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PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:
análise de sua estrutura normativa
para a elaboração legislativa
e para a decisão judicial
EDITORA LUMEN JURIS
Rio de Janeiro
2010
Copyright © 2010 Maurício Zanoide de Moraes
PRODUÇÃO EDITORIAL
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Sumário
Printed in Brazil
Apresentação
Caro leitor.
Creio que temos reações comuns quando entramos numa livraria jurídica. O que
nos atrai, de primeiro, para que se apanhe um livro da prateleira ou da mesa, é o seu
título, porque é, por meio dele que se verifica se a matéria se identifica com o nosso
interesse. Tomamos, então, o livro nas mãos; abrimos as primeiras e as últimas páginas
para vermos o sumário e a bibliografia, e depois, como procedimento derradeiro, antes da
compra ou da devolução do livro ao lugar de onde foi retirado, corremos os olhos pela
apresentação que nada mais é do que uma breve comunicação, feita à guisa de
introdução, na qual o apresentador põe em evidência o tema tratado e mostra as
qualidades do autor. Já exerci, por incontáveis vezes, esse papel. Os anos acumulados – e
são tantos – podem explicar o aparecimento de meu nome nesse ato introdutório, mas
sempre procurei conter-me nas balizas recomendadas.
Aqui e agora, não pretendo ser fiel seguidor de regras; antes, quero às claras quebrá-
las. Dei-me conta de que não serei capaz de conduzir-me como em outras apresentações.
Não me sinto acomodado à posição de quem se coloca de permeio entre o autor e o leitor,
servindo de mera interface. Sinto-me bem melhor como quem se dirige diretamente ao
leitor para dar-lhe um testemunho. Por isso, desprendi-me das falas próprias de uma
apresentação para dar espaço, em seu lugar, ao relato de quem teve o privilégio de
observar pari passu o projeto, o desenvolvimento, a concretização e a defesa da tese de
livre-docência de Maurício Zanoide de Moraes, apresentada na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
Há muitos anos acompanho os passos de Maurício na sua vida pessoal, no seu
desempenho profissional e na sua caminhada acadêmica. Segui-o, de perto, nas várias
etapas desses percursos. Participei de seus momentos de sucesso, mas o vi também, como
qualquer ser humano, mostrar-se vulnerável diante de emoções e de aflições. Tenho,
portanto, por ele, uma enorme estima pessoal, quase paternal. Não vem a pêlo, no
presente contexto, relatar os vários fatos que serviram para cimentar a amizade que
tenho por ele e que é extensível à Fernanda e às suas duas filhas, Laura e Gabriela.
Proponho-me apenas a contar os bastidores de sua tese “Presunção de Inocência no
Processo Penal Brasileiro” que, ora, se transforma no livro que o leitor apanhou para
exame.
Lá pelos idos de 2002, eu, Maurício e um amigo, Márcio Bártoli, alugamos, por
quinze dias, um pequeno apartamento, em Paris. Mauricio viajou antes pela Espanha e
pelo sul da França e quando chegou, relatou-me que, no trem entre Avignon e Paris,
tivera o insight de que, se algum dia viesse a escrever uma tese de livre-docência, deveria
ela versar sobre a presunção de inocência. E esta súbita luz lhe veio à mente, com tal
clareza, que elaborou, no próprio trem, os tópicos que deveriam compor a obra. Lembro-
me, agora, nessa retrospectiva, que o estimulei a transformar em realidade tema tão
complexo e, ao mesmo tempo, tão pouco abordado no Brasil.
Em junho de 2003, Maurício, após concurso, ingressou, como Professor-Doutor
contratado, no quadro do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo e, nos anos de 2005 e 2006, presidiu o Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais. Recordo-me bem que, pouco antes de terminar seu mandato, ou
seja, em fins de dezembro de 2006, contou-me ele, em seu próprio escritório, que não
poderia dar-me o apoio desejável – eu o substituíra na presidência do IBCCRIM – porque
resolvera dedicar aquele ano a duas tarefas: cuidar de sua primeira filha, que nasceria em
fins de janeiro, e iniciar a preparação de sua tese de livre-docência. E de novo colocou,
na sua pauta de trabalho, a questão da presunção de inocência. Confesso que lhe disse, na
ocasião, que deveria fazer uma opção entre essas tarefas, porque implementá-las em
conjunto seria uma loucura, máxime porque seu escritório de advocacia estava, ao
mesmo tempo, em plena ascensão. Mas Maurício não me deu ouvidos. Felizmente!
O ano de 2007 começou e terminou com percalços. Após meses de pesquisas e
estudos sobre o tema escolhido, Maurício sentiu um certo desalento, por volta de julho.
Tudo quanto lera e pensara sobre o assunto parecia-lhe insuficiente; a doutrina nacional
e estrangeira, objeto de leitura e de reflexão, não apontava nada capaz de atender, mesmo
de longe, ao desejo de remodelar a presunção de inocência através de uma análise que
transcendesse o direito processual penal, mas que tivesse o mesmo âmbito como
destinação final. Para ele haveria a necessidade de romper com os padrões e formas
anteriores para que pudesse oferecer o rejuvenescimento e a modernidade que o tema da
presunção de inocência pedia para a sua maior incidência e efetividade práticas. Os
caminhos já traçados não atendiam ao seu sempre insatisfeito espírito de cientista e, a seu
critério, não bastaria para escrever a tese de livre-docência. Abandonou o estudo por três
meses, até encontrar outros caminhos a trilhar. O novo horizonte que o fez avançar e
retornar, com empenho redobrado, ao tema que o espicaçava há quase cinco anos, foi o
aprofundamento de seus estudos na área constitucional e da teoria geral do direito,
sobretudo na intersecção desses dois ramos na Teoria dos Direitos Fundamentais exposta,
principalmente, por Robert Alexy e por Ronald Dworkin no Exterior, e por Virgilio
Afonso da Silva e Humberto D’Ávila no Brasil. Efetivamente, Maurício promoveu a
desconstrução de velhos mitos históricos; pôs a descoberto ranços políticos dos regimes
autoritários, que informaram a elaboração de nosso sistema processual penal de l940, e
partiu para uma análise da estrutura normativo-constitucional da presunção de
inocência, enfatizando como deve ela ser aplicada, de modo coerente para melhor
solução de questões cotidianas da realidade forense.
A visão constitucional da presunção de inocência e sua inserção como direito
fundamental abriram largo espaço para uma pesquisa em profundidade. Nos meses
subseqüentes a agosto de 2007, Maurício fez ampla investigação histórica sobre a matéria
e teceu diversas considerações sobre a presunção de inocência como direito fundamental.
Terminados os três capítulos iniciais da tese, tratou, em seguida, no quarto capítulo, de
propor a questão do conteúdo essencial da presunção de inocência. A essa altura, foi
Maurício surpreendido com a notícia de que a Universidade de São Paulo (USP) tinha
posto termo a todos os contratos trabalhistas com os professores-doutores de seus
Departamentos e abrira concurso para ingresso na carreira pública em todas as
faculdades. Isso o obrigou a dar uma parada a fim de preparar-se para o concurso, pondo
de lado a tese em elaboração. Em fins de 2007, logrou sucesso no concurso e preencheu a
vaga aberta. Mal terminado o concurso, Maurício deu seguimento à feitura da tese. Por
volta de março de 2008, ainda lhe restava fazer o quinto capítulo – e este representou um
conjunto de duzentas páginas – no qual, de forma inovadora, objetivava evidenciar a
repercussão da estrutura normativa do princípio da presunção de inocência tanto na
elaboração legislativa, quanto no cotidiano dos casos judiciais. E só lhe sobravam
quarenta e cinco dias para que pudesse terminar o trabalho ainda a tempo de relê-lo, de
fazer consertos formais, de reexaminar as notas de rodapé e de conferir a correção da
bibliografia. Em fins de abril o trabalho estava pronto e impresso no aguardo da abertura
do concurso para a livre-docência que, no ano de 2008, por exceção, teve sua inscrição
encerrada em 3 de junho de 2008. No dia 28 de maio, Maurício depositou sua tese na
Faculdade de Direito e, na data do término da inscrição, ou seja 3 de junho, nasceu sua
segunda filha, Gabriela. Na primeira semana de novembro de 2008, houve a defesa de sua
tese de livre-docência que culminou com ampla e consagradora aprovação.
Por que – há de perguntar o leitor que folheia o livro – devo estar a par de toda essa
estória? O que tem ela a ver com o ato de incorporar um novo livro na minha biblioteca?
Posso responder-lhe: tudo. No mundo atual, no qual os valores perdem a olhos vistos sua
solidez, tendendo à liquefação, é extremamente árduo e exige um esforço sobre-humano
a busca e a mantença desses valores. A estória relatada é uma homenagem aos valores da
seriedade científica, da persistência, do esforço desmedido de arrostar sacrifícios, do
poder de privar-se dos prazeres fáceis e, sobretudo, da capacidade de destrinçar
dificuldades e de controlar emoções. E, de acréscimo, é também uma estória de amor.
Porque só Fernanda poderia, com a força interior, compreensão e suavidade, que lhe são
próprias, dar a Maurício duas filhas, em momentos tão próximos, e ainda por cima, ter a
generosidade de conferir-lhe tempo livre para concluir sua tese.
Permita-me agora, caro leitor, no fecho desta apresentação, colocar-lhe uma
alternativa: ou saia da livraria sobraçando o melhor livro que já se publicou na literatura
jurídica brasileira sobre o princípio da presunção de inocência, ou o recoloque na
prateleira ou na mesa da livraria. Nesta última hipótese só me cabe lamentar o fracasso
do meu testemunho e pedir-lhe desculpas por ter me acompanhado até aqui.
Um abraço.
Alberto Silva Franco
Prefácio
Introdução
Uma breve leitura dos periódicos diários e semanais e uma pequena passada por
programas diários de rádio e televisão levam o espectador leigo em nossas leis a indagar
se existe a presunção de inocência. Esse mesmo espectador não teria sua indagação
respondida se fosse conhecer a nossa realidade forense. Em verdade, talvez a
perplexidade aumentasse ainda mais em sua mente, pois, de uma quase certeza de sua
inexistência, propiciada pela mídia, verificaria que há juízes que a reconhecem em alguns
casos, e em outros não, e, pior, há juízes que não a reconhecem nunca. Notaria a falta de
critério e segurança na jurisprudência e, em não menor intensidade, na doutrina.
Se adentrasse ainda mais no sistema jurídico e lesse nosso vigente Código de
Processo Penal tenderia a achar que ela ficou reduzida a raras e diminutas ocorrências do
“in dubio pro reo”. Mas, ao ler o texto literal de nossa Constituição afirmaria haver uma
“presunção de não culpabilidade”, não encontrando qualquer referência à “presunção de
inocência”. Tenderia a afirmar, após esse périplo, que ela não existe. Porém, poderia ficar
perturbado e não compreenderia por que uma doutrina e uma jurisprudência
minoritárias e insistentes continuam a afirmar que a presunção de inocência existe no
Brasil.
Por fim, a perplexidade ficaria irresoluta se, consultando os Tratados e Convenções
Internacionais, em cujos textos encontra-se esse direito humano, verificar que o Brasil,
ao subscrevê-los, prometeu dar-lhes cumprimento tão inteiramente como eles se
apresentam.
Essa perplexidade, à qual todo estudante de direito ou operador jurídico está
submetido, justifica o estudo mais detalhado da presunção de inocência.
A justificativa para se estudar a presunção de inocência reside no fato desse direito
fundamental não ter existido (formalmente), na história do ordenamento jurídico
nacional, até o advento da Constituição da República de 1988 e, após sua vigência, ainda
não ter atingido a esperada efetividade.
Essa baixa efetividade tem uma única causa: a ausência de uma perfeita
compreensão da própria presunção de inocência, “o que” é, “por que” existe e “para que”
foi concebida e deve ser respeitada e cumprida por todos.
De fato, conquanto haja muitos e consistentes estudos sobre sua origem, sua força
político-ideológica e sua destinação humanitária, não são na mesma quantidade e
qualidade os trabalhos que procuram lhe desvendar o conteúdo normativo, os seus
efeitos e as suas conseqüências para o sistema processual penal. Necessário se dar
consistência àquele sempre tido como o mais “abstrato” dos princípios constitucionais
dirigidos ao processo penal.
De ordinário, os melhores trabalhos sobre a presunção de inocência não são estudos
específicos em que ela é analisada de forma isolada, mas trabalhos nos quais é examinada
em face de outro instituto jurídico (p.ex., a prisão provisória, os meios de prova ou de
obtenção de prova, ou, ainda, a motivação judicial). O presente livro pretende contribuir
para aqueles primeiros estudos citados, quais sejam, os que examinam a presunção de
inocência de modo individualizado.
Essa opção traz um benefício ao tema e um encargo a mais ao trabalho. O benefício
está em que muitos aspectos peculiares e essenciais à compreensão da presunção de
inocência podem ser examinados de forma mais aprofundada, permitindo com isso uma
mais consistente conclusão sobre eles e seus desdobramentos. Como nenhum trabalho
científico realmente tem valor se não produzir efeitos práticos na vida cotidiana da
sociedade, o encargo está em ter de aplicar, de modo coerente, todo este exame
aprofundado da presunção de inocência em vários pontos do sistema processual penal,
notadamente os mais críticos.
Para dar cabo desse encargo é necessário trabalhar com os institutos processuais
penais mais diretamente ligados e, portanto, influenciados pela presunção de inocência.
Todavia, como o trabalho está voltado para o estudo específico desse direito
fundamental, os institutos processuais não são analisados de modo igualmente detido e
aprofundado, mas sempre há uma expressa e clara postura sobre como são entendidos,
utilizando-se, para isso, de doutrina e jurisprudência de apoio a cada um deles.
O cerne do trabalho, como o próprio título da obra indica, é a análise da presunção
de inocência pela perspectiva de sua estrutura normativa e das conseqüências práticas
que isso propicia no processo penal, tanto em nível legislativo quanto em nível judicial.
Propõe-se a fixação de bases constitucionais para sua mais coerente, efetiva e sistêmica
aplicação.
Para empreender essa proposta não é possível iniciar o estudo da presunção de
inocência por sua origem mais consistente e remota, qual seja, a Revolução Francesa de
1789. É imprescindível iniciar a exposição antes, ou seja, em período em que ela não
existia. Isto para demonstrar quais os influxos juspolíticos necessários para se afirmar
quando um Estado oferece ou não condições mínimas para sua efetiva verificação.
Primeiro é necessário se entender as razões por que ela nunca existiu antes do
Iluminismo, para depois se compreender o que influi para seu surgimento exatamente
neste instante histórico. Isso permitirá, ainda, compreender por que ela foi sendo
expungida, paulatinamente, dos sistemas processuais da Europa continental do século
XIX e início do século XX e, também, por que emergiu revitalizada após as duas Grandes
Guerras do século passado.
O estudo das instituições jurídicas pré-iluministas, notadamente do sistema romano
e da Inquisição, oferece ainda uma outra vantagem. A possibilidade de pôr em ressalto
linhas argumentativas repressivas que, ainda hoje, alteradas e modernizadas em
insignificantes nuances, contando com o esquecimento provocado pelo tempo, são
utilizadas com ares de modernidade ou avanço. Tudo como se muito pouco tivesse sido
alterado, no que toca à presunção de inocência, nas instituições juspolíticas do século
XVIII até o século XXI.
Fixado o seu surgimento no Iluminismo, parte-se para a demonstração das razões
que a fizeram tão severamente combatida no século XIX, a ponto de ser expressamente
rejeitada em quase a totalidade dos sistemas jurídicos europeus do início do século XX.
Para essa rejeição foram preponderantes a Escola Positiva e a Escola Técnico-Jurídica
italianas, porquanto formaram a base ideológica e técnica para eliminar a presunção de
inocência dos Códigos de Processo Penal italianos de 1913 e 1930. Cediço que foi este
último diploma processual peninsular a base legislativo-ideológica de nosso (ainda) atual
Código de Processo Penal, elaborado em 1941, inclusive com o ressalto de que tal
legislação foi forjada sob o empuxo do Estado Novo getulista, conclui-se que nossa
legislação infraconstitucional (processual penal) é refratária e foi construída sobre base
avessa à presunção de inocência.
Se até esse ponto a análise direciona-se apenas à presunção de inocência, a partir
dele inicia-se a apresentação da atual feição constitucional brasileira, que se opõe
frontalmente àquela ideologia nazifascista do início do século XX, inserida em nossa
(ainda) vigente legislação processual penal.
O capítulo III, destinado a demonstrar que a presunção de inocência é um direito
fundamental, é um importante marco de transição entre todos os debates juspolíticos
limitados ao campo processual penal e uma abordagem mais acentuadamente
constitucional do tema. Nele se revela o profundo e inconciliável distanciamento entre a
Constituição e o Código de Processo Penal vigentes. Revela-se, ainda, que essa dicotomia
sistêmica somente começará a ser superada ao se notar que os direitos fundamentais têm
um conteúdo subjetivo/objetivo e que isso implica um dever estatal de proteção e de
estabelecimento de “organização e procedimento” aptos a efetivar esses direitos.
Somente após fixada essa base constitucional para o tema se pode adentrar ao estudo
de sua estrutura normativa, o que é realizado no Capítulo IV, conforme a “teoria dos
princípios”.
Pela falta de estudos constitucionais ou processuais penais preocupados em aplicar
essa teoria nesse ponto de intersecção (presunção de inocência) entre Constituição e
Processo Penal, esta obra tem um ônus argumentativo a cumprir. Demonstrar não apenas
a estrutura normativa com a qual examina a presunção de inocência no último capítulo,
mas também que essa forma de compreender os dispositivos constitucionais representa
uma maior garantia de seu conteúdo essencial e, de modo mais coerente, atende às
necessidades e resolve pontos críticos até então existentes na área processual penal.
Desenvolvem-se, assim, as concepções de suporte fático, de âmbito de proteção e de
intervenção estatal, todos pela perspectiva ampla, inerente àquela teoria. Na inter-
relação entre esses conceitos, expõe-se “por que” e “em que medida” os direitos
fundamentais, que apresentam estrutura normativa de princípio, devem ser realizados na
maior extensão possível e qual é a diferença entre restrição e violação a esses direitos.
Essa abordagem, contudo, não obstante pareça ser de cunho exclusivamente
constitucional, sempre está teleologicamente voltada ao âmbito processual penal. A cada
passo da exposição, utilizam-se exemplos de sua incidência prática na área criminal.
Fixados tais pressupostos lógico-argumentativos até aqui referidos, parte-se para sua
aplicação mais direta e de cunho mais prático aos estudiosos e operadores da área
criminal (penal e processual penal). Isso é feito no último capítulo do livro.
Como não é possível tratar de maneira aprofundada, em um único trabalho
científico, cada um dos institutos processuais penais que sofrem influências da presunção
de inocência, utilizou-se os que com ela guardam maior proximidade e, também,
apresentam questões mais críticas a serem resolvidas. Tudo a fim de colocar à prova se as
escolhas até então empreendidas e as inovações trazidas no curso do presente estudo são
úteis e coerentes.
Com esse desiderato e com a assunção expressa da perspectiva “Constituição
Código de Processo Penal”, organiza-se de modo criterioso todos os aspectos e
significados atribuídos à presunção de inocência. Assim, mostra-se como se inter-
relacionam com ela o “in dubio pro reo” e o “favor rei” e, ainda, como isso deve ocorrer
nos planos legislativo e judicial. Também, em ambos os planos (legislativo e judiciário),
analisa-se esse direito fundamental como “norma de tratamento”, “norma probatória” e
“norma de juízo”.
Para tanto, é indispensável examinar como a presunção de inocência projeta efeitos
e se relaciona com os seguintes institutos processuais: as medidas coativas, notadamente a
prisão provisória; a absolvição por insuficiência de prova para a condenação; o alegado
“in dubio pro societate” como critério de decidir; a vedação legal de concessão de
liberdade provisória; a inclusão do nome do imputado no rol dos condenados, não
obstante haja recurso pendente; a prisão provisória decorrente de sentença condenatória
recorrível, ou de pronúncia; o ônus probatório, a inexistência de sua inversão e a
“mínima atividade probatória incriminadora”; a motivação judicial de toda decisão penal
que implique redução dos direitos do imputado; a reincidência e os antecedentes
criminais; a investigação preliminar; a revisão criminal; o abuso na exposição midiática; a
confissão e a dita delação premiada; a transação penal; entre outros temas relevantes.
Todos esses institutos jurídicos, importantes para o processo penal, são analisados
por essa nova abordagem estrutural normativa aplicada à presunção de inocência. A
perspectiva constitucional implementada a esse direito fundamental sempre será a
bússola orientadora de cada crítica ou nova compreensão que deve ser empreendida
tanto em nível legislativo quanto em nível judicial.
Nisso o trabalho renova uma crítica generalizada e assentada: a necessidade de se
elaborar um novo Código de Processo Penal. Renova, em aspecto tão remansado, na
medida em que no transcurso da exposição indica, a cada ponto, “por que” e “para que”
uma nova legislação é imprescindível. Rejeita, peremptoriamente, as tentativas de
adaptação judicial de parte do aparato legislativo existente e contaminado de
inconstitucionalidade, demonstrando como essa forma de julgar prejudica o sistema
processual penal e deslegitima a Constituição. O Judiciário pode interpretar o texto
normativo de modo conforme à Constituição, mas não pode criar lei nos pontos em que a
inércia legislativa constitui clara violação à presunção de inocência.
Para tudo o quanto já se disse, o presente livro busca fornecer um novo viés de cariz
constitucional ao analisar a estrutura normativa do direito fundamental da presunção de
inocência e aplicá-la tanto para uma maior efetivação no plano judicial
(interpretação/concreção), quanto para uma nova elaboração legal no plano legislativo.
Capítulo I
Inexistência de presunção de inocência até
sua inscrição na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão
1.1. -Considerações iniciais: a imprescindibilidade da reconstrução
histórica no estudo da presunção de inocência
instante mais antigo, não pela maior preocupação com o direito material,
formulando uma legislação definidora de direitos civis, mas por uma
angulação processual, por meio da criação de “actio”, a fim de buscar a
tutela daquilo que, mais por sensibilidade que por definição legal, se
entendia violado por ato de outrem, v. Ugo BRASIELLO, La repressione
penale in diritto romano, Napoli: Jovene, 1937, item 4, e idem, Diritto
penale romano cit., p. 1139.
11 Assim leciona Carlo GIOFFREDI, I principi cit., item 4, nota 25. No mesmo
26 Toda a VII Tábua, de “nomen iuris” “Dos delitos”, traz boa demonstração
da verdadeira proximidade romana entre ilícito civil (v., p.ex., inscrição 1:
“Se um quadrúpede causa qualquer dano, que o seu proprietário
indenize o valor desse dano ou abandone o animal ao prejudicado”, ou,
ainda, na inscrição 9: “Aquele que causar dano leve indenizará 25
asses”) e ilícito penal privado, os denominados delicta (v., p.ex.,
inscrição 10: “Se alguém difama a outrem com palavras ou cânticos, que
seja fustigado”, ou, ainda, inscrição 11: “Se alguém fere a outrem, que
sofra a pena de talião, salvo se houver acordo”).
27 Nesse sentido, v. Antonio FERNÁNDEZ DE BUJÁN, Derecho cit., pp.
92/94.
28 Sobre a “provocatio ad populum” como o primeiro grande instituto voltado
ao reconhecimento de garantias do cidadão frente ao Estado, v.
Giovanni PUGLIESE, As garantias do acusado na história do processo
penal romano, tradução de José Rogério Cruz e Tucci, in José Rogério
CRUZ e TUCCI, Contribuição ao estudo histórico do direito processual
penal: direito romano I, Rio de Janeiro: Forense, 1983, pp. 43/65. Nesse
sentido, v., também, Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 47.
Entendendo a provocatio como limitação legal do poder jurisdicional dos
magistrados, v. Antonio FERNÁNDEZ BUJÁN, Derecho cit., pp. 205 e ss.
Bernardo SANTALUCIA, Processo cit., itens 2 e 3, explica que a
provocatio é fruto de uma sucessão de leis que lhe aperfeiçoam e
ampliam o conteúdo, logo, há registros do julgamento pelo povo reunido
desde antes da Lei das XII Tábuas (450 a.C) até o ano de 300 a.C, com
a Lex Valeria de provocatione.
Em breves linhas, e ao que interessa no presente trabalho, a “provocatio” era uma
garantia conferida ao cidadão romano de poder provocar o envio de seu julgamento ao
povo reunido em assembléia (“comitia”), porquanto somente ela poderia proferir decisão
de condenação à pena capital ou à pena de multa grave (“multa maxima”).29 O que
inicialmente muitos autores entenderam tratar-se de um instituto recursal (apelação ao
povo reunido), fixou-se na doutrina como uma fase necessária do julgamento penal
romano que implicasse qualquer daquelas penas.30
Essa opção republicana de um procedimento fundado em um incipiente sistema
acusatório, limitador do poder dos magistrados, com inegável tendência de ampliar as
garantias dos cidadãos frente ao arbítrio (“imperium”) estatal, foi se espraiando pelos
vários institutos processuais e redesenhando-os em face do cidadão imputado.
66 Para uma breve exposição da crise política vivida pelo Estado Romano ao
final da República e que justificava o apoio popular às mudanças em
direção à forma estatal do Império, fato propiciador das condições
necessárias para o surgimento do Principado e das mudanças e
influências provocadas nas e pelas instituições jurídicas, v. Alessandro
MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 5/7. Sobre as falhas políticas que
propiciaram um aumento das desigualdades no final da República e o
surgimento do Principado, com a tarefa de reduzir tais desigualdades
sóciopolíticas, e a rápida desilusão popular sobre esse último regime,
devido ao alto recrudescimento das penas e à criação de um sistema
punitivo arbitrário e desmedido, v. Giovanni PUGLIESE, As garantias cit.,
itens XI a XIII.
67 Como insuficiências e falhas prático-jurídicas do sistema acusatório das
§ 5. – Mas se houver a presunção de que eles são culpados, sejam mantidos em custódia até que
se termine a causa. E se já tenha sido proferido sentença contra os presos seja esta executada, seja
corporal ou pecuniária; ficando-lhes concedida, tratando-se de condenação pecuniária, a
faculdade de dar bens. (C. 9, 4, 6, 5)
Diante do fragmento citado, GIOVANNI PUGLIESE84 afirma que erram os que
imaginam que a presunção de culpa era um preceito irrefragável e geral a todos os casos.
Aduz o romanista que o texto deixa transparecer que, apenas se presentes situações claras
de culpa no início da persecução, era determinada a prisão preventiva. Para esse
romanista italiano, o fragmento, portanto, não seria uma regra, mas uma limitação à
liberdade em situações de robustez indiciária da culpa, já no início da ação penal.
“13. Ulpianus ‘libro I. de Appellationibus. – Hodie licet ei, qui extra ordinem de crimine
cognoscit, quam vult sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen, ut in utroque modo
rationem non excedat.”
11. Marciano; Dos Juízos Públicos, livro II. – Deve o julgador procurar não determinar coisa
alguma com mais dureza, ou com mais lenidade, que o que requer a causa; porque não há de se
aspirar à glória da severidade ou da clemência, senão que se deve determinar com maduro juízo,
segundo requer cada caso. E certamente que nas causas leves devem estar os juízes mais inclinados
à lenidade, e aterem-se tratando-se de penas mais graves à severidade das leis com certo
temperamento de benevolência. (D. 48, 19, 11, pr.)
13. Ulpiano; Das apelações, livro I. – Hoje é lícito ao que conhece extraordina-riamente de um
crime proferir a sentença que quiser, ou mais grave, ou mais leve, mas de modo que em um ou em
outro caso não exceda o que é a razão. (D. 48, 19, 13)
Os vários preceitos inseridos pelos jurisconsultos, com força de lei, não se limitaram
à área penal.93 A cognitio extra ordinem era aplicada tanto para a esfera penal quanto
para a extrapenal, logo, sua lógica estrutural inquisitiva expunha tanto o imputado
quanto o obrigado. Assim, era o pólo passivo da ação (penal ou civil) que precisava de
preceitos aptos a tentar equilibrar uma estrutura construída sobre trilhos inquisitivos.
A incidência ambivalente de referidos preceitos fica evidente quando se observa as
várias disposições contidas no último título (XVII), denominado “Das diversas regras do
direito antigo” (“De diversis regulis iuris antiqui”), do último livro (de número L) do
Digesto, destinado ao direito em geral, portanto área penal ou não.
Claro que determinadas passagens, pela sua própria redação, têm incidência em
apenas um campo jurídico. Porém, se recordarmos que, até a parte final do direito
romano, o direito penal ainda se dividia em privado (delicta) e público (crimina) e que o
conceito de liberdade tinha conotação tanto penal (não aplicação de pena) quanto civil
(liberação do escravo pelo seu senhor), pode-se dessumir, com certa segurança, que o
ideário humanizador que informava os preceitos de julgamentos em favor do acionado
aplicava-se a todas as causas que envolvessem a liberdade individual.
Destacando-se apenas os fragmentos referentes à área criminal, objeto de nossos
estudos, já se pode antever como mesmo um sistema processual penal baseado na
presunção de culpa pode ter dispositivos benéficos ao acusado. Porém, essa mitigação não
pode ser tida como a presença ou mesmo o germe do que se deve entender por presunção
de inocência. Era só um esboço do que depois veio a se denominar “in dubio pro reo” e
“favor rei”, aspectos que estavam longe de representar a completude daquele direito
fundamental.94
“168. [128.] Idem ‘libro I. ad Plautium.” – Rapienda occasio est, quae praebet benignius
responsum.”
“56. [55.] Idem ‘libro III. de legatis ad Edictum urbicum.’ – Semper in dubiis benigniora
praeferenda sunt.”
125. [167.] Gaio; Comentários ao Édito Provincial, livro V. – Os réus são considerados mais
favoravelmente que os autores. (D. 50, 17, 125)
155. [197.] Paulo; Comentários ao Édito, livro LXV. – (...) § 2. – Nas causas penais se há de fazer
a interpretação com mais benignidade. (D. 50, 17, 155, 2)
168. [128.] Idem; ‘Comentários a Plaucio, Livro I.’ – Deve-se escolher a ocasião que facilita uma
resolução mais benigna. (Paulo, D. 50, 17, 168)
56. [55.] Idem; ‘Comentários ao Édito urbano sobre os legados, livro III.’ – Nos casos duvidosos
se há de preferir sempre o mais benigno. (Gaio, D. 50, 17, 56)
Também há orientação dos jurisconsultos dirigida aos magistrados a fim de
mitigarem seus rigores na aplicação da pena e, outrossim, que a escolha quanto à lei
aplicável deve ter a interpretação mais benigna.
“9. Ulpianus ‘libro XV. ad Sabinum.’ – Semper in obscuris, quod minimum est, sequimur.”
“32. Ulpianus ‘libro VI. ad Edictum.’ – (…) Sed si utriusque legis crimina obiecta sunt, mitior
lex, id est privatorum, erit sequenda.”
“18. Idem ‘libro XXIX. Digestorum.’ – Benignius leges interpretandae sunt, quo voluntas earum
conservetur.”
9. Ulpiano; ‘Comentários à Sabino, livro XV.’ – Nas coisas obscuras nos atemos sempre ao que é
menor. (D. 50, 17, 9)
32. Ulpiano; ‘Comentários ao Édito, livro VI.’ – (...) Mas se imputarem delitos de uma e outra
lei, deverá se observar a lei mais benigna, isto é, a dos (delitos) privados. (D. 48, 19, 32) –
acrescemos.
42. Hermageniano; ‘Epístolas, livro I.’ – Na interpretação das leis as penas devem ser bem mais
atenuadas que agravadas. (D. 48, 19, 42)
18. Idem; ‘Digesto, livro XXIX.’ – As leis devem ser interpretadas no sentido mais benigno, de
modo a se conservar sua disposição. (Celso, D. 1, 3, 18)
Comumente, os fragmentos destinados à definição de critérios de como decidir em
caso de dúvida sobre os fatos são tidos como os primeiros registros da presunção de
inocência na história.
Tal posição, não obstante tenha alguma relação distante e um tanto imprecisa,
somente poderá ser tida como aceitável aos que entendem a presunção de inocência
apenas como critério de decisão em caso de dúvida do julgador sobre os fatos. Nesse
estreitamento do âmbito da presunção de inocência ela tornar-se-ia sinônimo da
expressão “in dubio pro reo”.
Como se verá no decorrer do trabalho, essa última expressão citada não é sinônimo
nem exaure todo o conteúdo da presunção de inocência.98 Contudo, não se pode deixar
de destacar os já clássicos fragmentos sempre colacionados sobre o tema.
“38. Paulus ‘libro XVII. ad Edictum.’ – Inter pares numero iudices si dissonae sententiae
proferantur, in liberalibus quidem causis, secundum quod a Divo Pio constitutum est, pro
libertate statum obtinet, in aliis autem causis pro reo; quod et in iudiciis publicis obtinere
oportet.”
“5. Ulpianus ‘libro VII. de officio Proconsulis.’ – Absentem in criminibus damnari non debere,
Divus Traianus Iulio Frontoni rescripsit. Sed nec de suspicionibus debere aliquem damnari, Divus
Traianus Adsiduo Severo rescripsit; satius enim esse, impunitum relinqui facinus nocentis, quam
innocentem damnare. (...)”
5. Ulpiano; ‘Do Cargo de Proconsul, livro VII.’ – O Divino Trajano respondeu por reescrito a
Julio Fronton, que se tratando de delitos não devia ser condenado um inocente. Mas o Divino
Trajano respondeu por reescrito a Assíduo Severo, que tampouco devia ser condenado alguém por
suspeitas; porque é melhor que se deixe impune o delito de um culpado, que condenar a um
inocente. (D. 48, 19, 5, pr.)
Este último fragmento é o mais citado na indicação da origem mais remota do que
hoje se tem como presunção de inocência. Deve-se acrescentar que a data do registro,
aliada ao fato de que Ulpiano se refere a período de Trajano, ainda mais anterior, permite
concluir que o preceito antecede ao período da influência cristã no direito romano,
pertencendo aos primórdios do seu período clássico (149 ou 126 a.C. até 305 d.C.). Logo,
coloca-se até mesmo em dúvida que o fragmento tenha sido inspirado pelo cristianismo.99
101 Sobre a crise do Império Romano dos primeiros séculos da era cristã, v.
Vincenzo ARANGIO-RUIZ, Storia cit., pp. 305/308.
102 V. item 1.2.3.1.1 supra, quando se tratou da prisão preventiva no
procedimento da cognitio extra ordinem.
103 Sobre o tema, v. o verbete “favor libertatis” na obra de Armando
TORRENT RUIZ, Diccionario cit., p. 359. Sobre a atual aplicação do
“favor libertatis” como decorrência do “favor rei” na área processual
penal, v. itens 5.4.1.2.1 e 5.4.1.2.1.2 infra.
104 Os fragmentos que seguem foram extraídos da obra de Ildefonso L.
GARCÍA DEL CORRAL, Cuerpo cit., t. 3. A coluna em português
corresponde à nossa tradução da versão espanhola daquele autor.
24. Ulpiano; ‘Fideicomissos, livro V.’ – (...) § 10. Se alguém houver dado a liberdade direta a um
escravo penhorado, embora em estrito direito parece que o fez inutilmente, não obstante, o
escravo pode pedir, como se lhe houvesse deixado livre por fideicomisso, que se lhe faça livre em
virtude do fideicomisso; porque o favor da liberdade aconselha que interpretemos que as palavras
do testamento são pertinentes também para a petição da liberdade, como se por fideicomisso se
houvera determinado que o escravo fosse libertado; porque não é coisa ignorada que em favor da
liberdade se estabelecem muitas disposições contra o rigor do direito. (D. 40, 5, 10)
“47. [46.] Idem ‘ex libro XIV. ad Plautium.’ – Arrianus ait, multum interesse, quaeras, utrum
aliquis obligetur, an aliquis liberetur. Ubi de obligando quaeritur, propensiores esse debere nos, si
habeamus occasionem, ad negandum; ubi de liberando, ex diverso, ut facilior sis ad liberationem.”
“20. Pomponius ‘libro VII. ad Sabinum.’ – Quoties dubia interpretatio libertatis est, secundum
libertatem respondendum est.”
“122. [164.] Gaius ‘libro V. ad Edictum provinciale.’ – Libertas omnibus rebus favorabilior est.”
“179. [139.] Idem ‘libro XVI ad Plautium.’ – In obscura voluntate manumittentis favendum est
libertati.”
47. [46.] Idem; ‘Comentários a Plaucio, livro XIV.’ – Disse Arriano, que há muita diferença se
perguntado se alguém se obriga, ou se alguém se libera. Quando se pergunta a respeito da
obrigação, devemos estar mais propensos, se tivermos oportunidade, para negar; e pelo contrário,
quando a respeito da liberação, há de ser mais fácil para liberar. (Paulo, D. 44, 7, 47)
20. Pompônio; ‘Comentários a Sabino, livro VII.’ – Sempre que é duvidosa a interpretação
relativa à liberdade se deverá responder a favor da liberdade. (D. 50, 17, 20)
106. Idem; ‘Comentários ao Edito, livro II.’ – A liberdade é coisa inestimável. (Paulo, D. 50, 17,
106)
122. [164.] Gaio; ‘Comentários ao Edito provincial, livro V.’ – A liberdade é mais favorável que
todas as coisas. (D. 50, 17, 122)
179. [139.] Idem, ‘Comentários a Pláucio, livro XVI.’ – Sendo obscura a vontade do manumissor
(libertador), se deve favorecer à liberdade. (Paulo, D. 50, 17, 179) - acrescentamos.
1.2.3.3.3. (segue): preceitos romanos sobre ônus da prova
Durante as quaestiones perpetuae o dever de provar e contraprovar era delegado às
partes, em procedimento acusatório. A parte mal sucedida na demonstração de sua
versão quedava-se derrotada. O quaestor, sem poder instrutório e decisório, apenas
organizava o julgamento diante do comitia e o submetia à votação dos jurados.105
Na fase da cognitio imperial as regras de instrução do julgamento foram
substancialmente alteradas, conforme já ressaltado.106 O julgador, assumindo também o
papel de acusador, exercia de ofício a instrução e preparava o julgamento para, ele
mesmo, decidir.
Se no procedimento das quaestiones a falta de comprovação da versão fazia com que
a parte inoperante fosse condenada – fosse ela acusadora ou imputada, uma vez que os
acusadores privados também poderiam ser condenados pelas penas requeridas aos
imputados se não provassem a acusação –, no procedimento extraordinário o magistrado
imperial não poderia sofrer a pena por ele requerida se não comprovasse o crime. Até
mesmo porque o Princeps era o magistrado supremo, podendo julgar e condenar, e não
teria sentido fosse ele condenado por não ter conseguido demonstrar a culpa de um
súdito. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos magistrados, pois, por agirem por
delegação do poder de “imperium” do Princeps, o insucesso daqueles macularia o poder
deste.
Dessa forma, inicia-se uma estruturação do ônus probatório no sentido de que se a
acusação não viesse a ser confirmada no curso do julgamento não haveria condenação,
nem do acusador, nem do acusado.
Nessa linha racional, definiu-se que a absolvição ocorreria não somente se o
julgador tivesse convicção da inocência do réu, mas, outrossim, se ele permanecesse na
dúvida sobre a ocorrência do crime e de sua autoria.107 O debate, portanto, desloca-se ao
quantum probatório necessário para formar a convicção do julgador, uma vez que, na
cognitio extra ordinem, o magistrado não podia decretar o non liquet (não líquido,
duvidoso), como no período das quaestiones.
A assunção do poder de julgar impõe um dever, indeclinável, de decidir. Desse
modo, os legisladores e jurisconsultos começam a construção de regras destinadas a
determinar a “quem” cabe provar “o quê”, e principalmente, o que sucede na falta de
atendimento deste ônus. Dessa necessidade surgem as presunções e as aparências, com as
quais se busca fixar, aprioristicamente, formas de orientar a decisão judicial.108
“18. Paulus ‘libro V. sententiarum.’ – (...) § 2. – In ea causa, in qua nullis reus argumentis
urgebatur, tormenta non facile adhibenda sunt, sed instandum accusatori, ut id, quod intendat,
comprobet atque convincat.”
“6. Idem ‘libro I. Sententiarum.’ – (...) § 3. – Nuntiatores, qui per notoria indicia produnt,
notoriis suis assistere iubentur.”
18. Paulo; ‘Sentenças, livro V.’ – (...) § 2. – Naquela causa, em que o réu não está oprimido com
algumas provas, não se deve proceder facilmente à sua tortura, caso em que se deve instar ao
acusador a que comprove o que sustenta, e convença disso. (D. 48, 18, 18, 2)
6. Idem; ‘Sentenças, livro I.’ – (...) § 3. – Aos denunciantes que delatam por indícios notórios,
manda-os provar seus indícios notórios. (Paulo, D. 48, 16, 6, 3)
O Estado Romano atingiu seu fim na medida em que, mercê de muitos problemas
internos, não conseguiu suportar, em vários pontos de seus domínios, os avanços dos
povos ditos “bárbaros”.
Sob a égide generalizadora de “bárbaros”, deve-se entender vários povos que, vindos
do Norte, começaram a conquistar várias extensões do Império Romano. Nessa fase do
direito medieval da Alta Idade Média nota-se o cariz da cultura romana destinada à
figura do “hostis alienigena”, isto é, o estrangeiro, o estranho, que era perigoso porque
era desconhecido, e inspirava desconfianças porque não era compreendido.114
113 Para Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 19, a Alta Idade Média
compreende o período entre os séculos V e XI. John GILISSEN,
Introdução histórica ao direito, tradução de A. M. Despanha e L. M.
Macaísta Malheiros, 2ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995, pp.
128/130, por sua vez, delimita aquele período entre os séculos VI e XII,
definindo que neste período, na Europa, podiam ser encontrados os
seguintes direitos: “O direito muçulmano, no Sudoeste; o direito
bizantino, no Sudeste; o direito romano que sobrevive durante os séculos
VI a VIII; os direitos dos povos germânicos tornados sedentários:
Visigodos, Francos, Lombardos, Anglos, Saxões, Normandos, etc.; o
direito do Império Carolíngio (séculos VIII-IX); o direito dos povos
eslavos, no Leste; o direito feudal; o direito canônico”. Aceita-se, no
presente trabalho, a Alta Idade Média como o período compreendido
entre o final do direito romano, com a morte de Justiniano (ano 565 d.C.,
século VI) e o ressurgimento dos estudos jurídicos com a formação das
escolas européias e a fusão do direito romano repristinado com o direito
canônico (século XII). A partir do final do século XII dá-se início ao
período marcado pela inquisição católica como forma procedimental para
julgamento e punição de crimes.
114 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., p. 23, leciona que para “os
123 Na Idade Média não havia valor jurídico mais relevante que o de “pax”,
por ele servir de esteio e estabilidade de todo o sistema político,
econômico, social e jurídico do período feudal. Assim, qualquer delito
que a colocasse em risco passou a ser considerado de alta gravidade
para a vida feudal e seu julgamento passou a ser feito por juízos públicos
e presididos pelos líderes da comunidade, não competiam mais aos
juízos conciliatórios de finalidade compositiva-indenizatória. O poder de
julgar tais crimes foi, paulatinamente, passando ao rei, tido como o
“senhor dos senhores feudais” (“ultimate lord of all lords”). Nesse sentido,
v. Giorgia ALESSI, Processo penale: direito intermedio, in
ENCICLOPEDIA del diritto, Milano: Giuffrè, 1971, v. 36, pp. 364/368.
124 João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., p. 53, e Alessandro
129 Sobre os duelos no direito luso dos séculos XI e XV, nos mesmos
moldes do expresso no texto, v. Augusto THOMPSON, Escorço cit., pp.
52/54. Sobre os duelos como forma de juízos de deus, v. Vincenzo
MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., p. 11. João Bernardino
GONZAGA, A inquisição cit., p. 23, também indica que os nobres
poderiam indicar seus representantes nas ordálias. do e não permitisse a
condenação de um inocente”.
130 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 15/16, e Franco
137 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., p. 23, indica que, caso
assim entendessem, também as testemunhas (conjuratores ou não)
indicadas pelo acusado eram submetidas às ordálias. O mesmo
(submissão às ordálias) não se dava com as testemunhas trazidas pela
acusação.
138 Alessandro MALINVERNI, Principi cit., pp. 471/474, afirma que há um
erro em se supor que no período das ordálias houvesse um “ônus de
provar a inocência”. Para justificar sua posição, assevera que o acusado
tinha direito a fazer juramento, apresentar provas e conjuradores que
poderiam isentá-lo de culpa, sem a necessidade das ordálias. Afirma,
ainda, que havia obrigações probatórias para o acusador, que também
tinha que prestar juramento de sua certeza quanto ao crime e de sua boa
intenção, assim como poderia levar provas de sua versão. Contudo, o
que o referido autor não consegue negar é o fato de que a dúvida quanto
à imputação sempre implicava na submissão do acusado às “provas de
deus”, não o contrário. Isto é, não era o acusador quem haveria de se
submeter ao ferro ou ao carvão em brasa, à água ou ao óleo ferventes.
Exceção feita ao procedimento em que nobres ou abastados eram
imputados, porquanto nesse caso poderiam ter direito ao duelo, para
todos os demais era o imputado quem suportava essa peculiar
“racionalidade” (“expurgação divina”) para se chegar à “verdade” sobre a
ocorrência ou não do crime. Nesse sentido, veja-se o seguinte trecho da
obra citada, em tradução livre: “Se após a prestação de ambos os
juramentos, o caso permanecia dúbio, a solução do processo vinha
confiada ao duelo ou ao juízo de Deus”. Lembre-se, mais uma vez, só o
acusado era submetido aos juízos de deus, nunca o acusador.
A igreja tem importante papel influenciador na última fase do direito dos povos
bárbaros das penínsulas ibérica e itálica. Em ambas as regiões, vai paulatinamente
interferindo na cultura bárbara e espraiando sua influência e controle sobre o exercício
do poder. Os invasores tornam-se uns “vencedores vencidos”, porquanto se deixam
“influenciar pela autoridade moral dos bispos e pela superioridade das leis romanas”.139
A cristandade, que já lançara sua decisiva influência ao final do direito romano,
notadamente a partir do período do Dominato,140 retoma sua força sobre os povos
invasores daquelas penínsulas e já triunfa na última parte da Alta Idade Média (séculos X
a XII). Faz ressurgir o sistema inquisitivo romano da cognitio extra ordinem que,
contaminado por marcada influência dos desígnios canônicos, vai influir decisivamente
no direito europeu dos séculos seguintes vindo, devida ou indevidamente, até nossos
dias.141
142 Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 362, indica que foi o Papa Inocêncio III
quem determinou a eliminação dos juízos de deus como fase
procedimental. No mesmo sentido, sem a citação papal, mas marcando
a vedação da Igreja às ordálias v., ainda, Vincenzo MANZINI, Trattato di
diritto processuale cit., p. 12. Franco CORDERO, Procedura cit., p. 18,
indica que as ordálias foram vedadas já ao final do século XII, pelo
cânon 18, do “IV Concílio Laterano”, de 1215.
143 Essa é a causa apontada por Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto
processuale cit., p. 12, para a substituição das ordálias pelo sistema
inquisitivo romano, agora com forte influência canônica.
144 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 24/26, também indica
a melhor organização e evolução do direito romano como causas dessa
supremacia, porém não deixa de apontar a conveniência política de se
aproveitar um sistema processual centralizador e autoritário,
característico do último período romano, para o sistema político real
nascente na Europa dos séculos XII e seguintes.
Inegavelmente, houve uma mudança na racionalidade da “melhor” forma de decidir
o caso. Substitui-se o imponderável julgamento (“divino”) mediante ordálias por uma
outra forma de se “buscar a verdade”. Instituem-se outros meios de verificação de como
os fatos ocorreram, sua autoria, as razões que o motivaram e o direito aplicável ao caso.145
E, principalmente, não seria mais o “divino/imponderável” a dizer quem deveria ser
punido, mas esse poder seria centralizado nas mãos de quem exercesse a função
judicante. É o que RAÚL ZAFFARONI denominou de “o seqüestro de Deus” pelo
“dominus”, ou seja, era o julgador quem decidiria em lugar de “Deus”. “Deus já não
decide entre dois iguais como partes, mas sim está seqüestrado pelo senhor, pelo
‘dominus’”.146
Novamente, assim como ocorrido em Roma, para afirmação do Império, o processo,
notadamente em sua esfera penal, demonstra toda sua importância/conveniência ao
poder emergente. O processo penal volta a ser usado como instrumento relevante de
dominação política e ideológica na fase, agora, medieval.147
cada país, que toda a legislação do século XVI, nos mais variados
estados e impérios, assume feições marcadamente inquisitivas, inclusive
a legislação inglesa de Maria Tudor (Marion Statutes), nos anos de 1554
e 1555.
161 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 30/31.
O processo penal, como já antes acontecera na fase romana, torna-se instrumento
estatal de implementação da (nova) política reinante.162 É meio pelo qual, mais que
controle da criminalidade, atinge-se o mais forte e desmedido controle social.163
Determinando não apenas o que seja crime, mas também quem o praticou e a pena a ser
aplicada, tudo de forma sigilosa, parcial e dirigida conforme a vontade do poder central.
Inimigo e criminoso passam a ser expressões sinônimas, assim como criminoso e herege
e, silogisticamente, herege torna-se inimigo.164
O processo penal, novamente, passa a ser entendido e utilizado como mais uma
forma – e, conforme se verá no item seguinte, em alguns momentos a forma mais
importante – para a defesa dos domínios reais e católicos contra seus inimigos (hereges
ou não).
162 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 317/372, expõe que a inquisição
católica surge da interseção entre o procedimento inquisitivo romano e a
necessidade católica da perseguição intensa dos hereges.
163 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 26/36, afirma que a
165 Sobre esses dois tipos de inimigos criados pela cultura romana e sua
influência na formação de uma cultura punitiva do inimigo nos povos e
sistemas sucessivos, v. Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., pp.
18/25.
166 Tradução livre das palavras com que Giuseppe CAPUTO abre seu
verbete Inquisizione cit., p. 711.
De um modo geral, para toda a Europa, a Inquisição tem duas características que, ao
que importa no presente estudo, mais a matizam e a explicam: a primeira, dirige-se à
forma pela qual o poder (real ou católico) vê e considera o imputado,167 como é a
mentalidade do julgador; já a segunda vem representada pelo aparato instrutório,
disposto à consecução de finalidade pré-estabelecida.168
O primeiro aporte a ser feito sobre a Inquisição deve ser de como o imputado é visto
e qual a inspiração dos operadores/julgadores daquele sistema.
O método inquisitivo foi posto como forma de se proteger os domínios territoriais
(dos inimigos do Estado) e os domínios católicos (dos hereges e dos não convertíveis). O
processo é usado como instrumento para fins políticos e religiosos.
173 Para demonstrar que o mal era inerente ao ser humano, não apenas ao
imputado, e se estendia por linha de sangue, o que viola o hoje
denominado “princípio da intranscendência” penal (a pena não deve
passar da pessoa do condenado), lembre-se da Instrução XI, de 1488,
feita pelo Inquisidor-Mor, Tomás de Torquemada, na qual os
descendentes dos condenados não podiam ter ofícios públicos ou
honrarias de qualquer natureza. Nesse sentido, v. a tradução de Mauro
Fonseca ANDRADE, Inquisição espanhola e seu processo criminal: as
instruções de Torquemada e Valdés, Curitiba: Juruá, 2006, p. 47. Tal
determinação prática e dirigida diretamente aos inquisidores espalhados
pela Europa tinha mais incidência que qualquer preceito legal em sentido
contrário. Seguramente havia preceitos no sentido de que o mal
praticado por uma pessoa não fosse transmitido aos descendentes do
agente condenado. Nesse sentido, v. a regra XVIII, da Partida VII, da Ley
de las Siete Partidas, no seu título final destinado às regras do direito: “E
disseram que a culpa de um não deve estender-se a outrem que não à
parte”. In verbis: “E dixeró que la culpa del vno non deue empecer a
outro que non ya a parte”. Para várias outras referências na Ley de las
Siete Partidas que se aproximam à noção do brocardo “in dubio pro reo”,
v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción de inocencia” del
imputado e “intima convicción” del Tribunal, Barcelona: Bosch, 1984, pp.
245/246. Porém, a lei espelhava muito mais um anseio do legislador do
que a realidade da vida cotidiana. Era mais um “dever ser” que o “ser” do
cotidiano judiciário. Tal qual já se tinha visto acontecer em Roma,
notadamente no Baixo Império, vários eram os preceitos então
favoráveis ao réu, mas, de fato, as prisões estavam cada vez mais
cheias e os procedimentos e as penas eram cada vez mais cruéis e
injustos (v. item 1.2.3 e seus subitens e item 1.2.4 supra).
174 Franco CORDERO, Procedura cit., pp. 24/25.
Isso contaminava de tal forma toda a condução do procedimento (fases
investigativa, instrutória e decisória) que o resultado (condenatório) já estava “fixado”,
antes mesmo do processo iniciar.
A lógica da “presunção da culpa”, sobre a qual se construiu o sistema inquisitivo
romano-canônico, tornava dificílima a absolvição.176
(século XIII), que, a despeito deste último ter passado toda a sua vida
envolvido com causas penais, na prática nunca teria visto uma
absolvição por inocência. Em um raro estudo sobre as sentenças de
absolvição no “Antiguo régimen”, v. o trabalho de Pedro ORTEGO GIL,
Innocentia praesumpta: absoluciones en el Antiguo Régimen, Cuadernos
de historia del derecho, Madrid, 2003, v. 10, pp. 71/125, no qual o autor
esclarece que “dar-se por livre o acusado” não significava inocentá-lo,
pois, permanecia a possibilidade de voltar a ser processado em outro
feito, caso surgissem novas provas, indícios ou presunções (op. cit., pp.
74/80). Nesse sentido, v. Alexander GALLAHER HUCKE, La presunción
de inocencia y la presunción de voluntariedad, Santiago do Chile:
Editorial Jurídica ConoSur LTDA, 1996, p. 27, nota 67. Destaca Pedro
ORTEGO GIL que havia, ainda, principalmente por razões econômicas
voltadas ao custeio dos tribunais e juízes, a “absolvição de instância”,
pela qual o acusado era obrigado a “purgar” (por tortura ou por suplício)
eventuais indícios ou presunções que contra ele tivessem ou, em certos
casos cuja prova era mais tênue, era obrigado a assumir as custas e
pagar fiança para que fosse liberado do cárcere, retomando sua
liberdade (op. cit., pp. 79/83). Pedro ORTEGO GIL, em levantamento na
Real Audiência de Galícia, informa que: no século XVI, de 191
sentenciados, 19 (10%) foram absolvidos, sendo 15 da acusação
(absolvição plena) e 4 de instância; no século XVII dos 775
sentenciados, 107 obtiveram absolvição (13,8%), sendo que 47 foram
absolvidos da acusação e 60 de instância; durante o século XVIII, com
registros menos precisos, 873 pessoas foram julgadas, das quais 199
foram absolvidas (22,8%), sendo 173 da acusação e 26 de instância (op.
cit., pp. 76/77). Nos três séculos estudados, completa o autor espanhol
(op. cit., p. 77), dos 260 recursos processados, 42 deles (9,39%)
resultaram em absolvição, sem informar se plena ou apenas de
instância.
Não podia ser diferente. Se a culpa era inata ao ser humano (portador do pecado
original) e se, ainda, sobre ele houvesse denúncia, sua culpa potencial (portador do
pecado original), confirmava-se (materializava-se em ato) e, por meio da tortura,
oficialmente admitida e regulada, obtinha-se a confissão (a rainha das provas). Diante da
confissão (pouco importando se de conteúdo verdadeiro ou não), a aplicação da pena era
inexorável e, inclusive, permitia que o processo inquisitivo se instaurasse pelo rito
sumário.177 A confissão tornava o acusado o maior colaborador em sua condenação, o
que, na visão dos inquisidores, legitimava a decisão e os meios com os quais a ela se
chegou.
Para refrear ou minorar a sanha inquisitiva e as convicções inerentes ao pensamento
canônico-persecutório-punitivo dos inquiridores não se mostrava eficiente (convincente)
qualquer recomendação quanto à benevolência, à moderação ou que, em caso de dúvida,
o julgamento devesse ser favorável ao acusado.178 Isto porque, a dúvida era resolvida com
a utilização da tortura, meio pelo qual se obtinha aquilo que o inquiridor desejasse,
pouco importando ser o resultado verdadeiro ou não.179
183 Trecho extraído da Ley de las Siete Partidas, Livro III, cujo Título XIIII (o
número, em algarismo romano, consta dessa forma no original) tem o
seguinte texto: “Ley. XII. ‘Como el pleyto criminal non fe puede prouar
por fospecha fi non en cofas feñaladas’. Criminal pleyto que fea mouido
contra alguno em manera de acufacion o de riepto deuefer prouado
abiertamete por teftigos o por cartas, o por conocecia del acufado, e no
por fofpechas tanfolamente. Ca derecha cofa es que el pleyto que es
mouido contra la perfona del omne, o contra fu fama que fea prouado, e
aueriguado por prueuas claras como la luz en que non venga ninguna
dubda. (...)”. A Ley de las Siete Partidas, como preceitua José Henrique
PIERANGELLI, Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas,
Bauru, SP: Javoli, 1983, pp. 38/40: “Outra Obra de D. Afonso X, o Sábio,
foi a Lei das Sete Partidas, também sob influência do direito romano
renascido. A Lei das Sete Partidas, como o próprio nome está a indicar,
está dividida em sete partes, tendo sido elaborada com caráter
subsidiário em relação aos outros diplomas legislativos. Guilherme Braga
da Cruz afirma que as Sete Partidas se constituíram em ‘uma espécie de
Corpus Juris em castelhano’”. Augusto THOMPSON, Escorço cit., pp.
72/75, afirma que ao final do século XII e início do século XIII, Portugal e
Espanha passam por profundo embate entre o direito antigo e o direito
romano renovado, completando: “Esta revolucionária atividade jurídica
vai desembocar na adoção, como código geral, da Lei das Sete Partidas.
Compilação projetada por Fernando III, o Santo, Rei de Castela, com o
fim prescípuo de delir privilégios da fidalguia e atalhar os funestos efeitos
da anarquia feudal, foi começada em 1256 e terminada em 1263, já
reinando Afonso X, o Sábio, filho de Fernando. Papel fundamental na
sua elaboração tiveram os doutores da Universidade de Salamanca.
Extremamente metódico, pode ser considerado como o corpo mais
completo de Direito Público e Privado que se realizou entre as nações da
Europa por aqueles tempos”.
Este fragmento legislativo espanhol, assim como outros da mesma Lei das Sete
Partidas,184 não impediu que, naquele país, surgisse a mais violenta e radical manifestação
da Inquisição, a Inquisição Espanhola.185
Sobre o pressuposto da culpa, como base do procedimento inquisitivo romano-
canônico, ver que, nas Instruções de Tomás de Torquemada, feitas em Sevilha no ano de
1484, tratando-se de revelia, a determinação era a de que os “culpados ausentes” fossem
julgados à revelia, após algumas formalidades na tentativa de localizá-los. Como se vê, a
construção da concepção de “culpados ausentes”, já antes da citação, bem demonstrava o
fim a que o processo, inexoravelmente, chegaria.186
188 Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale e pena: la crisi del sistema tra
evo medio e moderno, Napoli: Jovene, 2000, pp. 41/44. No mesmo
sentido, v.: Pedro ORTEGO GIL, Innocentia cit., p. 74; Luigi
FERRAJOLI, Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, 3ª ed., Bari:
Laterza, 1996, p. 560 e nota 14; e Aury LOPES JÚNIOR, Introdução
crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade
constitucional, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 185.
189 Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale cit., pp. 181/185, tratando da
jurisprudência napolitana dos séculos XV e XVI, indica que a colheita de
provas em quantidade e qualidade insuficientes para uma condenação
às penas previstas em lei – em regra, de “galera” –, implicava até mesmo
no saneamento de eventuais nulidades processuais, tudo em face de
uma pena bem mais branda do que os parâmetros inquisitivos
estabeleciam à época. Como se disse acima (v. nota 176), com apoio em
Pedro ORTEGO GIL, Innocentia cit., pp. 78/89, havia várias espécies de
absolvições, sendo que apenas a “absolvição do crime”, também
conhecida por “absolvição da acusação ou de juízo” era aquela para a
qual não se aplicava qualquer sanção. Se houvesse mínimos indícios,
presunções ou apenas a “má fama” do imputado, ele seria, a critério do
juiz, obrigado a purgar, por meio de tortura ou suplícios leves, aqueles
elementos contra ele existentes. Podendo, ainda, ser obrigado a pagar
as custas processuais e uma fiança para ser libertado, deixando-se,
outrossim, em aberto, a possibilidade de ser submetido novamente a
outro processo pelo mesmo crime, continuando, portanto, com o ônus de
provar sua inocência (op. cit., pp. 79/82).
Portanto, diversamente do que hoje se entende por “in dubio pro reo”, na Inquisição
a dúvida do julgador/inquisidor não se resolvia pela absolvição (plena), mas por uma
condenação a uma pena menor ou, se nada houvesse contra o imputado, nem sequer má
fama, uma absolvição de instância.191
A presunção de culpa não permitia melhor sorte ao imputado nesta fase histórica
também quanto ao “favor libertatis”.
As disposições legais eram no sentido de que somente dever-se-ia prender
cautelarmente após uma verificação sobre eventual verdade das delações e se os
inquisidores entendessem existentes provas suficientes para aquela medida preventiva.193
Contudo, também como em Roma, e tal qual antes se disse para o “favor rei” e para
o “in dubio pro reo”, eventuais preceitos legais de natureza restritiva e limitadora em
relação àquela medida cautelar pessoal não tinham ocorrência no cotidiano inquisitivo.
A prática se mostrava diferente. A prisão das pessoas ocorria antes mesmo que se fizesse a
verificação sobre se havia ou não verdade na notitia de heresia levada por particulares
aos inquisidores.194
192 Na Partida VII, da Ley de las Siete Partidas, última parte, destinada às
“reglas del derecho”, está definido na regra XXXIII que “aquele que foi
uma vez dado por mau, sempre se deve tê-lo como tal, até que se prove
o contrário”, in verbis: “E aun dixeron que el q es vna vez dado por malo,
fiempre lo deue tener por tal, afta q fe pueue lo contrario”.
193 Instruções de 1488, do Inquisidor-Mor, Tomás de Torquemada,
199 Exemplo de preceito legal dirigido a todos os julgadores sobre ser regra
a liberdade e não a prisão ou a condenação, v., os determinados pela
Ley de las Siete Partidas. Na parte destinada às regras de direito, fixava-
se como a primeira regra a determinação de que a liberdade sempre
deveria ser favorecida, por ser da natureza dos homens e dos animais.
Preceituava a “Regla j”, in verbis: “E dezimos que regla es de derecho, q
todos los fudgadores deuen ayudar ala libertad, porq es amiga dela
natura: que la aman non tan folamente los omes, mas aun todos los
otros animales”.
A estrutura da lógica canônica implementada no procedimento penal não permitiria
aceitar a liberdade (ou inocência) como regra. As medidas cautelares (pessoais e
patrimoniais) eram obrigatórias200 e executadas antes mesmo da formalização de uma fase
pré-processual de investigação.
Se a pressuposição da culpa, intrínseca à alma humana, induz um processamento
com fim já “encomendado”, não haveria porque, no curso procedimental, não se ir
expropriando (da liberdade e dos bens) o herege.
201 Nesse sentido, v., de modo especial, itens 2.4.4, 2.4.5 e 2.5.2.2 infra.
202 A redação original do art. 312 do Código de Processo Penal brasileiro de
1941, preceituava: “A prisão preventiva será decretada nos crimes a que
for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior
a dez anos”. Como se percebe, e será adiante melhor exposto (item
2.5.2.2 infra), essa prisão não se justificava por qualquer fundamento
processual, mas derivava automaticamente da imputação de um crime
grave, por decorrência única da pena ser igual ou superior a dez anos.
Não se aceitava qualquer alegação de dúvida sobre a culpa do ainda
acusado, bastava a imputação, nada mais. Daí decorria, ipso facto, a
necessidade da prisão. Esse instituto, assim como era utilizado,
demonstra claro sistema apoiado na presunção da culpa. Sobre a
violação que essa caracterísitica da obrigatoriedade gera na presunção
de inocência, v. item 5.4.2.1 infra.
203 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., p. 41, bem aponta que no
210 René GARRAUD, Compendio cit., p. 42, informa que a tortura nessa
época era tão comum e generalizada para todos os casos e países que
era denominada “simplesmente na linguagem usual” de “questão
judiciária”. Informa aquele autor (op. cit., p. 43), ainda, que a Ordenação
Criminal francesa de 1670, que regulamentou todo o processo inquisitivo
naquele país, determinava que houvesse três interrogatórios, um antes,
um durante e outro depois das sessões de tortura. Veja-se como esse
aumento progressivo de subsumíveis à tortura acompanhou a mesma
racionalidade romana quando da criação da tortura como meio de
“obtenção da verdade”. Sobre esse ponto, v. item 1.2.3.1.2. supra.
211 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 34/37.
Tal qual nas ordálias, eram submetidos à tortura os acusados e, eventualmente, suas
testemunhas, caso fossem contraditórias (entre si ou com as testemunhas da acusação).
Contudo – e continua o paralelo com as ordálias – não eram quaisquer acusados os
passíveis de tortura, pois se excluíam os nobres, os militares, os membros do judiciário,
exceção feita aos crimes graves, nos quais todos podiam ser submetidos a ela.212
far-te-ei atormentar de novo’ (...) Resulta ainda do uso das torturas uma
conseqüência bastante notável: é que o inocente se acha numa posição
pior que a do culpado. Com efeito, o inocente submetido à tortura tem
tudo contra si: ou será condenado, se confessar o crime que não
cometeu, ou será absolvido, mas depois de sofrer tormentos que não
mereceu. O culpado, ao contrário, tem por si um conjunto favorável: será
absolvido se suportar a tortura com firmeza, e evitará os suplícios de que
foi ameaçado, sofrendo uma pena muito mais leve. Assim, o inocente
tem tudo a perder, o culpado só pode ganhar”. Na esteira do
pensamento deste autor, veio, já à época, VOLTAIRE, em famosos
comentários que fez à citada obra, os quais podem ser encontrados na
obra VOLTAIRE, Comentario al libro “De los delitos y de las penas”,
Madrid: Alianza Editorial, 1998.
214 No sentido de que pela tortura se extrai o que se quer, não a verdade,
BECCARIA, Dos delitos cit., p. 68, em trecho citado duas notas acima.
216 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 36.
Em raras hipóteses de grande resistência física do torturado, se ele não confessasse
nas seguidas sessões de tormentos e, ainda, se contra ele não houvesse elementos
significativos de sua culpa, p.ex., houvesse apenas indícios ou má fama, havia uma
tendência em absolvê-lo.217 Nunca é demais lembrar que a valoração e produção dos
elementos de convicção estavam a cargo do juiz/inquisidor, a quem competia, portanto,
em última análise, definir se havia ou não elemento probatório ou indiciário suficiente
para a condenação ou para uma absolvição de instância.
Dessa forma, de ordinário, assim estava disposta a lógica na obtenção da prova:
atingido um mínimo plausível para a instrução, restava ao acusado provar sua inocência.
Completamente inaplicáveis, nesse passo, os preceitos do “favor rei” ou do “in dubio pro
reo”, vigia claro o pressuposto da culpa.218
Caso não provasse a sua inocência, restando pendente de refutação os elementos de
investigação colhidos pelo juiz na fase preliminar de verificação da notitia criminis,
deveria confessar o crime. Negando-se a confessar, diante da certeza trazida por aqueles
elementos, e com eventual acréscimo de mais provas colhidas na instrução judicial, o
acusado era submetido à tortura até que confessasse e, depois, ratificasse sua confissão.
220 Hélio TORNAGHI, Instituições cit., pp. 490/491, após buscar expor
vantagens e desvantagens, justificativas e abusos da Inquisição Cristã,
após esclarecer todo o espírito cristão que a levou a ser um avanço no
processo penal da época, termina com essas palavras que, em muito,
servem ao encerramento deste item: “Por mais aparelhados que
estivessem os juízes, não era de esperar que, com tamanha soma de
poderes, não aparecessem alguns para deslustrar a instituição. Conrado
de Marburgo, João Galand, Roberto, o Bugre, Foulques de São Jorge e
outros monstros teriam de deturpar e comprometer o tribunal
eclesiástico. Pouco importa que ele tivesse milhares de juízes padrões
de justiça e de mansuetude. Se, ‘por sua organização’, ele ensejasse um
só capaz de cometer as mais graves injustiças e os atos mais
desumanos, sinal seria de que essa organização falhava.
Desgraçadamente não foram poucos os inquisidores cruéis e totalmente
afastados daquele espírito cristão que havia ditado, alguns séculos
antes, os movimentos e as palavras de misericórdia de Santo Ambrósio
e Santo Agostinho em favor dos hereges, mesmo dos que sacrificaram
os cristãos; (...) Mas a verdade deve ser dita sempre e sem restrições e
o amor à verdade obriga a reconhecer que os abusos foram sem conta e
nem sempre reprimidos. Pobres homens! Que seria da Igreja se não
fosse sustentada de cima? Que destino teria tido se repousasse nos
ombros enfraquecidos dos homens? Conta-se que Napoleão ameaçava
Pio VII de acabar com a Igreja e que o Pontífice lhe respondera: –
Majestade, é impossível! Nós, padres, há dezenove séculos que
tentamos fazê-lo e não conseguimos. Verdade ou não, a anedota é muito
eloqüente”.
Se todo sistema inquisitivo, cedo ou tarde, conduz à sua deslegitimação devido às
suas falhas intrínsecas (lógicas e psicológicas), a Inquisição foi mais além, foi ao cume da
violência institucionalizada pelos povos, até então tidos como os mais civilizados.
Foi desse final destemperado e ilegítimo que restaram as maiores marcas e lições do
que não deve ser um sistema processual penal minimamente equilibrado e justo. Foi com
a Inquisição que o processo penal conheceu, em tantos povos e por tão longo tempo, sua
pior forma.
Os anseios iluministas não desconsideraram, para fazer severas críticas, como o
espírito inquisitivo forjou e utilizou o processo penal (inquisitivo) como instrumento de
exercício do poder político estatal para imposição de seus desígnios e controle
(aparentemente legalizado) dos seus adversários (opositores e hereges).221 Os
reformadores perceberam que o sistema criminal da Inquisição (direito e processo
penais) era a maior fonte de exemplos dos abusos e desmandos da política estatal até
então reinante. Portanto, após dele haurirem os fundamentos fáticos para suas críticas ao
desprezo para com o ser humano, foi para ele que dirigiram suas maiores preocupações e
desejos reformistas.
Contudo, antes de se discutir um novo sistema processual penal, e até mesmo
porque as reformas empreendidas no curso do século XVIII foram mais profundas que
apenas uma mudança naquele sistema, tornou-se necessário definir primeiro quais as
novas bases político-filosóficas sobre as quais a sociedade deveria ser erigida.
Os pensadores dessa nova corrente não eram apenas homens de leis, e não desejam
apenas a substituição do procedimento penal da Inquisição. Eram filósofos, escritores,
historiadores, diplomatas e, também, juristas, que expunham toda a sua insatisfação com
o status quo político, social, econômico e, por conseguinte, jurídico. Insurgiram-se contra
o predomínio do poder central em todos os campos, e do seu total descomprometimento
com os interesses e necessidades da população.
Limitando-se apenas ao que releva ao presente estudo, a maior alteração foi quanto
ao novo dimensionamento que se deu ao indivíduo diante do poder estatal central.
Para essa nova corrente filosófica, encetada nos séculos XVI e XVII, o ser humano
não deveria ser mais visto como inimigo do Estado, mas como fonte e destino de seu
poder. Ao lado da consciência da necessidade de um ente supra-individual (Estado) com
dever de reger e proteger a sociedade para garantir sua melhoria e aperfeiçoamento,
colocou-se, com a mesma importância, o ser humano, início e fim desse agir estatal.
Início, por ser ele, como integrante do corpo social, a única fonte legítima do poder,
apenas exercido pelo Estado. Fim, porquanto deve ser em seu favor e para sua melhoria
de condições que o Estado deve atuar.
Dessa forma, para aquela corrente filosófica, qualquer agir estatal que não tivesse
em vista a mais profícua ação em favor do indivíduo se deslegitimaria na origem, pois o
Estado agiria em interesse próprio ou contra o indivíduo, desmerecendo o poder que a
ele o cidadão conferiu.
Sob a angulação social, o grupo composto pelos burgueses e pelas pessoas destituídas
de qualquer poder militar, hereditário ou religioso, que formava a grande massa
populacional, não suportava mais os desmandos e as opressões político-religiosas
exercidas de várias formas pelo poder central, dentre elas pela persecução penal.
Diante desse cada vez mais expressivo descompasso ideológico e de interesses entre
as classes ascendentes e o povo de um lado e as classes dominantes e os religiosos, de
outro lado, os choques tornaram-se mais freqüentes e intensos e resultaram em revoltas e
guerras civis inevitáveis.
241 Ateremo-nos tão-só à carta francesa, não obstante tenha ela forte
inspiração estadunidense, que também proclamara sua independência
(1776) com um respectivo diploma político não menos importante (Carta
de Independência dos Estados Unidos da América). Nossa preferência
se explica porque, nesse último documento, não há menção expressa à
presunção de inocência, tema central de nossos estudos.
242 Alexander GALLAHER HUCKE, La presunción cit., pp. 19/20, com apoio
em Tomaz Y Valiente, entende que a referência mais remota da
presunção de inocência é a Ordenança Criminal Francesa de 1670, art.
28, inciso V, no qual estava escrito: “Omnis praesumitur bonus nisi
probetur malus”. Não nos parece com razão essa doutrina, visto que a
presunção de inocência só pode ser tida como tal em um sistema
igualitário e democrático como o surgido, pela primeira vez, na
Revolução Francesa. Além do fato de, a prevalecer o entendimento do
citado autor, seria por demais paradoxal que aquela expressão tivesse
sido posta em um dos ordenamentos criminais mais despóticos que a
humanidade já conheceu em sua história.
243 In verbis: “9. Tout homme étant présumé innocent jusqu´a ce qu´il ait été
declaré coupable; s´il est jugé indispensable de l´arrêter, toute riguer qui
ne serait nécessaire pour s´assurer de as personne, doit être sévèrement
reprimée par la loi”.
Essa determinação iluminista foi, de fato, revolucionária, na acepção que o termo
recebeu na Revolução Francesa. Os franceses, quebrando o significado semântico do
termo latino “revolutio”, não revolveram ao passado, mas, em verdade, romperam com
ele. Procurando, assim, estabelecer uma nova ordem.244
Quanto ao sistema processual penal, esse passo decisivo, para o rompimento com o
passado e a implementação de um novo parâmetro, foi dado pela inscrição formal, em
dispositivo de lei, de que todo homem deve ser presumido inocente até que sobre ele
recaiam provas tais que sejam aptas a evidenciar, além de qualquer dúvida, a sua culpa.
Em termos lógico-sistêmicos, o procedimento não seria mais uma seqüência de atos
para se demonstrar aquilo que o inquiridor já tinha em sua mente como certo, desde o
início da persecução. Partindo-se da concepção de inocência, a persecução deveria ser
uma efetiva “persecução”, isto é, uma investigação cognitiva na busca dos mais confiáveis
meios de prova para evidenciar os fatos no processo. “Investigar” não mais significaria
“confirmar” aquilo que antes já se tinha como certo ou conveniente para o julgador.
“Cognição” não significaria mais “desígnio político/religioso” a ser realizado pelo
processo. Por “meio de prova confiável” não mais se aceitaria a “manipulação” dos termos
e da vontade de quem pudesse e quisesse colaborar na demonstração dos fatos ocorridos.
E, por fim, como um novo “processo” não se aceitaria mais o sigilo ao imputado, a
ausência de defesa e de contraditório, passou-se a assegurar o respeito às integridades
física, moral e religiosa do investigado/acusado, a imparcialidade do juiz e o direito ao
recurso.
Como se demonstrou por todo este capítulo, durante toda a história da humanidade
até este instante, nunca houvera tal tomada prévia do imputado como inocente. Nunca
houvera, em sistemas inquisitivos e/ou acusatórios, qualquer assunção da condição de
inocente para o imputado até que contra ele fosse demonstrada a culpa.
Isso foi possível porque, com a nova base racionalista de que o Estado deve atuar na
proteção do indivíduo e na concepção fundamental de igualdade entre os indivíduos, o
processo deixou de ser uma arma política do Estado Autoritário na opressão de seus
inimigos (hereges e revoltosos). Passou a ser uma forma de proteção do indivíduo contra
abusos estatais, típicos e por demais ocorrentes na Inquisição. Saem de cena o “hostis
alienigena” e o “hostis judicatus” e entra em cena o cidadão acusado que, embora
acusado, acima e antes disso, é cidadão. Sai de cena o direito penal voltado ao inimigo e
passa-se ao direito penal do cidadão.245
declaré coupable; s´il est jugé indispensable de l´arrêter, toute riguer qui
ne serait nécessaire pour s´assurer de as personne, doit être sévèrement
reprimée par la loi” - destacamos. Diz o trecho ressaltado: “(...); se julgar-
se indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário para
prendê-lo, deverá ser severamente reprimido pela lei”.
250 Sobre a análise desse ponto, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
251 Sobre as leis criminais revolucionárias, v. cronologia em René
no processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 28/29.
A primeira, era uma instrução sumária perante um “juiz de paz”, que desempenhava
uma função de “oficial de polícia judiciária”, servia à instauração de uma investigação e
colheita dos primeiros elementos de materialidade e autoria da infração. Permitia-se a
iniciativa da parte ofendida e, outrossim, podia o magistrado iniciar a investigação de
ofício. Em seu curso procedia-se ao interrogatório do investigado, a oitiva de
testemunhas e recolhia-se eventuais elementos de convicção da infração. Aponta-se
como crítica a essa primeira fase a pouca quantidade de magistrados e a sua pouca
experiência nessa atividade; com isso se delegava a colheita de elementos de convicção
aos particulares ofendidos, e, ainda, não havia participação do Ministério Público nessa
fase, o que fazia com que o magistrado acumulasse as funções de perseguir e instruir.253
A segunda fase desenvolvia-se perante um “júri de acusação”, composto de um juiz
togado presidente e oito jurados leigos. Competia a tal júri a verificação da consistência
da avaliação feita na fase anterior e a continuidade da instrução. Refeita a prova oral e
exposta a questão pelo juiz togado, os jurados, sem a presença do presidente, deliberavam
pela admissibilidade ou não da acusação. A votação pela admissibilidade sempre deveria
ser colhida por maioria de votos, o que indica uma aceitação da cláusula romana do “in
dubio pro reo”. Em caso de admissibilidade, o juiz togado decidiria pela necessidade do
acusado ser preso ou de responder em liberdade a nova fase que se iniciaria.254
A terceira fase consistia em debates definitivos e no julgamento diante do “tribunal
criminal”, composto por três juízes e um presidente, que decidiam sobre a pena, e por
doze jurados leigos, que decidiam sobre o fato (materialidade e autoria). Era,
essencialmente, oral, público e em contraditório. Findos os debates, a votação pela
procedência da acusação somente poderia ser extraída por no mínimo dois terços dos
votos.
255 René GARRAUD, Compendio cit., item 28. Aponta, este autor (op. cit.,
item 33), que houve uma mitigação – que o autor classificou de
“retrocesso” – do recém criado sistema misto napoleônico (1808) por
força de uma lei de 4 de março de 1831 que fixava a necessidade de
que, para que se punisse o acusado, sete dos doze votos precisariam
ser favoráveis à condenação. Para o autor, o retrocesso estava em que
era necessário um número maior de pessoas convictas da condenação
para a punição do imputado, o que configurava, mesmo que em termos,
uma volta ao espírito mais libertário do período revolucionário.
256 a presunção de inocência como “norma de juízo”, v. item 5.4.2.3 infra.
257 Sobre a primeira desonestidade representada pela absolutização da
280 Sobre a visão que a Scuola Positiva tinha do indivíduo, v. item 2.3 e seus
subitens infra. Sobre a inquisição e a rejeição da presunção de
inocência, v. item 1.4 supra. Sobre o ideário nazifascista da Escola
Técnico-Jurídica, v. itens 2.4.2 e 2.4.3 e seus subitens infra. Para uma
análise das modernas correntes criminológicas que tomam, ao menos
em parte, a visão criminalizante do “outro” (o direito penal e processual
penal do inimigo e o direito penal e processual penal do autor), v. item
5.4.3.1 infra.
Entendida a importância que a igualdade tinha para eles na quebra de paradigmas
de estruturação de um sistema juspolítico hierarquizado sobre padrões religiosos e
hereditários, não poderia ter sido outra a posição em se considerar inocente, ou seja,
isento de qualquer punição pela justiça dos homens, o cidadão até que sua culpa criminal
ficasse demonstrada por provas racionalmente obtidas e avaliadas como suficientes além
de qualquer dúvida razoável.
281 O que se deve criticar, se assim fosse possível, e não acreditamos que o
seja, é se aqueles padrões ideológicos estavam errados, ou não eram e
não são ideais para os dias atuais. Os críticos da virada do século XIX
para o século XX entenderam-nos “absurdos”. Nós, ao contrário, e como
se verá a partir do capítulo III, entendemo-los corretos, não obstante
possam e devam ser restringidos em face das condições fáticas e
jurídicas do caso concreto, as quais devem ser demonstradas por uma
indispensável justificação constitucional e proporcional.
Nesse sentido, o pensamento iluminista francês, embebido pelos avanços
humanistas iniciados nos séculos XVI e XVII para o processo penal e o direito penal,282
foi buscar naquela classificação tripartida da “presunção” (técnica e mais humana) uma
forma de revestir o cidadão de uma proteção ética e jurídica contra os desmandos estatais
perpetrados pelo sistema processual penal inquisitivo.283 A esse termo juntou-se a noção
de “inocência”, agora desprovida de conteúdo teológico e voltada a consagrar a noção
racional-iluminista de igualdade, um dos pilares da Revolução em todas as áreas
(econômica, política, social e, também, jurídica). Por ela, todos são inocentes e gozam
desse estado político284 diante do poder estatal até que, por meio de um sistema
probatório racional, consiga-se demonstrar que a conduta externa do cidadão é um
crime.285
Na escolha iluminista pela expressão “presunção de inocência” há uma inegável
fusão do racional e do ideológico. Analisá-la por uma perspectiva dogmático-positivista,
como empreendido pelos técnico-juristas do nazifascismo, é deslocar o debate para a
etimologia, relegando a sua essência ao recanto ou ostracismo.286 É, a um só tempo,
neutralizar a razão e a filosofia que animaram a concepção da expressão, em prol de um
pseudo-purismo técnico que desconstitui aquelas conquistas humanas e omite os avanços
doutrinários dos séculos XVI e XVII e, ainda, esconde sob uma capa falsamente técnica
verdadeiras opções ideológicas (nazifascistas) totalmente diversas daquelas que animaram
o Iluminismo.
289 Com essa base lógica Nicola Framarino dei MALATESTA, A lógica das
provas em matéria criminal, tradução de Waleska Girotto Silverberg da
terceira edição de 1912, São Paulo: Conan, 1995, v. I, capítulo IV sobre
“o ônus da prova”, pp. 143/145, assim se expressou sobre o valor da
presunção de inocência para determinar o ônus da prova para a
acusação: “O ordinário no homem é a inocência, por isso ela se presume
e é ao acusador que cabe a obrigação da prova no juízo penal. Mas é
preciso esclarecer esta presunção de inocência, determinando seu
conteúdo. ‘Quilibet praesumitur bonus, donec contrarium probetur’: eis o
célebre adágio, que serviu para demonstrar a obrigação da prova a
cargo da acusação. Mas como se deve compreender essa presunção de
bondade? Será esta presunção de inocência de que falamos? O homem
se presume inocente, por que se deve presumi-lo bom? Em verdade, é
preciso uma grande dose de otimismo para aceitar, na sua plenitude,
esta presunção de bondade. Tal presunção, tomada como é formulada e
levada às suas conseqüências, leva a presumir não só que o homem
não incorre em ações ou omissões conscientes, contrárias à bondade,
mas que, além disso, pratica todos os atos bons de que se sabe capaz.
Quanto ao lado positivo da presunção, relativamente à de que o homem
pratica todos os atos bons de que se sabe capaz, até os otimistas dele
duvidarão; e não é este, de resto, o lado pelo qual se faz uso da
presunção no problema probatório. Mas será talvez verdadeira a
presunção em seu lado negativo, que leva a crer que o homem não
incorre em ações e omissões, contrárias à bondade? Será porventura
verdade que o homem ordinariamente não comete más ações?(...) Mas
tudo isso enquanto se entenda por ações más tudo aquilo que está
subentendido, isto é, todos os atos conscientemente contrários à
bondade. Mas se por ações más se entenderem, ao contrário, as
‘criminosas’, então a presunção não é mais uma rósea ilusão de otimista
e sim uma observação severa de estadista. A experiência nos mostra
que são, felizmente, em número muito maior os homens que não
cometem crimes que aqueles que os cometem; a experiência nos afirma,
por isso, que o homem ordinariamente não comete ações criminosas,
isto é, que o homem é, via de regra, inocente: e como o ordinário se
presume, também a inocência. Eis a que fica reduzida a presunção
indeterminada e inexata de bondade, quando se queira determinar nos
limites racionais. Não falamos, por isso, de presunções de bondades,
mas de presunção de inocência, presunção negativa de ações e
omissões criminosas, presunção sustentada pela grande e severa
experiência da vida. O homem, no maior número de casos, não comete
ações criminosas; é, ordinariamente, inocente; portanto, a inocência se
presume. A presunção de inocência não é, pois, senão uma
especialização da grande presunção genérica que expusemos: o
Pelo vetor filosófico, em outro sentido iluminista, a presunção de inocência se
justificava pela certeza de que os cidadãos têm o direito supremo e inalienável de serem
tratados de forma igual. Não mais se aceitava que um grupo/classe de indivíduos fosse
tratado, aprioristicamente, como inimigo/herege ou, ao contrário, houvesse classe/grupo
de pessoas imunes à jurisdição penal, ou mesmo mais “inocentes” que os demais, devido a
seu elevado status na estrutura de poder (econômico, político, militar ou religioso).
Por esse mesmo vetor da igualdade, a inscrição da presunção de inocência tinha a
finalidade de assegurar um tratamento de inocente ao imputado desde o início da
persecução criminal e até que sua culpa ficasse definitivamente decidida.290
Compreendida a razão da junção dos dois termos na formação da expressão
iluminista “presunção de inocência”, entende-se porque os revolucionários, para se
manterem coerentes com o seu legiscentrismo, inscreveram-na com força de lei.
Pela consciência clara que possuíam de que tal expressão implicaria mudança
radical do sistema processual penal até então vigente, tiveram a sensibilidade política de
alçá-la ao nível político da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Única forma de garantir a hierarquia juspolítica suficiente, para que tal primado
ideológico projetasse seus efeitos em todo um sistema processual penal que estava por se
formar em decorrência da Revolução.
A posição político-hierárquica da inscrição legal da “presunção de inocência” foi,
portanto, coerente com todas as aspirações e as diretrizes revolucionárias. Pela
concepção iluminista, era a única maneira de se garantir aos cidadãos uma segurança
jurídica contra os excessos e abusos do Estado no exercício da persecução penal.291
Capítulo II
Razões para a eliminação da presunção de inocência: da fase
napoleônica pós-iluminista à promulgação do Código de
Processo Penal brasileiro de 1941
301 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 135 e ss., destaca que
a rejeição das lideranças religiosas e reais pelos revolucionários, aliada à
eliminação das representações de classes e de grupos, tornando todos
os cidadãos iguais e com a mesma representatividade, fez surgir um
vazio de legitimados a ocupar o poder. Máxime se notarmos que havia
profunda dissensão entre os integrantes do “terceiro estamento” (le Tiers
Etat), composto pelos excluídos da nobreza e do clero (sem privilégios),
pela classe burguesa e pelo restante do povo.
302 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 130/134.
303 Fabio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 133/134.
304 Sobre os avanços revolucionários contra países ainda monárquicos e a
311Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 397. Nessa obra (op. cit., pp. 397/398),
a autora aponta que a quebra da tendência liberal do espírito
revolucionário francês, pela retomada de um procedimento de fase
preliminar secreta e escrita, foi arrefecida por um grande incremento
tecnicista, exemplificando com um exaustivo sistema de nulidades
(absolutas e relativas) e um preciso controle das hipóteses de prisão
provisória em face das espécies de penas previstas no tipo penal.
Porém, ressalva, tal tecnicismo foi deixado de lado pelo Código de
Instrução Criminal de 1808 (Code d´instruction criminelle), cuja tendência
foi reforçar e incrementar os poderes discricionários do julgador, como
sói acontecer em regimes autoritários. R. GARRAUD, Compendio cit.,
item 32, abordando a superposição de elementos dos sistemas
inquisitivo e acusatório, assim se manifesta: “O código de instrução
criminal é uma obra eclética onde se encontram em proporções mais ou
menos iguais, antes sobrepostas que fundidas, os dois elementos
históricos já assinalados. Organisa com efeito um processo ‘mixto’ que
da ordenação de 1670 contém a sua informação secreta e escrita, e dos
códigos da assembléia constituinte e da convenção guarda a instrução
oral com publicidade e debates que precedem o julgamento. O júri
d´acusação é suprimido e mantido o do julgamento”.
312 Todas essas características são apontadas por Massimo NOBILI, Il
313 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 393/395. Massimo NOBILI, Il principio
cit., pp. 173/176, bem retrata essa difícil “busca de solução de consenso”
que, em verdade, buscava extirpar de um recente e incipiente sistema
criminal revolucionário o cariz de direitos ao cidadão, pela fixação de um
sistema autoritário e repressivo ao feitio do novo titular do poder. Sobre
os reflexos da vitória autoritária no sistema processual penal misto
napoleônico e como isso tornou ilimitado o livre convencimento judicial,
de modo a propiciar o enfraquecimento da produção de provas na
segunda fase processual (de feições mais garantistas), limitando-a a
uma mera repetição do que antes foi produzido em fase investigativa
(sem qualquer direito ao cidadão), v. item 2.4.6 infra, ao tratarmos de
como isso se fixou no sistema processual penal italiano de 1930. V.,
ainda, no item 2.5.2.4 infra, considerações de que isso foi inserido em
nosso ainda atual código processual de 1940.
314 Sobre a influência do modelo misto francês, com a substituição do júri
popular pelo juiz togado, no sistema italiano desde o Codice per il Regno
d´Italia, de 1807, v. Massimo NOBILI, Il principio cit., pp. 175/179 e
200/2005, com importantes considerações do autor sobre os efeitos
disso para o sistema do livre convencimento motivado italiano.
315 Nesse sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação
das decisões judiciais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp.
145/148.
Na codificação criminal francesa de 1808 (código de instrução criminal) e 1810
(código penal), com vigência a partir de 1811, a criminalização de determinados
comportamentos e de pessoas voltou a ser utilizada como instrumento de controle
político, tal qual ocorrente no Ancien Régime: “o vagabundo como objeto privilegiado de
repressão; os furtos na região rural ou a falsa moeda como crimes que comprometem a
vida civil; a ameaça à ordem constituída como expressão de inimizade contra toda a
comunidade”.316 “O codigo penal de 1810 tem por caracter organisar a ‘defesa social’ por
meio da ‘intimidação’”.317
Como se percebe, tal codificação foi alimentada pelo pretexto de uma “emergência
política”, que se baseava em um crescimento da criminalidade interna318 e no risco de
subversões políticas, perigosíssimas a um Estado em guerra com seus vizinhos.
Novamente, em alegada situação de emergência (política, militar, institucional, de
segurança pública interna, etc.), o Estado lança mão de medidas de exceção justificadas
pela figura do “inimigo público”.319
Constata-se, portanto, que o espírito liberal revolucionário não conseguiu produzir
mudanças perenes no sistema processual penal uma vez que as necessidades criadas pela
violência interna e externa, aliada à falta de experiência histórico-jurídica com qualquer
outro sistema processual penal que não fosse o inquisitivo, fez com que o temor
orientasse à legitimação de um “novo” autoritarismo estatal. Esse, por sua vez, para
responder aos anseios de segurança (interna e externa) que o legitimaram, lança mão do
processo penal como instrumento de exercício político da força estatal contra os “novos”
inimigos do Estado.
320 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 393/395. Esse “novo” sistema é assim
descrito por Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit. p. 47, em tradução
livre: “No ano de 1811 eram promulgados por Napoleão o código penal e
o código de processo penal. O código processual, porém, abandonava o
sistema totalmente acusatório das leis revolucionárias, e, em coerência
com o caráter ditatorial do regime político instaurado, realizava um
parcial retorno ao sistema inquisitório. A primeira fase do processo tinha
caráter nitidamente inquisitório. A ação penal era confiada a um
magistrado dito ‘procureur imperial’; a obrigação de proceder às
primeiras investigações para recolher os depoimentos era atribuída a um
juiz instrutor; a obrigação de manifestar-se sobre a instrução era
atribuída à Câmara de conselho do Tribunal correcional, com faculdade
de recorrer à Câmara de acusação. A segunda fase do processo era, ao
contrário, inspirada mais largamente pelo princípio acusatório, o debate
era público, oral, em contraditório, e a sentença vinha pronunciada por
um júri formado por leigos”. Sobre a utilização do discurso de
“emergência” até nossos dias e seus efeitos deletérios ao sistema
criminal, v. item 5.4.2.3.2 infra.
321 Sobre a existência da presunção de culpa em todos os sistemas
344 Apenas para citar uma das várias classificações empreendidas pelos
positivistas, cite-se Enrico FERRI, Princípios de direito criminal: o
criminoso e o crime, tradução de Luiz de Lemos D´Oliveira, São Paulo:
Saraiva, 1931, pp. 254/268, e sua classificação antropológica: “As
categorias antropológicas de delinquentes são as seguintes: I.
‘Delinquente nato’ ou instintivo ou por tendência congênita; II.
‘Delinquente louco’; III. ‘Delinquente habitual’; IV. ‘Delinquente ocasional’;
V. ‘Delinquente passional’”.
345 Especificamente sobre a presunção de inocência, v. Enrico FERRI,
348 Sociologia cit., p. 307, segue todo o trecho de onde se extraiu a frase do
texto, in verbis: “Questa presunzione, derivata dalla necessità di
considerare – sino a prova in contrario – come onesto ogni cittadino, ha
per sè una base positiva innegabile: che cioè i delinquenti (compresi
quelli non scoperti) sono appunto una minima minoranza di fronte al
totale dei cittadini onesti”.
349 Destacando esse pensamento de Enrico Ferri, v. Alexandra VILELA,
Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual
penal, Coimbra: Coimbra, 2000, pp. 41/42.
350 Sociologia cit., pp. 307/308. No mesmo sentido da citada manifestação
de Enrico Ferri, vem Raffaele GAROFALO, Criminologia: estudo sobre o
delicto e a repressão penal, tradução de Julio de Mattos, São Paulo:
Teixeira, 1893, pp. 406/417. Esse último, prosélito da Scuola Positivista,
após defender o sistema inquisitivo puro, em detrimento de qualquer
aspecto acusatório, afirmando, inclusive, a “leniência” do sistema francês
misto, rejeita qualquer defesa ou sequer debate sobre os fatos se a
pessoa for presa em flagrante ou tiver confessado. Priva-a de defesa,
afirmando que muitos criminosos habituais preferem a prisão em muitos
meses do ano para ter casa e comida de graça. Não concorda com o
contraditório e a publicidade do julgamento após a definição dos fatos,
respeitando a matéria de direito apenas ao julgador. É contra as
apelações em liberdade e a vedação da reformatio in pejus, afirmando
que, se o condenado recorrente vier a ser absolvido pelo tribunal, terá
direito à indenização, afinal, eventual erro judiciário é “uma d´estas
infelicidades que pode suceder ainda ao mais honesto. Mas o homem de
bem, o que acima de tudo deseja em tal caso é a rehabilitação da própria
honra; e, por outro lado, alguns mezes de prisão não constituem um mal
intolerável, principalmente se existe o direito de indemnisação. Depois, a
causa do erro deve quase sempre attribuir-se em parte á imprudência do
imputado, á sua leviandade, á sua conducta excêntrica ou estranha, á
má companhia em que se achava, e apenas em raríssimos casos é uma
circumstancia impossível de prevêr-se”.
Fica claro, portanto, que para a Escola Positiva a presunção de inocência não
passava da porta da denúncia. Não adentrava à segunda fase da persecução penal, o início
da ação penal. E, mesmo no âmbito investigativo preparatório dessa ação, ela era
entendida pelos positivistas com muitos limites, decorrentes da pessoa, da gravidade da
infração ou de ocorrências como a confissão ou o flagrante. Contudo, mesmo se nada
disso fosse constatado no caso concreto, demonstrado o fato e iniciada a ação penal, não
aceitavam qualquer forma de sua influência na mecânica processual.
Diante das “provas” colhidas em fase preparatória acerca do fato e, por decorrência,
porquanto revelassem a doença social congênita à pessoa do investigado, FERRI,
concordando com a opinião de criminosos ouvidos por ele, concluía que a presunção que
deveria haver após a formalização da acusação era a presunção de culpa. Para ele, colhido
o material e proposta uma acusação, havia maior probabilidade de condenação, não de
absolvição. Logo, era a culpa que se deveria presumir. E arrematava: se algum erro
ocorreu na apuração investigativa daqueles fatos,351 o acusado terá toda a fase de debates
públicos para demonstrá-lo.352
Para FERRI, na medida em que se caminhava na persecução penal em direção à
certeza judicial da delinqüência, com a mesma intensidade se desfazia a lógica jurídica da
presunção de inocência.353 Assim, nesse ponto em perfeita sintonia com GAROFALO,
afirmava ser uma impropriedade lógica aceitar-se a presunção de inocência após a
sentença condenatória do juiz. Para reforçar sua opinião, apontava a incoerência
existente em se determinar a prisão preventiva, para algumas espécies de crimes, antes da
sentença, mas se permitir a apelação em liberdade, quando já havia a convicção de que “o
acusado era um delinqüente”. Para ele, se já se declarou que ocorrera um crime, a
liberdade do criminoso (a causa do crime) continuaria a colocar em perigo o convívio
social.354
351 Denominado por ele “erro giudiziario”, uma vez que a fase preparatória
da ação penal era, à época, empreendida sob os auspícios de um
magistrado. Nesse sentido, Sociologia cit., p. 308.
352 Nesse passo, Enrico FERRI, Sociologia cit., pp. 308/309, mostra-se mais
358 Enrico FERRI, Sociologia cit., pp. 312/319. Indubitavelmente essa forma
de julgar (“non consta”) seria mais rigorosa que a “a absolvição por falta
de prova para condenar”, do Código Processual Penal italiano de 1930 e
que infelizmente ainda figura no art. 386, inciso VII, de nosso Código de
Processo Penal. Sobre o tema desta forma de absolvição e sua violação
à presunção de inocência, v. item 5.4.1.3.1 infra.
359 Enrico FERRI, Princípios cit., pp. 183/187.
Foi da combinação de argumentos da Escola Positiva e da Escola Técnico-Jurídica
que partiram todos os mais contundentes ataques à Escola Clássica. A Scuola Positiva, de
RAFFAELE GAROFALO e ENRICO FERRI, baseou suas críticas em uma perspectiva
político-criminal, fundada na alegada ineficiência do direito criminal clássico em
reprimir a criminalidade crescente nos centros urbanos, e da impercebida desigualdade
entre os delinqüentes. A Escola Técnico-Jurídica, de VINCENZO MANZINI, ALFREDO
ROCCO e ARTURO ROCCO, por sua vez, partia suas críticas de uma perspectiva lógico-
dogmática, baseada em alegadas deficiências técnicas na elaboração de alguns
fundamentos do pensamento clássico-iluminista.360 Dentre elas, percebendo o crucial
papel que a presunção de inocência desempenha na elaboração, estruturação e exercício
de muitos institutos processuais penais, os últimos autores citados também não lhe
pouparam de severas críticas.361
Embora essa segunda Escola, de refinada dogmática técnica, rejeitasse as bases
criminológicas da Scuola Positiva, inegavelmente teve com ela pontos comuns e foi por
ela influenciada.362 Isso se confirma quando se observa que os pressupostos dos quais
partiu a Escola Técnico-Jurídica (a prevalência do interesse público de punir sobre o
interesse à liberdade, e o processo penal ter o escopo de realizar a pretensão punitiva do
Estado, não de ser instrumento de proteção do cidadão contra os excessos punitivos
estatais) foram bandeiras criadas, erigidas e defendidas por aquela escola criminológica.363
360 Essa percepção também foi sentida por Jaime VEGAS TORRES,
Presunción de inocencia y prueba em el proceso penal, Madrid: La Ley,
1993, pp. 23/25; Aldo CHIARA, Presunzione di innocenza, presunzione
di “non colpevoleza” e formula dubitativa, anche allà luce degli interventi
della Corte Costituzionale, Rivista italiana di diritto e procedura penale,
Milano, v. 1, gen./mag., p. 77; e Vincenzo GAROFOLI, Presunzione
d´innocenza e considerazione di non colpevolezza. La fungibilità delle
due formulazioni, Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano, v.
41, 1998, p. 1176. Sobre as críticas técnico-jurídicas e sua
desconstrução, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
361 Nesse sentido, v. Mario CHIAVARIO, La presunzion d’innocenza nella
389 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., item 37, in verbis: “La scopo
caratteristico del processo penale è quello di accertare se nel caso
concreto sia o no fondata la pretesa punitiva derivante da un reato, fatta
valere dallo Stato” – destaque do original. Posteriormente, em seu
Trattato di procedura penale italiana, Torino: Bocca, 1914, v. 1, p. 91,
como se vê, editado no ano seguinte à elaboração do código de
processo penal de 1913, acrescentou na redação anterior de seu Manual
o seguinte trecho adiante ressaltado: “(...) fatta valere per lo Stato dal
pubblico ministero” – nosso destaque. Destacando essa posição de
Manzini como seu maior argumento para a supressão da presunção de
inocência do processo penal, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Presunção de inocência e prisão cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, pp.
16/17.
público, de alcançar a punição do culpado, buscando realizar contra ele a pretensão
punitiva do Estado, sobre o interesse de declará-lo inocente.390
390 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., item 38, in verbis: “dato pertanto il
suddeto scopo, contenuto e carattere, è manifesto che l´interesse
fondamentale, che determina il processo penale, è quello di
giungere alla punibilità del colpevole, di rendere cioè realizzabile la
pretesa punitiva dello Stato contro l´imputato, inquanto costui risulti
colpevole: non già l´interesse di prevenire alla proclamazione
dell´innocenza dell´incolpato” – destaques do original. Na mesma obra,
já no item 39 (intitulado “As normas processuais penais tutelam
principalmente o interesse social relativo à repressão da delinqüência”) o
autor radicaliza ainda mais seu discurso de primazia do poder punitivo do
Estado sobre qualquer direito do cidadão, em vernáculo: “39. ‘As normas
processuais penais tutelam principalmente o interesse social relativo à
repressão da delinqüência’. Este interesse sobressai naturalmente sobre
aquele conseqüente relativo à liberdade civil. De fato, o processo penal,
como já dissemos, não tem um escopo acadêmico nem, principalmente,
ético: ele tende a verificar uma pretensão punitiva do Estado feita valer
mediante a imputação penal. E, uma vez que, dado o caráter do órgão
estatal do Ministério Público e a ausência de qualquer interesse pessoal
no exercício da sua função, é lógico presumir que as imputações são
geralmente fundadas sobre um suficiente acertamento preliminar: disso
advém que o processo penal se apresenta como um meio principalmente
dirigido a tornar possível a punição do culpado, a realizar, assim, a
pretensão punitiva do Estado”. In verbis: “39. ‘Le norme processuali
penali tutelano principalmente l´interesse sociale relativo alla repressione
della delinquenza’. Questo interesse primeggia naturalmente su quello
conseguenziale relativo alla libertà civile. Infatti il processo penale, come
abbiamo detto, non ha un scopo accademico nè principalmente etico:
esso tende a sindacare una pretesa punitiva dello Stato fatta valere
mediante la imputazione penale. E poichè, dato il carattere d´organo
statuale del pubblico ministero e l´assenza d´ogni interesse personale
nell´esercizio della sua funzione, è logico presumere che le imputazioni
siano generalmente fondate sopra un sufficiente accertamento
preliminare: ne viene, che il processo penale si presenta come un mezzo
principalmente diretto a rendere possibile la punizione del colpevole, a
realizzare cioè la pretesa punitiva dello Stato”.
MANZINI, ressalve-se, reconhece, no processo penal, um “interesse nella libertà
civile” do cidadão, mas o coloca em claro e confessado segundo plano. Não o admite
como um direito fundamental do ser humano, oponível, portanto, contra atos estatais
(p.ex., processuais) ilegais ou abusivos ou, ainda, como fator limitador do arbítrio
punitivo estatal. Vê, naquele interesse de liberdade, um interesse também de origem e
natureza “social”, “concedido” pelo Estado ao cidadão. Assim, segundo sua concepção,
sendo ambos os interesses derivados da natureza social e concedidos pelo Estado, aquele
punitivo deve sempre se sobrepor ao de liberdade.391
391 Vincenzo MANZINI, in Manuale cit., p. 53, em vernáculo: “Ora, uma vez
que o escopo do processo penal é definir o fundamento da pretensão
punitiva do Estado no caso concreto, e não outro, de torná-la a todo
custo realizável, é natural que ao lado do interesse repressivo encontre
tutela, no Estado livre, também aquele incerto da liberdade civil dos
indivíduos. Mas uma vez que, segundo a ordem das coisas, é presumível
o fundamento da imputação e a veracidade da decisão, e não o
contrário: assim o interesse referente à liberdade civil do indivíduo
representa no processo penal uma parte essencial, mas não a mais
característica ou a prevalente. Do mesmo modo que a garantia não pode
se pôr ao mesmo nível da função que protege. Isso é conseqüência, não
principal”. In verbis: “Ora, posto che lo scopo del processo penale è di
accertare la fondatezza della pretesa punitiva dello Stato nel caso
concreto, e non l´altro, di renderla ad ogni costo realizzabile, è naturale
che accanto all´interesse repressivo trovi tutela, nello Stato libero, anche
quello eventualmente pericolante della libertà civile degli individui. Ma
poichè, secondo l´ordine delle cose, è presumibile la fondatezza
dell´imputazione e la verità della decisione, e non l´opposto: cosi
l´interesse riguardante la libertà civile dell´individuo rappresenta nel
processo penale una parte essenziale bensì, ma non la più caratteristica
e la prevalente. Allo stesso modo che la guarentigia non può porsi allo
stesso livello della funzione che protegge. Esso é conseguenciale, non
principale”. Para outras referências do autor sobre o mesmo ponto, v. op.
cit., item 40, subitem IV. Como se vê, pelo trecho destacado, não
chegando a afirmar, o autor desenha todo um argumento pela presunção
da culpa, em face da alta credibilidade (“presumibile la fondatezza”) que
empresta à imputação e “à ordem (normal) das coisas”.
Por essa perspectiva, é lógico não se ver a liberdade como um direito fundamental,
mas como um interesse social secundário àquele outro punitivo. É desse ponto que o
autor retira a conclusão de que a liberdade somente existirá se não for reconhecida a
pretensão punitiva.392
Para MANZINI as prioridades de análise jurisdicional no processo penal são claras:
primeiro se verifica se o acusado é culpado, se não for, e apenas nessa hipótese,
prevalecerá seu interesse (social e concedido pelo Estado) à liberdade; jamais à sua
declaração de inocência.393 Até mesmo porque MANZINI é expresso em dizer que seria
uma falha proferir a inocência do acusado, pois poderia ele não ser de fato inocente, mas
apenas não ter sido provada sua culpa, seja por falha persecutória seja por critério judicial
quanto à insuficiência das provas para condená-lo.394
Com isso, fica fácil entender como o autor, e todos os seus sequazes,395 justificam a
inexistência de “inocência” no processo penal e, por conseguinte, entendem uma
ilogicidade ainda maior em se pensar em presunção de inocência.396
396 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., p. 54: “Se portanto errado é o critério
que as normas jurídicas penais são dirigidas à tutela da inocência, mais
errada ainda é a crença comum que no procedimento penal se tenha a
favor do imputado uma ‘presunção de inocência’. Pela qual o imputado
deveria ser tido inocente até que não tenha sido condenado por
sentença irrecorrível”. In verbis: “Se pertanto errato è il criterio che le
norme giuridiche penali siano rivolte alla tutela dell´innocenza, più errata
ancora è la credenza comune che nel procedimento penale si abbia a
favore dell´imputato una ‘presunzione di innocenza’. Per la quale
l´imputato stesso dovrebbe ritenersi innocente finchè non sia stato
condannato con sentenza irrevocabile”.
A sua crença na legitimidade da imputação (nos termos antes referidos), levava-o a
descartar, já desde o início da ação penal, qualquer atributo de inocente para o acusado.
Ou ele seria culpado – o mais provável para aquele autor – ou “não culpado”; nunca
“inocente”. Com base nesses itens (imputação lastreada em elementos de convicção
analisados e deduzidos por um órgão público desinteressado – Ministério Público –), e
analisada, tecnicamente, a natureza jurídica da “presunção” no processo, como “meio de
prova indireta da qual se deduz um dado convencimento absoluto ou relativo da
experiência comum”, afirmava que se alguma “presunção” existe no processo penal é a de
“culpabilidade” do acusado. Uma vez que, probabilisticamente, é mais comum a
condenação que a inocência da pessoa submetida à ação penal. Para confirmar tal
assertiva com dados processuais, MANZINI traz em seu abono o fato de haver no
processo penal atos cautelares patrimoniais (p.ex., seqüestro ou arresto de bens) e
pessoais (p.ex., a prisão preventiva) que muito mais caracterizam uma presunção de
culpa, do que de inocência.397
397 V. Manuale cit., p. 54, em vernáculo: “Basta pensar nos casos de arresto
preventivo, no segredo da investigação e no próprio fato da imputação.
Se esta última constitui de fato e necessariamente uma presunção de
culpabilidade, como colocar que equivalha no seu lugar: a uma
presunção de inocência? De resto a prática dos juízos fez e vem fazendo
justiça sumária de tal absurdidade teórica inventada pelo empirismo
francês. A presunção, de outro modo, é um meio de prova indireta que
deduz um dado convencimento absoluto ou relativo da experiência
comum. Ora, se desejará colocar que a experiência histórica coletiva
ensina que a maior parte dos imputados é inocente?! Não se trata de
uma presunção; se trataria de uma ficção, se alguma coisa de similar
existisse no nosso direito positivo como sonham eles ”. In verbis: “Basti
pensare ai casi di arresto preventive, alla segretezza dell´istruttoria e al
fatto stesso dell´imputazione. Se quest´ultima costituisce appunto e
necessariamente una presunzione di colpevolezza, come ammettere che
equivalga al suo posto: a una presunzione di innocenza? Del resto la
pratica dei giudizi ha fatto e va facendo giustizia sommaria di simile
assurdità teorica, escogitata dall´empirismo francese. La presunzione
inoltre è un mezzo di prova indireta che deduce un dato convincimento
assoluto o relative dalla commune esperienza. Ora, si vorrà ammettere
che l´esperienza storica collettiva insegni che la massima parte degli
imputati è innocente?! Non se tratta di una presunzione; si tratterebbe di
una finzione, se qualche cosa di simile ci fosse nel nostro diritto positivo,
come sognano i più”. Esse argumento de Manzini (a presunção de
inocência não existia porquanto incompatível com o sistema processual
então vigente) sofria de um mal lógico intransponível: era sabido que
tanto o código de 1913 quanto os seus antecedentes foram construídos
sobre a expressa a confessada rejeição da idéia clássico-iluminista da
presunção de inocência. Logo, sempre que se fizesse a comparação
entre a presunção de inocência e o sistema então vigente, aquela seria
Nessa linha de raciocínio, MANZINI admite que haja culpado e não culpado, sem
espaço para outra qualificação. Conclui que enquanto o juiz não tenha decidido pela
culpa do acusado ele será presumivelmente não culpado, jamais inocente. Por seu prisma
ótico de qual seria o escopo do processo penal, ele entende que este instrumento não se
presta a analisar se alguém é ou não inocente, mas apenas se é ou não culpado. Nasce,
daí, a justificativa para a substituição da “presunção de inocência” iluminista pela
“presunção de não culpabilidade”, criada pelo positivismo jurídico italiano do século
XIX.398
Não pode ser declarado inocente porquanto não há certeza de que o seja. Aliás, para
aquele autor, pela legitimidade da imputação, eventual insuficiência de prova pode
apenas levar a não ser declarado culpado.
Em caso de dúvida judicial, aquele autor aceitava a aplicação do antigo brocardo “in
dubio pro reo” como critério de solução em favor do acusado. Porém, destacava que esse
critério não equivalia a inocentar o acusado; apenas significava que a quantidade de
provas produzidas pelo acusador não foi suficiente para convencer o juízo da tese
condenatória.399
Percebe-se, portanto, que MANZINI e os seguidores de suas idéias, arrefecendo o
rigor da Scuola Positiva,400 retomam a compatilização do direito romano da fase imperial,
e constroem um modelo no qual se rejeita expressamente a presunção de inocência, não
obstante se aceite o “in dubio pro reo”.401
uma estranha a ser rejeitada, não porque fosse uma “assurdità” haver
um sistema nela centrado, mas porque os sistemas processuais postos
como paradigmas a rejeitavam de partida e na origem. Sobre a ausência
da presunção de inocência desde o Estatuto Albertino e os códigos de
1865, v. Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1173/1176,
principalmente notas 26 e 39.
398 Não obstante seja mais claro e incisivo sobre esse ponto nas edições de seu “Trattato di diritto processuale penale
italiano”, posteriores ao código de processo penal italiano de 1930, não se pode deixar de extrair essa conclusão das
seguintes palavras de Vincenzo MANZINI, já em 1912, em seu Manuale cit., item 40, subitem III, em tradução livre:
“III. O nosso direito processual penal tutela o interesse à liberdade civil do indivíduo ‘sem alguma presunção ou
ficção’. É de bom senso que, até que não venham definitivamente acertadas as condições que tornam realizável a
pretensão punitiva do Estado, o imputado não possa ser tido como condenado, e deva portanto ser tratado por
imputado, como aquele cuja culpabilidade ainda se duvida. O que não equivale precisamente a dizer que, antes da
condenação, se deva presumir a sua inocência até prova em contrário!”. In verbis: “III. Il nostro diritto processuale
penale tutela l´interesse relativo alla ‘libertà civile’ dell´individuo ‘senza alcuna presunzione o finzione’. É di buon
senso che finchè non vengano definitivamente accertate le condizioni che rendono realizzabile la pretesa punitiva
dello Stato, l´imputato non possa ritenersi condannato, e debba quindi trattarsi da imputato, cioè al modo di colui
della cui colpevolezza ancora si dubita. Il che non equivale precisamente a dire che, prima della condanna, si debba
presumere la sua innocenza fino a prova contraria!”. Essa mesma conclusão pela “presunção de não culpabilidade”,
nunca de “inocência”, pode ser observada na obra de Bruno FRANCHI, Nuovo cit., p. 180, a qual revela que os
trabalhos legislativos preparativos do código de processo penal italiano de 1913 caminharam, nesse ponto, em
confessada trilha doutrinária firmada por MANZINI, citando inclusive várias passagens de seu Manuale cit., editado
em 1912. Para uma crítica às inconfessadas raízes político-criminológicas dos pensamentos de Vincenzo MANZINI
no preparo do código de processo penal italiano de 1930, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
399 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., item 4.1. Sobre o tema, v. maiores considerações no item 2.4.6 infra.
400 Sobre a rejeição tanto da presunção de inocência como do “in dubio pro reo” pela Scuola Positiva, v. item 2.3.2 supra.
401 Sobre a existência do “in dubio pro reo” já nos sistemas processuais pré-revolucionários, sem que isso significasse a
aceitação da presunção de inocência, v. itens 1.2.2 e 1.2.3 supra.
2.4.4. -Recrudescimento jurídico do Código de Processo Penal italiano de 1930
402 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 57, terminava assim o período de sua autoria e já traduzido no texto,
em tradução livre: “A estes fins se conservava a conhecida combinação. Inventada pelo código napoleônico e aceita
pelo código de 1913, de uma investigação preliminar (istruttoria) secreta e uma instrução judicial (dibattimento)
pública”. Como se demonstrará no item 2.5.2 infra, essas foram quase as mesmas expressões usadas pelo legislador
brasileiro de 1940 ao justificar o texto de nosso (ainda) atual código de processo penal.
403 Para uma referência a esses pontos de maior restrição aos direitos do cidadão no processo, v. Aldo CHIARA,
Presunzione cit., pp. 80/81.
Para se ater apenas aos temas que tocam à presunção de inocência, deve-se destacar
que: a defesa técnica foi reduzida e limitada a contravenções com pena superior a um
mês, sendo, ainda, suprimido o direito do defensor em ter vistas ou em copiar os autos e
de participar de atos como perícias, inspeções e inquirições; a publicidade também foi
limitada, pois os imputados não mais receberiam aviso de que estavam sendo
investigados, com convite para virem apresentar sua versão e poder receber a
comunicação dos atos; as nulidades absolutas referentes à falta ou deficiência de defesa
desapareceram por meio de um sistema de saneamento; as hipóteses de prisão em
flagrante obrigatórias foram ampliadas e as facultativas foram reduzidas; a liberdade
provisória deixava de ser ato exclusivo do juiz e passa a sê-lo, também, do Ministério
Público, porém sem que houvesse recurso para a sua denegação; aumentaram as
hipóteses de instrução sumária (fase preliminar de investigação) conduzida pelo
Ministério Público e pela qual ele poderia apurar, julgar e apenar, sem aviso ou a
presença de um juiz; a instauração de instrução formal (fase preliminar presidida pelo
juiz) era determinada pelo Ministério Público, uma vez que era ele quem decidia se havia
ou não “prova evidente” contra o imputado, o que faria com que a instrução fosse
sumária e sobre sua responsabilidade de apurar, julgar e apenar; por fim, a Corte de
Assise e o júri, fundidos em um único órgão presidido por dois juízes togados e cinco
assessores leigos, necessariamente integrantes do partido fascista, proferia decisão secreta
e extraída por votação, valendo de modo igual os votos de seus integrantes (togados ou
leigos).404
Além do evidente recrudescimento pela alteração dos institutos processuais de
garantia aos direitos do imputado, importante ressaltar o controle que o partido fascista
tinha tanto na fase preliminar investigativa quanto diante do tribunal.
No tocante à fase investigativa preparatória da ação penal, porquanto quem
determinava se haveria ou não instrução preliminar perante o juiz ou o Ministério
Público, era este último órgão que, como ressaltava ALESSANDRO MALINVERNI, por
não gozar das garantias de inamovibilidade do juiz e, ainda, por estar disciplinarmente
submetido ao Ministro da Justiça, tornava-se um “órgão mais doce às diretivas do poder
executivo”.405
No tocante à fase perante o tribunal, porque, se a decisão era dada pela maioria dos
sete votantes e se o partido fascista nomeava cinco deles, necessariamente leigos em
direito, os seus critérios de decidir eram, natural e prevalentemente, mais políticos que
técnico-jurídicos. Logo, evidencia-se falaciosa a “neutralidade” prolatada pelos
dogmáticos italianos responsáveis pela elaboração do código de processo penal.
404 Todas características expostas por Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 57/60. Na mesma obra, pp. 62/65,
esse autor expõe que o recrudescimento autoritário do sistema processual fascista somente viria a ser arrefecido nas
décadas de cinqüenta e sessenta, com o fim da II Guerra Mundial e após a incorporação, no ordenamento italiano
interno, da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, elaborada pelo
Conselho da Europa e celebrada em Roma, em 04 de janeiro de 1950 (cfr., sobre a datação deste diploma
internacional, assim como algumas referências sobre seu texto, Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., p.
267). Observe-se que tal Convenção traz, em seu art. 6.2, expressamente, a presunção de inocência, como um de seus
fundamentos.
405 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 59.
De que adiantava uma técnica minudente e exacerbada se os integrantes do
Ministério Público (que aplicava pena ou decidia pela instauração de ação penal) eram
nomeados pelo partido fascista? De que adiantava uma técnica minudente e exacerbada
se a maior parte dos julgadores (cinco em sete) eram leigos escolhidos dentre os
integrantes do partido fascista?
Como se vê, se no Código Processual Penal italiano de 1913 ainda não havia se
revelado, em toda a sua nudez, a falácia positivista jurídica quanto à busca de uma
“neutralidade” ideológica e filosófica pela técnica dogmático-processual, tudo ficou de
clareza meridiana ao se elaborar o Código de Processo Penal italiano de 1930.
406 Sobre a utilização pelo fascismo dos princípios e idéias da Scuola Positiva, v. Enrico FERRI, Princípios cit., pp.
315/316 e nota 1. Na mesma obra (p. 43), assim se manifesta o autor: “Afirmou a necessidade de restabelecer o
‘equilibrio entre os direitos do individuo e os do Estado’; pelo que eu disse que se a idade-media tinha visto sómente o
‘delinquente’ e a Escola Clássica tão sómente o ‘homem’, a realidade impunha ter em conta o ‘homem deliquente’,
não desconhecendo no delinquente os direitos insuprimíveis do homem, mas não esquecendo nunca a insuprimível
necessidade da defesa social contra o delinqüente”. Acrescentando em nota de rodapé ao texto destacado: “Esta a
razão fundamental do acôrdo prático entre o ‘Fascismo e a Scuola Positiva na defesa social contra a criminalidade’,
por mim salientado nos ‘Studi sulla criminalità’, 2ª ed., Torino, UTET, pág. 696-737 (reproduzido na ‘Scuola Positiva’,
julho de 1926)”.
407 Nesse sentido, José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., pp. 249/250, assim se manifesta: “O ‘perigo político’
das doutrinas positivistas consistiu, curiosamente, em ter servido e ser utilizadas a serviço dos movimentos e regimes
totalitários que dominaram a Europa na época que mediou entre uma e outra grande guerra” (op. cit., p. 249).
408 Sobre o tema, v. item 2.4.3.1 supra.
409 Sobre o tema, v. item 2.4.4 supra.
Os positivistas jurídicos afirmavam que a presunção de inocência era inaceitável no
processo penal pois, por sua visão técnica, não seria nem “presunção” nem se trataria de
“inocência”.410 MANZINI demonstrou, com bastante argúcia, cada um desses pontos.
Afirmava que não se podia falar de inocência porque o processo penal não declara se
alguém é ou não inocente, mas se ele é ou não culpado pelo crime do qual é acusado.
Sobre a “presunção”, MANZINI afirmava que, tecnicamente, ela é “meio de prova
indireta” pelo qual se extrai um dado absoluto ou relativo de uma base da experiência
comum. E, se há alguma presunção a se extrair da “experiência do processo penal”,
concluía MANZINI, é a presunção de culpa, não de inocência, pois a maior parte dos
acusados são, ao final, condenados.411
Esses dois pontos, aparentemente técnicos e lógicos, escondem o preconceito e a
visão antropológica e sociológica inerente ao pensamento da Escola Positiva, que
MANZINI tanto se esforçava em rejeitar, ao menos em seus escritos.412
Faça-se uma análise comparativa entre o pensamento manziniano e o ideário da
Scuola Positiva para cada uma daquelas duas partes da expressão: “presunção” e
“inocência”.
Quanto à “presunção”, o raciocínio está impregnado de preconceito, pois parte do
pressuposto de que, se houve uma acusação formalizada com base em elementos colhidos
no curso da fase preparatória, a imputação tenderia a ser verdade. Conferia, portanto,
extremo valor ao colhido pelos órgãos persecutórios (Polícia e Ministério Público), não
admitindo igualdade entre a versão destes e a do investigado. Mais que isso,
desconsiderava, ou, em suas palavras, considerava “pouco provável”, que ele conseguisse
reverter a situação jurídica com que se dava início à ação penal. Desvalorizava, com isso,
contudo sem confessar, a utilidade da fase processual e o trabalho da defesa em juízo. O
“material incriminador” com que se iniciava a ação penal já continha uma alta
probabilidade de certeza, dificilmente reversível.
410 Sobre a rejeição expressa da presunção de inocência pelo Código Rocco, v. Mario PISANI, Introduzione al processo
penale, Milano: Giuffrè, 1988, p. 43, e Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione cit., p. 561.
411 Sobre toda a exposição das linhas argumentativas do positivismo jurídico sobre o tema da presunção de inocência, v.
item 2.4.3.1 supra. Sobre as exposições de Vincenzo MANZINI no tocante ao tema, v. seu Manuale cit., pp. 54 e ss. e,
no Trattato di diritto processuale cit,, pp. 221 e 226/227.
412 Sobre a rejeição expressa de MANZINI quanto aos pensamentos antropológicos e sociológicos da Scuola Positiva, v.
item 2.4.2 supra.
Além do que não trazia ao contexto, nesse ponto de seu argumento, que a fase
preliminar e preparatória realizava-se em moldes inquisitivos, com profundas restrições
ao exercício dos direitos inerentes ao devido processo legal.413 Dar amplos poderes aos
órgãos persecutórios e restringir a quase nenhum os direitos do investigado para, após
essa escolha, dar mais crédito ao trabalho daqueles órgãos administrativos, não é
“equilibrar” os interesses persecutórios e defensivos.414 É, em verdade, promover o
desequilíbrio de posições jurídicas. É fazer exatamente o oposto do preconizado por
ALFREDO ROCCO como objetivo da reforma processual penal de 1930.
O preconceito dos positivistas jurídicos, nesse ponto, residia exatamente em conferir
maior valorização e credibilidade à fase preparatória inquisitiva do que à fase acusatória,
realizada com maiores garantias ao imputado.
Em síntese, a conclusão que adviesse da fase preparatória formava a convicção de
MANZINI. Se ela fosse pelo início da ação penal, seria atécnico dizer que se deveria
presumir a inocência do acusado, pois, estatisticamente (típico raciocínio da Scuola
Positiva), deveria presumir-se a sua culpabilidade.
Quanto ao termo “inocência”, o argumento técnico-positivista era de que consistia
em um conceito ético e não jurídico, uma vez que o processo apenas dizia se a pessoa
cometera ou não aquele fato do qual a acusavam. Classificavam a “inocência” de postura
“ética” para deslocá-la do espaço “apenas jurídico” do código de processo penal. Nada há
de mais ideológico e de maior conveniência política em um Estado autoritário do que
referido raciocínio.
MANZINI afirmava que, a inocência não poderia ser declarada, pois, mesmo se não
provada a culpa do acusado naquele processo, ninguém poderia garantir que ele não fosse
um dos mais perigosos “delinqüentes habituais”.415
416 Dados objetivos e base racional certa e segura era a única forma defendida por MANZINI para estabelecer um
aceitável pensamento jurídico. Nesse sentido, Trattato di diritto penale cit., itens 3 a 9.
417 Sobre a violação à presunção de inocência representada por essa forma de “absolvição”, v. item 5.4.1.3.1 infra.
Assim, como para EDMUND MEZGER, na Alemanha nazista,418 também na Itália
fascista de VINCENZO MANZINI e ALFREDO ROCCO, a dogmática jurídica que se
dizia uma ciência neutral e baseada apenas na técnica, foi o melhor instrumento para dar
amparo formal e legal aos anseios políticos daqueles Estados autoritários. O positivismo
jurídico de MANZINI, por mais que seu autor negasse, demonstrou que não era neutral,
mas politicamente dirigido pelo fascismo e com raiz na antropologia e sociologia da
Scuola Positiva italiana.
418 Gabriel IGNACIO ANITUA, Historias cit., lembrando o trabalho de Edmund MEZGER, demonstra a relação direta
entre o dogmatismo dos positivistas jurídicos e o regime nazista. Nas palavras daquele autor, em português: “O maior
e melhor expoente deste direito penal e criminologia neokantianos foi Edmund MEZGER (1883-1962), que
abandonou o suposto ‘apoliticismo’ que manteve durante a República de Weimar imediatamente depois da ascensão
de Adolf HITLER (1889-1945). E não só o abandonaria na cátedra, como que o representou ofensivamente até o final
do Estado nazi a nova reforma penal e política criminal nacional-socialista. (...) Na Criminologia de MEZGER,
publicada a primeira vez em 1934 e que teve duas edições em 1942 e 1944, se revelava a conivência entre um
pensamento jurídico sólido e as idéias racistas de exterminação, de raiz biologista e positivista. Já no prólogo
MEZGER afirmava que a política criminal tinha como missão a ‘conformação racial do povo como um todo’, e que a
meta da Administração da Justiça no futuro seria ‘a segregação da comunidade do povo dos elementos daninhos ao
povo e à raça’. (...) A prova de que o positivismo jurídico não era, finalmente, neutral se obteve justamente no
pensamento e obra deste autor, que se apoiaria – antes e depois do nazismo – neste tipo de ciência não
comprometida, para não obstante se comprometer durante doze anos de governo nazista com as práticas racistas de
eliminação de indesejáveis”.
419 Como um dos vários exemplos de propostas de elaboração de um código de processo penal segundo os princípios
positivistas, v., por todos, a obra de Raffaele GAROFALO e Luigi CARELLI, Riforma della procedura penale in Italia,
Torino: Fratelli Bocca Editori, 1889, notadamente pp. CLXVI/CLXXIV, e pela qual os autores pugnavam pela
eliminação não apenas da presunção de inocência, mas também do “in dubio pro reo”.
420 Trattato di diritto processuale cit., itens 24 e 41.
421 Conforme se pode ver nas duas obras publicadas pelo autor logo após a edição do Código de Processo Penal de 1930:
Vincenzo manzini, Istituzioni di diritto processuale penale: secondo il nuovo codice di procedura penale, 5ª ed.,
Milano: Cedam, 1932, p. 36, e Trattato di diritto processuale penale italiano: secondo il nuovo codice, Torino: UTET,
1931, v. 1, pp. 104/105 e 184. Vale notar que a afinidade desse pensamento do autor com a mens legislatoris ressurte
clara, notadamente nesta última obra citada, que conta inclusive com o prefácio de Alfredo Rocco, então Ministro da
Justiça de Benito Mussolini e responsável pelos debates legislativos “técnico-jurídicos” de elaboração tanto do código
processual quanto do código penal.
Assim, distanciou-se tanto da posição positivista mais radical de RAFFAELE
GAROFALO, que pugnava pela eliminação completa da cultura “pro reo”422 no processo
penal, em qualquer de suas formas ou aplicações, quanto da posição seletiva de ENRICO
FERRI,423 para quem o “in dubio pro reo” somente poderia ser aplicado para os
“delinqüentes ocasionais” ou os “delinqüentes passionais”, sendo vedado aos natos,
profissionais ou habituais.
Também nesse aspecto o pensamento positivista jurídico do código processual penal
de 1930 em nada se distancia do sistema processual penal romano da cognitio extra
ordinem e do modelo misto francês: a presunção de inocência era expressamente
rejeitada, mas se aceitava uma mitigação na decisão judicial se, após toda a persecução e a
interpretação do fato pela íntima convicção do julgador, sem controle e orientada
politicamente, ele ainda restasse em dúvida sobre a culpa do acusado. Nesse caso, e
apenas para matéria de fato, deveria decidir em seu favor (“in dubio pro reo”).
Para que essa posição final fosse permitida, reforçou-se e não se limitou o “livre
convencimento judicial”,424 não se estabelecendo regras pré-definidas para o juiz decidir
diante de cada espécie de prova. Para isso, os positivistas reforçaram e ampliaram, de
modo exagerado, os poderes instrutórios judiciais, permitindo uma verdadeira
investigação do juiz na busca de meios e fontes de prova, independente da atuação das
partes. A ampliação da investigação judicial, contudo, não eliminava a possibilidade de
dúvida inerente ao sistema do livre convencimento, uma vez que a demonstração fática
dos dados históricos relevantes à decisão penal pode encontrar limites materiais em sua
reconstrução. Assim, prestigiando a forma decisória do livre convencimento, mesmo com
amplos poderes instrutórios, não se eliminava a possibilidade de existir a dúvida ao final.
Logo, se surgisse a dúvida sobre questão de fato ao final de todo o labor instrutório das
partes e do juiz, os positivistas aceitavam que ela fosse resolvida em favor do acusado (“in
dubio pro reo”), apenas e tão-só no instante da decisão de mérito.425
422 Para a diferença entre “in dubio pro reo” e “favor rei” e suas inter-relações com a presunção de inocência, v. item
5.4.1.1 infra.
423 Sobre essa posição positivista dos autores citados, com indicação bibliográfica, v. item 2.3.2 supra.
424 Eugenio FLORIAN, Delle prove penali, Milano: Francesco Vallardi, 1921, v. 1, item 176, pp. 353/356, destacado
positivista, ressalta que as provas colhidas no curso persecutório e a análise que sobre elas deva fazer o juiz de forma
livre (negando o sistema da prova legal como eficiente) e motivada (reforçando a necessidade de uma lógica
expositiva do raciocínio a ser externado pelo julgador) é que determina a culpa ou inocência do imputado, não tendo
razão lógica para a utilização da presunção de inocência para essa finalidade valorativa. Na visão desse dogmático
positivista, não existiria um princípio de inocência do imputado, mas um princípio natural de prova. No mesmo
sentido, v. A. MARUCCI, Presunzione d´innocenza, atteggiamento del giudicante, errori giudiziari, Rassegna di
studi penitenziari, Roma, v. 9, n. 3, mag./giug., 1959, pp. 364/366.
425 Sobre a necessidade de aplicação do “in dubio pro reo” e do “favor rei” também em outras decisões judiciais no curso
persecutório, v. item 5.4.1.2.1, 5.4.1.3 e 5.4.2.3.1 infra.
Ocorre, porém, e isso precisa ser colocado em ressalto, que tanto para o código
processual penal italiano de 1930 quanto para o brasileiro de 1940, a possibilidade de o
juiz restar em dúvida era muito diminuta.426 Primeiro, porque os poderes instrutórios do
juiz reduziam aquela margem ao mínimo, uma vez que sempre que desejasse provar algo
poderia fazê-lo sem peias. Segundo, porque ao sair em busca de fontes e meios
probatórios se vinculava psicologicamente à tese que pretendia provar ou ao tema que
pretendia esclarecer, tendendo a avaliar com mais peso as provas que ele “descobrisse” ou
“determinasse”. Terceiro, e mais importante, porque sendo a dúvida um estado
psicológico que primeiro surge no íntimo do julgador, ele pode removê-la por meio de
fatos externos aos autos, por suas experiências sociais, culturais, religiosas e psicológicas,
e, ainda, o que era muito comum na fase fascista, por razões políticas, econômicas ou de
Estado.427 Esses fatores “extraprocessuais”, considerados de hábito pelos julgadores,428
foram tão marcantes na formação cultural jurídica ítalo-brasileira que o livre
convencimento foi sendo considerado como “certeza moral” do julgador.429
426 No sentido de que o sistema da investigação judicial ampla associado ao livre convencimento do juiz não elimina a
dúvida, mas a reduz ao menor campo de atuação do “in dubio pro reo”, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade
cit., pp. 54/56.
427 Sobre esse instante como o momento mais crítico para a presunção de inocência como “norma de juízo”, v. item
5.4.2.3.2 infra.
428 Essa mesma realidade de se considerar elementos externos aos autos processuais ou dar maior importância a fatos
indiciários ou de pouca objetividade incriminadora por ter-se convencido com base naqueles elementos, também foi
percebida na Espanha, ainda nos anos oitenta do século XX, conforme constatou Jaime VEGAS TORRES, Presunción
cit., pp. 157/164.
429 Massimo NOBILI, Il principio cit., pp. 221/265, trata como o livre convencimento ilimitado foi utilizado desde a
Escola Positiva para dar ao julgador a liberdade ilimitada necessária para a “defesa social” e a proteção dos interesses
repressivos “públicos” frente ao direito de liberdade “privado” do cidadão. O prometido arrefecimento daquele
ilimitado poder pelo código de processo penal italiano de 1930 não ocorreu de fato. Aquele autor citado, analisando o
sistema em meados da década de setenta do século passado, quando ainda estava vigente na Itália o referido diploma
processual, demonstrou em profunda análise jurisprudencial e doutrinária (op. cit., pp. 267/296) que a cultura jurídica
era a de que o livre convencimento era ilimitado e podia ser definido como uma “certeza moral” do julgador (op. cit.,
p. 281). Não obstante se exigisse, em alguns julgados dos Tribunais, a necessidade de motivação por parte dos juízes,
de tão genéricas e pouco incisivas aquelas “recomendações” em nada contribuíam para o tema do livre
convencimento (op. cit., p. 283). Para demonstrar o ilimitado poder jurisdicional na formação de seu livre
convencimento e as fortes influências que o pensamento positivista e técnico-jurídico daquelas escolas penais
projetaram no código italiano de 1930 até sua revogação, ao final da década de oitenta, veja-se o expressivo trecho de
Massimo Nobili, pelo qual comenta a posição de vários doutrinadores que interpretavam o código já na década de
sessenta na Itália: “É essa a imagem do livre convencimento que herdamos das ‘novas escolas’ penais e que se
insinuam até os nossos dias, uma vez que não é raro ouvir repetir, ainda hoje – especialmente entre os magistrados - ,
que ‘o escopo da justiça processual não é de sacrificar a busca da verdade à presunção de inocência’; que o
contraditório propicia o perigo de ‘inúteis formalidades’; de dispêndio de energias humanas e está em contraste com a
‘defesa social’; ver figurar entre as propostas de reforma, a idéia de ‘um processo sumário, o mais ágil possível, para
usar como instrumento útil e rápido, ...como eficaz instrumento de luta saneadora e redentora contra o delito’; ou ler
em algumas sentenças que ‘pelo princípio do livre convencimento, o juiz está desvinculado de qualquer formalismo,
em tudo que concerne a definição das condições indispensáveis para atuação da pretensão punitiva do Estado’” ( op.
cit., pp. 265/266).
O ordenamento processual desenhado aos moldes positivistas, portanto, assim como
o misto francês e o romano da cognitio extra ordinem, não era liberal ou garantista por
aceitar o “in dubio pro reo”. A aceitação dessa cláusula, conforme afirmava o próprio
VINCENZO MANZINI, era apenas um “doveroso obbligo morale”,430 nunca uma
imposição legal431 de se escolher a decisão mais favorável ao acusado em caso de
dúvida.432
433 No sentido de ser a presunção de inocência apenas compatível com um sistema processual penal garantista, v.
Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1170/1173, e Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 83/85. Jaime VEGAS
TORRES, Presunción cit., p. 29, afirma que o rechaço fascista de 1930 à presunção de inocência encontra sua
explicação, além de qualquer justificativa lógico-jurídica, em considerações de índole claramente política, pois “el
principio de presunción de inocencia tiene um carácter de símbolo antiautoritarismo ante el cual el fascismo no
podia permanecer indiferente”.
434 Sobre essa relação indissolúvel entre a noção de “inocência”, inserida na expressão “presunção de inocência”, e o
primado revolucionário da igualdade, v. itens 1.5.4.2 e 1.5.4.3 supra.
435 Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1177/1178.
Como já se demonstrou, houve uma deslealdade técnica ao se criticar a escolha do
termo “presunção” pelos pensadores revolucionários iluministas. Isto porque, a palavra,
ao menos até aquele instante histórico da escolha (meados do século XVIII), tinha um
conteúdo humanitário e racional baseado em uma classificação tripartida.436
É cediço que o movimento revolucionário de 1789 não foi uma mudança técnico-
jurídica por excelência, mas uma transformação filosófico-política e que apenas de modo
reflexo atingiu o sistema jurídico-constitucional. O principal, portanto, era uma
mudança de eixo político, no qual o homem deveria ser respeitado pelo Estado, que, por
sua vez, tinha limites em sua atuação. Foi esse eixo político que os tecnicistas do final do
século XIX e início do século XX rejeitavam e conseguiram mudar, ao colocarem os
interesses do Estado acima de qualquer direito do cidadão.
Para a consecução de tal desiderato, tomaram a presunção de inocência como se
fosse uma espécie de “presunção”, termo técnico cujo significado foram buscar no campo
do direito civil, aplicando-o, sem restrições ou ressalvas (técnicas ou filosóficas) em área
jurídica diversa, qual seja, a área jurídico-criminal.437
438 Para essa constatação do matiz político prevalente sobre o técnico-jurídico da escolha pela expressão “presunção de
inocência”, v., na Itália, as obras de: Giulio ILLUMINATI, La presunzione d´innocenza dell´imputado, 6ª ed.,
Bologna: Zanichelli Editore, 1984, pp. 17/30; Girolamo BELLAVISTA, Studi sul processo penale, Milano: Giuffrè,
1976, v. IV, pp. 83-93; e Mario PISANI, Introduzione cit., pp. 43/47. No Brasil, v.: Antônio MAGALHÃES GOMES
FILHO, Presunção cit., pp. 35/37; Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus da prova no processo penal, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 280/284; Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo processual tridimensional do
princípio da presunção de inocência, in Luiz Flávio GOMES, Estudos de direito penal e processo penal, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, pp. 107/108; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO, Processo penal e
Constituição: princípios constitucionais do processo penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 156/157;
Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela da liberdade no processo penal, São Paulo: Malheiros, 2005,
pp. 69/71; Guilherme Madeira DREZEM, Presunção de inocência: efeito suspensivo dos recursos extraordinário e
especial e execução provisória, Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 275; e a exposição de Cezar PELUSO,
Garantias cit. Na doutrina espanhola, v., por todos, as observações de Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp.
28/30.
439 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 35/36.
440 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit., p. 318. Sobre a presunção de inocência não ser presunção
na acepção técnica, v.: Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 13/14; Alexander GALLAHER HUCKE, La
presunción de inocencia y la presunción de voluntariedad, Santiago do Chile: Editorial Jurídica ConoSur LTDA,
1996, pp. 19/25; Esteban ROMERO ARIAS, La presunción de inocencia: estudio de algunas de las consecuencias de la
constitucionalización de este derecho fundamental, Pamplona: Aranzadi, 1985, pp. 38/46; Fabián I. BALCARCE,
Presunción cit., pp. 47/50; José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., pp. 268/273; Mario PISANI, Introduzione
cit., pp. 44/45; Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 81/83 e 85; Rui PATRÍCIO, O princípio da presunção de
inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, Lisboa: Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, p. 37; Giuseppe BETTIOL, Instituições de direito e de processo penal, tradução
de Manuel da Costa Andrade, Coimbra: Coimbra, 1974, pp. 298/299; Renato Barão VARALDA, Restrição ao princípio
da presunção de inocência: prisão preventiva e ordem pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007, pp.
50/51; Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La presunción de inocencia: análisis doctrinal y jurisprudencial,
Pamplona: Aranzadi, 1999, p. 37; e Odone SANGUINÉ, Prisión provisional y derechos fundamentales, Valencia:
Tirant lo Blanch, 2003, pp. 430/431.
O que explicou a necessidade, o surgimento, a importância sistêmica e a extensão
que deveria se dar à “presunção de inocência” foi o seu cunho ideológico-político.441
Retirá-lo é o mesmo que desnaturá-la. Desconsiderá-lo é mudar a fonte juspolítica
daquele preceito humanitário.
Quando o legislador (constitucional ou infraconstitucional) estabelece presunção,
cabe indagar qual o fundamento e finalidade que a ela se atribui no instante normativo.
Como já se demonstrou acima, no período pré-revolucionário francês, o pensamento
humanista somente aceitava a idéia de “praesumptio” como forma de sanar a dúvida, seja
atribuindo o ônus probatório para o acusador, seja decidindo em favor do acusado.442
Nesse sentido, a “presunção” não foi inserida na idéia política de “presunção de
inocência” para representar uma constatação de probabilidade do que ocorre ou não na
realidade processual penal, mas como orientação ao Estado de seu dever de sempre
considerar e tratar o indivíduo como inocente até decisão judicial condenatória final.
É erro palmar entender que os filósofos iluministas tivessem tomado a “presunção”
com o fundamento do que provavelmente ocorria ao final de uma persecução penal. Isto
porque as experiências até então havidas no direito processual penal eram as da
Inquisição, na qual a única certeza era a de que quase a totalidade das pessoas submetidas
ao Santo Ofício eram, desde o início da persecução, tidas e tratadas como culpadas. Não
se pode supor que os iluministas desconhecessem que a condenação era quase a única
forma de se terminar um julgamento que, indefectivelmente, se iniciava com uma
confissão, em regra, extorquida por meio da tortura.443
Diante dessa realidade, que os iluministas pretendiam mudar, foi um (proposital?)
erro dos positivistas afirmar que aqueles erraram ao não observar que a maioria dos
acusados seriam, provavelmente, culpados, nunca inocentes, já que são condenados ao
final.
Para ganhar ainda mais consistência em sua lógica tecnicamente tortuosa,
afirmavam que a “presunção de inocência” era incompatível com vários institutos
processuais penais dos códigos italianos de 1865, de 1913 e de 1930. Contudo, não
alertavam que tais códigos, já em sua gênese legislativa, rejeitavam a “presunção de
inocência”. Assim, os parâmetros usados pelos técnico-dogmáticos como “os certos”
eram, na verdade, sempre aqueles que rejeitavam a “presunção de inocência” em sua
gênese política formadora. Essa jamais poderia ser uma lógica analítica honesta para se
discutir se um preceito juspolítico (presunção de inocência) deveria ou não fundar um
sistema processual penal. Os parâmetros usados como “certos” estavam comprometidos
com a “presunção de culpa” desde sua formação. Logo, sempre seriam incompatíveis com
qualquer argumento baseado na “presunção de inocência”.
441 Sobre o inegável conteúdo político da presunção de inocência, v.: Aldo CHIARA, Presunzione cit., pp. 75/77; Giulio
ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 80/84; Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1170/1173; Antonio
Magalhães GOMES FILHO, Significados cit., pp. 318/319; Renato Barão VARALDA, Restrição cit., pp. 50/53;
Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 283/284; e Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 28.
442 Sobre o tema, v. itens 1.5.4.1 e 1.5.4.3 supra.
443 Sobre o tema do sistema processual da Inquisição estar alicerçado na presunção de culpa e as conseqüências disso para
os imputados, v. item 1.4.3 supra. Sobre a tortura ser o meio de obtenção da prova mais comum e sua estruturação no
procedimento penal da Inquisição, v. item 1.4.1.2 supra.
Os iluministas e a doutrina da Escola Clássica nunca fundamentaram sua “presunção
de inocência” nos dados prováveis ou não da realidade persecutória criminal, mas,
exatamente para impedir os abusos e violências estatais daquela atividade persecutória
até então existente (séculos XVI a XVIII) – única realidade que conheciam –, fixaram
uma escolha axiológica e baseada na técnica até então existente para aquele conceito de
“presunção”.444
Assim, a régua de medir aquela presunção não é a técnico-jurídica, v. g., da
presunção absoluta ou relativa, legal ou judicial. Isto foi criado para, no campo do direito
privado, com base na realidade provável, auxiliar a superar dificuldades surgidas na
reconstrução fática. Tecnicamente, essas presunções originárias do direito privado podem
ser transportadas para o campo processual penal em certa medida e para determinadas
situações, mas, definitivamente, não têm a mesma natureza, finalidade e função da
“presunção de inocência”.445 Esta presunção se mede com a régua da ideologia política do
humanismo, voltada, principalmente, ao legislador infraconstitucional, mas também ao
julgador e ao administrador público, sem olvidar os agentes privados da comunidade na
qual aquele preceito se insira. Sua finalidade é a proteção dos interesses do imputado na
persecução penal, isso sempre ficou claro, não viram e não vêem os que não querem.446
Nesse sentido, com toda a propriedade, conclui ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES
FILHO: “É justamente por isso que na leitura da expressão ‘presunção de inocência’ há de
ser considerado prioritariamente o seu valor ideológico; trata-se, como afirmou Pisani,
de uma ‘presunção política’ na medida em que exprime uma orientação de fundo ao
legislador, qual seja a de garantia da posição de liberdade do acusado diante do interesse
coletivo à repressão penal”.447
444 Quanto à idéia de presunção e sua relação com o preceito iluminista de “presunção de inocência”, v. Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., p. 36, quando assevera que o “que parece essencial ao tratamento do
tema, na verdade, é a consideração de que as presunções são normas de comportamento e através delas o legislador
formula regras de ‘dever ser’ e não asserções da realidade. As presunções, também sublinhou Wroblewisk, estão
fundamentadas em valores ideológicos e técnicos; no caso da presunção de inocência, o valor ideológico é a garantia
do interesse do acusado no processo penal, enquanto o valor técnico, instrumental ao primeiro, contribui para a
segurança e a certeza do direito, indicando ao juiz a regra a ser obedecida no caso de incerteza sobre a culpabilidade”.
Sobre a concepção até então existente de “presunção”, na área criminal, v. item 1.5.4.1 supra. Sobre a condenação ser
a regra na persecução penal da Inquisição, v. item 1.4.1.1 supra, em especial nota 176.
445 Para um estudo sobre as presunções derivadas do direito privado e aplicáveis ao direito processual penal, v. Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 261/279, e Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela
cit., p. 70. Mário PISANI, Introduzione cit., p. 44, afirma que a palavra “presunção” tem significado múltiplo e nem
todos partem do significado privado constante no código civil napoleônico de “presunção judicial, isto é, do
procedimento lógico com base no qual o juiz, ou alguém por ele, parte do fato conhecido para o fato desconhecido”
(em tradução livre). Sobre a finalidade e função da presunção de inocência, v. item 5.3.3 e seus subitens infra.
446 Nesse sentido, v. Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela cit., pp. 69/71, e Mário PISANI,
Introduzione cit., p. 44. Não obstante se refira à expressão “in dubio pro reo”, porém, tomando-a com o que aqui
denominamos de “presunção de inocência”, v. Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio pro reo, Buenos Aires: EJEA,
1971, pp. 78/79.
447 Presunção cit., p. 37.
Ao tratar da rejeição da presunção de inocência pela Escola Técnico-Jurídica448
demonstrou-se que, para os seus adeptos, jamais poderia emergir uma declaração de
inocência de um julgamento processual penal. Afirmavam que na persecução penal
apenas se determinava se alguém era ou não culpado por aquele fato imputado, não se
devendo declarar alguém inocente porque, segundo apregoavam, a despeito de falha da
acusação ou de convicção equivocada do juízo, o imputado poderia ser o mais cruel dos
criminosos.
Para eles, o julgamento trazia a visão tão-só do caso submetido à apreciação judicial.
Não era uma declaração de idoneidade do imputado que tanto para aquele crime quanto
para eventuais outros ainda não descobertos, poderia ser até mesmo um delinqüente
habitual. Assim, concluíam que se na persecução penal era uma “absurdidade” jurídica
aceitar a “presunção” de inocência e se antes da condenação o imputado não podia ser
tratado como “culpado”, então o que havia era, no máximo, uma “presunção de não
culpabilidade”.
Não obstante toda essa tentativa de argumentação dita “técnica”, o que os sequazes
daquela ideologia (nazifascista) deixam claro em suas palavras era uma verdadeira e
insofismável crença na “presunção de culpa”, a qual esconderam sob uma “nova”
construção denominada por eles “presunção de não culpabilidade”. Por todos, vejam as
palavras sempre lembradas de VINCENZO MANZINI sobre esse ponto: “Existem alguns
‘delinqüentes’ não imorais; muitíssimas pessoas são imorais sem ser ‘delinqüentes’. O
termo ‘inocente’, no uso da prática processual penal, não tem um significado ético, mas
exclusivamente jurídico, enquanto o ‘inocente’, isto é, aquele que resulta não culpado do
crime imputado a ele, pode ser também o mais perverso dos delinqüentes habituais e de
todo modo a sua ‘inocência’ se refere exclusivamente ao fato de que se trata, ou também
somente às condições de punibilidade do próprio fato”.449
Emerge clara a presunção de culpa do texto do maior crítico técnico-jurídico da
presunção de inocência. Sua proposta de utilização da “presunção de não culpabilidade” é
mero eufemismo técnico típico daquela escola jurídica que, como já visto no item
anterior, escondia por debaixo de abordagens pseudotécnicas uma verdadeira intenção de
justificar o sistema autoritário fascista.
No instante em que o autor afirma que o “não condenado” pode ser “o mais perverso
delinqüente habitual” está supondo (presumindo) sem prova e contra a análise judicial de
mérito. Para além disso, está afirmando, ainda, que todos são, ao menos potencialmente,
culpados por crimes ainda não descobertos ou ainda não provados, ficando sempre uma
dúvida de culpa por sobre as pessoas levadas a julgamento, sejam ou não condenadas ao
final.450 Isso é verdadeira “presunção de culpa”.
451 Sobre os erros técnicos dos positivistas e dos dogmáticos jurídicos sobre suas críticas técnico-jurídicas sobre a
expressão “presunção de inocência”, v. itens 1.5.4 e 1.5.4.1 supra.
452 Sobre a insuficiência de prova para condenar, mas justificadora de penas mitigadas ou de absolvições de instância para
as quais o processo sempre poderia ser reaberto e o “absolvido” novamente processado, v. itens 1.4.1.1.1 e 1.4.1.2
supra.
453 Sobre esses meios para se chegar a condenações mais tênues ou à absolvição semiplena ou de instância, v. itens
1.4.1.1.1, 1.4.1.2 e 1.5.4.1 supra.
454 Hélio TORNAGHI, Manual de processo penal (prisão e liberdade), Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A, 1963, v.
I, pp. 273/275.
455 Nesse sentido, v. Fabián I. BALCARCE, Presunción cit., pp. 35/38.
Os técnico-positivistas, portanto, a fim de rejeitarem essa inversão clássico-
iluminista empreendida pela “presunção de inocência”, criam a “presunção de não
culpabilidade”; forma de repristinar a presunção de culpa da Inquisição sem que para isso
precisassem reconhecer tal retrocesso de modo expresso. Porém, ao assim agirem,
desconsideraram um aspecto ontológico do processo penal: sua finalidade deve ser
sempre declarar a situação jurídica do cidadão ao final de toda a persecução. Ou ela é
uma nova situação (a condenação), ou ela é a declaração do status quo ante (pré-
persecutório). Afirmar que o processo penal chega à “culpa” ou à “não culpa”, e com isso
limitar os debates apenas ao âmbito da persecução penal, é não aceitar um ambiente
juspolítico anterior e conformador das estruturas do próprio sistema processual penal. Ao
afastar a “presunção de inocência” como fonte informadora do processo penal, os
positivistas e dogmáticos abriram espaço para a influência da “presunção de culpa” já na
formação do sistema processual, porquanto pela “presunção de não culpabilidade” o
processo era usado para se “ratificar” ou “retificar” a suspeita de culpa que pairava sobre o
imputado.456 O que se presumia, portanto, para começar a persecução penal, era a
“culpa”, cuja confirmação ou negação se daria no curso processual.
Não há espaço lógico-jurídico para meio termo. São dois âmbitos imiscíveis e
excludentes: se há culpa não há inocência, e se há inocência não há culpa. Isto porque
todo e qualquer sistema processual penal, no curso de toda a história humana, ou foi
construído sobre a presunção de culpa ou sobre a presunção de inocência.457
O ponto crucial para se determinar todo o perfil sistêmico do processo penal é saber
se o cidadão, ao ingressar na persecução penal, ou seja, antes do início da investigação de
seu comportamento, deve ser considerado previamente inocente ou previamente
culpado. Pois é esse estado jurídico que o acompanhará durante todo o iter
procedimental.
Se a escolha for pela presunção de inocência, ao não se demonstrar a culpa do
imputado ao final da persecução deve ser declarado que ele “continua” inocente. Já era
inocente antes da persecução, permaneceu assim durante todo o seu curso e, ao final, se
não condenado, é declarado que ele continua inocente (como sempre foi). É nesse ponto
que se compreende por que se deve dizer que há um “estado de inocência”458 que
acompanha o cidadão desde o seu nascimento até que se declare sua culpa, após um
devido processo legal, por meio de provas lícitas, incriminadoras e suficientes.
459 Nesse sentido vale trazer à colação as palavras de Fabián I. BALCARCE, Presunción cit., p. 37, em tradução livre:
“Por outra parte, tal pensamento (o que há é a não culpabilidade, não a inocência, acrescentamos) adoece da
indeterminação própria das negações. Diz-nos tudo que fica fora da culpabilidade, mas não nos precisa o que está
incluído na “não culpabilidade”, menos ainda, qual é o rol da inocência em tal construção, deixando um amplo campo
no meio para a construção de instituições jurídicas eqüidistantes de ambos os extremos – inocência e culpabilidade –,
(...). Como é sabido, só quando se aplica a norma penal substantiva ao fato podemos falar de ‘culpado’ ou ‘não
culpado’. Mas essa subsunção é o epílogo do processo, o qual, assim, se converte em pressuposto daquela. Mas se de
‘não culpado’ só podemos falar depois do momento indicado: a que estado do indivíduo nos referiremos durante a
realização do processo? Evidentemente ao estado de inocência, mas limitada ao direito que se intenta atuar, não em
relação ao direito atuante. Do contrário estaríamos utilizando o processo como meio para adiantar opinião sobre a
aplicação da regra substantiva, neste caso a de não culpável, confundindo, assim, o âmbito de atuação de cada um dos
ramos penais”. Sobre a técnica persecutória da Inquisição e a inerente presunção de culpa, v. item 1.4.1.1 supra.
460 Sobre essas características na redação original do atual código de processo penal e os indeléveis reflexos que ainda
projetam em nossos dias, v. item 2.5.2 e seus subitens infra.
461 Nesse sentido, v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., pp. 260/261. Para um específico desenvolvimento da
presunção de inocência como escolha política do constituinte e a sua influência na análise do suporte fático, v. item
5.3 e seus subitens infra.
462 Sobre a devida aproximação ideológica entre as expressões após as subscrições e incorporações de Tratados e
Convenções Europeus pela Itália e do forte trabalho doutrinário, v. nossos comentários com as indefectíveis
similitudes com o sistema brasileiro nos itens 3.7.1.2 e 3.8.2.1 infra.
O cidadão existe e deve ser respeitado pelo Estado em seus direitos e garantias
mesmo antes da persecução penal. Assim, o Estado tem sobre aquele indivíduo uma
postura política: ou o vê como hostis, inimigo, traidor, herege, opositor ou adversário, ou
o trata como seu integrante e fonte de seu poder. O cidadão, antes de ser submetido a
uma persecução, já goza de uma postura juspolítica em face do Estado e é com essa
mesma postura que deverá ser visto durante toda a persecução penal e, no seu final, se
não houver convicção judicial extreme de dúvidas de que está provada a sua culpa.
Dessa forma, diversamente do que fez crer MANZINI, quando o julgador reconhece
que não há prova da culpa do acusado, não decide apenas improcedente aquela ação
penal movida pelo Estado, sem qualquer outro efeito. Ao julgar improcedente a ação
penal, a conseqüência inevitável é que se reconhece, mesmo que de forma implícita, que
aquele indivíduo continua a possuir a mesma situação jurídica anterior ao início daquela
ação. Por reconhecer a inexistência de culpa, “declara” a improcedência da ação e,
também, que o indivíduo continua com a mesma situação jurídica que possuía antes do
início da persecução penal.
Pela alta e inegável qualidade técnica de Vincenzo Manzini, é impossível supor que
desconhecesse que antes de iniciar a persecução o indivíduo já possui uma inegável
situação jurídica frente ao Estado (seja ela de culpa ou de inocência). Ao ser declarado
“não culpado” é essa situação que manterá jurídica, social e politicamente após o término
da ação penal. Essa decorrência para o indivíduo se mostra coerente e desvela a exata
situação jurídica com que o Estado Fascista via os indivíduos: a situação de “não
culpados”, até prova em contrário (prova de sua culpa). Típica postura de toda e qualquer
ideologia autoritária e de todo e qualquer controle sociopolítico pelos instrumentos da
força e pelo sistema criminal (penal e processual penal).
Após se perceber que “presunção de culpa” ou “presunção de inocência” não são
presunções em sentido técnico-processual, mas formas ideológicas do Estado determinar
sua forma de tratamento dos indivíduos por suas instituições,463 ressurte claro que não há
espaço lógico ou jurídico no sistema processual penal para a criação dogmático-
positivista da “presunção de não culpabilidade”. Essa foi a razão por que nos sistemas
constitucionais do pós-guerra que mantiveram em seus textos aquela fórmula da
“presunção de não culpabilidade”, como ocorreu com o Brasil de 1988 e a Itália de 1948,
tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm-na como sinônimo da “presunção de
inocência”.464
469 Luigi LUCCHINI, Elementi di procedura penale, 3ª ed., Firenze: G. Barbèra, 1908, pp. 9/10, outro expoente dentre os
clássicos, afirmava literalmente que: “‘Innocente’ e ‘onesto’ vanno intensi in un senso non absoluto, ma relativo. Le
garanzie processuali devono estendersi anche si colpevoli, nello stesso tempo che la procedura è diretta a conseguirne
la più facile, pronta e sicura scoperta e convinzione. Siano scoperti, convinti e condannati, ma non pìu e non oltre il
loro misfatto e la loro responsabilità: prima di tutto, perchè, eccedendosi, si violerebbe la legge e si conculcherebbe la
giustizia; e poi, perchè l´ingiustizia e l´illegalità sono altrettanto funeste e deleteria se in odio agli onesti, quanto se
in odio ai delinquenti”.
470 Preceituava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, posteriormente promulgada em 1793, em seu
artigo 9º, in verbis: “Tout homme étant présumé innocent jusqu´a ce qu´il ait été declaré coupable; s´il est jugé
indispensable de l’arrêter, toute riguer qui ne serait nécessaire pour s´assurer de sa personne, doit être sévèrement
reprimée par la loi”.
471 A postura doutrinária expressa no texto advém de nossa aceitação da
“teoria dos princípios” desenvolvida por Robert Alexy, notadamente em
sua obra clássica Teoría de los derechos fundamentales, tradução de
Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002. Toda a importância metodológica e analítica que
a escolha dessa teoria projeta no estudo da presunção de inocência será
demonstrada nos capítulos IV e V infra, porém, não se poderia deixar de
mencioná-la desde já.
Se, ao final do século XVIII, a afirmação do parágrafo anterior não estava tão clara,
até porque fruto de uma evolução da teoria constitucional dos direitos fundamentais
surgida em meados do século XX, não se pode deixar de percebê-la, ou ao menos sua
gênese, na redação do art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique a outrem: em
conseqüência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que
assegurem aos demais membros da sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais
limites só podem ser autorizados por lei”.472 Se nesta passagem não restavam ainda tão
claros o sopesamento e a proporcionalidade que devem existir entre os direitos
fundamentais, não se podia deixar de ver, ao menos, que nunca se propugnou pela
absolutização de qualquer daqueles direitos concebidos e inscritos pelos iluministas e
pelos clássicos.
Com esse último dispositivo trazido à colação se demonstra que já vem dos próprios
iluministas, e sempre assim foi defendido por todos os doutrinadores clássicos, que a
presunção de inocência, como qualquer outro princípio jusfundamental, não deve ser
absolutizada, mas interpretada e aplicada na maior medida possível diante das condições
fáticas e jurídicas do caso concreto.
Dessa forma, é tecnicamente incorreto e historicamente desonesto afirmar que um
sistema que aceitasse e promovesse da maneira mais ampla possível a presunção de
inocência estaria fadado a não ter prisão provisória ou sequer persecução penal; enfim,
que não seria um sistema processual penal eficaz e apto a reprimir a criminalidade.473
Assim como propalado tanto pelos integrantes da Scuola Positiva quanto pelos
positivistas dogmáticos, na fase persecutória anterior ao início da ação penal não foi
conferido qualquer direito ao investigado. Nos moldes da Inquisição, era em regra
sigilosa, sem direito à defesa e contraditório, promovida sob os auspícios dos órgãos
administrativos (Polícia e Ministério Público) politicamente controláveis pelo poder
central, fosse pela possibilidade de nomeação, fosse pelo controle econômico de ambas as
instituições.
No Brasil, a atribuição conferida à Polícia e ao Ministério Público para o controle da
fase preliminar, diante dos parâmetros expressos na redação dos artigos 20488 e 21489 do
Código de Processo Penal, não deixa dúvida sobre a intenção de restringir todas as
garantias nessa fase persecutória.
498 Com base nessa cultura jurídica decidia o Supremo Tribunal Federal, à
época, que vigia a prisão obrigatória. Por todos, v.: “Prisão preventiva
obrigatória; provada a existência do crime e havendo indícios suficientes
de autoria, independentemente da sua conveniência, e autorizada (Cod.
do (sic) Proc. Penal, art. 312). Habeas-corpus denegado” (STF – 2ª T. –
RHC 31.775 – rel. Edgard Costa – j. 29.10.1951 – ADJ 13.02.1952).
“Prisão preventiva obrigatória. Art. 312 do Cod. de Proc. Penal. -
Constitucionalidade. -Peculato. - Democracia não e só liberdade para os
cidadãos; deve ser também responsabilidade para os que governam.
Não há como argumentar que o art. 312 não contém o advérbio sempre
ou o adjetivo obrigatória, de modo a ter este caráter a prisão preventiva,
de que ele cogita. A obrigatoriedade claramente resulta do confronto
entre os arts. 312 e 313, o segundo dizendo que o juiz poderá decretar a
prisão preventiva nos crimes menos graves como garantia da ordem
pública, por conveniência da instrução ou para assegurar a aplicação da
lei penal, enquanto o primeiro, no tocante aos crimes graves (a que for
cominada pena de reclusão por tempo no máximo, igual ou superior a
dez anos), dispõe que a prisão preventiva será decretada (não diz que
poderá ser, nem a subordina a razões de conveniência). Prisão
preventiva e pena não se confundem. Certeza se exige para a
condenação, não para a prisão preventiva. Para aquela, não para esta,
vale o princípio in dubio pro reo. Distinção entre poder discricionário e
poder arbitrário, consistindo o primeiro no criterioso exercício de uma
faculdade legal e o segundo em atos de puro arbítrio ou mero capricho.
Não é somente ao tempo da pena que atende o juiz para decretar a
prisão preventiva obrigatória do art. 312. Ele terá de verificar, como está
expresso no art. 311, se há prova da existência de algum dos graves
crimes a que corresponde aquela prisão, bem como se há indícios
suficientes da autoria. Se, no correr do processo, a indicação da autoria
se evidência falsa, ou se comprova a inexistência do delito imputado, a
prisão preventiva deve ser revogada, mesmo no caso do art. 312. -
h.corpus negado” (STF – TP – HC 39.292 – rel. Luis Gallotti – j.
29.08.1962 – ADJ 16.11.1962).
499 Sobre o tema da prisão obrigatória, v. itens 1.2.3.2, 1.2.4, 1.4.1.1.2,
2.2.2, 2.4.3 e 2.4.4 supra.
Esses dispositivos de 1941 somente passaram a ter a redação atual com o advento da
Lei nº 5.349, de 03 de novembro de 1967, contudo, já haviam deixado marcas até hoje
indeléveis na cultura jurídica brasileira. Tanto que, não obstante os vinte anos da atual
Constituição, ainda se vê empregar o mesmo raciocínio da gravidade da infração, apenas
investigada ou imputada, para se determinar a prisão provisória ou se negar a liberdade
do preso (investigado/acusado).500
Claro que a alteração da norma, deixando de ser uma imposição ao julgador,
permitiu que se iniciasse a busca por fundamentações idôneas para se determinar a prisão
ou para revogá-la.
510 Era assim a redação do art. 187 do Código de Processo Penal, antes de
sua revogação em 2003: “Art. 187. O defensor do acusado não poderá
intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas” -
grifamos.
511 Sobre a confissão como hipótese de restrição legítima da presunção de
Não se vai, nesse ponto, fazer uma escolha entre o sistema processual inquisitivo e o
acusatório, uma vez que já se demonstrou que ambos os modelos podem ser estruturados
sem qualquer influxo da presunção de inocência.516
O que aqui se quer destacar é o fato de que o legislador de 1941 deu ao julgador
enormes poderes instrutórios. No Título “Da prova” são elencados vários meios de prova
e outros meios de obtenção de prova, para todos e em todos se admite a produção por
iniciativa do juiz. O juiz, portanto, poderá instruir o processo o quanto entender
conveniente e suficiente para formar seu convencimento. A princípio, poderia se
entender que com tal poder o julgador poderia tanto produzir prova para absolver
quanto para condenar, vale dizer, teria poderes instrutórios para a dita “descoberta da
verdade”, pouco importando se ao final tal comportamento vier a beneficiar a tese
acusatória ou defensiva. Essa era a idéia central que se queria passar: um juiz ativo para a
busca da melhor reconstrução dos fatos.
517 Veja-se a nova redação do art. 386, com a alteração promovida pela Lei
11.690, de 10.06.2008: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a
causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (...) VI – existirem
circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20,
21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se
houver fundada dúvida sobre sua existência; VII - não existir prova
suficiente para a condenação”.
518 A iniciativa instrutória judicial ilimitada e incentivada pelo legislador
compatibilizava-se com outros pontos nos quais o código de processo
penal deixava clara a sua tendência inquisitiva. Cite-se, a título
exemplificativo, o mais significativo deles representado pelo
procedimento judicialiforme (arts. 531 e ss.), nos quais se previa que as
ações penais eram iniciadas por portaria do próprio juiz que, ao final,
julgaria o caso.
519 Não obstante várias manifestações doutrinárias ressalvem que essa
iniciativa na fase investigativa é inconstitucional (p.todos, v.: Nereu José
GIACOMOLI, Reformas (?) do processo penal, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008, item 3.4; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO
e Sólon Bittencourt DEPAOLI, Por que o juiz não deve produzir provas –
a nova redação do art. 156 do CPP - Lei nº 11.690/2008, Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 16, nº 190, pp. 6-7, set.,
2008), o fato é que o legislador de 2008 perdeu uma grande
oportunidade de reforçar a determinação constitucional por um sistema
processual penal acusatório. Para não incidir na inconstitucionalidade
inegável do novo texto legal, o legislador deveria ter restringido ao
máximo os poderes instrutórios ex officio do juiz na fase processual,
chegando a eliminá-lo em certas situações no curso da ação penal e na
fase de investigação preliminar deveria tê-lo feito de modo integral.
Com essa constatação não se está afirmando que todo e qualquer magistrado sempre
que se utilizou dos poderes instrutórios que a lei lhe confere sempre o tenha feito
animado por uma sanha punitiva. Sabe-se que muitos agiram e poderão agir exatamente
no sentido contrário. Não se está aqui julgando pessoas ou procurando exemplos mais ou
menos aplicáveis apenas a uma linha argumentativa. O que se procura demonstrar com o
exame desses pontos é apenas uma tendência do sistema criado em 1941. Tendência essa
que pode ou não ser mais ou menos forte em uma ou outra pessoa, porém não deixa de
ser uma tendência sistêmica e, como tal, produziu e produz sempre mais efeitos em uma
direção (punitiva) do que em outra (defensiva).
A tendência punitiva que se aliava a esse ilimitado e constante poder instrutório
judicial é possibilitada pela “livre apreciação das provas” (atual primeira parte do caput
do art. 155, CPP),520 também denominado, principalmente pela doutrina italiana, como
“livre convencimento judicial”. Isto porque, como já se demonstrou,521 esta forma de
decisão típica do sistema do júri inglês, o qual possui um rígido e complexo sistema de
exclusão e depuração de provas (law of evidence), foi transposta ao julgamento togado e,
com isso, deu-se ao julgador um poder de decidir conforme sua “certeza moral”. Não
obstante tanto no código italiano de 1930 quanto no brasileiro de 1941 terem tentado
colocar peias àquela liberdade excessiva pela exigência de motivação,522 o certo é que
nunca se criou uma estrutura segura para que ela fosse prolatada de forma verificável e
crítica.
520 Até o advento da Lei 11.690/08, a livre apreciação da prova estava assim
prevista no art. 157 desde 1941: “Art. 157. O juiz formará sua convicção
pela livre apreciação da prova”. A partir de meados de 2008, essa
mesma determinação está assim transposta ao art. 155 atual: “Art. 155.
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida
em contraditório judicial, (...)” - grifamos. Não obstante haja alteração
com o complemento não grifado, ao que importa (a parte grifada do
dispositivo) a mens legislatoris de 2008 mostrou-se ainda uniforme com
o ditame de 1941.
521 Já expusemos que o livre convencimento nasceu no iluminismo (v. item
1.5.2 supra) e foi deturpado para uma poder ilimitado tanto na fase
imediatamente posterior, com o código processual penal misto francês
(v. item 2.2.2 supra), quanto pela Escola Positiva (v. item 2.3.2 supra) e
pela Escola Técnico-Jurídica (v. item 2.4.6 supra).
522 Nessa linha, o item XII da Exposição de Motivos do Código de Processo
Penal, que trata da sentença: “(...) A sentença deve ser motivada. Com o
sistema do relativo arbítrio judicial na aplicação da pena, consagrado
pelo novo Código Penal, e o do livre convencimento do juiz, adotado pelo
presente projeto, é a motivação da sentença que oferece garantia contra
os excessos, os erros de apreciação, as falhas de raciocínio ou de lógica
ou os demais vícios de julgamento. No caso de absolvição, a parte
dispositiva da sentença deve conter, de modo preciso, a razão específica
pela qual é o réu absolvido. É minudente o projeto, ao regular a
motivação e o dispositivo da sentença”. Para dar corpo a essa
disposição do legislador, mesmo antes da atual Constituição, exigia-se
que a decisão de mérito fosse fundamentada. Assim vinham dispostos
os artigos 381 (“Art. 381. A sentença conterá: (...) III - a indicação dos
motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão”) e 564 (“Art.
564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: (...) IV - por omissão de
formalidade que constitua elemento essencial do ato”). Para a prisão
preventiva já havia, também, cláusula expressa: “Art. 315. O despacho
que decretar ou denegar a prisão preventiva será sempre
fundamentado”.
Essa falta de estrutura de controle à fundamentação judicial era tão evidente que,
não raro, até após o advento da atual Constituição, era comum aos juízes justificarem
condenações apenas com base em elementos informativos colhidos em fase inquisitiva
pré-processual.523
524 O que pode ser visto por esse aresto paradigmático de nosso Supremo
Tribunal Federal: “A unilateralidade das investigações desenvolvidas
pela Polícia Judiciária na fase preliminar da persecução penal
(‘informatio delicti’) e o caráter inquisitivo que assinala a atuação da
autoridade policial não autorizam, sob pena de grave ofensa à garantia
constitucional do contraditório e da plenitude de defesa, a formulação de
decisão condenatória cujo único suporte seja a prova, não reproduzida
em juízo, consubstanciada nas peças do inquérito. Por isso mesmo, a
orientação jurisprudencial dos Tribunais (RT 422/299, 426/395, 448/334,
479/358. 547/355) firmou-se no sentido de que ‘é nula a decisão
proferida em processo que correu em branco, sem que nenhuma prova
fosse produzida em Juízo’ (RT 520/484). ‘A prova colhida no inquérito
não serve, sabidamente, para dar respaldo a um decreto condenatório, à
falta de garantia do contraditório penal’ (RT 512/355). Nem se diga que o
princípio do livre convencimento do magistrado deveria preponderar,
sem qualquer limitação, tendo presente, apenas, a realidade do conjunto
probatório e não o lugar em que este se produziu. Como
apropriadamente observa Fernando de Almeida Pedroso (ob. cit., p. 56,
item 14), ‘sufragar-se tal escólio implicaria postergar-se, de maneira
flagrante, o princípio basilar do contraditório...’. Outro não é o magistério
de José Frederico Marques (‘Tratado de direito processual penal’,
Saraiva, 1980, vol. I), para quem não há prova (ou como tal não se
considera), quando não produzida contraditoriamente (p. 194). Afinal,
salienta o eminente Mestre paulista, se a Constituição solenemente
assegura aos acusados ampla defesa, importa violar essa garantia valer-
se o juiz de provas colhidas em procedimento em que o réu não podia
usar do direito de defender-se com os meios e recursos inerentes a esse
direito (p. 104). Nenhuma acusação penal se presume provada. Esta
afirmação, que decorre do consenso doutrinário e jurisprudencial em
torno do tema, apenas acentua a inteira sujeição do Ministério Público ao
ônus material de comprovar a imputação penal consubstanciada na
denúncia. Com a superveniência da nova Constituição do Brasil,
proclamou-se, explicitamente (art. 5º, LVII), um princípio que sempre
existira, de modo imanente, em nosso ordenamento positivo: o princípio
da não-culpabilidade das pessoas sujeitas a procedimentos
persecutórios (Dalmo de Abreu Dallari, ‘O renascer do direito’,
Bushatsky. 1976, p. 94-103 ; Weber Martins Batista, ‘Liberdade
provisória’, Forense, p. 34, 1981). Esse postulado – cujo domínio de
incidência mais expressivo é o da disciplina da prova – impede que se
atribuam à denúncia penal conseqüências jurídicas apenas compatíveis
com decretos judiciais de condenação definitiva. Esse princípio tutelar da
Contudo, essa nova postura tanto jurisprudencial quanto legal não impede que,
ainda hoje, o subjetivismo judicial, decorrente da livre apreciação das provas, não
apresente seguros critérios elaborativos para seu controle de coerência, veracidade e
racionalidade.526
Por essa razão, não obstante se possa reconhecer um avanço naquela postura antes
destacada, melhor seria que o legislador infraconstitucional de 2008 mantivesse a redação
originária do projeto de reforma do tema da prova, que deu origem à Lei 11.690. Nele
estava fixado que o juiz formaria sua convicção apenas com as provas produzidas em
contraditório judicial, excluindo-se, de maneira absoluta, todo o material colhido em fase
investigativa ou sem contraditório. Esse talvez fosse o primeiro passo significativo para
romper, neste tema, com a estrutura e a cultura inquisitivas formadora do Código de
Processo Penal e presentes ainda em nossa realidade forense.527
Como se percebe, também por esse viés revela-se a ausência da presunção de
inocência neste âmbito da legislação processual penal codificada.
Capítulo III
Presunção de Inocência como
Direito Fundamental
528 Sobre o tema do “in dubio pro reo” em Roma, v. item 1.2.3.3.1 supra, e
para a Itália fascista, v. item 2.4.6 supra.
529 Sobre os amplos poderes investigatórios do juiz, no Código de Processo
Citando Ésquilo, na peça Agamenon, na passagem em que Zeus “abriu aos homens o
caminho da prudência, ao dar-lhes por lei: ‘sofrer para compreender’ (‘tô pathei
mathos’)”, FÁBIO KONDER COMPARATO aponta que “a compreensão da dignidade
suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande
parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os
homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante
de seus olhos; e o remorso pelas torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos
e as explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de
novas regras de uma vida mais digna para todos”.531
Como é de conhecimento histórico, a tendência econômico-expansionista dos
regimes fascista, nazista, franquista e salazarista, além de sua marcada característica
racista e despótica, levaram a raça humana à 2ª Guerra Mundial (1939 a 1945). Conflito
bélico que, por sua extensão e profundos danos – os registros históricos indicam 60
milhões de mortos (civis e militares) e 45 milhões de refugiados, como alguns de seus
malefícios –, serviu de marco para a afirmação internacional dos direitos humanos
através de tratados, convenções e organismos supranacionais.532
A técnica jurídica do positivismo dogmático nazifascista serviu de verniz,
pseudamente neutro e eficientista, a posições ideológicas violadoras do ser humano. No
nível interno, essa ideologia desaguou na construção de um sistema criminal legitimador
de violências, abusos e perseguições estatais, e, no nível internacional, no fortalecimento
de poderes totalitários que, inevitavelmente – séculos de história provam isso –, sempre
extravasam para a intolerância com os países vizinhos. Foi exatamente o que ocorreu
antes das duas Grandes Guerras Mundiais do século passado.
536 Por isso, já em seu artigo 1º, inserido no capítulo intitulado “Propósitos e
Princípios”, preceitua a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de
1945: “Os propósitos das Nações Unidas são: (...) 3. Conseguir uma
cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e
estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais
para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um
centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução
desses objetivos comuns”. Para completar e dar concretude àqueles
princípios, no art. 2º vincula-se cada Estado-membro aos seus
cumprimentos: “A Organização e seus membros, para a realização dos
propósitos mencionados no art. 1º, agirão de acordo com os seguintes
princípios: (...) 2. Todos os membros, a fim de assegurarem para todos
em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de
membros, deverão cumprir de boa-fé as obrigações por eles assumidas
de acordo com a presente Carta”. No sentido do constitucionalismo do
pós-guerra ter-se preocupado em garantir, em nível internacional e
nacional, uma pauta de direitos exigíveis pelo ser humano como forma
de superar qualquer ameaça de sua destruição por vontade de Estados
autoritários, v. Luigi KALB, La “ricostruzione orale” del fatto tra
“efficienza” ed “efficacia” del processo penale, Torino: Giappichelli, 2005,
pp. 109/112. No mesmo sentido, v. Giovanni TRANCHINA, Tutela della
collettività e garanzie individuali: perenne ambiguità del processo penale,
in Studi in ricordo di Giandomenico Pisapia, Milano: Giuffrè, 2000, v. 2 –
procedura penale, p. 746.
A comunidade internacional percebeu que se para evitar o surgimento de Estados
totalitários, deve evitar que as legislações internas desrespeitem os indivíduos e, por meio
do sistema criminal, perpetrem perseguições políticas e violações a direitos essenciais aos
cidadãos. Pequenas ditaduras nascem, no mais das vezes, com falsos argumentos de maior
controle do “mal” interno (crescimento da violência, em regra), caminham e crescem
pelos abusos e perseguições a seus opositores e “inimigos” (políticos, econômicos, sociais
ou raciais) e, após soberanas em suas “republiquetas”, lançam-se à guerra, sempre sob o
pretexto de proteção contra os “inimigos” internacionais que querem atacar “sua paz” ou
prejudicar o “bem estar” “conseguido” pelos seus cidadãos.
Nesse sentido, sobreleva a relação feita por NORBERTO BOBBIO entre as idéias de
“direitos do homem”, “democracia” e “paz”. Para esse autor, “sem direitos do homem
reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as
condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a
democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são
reconhecidos direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra
como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele
estado, mas do mundo”.537
537 Norberto BOBBIO, A Era dos Direitos, 9ª ed., Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 1. No sentido de ser ideal uma relação entre “paz”, “democracia”
e “direitos do homem”, pode-se ler no preâmbulo do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, da ONU: “Os Estados-partes do
Presente Pacto, Considerando que, em conformidade com os princípios
proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo, Reconhecendo que esses direitos decorrem
da dignidade inerente à pessoa humana, Reconhecendo que, em
conformidade com a declaração Universal dos Direitos do Homem, o
ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e
liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se
criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis
e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais,
(...)”.
Por isso, para ser atingida a paz (interna ou externa), princípio e fim do direito,
deve-se começar com a inclusão dos direitos humanos no ordenamento interno das
várias nações: única forma de se garantir um sistema normativo democrático e, portanto,
menos infenso a soluções bélicas para resolução de questões internas ou externas.538
Nesse novo contexto humanitário surgido no pós-guerra, houve a reafirmação
internacional da presunção de inocência como um dos primados juspolíticos mais
importantes para a constituição de nações livres e democráticas. Tal reafirmação foi feita,
formalmente, na Declaração Universal dos Direitos do Homem539 de 1948, inegável
marco do ressurgimento do humanismo no pós-guerra.
538 Com a exata compreensão dessa indissolúvel relação entre aquelas três
idéias (direitos do homem, paz e democracia) é que se entende por que,
sempre que se quer solapar a democracia, inicia-se pela vulneração de
seus direitos fundamentais (negando-os ou limitando-os). Tal supressão
(total ou parcial) sempre ocorre a pretexto de uma guerra (interna ou
externa) iminente (para os conflitos bélicos) ou do aumento da violência
urbana (para a violação interna e até para guerras civis). Assim, se deu,
por exemplo, no Império Romano (v. itens 1.2.3 e 1.2.3.1 supra), no
período medieval (v. itens 1.4.1 e 1.4.1.1), ao final do século XIX e início
do século XX (v. itens 2.3, 2.4.1 e 2.4.4 supra), na ascensão dos regimes
fascista e nazista, e, mais recentemente, nos governos militares da
América Latina. Em todas essas oportunidades, justificando na
necessidade de maior recrudescimento punitivo para proteção do povo
diante de inimigos (religiosos, políticos, econômicos, externos ou
internos), obtém-se um manipulado apoio popular originário do medo
perspicazmente incutido na sociedade, suprimem-se os direitos
fundamentais, amordaçam os meios de protesto ante as violências e os
abusos estatais internos, limitam a liberdade e, por fim, levam o povo à
guerra (civil ou internacional). A receita é conhecida e se repete na
história humana com uma triste e incompreensível freqüência.
539 Sobre essa Declaração da ONU como marco da internacionalização da
preocupação com os direitos humanos, v.: José Adércio Leite SAMPAIO,
Direitos fundamentais: retórica e historicidade, Belo Horizonte: Del Rey,
2004, pp. 246/247; Carlos WEIS, Direitos humanos contemporâneos,
São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 66/68; e Antônio Augusto Cançado
TRINDADE, A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil
(1948 - 1997): as primeiras cinco décadas, 2ª ed., Brasília: Universidade
de Brasília, 2000, p. 23.
Assim, a partir dessa Declaração de 1948, elaborada e promulgada pela Organização
das Nações Unidas, a presunção de inocência foi recolocada como direito essencial da
universalidade humana, a ser seguido e respeitado por todos os Estados-membros tanto
em sua regulamentação interna, como em sua relação com outros Estados.540
Se a fonte histórica e originária daquele preceito humanitário foi a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789,541 a partir de 1948
surge um novo marco de direito internacional como fonte próxima da presunção de
inocência para a humanidade: a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Preceito
internacional que se tornou fonte vinculativa dos direitos internos dos países
subscritores,542 vinculação inexistente em sua forma revolucionária precursora de 1789, e
muito mais afeito às necessidades de nosso tempo e às realidades dos Estados
contemporâneos.
A presunção de inocência deixa, portanto, de ter como referência internacional a
construção iluminista dos pensadores do século XVIII, muitas vezes tomada como
idealista e abstrata, para ter nos Tratados de Direitos Humanos do pós-guerra, todos
decorrentes daquela Declaração Universal, a origem mais moderna e vinculativa a
efetivar e qualificar aquele preceito humanitário como valor básico e universal de todos
os seres humanos, devendo ser incorporado e obedecido por todas as nações como direito
fundamental.
pp. 103/104.
A Corte Interamericana, por sua vez, tem competência consultiva e contenciosa,
sendo que para a submissão do Estado-parte à sua jurisdição é necessário reconhecê-la
expressamente, como feito pelo Brasil em 03 de dezembro de 1998, pelo Decreto
Legislativo nº 89.565 A Corte não aceita denúncias individuais, apenas feitas pela
Comissão ou por Estados.566 A Corte não se constitui em instância recursal de cada
Estado-parte, não a substitui e não integra o Poder Judiciário de nenhuma nação, porém
eventuais decisões que violem os direitos humanos podem a ela ser levados para punição
vinculante e obrigatória ao Estado-parte violador. A Corte, em casos de extrema
gravidade e urgência, ainda tem o poder de determinar medidas provisórias pertinentes
nos casos levados a seu conhecimento para evitar danos irreparáveis, por força do art.
63.2 da Convenção.567
PIOVESAN, Direitos cit., pp. 237/250. Esta última autora cita uma
providência provisória e urgente dessa Corte imposta ao Brasil no caso
do Presídio Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, “onde trinta e sete
internos foram brutalmente assassinados entre 1º de janeiro e 5 de junho
de 2002” (op. cit., p. 247 e nota 61).
O Brasil deve, por meio de seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, não
apenas implementar os direitos humanos previstos na Convenção Americana, mas
promover todos os meios e remover todas as barreiras para o seus plenos exercício e
fruição por todos os indivíduos. Não basta ao legislador pátrio, portanto, não elaborar
normas que os limitem, mas deve, se necessário,568 remodelar o sistema normativo e
fornecer organização institucional de modo a efetivar em sua plenitude os direitos
fundamentais nele incorporados e postos como metas de consecução juspolítica.569
Nossa atual Constituição da República veio pôr cobro ao mais longo período de
expressa e imposta privação das liberdades e das garantias essenciais ao cidadão, iniciado
com o golpe militar de 1964. Durante sua constância, foram vários os atos
governamentais a atingir todos os Poderes da República, sempre com o fito de retirar-
lhes qualquer sopro democrático e, de um modo geral, impedi-los de pensar ou agir de
modo contrário aos ditames impostos pelos então ocupantes do poder.
O Congresso, quando não teve seus trabalhos suspensos provisoriamente,572 era
manietado. Ao Supremo Tribunal Federal foi imposta a aposentadoria de alguns de seus
Ministros, em clara alusão, aos que ficaram e também aos demais integrantes do Poder
Judiciário, de como estavam limitados e como deveriam se orientar para aplicar e para
interpretar a Constituição. A Constituição de 1946 foi pronta e apropriadamente mudada
para outra mais conveniente aos desígnios dos detentores do poder, emergindo a Carta de
1967 e Atos Institucionais que recrudesciam ainda mais o sistema juspolítico.
Enfim, nossa atual Constituição teve uma dupla missão, qual seja: por fim ao
autoritarismo e àquele regime juspolítico antidemocrático e, outrossim, reinserir a nação
brasileira no cenário mundial da segunda metade do século XX; o qual primava pela
revalorização do ser humano em suas liberdades e conquistas sociopolíticas.
endereço www.cidh.oas.org.
572 Para demonstrar que o regime autoritário militar tentou mostrar sua força
Para uma coerência da linha expositiva do presente trabalho, não se pode deixar de
traçar um paralelo entre os regimes políticos autoritários de alguns países europeus na
primeira metade do século XX – no período das duas Grandes Guerras Mundiais – e o
regime militar instituído no Brasil a partir da revolução militar de 1964. Muito embora as
razões que determinaram os regimes autoritários europeus tenham sido diversas das
razões determinantes das “repúblicas militares” na América Latina, não se pode deixar de
extrair um ponto comum entre os dois períodos, qual seja, o cerceamento (total ou
parcial) dos direitos e das garantias do cidadão em prol de uma imposição da vontade
uníssona e arbitrária dos ocupantes do poder.
Esse ponto comum é essencial para se compreender o perfil humanitário da nossa
atual Constituição da República, pois esse perfil se explica a partir daquela redução de
liberdades individuais em paralelo com o encaminhamento mundial em busca de uma
revalorização do ser humano como centro das preocupações dos Estados.
No plano interno brasileiro após os primeiros instantes do Golpe Militar de 1964,
como sempre acontece para instauração de um novo regime político, foi necessária a
edição de uma nova Carta Constitucional que pudesse, a um só tempo, aparentemente
legitimar um governo de exceção e definir, ao menos em nível formal, as novas balizas
juspolíticas impostas ao povo brasileiro. Veio a lume a Constituição de 1967 e,
sucessivamente, cinco Atos Institucionais destinados a correções de rota na busca de uma
maior restrição, necessária para espancar determinados focos de resistência àquele
regime autoritário.
O Golpe Militar de 1964, como é comum a regimes autoritários, surgiu legitimado
sob o pretexto de garantir as instituições democráticas ao povo brasileiro, induzindo-o a
acreditar que aquele paternalismo de exceção seria passageiro e de transição. Ledo
engano, não vinha para ser transitório. Assim como todo regime autoritário, que promete
retirar dos cidadãos os seus mais elementares direitos para “salvá-los” de um mal
iminente (violência urbana, inimigo de estado, ou perigo institucional), ele não foi
passageiro, mas oportunista, com declarada tendência de se perpetuar no poder.
Os detentores do poder alegavam que os “progressos democráticos” por eles
instaurados sempre poderiam ser revertidos e, portanto, tornavam-se necessárias
mudanças e reformas constantes para garantir a longevidade da democracia por eles
instaurada. Veio o AI 1 (Ato Institucional nº 1), por obra de Francisco Campos, para
garantir que a revolução militar permanecesse pelo tempo necessário para que o processo
por eles instaurados fosse irreversível.573
Foram necessárias mais de duas décadas de intensa violência contra os cidadãos e as
instituições democráticas, de falta de liberdade e crescente controle ideológico, para que
os argumentos revolucionários se revelassem falsos e falaciosos. Foi necessário se
conhecer a “democracia dos arbitrários” para se perceber que a verdadeira democracia
não é um receituário fundado na falta de liberdade aliada a um pensamento diretivo
intransigente. Foi necessário se perderem várias vidas e as liberdades humanas mais
essenciais para se perceber que a verdadeira democracia não é um produto final perfeito,
mas um meio aberto e de busca coletiva por um processo constante e livre de realização
do ser humano.
A atual Constituição brasileira foi projetada, elaborada e promulgada no contexto
dos anseios de liberdade e redemocratização nacionais e em plena ascensão e consagração
internacional da proteção dos direitos humanos. Se as várias lutas de resistência interna
compunham os motivos mais fortes e próximos da população, os paradigmas
humanitários fixados pelos organismos internacionais deram o esteio e o direcionamento
necessário para o Brasil estabelecer uma nova ordem juspolítica.
Para tal desiderato atingir sua plenitude, era necessária a convocação de uma
Assembléia Nacional Constituinte, pois a redação de uma nova Carta Política era a única
forma de fixar, com a hierarquia legal necessária, quais eram os novos pressupostos,
objetivos, meios e princípios desejados para a nação brasileira. Somente em nível
constitucional se poderia implementar de forma cogente os novos padrões políticos,
sociais, econômicos e jurídicos.
579 Para José Afonso da SILVA, Curso de direito constitucional positivo, 29ª
ed., São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 92/93, esses princípios
fundamentais são denominados princípios político-constitucionais,
representando, portanto, escolhas políticas conformadoras de toda a
Constituição.
580 Ingo Wolfgang SARLET, Algumas notas em torno da relação entre o
princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na
ordem constitucional brasileira, in George Salomão LEITE (org.), Dos
princípios constitucionais: considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 223, ao
analisar como a positivação da dignidade da pessoa humana, como
princípio constitucional fundamental, relaciona-se com os direitos
fundamentais, bem destaca a “função instrumental integradora” e a
“função hermenêutica” daquele princípio não só para esses direitos, mas
para todo o ordenamento jurídico.
Nesse item não se procurará exaurir toda a extensão que o “conceito-chave”581 de
Estado Democrático de Direito tem para a nossa Constituição. O presente estudo não se
dirige ou comporta tarefa por demais extensa e merecedora de trabalho específico. A
preocupação está em se mostrar o que caracteriza um regime político desses moldes, sua
relação com os direitos fundamentais e, principalmente, o papel de cada instituição e
instituto, assim como dos cidadãos em geral, na construção de um Estado com aquele
perfil.
Para isso é necessário partir da visão de que o Brasil é uma República e, com isso,
fixar-se que o poder, em sua acepção mais larga, advém do povo e não da força militar, de
linhas hereditárias ou por escolha divina. Em nossa República, conforme preceitua o
parágrafo único do art. 1º da Constituição, “todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de seus representantes eleitos diretamente, nos termos dessa Constituição”.
Logo, há uma soberania popular que se faz presente através dos procedimentos por ela
escolhidos para ser representada.582
Nessa perspectiva de soberania popular no ápice do poder, a determinação de que o
Brasil seja um Estado Democrático de Direito garante que a nação seja guiada não por
homens, mas por leis (Estado de Direito) soberanamente escolhidas pelo povo, o que lhe
confere o atributo “democrático”.
583 José Afonso da SILVA, Curso cit., p. 119, é claro em apontar em que o
Estado Democrático de Direito excede os outros dois conceitos: “A
configuração do ‘Estado Democrático de Direito’ não significa apenas
unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de
Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva
em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na
medida em que incorpora um componente revolucionário de
transformação do ‘status quo’”.
584 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 27/30, expõe uma crítica ao
retrocesso, em matéria de direito fundamental, ocorrido no interior dos
regimes soviético, fascista e autoritário, não obstante fossem de “direito”,
e, ainda, em muitos outros regimes atuais, de diferentes tendências, da
Ásia e da África.
O Estado Democrático de Direito é a formula empregada a fim de haver uma
perfeita interação entre dois “princípios substantivos – o da soberania do povo e o dos
direitos fundamentais – e a mediatização dos princípios adjetivos da constitucionalidade
e da legalidade. Numa postura extrema de irrestrito domínio da maioria, o princípio
democrático poderia acarretar a violação do conteúdo essencial de direitos fundamentais;
assim como, levado aos últimos corolários, o princípio da liberdade poderia recusar
qualquer decisão política sobre sua modelação; o equilíbrio obtém-se através do esforço
de conjugação, constantemente renovado e actualizado, de princípios, valores e
interesses, bem como através de uma complexa articulação de órgãos políticos e
jurisdicionais, com gradações conhecidas”.585
585 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, p. 211. Nesse mesmo sentido, a favor
da vinculação efetiva e irrestrita do legislador às normas de direitos
fundamentais positivadas como forma de evitar que maiorias
parlamentares eventuais descumpram-nos, v. Martin BOROWSKI, La
estructura de los derechos fundamentales, tradução de Carlos Bernal
Pulido, Bogotá: Universidad Externato de Colombia, Série de Teoría
Jurídica y Filosofía del derecho nº 25, 2003, pp. 36/37 e 85. Comentando
o sistema italiano, que também possui tanto a concepção “democrática”
como a “de direito”, Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione: Teoria del
garantismo penale, 3ª ed., Bari: Laterza, 1996, item 57 A) 2, pp. 898/901,
em tradução livre: “É supérfluo recordar que o estado moderno nasceu
historicamente como estado de direito, antes de nascer como estado
democrático; como monarquia constitucional e não como democracia
representativa. Mais exatamente, nasceu como estado de direito limitado
por vedações (ou deveres negativos de não fazer) e ainda vinculado a
obrigações (ou deveres positivos de fazer). (...) mas também
axiologicamente, e não só cronologicamente, a limitação legal do poder
soberano precede a sua fundamentação democrático-representativa. A
primeira regra, de todo pacto constitucional sobre convivência civil não é
de fato que sobre tudo se deve decidir por maioria, mas que não se pode
decidir sobre tudo (ou não decidir), nem mesmo pela maioria. Nenhuma
maioria pode decidir a supressão (ou não decidir a proteção) de uma
minoria ou de um único cidadão. Sob este aspecto o estado de direito,
entendido como sistema de limites substanciais impostos legalmente aos
poderes públicos para a garantia dos direitos fundamentais, se contrapõe
ao estado absoluto, seja ele autocrático ou democrático. Também a
democracia política mais perfeita, representativa ou direta, é de fato um
regime absoluto e totalitário se o poder do povo é nela ilimitado. As suas
regras são, sem dúvida, as melhores para determinar quem pode decidir
e como deve decidir, mas não são suficientes para legitimar qualquer
decisão ou não decisão. Nem por unanimidade um povo pode decidir (ou
consentir que se decida) que um homem morra ou seja privado sem
culpa de sua liberdade, que pense ou escreva ou não pense ou não
escreva de um dado modo, que não se reúna ou não se associe com
outros, que se case ou que não se case com dada pessoa ou fique com
3.5.1.1. (segue): o cidadão como sujeito de deveres
ela indissoluvelmente ligado, que tenha ou não tenha filhos, que faça ou
não faça determinado trabalho, ou outras coisas semelhantes. A garantia
desses direitos vitais é a condição indispensável da convivência pacífica.
Por isso a sua lesão por parte do Estado justifica não simplesmente a
crítica ou o dissenso, como para as questões não vitais sobre as coisas
vale a regra da maioria, mas a resistência à opressão, até à guerra civil.
‘Sobre questões de resistência’, se disse, ‘não se deixa pôr à minoria’”.
586 Nesse sentido, v. José Afonso da SILVA, Curso cit., pp. 119/120.
587 Willis Santiago GUERRA FILHO, Processo constitucional e direitos
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 69/74, com farta referência
bibliográfica nacional e estrangeira.
O nomen juris do Capítulo I do Título II da Constituição da República relembra a
todos que nos dispositivos nele inseridos há “direitos e deveres individuais e coletivos”
(grifamos). Os deveres, naturalmente, decorrem dos direitos “na medida em que cada
titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do
outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações inter-humanas, com postura
democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo deve ser
exaltada como a sua própria”.589 Se o Estado Democrático de Direito é uma garantia aos
cidadãos, são estes, em suas atuações (públicas ou privadas), os grandes responsáveis por
sua efetivação em cada aspecto de seu conteúdo político-estrutural. Os direitos
fundamentais, para serem efetivados, dependem da atuação cotidiana dos agentes
privados (individuais ou coletivos) e dos agentes públicos (individuais ou institucionais).
Há, no Brasil, um vezo em se transferir responsabilidades pela não efetivação dos
dispositivos constitucionais. Isso ocorre, com freqüência, pelos agentes privados
(individuais ou coletivos) que, desconsiderando sua importante atuação privada na
realização dos ideais constitucionais, entendem que todas as escolhas por eles feitas no
texto legal ou devem ser efetivadas pelo Estado, ou sua não realização é culpa da falta ou
da insuficiência de leis. Agindo nessa “terceirização” ao “outro” de “suas”
responsabilidades, os cidadãos negam – não vendo ou fingindo não ver – um meio
relevante para a realização dos desígnios legais (constitucionais e infraconstitucionais),
qual seja, a sua atuação cotidiana. A atuação dos indivíduos, no exercício diário da
cidadania, é uma das formas mais importantes de transformar os preceitos
constitucionais de “law in the books” para uma “law in action”, para uma “living
constitution”.590
613 Preceitua o art. 5º, inciso III, da CR: “Ninguém será submetido a tortura
nem a tratamento desumano ou degradante”.
614 Sobre a teoria relativa e sua relação com a dignidade da pessoa
humana, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais: conteúdo
essencial, restrições e eficácia, São Paulo: Malheiros, 2009, item 5.4.2.
Para uma justificativa também baseada na teoria dos princípios, mas
entendendo a dignidade da pessoa humana como uma norma
constitucional de estrutura dupla (princípio e regra), v. Robert ALEXY,
Teoría de los derechos fundamentales, tradução de Ernesto Garzón
Valdés, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002,
pp. 135/138. Sobre o debate travado pelas teorias relativas e absolutas
sobre a dignidade da pessoa humana, v. importante trabalho de Ingo
Wolfgang SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988, 3ª ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004, pp. 124 e ss. Para uma negação da
dignidade da pessoa humana como princípio absoluto e ilimitado, v.
André Ramos TAVARES, Curso cit., pp. 514/517.
615 Sobre esse aspecto da relação entre dignidade da pessoa humana e
presunção de inocência, v. item 5.3.1 infra.
Um aspecto preliminar a ser enfrentado relaciona-se com as escolhas terminológicas
empreendidas no decorrer do trabalho. Assim, aceitando a distinção já clássica e cada vez
mais comum na doutrina, diferenciam-se direitos humanos de direitos fundamentais.
Embora não haja uma separação definida entre os conteúdos e conceitos dos direitos
humanos e dos direitos fundamentais, vem se generalizando uma aceitação doutrinária
de que os direitos fundamentais são a positivação nacional dos direitos humanos
reconhecidos internacionalmente. Essa introjeção nos ordenamentos nacionais não
provocam qualquer alteração na origem, objeto, finalidade, eficácia, extensão ou força
ética dos direitos humanos.616
616 Nesse sentido, v.: Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 35/36;
Willis Santiago GUERRA FILHO, Processo cit., pp. 42/43, de modo
especial, em nota 77; Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria
geral dos direitos fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 40; com pequenas ressalvas, Antonio E. PEREZ LUÑO, Los derechos
cit., pp. 43/51; Luis Maria DÍEZ-PICAZO, Sistema de derechos
fundamentales, 2ª ed., Navarra: Editorial Aranzadi, 2005, pp. 159/160.
Para um significativo estudo terminológico, não obstante o autor aceite
as expressões, para as finalidades de seu trabalho, como sinônimas, v.
José Adércio Leite SAMPAIO, Direitos cit., pp. 7/22. Também em estudo
terminológico específico, concluindo que se trata de sinônimos, v. André
de Carvalho RAMOS, Teoria cit., pp. 17/29. Fábio Konder COMPARATO,
A afirmação cit., pp. 56/57, entende que os direitos fundamentais são os
direitos humanos positivados, seja em nível nacional ou internacional.
José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., p. 391, assim distingue
direitos do homem e direitos fundamentais: “As expressões ‘direitos do
homem’ e ‘direitos fundamentais’ são frequentemente utilizadas como
sinónimas. Segundo sua origem e significado poderíamos distingui-las
da seguinte maneira: ‘direitos do homem’ são direitos válidos para todos
os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista);
‘direitos fundamentais’ são os direitos do homem, jurídico-
institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os
direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu
carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais
seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica
concreta”. Após ressalvar algumas debilidades na posição de Carl
Schmitt – para quem os direitos fundamentais são os direitos humanos
positivados constitucionalmente –, Robert ALEXY, Tres escritos sobre
los derechos fundamentales y la teoría de los principios, tradução e
apresentação de Carlos Bernal Pulido, Bogotá: Universidad Externado
de Colômbia, 2003, pp. 24/26, afirma ser aconselhável que os direitos
fundamentais sejam conceituados materialmente como os direitos
alçados a direitos positivos com o propósito e a intenção de dar uma
dimensão positiva aos direitos humanos, por conseguinte, completa o
constitucionalista alemão, “os direitos fundamentais ‘devem representar’
direitos humanos transformados em direito constitucional positivo” (nossa
tradução livre). Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 30/33, por sua
vez, aceita que direitos humanos são direitos morais que valem por sua
fundamentalidade e correção material, não por sua força vinculativa de
Os direitos fundamentais, portanto, compõem a essência do que um indivíduo deve
ter respeitado para ter sua dignidade plena, tal qual os direitos humanos historicamente
formados, reconhecidos e garantidos em nível internacional. Sua única diferença está no
âmbito em que se inserem, pois, ao ingressarem no ordenamento legal de um país os
direitos humanos passam a ser denominados “direitos fundamentais”, notadamente se são
positivados em nível constitucional.617 A mudança sofrida é apenas quanto à
denominação doutrinária, o direito tutelado não tem alterado seu fundamento ético, sua
força histórica ou sua finalidade de assegurar, de modo integral e por uma interação
conjunta, a dignidade humana de todo e qualquer cidadão. Claro que a força cogente
desses direitos será tanto maior quanto estejam ou não inseridos na Constituição, por isso
A presunção de inocência tem uma sina sempre mais difícil e sempre mais saborosa
para quem lhe deita atenção. No tocante a quase todos os outros preceitos processuais
penais mais diretamente ligados aos desígnios juspolíticos constitucionais é fácil saber se
estamos diante de um direito fundamental ou não. Para tanto, a tarefa imediata é
verificar se aquele preceito se encontra insculpido no Título II da Constituição da
República, denominado “Direitos e Garantias Fundamentais”. Se lá estiver o preceito
procurado, o legislador constituinte facilitou o trabalho, restando a tarefa de medir as
conseqüências daquela inserção no sistema processual penal.
Procurando em nossa Constituição, o investigador mais apressado dirá que a
presunção de inocência não é direito fundamental, uma vez que não encontrará aquela
exata expressão (“presunção de inocência”) prevista em sua literalidade naquele Título
constitucional, nem no capítulo dos direitos e deveres fundamentais e nem tampouco em
qualquer outro ponto da Carta. Nisso não errará. Mas, por mais paradoxal que seja, não
poderá afirmar que ela não esteja inscrita como direito e garantia fundamental do
cidadão no sistema constitucional brasileiro.637
27, com boa citação bibliográfica, e Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 50/53.
641 Eros Roberto GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação
do direito, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 71/83, com muitas
referências da doutrina alemã, notadamente de Friedrich Müller, afirma
que a “norma” é diversa de “texto normativo” e que este é apenas uma
fração daquela, que foi absorvido pela linguagem jurídica. Para aquele
autor (op. cit., p. 73) a “norma congrega todos os elementos que
compõem o âmbito normativo (= elementos e situações do mundo da
vida sobre os quais recai determinada norma)”. Mais adiante (op. cit., p.
79), afirma, agora com base em Canotilho: “‘Texto’ e ‘norma’ não se
identificam: o ‘texto’ é o ‘sinal lingüístico’; a ‘norma’ é o que se ‘revela,
designa’”.
642 Virgílio Afonso da SILVA, Princípios e regras cit., p. 616.
A partir do texto se compreendem e se extraem significados atuais e apropriados ao
caso concreto submetido à análise e, do mesmo modo, com as normas superiores podem
se conformar normas inferiores que dêem a maior organização e efetividade possíveis ao
significado contido nos enunciados superiores. Assim, não obstante o texto permaneça o
mesmo, a interpretação permite que dele se extraiam vários significados, até mesmo
porque qualquer texto pode ser escrito de várias formas, que deixem um ou outro ponto
de seu significado com maior ou menor realce.
A doutrina entende que um critério seguro para a conceituação de norma são as
“modalidades deônticas básicas” do mandado, da proibição e da permissão. Expressões
como “pode”, “proibido” e “deve”, quando postas em enunciados normativos ou em sua
redação estão implícitos, formam “enunciados deônticos”, modalidades do “dever ser”
inseridos no dispositivo normativo. “Nem todo enunciado normativo é um enunciado
deôntico, mas todo enunciado normativo pode ser transformado em um enunciado
deôntico”.643
O “enunciado normativo” é o texto, o conjunto lingüístico com o qual se forma o
dispositivo legal. A “norma” é o significado de um enunciado normativo e, como tal,
pode ser um conceito anterior àquele enunciado, uma vez que o texto escolhido pelo
legislador tem em vista atender ao significado que ele pretende imprimir e que, portanto,
pré-existe ao texto de lei. 644
Ao sair do campo da teoria geral da norma e ingressar no campo da “norma
fundamental”, dentre os critérios indicados pela doutrina para se verificar se uma norma
é ou não uma norma fundamental, o mais conveniente, para os efeitos do tema do
presente trabalho, é o critério formal.645 Esse critério está baseado na “forma de
positivação” feita pelo constituinte (legislador fundamental) na Constituição. Assim,
todos os “enunciados normativos” inseridos no capítulo dos direitos e garantias
fundamentais (arts. 5º a 17, CR) são “enunciados normativos de direitos e garantias
fundamentais” ou, dizendo de modo mais simples, “disposições de direitos
fundamentais”. Por esse mesmo critério, as “normas de direito fundamental” são “as
normas diretamente expressas por esses enunciados”.
Já foi exposto que a noção de “não consideração prévia de culpabilidade” foi uma
criação positivista do fascismo habilmente elaborada a fim de que, por meio de um
ataque técnico-jurídico sobre a palavra “presunção”, se atingisse a palavra “inocência”.
Afirmava-se, à época, que se não se pode dizer que o imputado seja culpado no início da
persecução penal, também não se pode afirmar seja ele inocente. Portanto, concluía-se
melhor afirmá-lo “não-culpado”; jamais inocente.647
Como também já foi exposto, nossa Constituição atual, promulgada após um longo
período de autoritarismo e forte redução dos direitos fundamentais, determinou ser o
Brasil um Estado Democrático (e Social) de Direito, constituindo um de seus primados o
respeito à dignidade da pessoa humana.648
Diante desses dois pontos destacados poderia surgir a seguinte perplexidade: não
obstante afirmar a dignidade da pessoa humana e fixar um longo e aberto catálogo de
direitos fundamentais, tudo em sintonia com os preceitos internacionais de direitos
humanos do pós-guerra, não haveria uma quebra sistêmica perpetrada pelo constituinte
ao ceder às tentações nazifascistas da fórmula da “presunção de não culpabilidade”?
657 Pelo que se pode colher dos anais constituintes, outras emendas
posteriores foram apresentadas sobre o tema. Emenda nº 1P16855-4, de
13 de agosto de 1987, do Deputado Bonifácio de Andrada, com a
seguinte redação: “Presume-se inocente todo o acusado, até que haja
declaração judicial de culpa”. Emenda ES21209-5, de 31 de agosto de
1987, do deputado Cunha Bueno, com a seguinte redação: “todo
acusado se presume inocente até que haja declaração judicial de culpa;
e tem direito a ser preservada, ao máximo possível, essa condição”.
Emenda nº ES29767-8, de 04 de setembro de 1987, do Deputado
Osvaldo Coelho, com a seguinte redação: “Ninguém será considerado
culpado nem identificado criminalmente antes do trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”. Em 04 de setembro de 1987, através da
emenda nº ES32071-8, o constituinte José Paulo Bisol, que fora o relator
da Comissão de Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, apresenta
emenda com texto idêntico ao constante da redação feita pela Comissão
em 15 de junho de 1987. Em 05 de setembro de 1987, os constituintes
Antônio Mariz e Nelton Friedrich apresentam um texto idêntico ao
sugerido no mês anterior por José Ignácio Ferreira. Na mesma linha de
repetição do texto de José Ignácio Ferreira seguem o Senador José
Richa “e outros”, na emenda nº ES33996-6, de 05 de setembro de 1987.
O “Projeto de Constituição”, de setembro de 1987, fruto da incorporação de várias
propostas de emenda, traz, no § 17 do art. 5º do Capítulo I – Dos Direitos Individuais e
Coletivos –, a exata redação proposta por José Ignácio Ferreira, na emenda nº 1P11998-7.
A mesma redação é mantida no § 17 do art. 6º do “Projeto de Constituição (A)”, da
Comissão de Sistematização, de dezembro de 1987, e no inciso LVIII do art. 5º do
“Projeto de Constituição (*) (B) - 2º Turno”, de agosto de 1988. Importante ressaltar, para
confirmar a manutenção do conteúdo material que se imprimia à norma jusfundamental,
que este último projeto citado, o único a ter índice remissivo, classificava o referido
inciso, não obstante tratar a redação do texto de “presunção de não culpabilidade”, sob a
epígrafe “presunção de inocência”. A mesma sugestão de José Ignácio Ferreira é mantida
no inciso LVII do art. 4º do “Projeto de Constituição (C) – Redação Final”, de setembro
de 1988, e no inciso LVII do art. 5º do “Projeto de Constituição (D) – Redação Final”,
aprovado pela Comissão de Redação, em reuniões nos dias 19 e 20 de setembro de 1988.
A reconstrução empreendida dos debates constituintes tem como finalidade
demonstrar que, desde o seu primeiro instante, na fase pré-Constituinte, as citações e
referências tanto à “presunção de inocência” quanto à “presunção de não culpabilidade”
foram feitas pelos constituintes em sinonímia. Conforme indicam os registros daquela
Assembléia, a atual redação se originou da sugestão de José Ignácio Ferreira, na qual
consta uma verdadeira identidade entre ambas as expressões.658
Pode-se afirmar, pelo exposto, dentro do maior rigor que nos foi possível, que a
mens legislatoris formadora de nossa atual Constituição colocou, em seu inciso LVII do
art. 5º, todo o conteúdo e força juspolítica da “presunção de inocência”. A mens
legislatoris transforma-se, inegavelmente, em mens legis fundamentalis. A Constituinte
incorpora o princípio fundamental humanitário concebido após o período das trevas da
Inquisição, revitalizado e revivificado como primado humano universal, pela
comunidade internacional, na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Não bastassem essas constatações de caráter genético, não se pode olvidar em
nenhum momento que a Constituição é um sistema e, como tal, deve apresentar uma
necessária coerência e inter-relação entre suas normas. Seria uma verdadeira contradictio
in re ipsa admitir-se a inserção, como um direito e garantia fundamentais do cidadão, da
“não consideração prévia de culpabilidade” do imputado, conforme concebida nos
moldes da Escola Técnico-Jurídica nazifascista. Máxime ao se observar que a
Constituição determina que o Brasil seja um Estado Democrático de Direito (caput do
art. 1º da CR), baseado na dignidade da pessoa humana (inciso III do mesmo artigo)659 e
na afirmação de que todos são iguais perante a lei, sendo assegurada a inviolabilidade da
liberdade (caput do art. 5º da CR) e a segurança jurídica decorrente da garantia do devido
processo penal (inciso LIV do art. 5º da CR).
664 Nesse sentido, Gilberto LOZZI, “Favor rei” e processo penale, Milano:
Giuffrè, 1968, pp. 10/11. Para uma referência ao primeiro texto do projeto
constitucional italiano de 1947 no qual constava a expressão “presunção
de inocência”, v. Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., p. 561, nota 25.
665 Nesse sentido, Francesco CARNELUTTI, Principi del processo penale,
Napoli: Morano, 1960, pp. 244/245, afirma que melhor que considerar
aquele preceito constitucional italiano (art. 27.2, citado) um “favor rei” é
considerá-lo “favor innocentiae”. Na linha desse autor italiano, inclusive
citando-o na mesma referência antes feita, colocou-se Santiago SENTÍS
MELENDO, In dubio pro reo, Buenos Aires: EJEA, 1971, pp. 130/133,
não obstante este último autor prefira tratar o instituto sob o nome de “in
dubio pro reo”. Mario PISANI, Introduzione al processo penale, Milano:
Giuffrè, 1988, p. 43, trata o art. 27.2 da Constituição italiana como se
fosse presunção de inocência, usando, não raro, e de modo proposital, a
expressão “presunção de não culpabilidade” como sinônima.
Não bastasse essa linha da estratégia doutrinária, que via no Estado de Direito
italiano um obstáculo a qualquer interpretação fascista daquele preceito inserido na sua
Constituição, firmou-se a convicção que, tecnicamente, não há diferenciação possível ou
juridicamente útil entre “inocente” e “não culpado”.666 Seriam elas “variações semânticas
de um mesmo conteúdo”,667 restando superada a distinção de conteúdo ideológico, pela
qual se desejava eliminar qualquer estado ou aspecto da inocência com a criação de uma
expressão (“não consideração prévia de culpabilidade” ou “presunção de não
culpabilidade”) desprovida daquela conotação juspolítica iluminista.668
Consciente dessa questão, a doutrina italiana se pacificou no sentido de expungir
qualquer resquício fascista limitador de seu dispositivo constitucional. Aproximando-se
as expressões, eliminou-se a dicotomia político-ideológica. O significado (norma de
direito fundamental) passou a ser aquele conferido historicamente à “presunção de
inocência”, não obstante o texto normativo contivesse outra expressão.
676 Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 166/167, prefere o termo
“perspectivas” subjetiva e objetiva à palavra “dimensão”, termo este mais
comum à doutrina. Preferimos utilizar o termo “dimensão” por ser mais
consensual, não obstante, para facilitação expositiva, utilizaremos
doravante como equivalentes àquele termo as expressões “perspectiva”
ou “aspecto”.
677 Nesse sentido, v.: José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., p.
1238; Robert ALEXY, Derechos individuales y bienes coletivos, in Robert
ALEXY, El concepto e la validez del derecho, 2ª ed., Barcelona: Gedisa
Editorial, 1997, p. 182; e Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p. 178.
Deixando de lado toda a polêmica doutrinária vicejante desde o final do século XIX
sobre direito subjetivo,678 não se pode deixar de reconhecer que os direitos fundamentais,
notadamente os voltados ao processo penal, têm como principal finalidade “conferir aos
indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, em sua maioria de natureza
material, mas às vezes de natureza processual e, conseqüentemente, limitar a liberdade
de atuação dos órgãos do Estado”.679 Nessa esteira, deve-se entender direito subjetivo em
um sentido amplo, “como posição jurídica subjectiva activa ou de vantagem”,
determinando “um ‘poder’ ou uma ‘faculdade’ para a realização ‘efectiva’ de ‘interesses’
que são reconhecidos por uma ‘norma’ jurídica como ‘próprios’ do respectivo titular”.680
683 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., pp. 1242/1245. Para o
constitucionalista português, com evidente base no pensamento sobre o
“sistema de posições jurídicas fundamentais”, de Robert ALEXY, Teoría
cit., cap. 4, item II, o direito a “actos negativos” se subdivide em três
outros direitos, quais sejam, (i) o direito ao não impedimento de
determinados atos por parte dos entes públicos (p.ex., o direito de
exprimir ou divulgar livremente qualquer pensamento, sem qualquer
impedimento ou limitação do poder público), (ii) direito à não intervenção
dos entes públicos em situações jurídicas subjetivas (p.ex., é proibida a
ingerência de autoridades públicas em correspondências ou
telecomunicações), e, por fim, (iii) o direito à não eliminação de posições
jurídicas (p.ex., direito à não eliminação da propriedade privada). Na
linha do constitucionalista luso, v., na doutrina nacional, Paulo Gustavo
Gonet BRANCO, Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais,
in Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Inocêncio Mártires COELHO, Gilmar
Ferreira MENDES, Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais,
1ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2002, pp. 140/142. Quanto a direitos a
ações positivas, CANOTILHO assevera que há direitos fundamentais
que garantem ao seu titular ações positivas estatais tanto de ordem
fática (p.ex., direito a atos fáticos para segurança nacional) quanto de
ordem normativa (p.ex., proteção do direito à vida pela edição de normas
penais). Esse autor, ressalvando uma certa obscuridade que envolve o
conceito de “liberdades”, difere deste o direito à liberdade física ou de
movimentos, o qual prefere denominar “direito de liberdade” – no singular
–, ligando esta noção à idéia de liberdade pessoal. Como “direito de
liberdades” – no plural –, por exemplo, indica a liberdade de religião ou
de culto, a liberdade de criação cultural, a liberdade de associação ou a
liberdade de consciência, para as quais o autor atribui posições
fundamentais subjetivas de natureza defensiva. Conclui, por fim, que
tanto o direito de liberdade quanto o direito de liberdades identificam-se
com as referidas ações negativas. As competências, por fim, consistem
em uma outra posição jurídica dos direitos fundamentais e que
asseguram que o indivíduo, titular daquele direito, pratique determinados
atos jurídicos com os quais poderá alterar posições jurídicas de outrem.
Nesse mesmo sentido, v. Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp.
179/180.
Os direitos fundamentais de primeira geração têm, portanto, seu “núcleo estrutural”
constituído por “posições jurídicas subjetivas consideradas fundamentais e atribuídas a
todos os indivíduos ou a categorias abertas de indivíduos”.684 Por serem essas posições
jurídicas radicadas em normas constitucionais atribuidoras de direitos essenciais à busca
de efetivação pacífica da dignidade humana em uma sociedade democrática, recebem o
nome de “direitos subjetivos fundamentais”, como que especificando os direitos
subjetivos que contenham aquele tipo de hierarquia jusfundamental.685
O direito fundamental, portanto, do ponto de vista do indivíduo, é um direito
subjetivo (fundamental) a lhe garantir uma posição de vantagem ou ativa em relação ao
Estado (destinatário daquela norma). Já do ponto de vista desse destinatário, o direito
fundamental é uma norma de “competência negativa”, no sentido de impedir ou limitar
suas possíveis atuações.686 O grau de exigibilidade ou de “justiciabilidade” daquele direito
é de intensidade variável e depende da normatividade de cada direito fundamental.687
Assim, por exemplo, na medida em que se asseguram aos indivíduos o direito ao devido
processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR) e o direito à inviolabilidade de sua casa (art. 5º,
inciso XI, CR), proíbe-se o Estado de aplicar pena àquele titular sem antes submetê-lo ao
processo justo ou, ainda, impede o ingresso de agentes policiais na residência alheia fora
das hipóteses legais. Para que haja limites exigíveis pelo indivíduo em face do
destinatário (em regra, público), é necessária a inscrição legal do direito para que se possa
melhor auferir seu “suporte fático amplo”.688
Sem se negar que exista entre indivíduo e Estado essa “relação de subjetividade”
inerente aos direitos fundamentais processuais penais, é importante destacar que a sua
aceitação, sem maiores considerações, tem contribuído para uma acomodação
doutrinária no âmbito processual. Acomodação representada pelo entendimento que os
direitos subjetivos fundamentais dirigidos ao processo penal serão realizáveis apenas e
tão somente com a abstenção de atuação estatal.
697 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 252/254, dissecando de modo analítico os
status sugeridos por JELLINEK, demonstra, servindo-se de trechos e
expressões do próprio texto deste último autor, que os direitos de defesa
inseridos, por JELLINEK e pela maior parte da doutrina, entre os direitos
integrantes do denominado status negativus têm caráter oscilante.
ALEXY indicou que o próprio JELLINEK reconhecia que aos direitos de
defesa – entre os quais se incluem os direitos fundamentais processuais
penais – eram necessárias prestações positivas do Estado, não sendo
suficiente a mera abstenção estatal. Como as prestações positivas do
Estado sempre foram inseridas no status positivus, o direito de defesa
oscilaria ora como integrante de um, ora como pertencente a outro dos
status. Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos
cit., pp. 172/174, e Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 6.7.2.2.
698 Vírgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., pp. 78/79, afirma
701 Quanto a esse primeiro plano funcional dos direitos subjetivos funcionais,
v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 119.
702 Sobre o tema, v. item 3.5.1 supra.
703 Konrad HESSE, Elementos cit., p. 235.
Fixada a pauta de direitos fundamentais como critério axiológico de comportamento
(individual e coletivo; público e particular), o Estado precisa se legitimar e legitimar seus
atos, notadamente em momentos de crise interna, mesmo que essa crise seja uma
violação do dever de comportamento de um cidadão por meio do cometimento de um
delito.
Funcionalmente, os direitos fundamentais processuais penais não têm nenhuma
importância prática para o cidadão, visto como ser individualizado, enquanto não houver
qualquer ato de persecução penal. Antes de iniciada a persecução, eles são apenas uma
previsão abstrata do sistema para aplicação futura e no instante em que se fizerem
necessários. Esse instante surge para os cidadãos quando estão submetidos à qualquer ato
de persecução penal. As normas jusfundamentais são criadas para a universalidade de
cidadãos, mas são efetivadas e utilizadas quando o cidadão, individualmente analisado, é
submetido a atos persecutórios.
Os direitos fundamentais processuais penais são valores superiores que foram
escolhidos pelo Estado Democrático e Social de Direito brasileiro como compromisso da
nação para com os organismos internacionais e, em outro sentido, como compromisso
estatal para com a universalidade de seus cidadãos (a coletividade) e, ainda, como
compromisso destes entre si. Se o programa político-constitucional consubstanciado nos
direitos fundamentais (processuais penais, inclusive) superou de há muito o Estado
Liberal, não há como se manter a visão individualista como a única em relação àqueles
direitos.
A perspectiva funcional, inicialmente referida, também precisa servir à superação
da visão individualista como a única a justificar os direitos fundamentais. Nesse caso, sem
esquecer a posição hierárquico-axiológica acima referida dos direitos fundamentais
processuais penais, deve-se tomar um redobrado cuidado com o seguinte ponto: os
direitos fundamentais processuais penais são elaborados e inscritos para o benefício de
todos e para a legitimidade da atividade persecutória estatal, embora sejam exercidos, em
regra, individualmente.
Sendo os direitos fundamentais processuais penais também direitos subjetivos,
ressalta-lhes a função de proteção ao interesse do indivíduo. Porém, são direitos
extraídos de uma conscientização útil e benéfica a todos. O melhor à coletividade é uma
persecução mais justa e equilibrada, na qual o Estado tem seus poderes controlados e
legitimados por escolhas de consenso.704 Esses direitos são de todos e foram inscritos por
todos constitucionalmente, sendo que só os exerce ou deles exige a efetivação aquelas
pessoas submetidas à persecução. O exercício individual daquele direito não deve
significar que o interesse e o valor que o inspiraram são exclusivamente individuais.
Como já assente pela doutrina,705 não se pode confundir o direito e seu conteúdo
com a sua fundamentação. ROBERT ALEXY assevera que um direito individual pode
estar justificado por um feixe de fundamentos heterogêneos e por trás de diferentes
direitos podem haver fundamentações totalmente diferentes. “Sobre a base de direitos
individuais e coletivos podem distinguir-se três justificações dos direitos. Um direito
pode ser justificado em geral ou em uma determinada situação (1) exclusivamente por
bens individuais, (2) tanto por bens individuais quanto coletivos e (3) exclusivamente
por bens coletivos”.706 Assim, conclui o jusfilósofo citado, o direito como posição jurídica,
já normatizado, pode ser um direito individual também quando justificado por bens
coletivos,707 sendo, por essa razão, acertado denominar os direitos individuais, de um
modo geral, como direitos subjetivos.708
A dimensão objetiva teve sua importância revelada quando da inscrição dos direitos
fundamentais sociais. Percebeu-se que os direitos fundamentais têm sua importância não
apenas pelas relações subjetivas (obrigações, direitos, deveres, liberdades, garantias) que
estabelecem, mas também pelo aspecto objetivo do disposto normativamente.720 Essa
dimensão objetiva conforma, informa e parametriza todo o ordenamento jurídico e todas
as ações públicas e particulares, tornando-se um complemento para a dimensão
subjetiva.721 Nesse sentido, é a base da ordem jurídica coletiva a estabelecer uma
cooperação e reciprocidade com o aspecto subjetivo da norma.722
731 “A defesa técnica, quando realizada pelo defensor público ou dativo, será
sempre exercida através de manifestação fundamentada”.
732 Sobre a necessidade de compreender a presunção de inocência para
751 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
116 e ss., e Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 80/85. No direito
brasileiro, conquanto denominando o efeito irradiante como “efeito
vinculante”, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp.
104/115.
752 Alguns autores denominam essa decorrência da dimensão objetiva como
762 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
146/149, e Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 81/83.
763 Os temas dos “deveres de proteção” e “organização e procedimento”
envolvem perspectivas e desdobramentos para os quais a doutrina
constitucional ainda não tem unanimidade. Alguns autores, dentre os
quais se pode citar Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 86/87;
Konrad HESSE, Elementos cit., pp. 278/281, itens 349/350; Ingo
Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 175/176; e Dimitri DIMOULIS e
Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 121, entendem que o “dever de
proteção” do Estado deve se dirigir à tutela dos direitos fundamentais
tanto em face de agentes públicos quanto em relação a atos de
particulares. Porém, esses autores não deixam de dar maior destaque
para essa atuação estatal no tocante às violações ou ameaças
originárias de agentes privados. Há autores, por sua vez, p.ex., José
Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 153; José Joaquim
Gomes CANOTILHO, Constituição e défice procedimental, in José
Joaquim Gomes CANOTILHO, Estudos sobre direitos fundamentais,
Coimbra: Coimbra, 2004, pp. 76/79; e Robert ALEXY, Teoría cit., pp.
435/436, que aplicam a concepção de “deveres de proteção” do Estado
apenas às ameaças ou violações originárias de particulares (“sujetos
jurídicos iguales”), em clara complementação aos efeitos horizontais já
referidos no texto. Esse último constitucionalista luso citado deixa a
categoria dos “direitos de defesa” à atuação positiva do Estado em face
de violações ou ameaças perpetradas pelos poderes públicos. José
Carlos Vieira de ANDRADE, op. cit., p. 153, por outro lado, afirma que a
“dimensão organizativa e procedimental” está em parte relacionada às
garantias institucionais e, no tocante aos particulares, diria respeito ao
“dever de proteção”. Como se vê, a resolução, ou até mesmo a
exposição completa, das divergências doutrinárias sobre o tema
extravasa em muito o âmbito do presente trabalho. Assim, aceitar-se-á
como critério diferenciador entre “deveres de proteção” e “organização e
procedimento” o objeto da prestação positiva por parte do Estado. Isto
significa dizer que não se fará diferença quanto à natureza (pública ou
privada) da pessoa (potencial ou efetivamente) violadora dos direitos
fundamentais, mas se utilizará o tipo de prestação que cabe ao Estado
provedor proporcionar para garantir e promover esses direitos.
O dever de proteção estatal, como desdobramento da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, nasceu da constatação irrefragável de que para a consecução desses
direitos não basta uma abstenção do Estado, é necessária sua atuação. Não uma atuação
invasiva ou lesiva ao âmbito de liberdade dos indivíduos e que os direitos fundamentais
de primeira geração (direitos de defesa) vieram para evitar, porquanto tal atuação não
garante ou promove os direitos fundamentais, mas os destrói. A ação positiva que se
espera do Estado com a concepção de “deveres de proteção” deve ser no sentido de não
apenas garantir, mas também de atuar para prevenir eventuais lesões ou reduções
inconstitucionais dos direitos fundamentais.
No dizer de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, o Estado deixa de ter a postura
de inimigo e passa a ser o “Estado-amigo dos direitos fundamentais ou, pelo menos, do
Estado responsável por sua garantia efectiva”.764 Ele deixa de ser mero respeitador do
conteúdo dos direitos fundamentais, em atuação notadamente de abstenção, para ser seu
promotor e protetor não apenas em face dos vários órgãos públicos, mas sobretudo em
face de ataques (efetivos ou potenciais) de particulares.765
O Estado deve passar, notadamente em seu âmbito legislativo, mas não apenas nesse
âmbito, a ser inspirado pelo “princípio de ‘proibição de défice’ (Unterma?verbot), nos
termos do qual o Estado está obrigado a assegurar um nível mínimo adequado de
proteção dos direitos fundamentais, sendo responsável pelas omissões legislativas que não
assegurem o cumprimento dessa ‘imposição genérica’”.766 Na sua tarefa de “observar e
proteger” os direitos fundamentais o Estado deve atuar na “prevenção de riscos”, no
fomento à “segurança” e, se for o caso, chegando a “proibir” condutas a eles lesivas.767
150; Konrad HESSE, Elementos cit., pp. 287/288, itens 358/360; e Jorge
Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 84/85.
778 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 456/458.
779 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 3.2.4.2, trata os
783 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
152 /153. Tal necessidade já foi afirmada pelo Supremo Tribunal
Federal, em voto da lavra do Min. Gilmar Ferreira Mendes, in verbis: “Tal
concepção legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a
observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do
Poder Público (‘direito fundamental enquanto direito de proteção ou de
defesa – Abwehrrecht’), mas também a garantir os direitos fundamentais
contra agressão propiciada por terceiros (‘Schutzpflicht des Staats’)
[HESSE, Konrad. ‘Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik
Deutschland’. 16. ed. Heidelberg, 1988, p. 155-156]. A forma como esse
dever será satisfeito constitui, muitas vezes, tarefa dos órgãos estatais,
que dispõem de alguma liberdade de conformação [HESSE, Konrad.
‘Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland’, cit.
p. 156]. Não raras vezes, a ordem constitucional identifica o dever de
proteção e define a forma de sua realização. A jurisprudência da Corte
Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de
que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do
Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção
desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão
ensejada por atos de terceiros [Cf., a propósito, BverfGE, 39, 1 e s.; 46,
160 (164); 49, 89 (140 e s.); 53, 50 (57 e s.); 56, 54 (78); 66; 39 (61); 77
170 (229 s.); 77, 381 (402 e s.); ver, também, DIETLEIN, Johannes. ‘Die
Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten’. Berlin, 1991, p. 18].
Essa interpretação da Corte Constitucional empresta sem dúvida uma
nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado
evolua da posição de ‘adversário’ para uma função de guardião desses
direitos [Cf., a propósito, DIETLEIN, Johannes. ‘Die Lehre von den
grundrechtlichen Schutzpflichten’, cit., pp. 17 e s.]. É fácil ver que a idéia
de um dever genérico de proteção fundado nos direitos fundamentais
relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a
ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos
desses direitos sobre toda a ordem jurídica [von MÜNCH, Ingo.
‘Grundgesetz-Kommentar, Kommentar zu Vobemerkung’ Art 1-19, Nº
22]. Assim, ainda que não se reconheça, em todos os casos, uma
pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a
identificação de um dever deste de tomar todas as providências
necessárias para a realização ou concretização dos direitos
fundamentais [von MÜNCH, Ingo. ‘Grundgesetz-Kommentar, cit.]. Os
direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como
proibições de intervenção (‘Eingriffsverbote’), expressando também um
postulado de proteção (‘Schutzgebote’). Utilizando-se da expressão de
Tomando como objeto de análise a generalidade dos direitos fundamentais
processuais penais, percebe-se que toda aquela necessidade de reestruturação
organizacional e normativa torna-se, no Brasil, imprescindível e premente. A vigência de
um código de processo penal de estrutura inquisitivo-fascista impede e corrói,
paulatinamente, todas as conquistas constitucionais.784 Isso não é novidade e vem sendo
proclamado, sem sucesso, desde 1988, com a entrada em vigor da atual Constituição.
Ocorre, contudo, que, passados mais de 20 anos, o sistema processual penal não só
não sofreu alteração estrutural significativa, na busca de uma efetivação completa
daqueles direitos processuais, como tem produzido o efeito contrário, qual seja: os
dispositivos constitucionais estão sendo interpretados conforme a lei processual penal
infraconstitucional. Em verdadeira ilogicidade sistêmica, a inércia cultural de parte
significativa da doutrina e da jurisprudência, aliada a uma inconfessada – e, às vezes,
inconsciente – mentalidade repressiva, têm levado a um constante e progressivo
esvaziamento de toda a afirmação e efetivação dos direitos constitucionais.785
Para a “teoria dos princípios”, toda a espécie de norma, que garanta um direito – e,
por conseqüência, imponha um dever –811a ser cumprido na maior medida possível e
diante das condições fáticas e jurídicas do caso concreto, tem estrutura normativa de
“princípio”.812 Compõem o nível dos princípios todos aqueles que possam ser tidos como
relevantes, como argumentos ponderáveis em uma decisão sobre matéria
jusfundamental. No campo abstrato, para integrar tal nível normativo, não importa se o
princípio está atribuído em norma que trate de direito individual e/ou coletivo, se ele
será favorável ou contrário à determinada justificação constitucional. Basta que possa
contribuir de maneira correta com a formação de uma argumentação jusfundamental.813
834 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 292/297; Dimitri DIMOULIS e Leonardo
MARTINS, Teoria geral dos direitos fundamentais, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, item 9.2.4.2; e Martin BOROWSKI, La estructura
cit., p. 120.
835 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit., p. 149,
840 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 298/300, e Virgílio
Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., itens 3.3, 3.3.2, 5.4, 5.7,
passim.
841 Nesse sentido, v. Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 133/134.
Para os adeptos da teoria restrita,842 a redução do suporte fático é feita a priori e no
instante em que se concebe toda a extensão e conteúdo do “âmbito de proteção” e das
espécies de restrições aceitáveis (constitucionalmente justificáveis). Assim, a partir da
posição restrita de suporte fático, excluem-se determinadas ações, estados ou posições
jurídicas como passíveis de integrar a proteção da norma, mesmo no campo abstrato. Essa
exclusão a priori – e esse ponto é o que permanece irrespondível por seus adeptos – faz-
se muitas vezes de modo intuitivo e em significativos espaços dos bens da vida. Não
obstante se utilizem de métodos interpretativos (p.ex., o histórico-sistêmico), do critério
da especificidade do tema tratado pela norma, estabelecendo-se prioridades axiológicas e
excluindo determinadas variáveis, ou, ainda, baseiem-se em leis gerais, o que remanesce
carente de uma definição mais precisa e clara é como se formam esses modelos que
justificam as exclusões a priori.843 Exclusões que, de ordinário, ocorrem no “âmbito de
proteção” por meio da eliminação de determinada situação ou de determinado grupo de
pessoas da esfera de proteção normativa. Porém, também pode haver exclusões a priori
de situações por meio da ampliação da esfera da “intervenção/inércia”, de modo que gere
uma maior limitação do direito fundamental. Isso ocorre, p.ex., quando se amplia
Friedrich Müller, e das leis gerais como meio de excluir a priori situações
e posições jurídicas e fáticas do suporte fático, v. Robert ALEXY, Teoría
cit., pp. 300/311. Para uma exposição crítica sobre a teoria de Müller, a
exclusão de determinadas variáveis e estabelecimento de prioridades
axiológicas, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item
3.3.1 e seus subitens.
indevidamente uma “cláusula restritiva” inserida na norma constitucional,844 ou quando
se desconsidera a exigência constitucional (“reserva de lei”) de que a restrição seja feita
com base em lei ainda não existente.845
Um exemplo daquele “corte inicial” (exclusão a priori) no suporte fático, com base
em critérios argumentativos excludentes de várias posições jurídicas merecedoras de
proteção jusfundamental, pode melhor ilustrar o método restritivo dessa linha teórica. O
exemplo se dirige ao princípio da presunção de inocência, não obstante antecipe o que
será melhor especificado adiante.
Não obstante a construção legislativa não tenha sequer feito referência à teoria
restrita do suporte fático, ou a qualquer autor ou doutrina constitucional a respeito, o
antigo dispositivo da Lei 8.072/90, denominada Lei dos Crimes Hediondos, que vedava a
concessão de liberdade provisória (pelo revogado inciso II do art. 2º da referida lei), é um
exemplo da costumeira tendência nacional (consciente ou inconsciente) pela teoria
restrita.
item 3.3.2.
Assim, nessa concepção ampla do suporte fático, tanto o “âmbito de proteção”852
como a “intervenção”853 são tomados, igualmente, da forma mais abrangente possível, a
fim de que eventual redução seja feita no instante de se chegar ao “direito definitivo”,
determinado em face do caso concreto.854
Como se vê, o exame individualizado tanto do “âmbito de proteção” quanto das
possíveis “intervenções” é fundamental para a compreensão do conteúdo essencial da
norma.
Gonet BRANCO, Curso cit., p. 286, e Robert ALEXY, Teoría cit., p. 312.
Demarcar a extensão do “âmbito de proteção” é uma operação mental para
construção de um espaço juspolítico ideal àquele âmbito. Não significa que o direito
fundamental posto irá se realizar nessa extensão, apenas que o processo para se extrair,
para o caso concreto, o “direito definitivo” do direito prima facie deverá ter a base mais
ampla possível. O mesmo se dará, como se verificará no item seguinte, com a análise
ideal das intervenções. Também essas devem ser tomadas da forma mais ampla possível
nesse instante inicial do processo de materialização do princípio fundamental prima facie
em direito definitivo, diante do caso concreto.
Essa forma ampla de se conceber o “âmbito de proteção” traz inegáveis benefícios
porquanto estenderá as margens de proteção, ao menos no momento inicial (prima
facie), para os direitos fundamentais.861 O que não pode ser tido como absolutização desse
direito.
De fato, há uma expansão de seu conteúdo objetivo e subjetivo no maior grau
possível, porém se sabe que na sua realização, ou seja, na extração do “direito definitivo”
para o caso concreto, de ordinário, aquele âmbito será reduzido pelas inevitáveis
intervenções legítimas (restrições). Intervenções que, para serem legítimas, decorrem de
um processo de sopesamento em nível legislativo abstrato. No caso do presente trabalho,
tal medida está representada por uma norma processual penal infraconstitucional que já
tenha se mostrado, no âmbito legislativo, proporcional e constitucionalmente conforme.
Como se desenvolve mais detalhadamente no próximo capítulo, o “âmbito de
proteção” da norma-princípio da presunção de inocência deverá também, neste instante
prima facie, ter a maior amplitude possível.862 Assim, não há mais lugar para se procurar
um único conteúdo ou conceituação para a expressão do constituinte inserida no inciso
LVII do art. 5º da Constituição da República. Pelos novos papéis desempenhados pelos
princípios fundamentais, não cabe mais se discutir se a presunção de inocência deverá ser
compreendida como “in dubio pro reo”, ou “favor libertatis”, ou “favor dignitatis”, ou
“favor rei”, ou como questão político-ideológica que diferencie a “presunção de não-
culpabilidade” da “presunção de inocência”, ou, ainda, que a entenda como “norma de
juízo” ou “norma de tratamento” ou “norma probatória”.
Na estruturação ampla do “âmbito de proteção” da norma fundamental da
presunção de inocência– sempre repetindo que este é apenas o seu primeiro passo de
concretização, no instante prima facie e de concepção do “ótimo” da proteção normativa
–, o que há é uma cumulação de todos aqueles significados, sem exclusão de nenhum. A
construção do “âmbito de proteção” não se dá pela alternativa “ou...ou...ou”, mas é uma
construção aditiva, nos moldes “e...e...e”.
861 Esse atributo tem sido visto por muitos como ponto frágil da teoria ampla
do suporte fático, pois, afirmam, promete-se muito (no instante prima
facie) e se garante pouco (no instante definitivo). Para resposta a essa
crítica e outras mais, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 313/320.
862 Sob o âmbito de proteção em sentido amplo para a presunção de
866 Trata-se, neste ponto, apenas de restrição, uma vez que a violação
estatal, como intervenção não permitida, é por ambas as teorias rejeitada
como método de redução dos direitos fundamentais porquanto carente
de fundamentação constitucional.
867 Para uma análise da teoria interna, com críticas e ponderações às suas
A relação entre a conformação legal de um direito e sua restrição por meio de lei é
um tema complexo que foge aos limites do presente trabalho. Teoricamente, há uma
diferença entre “normas legais restritivas” e “normas legais conformadoras”. Aquelas
“limitam ou restringem posições que, ‘prima facie’, se incluem no domínio de protecção
dos direitos fundamentais”. As leis conformadoras são normas que “completam,
precisam, concretizam ou definem o conteúdo de protecção do direito fundamental”.878
A conformação (ou configuração) pressupõe, portanto, “uma insuficiência ou um déficit
material do direito fundamental que impossibilita a sua máxima optimização ou
prejudica a possibilidade de aplicação de seu sentido prescritivo”.879
880 Nesse sentido, v., por todos, Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 321/329, e
Peter HÄBERLE, La garantía del contenido esencial de los derechos
fundamentales: una contribuición a la concepción institucional de los
derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley, tradução de
Joaquín Brage Camazano, Madrid: Dykinson, 2003, parte IV, item 3.
881 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 328.
882 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
887 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 272/274. Esse mesmo autor, sintetizando
o antes referido por ele em várias passagens de sua obra (p.ex., op. cit.,
pp. 279/280), afirma que “os direitos fundamentais, como direitos de
nível constitucional, podem ser restringidos apenas por meio de, ou
sobre a base de, normas de nível constitucional” (op. cit., p. 277) -
traduzimos.
888 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., p. 277.
889 As contradições normativas serão tratadas no próximo item 4.4.3.1.3 e
seus subitens.
890 Sobre o tema da incidência da presunção de inocência na revisão
902 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 47. Nessa mesma
passagem o autor aponta que há várias polêmicas sobre os
denominados “conflitos normativos”, inclusive com bibliografia a respeito.
Para nós, no presente estudo, preferimos usar a expressão “contradição
normativa” para referir o gênero dos possíveis choques de normas.
Quanto ao mais, seguimos uma tradução das expressões escolhidas por
Robert Alexy. Usamos a expressão “conflito” quando só normas do tipo
“regra” participarem da contradição normativa e reservamos a expressão
“colisão” para quando houver princípios envolvidos, seja na hipótese
“princípio versus princípio” seja na situação “princípio versus regra”. Há,
ainda, mais um esclarecimento sobre o corte temático de um trabalho
voltado apenas à área processual penal: no presente estudo, trataremos
apenas das denominadas “colisões em sentido amplo”. Como asseveram
Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO e Paulo Gustavo
Gonet BRANCO, Curso cit., pp. 332/333, com expressa referência a
Robert Alexy, as colisões desse tipo amplo são aquelas que “envolvem
os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por
escopo a proteção de interesses da comunidade (...) que envolvem
direitos fundamentais e outros valores constitucionalmente relevantes.
(...) Da mesma forma, não raro surgem conflitos entre as liberdades
individuais e a segurança interna como valor constitucional”.
Como para a “teoria dos princípios” as regras são normas que explicitam
direitos/deveres definitivos cuja aplicação se faz pela forma “tudo ou nada”, sendo
irrestringíveis sempre que houver conflito entre regras, a solução, por coerência, dá-se
pela exclusão de uma delas do ordenamento. Essa exclusão ocorre motivada pela perda de
validade da regra ou pela criação de uma “cláusula de exceção”. Uma ou outra solução
dependerá do nível da incompatibilidade (total ou parcial) entre as regras.
Se os conteúdos de ambas as regras são totalmente excludentes, a regra inaplicável
será declarada inválida, devendo ser excluída do ordenamento. Se, por sua vez, a
incompatibilidade é apenas parcial em suas conseqüências jurídicas, pode ser formada
uma “cláusula de exceção” em uma delas.903 As soluções, portanto, para o conflito entre
regras, ou é a inserção de uma “cláusula de exceção”,904 ou a declaração de invalidade de
uma das regras em conflito.905 Exemplos para essas duas situações podem auxiliar na
compreensão.
906 A previsão encontra-se no inciso XI do art. 5º, CR, e está assim disposta:
“XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante
delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial”.
907 Preceitua o atual art. 186 e seu parágrafo único: “Art. 186. Depois de
909 Critérios citados por Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 2.2.3.1, e, quanto aos dois primeiros, também por Robert ALEXY,
Teoría cit., p. 88.
910 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 49.
911 Sobre as características das normas-princípios e sua tendência de
912 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 92; José Joaquim Gomes CANOTILHO,
Direito Constitucional cit., pp. 1256/1257; Virgílio Afonso da SILVA,
Direitos fundamentais cit., item 2.2.3.2; e Jorge Reis NOVAIS, As
restrições cit, pp. 326/328.
913 Sobre o sopesamento ser o meio de solução de colisões entre princípios
Como é intuitivo supor, não há apenas colisões entre princípios e conflitos entre
regras, mas, devido à complexidade normativa do sistema jurídico, também ocorrem
colisões entre princípios e regras. Contudo, é necessário um cuidado redobrado nesse
caso de contradição normativa, pois não é possível a aplicação pura e simples dos
métodos anteriores de resolução de conflitos apenas entre regras ou de colisões apenas
entre princípios.
933 Nesse sentido, Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item
2.2.3.3.
A atual Constituição, em dois dispositivos,934 assegura o princípio do juiz natural, no
qual, por sua vez, alguns doutrinadores inserem a imparcialidade judicial.935 A
imparcialidade também é assegurada de maneira implícita em outras normas
fundamentais como o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR) e o princípio
acusatório que, também incorporado pelo texto constitucional em vários dispositivos,
tem como uma de suas principais características a de distinguir as funções de acusar,
defender e julgar e as atribui a pessoas distintas.936
Não obstante essa realidade constitucional, promulgou-se lei para dispor “sobre a
utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas” (Lei 9.034/95), denominada, impropriamente, “Lei do Crime
Organizado”. Nessa lei, definiu-se que, em havendo “o acesso a dados, documentos e
informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais” (inciso III do art. 2º) e “ocorrendo
hipótese de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será
realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça” (caput do
art. 3º, com nosso destaque). Essa regra prevista no citado artigo 3º entrou em colisão
com o princípio da imparcialidade judicial. Surgiu, portanto, uma colisão entre princípio
(da imparcialidade) e regra infraconstitucional (caput do art. 3º).
934 Inciso XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”) e inciso LIII
(“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente”), ambos do art. 5º da Constituição.
935 Sobre o princípio do juiz natural compreender a garantia da
937 Nesse ponto, v., por todos, v. o trabalho de Geraldo PRADO, Sistema
acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais,
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, item 4.1.
Necessário ressaltar que, na área criminal, tanto em seu âmbito penal quanto
processual penal, por força das normas constitucionais938 que determinam a necessidade
de previsão legal anterior à autorização/execução de qualquer restrição a direito
fundamental, as hipóteses de colisão entre princípio e regra é o que de ordinário
ocorre.939
Espécie de colisão que se dá das duas formas antes especificadas: a primeira, na
verificação pelo Judiciário da constitucionalidade de uma regra infraconstitucional,
elaborada em decorrência de reserva legal (simples ou qualificada) ou para necessidade
de conformação ou de regulamentação, pelo método do sopesamento (ponderação); a
segunda, por força da verificação da proporcionalidade lato sensu de uma regra
infraconstitucional que, embora em tese seja constitucional, não pode ser aplicada de
modo abusivo, no caso concreto. Tanto em uma quanto em outra hipótese citada cabe ao
Judiciário o papel preponderante de verificar a existência da justificação constitucional
para a intervenção, representada por uma lei infraconstitucional.
4.5. Limites das restrições
938 Prevista uma de modo genérico para todas as áreas da vida (art. 5º,
inciso II, CR – “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei”), e especificamente para o campo material
penal (art. 5º, inciso XXXIX, CR – “não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal”). Para o campo
processual penal, mesmo que de modo menos expresso, ainda
encontramos um reforço da exigência da legalidade por influxo do
princípio do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR – “ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”), notadamente em sua feição material voltada a essa área jurídica,
e denominada devido processo legal penal. Sobre o tema da legalidade
no devido processo penal, v. Pedro Juan BERTOLINO, El debido
proceso cit., pp. 63/70.
939 Sobre o pressuposto da legalidade formal e material para o exame da
proporcionalidade em sentido lato, v. nossos comentários no item 4.5.1.1
infra.
Para o presente trabalho, importam duas de modo especial, a proporcionalidade e o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Ambas as formas de limitação não estão
expressas no ordenamento constitucional brasileiro, mas inferidas uma vez que se está
diante de um Estado Democrático (e Social) de Direito, no qual há primazia dos direitos e
garantias fundamentais.940
963 Artigo 5º, inciso XLIII, CR: “a lei considerará crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura (...)”.
964 Artigo 5º, inciso LXIII, CR: “o preso será informado de seus direitos, entre
973 Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., capítulo I, itens 1.2 e 1.3, após esclarecer
que a “legalidade estrita” deriva do “convencionalismo penal”, sendo o
primeiro elemento constitutivo do modelo garantista, transpõe-na ao
processo penal por meio do segundo elemento desse modelo garantista,
denominado por ele como “cognitivismo processual”, o qual, por sua vez,
vem complementar/assegurar aquela legalidade estrita e deve ser
compreendido como “jurisdicionalidade estrita”.
974 Maiores considerações sobre a formação ideológica dos magistrados e a
141/142.
976 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação das decisões
977 Nesse sentido, v. Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione cit., pp. 616/618, e
Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., pp. 80/86.
Sobre a interferência da mídia na presunção de inocência como “norma
de juízo”, por meio de “juízos paralelos” que violam aquele direito
fundamental ao influírem na decisão judicial, v. item 5.5.1.1 infra.
978 Nesse sentido, v. Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO,
Proporcionalidad cit., p. 142.
979 Nesse sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação
981 Sobre a idéia de que o meio adequado é aquele que contribui e é apto a
colaborar com a realização do fim, mas não uma garantia de sua
realização plena, v., com citações bibliográficas nesse sentido, Virgílio
Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 4.4.2, e também Dimitri
DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit., pp. 207/210.
982 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., p. 156.
983 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., p. 157.
984 Conforme previsto no art. 2º, § 4º, da Lei 8.072/90.
Nessa constatação de eficiência, é necessário se considerar critérios objetivos como a
quantidade e a qualidade do meio em relação ao fim. No processo penal, tais
características devem ser levadas em conta não para que se exclua definitivamente um
meio como idôneo, mas para que, ao se passar ao próximo ponto (a “necessidade”), essas
características (quantitativa e qualitativa) dos meios e seus diferentes graus de eficiência
sejam tomadas em consideração.985
Importante, ainda, destacar que, no exame da idoneidade do meio, para muitos
autores não se pode deixar de considerar tanto esses aspectos objetivos, já destacados
(quantidade e qualidade), quanto os aspectos subjetivos. Notadamente no processo penal,
campo no qual deve preponderar o exame casuístico da restrição do direito fundamental
em face de uma pessoa específica.986
O exame da adequação deve ser feito de modo individualizado a cada cidadão titular
do direito a ser restringido. O sujeito passivo da medida restritiva deve ser identificado e
suas características devem ser consideradas no exame da idoneidade do meio tanto no
instante que se requer a medida, quanto no da decisão que a julgue (deferindo-a ou
não).987 A não individualização geraria uma maior dificuldade no instante de se avaliar a
idoneidade da medida requerida. Ainda integra a preocupação do aspecto subjetivo, na
avaliação da idoneidade, que a medida seja determinada em face de uma pessoa certa,
não seja estendida a outrem sem um novo exame de proporcionalidade (em todos os seus
pressupostos e requisitos) e, também, que uma medida não seja indeferida para uma
determinada pessoa porque se mostra inidônea em face de outra.988
Somente após passar pelo crivo anterior da adequação é que uma norma processual
penal restritiva poderá ter examinada a sua necessidade, segundo requisito da
proporcionalidade lato senso. A adequação é um filtro seletivo em relação à necessidade,
só será necessária uma medida que antes se mostrou idônea.
Diante dos meios declarados idôneos procede-se a um exame comparativo entre eles
para se determinar qual é o necessário. Quando se fala em comparação, natural se
perguntar quais são as variáveis a serem comparadas. No caso da avaliação comparativa
da necessidade as variáveis são: a) o grau de eficiência da medida em relação ao fim
almejado e b) o grau de restrição do direito fundamental a ser restringido.990 Como se
percebe, o exame da necessidade não é tão linear e objetivo quanto o anterior
(adequação/idoneidade), implicando tomar uma posição sobre qual dessas duas variáveis
(alíneas “a” e “b” supra) terá prevalência.
989 “Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto
da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos
investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada”.
990 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 4.4.3.
É natural e intuitivo, já que a idéia de proporcionalidade nasce para estabelecer um
limite às restrições de direitos fundamentais, que sempre a variável prevalente será a da
menor restrição prevista por norma processual penal. Logo, desprezar-se-iam todas as
medidas idôneas em favor da que menos restringisse o direito. O raciocínio estará correto
apenas se as medidas comparadas e desprezadas forem igualmente eficientes em face do
fim almejado e tiverem apenas variações de lesividade ao direito que se quer restringir na
menor medida possível. Neste caso, para dar cumprimento à finalidade da
proporcionalidade, estaria protegido na maior medida possível o direito ao se optar pela
medida processual penal menos restritiva.991
Ocorre, porém, que a resposta não poderá ser sempre e de modo definitivo que a
medida, a ser escolhida dentre as possíveis (adequadas), sempre será a de menor restrição
ao direito fundamental que se quer proteger. Poderá haver situações em que as medidas a
serem comparadas apresentem diferentes graus de eficiência no fomento do propósito
almejado e lesem também de formas diferentes o direito fundamental que se quer
proteger. Além do que, poderá ocorrer que entre as medidas comparadas haja igualdade
de eficiência quanto ao propósito almejado (sejam igualmente idôneas), mas a que menos
lesa o direito a ser protegido tenha efeitos prejudiciais a outros direitos fundamentais.
Em situações difíceis como essas, escolher qual a medida processual penal mais
proporcional para o caso é a tarefa a ser empreendida no exame da proporcionalidade em
sentido estrito.
991 Nesse sentido, v. Suzana Toledo de BARROS, O princípio cit., pp. 77/79,
com expresso apoio em Robert Alexy.
Há uma respeitável parcela da doutrina dos direitos fundamentais que não aceita
esse instante do exame da proporcionalidade, entendendo que todas as escolhas, mesmo
para aqueles casos mais difíceis citados ao final do item anterior, devam ser
empreendidas até o instante da necessidade.992
993 Nesse sentido, Suzana de Toledo BARROS, O princípio cit., p. 81, assim
esclarece, com base em passagem de Robert Alexy: “A diferença básica
entre o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade em
sentido estrito está, portanto, no fato de que o primeiro cuida de uma
otimização com relação a possibilidades fáticas, enquanto este envolve
apenas a otimização de possibilidades jurídicas. A proporcionalidade
‘stricto sensu’ encontra seu verdadeiro sentido quando conectada aos
outros princípios da adequação e necessidade e, por isso mesmo,
representa sempre a terceira dimensão do ‘princípio da
proporcionalidade’. Quando estão em causa situações nas quais não se
pode concluir qual seria o meio menos restritivo, porque a constelação
do caso é bastante ampla e com várias repercussões na ordem
constitucional, somente a ponderação entre valores em jogo pode
resultar na escolha da medida. Imagine-se a situação em que M1 e M2
são meios igualmente adequados para a realização de um fim F,
reclamado pelo direito D1. M2 afeta a realização de D2 menos que M1,
mas, em contrapartida, M1 é menos restritivo a D3 que M2. Nesse caso,
a máxima da necessidade não permite decisão alguma entre as três
hipóteses que surgem: a) eleger M1, realizar D1 e, com isto, estabelecer
preferência de D3 frente a D2; b) eleger M2, realizar D1, dando-se
prevalência a D2 em relação a D3, ou c) não eleger nem M1 nem M2,
elegendo preferência de D2 conjuntamente com D3 frente a D1.
Qualquer que seja a escolha, esta será dada pela justificativa da
precedência de um direito sobre o outro, exigida pela máxima da
proporcionalidade em sentido estrito”.
Nesse sentido é que se compreende quando se afirma que por esse nível de
verificação da proporcionalidade strictu sensu o que se busca definir é se a medida
processual penal restritiva, não obstante idônea e necessária, irá além daquilo que a
realização do fim almejado seja capaz de justificar. Evita-se, com o exame desse terceiro
requisito da proporcionalidade, o exagero de medidas que, tendo em vista apenas aquela
relação “meio-fim” analisada nas fases anteriores, mostrou-se adequada e necessária.994
Para um exemplo da área criminal, pode-se citar a prisão provisória. Se há o receio,
fundado em elementos objetivos e constantes dos autos, de que uma pessoa sairá do país
e, portanto, poderá frustrar o resultado eventualmente condenatório da ação penal,
indiscutivelmente a prisão é o mais eficiente meio para diminuir aquele receio. Por outro
lado, não se nega que a prisão provisória não elimina apenas a liberdade do imputado ir e
vir, mas também vários outros direitos fundamentais, tais como o direito ao trabalho, à
privacidade, à educação, à saúde, ao pleno exercício da autodefesa, o direito à
convivência familiar, entre tantos outros. Logo, disso se extrai que, não obstante
eficiente, a prisão é a mais invasiva das medidas coativas, reduzindo (parcial ou
totalmente) vários outros direitos. Dessa forma, em uma análise valorativa daquela
medida (prisão) em face do receio de fuga ao exterior, melhor à preservação dos demais
direitos que antes de prender seja determinada a apreensão do passaporte do imputado e
sejam avisadas as autoridades de controle das fronteiras. Em uma avaliação valorativa
entre as medidas adequadas e necessárias e o rol de direitos atingidos, prevalecerá a
escolha pela medida menos invasiva, a menos que, no caso concreto, esteja demonstrado
que a prisão é a única forma para se garantir a proficuidade processual.995
Se a adequação é um juízo objetivo e a necessidade é um juízo comparativo, a
proporcionalidade stricto sensu, por sua vez, é um juízo valorativo996 e é nesse âmbito
que se realiza a ponderação indispensável entre todos os direitos fundamentais afetados
ou afetáveis pela medida processual penal, já definida como idônea e necessária, para se
determinar se ela será ou não realizada.997 Haverá um sopesamento entre os direitos
fundamentais para se verificar se o fim perseguido pela medida processual penal (meio)
justifica a restrição, muitas vezes total, de outros direitos fundamentais.
1002 Sobre esse ponto, v. item 4.1 concertado com o item 3.8 supra.
Se, durante todos os itens deste capítulo, negou-se a possibilidade de se excluir a
priori tanto posições, ações ou estados do “âmbito de proteção”, quanto qualquer forma
de conformação ou regulamentação do campo da “intervenção estatal”, buscando a
identificação do constitucionalmente protegido mediante a motivação jusfundamental da
proporcionalidade da medida processual penal invasiva, segundo as condições fático-
jurídicas da situação concreta, não podemos aceitar como mais correta a teoria absoluta
do conteúdo essencial. Isto porque, para essa teoria a idéia de “conteúdo essencial” está
ligada a uma porção de direito fundamental intangível e insusceptível de qualquer
interferência (estatal ou privada). É um espaço normativo-fundamental irrestringível e
imune a qualquer intervenção estatal e, portanto, nesse âmbito absoluto não há como ser
legítima qualquer redução.1003 Este é o ponto: esse “espaço normativo irrestringível” é
uma definição doutrinariamente sedutora, mas, de ordinário, não constatável na prática e
de difícil clareza para se estabelecer um espaço crítico seguro.
Aqui se cria mais um ônus argumentativo para este presente trabalho, pois, antes da
atual reflexão, aceitávamos que todo direito fundamental possuía um conteúdo essencial
irredutível e o qual o Estado não estava legitimado a ultrapassar, com qualquer
justificativa que fosse. Porção fundamental para a qual a redução ou qualquer forma de
intervenção estaria vedada. Ocorre, porém, que após algumas reflexões, percebemos que,
empiricamente, não conseguíamos encontrar um âmbito normativo-fundamental de um
princípio processual penal constitucional que estivesse total e aprioristicamente imune a
toda e qualquer intervenção estatal. Claro que há casos em que determinada intervenção
é negada e em outros deferida, porém, isso depende e varia muito mais devido às
condições fático-jurídicas do caso em si e das convicções ideológicas e juspolíticas do juiz
penal do que de um “conteúdo essencial” absoluto e irrestringível que tenha sido
construído a priori em nível legislativo, doutrinário ou jurisprudencial.
Note-se, por ser importante, que ao se afirmar que não há norma-princípio
destinada ao processo penal que não seja, em muitos casos e hipóteses, afastada como um
todo, não nos referimos à negativa total de proteção fundamental decorrente de um ato
ilegal (privado ou judicial). As violações a direitos fundamentais processuais penais ou se
constituem em crimes (no âmbito material) ou implicam nulidades (no âmbito
processual).
Tratamos de decisões judiciais motivadas e pelas quais se determina, por exemplo,
uma interceptação telefônica, uma prisão provisória, a apreensão de bens, a quebra de
sigilo financeiro ou fiscal, entre muitas outras medidas congêneres. Ao assim decidir, e
há casos em que essas medidas são corretas, os sujeitos àquelas medidas ficam totalmente
desprovidos da privacidade das comunicações, da liberdade de ir e vir, do direito de
exercer a posse de determinado bem e da intimidade de seus dados financeiros e fiscais.
Essas privações são totais, todo o direito é afastado por força de ordem judicial. Não há
“conteúdo essencial” que reste intangível para essas pessoas em situações como as citadas.
Capítulo V
5.1. -Legislação infraconstitucional e decisão judicial: níveis para efetivação
da presunção de inocência
penale, 3ª ed., Bari: Laterza, 1996, pp. 566/572, quando afirma que a
existência da presunção de inocência impediria, ao menos até a decisão
de primeiro grau, qualquer forma de prisão preventiva. Para o direito
espanhol, v. José Maria ASENCIO MELLADO, La prisión provisional,
Madrid: Civitas, 1987, p. 30. Ambos os autores citados, contudo,
reconhecem que um sistema sem medidas coativas (pessoais ou
materiais) ainda está, infelizmente, no plano do “dever ser”, sem
nenhuma ocorrência histórica ou nas legislações atuais.
1013 Nessa linha retoma-se a posição de equilíbrio já defendida desde a
supra.
1027 Sobre as características da complementaridade e da interdependência
1028 A idéia de liberdade aqui exposta deve ser entendida não apenas no
seu aspecto de “ir e vir”, mas, também, quanto a seu conteúdo
patrimonial, ou seja, também a liberdade de ter e dispor de patrimônio
próprio.
1029 Sobre a igualdade como base para a característica da universalidade
públicos, e por isso ter sido alçada a direito fundamental, v. item 3.8.1.1
supra.
1037 Para o exame da “relação condicionada de precedência” como forma de
perene a que o imputado está sujeito, mesmo que resulte sua absolvição
ao final, v. Aury LOPES JÚNIOR e Gustavo Henrique Righi Ivay
BADARÓ, Direito cit., p. 9.
Nessa hipótese, porque autorizado o seu encarceramento antecipado, deverão todos
os partícipes da persecução empreender o máximo de celeridade a fim de se chegar à
solução final, para dar uma resposta definitiva à situação indesejada de prisão provisória.
O julgamento final no menor tempo possível, respeitando-se as demais garantias
processuais, é, portanto, uma forma de se atribuir maior efetividade e respeito à
presunção de inocência.1045
Quer o homem, enfim, que sua essência se defina não só pelo gênero
próximo ‘homo’, mas pela diferença específica ‘sapiens’”. No mesmo
sentido, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 432.
1061 Luigi KALB, La “ricostruzione” cit., pp. 112/113, destaca que um sistema
Aranzadi, 2001, pp. 76/77. Na mesma linha, destacando ora um, ora
outro aspecto sintetizado no parágrafo, v.: Giulio ILLUMINATI, La
presunzione cit., pp. 11/15; Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit.,
item IX; Germano Marques da SILVA, Curso cit., pp. 40/41; Mercedes
FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 119/123; Eduardo Maia COSTA, A
presunção cit., pp. 69/70; Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 559/560, em
especial nota 19; Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados
cit., pp. 318/319; Rui PATRÍCIO, O princípio cit., pp. 13 e 35/36; Aury
LOPES JÚNIOR, Introdução cit., p. 185; e idem, Sistemas de
investigação preliminar no processo penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 18. Também essa é a posição de Mario PISANI,
Introduzione al processo penale, Milano: Giuffrè, 1988, pp. 35/36 e
43/46, baseada em Resolução do XII Congresso da Associação
Internacional de Direito Penal (AIDP), realizado em 22 de setembro de
1979, em Hamburgo, e pela qual se decidiu com relação à presunção de
inocência: “Resoluções: 1) Presunção de inocência. A presunção de
inocência representa um princípio fundamental da justiça penal. Ela
comporta sobretudo que: a) ninguém pode ser condenando ou
formalmente declarado culpado sem ter sido julgado em conformidade
com a lei vigente e por um procedimento judiciário. b) nenhuma sanção
penal ou sanção equivalente poderá ser imposta a uma pessoa até que a
sua culpabilidade esteja definida nas formas previstas pela lei. c)
ninguém deverá ser obrigado a provar a própria inocência. d) a dúvida
deve sempre favorecer ao acusado” (op. cit., p. 36).
1074 Expressão de Mario CHIAVARIO, La presunzione d’innocenza nella
1082 Não obstante todo o foco de nosso trabalho esteja voltado para os
âmbitos Legislativo e Judiciário destinados ao processo penal, não se
pode negar que a presente exposição pode servir de baliza ao Executivo
e aos agentes privados identificarem os exatos espaços constitucionais
que devem respeitar e para os quais podem exigir o respeito de outrem
no tema da presunção de inocência.
1083 Disputa juspolítica já tratada e que colocou em campos opostos
passagens (v.g., op. cit., pp. 79/81). Para esse autor, o “in dubio pro reo”
contém vários aspectos que a doutrina, atualmente, atribui à presunção
de inocência. O momento político e histórico em que o autor elaborou
sua obra muito explica sua tentativa de garantir um tratamento e
julgamento mais justos aos imputados por meio de um conceito diverso
da presunção de inocência.
1086 Como trabalho nacional específico, precursor e de referência sobre esse
ligados a Common Law e Civil Law, v.: Ennio AMODIO, La tutela della
liberta personale dell’imputato nella convenzione europea dei diritti
dell’uomo, Rivista italiana de diritto e procedura penale, Milano, v. 10, n.
3, lug./set., 1967, pp. 867/868; Alexandra VILELA, Considerações cit.,
pp. 53/60; Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 28/30; Aldo
CHIARA, Presunzione di innocenza, presunzione di “non colpevoleza” e
formula dubitativa, anche alla luce degli interventi della Corte
Costituzionale, Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano, v. 1,
gen./mag., 1974, pp. 72/74, e nota 8; e Jaime VEGAS TORRES,
Presunción cit., pp. 34/35. Sobre o tema, v. algumas considerações no
item 3.8.2.1, quando se trata da visão ampla do conteúdo da presunção
de inocência.
Na tentativa de compreender de forma harmônica e integrativa tudo o quanto já se
disse sobre “presunção de inocência”, deve-se analisar as três partes em que se pode
subdividir o “âmbito de proteção” desse específico direito fundamental. Para facilitar a
percepção de cada uma, elas podem ser percebidas por meio de três perguntas básicas: a)
a efetivação da presunção de inocência no processo penal depende, de modo mais direto,
de quais níveis estatais? b) quais os bens da vida protegidos por ela? c) qual a sua extensão
subjetiva e objetiva no âmbito processual penal?1089
Nessas três porções podem ser organizados racionalmente todos os desdobramentos
e significados atribuídos e atribuíveis à presunção de inocência. Por esses pontos a
presunção de inocência se manifesta de forma cogente e se aplica ao processo penal.
Porém, necessário destacar, mais uma vez, que o presente estudo não se propõe a
examinar cada instituto jurídico-processual penal com o qual a presunção de inocência se
relaciona (direta ou indiretamente). Pretende-se apenas fornecer um método para a mais
abrangente e analítica compreensão de sua estrutura normativa e como essa abordagem
pode emprestar mais coerência no exame de alguns daqueles institutos em face da
presunção de inocência.
Dessa forma, e para que se comprove o ganho também prático da exposição, na
medida em que se analisa cada uma daquelas porções do “âmbito de proteção” utiliza-se
de ao menos um instituto processual penal para se demonstrar a coerência e abrangência
propiciada pela proposta do presente trabalho.
1091 Não se quer, com isso, afirmar que tanto o Executivo quanto os agentes
privados não sejam importantes em sua realização. Ocorre apenas uma
escolha do trabalho por preferir o estudo apenas daqueles dois âmbitos
de poder/função/atividade pública. Sobre as influências que a presunção
de inocência projeta e recebe do Executivo e dos agentes privados, v.
item 5.3.3.1 supra.
1092 Nesse sentido, v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción” cit., pp.
Como já foi demonstrado inicialmente, o “favor rei” e o “in dubio pro reo”, assim
como seus corolários (“favor libertatis” e “favor benignitatis”; “in dubio pro libertate” e
“in dubio pro dignitate”; entre outros), eram aplicados tanto no campo penal como no
campo não-penal, uma vez que, nos primórdios, não havia uma diferenciação técnica tão
precisa entre as áreas jurídicas (penal e não-penal) e as citadas expressões.1093
Atualmente, mercê de toda uma evolução técnica, as expressões devem ser diferenciadas
e seus âmbitos de incidência distinguidos.
O ponto central para referida distinção resulta da observação do sentido que as
próprias expressões empregam. “In dubio pro reo” traz em si uma idéia de que há
“dúvida” (“in dubio”) e de que ela deve ser resolvida favoravelmente ao réu (“pro reo”).
“Favor rei”, por sua vez, é uma escolha valorativa que não tem como causa a “dúvida”,
sua base informadora são os ideais de igualdade, dignidade da pessoa humana e proteção
da liberdade e do patrimônio do cidadão, por meio de um devido processo legal.
O “favor rei”, por ser uma forma de realização efetiva desses ideais, incide tanto no
campo legislativo, para conformação de leis que visem garanti-los, quanto no campo
judicial, na medida em que indica ao julgador qual é a opção axiológica definida
constitucionalmente e que ele também deverá ter ao interpretar o dispositivo legal
(extrair a “norma” ou “sentido” do texto da lei) ao caso concreto.
1094Quanto ao “in dubio pro reo” ser forma de superação de dúvida fática
em favor do imputado, v: Giuseppe BETTIOL, Instituições de direito e de
processo penal, tradução de Manuel da Costa Andrade, Coimbra:
Coimbra, 1974, p. 300; idem, La regola “in dubio pro reo” nel diritto e nel
processo penale, in Giuseppe BETTIOL, Scritti giuridici, Padova:
CEDAM, 1966, t. 1, pp. 315/316; Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO,
Pronúncia e o in dubio pro societate, in José Henrique PIERANGELI,
Direito criminal, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, v. 4, p. 58, nota 5; Cezar
PELUSO, Garantias constitucionais da liberdade, palestra proferida no
Destacadas essas diferenças entre o “favor rei” e o “in dubio pro reo”, deve-se
analisar, agora, por que esses preceitos compõem o âmbito de proteção da presunção de
inocência quando aplicados ao direito processual penal.
No presente trabalho, entende-se que a melhor forma de integrar e inter-relacionar
tanto o “favor rei” quanto o “in dubio pro reo”, é percebê-los como aspectos, significados,
projeções ou manifestações da presunção de inocência.1096 São manifestações ou aspectos
do enunciado normativo daquele princípio; são sentidos que dele se extraem, “normas”
que ele contém em seu texto legal.1097
apontar as diferenças existentes entre “favor rei”, “in dubio pro reo” e
“presunção de inocência”, coloca este último conceito como o ponto de
convergência dos demais devido à sua estatura de direito fundamental
do cidadão e, por isso, abrangendo os outros dois. Dessa forma, entende
a presunção de inocência com as seguintes características (op. cit., p.
280): a) como critério informador e inspirador do ordenamento jurídico
processual, é manifestação ou aplicação concreta do princípio geral do
“favor rei”; b) como preceito constitucional é um critério normativo de
aplicação direta, vinculante de todos os poderes públicos; c) é garantia
constitucional do processo e direito fundamental do cidadão; e d) não se
trata de genuína “presunção”, mas de “verdade interina ou provisória”.
1097 Sobre a concepção de “norma” como sentido, significado ou produto da
1099 Em sentido contrário, entendendo o “in dubio pro reo” como princípio
geral do direito precursor da presunção de inocência, v. Esteban
ROMERO ARIAS, La presunción cit., p. 22.
1100 Para referência ao “in dubio pro reo” com origem na “justiça” e na
também seja restringida (limite dos limites), v. item 4.5 e seus subitens
supra. Para o fato de que o mais importante referencial constitucional é a
presunção de inocência, sendo qualquer possível restrição uma
excepcionalidade que deve ser analisada pela perspectiva vetorial
“Constituição legislação infraconstitucional”, v. item 5.2 supra.
1109 No presente trabalho, utiliza-se o termo “prisão provisória” para qualquer
pp. 65/66.
1116 Nesse sentido, v.: Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 133;
1120 Sobre a prisão cautelar ser a ultima ratio das medidas cautelares e,
portanto, guardar caráter residual frente às demais medidas, v. item
5.3.2.2 supra.
1121 Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 459, assim expõe a relação entre
1123 Nesse sentido, Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 225, aponta a
natureza “pré-cautelar” da medida.
1124 Assim dispõe o inciso LXI do art. 5º da Constituição da República:
“favor rei” (escolha legal) e do “in dubio pro reo” (dúvida fática) nos
moldes empreendidos no presente trabalho, pode-se encontrar em
Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 463, a incidência do “in dubio pro reo”
para decisão em caso de dúvida judicial sobre prisão provisória do
Deve haver, portanto, uma correspondência entre a medida coativa mais gravosa e a
imposição legal da mais ampla justificativa por sua escolha. O legislador deve fixar que a
ponderação judicial seja tão mais aprofundada e detalhada quanto mais invasiva for a
restrição por ela determinada. E, ainda, associado a essa necessária motivação, uma
determinação de critérios axiológicos. Sempre que houver dúvida fática ou possibilidade
de escolha de lei menos gravosa pelo julgador, ele deverá aplicar, respectivamente, os
preceitos do “in dubio pro reo” e do “favor rei” para orientar sua decisão.
Enfim, a construção desse modelo exige, passada a identificação e demonstração do
“fumus delicti commissi” e do “periculum libertatis”, a definição legal de critérios
orientadores ao julgador e de um rol amplo de medidas de coação para que ele possa
escolher, com maior especificidade e eficiência, a medida mais proporcional.1140
5.4.1.2.1.3. -Prisão provisória por motivos materiais: a prisão por “ordem pública”
em um novo modelo processual penal
Ocorre, contudo, que, por mais amplo que seja o rol e mesmo se obedecido o “favor
libertatis” quanto a ser a medida de prisão a ultima ratio das medidas de coação, é
possível haver um grupo de ocorrências para as quais a prisão seja a medida apropriada.
Mesmo reduzindo-se ao extremo as hipóteses de prisão provisória – e isso já seria um
ganho significativo se comparado com nossa atual realidade1141 –, percebe-se que há
situações para as quais ela se mostra a única medida indicada.
imputado. Para ele (op. cit., pp. 464/469) a dúvida deverá ser decidida
em favor do imputado não apenas quanto à ocorrência da infração ou à
sua autoria, mas também sobre a existência de uma causa excludente
de antijuridicidade ou de culpabilidade. Quanto ao “favor rei”, em sua
modalidade do “favor libertatis”, no mesmo sentido se manifesta o autor,
ainda sem diferenciá-lo do “in dubio pro libertate” (op. cit., pp. 485/489).
1140 Como nesse ponto partimos da existência de lei e de motivação judicial,
1144 Há autores que caminham nesse sentido, não obstante relacione com
mais freqüência a necessidade da prisão com a idéia de gravidade da
infração. Nesse sentido, v. Fábio Ramazzini BECHARA, Prisão cautelar,
São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 166 e 169/170, e Renato Barão
VARALDA, Restrição cit., item 4.2.
1145 Nesse sentido v.item 3.8.1.1 supra.
Iniciando-se pela doutrina processualista, pode-se observar que nem toda ameaça
direta ou perturbação ao desenvolvimento regular do curso persecutório, ou mesmo a
fuga do imputado, gerará, ipso facto, a necessidade de prendê-lo. Veja-se, por exemplo, a
hipótese de alguém que esteja sendo submetido a uma persecução penal por crime de
menor potencial ofensivo (v.g., lesão corporal culposa na direção de veículo). Mesmo que
esse imputado venha a ser surpreendido ameaçando gravemente uma testemunha, a fim
de favorecer-se no feito criminal, não deverá ser preso provisoriamente. Pois, nenhum
dos crimes nos quais se vê envolvido, tanto a lesão corporal culposa (art. 303, da Lei
9.503/97, cuja pena é de 6 meses a 2 anos), quanto a coação no curso do processo (art.
344, CP, cuja pena é de 1 a 4 anos), apresentam penas suficientes para, pela
proporcionalidade, justificar a prisão provisória. Não se nega que a atuação do imputado
perturbou o regular desenvolvimento processual, porém esse crime dificilmente gerará
de per si a perda de sua liberdade, uma vez que ou terá direito à suspensão condicional
do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), ou receberá pena cujo cumprimento se dará em
regime aberto (art. 33, § 2º, alínea “c”, CP).1146
Mesmo que se associe àquela postura, baseada na cautelaridade, o exame da
proporcionalidade, ainda há um ponto sujeito à crítica na doutrina aqui denominada
processualista.1147
Pela perspectiva da cautelaridade, essa doutrina cria um conteúdo absoluto para a
presunção de inocência, para o qual não admite qualquer redução.1148 Percebendo ou não
sua opção por essa linha de direito constitucional, tais doutrinadores aceitam a teoria
absoluta do conteúdo essencial da presunção de inocência. Ocorre, porém, que, em
situações limites e infelizmente ocorrentes em nossa vida cotidiana, juízes e tribunais
rompem cotidianamente – e sem qualquer critério racional ou regramento juspolítico –
aquele conteúdo essencial dito ou tomado como absoluto por motivos, em regra, de
conotação material. Nessas situações, o conteúdo essencial tido como absoluto é rompido
e, no tocante à presunção de inocência como “norma de tratamento”, a garantia
constitucional resta negada de forma total.
finalidade processual, a que toda prisão provisória deve ter, v.: Alexandra
VILELA, Considerações cit., pp. 105/106; Vittorio GREVI, Libertà
personale dell´imputato e costituzione, Milano: Giuffrè, 1976, pp. 49/50; e
idem, Alla ricerca di um processo penale “giusto” – itinerari e prospettive,
Milano: Giuffrè, 2000, pp. 99/107. No sentido de definir essa espécie de
prisão como “pré-cautelar”, v. Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp.
224/228. Se, como afirma esse último autor citado, com forte lastro em
Carnelutti, a prisão em flagrante é “pré-cautelar” é porque “cautelar” não
é. Ao menos no instante de sua decretação e nos momentos que se
seguem a este instante inicial. Se não é cautelar e ainda não há sequer
persecução penal iniciada, somente poderá ser, nesse primeiro
momento, de natureza material.
1156 A razão material identificável na prisão em flagrante, notadamente nas
4.4.3.1.3.2 supra.
1161 Sobre o tema da “relação absoluta de precedência”, suas críticas e
incompatibilidades com a “teoria dos princípios” e, por decorrência, com
o exame da proporcionalidade, v. item 4.4.3.1.3.2 supra.
Para essa doutrina, há uma comodidade oferecida pelo atual Código de Processo
Penal, marcadamente fascista e refratário à presunção de inocência, pois nele está
inserido um conceito material aberto e sem qualquer parametrização, o que permite que
neste conceito tudo seja inserido e nele tudo caiba. Afinal, insista-se, se ele é tomado pela
doutrina materialista como um conceito formado por interesses públicos e se para ela
todo e qualquer interesse classificável como “público” sempre prepondera sobre a
presunção de inocência (que segundo ela tutelaria interesses privados), qualquer hipótese
que se insira naquele continente (“ordem pública”) será considerado “interesse público”
e, portanto e aprioristicamente, prevalecerá sobre a presunção de inocência.1162
O presente trabalho, por aceitar e defender a idéia de “conteúdo essencial relativo”,
não propõe a exclusão do conceito de “ordem pública”, mas sugere o estabelecimento de
três requisitos cumulativos como proposta inicial de debate para a delimitação mais
segura no exame crítico do conceito. Delimitá-lo por parâmetros fixados pela doutrina e
pela jurisprudência não significa engessá-lo de forma a não permitir sua análise
casuística, o que é indispensável para o estabelecimento de uma “relação condicionada de
precedência”. O que se deseja é fornecer padrões mínimos fora dos quais há ilegalidade
(por abuso ou excesso) na utilização daquele conceito de “ordem pública”.1163 Esses
parâmetros são externos ao conteúdo de “ordem pública” e funcionam como limites para
sua expansão indevida e desregrada.
Dessa forma, como início de debate, propõe-se que o conceito de “ordem pública”
seja determinado caso a caso, desde que atendidas exigências mínimas e cumulativas.
Para que a prisão provisória possa ser determinada com base na “ordem pública”,
sugere-se a observância de três requisitos cumulativos: a pena prevista para o crime
imputado; as circunstâncias e a forma demonstradas de cometimento do suposto crime; e,
por fim, uma relação temporal entre o conhecimento da autoria e o instante de
determinação da prisão.
medida cautelar que, em tese, seja mais grave do que a pena decorrente
de eventual condenação”.
1172 Nesse sentido entendemos ter atendido a observação de Giulio
1174 Tales Castelo BRANCO, Da prisão cit., pp. 48/49, leciona que as
características básicas e mais importantes da “flagrância” são
“atualidade” e “evidência”: “A flagrância, portanto, sugere, sempre, em
Esse requisito também encontra base no instituto da prescrição penal; instituto de
política criminal, destinado à não punição de eventual culpado, que tem seu
reconhecimento em todas as legislações conhecidas e amparo em nossa atual
Constituição.1175
Há unanimidade doutrinária quanto a um de seus principais fundamentos: o
decurso do tempo. Todos entendem que sua principal justificação está exatamente em
que o passar do tempo vai, progressivamente, deslegitimando a atuação repressiva do
Estado, e isso por dois motivos principais: o primeiro é pelo esquecimento dos efeitos do
crime pela sociedade, à qual seria um mal maior trazê-lo novamente ao contexto, após
vários anos de sua ocorrência; o segundo motivo é que o passar do tempo, sem que novo
fato seja imputado ao agente, revela que ou a punição era indevida, ou era desnecessária
para a sua correção.1176
1178 Sobre a falta de lei estrita ser uma violação às necessárias legalidade
processual e justificação constitucional, v. item 4.5.1.1 supra.
1179 Sobre os influxos íntimos e externos à causa penal e que não devem
1186 Silvio César Arouck GEMAQUE, Dignidade cit., pp. 114/115, posiciona-
se no sentido de que a indenização não deverá atingir a pessoa física do
juiz, “salvo nas hipóteses de dolo”.
1187 Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão criminal, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1998, item 7.2, leciona que o erro judiciário “é cometido pelos
juízes, voluntária ou involuntariamente, em suas sentenças e acórdãos
(...). Resulta o erro judiciário, conforme Silvio de Macedo, da não
observância da lei ou fundado em engano resultante de ato e
documentos da causa. É inerente a atos do processo, judiciários,
judicativos ou das partes. Álvaro Villela alerta que ‘um fantasma negro
acompanha sempre o organismo judiciário, como se fosse a sua sombra.
É a projeção de um ‘quid’ ínsito a todos juízos humanos - a eterna
falibilidade e chama-se ‘erro judiciário’” (op. cit., pp. 206/207). Rui
STOCO, Responsabilidade civil por erro judiciário em ação penal
condenatória, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano
11, n. 44, jul./set., 2003, item 2, não obstante também se refira ao
reconhecimento do erro judiciário na revisão criminal, fornece os
elementos necessários para se iniciar uma discussão do direito à
indenização por indevido decreto de prisão provisória: “A questão relativa
ao erro judiciário, por mais que sobre ela se tenha debruçado e debatido,
ainda enseja disceptações e exige disquisição, seja qual for o enfoque
que se lhe dê, até mesmo à luz do aspecto evidenciado no prólogo
acima. Como não se desconhece, para que surja a obrigação de
indenizar, quando se fala em responsabilidade aquiliana decorrente de
ato ilícito, exige-se uma ação ou omissão, que dela decorra; um
resultado danoso ou a ocorrência de um dano; um elo de ligação entre o
comportamento do agente e o dano (nexo causal) e que esse
comportamento seja doloso ou culposo (elemento subjetivo). Contudo,
quando a responsabilidade é objetiva, prescinde-se apenas do último
elemento, como sói acontecer, ‘ad exemplum’, nas hipóteses do art. 37,
§ 6º, da CF. Basta a ação, o dano e o nexo etiológico entre eles,
dispensada qualquer investigação acerca da culpabilidade do agente”.
1188 Oreste Nestor de Souza LASPRO, A responsabilidade civil do juiz, São
1196 Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 163, afirma que pela
natureza do processo cognitivo judicial não há sistema que seja imune à
dúvida, como estado mental do juiz, podendo haver apenas uma forma
de orientar a solução nesses casos.
1197 Quanto à existência de concepções assemelhadas ao “in dubio pro reo”
1203 Nesse sentido, v. Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 211/213.
1204 Como a estrutura normativa de princípio confere à presunção de
inocência a possibilidade de sofrer restrições (limitação proporcional e
constitucionalmente justificável), em seu sentido de “in dubio pro reo”
não é diferente. Este aspecto da presunção de inocência sofre restrição
aceitável em sua incidência quanto às sentenças de absolvição
sumárias, previstas nos atuais artigos 397 e 415 do Código de Processo
Penal. Nesse sentido, v. sobre essa restrição nos itens 5.4.1.3.2.1 e
5.4.1.3.2.2 infra.
1205 Girolamo BELLAVISTA, Il processo come dubbio, Rivista italiana di
69/70.
Em nosso sistema processual penal constam atualmente sete incisos no art. 386 para
que o julgador possa indicar, na parte dispositiva da decisão de mérito, o mais adequado
às razões que o levaram a decidir pela absolvição do acusado.1207 De início, isso não
causaria maiores críticas, uma vez que poderia parecer que a multiplicidade de situações
concretas exigiria um rol de possibilidades para melhor subsunção.
Contudo, a sétima hipótese do Código para declarar improcedente uma ação penal é
reconhecida por todos como uma “absolvição de segunda classe”1208 ou uma “decisão
dúbia”1209 porquanto todas as falhas ou erros dos órgãos persecutórios, não obstante não
tivessem a força para condenar, continuarão pesando sobre a honra do “absolvido”.
Tal constatação não é fruto de purismo técnico, mas decorrência da lógica em se
criar dois tipos de “absolvição”, uma baseada na certeza judicial (incisos I a VI do art.
386) e outra na dúvida (inciso VII), o que deixa clara a intenção, desde o regime
autoritário fascista e de o Estado Novo brasileiro, em marcar o indivíduo. São necessárias
algumas explicações para se compreender as razões –atualmente inconstitucionais – que
influíram na aceitação de dito dispositivo em nosso Código de Processo Penal.
1207 A redação do art. 386, desde 1941, data da entrada em vigor de nosso
atual código processual, era a seguinte: “Art. 386. O juiz absolverá o
réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I -
estar provada a inexistência do fato; II - não haver prova da existência do
fato; III - não constituir o fato infração penal; IV - não existir prova de ter
o réu concorrido para a infração penal; V - existir circunstância que
exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1º, do
Código Penal); VI - não existir prova suficiente para a condenação” –
grifo nosso. Em 10.06.2009, pelo advento da Lei 11.690, referido artigo
ganhou nova redação, pois foi inserido novo inciso fundamentador da
absolvição (atual inciso IV, que preceitua: “estar provado que o réu não
concorreu para a infração penal”), foi reescrito o antigo inciso V para
atualizá-lo pela atual parte geral do Código Penal e, por fim, em
decorrência da renumeração procedida pelo legislador, o antigo inciso VI
passou a ser o atual inciso VII, sem qualquer alteração de redação.
Dessa forma, toda a doutrina pátria e a jurisprudência adiante citadas
referem-se ao inciso VI antigo, sendo necessária uma adaptação do
leitor. Como em essência o dispositivo não sofreu alteração, mantendo a
mesma gênese juspolítica fascista, as críticas a seu conteúdo podem ser
mantidas.
1208 Com base na doutrina alemã, v. Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio
Inquérito policial: novas tendências, Belém: Cejup, 1987, pp. 38/40, bem
Nem todo indiciado torna-se denunciado, pois o órgão acusador pode entender que
não há elementos que justifiquem uma denúncia, não obstante a convicção da autoridade
policial pelo indiciamento.1233
1234 Por força da lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais (Lei
9.099/95), caso o Ministério Público entenda que há elementos para
oferecer a denúncia de um crime de menor potencial ofensivo (art. 61),
observadas as hipóteses impeditivas previstas no § 2º de seu art. 76,
deverá propor transação penal. Deixa-se o oferecimento da denúncia
para situação de eventual recusa de transação penal por parte do autor
do fato.
1235 Sobre a necessidade de que o ato de recebimento de denúncia ou
1237 Maria Thereza Rocha de Assis MOURA, Justa causa cit., p. 247, ao
aplicar aquele conceito de justa causa no instante do recebimento da
acusação, é categórica ao afirmar que: “a justa causa para o
recebimento da acusação não sobressai apenas em seus elementos
formais, mas, mormente, da sua fidelidade à prova que demonstre a
legitimidade da imputação. Segue-se que a necessidade de existência
de justa causa funciona como mecanismo para impedir, em hipótese, a
ocorrência de imputação infundada, temerária, leviana, caluniosa e
profundamente imoral”. No sentido de entender faltar justa causa pela
ilegitimidade da imputação sempre que não houver fidelidade entre os
elementos de convicção lastreadores da denúncia e a imputação ali
deduzida, v. Ada Pellegrini GRINOVER, As condições da ação penal,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 15, n. 69,
nov./dez., 2007, p. 189. Nesse sentido, v., ainda, Sidney Rosa da SILVA,
Tribunal do Júri: Aplicabilidade do princípio da presunção de inocência
diante do princípio do “in dubio pro reo” e “in dubio pro societate”,
levando-se em conta o princípio da razoabilidade, Revista de direito do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 56,
jul./set., 2003, p. 401, e Eduardo M. JAUCHEN, Derechos cit., pp.
119/120. Há significativa corrente jurisprudencial nesse sentido; por
todos, v.: “Não basta, em realidade, à admissão da ação penal, como
outrora já se entendeu, a singela imputação de fato que, em tese,
constitua crime. Não basta, ao recebimento da denúncia, o atendimento
às formalidades do art. 41 do CPP, nem a descrição de comportamento
hábil, em tese, à identificação da figura típica. Reclama-se, mais do que
isso, para a validade da instauração do processo criminal, um princípio
de correspondência entre o fato imputado e o comportamento do agente
retratado no inquérito; exige-se, é curial, a fumaça do bom direito, que
justifique alguma possibilidade, ainda que remota, de prática, pelo
acusado, do fato descrito. Deve, em suma, a ‘opinio delicti’ calcar-se em
suspeita fundada e razoável, não presumida ou cerebrina, pelo que, se
ela não se faz presente com tais atributos, falta verdadeira condição da
ação a justificar a persecução, em sua fase processual, persecução que,
por suas características e efeitos, sempre atinge, sem dúvida, não só o
‘status libertatis’, como, ainda, o ‘status dignitatis’ do cidadão incriminado
pela denúncia” (TJSP – 5ª Câm. Crim. – HC 383.751-3/2 – j. 17.06.2002
– JTJ-LEX 257/434). “Em que pese o esforço do órgão do Ministério
Público de primeiro grau, deve ser ressaltado que só há legitimação para
agir no processo penal condenatório quando existir ‘fumus boni iuris’ que
ampare a acusação de forma explícita. Exige-se, portanto, que a
Como será desenvolvido nos próximos dois subitens, é necessário se terminar com a
indevida aplicação da parêmia inconstitucional do “in dubio pro societate” tanto na
análise da decisão de recebimento de denúncia ou queixa quanto na decisão de
pronúncia.
Na verdade, a doutrina tem apontado que a praxe judicial de se afirmar que, tanto
no instante do primeiro recebimento da denúncia (art. 395, CPP) quanto na decisão de
pronúncia (art. 413, CPP), vige o “in dubio pro societate”, está baseada em excesso de
trabalho e em certa comodidade de não se examinar de forma minudente cada uma
dessas decisões, deixando-as para um momento posterior, em um pretenso exame mais
amplo.1238
Porém, ao assim decidir, o julgador tolera e faz com que a falta de estrutura
judiciária, ante a enorme demanda de causas, seja motivo para descumprimento do
preceito constitucional e, pior, faz com que o cidadão suporte todas as conseqüências de
um sistema, cuja ineficiência não foi ele quem originou. Pior ainda é se constatar que, ao
tributar as falhas estruturais à esfera de direitos do cidadão, está-se a produzir dois males:
o primeiro é compensar as falhas estruturais com a redução dos direitos constitucionais, o
que implica, a médio prazo, a deslegitimação da própria Constituição que se jurou
cumprir; o segundo é que o Judiciário deixa de utilizar um forte argumento
constitucional para exigir dos demais poderes (Executivo e Legislativo) que cumpram seu
“dever estatal de proteção” e seu dever de provisão de “organização e procedimento”
estruturais para a implementação efetiva da Constituição.
aplicação do “in dubio pro societate” pela praxe judicial funciona “até
como desculpa, pois é, inegavelmente, mais cômodo remeter a dúvida
ao Júri do que ter de resolvê-la, penetrando mais profundamente no
conjunto de provas existente no processo. (...) Num processo penal
democrático, onde vigora a idéia de uma igualdade de armas entre as
partes, não há julgamento ‘pro societate’”.
Não há que se falar em “in dubio pro societate” no momento do recebimento da
denúncia. Há duas dúvidas nesse instante decisório: uma aceitável e que não deve ser
resolvida; outra impeditiva da continuidade da persecução. A dúvida aceitável é aquela
quanto ao mérito da causa, ou seja, a que versa sobre a culpa pelo crime. Não é esta que o
juiz deverá enfrentar ou resolver no instante do recebimento da denúncia. Deverá
decidir, segundo a imposição constitucional do “in dubio pro reo”, uma outra dúvida, a
referente à legitimidade para a continuidade da persecução. Isto é, se tiver dúvida quanto
(i) à demonstração de existência de crime, (ii) à suficiência dos indícios de autoria, (iii) à
narrativa escorreita e apta para a compreensão da imputação com todos os seus
elementos e circunstâncias e, com isso, servir de base para o exercício da ampla defesa,
(iv) à existência de condições para o exercício da ação penal ou, ainda, (v) à existência de
pressupostos processuais, deverá decidir em favor do denunciado e, portanto, rejeitar a
denúncia, nos termos do atual art. 395 do Código de Processo Penal.1239
A reforma processual penal empreendida em 2008 trouxe um problema adicional à
doutrina quando estabeleceu um duplo recebimento da peça acusatória: o primeiro
recebimento, de que tratamos até o presente instante, definido no art. 395 e cuja
conseqüência jurídica será ou o prosseguimento da ação penal com a citação do imputado
ou a rejeição da denúncia ou queixa; e o segundo, instituído pelo art. 397 concertado com
o artigo 399,1240 do qual resultará ou a absolvição sumária do imputado ou a continuidade
do feito com designação de audiência una de instrução, debates e julgamento.
1239 No sentido de aplicar o “in dubio pro reo” como forma de decidir a
dúvida quanto à legitimidade da atuação criminal do Estado, fazendo
dele “um guardião do próprio Estado de Direito material e não somente
da liberdade individual de cada cidadão”, v. Cristina Líbano MONTEIRO,
Perigosidade cit., p. 64. Esta autora afirma que o “in dubio pro reo” deve
ser utilizado a cada momento de intervenção do ius puniendi na esfera
jurídica do cidadão, seja impedindo medidas restritivas de liberdade
como a prisão provisória, seja não recebendo acusações sem o mínimo
de “probabilidade” fática. Ela defende que para o início da ação judicial
penal é necessário mais do que possibilidade, é necessário
“probabilidade”, concluindo que não parece “necessário recorrer à idéia
de que prosseguir um processo penal de admissibilidade dúbia equivale
arriscar uma condenação ilegítima. Ainda que a sentença final desse
processo fosse absolutória, seria a própria sujeição do arguido aos
caminhos da justiça criminal do Estado que estaria ferida de
ilegitimidade” (op. cit., p. 74).
1240 Preceituam esses dispositivos após o advento da Lei 11.719/08: “Art.
5.4.1.3.2.2. -(cont.): “in dubio pro reo” na decisão de pronúncia (art. 413,
CPP) e sua não incidência na absolvição sumária (art. 415, CPP)
No instante de o julgador decidir ou não pela pronúncia do acusado, como se está
diante de um novo momento de exame da legitimidade da imputação para que a
persecução penal alcance outra fase processual (o julgamento perante o Tribunal do Júri),
o raciocínio se daria da mesma forma como antes observado para a denúncia. A decisão
de pronúncia só poderá existir se o juiz estiver “convencido da materialidade do fato e da
existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”.1241 O termo “se
convencido”, escolhido pelo legislador de 2008, não deixa margem para interpretações de
que o juiz não poderá pronunciar em caso de “dúvida” fática sobre a demonstração de
materialidade e de autoria.1242 Dúvida não é convencimento. Convencimento é certeza,
quanto à materialidade e à autoria ou participação, para legitimar o envio do caso ao juiz
natural do Tribunal do Júri, superando-se, assim, mais um degrau cognitivo e anterior ao
mérito.1243
1241 Assim preceitua o atual art. 413, caput, do Código de Processo Penal,
que trata da decisão de pronúncia, após a alteração empreendida pela
Lei 11.689/2008.
1242 Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., p. 232, assim
1244 Nesse sentido, comentando ainda o antigo art. 408 que tratava da
pronúncia, v.: Guilherme de Souza NUCCI, Código cit., pp. 710/711;
idem, Júri cit., pp. 94/95; Paulo RANGEL, Direito cit., p. 533; Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 390/391; Márcio BÁRTOLI,
O princípio cit., pp. 130/131; Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO,
Pronúncia cit., itens 7 a 9; Rui STOCO, Dos processos dos crimes da
competência do Tribunal do Júri, in Alberto Silva FRANCO e Rui STOCO
(coord.), Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial,
2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, v. 4, p. 856; Aury LOPES
JÚNIOR, Introdução cit., pp. 153/155 e 191; idem, Direito cit., vol. II, pp.
261/262; Sidney Rosa da SILVA, Tribunal cit., p. 401; José Frederico
MARQUES, Elementos de direito processual penal, Rio de Janeiro:
Forense, 1962, v. III, p. 1999; Álvaro Antônio Sagulo Borges de AQUINO,
A função garantidora da pronúncia, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.
47; Eduardo ESPÍNOLA FILHO, Código de processo penal brasileiro
anotado, 6ªed., Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, v. IV, item 800; e Luís
Fernando Camargo de Barros VIDAL, Homicídio qualificado e
procedimento do júri, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 8, nº
32, out./dez., 2000, p. 106. Nesse sentido, já comentando o atual artigo
415, v. Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Tribunal do Júri – Lei
11.689, de 09.06.2008, in Maria Thereza Rocha de Assis MOURA
(coord.), As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os
Projetos de Reforma, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 88;
Guilherme de Souza NUCCI, Tribunal cit., pp. 61/62.
Se a certeza quanto à demonstração da materialidade e de indícios suficientes de
autoria leva à pronúncia e a dúvida quanto a existência desses dois pontos leva à
impronúncia, a reforma processual penal de 20081245 definiu que a certeza da
“inexistência do fato” (certeza de inexistência de materialidade) e a prova de que o
acusado não é o “autor ou partícipe do fato” (certeza de que o imputado não é agente da
infração penal) levam à absolvição sumária prevista no atual art. 415, do Código de
Processo Penal.1246
Quanto à materialidade e autoria não há hipótese lógico-racional de convencimento
judicial que não esteja prevista em lei. Se tiver certeza de que ambos estão demonstrados
deve pronunciar, se tem dúvida sobre qualquer dos pontos deverá impronunciar e, por
fim, se tem uma certeza em sentido contrário à imputação, ou seja, tem certeza de que
está provada a inexistência da materialidade ou da autoria (ou da participação) deverá
absolver sumariamente.
A absolvição sumária ainda traz outros dois incisos para seu reconhecimento. O
inciso III, do art. 415, preceitua que deverá haver absolvição, já nesta fase, se o fato, a
despeito de provado (materialidade), for atípico (“não constituir infração penal), p.ex.,
verifica-se o crime impossível (art. 17, CP); e o inciso IV determina que haverá
absolvição se “demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime”.
Se o julgador tiver certeza quanto à ocorrência das situações previstas nos
dispositivos citados, deverá, conforme determina o texto legal, absolver sumariamente o
acusado, pondo fim ao processo. Porém, caso haja dúvida do julgador quanto à existência
de causa que exclua o crime ou isente o réu de pena ou, ainda, não tenha certeza quanto
a ser ou não o fato atípico, deverá seguir para a próxima fase processual diante do
Tribunal do Júri. Nessas hipóteses, a dúvida não cria a incidência do “in dubio pro reo”,
uma vez que remanesce a certeza judicial quanto à materialidade e a autoria e, portanto,
a imputação se mostra legítima para ultrapassar mais esse juízo de sua admissibilidade.
mais adiante (item 5.4.3.2.2 infra), com a revisão criminal. Para uma
restrição da presunção de inocência como “norma de juízo” sem a
correspondente e necessária redução como “norma de tratamento”, v.,
p.ex., o item 5.5.3.1 infra, ao se tratar da confissão.
A presunção de inocência, como “norma de tratamento”, tem relevância pois por ela
se garante que, até o término do devido processo penal, a esfera de direitos dos
indivíduos não sofrerá com eventuais atos estatais violadores. Porém, isso será tanto mais
efetivo e garantido se o julgador, a cada instante que seja chamado a decidir (p.ex.,
admissibilidade da acusação, determinação de medida coativa de qualquer espécie,
julgamento de mérito) demonstre em sua motivação que, baseado em um mínimo
probatório lícito e necessário ao nível cognitivo daquela decisão, não teve dúvida ao
proferi-la. Nesse contexto, há uma profícua e inevitável interação entre os aspectos
citados.1253
Tanto o primeiro significado da presunção de inocência (“norma de tratamento”)
quanto os demais (“norma de juízo” e “norma probatória”) são bens da vida diretamente
protegidos por ela.1254 Integram o “âmbito de proteção” dessa norma fundamental.
Quando se observa a presunção de inocência como “norma de tratamento”,
evidenciam-se com mais nitidez outros direitos fundamentais também garantidos por ela,
mas agora de modo indireto. Esses direitos são aqueles que sofrem constrições (totais ou
parciais) quando sobre a presunção de inocência se aplica uma intervenção estatal e, com
isso, antecipa-se um ou mais efeitos de eventual e futura condenação. Todas as espécies
de sanções penais previstas para as mais diversas infrações implicam lesão total ou parcial
a um feixe de direitos fundamentais; portanto, todas as vezes em que uma dessas sanções
é antecipada afasta-se (total ou parcialmente) a presunção de inocência e, com isso,
atingem-se indiretamente também outros direitos.
1253 Citam esses três aspectos, sem, contudo, colocarem a inter-relação nos
termos do texto: Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 39;
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 118; Perfecto ANDRÉS
IBÁNEZ, Presunción cit., p. 7; e Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit.,
p. 165.
1254 Entendem que a presunção de inocência comporta as manifestações
1258 Trecho final da redação original elaborada em 1940 para o art. 312 do
Código de Processo Penal. Para maiores considerações sobre o tema, v.
item 2.5.2.2 supra.
1259 Preceituava o art. 48 do referido Decreto-Lei: “A prisão em flagrante
1260 Deixa-se de tratar do art. 21 (“os crimes previstos nos arts. 16. 17 e 18
são insuscetíveis de liberdade provisória”) da Lei 10.826/2003,
denominado Estatuto do Desarmamento, que também vedava a
concessão de liberdade provisória para determinados crimes nela
previstos, uma vez que tal dispositivo foi declarado inconstitucional por
força da ADIn 3.112-1, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em
26.10.2007 e publicada no DOU de 10.05.2007. Ao que importa ao
presente ponto, extrai-se o seguinte trecho da ementa do aresto: “(...) V
– Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto a delitos elencados
nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto
magno não autoriza a prisão ‘ex lege’, em face do princípio da presunção
de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de
prisão pela autoridade judiciária competente. (...) IX – Ação julgada
procedente, em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos
parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do art. 21 da Lei 10.826, de 22
de dezembro de 2003”. Ressalta-se, desde já, que muitos trechos do
referido aresto serão utilizados no decorrer da exposição do presente
item.
1261 “Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta
1264 Assim dispõe o inciso XLIII do art. 5º da CR: “a lei considerará crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
1265 Sobre o tema da complementaridade entre presunção de inocência e
penal brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, cap. 13,
indica, já no título do referido capítulo, que há um direito à liberdade
provisória com ou sem fiança. Na mesma linha, v., ainda, Luis Gustavo
Grandinetti Castanho de CARVALHO, Processo cit., p. 209 e Antônio
Alberto MACHADO, Curso cit., p. 568. Alberto Silva FRANCO, Crimes
cit., pp. 455/457, identificando um “direito constitucional à liberdade
provisória”, inserido no já citado inciso LXVI do art. 5º da Constituição,
assevera que “pouco importa que o texto constitucional, referindo-se à
liberdade provisória, aluda à cláusula ‘quando a lei admitir’. Isto não
significa, à evidência, que a Constituição Federal, ao referir-se à
mencionada cláusula, tivesse autorizado o legislador ordinário a proibir,
de forma absoluta, ou mesmo em relação a certos e determinados
delitos, a liberdade provisória. Tal entendimento conduziria a lei
infraconstitucional a uma posição diametralmente oposta ao direito
fundamental consagrado pelo legislador constituinte e em contraste com
outros direitos fundamentais correlatos. O poder que o legislador
ordinário tem ao seu alcance, quer lhe seja atribuído expressamente ou
implicitamente, não pode englobar, em si, um poder de disposição” (op.
cit., p. 455).
1268 Sobre a excepcionalidade da prisão provisória em um modelo legislativo
1276 Veja-se, p.ex., o art. 3º da Lei 9.613/98, assim redigido: “os crimes
disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória
e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá
fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.
1277 A inconstitucionalidade, neste ponto, ressurte destacada com precisão
1285 No Estado de São Paulo está prevista a existência desse livro nas
Normas de Serviços dos Ofícios Judiciais, Tomo I, Capítulo V, Seção I
“Dos Livros do Ofício de Justiça Criminal”, art. 1.b.
1286 Com a atual Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), está vedada a
réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e
de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória”.
1295 Entre os dispositivos de leis especiais não se inclui, propositalmente, o
1296 Sobre prisão provisória obrigatória como dado revelador das bases
autoritárias empreendidas pelo legislador de 1941 no nosso sistema
processual penal e as suas conseqüências até nossos dias, v. item
2.5.2.2 supra. Sobre a excepcionalidade da prisão provisória, v. item
5.4.1.2.1.1 e sobre a liberdade no curso da ação penal ser a regra
estabelecida pela atual Constituição, enquanto a prisão é a exceção, v.
item 5.3.2.2 supra.
1297 Sobre a revogação tácita desse inciso, último remanescente originário
1298 Assim estava redigido o art. 594, antes de sua revogação: “O réu não
poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for
primário e de bons antecedente, assim reconhecido em sentença
condenatória, ou condenado por crime de que se livra solto”. Necessário
esclarecer que essa redação de referido artigo, não obstante bastante
dura e violadora em face da Constituição de 1988, já foi fruto de uma
mitigação legislativa em seu texto original por força da Lei 5.941/1973.
Antes dessa alteração, sua redação original mostrava toda sua afinidade
com o sistema de prisão provisória obrigatória do Código de 1941 e com
o já citado inciso I, do art. 393. Assim era a redação original do art. 594:
“O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança,
salvo se condenado por crime que se livra solto”. Como se vê, a
alteração de 1973 arrefeceu o dispositivo, sem contudo torná-lo
compatível com a presunção de inocência após a vigência da
Constituição da República de 1988.
1299 Sucedeu com o art. 408, que tratava da pronúncia e da prisão dela
1306 Não cabe aqui aceder a eventuais eufemismos, dizendo-se que o preso
provisório tem tratamento diverso do preso definitivo. Isto porque, diante
do sistema carcerário nacional, não há qualquer distinção material
quanto à forma de tratamento e ao respeito daqueles dois “tipos” de
presos. Além do que, a prisão (a título provisório ou a título definitivo),
conforme já destacado em vários pontos do trabalho (por todos, v. item
5.3.2 supra), permite a restrição de uma plêiade de outros direitos
fundamentais que também são atingidos de forma total ou parcial. No
sentido de que a prisão do condenado provisório, em decorrência do já
lembrado (e em bom tempo revogado) art. 594 do Código de Processo
Penal, “não significa considerá-lo culpado antes do trânsito em julgado
da sentença condenatória”, v. Julio Fabbrini MIRABETE, Processo cit., p.
649. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 436, posicionando-se conforme o
trabalho, assevera, em vernáculo: “A presunção de inocência não admite
que as pessoas embora não condenadas por sentença definitiva sejam
encarceradas, pois – qualquer que seja o discurso com que se pretenda
justificar esse encarceramento anterior à sentença ou o nome que se lhe
dê – ele supõe tratá-las como culpadas, já que a prisão preventiva
sempre tem um conteúdo nitidamente punitivo”. Concluindo mais
adiante: “Embora ordenada por um juiz, ‘em razão de seus pressupostos,
de suas modalidades e das dimensões que adquiriu, ela se converteu no
signo mais visível da crise da jurisdicionalidade, da administrativização
tendencial do processo penal e, sobretudo, de sua degeneração em
mecanismo diretamente punitivo’, é dizer, em ‘uma pena antecipada e/ou
preventiva no curso do processo”.
1307 Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 449/450, informa que também os
supra.
A “crença” de que com a decisão condenatória haveria a fuga (o que se pretende
evitar com a prisão) já vem desmentida ex ante, por todo o comportamento processual do
imputado que esteve solto no curso persecutório. Eventual periculum libertatis, nesses
casos, já se encontra afastado, ab initio, pelas reiteradas demonstrações de
comparecimento do imputado e, portanto, que não se furtou à persecução penal e nada
pode advir da decisão recorrível que afaste essa realidade. Haveria meras conjecturas
(para prender) em confronto a efetivas provas da sua submissão aos ditames legais e
processuais. A essa linha argumentativa falta justificação constitucional na medida em
que há presunção (de fuga) contrária ao “estado de inocência”. Esse “estado” impõe que a
prisão provisória seja excepcional, e para isso o “periculum libertatis” deve estar
devidamente comprovado, o que não ocorre uma vez que o argumento está fundado em
conjecturas.1327
Como se percebe, todas as quatro teses acima expostas e refutadas são favoráveis à
prisão provisória decorrente ato judicial recorrível por razões materiais e têm uma
inegável finalidade de antecipação de pena.
Não bastasse isso, o fato mais revelador de sua falta de justificação constitucional,
para servir sequer como restrição (intervenção estatal legítima) à presunção de inocência,
é que nenhuma delas se baseia em um ato efetivamente praticado pelo imputado
(condenado provisório ou pronunciado). Nascem da tão-só prolação de decisão judicial
recorrível. Sua finalidade em simplesmente antecipar a pena fica evidente quando se
percebe que a prisão decorre do indefectível encerramento de uma fase persecutória, não
guardando qualquer relação com o comportamento do imputado, seja em relação à
sociedade seja em relação à ação penal a que responde. Ele nada fez para merecer a prisão
nessa fase processual; ela advém pelo só fato de inevitavelmente se encerrar uma fase de
julgamento.
Como já se afirmou acima, não se nega a necessidade de que se tenha no sistema
processual penal a possibilidade de prender provisoriamente alguém.1328 Porém, a prisão
somente poderá ser decretada como uma decorrência direta do comportamento do
imputado no caso concreto. Não poderá advir de fatores estranhos aos fatos submetidos à
persecução, nem tampouco ter, como fundamento, a indefectível finalização de uma fase
processual.1329
242/245.
1335 “Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será
BADARÓ, Ônus cit., pp. 239/240, conclui que “o ônus da prova subjetivo
no processo penal será, sempre, um ônus imperfeito ou relativo, tendo
em vista que, além da atividade da própria parte onerada, também é
possível a produção de prova por iniciativa judicial, bem como a
utilização das provas produzidas pela parte contrária, ante a regra da
aquisição das provas. Concebido o Ministério Público como uma parte
interessada na persecução penal, desejando ver provada a tese
acusatória, é perfeitamente possível afirmar que ao Ministério Público
incumbe o ônus da prova dos fatos necessários para a condenação
penal (...). Já com relação ao acusado, que também possui interesse
individualizável na persecução penal, seria possível admitir que, se ele
não se desincumbisse da produção da prova dos fatos que lhe são
favoráveis, haveria um prejuízo. Estaria aí configurado o ônus subjetivo
do acusado. Contudo, diante do ‘in dubio pro reo’, que é a regra de
julgamento que vigora no campo penal, o acusado jamais poderá ser
prejudicado pela dúvida sobre um fato relevante para a decisão do
O segundo ponto da presunção de inocência como “norma probatória” (por meio de
que tipo de prova) fixa que a prova a ser produzida nos autos pelo órgão acusador não
pode ser qualquer prova, mas deve ser uma prova lícita, ou seja, uma prova buscada,
produzida, analisada e considerada pelo juiz dentro dos padrões definidos pela
Constituição1345 e pelas leis.1346 Nesse ponto ocorre a complementaridade entre os direitos
fundamentais da presunção de inocência e da inadmissibilidade processual das provas
ilícitas.1347
317/319.
1350 Por ser o presente trabalho voltado ao âmbito do direito processual
5.4.2.3.1. Mínima atividade probatória: “in dubio pro reo” e “favor rei”
1355 Sobre o “favor rei” como “regra de juízo”, v. Gilberto LOZZI, “Favor rei”
cit., cap. I. No mesmo sentido, relacionando agora o “in dubio pro reo”
com o que no texto denominamos “norma de juízo”, v. Geórgia Bajer
Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela da liberdade no processo
penal, São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 79/80. Sobre a relação do “favor
rei” e do “in dubio pro reo” como aspectos da presunção de inocência, v.
itens 5.4.1, 5.4.1.1 e 5.4.1.3 supra.
A partir dessa orientação axiológica de natureza constitucional, o juiz deverá decidir
a cada instante em que for chamado para apreciar os direitos do cidadão. Isso faz com
que a incidência do “in dubio pro reo” e do “favor rei” não se dê apenas no instante do
julgamento do mérito de uma causa, mas ocorra durante todo curso da persecução, seja
para decidir medidas restritivas aos direitos fundamentais do cidadão ou seja para decidir
sobre a legitimidade da progressão persecutória em suas várias fases e procedimentos.
Como se verá adiante, a presunção de inocência como “norma de juízo” atinge até
mesmo a fase revisional, porquanto nela incidem aqueles valores constitucionais que
sempre devem estar presentes em qualquer decisão judicial que julgue controvérsias
penais e, portanto, envolva direitos fundamentais do cidadão.1356
Exposto como e por que a presunção de inocência como “norma de juízo” é
orientada pelo “in dubio pro reo” e pelo “favor rei”, cabe analisar em que consiste esse
seu específico sentido.
Esse crucial instante (“norma de juízo”) pode ser sintetizado em uma única idéia:
suficiência. Suficiência do material probatório incriminador para se decidir de modo
desfavorável ao imputado.
Não há consenso ou um critério seguro na doutrina e jurisprudência estrangeiras
sobre o que seja “mínima atividade probatória” ou “atividade probatória suficiente” para
se afastar a presunção de inocência. Há um consenso de que ela deve ser identificada em
cada caso, não podendo se buscar apenas critérios quantitativos (número mínimo de
provas) ou qualitativos (meio mais eficaz de prova).
Percebe-se, contudo, certo consenso em se fixar um dever argumentativo maior
para o juiz em casos de provas contraditórias (p.ex., testemunhos conflitantes), de
credibilidade contestada (p.ex., depoimento da vítima, de crianças ou de pessoas
interessadas na causa), ou de relação indireta com o thema probandum (p.ex., prova por
indício). Não obstante essa dificuldade, pode-se extrair certa tendência de se analisar o
material probatório de maneira global e conjunta e, ainda, de que a dúvida gerará a
declaração de inocência sempre que houver falha ou insuficiência probatória em
qualquer ponto necessário para se demonstrar a materialidade ou a autoria.1357
além da dúvida razoável, v.: Francisco tomas y valiente, “In dubio pro
reo” cit., p. 28; Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit., p. 362; idem,
La presunción cit., pp. 25 e 39/41; Pedro CARBALLO ARMAS, La
presunción cit., pp. 22/23; Ernesto PEDRAZ PENALVA, Derecho cit., p.
333; Francisco CAAMAÑO, La garantia cit., pp. 229/230 e 242/243;
Mario CHIAVARIO, La convenzione cit., pp. 376/378; idem, Processo cit.,
pp. 122/124; Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 164/173;
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 199/204; e Ana María
OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 136/138.
Não há como analisar, nos limites do presente trabalho, todos os relevantes aspectos
relacionados com o tema, porquanto isso passaria, necessariamente, pelo exame dos
vários meios e fontes de prova e sua eficácia para influir no convencimento judicial em
face dos vários tipos penais e seus diversos componentes, assim como em relação a
eventuais causas excludentes de antijuridicidade ou culpabilidade.
Nesse contexto, o que releva destacar sobre a presunção de inocência como “norma
de juízo” é a orientação axiológica empreendida pelo “in dubio pro reo” e pelo “favor
rei”, e a necessidade de o julgador demonstrar o mínimo probatório necessário para
afastar aquele direito constitucional em todas as decisões penais que for chamado a
proferir.1358
Na decretação da prisão provisória, em qualquer de suas modalidades, há que haver
mais que suspeitas, versão da vítima ou elementos de uma investigação incipiente; são
necessários robustos elementos incriminadores para que a convicção judicial possa ser
formada em bases seguras.1359 O mesmo pode ser referido ao instante do julgamento do
mérito da causa.1360 Em ambos os tipos de decisões é necessário mais que suspeitas, é
necessária a certeza da materialidade e um alto grau de probabilidade de autoria. É isso
que se deve entender pela expressão legal “indícios suficientes”, prevista para a prisão
preventiva (art. 312, CPP) e que baliza não apenas todas as espécies de prisão
provisória,1361 mas também é utilizado para regrar o nível cognitivo judicial, ao decidir
pelo recebimento da peça acusatória inicial1362 ou para pronunciar o imputado.1363
1358 Sobre as absolvições sumárias (art. 397 e 415, CPP) serem restrições
(limitações legitimas) à incidência do “in dubio pro reo”, v. itens
5.4.1.3.2.1 e 5.4.1.3.2.2 supra.
1359 Quanto à necessidade de se chegar à suficiência para, no tema da
1367Como a pena prevista para o referido crime vai de um a três anos, para
utilização do exemplo descarta-se a possibilidade de aceitação da
proposta de suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da
Lei 9.099/95.
Qualquer aspecto que não contenha prova incriminadora dirigida para demonstrar
sua ocorrência somente poderá ser racionalmente suplantado pelo julgador se ele indicar,
com um dever argumentativo maior, com que base racional e por meio de quais escolhas
interpretativas ou axiológicas superou aquele ponto. É o que ocorre, p.ex., quando se
utiliza da prova indiciária para colmatar eventual aspecto carente de prova
incriminadora direta.
O julgador precisará convencer, por meio de uma racionalidade a ser integralmente
exposta, como foi possível superar aquela dúvida inerente àquele ponto sem prova
incriminadora direta. Tornando a dúvida superável por argumentos racionais, estará
colocando sua decisão além de qualquer dúvida razoável (“beyond reasonable doubt”), ou
seja, ela estará limitada à dúvida teórica, sempre possível em qualquer caso. Somente
após dar cabo a essa tarefa argumentativa, poderá decidir desfavoravelmente ao
imputado.
5.4.2.3.2. Motivação da decisão penal: verificação das razões de decidir
Se o juiz verifica a “verdade” das partes por meio das provas, as partes verificam a
“verdade” do juiz por meio da motivação.
Não obstante as várias imprecisões técnicas que podem ser apontadas na frase
anterior, ela tem a qualidade de marcar que as partes influem no convencimento judicial
por meio das provas apresentadas no curso da persecução, e o juiz, por sua vez,
convencerá as partes de suas razões pela forma como justificar suas decisões. Se para o
juiz se convencer das teses apresentadas na causa penal o único meio utilizado deve ser o
exame do material probatório dos autos, a única maneira para que as partes
compreendam as razões de decidir é examinar a motivação judicial.
Dado que o tema da motivação das decisões judiciais tem extensa e profunda
complexidade, ao presente trabalho importa ressaltar que ela é o meio objetivamente
mais seguro para se verificar até que ponto o juiz traz, para o instante decisório,
influências externas aos autos, estranhas à causa e, por essa razão, inconstitucionais.1368
Se por um lado não se pode desconsiderar todos os avanços que a filosofia, a
psicologia e a psicanálise apresentam no sentido de demonstrar que não há interpretação
fática ou legal neutra e isenta de influxos e carga pessoal do intérprete (juiz), também
não se pode negar que o exame das razões expostas na motivação é a forma mais direta de
se fazer um controle do ingresso desses influxos pessoais e/ou extra-autos nas escolhas
judiciais ao decidir.1369
3.8.2.2.3 supra.
1386 Sobre os efeitos irradiantes e horizontais como efeitos dos direitos
1406 Nilo BATISTA, Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 4ª ed., Rio
de Janeiro: Revan, 1999, pp. 93/94, com apoio no princípio da lesividade
rechaça a concepção da “periculosidade”, e seus consectários (p.ex.,
medida de segurança), por demonstrá-la um subproduto do “direito penal
do autor”, cujo primado básico para a punição (definitiva ou antecipada)
reside no “simples estado ou condição” do homem. Sobre a construção
da noção de periculosidade na Escola Positiva e sua incidência no tema
da presunção de inocência, v. itens 2.3.1 e 2.3.2 supra.
1407 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, Nilo BATISTA, Alejandro ALAGIA e
Alejandro SLOKAR, Direito cit., pp. 133/134, afirmam que não há sistema
penal puro, ou seja, que opte apenas pelo Direito Penal do Autor ou pelo
Direito Penal do Ato, mas que esse, por suas características intrínsecas,
empresta maior racionalidade ao sistema punitivo. Sobre o Direito Penal
do Ato, esclarecem que “em suas mais puras versões, o direito penal do
ato concebe o delito como um conflito que produz uma lesão jurídica,
provocado por um ato humano como decisão autônoma de um ente
responsável (pessoa) que pode ser censurado e, por conseguinte, a
quem pode ser retribuído o mal na medida de sua culpabilidade (ou seja,
da autonomia da vontade com que atuou)”.
A presunção de inocência sempre existirá para o cidadão em todas as persecuções
penais a que for submetido. Não se esvai em eventual nova persecução penal se já houve
uma condenação (definitiva ou provisória) anterior. Renova-se a cada imputação e,
mesmo que eventualmente existam registros criminais anteriores ou mesmo que tenha
sido condenado definitivamente em feito passado, não se pode negar tal direito
fundamental ao indivíduo na ação penal a que esteja submetido. Assim como também
não se pode negar-lhe o direito à ampla defesa, ao contraditório, à publicidade dos atos,
ao duplo grau de jurisdição, etc., em cada novo feito criminal que vier a responder. Com
a presunção de inocência não seria diferente. A condenação penal não é cicatriz nem
marca social ou jurídica que impeça, técnica ou constitucionalmente, a plena aplicação
da presunção de inocência. Negá-la é fruto de preconceito e de um atuar
inconstitucional.
Esses influxos criminológicos inconstitucionais não estão dispostos em nossa
legislação, por isso não podem ser citados e analisados no espaço do âmbito de proteção
da norma constitucional da presunção de inocência.1408 Porém, são utilizados como
razões (expressas ou implícitas) de decidir com freqüência maior do que se desejaria e
devem ser detectados quando do exame da motivação judicial pelas partes. Constituem
razões inconstitucionais de decidir e, portanto, se identificados, permitem a reforma da
decisão (de mérito ou de qualquer outra natureza restritiva a direito fundamental).
A exposição dessas linhas criminológicas, neste instante do trabalho, sem a
pretensão de desenvolvê-las, tem como finalidade demonstrar a qual ponto da estrutura
normativa da presunção de inocência elas tocam e ferem e, por conseqüência, que
também pela perspectiva desse direito fundamental elas são inconstitucionais.
Aspecto ainda relevante a se discutir quanto ao titular da presunção de inocência
diz respeito com as hipóteses em que a pessoa jurídica pode figurar como autora de crime
ambiental, conforme previsto na Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais).1409 A questão
relevante se coloca nos seguintes termos: há presunção de inocência para a pessoa
jurídica? Entendemos que a resposta deva ser: SIM.
processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, pp. 61/62, já
lecionava, mesmo antes da atual Constituição, que toda investigação
deve ser livre para descobrir a verdade, mas seus atos devem encontrar
como limite a vedação ao “arbítrio” e à “injusta lesão a direitos individuais
e suas garantias. Por isso, cerceia-se, mui justamente, a liberdade de
investigação, quando, por exemplo, envolva invasões domiciliares,
buscas e apreensões forçadas, detenções prolongadas, medidas essas
cujo caráter jurisdicional não pode ser posto em dúvida”. No mesmo
sentido de garantir direitos fundamentais já na fase de investigação
preliminar, v. Antonio SCARANCE FERNANDES, Reação cit., itens 3.4 a
3.8.
1419 Na exata dimensão de todo o exposto neste item, tem se manifestado o
1421 Nesse sentido, Eduardo Maia COSTA, A presunção cit., pp. 71/72. No
Estado de São Paulo, a Delegacia Geral de Polícia editou a Portaria
DGP 18/98, dirigida a todos agentes públicos integrantes daquela
instituição, pela qual está determinado que o “indiciado será interrogado
e o ofendido será perguntado, com a observância das garantias
constitucionais” (art. 8º). Na mesma determinação administrativa ainda
consta que todos os servidores zelarão pela imagem, privacidade, nome
e intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas ou
à disposição na condição de vítimas, sendo que todas devem ser
orientadas de seus direitos constitucionais (art. 11). Sobre o dever das
autoridades públicas preservarem a imagem do imputado de abusos por
parte dos meios de comunicação, v. item 5.5.1.1 infra.
1422 No sentido de que a prisão provisória para esse fim viola a presunção
supra.
1427 Nesse sentido, v. Vicente GRECO FILHO, Manual cit., p. 457, e
p.ex.: “Em ação revisional não tem lugar o princípio do ‘in dubio pro reo’.
No reduto desta cabe ao requerente demonstrar de maneira inequívoca
e convincente o erro da decisão condenatória hostilizada. (...) Em revisão
criminal indaga-se somente se os autos verdadeiramente espelham uma
realidade diante da qual a condenação não possa subsistir, ou por
desgarrada de todos os elementos probatórios, ou por contrariar o texto
da lei, ou ainda se estiver estribada em prova falsa. Ausente o erro
judiciário, a revisão deve ser indeferida. Unânime” (RJTJRGS 159/79).
No sentido oposto, de reafirmar o “in dubio pro reo” e o “favor rei”
também na revisão criminal, v.: Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio SCARANCE FERNANDES,
Recursos cit., item 222; Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp.
156/157; e Adauto SUANNES, Os fundamentos cit., p. 299.
1428 Sobre a autonomia entre essas manifestações da presunção de
inocência, v. item 5.4.2 supra. Sobre a incidência do “in dubio pro reo” e
do “favor rei” na presunção de inocência como “norma de juízo”, v. itens
5.4.2.3.1 supra. Sobre a inter-relação entre esses três conceitos, v. itens
5.4.1.1 supra.
1429 Sobre a cláusula restritiva constitucional expressa ser modo legítimo de
1430 Sobre a distinção entre norma e texto normativo v. itens 3.7.1 supra.
1431 Como leciona Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão cit., p. 156, em “cinco
hipóteses a sentença condenatória com trânsito em julgado pode ser
revista: 1ª – violação ao texto expresso de lei penal; 2ª – contrariedade à
evidência dos autos; 3ª – sentença fundada em depoimentos, exames ou
documentos comprovadamente falsos; 4ª – descoberta de novas provas
de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou
autorize diminuição da pena; 5ª – configuração de nulidade do processo.
As quatro primeiras hipóteses estão expressamente indicadas no art.
621 do Código de Processo Penal. Do texto do art. 626 foi extraído o
último caso de revisão, conforme entendimento doutrinário e
jurisprudencial”.
1432 José I. CAFFERATA NORES, Proceso cit., p. 83, sem fazer qualquer
1442 Aplicação interessante do “in dubio pro reo” quanto ao tema dos
julgamentos colegiados é trazida por Carlos Augusto BONCHRISTIANO,
A aplicação do princípio in dubio pro reo nos tribunais, Revista de
Julgados do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, São
Paulo, v. 29, jan./mar. 1996, pp. 21/24. Para ele, os recursos de
apelação e em sentido estrito deveriam ser julgados por apenas dois
desembargadores e, no caso de divergência entre eles, a decisão
deveria ser a mais favorável ao imputado pela incidência do “in dubio pro
reo”.
1443 No sentido de entender por “lei penal” tanto a lei penal material, como a
1445 Sobre nossa distinção conceitual entre restrição e violação, v. item 4.4.3
supra.
1446 A única exceção a essa escolha expositiva ocorreu ao se analisar a
Juizados cit., p. 521, indicam que o art. 199 da Lei 7.210/84 (Lei de
Execução Penal), que prevê, há quase vinte e cinco anos, que o uso de
algemas seria regulado por decreto federal, espera normatização. No
parágrafo primeiro do art. 234 do Código de Processo Penal Militar (“O
emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de
fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido,
nos presos a que se refere o art. 242”) há uma incipiente
regulamentação que não atende e não é observada em muitas
ocorrências cotidianas. Após a edição da Súmula Vinculante nº 11, pelo
Supremo Tribunal Federal em sessão de 13/08/08 e publicada em
21/08/08, o Congresso Nacional teve iniciativas de regulamentar a
matéria. Na Câmara dos Deputados surgiu o PL nº 3.887/2008, que não
teve movimentação desde que foi proposto, em agosto de 2008. No
Senado Federal, um projeto de lei de 2004 sobre a matéria (PLS nº
185/2004), teve parecer da Comissão de Constituição e Justiça, em 20
de agosto de 2008, e não foi novamente apreciado desde então. Como
se vê, há uma forte tendência do Congresso Nacional em somente
atender aos reclamos quando as matérias ganham os noticiários,
voltando tudo ao esquecimento após um curto período.
1459 O Supremo Tribunal já se manifestava sobre a necessidade de se coibir
punição sem lei que a fundamente e, o que é mais e pior, sem causa
específica e sem reparação moral possível para os danos que a imagem
do preso teria arcado” (STF – 1ª T. – HC 89.429 – j. 22.08.2006 – DJU
02.02.2007).
1460 Nesse sentido, comentando acórdão do Tribunal de Justiça de São
Sem se ingressar em tema tão conflituoso e que tem reclamado especial atenção da
doutrina, afirme-se que a atividade dos meios de comunicação não pode ser tida, em tese,
como violadora da presunção de inocência ou de qualquer outro direito fundamental,
p.ex., os direitos à intimidade, à honra ou à vida privada do cidadão. A violação advém
apenas do abuso e do excesso no exercício dessa atividade profissional.
Limitando o tema à presunção de inocência no processo penal, pode-se verificar que
o desenvolvimento de seu estudo deve ser realizado a fim de orientar comportamentos
dentro de parâmetros constitucionais.1462 Para isso, é necessário se ter claro que a relação
entre presunção de inocência e mídia envolve um duplo sentido: no primeiro, importa
analisar a exposição (abusiva) do imputado; e, em um segundo sentido, releva os efeitos
que a mídia projeta na persecução penal, notadamente na decisão judicial.
No primeiro sentido, a presunção de inocência, como “norma de tratamento”,
garante ao imputado a proteção da imagem, honra, vida privada e intimidade no curso da
persecução.1463 No segundo sentido, atua em seu significado de “norma de juízo” e, como
tal, impede que os influxos provocados pelos meios de comunicação ingressem na ação
como fatores incriminadores. A análise que segue, portanto, será orientada por essas duas
perspectivas.
1483 Preceitua o atual art. 155: “O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas”.
1484 Quando tratamos do tema da presunção de inocência como “norma
62/63.
1489 Em artigo específico sobre o tema, Gustavo Henrique Righi Ivahy
1495 Nesse sentido, v. Guilherme de Souza NUCCI, O valor cit., pp. 87/88.
É nesse sentido que a doutrina desde há muito abandonou a confissão como a
“rainha das provas” (“probatio probatissima”) e exige que seja feito um cotejamento com
as outras provas processuais.1496 Nossa própria legislação processual penal tem
determinação no sentido de que ela terá sua apreciação judicial confrontada “com as
demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade e
concordância”.1497 A confissão isolada, inverossímil ou em contradição com as demais
provas, não só perde a sua eficácia de convencer como deve despertar no magistrado a
atenção para se certificar se ela não foi movida por razões ilegítimas e que tiram a
validade da disposição, pelo imputado, de seu direito à presunção de inocência.
Antes de se tomar a confissão como renúncia de a dúvida fática ser decidida em
favor do imputado (“in dubio pro reo”), ainda é necessário ao juiz verificar a
espontaneidade do ato e que ele foi precedido de orientação de profissional técnico
(defensor habilitado).
A confissão pode ser um ato de vontade do confesso ou pode ter sido provocada por
algum tipo de ameaça ou violência que tenha sofrido. No primeiro caso, se faltar-lhe
veracidade, o imputado poderá ser processado pelo crime de auto-acusação falsa.1498 Já na
segunda hipótese, tratando-se de confissão provocada por terceira pessoa, ele poderá
estar na condição de vítima de eventual crime de tortura.1499
Como se vê, muito diferente do que se podia imaginar na fase da Inquisição, a
confissão não é meio de abreviar a instrução probatória, mas implica aumento de
cuidados por parte do juiz.1500 Até mesmo porque, como é cediço, a confissão não é ato
natural do imputado e sua ocorrência somente será legítima se espontânea e precedida de
orientação técnica.1501
1496 Nesse sentido, v., por todos, Aury LOPES JÚNIOR, Direito cit., p. 610, e
Guilherme de Souza NUCCI, O valor cit., pp. 181/182.
1497 Assim está disposto no Código de Processo Penal: “Art. 197. O valor da
Quando do advento da Lei 9.099 de 1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis
e Criminais, muito se debateu se o instituto da transação penal representaria violação à
presunção de inocência e a outras garantias constitucionais. Limitando-nos às críticas à
presunção de inocência, foi afirmado que este direito fundamental restaria violado
porquanto, ao haver a aceitação da proposta da transação penal, ocorreria uma assunção
de culpa, sem o necessário “devido processo legal” e sem a necessária produção de provas
lícitas, indispensáveis para afastar aquele princípio fundamental.1509
se citar: art. 159, § 4º, do Código Penal; art. 25, § 2º, da Lei 7.492/86;
art. 8º, par. único, da Lei 8.072/90; art. 16, par. único, da Lei 8.137/90;
art. 6º da Lei 9.034/95; art. 1º, § 5º, da Lei 9.613/98; arts. 13 a 15 da Lei
9.807/99; e art. 41 da Lei 11.343/06.
1509 Nesse sentido, v., por todos, Miguel REALE JÚNIOR, Pena sem
Conclusão
Entendemos que uma conclusão deve conter aquilo que resta de útil e de inovador
após o término de um trabalho, ao se deixar de lado a pena. Neste último instante, não se
fará uma síntese formal do que se expôs, mas se demonstrará as principais diretrizes
empreendidas e aceitas no caminho trilhado.
No tema da presunção de inocência o estudo tanto dos fragmentos históricos mais
antigos quanto da história recente do século passado assume relevante papel. É da
consistência nessa reconstrução que se vai revelando ao estudioso aspectos importantes
para a compreensão das razões pelas quais a presunção de inocência nunca existiu, ao
menos nos moldes de um Estado Democrático de Direito, até o Iluminismo. Revelam-se
os motivos de sua refutação desde o início do século XIX até meados do século XX e,
ainda, por que ela emergiu revivificada após as duas Grandes Guerras desse último
século. A história também nos ensina como alguns argumentos tidos na atualidade como
“modernos” ou “inovadores” (p.ex., o direito penal e processual do inimigo) nada mais
são do que envergonhados remendos de antigos pensamentos violadores do ser humano e
pelos quais a humanidade sempre foi conduzida a guerras.
Com a reconstrução histórica se demonstrou que pouco importa se o sistema
processual penal é de modelo inquisitivo ou acusatório, não é esse perfil que mais
diretamente garante a presunção de inocência. Claro que no modelo inquisitivo ela
jamais poderá existir, para isso foi de grande valia os estudos do direito romano, em cada
uma de suas fases, e da Inquisição. Se o modelo acusatório lhe é mais afeito, também não
é suficiente, por si só, para garantir a presunção de inocência, porquanto tivemos
sistemas acusatórios tanto em pequenos momentos da civilização romana, assim como na
Alta Idade Média, sem que neles se pudesse identificá-la.
O que o Iluminismo teve de diferente desses sistemas que o antecederam, foi que
nele eliminou-se a figura do “hostis”, do inimigo, do herege, do opositor político, etc.
Enfim, foi ao final do século XVIII, após vários séculos de sistemas processuais
repressivos e punitivos, que emergiu como primado juspolítico a igualdade entre os
homens. Aliando esse ponto à liberdade, à legalidade e ao respeito à dignidade do outro
(fraternidade), teve-se a base necessária para a inscrição da presunção de inocência.
A história ainda demonstrou por que foi na própria França que, no período pós-
revolucionário, Napoleão Bonaparte eliminou a presunção de inocência como dispositivo
constitucional e criou o sistema processual penal misto francês, em hábil reconstrução de
um sistema de essência inquisitiva, conquanto apresentasse uma segunda fase
formalmente acusatória.
Após o estudo histórico ter demonstrado que um modelo acusatório de processo
penal não é suficiente para se garantir a presunção de inocência, também se verificou que
um apuro técnico-científico das instituições jurídico-criminais não implica,
necessariamente, respeito a esse direito constitucional, nem sequer a um processo mais
justo. Garante apenas uma melhoria técnica, que se colocará a serviço dos desígnios do
ocupante do poder, sejam eles quais forem.
Nesse contexto foi crucial o estudo histórico, agora com maior ressalto das linhas
criminológicas empreendidas pela Scuola Positiva e pela Escola Técnico-Jurídica
italianas. Essa última corrente criminológica foi a grande artífice da elaboração do
Código de Processo Penal italiano de 1930, em pleno vigor do regime fascista de Benito
Mussolini. Foi ela quem, com apurada técnica jurídica, concebeu um sistema criminal ao
feitio dessa ideologia. Nesse espaço político não havia como se respeitar a presunção de
inocência, porque não havia como se respeitar a igualdade a todos os indivíduos, voltou-
se, portanto, à figura do “hostis”, prova disso é que a presunção de inocência foi
alcunhada de “assurdità teorica” pelos técnico-positivistas.
Nessa fase do final do século XIX e início do século XX surgiram as construções
teóricas de “periculosidade” e de “defesa social”, citadas e pugnadas pelo legislador de
1940, quando da elaboração de nosso (ainda) vigente Código de Processo Penal. O
surgimento dessa legislação nacional, portanto, trouxe em seu âmago todas essas linhas
teóricas e criminológicas inconciliáveis com a presunção de inocência.
Ao final da exposição e crítica dos fundamentos dessas correntes criminológicas
européias, foi inevitável traçar um paralelo delas com nosso ainda atual Código de
Processo Penal. Para tanto foi primordial ressaltar o instante político vivido pelo Brasil
no Estado Novo getulista. Feito isso, pôde se compreender que foi total o ingresso desses
pensamentos criminológicos em nossa legislação, notadamente ao se ressaltar o texto
original do código em pontos como: a fase investigativa preliminar (inquérito policial); a
prisão obrigatória; o interrogatório; a confissão; os amplos poderes instrutórios judiciais
em cotejo com o sistema da livre apreciação da prova; e, por fim, a sentença absolutória
por insuficiência de prova para a condenação. Muitos desses pontos, inclusive, foram
repristinações de institutos já conhecidos e usados desde o período romano e
“atualizados” na Inquisição.
Essa desanimadora constatação de que, em alguns institutos processuais penais,
ainda vige no Brasil do século XXI o pensamento e o ideário da Inquisição,
“modernizados” pelo nazifascismo do início do século XX, somente é afastada pelo
advento da atual Constituição, de 1988. Ela passa a ser, portanto, o único esteio legítimo
para deixarmos no passado, de modo definitivo e para sempre, essa cultura jurídica
geradora de desagregações e marginalizações entre os cidadãos.
Por essa razão, o trabalho assume um embasamento constitucional voltado à análise
dos direitos fundamentais. Expostas as construções político-legislativas do pós-guerra a
partir de meados do século XX, o Brasil se insere definitivamente na comunidade
internacional, assumindo o compromisso de cumprir um rol de direitos humanos. Como
demonstração dessa postura internacionalmente alinhada, promulga uma nova
Constituição (1988) e incorpora em seu texto a presunção de inocência, dentre outros
direitos fundamentais. Declara-se um Estado Democrático de Direito e fixa como um de
seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, garantindo a todos os
cidadãos a igualdade e o devido processo legal. Bases juspolíticas sem as quais não há
espaço racional ou legal para a inserção da presunção de inocência.
Contudo, se isso é suficiente para a sua inscrição e concepção, não é o bastante para
sua efetivação na vida cotidiana dos cidadãos e na vida forense. Se o Brasil já atingiu
aquele estágio (inscrição constitucional), a dificuldade na efetivação plena daquele
direito fundamental já dura mais de 20 anos.
Trazendo ao estudo os desenvolvimentos das teorias constitucionais dirigidas aos
direitos fundamentais, ressaltou-se que é insuficiente, improdutiva e ultrapassada a visão
de que esses direitos voltados ao processo penal estão sempre fundados em interesses
individuais, em contraposição com o interesse (sempre público) de punir e garantir a
“defesa social”.
Várias teorias constitucionais estão conformes em reconhecer um aspecto subjetivo
e outro objetivo ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais, dentre os quais se
inserem os processuais penais. Mercê dessa dúplice perspectiva, mostra-se, a um só
tempo, que a presunção de inocência tem em sua justificação interesses públicos e
coletivos, tanto que inserida dentre os direitos constitucionais mais relevantes para a
coletividade, e, outrossim, possui um conteúdo objetivo que impõe ao Estado os deveres
de tutelá-la e efetivá-la e, aos agentes privados, a obrigação de respeitá-la. A presunção
de inocência não é, portanto, apenas um dever do Poder Judiciário. Seu reconhecimento,
como direito fundamental, fixa deveres para todos os Poderes da Nação e, também,
compromissos para os agentes privados.
Com isso se demonstrou que a maior violação à presunção de inocência é a inércia
legislativa em conformar uma nova legislação infraconstitucional ao seu feitio, assim
como aos demais direitos fundamentais. Seguramente, como se demonstrou em muitos
pontos do trabalho, esse não cumprimento do “dever de legislar” está à base da maioria
das violações àquele princípio constitucional.
Continuando na análise da presunção de inocência pela perspectiva das teorias
constitucionais dos direitos fundamentais, optou-se pela “teoria dos princípios”. Linha
teórico-analítica pela qual se entende que se pode garantir, no maior espectro possível e
do modo mais coerente, a defesa racional não apenas da presunção de inocência, mas
também dos demais direitos constitucionais voltados ao processo penal.
Nessa esteira argumentativa, foi fundamental diferenciar as estruturas normativas
entre “regra” e “princípio”, incluindo nessa segunda categoria a presunção de inocência.
Isso implica reconhecê-la como um direito prima facie, o que significa que deverá ser
protegido e garantido na maior medida possível, segundo as condições fático-jurídicas do
caso concreto. Essa via teórico-racional da presunção de inocência não determina que ela
seja sempre garantida de forma absoluta e total, mas que deverá ser assegurada ao
máximo, sendo que em hipóteses excepcionais, como se demonstrou no último capítulo
do trabalho, alguns de seus significados poderão ser suprimidos. Por exemplo, como
“norma de tratamento”, em situações em que se legitima a prisão provisória.
Na análise da estrutura normativa da presunção de inocência o suporte fático amplo
desempenha papel crucial, pois ele é composto tanto pelo âmbito de proteção da norma
como por suas intervenções estatais. O suporte fático abstrato, nessa concepção ampla,
compreende todos os fatos, atos e situações da vida, enfim, os bens jurídicos protegidos
pelo enunciado de uma norma fundamental e de cuja realização ou violação decorre uma
conseqüência jurídica; é a previsão legal e suas decorrências jurídicas. Pela perspectiva
concreta, é a ocorrência, de acordo com as condições fático-jurídicas, do previsto no
texto normativo.
O âmbito de proteção, também examinado em moldes amplos para se manter a
coerência com nossa aceitação de suporte fático amplo, está composto pelas realidades da
vida consideradas “bens” ou “domínios existenciais”, tais como vida, domicílio, religião,
educação, criação artística, liberdade, etc. É o ponto crucial para a dogmática dos direitos
fundamentais e sobre o qual incidem as intervenções estatais.
Sobre as intervenções estatais, foi relevante demonstrar que elas se subdividem em
restrição (intervenções estatais legítimas) e violações (intervenções/inércias estatais
ilegítimas). Estas últimas não integram, conforme linha teórica aceita no presente
trabalho, o suporte fático amplo e, portanto, se ocorrentes, deverão sobre elas incidir as
conseqüências jurídicas previstas na norma. Mercê daquela perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais, antes expendida, constata-se, mesmo para os direitos de primeira
geração, dentre os quais se inclui a presunção de inocência, que a “inércia estatal” integra
o conceito amplo de intervenção. Daí ter-se afirmado que a inércia legislativa em se
conformar um novo sistema processual penal que garanta a presunção de inocência é
uma violação a esse direito.
Pela teoria constitucional adotada o suporte fático não é absoluto, isso significa
dizer que nem o âmbito de proteção previsto abstratamente será sempre verificado em
cada caso, nem tampouco as restrições ficarão sem limites. Em matéria de direito
fundamental, qualquer forma de redução em seu conteúdo essencial, da mais tênue até a
mais invasiva, deve ser considerada intervenção estatal. Das intervenções estatais,
justificam-se constitucionalmente apenas as restrições, e, mesmo para elas, deve haver
limites.
Isto significa dizer que, para um direito fundamental, com estrutura de norma-
princípio, ser tendencialmente expansível, suas restrições (quaisquer que sejam,
pequenas ou grandes) devem ser tendencialmente reduzidas. Nesse contexto, torna-se
relevante o papel desempenhado pelo exame da proporcionalidade das restrições.
Esse exame foi por nós adaptado ao feitio do processo penal, logo, antes do exame de
seus tradicionais elementos identificados como “adequação”, “necessidade” e
“proporcionalidade estrito senso” (ponderação ou sopesamento), inserimos a necessária
verificação do que a doutrina processual penal já denominou de pressupostos e requisitos
extrínsecos da proporcionalidade. Nesse contexto, a “legalidade” e a “justificação”,
constitucional ou teleológica – uma vez que demonstramos guardarem sinonímia para as
finalidades do presente estudo –, são os pressupostos; já a “judicialidade” e a “motivação”
compõem os requisitos extrínsecos.
A proporcionalidade das restrições deve ser analisada tanto em nível legislativo,
quando assume pertinência como sopesamento (ou ponderação), quanto no plano
judicial, quando poderá ser utilizada seja para a verificação da constitucionalidade das
leis processuais penais, seja para a constatação da legitimidade em sua
interpretação/aplicação.
Ao se aplicar toda a base teórica até aqui desenvolvida na utilização prática de
alguns institutos processuais, o exame da proporcionalidade em nível judicial
desempenha papel relevantíssimo e se aplica em dois momentos. Pelo viés do exame
judicial da constitucionalidade da lei, a verificação do (in)correto sopesamento legislativo
para a elaboração da lei pode levar à conclusão de sua (in)constitucionalidade. Se o
dispositivo legal violar o sistema constitucional será expungido do ordenamento, por
força de decisão judicial.
Em outro momento do exame judicial, que parte do pressuposto de que o texto
normativo é uma intervenção legítima, ao menos no plano teórico (não é abstratamente
inconstitucional), a proporcionalidade deve ser observada quando da
interpretação/aplicação da norma ao caso concreto, pois, se for feita de forma abusiva ou
excessiva, tornar-se-á desproporcional. Era uma restrição (intervenção legítima) no
plano abstrato da lei, mas se tornou violação, por excesso ou abuso em sua
interpretação/aplicação, no plano judicial da concreção da norma.
A percepção dessa estrutura normativa para a presunção de inocência não
permite apenas melhor compreender como todos os seus significados interagem de forma
harmônica e completiva, mas também lhe confere maior abrangência e coerente
incidência a todo o sistema processual penal.
Como não é possível, em um único trabalho, o exame da incidência de tudo o
quanto se tratou até este instante em todos os institutos processuais penais, optou-se por
analisar apenas os pontos mais críticos da intersecção entre presunção de inocência e
processo penal. Se a tese se evidenciar coerente e plena para esses momentos mais
delicados, para os demais não haverá maiores dificuldades em sua aplicação.
O exame da presunção de inocência segundo sua estrutura normativa e em face de
alguns institutos processuais foi desenvolvido com um duplo direcionamento:
demonstrar as insuficiências e violações do atual Código de Processo Penal e, por
conseguinte, a imperiosa necessidade de se romper a inércia do legislador
infraconstitucional; e, em segundo lugar, orientar o julgador no instante de decidir.
Sempre houve, durante todo o trabalho, a preocupação de não se legitimar uma “leitura
salvacionista” dos dispositivos legais do Código. Contudo, esclareça-se que, ao se fornecer
subsídios ao julgador, sempre se tentou ser claro quando ele deve dizer: “basta”; “não há
ordenamento legal conformador”; “não há lei proporcional e justificada
constitucionalmente, logo, para não violar a Constituição, não posso cumprir a legislação
existente”.
Para isso foi de fundamental importância expor a finalidade político-ideológica do
suporte fático da presunção de inocência e sua função de eixo central pré-estabelecido
constitucionalmente para o sistema processual. Expostas a finalidade e a função, assenta-
se a inviabilidade em se manter o atual código. Deve-se fazer uma opção por um sistema
jurídico harmônico: ou se muda a Constituição, e o Brasil assume que não cumprirá seus
compromissos perante a comunidade internacional, ou, em outro sentido, elabora-se
nova legislação processual penal infraconstitucional.
Para se demonstrar a viabilidade de uma elaboração legislativa conforme a
presunção de inocência e os demais direitos fundamentais que orientaram sua formação e
com ela interagem para melhor efetivação, indicou-se as bases de um sistema de medidas
coativas processuais penais. Demonstrou-se a possibilidade de se conceber um sistema ao
mesmo tempo eficiente e garantista, admitindo-se como legítima a prisão provisória com
base em argumentos materiais, p.ex., a “ordem pública”.
Porém, isso somente será possível em um novo sistema a ser elaborado e no qual se
estabeleçam: valores constitucionais claros e imperativos para a determinação das
medidas coativas; um rol extenso de medidas de vários graus de redução dos direitos
fundamentais; e, por fim, em casos excepcionais, a necessidade de o julgador, com maior
carga argumentativa, demonstrar com base em elementos objetivos e constantes nos
autos a existência de requisitos cumulativos para que a prisão provisória seja legítima em
sua aplicação casuística.
Com esses cuidados, elimina-se a necessidade de se expungir do sistema processual a
expressão “ordem pública”, ou a sua congênere “ordem econômica”, porém, limita-se seu
espaço normativo por meio de margens legais de contenção. Torna-se desnecessário o
inconveniente ingresso no conteúdo do conceito de ordem pública para tentar limitá-lo
por uma perspectiva interna (de dentro). Sua contenção se dá por meio de limites
externos e legais, retirando dessa expressão sua atual capacidade expansiva e sem
nenhum controle.
Assenta-se, outrossim, e agora para outros âmbitos, as diferenças entre “in dubio pro
reo”, “favor rei” e presunção de inocência e, mais, estabelece-se qual a sua necessária
inter-relação. Os primeiros são aspectos, manifestações da presunção de inocência que,
no plano judicial, ocorrem em seu instante de “norma de juízo”.
Com isso, demonstra-se por que a absolvição fundada na insuficiência de prova para
a condenação e o critério decisório lastreado no “in dubio pro societate” são violações à
presunção de inocência. Ambos os aspectos referidos são frontalmente contrários ao “in
dubio pro reo” e, como este preceito agora integra um direito fundamental, na medida
em que se o viole, também se estará intervindo ilegitimamente no direito constitucional
com o qual se ligue, no caso, a presunção de inocência.
A decomposição da presunção de inocência, conforme a estrutura normativa
proposta, permitiu, ainda, a compreensão das diferenças entre os seus sentidos de “norma
de tratamento”, “norma probatória” e “norma de juízo”, assim como sua
complementaridade e inter-relação. Individualizados cada um desses sentidos, foi
possível se perceber, sempre por meio de uma rígida verificação de sua justificação
constitucional e proporcionalidade, o que é violação e o que é restrição para esses três
significados referidos.
A vedação à concessão de liberdade provisória, a inclusão do nome do imputado no
rol dos culpados se a decisão ainda não é definitiva e a determinação de prisão provisória
por decorrência exclusiva da prolação de decisão judicial recorrível (condenatória ou de
pronúncia) constituem violações da presunção de inocência como norma de tratamento.
Na mesma linha, vêm as medidas coativas que, se em tese são legítimas intervenções,
tornam-se ilegítimas pelo excesso ou abuso na sua aplicação ou na sua execução. Nesse
diapasão, colocam-se, p.ex., o uso desnecessário de algemas e a exposição do imputado à
mídia como se fosse culpado.
A presunção de inocência como “norma probatória” exige que o material probatório
necessário para afastá-la seja produzido pelo órgão acusador de modo lícito e tenha
conteúdo incriminador. No cumprimento de seu ônus probatório a acusação deverá se
utilizar apenas de provas lícitas e voltadas a demonstrar a culpa do imputado e a
materialidade da infração, em todos os seus aspectos. Esse significado da presunção de
inocência é objetivo e antecede, por motivos lógicos, o seu significado de “norma de
juízo”.
A presunção de inocência como “norma probatória” não admite a inversão do ônus
da prova, o que representaria uma violação de seu conteúdo. Bem observados os
dispositivos que determinam medidas cautelares patrimoniais nas denominadas Lei de
Tóxico (§ 2º do art. 60) e Lei de Lavagem de Capitais (§2º de seu art. 4º), percebe-se que
não podem ser tidos em tese como inversão do ônus probatório. Porém, se o julgador, ao
interpretá-los, entender que impõem um maior grau de exigência probatória para o
imputado em relação aos órgãos da persecução, restará violadora a sua
interpretação/aplicação, não o dispositivo como previsto no plano abstrato da lei.
A presunção de inocência como “norma de juízo”, por sua vez, impõe ao julgador,
para todas as decisões penais que impliquem restrição a direitos do imputado, um dever
de motivar de modo convincente suas escolhas. Analisando os elementos informativos
que lhe são apresentados na fase de investigação preliminar ou as provas, em fase
processual, deverá sempre decidir orientando suas escolhas de interpretação legislativa
pelo “favor rei” e resolvendo suas dúvidas fáticas com base no “in dubio pro reo”.
Para demonstrar a suficiência do material incriminador depurado e preparado no
instante da presunção de inocência como “norma probatória”, não poderá se utilizar de
qualquer fator extraprocessual interno (p.ex., convicções pessoais, influxos culturais,
religiosos ou pré-conceitos sociais, econômicos ou políticos), ou externo (p.ex., pressão
institucional ou midiática). No instante de fundamentar sua convicção não basta expor
suas escolhas, mas deverá convencer que elas e os critérios utilizados foram os mais
constitucionalmente afins àquele princípio fundamental.
Assim como os demais significados da presunção de inocência, também a “norma de
juízo” comporta restrições, e dentre elas destacou-se a confissão e a transação penal. Não
obstante esses institutos aumentem a tarefa judicial de verificar sua veracidade, sua
legitimidade, sua espontaneidade e a prévia orientação técnica, não deixam de produzir
efeitos restritivos no instante da presunção de inocência como “in dubio pro reo”, última
fase desse direito como “norma de juízo”.
A estrutura normativa da presunção de inocência contribui, ainda, para se
compreender porque ela incide por toda a persecução penal, da fase investigativa à
revisão criminal. A autonomia e inter-relação entre esses três citados significados
(“norma de tratamento”, “norma probatória” e “norma de juízo”) explica por que na
revisão criminal a presunção de inocência se manifesta apenas como “norma de juízo”,
não incidindo nos outros sentidos.
Essa mesma amplitude objetiva pode ser constatada em seu aspecto subjetivo. É
titular do direito fundamental da presunção de inocência toda e qualquer pessoa
submetida à persecução penal, seja ou não reincidente, tenha ou não bons antecedentes.
A cada nova imputação, pouco importando a vida ante acta do imputado, ele deverá ser
tido em pleno “estado de inocência”, estado juspolítico conferido a todos, de modo
cogente, pela Constituição. O passado do imputado somente terá relevância no instante
da dosimetria da pena, momento lógico posterior à conclusão judicial de sua culpa. Não
deve intervir no instante anterior para formação da convicção judicial da culpa, ou seja,
não serve para “provar” que o imputado praticou o ato; sua vida passada, seja ela qual for,
não prova o fato que lhe é imputado.
Decidir com base nesses aspectos pessoais e estranhos à causa é julgar a pessoa pelo
que ela foi ou é, não é analisar os fatos, mas os pré-compreender a partir da visão
preconceituosa e inconstitucional do “hostis”. É aplicar o direito penal e processual penal
do autor e do inimigo, é, portanto, eliminar toda a base constitucional necessária para a
inscrição e efetivação da presunção de inocência.
A análise da estrutura normativa desse direito fundamental, portanto, não ajuda
apenas a compreendê-lo em todo o seu amplo e possível espaço normativo, mas permite,
principalmente, perceber em que pontos e instantes ocorrem as violações, tanto em nível
legislativo quanto judicial, e quando se está diante de restrições.
O presente estudo seguramente não é breve, mas, acreditamos, oferece um estudo
mais exauriente da presunção de inocência e fixa novas e mais claras perspectivas para
seus futuros e sempre necessários reexames.
Referências Bibliográficas
FONTES
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PORTUGAL. Ordenações Manuelinas, 1521. Reprodução “fac-simile” da edição feita pela
Real Imprensa da Universidade de Coimbra, no ano de 1797. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, Livro V.
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