança, é um instrumento jurídico que tem força
de lei. Vários aspectos educativos e culturais devem ser sublinhados
nesta nova Convenção.
A criança tem aí garantido o direito de exprimir largamente a
sua opinião, tendo em conta a sua idade e a sua maturidade (art. 12)
e de recorrer, para a formação e expressão dessa opinião, aos meios
mais diversos, incluindo mesmo a expressão artística (art. 13). Os Esta-
dos signatários comprometem-se a salvaguardar o direito da criança
à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (art. 14).
Reconhecem a importância dos mass-media na primeira formação da
criança, como veículo da cultura nacional e internacional. Estimulam
a produção de «imateriais que apresentem utilidade social e cultural
para a criança», e o intercâmbio de imateriais «provenientes de dife-
rentes fontes culturais, nacionais ou internacionais». Os Estados com-
prometem-se a promover sistematicamente a produção de livros para
as crianças, exigindo o cuidado «de ter particularmente em conta as
necessidades linguísticas das crianças autóctones ou pertencentes a
grupos minoritários» (art. 17). A Convenção recorda o direito das
crianças diminuídas a receber uma verdadeira educação, cuja finali-
dade seja a sua «integração social io mais completa possível e o seu
desenvolvimento pessoal, mesmo no domínio cultural e espiritual»
(art. 23).

Fundamento ético dos direitos culturais

Como determina a visão panorâmica precedente, a evolução do


direito internacional convida a uma consideração mais 'geral sobre o
fundamento ético dos direitos culturais. O pensamento ético dos direi-
tos culturais é claramente observável na noção de cultura apresentada
pela UNESCO na Declaração do México de 1982. A cultura é assim
descrita: «Ela engloba, além das artes e dias letras, os modos de vida,
os direitos fundamentais do ser humano, os sistemas de valor, as tra-
dições e as crenças». A cultura faz parte dos «direitos fundamentais
do ser humano», precisamente porque «dando ao homem a capacidade
de reflexão sobre si mesmo, é ela que faz de nós seres especifica-

7
mente humanos, racionais, críticos e eticamente comprometidos»• (ver
a Declaração de México sobre Políticas Culturais, UNESCO 1982).
É, pois, a um direito ihumano fundamental e ianterior a toda a
lei positiva que se liga o direito à cultura e o direito da cultura.
Se o ser humano não se realiza senão pela cultura, esta aparece então
como uma necessidade vital tão imprescindível e premente como as
necessidades primárias na ordem biológica. É do direito a uma vida
propriamente humana que se trata. Este direito primário é consti-
tutivo e funda as múltiplas facetas dos direitos culturais. Mencionemos
em particular o direito à primeira educação, >à escolarização, à apren-
dizagem de base, formação profissional; o acesso possível ao ensino
superior, o direito ao trabalho, ao exercício de uma profissão, ià for-
mação permanente; o direito à liberdade de expressão, de informação
e de comunicação, ià criação; o direito è reputação, o direito a uma
escolha de vida, o direito de fundar uma família, o direito de asso-
ciação, e liberdade de deslocação. Na encíclica Pacem in Terris de
João XXIII (1963) encontra-se iuma lista pormenorizada destes prin-
cipais direitos.
Se nos interrogarmos sobre o fundamento primeiro do direito à
cultura, encontramo-lo na liberdade radical do espírito humano, fun-
dada sobre a liberdade de consciência, que torna cada pessoa respon-
sável pelo próprio destino. iO ser .humano 'não pode crescer senão pela
busca de sentido e ahrindo-se à 'transcendência. A cultura assegura-lhe
essa indispensável liberdade espiritual. O direito à cultura está funda-
mentalmente ligado à liberdade religiosa. João 'Paulo II, na encíclica
Centesimus Annus (1991), explica-o deste .modo: «Em certo sentido,
a fonte e a síntese destes direitos >é a liberdade religiosa, entendida
como o direito de viver na verdade da sua fé e em conformidade com
a transcendente dignidade da sua pessoa» (n. 47).
Todos estes direitos interessam à pessoa, mas comportam também
um aspecto social de tal forma que é difícil distinguir demasiado cate-
goricamente entre direitos individuais e direitos colectivos, entre os
quais convém sublinhar o direito à identidade nacional, garantindo um
adequado regime de soberania, o direito da língua, o direito das
minorias, o direito ao desenvolvimento cultural, e o direito de cada
povo assegurar as condições deste desenvolvimento: nomeadamente, as
infraestruturas dum sistema educativo, uma rede de livre comunicação,
um regime de direito e os meios de uma política da cultura, do patri-
mónio e da investigação.

8
A justiça distributiva aplica-se também aos bens culturais?

Depois de ter formulado o princípio ético que fundamenta o


direito de qualquer ser humano à cultura, é preciso perguntar como
é que os bens culturais podem ser efectivamente acessíveis às pessoas
e aos 'grupos. É a questão do destino universal dos bens culturais.
Num mundo cada vez mais interdependente, como se deve compreen-
der a participação de qualquer pessoa e de quaisquer grupos humanos
nos bens da cultura? Por outras palavras, as regras da justiça distri-
butiva têm aplicação estrita no domínio dos bens e dos direitos
culturais?
Desde já se torna indispensável uma clarificação a propósito da
comunicação dos bens culturais. Isso tem a (ver essencialmente com
a natureza da cultura, com o seu modo de aquisição e de transmissão.
Nesta questão, que toca ao mesmo tempo à cultura e à ética, a nossa
referência central será o bem da pessoa, primeira criadora e benefi-
ciária do progresso cultural.
Ora, numa perspectiva personalista, é cada um dos humanos que
se aperfeiçoa pela aprendizagem, pelo treino intelectual, pelo apro-
fiundamento dos seus conhecimentos e pelas criações do seu espírito.
É um bem próprio da pessoa que i»e diz culta ter sabido realizar os
seus talentos. A cultura exige, certamente, a transmissão de conheci-
mentos; mas ela resulta radicalmente dum esforço de assimilação e de
aperfeiçoamento pessoal. Resulta de um auto-desenvolvimento e dum
auto-enriquecimento, porque é a pessoa que se cultiva a si mesma.
Ninguém a pode enriquecer em seu lugar. Reconheçamos esta parte
de singularidade e de incomunicabilidade em toda a cultura pessoal.
Temos a intuição evidente disso quando a morte nos privai dum
grande sábio ou dum artista de renome. Daí o sentimento de uma
perda insubstituível para a cultura. Cada um distingue-se pela cultura
dos seus próprios talentos e pela soma de conhecimentos e de expe-
riências que o fizeram crescer humanamente.
Apressemo-nos, porém, a acrescentar que o progresso autêntico
da pessoa reclama, em contra-partida, um incessante intercâmbio no
seio da comunidade humana; doutra forma, o isolamento autosuficiente
levaria ià morte do espírito. Os meus conhecimentos são ao mesmo
tempo uma aquisição pessoal e .um enriquecimento compartilhado com
os outros. A ciência, a arte, a cultura exigem ao mesmo tempo a
interiorização personalizada e o intercâmbio colectivo. O saber, o sen-

9
tido prático e a sabedoria da vida tornam-se então atributo das pessoas
e de toda a sociedade chamada culta. E este valor deve ser defendido
como um bem e um direito inalienável que distinguem as pessoas e
os grupos humanos.

Bens culturais comuns

Cada comunidade humana define-se precisamente pela sua cultura,


quer dizer, pela sua maneira original e única de perceber a vida,
de julgar, de se comportar, de criar obras e instituições que humanizam
um espaço físico e social. A cultura assim concebida especifica a iden-
tidade de cada colectividade humana. £ o primeiro bem, o património
e o projecto de vida típico que nenhuma sociedade poderia sacrificar
sem se destruir a si mesma. É seu direito fundamental.
Mas a cultura dos [grupos como a das pessoas mão pode sobre-
viver no isolamento, pois nele está ameaçada de estagnação, de desu-
manização e de incultura. A promoção da identidade cultural reclama,
pois, por uma espécie de necessidade interna, a compreensão e o diá-
logo de \culturas. Esta reciprocidade sublinha a interdependência dos
bens culturais de cada pessoa e de cada grupo. Vê-se como o destino
universal dos bens do espírito se realiza pelo livre intercâmbio e
enriquecimento mútuo. A característica dos bens culturais é, de facto,
poderem-se compartilhar sem se empobrecer. O contrário é que é a
regra: é difundindo-se que uma cultura se aprofunda e se universaliza.
A solidariedade humana seria, pois, ilusória sem o respeito duma
dupla exigência: em primeiro lugar, o crescimento e a salvaguarda da
riqueza cultural própria de cada pessoa e de cada sociedade; e, ao
mesmo tempo, a fecundação mútua das culturas particulares, fonte de
enriquecimento contínuo da cultura humana como tal. Um bem comum
cultural impõe-se, portanto, como um imperativo de que a sociedade
moderna está cada vez mais consciente. iEm contrapartida, impõe-se
a necessidade da democratização da (cultura. A cultura constitui um
direito próprio, mas impõe ao mesmo tempo uma obrigação comum
em relação à cultura universal.
Confrontados com a urgência do desenvolvimento de todos os
homens e de todos os povos, 'Compreendemos melhor a função da
ciência, da arte e da cultura no progresso da sociedade humana.
Novos problemas éticos ise impõem à consciência universal e à reflexão

10
cristã. Retenhamos algumas evoluções mais recentes, sumariamente
descritas por esta simples enumeração: ,a socialização da ciência, o
prestígio do desenvolvimento cultural, a politização da cultura, a demo-
cratização cultural.

A ciência, um bem socializado

A ciência já não é apenas tarefa dos sábios tomados individual-


mente. Constitui actualmente uma verdadeira instituição da sociedade.
O sector científico representa um poder considerável que implica uma
responsabilidade colectiva dos homens e mulheres de ciência para a
promoção de uma sociedade justa, pacífica, fraterna. A ciência socia-
lizou-se e as equipas ou centros de investigação estão agora sujeitas
a normas e regras de conduta requeridas pelo bem comum. Um novo
direito referente ià ciência, à sua aquisição e à sua aplicação vai
tomando forma progressivamente.
O Estado moderno é assim levado a definir uma politica da
ciência, a fim de dotar a nação de um equipamento equilibrado nas
principais disciplinas que sejam vitais para o progresso da indústria,
da medicina, da defesa, da qualidade de ivida (notemos o papel cres-
cente das ciências humanas), da investigação fundamental. Critérios
db participação comum no progresso da ciência ifazem agora parte de
uma política esclarecida. A tarefa torna-se complicada pelo simples
facto dos progressos rápidos dia ciência, da acumulação quase ilimi-
tada de conhecimentos e da sub-especialização das disciplinas, o que
cria muitas vezes umia situação objectiva de incomunicabilidade fora
do círculo restrito dos especialistas e iniciados. Corno é que a sociedade
pode então controlar o uso da ciência em benefício de todos?
O aspecto internacional das políticas científicas põe problemas
ainda mais complexos, paria além do direito ao segredo (suposto ou
real), o respeito das patentes de invenção e os direitos de autor. A polí-
tica e a prática das nações ricas, em matéria de ciência, tendem a
criar uma nova situação de dependência ou de colonização cultural.
A repartição das vantagens da ciência entre nações exige muita clarivi-
dência e generosidade da parte do mundo científico e dos responsáveis
políticos. A sua responsabilidade é imensa face às necessidades de desen-
volvimento de todos os povos.

11
Direito ao desenvolvimento cultural

A noção de desenvolvimento cultural põe actualmente em relevo


a dimensão humanista e ética do progresso dos povos. Um desenvol-
vimento autêntico exige a participação nas vantagens tanto económicas
como culturais do progresso humano. A experiência demonstrou ampla-
mente que os projectos de desenvolvimento são decepcionantes e até
ilusórios, quando se limitam aos aspectos económicos ou técnicos, dei-
xando de lado a identidade dos povos e ias suas aspirações culturais.
Nenhum grupo humano pode progredir à custa de perder a sua alma
e cultura próprias.
Mas para ter acesso aos benefícios da modernização, os povos em
desenvolvimento devem fazer uma escolha muito complexa: embora
acolhendo a ciência e a cultura modernas, devem discernir os elemen-
tos que são conciliáveis com a sua cultura tradicional. Por outro lado,
devem investigar quais os valores tradicionais a manter vivos num país
emergente, que deseja preservar a sua identidade nacional.
Os bens da ciência e da técnica têm hoje uma importância con-
siderável no desenvolvimento das nações. João Paulo II nota-o desta
maneira: «No nosso tempo existe uma outra forma de propriedade
que tem uma importância não inferior à da terra: é a propriedade do
conhecimento, da técnidia e do saber. A riqueza dos países industriali-
zados funda-se muito mais sobre este tipo de propriedade que sobre
a dos recursos naturais» (Centesimus Annus 1991, n. 32).
O desafio às nações industrialmente mais avançadas é o de desco-
brirem, em colaboração com as próprias nações necessitadas de desen-
volvimento, como fazer participar estas nas vantagens do saber técnico.
Duma parte e doutra, se requerem discernimentos responsáveis.
Se esses discernimentos não se realizam a tempo, corre-se o risco
de ver as culturas das nações ricas afogar as culturas dos países em
desenvolvimento. Estes aspiram ardentemente a adquirir todas as van-
tagens da ciência e da criatividade cultural e, naturalmente, os pro-
gramas de desenvolvimento têm de responder a estas aspirações. Mas é
somente num diálogo responsável entre os países ricos e os países
pobres, que a intercomunicação cultural poderá respeitar a dupla
exigência da salvaguarda das identidades nacionais e da participação
livre nos tesoiros da educação, da ciência e da arte, que tendem a
tornar-se progressivamente património comum da humanidade. Este

12
património, repare-se, tem de incluir os ricos costumes, a herança artís-
tica, a sabedoria e a filosofia das culturas tradicionais.
Estas necessidades incitam actualmente os Estados a dotaor-se de
uma verdadeira política da cultura, como vimos na primeira parte.
O objectivo mínimo é defender e promover o património cultural comum
da nação: sítios, monumentos, artes tradicionais e populares, arquivos,
obras literárias e artísticas. Uma finalidade mais ambiciosa tende
actualmente a impor-se: visa a democratização cultural segundo a
qual todos os cidadãos e todos os grupos devem potencialmente ter
acesso às vantagens da ciência, da educação, da arte, da formação
permanente, é um direito que lhes é reconhecido explicitamente pelo
Estado moderno.

Cultura e justiça universal

O equilíbrio entre a identidade cultural e a interdependência das


culturas não se realiza facilmente. Como é que cada pessoa' e cada
grupo podem permanecer fiéis à sua identidade sem deixar de acolher
a cultura dos outros? !É um problema agudo para os imigrantes e para
as minorias.
Embora aceitando uma certa mundialização da cultura, consequên-
cia de uma cada vez maior interdependência de todas as nações, a
justiça exige que o bem próprio de cada cultura seja protegido e pro-
movido, se não a homogeneização das culturas torna-se um perigo
comum. É verdade que as vantagens da ciência, da técnica, da arte
contribuem para o progresso de todas as pessoas e de todos os povos;
mas a partilha efectiva dos bens culturais exige que sejam respeitadas
as leis dum livre intercâmbio entre os parceiros em questão. Se este
direito fundamental não é respeitado, é a lei do mais forte que se
torna norma, como acontece infelizmente nas situações de colonialismo
cultural e de imperialismo cultural.
A participação efectiva de todos nos bens da cultura depende
de uma justiça universal. Hoje este princípio é geralmente aceite,
embora a sua aplicação se revele externamente complexa, por causa
precisamente da natureza dos bens culturais e do seu modo de aquisição.
Voltemos à nossa questão central: a justiça distributiva &erá tam-
bém aplicável à partilha dos bens culturais? Talvez, mas duma maneira
muito especial. Os bens culturais não se distribuem como os bens

13
materiais. Não se trata simplesmente de partilhar entre todos os
homens a soma dos conhecimentos e das produções artísticas, mas
antes de tornar cada pessoa intelectualmente capaz de ter acesso, em
plena liberdade, aos tesoiros do saber, da ciência e da arte. È duma
justiça superior e dum direito fundamental que se trata, permitindo a
qualquer homem e a qualquer mulher realizar-se como ser humano.
Para beneficiar dos bens culturais, é preciso primeiro uma educação
primária, depois uma iniciação progressiva que exige aplicação e
esforço longo. É uma tarefa jamais acabada porque os tesoiros da cul-
tura humana são inesgotáveis, incluindo os do conhecimento teológico
e da arte sacra. Um imenso progresso ético será atingido quando
os nossos contemporâneos se convencerem que todos os recursos da
ciência e da arte devem concorrer progressivamente para a elevação
intelectual e espiritual de todos os homens. É uma exigência de justiça
e de equidade que o direito moderno procura agora formular.
A comunidade internacional, como vimos, dá uma interpretação
cada vez mais ampla aos direitos e correlativas obrigações referentes
à participação de todos nos bens culturais. O alcance jurídico das decla-
rações e convenções oficiais ir-se-á sem dúvida precisando, de maneira
a reflectir progressivamente as exigências da ética, a qual exige,
segundo a expressão de Paulo VI «a equitativa repartição das riquezas
da natureza e dos frutos da civilização» (Discurso no 25.° aniversário
da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 10 Dezembro 1973).
O ensino social da Igreja insiste fortemente na estreita solidariedade
dos seres humanos face à vocação de todos ao crescimento, que não
é facultativo.
A Igreja desempenha um papel específico no crescimento cultural,
porque age no coração da realidade cultural que é a consciência humana.
É do interior que ela chama o homem a crescer, a desenvolver-se soli-
dariamente e a transcender-se. João Paulo II ilustrou claramente, na
Centesimus Amus (1991), a aspiração de todo o homem ao desenvol-
vimento cultural e indicou a maneira própria de a Igreja servir a cul-
tura autêntica: «Para que esta cultura seja constituída como convém,
é preciso que todo o homem seja implicado nela, que aí desenvolva
a sua criatividade, a sua inteligência, o seu conhecimento do mundo
e dos homens. Além disso, que ele aí invista as suas capacidades de
domínio de si mesmo, de sacrifício pessoal, de solidariedade e de dis-
ponibilidade para promover o bem comum. Para isso, a primeira e
mais importante tarefa realiza-se no coração do homem, e a maneira

14
como o homem se consagra à construção do seu futuro depende da
concepção que ele tenha de si mesmo e do seu destino. É a este
nível que se situa a contribuição específica decisiva da Igreja à ver-
dadeira cultura» (n. 51).

Conclusão e prospectiva

Em conclusão, ficamos em que toda a pessoa humana tem um


direito elementar à cultura, que lhe permita crescer segundo os seus
talentos, as suas aptidões e as suas aspirações. É por isso que os
direitos culturais são hoje reconhecidos como parte integrante dos
Direitos do Homem. A comunidade internacional e os Estados tomam
consciência disso e procuram exprimir os direitos culturais em textos
jurídicos vinculantes e em políticas aptas a favorecer o desenvolvimento
cultural de todas as pessoas e de todos os grupos. A realização destes
objectivos supõe, contudo, que sejam respeitadas as condições parti-
culares da participação efectiva nos bens culturais. Para gozar verdadei-
ramente dos seus direitos culturais, as pessoas devem ser motivadas,
apoiadas institucionalmente e tornar-se aptas a crescer no plano inte-
lectual, moral e espiritual.
A conquista destes direitos exigirá uma vasta solidariedade das
pessoas e dos Estados. A Igreja aporta o seu contributo específico
apelando às consciências que a solidariedade é uma verdadeira virtude,
indispensável ao desenvolvimento integral das pessoas e dos povos.
João Paulo II recordou-o claramente na encíclica Sollicitudo Rei Socialis
que pode ser lida como um documento maior sobre o desenvolvimento
cultural.

15
Bibliografia

Hervé CARR1ER, Evangélisation et développement des cultures. Editrice Pon-


tifícia Università Gregoriana, Roma, 1990.

Giorgio FILIBECK (Org.), Le droit au développement. Textes conciliaires et


pontificaux (1960-1990). Conseil Pontifical «Justice et Paix», Cité du Vatican,
1991.

J. M. PONTIER / J. C. RICCI / J. BOURDON, Droit de la culture. Dalloz, Paris,


1990.

M. VERWILGHEN (Org.), Droits de Vhomme. Recueil de documents nationaux


et internationaux. Bruylant / AEDI, Bruxelles/Louvain, 1989.

A A . W . , Diritti economici, sociali e culturali nella prospettiva di un nuovo


Stato sociale. Centro di Studi e di Formazione sui Diritti deH'Uomo e dei
Poppoli, Università di Padova, 1990.

16
Brotêría 135 (1992) 17-33

GRACILIANO RAMOS E DOSTOIEVSKI


Alguma aproximação

por ALVES PIRES

A aproximação anda por aí, velada ou desveladamente feita. Sobre


plataformas algo precárias, ao menos na medida em que não nos
informa o indispensável acerca do grau de parentesco, e também de
desparentesco, entre o escritor brasileiro e O' escritor russo.
E contudo tuna aproximação serena, pensada, levada a termo com
aquela circunspecção interiorizada tão sabiamente posta em uso pelo
grande utilizador deste método crítico, Charles du Bos, uma aproxima-
ção com esse teor e sentido mostrar-se-ia fecunda, sem dúvida, sobre-
tudo para uma compreensão mais integral do escritor alagoano.
Evidentemente, não cabe tamanha pretensão dentro deste breve
escrito. Nem pouco mais ou menos. Pretende, nada mais, ser modes-
tíssima achega. Escrita muito ao derivar da caneta, sem a preocupação
de remanusear verbetes de leituras antigas.

Dos marcos de referência mais à mão, para estabelecermos para-


lelo entre o Autor de Vidas secas e o de Crime e castigo, é que ambos
escreveram as suas «recordações da casa dos mortos»: Graciliano com
Memórias do cárcere e DostoievsJci com o livro que nalguma tra-
dução portuguesa traz precisamente esse título de Recordações da casa
dos mortos, ou, em versão porventura mais rigorosa, Memórias da
casa morta.
Do conjunto dos títulos da obra dos dois escritores era possível
destacar outros para se firmar o marco aproximativo, como por

17
8
exemplo o Humilhados e ofendidos dostoievskiano, e o graciliânico
Vidas secas. Também por sobre esses títulos e respectivos conteúdos
poderíamos perceber, sem dificuldades de maior, o grau de paren-
tesco e/ou não parentesco dos seus Autores. A conclusão seria idên-
tica, ou não muito diversa.
Em todo o caso, e a priori, o que parece indiscutível é que a
proximidade entre dois escritores será tanto mais insofismável quanto
mais se puder estabelecer pela via inteiramente privilegiada da pro-
dução ficcional que nos legaram.
Vamos, no entanto, cuidar de ser realistas e circunspectos, e assim
muito espontaneamente nos veremos dissuadidos de cotejar, por exemplo,
Os demónios com Angústia, ou Os Irmãos Karamazovi com S. Bernardo.
São mundos ficcionais muito diferentes, e isso é patente, mesmo à
vista desarmada. Produto de culturas, de sensibilidades humanas e de
mundividências muito díspares.
E quando assim é, a tentativa de aproximação surge como gorada
à nascença. E como se partisse de premissas falsas ou sem cabimento.

Melhor então não irmos por aí, se pretendemos sobretudo achar


pontos de encontro ou de parecença entre as duas personalidades.
Fixemo-nos por breves instantes nas origens, nas circunstâncias
em que eclodiram e depois se desenvolveram essas duas personalidades.
E podemos tomar por este caminho afoitamente, bem dentro da con-
vicção assumida e tenaz de não estarmos, assim agindo, a enveredar
por um qualquer tipo de crítica mais ou menos saintebeuveana, de
biografismo balofo. Nada disso.
Acontece é que o modo como foram modulados os primeiros anos
da pessoa termina sempre por desempenhar papel absolutamente deci-
sório em ordem à definição do comportamento vivencial futuro dessa
mesma pessoa. Em quadrantes múltiplos.
JÊ esta, hoje por hoje, uma questão pacífica, lá pelos campos da
psicanálise e cá pelas bandas da safra literária. Questão que, no res-
peitante à república das letras, temos já bastante discutida e com-
provada pelos mais grados estudos da psicocrítica e da nova crítica,
na linha dos Doubrowsky, dos Jean-Paul Weber, dos Gilbert Durand
e outros.

18
Ficção e memórias em Graciliano Ramos

Parte significativa da ensaística sobre Graciliano surge-nos como


que filtrada, passe o excessivo do termo, através da leitura do seu livro
de memórias Infância. Quer dizer: mais do que qualquer dos outros
dois volumes de feição memorialística — Memórias do cárcere e
Viagem — esse livro prodigaliza elementos interpretativos que projectam
de facto uma luz mais esclarecedora sobre o romancista e o contista.
Octávio de Faria, não sendo nem pretendendo ser um crítico lite-
rário «profissional» — é sobretudo um romancista, de créditos bem fir-
mados— obedece a uma boa intuição e sensibilidade de crítico quando,
no artigo sobre «Graciliano Ramos e o Sentido do Humano», escreve,
logo a abrir, este parágrafo que embora extenso importa ler na íntegra:
«Se Infância me parece ser o livro mais importante de Graciliano
Ramos — não o melhor, que certamente é Angústia — é que só vejo
um caminho seguro para a compreensão do fenómeno literário chamado
Graciliano Ramos, a criação levando ao criador e o criador levando
à criança, ao menino que existiu nele e nunca morreu inteiramente.
Em Graciliano Ramos, o menino Graciliano é tudo. Seus heróis são o
menino, sua timidez é a do menino, sua revolta é a do menino. Em uma
palavra: o sentido que tem do humano é o que o menino adquiriu
no contacto com os homens que o cercavam, com quem travou as pri-
meiras relações, de quem recebeu as primeiras ordens, que conheceu
nas suas inúmeras fraquezas» (')•
E prossegue o raciocínio, deixando entrever, como de esperar, que
os personagens do ficcionista Graciliano têm muito desses humanos
algo desumanos que rodeavam o menino, e a quem o menino não
pôde nunca aceitar de ânimo solto e contente.

Graciliano Ramos nasceu vai fazer um século, em 27 de Outubro


de 1892, numa pequena cidade chamada Quebrangulo, no Estado de
Alagoas. 'É o primogénito de um casal que teve dezasseis filhos. A mãe
contava apenas quinze anos quando deu à luz Graciliano, e o pai
tinha trinta e sete.
Sendo embora escassas e não muito concretas as informações
— tanto as fornecidas pelo livro de memórias Infância, como as do

(!) Cf. Graciliano Ramos, Infância. Posfácdo de Octávio de Faria. Livraria


Martins Editora, São Paulo, 1975, p. 257.

19
volume de cartas do escritor publicado em 1980 pela sua viúva
Heloísa Ramos — são no entanto bastantes para nos permitirem entre-
ver um clima familiar algo difícil e nada propício ao normal desen-
volvimento da criança. O pai, quando casou, tinha já outros filhos,
e trouxe para o lar uma filha. E não custa perceber um pouquinho
o que aí vai de melindroso e de agreste na situação assim criada,
mormente para a jovem esposa.
Não olhemos como ociosa a evocação destes dados, porque abre
directamente para a compreensão daquilo que dezenas de anos mais
tarde o memorialista de Infância qualificará de «ambiente onde me
desenvolvi como um pequeno animal» (p. 12). Em boa verdade, boa
falta nos fazem esses e outros elementos informativos, a fim de poder-
mos ler situadamente e sem crispações de maior, no presente livro,
certas referências do memorialista aos próprios pais.
Mas, observações de semelhante jaez muito importa confirmá-las
com alguns exemplos, ou então desmenti-las. Leamos:
«Meu pai e minha mãe conservavam-se grandes, temerosos, incó-
gnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e
sem lábios, mãos grossas e calosas, finas e leves, transparentes. Ouço
pancadas, tiros, pragas, tilintar de esporas, batecum de sapatões no
tijolo gasto. Retalhos e sons dispersavam-se. Medo. Foi o medo que
me orientou nos primeiros anos, pavor».
Em seguida, como se fosse imperioso tentar diluir o agressivo da
lembrança, agora, a tamanhos anos e léguas de distância:
«Depois as mãos finas se afastaram das grossas, lentamente se
delinearam dois seres que me impuseram obediência e respeito. Habi-
tuei-me a essas mãos, cheguei a gostar delas. Nunca as finas me tra-
taram bem, mas às vezes molhavam-se de lágrimas e os meus receios
esmoreciam. As grossas, muito rudes, abrandavam em certos momentos.
O vozeirão que as comandava perdia a aspereza, um riso cavernoso
estrondava — e os perigos ocultos em todos os recantos fugiam, deixa-
vam em sossego os viventes miúdos: alguns cachorros, um casal de
moleques, duas meninas e eu. De repente surgiu a terceira irmã, insigni-
ficância, nos braços de Sinha Leopoldina. Não fiz caso disso»
(pp. 14-15).
Por força que há-de soar algo desabrida esta linguagem, seja qual
for a têmpera do ouvido receptor; e mais ainda se orquestrada com
outros trechos da mesma sequência, como este, na página seguinte:

20
«Nesse tempo meu pai e minha mãe estavam caracterizados: um
homem sério, de testa larga, uma das mais belas testas que já vi,
dentes fortes, queixo rijo, fala tremenda; uma senhora enfezada,
agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida
por um cabelinho ralo, boca má, olhos maus que em momentos de
cólera se inflamavam com um brilho de loucura» {p. 16).

No coro da crítica ouvem-se com alguma frequência vozes que


atribuem a Graciliano certa escassez de imaginação criadora. Também
creio haver fundamento para uma tal animadvertência, e o circunspecto
Antônio Cândido tem boas razões para escrever, na sua Introdução
à sua recolha de «trechos escolhidos» de Graciliano para a Livraria
Agir Editora (1961), que todas as obras de Graciliano Ramos trazem
«uma característica interessante: à medida que os livros passam, vai-se
acentuando a necessidade de abastecer a imaginação no arsenal da
memória, a ponto de o autor, a certa altura, largar de todo a ficção
em prol das recordações, que a vinham invadindo de maneira impe-
riosa. Com efeito, a um livro cheio de elementos tomados à experiência
de menino (Angústia) sucede outro, de recordações, é verdade, mas apre*
sentadas com tonalidade fictícia (Infância); e, depois desta ponte,
a narrativa sem atavios dum trecho decisivo da sua vida de homem
(Memórias do Cárcere)» (2).
Também Adolfo Casais Monteiro, num dos seus bons momentos
de esclarecido apreciador da res litteraria, pôde escrever de Graciliano:
«sendo o mais puro estilista de todos os seus contemporâneos, ele foi
ao mesmo tempo o menos literato, o mais alheio a tudo quanto não
fosse fazer cada vez com mais autenticidade a sua confissão».
Clara sintonia, como vemos, com o que eram os propósitos e o
ponto de sentir do Autor de Vidas secas, variamente manifestados ao
longo de toda a sua obra, desde Caetés, o primeiro romance, até aos
livros póstumos, corno Viagem ou Viventes das Alagoas. Atitude de
espírito que acharíamos formulada a rigor naquele passo de Infância,
mormente se subtraído um nadinha ao contexto: «Acordei, reuni peda-
ços de pessoas e de coisas, pedaços de mim mesmo que boiavam no

(2) Cf. Antônio Cândido, Graciliano Ramos, (trechos escolhidos). Livraria


Agir Editora, Rio de Janeiro, 1961. Cit. por Assis Brasil, Graciliano Ramos.
Organizações Simões, Editora, Rio de Janeiro, 1969, p. 21.

21
passado confuso, articulei tudo, criei meu pequeno mundo incon-
gruente»* (p. 20).
Seja como for, se de alguma coisa não temos direito a duvidar é
da pujante fundamentação existencial desta escrita, cujo timbre, apesar
da aparente secura e da singeleza da construção frásica, está longe
de soar a uma qualquer modalidade de psicologismo descarnado. Dir-
-se-ia que aquela palavra exarada quase logo ao princípio das Memórias
do cárcere — «Só me abalanço a expor a coisa observada e sentida»
(p. 40) — assume, no decurso de toda a obra do escritor, foros de
princípio estético insubordinável. Como quem sabe que só por aí, pelo
fundamente observado e sentido, é que vem à literatura o verdadeiro
lastro e fundura humana.
E nesta linha de pensamento não é descabido fazer notar, mesmo
que entre parêntesis, que no livro de memórias Infância podemos ler
algumas páginas do mais lídimo estilo de Graciliano — um estilo
magnificamente expressionista, entre outras razões porque nascido de
um impressionismo forte e por igual bem vigiado.
Se necessidade houvesse de exemplificar o que acabo de dizer,
bastaria apontar o capítulo intitulado «Um cinturão» (pp. 31, ss.).
O que vem conferir ao capítulo o carácter quase arrepiante diríamos
que é esta perfeita identidade entre uma impressão em carne viva e
uma expressão natural e espontaneamente a condizer. Um dos pró-
prios facilmente identificáveis na escrita ficcional de Graciliano, aqui
bem visível na sua escrita de memórias, género que por natureza
dispensa mais a metaforização.

Graciliano Ramos memorialista

Mas, parece-me que vamos divagando, e aquela buscada aproxima-


ção entre o Autor de Memórias do cárcere e o das Memórias da casa
morta vai ficando cada vez mais a perder de vista. Contudo, era esse
e não outro o objectivo do presente escrito. Porque humanamente
esclarecedor, e não por simples entretenimento de arte pela arte.
Olhando porém um pouco mais de perto o que levamos dito, fácil
nos será concluir que esta espécie de divagação não só foi útil como
até mesmo caminho incontornável para essa intentada aproximação.
Repare-se: Nada tem de excessivo o considerarmos o livro Memórias
do cárcere, não apenas como o livro da maturidade pleníssima do

22
escritor, mas mesmo como o ponto de chegada de toda a sua aventura
literária e humana. Com todas as consequências que de uma tal asserção
queiramos tirar, como a de que temos aí toda uma súmula do que
foi a mundividência do escritor e do homem Graciliano Ramos.

Já em tempos, aqui nas páginas da «Brotéria» (3), e com motivo


exactamente de apresentar a edição portuguesa deste mesmo livro,
tive ensejo de escrever mais ou menos o seguinte: em Memórias do
cárcere falhou Graciliano por um triz o grande romance que estava
perfeitamente ao alcance das suas capacidades; mesmo assim, e como
ficou, este livro constitui excelente, imprescindível, miradoiro para
lermos situada e integralmente a produção ficcionística do escritor de
Vidas secas.
Razães maiores do asserto? São de vária ordem, mas todas con-
fluentes para esta que podemos tomar como ideia resumitiva: em Memó-
rias do cárcere, sem dúvida o livro mais substancioso de quantos o
Autor escreveu, recapitulam-se em esquema, mais ainda, tomam forma,
em grande medida, todas as virtualidades de Graciliano, como escritor
e como pessoa.

Nestas suas «recordações da casa dos mortos» Graciliano vai


reviver pela escrita, a vários anos de distância, o que tinha vivido ao
longo daqueles dez meses de prisão. Ora, como acontece com toda a
literatura de memórias, e a fortiori com a de Graciliano Ramos, há
aqui um evidente compromisso entre biografia e ficção — reforçado,
neste caso, como sugere Sônia Brayner, por uma certa descrença,
por parte do memorialista, em se atingir a verdade por uma qualquer
forma puramente objectiva ou não ficcional.
Muito pertinente também, e na mesma linha de pensamento, o
raciocínio de Massaud Moisés, quando observa que em Memórias do
cárcere Graciliano surge todo ele virado para o próprio labirinto
interior. Sugere mesmo que os grandes heróis da ficção graciliânica,
Paulo Honório, Luís da Silva e Fabiano, não iriam além de manifes-
tações da vida profunda e da visão problematizante da realidade, e
que é a do próprio escritor.
E na realidade uma tal interpretação bem parece confirmar-se, sem
que precisemos de em nada forçar o texto, nesta espécie de declaração

(3) Cf. «Brotéria» 100 (1975) 145-53.

23
de princípios estético-literários que o memorialista insere no primeiro
capítulo da sua narrativa. Ora oiçamo-lo:

Omitirei acontecimentos essenciais ou menoioná-los-ei de relance,


como se os enxergasse pelos vidros pequenos de um binóculo;
ampliarei insignificâncias, repeti-las-ei até cansar, se isto me parecer
conveniente. ,// (...) Não resguardei os apontamentos obtidos em
largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui
obrigado a atirá-los na água. Certamente me irão fazer falta, mas
terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor que
foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso
a consultá-lo >a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor
a hora exacta de uma partida, quantas demoradas tristezas se aque-
ciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das folhas que
•tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes,
tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos (4).

E prossegue assim, em tom de penetrante subtileza, na definição


dos parâmetros estético-humanos em que pretende evocar aconteci-
mentos vividos há dez anos e sobre os quais o tempo foi deixando
pátina tão irremovível como a do oiro velho. É assim que «Essas
coisas verdadeiras podem não ser verosímeis. E se esmoreceram, deixá-
-las no esquecimento: valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se,
cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las» (p. 15).

Em toda esta magnânima e sincera declaração de propósitos há no


entanto um inciso que muito convém sublinhar com traço particular-
mente decidido, uma vez que vai, por via bem directa, ao âmago
de toda a humana preocupação de Graciliano escritor. Nesta obra
como nas demais, embora nesta por forma talvez menos metaforizada
e mais palpável.
Ora leamos com a atenção que merece a passagem em análise:
«Fiz o possível por entender aqueles homens, penetrar-lhes na alma,
sentir as suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus
defeitos a sombra dos meus defeitos. Foram apenas bons propósitos:
devo ter-me revelado com frequência egoísta e mesquinho. E esse desa-
brochar de sentimentos maus era a pior tortura que nos podiam infligir
naquele ano terrível» (p. 16).

(4) Graciliano Ramos, Memórias do cárcere. Portugália Editora, Lisboa,


1970, pp. 14-15. Cito sempre por esta edição.

24
De muito bom grado ressublinho estes intuitos e critérios de análise
do real humano, projectando-se com igual sinceridade e lisura sobre
o eu e sobre o outro. E tais propósitos e critérios, se porventura encon-
tram expressão mais forte e assídua em Memórias do cárcere, é bem
claro que subtendem toda a obra de Graciliano, e contribuem decisi-
vamente para que essa obra, no dizer exacto de Antônio Cândido, nos
ofereça da vida «uma visão, sombria, é verdade, mas não obstante
limpa e humana».
Como em tempos escrevi, no citado artigo da «Brotéria», o pre-
sente livro de memórias de Graciliano é depoimento escrito com tama-
nha serenidade e sinceridade, sobre expressão cuidadosamente vigiada
e de tão densa estratificação' humana, que nenhuma dificuldade se
nos oferece em sentirmos, com alguns bons analistas, no quadro artís-
tico-humano que o livro nos põe diante, a imagem verídica e verosímil
de uma faceta profunda da existência de todo um povo: a sua capa-
cidade forte de sofrer sem desespero, antes confiando sempre num
amanhã mais liberto, luminoso e promissor.

Dostoievski meniorialista

E seria este o momento azado para o ponto final nestes dizeres,


já longos e se calhar também por demais fastidientos. O que acontece
é que nos ficou muito a perder de vista aquela prometida aproximação
às dostoievskianas Memórias da casa morta.
Assim, para de todo em todo não faltarmos ao prometido, que
é devido, necessitamos ainda de falar um pouco, e não de maneira
puramente circunstancial, acerca do significado desse livro de memó-
rias, da sua emergência da vida, e da sua imergência na obra do grande
escritor russo. Depois, a tal aproximação mais circunstanciada e formal,
o leitor mesmo a fará sem dificuldade e como que espontaneamente.
Claro está que, mesmo assim, tenho de recorrer aqui a tuna
qualquer forma de estilo telegráfico, ao tentar, nuns quantos pará-
grafos, sugerir de algum modo a dimensão e fundura de um assunto
que por sua mesma natureza estaria a exigir lentos e vários capítulos.
Mas, para espíritos resolutos, as tarefas mais árduas costumam ser
as mais aliciantes.
Evoquemos, antes de mais, dois ou três tópicos da história biográ-
fica de Dostoievslki mais atinentes ao nosso tema, a fim de melhor
nos ambientarmos no que depois precisamos de dizer condensadamente.

25
Em Abril de 1849 é preso, sob acusação de fazer parte de um
círculo de conspiradores e revolucionários. Terminara os estudos de
engenheiro em 1843, publicara a sua tradução de Eugénie Grandet de
Balzac, escrevera e publicara com grande sucesso novelas como Pobres
gentes, Noites brancas, e outras.
Em 16 de Novembro de 1849 é condenado à morte por um Con-
selho de Guerra, e quando em 22 de Dezembro tudo está a postos
para a execução, no último instante chega o indulto que vem comutar
a pena capital em quatro anos de reclusão e trabalhos forçados na
Sibéria. Dá entrada no presídio em 23 de Fevereiro de 1850, vindo
a ser posto em semi-liberdade, pois que obrigado a permanecer em
desterro, no mesmo mês do ano de 1854.
Entrementes, nesse breve e longo período de quatro anos, funda
alteração se dera na vida deste homem, e consequentemente na mundi-
vidência do escritor.
Mas antes de em tal atentarmos, vale a pena um rápido olhar
sobre dois antecedentes que muito contribuíram para o arrotear do
terreno: a morte da mãe em 1837 (Fiodor Doistoievski nascera em
1821), e principalmente a morte do pai em 1839, assassinado pelos
criados, em circunstâncias em tudo semelhantes, notam os críticos,
àquelas com que se descreve o assassinato do pai dos irmãos Kara-
mazov, no romance com este título.
Esse episódio trágico deve ter deixado marca indelével na alma
e na sensibilidade do escritor, e desta vez não andará longe da ver-
dade Freud quando, em estudo de 1929, defende que esse aconteci-
mento terrível marca um dos pontos cruciais que decidiram do des-
tino do grande criador romanesco, e o trauma então sofrido estará
na origem da epilepsia de que veio a sofrer.

Entretanto, mesmo sem nada entendermos de processos freudia-


nos de análise, não precisaremos de grande perspicácia para com-
preendermos que o momento verdadeiramente crucial para a revisão e
reformulação dos sonhos e propósitos de futuro, terá sido esse em que
o jovem escritor, ainda ontem a transbordar de projectos, se vê hoje
abocado à morte, e, num ápice, como por milagre, se acha de novo
restituído à vida. A convulsão interior deve ter descido até às camadas
mais profundas da psique. Aí, nesse momento fácil de aferir no tempo,
ter-se-á dado aquela real conversão psicológica a que aludem alguns

26
biógrafos, e a que o lento fluir meditativo dos quatro anos vividos
como concentraeionário na Sibéria terá trazido consolidação total.
Da fortaleza-prisão siberiana de Omsk saiu um Dostoievski muito
diferente desse outro que lá dera entrada quatro anos antes. Saiu
ressuscitado como Lázaro, e estuante de novas razões de viver. Saiu,
é certo, apenas para uma semí-liberdade, mas o tempo das terríveis
provações e violências terminou, e agora é a sensação de ter feito
a sua travessia do deserto e ter chegado às fronteiras da terra da pro-
missão. E toma-nos mesmo a impressão de que teme afastar-se.

Estamos assim ambientados minimamente na circunstância histó-


rico-biográfica. Cuidemos então de assomar-nos um pouco ao signifi-
cado humano, ou melhor dizendo, a esta espécie de cataclismo espi-
ritual que toma corpo nas «memórias do cárcere» de Dostoievski, e
que trazem o título de Memórias da casa morta (5).
Embora não tanto como Graciliano, também Dostoievski tardou
em resolver-se a escrever as suas Memórias da casa morta. Só depois
de regressado da Sibéria, cumpridos os anos de prisão e os de desterro
que se lhe seguiram, e fixada a residência em S. Petersburgo, terá
começado a redigir a obra, publicando-a em capítulos ao longo do
ano de 1861, portanto uns sete anos depois de saído da prisão.
À semelhança do que acontece com Graciliano Ramos, também
em Dostoievski o reduzir a escrito as vivências trágicas sofridas na
prisão traz claríssima intenção catártica: um e outro experimentaram
a necessidade imperiosa de emergirem dessa obsessão tremendamente
opressiva, como de um túmulo. Muito embora o sentido da obsessão/
/opressão fosse de sentido inteiramente diverso num e noutro caso,
como é fácil de deduzir do que levamos dito.

(5) Sigo esta tradução, do título e do texto, por me parecer das mais
fidedignas de quantas por aí circulam no Ocidente. Foi levada a bom termo pelo
mestre Rafael Cansinos Assens, directamente do original russo, e publicada nas
Obras completas de Dostoievski, da Editora Aguilar de Madrid, em três magní-
ficos vols., papel bíblia. Rafael Cansinos Assens é, sem favor, um dos melhores
conhecedores, não apenas do mundo de Dostoievski, mas da sua linguagem
ficcional peculiar. A edição que utilizo é a 4.", «corrigida y aumentada con
abundante material inédito» (Madrid, 1949. Tomo I, pp. 1147-1346). Uso tam-
bém, com à vontade e muito proveito, não apenas o «Prólogo» a esta obra
concreta, mas a Introdução geral sobre a vida e obra do genial romancista,
ambos os estudos da autoria do tão credenciado tradutor.

27
Principalmente necessitaram de objectivar pela escrita e ver com
clareza no profundo significado que esses meses ou anos de reclusão
imprimiram às suas vidas, a fim de o assimilarem por inteiro.
E nesta linha de pensar, não há dúvida que também para Graciliano
Ramos esses meses de purgatório — um conceito teológico que ao
escritor alagoano pouco ou nada diria — constituíram vim tempo forte
de reflexão e de maturação psíquica, a deixar consequências evidentes
na maneira de olhar a existência.

No que respeita a Dostoievski esse teor de consequências é incom-


paravelmente mais decisório e palpável. Os quatro anos de reclusão
siberiana, verdadeira descida aos infernos, representam na vida e na
arte do grande escritor russo profunda inflexão de sentido, certamente
como resultado de uma repentina ou lenta iluminação interior.
Meio entre parêntesis, mas para que não vá alguém pensar que este
meu modo de falar já leva seu quê de «iluminado», lembrarei os termos
em que o próprio Dostoievski mais tarde no Diário de um escritor
irá referir-se a essa transformação experimentada: «Senti de súbito
que me era possível olhar para esses infelizes (os companheiros de
presídio) com um olhar diferente, e que de repente, por uma espécie
de milagre, todo o sentimento de ódio e de ira se desvanecera no meu
coração».
Fala pois numa espécie de repentina iluminação interior, que
deixou marca indelével pelos tempos afora. Os estudiosos mais circuns-
pectos deste fenómeno na vida do escritor não hesitam em falar de «ver-
dadeira experiência de conversão», pela via da descoberta ou redes-
coberta da fé (é).

(6) Naturalmente que não há aqui lugar para desenvolvermos o tema.


No entanto, com maior ou menor esclarecimento, o assunto tem assomado a
•muita da literatura crítica sobre o Autor das Memórias da casa morta. Através
de críticos e ensaístas tão acreditados como Berdiaev, Guardini, Evdokimov, Léon
Chestov, e muitos outros. Recentemente apareceu, com recolha de Textos feita
por Jacques Catteau e Jacques Rolland, o n.° 2, número monográfico sobre
Dostoievski, da colecção «Les Cahiers de La nuit surveillée» (Éditions Verdier,
1983). Nos três grandes apartados em que se dividem as 250 pp. do volume,
os colaboradores, cerca de uma vintena, estudam aspectos do que é o universo
de Dostoievski, a sua visão do homem e da sociedade, e algumas das grandes
questões filosóficas e religiosas que a sua literatura envolve. Mais directamente
voltado para a questão que nos ocupa, o capítulo de Joseph Frank, sobre «A con-
versão siberiana de Dostoievski», pp. 125, ss.

28
Rafael Cansinos Assens, que noutra altura, citando opinião alheia,
comparava o fenómeno à ressurreição de Lázaro, fala agora, por conta
própria, em verdadeira regeneração moral e física, e acrescenta que
o escritor saiu dessa «casa de mortos, dessa vala comum de vivos»,
engrandecido e muito mais rico em sua humanidade.
O que explicaria, segundo o excelente Tradutor e subtil analista
crítico, o facto de um livro como Memórias da casa morta — narrativa
de acontecimentos em si mesmos tão sinistros, tão penetrados de tra-
gédia humana e de sombras — nos chegue apesar de tudo bem repas-
sado de luz optimista e de uma serenidade quase evangélica.

É deveras impressionante esta capacidade dostoievskiana de mer-


gulhar pela escrita, e fazer-nos mergulhar, nesse abismo de horrores
e desumanidade. E, ao menos na aparência, por vias perfeitamente insó-
litas, pois que, utilizando uma forma de expressão serena e despojada
de todo, quase pedestre, no entanto como que nos leva a experimentar
vitalmente a mesmíssima emoção trágica por ele vivenciada.
Como anota o Tradutor/Ensaísta, Dostoievski nesta narrativa
parece ter posto de lado as asas da imaginação, para conservar tão
somente as correntes do presidiário. Por outras palavras, é como se,
um tanto paradoxalmente, a opção de refugir à esfera idealizadora
tivesse vindo neste caso a densificar a comunicabilidade e a expressão
da vivência concreta.
Dir-se-ia podermos falar aqui de um verismo total, de que toda
a fantasia foi banida, de uma espécie de ideal «naturalista» paradoxal-
mente realizado: a delicada hipersensibilidade do memorialista põe-nos,
por assim dizer, em contacto imediato com a crua realidade do dia
a dia nas masmorras, sem a mediatização embelezadora de quaisquer
metáforas ou outras imagens literárias transfiguradoras; mas sobretudo
sem qualquer assomo de crispação, geradora de imprecações ou anáte-
mas, de protestos ou denúncias.

A visão da vida, reformulada

Tempo de vertiginosa descoberta de mundos, de mundos insus-


peitados de humanidade, ali no convívio com marginais e criminosos
de vário grau e sedimento, onde parece que essa humanidade mais
deveria achar-se de menos. Tempo vertiginosamente fecundo, de ines-
perada e feracíssima sementeira, esse da prisão e desterro siberianos.

29
ÍL nesse período de efervescente germinação no subsolo, como de
primavera ir.repetida, que temos de buscar a génese, não apenas dos
Raskolnikov e das Sónia, dos Aliocha e Ivan e Dmitri Karamazov, mas
mesmo de todo esse espantoso quinteto de romances, absolutamente
ímpar em toda a história do género literário romance.

Tentadora, sem dúvida, esta linha de considerandos, mas que


temos de abandonar, por duas razões maiores: por cair um pouco a
deslado no relativo ao nosso intuito, e por não ficar bem estarmos
agora a prolongar por mais tempo esta que nada mais queria do
que ser despretensiosa conversa acerca de alguns pontos de conver-
gência e divergência de dois notandos memorialistas. E o propósito,
bem ou mal, podemos dá-lo por cumprido.

Mal avisados andaríamos no entanto se, pela urgência de pôr


fecho à conversação, nos dispensássemos de um olhar último, rápido,
sobre os dois livros que nos vêm polarizando a atenção. Porque nos
passou muito de esconso um elemento importante e que precisamos
de sublinhar um nadinha, pois bole muito de perto com aquilo que
pretendíamos fosse o substancial da nossa conversa. Estou a referir-me
à génese e elaboração dos dois livros de memórias, e ao lugar que
ocupam no todo da produção literária dos respectivos Autores.
Recordemos:
Quando Graciliano Ramos, ali por 1947, começando a redacção
de Memórias do cárcere, entra a reviver pela escrita as experiências
vividas dez anos antes, havia praticamente colocado já o ponto final
na sua obra de ficcionista. Note-se que o último romance, Vidas secas
— «um romance desmontável», como o qualificou Rubem Braga, com
inteira propriedade, dada a frágil unidade e arquitectura, como se con-
firma no facto de alguns dos capítulos do livro terem sido publicados
em Antologias de conto — Vidas secas aparece em 1938, e foi redigido,
pelo menos em parte, durante o tempo de presídio, no ano anterior.
A partir daqui, a .grande Literatura de Graciliano é a Literatura
de memórias — além das Memórias do cárcere, os volumes Infância
e o póstumo Viagem — ficando irremediavelmente remetida para segunda
apanha a produção ficcional que ainda venha a surgir.
Tudo isto vem a conto de dizermos que a vivência do presidiário
Graciliano escassa, quase nula, influência teve na sua obra de ficcio-
nista propriamente dita.

30
Mas, não haja malentendidos, tal não pretende de forma nenhuma
insinuar que a obra literária resultante dessa vivência seja de impor-
tância secundária no conjunto da obra graciliânica. Claro que seme-
lhante advertência, nesta altura da nossa conversa, só pode visar os
inteiramente distraídos, e não tem qualquer sentido em relação aos
outros. Todos os outros, a esta hora estão já por demais convencidos
de que, olhando ao conjunto da obra literária de Graciliano no todo
dos valores literários que encarna, Memórias do cárcere representa
momento absolutamente cimeiro, com um teclado de sonoridades huma-
nas que não encontra semelhante em nenhum dos outros livros do
escritor.

No que respeita a Dostoievski e à sua experiência de concentra-


cionário, vivida na carne e revivida pela escrita, muito outra tem
de ser a matização do nosso ajuizamento crítico. Matização que, sobra
dizê4o, nem sequer vamos tentar aqui e agora. Os tópicos sobre o
assunto acima apontados, não bastando ao esclarecimento completo,
são bastantes, creio bem, para ajudar o leitor a orientar-se e com-
preender no essencial o que refiro em linguagem apenas insinuativa e
quase estenográfica.
Podemos então pôr termo a esta nossa conversa, que vai bastante
mais longa do que o combinado. Embora, espero, não de todo ociosa.
E a terminar julgo muito oportuna a reevocação sublinhada dessa
que é a ideia-chave para de algum modo acedermos ao enigma do
grande escritor russo, ao seu universo artístico-humano de fronteiras
indiscerníveis.
Aqueles quatro anos, entre os vinte e nove e os trinta e três de
idade, vividos por Fiodor Dostoievski na fortaleza-prisão da Sibéria,
constituíram para ele a sua travessia do deserto bíblico, no sentido
mais pleno. Todos os convencionalismos sem substância, todos os falsos
conceitos de grandeza, tudo o que seja «franja de algodão em manto
de seda», como diria Machado de Assis, tudo isso foi ficando pelo
caminho, sem deixar saudades. Todos os revolucionarismos tendentes
a construir paraísos artificiais ou ao nível do raso, do meramente intra-
mundano; toda a visão racionalizante ou petrificante da existência,
toda essa vidência de pequeno alcance, tudo isso foi abandonado.
E, pergunta inadiável, então o que é que ficou?
Ficou uma enorme capacidade, agora já perfeitamente depurada,
para ver no companheiro de degredo, ainda no de aparência mais

31
monstruosa e abjecta, um ser humano que sofre e em' seu íntimo busca
redenção. Ficou-lhe, digamo-lo no mínimo de palvras possível, um
olhar mais límpido e penetrante para ler e nos ensinar a ler na
abissal grandeza que somos.

Foi .assim que um dos nossos melhores líricos, de hoje e de ontem,


o poeta João Maia, finíssimo leitor do grande romancista eslavo, no-lo
retratou, em Poema que é todo um prodígio de visão clara, densa e
emocionante, sobre esse universo romanesco de vertiginosa fundura
humana.

Fecho pois com chave de oiro, transcrevendo alguns versos, e


pedindo escusas, aos leitores mas sobretudo ao poeta e ao roman-
cista celebrado, por não reproduzir na íntegra o Poema — que em boa
verdade, e apesar da longura, forma um todo como túnica inconsútil:

Também te quero contemplar um momento


Dentro de dois versos mal cortados,
A ti que bateste às partas do futuro
Onde eu estava,
E aos mil Sésamos fechados
Na floresta dos hábitos cansados
Onde o homem que eu era se ocultava.

(...)
A ti, que te perdeste
Nas estepes sem fim, enluaradas
E atónitas do humano destino,
Fundo como a distância e incerto como ela,
Presago e choroso caminheiro
Do país das sombras,
Sibila em transe, à porta da caverna
Da Alma.
(...)
A ti, que traçaste uma cruz de sangue sobre a Terra,
E, rendido ao enigma da Beleza,
Cantaste o hino da Alegria
Quando tudo esperava o da Tristeza ...
(...)

32
O teu povo é mais vasto que a Rússia,
O teu canto ouve-se mais longe que a terra,
No teu choro há lágrimas por dores nunca choradas,
E o coração do homem, Sibéria de forçados
E destroçados anelos,
Na tua mão de escritor
Abre-se aos mares maravilhados,
Aos plainos livres e belos
Doutra Aventura, doutra História, doutro Amor ...
(...)
A ti, que descobriste no mendigo o perfil do Príncipe
E no Príncipe os farrapos do mendigo,
Que baralhaste os caminhos e os conceitos
Do nosso arranjo de um dia,
E trouxeste à flor triste da Palavra
Os limos do nosso poço,
A ti ergo o meu canto agradecido,
Porque eu era um triste e formal israelita,
Sentinela da Lei e sua Letra,
E tu me fizeste uma profecia de cem mil línguas
Do Hebron angustiado dos teus livros.
(...)
Já parou o vento na tua selva,
Não escrevas mais!
Dmitri está preso na Sibéria,
E canta do seio da Terra
O hino trágico à Alegria de Deus.
Aperta mais o crucifixo sobre o peito,
Manda calar Ivan,

E deixa falar Aliocha, noite dentro ...

Cristo está perto e escuta-nos a todos O !

(7) Cf. João Maia, S.J., Verbo do verbo. Poemas. Com um Prefácio de
Vitorino Nemésio. livraria Bertrand, Lisboa, 1957, pp. 47, ss.

33
8
Brotéria 135 (1992) 34-45

CIÊNCIA E RELIGIÃO
Uma nova perspectiva

por LUIS ARCHER

Uma mensagem recente de João Paulo II (') foi acolhida, por um


respeitado historiador da ciência, como sendo «sem dúvida o mais
importante e específico documento papal sobre as relações entre reli-
gião e ciência publicado em tempos recentes» (2), e, por um distinto
cientista anglicano, como «pondo fim à pretensão de hegemonia sobre
a ciência, por parte da Igreja Católica» <3).
Na realidade, este notável documento do Papa repetidas vezes
propõe uma «aprendizagem mútua» entre ciência e religião, uma «busca
comum», e uma «união» de ambas «sem perda da autonomia» de
cada uma, sugerindo uma colaboração em pé de igualdade, sem o mais

(!) JOHN PAUL II, Message to the Director of the Vatican Observatory
on June 1, 1988. In RUSSEL, R. J., STOEGGER, W. R., and COYNE, G.V.
editors, John Paul II on Science and Religion, Reflections on the New View
from Rome, University of Notre Dame Press, pag. M1-M14, 1990.
(2) ERNAN McMULLIN, «Religious Book Week: Critics' Choices», Com-
monweal 116:5 (March 10, 1989) 149: «it is without a doubt the most iinpor-
tant and most specific papal statement on the relations between religion and
science in recent times».
(3) LINDOlN EAVES, «Autonomy is not enough», in RUSSEL, R. J.,
STOEGGER, W. R., and COYNE, G.V. editors, John Paul II on Science and
Religion, Reflections on the New View from Rome, University of Notre Dame
Press, 1990, pag. 19: «it put to an end the Catholic Church's claim to hegemony
with respeot to the scieinces».

34
leve ressaibo de supremacia ou dominação da religião ou da teologia
sobre a ciência.
Esta mensagem papal foi tão universalmente acolhida como ino-
vadora, que uma colectânea de comentários sobre ela, recolhidos dos
mais variados quadrantes, tem como subtítulo «Reflections on the
New View from Rome» (4).
Para pôr em evidência este seu carácter inovador, teremos de a
contrastar com atitudes anteriores. E estas podem ser esquematizadas
em três posições principais: concordismo, antagonismo e separatismo.
De todas elas se distancia a nova perspectiva romana.

Concordismo

A posição concordista é particularmente clara no séc. XVIII, em


que se utilizavam dados ou teorias científicas para fundamentar teses
teológicas ou para mostrar que a Bíblia tinha razão. É a físico-teologia
de William Derham, com a demonstração da existência e atributos de
Deus a partir das características das suas obras na criação. É a Biblia
ruiturae de Jan Swammerdam a defender que o sábio descobre na
natureza aquela mesma presença de Deus na sua glória que se afirma
pelos livros santos. A própria Crítica do Juízo de Kant pressupõe
esta apologética concordista.
Esta posição teve ainda reflexos no nosso século em vários dis-
cursos de Pio XII, em que ele utilizou resultados científicos de astro-
nomia e cosmologia para argumentar a favor da existência do Deus
criador. Um exemplo típico refere-se à aproximação da teoria do
Big Bang ao acto criador de Deus. São de Pio XII as seguintes palavras:
«A ciência contemporânea, penetrando em eras passadas, conseguiu tes-
temunhar o instante augusto do Fiat lux primordial, quando, junta-
mente com a matéria, brotou do nada um mar de luz e radiação [ . . . ] .
E assim, naquela forma concreta que é característica das provas físicas,
a ciência moderna confirmou a contingência do universo, e também

(4) RUSSEL, R.J., STOEGGER, W. R., and COYNE, G.V. editors, John
Paul II on Science and Religion, Reflections on the New View from Rome,
University of Notre Dame Press, 1990. O sublinhado é nosso. • ,'.

35
a bem fundada dedução sobre o tempo em que o mundo surgiu das
mãos do Criador» (5).
Em contraste diametral, João Paulo II, ao caracterizar o profis-
sionalismo com que os teólogos devem abordar a ciência, diz que ele
«os impedirá de fazer uso acrítico e apressado, com intuitos apologé-
ticos, de teorias recentes como a do Big Bang em cosmologia» (6).
A nova perspectiva de Roma, apesar de apelar para uma união
entre ciência e religião, é diametralmente oposta ao concordismo e à
apropriação de dados científicos para fins apologéticos. A Mensagem
do actual Papa afirma claramente: «O cristianismo possui a fonte da
sua justificação dentro de si mesmo, e não espera que a ciência cons-
titua a sua apologética primária. [ . . . ] Ainda que ciência e religião
se devam apoiar mutuamente como dimensões diferentes duma cul-
tura humana comum, nenhuma delas se deve assumir como constituindo
uma premissa necessária para a outra» (7). «A religião não se funda-
menta na ciência, nem a ciência é uma extensão da religião» (8).
Entre ciência e religião, João Paulo II propõe sim união, mas
não a fusão concordista e diz: « [ . . . ] a união que nós procuramos [ . . . ]
não é identidade. A Igreja não propõe que a ciência se torne religião,
ou a religião se torne ciência. Pelo contrário, a união pressupõe sem-
pre a diversidade e integridade dos seus elementos» (9).

(5) «[•••] contemporary science with one sweep hack across the centuries
has succeeded in bearing witness to the august instant of the primordial Fiat
lux, when along wiith matter there burst forth from nothing a sea of ligth and
radiaition [...] Thus, with that concreteness which is charaatteristic of physical
proofs, modern science has confirmed the contingency of the Universee and also
the wellfounded deduction to the epoch when the world came forth from the
hands of the Creator» Acta Apostolicae Sedis (Vatican City State: Tipografia
Poliglota Vaticana, 1952) Vol. 44, pag. 41 e 42.
(6) «Such an expertise would preveni them from making uncri tical and
overhasty use for apologetic purposes of such recent theories as that of the
«Big Bang» in cosmology», op. cit. na nota (1) pag. Mil e M12.
(7) «Christianity possesses the source of its justífication within itself and
does not expect science to constitute its primary apologetic. [...]While each can
and should support the other as distinct dimensions of a common human culture,
neither ought to assume that it forms a necessary premise for the other», op. cit.
na nota (1) pag. M9.
(8) «Religion is not founded on science nor is science an extension of
religion», op. cit. na nota (1) pag. M8.
(9) «[...] the unity that we seek [...] is not identity. The Church does
not propose that science should become religion or religion science. On the

36
Antagonismo

Está historicamente provado que o concordismo, que buscava nos


resultados científicos argumentos para a crença religiosa, teve respon-
sabilidades no surgir tanto do ateísmo moderno como da situação do
antagonismo fé-ciência. Caíram, pelo progresso científico, alguns argu-
mentos do concordismo, mas persistiu a convicção de que ele deveria
existir. Porque se continua a julgar que conclusões científicas e teoló-
gicas se localizavam ao mesmo nível, como se tivessem o mesmo objecto
formal, a sua oposição levou a um choque inevitável. Típicos foram
o caso Galileu e a controvérsia evolucionismo/criacionismo. Criou-se
um ambiente de antagonismo e de divórcio entre ciência e religião, e,
depois, de anti-clericalismo.
Foi neste ambiente anti-clerical que Leão XIII fundou, em 1891,
o Observatório Astronómico Vaticano. No Motu proprio que o criou (10),
Leão XIII insurge-se contra as acusações que se fazem à Igreja de
obscurantista e inimiga da ciência, contrapõe-lhe um elogio quase
triunfalista do ensino da Igreja, e dá a entender que o objectivo fun-
damental para a fundação do Observatório Vaticano foi o de mostrar
a todo o mundo que a Igreja é capaz de fazer boa ciência e rivalizar
com outras instituições científicas.
Mesmo assim, a Igreja continuou a associar ciência com ateísmo.
Não é por acaso que, até muito recentemente, o diálogo entre a Igreja
e o mundo científico passava pelo «Secretariado do Vaticano para os
não-crentes».
A Mensagem do actual Papa é, desde o princípio ao fim, diame-
tralmente oposta a esta atitude de antagonismo, rivalidade e descon-
fiança. Frequentemente se fala de «diálogo», «abertura entre a Igreja
e as comunidades científicas», «busca comum», «compreensão mútua»
e «gradual expressão das preocupações comuns que proporcionarão
a base para futura investigação e discussão».

contrary, unity always presupposes the diversity and integrity of its elements»,
op. cit. na nota (1) pag. M8.
(10) LEO XIII, Motu proprio Ut Mysticam. In SABINO MAFFEO, S. J.,
In the Service of Nine Popes, One Hundred Years of the Vatican Observatory
(Vatican City State: Vatican Observatory Publioations, 1991) pag. 205:

37
Esta atitude é tanto mais surpreendente quanto se reconhece que
o magistério eclesiástico tomou frequentemente, no passado, uma posi-
ção de supremacia em relação à ciência, julgando-a e, eventualmente,
condenando-a. Vários cânones do Concílio Vaticano I e alguns dis-
cursos de Pio XII claramente insistem em que a Igreja tem o direito
a restringir a autonomia da ciência.
A nova perspectiva de Roma põe ciência e teologia num diálogo
de iguais. E julga que nem a religião terá de limitar a autonomia da
ciência nem esta terá de limitar a autonomia da religião, se ambas se
mantiverem nos seus níveis específicos de análise da realidade. Diz João
Paulo II: «Tanto a religião como a ciência devem preservar a sua
autonomia e a sua especificidade. Cada uma delas deve possuir os
seus próprios princípios, as suas normas de procedimento, as suas
diversidades de interpretação e as suas próprias conclusões» (")•
Por isso mesmo, a Mensagem papal rejeita tanto o cientismo, que
se opõe à religião em nome da ciência, como o religionismo, que se
opõe à ciência em nome da religião.
O cientismo considera o método científico como a única forma
de aquisição da verdade, e procura banir filosofia e religião, ao mesmo
tempo que faz uma exaltação mítica da ciência que pode chegar ao
ponto de a tornar no que o Papa chama pseudo-religião ou teologia
inconsciente. E aqui podemos pensar em Jacques Monod ou Edward
Wilson.
Por outro lado, a Mensagem papal também rejeita o religionismo
daqueles que se opõem à ciência em nome da fé. Podemos aqui pensar
no criacionismo de vários grupos fundamentalistas dos E.U.A. e a própria
posição da Igreja em casos como o de Galileu. A estas situações se aplica
o que o Papa chama pseudo-ciência. Na perspectiva de João Paulo II
a fé não pode desempenhar o papel da ciência, nem a Bíblia pode ser
lida como um livro de texto de astronomia ou biologia.
João Paulo II opõe-se a ambos estes extremos e defende uma
colaboração em que ciência e religião mantêm as suas características
próprias e, por se autoconterem nas suas áreas específicas, não rivali-
zam nem se antagonizam.

( n ) «[•••] both religion and science must preserve their autonomy and their
distinictdveness [...]. Each should possess its own principies, its pattern of pro-
cedures, its diversities of interpretation and its own conclusions», op. cit. na
nota (1) pag. M8 e M9.

38
Alguns anos antes da Mensagem que temos vindo a referir, João
13
Paulo II tinha já feito dois discursos ) em que, aludindo ao caso
de Galileu, reconheceu que houve erros da parte de homens da Igreja
e pediu desculpa por eles, ao mesmo tempo que urgiu que se iniciasse
um estudo aprofundado e sereno da história daquele tempo, para que
toda a verdade seja reposta e todo o antagonismo entre ciência e
religião se desvaneça.
Afinal, todas as formas de antagonismo têm sido causadas por uma
deficiente interpretação da religião ou da ciência. Da religião, tomando
como revelação divina afirmações que são apenas expressão da cul-
tura de um dado tempo. Da ciência, quando faz extrapolações de resul-
tados experimentais objectivos onde já entra uma mundividência de
natureza filosófica.

Separatismo

Uma solução demasiado fácil para o antagonismo ciência-religião


foi por vezes construída a partir do facto de elas terem objectos formais
diferentes. Estudam a mesma realidade a níveis e de pontos de vista
diversos, e por isso não deveriam surgir conflitos enquanto cada uma
se mantiver no seu âmbito.
Desta diferença de objectos formais, passou-se insensivelmente
para uma diferença de objectos materiais, o que levou a um separatismo
em que a construção teológica se alheou por completo dos dados cien-
tíficos, enquanto a ciência se desinteressou da filosofia e da teologia
para a elaboração da sua mundividência.
Aliás, a separação de ciência e religião em mundos diferentes e
estanques já era indiciada na separação kantiana entre razão teórica
e razão prática, e tornou-se frequente em' certa teologia protestante,

( n ) JOHN PAUL LI, Message to the Pontifical Academy of Sciences on


November 10, 1979. Io VATICAN CITY STATE: PONTIFÍCIA ACCADEMIA
SCIENTIARUM, Discourses of the Popes from Pius XI to John Paul II to the
Pontifical Academy of Sciences, Scripta Varia 66, pag. 151, 1986.
(13) JOHN PAUL II, Message to the Pontifical Academy of Sciemces on
October 28, 1986. In VATICAN CITY STATE: PONTIFÍCIA ACCADEMIA
SCIENTIARUM, Discourses of the Popes from Pius XI to John Paul II to the
Pontifical Academy of Sciences, Scripta Viaria 66, pag. 193, 1986.

39
tanto liberal como neo-ortodoxa, em que a doutrina religiosa é esva-
ziada dum significado de conhecimento objectivo do real, que fica a
pertencer exclusivamente à ciência. Deste modo, desaparecem os con-
flitos entre ciência e religião, mas à custa do empobrecimento da capa-
cidade cognitiva da teologia.
De modo semelhante, a National Academiy of Sciences dos E.U.A.,
por ocasião da disputa criacionismo/evolucionismo, julgou encontrar
uma resposta ao considerar a razão científica e a fé religiosa como
domínios inteiramente independentes.
No pólo oposto está João Paulo II, que acentua o aspecto racional
da fé e retoma a definição de teologia como o esforço da fé para
alcançar inteligibilidade («fudes quaerens intellectum») e para avançar
na compreensão da natureza e da história. A Mensagem papal refere
que se deve superar o «isolamento auto-imposto da teologia» (e esta
expressão faz-inos lembrar a escola de Karl Barth) e que se deve evitar
a fragmentação da cultura em compartimentos estanques. Toda a Men-
sagem de João Paulo II se opõe a qualquer forma de separatismo,
o qual, segundo o Papa, pode tornar os usos da ciência massivamente
destrutivos e as reflexões da religião estéreis. O que se propõe é uma
união e interacção mútua entre ciência e religião.
Aliás o Papa reconhece que é hoje praticamente impossível o
separatismo, e diz: «Os cristãos inevitavelmente virão a assimilar as
ideias prevalecentes acerca do mundo, e hoje elas estão profundamente
moldadas pela ciência» (14). E continua: «A questão é se o farão dum
modo crítico ou irreflectido; com profundidade e devidas distinções,
ou com a superficialidade que adultera o Evangelho e nos deixa enver-
gonhados perante a História. Os cientistas, como todos os seres huma-
nos, tomarão decisões acerca daquilo que em última instância dá sen-
tido e valor às suas vidas e ao seu trabalho. Isto poderá ser feito de
modo correcto ou deficiente; com a profundidade reflectida que a
sabedoria teológica pode ajudar a obter, ou com a absolutização incon-
siderada dos resultados científicos para lá dos limites razoáveis» C15).

(M) «Christians will inevitably assimilate the prevailing i-deas about the
world, and today these are deeply shaped by science», op. cit. na nota (1)
pag. M13.
(15) «The only question is whether they will do this critically or unreflecti-
vely, with depth and nuance or with a shallowness that debases the Gospel and
leaves us ashamed before history. Scientists, like ali human beings, wil make

40
Contra o separatismo, João Paulo II opina que ciência e religião
precisam uma da outra. De facto, a ciência pode libertar a teologia
duma leitura ingénua, literal e fundamentalista da Escritura (como de
facto aconteceu em consequência do evolucionismo) e libertar os crentes
das atitudes de superstição e magia que atribuem ao sobrenatural o
que é explicável pela natureza. E aqui caberia mencionar a teologia
de Karl Rahner sobre a hominização que, ao introduzir a acção cria-
dora de Deus na realidade existencial dos seres vivos em evolução,
faz que sejam eles a causar (na força de Deus) a sua própria auto-
-superação (ló).
Por outro lado, a teologia pode fornecer aos cientistas um campo
fértil quando eles, a partir da ciência, aspiram a um absoluto e à
formulação dos valores últimos. Por isso diz o Papa: «A ciência pode
purificar a religião do erro e da superstição. A religião pode purificar
a ciência da idolatria e dos falsos absolutos» (17). Assim se conseguirá
que a «teologia não professe uma pseudo-ciência e a ciência não se
torne, inconscientemente, teologia» (18).

União em complementaridade

A Mensagem do Papa propõe uma união entre ciência e religião


que se distancia tanto do antagonismo e do separatismo como do con-
cordismo.
Distancia-se do antagonismo, pretendendo encerrar uma era de
conflitos que o Papa diz que eram evitáveis e que mancharam a his-
tória tanto da ciência como da religião. Distancia-se do separatismo,

decisions upon what ultiimately gives meaning and value to their lives and to
their work. This they will do well or poorly, with the refleotive depth that
theological wiisdom can help them to attain, or with an unconsddered absolutizing
of their results beyond their reasonable and proper limits», op. cit. na nota (1)
pag. M13.
O6) KARL RAHNER e PAUL OVERHAGE, El Problema de la Homini-
zación, Ediciones Gristiamdad, Madrid, 1973-, ou, no original alemão, Das Problem
der Hominisation, Herder, Freiburg, 1961.
(17) «Science can purify religion from error and superstition; religion can
purify science from idolatry and false absolutes», op. cit. na nota (1) pag. M13.
(18) «i[--] so that theology does not profess a pseudo-scienoe and1 science
does not become an unconscious theology», op. cit. na nota (1) pag. M14.

41
propondo uma união de esforços que diz evitará a fragmentação da
cultura humana e o caos. Mas nesta união distancia-se do concordismo
ao insistir que tanto a ciência como a religião devem manter íntegros
os seus princípios, a sua autonomia, as suas normas de procedimento
e as suas conclusões.
O Papa dá como razão de esperança para este movimento de união
os sinais que se notam hoje de maior abertura entre as diferentes cul-
turas, religiões e saberes. Refere, na Igreja, o movimento ecuménico,
o diálogo intenso entre as várias religiões, a purificação de todo o
ressaibo de anti-semitismo reconhecendo as suas origens e dívidas para
com o judaísmo, e o fortalecimento duma Igreja universal liberta do
predomínio ocidental.
Refere também, por parte das ciências, a unidade que se acentua
no interior da física e da biologia, assim como a tendência para o
estabelecimento de áreas interdisciplinares. E opina que todo este
ambiente nos dá hoje uma oportunidade sem precedentes para uma
interacção entre ciência e religião na qual cada uma retém a sua espe-
cificidade própria mas está aberta a considerar as descobertas e pers-
pectivas da outra.
Para esta interacção, o Papa julga que a teologia, ao buscar a
inteligibilidade da fé, deve incorporar metodologias ou teorias cien-
tíficas. É certo que o significado de «ciência» mudou muito desde os
tempos medievais, em que a teologia era considerada como a rainha
das ciências. Esta mudança .não foi bem acompanhada pela teologia,
o que a levou a ser acusada de não racional ou não-científica. A questão
é agora se a teologia poderá, sem perder a sua especificidade, recorrer
com vantagem a alguns cânones metodológicos da ciência contem-
porânea. Muitos teólogos pensam que sim.
Mas o Papa aponta duas precauções. A primeira refere-se a que
a teologia não deve incorporar indiscriminadamente qualquer nova
teoria científica. Só aquelas que se tornem bem fundamentadas e
passem a fazer parte da cultura intelectual do tempo, devem ser assi-
miladas e testadas pelos teólogos.
A outra precaução diz respeito a que, mesmo quando a teologia
incorpore teorias científicas bem fundamentadas, isso não significa que
por esse facto, a Igreja se pronuncie sobre a sua veracidade. E o Papa
exemplifica: «O hilemorfismo da filosofia natural de Aristóteles, por
exemplo, foi adoptado pelos teólogos medievais para explorar a natu-
reza dos sacramentos e a união hipostática. Isto não significa que a

42
Igreja se tenha pronunciado sobre a veracidade ou falsidade da pers-
pectiva aristotélica, já que não é essa a sua preocupação. Significa, sim,
que esta era uma das perspectivas da cultura grega que tinha de ser
entendida, tomada a sério e testada na sua capacidade de iluminar várias
áreas da teologia» (I9).
É curioso notar que ao propor que a teologia incorpore no seu
fieri esquemas científicos e filosóficos que são por sua própria natureza
precários, o Papa admite a precaridade das expressões teológicas da
fé, que, no entanto, terão o mérito de falar a linguagem cultural do
tempo. Esta precaridade de modelos (tanto científicos como teológicos)
e o aceitar que eles nunca podem esgotar a realidade, é justamente um
dos factores que facilitam a abertura ao diálogo sugerido pelo Papa.
João Paulo II inculca a ideia de que, assim como Tomás de Aquino,
assimilando a física e metafísica aristotélica, nos forneceu algumas das
mais profundas expressões da doutrina teológica, assim também os
teólogos contemporâneos devem realizar obra semelhante a partir da
ciência moderna. E diz mesmo que os progressos científicos do nosso
tempo desafiam a teologia muito mais do que a introdução de Aristó-
teles na Europa do séc. XIII.
João Paulo II concretiza o seu pensamento fazendo as seguintes
perguntas: « i S e as antigas cosmologias do próximo oriente puderam
ser purificadas e assimiladas pelos primeiros capítulos do Génesis, não
poderá a cosmologia contemporânea oferecer algo às nossas reflexões
sobre a criação? A perspectiva evolucionista não poderá projectar
alguma luz sobre a antropologia teológica, o significado da pessoa
humana como imagem de Deus, o problema da Cristologia e até mesmo
sobre a evolução doutrinal? Quais são (se de facto existem) as impli-
cações escatológicas da cosmologia contemporânea, especialmente à luz
do futuro longínquo do nosso planeta? Poderá o método teológico apro-

(19) «The hylomorphism of Aristotelian natural philosophy, for exainple,


was adopted by the medieval theologians to help them explore the mature of the
sacramente and the hypostatic union. This did not mean that the Church adju-
dicated the truth or falsity of the Aristotelian insight, since that is not her
ooncern. It did mean that this was one of the rich insights offered by Greek
culture, that it needed to be understood and taken seriously aod tested for its
value in illuminiating various areas of theology», op. cit. na nota (1) pag. MIO
e Mil.

43
priar-se com utilidade das perspectivas da metodologia científica e da
filosofia das ciências?» C).
Outros temas se poderiam juntar a estes como, por exemplo, a
crise ecológica. Esta foi provocada tanto pela teologia (ao inculcar a
ideia do homem como dominador da terra) como pela ciência (através
das aplicações tecnológicas). Para a solução da crise ecológica, ciência
e religião deveriam dar-se as mãos, cada uma contribuindo da sua
maneira.
Também nos poderíamos perguntar em que medida esse diálogo
com a ciência, proposto pelo Papa, irá afectar a nossa representação
de Deus, da Sua relação com o universo e da tarefa que a teologia se
atribui a si própria.
Igualmente seria possível repensar os debates relativos ao mono-
genismo/poligenismo e à finalidade/acaso.
Para realizar a tarefa da união interactiva entre ciência e religião
o Papa considera que o elemento decisivo é a existência de «membros
da Igreja que sejam ou cientistas activos ou, nalguns casos especiais,
simultaneamente cientistas e teólogos» (21). Eles poderão dedicar-se à
investigação teológica tendo em vista a ciência e a tecnologia.
Além disso, diz João Paulo II que eles poderão ter igual acção
junto dos que se confrontam com difíceis decisões morais em matéria
de investigação e aplicações tecnológicas.
Esta curta alusão aos problemas éticos decorrentes das modernas
tecnologias toca um dos pontos mais candentes do nosso tempo, nomea-
damente no domínio da bio-ética. Tempos houve em que a ética médica
e a moral cristã estavam em fácil concordismo. Porém, com o espan-

(2°) «If the cosmologies of the ancient Near Bastem world could be purified
and assimilated into the first chapters of Genesis, might oonitemporary cosmo-
logy have something to offer to our reflections upon creation? Does an evolu-
tionary perspective bring any light to bear upon theological anthropology, the
meaning of the human person as the imago Dei, the problem of Christology
— and even upon the development of doctrine itself? What, if any, are the
eschatological implications of contemporary cosmology, especially in light of the
vast future of our universe? Gan theological method fruitfully appropriate insights
from scientífic methodology and the philosophy of science?», op. cit. na nota (1)
pag. Mil.
(2I) «Those members of the Church who are themselves either active
scientists or, in some special cases, both sciemtists and theologians could serve
as a key resource», op. cit. na nota (1) pag. M12.

44
toso e rápido desenvolvimento das tecnologias médicas e biológicas,
criaram-se situações novas para que a teologia moral não estava pre-
parada, e das quais se foi gradualmente distanciando em separatismo.
Hoje há fortes antagonismos entre prática médica (mesmo entre cristãos)
e doutrina oficial da Igreja, em áreas como por exemplo a reprodução
artificial. Também aqui a solução se terá de encontrar numa busca
comum.
Apesar de o Papa considerar como «urgente» esta união interactiva
entre ciência e religião, o seu apelo não terá uma implementação rápida.
Uma união como a que se propõe implica que tanto a ciência como a
religião aceitem sofrer modificações em consequência dessa interacção.
Levará tempo até que as estruturas da Igreja estejam preparadas para
acompanhar as modificações conceptuais que a teologia pode sofrer ao
ser influenciada pela ciência. Será preciso promover a formação dum
número suficiente de pessoas que tenham inteiramente assimilado tanto
a mentalidade científica como a teológica. Uma nova síntese levará
tempo a enoontrar-se e estruturar-se.
Mas sem dúvida que um novo rumo foi traçado por este documento
papal, que poderá ficar na História como um marco decisivo nas rela-
ções entre ciência e religião.

45
Brotéria 135 (1992) 46-58

INTERVENÇÃO PROFÉTICA
DOS CONSAGRADOS EM PORTUGAL
NO CAMPO CULTURAL (*)

por MÁRIO GARCIA

Entendo aqui por «intervenção profética», um modo particular


de cooperação com a acção do Espírito Santo na vida do mundo. Ser
profeta é falar em nome de Deus e, por isso, capacitado para discernir
a Sua vontade. Mas esta atenção espiritual não pode desligar-se do
contexto do mundo em que se vive e, por isso, ser profeta é ser capa-
citado para discernir a vontade do mundo. A intervenção profética
situa-se, pois, num horizonte de mediação. O profeta é também aquele
ou aquela que fala em nome dos homens e das mulheres do seu tempo.
A cultura, na sua radical significação, abrange tudo o que o
homem é e produz, ao longo da história. Corresponde à definição de
um determinado processo de humanização. Não se pode, pois, desligar
a profecia da cultura. Mais: a cultura é a prova real da profecia.
No mês de Agosto de 1982, cerca de 130 Governos reunidos numa
Conferência internacional da Unesco sobre «As políticas culturais»,
adoptaram uma definição de cultura, que merece ser aqui transcrita.
Lê-se, no documento «Declaração de México 1982»: «No sentido mais
amplo, a cultura pode hoje ser considerada como o conjunto dos traços

(*) Conferência proferida em Fátima, no dia 2 de Março de 1992, no


âmbito da IX Semana de Estudos sobre a Vida Consagrada, «Convocados, hoje,
para a missão».

46
distintivos, espirituais e materiais, intelectuais e afectivos, que caracte-
rizam uma sociedade ou um grupo social. Engloba, para além das artes
e das letras, os modos de vida, os direitos fundamentais do ser humano,
os sistemas de valores, as tradições e as crenças» (').
Tudo é cultura, na medida em que tudo é e deve ser humanizado,
«cultivado» pelo homem, para se tornar vivo e operativo. Como a
nossa fé deve impregnar tudo o que somos e fazemos, falar de cultura,
no âmbito desta Semana, significa desenvolver e estimular uma deter-
minada leitura do mundo à luz do Evangelho e d'Aquele que é o
Homem por excelência, Cristo Senhor.
Sigo, na minha exposição, um primeiro passo de relevância de
alguns desafios que o mundo de hoje nos coloca. Desafios ambivalentes,
mas que são «sinais do tempo», aos quais não podemos deixar de
atender. Coloco-me, em seguida, na perspectiva das linhas de força
ou das formalizações das nossas específicas acções culturais, para, final-
mente, abordar aquilo a que chamei os campos prevalentes de aplica-
ção prática, no passado, no presente e no futuro, isto é, os «lugares»
que sempre foram típicos da presença dos consagrados em Portugal
e que devem mostrar-se mais adaptados e claros aos homens e às
mulheres do nosso tempo.

1. Alguns desafios à nossa acção evangelizadora

A) A necessidade de «testar». A palavra «testar» tem, pelo menos,


três significados. O primeiro refere-se a testamento, testemunho, teste-
munha ... O segundo faz referência ao substantivo «testa» e quer dizer
tornar resistente, firme, enérgico. Finalmente, o terceiro significado é
um neologismo que se aplica, por exemplo, à expressão «fazer um teste»,
no sentido de prova que serve para determinar as características físicas
e/ou psíquicas de um determinado indivíduo. Fala-se de testes, na
gíria escolar, no sentido de exames, frequências. Fala-se de testes
como de experiências laboratoriais. O uso múltiplo desta palavra é
revelador duma polissemia abrangente, onde podemos incluir a atitude
de quem se arrisca para comprovar que o seu testemunho é verdadeiro.

C1) Cit. por Hervé Carrier, Cultures: notre avenir, Rome, Presses de l'Um-
versité Grégorienne, 1985, p. 44. Cf. também a definição de «cultura» na Cons-
tituição Pastoral do Concílio Vaticano II, Gaudium et Spes, n.° 53>.

47
Repete-se um «teste» até atingir determinado valor que satisfaça quem
se apresenta e aquele que, por hipótese, comprova. Experimentar até
ver o que dá, aonde chega e para que serve. Testar a qualidade de um
produto. Esta noção de «experimentar» parece ser a prevalente.
Esquecemo-nos, por vezes, que a repetição, se não é acompanhada
de uma selecção ou depuração, se toma um gesto de alienante fuga à
seriedade. Não se pode brincar com a vida, embora muitas vezes sejamos
confrontados com esse jogo, em situações de hedonismo teórico e prá-
tico, da sociedade de consumo. Toda e qualquer experiência tem que
ser discernida, isto é, acompanhada por uma reflexão que situe essa
experiência num horizonte sólido de valores. O mundo de hoje obriga-
-nos a viver no provisório, porque tudo muda rapidamente e, por aí,
nos desinstala de seguranças inúteis. Mas este provisório, para ser cul-
tural, tem que ser testemunhado por uma vida permanentemente situada
na tradição, que não é aquilo que se recebe, mas principalmente aquilo
que se transmite. Entregar o testemunho, como numa corrida de esta-
fetas, significa dar a outros a possibilidade de testemunharem connosco
que as etapas só têm sentido para um fim, que a vida é uma superação
permanente, que fundamenta todas as situações passageiras.

B) Correr o risco de entregar-se. A «dinâmica do provisório» pode


levar, e leva de facto, à descomprometida ligação com o outro. Milan
Kundera, no seu romance A insustentável leveza do ser, diz a pro-
pósito de certo personagem: «Entre o medo e o desejo, arranjara um
compromisso; era aquilo a que chamava 'amizade erótica'» (2). Esta
situação dá-se quando fazemos do outro um objecto de experimentação.
Entregar-se significa aceitar o outro como o absoluto da nossa vida.
Tal atitude é exigente e total. O mundo de hoje obriga-nos a não ficar-
mos a meias, mas, ao mesmo tempo, parece querer dizer-Jios que o com-
promisso se torna uma prisão. A recusa do outro equivale na prática
a não aceitar que ele me pode deixar livre. Quer dizer: é uma aceitação
condicionada. Aceito-te na medida em que tu me aceitas a mim.
A democracia abrange, de facto, os contratos afectivos. E o coração
regula-se pela prova da maioria, pelo aplauso da bancada. O «direito
à diferença» (slogan publicitário!) é, muitas vezes, uma bela palavra
para exprimir a fuga aos laços da unidade vinculante ao outro, que

(2) Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, Lisboa, Publicações


Dom Quixote, 1985, p. 20.

48
me obriga a tornar-me igual a ele. Tal vinculação é frequentemente
entendida como falta de coragem em assumir-se «diferente». Ora, só
se pode ser realmente diferente, na medida em que o outro se torna
o absoluto da nossa vida. O outro é que é o absoluto e, por isso, é o
que me torna capaz de me aproximar de mim próprio despreconcei-
tuado, livre, e, como tal, humilde, pronto a aprender do outro o modo
como devo ser diferente para ele.
0 desafio que o mundo nos lança é a exigência à radicalidade da
entrega. A fidelidade pode contemporizar com a moda ou o gosto,
na medida em que uma tal adaptação leva a impregnar de evidência
efectiva as relações humanas. Mas quando fazemos da vida um pro-
jecto incondicionado, quando deixamos que o outro se torne o abso-
luto das nossas vidas, rompemos os laços ambíguos da captação, do
domínio, da posse. Tomar-se livre significa, desafiando o mundo de
hoje, deixar-se incondicionalmente comprometer na aventura da rela-
ção interpessoal, em que o amor se torna fonte de liberdade e pro-
jecto de comunhão. É a verdade do Outro que dá razão e justifica a
sinceridade da minha liberdade.

C) O dentro e o fora. Confusão, por vezes frequente, em que


as aparências denunciam uma falta de distância crítica, de «peso» ou,
para usar uma palavra tradicional na ascética religiosa, de gravidade.
Ser transparente é um ideal de maturidade e não uma irreflectida sin-
ceridade. E a experiência profunda da gravidade do mundo — do sus-
tentável peso do ser! — q u e me compromete radicalmente com a vida
e me faz apreciar o dom da contemplação. O mundo em que vivemos
privilegia a autenticidade, mas tende a confundi-la com a livre expan-
são do indivíduo. Busca-se a máxima satisfação imediata, sem respon-
sabilidade e sem futuro. Impera o desejo e a necessidade da imediatez,
que levam a um imp-ulso de evasão, através da droga e da velocidade,
por exemplo. Deixar sedimentar a experiência, significa consentir no
«compasso de espera», no tempo que tudo torna mais profundo.
A «ecologia» do espírito é o que mais se deve pedir a quem pro-
fessa, perante as coisas, a liberdade de uso e de consumo; a quem
não embarca na poluição do ruído publicitário ou no fascínio da apa-
rência. Quantos anúncios exploram este «índice de agrado» fácil!
«Compre tal produto, e verá que todos começam a gostar de si!»
E nós recusamos, em nome de uma imediata euforia, a tranquila acei-
tação do gratuito, isto é, daquilo que não é fruto da técnica, do

49
8
comércio, ou da máquina último-modelo ... Não será típico dos sectores
de rápida ascensão social, a ostentação desenfreada? A falta de densi-
dade de vida leva, muitas vezes, a mostrar como fácil aquilo que é
difícil. Se tudo posso comprar, mesmo o que parece acontecer por
acaso — se todos os meios me são possíveis —, não se encontra gran-
deza, mérito >ou interesse, no que pode despertar para experiências
que não se podem «possuir». Impressiona, de facto — e tal observa-
ção ouvi-a numa entrevista a um artista — como as pessoas que con-
correm aos concursos televisivos dos «fabulosos prémios», preferem o
automóvel à viagem turística por algum país estrangeiro. Parece que
ter um carro é a satisfação suprema de quem nada espera do des-
conhecido. Assim, prefere-se, à desfrutação do gratuito, a posse do
previamente ambicionado. De novo, o triunfo das aparências, o estar
conforme com a «imagem» que se deseja possuir.

D) Olhar Aquele que nos olha. Um dos sintomas mais gratifi-


cantes da paz de espírito, é olhar com esperança para o dia de amanhã.
Num mundo do imediato, «ter fé» é uma contestação eloquente.
Sonhar é sinal de saúde psicológica. Mas o sonhar com Aquele que
nos olha, é ir ao Seu encontro na segurança de quem sabe que o
melhor dos mundos é possível. A queda das utopias totalitárias não
nos deve deixar cair no vazio do individualismo, mas, pelo contrário,
deve levar-nos a purificar as nossas certezas, na construção de um
mundo mais humano. Recorro de novo a Milan Kundera e ao seu
romance A insustentável leveza do ser: «Todos nós temos necessidade
de ser olhados. Podíamos ser divididos em quatro categorias conforme
o tipo de olhar sob o qual desejamos viver. A primeira procura o
olhar de um número infinito de olhos anónimos ou, por outras pala-
vras, o olhar do público. (...) Na segunda categoria incluem-se aqueles
que não podem viver sem o olhar de uma multidão de olhos fami-
liares. (...) Vem em seguida a terceira categoria, a categoria daqueles
que precisam de estar sempre sob o olhar do ser amado. (...) Final-
mente, há uma quarta categoria, bem mais rara, que são aqueles que
vivem sob os olhares imaginários de seres ausentes. São os sonha-
dores» (3). Ê possível que estes seres imaginários existam? Para quem
não vive a sua fé em Deus, tal pergunta só pode ter uma resposta
negativa. Para quem acredita, não num ser imaginário, mas em Alguém

(3) Id., ibid., pp. 307-308.

50
pessoal infinitamente preocupado com o homem, o sonho transforma-se
numa vitória definitiva. O sonho torna-se, então, sinal distintivo do
espírito, porque permite ao homem aproximar-se d'Aquele que sabe
como fazê-lo feliz. A frase de Pascal: «Não te procuraria se não te
tivesse já encontrado», aplicada a Cristo, é deslocada, pelo P. Pierre
Charles, para a boca do próprio Cristo, que diz ao homem: «Tu não
me encontrarias, se eu não te tivesse procurado». O desejo de encontrar
Aquele que nos procura, o desejo de amar Aquele que nos amou
primeiro, é que faz de nós optimistas, perante todas as revelações catas-
tróficas do futuro. É pelo facto de existir Aquele que nos ama, que
podemos sonhar com segurança num mundo mais verdadeiro e justo,
porque este mundo é possível n'Aquele que nos ama. A existência do
Outro, com maiúscula, é a condição de possibilidade da verdade do
sonho num futuro feliz. O maior desafio que o mundo de hoje nos
apresenta, é a dinâmica da fé n'Aquele que nos sonha mais humanos
e felizes.

2. As nossas acções culturais

Passo agora a referenciar aquilo a que chamei «acções culturais»,


que significam «modos de agir» segundo uma perspectiva abrangente
e discernida, ao encontro dos desafios que o mundo de hoje nos coloca.

A) A dignidade de todos os homens e do homem todo. Entendo


por esta tónica uma atenção ao homem como um fim e não como um
simples meio. O Papa Paulo VI concluía assim a última reunião do
Concílio Vaticano II, no dia 7 de Dezembro de 1965: «A mentalidade
moderna, habituada a julgar todas as coisas sob o aspecto do valor,
isto é, da utilidade, deverá admitir que o valor do Concílio é grande
ao menos por isto: todo ele se orientou à utilidade humana. (...) Não
estaria, então, destinado este Concílio, cujos trabalhos e preocupações
foram consagrados principalmente ao homem, a propor mais uma vez
ao mundo moderno os caminhos de uma ascensão para a liberdade e a
felicidade? (...) Amar o homem, dizemos Nós, não como simples
meio, mas como um primeiro fim na subida para o fim supremo e
transcendente, para o princípio e a causa de todo o amor» (4). E João

(4) Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituições — Decretos — Declarações,


Braga, Secretariado Nacional do Apostolado da Oração, 1966, pp. LXXXIX-XC.

51
Paulo II, no discurso à= Unesco, em 2 de Junho de 1980: «É preciso
afirmar o homem por si mesmo, e não por qualquer outro motivo ou
razão: unicamente por si mesmo. Mais ainda: é preciso amar o homem
porque é homem, é preciso reivindicar o amor pelo homem em razão
da dignidade particular que possui» (5).
Qualquer particularismo no nosso trabalho, enferma de uma visão
redutora do homem. Privilegiar um aspecto não pode fazer-nos esquecer
o todo. Quantas vezes, uma actualização daquilo a que com excessiva
eficácia chamamos «carisma», não coloca determinado instituto reli-
gioso ou grupo de consagrados, numa visão curta da realidade do
homem? Quantas vezes, para dar resposta a necessidades imediatas,
se perde de vista o valor e o respeito pela integridade do homem,
fazendo dele «cobaia», ou campo de experimentação daquilo que pre-
viamente estabelecemos como as nossas «opções fundamentais»! A nossa
opção não pode ser outra senão o HOMEM e a MULHER na sua
dignidade, total e totalmente!

B) A obediência e o sentido corporativo. O modo de agir de um


corpo apostólico supõe necessariamente uma coordenada experiência
de grupo, e não um individualismo de opções diferenciadas. Creio
que o nosso modo de proceder como consagrados, tem de mostrar-se
mais evidentemente solidário, quer no interior do nosso grupo de tra-
balho, quer numa maior conjugação de actividades inter-grupais, dentro
e fora da Igreja. A palavra «missão» serve, muitas vezes, para justi-
ficar uma linha de conduta ou determinar regras uniformemente defi-
nidas. Apetece dizer com Milan Kundera: «—Missão, qual missão?
Missão é urna palavra parva. Eu não tenho missão nenhuma. Ninguém
tem missão nenhuma. E é um alívio enorme uma pessoa perceber que
é livre, que não tem missão nenhuma» (6). Ê claro que a missão, assim
entendida — e não há muito consagrado e muita consagrada, que des-
cansa a sua «boa» consciência na missão? — é uma fuga ao compro-
misso pessoal. A Missão é algo a descobrir como intenção, moção
comunitária, e não como ponto de partida ou prévia delimitação do
meu campo de trabalho. A missão é um «mais», que tem a ver com
o corpo apostólico, enquanto sacramento de Cristo, enquanto Igreja-
-comunhão.

(5) Cit. por H. Carrier, Ob. cit., pp. 61-62.


(6) Milan Kundera, Ob. cit., p. 352.

52
Outra palavra que se presta para abuso de uso e eficácia, é a
palavra «partilha». Que é isto de «partilha»? Para muitas pessoas, ser
solidário significa «mostrar-se disponível», ou, se quisermos, consentir
em estar com outros. Mas tal disponibilidade mostra uma falta de autên-
tica comparticipação. «Comunhão na metamorfose de uns pelos outros»,
é este o preço do futuro, diz o P. Jacques Sommet (7). «Dimensão
nocturna, que não é negativa, diz ainda o P. Sommet, mas que é uma
interrogação constante» (s). Ser disponível para o trabalho de grupo
ou consentir na extraordinária presença do outro— «alegrar-se por se
sentir enriquecido de que os outros sejam o que são» (9) — é a maior
graça e o testemunho mais radical da nossa acção conjugada de silêncio
e trabalho corporativo. Quando nos perguntam: foi você quem escolheu
vir para aqui? alguém o consultou? — e nós dizemos «não» em paz
e alegria —esta calma afirmação de verdade, pode ser mais iluminadora
do que muitas conversas de explicação dos nosos modos de resolver os
problemas em grupo. Quero dizer: a obediência, individual e comuni-
tária, a obediência à pessoa do Superior e à comunidade como corpo
de Cristo, é que torna a nossa vida eficaz e missionária. Mesmo para
quem não vive em comunidade, a sua acção apostólica é sempre obe-
diência à missão da comunidade.

C) A consolação numa sociedade de «alto risco». Ensinar as


pessoas a amar, devia ser o nosso único apostolado. Consolar quer
dizer libertar do medo, aceitar-se com um sorriso de agrado, pensar
bem e dizer melhor do outro, esperar o futuro em paz. Não será por
aqui que o nosso ser de consagrados em castidade, se expande em
alegria? Por tantos lados ameaçados de «catástrofes ecológicas», o
buraco de ozono e outros buracos negros, nós, pobres bichos deste
planeta perdido no cosmos, olhamos as flores com ternura e devoção.
Metralhados pelos mais variados resíduos nucleares—lixo atómico! —
nós, inocentes e frágeis, gozamos a beleza do mundo, cultivamos o
sorriso da verdade. «O meu sorriso diz que eu estou numa situação
de fraqueza pessoal e de promessa que me envolve. Este sorriso é

(7) Jacques Sommet, Uhonneur de la liberté, Paris, Le Centurion, 1987,


p. 252.
(«) Id., ibid., p. 240.
(9) Égide Van Broeckhoven, Journal spirituel d'un jésuite en usine, Collection
Christus, n.° 43 (Essais), Paris, Desclée de Brouwer/Bellamnin, 1976, p. 288.

53
— é um pouco ridículo dizer as coisas assim — é a ferida positiva da
esperança em relação àquilo que eu sou» (1C). E Umberto Eco no seu
grande livro O nome da rosa, afirma: «Talvez a tarefa de quem ama
os homens seja fazer rir da verdade, fazer rir a verdade, porque a única
verdade é aprender a libertar-nos da paixão insana pela verdade» (")•
Bela fórmula de vitamina espiritual: fazer rir a verdade! E esta a
nossa proposta a um mundo de «alta tensão e ameaça».
O Papa Paulo VI, numa exortação apostólica sobre a alegria
cristã, Gaudete in Domino, de 9 de Maio de 1975, escrito muito belo
e infelizmente pouco conhecido e divulgado, escreve: «Ao fazer surgir
o homem no meio do universo — que é obra do seu poder, da sua
sabedoria e do seu amor — Deus, antes mesmo de se lhe manifestar
pessoalmente, nos moldes da revelação, dispôs a inteligência e o cora-
ção da sua criatura para o encontro da alegria, ao mesmo tempo que
da verdade. Importa, pois, prestar atenção ao apelo que sobe do cora-
ção do homem, logo a partir da idade da infância, susceptível de mara-
vilhar-se, até à da velhice serena, como um pressentimento do mistério
divino» (12). E mais adiante: «Seria necessário também um paciente
esforço de educação para aprender ou então reaprender a saborear sim-
plesmente as múltiplas alegrias humanas que o Criador coloca, já agora,
ao longo dos nossos caminhos: alegria exaltante da existência e da vida;
alegria do amor honesto e santificado; alegria pacificadora da natureza
e do silêncio; alegria, por vezes austera, do trabalho feito com dili-
gência; alegria e satisfação do dever cumprido; alegria transparente
da pureza, do serviço e da comparticipação; alegria exigente do sacri-
fício, etc. O cristão poderá purificá-las, completá-las e sublimá-las, mas
não haverá nunca de as desdenhar. A alegria cristã supõe uma pessoa
capaz de experimentar alegrias naturais. Foi a partir destas, de facto,
que muitas vezes Cristo anunciou o Reino de Deus» (13).

D) O despojamento da riqueza. A confiança. «Olhai os lírios dos


campos...». Os pequeninos do Reino. A inquietação pelos bens mate-
riais é certamente uma das tónicas da sociedade de consumo em que

(10) J. Sommet, Ob. cit., p. 292.


(u) Umberto Eco, O nome da rosa, Lisboa, Difel, 1984, p. 486.
(12) Paulo VI, Gaudete in Domino (Alegria cristã), Braga, Secretariado
Nacional do Apostolado da Oração, 1975,, p. 5.
(13) Id., ibid., p. 9.

54
vivemos. Dar-se totalmente à providência de Deus, consentir no vazio
absoluto de nós próprios e das nossas eficácias e certezas, para que
Deus realize a Sua obra. «A nudez do amor é um caminho mais seguro
que todos os caminhos que a sabedoria humana construiu sobre as suas
próprias certezas», afirma o místico dos nossos dias, Egídio Van
Broeckhoven (14). Este caminho é o nosso, consagrados em pobreza!
A dialéctica no uso dos meios materiais, entre a eficácia e o despoja-
mento, deve impelir a nossa vontade ao discernimento, segundo o modo
de proceder do próprio Cristo. «A verdade: a lucidez no amor: ser como
a água límpida que penetra tudo e deixa as coisas serem o que são,
mas na pureza, na claridade. Assim era Cristo, assim deve ser tam-
bém o padre», conclui o autor do Diário espiritual de um jesuíta na
fábrica (15).
Não estou esquecido do horizonte cultural. Mas, por isso mesmo,
insisto nesta nota de pobreza radical, porque me parece ser um dos
sinais mais eficazes do testemunho do Evangelho nos nossos dias.
A pobreza, como situação de quem vive extasiado em Deus e no
Seu Reino, e procura mostrar aos homens e mulheres de hoje, nessa
libertação, o convite à felicidade do ser, contra a escravatura do ter e
do possuir.

3. Os campos prevalentes de aplicação prática,


no passado, no presente e no futuro

Gostaria agora de concretizar, brevemente, aqueles tópicos que


me parecem' mais urgentes — e foram os predominantes, ao longo da
história da vida consagrada — d a nossa intervenção profética na socie-
dadé portuguesa, hoje. A modo de questões ou perguntas, sem outra
intenção senão a de fazer-nos reflectir.

A) A justiça. Aqui nos colocamos em cheio no campo pedagógico,


assistencial, social. Colégios, obras de educação: que formação trans-
mitimos? Educar para a justiça significa criar nos nossos alunos e
alunas exigências de serviço aos mais marginalizados? Promovemos,
nas nossas casas e comunidades, acções concretas de renúncia e doação

(M) Égide Van Broeckhoven, Ob. cit., p. 315.


(1S) Id„ ibid., p. 334.

55
àqueles que porventura colaborando connosco ainda resistimos em con-
siderar iguais a nós? A justiça é, hoje, sinal privilegiado. Promover
a justiça pode querer dizer lutar pela honestidade incorruptível, exigir
de cada um de nós, para poder exigir dos outros, mais verdade e clareza.
Sempre a vida religiosa e consagrada optou por este campo de acção.
Não é moda dos nossos dias. Mas as desigualdades gritantes da sociedade
são hoje inadmissíveis à luz dos mais elementares direitos humanos,
e não podemos consentir ser coniventes com a corrupção, o com-
padrio, o espezinhamento do pobre e do abandonado. A nossa inter-
venção profética no campo cultural passa hoje, felizmente, por aqui.

B) Os meios de comunicação social. Força de massas e eficácia


que talvez tenhamos desprezado. Não é irresponsavelmente que se usam
estes meios, nem muito menos que se educam. Fazemos o que podemos
(e por isso devemos) para discernir criticamente tanta propaganda vei-
culada como exploração do homem pelo homem? Nós próprios, não nos
deixamos «drogar» por programas televisivos, não só telenovelas, evi-
dentemente? Creio que as perspectivas da televisão dita da Igreja,
podem constituir para nós um desafio de grande intervenção profética
no campo cultural. A exigência, a qualidade, é que produzirá certa-
mente o fruto desejado. Cumpre-nos a nós, consagrados na sociedade
portuguesa, educar e educarmo-nos para que a comunicação de massas
— jornais, revistas e todo o género de audio-visuais — seja local mais
desintoxicado, através da audácia cristã e da garra profissional. Oxalá
os tempos que se aproximam nos disponham a saber escrever, falar
e actuar melhor, para transmitir melhor o Evangelho de Jesus Cristo aos
homens e mulheres do nosso tempo!

C) Os tempos-livres. <0 tempo e o lugar do ócio e do lazer. Aí se


encontraram os consagrados — e como não pensar, neste momento,
em S. Francisco de Assis, nos mosteiros beneditinos, na solidão dos
ermitérios, no deserto do P. de Foucauld? — e aí devem encontrar-se
agora, no interior das cidades, talvez, mais do que nos campos ou
ermos. Graças a Deus, porque de facto o Espírito sopra nesta direc-
ção. A ecologia desperta-nos para a natureza, mas a natureza não é
uma «natureza-morta», vive no coração de tantos jovens que não sabem
como passar o tempo. Ensinar a distrair-se, a descansar, a gozar da
paisagem, do silêncio, do recolhimento, eis aí um campo de acção
cheio de fecunda tradição. Ainda haverá entre os consagrados, quem

56
afirme que não precisa de descansar? Num contexto diferente, mas
igualmente «ecológico», o grande místico flamengo do século XIV,
Ruysbroeck, o Admirável, no seu livro O ornamento das núpcias
espirituais, no capítulo 66, afirma: «Quanto mais alto sobe o amor,
mais tem repouso, e quanto mais o repouso é profundo, mais o amor
é íntimo: um vive no outro. Quem não ama, não tem repouso, e quem
não saboreia o repouso, não tem amor» (lé). Saborear o repouso — bela
proposta para ensinar a viver o tempo-livre! Belo projecto de apos-
tolado, para quem consagra o seu tempo a Deus e aos irmãos!

D) A oração. Falo aqui de oração como intervenção profética na


sociedade de hoje e de sempre. Que será mais originante da nossa
acção no mundo? Que maior cultura podemos transmitir, do que a
sabedoria de Deus nas nossas vidas? Na ordem da vivência, a
política da oração supõe uma prática permanente de apostolado.
Não podemos fazer da oração uma fuga à disponibilidade apostólica.
Mas a oração — se é verdadeira — leva à atenção, acolhimento e acei-
tação do outro, da sua dignidade, do seu espaço de afirmação. Agustina
Bessa-Luís, a propósito de certo personagem de um dos seus romances,
escreve: «Estava sozinho, sem amores, sem ligação com as criaturas
senão por uma espécie de mística alta e fraternal que o defendia de
todas as cóleras e de todo o trato difícil» ("). Não será este o retrato
de alguns de nós, quando fazemos da oração uma defesa, um recuo, e
não o encontro e a procura do mundo?

Conclusão

Foi longo este percurso e ao mesmo tempo demasiado rápido.


Não pretendi explicitar o que o mundo tem para nos oferecer, mas
aquilo que nós — consagrados — podemos aceitar do mundo e trans-
miti-lo evangelicamente aos homens e mulheres do nosso tempo.
A sociedade portuguesa tem as suas características específicas que já
foram e serão evidenciadas aqui por outros intervenientes. Urge aceitar
o desafio de nos dispormos a uma permanente auscultação da verdade,

(16) Ruysbroeclc, rAdmirable, Oeuvres, tome III, «L'ornemeiit des noces


spkituelles», Bruxelles, Vramant, 1928, p. 180.
(17) Agustina Bessa-Luís, O susto, Lisboa, Guimarães editores, 1958, p. 310.

57
venha ela donde vier. Creio que a citação do. P. Jacques Sommet,
no seu belo livro A hortra da liberdade, de que já fiz alguma trans-
crição, nos pode ajudar a situar o lugar da cultura no tempo e no
espaço quotidianos: «Entre o que se chama habitualmente o social,
mas que traz nos seus flancos muita outra coisa, e o momento do que
se chama a acção política, existe o intermediário da formação política;
desprezando-o arriscamo-nos a passar brutalmente do social ao político,
ou mesmo a ficar à margem da política. Este entre-dois é o nível cul-
tural; é, segundo Gramsci, o lugar dos «intelectuais orgânicos», o lugar
dos homens que formam cidadãos» (18). Pode haver gente mais «inte-
lectual orgânico», do que uma pessoa consagrada a Deus, na Igreja e
na sociedade civil?
Quero concluir com o texto de um poeta português contemporâneo,
Fernando Guimarães. O poema ohama-se Arúspice, o sacerdote pagão
que, na antiguidade clássica, predizia o futuro pelo exame às entra-
nhas das vítimas. «Observadores do interior», arúspices, somos nós,
ao mesmo tempo sacerdotes e vítimas, consagrados no altar do sacri-
fício à maior glória de Deus e ao bem mais universal dos homens e das
mulheres, nossos irmãos:

«Meu amor, as entranhas das vítimas conservam o seu enigma,


o fogo dos altares apagou-se lentamente,
talvez como outrora já não venham as pombas
alimentar-se de palavras em nossas mãos erguidas.

Pelo céu os cometas passaram mas a memória esquece


o vestígio de sangue que nos deixa o seu brilho.
A areia secou os rios, as nascentes,
enquanto só o tempo prolonga a nossa esperança.

Junto de nós, a rosa foi apenas o seu desenho de cinza,


uma criança nasce para sempre coroada de espinhos,
tornaram-se finalmente os nossos braços extensos e mais puros
para erguermos, amor, em cada cruz um homem» (19).

(18) J. Sommet, Ob. cit., p. 235.


(19) Fernando Guimarães, Os habitantes do amor, Porto, ed. do autor, 1959,
pp. 47-48. Cf. Letras & Letras, Ano V, n.° 65, Porto, 19/2/1992, p. 11.

58
Brotêria 135 (1992) 59-75

À MARGEM DA CIMEIRA DA TERRA


NO RIO DE JANEIRO
(ou os desafios do ambiente)

por PAULO ERBRICH, S.J. (*)

A terra não pode já considerar-se uma cornucópia inesgotável


nem uma lixeira sem fundo. E também nenhum dos mais de 150
Estados do mundo podem considerar como questão puramente nacional
interna a utilização da natureza dentro do seu próprio território.
Os gases dos escapes, por exemplo, invadem em pouco tempo toda
a camada (inferior) da atmosfera. Todos neste ponto são ao mesmo
tempo réus e vítimas, ainda que em medida diversa. Se se têm de
assegurar as condições de vida fundamentais de todos os habitantes
do globo, assim como as possibilidades de um desenvolvimento susten-
tado (sustainable) dos países pobres, é inevitável uma cooperação
internacional que implique alguma restrição da soberania nacional.
Esta ideia levou, há agora vinte anos, a uma conferência inter-
nacional, «United Nations Conference on Human Environment», em
Estocolmo 1972. Contrastes ideológicos entre Leste e Oeste e entre
Norte e Sul bloquearam então em larga medida as perspectivas de
êxito. Mas um êxito se tem de reconhecer: O problema do ambiente
ficou desde então nas agendas internacionais junto ao problema da
corrida aos armamentos e ao do subdesenvolvimento de numerosos
povos.

(*) Professor da Faculdade de Filosofia S. J., Munique.

59
Chegou agora o momento de repetir a tentativa sob o signo de
uma ameaça mais premente de destruição do ambiente. E foi a
«United Nations Conference on Environment and Development
(UNCED) Rio de Janeiro de 1-12 de Junho de 1992. Foram previs-
tos 7000 membros de delegações governamentais, 10 000 homens dos
mass rrmãia e 25 000 representantes de organizações privadas. E isto
num cenário outrora maravilhoso de uma cidade agora degradada à
condição de megalópolis, em decadência económica e social, num dos
maiores países em desenvolvimento, hoje em situação de uma crise
generalizada e em parte auto-individada (repare-se na lendária corrupção
entre a casta política do Brasil).
O estímulo inicial para a 'Conferência do Rio veio da Comissão
Mundial para o ambiente e desenvolvimento, sob a presidência da
Primeira Ministra da Noruega, Bundtland. O relatório final da Comis-
são para 1987, propugnava um desenvolvimento global sustentado
(sustainable development); sustentado significava: sem destruição das
bases ecológicas da vida. Desenvolvimento sustentado tomou-se o lema
da Conferência do Rio: A preparação da Conferência teve a partici-
pação de numerosos grémios. Repare-se, por exemplo, na «Business
Council for Sustainable Development» sob o impulso do Secretário
Geral da Conferência, o canadiano Maurício Strong, ele mesmo empre-
sário e em 1972, Secretário Geral da Conferência de Estocolmo, sob
presidência do grande empresário suíço Stephan Schmidheiny, o qual
no maior complexo cimenteiro do mundo «Holderbank», acabou com
a produção de cimento armado carregado de asbesto «Eternit», por
motivos ecológicos. Insistiu com 48 gestores de vértice para em con-
junto criarem as condições prévias de um crescimento sustentado.
Entre outras coisas, intentou persuadir os governos que deviam con-
trolar menos o trabalho do que as matérias primas e energia, assim
como a produção dos detritos.
Outro exemplo foi a segunda conferência mundial sobre o clima,
realizada em Genebra no Outono de 1990. Tinha como documento
de base o relatório do «painel intergovernamental sobre mudança
climática», no qual tomaram1 parte mais de uma centena de cientistas.
Em consequência disso deveriam os países industriais obrigar-se a esta-
bilizar a produção de bióxido de carbono (CO2) até ao ano 2000
ao nível de 1990 e de o reduzir em 20% até ao ano 2010.

60
Do programa da Conferência do Rio constam três dossiers:
— Um respeitante a uma declaração básica de princípios a firmar
pelos governos, com o título de «Earth Charta», que define os direitos
e deveres no tratar com a Natureza. Dela se espera uma eficácia seme-
lhante à da «Declaração Geral dos Direitos do Homem» de 1948.
A «Agenda 21», ou programa para o século XXI, quanto à
implementação dos princípios constantes da «Earth Charta». As orien-
tações para a acção apontam em duas direcções concretizadas no
título da Conferência-Defesa do ambiente: Medidas contra o efeito de
estufa, a destruição da camada de Ozono, a poluição das águas (águas
subterrâneas, mares, rios), erosão dos solos, desaparecimento das
espécies, etc.
— Desenvolvimento. Superamento da pobreza pela abolição das
fronteiras comerciais, transferências de capitais e tecnologias, comutação
da dívida em obrigações de defesa do ambiente (Swaps), etc.
— «Convenções», tratados concretos para defesa do clima mundial,
das florestas tropicais e da diversidade das espécies.
Durante a preparação da Conferência do Rio revivesceram velhas
rupturas. O «Grupo 77» (países em desenvolvimento) querem preferen-
temente conversações sobre o segundo ponto, ou desenvolvimento, com
o «Grupo 7» (os 7 países mais industrializados do Ocidente). Só depois,
se declaram dispostos a falar sobre o primeiro ponto (destruição do
ambiente) pois definem o subdesenvolvimento e a pobreza como a
primeira destruição do ambiente. Muitos países industrializados a
começar pelos Estados Unidos, não querem obrigar-se financeiramente.
Pensam na dívida própria que é muitas vezes maior que todas as
dívidas dos países em desenvolvimento tomados em conjunto, e na
pobreza a crescer no próprio país. A Comunidade Económica Euro-
peia não pode contar com ofertas generosas em razão do que passou
na sua própria vizinhança: o colapso económico da Europa do Leste
e da ex-União Soviética que apresenta um potencial de desestabiliza-
ção extraordinariamente ameaçador.
Não é preciso ser profeta para predizer que se não pode chegar
a nenhum tratado com força jurídica obrigatória. Mas já as declarações
de intenção de um foro internacional como este têm o seu valor.
Conduzirão a ulteriores tratativas, finalmente a contratos efectivos a
respeito de um problema de ambiente de cada vez. Teve-se experiência
disso aquando do primeiro tratado sobre o ambiente com êxito que foi
sobre a defesa da camada de ozono, no protocolo de Montreal de 1987

61
e seu reforço em 199.0. De ambas as vezes realizaram1 conferências
aparentemente sem êxito, em Viena e Bergen (Suécia), as quais de
início apenas levavam a piedosas declarações de intenção.
Aliás o tempo urge. Não se pode parlamentar até se encontrar a
melhor solução para todos os problemas e para todas as nações con-
cordarem. Tem de se chegar a acordo sobre um problema central e cuja
solução impõe, por assim dizer de maneira automática, a de muitos
outros problemas. Não é difícil encontrar um problema assim.

O problema da energia

Não é possível crescimento económico nem sustentado nem muito


menos ilimitado, sem energia. Porém a energia que utilizamos é prin-
cipalmente de origem mineral. Mas o consegujmento de energia mineral
é por um lado limitado e, por outro, gera na sua utilização aquela libe-
ração de gases responsáveis pelo efeito de estufa. Ademais ilustra este
problema, mais impressionantemente que outros, a grandeza quantita-
tiva da crise ecológica e as sequelas profundas da sua resolução.
Se a terra é limitada, então tem o crescimento da população, assim
como o da economia, de chegar um dia ao seu termo. A afirmação é
evidente e mesmo trivial. Para as perguntas «como?» e «até quando?»
não existe resposta. Muitos dos nossos contemporâneos dos países ricos
consideram o crescimento da população como o autêntico e último
poluidor do ambiente. Se existissem apenas dois mil milhões de
homens como acontecia em 1930 em vez dos 6000 milhões de hoje,
todos os problemas se resolveriam sem dificuldade. Ora toda a expe-
riência empírica na Europa e alhures mostra que o número de filhos
por família diminui (por um meio ou por outro), se o bem-estar
aumenta. De facto, a utilidade económica de ter muitos filhos diminui
com o aumento dos equipamentos materiais e da segurança; e o mesmo
se diga da necessidade de filhos para cuidar dos idosos. Se numa terra
utilizada já intensivamente se descobre algum potencial de crescimento
económico, então esse potencial deve reservar-se para os países em
desenvolvimento. Os países ricos têm de suster o próprio crescimento
económico. Mas são os mesmos que promovem para os países em desen-
volvimento uma paragem no aumento da população «por qualquer
meio» (mas como? com a esterilização forçada? abortos impostos?

62
suspensão dos direitos humanos?) que ordinariamente consideram uma
paragem no crescimento económico como simplesmente impossível e,
ademais, não necessária.
• Os economistas provam que a economia tem de crescer. Como um
avião para andar para a frente precisa de um mínimo de velocidade
sob pena de se despenhar, assim a economia tem de crescer sob pena
de, definhar. De facto ela é um sistema com sobrecarga de ciclos norma-
tivos. O progresso técnico rescalda a concorrência e esta, por sua vez,
o progresso técnico. Mas o progresso técnico não pode parar. E uma
economia de mercado é impensável sem a concorrência.
Os sociólogos previneriMios que, sem crescimento económico, se
originam lutas incontroláveis de distribuição. De facto, não se pode
tirar a ninguém o que já tem para dar a outros que têm muitíssimo
menos. Na' melhor das hipóteses será possível distribuir o aumento
acabado de realizar. E todos, quer os ainda pobres quer os já ricos
esperam, pretendem e exigem mais ingressos ainda O mesmo quando
todos deviam saber que cada marco suplementar nas contas gasta ine-
vitavelmente energia, matéria prima e terreno suplementar, gerando
também detritos suplementares. Sabe-se que este marco suplementar
nem será enterrado, nem inteiramente aplicado aos países em desenvol-
vimento, (como seria tremendamente necessário), nem desviado por com-
pleto do consumo, de modo a:
— melhorar o grau de eficácia do uso da energia;
— desenvenenar e diminuir a produção de detritos;
— reciclar os detritos;
— dar forma biologicamente à agricultura.
Em suma, tomar medidas de racionalização de segunda ordem,
em oposição à primeira ordem referente ao aumento da produtividade.
É precisamente isso que fazem os países altamente industrializados;
Chama-se crescimento qualitativo (ao contrário do quantitativo)! E com
razão mas lamentavelmente só se faz no âmbito em que as medidas
de racionalização da primeira ordem — e com isso o aumento de

(!) Os sindicatos metalúrgicos e da Administração Pública a Banca na RFA


por ocasião das tratativas salariais deste ano exigiam um aumento não inferior
a 10% para cobrir não só uma inflação menor mas ainda unia «justa» participa-
ção no aumento da produtividade. Não se vê nem rasto de disponibilidade para
partilhar com os que dispõem de muito menos.

63
ingressos — não é posto em risco. É que o per capita de energia pri-
mária, no primeiro e segundo mundo, cerca de 6 toneladas SKE (2)
ou 5,6 Kw/ano, mal deminui e o uso das duas formas mais valiosas
de energia secundária — combustível e electricidade — aumenta sem
cessar com a subida dos ingressos, ainda que a eficiência do emprego
destas formas de energia melhorou substancialmente. A gente dispõe
sempre de mais dinheiro, poupa mais em compras; mas adquire tam-
bém carros mais potentes, faz viagens mais rápidas e mais frequentes
e enche cada vez mais os aviões a jacto.
Os 5,6 Kw citados são um valor médio. Porém isso encobre
diversidades, como se vê pelas tabelas seguintes:

Consumo ânuo de energia «per capita» segundo os «países» (1987)

Primeiro Mundo Segundo Mundo Terceiro Mundo

Canadá 13,2Kw URSS 7,lKw Argentina e Coreia Sul 2,lKw


USA 10,5 Checo-Esl. 7,0 México 1,8
Suécia 9,3 Polónia 4,9 Taiwan 1,6
Alemanha Oc. 6,5 Hungria 4,4 Brasil 1,2
Alemanha Leste 5,4 China Cont. 0,8
Ambas 6,8 Índia 0,3
Suíça 5,9 Tanzânia 0,05
França 5,4
Japão 4,6
Itália 3,9
Espanha 2,8

(2) SKE, Steinkhleneiheit = «equivalente a carvão». Com frequência aparece


a energia expressa em petróleo (= Oe, oil equivalent = 1,4 t SKE; t = tonelada)
ou em unidades de electricidade (6 ,t SKE = 5,6 kW; kW = kilowatt). SKE é
uma unidade de energia tipicamente alemã. Por isso, daqui para diantes apresen-
tamos a energia em unidades internacionais de electricidade, com as quais se
exprime não só a energia eléctrica masi toda a espécie de energia. De facto
toda a espécie de energia é convertível na outra (calor, electricidade, etc.).

64
O aumento do consumo de energia favorece principalmente as
nações industriais, o que se vê também nas tabelas seguintes:

Consumo ânuo de energia primária

1930 (1950) 2000 Aumento

População mundial 2000 milhões 2,500 milhões > 6000 M. 3X1,65%


Energia primária 1,86 TW 2,32 TW c. 11,2 TW3 6X2,6%

Consumo ânuo de energia primária «per capita»

1930 (1950) 1990 Aumento

Países industrializados 1,8 Kw 1,86 Kw 5,6 Kw >3X


Países em desenvolvimento 0,37 Kw 0,35 Kw 0,56 Kw (pouco)

Se os países em vias de desenvolvimento querem atingir o nosso


nível, para uma população mundial de 10 ou 15 mil milhões, têm
de cada ano dispor de 46 ou então 70 TW (3) de energia primária,
ou seja 5 a 8 vezes a quantidade actual. E mesmo isso não bastaria
para que atingissem o nosso standard pois então só para se porem
à disposição os suportes de matéria prima ou de água potável, se
exigiria um múltiplo por tonelada de energia empregada hoje, para
não falar já das verbas de manutenção. Tal intensidade de energia
não seria factível: mas isso significa que a nossa civilização não se
pode copiar e no entanto o deveria ser, pois os olhares de todos se
viram para nós com desejo de nos imitar que isso nos convenha
agora quer não convenha.
Teríamos contudo de ser imitáveis e o nosso crescimento teria
de tornar-se qualitativo. Isto é: muita coisa deve crescer mas não

(3) TW = Terawatt ou mil milhões (1012) de WATT; são bem 12 mil


milhões 't SKE ou 8,6 inil milhões t Oe.

65
s
tudo. O produto social bruto (PSB) pode aumentar sob condição de que
o consumo per capita de energia mineral e de matérias primas assim
como a produção de detritos per capita diminuam continuamente.
Falando apenas de energia, quanto teria o consumo de diminuir?
Para se chegar a algum resultado deveria no primeiro e segundo
mundo (ou seja no mundo industrializado do Leste e do Oeste) esse
consumo baixar de 5,6 (3,7) para 1,9 Rw (de 6 para 2 SKE) por
cabeça e por ano até ao final do primeiro quartel do próximo século.
Trata-se, bem entendido, de energia mineral — petróleo, gás e carvão —
e não de energia primária em geral. Estes 1,9 Kw por cabeça deveriam
reservar-se para o tráfico, como matéria prima para a Química, para
a transformação do carvão em combustível líquido.
É difícil no entanto encontrar substituto completamente e em
pouco tempo para esta quantidade:
— por abastecimento de energia não mineral (e apenas existe uma
que é a nuclear);
— e/ou por fluxos de energia renovável (e só existe um tal fluxo,
que é a energia solar, directa ou indirecta. Exemplos de energia
solar indirecta: energia hídrica e lenha).
Significa isto que temos de contentar-nos com menos energia;
temos não só de chegar a um estilo de civilização mais eficiente, mas
também mais pobre em energia; teríamos também de diminuir o
número de «escravos de energéticos», ou dos «serviços de energia»:
pelo menos não os aumentar. Por outras palavras: A inflacção das
exigências provocada do exterior pela economia condenada ao cres-
cimento e de dentro pelas mentalidades dominantes nos próprios
agentes económicos (vg. o maior autocrescimento possível, a maior
exoneração e emancipação possível, a maior igualdade mesmo na pro-
priedade) tem de ser travada e então o nível de exigência terá de baixar.
Mas ninguém parece estar resolvido a isso. É o que se vê em todas
as alternativas que prometem aos seus partidários a cura de todos os
males e isso sem custos no respeitante ao conforto. Mas por que
razão deveríamos nós renunciar no decurso de uma geração a 3,7 Kw
por cabeça de energia mineral?

66
Solidariedade com as nações pobres

Os países industrializados devem o seu bem-estar não só à sua


inteligência e diligência mas também a uma energia:
— que foi durante muito tempo incrivelmente barata (2 dólares/
/barril em vez dos 20 de hoje);
— que era de fácil refinação, transporte e armazenamento;
— q u e se pode utilizar para todos os fins imagináveis: cozinha,
calefação, refrigeração, fabrico de corrente, propulsão de
motores, etc.
Falo do petróleo e, em menor medida, também de gás natural.
Qualquer substitutivo que se pense para este hidrato de carbono será
muito mais caro, mesmo havendo abundância desse substitutivo, pre-
cisamente porque a preparação e aplicação serão mais complicadas do
que as do petróleo — quer se trate de urânio quer de energia solar.
Mas alguém acredita a sério que os países em desenvolvimento
poderiam chegar a um resultado de maneira diferente, isto é sem
energia complexa e por isso mesmo mais barata? Se não é esse o caso,
então o petróleo tem de continuar a ser a questão mais importante
dos países em desenvolvimento (talvez metade do petróleo originaria-
mente existente) (4) pelo que os actuais grandes consumidores devem
evitar o petróleo e passar a outro sistema de energia e isso (o que é
decisivo) antes ainda de se tornar economicamente rentável, antes de o

(4) Há cerca de 20 anos estimava o geólogo King Hubbert a quantidade


global originariamente existente técnica e economicamente explorável em cerca
de 2000 mil milhões de barris e ninguém o tomou a sério. Mas as estimativas
mais recentes de três membros do US Geological Survey (cfr. Science 253, 146-152
[12.7.1991]) confirmam a estimativa de King Hubbert.
— Quantidade originária de petróleo existente = 2079 mil milhões de barris
(100%);
— Reserva mundial comprovada 922,1 mil milhões de barris ( = 44,3%);
— Quantidade ainda a descobrir = 547 mil milhões de barris (=26,3%;
limite superior da estimativa 945; limite inferior 275 mil milhões de
barris;
— Quantidade global utilizada até hoje 610,1 mil milhões de barris; dos
quais uma metade nos últimos 16 anos!);
— Produção global do ano 1988 21,3 mil milhões de barris (= 3,04 mil
milhões em bruto).

67
petróleo se tornar escasso e assim o seu preço duplicar ou triplicar;
pois então o .petróleo ficaria quase inacessível aos países em desenvol-
vimento e a superação da sua pobreza ficaria bloqueada para sempre.
O abandono rápido do petróleo é a melhor ajuda a largo prazo a
prestar aos povos em desenvolvimento, é urgente, pois, a largo prazo o
petróleo de aplicação múltipla é escasso. Os USA ultrapassaram o
ponto mais elevado da sua produção em 1970. Os países da ex-União
Soviética atingilo-ão ainda neste decénio, se é que vão de novo
levantar-se. As jazidas ainda grandes e de exploração favorável encon-
tram-se principalmente nos países em desenvolvimento, sobretudo no
Golfo Pérsico e entre a foz do Mississipi e a do Orinoco. O carvão
que é muito menos polivalente e menos limpo encontra-se principal-
mente nos países industrializados do primeiro e segundo mundo do
Hemisfério Norte e na República Popular da China. Nós, os países
industrializados preservámos os nossos depósitos de energia para esgo-
tarmos antes os dos povos em desenvolvimento, porque eram não só
mais facilmente atingíveis mas também eram mais baratos de adquirir
do que o nosso carvão e ainda o são.
Mas se nos não mover em alguma medida a equidade e a justiça
para com os povos em desenvolvimento na direcção do afastamento e da
transformação, então talvez o efeito de estufa o consiga.

Travagem do efeito de estufa

A terra tem de irradiar de novo para o espaço cósmico a energia


que recebe do Sol, sob pena de sobreaquecimento. É o que acontece
pelas ondas infravermelhas. Ora muitos dos chamados gases de jacto
irradiam para a atmosfera em infra-vermelho. Quer dizer, absorvem
certas partes do espectro da irradiação calorífica que vem da terra e
remetem-na em todas as direcções num comprimento de onda um pouco
maior e não só para fora, para o espaço cósmico, mas também para
trás em cerca de metade, na direcção da terra, que então aquece como
se se encontrasse sob uma cobertura de vidro.
O mais frequente e efectivo desses gases é o vapor de água, cuja
concentração oscila fortemente segundo as variações do clima. Se ele
falta, a terra arrefece rapidamente e há riscos de noites de geada mesmo
no Sara. Se é abundante, as noites tornam-se abafadas e não se dá
nenhum refrescamento.

68
O segundo gás vaporoso mais frequente é o bióxido de carbono
2
(CO ) que não apresenta variações regionais (mas só sazonais) de
concentração e cuja média de concentração sobe lentamente. Em um
milhão de moléculas de ar encontram-se 350 moléculas de CO2. A parte
de CO2 no ar aumenta continuamente desde meados no século XIX,
primariamente no seguimento da combustão de energia mineral e, secun-
dariamente, desde há pouco, em razão da redução da cobertura florestal
(não só nos trópicos mas também na Sibéria).
Qual a velocidade da subida de CO2 na atmosfera? Qual o seu
efeito? Pensa-se que a energia mineral disponível comprovada por
modernas técnicas — o u sejam as chamadas reservas de petróleo, gás
natural e carvão— atingem em todo o mundo 840 TW e as reservas
possíveis, os chamados recursos, cerca de 12 000 TW. Se o consumo
anual do mundo em energia mineral não aumentasse, teríamos reservas
para 90 anos.
Estas reservas contêm 500 000 milhões t. de material elementar
de carvão (C). A sua combustão gera mais de 1800 milhões t. de CO2.
No caso de no futuro se não utilizar no mundo mais energia mineral
do que hoje — portanto não mais de 9,3 TW por ano — então o com-
ponente CO2 da camada atmosférica duplicará em 90 anos, ou seja
até ao ano 2080.
1880: 615 milhões t. C no total da camada atmosférica
1990: 743 000 milhões t. C
2080: 743 + 500 = 1243 000 milhões t. C.
Esta duplicação poderá já acontecer quarenta anos mais cedo se
o Terceiro Mundo liberto das suas dívidas se lançar no caminho do
êxito e em consequência o gasto de energia no mundo subir na modesta
percentagem de 2% ao ano.
É verdade que o componente CO2 da atmosfera não aumentou tão
depressa como o consumo da energia mineral. De facto, o mar absor-
veu até agora cerca de metade deste gás. Mas isso é largamente
coberto pela emissão dos restantes gases derivados do progresso técnico
e económico (óxidos asfixiantes ...). Estes gases vaporosos são mais
eficazes de 10 até 1000 vezes mais do que o bióxido de carbono.
Ademais, o poder de absorção do mar diminui com o aumento da tem-
peratura e teme-se mesmo que os oceanos possam expelir de novo o

69
bióxido de carbono já absorvido, dando-se o aumento do aquecimento (5)
assim como a acidificação do mar (6). Além disso, o sedimento dos mares
assim como os solos geláveis da tundra contêm enormes quantidades
de metano. Também esse poderia ser expelido com o aquecimento.
São conhecidas as possíveis sequelas: Subida da temperatura média
entre 1,5o e 4,5° gr.C. conforme a teoria e o grau de extensão — menos
nos Trópicos e mais no Ártico. Como sequência do aquecimento temido,
espera-se o afastamento da cintura climática mais para Norte, uma
mitigação do contraste entre Verão e Inverno, aumento de extremos
no clima, antes de mais pelas tempestades, o derreter das camadas de
gelo polar, a subida do nível do mar entre 30 e 100 centímetros.
Daí a ameaça às cidades costeiras e terras fundas, deterioramento da
situação alimentar por os terrenos cerealíferos se afastarem para zonas
semi-desertas; as regiões mais humedecidas agora na orla da zona
tropical tornar-se-iam menos produtivas do que as faixas de terra que
se perdiam.
Possivelmente esta evolução é inevitável, mas pode ser substancial-
mente adiada se o consumo mundial de energia mineral na próxima
geração pelo menos se estabilizar e na seguinte começar a baixar.
Há uma diferença enorme se o nível do mar começa a crescer daqui
a 20 ou daqui a 200 anos. Se o emitir de CO2 baixar pode esperar-se
que os oceanos possam absorver crescentes quantidades dele.

Objecções contra esta proposta política

Mas um programa de redução do consumo per capita é considerado


completamente utópico. Não por ser tecnicamente impossível ou por
não se poderem imaginar mecanismos de mercado que favoreçam tal
evolução ou mesmo a forcem (como internalização dos custos externos,
imposição da energia, e para isso menos fiscalidade do trabalho, elimi-
nação da indexação automática, fixidez de licenças, ou certificados, etc.)
mas, uma vez que não queremos, consideramos impossível tal programa
e mesmo improponível, por mais lógico, razoável ou moralmente obri-
gatório que seja. E contudo podemos dormir tranquilamente, continua-

(5) Cfr. Nature 339, 19 (4.5.1989).


(6) Cfr. Science 252, 1750-1792 (28.6.1991).

70
mos viajando por todo o mundo, inventando pretextos e ainda espe-
rando por milagres. Exemplos:
•Primeiro pretexto: Dizemos: «Utilizemos a maior fonte de energia
não empregada; a saber procuremos um produzir e aplicar eficiente da
energia; a técnica já baixará massivamente a necessidade específica de
energia para meios de produção, de consumo de bens e de serviços;
aliás a indústria trabalhou sempre pelos seus meios de produção.
Um exemplo: Se se consegue aumentar a eficiência de uma
bomba de caldeira de 20 MW ainda que seja só um 1%, leva isso,
numa empresa de 7000 horas de funcionamento por ano, a uma pou-
pança de corrente de 1,4 milhões de Kw/h (orçamento anual de cerca
de 400 lares modernos) e — com um preço industrial de 10 cavalos
por Kw/h — também a uma poupança de 140 000 francos suíços, o
que não é pequena soma, se uma empresa se vê forçada a reduzir
os custos.
Nas famílias, a pressão da poupança não é de longe tão grande.
As novas grandes televisões a cores já não chegam a gastar 200 W
como até à pouco, mas ainda vai tardar muito até que as famílias
tenham televisões baratas com metade da eficiência aludida. Ademais
nunca chegarão a ter que chegue com 20 W.
Mas há coisas que facilmente se deixam de considerar: É que o
progresso produz também efeitos contrários. Para fabricar determinada
quantidade de corrente numa central térmica a combustível mineral
é preciso hoje mais energia do que há apenas 10 anos. De facto a
corrente tem de ser limpa. E para a liberar do gás têm de se manejar
só na Alemanha Ocidental, milhões de toneladas de cal e gesso, o
que dificilmente se consegue sem quantidades adicionais de energia
que antes se não requeriam.
Apesar de automóveis menos dispendiosos, aumenta continuamente
o gasto de combustível e, precisamente nas nações mais ricas corno a
Suíça; apesar de aparelhos de menos consumo, aumenta também o
consumo da energia. Porquê?
— Porque a indústria se automatiza e automação seria impossível
sem electricidade.
— Porque o sector dos serviços executa cada vez mais tarefas com
o computador.
— Porque o número e a espécie de canais de informação são
literalmente explosivos.

71
— Porque comboios e autocarros se tornam mais rápidos e cómo-
dos e para isso são cada vez mais pesados. Os comboios rápi-
dos da SBB — Caminhos de Ferro Suíços — pesavam umas
30 t. e hoje 50. E, para mais, estão climatizados porque o
exigimos. A SNCF (Caminhos de Ferro Franceses) anda a
300 km/h; a DB (Caminhos de Ferro Alemães) a 250 e a
SBB pretende chegar a 230.
— Porque as famílias europeias contribuem para o processo.
— E porque a purificação da água e do ar assim como a recicla-
gem não são possíveis sem muita energia.
De nada aproveita baixar em 20% o consumo energético espe-
cífico ou a carga específica do ambiente em determinado processo
de produção se, ao mesmo tempo, a produção sobe em 30%.
Exemplo: Muitas televisões, vídeo-cassetes, computadores, telefax,
etc. estão 24 horas por dia em funcionamento, sem falar em máquinas
de café, fotocopiadoras nas repartições (ordinariamente trabalham nove
horas mas precisam de bastante mais corrente). Se pressupomos que
hoje existem já na CEE 150 milhões destes aparelhos, cuja disponibi-
lidade exige em média uns 20 W, não chegariam três grandes centrais
de uns 1000 MW em funcionamento ou não bastariam na Áustria
outras tantas centrais do Danúbio.
2." pretexto. Diz-se: O Sol fornece facilmente 15 000 vezes mais
energia do que nós gastamos. Isso chega perfeitamente para cobrar
as nossas necessidades de hidrogénio solar. Este «messias» virá pro-
vavelmente; mas não tão rápido e forte como nós desejaríamos.
Quantas chapas colectoras tinham então os países industriais de
montar para, no espaço de uma geração, substituir 3,7 Kw por cabeça
de energia mineral para equipar 1,41 milhões de habitantes do pri-
meiro e segundo mundo, com hidrogénio solar pronto a usar.
O grau de eficiência do conjunto desta máquina de energia em
actividade permanente é de 8%. O valor distribui-se da maneira
seguinte:
— Grau de eficiência da conversão da luz em corrente nas cha-
madas células fotovoltaicas, 15% (na realidade exteriormente e não
só no interior do laboratório);

72
— Grau de eficiência de des-salinização e electrólise de água do
mar, 60%;
— Grau de eficiência do transporte, 90% (7).
Se as chapas colectoras se encontram em território deserto, no
Sara por exemplo, então há uma disponibilidade de 250 W por metro
quadrado. Daí uma superfície colectora de 260.000 km2, igual à super-
fície da Alemanha Ocidental. Acresce a isso o espaço necessário para
vias de serviço entre as chapas colectoras, para fábricas de electrólise,
oficinas de reparação, alojamento, etc. numa superfície talvez ainda
de 100.000 km2. Cada ano deviam construir-se mais de 10.000 km2,
o que se estima que exigiria um décimo da produção mundial de
matérias primas (8).

Cálculo
Pressupostos
— 3,7 kw por cabeça e ano para 1,4 mil milhões de habitantes
nos países industrializados.
— 250 Wm~ 2 no Sara. Grau de eficiência de conjunto, 8% ou
20 W - 2 .
— Energia E, que devia ser substituída por hidrogénio solar:
E = 1,4 . IO9 cap. 3,7 kW cap.- 1 = 5,2 TW

Superfície colectora exigida A:


5 2 IO12 W
A = — ^ — = 260 . IO9 m2 = 260.000 km2
2
20 W m -
Superfície para serviços... (mínimo) = 100.000 km2
Conjunto de superfície = 360.000 km2
Quando é que o hidrogénio solar constituirá um suporte do nosso
fornecimento de energia? Ainda antes de se esgotar a metade do total
do petróleo e do gás natural? Isso é mais do que duvidoso.

(?) Grau de eficácia total: 0,15 X 0,6 X 0,9 = 0,08.


(8) Para 20 kg de betão, ferro, alumínio, vidro, cobre, silício, etc. por m2,
tomos 200 milhões t de material por ano. A produção mundial de matéria prima
mineral aportou à volta de 655 milhões t. em 1980. Se fosse exigido um décimo
disso teríamos 6,5 kg de metal por m2 o que seria demasiado pouco com toda
a probabilidade.

73
Naturalmente seria insensato querer realizar o cenário que acabá-
mos de desenhar. Pois parte dos 3,7 IkW iremos poupá-los por aumento
de eficiência. Outra parte pode ser produzida in loco descentralizada-
mente em superfícies já em uso (telhados, parques, paredes, sonori-
zantes, etc.). Aliás, na Europa Central dispõe-se apenas de 100 W m - 2 .
Outra parte pode ser coberta por utilização passiva da energia solar e
por uso do calor ambiente, por meio de bombas de aquecimento.
No final fica talvez ainda um resto de 2 Kw para o projecto Sara, mas
sempre 140.000 km2 de chapas colectoras.
Se a antiga RFA quiser substituir os 25 milhões de toneladas de
gasolina que anualmente consome por hidrogénio solar, terá de cons-
truir no Sara 1900 km2 de chapas colectoras ou então 4750 no próprio
território. Isso, com a superfície de serviços de 10 000 km2 — o corres-
pondente a um quarto da superfície da Suíça.
O maior problema das centrais solares é o período de amortização,
isto é, o tempo durante o qual a central devia funcionar para pagar a
energia gasta na construção. Em razão da enorme intensidade de mate-
riais colectores calcula-se esse tempo em cerca de entre 10 e 20 anos,
ou seja entre um terço e metade da duração. Donde deverá vir essa
energia? Das fontes tradicionais da energia mineral? Comparativa-
mente, lerabre-se que o tempo de amortização das centrais tradicionais
é inferior a um ano.
Terceiro pretexto: Dizemos espantados que os habituais prognós-
ticos do clima são inteiramente inseguros e possivelmente falsos. Talvez,
mas ... e daí que se segue? Se se trata de sobreviver não é lícito
arriscar. Nesse caso a acção deve seguir a orientação do prognóstico
mais pessimista. Então quanto à nossa questão o aviso «Longe do gás»
tem o mesmo significado que para o motorista numa auto-estrada em
nevoeiro cerrado. Esta é a lei férrea de prevalência do prognóstico
negativo que Hans Jonas tornou popular (9).
Se estas reflexões são conclusivas, ainda que seja apenas a 50%,
dá-se pelo menos a exigência seguinte, ademais de baixar o consumo
de energia mineral e de aumentar a eficiência no uso da energia: Que
não haja novos bens de consumo e serviços além dos já necessários.

(9) Hans Jonas, Das Prinzip Verantwortung, Francforte, 1979, pp. 70-79.
Cfr. também «Declaração conjunta da Igreja Evangélica da Alemanha e da Con-
ferência dos Bispos Alemães», Verantwortung wahrnehmen ftir die Schõpfung
do ano 1985, Colónia (n.° 36) 1985.

74
Inovação, sim; mas só para melhoramento dos existentes e para racio-
nalização de segundo nível, isto é para empreendimentos que melhorem
a eficiência do consumo de energia e matérias primas. Se a televisão
só agora aparecesse, teríamos de renunciar a ela. Veja-se que num jogo
importante de «foot bali» na RFA onde funcionem 20 milhões de
aparelhos com um consumo médio de 150 W, terão as centrais de
electricidade de pôr à disposição 3000 MW (sem contar estúdios, emis-
sores e transformadores). Significa isso três centrais nucleares a pro-
duzir nesse tempo para distracção televisiva, ou seja, mais uma do que
para os comboios alemães nas horas de maior gasto de corrente.
Com isso o crescimento económico será estrangulado, a crise da
economia pré-programada, e a eco-ditadura introduzida. Talvez. Mas
algum dia tem de terminar o aumento do poder de compra na mão
do indivíduo ou do Estado e não será mais fácil amanhã do que hoje.
Não será mais possível partir do pressuposto que todos os problemas
se podem solucionar tecnicamente e só com o auxílio de mecanismos
sociais, isto é de maneira que o indivíduo não precisa de ser interpelado
moralmente e cada um possa gozar à sua maneira.
Isso não será fácil sem renúncia a muita coisa que parece possível
e desejável. Por outro lado, não devemos perder de vista o lucro:
Possibilidades de vida para todos (i.é, justiça) sem destruição da natu-
reza (prescindindo mesmo completamente do facto de que o aproveita-
mento de uma ulterior subida de bem-estar material será cada vez menor,
se já não é negativo).

75
Brotéria 135 (1992) 76-91

DIALOGAR? / EVANGELIZAR
por J. MASSON, S.J. (*)

Muito recentemente, com distância de dois meses, Roma publicou


dois documentos importantes, ambos referentes à apresentação de
Jesus Cristo ao mundo de hoje. Reflectindo um pouco, compreendesse
melhor a razão destas duas grandes declarações. Basta reparar na
mudança de situações e mesmo de estruturas que conhece o nosso
tempo, nomeadamente o nosso mundo ocidental, embora não ele apenas.
Algumas destas mudanças favorecem e dinamizam a expansão do cris-
tianismo, mas outras opõem-lhe obstáculos ou retardam-na.
Entre as mudanças políticas favoráveis, é preciso evidentemente
•mencionar em primeiro lugar o desabar do comunismo ateu e anti-
-religioso em muitos países. O sistema que proibia e até perseguia a
actividade eclesial interna e a sua irradiação para o exterior desmo-
ronou-se, embora as suas sequelas não tenham desaparecido comple-
tamente. É certo que este desmoronamento não trouxe, por si mesmo,
nada de positivo; mas o vazio que ele deixou permite agora relançar
vigorosamente o anúncio do Evangelho nesses países, reconstruir muitas
ruínas materiais, edificar testemunhos coerentes, apresentar nomeada-
mente a Cristo sob a figura que o mundo busca hoje tão desesperada-
mente— icomo Nossa Paz — espalhar pela palavra, quer impressa quer
falada em encontros de todo o género, o Evangelho na sua letra e no
seu espírito.

(*) Professor das Universidades Lovaina e Roma.

76
Apenas um exemplo, entre mil, mas cuja localização a dois passos
de Roma torna ainda mais flagrante: a Albânia. A Santa Sé, solícita
por tuna cristandade desprovida espiritualmente de tudo, fez-lhe chegar
ainda há pouco centenas de Missais de Altar e milhares de pequenos
missais populares, destinados a relançar uma vida litúrgica comunitária
impedida durante décadas. Mas quão mais necessários não são ainda
novos apóstolos, nesses países libertados!
Ao mesmo tempo, em todas essas eristandades, tanto os evangeli-
zadores locais sobreviventes como os que os foram recentemente refor-
çar, testemunham a uníssono que uma grande parte da juventude, a
mais aberta e a melhor, manifesta um interesse, admirativo e atraído,
pela Mensagem cristã, cujos valores lhe revelam a dimensão humana
e mais que humana da existência e um ideal digno de ser escolhido.
Mesmo observadores da cultura mundial actual descobrem ali um
ressurgimento do sentido de procura religiosa.
Mas, infelizmente, ao lado destas razões de esperança e de estí-
mulo, nota-se também mais que uma mudança deplorável.
Apesar da liberdade de que tem gozado há quase meio século,
o mundo ocidental, invadido de permissividades de todo o género,
parece que ainda não encontrou, no seu conjunto, ocasião de uma vida
religiosa mais fiel e profunda. A massa dos crentes encontra-se corroída
na sua fé pelo oceano, era geral inteiramente profano quando não
corrosivo, dos media laieizantes e sensacionalistas. Esta mesma maioria
é perturbada na sua regular prática religiosa pela invasão de distracções
de fim de semana que agora se chama week-end em vez de domingo
ou dia do Senhor. Só as minorias verdadeiramente crentes encontram
força e tempo para avançar contra a corrente da profanização da vida.
Em .contrapartida, as forças disponíveis para o apostolado no pró-
prio país ou no estrangeiro, essas forças que em todo o povo cristão
fevoroso se deveriam encontrar, tendem a rarear por toda a parte:
quer se trate de vocações sacerdotais ou religiosas para a manutenção
ou o fervor da fé tradicional quer para o anúncio missionário do
Evangelho.
Esta diminuição cada vez maior não é devida apenas ao decrés-
cimo numérico das famílias e cristãos praticantes, mas também
ao enfraquecimento das convicções religiosas de certo número de
baptizados. Em muitos meios estabeleceu-se um espírito deplorável:
não de tolerância, a qual é simplesmente uma forma necessária de

77
respeito para com as pessoas e as suas diferenças, mas de relativismo
ou de subjectivismo religioso. Não só face a ideias opostas e incom-
patíveis, mas até a crenças religiosas definidas e a «caminhos de
salvação».
Depois de se ter afirmado, talvez demasiado massivamente ou
pelo menos muito superficialmente, que «fora da Igreja não há sal-
vação»; depois de terem em seguida explicado melhor, com o Con-
cílio, que a salvação em Jesus Cristo se realiza, individual embora
misteriosamente, em qualquer homem de boa vontade que seja gene-
rosamente fiel à sua consciência conforme as luzes que tem; agora
certos teólogos querenMios fazer ver que Jesus Cristo é, sem dúvida,
o caminho da salvação para quem o reconhece como salvador, mas
que Maomé ou Krishna desempenham a mesma missão para os seus fiéis.
Estas novas posições tão simplistas não podem deixar de impres-
sionar certos cristãos, que julgam talvez ter chegado a uma «Nova
Idade» em que, na «grande praça» em que se oferecem e expõem as
diversas religiões do mundo, cada um pode fazer a sua escolha entre
os diversos produtos duma pesquisa puramente humana.
De facto, certas comunidades, ou pelo menos certos cristãos,
nunca fizeram de maneira reflectida e livre a Escolha de Crer, de
fundar a sua vida nesta crença e nesta luz: Jesus Cristo, Deus incarnado,
é o único Mestre e o único Salvador. Não se é verdadeiramente cristão
senão a esse preço, naturalmente cada um segundo as suas capacidades
reais e concretas.
Esta nebulosidade por demais estendida é de natureza a travar,
ou mesmo a desfazer, a generosidade de jovens que doutra forma
talvez se decidissem a dar-se a Cristo para o anunciar a quem o des-
conhece, numa palavra, a segui-lo.
Segundo esta concepção pluralista, cada um deve ficar onde está,
nas tarefas da própria vida, deixando às inspirações interiores de Deus
todo o cuidado de trabalhar a alma dos não-crentes... exclusivamente
no quadro das suas crenças. Ou então, limitar-se a aproximações que
reduzissem toda a acção dos cristãos ao bom exemplo ...
É nestas sociedades em mutação, em tanta confusão de ideias e
perplexidade das pessoas, que hoje, vinte e cinco anos depois das
orientações do 'Concílio, deve sobreviver, viver e estender-se a Missão
da Igreja no sentido mais total do termo: Ide por todas as nações e
fazei discípulos.

78
Mas como? ;É o que a Igreja se esforça incessantemente por mostrar
aos seus filhos e a todos. È o que procuram fazer também os dois
documentos que nos propomos agora apresentar e ponderar.
Importa indicar com exactidão, logo de começo, qual o «peso»
ou autoridade dos dois documentos.
Na escala de valores dos Actos da Santa Sé, a Redemptoris Missio
(7.XII.1990) é, dos dois documentos, o de mais «peso». Em primeiro
lugar, pela sua fornia de encíclica, assumida, assinada e proclamada
pelo Papa em pessoa. É certo que ele não compromete aí a sua infa-
libilidade, a não ser, naturalmente, naquilo que por outra via já seja
questão de fé, mas exerce a sua grave responsabilidade de Vigário de
Cristo e de Chefe visível da Igreja. A encíclica trata da função missio»
nária da Igreja, no sentido corrente desse termo que é como o entende
também o documento conciliar Ad Gentes.
O segundo documento, Diálogo e Anúncio, também não deixa
de ter autoridade, mas é menor, porque emana, não directamente do
Papa, mas apenas de um Conselho Pontifício — o Conselho Pontifício
para o diálogo com as outras Religiões. Interessa-nos sobretudo a pri-
meira parte, pois a segunda não passa de um eco da Redemptoris Missio.

I. REDEMPTORIS MISSIO

A Redemptoris Missio, como acabamos de dizer, é uma encíclica.


Desde a primeira guerra mundial não* faltaram encíclicas missionárias.
As primeiras falavam de um mundo ainda colonizado no seu conjunto
e de uma missão ainda ao cuidado do Ocidente cristão. As seguintes
tinham pela frente um mundo «a libertar-se» não sem obstáculos exte-
riores e sobressaltos interiores, e onde tinham despertado1 as consciências
nacionalistas e raciais ... Agora encontramo-nos no seio de uma ONU
de mais de 150 Estados soberanos, desde o imenso Canadá às minús-
culas ilhas do 'Pacífico... Não faltam aí, nem as ditaduras, nem as
opressões, nem as explorações. E esta observação não se limita ao
Terceiro Mundo!
Ern certo sentido, o documento Evangelii Nurtíiandi de Paulo VI,
fruto dum sínodo romano em 1975, e, antes dele, o documento con-
ciliar Ad Gentes, tinham aparecido muito cedo, em períodos de tran-
sição e de mudança, em que a face do mundo estava a modificar-se.

79
Agora esta face apresenta transformações tão grandes como ines-
peradas: o desmoronamento do comunismo na Europa em toda a
fileira de países da falecida URSS até às portas do último mas imenso
bastião comunista, a China; estamos a viver um período de apazigua-
mento global? Oxalá, seja duradoiro.
!É precisamente esta nova atmosfera de certa «liberdade de res-
piração» e de acção, que dá aos dois documentos a sua actualidade
e a sua oportunidade de serem escutados. Nomeadamente em relação
a esta encíclica, embora a sua extensão seja impressionante — é quatro
vezes mais longa que o documento conciliar Ad Gentes e a sua densi-
dade, assim como certos aspectos do seu estilo, tornam a leitura menos
fácil. O povo simples vai ter muita dificuldade em penetrar nela...
A Introdução manifesta essencialmente uma dupla intenção: por
um lado, relançar uma acção missionária de maior expansão depois
de certo abrandamento a seguir ao Concílio; por outro, classificar as
convicções e os métodos dessa acção. É preciso dissipar certos erros,
teológicos e práticos, que arriscam fazer diminuir o entusiasmo.
O documento, no seu conjunto, compreende três capítulos de dou-
trina, quatro capítulos de aplicação ao real concreto, um capítulo de
espiritualidade missionária e uma conclusão. Tentemos resumir o
essencial.

Capítulos de doutrina

Estão relacionados, numa divisão muito clara, com as três pessoas


da Santíssima Trindade, como se pode ver pelos subtítulos.
O primeiro capítulo concentra-se sobre aquele que mais directa-
mente foi e continua a ser o autor da salvação até ao fim do mundo:
Jesus Cristo. No nosso tempo, em que alguns afirmam o pluralismo
de caminhos ou vias diversas e até opostas de salvação, põe-se aqui
em relevo a palavra do Senhor (Jo. 14, 6): Ninguém vai ao Pai senão
por mim! É, pois, por Cristo, Salvador único, que passa salutarmente
tudo o que, por toda a parte e sempre e sob qualquer forma, é para
o homem fonte de união a Deus. E sublinha-se que não se trata apenas
do Verbo em si mesmo, independentemente da incarnação, mas do
Verbo incarnado em Jesus Cristo: «Não se pode perder de vista a
unidade do mistério de Cristo» (n. 6). Quanto à Igreja, ela é verda-
deiramente «o sacramento universal de salvação» (n. 9) que oferece

80
8
a todos os homens essa salvação, embora em certos casos «sem ligação
visível à instituição» (n. 10). Dentro do respeito por todas as con-
vicções religiosas, devemos contudo afirmar com simplicidade a nossa
fé», «sem reduzir o cristianismo a uma sabedoria puramente humana».
«A Missão é um problema de fé», «aberta à perspectiva maravilhosa
da filiação divina» (n. 11).
Assim é rejeitada certa teologia moderna que tende a considerar
as diversas religiões como outras tantas vias objectivas de salvação
à escolha, a par da via de Cristo e objectivamente tão válidas como ela.
Vindo salvar-nos, Cristo vinha estabelecer o Reino de Deus cons-
tituído a partir do amor de Deus por nós e pela sua graça. Este Reino,
de que fala o segundo capítulo, não tem nada dé comum com qualquer
dominação terrestre do género das que se tenham realizado outrora na
Europa. Mas «dois gestos caracterizam a missão de Jesus: curar e
perdoar» (n. 14). No nosso tempo existe, dè facto, um perigo real:
«se se separa de Jesus o Reino, não se toma em consideração o verda-
deiro Reino que ele fundou». Esse «arrisear-se-ia a transformar-se num
objectivo puramente humano e ideológico» (n. 18). Do mesmo modo
também^ o Reino «não se pode separar da Igreja» (76.). Esta «está
efectiva e concretamente ao serviço do Reino» (n. 20).
O terceiro capítulo toma em consideração o Espírito Santo, em
primeiro lugar porque a sua acção está no coração mesmo do anúncio
e da sua eventual decepção pelo ouvinte; mas de maneira particular
também porque no nosso tempo se desenvolveu uma sensibilidade
acrescida à presença e acção do Espírito Santo, nas assembleias de
oração, nas comunidades de base, etc.
Desta acção universal vem o capítulo terceiro, explicar as dimen-
sões (n. 22-23). Recorda o papel do Espírito desde as origens da
Igreja, papel aliás continuado e alargado através dos séculos.
O Concílio Vaticano II tinha «recordado a obra do Espírito
Santo no coração de todo e qualquer homem: pelas sementes do Verbo
e também pela sua acção, mesmo a sua acção religiosa, ... para a ver-
dade, para o bem, para Deus» (n. 28). É ele que guia a Missão.
É o «Espírito que impele a ir cada vez mais longe», dizia magnifica-
mente um número precedente (n. 25). E este impulso à missão não
está senão nos começos (n. 30).
Assim terminam por uma verificação que é, ao mesmo tempo, um
apelo à ajuda urgente, os capítulos doutrinais desta encíclica.

81
Capítulos de aplicação .

O capítulo quarto mostra uma extraordinária lucidez e sinceridade


na análise do mundo actual, destinatário da missão. «Situações reli-
giosas muito diferentes e em mudança: os povos agitam-se, as realidades
sociais e religiosas, outrora claras e bem definidas, evoluem e aumen-
tam de complexidade. Basta evocar aqui certos fenómenos como a urba-
nização, as- migrações massiças, as deslocações de refugiados, a des-
cristianização de países outrora cristãos, e, por outro lado, a crescente
influência do Evangelho e seus valores noutros países cujos habi-
tantes na sua grande maioria não são cristãos. Não se esqueça também
o fervilhar de messianismos e de seitas religiosas» (n. 32). Impossível
evocar mais problemas em tão poucas palavras!
O texto não esquece, aliás, numerosos motivos de conforto: o
enraizamento das novas igrejas, agora bem «locais» nos seus chefes e
nos seus obreiros, em países cada vez mais numerosos ... Mas ainda
há mais. Também a missão e espaços humanos não cristãos continua
a ser urgente (n. 33-34). Urgente e difícil reconhece o Papa sem
ambiguidades: as dificuldades «parecem insuperáveis» às vezes. E ana-
lisa-as em pormenor, quer dentro quer fora (n. 35).
Muito judiciosamente a análise distingue diversos destinatários da
actividade •misionária: territórios geográficos e políticos, agrupamentos
sociais caracterizados, situações recentes inéditas com os seus entre-
choques de populações e culturas. Este esclarecedor capítulo conclui
com duas directrizes gerais muito precisas: uma é geográfica e lança
a Igreja para o Sul e para Leste; a outra é social e recomenda a pro-
moção da liberdade em' todas as suas formas. Este capítulo é um dos
mais «verdadeiros» e mais acessíveis ao leitor corrente.
Temos de ser mais breves sobre os capítulos seguintes, aliás menos
novos.
O capítulo quinto examina as vias ou estádios da missão: desde
o primeiro anúncio do Evangelho aos não-cristãos até ao baptismo dos
que o escutaram, desde a fundação das estruturas eclesiais locais até
ao florescimento das comunidades de base, a integração cultural ada-
ptada e a participação no desenvolvimento global. Fala-se longamente
do diálogo neste capítulo (n. 55-57). Voltaremos a esse assunto mais
detidamente, depois de ter resumido também o segundo documento,
Diálogo e Anúncio, tendo em vista os dados das duas fontes.

82
Respiguemos, de pasagem, este princípio capital: Tanto a fonte
como o critério da missão, é a caridade» (n. 60).
Planificar lucidamente e sinceramente é, pois, indispensável nas
novas circunstâncias em que vivemos. Mas de que serviria isso se não
houvesse realizadores? São eles, por isso, que constituem a preocupação
e as considerações do capítulo sexto: os responsáveis e os agentes da
pastoral missionária. A divisão deste capítulo faz lembrar muito, e é
normal, a do capítulo quarto do Ad Gentes e compartilha da mesma
visão das coisas.
Quanto ao capítulo sétimo, vem reforçar o anterior, pois fala da
cooperação que o comum dos cristãos pode aportar de longe aos missio-
nários. Aqui, é o capítulo sexto do Ad Gentes que serve de base, pela
maneira clara como distinguiu as diversas categorias de cristãos e o
respectivo fundamento e formas próprias de apoio a esperar de cada
uma. Este capítulo da RM sublinha fortemente o carácter missionário
de todo o povo de Deus. Recorda que «o Concílio Vaticano II afirmou,
de forma muito clara, o carácter missionário de todo o povo de Deus,
em particular através do apostolado dos leigos, sublinhando a contri-
buição específica que eles são chamados a prestar à actividade missio-
nária» (jn-. 71). De facto, a RM lembra o dever missionário a todas
as categorias de fiéis: ao Colégio episcopal e a cada bispo de qualquer
parte do mundo, aos próprios missionários evidentemente, aos diversos
grupos chamados a prestar apoio na rectaguarda, aos párocos nas suas
paróquias, aos religiosos e religiosas segundo as suas formas específicas
de actividade, aos leigos como acabamos de referir.
O texto trata a seguir brevemente das estruturas de governo que
enquadram todo este esforço: em Roma, a Congregação para a Evan-
gelização dos povos, como se chama agora a seguir ao Concílio; por
toda a parte, múltiplas organizações e obras devidas à inventiva zelosa
dos cristãos.
Este capítulo sobre a cooperação apresenta um' carácter prático
e quase terra-a-terra, ainda que extremamente útil. Mas o capítulo
oitavo, que vem a seguir, levanta o nível, alarga os horizontes, pois
trata da espiritualidade missionária. É claro que se aplica ao máximo
aos homens e mulheres que labutam no terreno; mas todo o cristão,
para animar o seu próprio ardor missionário, tem de ir aí atear a
chama. Já fizemos notar que a fé e a caridade alimentam todas as
considerações da RM, mas aqui elas emergem à plena luz. Atingem-se

83
aqui em toda clareza as luzes fundamentais que devem iluminar todos
os que vivem implicados na missão.
Todos os cristãos têm como primeira norma de conduta a docili-
dade ao Espírito Santo, e o nosso tempo sente-o mais que outros.
Se é necessário deixar-se levar e formar por ele interiormente, é para
se tornar mais conforme com Cristo '(n. 87). Tratando-se da missão,
o Cristo modelo a que ele procura conformar-nos é o Cristo ENVIADO,
dedicado única e inteiramente à construção do Reino, sobretudo entre
os pobres (n. 88): «Aquele que tem verdadeiro espírito missionário,
sente pelas almas o mesmo amor que Cristo e, como Ele, ama também
a Igreja» (n. 89). «Todo o fiel é chamado, à santidade e à missão»
(n. 90).
Esta afirmação resume bem a convicção e solicitude universal do
S. Pontífice, antes de passar à breve conclusão final. E ninguém deixará
de notar o brado que lança às pequenas comunidades e às Igrejas
Jovens: «Vós é que sois actualmente a esperança da nossa Igreja ...
Jovens na fé, deveis irradiar entusiasmo e coragem». O pensamento
do Papa e o nosso vai para essas cristandades que ele não cessa de
visitar, com tanta perseverança e fadiga. Nesta encíclica ele lembra-as
mais vima vez com uma efusão que sai do coração.

II. DIÁLOGO E ANÚNCIO

Este documento, datado de 19 de Maio de 1991, tinha sido


publicado nomeadamente no Boletim do Conselho para o Diálogo entre
religiões (1991, n. 2). Segue-se a outro documento publicado sete
anos antes. Se é assinado simultaneamente pelo cardeal Arinze, pre-
sidente daquele Conselho, e pelo cardeal Toiriko, prefeito da Con-
gregação para a Evangelização dos povos, é porque à primeira parte,
referente especificamente ao diálogo de partida em clima de simpatia
e respeito, se veio' juntar uma segunda parte em que o diálogo é con-
siderado como uma etapa normal na caminhada para a fé cristã e para
o baptismo.
Parece-nos que este emprego dá mesma palavra diálogo em dois
sentidos diferentes, e ainda por cima juntando estes dois sentidos num

84
mesmo documento, com a assinatura dos responsáveis de duas tarefas
diferentes, faz mais mal que bem à clareza das ideias.
Mas comecemos por resumir a primeira parte do «Diálogo e
Anúncio», deixando de lado o segundo que não é mais que um eco
da RM.
Cada uma destas duas partes representa, em extensão, um quarto
da 'RM. Trata-se, pois, de exposições «menores», não só em extensão
mas em «autoridade». Os responsáveis imediatos não são o próprio
Papa mas uma Congregação e um Conselho, agindo cada um na sua
própria esfera. Acrescentemos ainda que a Congregação é considerada
mais importante, em domínio e autoridade, que o Conselho. Mas isso
pouco importa. O Conselho, fundado por Paulo VI, que sabemos
como tinha a noção dos matizes, trabalha num domínio e com uma
mentalidade que lhe são próprias. E isso tem a sua história! Quando
foi fundado o que então se chamava Secretariado «para os não-crentes»,
esses, que assim eram apelidados de maneira tão negativa, logo conce-
beram e exprimiram certas suspeitas: «Não é, diziam eles, senão uma
nova forma de proselitismo para levar-nos à conversão». E um cardeal,
pouco ao facto do novo projecto, resumia um dia a sua própria
impressão com uma frase lapidar: «Ides acabar em dois lugares de
Propaganda Fide». Sendo assim que o Papa e os primeiros respon-
sáveis, o que precisamente pretendiam era situar a nova iniciativa
fora da Propaganda!
Mas deixemos dormir estas recordações ... Venhamos ao docu-
mento. Digamos, porém, uma vez por todas, antes de o abordar, que
os católicos (comprometidos em diálogos no espírito do Secretariado,
quando se esforçam por trocar impressões e compartilhar experiências
com membros das outras religiões, o fazem sem segundas intenções
nem preconceitos ...
A introdução nota judiciosamente que vivemos hoje num mundo
que muita gente reconhece como pluralista. E assim o chama também
o documento. O termo não deixa de ter as suas ambiguidades. A título
dé verificação, significa que o mundo' é plural nas suas religiões e
isso é inegável seja para quem for. A título de posição doutrinal,
marca uma vontade de igualar em dignidade e validez, as diferentes
religiões, ou as opiniões religiosas individualmente escolhidas. Ora,
é claro que, para um cristão com uma visão não agressiva, nem
orgulhosa, mas firme da sua fé, tal pluralismo, embora inegável, não
é'"aceitável. Nem aliás para um judeu ou para um muçulmano. Para

85
eles, os outros são goim ou dhimi,. como eles são para nós de todo
o modo «os outros».
Seja como for, DA vê-se obrigada a reconhecer em certos cristãos,
que se querem em respeitosa amizade com as outras religiões, certas
hesitações, perplexidades e interrogações. Muito sabiamente, antes de
assentar distinções e esclarecimentos, é preciso definir bem os termos
empregados. É o que faz DA.
«O termo missão evangelizadora, ou mais simplesmente evange-
lização, refere-se à missão da Igreja no seu conjunto» (n. 8), por
outras palavras, à função global e total da Igreja na obra da salvação.
«O termo anúncio significa a comunicação da mensagem evan-
gélica, do mistério da salvação realizado em nosso favor por Deus
em Jesus 'Cristo com o poder do Espírito Santo». É ium convite a um
comprometimento de fé em Jesus Cristo, um convite a entrar pelo
baptismo nessa comunidade de crentes que é a Igreja» (n. 10). Aquele
que convida está convencido que o melhor partido para o seu inter-
locutor é converter-.se, e deseja-o e, com o devido respeito, procura
captá-lo progressivamente. Esta vontade e esta acção do cristão é a
obra missionária no sentido tradicional do termo.
«O termo diálogo pode oompreender-se (no concreto) de diversas
maneiras. Primeiro, a nível puramente humano, significa uma inter-
comunicação qualquer sobre um assunto comum. A nível mais pro-
fundo, um intercâmbio 'interpessoal', Em segundo lugar, diálogo pode
significar também uma atitude de respeito e de amizade, que de facto
impregna ou devia impregnar todas as actividades da Igreja. Isso
poder-se-ia chamar com toda a exactidão 'espírito de diálogo'. Em ter-
ceiro lugar, num contexto de multiplicidade de religiões, diálogo signi-
fica precisamente: o conjunto de relações interreligiosas, positivas e
construtivas, entre pessoas e comunidades de diversas crenças, a fim
de aprender a conhecer-se e a enriquecer-se .uns aos outros» (9).
Esta terceira definição, específica, tinha já sido apresentada em
1984, num documento precedente do Secretariado. Aqui, apenas se
acrescenta, depois de longa experiência, a seguinte cláusula: «obede-
cendo, porém, à verdade e respeitando a liberdade de cada um. Implica
ao mesmo tempo o testemunho (do que cada um crê) e o aprofunda-
mento das respectivas crenças religiosas» >(n. 9).
É preciso definir ainda um quarto termo, e este discutido: Reli-
giões! Quais? Em quê? DA responde prudentemente: «Os termos
'religiões' e 'tradições religiosas' são aqui empregados num sentido

86
genérico e analógico. Compreendem as religiões. que, como o cristia-
níssimo, se relacionam com a fé de Abraão, assim como as grandes
tradições religiosas da Ásia, África e do resto do mundo» (n. 13).
DA exclui nomeadamente os «Novos movimentos religiosos», «por
causa da diversidade de situações que eles apresentam e da necessidade
de discernir melhor os valores humanos e religiosos que eles contêm»
(n. 13). Acrescentaríamos que é preciso submetê-los à prova do tempo,
ao qual muitos deles não resistirão!
Aqui é onde o vocabulário da RM e o da DA divergem um do
outro, chegando a uma nítida diferença. Voltemos então, como prome-
temos, à RM i(n. 55-57). Lê-se aí: «Meio de conhecimento; e de enri-
quecimento recíprocos, o diálogo não se opõe à missão ad gentes;
pelo contrário, está especialmente ligado a ela e é uma das suas
:
expressões» (n. 55). ' -
Com o devido respeito, mas com igual respeito também péla
clareza dos termos, das mentalidades e dos projectos, parece-nos que
uma mesma palavra cobre dois sentidos diferentes em contextos e
intenções diferentes: RM e DA.
A primeira intenção é a da expansão, que qualquer fiel deseja
para a sua religião. Esta disposição é normal. Procurada de maneira
moral, é legítima segundo as luzes do fiel em questão, quer se trate
de um cristão, quer dentro do próprio horizonte de um judeu, muçul-
mano ou hindu ... A acção religiosa, exercida neste capítulo e com
a finalidade de ganhar novos crentes, empregará entre os seus meios
uma certa forma de diálogo a que antigamente chamavam «conquis-
tador» e que, em todo o caso, visa nitidamente persuadir novos onvintes
até os fazer mudar de adesão. Esse diálogo, diz a RM, «deve ser con-
duzido e posto em prática com a convicção de que a Igreja é a via
ordinária de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de
salvação» (n. 55). É nesta perspectiva que, de facto, «o diálogo não
dispensa a evangelização; pelo contrário nela se insere» como uma
etapa intermediária, no caminho para a conversão do interlocutor ...
Há uma segunda intenção e uni segundo projecto: a intenção de
estima e intercâmbio mútuos, sem vontade de conversão de um ou do
outro participante. Seria errado tomar esta forma de encontro ' como
uma traição ou mesmo como um abandono. Ela tem o seu lugar nas
circunstâncias actuais, por vários motivos.
O primeiro motivo é de realismo imediato: a Ásia oferece, frente
ao projecto de evangelização, blocos religiosos enormes é pouco pene-

87
tráveis 'por enquanto. Com a ajuda de Deus, é possível estabelecer no
meio delas comunidades cristãs, mas muito minoritárias. E é um dever
empregar-se nisso o melhor que for possível. Mas a imensa massa dos
outros? Mas a soma de valores religiosos que o próprio 'Concílio lhes
reconhece explicitamente? Vamos atacá-los? Oxalá que não! Vamos
simplesmente ignorar-nos e deseonhecer-nos, como aconteceu durante
tanto tempo? ... Num mundo onde a irreligião materialista avança
de maneira tão inquietante, mesmo no Ocidente, não será melhor que
em vez de nos distanciarmos e opormos entre religiões, todos reconhe-
çamos o «parentesco de preocupações e de busca» que compartilhamos?
Como o demonstrou, ainda há poucos anos, a reunião altamente signi-
ficativa das várias religiões em Assis, de tais encontros e aproximações
só se pode sair 'confortado e encorajado.
Cada participante no diálogo captará no outro valores que o
ajudarão a icompreender-se melhor a si mesmo e o apelo que Deus
lhe faz. É um diálogo assim, sem intenção de conquistar nem mesmo
de vitória, que desejou Paulo VI quando, há vinte e cinco anos,
instituiu este grupo de boas vontades que veio a tornar-se o Conselho
para o diálogo entre religiões. Este diálogo não exclui o outro de sen-
tido «missionário», mas exige, como as circunstâncias actuais o recla-
mam, que se dê à palavra um sentido irénico que se traduza também
na maneira de actuar. É desse diálogo que fala a DA na sua primeira
parte.
Tal maneira de actuar tem as suas exigências e por conseguinte
as suas formas próprias.
O homem de diálogo deve desenvolver uma aproximação positiva
das religiões diferentes da sua, uma abertura simpática, pronta a des-
cobrir nelas valores: provas induzidas de certos aspectos de que a
graça divina nelas actua. A Declaração Conciliar sobre a atitude a
assumir perante as diversas religiões a isso ajuda, ao pôr em relevo
alguns desses aspectos. Estas orientações não terão, porém, todo o
seu peso se não se fizer um estudo sério duma ou várias religiões em
questão, tanto a partir dos seus livros como dos seus fiéis actualmente
vivos e abordáveis.
DA convida-nos também a «levantar os olhos e ver» o mundo,
sobretudo o mundo multiforme das religiões, como trabalhado pelo Espí-
rito Santo, que nele lança as sementes do Verbo, quer em terrenos
pedregosos quer nos terrenos férteis. Convida-nos a pressentir profun-
damente o mistério da unidade da humanidade, tanto ao nível da natu-

88
reza como ao do apelo universal à salvação. Temos de adquirir a saga-
cidade do descobridor nas entranhas do campo integral do Pai!
'É através de tais descobertas que o diálogo pode germinar. %
O texto descreve a seguir certos terrenos em que se pode exercer
o diálogo, Limitamo-nos a en-umerá-los: a vida corrente num espírito
de abertura e de boa vizinhança, de partilha de alegrias e sofrimentos,
de preocupações e de problemas; as obras ao serviço da colectividade,
em particular «a colaboração no desenvolvimento' integral e na liber-
tação do homem; o intercâmbio no domínio da teologia ...; a partilha
de experiências espirituais» (of. n. 42).
Muito sabiamente DA precisa que este último terreno não pode
ser explorado sem perigo de derrapagens senão por «pessoas bem
enraizadas na sua própria religião» e dotadas de «riquezas espirituais»
no que se refere à «oração e contemplação» (Ib.). O texto nota tam-
bém que, na realidade vivida, os terrenos, as formas, as ocasiões de
diálogo se entrelaçam, quer se trate da promoção material quer do
progresso espiritual (n. 44-45).
As duas últimas secções ,da exposição explicam, por um lado,
as disposições que favorecem o diálogo e, por outro, as dificuldades
que o entravam.
Factores positivos: o apego firme à sua própria religião; a aber-
tura franca à verdade, venha ela donde vier; venha do depósito' cristão
revelado ou das inspirações que o Espírito Santo possa espalhar fora
dele. Toda a fecundidade do diálogo se paga a este duplo preço.
Factores negativos: DA desenvolve aqui toda uma lista de difi-
culdades possíveis, em onze apartados! Podemo-las reagrupar da
seguinte maneira. Em primeiro lugar uma errada compreensão do
diálogo como a que anteriormente descrevemos, bem como uma prévia
desconfiança em relação a este género de actividade religiosa; um
conhecimento insuficiente das religiões, a começar pela sua própria;
a existência de fossos 'culturais intransponíveis entre os interlocutores,
ou ódios raciais ou políticos; um espírito pessoal de intolerância, de
suspeita, de polémica.
Na verdade, este catálogo é impressionante: será humanamente
possível evitar tudo isto?
É para encorajar candidatos um tanto desanimados por estas difi-
culdades que o último número da exposição nos assegura: Embora a
empresa seja assim tão difícil, «tem havido certos progressos na com-
preensão 'mútua e na cooperação prática». O facto é inegável em certos

89
domínios filantrópicos; viu-se claramente por ocasião da manifestação
de Assis em que ouvimos representantes das grandes religiões rezar
lado a lado, um atrás de outro, pelo ideal comum da paz.
O texto continua: «O diálogo teve um impacto igualmente positivo
sobre a própria Igreja». Podemos ilustrar esta afirmação mostrando
como uma utilização de certos processos «místicos» orientais, feita
com discernimento, tem ajudado alguns cristãos ocidentais a reencon-
trar a dimensão interior mais profunda do seu cristianismo, ameaçado
de extrinsecismo e de rotina.
Prossegue o texto: «Outras religiões têm sido levadas, por sua
vez, à sua própria renovação e a uma abertura muito maior». Que a
expansão do cristianismo nos países maioritariamente muçulmanos ou
hindus tenha tido neles um efeito de estímulo, de ressurgimento, de
estudo das fontes, de investigações comparativas objectivas, é um fenó-
meno que salta à vista a qualquer olhar atento e bem informado.
Não podemos deixar de reconhecer também, infelizmente, certos casos
de levantamentos de suspeita hostil por parte do Islão e o desenvol-
vimento a nível popular de um sentimento mais nacionalista que pro-
priamente religioso ... Mas o diálogo, por sua natureza, não é um
exercício a este nível inferior ...
Termina o texto: «O diálogo religioso permitiu à Igreja com-
partilhar com outros os valores evangélicos». Quem quer que tenha
observado, a seguir ao Concílio, o progresso que teve em certos meios
a ideia dos direitos do homem, a ideia da fraternidade interhumana
e a unidade da humanidade inteira, saibe bem que estes valores são
eminentemente cristãos e têm na fé os seus mais sólidos alicerces.
Compreende-se então que DA possa concluir, com um vigor cheio
de esperança: «O empenhamento da Igreja no diálogo permanece firme
e irreversível» i(ii. 54, fim).

Conclusão

Depois desta apresentação, necessariamente densa e, às vezes,


um pouco minuciosa, dos dois grandes documentos sobre assuntos tão
vastos e delicados, não daremos como conclusão prática senão esta
velha fórmula, ao mesmo tempo conciliadora e exigente: «É preciso
fazer uma coisa sem omitir a outra». !É preciso continuar a evangelizar

90
o nosso meio, sem deixar de manter também um diálogo paciente e
perseverante com outras religiões.
O conjunto dos cristãos deve empenhar toda a sua generosidade
na evangelização, à qual faltam hoje tantos operários. Por outro lado,
crisêãos bem escolhidos e bem formados devem lançar-se simultânea-
mente pelos caminhos difíceis do diálogo, de intercâmbio e de partilha.
Repare-se nos três qualificativos da frase precedente. São essenciais
e indispensáveis. Qualquer dedicação cristã nasce duma fé e caridade
extraordinárias. Mas estas duas disposições tiram a sua força da «Espe-
rança-menina que veio ao mundo no dia de Natal». E essa não morre...

91
PARA O DIÁLOGO:

O EQUILÍBRIO DE RAMALHO ORTIGÃO

por JOÃO MAIA

Numa nota que aqui escrevemos, o mês passado, falávamos da


actualidade de Ramalho Ortigão. Tomámos a nuvem por Juno. O dese-
jável passou a afirmação factual.
Ramalho poderia ser um escritor tónico, ordenativo da arte da
escrita que anda por aí maltrapida, e poderia ser modelo de escritor
interventor com olhos postos na vida pública, a sair do Parlamento
para ir ver a vida real dos portugueses e ensiná-los a ver a sua casa,
a sua paisagem1, as suas feiras, as suas praias, e ainda os diversos
tipos de gentes e profissões em que moureja.
Modelo de estilo, também o seria. De equilíbrio numa prosa sem
demasias ou golfos no periodar, híspida, de homem que fazia ginástica;
e logo por aí médico eficiente da prosa reumática, desmanchada no
desalinhavo processual de quem expunge vírgulas e pontos finais
— processo esse para exaltar simplórios e arregalar o olho vanguar-
dista dos sempre à la page. Ramalho teria hoje virtualidade e prés-
timo se fosse -lido. Infelizmente é pouco lido. É quando muito relido
por gente provecta.
Tem a Obra de Ramalho um interesse histórico, um interesse
literário, um interesse sociológico — tudo isso plasmado num equilíbrio
que era a síntese que um homem de robusta personalidade, despren-
dido de imitações, de honrarias, de facções partidárias, lograva pro-
jectar em tudo o que escrevia.
Sem a fantasia nem os enredos ficcionistas do seu Amigo Eça de
Queirós, estava mais próximo dos costumes que criticava, das paisa-
gens que descrevia, do homem do campo e da cidade, daquele Por-
tugal de fim de século que o seu Amigo das / Cidade e as Serras
só por abertas vinha ver. Teria, na verdade, flagrante ensino se fosse
lido, porque hoje as letras cevam-se na crítica política, na crítica
social, na crítica do pé da porta. Os jornais parece que sacudiram as

92
folhas literárias de arte desinteressada .para se darem em corpo inteiro
à governança da cidade, a qual, por isso mesmo, vai em melhoria
consolativa!

O equilíbrio de Ramalho Ortigão, na crítica, provinha da pre-


sença de umas quantas ideias espumadas da sociologia fim de século-
-culto da ciência, superioridade dos povos anglo-saxónicos, princípios
higiénicos tão fáceis de apreender como a água e o sabão, trabalho,
honradez nos negócios e na diplomacia, moderada aproximação das
classes, admiração pelos heróis do civismo; essas ideias aproximava-as
numa crítica directa, clara, flagrante, dos tipos e costumes que via
sempre respaldados por uma tradição vivida e que ninguém como ele
sabia reconstruir.
Nele, a arte da escrita não vivia por si; servia, ia apontada sempre
a melhoramento do humano, O homem em si, em casa, no município,
na rede de relações, cuidadoso em dar todos os seus passos segundo
um código de prudência avita e num progresso onde jamais perdesse
a cabeça. Há na Obra de Ramalho Ortigão resquícios de precon-
ceitos epocais. Mas o tom interventor, o rasgo generoso, a graça des-
portiva, a facilidade em render-se a razões e até a ausência de acinte,
fazem da sua prosa um modelo perdurável.
O seu equilíbrio manifesta-se ainda na espécie de crítica que foi
a sua. Postas de lado a Holanda e o John Buli, sua actuação era de
peças breves sem a longura de um ensaio, de um estudo longo. Uma
mancheia de princípios aludidos, e logo a descida ao concreto, ao
acontecido e vigente entre nós, à política transeunte e seus tartufos
ocasionais.
Homem de boa fé, jamais se departia do pitoresco, sem esperar
resultados pessoais; desses resultados para os outros foi muita vez inter-
cessor, mas até aos grandes não poupava a alusão pitoresca, modo de
os trazer ao tablado dos simples ou do homem comum. Não era
homem de panos quentes, mas jamais ofendeu alguém por perfídia,
escondendo a mão ou aspando a assinatura.
Significativo de toda a sua actuação literária e interventora, é o
caso memorado nas Últimas Farpas. Um escriba tortuoso acusarao de
que ele, no tempo da perseguição republicana, escondera jesuítas em
sua casa e se ausentara. Ramalho respondeu que o plumitivo o não
conhecia de parte nenhuma, pois caso contrário saberia que se alguém

93
lhe desse a própria casa, ele, Ramalho, lá estaria, no limiar, com
um trabuco erguido para partir a suã a quem viesse com ferro per-
seguidor!

O equilíbrio de Ramalho Ortigão baseava-se em virtudes de


ordem moral que encontraram um temperamento salubre, pouco sen-
sível a dramas recônditos e muito aberto à praça, ao salão, ao Par-
lamento (sobre que escreveu as páginas mais cheias de graça (e de
actualidade!) que porventura existem na literatura portuguesa.
Literariamente, o estilo de Ramalho, inimitável sem logo trair o
plágio, poderia ser actual como vigia e cautela contra desmando de
sintaxe e gramática, contra longuras de ênfase interessada e política,
contra o reumatismo infeccioso que dimana de estruturalismos e lições
de mestre Rolão (Roland Barthes), e ainda de certo enliçamento de
estilos enovelados de marca universitária, muito alimentados de chavões
repetitivos.
O equilíbrio, tanto na saúde física como nas letras, é garante
e promotor de progresso e de eficiência. Decerto que na literatura há
muitas moradas como no reino dos céus. Mas quando a literatura de
um país se vê invadida pelos demónios da política e da intervenção
social, do utilitarismo imediato, o exemplo de um grande escritor que
sacrificou a esses demónios (que não eram evidentemente os de Dos-
toievski), podia e devia ser um estímulo e uma lição proveitosa.
E demandaria pouco sacrifício, porque a graça, o espírito de vitória,
o desprendimento polémico, a sincera e permanente boa fé de Ramalho
infundem alento vital e limpam-nos dos ascos da comédia soma da
partidarite e da ávida ganhuça dos agiotas.
Ramalho Ortigão é um escritor forte, solar, bem gramatizado e
com pontos e vírgulas para todas as intercadências do frasear. O seu
equilíbrio dá disciplina, «dá saúde e faz crescer» como diria o Castilho!

94
ENTRE A EMENDA E A CONTENDA
ou o «género literário» de Las Casas

por X. DE ASSIS

É mais do que sabido e repetido que todas as vezes que se recorda


— sobretudo celebrativamente — a grande invasão das Américas (a que
nos princípios chamaram índias, algum tempo) pelos Europeus-em-
-irrupção-expansiva, entra em cena a figura polémica de Bartolomeu
de La Casas, da Ordem dos Pregadores, a quem os neo-latinistas do
tempo não deixariam talvez de chamar «vir ille famosus». E repete-se
rotineiramente o alinhamento bipolar dos anti-ocupacionistas frente aos
pró-ocupacionistas, esquecidos ou mal lembrados uns e outros que ambos
são ocupantes de um espaço que há quinhentos anos não era deles. Que
a polémica do ontem, que tem meio milénio, era entre-espanhóis ou entre
europeus e hoje ainda é entre europeus (mesmo por procuração que
seja) ou, na melhor das hipóteses, entre neo-europeus, que defendem os
que terão sido vítimas dos invasores seus antepassados.
Também a respeito deste meio milénio-92 se dá a fatalidade do
mesmo ou do quase-mesmo. Parece-nos, no entanto, que ainda se não
disse recentemente nada do novo, neste jogo de ataque e contra-ataque,
defesa e contra-defesa que pode talvez distrair demais da grande tarefa
(adiada?) de fazer finalmente do novo mundo um mundo novo.
Vamos esperar que a Quarta Conferência do Episcopado Latino-
-Americano em Santo Domingo, a realizar pelo 12 de Outubro — data
dos 500 anos—possa projectar e projectar-se para o meio milénio
que vai seguir-se, renovando mais a vida do que a história, mais o
futuro que se pode criar do que o passado que já se não pode mudar:
Numa passagem decidida da contenda para a emenda, coisa fácil de
dizer para quem, como nós, se vê do outro lado da História e do outro
lado do Mar.
Mas alguma coisa havíamos de ceder à universal tentação de curio-
siar o «.pecado original» americano, nós, que por obrigação e missão
nos votamos mais aos estudiosos do que aos curiosos pois para aqueles
e não tanto para estes nasceu e cresceu a Brotéria em noventa anos
bem contados. Mais uma vez fomos ao mais fácil, deixando de lado,
na esteira de muitíssimos polemistas, a longuíssima Historia General de
las índias para nos contentarmos com a Brevíssima Relacion de la Des-

95
truycion de índias, terminada de redigir há precisamente 450 anos — no
ano de 1542 em Valência — mas impressa no ano de 1552 em Sevilha.
Parece mesmo feitiço de livro antigo, ao qual fazemos inclinação
e vénia na edição fotostática que tivemos à mão em recente saída para
além-fronteiras. É de seu título completo na portada, Brevíssima rela-
cion de la destruycion de las índias coligida por el Obispo dõ fray
Bartolome de las Casas / o Casaus dela orden de Sãcto Domingo .Ano
.1552. Diz no termo da última página que: «Fue impressa la presente
obra en la muy noble y muy leal ciudad de Sevilla en casa de Sebastian
Trugillo, impressor de libros. A nuestra Senora de Gracia, Ano de
M D L II».
Aproveitamos a deixa do introdutor e anotador desta edição,
Manuel Ballesteros Gaibrois, encarregado pela editorial Fundacion Uni-
versitária espanola, a páginas VII da sua introdução de 1977: «Puede
parecer extrano que ahora aparezca una nueva edición — una más,
entre las muchas que se han hecho, en todos los idiomas — de la
discutidísima obra. Pero <no lo es, porque se diferencia fundamental-
mente de las otras en su própria figura física: se trata de una edición
facsimilar de la de Sevilla 1552». Mas o convite quase completamente
explícito vem logo na frase a seguir: «El proposito de los editores
aparece entonoes bien claro; brindar a los eruditos y a los amantes
de las ediciones antiguas la posibilidad de poseer en casa, la imagen
misma de lo que saliera de los tórculos de Sebastian Trugillo, su primer
impresor».
Ter diante da vista a mesma imagem tipográfica que impressionou
os olhos emocionados do próprio autor há 440 anos após ter saltado
«a piés juntillas» por cima de todas as licenças da praxe, pode ser
apenas um gesto de mágica; por isso, entremos já no conteúdo a
desbastar veredas. E seja a começar do fim pela oposição às leis vindas
de Madrid na época de espera para a Brevíssima, que foi a época de 40:
«porque se les haze de mal dexar los estados y haziendas usurpadas
que tienen y abrir mano de los indios que tienen en perpetuo captiverio.
Dõde han cessado de matar con espadas de presto: matanlos con ser-
vidos personales y otras vexaciones ynjustas y yntolerables su poco a
poco. Y hasta agora no es poderoso el rey para lo estorvar porque
todos chicos y grãdes andã a robar unos mas otros menos. Unos
publica y abierta otros secreta y paliadamente. Y con color de que sirven
al rey deshonrran a Dios: y roban y destruyen al Rey».

96
Este como resumo da situação e história, então recente, das «con-
quistas» espanholas na América, indica os argumentos de facto para as
intervenções do Rei impetradas ou sugeridas no «Prologo dei obispo
dõ fray Bartholome de las Casas o Casaus para el muy alto y muy
poderoso seííor el príncipe de las Espanas dõ Felipe nuestro senor».
As palavras são claras e as afirmações contrastadas e contundentes:
«Suplico a vuestra alteza (o Príncipe Filipe) lo resciba y lea con la
clemêcia y real benignidad que suele las obras de sus criados y servi-
dores: q puramente por solo el bien publico y prosperidad dei estado
real servir desean. Lo qual visto: y entendida la deformidad y injusticia
q a aquellas gentes innooêtes se haze: destruyendolas y despedaçan-
dolas, sin aver causa ni razõ justa para ello: sino por sola la cudicia
y ambicion delos q hazer tan nefarias obras pretenden: vuestra alteza
tenga por biên de cõ efficacia supplicar y persuadir a su magestad
(Carlos V) q deniegue a quien las pidiere tan nocivas y detestables
empresas: antes ponga enesta demãda infernal perpetuo silencio con
tãto terror: q ninguno sea osado dende adelante ni aun solamente de
las nõbrar».
Lendo os objectivos propostos aqui, é evidente que esta «brevís-
sima relação» não promete mais do que ser um relatório dos desmandos
praticados no novo mundo contra gentes consideradas inocentes, de
modo a sustar e castigar e prevenir. Não se trata, assim, de fazer a
crónica nem muito menos o panegírico de feitos heróicos, mas de
desmascarar crimes e injustiças. O pressuposto da soberania castelhana
e seu bem fundado é explicitamente admitido ao escrever-se de «aqllos
tantos y tan grãdes y tales reynos: y por mejor dezir de aql vastíssimo
y nuevo mudo de las Yndias: cõcedidos y encomendados por dios y
por su yglesia aios reyes de castilla: para q se los regiessen y gover-
nassen cõvertiessen y psperassen têporal y espiritualmête...».
É um libelo acusatório e não um testemunho de defesa, contendo o
que esse género literário deve conter e não outra coisa que possa
contrastar, equilibrar ou diminuir ou apenas matizar a força da elo-
quência contundente. Pode esperar-se a indignação emocionada deste
orador «Ordinis Praedicatorum» e não a argumentação equilibrada dum
teólogo de Salamanca, mesmo que seja também «Ordinis Praedica-
torum». Trata-se aqui, aliás, não de -convencer a razão mas de comover
a sensibilidade. O convencimento da razão outros o farão e também
espanhóis (e portugueses).

97
8
Por outro lado não se atinge a monarquia castelhana nem a Igreja,
mesmo a de Espanha, ainda que se apontem as cumplicidades de um
bispo. Trata-se apenas de defender aqui a causa dos Índios e de con-
denar os procedimentos dos «conquistadores». Porém não se enfrentam
só espanhóis (e muito menos castelhanos puros porque há andaluzes), se
notarmos que ao tratar da Venezuela aparecem os alemães no ponto de
mira lascasiano. Assim: «Nei ano de mil y quinientos y veynte y seys con
enganos y pesuasiones danosas q se hizieron al rey nuestro senor como
siempre se ha trabajado de le encubrir la verdad de los danos y perdi-
ciones que dios las animas y su estado rescebian en aquellas yndias:
dio y concedio un gran reyno mucho mayor que toda espana: que es
el de Veneçuela cõ la governacion y jurisdicion a los mercaderes de
Alemana con cierta capitulacion y concierto e assiento que con ellos
se hizo». Falando dos habitantes como «aquellas gentes mansíssimas
ovejas», passa a dizer que os alemães «entraron en ellas mas piêso
sin comparaciõ cruelmente que ninguno delos otros tiranos que hemos
dicho y mas irracional y furiosamente que crudelissimos tigres y que
raviosos lobos y leones».
Sinteticamente bastam duas ou três frases para apreciar equilibra-
damente o estilo, literário do escritor: «Han assolado; destruydo y
despoblado estos demonios encarnados (os alemães): mas de quatro-
cientas léguas de tierras felicíssimas y en ellas grandes y admirables pro-
víncias ./ valles de quarenta léguas, regiones vastíssimas: poblaciones
muy grãdes riquíssimas de gentes. Han muerto y despedaçado total-
mente grandes y diversas naciones, muchas léguas que no han dexado
psona que las hable: sino son algunos que se avran metido en las
cavernas y entrarias de la tierra huyendo de tan estrano y pestilencial
cuchillo. Mas han muerto y destruydo y hechado a los infiernos de
aquellas innooêtes generaciones / por estranas y varias y nuevas mane-
ras de cruel iniquidad y impiedad (a lo que creo) de quatro y cinco
quentos de animas: y oy eneste dia no cessan actualmente delas
echar».
O estilo é sempre o desta amostra. E, vendo neste capítulo da
Venezuela os quatro ou cinco milhões (quatro y cinco quentos de
animas) de assassinados desde que lá entraram os alemães em número
de 300 no ano de 1526 e que estão a continuar no ano de 1541 em
que se escreve este relatório, ou pseudorelatório, desencadeamos o
reflexo do cálculo mental da nossa infância, distribuindo por cada três
dos 15 anos em causa, um milhão de assassínios subdistribuindo por

98
cada um dos anos 300 mil, o que dá mais de mil por alemão e por
ano, numa média de uns três assassínios diários atribuídos a cada
alemão. Assim este arca com a responsabilidade global de mais 15.000
nos quinze anos decorridos entretanto.
Convenhamos que é força de expressão, ou expressão forçada,
ou figura de estilo que nos faz lembrar o noticiário dos primeiríssimos
dias da guerra do Golfo, difundido pelos media americanos e internacio-
nais. Mas habitualmente é esse o estilo da Brevíssima, como lhe chamam.
É assim falando de alemães; é assim falando de andaluzes; é assim
falando de castelhanos, com ou sem o nome, de espanhóis ou de cristãos
com que se varia a terminologia. Também é assim através da geografia
dos massacres aduzidos, começando pela «Isla espanola» que está
hoje dividida entre Haiti e Santo Domingo, com a larga descrição dos
vários reinos que a compunham e onde destacamos a comparação de
Madien com o reino de Portugal. Em menos de meia página fala «de
las islãs de Sant Juan y Jamayca». Demora-se mais com a ilha de Cuba,
passando logo a escrever «dela terra firme». Vem então a vez «dela
província de Nicaragua», depois «De la nueva Espana» que é o
México e «dela província y reyno de Guatimala»; «dela Nueva Espana
Y Panuco y Challisco»; «dei reyno de Yucatan; «dela província de
sctã Marta»; «dela província de Cartagena» só em treze linhas; «dela
costa de la perlas de Paria y laisla de la Trindad»; «Del rio Yuya
Pari» para chegar à parte «Del reyno de Veneçuela» já apontada atrás.
Volta outra vez ao Norte, falando« delas provincias dela terra firme
por la parte que se llama la florida» e regressa mais para sul para
escrever «dei rio dela Plata»; «De los grandes reynos y provincias de
Peru»; «Del nuevo reyno de Granada», fixando-se nas provincias con-
finantes de «Papaya e Tali».
Para terminar, uma exortação prolongada: «Con esto quiero acabar
hasta q vengan nuevas de mas egregias en maldad (si mas que estas
pueden ser) cosas o hasta que volvamos alia a verias de nuevo como
quarenta y dos anos ha que las veemos por los ojos sin césar: protes-
tando en Dios y mi consciência que segun creo y tengo por cierto: que
tantas son las perdiciones, danos, destruyciones, despoblaciones, muertes
y muy grandes crueldades horribles y especies feyssimas delias: violên-
cias, y yniusticias y robos y matanças que en aquellas gentes y tierras
se han hecho (y aun se hacen oy en todas aquellas partes delas Yndias)
que en todas quantas cosas he dicho y quanto lo he encarescido: no he

99
dicho ni encarescido en calidad ni en cantidad de diez mil partes
(de lo que se ha heoho y se haze oy) una».
Tal protestação de objectividade, ao considerar como figura lite-
rária «litotes» (em oposição hipérbole) a requisitória que faz, pode ser-
vir-nos como indicador-guia para a leitura; Frei Bartolomeu considera
a «brevíssima» (notemos o superlativo deminuitivo) como redução de
dez mil vezes relativamente à realidade das coisas. O propósito e
objectivo da relação vem expresso adiante com este começo: «Fue
ynducido yo fray Bartholome de las Casas o Casaus frayle de Espana
Domingo: q por la misericórdia de Dios ando enesta corte de Espana
procurando eohar el infierno delas yndias y que aquellas infinitas
muahedúbres de animas redimidas por la sangre de Jesu Christo no
perezcan sin remedio para siempre: si no que conozcan a sua criador
y se salven: y por compassion que he de mi patria que es Castilla
(sublinhado nosso) no la destruya dios por tan grandes peccados contra
su fee y honrra cometidos y en los proximos ...».
Mais diz que terminou em Valência a 8 de Dezembro de 1542,
no auge de todas aquelas calamidades dos indios e que tem esperança
no «imperador e rei de Espanha nosso senhor dom Carlos Quinto
deste nome ... que há-de extirpar tantos males e há-de remediar aquele
novo mundo que Deus lhe deu como amador e cultor que é da justiça»:
«cuya gloriosa y felice vida y imperial estado dios todo poderoso para
remedio de suya universal Yglesia y final salvacion própria de Su real
anima por largos tiempos Dios prospere. Amen».
Este é o estilo de emoção violenta em Frei Bartolomeu de las
Casas. O estilo é o homem e a violência fere a outros homens. É assim
que a cinco séculos de distância podemos simpatizar com a parte mais
fraca, tanto mais que a mais forte também já desapareceu. Mas podemos
também — ou não poderemos? — redimensionar a objectividade do
problema (que ainda assim permanece a enormidade que é) para não
combatermos contra moinhos de vento, deixando outros levar a água
ao seu moinho que já não é de vento nem se desfez ainda com a
ventania.
Foi com a sensação de irmos perder tempo que iniciámos a tarefa
de abrir algumas clareiras no texto da Brevíssima Relacion, editada
em 1552 em Sevilha depois de em 1542 ser terminada em Valência.
Porém talvez tenha valido a pena oferecer aos possíveis leitores esta
proposta de mediação «acelerada» entre o texto e a leitura noutro
contexto.

100
Da introdução a esta edição citamos a pergunta e resposta
que pode interessar nestes «cinco séculos de evangelização»: «Puede
tomarse al Padre La Casas como fuente histórica en su texto de la
Brevíssima»! La contestación es terminante por todo lo que he venido
dieiendo: esta obra es un escalofriante testimonio historico de una
época turbulenta de unos hechos que no son únicos en la Historia
(recordamos la conquista romana de Hispania y la venta de los lusi-
tanos como esclavos) pero los datos no pueden ser nunca tomados
como exacta informacion y como fuente histórica digna de fé»
(o. c. XXII). Por nossa parte, quase diríamos que no processo dos
índios americanos de há quinhentos anos a Brevíssima é um esquema
sumário dum dossier de advogado de acusação. O estilo é o homem
e Las Casas está repleto de figuras de estilo. Ademais o assunto é de
há quinhentos anos e agora o problema é dos quinhentos anos seguintes
e dos outros. Pedimos vénia e compreensão para estas páginas que
roubámos aos próximos quinhentos anos de evangelização tão urgente,
desviando a atenção para eventos tão ultrapassados. Mais que a con-
tenda do passado urge a emenda do futuro, chama-se ela inculturação
ou nova evangelização.

PERCURSO ROMANESCO DE VERGÍLIO FERREIRA

por I. RIBEIRO DA SILVA

«O romance é a imagem depurada de uma certa


visão do mundo».

OSCAR TACCA (!)

Na linha do texto em epígrafe, digamos de entrada que é essa ima-


gem depurada da visão do mundo vergiliana, com a sua mais alta
expressão no romance poético, que a dissertação de doutoramento de
Rosa Goulart, Romance Lírico. O Percurso de Vergílio Ferreira (2),
procura empenhadamente inventariar, perseguir e comunicar.

0) Las vocês de la novela (2.a ed. corrigida e aumentada), Grados, Madrid,


1978, p. 16.
(2) Bertrand, Lisboa, 1990.

101
E consegue-o a autora desta tese sobre literatura contemporânea
escrita por romancista ainda vivo, atendendo bem, de início, à com-
plexidade de uma obra literária, polimórfica e polifónica; de uma
obra, como a do autor de Para sempre, habitada pelo desígnio de son-
dagem da condição humana, sacudida pelo espanto face à contemplação
do mundo, surpreendida pelo mistério de ser e conhecer, e percorrida,
claramente, pela relação do homem com o absoluto.
Relação essa que foi encontrar no romance lírico a sua forma
mais adequada de equaeionamento, segundo conclui a autora desta
tese: «Só através do romance lírico ele pôde, magistralmente, interrogar
antidiscursivamente sem negar o pensamento discursivo e lógico que
lhe estava indisfarçadamente por detrás, comover-se sem perder de
vista uma inteligência desperta que controla a espontaneidade da
efusão emotiva» (p. 293).
Ao debruçar-se sobre um autor que enfileira entre os nomes
cimeiros da renovação do romance português, este trabalho, de ine-
gável qualidade científica, vem até certo ponto repetir — sob outro
prisma, obviamente, e seguindo novas pistas interpretativas— a aven-
tura por outrem já cumprida em torno da mesma obra de Vergílio
Ferreira, com o primeiro doutoramento português sobre um autor vivo;
trata-se de Helder Godinho com a sua tese O Universo Imaginário de
Vergílio Ferreira (INIC, 1985) — tese metodologicamente apoiada nos
estudos de Gilbert Durand sobre o imaginário — a que já fizemos
referência nesta revista (3) e que Rosa Goulart, por sua vez, tomou
em linha de conta ao elaborar a sua dissertação de doutoramento na
Universidade dos Açores — dissertação essa que agora nos ocupa,
também, como aconteceu com a anterior.
E essa ocorrência de um segundo doutoramento sobre o mesmo
ficcionista vivo, ocorrido em breve espaço de tempo, mais vem com-
provar a complexidade literária do romance como, aliás, o tem con-
firmado a teoria literária contemporânea ao chamar a atenção para
a amplitude dos campos que ele abrange e para a consequente varie-
dade de perspectivas de estudo, como por sua vez sublinha a autora:
«Pelas vastas possibilidades da sua temática, pela constante evolução
das suas características, pela liberdade de que dispõe na selecção do

(3) «iBrotéria», Outubro 1986, pp. 323-329.

102
material utilizado e pela diversidade formal que ostenta, ele bem se
pode reclamar de um estatuto integrante e unificador de múltiplas
formas de escrita» (15).
Com efeito, é sabido que desde o século XIX evoluíram muito os
processos de construção do romance pela variação paralela dos seus
elementos estruturais dominantes. Assim, ultrapassando o âmbito estrito
de uma história bem contada, o romance passou a integrar cada vez
em maior escala a atitude lírica, a reflexão filosófica, a intrusão ensaís-
tica, a problematização da escrita, a questionação da própria lite-
ratura» (15).
O vivo interesse da autora de Romance Lírico. O percurso de
Vergílio Ferreira por esses novos processos de construção do romance
contemporâneo e, em particular, «pela feição marcadamente lírica que
era timbre de muitos deles» (16) foi germinando nela inicialmente
através da leitura de Signo Sinal, que acabava então de aparecer,
alastrando, a partir daí, à curiosidade da estudiosa pela restante obra
e levando-a, assim, à convicção cada vez mais clara relativamente à
«atitude lírica já encontrada em livros anteriores do mesmo autor».
Sem o saber nem prever, o próprio escritor viria, em Conta-
-Corrente II (Bertrand, Lisboa, 1981, p. 107), encorajar a sugestão
para o estudo de Rosa Goulart que lhe fora fornecida por aquela cons-
tatação da «atitude lírica»; fá-lo-ia o diarista, ao exprimir-se textualmente:
«No fim de contas, a poesia que me coube posso escoá-la perfeitamente
na prosa. Com a vantagem de me não comprometer previamente a ser
poeta».
É, portanto, essa «poesia escoada na prosa romanesca» que a
autora tentou pesquisar com o seu estudo em torno do romance poético
de Vergílio Ferreira; aí aborda, simultaneamente, questões de ordem
teórico-literária extensivas também à problemática do romance con-
temporâneo, de um modo geral; e isso por uma razão bem simples e de
fácil intuição: «... não deixando o romance de Vergílio Ferreira de
ser a expressão de uma voz bem pessoal e de uma mundividência que
lhe é muito própria, ele patenteia também, a nível semântico-pragmático
e téonico-compositivo, linhas de rumo que norteiam a ficção do nosso
tempo» (17).
Releva, assim, o presente estudo a singularidade da obra vergiliana,
por um lado, e integra-a no contexto da literatura contemporânea,
por outro; isso porque, segundo Vítor de Aguiar e Silva na sua Teoria
da Literatura I (5.a ed., Almedina, Coimbra, 1983, pp. 322 ss.) nem

103
qualquer escritor cria ex nihilo nem existe leitor algum que se encontre
em situação adâmica em face da obra que lê; ou seja, cada obra pola-
riza em torno de si conexões com obras similares, remetendo ao mesmo
tempo para diversos contextos.
De passagem, lembremos que é o próprio Aguiar e Silva, com o
seu reconhecido peso científico, que prefacia a obra em referência;
ele salienta o carácter inovador, no âmbito universitário português,
da dissertação de doutoramento que originariamente está na origem
do livro: «é um esplêndido e amadurecido fruto do espírito novo
que a Universidade portuguesa, no seu ensino e na sua investigação,
tenha deixado de ter medo da literatura contemporânea escrita por
autores ainda vivos» (7).
Esse espírito novo tem na raiz múltiplas causas; mas não dis-
pensa, naturalmente, «o domínio inteligente de um instrumento teórico
e metodológico consistente e adequado» tal como aquele que Rosa
Goulart revelou na análise da obra romanesca de Vergílio Ferreira; isso,
segundo o parecer autorizado do apresentador da obra que realça a
segurança e rigor da autora na fundamentação e utilização daquele
instrumental «que vai desde uma teoria da comunicação literária a
uma teoria da metáfora, de uma teoria dos modos e géneros literários
a uma teoria do texto narrativo» (8).
'É assim que, na base de sólidos alicerces, a presente tese se
aventura a dilucidar, com inegável subtileza, as razões por que o
autor de Manhã submersa se lançou a escrever romances líricos; e
fá-lo, aproveitando, como é óbvio, os numerosos textos do escritor em
que este se interroga sobre a «semiose literária», reflecte sobre a lin-
guagem e a escritura literária e revolve todas essas razões, fornecendo
aos seus críticos e hermeneutas valiosas pistas.
Se o romance proporciona a Vergílio Ferreira a possibilidade de
«circulação de ideias», discutindo, argumentando ou problematizando
em torno dos mais variados domínios culturais e arvorando-se em teste-
munha e intérprete do mundo que o rodeia, essa exigência de incursão
pelos diversos sectores culturais — da religião à filosofia e da política
à sociologia — coexiste, todavia, no autor de Em nome da Terra
com uma invulgar capacidade de admiração e deslumbramento face ao
mundo, aos seres e às coisas.
Tal surge, aliás, bem explicitado na conhecida passagem de Espaço
do Invisível IV: «Todos sabemos, no entanto, que em face de certas
paisagens do mar e da montanha, de um nascer ou pôr do Sol, do

104
momento em que uma grande lua se levanta, da contemplação de uma
flor, de um animal, de tuna pedra, a olhos limpos e disponíveis, nós
sentimos um estremecimento íntimo, unr transporte de nós, um indizível
encantamento na interrogação que não ousa, na revelação de uma
realidade irreal, oblíqua e misteriosa, que nos sublima e deslumbra».
É, portanto, dessa «estrutura de mistério, de espanto e de encan-
tamento» — na expressão de Aguiar e Silva para caracterizar o olhar
do escritor sobre o universo e sobre a vida — que brota o fascínio
vergiliano pelo lirismo cujas raízes e apelo a tese em questão se con-
centra em relevar e esclarecer ao longo de todo um percurso romanesco.
Ela consegue-o com um rasgo interpretativo específico que leva a
conciliar a linguagem dos instrumentos de rigor fornecidos pela teoria
da literatura com a linguagem do espanto e do faro intuitivo exigidas
pelo «carácter magmático dos romances de Vergílio Ferreira» (11).
Resulta daí que o texto é respeitado na sua singularidade e nunca
domesticado ou forçado pela grelha teórica; desta se prescinde, sim-
plesmente, todas as vezes que se impõe a entrada em acção da inte-
ligência intuitiva apoiada nessa antena apuradíssima da vibratilidade
literária do hermeneuta, pela qual é possível captar o mito vergiliano
de um humanismo de feição existencial, «mas imbuído de uma emoti-
vidade» (28) bem própria do escritor.
Radica aí a especificidade e a força do romance lírico tal qual
o entrevê a autora desta tese sobre o percurso ficcional de Vergílio
Ferreira. Lírico ou não, o romance continuaria a ser romance, é certo,
mas sê-lo-ia diferentemente: «O facto de ser lírico não só orienta a
nossa leitura e condiciona a nossa interpretação como lhe acrescenta
o que é do domínio da subtileza e da qualidade porque a lírica tem
aí a ver sobretudo com a tonalização de todo o romance ou com a
criação de uma atmosfera — embora possa haver passos em que ele
mais se evidencia e que são mais facilmente demarcáveis em relação
à narrativa» (32-33).
A tonalização do romance pela lírica, «que condensa, apura e
sublima» a globalidade da narrativa, em nada rouba valor à forma
discursiva com que ela entra em constante tensão e que se apresenta
«dominada fundamentalmente por nexos causais-temporais» (53).
À base dessa tensão se vai construindo o romance-problema onde
as ideias são postas emotivamente a circular por meio da história
ficcional: «Assim sendo, a expansão narrativa e a síntese convivem
sem se anularem mutuamente. As ideias exigem desenvolvimento, espaço

105
textual. A emoção exige a condensação, a exclamação contida, e a inter-
jeição de espanto, em suma, a economia narrativa. A arte de Vergílio
Ferreira está assim na conjugação hábil das duas atitudes opostas
— mas não inconciliáveis» (55).
Isso vem apenas confirmar a grande disponibilidade do espaço
romanesco que o ficcionista e autor de Espaço do Invisível IV
(.pp. 20 e 34) aí aponta claramente: «É certo que o romance tem muitos
recursos, ele é uma espécie de soma de todas as formas literárias».
Acto de reivenção do mundo e de reencontro da totalidade, a
escrita de Vergílio Ferreira deixa entrever aquele «alto investimento
emocional e expressivo, muito próprio da lírica» (68) e adivinhar,
ao mesmo tempo, nos personagens dos seus romances, a nostalgia de
uma pacificação sempre adiada na tentativa de ultrapassagem de todo
o real quotidiano, até às mais longínquas fronteiras do silêncio.
Os narradores escrevem «para ser» ou «para estar vivo»; e é o
estatuto de escritor que a eles, e ao autor, confere a razão de existir,
nesse trabalho autorreflexivo e em progressão, segundo encontramos
literariamente perspectivado, por exemplo, num texto paradigmático de
Rápida, a Sombra (2.a ed., Bertrand, Lisboa, 1979, p. 218): «Um livro
ainda, reinventar a necessidade de estar vivo. Mundo da pacificação
e do encantamento ... mundo do êxtase deslumbrado. Da minha como-
ção subtil e íntima, vidrada de ternura até às lágrimas ... Do frémito
misterioso da transcendência visível... Do reencontro com o impossí-
vel de mim. Da quietude submersa. Do silêncio».
Uma escrita motora e promotora da existência que vai haurir a
força da atitude lírica na «intensidade de estar sendo», ou seja, na
orientação fundamental para a busca das mais fundas raízes do homem
e para o «esforço de vislumbrar um centro ordenador da vida» tanto
no fascínio da sua «instantânea fulguração» como na consciência angus-
tiada da sua óbvia «inatingibilidade» .(70).
Instantes de alegria e de amargura, de indistinto limite, que a
poesia anima nos romances de Vergílio Ferreira e que encontram na
escrita o lugar da pacificação e da coerência, como dá a entender o
texto de Carta ao Futuro (3.a ed., Lisboa, Bertrand, 1981, pp. 81-82),
pressuposta—como salienta a autora — a interacção romance/ensaio
na obra do escritor: «Halo do instante primeiro, face original da vida,
porque conhecer o limite é incorporá-lo a nós, consubstanciarmo-nos
com ele — é por isso que a própria imagem da amargura, revelada na
arte, é para nós um anúncio do plenitude».

106
Daí o equilíbrio instável, no escritor em causa, entre a racionali-
dade e a efusão lírica, com o consequente impacto no tom da sua
escrita: «Porque é dentro da emotividade que o mundo tem sentido, e
a verdade humana, e a orientação fundamental de tudo o que nos
orienta. Porque o sentimento estético é uma comunicação com a essen-
cialidade da vida...» (ib., 97). Essencialidade essa que surge como
alvo nunca atingido, vindo determinar, em cada romance de Vergílio
Ferreira, o encetar de uma nova busca e um percurso sem fim.
Mas isso procura ilustrar mais pormenorizadamente o texto denso
de Rosa Goulart. Ele convida-nos a intuir a singularidade do escritor.
Traduz-se esta em arrostar, como outros romancistas do nosso tempo,
com a árdua mas gratificante tarefa «de assumir em pleno a condição
humana em Arte».

RELEMBRANDO F. A. VON HAYEK (1899-1992)

por J. MANUEL MOREIRA (*)

No mundo ocidental, Haydk é hoje geralmente considerado como


o pai do neoliberalismo, em especial depois que foi tido como inspirador
das 'revoluções' operadas por Reagan e Thatcher. Nos países do Leste
europeu ele é, contudo, desde há muito, um autor lido (durante muito
tempo clandestinamente e mesmo em traduções policopiadas) e res-
peitado pela coragem demonstrada desde os seus primeiros escritos
em desmascarar as promessas socialistas. 'Não é de estranhar por isso
que a recente e merecida atribuição a Hayek da 'Medal of Freedom',
feita pelo Presidente Bush em Novembro de 1991, fosse justificada pelo
impacto do seu pensamento em todos os países do mundo, e especifi-
camente se salientasse a relação entre as suas ideias e o rápido declínio
do socialismo na Europa de Leste. O reconhecimento de Hayek pelo
mundo académico e intelectual do ocidente é todavia um acontecimento
recente: «Há quase meio século, a maioria da gente bem fez chacota

(*). Faculdade de Economia, Univ. do Porto.

107
quando Friedrich Hayek publicou The Road to Serfdom. O mundo
estava errado e Hayek certo (Ronald Bailey, Forbes).
Mas atenção! A radical oposição de Hayek ao socialismo não
significa que ele ponha em causa as intenções dos socialistas ou mesmo
os seus 'valores'. Para Hayek o socialismo é, de facto, acima de tudo
um erro intelectual: uma presunção fatal {fatal conceit). Esta delicadeza
de Hayek para com os seus opositores foi notada por figuras tão insus-
peitas como Sohumpeter e Heilbroner. Não é por isso de estranhar que
a sua mais conhecida obra política e a única editada em Portugal
(O caminho para a servidão, tradução revista por Orlando Vitorino,
Teorema, Lisboa, 1977) seja dedicada 'aos socialistas de todos os par-
tidos'. Aliás, muitos desconhecem que Hayelk foi inicialmente um sim-
patizante do socialismo fabiano típico da sua geração, embora a pouco
e pouco, e em grande medida graças a L. von Mises, cedo se tenha
convencido da superioridade da ordem de mercado e se tenha revelado
não só hostil à economia planificada como um firme e brilhante
advogado da sobrevivência e melhoria da ordem liberal, a ponto de se
decidir pelo estudo da economia: não tanto pelo estudo em si mas
por achar que essa era a melhor forma de ajudar a tornar o mundo
num lugar melhor do que o da Viena do pós-guerra que ele permanen-
temente recordava.
As Collected Works of F. A. Hayek vão já no quarto volume
(dos cerca de vinte previstos) e estão a ser editadas em simultâneo
em inglês, alemão, japonês, espanhol, e esperamos também que em
português dado que os apoios mundiais à edição incluem entidades
brasileiras. Este acontecimento reflecte o interesse mundial por um
Professor que depois de Viena centrou a sua vida académica, suces-
sivamente, em Londres (London School of Economics), Chicago e
Freiburg (Alemanha), onde morreu na madrugada de 23 para 24 de
Março último, deu conferências em quase todo o mundo, incluindo
Portugal ('). Para uma melhor compreensão de Hayek não se deve

(') Para informação sobre esta passagem de Hayek por Lisboa ver Orlando
VITORINO, Exaltação da Filosofia Derrotada, Guimarães Editores, 1983.

108
esquecer que nasceu na Viena do fim do século e numa família
de grande tradição académica:

[Konrad] Lorenz encontrei-o eu pela primeira vez quando ele


era um rapaz de quatro ou cinco anos; [Otto] Frisch, o irmão
mais novo de amigos de meu pai; [Ludwig] Wittengstón, um
segundo primo da minha mãe de quem me recordo, a primeira
vez eim 1918 quando estávamos os dois a jurar bandeira na arti-
lharia do exército austro-húngaro; Bõhm-Bawerk, colega do meu
avô materno © companheiro de montanhismo; [Erving] Schrõdinger,
o filho do colega do meu pai que às vezes acompanhava o seu pai
aos chás dos botânicos em nossa casa (2).

Mas o que distingue afinal esta figura tão rica e tão polémica e
por muitos considerada como 'o maior filósofo económico e político
deste século' (Lord Harris of High Cross, Daily Telegraph)? Deixando
de lado questões de natureza mais académica e técnica, como as que
se referem às diferenças em relação a outras correntes do pensamento
económico (3) nomeadamente com a 'ortodoxia' keynesiana e os
'neoclássicos' e mesmo aos 'Prémios Nobel' M. Friedman e J. M.
Buchanan, procuremos salientar o essencial do seu pensamento.
Antes de mais importa dizer que em Hayek a sua 'teoria econó-
mica' não se pode separar das suas ideias sobre outras áreas do saber
humano e em particular das suas teorias acerca da percepção e cres-
cimento do conhecimento que favorecem o homem dinâmico e criativo:
o elemento empresarial. Isto torna ainda mais difícil destacar o que
é mais fundamental na fina e trabalhada rede de ideias e valores de
que se compõe a obra de Hayek.

(2) Cf. Stephen KRESGE, «Introduction», em F. A. HAYEK, The Trend


of Economic Thinking: essays on politicai economists and economic history,
Routledge, London, 1991, p. 5. Vol. III de The Collected Works of F. A. Hayek,
edited by W. W. Bartley, III, e Stephen Kresge. A Karl Popper, com quem teria
uma relação rica e intensa, só o viria a conhecer fora da Áustria e em situações
especiais, o que levaria Popper, na sua Autobiografia Intelectual, a referir-se a
Hayek como sendo uma pessoa que lhe salvou a vida (académica) duas vezes.
(3) Para um mais completo tratamento destas questões consultar a nossa
tese de doutoramento: Filosofia e metodologia da economia em F. A. Hayek
ou a redescoberta de um caminho 'terceiro' para a compreensão e melhoria da
ordem alargada da interacção humana, Universidad Pontifícia Comiilas, Madrid,
1992.

109
Pensamos contudo que um dos seus traços mais característicos,
mesmo em relação a outros 'austríacos' como Mises, está na ênfase
na 'ordem espontânea' e nos 'limites da racionalidade'. Esta ênfase
é nele inseparável da distinção entre dois tipos de liberalismo (4):
o racionalista ligado a uma tradição utilitarista que acentua a razão
e a capacidade do homem para moldar o seu meio, e a tradição evo-
lutiva inglesa (da common law) ou clássica do liberalismo que acentua
os limites da razão e as forças da ordem espontânea, de que o mercado
é apenas um bom exemplo (5): uma ordem situada entre o instinto e a
razão.
O 'liberalismo-conservador' de Hayek tende assim a acentuar a
Tradição: «o que torna o homem bom não é nem a natureza nem a
razão mas a tradição». O seu evolucionismo cultural leva-o mesmo a
considerar que a cultura não é nem natural nem artificial, nem geneti-
camente transmitida nem racionalmente desenhada, e a defender que
o homem não adoptou novas normas de conduta porque era inteligente,
pelo contrário tornou-se inteligente ao submeter-se a novas normas de
conduta e por isso a concluir que nós nunca 'desenhamos' o nosso
sistema económico, pois não somos suficientemente inteligentes para
isso. Hayek é um liberalconservador (não um neoconservador) (6) que
vai mesmo ao ponto de acolher o lamento de tantos de nós que con-

(4) Para um mais amplo desenvolvimento, ver o nosso texto «Liberalismo


'francês' versus liberalismo 'inglês': uma chave para a interpretação do libera-
lismo em Portugal», em A. ALMODOVAR, org., Estudos sobre o pensamento
económico em Portugal, Faculdade de Economia, Porto 1990, pp. 147-189.
(5) Hayek considera que para além do mercado há outros instrumentos
básicos da civilização como a língua, a moral, o direito e o dinheiro que devem
ser considerados como resultado do crescimento espontâneo e não do desígnio
humano, embora sem deixar de acrescentar que os dois últimos, desde que o
poder organizado deles se apropriou, se têm vindo a corromper. Cf. F. A. HAYEK,
Law, Legislation and Liberty, vol. 3, p. 163.
(6) Hayek termina a sua obra The Constitution of Liberty (que alguns
consideram como a sucessora no século XX do ensaio de J. Stuart Mill,
On Liberty) com um postscript intitulado «Why I Am not a Conservative». Aliás
na sua última obra Hayek lembra este postscript e salienta que o seu conserva-
dorismo se limita aos aspectos morais. Cf. F. A. HAYEK, The Fatal Conceit:
The errors of Socialism, The University of Chicago Press, Chicago, 1989, p. 53.

110
sideram o progresso como demasiado rápido e que seria melhor que
fosse mais lento, mas sem deixar de acrescentar que «infelizmente o
progresso não pode ser doseado (nem sequer o crescimento económico!)».

Tudo o que nós podemos fazer consiste em criar condições


favoráveis para ele e então esperar o melhor. Pode ser estimulado
ou adormecido pela política, mas ninguém pode prever os efeitos
concretos de tais medidas; pretender conhecer a direcção desejável
do progresso parcce-me ser o extremo da hibris. O progresso
guiado não seria progresso. Mas a civilização felizmente tem avan-
çado para além da possibilidade de controle colectivo, de outra
forma nós seríamos provavelmente sufocados por ele (7).

A ordem económica de uma sociedade livre, para Hayek, só se


pode compreender num contexto de certas normas morais e jurídicas
que tornam a referida ordem possível. A sua concepção de economia
de mercado ou como Hayek, na esteira do Arcebispo Whately, pre-
fere chamar 'cataláxia' — é um jogo com regras, em que a liberdade
e a sua limitação devem ser vistas lado a lado, e por isso nada tem
a ver com o chamado laissez-faire<(s).
Tudo isto leva a que para Hayek e os austríacos o 'problema
económico' não possa ser visto como o da afectação de recursos, mas
como um problema de coordenação de planos individuais e grupais
feita permanente por um mecanismo de preços, em que estes funcionam
(num mundo de conhecimento tácito e disperso) como 'sinais' num
sistema de telecomunicação capaz de a todo o momento dar indica-
ções e criar incentivos para novos e permanentes ajustamentos e uma
maior correspondência entre a multiplicidade de decisões dos inúmeros
participantes no mercado.
Em suma, Hayek não é apenas alguém que ajudou à queda dos
regimes de socialismo real ao mostrar porque é que eles não funcionavam
nem podiam funcionar. O seu principal papel foi ajudar a compreender
como funciona, e as condições de funcionamento da economia enquanto
jogo cataláctico. De igual modo a sua denúncia da miragem da 'justiça
social' não pode ser vista como pondo em causa nem a definição de

(7) F. A. HAYEK, Law, Legislation and Liberty, vol. 3, p. 169.


(8) Como é notório desde os primeiros escritos de Hayek e em particular
em The Road to Serfdom.

111
um1 rendimento mínimo nem a verdadeira justiça social que é sempre
moral, voluntária e pessoal, mas os efeitos perversos de uma justiça
sujeita não a normas gerais mas ao que o Governo e a 'maioria' em
cada momento entendem ser de interesse .público ou 'social'. Hayek
é na verdade tão adversário do 'igualitarismo económico' como das
suas consequências: o relativismo moral e o utilitarismo; e um defensor
do ponto de vista que as normas gerais devem prevalecer para a espon-
taneidade florescer. Em rigor, a crítica de Hayek à 'justiça social' tem
de ser apreciada a par da sua insistência na importância de um terceiro
sector independente entre o 'comercial' e o 'governamental' e das suas
propostas de melhoria da ordem alargada da interacção humana que
buscam uma ordem baseada em princípios e não em conveniências,
sejam elas dos governantes ou dos grupos de interesses organizados que
permanentemente exercem pressão (e mesmo chantagem) sobre as
decisões dos governos.
Eis um 'retrato', ainda que em traços muito gerais, de Hayek,
Nobel da Economia, mentor da criação da Mont Pélèrin Society (9)
e o mais destacado representante da quarta geração da escola austríaca
de economia, uma escola que hoje atrai de novo aqueles estudantes
que têm uma larga gama de interesses, fazendo assim jus a uma apetên-
cia pela interdisciplinaridade tão comum aos seguidores da tradição
austríaca.
Entre nós contudo este texto ficaria incompleto se não se fizesse
uma referência à aproximação que Hayek estabelece entre a 'escola
austríaca de economia' e a chamada 'Escola de Salamanca'. Hayek
chama mesmo- a atenção para as origens ibéricas da economia de mer-
cado e em particular para Luis de Molina (10) que ele considera deste

(9) Uma associação internacional de liberais para a qual Hayek propôs


o nome de Acton-Tocqueville Society, embora tal tivesse sido recusado devido
à oposição de Frank Knight, pai da Escola de Chicago, a que uma entidade deste
carácter tivesse o nome de um pensador católico.
(10) A este propósito podemos informar que apresentámos no âmbito do
Encontro Ibérico sobre Pensamento Económico (Lisboa, 27-29 de Abril de 1992)
uma comunicação sobre «Luis de Molina e as origens ibéricas da economia de
mercado».

112
ponto de vista o mais importante dos jesuítas desse tempo. Este realce
de Hayek em relação ao Doctor Eborensis é para nós portugueses muito
interessante dado que Molina fez quase toda a sua vida académica em
Portugal. A sua preferência por Molina, um dos menos monetarista
da Escola, é também mais uma prova da pouca justeza de considerar
Hayek como o 'pai do monetarismo5 (").

( n ) Uma etiqueta que como tantas outras embora amplamente espalhada é


inadequada em especial quando relacionada com a 'simples teoria quantitativa
do dinheiro' de Friedman, em relação à qual Hayek teve o cuidado de se
demarcar, em especial na sua «nota sobre o monetarismo» que insere no seu
ensaio sobre Desnationalisation of Money; an Analisis of the Theory and Pratice
of Concurrent Currencies. The Institute of Economic Affairs, London, 1978
(1." edição 1976).

113
8
B I B L I O G R A F I A

SOCIOLOGIA da cidade leva a convergir no campo


de morte passiva e activa que é o urba-
Laborit, Henri: O HOMEM E A nismo selvagem, sem atender à maté-
CIDADE. 230 págs. Biblioteca Uni- ria viva a todos os níveis (micro e
versitária-57. Europa-América, Mem macro). Neste ponto a 'atenção' é tanto
Martins, 1991. mais importante quanto na liberdade
é mais difícil introduzir o feed- back
«A cidade, palpitante de multidões, autocorrector do que no mecanismo
não vive; digere». Não dando tempo •inconsciente. Por isso, desde sempre
para pensar, «tudo tem subjugado o cancro social é produto humano. Daí
pela impessoal coleira de ferro do seu que para transformar o ambiente seja
trabalho diário» (172-73). preciso transformar o homem (30),
Escrito há vinte anos por um ana- sobretudo na sua dimensão social.
lista de nome, este livro pode dizer-se O A. tem o preconceito científico-
já um clássico e mantém actualidade, -iluminista de que a ciência é que muda
ainda que abrandada em alguns aspe- o homem. Arrefeceu na monod-mania
ctos. Ligando dois temas cada dia de há anos (34), mas não ultrapassou
mais candentes — biologia e urba- a convicção de que «julgamentos de
nismo — debruça-se sobre «o homem valor não têm outro valor que não
carente de compreensão dos fenómenos seja aquele que o egoísmo individual
vivos» e «a nível de plano sociológico» ou social lhes atribui» (47). Cremos
(11). É pois uma abordagem socioló- que mais rigor filosófico do autor evi-
gica do urbanismo, relativamente longe taria afirmações dúbias como «a ima-
do interesse dominante: ganho-, lucro ginação [é] a única propriedade real-
e poder. Para Laborit, «o único mente humana» (54), «libertar-se de
objectivo da expansão económica é o julgamentos de valor» (54, 139), «infor-
lucro» (181). A sua visão socioeconó- mar sem educar» (57), e que maior
mica, além de crítica, é pessimista e exigência do tradutor poderia melho-
mesmo exagerada (cf. 202) ou até rar o nível da expressão-compreensão
catastrofista (226-27): «Direitos, liber- (ex. p. 51).
dades, democracia... palavras infeli- Digamos claramente que acima da
zes» (3118-19). Com a consciência de «biologia dos comportamentos huma-
laborar' em certa dose de contradição nos» (205) apreciamos a 'filosofia' dos
(225), é seu objectivo chegar a um mesmos, capaz de ditar 'regras' à capa-
tipo de urbanismo e a uma preocupa- cidade dos conhecimentos científicos
ção social diferentes dos que ainda se e das técnicas decorrentes — isto é, o
praticam e são ameaça à sobrevi- normativismo da 'moral' e dos 'valo-
vência do homem e da natureza em res' que o A. arreda a pontapé cien-
processo vivo de interacção. tífico (?) de 'neurobiologia' (111, 155)
Sem atentos cuidados de preserva- em ordem ao «determinismo dos com-
ção humano-ambiental, o crescimento portamentos» (228). Curiosa, aliás a

114
ambição de tantos cientistas a con- e civis tal como existem na sociedade
siderarem-se novos Galileus. — F. Pi- — sem esquecer as ameaças dum
res Lopes. ritualismo póstumo. É intenção explí-
cita do A. limitar-se a aspectos arcaicos
e à cultura ocidental para esclarecer
Vários: IGUALDADE, DEMOCRACIA «as funções, os tipos e as teorias gerais
E DIREITOS HUMANOS. 128 dos rituais; pondo a tónica nos ritos
págs. Cadernos Condição Feminina- seculares e quotidianos, mas buscando
-33. Comissão Igualdade e Direitos as causas da crise contemporânea da
das Mulheres, Lisboa, 1991. ritualidade e a emergência de novos
rituais» (9).
Que têm a ver igualdade, democra- Já no latim, rito e ritual referem-se
cia e direitos humanos com a 'con- tanto a eventos de conteúdo religioso
dição feminina'? Nada e tudo. Nada, quanto a celebrações de significado
porque as primeiras afirmações ex- civil e marcam ou solenizam tempos
cluíam 'as mulheres e os escravos'; fortes da existência. Como membros
tudo, para que essa mentalidade vá da sociedade civil ou da comunidade
acabando. religiosa, foram os homens estrutu-
Este caderno edita a s . «Actas do rando usos e costumes, formas de
seminário realizado a 24 e 25 de Maio vida, ritos individuais ou colectivos,
de 1990», cuja temática deu o título. com a finalidade de celebrar festas,
Compreende-se que os três temas vincar acontecimentos, fortalecer con-
— cada um por si já amplo e complexo, vívios, implorar auxílios ou mesmo
sobretudo o terceiro — tenham exigido vencer inquietudes. Porém, na ori-
colaboração de muitas personalidades gem, alguma dimensão religiosa. É fre-
e dificultem a tentativa de síntese, quente cerimónias laicas copiarem a
mesmo se todos e cada um dos colabo- solenidade do ritual religioso. A tão
radores visam a igualdade de direitos, descuidada 'cerimónia' (ou urbanidade)
única fonte da real democracia vivida. não começou por ser 'culto sagrado'?
Mas chamamos a atenção para os Como escreveu Saint-Exupéry, «para
aspectos comparativos (facetas euro- dispor o coração é necessário um
peia ou universal e portuguesa) do rito —o que faz com que um dia seja
problema. Na sessão de abertura, quatro diferente dos outros» (100). Afinal,
breves intervenções. Uma conferência enquanto elemento de relacionação,
e um painel (este com duas interven- todo o rito é como a pintura na mu-
ções) para a dimensão europeia. Outro lher: «uma espécie de luta corpo a
painel (com cinco intervenções) e corpo entre ela mesma e o espelho»
outra conferência (cujo texto não che- (104). Porque os rituais são rituais,
gou a tempo de publicação) para a se se foge de um é para cair noutro,
caracterização nacional. Na sessão quantas vezes pior. Mas o que se busca
de encerramento: três intervenções, é, na fluência dos momentos, a con-
incluindo a do Ptímeiro-Ministro. tinuidade da vida: delir o tempo e
Em apêndice, as conclusões ; a subli- vencer a morte.
nhar que este não é um tema mar- O original é de 1988 na colecção
ginal, mas autêntico desafio sociopo- 'Que sais-je »— F. Pires Lopes.
lítico e de 'mudança cultural real'
como problema de mentalidades. Isto POLÍTICA
é, que homem e mulher são igual-
mente humanos. — F. Pires Lopes. Maltez, José Adelino: ENSAIO SOBRE
O PROBLEMA DO ESTADO — I:
Maisonneuve, Jean: RITOS RELIGIO- A Procura da República Maior;
SOS Y CIVILES. 150 págs. Herder, II: Da Razão der Estado ao Estado-
Barcelona, 1991. -Razão. 352 e 448 págs>. Academia
Internacional da Cultura Portu-
Tradução de obra dum professor guesa, Lisboa, 1991.
universitário em Paris na qual se
resumem as diversas teorias com que • Obra de grande balanço, esta dis-
os autores explicam os ritos religiosos sertação de doutoramento em Ciências

115
Sociais e Políticas, sob ariemtação de pistas de orientação e aprofundamento:
Adriano Moreira. A ideia-base está na bibliografia cronológica sobre o tema
longa epígrafe recolhida de Agostinho Estado. Mais do que uma opinião ou
da Silva e donde salientamos: «O po- tese, trata-se de uma listagem de opi-
der emana das aldeias no curtido dias niões — inventário de leituras, diría-
faces, no mugido dos gados, no escam- mos. Com a suficiente atenção a auto-
pado horizonte, na imobilidade e no res e história de Portugal. E saibam
gesto, no silêncio e na palavra; ... mas os obscurantistas detractores da Idade
com o município a primeira república Média que nos séculos XII e XIII nas-
se forma e sobre ela tudo o resto se ceram as grandes instituições: univer-
tem de modelar». sidade, moeda, comércio, Estado — o
Que depois se faça (o A. faça) que leva a «proceder à necessária revo-
'a procura da república maior' (T.I) lução cultural depois de ruptura civi-
e em caminho se passe 'da razão de lizacional» (II, 65).
Estado ao Estadorazão' (T.II), àquele Na fase evolutiva actual, o Estado-
primeiro alicerce —o homem na luta -nação «é hoje a matriz qualificativa
pela vida — vai tudo buscar inspira- de mais de centena e meia de mem-
ção, solidez e razão de ser. Por isso, bros de pleno direito da ONU. Pode
uma certa homologia do sagrado e ser um mito, um monstro, um con-
do político é regida por uma terceira ceito, um impossível lógico, mas
dimensão: a ordem das coisas, ordo existe... mesmo que não obedeça às
rerum (H, 42). linhas de coerência histórica ou que
E dá vigor à consciência de cida- pouco tenha a ver com a racionalidade
dão leitor acompanhar nestes volumes ou o bem comum... O Estado está.
o progresso e a certeza com que nave- Mesmo em crise, constitui um dos ele-
gam mares procelosos de históra polí- mentos mais estáveis no processo orga-
tico-social, cientes de que o rumo é nizacional deste nosso universo», ape-
para a república maior e para o Estado sar de «a expressão Estado representar
-razão. Tacteando onde pôr o pé, mas um dos principais equívocos da ciên-
assim definindo poldras à primeira cia politica, da filosofia política e do
etapa da exposição: necessidade de próprio direito» (II, 80).
uma ciência de princípios, procura dos Motivos para isso não faltam. Bom
limites da política, mestres e méto- definidor do Estado da primeira me-
dos (ronda dos ismos), sociadade-comu- tade do séc. XX, com raízes no
nidade, o poder à procura de autor 'stupide XLXe siècle', foi Mussolini:
(ou da origem), nação ou o chão mí- «O século actual é o século da auto-
tico da 'polis'. E com a 'polis' já ridade, século de direita, século fas-
estamos na 'política', ainda grega. cista ... século colectivo, século do
Mas muito mais grega se vai ver Estado» —o 'stato totalitario'. O que
quando indevidamente se embrulhar na dá: sociedade — nação = Estado = Go-
razão de Estado. Outros tenteios verno = chefe (H, 169-71). Como lição,
— mais difíceis de acertar — para não note-se a última afirmativa: o Estado
perder o pé na caminhada deixam não criou a natureza nem percebe de
pegadas de segunda etapa da exposi- sobrenatural (El, 326).
ção: o Estiado como conquista da his- Além de outras referências na
tória, estatolatria ou o Estado como bibliografia, agradecemos a que diz
Igreja, o contratualismo liberal ou o respeito ao «grupo da revista Brotéria»
Estado como sociedade, o institucio- contrário à política salazarista de
nalismo ou o Estado como comunidade. manter o Ministério da Educação sob
Tudo bastante mais em dilucida- influência maçónica (I, 330). Entre a
ção de teorias (donde a multidão de lama e eis estrelas, 'qui veut faire
autores citados) do que à base da his- Tange fait la bête'.
tória subjacente, que dá força à pró- Haverá que corigir bastante latim
pria terminologia. E a caminhada con- inexacto, fora de concordância e caso.
tinua, a par com os progressos cons- Algumas incorrecções em português
cientes e as vivências, porque, enquanto são do tipo «é um dos que considera
lhe derem tempo, o homem é um ser que» (196, 293; 153, 249).
de futuro. A isso visam as indicadas

116
Uma novidade para nós: Comte, que já foram ditas» (99), «a qualidade
no último ano de vida (1857), enviou dos deputados é problema urbi et orbi»
a Roma Alf. Sabatier a propor uma escandalizam «viagens ao Conselho da
aliança com os jesuítas para «pressio- Europa e reuniões de rentabilidade
nar todos os que acreditam em Deus muito discutível» (320); além de «ha-
a voltar ao catolicismo», ficando os ver comissões a mais», precisa-se «auto-
outros positivistas (I, 162). Pobres disciplina para fazer um discurso mais
jesuítas! Até Che Guevara dizia que cozido e sem repetições» (348-9), ou
«o guerrilheiro é o jesuíta da guerra» «debates mais curtos, mais to the point,
(I, 203). Arquivamos o que Gilson disse mais isentos de retóricas» (420) ...
e Carnus citou: À idade dos filósofos Permanente nota de optimismo:
que se ocupavam de filosofia, suce- «Vivemos um tempo aliciante. Recons-
deu a idade dos professores de filo- trói-se a Europa. Procuram-se doutri-
sofia que se ocupam de filósofos» nas que respondam às necessidades do
(I, 217). Estaremos com quem disse terceiro milénio» (309) ... Mas a dar
que o séc. XVHI duvidou, o séc. XIX uma lição: a 'overdose', o estrelato
acreditou na dúvida e o séc. XX julga ou a vedetização, o correr ao micro-
que sabe (225); e os futuros vão fone, o apetite pelo 'triqui-triqui' não
sendo regressos, em que muito do novo levam a nada (362-3). E a alertar
é apenas parte daquilo que se esque- possível decepção: ora corremos com
ceu (cf. 227). — F. Pires Lopes. os olhos postos na 'modernidade', ora
a ver-nos em 'pós-modemidade'. Como
intelectual: «Começo numa área cien-
Crespo, Vitor: REFLEXÕES PARLA- tífica ... Faço progressivamente uma
MENTARES. 432 págs. IN-CM, transição para o lado do Homem»
Lisboa, 1991. (381-2) — esse que «não se faz a
escopro e martelo» nem com 'tecno-
Reflexões que reflectem também cratas' (396).
a diferença entre a toga, o fraque, o Mas a quem veio da Educação
casaco e mangas de camisa — ou Nacional podem estranhar-se as mui-
mesmo a capa de profeta. Discursos tas majestades com 'g' (161-5, 285,
oficiais (recepções, jantares, visitas) e 306), a gramática de «uma das coisas
entrevistas; por ordem cronológica, de que me preocupa é» (106), «sou dos
Agosto de 87 a Junho de 91. Em repu- que acredito» (385), as trocas na sílaba
blicação parcial, pois o volume colige inicial de 'perverso' e 'precursor',
«as intervenções proferidas durante a além das gralhas inevitáveis. E não
V Legislatura, na qualidade de Presi- troquemos a 'subsidiaridade' portuguesa
dente da Assembleia da República, pela 'subsidariedad' espanhola (2811).
que foram publicadas ou objecto de — F. Pires Lopes.
registo», deixando assim, com EIS ine-
rentes marcas de tempo e lugar, os
sinais exarados de «um comporta- Sousa, Marcelo Rebelo de e Outros:
mento parlamentar», bem como de PORTUGAL EM MUDANÇA —
«uma lógica e uma postura» de pre- Ensaio sobre a actividade do XI Go-
sidente, a nível pessoal e funcional. verno Constitucional. 368 págs.
Reconhece que na AR é «bom lugar IN-CM, Lisboa, 1991.
para trabalho a excelente Biblioteca
quase sempre vazia — o que até expli- Diz o rifão que de boas intenções
cará o transbordante palavreado e a está o inferno cheio (os franceses di-
«produção legislativa em excesso» zem 'calcetado'). Se não fosse a boa
(66-7) e incentivará as «vassouradas» intenção de «consolidar Portugal como
(77) não só contra a mediocridade, na país moderno e desenvolvido», poderia
linguagem de certos parlamentares recordar-se o outro ditado: ninguém
(91-2) e alguns comportamentos nas me gaba, gabo-me eu. De facto «esta
galerias, mas contra a corrupção e a edição foi executada para a Presidên-
impunidade (110, 341), pois «a AR cia do Conselho de Ministros» que
não está muito prestigiada» (94): «entendeu recorrer à consulta de per-
«gasta-se muito tempo a repetir coisas sonalidades externas ao Governo e de

117
reconhecida competência científica, (312) e «A estabilidade e o desenvol-
para que se pronunciassem com total vimento pressupõe» (318). Em suma':
independência, sobre a actividade do questão de prova geral de acesso
XI Governo Constitucional» (1985-91). — essa PGA que muito anda a dar que
Claro: o resultado testemunha o que falar! — F. Pires Lopes.
foi realizado e as alterações conse-
guidas. E «os trabalhos de indiscutí-
vel qualidade aqui publicados» não inte-
ressam só ao nível do Estado mas a Leservoisier, Laurent: OS PARAÍSOS
quantos se interessam pelas grandes FISCAIS. 132 págs. Economia e
questões nacionais. Gestão-16. Europa-América, Mem
•Efectivamente, a estabilidade con- Martins, 1992.
seguida faz esquecer a turbulência ante-
rior às últimas depurações constitucio- Como países, toda a gente os
nais. O triunfo da reeleição foi estron- conhece. Como paraísos fiscais, só os
doso; e o consequente cataclismo inter- privilegiados. Por muito que disfarcem
no nos partidos de oposição alonga a bandeiras, são refúgios de mercado-
prova. Mas hoje é patente alguma res e traficantes que desejam esca-
arrogância de palavra e atitude por par a impostos. Mas quem mais ganha
parte dos triunfadores — coisa que são os paradisíacos adões da batota,
estes 'críticos competentes' tiveram que aí encontram a árvore das pata-
dificuldade em (pre)ver ou sequer adi- cas. Com alguma utilidade para todos
vinhar: Marcelo reconhece que a revi- os intervenientes e utilizadores. Mas
são de 1989 «reduziu ligeiramente a há também os privilégios incentivan-
autonomia regional» (14, 16); a inefi- tes e legalmente constituídos, além
ciência da Administração Pública é das zonas francas.
sublinhada por vários, bem como o Em evasão fiscal, se os indivíduos
desequilíbrio na repartição de rendi- sabem muito, quanto mais não sabem
mentos; bastantes falam mesmo da as sociedades, as nações e as multina-
mudança de regime económico (rigor cionais? Os janos bifrontes (com uma
e estabilização já drasticamente agra- face legal e outra secreta) variam de
vados em 92). pequenos janículos a janotas gigantes:
M. R. de Sousa considera os aspectos «A imaginação dos utilizadores não
políticos, M. Pinto os da consertação tem limites» (76-125), pelo que «os
social, A. C. B. Borges os económico- paraísos terão belos dias à sua frente»
-financedros (campo de melhoria mais (128).
visível, mas «a manter o pais longe dos Entre denúncia e revelação ou crí-
Standards europeus» e com um 'a fa- tica e recomendação, sob três faces
zer' mais impressionante do que 'o se encaram os paraísos fiscais: cara-
feito'). N. Rogeiro sobre a defesa e cterísticas e escolha, importância
J. B. de Macedo sobre a integração económica e nível de utilização, técni-
europeia apresentam textos que são cas utilizáveis. «Ingleses e americanos
mais a latere que de comentário à são os utilizadores mais importantes
acção do Governo, e C. Costa faz o dos paraísos fiscais» e «estão na ori-
balanço dos 6 anos de integração na gem da maior parte deles» (10) — mo-
Europa. ços de recados à porta do patrão,
Estranha-se que quem se propõe claro! Polícias e ladrões — duas faces
defender a língua escreva: «A mu- do mesmo jogo. Bancos (sobretudo
dança nos objectivos foram determi- estrangeiros) e sociedades interme-
nados pela Revolução» (168), «0 em- diárias também são bons aproveita-
penho ... não só foram positivos como dores. Protótipo, a Suíça. E quem não
«Os que perderam Deus não mais dá uma ajudinha para lavar dinheiro
interagiram» (306). «A análise dos sujo? Todo um enchame vive deste
desenvolvimentos permitem concluir» melaço. — F. Pires Lopes.

118
Obras Recebidas na Redacção

OFERTA DOS AUTORES Ed. Oración y Servicio


— Borgo S. Spirito, 5,
João Barroso da Fonte, Aspectos me- 00195 Roma (Itália):
nos conhecidos do Paço dos Duques Peter-Hans Kolvenbach, Mision agra-
áe Bragança, 1992; . A Igreja de dabile (Munus suavissimum), 1988.
S. Miguel do Castelo, 1992; Guima- P. Frank Cook
rães — Roteiro turístico, 1991, Edi- — Largo do Rato, 14-3.° Esq.,
tora Correio do Minho/SM, Braga. 1200 Lisboa:
Neto de Carvalho, Direito, biologia e 1) Travei Guides, Lisboa, Porto,
sociedade em rápida transforma- Algarve, Madeira, 1990-1991.
ção, Liv. Almedina, Coimbra, 1992. Société des Bollandistes
Francisco Leite de Faria, As muitas 24, bd. Saint-Michel,
edições da «Peregrinação» de Fernão B-1040 Bruxelles (Bélgica):
Mendes Pinto, Academia Portuguesa Robert Folz, Les Saintes Reines du
de História, Lisboa 1992. Moyen Âge en Occident (VI-XIle
António Augusto Gonçalves Rodrigues, siècles), 1992.
A tradução em Portugal, 2 Vols., Tartaruga
1992. — Rua Magalhães Gonçalves,
Fernando Ruy dos Santos Gilot, Signi-
ficação teológica dos Ministérios da 37-2.° Dt.°, 5400 Chaves:
Igreja, Separata de «Itinerarium», Fernão de Magalhães Gonçalves,
Lisboa 1S92. Ser Torga, 1992.
Paul P. Gilbert, La semplicità dei Ed. A. O. — Largo das Teresinhas, 5,
principio, Piemme, Casale Monfer- 4719 Braga Codex:
rato 1992. 1) Mons. José Filipe Mendedros,
António Diniz, Espariz. Subsídios para Roteiro histórico dos Jesuítas em
a sua história, Edição do Autor, Évora, 1992.
Coja 1991. 2) Evaristo de Vasconcelos, Deus
Paulo Brito e Abreu, Agricultura comigo, 1992.
celeste, 1992. 3) Gerard W. Hughes, O Deus das
Elviro Rocha Gomes, Realces, Ed. do surpresas, 1992.
Autor, Faro 1992 Pontifícia Comissio Justitia et Pax
— 00120 Città dei Vaticano:
1) Hervé Carrier, El nuevo enfoque
OFERTA DOS EDITORES de la doctrina social de la Iglesia.
2) Les droits de Vhornme et 1'Église,
Morata — Mejia Lequerica, 12, 1990.
28004 Madrid (Espanha): 3) De «Rerum novarum» à «Cen-
1) Keith Swanwick, Música, pensa- tesimus annus», 1991.
miento y educación, 1891. Europa-América — Apartado 8,
2) Stephen Wass, Solidas escolares 2726 Mem Martins Codex:
y trábajo de campo en educa- 1) Érica Jong, História de uma
ción primaria, 1992. obsessão, 1992.
3) Trevor H. Caimey, Ensenanza de 2) Pedro Guerreiro, Elementos de
la comprensión lectora, 1992. programação com C, 1992.

119
3) Paul Anderson, 0 barco com um Caminho —R. de S. Bernardo, 1'4,
milhão de anos, 1992. 1200 Lisboa:
4) Philip Warner, A batalha de 1) Carlos Correia, Maria Alberta
França, 1992. Meneres, Natércia Rocha, O mis-
5) Mary Higgins Clark, A síndroma tério das motas sepultadas, 1992.
de Anastásia, 1992. 2) Maria Isabel Barreno, O chão
Centre International de Formation salgado, 1992.
Européenne (C.I.F.E.) Cooperativa Cultural de Baião Fonte
— 32, rue de Lépante, de Mel, CRL — Rua Comandante
F-06000 Nice (França) : Agatão Lança —4640 Baião:
VEwrope en formation, N.° 283, Bayan, N.° 2, 1991:.
1991-1992. Renascimento Musical
Ed. «La Civiltà Cattolica» — Quinta da Magoa, 12 A-5.° E,
— Via di Porta Pinciana, 1, 2775 Carcavelos:
00187 Roma (Itália): Documentos para a história da
1) Giovani Càprile, II Sínodo dei música portuguesa, 3 cadernos, 1991,
Vescovi 1990, 1991. Assírio & Alvim
2) Gianpaolo Salvini, (A.), Vuomo, Rua Passos • Manuel, 57-B,
la storia, Dio, 1991. 1100 Lisboa:
Afrontamento — Rua Costa Cabral, 859, Friedrich Hõlderlin, Elegias, 1992.
4200 Porto: Cerf —129, bd. Latour-Maubourg,
Alberto Oliveira Pinto, O Senhor de 75340 Paris Cedex 07 (França):
Mompenedo, 1992. 1) Jeam Rigal, Le mystère de
LIAM — R. Santo Amaro à Estrela, 49, 1'Église, 1992.
1200 Lisboa: 2) Bemhard Háring, La théologie
Charles Mittelberger, A sabedoria morale, 1992.
do povo cuanhama em provérbios e 3) Jean-Pierre Charlier, Compren-
adivinhas, 1991. dre VApocalypse, T. n , 1991.
Distribuidora de Publicaciones 4) René Boureau, L'Oratoire en
— Apartado 01675 Trance, 1991.
5) Daniel Louys, Le jardin d'Éden,
San Salvador (El Salvador): 1992.
Economia Brindisina, 1/2, 1991. 6) Wang Fu, Propos d'un ermite,
Herder — Provenza 388, 1992.
08025 Barcelona (Espanha): 7) Xavier Thevenot, Compter sur
1) Dieter Ulich, Iniciaci&n a la psi- Dieu, 1992.
cologia, 1922. 8) Chantal Reynier, Évangile et
2) Paul Watzlawick, La coleta dei mystère, 1992.
bar cm. de Miinchhausen, 1992. Instituto de Estudos Clássicos
3) Norbert Lohfink, Lo alianza — Faculdade de Letras
nunca derogada, 1992. 3049 Coimbra Codex:
4) Herebert Haag, El país de la li) Medeia no drama antigo e
Bíblia, .1992. moderno, 1991.
5) Rainer Guski, La percepción, 2) Walter Medeiros, Carlos Ascenso
1992. André, Vergínia Soares Pereira,
Elo —R. D. Estefânia, 177-3.° D., A Eneida em contraluz, 1992.
1000 Lisboa: Desclée — Toumai-Louvain-la Neuve:
João Osório de Castro, Contos em Hervé Carrier, Lexíque de la cul-
memória, 2 Vols., 1991. ture, 1992.

120
BROTÉRIA
(Rua Maestro António Taborda, 14— 1293 LISBOA Portugal)

faz parte de uma série de revistas europeias semelhantes


onde também se encontram:

• La Civiltà Cattolica
1 Via di Porta Pinciana, 00187 Rome, Itália

• Choisir
18, rue Jacques Dalphin, 1227 Carouge (Genève), Suiíça

• Études
14, rue d'Assas, 75006 Paris, França

• The Month
114 Mount Street, Londres W1Y 6AH, Inglaterra

• Objectif Europe
Ocipe, 221 rue de la Loi, 1040 Bruxelles, Bélgica
(três edições: alemão, francês, inglês)

• Orientierung
Scheideggstrasse 45, 8002 Ziirich, Suíça

• Przeglad Powszechny
ul. Rakowiecka 61, 02-532 Varsovie, Polónia

• Razón y Fe
Pablo Aranda 3, 28006 Madrid, Espanha

• Signum
S:t Johannesgatan 22 A, 752 35 Uppsala, Suécia

• Stimmen der Zeit


Zuccalistrasse 16, 8000 Miinchen 19, Alemanha
• Studies
35 Lr Leeson Street, Dublin 2, Irlanda
• Streven
Sanderusstraat 5, 2018 Anvers, Bélgica
• Vimata
27 rue Smyrnis, 104-39 Athènes, Grécia
N O V I D A D E

LUIS ARCHER

DESAFIOS
DA

NOVA GENÉTICA

Vol. 14,5X21 c m — 1 3 6 págs.

Os grandes debates em torno da Genética neste


dealbar do novo milénio.

À venda na Revista BROTÉRIA

Vous aimerez peut-être aussi