Vous êtes sur la page 1sur 22

página

Os Atores da Construção da
Categoria Agricultura Familiar no Brasil
Everton Lazzaretti Picolotto1

Resumo: O artigo tem por objetivo refletir sobre o processo de construção da


categoria agricultura familiar no Brasil contemporâneo. A reflexão aqui sintetizada
toma por base a revisita aos principais trabalhos acadêmicos que contribuíram para
definir o campo de reflexão da agricultura familiar no Brasil, análise documental
e entrevistas com lideranças e assessores do sindicalismo da agricultura familiar.
Argumenta-se que existiram três conjuntos de atores que promoveram a
construção da categoria agricultura familiar no Brasil: alguns trabalhos acadêmicos
que deram base para repensar o lugar teórico desta agricultura na história e no
desenvolvimento do país; as políticas do Estado e as normativas legais que deram
visibilidade e definiram operacionalmente como se compreende esta categoria; e
as organizações de agricultores familiares que têm identificado nesta categoria o
seu projeto de agricultura e a utilizam como identidade política.

Palavras-chaves: agricultura familiar, sindicalismo, ações do Estado, debate


acadêmico, reconhecimento.

Abstract: The present paper aims at a reflection on the process of building the family farm
category in contemporary Brazil. The reflection synthesized here is based on revisiting
the main academic papers which have contributed to define the field of reflection of family
farming in Brazil, documentary analysis and interviews with leaders and advisors of
unionism family farming. It is argued that there were three sets of actors who promoted the
construction of the category family farming in Brazil: some academic work that provided
the basis for rethinking the theoretical location of this farm in the history and development
of the country; State policies and legal regulations that gave visibility and operationally
defined as comprising this category, and organizations of family farmers who have
identified this category as their project and the use of agriculture as a political identity.

Key-words: family farming, unionism, State actions, academic debate, recognition.

Classificação JEL: Q19.

1. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Professor
Adjunto do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS, Brasil. E-mail: everton.picolotto@ufsm.br
1. Introdução dicalismo dos trabalhadores rurais (que passa a
ser mais identificado coma agricultura familiar) e
A emergência da categoria agricultura fami- pelos movimentos sociais do campo que, mesmo
liar e dos agricultores familiares como persona- sendo formado por forças políticas diversas, con-
gens políticos é recente na história brasileira. seguiram organizar projetos de um novo lugar
Especialmente nas duas últimas décadas, vem para a agricultura familiar no país.
ocorrendo um processo complexo de constru- O reconhecimento da agricultura familiar no
ção da categoria agricultura familiar, enquanto país tem se dado de três formas principais, distin-
modelo de agricultura e como identidade política tas, mas complementares entre si. A primeira diz
de grupos de agricultores. Para isso, contribuíram respeito ao aumento de sua importância política
um conjunto de atores que, cada um ,segundo e dos atores que se constituíram como seus repre-
sua forma e segundo seus interesses, ajudou a sentantes (com a formação da Federação dos
definir o que se entende por agricultura familiar Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetraf)
no país. como organização específica de agricultores fami-
Argumenta-se, neste artigo, que foram três liares e, de outro lado, com a reorientação política
conjuntos de atores construtores e difusores da da Confederação Nacional dos Trabalhadores na
categoria a agricultura familiar e dos seus sujeitos Agricultura (Contag), que a partir de meados dos
políticos: os agricultores familiares. Este processo anos 1990, passou a fazer uso da categoria agri-
teve início em meados da década de 1980 e alcan- cultor familiar). A segunda se refere ao reconhe-
çou seus resultados mais expressivos de propo- cimento institucional propiciado pela definição
sição e divulgação a partir da década de 1990. O de espaços no Estado, criação de políticas públi-
primeiro foi composto pelo debate acadêmico cas e pela Lei da Agricultura Familiar. E a terceira
que recolocou luz sobre o lugar que a agricultura advém do trabalho de reversão das valorações
familiar ocupou no desenvolvimento dos países negativas que eram atribuídas a este modelo de
do capitalismo avançado e as condições de pre- agricultura, tais como: atrasada, ineficiente e ina-
cariedade que ela encontrou historicamente no dequada. Por meio de uma luta simbólica movida
Brasil. O segundo é representado pelas ações do pelo sindicalismo, por setores acadêmicos e do
Estado que contribuíram para definir o sentido Estado, a agricultura familiar passou a ser asso-
oficial da categoria agricultura familiar e as polí- ciada com adjetivos considerados positivos, tais
ticas públicas que a fortaleceram. O terceiro, nem como: moderna, eficiente, sustentável, solidária e pro-
por isso menos importante, é composto pelo sin- dutora de alimentos. Tais reversões de valores estão

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S065

intimamente vinculadas ao processo de constru- Os investimentos de pesquisa aqui sistemati-


ção da agricultura familiar enquanto modelo de zados tiveram por base a revisita aos principais
agricultura do tempo presente e do agricultor trabalhos acadêmicos que contribuíram para
familiar como personagem político. definir o campo de reflexão da agricultura fami-
O reconhecimento, neste caso, não deve ser liar no Brasil, a análise documental e entrevistas
entendido como uma mera consideração formal com lideranças e assessores do sindicalismo da
da categoria, pautada em leis e políticas públicas, agricultura familiar e dos trabalhadores rurais.
mas como um processo complexo de construção A reflexão deriva da tese de doutorado do autor
de grupos ou categorias sociais rurais inferioriza- (PICOLOTTO, 2011).
das historicamente e em luta por fazer-se reco-
nhecer frente a outros atores e perante o Estado.
Nesta perspectiva, juntamente com a afirmação 2. Agricultura de base familiar
política de um grupo social, por meio da afir- na história brasileira:
mação de seus atores políticos de representa- um setor subsidiário à
ção e do reconhecimento destes pelo Estado e grande exploração
por outros atores, deve-se dar também a devida
atenção à “gramática moral dos conflitos sociais” A agricultura de base familiar na história bra-
(HONNETH, 2009), pois, além das situações de sileira, quando pensada do ponto de vista da sua
carências materiais e políticas que podem moti- importância socioeconômica, foi relegada pelo
var ações coletivas, também existem as situações Estado e pelos setores dominantes a uma condi-
de “injustiça” e “desrespeito social” que, quando ção subsidiária aos interesses da grande explora-
percebidas intersubjetivamente como típicos de ção agropecuária. Esta última foi considerada, ao
um grupo inteiro, podem se tornar base motiva- longo do tempo, como a única capaz de garantir
cional para resistências ou para ações que buscam divisas para o país através da exportação de pro-
a reversão de condição de inferioridade social. dutos agrícolas de interesse internacional. Nas
Considerando-se as produções destes con- regiões estratégicas para a exploração de produ-
juntos de atores e o reconhecimento que alcan- tos de exportação, coube à exploração familiar
çaram, argumenta-se que a definição atual da funções consideradas secundárias, tais como: a
categoria agricultura familiar é resultado de um produção de alimentos para o mercado interno
trabalho de construção política e de sentidos rea- (principalmente para as populações das cidades)
lizada nos embates travados em um “campo de e servir como reserva de força de trabalho acessó-
forças” (BOURDIEU, 2005), em que atuaram ato- ria nos momentos em que as grandes explorações
res diversos, como da academia, do Estado e de necessitassem.
organizações que se propõem a ser representan- A invisibilidade socioeconômica e política da
tes dos agricultores em geral, ou de uma parcela agricultura de base familiar foi fruto de um longo
deles, ao mesmo tempo em que são construto- processo de subjugação e, em muitos casos, de
res de modelos de exploração na agricultura e de dependência da grande agricultura de exporta-
visões de mundo. Neste sentido, os agricultores ção. A grande propriedade, dominante em toda a
familiares e as suas organizações de representação história brasileira, se impôs como modelo social-
não foram coadjuvantes neste processo, mas esti- mente reconhecido. Como têm apontado alguns
veram presentes na experiência histórica do seu trabalhos historiográficos, à margem ou asso-
próprio “fazer-se” (THOMPSON, 1987) enquanto ciada à grande exploração agropecuária, sem-
personagens políticos do Brasil contemporâneo. pre existiu uma grande diversidade de formas
Este trabalho tem por objetivo refletir sobre sociais e de trabalho: “Esses fundamentais agen-
os atores e o processo de construção da catego- tes camponeses agricultores apareciam sob a
ria agricultura familiar no Brasil contemporâneo. designação de colonos, arrendatários, parceiros,

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S066  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

agregados, moradores e até sitiantes, termos que país de policulturas; a pequena roça de policul-
não podem ser compreendidos sem a articulação tura fornece alimentação aos sessenta milhões
com a grande produção agroindustrial e pastoril” de habitantes do Brasil e emprega a maioria dos
(MOTTA e ZARTH, 2008, p. 9-10). Da mesma homens do campo” (1963/2009, p. 61). Entretanto,
forma, “ao lado de donatários e sesmeiros, apa- a autora reconhece que esses agricultores (possei-
reciam os foreiros, os posseiros, os intrusos ou ros, pequenos proprietários ou agregados) exis-
invasores, os posseiros criminosos etc.” (MOTTA tiam em situações de extrema precariedade no
e ZARTH, 2008, p. 9-10). que se refere ao seu modo de vida rudimentar
Por outro lado, há que se considerar também e miserável, à falta de ordenamento legal sobre
que o Estado atuou na formação de pequenas as terras, à pouca relação com os mercados e à
propriedades em alguns momentos históricos e falta de acesso às técnicas modernas e ao cré-
locais específicos objetivando ocupar áreas pouco dito público. Era uma situação de extrema debi-
povoadas consideradas estratégicas, tais como a lidade que se refletia na sua invisibilidade social
colonização com imigrantes europeus no século e política.
XIX e no início do século XX em regiões de matas Brumer et al. (1993, p. 180) dialogam com as
dos três estados do Sul; os projetos de coloniza- observações de Queiroz e afirmam que a agri-
ção do governo de Getúlio Vargas nos anos de cultura de base familiar “nasceu no Brasil sob o
1930-50 por meio de deslocamentos populacio- signo da precariedade, precariedade jurídica, eco-
nais do Nordeste e do Sul para os estados do nômica e social do controle dos meios de traba-
Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul; os projetos lho e de produção e, especialmente, da terra”.
de colonização dos governos militares com deslo- Precariedade que se revestiu também no “caráter
camentos populacionais de regiões com tensões rudimentar dos sistemas de cultura e das técnicas
sociais para o Mato Grosso, Rondônia e Pará nas de produção” e da sua pobreza generalizada.
décadas de 1960-70; entre outros (TAVARES DOS Mesmo que as formas de precariedade tenham
SANTOS, 1993; MEDEIROS, 1995). sido diferenciadas nas diversas regiões brasileiras,
A condição de menor importância e de invisi- os agricultores de base familiar para continuarem
bilidade social da agricultura de base familiar foi persistindo precisaram, de uma maneira ou de
discutida por Maria Isaura Pereira de Queiroz no outra, abrir caminho entre as dificuldades encon-
artigo Uma categoria rural esquecida (1963), publi- tradas. Conforme Wanderley (1996),
cado em um momento que o tema da reforma
agrária estava sendo pautado no cenário nacional submeter-se à grande propriedade ou isolar-se
em áreas mais distantes; depender exclusiva-
e eram apontadas como categorias opostas nos
mente dos insuficientes resultados do traba-
seus interesses os latifundiários e dos assalaria-
lho no sítio ou completar a renda, trabalhando
dos rurais. Com base em dados de Caio Prado Jr e
no eito de propriedades alheias; migrar tem-
Jacques Lambert, Queiroz chama atenção para o
porária ou definitivamente. São igualmente
fato de que naquele momento as grandes lavou- fonte de precariedade: a instabilidade gerada
ras de exportação cobriam apenas 3,5 milhões pela alternância entre anos bons e secos no
de hectares (27,2% da área brasileira), enquanto sertão nordestino; os efeitos do esgotamento
sobravam para as culturas de subsistência 14 do solo nas colônias do Sul (p. 9).
milhões de hectares (mais de 70%). Com base
nesses dados e discordando da interpretação que Essa situação de precariedade, na maioria das
Caio Prado Jr fazia deles, para quem a imensa vezes, limitou a constituição de uma categoria de
maioria do território nacional não ocupada agricultores centrados no trabalho familiar que
pelas grandes explorações seria “desabitada” (a pudesse fazer um contrapeso socioeconômico e
“sobra”), Queiroz afirma que o Brasil “não é um político aos grandes proprietários e suas organi-
país predominantemente monocultor, e sim um zações. Nesse sentido, além dos agricultores de

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S067

base familiar terem sido desprivilegiados no que diferença do enfoque que os trabalhos acadêmi-
concerne ao acesso à terra, ao crédito público e cos realizados nas décadas de 1970 e 1980 davam
às técnicas modernas, também tiveram gran- para a pequena produção, centrados que estive-
des dificuldades para construir forças políticas ram na investigação sobre o caráter capitalista da
autônomas que pudessem desafiar os grandes sua agricultura, sobre o que tinham de tradicio-
proprietários e o modelo de agricultura domi- nal e de moderno, sobre processos de integra-
nante. Como afirma Gramsci (2002), as “classes ção/subordinação frente à indústria. No geral,
ou grupos subalternos”, pela sua condição de os trabalhos tomavam um enfoque teórico nega-
dominados política e culturalmente, têm grande tivo sobre a pequena produção (inspirados em
dificuldade de se unificar e de construir instru- concepções marxistas, em especial em Lênin e
mentos organizativos autônomos. As iniciativas Kautsky), vindo a identificar que estava em vias
de unificação desses grupos são continuamente de desaparecimento com o avançar das relações
desarticuladas pela ação dos grupos dominantes capitalistas no campo. Wanderley (2009) relata
(que também dirigem o Estado) seja por instru- os termos do debate da época: “Os olhares con-
mentos de repressão, seja pela desqualificação vergiam, em grande parte, para a constituição,
moral e cultural. no setor agrícola, de uma estrutura empresarial
Estes elementos ajudam a compreender o e para a emergência de um proletariado gerado
porquê somente em meados do século XX foi pos- por um mercado de trabalho específico ou unifi-
sível a constituição de organizações de represen- cado” (p. 185).
tação política autônomas dos grupos subalternos Dessa época, há que se registrar a relevante
no campo; organizações que puderam superar o contribuição (que foge a regra) e a antecipação
isolamento e os localismos. Com as ligas campo- de questões de debate posterior levantadas pelo
nesas, o sindicalismo de trabalhadores rurais, o trabalho realizado por uma equipe de pesqui-
movimento dos agricultores sem terra, os sindica- sadores2 coordenada por José Graziano da Silva
tos e cooperativas de colonos no Sul, entre outras sobre a Estrutura agrária e produção de subsistência
formas de organização política (MEDEIROS, na agricultura brasileira (1978). Este trabalho, rea-
1989, 1995, 2001; NOVAES, 1997; HELLER DA lizado a pedido da Confederação Nacional dos
SILVA, 2006; PICOLOTTO, 2011). Trabalhadores na Agricultura (Contag) com base
no cadastro de imóveis do Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra), buscou
3. Emergência da categoria identificar a “importância da pequena produção
agricultura familiar: [...] e de seu significado num quadro mais amplo,
possibilidades de novo lugar teórico de desenvolvimento capitalista, no qual aparece
para os subalternos do campo e se desenvolve como produção subordinada”
(p. IX). Além do seu recorte inovador, procurou
Alguns estudos acadêmicos e outros elabo- evidenciar a importância econômica da pequena
rados por órgãos de Estado e organizações inter- produção no país em um momento no qual se
nacionais tiveram papel relevante na afirmação acreditava que ela estava fadada à extinção.
da categoria agricultura familiar no país nas A partir do final da década de 1980 e princi-
últimas décadas. Primeiramente, cabe salientar palmente durante a de 1990 alterou-se significa-
que a emergência da noção de agricultura fami- tivamente o direcionamento das investigações
liar não apenas substituiu o termo pequena pro- e os enfoques teóricos, momento em que pas-
dução por outro equivalente, mas promoveu um
deslocamento teórico e de sentido sobre o que 2. A equipe foi composta por: Angela Kageyama, Elias Simon,
Fernando Andrade e Souza, Flavio Abranches Pinheiro,
representa este segmento de agricultores. Tal
Leonil de Servolo de Medeiros, Maria Rocha Antuniassi e
deslocamento pode ser percebido claramente na Sonia Maria Pessoa Pereira.

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S068  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

sou a predominar o uso da noção de agricultura trabalhos colocaram em questão os dois princi-
familiar. Os trabalhos passavam a não mais bus- pais paradigmas teóricos que vigiam até aquele
car somente a condições precárias e de inferio- momento: um que preconizava que o avançar do
ridade desse segmento da agricultura (indícios capitalismo no campo desestruturava as explora-
do seu fim eminente), mas a procurar mostrar a ções familiares e fortalecia a grande empresa fun-
sua importância socioeconômica, a diversidade, dada no trabalho assalariado (Kautsky e Lenin);
a capacidade produtiva e, acima de tudo, que a outro que, inversamente, percebia a agricultura
forma de exploração familiar foi a grande respon- camponesa convivendo e até mesmo resistindo
sável pelo significativo desenvolvimento da pro- no capitalismo (Chayanov).4 Enquanto o livro de
dução de alimentos no Brasil e em grande parte Veiga demonstrou que o modelo de agricultura
do mundo desenvolvido. Nesse novo cenário se dos países do capitalismo avançado foi baseado
insere a breve apresentação a seguir dos princi- em explorações familiares, Abramovay tomou a
pais trabalhos que alavancaram esta noção no realidade dos mesmos países para realizar uma
Brasil. distinção conceitual entre o significado desta
O artigo de Ângela Kageyama e Sônia agricultura familiar moderna, do presente, e da
Bergamasco Novos dados sobre a produção familiar agricultura camponesa, do passado (FAVARETO,
no campo (1989), apresentado ao XXVII Congresso 2007). Inserido nessa diferenciação conceitual, na
da Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia ótica de Abramovay, o uso da noção de “pequena
Rural (Sober), teve o mérito de fazer uma pro- produção” no Brasil e em outros países seria ina-
posta inovadora de análise dos dados do Censo propriada, pois esconderia uma diferença fun-
Agropecuário de 1980, introduzindo a variável damental entre formações sociais na agricultura
do trabalho familiar para classificar os estabele- muito distintas:
cimentos agropecuários que faziam uso de ges-
tão e trabalho contratado das que não separavam O que se escamoteia sob o nome de “pequena
a gestão e trabalho, exercidos pela família agri- produção” é o abismo social que separa cam-
cultora. Neste estudo, mesmo tendo encontrado poneses – para os quais o desenvolvimento
do capitalista significa a fatal desestruturação
grande heterogeneidade de tipos de unidades de
– de agricultores profissionais – que vem se
exploração familiares, as autoras constataram que
mostrando capazes não de sobreviver (porque
a agricultura com base no trabalho familiar repre-
não são resquícios de um passado em via mais
sentava cerca 71% dos estabelecimentos agríco- ou menos acelerada de extinção), mas de for-
las e correspondia a 42,3% da área total e 74% do mar a base fundamental do progresso técnico
pessoal ocupado na agricultura. Sendo, portanto, e do desenvolvimento do capitalismo na agri-
um segmento da maior importância. cultura contemporânea (ABRAMOVAY, 1998,
Os livros de Ricardo Abramovay, Paradigmas p. 211, grifos do autor).
do capitalismo agrário em questão (1992/1998), e de
José Eli da Veiga, Desenvolvimento agrícola: uma Em suma, na ótica destes autores, a agricul-
visão histórica (1991)3, procuraram mostrar como tura familiar corresponde a um modelo de orga-
a configuração da moderna agricultura dos paí- nização da agropecuária centrada na “empresa
ses do capitalismo central se apoiou em uma familiar” que têm vantagens sociais, econômicas
forma social de organização do trabalho e de
empresa específica: a “empresa familiar”. Os seus 4. A perspectiva chayanoviana também influenciou tra-
balhos acadêmicos no país. Principalmente no Museu
Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro foram
3. Cabe observar que Abramovay e Veiga mantiveram rela- realizadas pesquisas com esta inspiração e acompanhando
ções de colaboração, pesquisa e de assessoria com organi- o debate europeu da década de 1970 (Tepicht, Shanin,
zações sindicais desde os anos de 1980 e 1990. Em função Amin e Vergopoulos). Destacam-se trabalhos de Moacir
deste transito, seus trabalhos, em alguma medida, dialo- Palmeira, Lygia Sigaud, José Sérgio Lopes, Afrânio Garcia,
gam com as questões do sindicalismo. entre outros.

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S069

e ambientais (por ser mais democrática, eficiente ção familiar não é um elemento da diversidade,
e sustentável) quando comparada ao modelo mas contém nela mesma toda esta diversidade”
patronal (modelo construído em oposição ao (LAMARCHE, 1993, p. 18).
familiar, como empresas especializadas, racio- Deste esforço de pesquisa internacional foi
nalizadas, impessoais e que a agricultura pode elaborada uma proposta conceitual que reco-
ser somente mais um negócio entre outros). Os nhece uma significativa variabilidade dada pelas
agricultores familiares seriam certa camada de distintas posições que opera a “lógica familiar”
agricultores capazes de se adaptar às modernas nas relações sociais e da sua dependência ao mer-
exigências do mercado, que se diferenciam dos cado. Foram construídos quatro modelos teó-
demais pequenos produtores incapazes de assi- ricos de exploração familiar: empresa, empresa
milar tais modificações. A ideia central é a de que familiar, agricultura camponesa ou de subsistên-
o agricultor familiar é um ator social da agricul- cia e agricultura familiar moderna (LAMARCHE,
tura moderna e, de certa forma, ele resulta da pró- 1998). Apresenta para o caso brasileiro a predomi-
pria atuação do Estado (o exemplo é da realidade nância de dois modelos: agricultura camponesa
europeia pesquisada pelos autores) que apostou de subsistência e agricultura familiar moderna.
nas explorações familiares, seja por interferências Nos dois modelos, o estudo ressalta a predomi-
na estrutura agrária, seja na definição de políticas nância da mão de obra familiar enquanto estra-
de preços e nos níveis de renda agrícola e no pro- tégica, mesmo onde há a presença do trabalho
cesso de inovação técnica. contratado, e a busca incessante pelo acesso está-
Seguindo um caminho um pouco diferente vel à terra. Ao contrário de Abramovay e Veiga,
da perspectiva destes autores, os dois livros que que veem a agricultura familiar de forma mais
são resultado de uma pesquisa internacional restrita, como uma empresa familiar, Lamarche
coordenada por Lamarche A agricultura familiar entende que agricultura familiar é formada por
I: comparação internacional (1993) e A agricultura uma diversidade de situações nas quais opera a
familiar II: do mito à realidade (1998)5 e o artigo de lógica familiar, evidenciadouma rica heterogenei-
Wanderley Raízes históricas do campesinato brasi- dade e uma enorme capacidade de adaptação das
leiro (1996), mostraram a diversidade de configu- explorações de tipo familiar em diversos países.
rações que a agricultura familiar pode assumir em Maria Nazareth Wanderley participou da pes-
diferentes países. Os trabalhos coordenados por quisa internacional coordenada por Lamarche e
Lamarche mostraram a adaptação da agricultura revelou, em trabalho mais recente, que essa expe-
familiar em contextos econômicos e políticos de riência de pesquisa permitiu “recolocar o eixo das
países muito diversos (França, Canadá, Polônia, reflexões” das pesquisas que eram desenvolvidas
Brasil e Tunísia) e o seu objetivo foi apontar como, no Brasil, “centrado não mais nas razões da sobre-
sob a lógica familiar, podem se organizar formas vivência do campesinato, já que existência deste
de exploração que variam desde aquelas mais era incontestável, mas no lugar que ele ocupa”
próximas à autonomia camponesa até aquelas (WANDERLEY, 2009, p. 15). Com essa constata-
plenamente inseridas em mercados (FAVARETO, ção se tratava então de compreender o agricultor
2007). Neste aspecto, Lamarche deixa claro que familiar como um ator social participante pleno
a diversidade socioeconômica entre os países do progresso, da sociedade em geral, e mais dire-
não esconde o fato de que o elemento unifica- tamente, das transformações da agricultura e do
dor da variedade de situações encontradas no meio rural. Trata-se, pois, de buscar apreendê-los
universo empírico é o caráter familiar da gestão, como protagonistas de sua própria história.
do trabalho e da posse da terra, pois “a explora- Algumas dessas ideias foram apresentadas
originalmente em um artigo apresentado por
5. Neste trabalho de pesquisa internacional fez parte uma
equipe brasileira, composta por Maria Nazareth Wanderley,
Wanderley em 1996 no XX Encontro Anual da
Fernando Lourenço, Anita Brumer e Ghislaine Duque. Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S070  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

em Ciências Sociais (Anpocs). Neste artigo, faz o que concede aos agricultores modernos a
um resgate sobre as “raízes históricas do cam- condição de atores sociais, construtores e par-
pesinato brasileiro” ao mesmo tempo em que ceiros de um projeto de sociedade – e não sim-
demarca sua posição no debate sobre a agricul- plesmente objetos de intervenção do Estado,
tura familiar no Brasil. Argumenta que a noção sem história – é precisamente a dupla referên-
cia à continuidade e à ruptura (p. 47).
de “agricultura familiar” deve ser entendida de
forma genérica: “como aquela em que a famí-
Nesse sentido, a proposta conceitual desen-
lia, ao mesmo tempo em que é proprietária dos
meios de produção, assume o trabalho no esta- volvida por Wanderley é mais ampla permitindo
belecimento produtivo” (p. 2). O caráter familiar evidenciar as “raízes camponesas” do agricul-
desse modelo de agricultura não é um mero deta- tor familiar moderno ao mesmo tempo em que
lhe superficial e descritivo, mas “o fato de uma permite encontrar os atores sociais (organiza-
estrutura produtiva associar família-produção- ções) e os agricultores participando do seu pró-
-trabalho tem consequências fundamentais para prio processo de construção (o seu “fazer-se”
a forma como ela age econômica e socialmente” cf. THOMPSON, 1987) enquanto agricultores
(p. 2). Sobre este tema da estratégia familiar como familiares.
central, Wanderley (2009) argumenta de forma Além destes trabalhos acadêmicos, também
complementar, em outro trabalho, que tiveram importante repercussão, particularmente
na definição de políticas públicas, algumas pes-
mais do que a diferença quanto aos níveis de quisas elaboradas por meio do convênio de coo-
renda auferida, que apenas reconstrói o per- peração técnica da FAO/Incra, coordenados por
fil momentâneo dos agricultores familiares, é Carlos Guanziroli. Um primeiro estudo realizado
a diferenciação das estratégias familiares que
no ano de 1994 teve como objetivo declarado:
está na origem da heterogeneidade das for-
elaborar diretrizes para “uma nova estratégia de
mas sociais concretas da agricultura familiar
desenvolvimento rural para o Brasil”. Dentre as
(p. 15).
suas principais contribuições fez uma sugestão
Ao contrário do que defendem Abramovay de classificação dos estabelecimentos agropecuá-
e Veiga, Wanderley argumenta que o agricultor rios brasileiros em dois modelos: um “patronal” e
familiar não é um personagem novo na sociedade outro “familiar”. O “modelo patronal” teria como
contemporânea (produto da ação do Estado, das característica a separação entre gestão e traba-
políticas de modernização da agricultura) desvin- lho, a organização descentralizada, a ênfase na
culado do seu passado camponês, mas, ao contrá- especialização produtiva e em práticas agrícolas
rio, os agricultores familiares seriam portadores padronizáveis, o uso predominante do trabalho
de elementos de ruptura com o seu passado cam- assalariado e a adoção de tecnologias dirigidas
ponês, ao mesmo tempo em que mantêm algu- à eliminação das decisões “de terreno” e “de
mas continuidades. Nas palavras de Wanderley momento” (intuitivas ou de senso comum). Já o
(2003): os agricultores familiares “são portadores “modelo familiar” teria como característica uma
de uma tradição (cujos fundamentos são dados relação íntima entre trabalho e gestão, a direção
pela centralidade da família, pelas formas de pro- do processo produtivo assegurada diretamente
duzir e pelo modo de vida), mas devem adaptar- pelos proprietários, a ênfase na diversificação
-se às condições modernas de produzir e de viver produtiva e na durabilidade dos recursos e na
em sociedade” (p. 47-48) uma vez que estão inse- qualidade de vida, a utilização do trabalho assa-
ridos em mercados modernos e são influenciados lariado em caráter complementar e a tomada de
pela sociedade englobante e pelo Estado. decisões imediatas, adequadas ao alto grau de
Em função desse duplo caráter da agricultura imprevisibilidade do processo produtivo (FAO/
familiar, Wanderley (2003) argumenta INCRA, 1994, p. 2).

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S071

No interior do modelo familiar foi feita ainda interior do sindicalismo dos trabalhadores rurais,
uma classificação em três tipos de unidades fami- construindo novas lideranças e dando visibilidade
liares de produção, a saber: familiar “consoli- e importância para as suas demandas. Realizaram
dada” (com área de terra média de 50 ha); em grandes mobilizações por melhores condições de
“transição” (com área média de 8 ha); e “perifé- produção e preços dos produtos recebidos (uva,
rica” (com área média de 2 ha). Com base nessa leite, soja, fumo, suínos)6, contra a política eco-
classificação, o documento da FAO/Incra propõe nômica do governo, considerada prejudicial aos
como “público alvo” para a construção prioritá- agricultores e na pressão pela definição de uma
ria de políticas públicas a categoria dos agriculto- política agrícola diferenciada para os pequenos
res familiares em “transição”, pois argumenta que produtores (MEDEIROS, 1989, 2001; ROMANO,
“fortalecer e expandir a agricultura familiar signi- 1996; PICOLOTTO, 2011). Sobre este último
fica, antes de tudo, dar respostas às dificuldades ponto, tanto a Contag quanto o Departamento
que enfrentam os produtores familiares fragiliza- Nacional dos Trabalhadores Rurais (DNTR) da
dos”, mas que tem “potencial” para transforma- Central Única dos Trabalhadores (CUT) apre-
rem-se em “empresas familiares viáveis” (IDEM, sentaram projetos de política agrícola diferen-
p. 5). Quanto aos “consolidados”, estes não neces- ciada para a formulação da Lei Agrícola no final
sitariam de auxílio público especial. E os “perifé- dos anos de 1980 e início dos 907. Nas proposi-
ricos”, não sendo viáveis economicamente, só se ções aparecem os contornos iniciais do projeto
poderia pensar para eles em políticas sociais de da agricultura familiar assumido pelo sindica-
combate à pobreza. A criação do Pronaf seguiu lismo nos anos seguintes, tais como: a proposição
esta orientação de uma política de auxílio aos de instrumentos de política agrícola diferencia-
agricultores em “transição”, os que poderiam ser dos (crédito, subsídios, seguro agrícola, assistên-
viabilizados na produção. cia técnica etc.) para os pequenos produtores; e a
definição de critérios para a classificação dos agri-
cultores que deveriam ser os beneficiários da polí-
4. Organizações de tica, nos seguintes termos: aqueles que fazem uso
agricultores e Estado: do trabalho da família no estabelecimento, sem
embates e a definição dos primeiros concurso de empregados permanentes, mas com
contornos da agricultura familiar um limite de área de três módulos rurais para o
projeto da Contag e até cinco módulos para o do
A gênese de um grupo social não deve ser DNTR/CUT.
entendida apenas pelos processos econômicos Ainda que tenham conseguido inserir no
ou pelas elaborações teóricas que orientam as texto da Lei Agrícola um “princípio de política
ações dos atores, mas também devem ser levadas agrícola diferenciada” para os pequenos produto-
em conta as experiências de organização política res (DELGADO, 1994, p. 11), é importante perce-
e as posições que os atores assumem no campo ber que as propostas levantadas pelo sindicalismo
político (THOMPSON, 1987; BOURDIEU, 2005). dos trabalhadores no campo de forças que se
No caso dos agricultores familiares, o seu apare- constituiu na definição da Lei assumem uma
cer político é produto de sua própria experiên- posição minoritária (de “oposição agrária”, cf.
cia de “fazer-se” enquanto atores políticos, com DELGADO, 1994). Neste campo, enfrentavam as
identidade e projeto próprios, em diálogo com
6. Os produtores de soja, por exemplo, chegaram a mobilizar
as elaborações acadêmicas e em uma relação ora 700 mil agricultores nos estados do Sul e Mato Grosso do
conflitiva, ora de colaboração com setores do Sul em 1980 (Medeiros, 1989).
Estado (MEDEIROS, 2001; PICOLOTTO, 2011). 7. A Contag elaborou o documento Proposta do Movimento
Sindical de Trabalhadores Rurais para as Leis Agrária e Agrícola
Desde meados dos anos de 1980 os “peque-
em 1989 e o DNTR/CUT o documento Proposta para um
nos produtores” vinham ganhando espaços no Projeto de Lei Agrícola em 1990.

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S072  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

forças políticas majoritárias da Frente Ampla da de solidariedade europeias para conhecer as


Agropecuária Brasileira que aglutinava os setores suas experiências (principalmente na França e na
patronais rurais e fizeram valer os seus interesses Alemanha). A experiência de integração regio-
na definição do texto legal. Coube aos pequenos a nal da União Europeia, a sua Política Agrícola
conquista desta diferenciação8 e, posteriormente, Comum e as ações das organizações de agricul-
as lutas pela sua concretização. tores familiares nesse processo foram vistas como
A agenda liberalizante do Estado brasileiro da uma forma de subsidiarem a intervenção do
década de 1990, iniciada no governo Collor, con- movimento sindical no Brasil. O conhecimento
frontada com as novas possibilidades de partici- deste modelo de agricultura familiar (predomi-
pação social abertas com a Constituição de 1988, nante em boa parte da Europa), fomentado por
colocou as organizações sindicais em uma posi- políticas de Estado, ajudou a embasar os projetos
ção ambígua em relação ao Estado: em algumas de agricultura das organizações de agricultores
situações se posicionaram em oposição frontal às brasileiras e a assumir uma postura propositiva
políticas de abertura comercial e desregulamenta- perante o Estado.
ção das obrigações do Estado; em outras, lhes foi Como resultado, passou-se de uma pos-
propiciado oportunidades de serem propositivas tura defensiva de mera defesa dos pequenos
com o Estado (nos conselhos e fóruns de políti- produtores que estavam sendo excluídos pro-
cas) e colaborar no desenho de algumas políticas gressivamente do processo produtivo, para a
públicas. O acordo do Mercosul, por exemplo, adoção de uma linha propositiva. Em 1994, cons-
onde o Brasil passava a ser um exportador de pro- tituiu-se no âmbito do Ministério da Agricultura,
dutos industrializados e importador de produtos Abastecimento e Reforma Agrária (Maara) uma
agrícolas da Argentina e Uruguai (DELGADO et Comissão Técnica do Pequeno Produtor (Portaria
al., 1996), foi visto pelas organizações de agricul- MAARA 682/93 e 42/94) em conjunto com a Contag
tores como uma grande ameaça para os pequenos para analisar temas relacionados à pequena pro-
produtores. A partir de 1993, no governo Itamar dução e formação de propostas na área de polí-
Franco, foram realizados diversos seminários em ticas agrícola. Como resultado dos trabalhos
estados do Sul e do Sudeste brasileiro para deba- dessa Comissão foi publicado um relatório com
ter a integração destes produtores no Mercosul, o sugestivo título “Propostas e recomendações de
centrando-se, especialmente, na reivindicação de política agrícola diferenciada para o pequeno produtor
políticas agrícolas diferenciadas para reestrutu- rural” (MAARA/CONTAG, 1994). Nesse relatório,
rar e reconverter as pequenas propriedades afe- era feita uma série de propostas e recomendações
tadas. Eventos semelhantes também ocorreram para adequar a política agrícola. Dentre estas, as
com organizações de agricultores dos demais paí- mais destacadas diziam respeito à classificação
ses membros (ROMANO, 1995; CONTAG, 1994). dos pequenos produtores e a proposta de crédito
Outros fatores que contribuíram para a cons- diferenciado para esse público. A nova classifica-
trução das propostas políticas feitas pelo sindi- ção dos pequenos produtores rurais estabelecia
calismo no processo de formação do Mercosul critérios importantes que passariam a ser adota-
foram os intercâmbios, as viagens de lideranças dos na definição de políticas desse período em
e atividades de formação realizadas com organi- diante, a saber:
zações de agricultores, Igrejas, ONGs e agências
É considerado pequeno produtor rural aquele
que explore parcela de terra na condição de
8. Ao que pese essa diferenciação, consta a prioridade do
Estado em oferecer serviços de assistência técnica gratuita, proprietário, posseiro, arrendatário, parceiro
crédito subsidiado, geração e adaptação de tecnologias ou ocupante atendendo simultaneamente aos
agrícolas aos pequenos agricultores além de ter previsto seguintes requisitos: a) utilização do trabalho
a concessão de “crédito rural especial e diferenciados
aos produtores rurais assentados em áreas de reforma direto e pessoal do produtor e sua família,
agrária” (Lei Agrícola, n. 8.171 de 1991, art. 52). sem concurso do emprego permanente, sendo

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S073

permitido o recurso eventual à ajuda de tercei- trabalhadores que tivessem identidade de inte-
ros, quando a natureza sazonal da atividade resses comuns, que os produtores (que podiam
agrícola exigir; b) que não detenha, a qualquer até ser de tamanho “médio”, segundo diferentes
título, área superior a quatro módulos fiscais, padrões) teriam pouca afinidade com os assala-
quantificados na legislação em vigor9; c) que
riados e os pequenos proprietários; que teriam
80% de renda familiar do produtor seja origi-
um nível de vida superior e que seus interesses
nária da exploração agropecuária e/ou extra-
podiam ser diversos e até mesmo contraditórios.
tiva; d) que o produtor resida na propriedade
Há que se considerar, também, que esta mudança
ou em aglomerado rural ou urbano próximo
(MAARA/CONTAG, 1994, p. 9-10). também poderia provocar um aumento do
número de filiados nas federações do Sul e outras
Estes critérios se aproximam dos critérios de regiões causando possíveis mudanças na correla-
classificação do pequeno produtor defendidos pela ção de forças no interior do sindicalismo. Como
Contag na Lei Agrícola, guardadas algumas dife- resultado destes debates se chegou a um acordo
renças. São introduzidos os critérios de moradia entre os congressos da Contag de 1979 e 1985: com
na propriedade e sobre a necessidade de 80% da a ampliação até dois módulos para o reconheci-
renda ser proveniente da exploração agropecu- mento dos pequenos proprietários em regime
ária, ligada à preocupação do sindicalismo para de economia familiar e sem empregados perma-
que as políticas diferenciadas fossem exclusiva- nentes (HELLER DA SILVA, 2006; PICOLOTTO,
mente designadas a agricultores propriamente 2011). Entretanto, como se observou no Projeto
ditos. Ao que pese estas preocupações, elas se de Lei Agrícola da Contag e na proposta de nova
ligam às disputas sobre o recorte da base social do classificação dos pequenos produtores feita pela
sindicalismo entre grupos internos e com os seto- comissão Maara/Contag, os critérios de reconhe-
res patronais. Quais categorias sociais deveriam cimento dos pequenos produtores variaram até
este sindicalismo representar e demandar políti- três ou quatro módulos. Esta ampliação mostrava
cas do Estado? Que tamanho de área poderiam a maior importância que esta categoria passava a
possuir os pequenos proprietários representados ter no sindicalismo e a sua capacidade de interfe-
pelo sindicalismo de trabalhadores rurais? rir nas decisões internas e na negociação de polí-
Os pequenos proprietários desde a década de ticas públicas.
1970 tentavam ampliar sua presença no interior Este debate sobre as categorias a serem repre-
da Contag (PALMEIRA, 1985; MEDEIROS, 1989). sentadas pelo sindicalismo de trabalhadores
As federações sindicais dos estados do Sul e de rurais também ocorreu na CUT, mas com outros
São Paulo, onde a presença de pequenos pro- contornos. O debate se tornou público com dois
prietários era maior, questionavam o uso do cri- artigos vinculados na revista Teoria e Debate. Um
tério de um módulo rural para enquadrá-los no primeiro artigo intitulado Limpar o terreno, Paulo
sindicalismo de trabalhadores. Defendiam a livre de Tarso Venceslau (1989) fez uma dura crítica à
escolha para os que trabalhavam em “regime de estrutura sindical rural corporativista (herdada da
economia familiar”, sem critérios de tamanho “ortodoxia da esquerda” e da legislação sindical
de área. Opunham-se a esta livre entrada dos da ditadura) e a unificação das diversas categorias
pequenos produtores as federações do Nordeste que o compõe, a saber; assalariados, pequenos
e as de outros estados, receosas com uma possí- proprietários e produtores sem terra. Na sua ótica,
vel descaracterização sindical. Argumentavam esta herança faz conviver no mesmo sindicato
que o sindicalismo deveria ser exclusivamente de “classes distintas”, tratadas “como iguais”. Não
seria adequado estarem em uma mesma Central
9. Este critério também foi influenciado pelo que estabelece a assalariados rurais e pequenos proprietários (que
Lei Agrária (n. 8.629 de 1993). A Lei definiu por “pequena
propriedade” o imóvel que possui “área compreendida
dispõem de meios de produção e que podem con-
entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais”. tratar assalariados). Por fim, o autor questiona:

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S074  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

“Cabe à CUT lutar por preços mínimos, organizar 5. O sindicalismo assume


comercialização ou propor uma política agrícola?” a agricultura familiar
Segundo seu juízo, a resposta deveria ser nega-
tiva, ela deveria se limitar às demandas de assa- Foi neste rico debate no meio sindical que foi
lariados. Por ser uma Central de trabalhadores, incorporada na linguagem política a categoria
deveria deixar de representar pequenos proprietá- agricultura familiar, em um primeiro momento
rios. Entretanto, a proposta de Venceslau aparecia nos documentos do DNTR/CUT, logo em seguida
como despropositada frente às reais bases rurais também pela Contag. O primeiro documento
da CUT. Suas bases no campo e as suas principais oficial que utilizou esta categoria na linguagem
lideranças de destaque nacional eram formadas sindical foi o caderno de tese do II Congresso
por pequenos proprietários do Sul e do Norte do Nacional do DNTR/CUT, realizada de 25 a 28 de
país. Em resposta ao artigo de Venceslau, Regina março de 1993, em que era estabelecido como
Novaes publicou o artigo Dissolvendo a neblina, objetivo maior da organização a construção de
argumentando que a construção de uma central um Projeto Alternativo de Desenvolvimento, que
sindical da classe trabalhadora não se dá somente garanta o “fortalecimento da agricultura familiar
na demarcação objetiva do que seria a classe, da como prioridade do desenvolvimento agrícola”
“classe em si” (definida pelo lugar na produção). (DNTR/CUT, 1993, p. 19).
Ao contrário, as classes se constituem em suas A incorporação desta categoria viria a reno-
inter-relações, a “classe para si” (com consciên- var as bandeiras do sindicalismo e ajudar a supe-
cia e projeto próprio) só se constitui no conflito rar certa crise que se abateu no sindicalismo dos
entre classes, em uma relação de oposição. Desta trabalhadores rurais no final da década de 1980
forma, uma “central sindical que se quer ‘classista’ e início de 1990 (NOVAES, 1997; FAVARETO,
não poderia excluir pequenos produtores que, em 2006). Uma das iniciativas mais ousadas com vis-
sua luta, questionam a via ou o modelo que tem tas a resolver a crise se deu com o processo de
permitido a acumulação e o desenvolvimento do unificação da Contag com o DNTR/CUT, com
modo de produção capitalista no país” (NOVAES, extinção deste último11. No esforço de unificar o
1989). Nesta acepção, a classe trabalhadora que a sindicalismo ocorreram eventos importantes que
CUT pretende representar não se encontra pronta mostravam a força e o potencial que a união dos
no mundo do trabalho à espera de ser conduzida atores do campo (DNTR/CUT, CONTAG, MST,
pelo sindicalismo. A classe só existe, enquanto entre outros) poderiam ter, tais como: a constru-
“classe para si”, como resultado da ação do sindi- ção dos Gritos da Terra Brasil (a partir de 1994),
calismo (e os demais atores sociais) na construção como uma forma de mobilização massiva de
de seus projetos de porvir e debatendo-se com âmbito nacional e com objetivo de propor e nego-
seus adversários sociais.10 ciar políticas com os governos; a formulação do
Com os esclarecimentos que este debate pro- Projeto Alternativo de Desenvolvimento (descrito
porcionou, saiu fortalecido o lugar dos pequenos nos parágrafos seguintes) e a conquista de impor-
produtores na CUT, mas também fez aprofundar tantes políticas públicas de apoio à agricultura
a discussão sobre a necessidade de criação de sin- familiar, como o Pronaf, em 1995. Sobre o Pronaf
dicatos diferenciados por categoria na base da é significativo perceber que esta política foi inspi-
CUT, tais como: assalariados rurais e agricultores rada no modelo teórico elaborado pelo convênio
familiares. FAO/Incra (1994) e na sua sugestão de priorizar o
apoio aos agricultores familiares “em transição”
10. A argumentação de Novaes se aproxima da noção de e os critérios de acesso aos beneficiários foram
classe de Thompson, para quem classe é “relação histó-
rica”. Em suas palavras: “A classe operária não surgiu tal
como o sol numa hora determinada. Ela estava presente 11. Mais detalhes sobre a unificação do DNTR/CUT e da
no seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 1987, p. 9). Contag ver Picolotto (2011) e Favareto (2006).

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S075

buscados na classificação dos pequenos produto- novas formas de organização da produção, polí-
res (agora renomeados de agricultores familiares) tica agrícola diferenciada e políticas que vão além
definidos pela Comissão Maara/Contag de 1994. da produção, tais como: educação, saúde, lazer,
Neste sentido, é a concretização de uma polí- previdência e assistência social, formação profis-
tica negociada pelo sindicalismo com o governo sional, pesquisa e assistência técnica, entre outras
desde o início da década e inscrita no princípio (CONTAG, 1998).
de política agrícola diferencia (crédito com subsí- Os resultados deste processo de unificação
dios) previsto na Lei Agrícola. sindical e da adoção da agricultura familiar como
Este foi um momento de mudanças da forma público prioritário do sindicalismo produziram
de agir do sindicalismo e da sua relação com o mudanças significativas. Em primeiro lugar, ocor-
Estado. Passava de uma perspectiva de um sin- reu uma mudança na configuração de forças na
dicalismo reivindicatório (marcado fortemente interior da Confederação. Se desde a sua funda-
por mobilizações e reinvindicações da década ção na década de 1960 até o início da década de
de 1980) para um sindicalismo propositivo (que 1990, as pautas prioritárias foram a reforma agrá-
faz mobilizações, mas que tem propostas concre- ria e os direitos trabalhistas, com lideranças nor-
tas, um projeto para a agricultura e para o país). destinas nos seus postos principais, com certo
Nesta nova estratégia, a formulação de um pro- realinhamento interno que vinha ocorrendo
jeto alternativo de desenvolvimento assume desde a década de 1980, a entrada dos cutistas e
lugar central e a agricultura familiar passa a ser a adoção do PADRS, foi eleita a agricultura fami-
depositária das maiores expectativas do sindica- liar como prioritária e o eixo de poder interno se
lismo da Contag/CUT. deslocou. Em segundo lugar, o modelo da agri-
A construção do projeto alternativo esteve cultura familiar adotado pela Contag teve fortes
no centro das preocupações do sindicalismo na contos sulistas (BONATO, 2003). A agricultura
segunda metade da década de 1990, principal- familiar visualizada como modelo foi a de origem
mente com a realização de um ambicioso projeto “colona” (pequenos proprietários de origem imi-
entre os anos de 1996 e 1999, o chamado Projeto grante), marcada pela propriedade familiar, pela
CUT/Contag de Pesquisa e Formação Sindical, perspectiva de integração aos mercados, moderna
que envolveu o sindicalismo e importantes pes- ou em vias de modernização. Para estes, a princi-
quisadores acadêmicos na sua assessoria12. Esse pal demanda de política pública era crédito para
conjunto de iniciativas resultou na elaboração do produção, demanda que o Pronaf supriu. Por fim,
que ficaria conhecido como o Projeto Alternativo o sindicalismo assumiu uma postura propositiva
de Desenvolvimento Rural Sustentável (PADRS), perante os governos, foi gradativamente se inse-
assumido oficialmente pelo sistema sindical da rindo em espaços de gestão de políticas públicas,
Contag no VII Congresso de 1998. Esse projeto, alterado sua forma de ação questionadora, de
mais do que um conjunto de medidas pontuais, “oposição agrária”, que marcou sua trajetória na
procurava, através de análise de experiências década de 1980.
concretas, traçar orientações gerais de um novo Estas novas orientações sindicais não foram
modelo de desenvolvimento para o campo bra- unânimes entre os setores cutistas e motiva-
sileiro: defendia a necessidade de realização da ram desacordos políticos com antigos aliados.
reforma agrária, optava pela agricultura familiar Setores cutistas descontentes deram origem ao
como formato de agricultura desejável, defendia Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) no
Sul país e no estado do Espírito Santo, em 1996.
12. O Projeto contou com a assessoria no eixo Desenvolvimento Da mesma forma, o MST que sempre fora um
Rural de José Eli da Veiga da USP e no eixo Organização
aliado próximo, por discordar destas novas pers-
Sindical com Leonilde Medeiros do CPDA/UFRRJ e de
Regina Reyes Novaes da UFRJ. pectivas do sindicalismo passou a organizar, no

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S076  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

final da década de 1990, a seção brasileira da Via 6. Reconhecimento formal


Campesina13, como uma nova articulação de atores da agricultura familiar
sociais separada do campo cutista. Na ótica destes
atores, enquanto as organizações sindicais, adep- No final do primeiro governo de Fernando
tas da agricultura familiar, constroem um projeto Henrique Cardoso (1995-1998), foi criado o
de integração com os mercados agroindustriais Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA)
(formando o que chamam de “pequenos capita- para tratar das questões relacionadas à agricultura
listas” ou “agronegocinho”), os movimentos da familiar e à reforma agrária, enquanto o Ministério
Via Campesina têm procurado construir um pro- da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa)
jeto de “autonomia camponesa” no capitalismo ficava responsável pelas atividades agropecuá-
(FERNANDES, 2012). Neste sentido, rompem rias empresariais (do chamado “agronegócio”).
com o projeto da agricultura familiar e fortale- A constituição desses dois ministérios expressava
cem a identidade política de camponês, associada
à perspectiva de um projeto de resgate e realiza- o reconhecimento tenso e conflitivo pelo
Estado brasileiro da existência desses dois
ção da autonomia camponesa no tempo presente.
tipos de agricultura que, embora não sejam
De outra parte, alguns setores cutistas que
independentes em sua dinâmica, são portado-
compuseram a aliança inicial com a Contag, na
res de propostas antagônicas de desenvolvi-
passagem de século deflagraram uma nova dis-
mento rural (LEITE et al., 2007, p. 15).
sidência. Dificuldades de várias ordens, como a
não aceitação da filiação das organizações cha- O MDA, mesmo não sendo o responsável
mada de “diferenciadas”, tais como a Federação exclusivo por políticas para o segmento da agri-
dos Trabalhadores na Agricultura Familiar de cultura familiar, desde a sua origem acabou con-
SC (Fetrafesc), fundada em 1997 e sindicatos centrando boa parte das ações direcionadas a este
regionais de agricultores familiares nos estados público.
do Sul (o que contrariava as recomendações do A criação do Pronaf, em 1995, foi vista ampla-
Projeto CUT/Contag de equacionar as experi- mente como um reconhecimento da especifi-
ências de renovação da estrutura sindical), dis- cidade da agricultura familiar. Mesmo com a
putas de direção da Contag e o fortalecimento mudança de governo em 2003, com o governo
de um movimento de afirmação da agricultura Lula ele continuou a ser o principal instrumento
familiar na região Sul do país (que agregou sin- de política agrícola direcionado para esse público.
dicatos, cooperativas e ONGs) deram base para No que se refere ao volume de recursos dispo-
formaçãoda Federação dos Trabalhadores na nibilizados para o Programa entre 2003 e 2010,
Agricultura Familiar (FETRAF) em 2001. A Fetraf observa-se uma ampliação de quase três vezes
surgiu como uma nova organização sindical de (de 5,4 milhões para 16 milhões), com redução
âmbito regional e que logo em seguida se nacio- das taxas de juros, a ampliação do valor pas-
nalizou. Trata-se uma organização sindical orgâ- sível de financiamento e a diversificação das
nica da CUT, que procura fazer sua ligação modalidades, com a criação de várias novas,
histórica com o antigo DNTR/CUT e se propõe dentre as quais: Mulher, Jovem, Agroindústria,
a ser um ente sindical que representa especifica- Agroecologia, Semiárido, Floresta, Eco, Turismo
mente os agricultores familiares nas regiões que Rural, Pesca e Mais Alimentos (GRISA e WESZ
atua. Passou a ser uma organização concorrente JR., 2010).
da Contag (PICOLOTTO, 2014). A composição da gestão do MDA nos gover-
nos Lula e Dilma contou com a participação
13. A seção brasileira da Via Campesina foi formada em 1999. de quadros ligados aos movimentos sociais e
Conta também com os Movimentos dos Atingidos por
Barragens, das Mulheres Camponesas, Comissão Pastoral
sindicais. Esta participação no bloco no poder
da Terra, entre outros (FERNANDES, 2012). (ainda que de forma subordinada, em um minis-

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S077

tério com menor importância política e recursos vimento dos territórios rurais pensados em suas
do que o MAPA) possibilitou maior influência des- diversas dimensões, a cultura local etc. Trata-se
tas organizações na formulação e na execução de de uma forma diferenciada de conceber o mundo
algumas políticas públicas de apoia a agricultura rural, de tratar os agricultores como cidadãos,
familiar. Nestes governos, foram criadas diversas não somente como produtores.
políticas para o setor da agricultura familiar, que Este reconhecimento também garantiu a
vão além das já existentes relacionadas ao cré- criação de uma Lei da Agricultura Familiar (Lei
dito, tais como: Programa de Garantia de Preços n. 11.326, de 2006) que define oficialmente a
da Agricultura Familiar (PGPAF), o Seguro da “agricultura familiar” como “categoria profis-
Agricultura Familiar (Seaf), o Programa Garantia sional” e estabelece as diretrizes para a formula-
de Safra, Programa de Aquisição de Alimentos da ção da Política Nacional da Agricultura Familiar
Agricultura Familiar (PAA), Política Nacional de e Empreendimentos Familiares Rurais. Em seu
Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER), Artigo 3º, a lei considera “agricultor familiar”
Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), aquele que pratica atividades no meio rural,
Programa de Desenvolvimento Sustentável atendendo aos seguintes requisitos: não dete-
dos Territórios Rurais (PDSTR), Programa de nha, a qualquer título, área maior do que qua-
Agroindustrialização da Agricultura Familiar, tro módulos fiscais; utilize predominantemente
Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), mão-de-obra da própria família nas atividades
Luz para Todos, Arca das Letras, Programa econômicas do seu estabelecimento ou empre-
Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego endimento; tenha renda familiar predominan-
(Pronatec), entre outras. temente originada de atividades econômicas
Esta nova relação com o Estado tem sido vinculadas ao próprio estabelecimento ou empre-
associada com a ideia da “cogestão” das políticas endimento; dirija seu estabelecimento ou empre-
públicas (SABOURIN, 2014), mas também pode endimento com sua família (BRASIL, 2006).
ser relacionada, de forma mais ampla, com a con- Essa definição de agricultura familiar, embora
formação de relações baseadas no que tem sido semelhante à definição elaborada em 1994 e usada
chamado de “neocorporativismo”: forma de rela- pelo Pronaf, tem algumas diferenças: flexibiliza
ção entre Estado e sociedade civil que visa reduzir algumas exigências requeridas no Pronaf: indica
os conflitos entre as classes e grupos sociais e as que a renda deve ser predominantemente de ati-
suas interações com setores estatais, preservando vidade vinculada ao estabelecimento (eliminado
certa autonomia das organizações sociais (o que a necessidade de 80% de a renda ser da atividade
difere esta condição do corporativismo tradicio- agropecuária) e elimina a exigência de residên-
nal, onde o Estado as subordinava e disciplinava), cia na propriedade ou em povoado próximo. Em
mas tornando as suas relações mais colaborati- relação aos grupos sociais que são beneficiários,
vas, institucionalizadas e previsíveis (OFFE, 1989; tanto o Pronaf quanto a Lei incluem como benefi-
GOLDIN, 2013). ciárias categorias sociais rurais que vivem e traba-
De outra parte, a boa relação com setores esta- lham em situações análogas à agricultura familiar,
tais e a criação deste conjunto de políticas mostra tais como: silvicultores, aquicultores, extrativistas
o reconhecimento deste grupo de agricultores e pescadores.
e das organizações de representação com boa A Lei objetivou englobar a diversidade de
interlocução pública. O reconhecimento alcan- situações de trabalho familiar rural nos mesmos
çado com as políticas públicas não se dá somente instrumentos legais. Se, de um lado, esta unifica-
nos aspectos produtivos, ligados à profissão e ao ção fortalece as bases legais de reconhecimento
local no processo produtivo, mas incluem outras da agricultura familiar e a torna definidora de
dimensões do mundo da vida, tais como: a habi- direitos e políticas públicas para categorias sociais
tação rural, a educação, a capacitação, o desenvol- diversas, de outro, esconde as diferenças exis-

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S078  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

tentes no meio rural brasileiro ao associar esta tam a integridade corporal dos sujeitos e, assim,
diversidade de situações à categoria agricultura sua autoconfiança básica; b) a negação de direi-
familiar. Nos anos mais recentes algumas des- tos, que mina a possibilidade de autorrespeito, à
tas categorias têm reacendido demandas por medida que inflige ao sujeito o sentimento de não
reconhecimento de diferenças, por visibilidade possuir o status de igualdade com os outros e; c) a
pública e por políticas públicas específicas, que referência negativa ao valor de certos indivíduos
atendam suas particularidades, como os pesca- e grupos sociais, que afeta a autoestimados sujei-
dores, os extrativistas, quilombolas, entre outros. tos. Para a superação destas situações de reconhe-
cimento denegado, os sujeitos “precisam além da
experiência da dedicação afetiva e do reconhe-
7. A agricultura familiar cimento jurídico, de uma estima social que lhes
para o sindicalismo: permita referir-se positivamente a suas proprie-
reconhecimento social, dades e capacidades concretas” (HONNETH,
projeto político e espaço de vida 2009, p. 198). Assumindo, assim, “atitudes posi-
tivas” para com eles mesmos e perante os outros,
Como mostrado ao longo do texto, a incor- na forma de “autoconfiança, autorrespeito e
poração da categoria agricultura familiar pelas autoestima” (idem).
organizações sindicais não se deu de forma pas- Em relação ao caso da emergência dos agri-
siva frente às elaborações de outros agentes. cultores familiares como personagens políticos
Enquanto nas políticas públicas de apoio à agri- no Brasil, percebem-se alguns pontos de contato
cultura familiar, em trabalhos acadêmicos sobre com esta teoria. No sindicalismo que deu origem
o tema e na própria Lei da Agricultura Familiar à Fetraf, o início da discussão, em meados da
são feitas definições mais genéricas e normativas década de 1990, sobre a adoção da categoria agri-
do que seria a agricultura familiar, seja a caracteri- cultura familiar mostra claramente uma tentativa
zando como empresa familiar e como herdeira do de superação de uma condição de desrespeito
campesinato, seja a delimitando como unidade de social e de baixa autoestima. Segundo aponta
exploração familiar com área de até quatro módu- Amadeu Bonato (assessor sindical), o início
los fiscais, com força de trabalho predominante- desta discussão ocorreu para substituir o termo
mente da família, que reside na propriedade etc. “pequena produção” que era considerado pejora-
Por sua vez, as organizações sindicais de agricul- tivo e escondia os personagens sociais envolvidos:
tores, mesmo dialogando com essas definições, “Nós fizemos um debate. Não se trata de discutir
tendem a lançar acepções mais subjetivas, liga- se a produção é ou não pequena. O fato é que
das à especificidade da família agricultora, ao independente do tamanho da produção o que
seu local de trabalho e de vida, à cultura local, à importa são os personagens e não o que produ-
produção de alimentos, à tradição, à diversidade, zem” (entrevista ao autor, 2010). De forma similar,
associando-a a um valor positivo, como supera- o assessor sindical, Dino Castilhos, escreveu um
ção de uma condição de inferioridade social que texto para pensar a construção da identidade da
historicamente lhe foi atribuída. agricultura familiar, texto que passaria a ser uma
O sindicalismo procura mostrar que a cons- referência teórica importante para a Fetraf. Nesse
trução da ideia-força agricultura familiar seria texto, é analisado como os movimentos e partidos
resultado de lutas políticas, culturais e morais por de esquerda, com base em suas tradições teóricas
reconhecimento social. Esta perspectiva de luta marxistas, concebem a chamada pequena produ-
por reconhecimento pode ser associada com a ção, para chegar à conclusão de que as categorias
“teoria do reconhecimento” de Honneth (2009). pequena produção e agricultura familiar trazem
Para este autor existem três formas possíveis de em si distintas formas de ver os sujeitos presen-
reconhecimento denegado: a) aquelas que afe- tes na agricultura e “diferentes concepções sobre

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S079

o papel dos agricultores familiares” na sociedade O conceito “pequeno produtor” permitia que
e nos projetos de porvir: um de seus parâmetros fosse o tamanho da
parcela de terra explorada. O de agricultor
Pequena produção revela uma formulação familiar carrega uma complexidade econô-
que deriva da compreensão de uma pequena mica, social e cultural muito maior. O objetivo
produção capitalista incompleta e não desen- agora não é simplesmente apoiar uma agricul-
volvida. Ou seja, os pequenos agricultores tura de subsistência ou de resistência na terra,
são produtores atrasados e marginalizados mas sim de promover o desenvolvimento
no capitalismo, como são explorados fazem econômico do trabalhador e da trabalhadora
parte do proletariado agrícola [...] Já a expres- (CONTAG, 1999, p. 41).
são “agricultura familiar” procura designar
uma forma de produção moderna e mais efi- Nos Anais do VIII Congresso da Contag de
ciente sob o ponto de vista econômico, social e 2001 voltou-se ao tema e fez-se a recomenda-
ambiental (CASTILHOS, 1999, p. 4). ção de que noção de agricultura familiar fosse
incorporada oficialmente como linguagem pelo
Nesta diferenciação teórica entre pequena movimento sindical e pelos programas que este
produção e agricultura familiar fica evidente que participa, substituído outros termos tais como:
a Fetraf não compactua com as teses marxistas pequeno produtor e micro ou miniprodutores
clássicas que previam a decadência e mesmo a (CONTAG, 2001). Os diminutivos presentes nes-
extinção das unidades familiares na agricultura. tas denominações incomodavam. Reduziam os
Ao contrário disso, busca fortalecer o segmento agricultores e a sua importância, portanto, eram
social da agricultura familiar, entendendo-a percebidas como inadequados. Mesmo que desde
como um personagem do mundo contemporâ- meados dos anos de 1990 estivesse sendo usada a
neo. Um sujeito do desenvolvimento do mundo expressão agricultura familiar pelo sindicalismo,
rural. esta convivia com outros termos e eram conside-
A construção da identidade da agricultura radas, muitas vezes, como sinônimos. Foi com o
familiar, então, busca livrar-se do caráter atrasado, aprofundamento do debate sobre o projeto polí-
imperfeito e incompleto que a noção de pequena tico do sindicalismo que a noção de agricultura
produção carregava e motivar a sua ressignifica- familiar assumiu um significado diferente, posi-
ção ao ser renomeada como agricultura familiar, tivo, considerado mais adequado.
dando-lhes novos adjetivos positivos, tais como: Nos congressos seguintes é consolidado este
produtora de alimentos, moderna, eficiente, sus- novo sentido. No X Congresso de 2009 afirma-se
tentável etc. Nesta elaboração, percebe-se uma que o campo não pode ser visto somente como
clara tentativa da Federação motivar os agricul- a “propriedade”, a “produtividade”, as “relações
tores a livrarem-se de uma carga de valores nega- com mercado”. Ao contrário disso, o “campo
tivos do passado procurando inculcar-lhes, com brasileiro, em especial agricultura familiar, tem
a incorporação de uma nova identidade, valo- que ser local de alegria, prazer e atratividade,
res positivos que motivem “atitudes positivas” para que as famílias aí existentes, em especial,
(HONNETH, 2009). os jovens permaneçam e gostem deste espaço”
Acompanhando este processo de incorpo- (CONTAG, 2009, p. 41). Nesse sentido, a família
ração e positivação da agricultura familiar tam- agricultora não pode ser vista somente como uma
bém ocorreu um debate semelhante nos fóruns “unidade de produção” ou como um “estabele-
da Contag. A substituição da categoria “pequena cimento agrícola” onde somente os produtos da
produção” pela de “agricultura familiar” foi tra- agricultura são valorizados quando entregues ao
tado no II Congresso Extraordinário da Contag mercado. Para chegar nesse entendimento, um
realizado em 1999. São registrados os motivos da passo importante foi dado com a incorporação
substituição do termo: da noção de agricultura familiar que reconhece

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S080  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

vários sujeitos no espaço rural. Sobre este tema brasileiros o seu alimento, procurando ressaltar
alguns depoimentos de dirigentes sindicais do frequentemente a sua importância socioeconô-
Sulsão ilustrativos: mica no cenário nacional. Alguns estudos produ-
zidos pela academia, pelo convênio FAO/Incra e
Agricultura familiar é pai, é mãe, é filho, pelo IBGE dão respaldo para esta tese (segundo o
é filha, é genro, é o grupo familiar que tá
Censo Agropecuário de 2006, a agricultura fami-
naquela agricultura, naquela pequena pro-
liar é responsável por cerca de 70% dos alimen-
priedade. [...] A pequena propriedade, nós era
tos oferecidos aos mercado interno). Estes dados
quinta roda da carroça, nós éramos o lixo, nós
são apropriados pelas organizações sindicais na
não aparecia em lugar nenhum. A partir daí
as coisas começaram a crescer, nós começamos luta por recursos públicos e na luta simbólica por
a reivindicar (Heitor Schuch, ex-presidente da afirmação deste modelo de agricultura frente ao
Fetag-RS, entrevista ao autor, 2010). modelo do agronegócio, que estaria mais interes-
sado na exportação de commodities do que abas-
Se tu vai dizer “pequeno agricultor” parece tecer o mercado interno.
que tá dizendo que é só o homem, lá “pequeno Procurando se apropriar desta ideia-força, a
agricultor”. Então a “agricultura familiar” Fetraf elaborou um lema que sintetiza muito bem
quer dizer que envolve homem, mulher e esta ideia: Agricultura Familiar: as mãos que alimen-
jovem. Então é uma agricultura familiar onde
tam a nação (FETRAF-SUL, 2004). Trata-se da ideia
todo mundo faz parte. É essa a visão que nós
de que seriam as mãos dos agricultores familiares
tivemos no momento de dar o nome da “agri-
que produzem os alimentos para a Nação, para
cultura familiar”, é quando toda a família
participa do processo né, no processo da agri-
o povo brasileiro, além de procurar evidenciar a
cultura, no seu planejamento (Dilva Brum, sua importância econômica, carrega forte simbo-
Coletivo de Mulheres da Fetraf-Sul, entrevista lismo uma vez que esse formato de agricultura
ao autor, 2010). é caracterizado pelo uso expressivo do trabalho
manual nas atividades produtivas. Portanto, seria
Pelos depoimentos, fica evidente uma per- um trabalho artesanal, feito com todo cuidado,
cepção de que a noção de agricultura familiar para ir à mesa das pessoas.14
reconhece os diferentes sujeitos presentes na Essa valorização do trabalho realizado pela
agricultura (homens, mulheres, jovens, idosos) família agricultura diretamente envolvida no
e está associada ao “grupo familiar” que vive e processo produtivo também afirma um modelo
trabalha na agricultura. Visando atender as espe- de organização da produção que difere visceral-
cificidades e os diferentes interesses entre estes mente de outro modelo em que ocorre a separa-
sujeitos tanto na Fetraf quanto na Contag atual- ção de atividades de gestão do trabalho: o modelo
mente existem coletivos ou secretarias de mulhe- patronal. Este último modelo foi historicamente
res, de jovens e de idosos que promovem eventos, empregado no país pelas grandes fazendas onde
projetos e pautas de reivindicações específicas o trabalho diretamente envolvido nas ativida-
para esses públicos. Cada sujeito da agricultura des produtivas (manual) era realizado primeira-
familiar tem um espaço próprio nas estruturas mente pelo escravo, depois pelo empregado ou
sindicais. o agregado, enquanto o patrão fazia o gerencia-
Conjuntamente com perspectiva de valori-
zação dos diferentes sujeitos sociais presentes 14. Essa valorização do trabalho manual, artesanal, ligado às
na agricultura, o sindicalismo, nas suas duas ver- formas tradicionais de produção também faz parte de um
processo mais amplo de revalorização das formas de fazer
tentes, procura situar sua estratégia política de e dos produtos da agricultura sadios, naturais e pouco
afirmação do modelo da agricultura familiar na processados. São produtos considerados típicos da região,
com forte apelo à tradição e ao costume, em oposição aos
ideia-força de que seriam os agricultores fami-
produtos industrializados, considerados artificiais. Sobre
liares os responsáveis por levar para a mesa dos este tema ver Dorigon e Renk (2011).

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S081

mento (fazendo uso do intelecto, sem sujar as realizada por um conjunto de experiências, refle-
mãos).15 Neste modelo, que mantém alguns fios xões e iniciativas de diversos atores, aí incluí-
de continuidade com os do passado e até mesmo das as organizações sindicais. Se, de um lado, o
fortaleceu-se nos dias atuais, ocorre um acentu- debate acadêmico sobre a agricultura familiar
ado desprestígio do trabalho manual, realizado e as elaborações do convênio FAO/Incra foram
por pessoas consideradas de baixa qualificação, grandes impulsionadores de uma nova forma de
que só podem executar funções braçais, de uso olhar para os segmentos subalternos na agricul-
simples de força bruta. No modelo familiar, dife- tura e para a definição de políticas públicas para
rentemente, são valorizadas suas característi- este público, de outro, a atuação das organizações
cas de não separação entre quem pensa e quem sindicais e suas elaborações sobre a Lei Agrícola e
executa as atividades. Existe uma relação íntima o Projeto Alternativo de Desenvolvimento, jun-
entre a gestão da exploração familiar e a execu- tamente com as pressões realizadas pelos Gritos
ção de seu processo produtivo pelos membros da da Terra Brasil por políticas públicas diferencia-
família. Portanto, neste modelo tende a ocorrer das contribuíram para que os pesquisadores for-
uma reversão do qualificativo negativo atribuído massem os modelos teóricos e para pressionar o
ao trabalho manual e aos sujeitos sociais que rea- Estado a formular as políticas públicas. Esta cir-
lizam tais trabalhos. culação de informações e de categorias, essa com-
plementaridade entre pesquisas acadêmicas,
de agências estatais e internacionais e as ações
8. Considerações finais de reivindicação e proposição do sindicalismo
logrou colocar no centro das ações de desenvol-
Em três décadas a percepção sobre a agricul- vimento rural o agricultor familiar.
tura familiar mudou significativamente no país. As duas organizações sindicais aqui tratadas
Se no final da década de 1970 e durante a de 1980 (Contag e Fetraf) assumem o fortalecimento da
era considerada pela academia e pelo Estado agricultura familiar como centro de um projeto
como um setor social que estava em vias de desa- de desenvolvimento rural para país. Para elas, a
parecimento (o seu fim era eminente), a partir de agricultura familiar corresponde a um modelo de
meados da década de 1990 a situação começa a se organização da agropecuária assentado em unida-
alterar, a agricultura familiar passou a ser alvo de des familiares de produção, onde o grupo familiar,
política específicas do Estado, trabalhos acadêmi- em geral, é proprietários dos meios de produção,
cos e de órgãos do Estado passaram a valorizar planeja, gestiona e executa as atividades produ-
este modelo de agricultura e as organizações sin- tivas e a força de trabalho é predominantemente
dicais no campo a assumiram como identidade familiar. Este modelo é considerado mais vanta-
política e como projeto de agricultura a ser cons- joso social, econômico e ambientalmente (por ser
truído no país. mais democrático, eficiente e sustentável) quando
A principal questão que se evidenciou neste compara com o modelo de exploração patronal.
texto foi que a construção da categoria agricultura As organizações sindicais procuram cons-
familiar no Brasil, ao contrário do que querem truir “atitudes positivas” (HONNETH, 2009) ao
fazer crer muitos, não é produto exclusivo dos tra- assumirem a agricultura familiar como identi-
balhos acadêmicos a que são atribuídos a prima- dade política. No processo de incorporação desta
zia do uso do terno e nem, tão pouco, dos estudos identidade ocorreu uma tentativa de superar
de cooperação FAO/Incra e das políticas públicas uma condição de inferioridade social atribuída
(como o Pronaf), mas, sua construção no país foi aos pequenos produtores, reabilitando-os social e
politicamente como personagens do mundo con-
15. O modelo histórico de separação do trabalho manual do
temporâneo e participantes ativos do desenvol-
trabalho intelectual é analisado por Prado Jr. (1996). vimento. Com esta mudança foram incorporados

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
S082  Os Atores da Construção da Categoria Agricultura Familiar no Brasil

novos valores positivos, identificados com o novo ______. Anais do II Congresso Nacional Extraordinário
lugar que se pretende para este grupo de agricul- dos Trabalhadores Rurais. 1999.
tores. Nesse sentido, é construída a ideia-força de ______. Anais do VIII Congresso Nacional dos
que são os agricultores familiares os grandes pro- Trabalhadores Rurais. 2001.
dutores de alimentos para os brasileiros. ______. Anais do X Congresso Nacional dos
Por fim, cabe destacar que este direciona- Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais. 2009.
mento do reconhecimento da agricultura familiar DELGADO, G. Agricultura familiar e política agrícola
para os aspectos produtivos e de integração aos no Brasil: situação atual e perspectivas. Revista da
mercados de alimentos também traz contradições Associação Brasileira de Reforma Agrária, v. 24, n. 3, set./
para as organizações sindicais e as suas bases. Tem dez, 1994.
gerado certos atritos com organizações aliadas, ______. et al. Estratégias agroindustriais e grupos sociais
como as da Via Campesina (especialmente MST rurais: o caso do MERCOSUL. Rio de Janeiro: Forense,
e MPA), que têm atuado na construção de proje- UFRRJ, 1996.
tos de maior autonomia dos agricultores (chama- DNTR. Caderno de tese do II Congresso do
dos por estas de camponeses) e com outros grupos Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais.
subalternos do campo, tais como: indígenas, qui- Goiânia, 1993.
lombolas, extrativistas, ribeirinhos, etc. Muitos DORIGON, C. e RENK, A. Técnicas e métodos
destes fazem parte das bases sindicais ou foram tradicionais de processamento de produtos coloniais:
aliados em diversos momentos na luta contra de “miudezas de colonos pobres” aos mercados de
qualidade diferenciada. Rev. de Economia Agrícola, v. 58,
os latifundiários ou os agentes do agronegócio,
n. 1, 2011.
adversários comuns, mas não aderem ao modelo
de agricultura familiar “colona”, centrado na pro- FAO/INCRA. Diretrizes de política agrária e desenvolvimento
sustentável. Brasília, 1994 (Versão resumida do Relatório
dução para os mercados e na propriedade fami-
Final do Projeto UTF/BRA/036).
liar. Estes grupos têm formado atores políticos
próprios e ensaiado rupturas com o sindicalismo FAVARETO, A. Paradigmas do desenvolvimento rural em
questão. São Paulo: Iglu/Fapesp, 2007.
e o modelo da agricultura familiar.
FAVARETO, A. S. Agricultores, trabalhadores: os trinta
anos do novo sindicalismo rural no Brasil. Revista
9. Referências bibliográficas brasileira de ciências sociais, v. 21, n. 62, out. 2006.
FERNANDES, B. M. Disputas territoriales entre el
ABRAMOVAY, R. Paradigmas do capitalismo agrário em campesinado y la agroindustria en Brasil. Cuadernos del
questão. 2 ed. Campinas: Hucitec, 1998. CENDES, a. 29, n. 81, 2012.
BONATO, A. A. O DESER na história das organizações FETRAF-SUL. Resoluções do I Congresso da FETRAF-
da agricultura familiar da região Sul. DESER 15 anos, Sul/CUT. Chapecó, 2004.
ago. 2003.
GOLDIN, A. Corporativismo, neocorporativismo y
BOURDIEU, P. O poder simbólico. 10. ed. Rio de Janeiro: libertad sindical. Derecho Laboral, v. LV, n. 247, 2013.
Bertrand Brasil, 2005.
GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro:
BRUMER, A. et al. A exploração familiar no Brasil. In: Civilização Brasileira, 2002 (v. 5).
LAMARCHE, H. A agricultura familiar: comparação
GRAZIANO DA SILVA, J. (Coord.) Estrutura agrária
internacional. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
e produção de subsistência na agricultura brasileira. São
CASTILHOS, D. de. A construção da identidade da Paulo: Hucitec, 1978.
agricultura familiar. Curitiba, 1999.
GRISA, C. e WESZ JR., V. Políticas públicas para a
CONTAG. Anais do I Congresso Nacional agricultura familiar: entre avanços e desafios. Carta
Extraordinário dos Trabalhadores Rurais. 1994. Maior, 25 set. 2010.
______. Anais do VII Congresso Nacional dos HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral
Trabalhadores Rurais. 1998. dos conflitos sociais. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015
Everton Lazzaretti Picolotto  S083

IBGE. Censo Agropecuário 2006 – Agricultura Familiar: OFFE, C. Atribuição de status público aos grupos de
primeiros resultados – Brasil, grandes regiões e interesse. In: OFFE, C. Capitalismo desorganizado. São
unidades da federação. Rio de Janeiro: IBGE, 2009. Paulo: Brasilienses, 1989.

KAGEYAMA, Â. e BERGAMASCO, S. M. P. Novos dados PALMEIRA, M. A diversidade da luta no campo:


sobre a produção familiar no campo. XXVII Congresso da luta camponesa e diferenciação do campesinato. In:
SOBER.Piracicaba, 1989. PAIVA, V. (Org.). Igreja e questão agrária. São Paulo:
Loyola, 1985.
LAMARCHE, H. (Coord.). A agricultura familiar:
comparação internacional - Uma realidade multiforme. PICOLOTTO, E. L. As mãos que alimentam a nação:
Campinas: Editora da Unicamp, 1993 (v.I). agricultura familiar, sindicalismo e política. Tese
(Doutorado), Programa de Pós-graduação de Ciências
______. (Coord.). A agricultura familiar: comparação Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade,
internacional: do mito à realidade. Campinas: Editora UFRRJ, 2011.
da Unicamp, 1998 (v. II).
______. A formação de um sindicalismo de agricultores
LEITE, S. et al. Avaliando a gestão das políticas agrícolas no familiares no Sul do Brasil. Sociologias, v. 16, n. 35, 2014.
Brasil: uma ênfase no papel dos policymakers. Rio de
Janeiro: CPDA, 2007 (Convênio CPDA-NEAD3. PRADO JR, C. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1996.
MAARA/CONTAG. Propostas e recomendações de
QUEIROZ, M. I. P. Uma categoria rural esquecida. In:
política agrícola diferenciada para o pequeno produtor.
WELCH, C. et al. (Org.). Camponeses brasileiros: leituras
Brasília, 1994 (Relatório da Comissão Técnica MAARA/
e interpretações clássicas. São Paulo: Ed. UNESP, 2009.
CONTAG, Portarias MAARA 692, de 30/11/93 e 42, de
24/01/94). ROMANO, J. O. Atores e processos sociais agrários no
MERCOSUL, Estudos Sociedade e Agricultura, n. 6, jul. 1996.
MEDEIROS, L. S. História dos movimentos sociais no
campo.Rio de Janeiro: FASE, 1989. SABOURIN, E. Origens, evolução e institucionalização
da política de agricultura familiar no Brasil. Seminário
______. Lavradores, trabalhadores agrícolas, camponeses: os
Nacional Agricultura Familiar Brasileira: desafios
comunistas e a constituição de classes no campo. Tese
atuais e perspectivas de Futuro. Brasília, 2014.
(Doutorado), Programa de Pós-graduação em Ciências
Sociais, UNICAMP, Campinas, 1995. TAVARES DOS SANTOS, J. V. Matuchos: exclusão e luta.
Petrópolis: Vozes, 1993.
______. Sem terra, assentados, agricultores familiares:
considerações sobre os conflitos sociais e as formas THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa.
de organização dos trabalhadores rurais brasileiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
In: GIARRACCA, N. (Org.). ¿Una nueva ruralidad en VEIGA, J. E. Desenvolvimento agrícola: uma visão histórica.
América Latina? Buenos Aires: CLACSO, 2001. São Paulo: Hucitec, 1991.
MOTTA, M. e ZARTH, P. Formas de resistência camponesa: VENCESLAU, P. T. Limpar o terreno. Teoria & debate,
visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da n. 6, abr./jun. 1989.
história. São Paulo: Ed. Unesp, 2008.
WANDERLEY, M. N. B. Raízes históricas do campesinato
NOVAES, R. R. Dissolver a neblina. Teoria & debate, brasileiro. XX Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu,
n. 08, out./dez. 1989. 1996.
______. De corpo e alma: catolicismo, classes sociais ______. O mundo rural como espaço de vida: reflexões
e conflitos no campo. Rio de Janeiro: Ed. Graphia, sobre a propriedade da terra, agricultura familiar e
1997. ruralidade.Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2009.

RESR, Piracicaba-SP, Vol. 52, Supl. 1, p. S063-S084, 2014 – Impressa em Fevereiro de 2015

Vous aimerez peut-être aussi