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MÃOS À OFICINA!
Manual metodológico do Programa CLAVES:
“Brincando nos fortalecemos para enfrentar
situações difíceis”
Uma proposta de Prevenção dos Maus-
Tratos e da Violência Sexual e promoção dos
“Bons Tratos” por meio de oficinas com
crianças e adolescentes.
AUTORAS:
CAPÍTULO 2
Para configurar maus-tratos não é imprescindível que tenha como resultado um dano à saúde, à
sobrevivência, ao desenvolvimento ou à dignidade da criança, pois o surgimento de um dano depende da inter-
relação de vários fatores, bem como de vulnerabilidades e forças individuais, familiares e comunitárias.
Os maus-tratos são uma força em operação que se opõe à normalidade e à justiça e que causa dano real
ou potencial, manifestando-se por meio de diversas modalidades. Essa força pode não apenas causar danos por si
própria, mas também por impedir alguém de seguir seu curso, aqui entendido como o desenvolvimento normal,
que deveria culminar na maturidade plena.
A classificação dos maus-tratos em violência física, emocional, por negligência ou sexual é uma tentativa
de compreender este fenômeno em suas dferentes manifestações, porém, sabemos que podem ocorrer de forma
intrincada. Ainda que os maus-tratos contra crianças permeiem toda nossa história, os números que temos, de
prevalência e incidência, sobre a magnitude do problema são mais recentes. Vale salientar os seguintes números:
A OMS afirma que 40 milhões de menores de 14 anos sofre algum tipo de maus-tratos e requerem
atenção médica e social; e
Estudos realizados em diversos continentes mostram que, em média, 22% das mulheres e 15% dos
homens relatam ter vivido algum episódio de violência sexual, em suas diferentes modalidades, antes
dos 17 anos.
Sabemos que a maioria das pessoas que exercem violência foram socializadas em um contexto deste tipo,
ainda que a maioria dos que sofreram violência consigam não transmiti-la à geração seguinte. Pelo menos a
metade das vítimas de maus-tratos importantes na infância sofrerá seqüelas negativas a médio ou a longo prazo,
seja físicas, psíquicas, espirituais ou relacionais, com altos custos sociais.
Ainda que os maus-tratos possam ser sociais ou institucionais, é nos contextos das relações próximas
que eles alcançam maior magnitude e complexidade. A vigência de um modelo social e familiar que legitima o uso
da violência para resolver conflitos faz com que o fenômeno fique naturalizado e seja de muito difícil visibilidade.
A tomada de consciência de que as crianças são seres humanos plenos, com direito ao cuidado e à
proteção, é um conceito relativamente recente na história da humanidade e ainda em construção. Da mesma
forma como é recente o fato de poder assumir, dolorosamente, que nossas famílias têm a dupla potencialidade de
ser, por um lado, portos seguros para crescer e desenvolver-se e, por outro, o contexto no qual mais se maltrata
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e desrespeita os direitos das crianças e dos adolescentes. Ainda que seja esta uma nova ferida em nosso ego
humano, é imprescindível assumi-la para poder transformar, mesmo que modestamente, esta realidade.
I - A ALMA FERIDA
Apesar de ser um tipo de maus-tratos que ocorre à vista de todos, é dos mais difíceis de diagnosticar. Em
geral, é detectado associado a outras formas de maus-tratos, mas pode existir isoladamente.
Dayna Glaser, citada por Intebi, propõe 5 categorias que configuram os maus-tratos emocionais:
Conceituar os maus-tratos emocionais desta maneira envolve sustentar um marco conceitual a respeito
da infância, baseado nos seguintes critérios propostos por Intebi:
A violação ou falta de respeito pelos responsáveis de alguns desses fatos, que definem as necessidades
de uma criança, caracteriza os comportamentos enquadrados em maus-tratos emocionais.
Entendemos que existe negligência ou abandono quando há omissão da pessoa responsável de prover
aquilo que a criança necessita para seu desenvolvimento. Essa omissão pode ser enquadrada como negligência
quando tiver alta probabilidade de produzir danos à saúde ou ao desenvolvimento psico-físico, mental, espiritual,
moral ou social da criança, e quando estiver dentro do contexto dos recursos disponíveis para a família ou
responsáveis. A negligência inclui a falta de supervisão e de proteção adequadas perante as possibilidades de que
a criança sofra algum dano.
Ainda que se minimize as conseqüências deste tipo de maus-tratos, é importante saber uma criança que
não receba proteção ou estímulo emocional, cognitivo ou físico, nem cuidados médicos ou alimentação adequada,
de forma crônica, pode sofrer retardos irreversíveis em seu desenvolvimento.
A criança não pode prover a satisfação de suas próprias necessidades básicas de alimentação, vestuário,
habitação, supervisão, limites, afeto, contenção emocional, formação moral, atenção médica, educação, etc.
Algumas modalidades de negligência podem ser:
1- Negligência física
Desnutrição crônica, acidentes por desatenção, síndrome de falta de professo em lactentes, desidratação
por falta de cuidados, etc.;
2- Negligência emocional
Falta de atenção às necessidades emocionais, de contenção e de bem-estar emocional. Costuma estar
associada a outras formas de maus-tratos (evidencia-se em transtornos graves do desenvolvimento,
descuido em situação de perigo, expectativa exagerada sobre a capacidade de autoproteção da criança,
pais que, devido a seus próprios transtornos, não podem proteger seus filhos e não tomam as medidas
necessárias ou os deixam aos cuidados de outras crianças, ou pais que, conhecendo a situação de maus-
tratos de seus filhos, não tomam medidas para impedi-lo);
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3- Negligência médica
Crianças sem atenção médica, não-vacinadas, etc.;
4- Negligência educacional
Crianças não-escolarizadas ou com pouca presença).
Os maus-tratos físicos configuram-se quando se produz um dano físico, real ou potencial, a partir de
algum tipo de interação dentro dos parâmetros razoáveis de controle de um ou de ambos os progenitores, ou de
alguma pessoa em posição de responsabilidade, confiança ou poder.
A maioria dos maus-tratos físicos a que são submetidos crianças e adolescentes estão profundamente
naturalizados, racionalizados e justificados como uma modalidade de formação e educação. Irene Intebi insiste
que é fundamental distinguir dois conceitos radicalmente diferentes, mas que costumam ser confundidos: Limites
e castigos
O castigo é diferente. Não visa apoiar a criança para que desenvolva seus próprios controles internos e
sua capacidade de tomar decisões. Em geral, trata-se de uma reação de braveza do adulto, que não tem uma
conexão clara com a idade da criança e seu nível evolutivo. Já foi comprovado que o castigo físico, como forma
disciplinar, em que pese seu exercício muito arraigado e de grande difusão, não é uma estratégia reflexiva capaz
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de educar, pois a criança normalmente não está em condições de compreender o que se espera de seu
comportamento. Da mesma forma, o castigo emocional, por meio de insultos ou palavras que ferem ou humilham,
não educa. Pelo contrário, favorece uma auto-imagem negativa. Controles externos desse tipo apenas impõem o
poder e o domínio, provocando a ruptura dos vínculos e, geralmente, a humilhação de quem recebe esses
castigos.
Apesar da existência da violência sexual ser conhecida desde a mesma época que outros tipos de maus-
tratos, tem ficado mais oculta. Em geral, apenas as formas de violação, exibicionismo e pedofilia têm chamado a
atenção. Aparentemente, o mesmo tabu ligado ao incesto parece influir na possibilidade de falar sobre este tipo
de violência.
Fala-se de violência ou abuso sexual quando uma criança é envolvida em atividades sexuais que não
chega a compreender totalmente, perante as quais não está em condições de dar seu consentimento informado,
ou para as quais não está evolutivamente madura e não pode dar seu consentimento, ou em atividades sexuais
que transgridam as leis ou as restrições sociais. Uma definição operacional de violência sexual pode ser:
Manifesta-se em atividades entre uma criança e um adulto, ou entre duas crianças que, por sua idade
ou desenvolvimento, encontram-se em relação de desigualdade quanto a sua posição de responsabilidade,
confiança ou poder.
1- Gratificação do ofensor
O propósito da violência sexual é a gratificação do adulto ofensor ou de outros adultos nos casos de
exploração sexual comercial ou pornografia infantil. Deve-se destacar que essa gratificação pode ser tipos
diversos. Não é estritamente “sexual”, muitas vezes ocorre pela gratificação que produz a relação de domínio-
submissão-controle. Muitos autores concordam que o que realmente gratifica o abusador é o prazer de dominar,
de controlar alguém dependente. Neste sentido, a violência sexual contra a criança seria a expressão máxima do
exercício do poder expresso sexualmente.
2- Assimetria de poder
A assimetria de poder é dada não apenas pela desigualdade de idades, enfatizada por muitos autores,
mas também, e fundamentalmente, pelo tipo de relação que une os protagonistas. Nessas situações existe uma
relação de poder hierarquicamente desigual, desequilibrada e, portanto, estruturalmente violenta. Não basta que
exista uma relação de poder assimétrica, mas aquele que detém o poder deve utilizá-lo de forma abusiva. Os
protagonistas podem até ter idades semelhantes, como pode ocorrer entre adolescentes, mas se existir esta
relação de abuso de poder, configura-se a situação violenta.
A assimetria pode ocorrer por diferenças de idade, de gênero, de conhecimentos, de força física e pela
ascendência e autoridade que o próprio abusador tem, reconhecidas pela criança ou pelo contexto imediato. É
importante mencionar que esse desequilíbrio de poder em que se baseia toda situação de violência nem sempre é
visível para um observador externo. Com freqüência, é produto de uma construção de significados que somente
se torna compreensível a partir dos códigos interpessoais. É suficiente que alguém acredite no poder e na força
do outro para que se produza o desequilíbrio.
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3- Coerção
A coerção está presente de diferentes maneiras, seja por pressão, ameaça, chantagem, prêmios e
castigos, sedução, engano, ou, mais raramente, pela força física. Quando a coerção existe, é suficiente para
definir uma conduta como violenta ou abusiva, sem importar que haja ou não diferença de idade entre os
protagonistas. Isso é especialmente importante em situações em que os envolvidos são adolescentes.
4- Consentimento não-válido
A violência sexual, como já vimos, não se reduz nem se relaciona somente com a esfera genital, o que
dificulta muitas vezes o diagnóstico. Há condutas que passam despercebidas pela comunidade, que são as que
ocorrem com maior freqüência e também as que se mantém em segredo. Trata-se de atos ou gestos com os quais
o adulto obtém gratificação. Algumas dessas condutas podem fazer parte de modelos culturais ou costumes
familiares, em cujo caso deveríamos poder analisar se existe uma intencionalidade de gratificação sexual.
1. TIPOS. A violência sexual pode ocorrer com ou sem contato físico. Engloba múltiplas modalidades, como
exibicionismo, voyeurismo, manuseio da genitália, frotteurismo, exposição a comentários obscenos, exposição
à pornografia, sexo oral, penetração anal ou vaginal, abusos rituais, exploração sexual comercial (prostituição,
produção de pornografia), etc. Na maioria dos casos é uma atividade que se mantém em segredo.
2. DISTRIBUIÇÃO DAS VÍTIMAS POR SEXO. Os estudos mostram uma relação de 2 para 1 aproximadamente
entre as vítimas do sexo feminino e masculino. Parece haver um sub-registro no que se refere aos
homens vítimas de violência.
3. DISTRIBUIÇÃO DOS AGRESSORES POR SEXO. A imensa maioria dos agressores são do sexo masculino.
As cifras atuais estão por volta de 95%. O abuso realizado por mulheres é de reconhecimento mais
recente. Parece estar mais mascarado que o cometido por homens.
4. RELAÇÃO COM A VÍTIMA. Em cerca de 85 a 90% dos casos, o agressor faz parte do círculo de confiança
das crianças. É seu conhecido ou de sua família, ou faz parte da família. Em cerca de 10 a 15% dos casos,
o agressor é desconhecido da criança.
5. ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS AGRESSORES. As pessoas com orientação heterossexual abusam sexualmente
na mesma proporção que as pessoas com orientação homossexual.
6. CONSEQÜÊNCIAS PARA AS VÍTIMAS. Não são uniformes. Para muitas pessoas vítimas de violência sexual na
infância, esse evento não provocou um impacto significativo em suas vidas, o que é muito alentador. Para
outro setor importante, aproximadamente a metade, gerou conseqüências a curto ou longo prazos. A maioria
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das vítimas mantém o silencio durante a infância e a adolescência. Progressivamente, devido à difusão do
tema, um número maior de vítimas vai podendo revelar sua situação.
7. TRANSMISSÃO TRANSGERACIONAL DA VIOLÊNCIA SEXUAL. Ainda que a grande maioria das pessoas que
violentam crianças e adolescentes tenham vivido em sua infância situações de violência de algum tipo, o
inverso não é verdadeiro. A maioria das pessoas (até 70%) que estiveram expostas à violência sexual ou de
outro tipo na infância, conseguiram não transmiti-la à geração seguinte. Isso contradiz a crença muito
difundida de que “aquele que foi abusado vai abusar”. Essa crença errada tem contribuído para a
estigmatização das vítimas e a justificação de algumas pessoas que violentam outras, amparando-se no fato
de que foram violentadas na infância.
O vínculo das pessoas envolvidas na situação violenta ou abusiva pode ser situado em um contínuo, no
qual um extremo é o abuso sexual intrafamiliar, isto é, o abuso cometido por um familiar da criança, e o outro
extremo é o abuso extrafamiliar, cometido por um desconhecido, encontrando-se no resto do contínuo as demais
possibilidades de abuso. Não incluímos aqui a exploração sexual comercial, ainda que costume ser precedida por
alguma das modalidades não-comerciais de violência sexual.
EXTRAFAMILIAR - Perpetrada por vizinhos, amigos da família, professores, religiosos, responsáveis, etc.
Por ser a pessoa que violenta muito chegada à vítima e sua família, aproveita-se do contato contínuo que
tem com a criança e da “proteção” decorrente de não estar sujeito à suspeita. O espaço físico onde tem lugar o
abuso é, na maioria dos casos, o próprio domicílio da vítima, podendo também ocorrer no domicílio do abusador.
Nessas situações fica muito difícil para a criança dar-se conta da rede em que está caindo, dado o caráter
confuso e manipulador da relação. “A criança vive os gestos e discursos de seu abusador como amistosos,
afetivos e gratificantes. Valem-se do carinho, da persuasão, da mentira ou da pressão psicológica e da autoridade
e confiança de que gozam e, de maneira enganosa, levam as vítimas a participar de atividades sexuais. A
agressão sexual ocorre de uma maneira “doce” e velada, provocando na criança, em muitos casos, sensações
corporais e inclusive de gozo sexual” (J. Barudy). E assim pode passar algum tempo antes que a vítima perceba
que está sofrendo abuso. Quando o faz, costuma culpar-se da situação, pois se vê em um plano de igualdade
com o agressor e não pode vivenciar-se como vítima.
INTRAFAMILIAR - É perpetrada por membro(s) da unidade familiar primária-nuclear: pai, mãe, padrasto,
madrasta, irmãos, ou por membros da família estendida: avós, tios, primos.
Este tipo de violência sexual é denominado incesto. É muito grande o número de crianças e adolescentes que são
vítimas desta forma de violência. A idade de maior incidência é em torno à puberdade (de 9 a 12 anos), mas a
encontramos em qualquer idade, inclusive em bebês.
Excepcionalmente, é uma situação ocasional, trata-se em geral de uma história de anos, de uma
trama de sentimentos contraditórios de amor e ódio, de segredos, longamente tecida. Há uma clara
manipulação do vínculo familiar.
Vários autores tentaram compreender o incesto a partir das características da relação. Dentre outras, uma
contribuição original é a de Perrone e Naninni, que descrevem o desequilíbrio de poder, como analisamos acima, que
fuinciona vínculo abusivo como “feitiço”. “O pai não seduz a filha, mas a confunde e a faz perder o senso crítico, de
forma que a ela resulta impossível qualquer rebelião. O abusador descobre que sua ação provoca estupor e
confusão nos membros da família e observa que cada vez pode levar mais longe sua prática de predomínio
psicológico sobre os outros. A experiência é semelhante a um enfeitiçamento: o cotidiano converte-se em uma
cerimônia e um ritual de feitiço.”
Apesar de a forma mais freqüente de incesto ser a paterna, o incesto entre irmãos é também bastante
comum. Pode adquirir a forma de interação sexual irmão-irmã ou irmãos do mesmo sexo. Alguns autores
salientam que a interação sexual entre irmãos não tem a mesma carga emocional que o incesto pai-filho, portanto
é mais comum e passa mais despercebida que as outras formas de incesto. Entretanto, a disfunção familiar não
está ausente nesses casos e, muitas vezes, a sexualização crônica do vínculo fraterno pode responder a uma
tentativa de superar situações de estresse familiar, carências afetivas, abandonos ou negligências severas.
i. FASE DA SEDUÇÃO
manipulação da dependência e da confiança
convite à participação, contatos ambíguos
planejamento cuidadoso
preparação do lugar e do momento do abuso
O abusador impõe a lei do silêncio. Corta vínculos familiares e sociais que poderiam ser protetores. A
criança não tem outra alternativa a não ser adaptar-se. Os outros membros da família estão ausentes ou são
cúmplices de uma ou outra forma. Se começar quando a criança é pequena, ela, muitas vezes, não é ciente de que
se trata de uma situação abusiva. Ao ir crescendo e conhecendo outras famílias, vai dando-se conta. Não pode
reconhecer-se como vítima. Sente-se como parte da relação e como seu causador.
acidental ou premeditada
tardia, conflitiva e pouco conveniente
a família e a comunidade entram em crise
Esta breve enumeração menciona vivências habituais para crianças submetidas à violência sexual crônica
e pode ajudar a entender suas reações. Nem todos os afetados passam por todas elas, mas são bastante
freqüentes. Quando o abuso é realizado por uma pessoa conhecida e de confiança, com a qual a criança tem um
vínculo de afeto, gera-se uma série de sentimentos na vítima que fazem com que fique ainda mais paralizada e
não possa ver uma saída para sua situação.
Por ouro lado, há crianças que não têm consciência da natureza abusiva da situação, ou não a
sexualizaram, especialmente quando são pequenas.
CULPA : “Essa coisa tão desagradável que acontece não pode ser culpa dessa pessoa a quem
quero tanto. Deve ser minha culpa.” O agressor envia mensagens todo o tempo para que a
criança se sinta culpada pelo abuso. Também se sente culpada pela relação e pelos sentimentos
de hostilidade contra a mãe. Se o abuso é descoberto, sente-se culpada pelas repercussões da
descoberta (seja a prisão do pai, ou a separação dos pais, ou a dissolução da família, etc.). Se,
depois da descoberta, a criança é separada da família, isso é experienciado mais como um
castigo que como uma proteção, o que gera grande ansiedade, temor, raiva, tristeza, vergonha
e um sentimento de culpa cada vez maior. Este é um dos sentimentos que tendem a permanecer
por mais tempo nas pessoas abusadas sexualmente.
VERGONHA : Há uma percepção quase inata de que algo muito privado não está sendo bem
tratado. O senso de pudor, que já é claro a partir dos 4 ou 5 anos, é violentado. Sensação de
estar marcado, lesado, de que todos sabem. Alteração profunda da auto-estima.
TRAIÇÃO E DESCONFIANÇA , seja pela pessoa que abusa ou pelos que falham em proteger. As
pessoas em que confia falharam e a criança pode crescer desconfiando de todos e de tudo. Se o
abuso for descoberto e a mãe e as pessoas próximas não acreditarem e não lhe derem apoio,
aumenta o sentimento de traição. Se, depois da descoberta, a criança for enviada para fora da
família ou sofrer novas revitimizações em procedimentos institucionais, aumentará ainda mais o
sentimento de traição e de não poder confiar nos outros.
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DISSONÂNCIA COGNITIVA : “Disse que está tudo bem, mas não posso contar.” “Disse que todos
os pais querem seus filhos assim, mas só faz comigo e não com meus irmãos. ” “Isso que
acontece é muito estranho.” Crianças, especialmente as mais novas, não têm o desenvolvimento
cognitivo suficiente para decodificar os acontecimentos.
CONFUSÃO : As mensagens que as crianças recebem são contraditórias e confusas: da mesma
pessoa recebem agressão e afeto. O abuso provém da mesma pessoa em quem acreditam, a
quem querem bem e de quem dependem. A pessoa que os ataca é a mesma que lhes dá amor e
um lugar especial na família. Podem experimentar algum tipo de prazer, já que são estimuladas
zonas normalmente erógenas, o que irá aumentar o sentimento de confusão e de vergonha.
AMBIVALÊNCIA : Sentimentos simultâneos contraditórios como amor e ódio, prazer e nojo.
SEXUALIZAÇÃO TRAUMÁTICA : A imposição da sexualidade adulta favorece que a sexualidade
fique associada a vivências negativas como a dor, a vergonha, a culpa, o desconcerto, o medo, o
segredo.
SOLIDÃO, DESAMPARO, DESESPERANÇA IMPOTÊNCIA APRENDIDA : “Nada que eu faça pode
modificar a situação.” Crianças abusadas crescen duvidando de sua capacidade de interpretar a
realidade, tornam-se crianças muito inseguras de si próprias e de suas capacidades.
DOR FÍSICA E MORAL
PARENTALIZAÇÃO : Ocupar papéis de esposa/o, não apenas no âmbito sexual, mas também no
cuidado dos outros irmãos, no âmbito econômico, no cuidado da casa, etc.
ISOLAMENTO , provocado pelo abusador, de outras figuras que poderiam ser protetoras.
VAMPIRIZAÇÃO : Não poder reconhecer-se como vítima, sente-se causador e responsável pela
situação (Perrone e Naninni).
PACTO DE LEALDADE E DE PROTEÇÃO MÚTUA COM O ABUSADOR Este pacto não se rompe
quando o abuso é descoberto e continua atuando por mais tempo.
ALTERAÇÃO DA IMAGEM DE SI MESMO, DO ABUSADOR, DE DEUS, DO MUNDO : O mundo é
percebido como um lugar perigoso e a capacidade de confiança básica é alterada.
SUPERADAPTAÇÃO Colocar toda a energia na manutenção de uma fachada de perfeição e
normalidade.
ALIENAÇÃO SACRIFICIAL Sacrifício pessoal para manter a unidade familiar a todo custo.
DESENVOLVIMENTO DE MECANISMOS DE DEFESA PARA SOBREVIVER . Dissociação: “vou para outro
lugar quando isso acontece com meu corpo... esqueço-me de tudo.” Negação: “… isso nunca
aconteceu... foi um sonho... eu vi num filme…” Ainda que esses mecanismos permitam sobreviver
nesta situação limite, se se instalarem de forma permanente, tornar-se-ão em patologias.
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O impacto da violência sexual nas vítimas e em suas famílias é muito variado. Depende da combinação de
uma série de fatores, como forças anteriores das crianças e de suas famílias, bem como das características da
situação abusiva. Em alguns casos age como um evento traumatizante, mas em outros é uma experiência negativa
ou indiferente, que não deixa conseqüências e é integrada como um incidente a mais da história de vida.
Vários pesquisadores descrevem elementos que, estando presentes, permitem predizer uma
possibilidade de danos maiores. Quais sejam:
A proximidade emocional com o abusador e a autoridade moral que ele tenha sobre a vítima;
O momento evolutivo da criança;
A cronicidade do abuso;
O uso da violência física, a presença da dor física ou da inundação de emoções fortes, como o terror;
A penetração vaginal, anal ou oral;
A fragilidade psíquica prévia do abusado;
A incapacidade da vítima de poder falar sobre o assunto e de poder evitar que a situação volte a
repetir-se;
Relações familiares pobres;
A falta de qualquer figura protetora alternativa;
A falta de apoio de pais ou mães e de pessoas próximas após a descoberta do abuso;
Sobretudo, a vitimização secundária que sofre a criança abusada em sua família, na comunidade, nas
instituições, etc. (que, entre outros efeitos, pode fazer com que a personalidade se estruture em torno
de sua condição de vítima).
No abuso sexual infantil atenta-se contra e põe-se em risco a possibilidade de um desenvolvimento sexual
adequado à idade, ou seja, contra o que a criança sabe e compreende sobre seu próprio corpo e seus
sentimentos. Também são violentadas as regras sociais e legais. São violentados os direitos humanos. Nos casos
de incesto, pode-se ainda distorcer profundamente os papéis familiares e a possibilidade de desenvolver relações
confiáveis, próximas e seguras com pais ou pessoas importantes, o que eventualmente terá uma repercussão
importnte também nos relacionamentos futuros.
Quando ocorre o abuso, todas as áreas da vida da criança podem ser afetadas. Há longas listas de
indicadores, que também são conseqüências, que demonstram isso. Dentre eles destacamos a conduta
sexualizada, as mudanças bruscas no desempenho escolar, o transtorno por estresse pós-traumático, os
transtornos depressivos (tentativas de auto-eliminação), as condutas disruptivas. Toda criança ou adolescente
vítima de violência sexual, no contexto de uma intervenção global interdisciplinar, merece uma avaliação
psiquiátrica e que se aja de acordo com a mesma, seja fortalecento aspectos resilientes ou instaurando
tratamentos adequados, psicoterápicos e/ou farmacológicos, quando indicados.
No que se refere às intervenções individuais e/ou familiares, deve-se hierarquizar o respeito pela
singularidade de cada caso e a necessidade da “artesanalidade” requerida para o acompanhamento de cada
criança, adolescente, ou família em particular, elaborando “mapas de rotas pessoais”, estratégias de intervenção,
caminhos a trilhar de acordo com a situação vivida e seu contexto.