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PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:


análise de sua estrutura normativa
para a elaboração legislativa
e para a decisão judicial
MAURÍCIO ZANOIDE DE MORAES

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO:
análise de sua estrutura normativa
para a elaboração legislativa
e para a decisão judicial
EDITORA LUMEN JURIS
Rio de Janeiro
2010
Copyright © 2010 Maurício Zanoide de Moraes

Categoria: Direito Processual Penal e Constitucional

PRODUÇÃO EDITORIAL
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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Todos os direitos desta edição reservados à


Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.
Impresso no Brasil

Sumário
Printed in Brazil

Apresentação ......................................................................................................... xiii


Prefácio .................................................................................................................. xvii
Introdução.............................................................................................................. xxi
Capítulo I – Inexistência de presunção de inocência até sua inscrição na De-
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão ........................................... 1
1.1. Considerações iniciais: a imprescindibilidade da reconstrução histórica no
estudo da presunção de inocência ................................................................ 1
1.2. Direito Romano ............................................................................................ 2
1.2.1. Período Comicial ................................................................................ 5
1.2.1.1. (segue): procedimento da “cognitio” ....................................... 5
1.2.1.2. (segue): o procedimento da “anquisitio” ................................. 9
1.2.2. Período Acusatório: “quaestiones perpetuae”.................................... 12
1.2.3. Período Imperial: “cognitio extra ordinem” ...................................... 17
1.2.3.1. -(segue): reconstrução de um modelo inquisitivo baseado na
presunção de culpa ............................................................................... 19
1.2.3.1.1. (segue): prisão provisória como pena antecipada .... 20
1.2.3.1.2. -(segue): inserção da tortura como meio de obtenção
da “verdade” e os poderes instrutórios do juiz ........................ 25
1.2.3.2. -Exigência de fundamentação das decisões: sua incipiente uti-
lização como forma de mitigar os rigores da presunção de
culpa ...................................................................................................... 26
1.2.3.3. -(segue): disposições mitigadoras dos excessos repressivos do
sistema inquisitivo da “cognitio extra ordinem” ................................. 28
1.2.3.3.1. -(segue): preceitos romanos para se julgar em favor
do réu ........................................................................................ 29
1.2.3.3.2. -(segue): preceitos romanos para se julgar em favor
da liberdade .............................................................................. 33
1.2.3.3.3. (segue): preceitos romanos sobre ônus da prova ..... 35
1.2.4. -Direito romano e presunção de inocência: razões para uma impos-
sível convivência .......................................................................................... 38
1.3. Direito na Alta Idade Média: aspectos processuais penais no direito bár-
baro ............................................................................................................... 39
1.3.1. (segue): as ordálias e a presunção de culpa ........................................ 41
1.3.2. (segue): inexistência de presunção de inocência ............................... 47
1.4. Direito na Baixa Idade Média:149 a Inquisição ........................................... 47
1.4.1. -Inquisição: aspectos processuais penais relevantes ao tema da pre-
sunção de inocência ...................................................................................... 52
1.4.1.1. -A presunção de culpa inerente ao sistema inquisitivo canô-
nico-romano ......................................................................................... 52
1.4.1.1.1. (segue): ônus da prova e momento decisório .......... 59
1.4.1.1.2. -(segue): prisão provisória como pena antecipada e
como forma de transferência de bens ...................................... 61
1.4.1.2. A lógica inquisitiva na busca da prova: prova legal e tortura 63
1.4.3. -Inexistência de presunção de inocência no modelo processual da Inquisição
....................................................................................................................... 68
1.5. Iluminismo: revolução proporcionada pela inscrição legal da “presunção
de inocência” ................................................................................................ 69
1.5.1. -Contexto socioeconômico propiciador das mudanças político-filo-
sóficas ............................................................................................................ 73
1.5.2. Reflexos das idéias iluministas no sistema criminal .......................... 75
1.5.3. -Inclusão da “presunção de inocência” na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão (1789): revolução processual penal ................................................ 77
1.5.3.1. Características do procedimento penal revolucionário francês 80
1.5.4. -“Presunção de inocência”: etimologia e razões político-filosóficas
para a escolha da expressão na Revolução Francesa ................................... 82
1.5.4.1. -“Presunção”: etimologia e uso jurídico do termo até o ilumi-
nismo ..................................................................................................... 83
1.5.4.2. -“Inocência”: etimologia e proximidade com a concepção ilu-
minista de igualdade ............................................................................. 87
1.5.4.3. -Presunção de inocência: razões político-filosóficas e conse-
qüências jurídicas da escolha revolucionária ....................................... 90
Capítulo II – Razões para a eliminação da presunção de inocência: da fase na-poleônica pós-
iluminista à promulgação do Código de Processo Penal bra-
sileiro de 1941 ............................................................................................... 95
2.1. Considerações iniciais .................................................................................. 95
2.2. Obstáculos à presunção de inocência na França pós-iluminista ................. 99
2.2.1. -Guerras napoleônicas: razões para a reversão do ideário iluminista
nas legislações criminais européias .............................................................. 99
2.2.2. Surge o procedimento penal misto napoleônico ............................... 102
2.3. Escola Positiva: a defesa social volta ao centro do processo penal ............. 106
2.3.1. -Breves considerações sobre os fundamentos da Escola Positiva: co-
tejamento com a Escola Clássica .................................................................. 108
2.3.2. -Escola Positiva: rejeição da presunção de inocência e do ‘in dubio
pro reo’ .......................................................................................................... 113
2.4. Escola Técnico-Jurídica italiana: sua influência na formação dos códigos
processuais penais italianos de 1913 e de 1930 ........................................... 117
2.4.1. Recrudescimento político italiano do início do século XX ............... 118
2.4.2. Escola Técnico-Jurídica: uso político do processo penal ................... 120
2.4.3. --Características do procedimento penal misto italiano de 1913 e sua tendência
político-legislativa ........................................................................................ 123
2.4.3.1. -Escola Técnico-Jurídica: rejeição da “presunção de inocência”
e criação da “presunção de não culpabilidade” .................................... 125
2.4.4. -Recrudescimento jurídico do Código de Processo Penal italiano de
1930 ............................................................................................................... 130
2.4.5. -Escola Técnico-Jurídica: influências sofridas da ‘Scuola Positiva’
para a rejeição da presunção de inocência ................................................... 132
2.4.6. Aceitação do “in dubio pro reo” pela Escola Técnico-Jurídica ......... 137
2.4.7. -Revelação e desconstrução dos fundamentos da crítica da Escola
Técnico-Jurídica italiana à presunção de inocência .................................... 140
2.4.7.1. -(segue): a ideologia nazifascista sob a crítica técnico-jurídica
do termo “presunção” ........................................................................... 142
2.4.7.2. -(segue): ao se negar a “presunção de inocência” resta apenas
a “presunção de culpa”, não a “presunção de não culpabili-
dade” ...................................................................................................... 146
2.4.7.3. -(segue): do erro no argumento da “absolutização” da presun-
ção de inocência .................................................................................... 152
2.5. Escola Técnico-Jurídica italiana e Código de Processo Penal italiano de
1930: influências na formação do atual Código de Processo Penal brasi-
leiro de 1941 ................................................................................................. 155
2.5.1. -Estado Novo: contexto político propício para a reformulação da le-
gislação processual penal brasileira sob os influxos positivistas ................. 156
2.5.2. -Atual Código de Processo Penal brasileiro: as influências doutriná-
ria e legislativa do positivismo italiano reveladoras da rejeição da
presunção de inocência ................................................................................ 157
2.5.2.1. -(segue): fase investigativa preliminar na forma inquisitiva
pura ....................................................................................................... 160
2.5.2.2. -(segue): a prisão provisória obrigatória e o uso da expressão
“ordem pública” .................................................................................... 162
2.5.2.3. (segue): interrogatório e confissão .......................................... 166
2.5.2.4. -(segue): amplos poderes investigatórios judiciais e absolvição
por insuficiência de prova para condenar............................................ 168
Capítulo III – Presunção de Inocência como Direito Fundamental .................... 173
3.1. Considerações iniciais .................................................................................. 173
3.2. “Sofrer para compreender”: a Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem como fonte moderna da Presunção de Inocência .............................. 174
3.3. Sistema internacional de proteção aos direitos humanos: importância, ex-
tensão e força vinculante.............................................................................. 179
3.3.1. -‘International Bill of Rights’ e Convenção Americana sobre Direi-
tos Humanos: sistemas global e regional de proteção aos direitos
humanos ........................................................................................................ 182
3.3.2. -Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana sobre
Direitos Humanos: mecanismos de vinculação dos Estados-partes aos direitos humanos neles
previstos ........................................................................................................ 184
3.4. Atual Constituição da República e a inserção dos direitos humanos inter-
nacionalmente consagrados ......................................................................... 187
3.4.1. -Revolução Militar de 1964 como antecedente político interno moti-
vador da incorporação dos direitos humanos pela atual Constituição ....... 188
3.5. Estado democrático de direito e dignidade da pessoa humana como fun-
damento da Constituição .............................................................................. 192
3.5.1. Estado Democrático de Direito: algumas considerações ................... 193
3.5.1.1. (segue): o cidadão como sujeito de deveres ............................ 195
3.5.2. Dignidade da pessoa humana ............................................................. 200
3.6. Direitos fundamentais como incorporação legislativa interna dos direitos humanos:
considerações sobre algumas de suas características ................................... 205
3.6.1. (segue): universalidade ....................................................................... 207
3.6.2. (segue): irrevogabilidade .................................................................... 209
3.6.3. (segue): complementaridade e interdependência .............................. 210
3.7. Presunção de Inocência como direito fundamental .................................... 212
3.7.1. -(segue): norma de direito fundamental e enunciado normativo de
direito fundamental ...................................................................................... 213
3.7.1.1. -“Presunção de Inocência” e “Não Consideração Prévia de Culpabilidade”:
escolhas material e formal do constituinte
de 1988 .................................................................................................. 215
3.7.1.1.1. -Análise genético-sistêmica dos trabalhos da Assem-
bléia Nacional Constituinte de 1988 ....................................... 216
3.7.1.2. -Análise doutrinária brasileira e suas matrizes italianas: uma
uniformização político-ideológica para a presunção de ino-
cência .................................................................................................... 221
3.8. Decorrências da Presunção de Inocência como direito fundamental: di-
mensão subjetiva e dimensão objetiva ......................................................... 225
3.8.1. (segue): dimensão subjetiva ................................................................ 227
3.8.1.1. -(segue): fundamentação da presunção de inocência em inte-
resses individuais e coletivos ................................................................ 232
3.8.2. (segue): dimensão objetiva ................................................................. 240
3.8.2.1. -(segue): finalidade expansiva dos direitos fundamentais e a
“presunção de inocência em sentido amplo” ....................................... 243
3.8.2.2. (segue): desdobramentos da dimensão objetiva ...................... 248
3.8.2.2.1. (segue): efeitos irradiante e horizontal .................... 249
3.8.2.2.2. (segue): dever estatal de proteção ............................ 252
3.8.2.2.3. (segue): organização e procedimento ...................... 257
Capítulo IV – Conteúdo Essencial da Presunção de Inocência ........................... 263
4.1. Considerações iniciais: conteúdo essencial de direito fundamental e esco-
lha metodológica .......................................................................................... 263
4.2. Conteúdo essencial objetivo e conteúdo essencial subjetivo ...................... 266
4.3. Presunção de inocência e sua estrutura normativa de princípio ................ 269
4.3.1. -Princípios são “direitos prima facie” e regras são “direitos defini-
tivos” ............................................................................................................. 270
4.4. Suporte fático da norma fundamental ......................................................... 274
4.4.1. (segue): suporte fático amplo ............................................................. 278
4.4.2. “Âmbito de proteção” da norma fundamental .................................. 282
4.4.3. -“Intervenção estatal” no âmbito de proteção da norma fundamental 284
4.4.3.1. Formas de restrição .................................................................. 288
4.4.3.1.1. -(segue): inércia estatal na conformação da norma
fundamental.............................................................................. 289
4.4.3.1.2. (segue): reserva legal e cláusula restritiva ............... 291
4.4.3.1.3. (segue): contradição normativa ................................ 297
4.4.3.1.3.1. (segue): conflito entre regras .................... 298
4.4.3.1.3.2. (segue): colisão entre princípios ............... 300
4.4.3.1.3.3. (segue): colisão entre princípio e regra .... 304
4.5. Limites das restrições.................................................................................... 310
4.5.1. -Proporcionalidade: considerações relevantes para seu exame no
processo penal ............................................................................................... 310
4.5.1.1. (segue): legalidade e justificação constitucional ..................... 315
4.5.1.2. (segue): judicialidade e motivação .......................................... 320
4.5.1.3. (seque): adequação ................................................................... 323
4.5.1.4. (segue): necessidade ................................................................. 326
4.5.1.5. (segue): proporcionalidade em sentido estrito ........................ 327
4.5.2. Conteúdo essencial do direito fundamental ...................................... 329
4.6. Considerações finais: conteúdo essencial relativo como melhor forma de
proteção aos direitos fundamentais ............................................................. 330
Capítulo V .............................................................................................................. 335
5.1. Legislação infraconstitucional e decisão judicial: níveis para efetivação da
presunção de inocência ................................................................................ 335
5.2. Razões da pouca efetividade da “presunção de inocência” ......................... 336
5.3. Suporte fático amplo da presunção de inocência ........................................ 344
5.3.1. -Direitos fundamentais justificadores da gênese da presunção de ino-
cência ............................................................................................................ 345
5.3.2. -Presunção de inocência e outros direitos fundamentais processuais
penais: complementaridade e interdependência ......................................... 349
5.3.2.1. (segue): com o direito ao prazo razoável ................................. 350
5.3.2.2. (segue): com o direito à liberdade ........................................... 351
5.3.3. Suporte fático da presunção de inocência: finalidade e função ........ 354
5.3.3.1. (segue): finalidade .................................................................... 355
5.3.3.2 (segue): função .......................................................................... 358
5.4. Âmbito de proteção amplo da “presunção de inocência” ........................... 360
5.4.1. -“Presunção de inocência” como norma de orientação legislativa e
judiciária: “favor rei” e “in dubio pro reo” ................................................... 363
5.4.1.1. -“Favor rei” e “in dubio pro reo”: diferenças entre os signifi-
cados e a relação de ambos com a presunção de inocência ................. 364
5.4.1.2. -(segue): “favor rei” como significado da presunção de ino-
cência .................................................................................................... 369
5.4.1.2.1. -“Favor rei” na elaboração de lei processual penal e
na orientação de decisão judicial: medidas de coa-
ção no processo penal ............................................................... 370
5.4.1.2.1.1. -“fumus delicti commissi” e “periculum li-
bertatis”: excepcionalidade de qualquer
medida coativa ............................................................. 372
5.4.1.2.1.2. -Valores constitucionais orientadores da
escolha da medida coativa mas apropriada ................. 378
5.4.1.2.1.3. -Prisão provisória por motivos materiais: a
prisão por “ordem pública” em um novo
modelo processual penal .............................................. 382
5.4.1.2.1.4. -Requisitos cumulativos para a aceitação do
conceito de “ordem pública” ....................................... 390
5.4.1.2.1.5. -Revisão periódica da decisão judicial de-
terminadora de medida de coação ............................... 398
5.4.1.2.1.6. -Direito à indenização por indevida decre-
tação de medida de coação........................................... 399
5.4.1.3. -(segue): “in dubio pro reo” como significado da presunção de inocência
............................................................................................................... 402
5.4.1.3.1. -Absolvição por insuficiência de prova para conde-
nar: violação à presunção de inocência ................................... 407
5.4.1.3.2. -“In dubio pro societate”: violação à presunção de
inocência ................................................................................... 412
5.4.1.3.2.1. -(cont.): “in dubio pro reo” no recebimen-
to da denúncia (art. 395, CPP) e sua não incidência na absolvição
sumária (art. 397,
CPP) .............................................................................. 418
5.4.1.3.2.2. -(cont.): “in dubio pro reo” na decisão de
pronúncia (art. 413, CPP) e sua não inci-
dência na absolvição sumária (art. 415,
CPP) .............................................................................. 421
5.4.2. -Presunção de inocência: “norma de tratamento”, “norma probató-
ria” e “norma de juízo” ................................................................................. 424
5.4.2.1. Presunção de inocência como “norma de tratamento” .......... 427
5.4.2.1.1. -Vedação legal de concessão de liberdade provisória:
violação constitucional já no plano abstrato da lei
processual penal ....................................................................... 428
5.4.2.1.2. -(segue): inclusão do nome do condenado provisório
no rol dos culpados ................................................................... 440
5.4.2.1.3. -(segue): prisão provisória decorrente de decisão ju-
dicial recorrível ........................................................................ 441
5.4.2.1.3.1. -(segue): linhas argumentativas violadoras
da presunção de inocência ........................................... 448
5.4.2.2. Presunção de inocência como “norma probatória” ................ 461
5.4.2.3. Presunção de inocência como “norma de juízo” .................... 468
5.4.2.3.1. -Mínima atividade probatória: “in dubio pro reo” e
“favor rei” ................................................................................. 469
5.4.2.3.2. -Motivação da decisão penal: verificação das razões
de decidir .................................................................................. 476
5.4.3. Extensão objetiva e subjetiva da “presunção de inocência” .............. 481
5.4.3.1. (segue): extensão subjetiva ...................................................... 481
5.4.3.2. (segue): extensão objetiva ........................................................ 490
5.4.3.2.1. (segue): na investigação preliminar ......................... 491
5.4.3.2.2. (segue): na revisão criminal ..................................... 495
5.5. Restrições da “presunção de inocência”....................................................... 502
5.5.1. (segue): como “norma de tratamento” ............................................... 503
5.5.1.1. (segue): violação pelo abuso na exposição midiática .............. 509
5.5.2. (segue): como “norma probatória” ..................................................... 516
5.5.2.1. (segue): restrições à prova constitucionalmente lícita ........... 516
5.5.2.2. -(segue): da inexistência de inversão do “ônus probatório” no
atual sistema processual penal brasileiro ............................................. 519
5.5.3. (segue): como “norma de juízo” ......................................................... 523
5.5.3.1. (segue): confissão ..................................................................... 523
5.5.3.2. (segue): transação penal ........................................................... 527
Conclusão ............................................................................................................... 531
Referências Bibliográficas ..................................................................................... 541

Apresentação

Caro leitor.

Creio que temos reações comuns quando entramos numa livraria jurídica. O que
nos atrai, de primeiro, para que se apanhe um livro da prateleira ou da mesa, é o seu
título, porque é, por meio dele que se verifica se a matéria se identifica com o nosso
interesse. Tomamos, então, o livro nas mãos; abrimos as primeiras e as últimas páginas
para vermos o sumário e a bibliografia, e depois, como procedimento derradeiro, antes da
compra ou da devolução do livro ao lugar de onde foi retirado, corremos os olhos pela
apresentação que nada mais é do que uma breve comunicação, feita à guisa de
introdução, na qual o apresentador põe em evidência o tema tratado e mostra as
qualidades do autor. Já exerci, por incontáveis vezes, esse papel. Os anos acumulados – e
são tantos – podem explicar o aparecimento de meu nome nesse ato introdutório, mas
sempre procurei conter-me nas balizas recomendadas.
Aqui e agora, não pretendo ser fiel seguidor de regras; antes, quero às claras quebrá-
las. Dei-me conta de que não serei capaz de conduzir-me como em outras apresentações.
Não me sinto acomodado à posição de quem se coloca de permeio entre o autor e o leitor,
servindo de mera interface. Sinto-me bem melhor como quem se dirige diretamente ao
leitor para dar-lhe um testemunho. Por isso, desprendi-me das falas próprias de uma
apresentação para dar espaço, em seu lugar, ao relato de quem teve o privilégio de
observar pari passu o projeto, o desenvolvimento, a concretização e a defesa da tese de
livre-docência de Maurício Zanoide de Moraes, apresentada na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo.
Há muitos anos acompanho os passos de Maurício na sua vida pessoal, no seu
desempenho profissional e na sua caminhada acadêmica. Segui-o, de perto, nas várias
etapas desses percursos. Participei de seus momentos de sucesso, mas o vi também, como
qualquer ser humano, mostrar-se vulnerável diante de emoções e de aflições. Tenho,
portanto, por ele, uma enorme estima pessoal, quase paternal. Não vem a pêlo, no
presente contexto, relatar os vários fatos que serviram para cimentar a amizade que
tenho por ele e que é extensível à Fernanda e às suas duas filhas, Laura e Gabriela.
Proponho-me apenas a contar os bastidores de sua tese “Presunção de Inocência no
Processo Penal Brasileiro” que, ora, se transforma no livro que o leitor apanhou para
exame.
Lá pelos idos de 2002, eu, Maurício e um amigo, Márcio Bártoli, alugamos, por
quinze dias, um pequeno apartamento, em Paris. Mauricio viajou antes pela Espanha e
pelo sul da França e quando chegou, relatou-me que, no trem entre Avignon e Paris,
tivera o insight de que, se algum dia viesse a escrever uma tese de livre-docência, deveria
ela versar sobre a presunção de inocência. E esta súbita luz lhe veio à mente, com tal
clareza, que elaborou, no próprio trem, os tópicos que deveriam compor a obra. Lembro-
me, agora, nessa retrospectiva, que o estimulei a transformar em realidade tema tão
complexo e, ao mesmo tempo, tão pouco abordado no Brasil.
Em junho de 2003, Maurício, após concurso, ingressou, como Professor-Doutor
contratado, no quadro do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito
da Universidade de São Paulo e, nos anos de 2005 e 2006, presidiu o Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais. Recordo-me bem que, pouco antes de terminar seu mandato, ou
seja, em fins de dezembro de 2006, contou-me ele, em seu próprio escritório, que não
poderia dar-me o apoio desejável – eu o substituíra na presidência do IBCCRIM – porque
resolvera dedicar aquele ano a duas tarefas: cuidar de sua primeira filha, que nasceria em
fins de janeiro, e iniciar a preparação de sua tese de livre-docência. E de novo colocou,
na sua pauta de trabalho, a questão da presunção de inocência. Confesso que lhe disse, na
ocasião, que deveria fazer uma opção entre essas tarefas, porque implementá-las em
conjunto seria uma loucura, máxime porque seu escritório de advocacia estava, ao
mesmo tempo, em plena ascensão. Mas Maurício não me deu ouvidos. Felizmente!
O ano de 2007 começou e terminou com percalços. Após meses de pesquisas e
estudos sobre o tema escolhido, Maurício sentiu um certo desalento, por volta de julho.
Tudo quanto lera e pensara sobre o assunto parecia-lhe insuficiente; a doutrina nacional
e estrangeira, objeto de leitura e de reflexão, não apontava nada capaz de atender, mesmo
de longe, ao desejo de remodelar a presunção de inocência através de uma análise que
transcendesse o direito processual penal, mas que tivesse o mesmo âmbito como
destinação final. Para ele haveria a necessidade de romper com os padrões e formas
anteriores para que pudesse oferecer o rejuvenescimento e a modernidade que o tema da
presunção de inocência pedia para a sua maior incidência e efetividade práticas. Os
caminhos já traçados não atendiam ao seu sempre insatisfeito espírito de cientista e, a seu
critério, não bastaria para escrever a tese de livre-docência. Abandonou o estudo por três
meses, até encontrar outros caminhos a trilhar. O novo horizonte que o fez avançar e
retornar, com empenho redobrado, ao tema que o espicaçava há quase cinco anos, foi o
aprofundamento de seus estudos na área constitucional e da teoria geral do direito,
sobretudo na intersecção desses dois ramos na Teoria dos Direitos Fundamentais exposta,
principalmente, por Robert Alexy e por Ronald Dworkin no Exterior, e por Virgilio
Afonso da Silva e Humberto D’Ávila no Brasil. Efetivamente, Maurício promoveu a
desconstrução de velhos mitos históricos; pôs a descoberto ranços políticos dos regimes
autoritários, que informaram a elaboração de nosso sistema processual penal de l940, e
partiu para uma análise da estrutura normativo-constitucional da presunção de
inocência, enfatizando como deve ela ser aplicada, de modo coerente para melhor
solução de questões cotidianas da realidade forense.
A visão constitucional da presunção de inocência e sua inserção como direito
fundamental abriram largo espaço para uma pesquisa em profundidade. Nos meses
subseqüentes a agosto de 2007, Maurício fez ampla investigação histórica sobre a matéria
e teceu diversas considerações sobre a presunção de inocência como direito fundamental.
Terminados os três capítulos iniciais da tese, tratou, em seguida, no quarto capítulo, de
propor a questão do conteúdo essencial da presunção de inocência. A essa altura, foi
Maurício surpreendido com a notícia de que a Universidade de São Paulo (USP) tinha
posto termo a todos os contratos trabalhistas com os professores-doutores de seus
Departamentos e abrira concurso para ingresso na carreira pública em todas as
faculdades. Isso o obrigou a dar uma parada a fim de preparar-se para o concurso, pondo
de lado a tese em elaboração. Em fins de 2007, logrou sucesso no concurso e preencheu a
vaga aberta. Mal terminado o concurso, Maurício deu seguimento à feitura da tese. Por
volta de março de 2008, ainda lhe restava fazer o quinto capítulo – e este representou um
conjunto de duzentas páginas – no qual, de forma inovadora, objetivava evidenciar a
repercussão da estrutura normativa do princípio da presunção de inocência tanto na
elaboração legislativa, quanto no cotidiano dos casos judiciais. E só lhe sobravam
quarenta e cinco dias para que pudesse terminar o trabalho ainda a tempo de relê-lo, de
fazer consertos formais, de reexaminar as notas de rodapé e de conferir a correção da
bibliografia. Em fins de abril o trabalho estava pronto e impresso no aguardo da abertura
do concurso para a livre-docência que, no ano de 2008, por exceção, teve sua inscrição
encerrada em 3 de junho de 2008. No dia 28 de maio, Maurício depositou sua tese na
Faculdade de Direito e, na data do término da inscrição, ou seja 3 de junho, nasceu sua
segunda filha, Gabriela. Na primeira semana de novembro de 2008, houve a defesa de sua
tese de livre-docência que culminou com ampla e consagradora aprovação.
Por que – há de perguntar o leitor que folheia o livro – devo estar a par de toda essa
estória? O que tem ela a ver com o ato de incorporar um novo livro na minha biblioteca?
Posso responder-lhe: tudo. No mundo atual, no qual os valores perdem a olhos vistos sua
solidez, tendendo à liquefação, é extremamente árduo e exige um esforço sobre-humano
a busca e a mantença desses valores. A estória relatada é uma homenagem aos valores da
seriedade científica, da persistência, do esforço desmedido de arrostar sacrifícios, do
poder de privar-se dos prazeres fáceis e, sobretudo, da capacidade de destrinçar
dificuldades e de controlar emoções. E, de acréscimo, é também uma estória de amor.
Porque só Fernanda poderia, com a força interior, compreensão e suavidade, que lhe são
próprias, dar a Maurício duas filhas, em momentos tão próximos, e ainda por cima, ter a
generosidade de conferir-lhe tempo livre para concluir sua tese.
Permita-me agora, caro leitor, no fecho desta apresentação, colocar-lhe uma
alternativa: ou saia da livraria sobraçando o melhor livro que já se publicou na literatura
jurídica brasileira sobre o princípio da presunção de inocência, ou o recoloque na
prateleira ou na mesa da livraria. Nesta última hipótese só me cabe lamentar o fracasso
do meu testemunho e pedir-lhe desculpas por ter me acompanhado até aqui.

Um abraço.
Alberto Silva Franco

Prefácio

O reconhecimento da presunção de inocência do acusado marca a distinção entre


dois modelos históricos de processo penal: no primeiro, que a rejeita, a simples existência
de uma acusação faz recair sobre o suspeito – já considerado inimigo público –, as graves
conseqüências do reconhecimento da culpa; naquele que a acolhe, o processo é dirigido,
antes, à isenta verificação dos fatos, pressuposto essencial à imposição de qualquer
medida punitiva.
Por isso, rebatendo as críticas dirigidas ao princípio com argumentos da técnica
jurídica, Mario Pisani sublinhou o seu valor essencialmente político, que exprime na
verdade uma orientação de fundo do legislador, qual seja a garantia da posição de
liberdade do acusado diante do interesse coletivo à repressão penal. Daí também a sua
necessária incidência sobre todos os aspectos da atividade processual, desdobrando-se
numa série de garantias que interagem e se complementam, tutelando o indivíduo
submetido à persecução contra os eventuais desmandos do poder punitivo estatal.
A importância e a atualidade do tema são mais do que evidentes, notadamente
quando se constata o sensível alargamento da incidência da lei penal sobre condutas
antes submetidas a outras formas de censura ou responsabilidade e, ainda, diante da
tendência – que se acentua cada vez mais –, de transferir os julgamentos do espaço dos
tribunais para o cenário mais amplo dos meios de comunicação.
É muito oportuna, assim, a publicação da tese apresentada pelo Professor Maurício
Zanoide de Moraes em concurso público em que obteve, por unanimidade da Banca
Examinadora e com distinção, o título de livre-docente em Direito Processual Penal, pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Tratando da Presunção de inocência no processo penal brasileiro, o Autor realiza
investigação minuciosa e praticamente completa sobre as origens e vicissitudes históricas
do princípio, para depois, em capítulos subseqüentes, aprofundar o exame da presunção
de inocência como direito fundamental, fixar-lhe o conteúdo essencial e, no final,
extrair suas decorrências tanto no âmbito da legislação infraconstitucional como para a
decisão judicial.
Destaca-se no trabalho uma opção metodológica original, consistente em dar
prioridade ao exame da estrutura normativa da presunção de inocência como princípio
constitucional, para buscar as suas aplicações no âmbito do processo penal.
Sem pretender reproduzir desnecessariamente o pensamento do Autor, mas apenas
com o propósito de aguçar o espírito do leitor para os pontos mais sugestivos e polêmicos
da obra, cabe destacar a posição, correta e moderna, de que os direitos fundamentais
consagrados pela Constituição – como ocorre com a presunção de inocência – não podem
ser vistos apenas pela ótica individual, mas representam também direitos extraídos de
uma conscientização benéfica e útil para todos, pelo que uma persecução penal mais justa
e equilibrada é melhor à coletividade. Por isso, adverte-se no trabalho que a não
efetivação daquele direito fundamental a um dos integrantes da comunidade coloca todos
os cidadãos em estado de insegurança, gerando a percepção de que os entes incumbidos
da persecução não estão cumprindo o compromisso constitucional.
No tópico emblemático das restrições ao direito fundamental à presunção de
inocência, em especial quando se cuida da privação da liberdade, a obra dá merecida
ênfase ao critério da proporcionalidade, examinando-o tanto nos seus elementos ditos
tradicionais – adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito –, como nos
chamados requisitos extrínsecos: judicialidade e motivação. Em relação à motivação,
indica o seu decisivo papel para a verificação da interferência, na decisão restritiva, de
fatores criminológicos ou de política criminal inconstitucionais, que implicam verdadeira
presunção de culpa, em contraposição com o princípio constitucional examinado.
Atualíssima e oportuna também é a preocupação do Autor com cotidiana violação
da presunção de inocência nos noticiários da mídia. Basta acompanhá-los para constatar
que muito antes de qualquer pronunciamento judicial – quase sempre no limiar das
investigações –, o suspeito ou acusado já é apontado como se fosse o autor certo do crime,
não sendo raro até mesmo o emprego de expressões ofensivas que nem mesmo a
condenação definitiva poderia autorizar. Como ressalta Ferrajoli, a função infamante da
persecução, que caracterizou o direito penal pré-moderno, hoje é exercida pela exibição
do acusado nas páginas dos jornais ou na televisão, quando ele ainda é presumido
inocente.
Por último, mas não menos importante, outra instigante conclusão do trabalho que
vale destacar é a imperiosa necessidade da elaboração de um novo Código de Processo
Penal, em substituição ao atual, de estrutura inquisitória, pois a simples interpretação de
suas disposições à luz da Constituição tem sido insuficiente para suprir os pontos em que
a inércia legislativa representa evidente violação da presunção de inocência consagrada
pela Constituição.
Esses são apenas alguns exemplos que mostram a amplitude dada ao tratamento da
matéria. Como verificará o leitor, trata-se de texto destinado a provocar proveitosas
discussões a respeito dos temas fundamentais do processo penal.
Sem favor algum, é obra que dá valiosa continuidade à tradicional vocação da nossa
Faculdade de Direito para os estudos constitucionais do processo penal, inaugurados
pelos mestres João Mendes Júnior e Canuto Mendes de Almeida e, depois, enriquecidos
pelos trabalhos de Ada Pellegrini Grinover e Rogério Lauria Tucci; particularmente, traz
grande satisfação para quem é honrado com a incumbência de apresentá-la ao público
leitor.
São Paulo, fevereiro de 2010.
ANTONIO MAGALHÃES GOMES FILHO
Professor Titular de Processo Penal
da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Introdução

Uma breve leitura dos periódicos diários e semanais e uma pequena passada por
programas diários de rádio e televisão levam o espectador leigo em nossas leis a indagar
se existe a presunção de inocência. Esse mesmo espectador não teria sua indagação
respondida se fosse conhecer a nossa realidade forense. Em verdade, talvez a
perplexidade aumentasse ainda mais em sua mente, pois, de uma quase certeza de sua
inexistência, propiciada pela mídia, verificaria que há juízes que a reconhecem em alguns
casos, e em outros não, e, pior, há juízes que não a reconhecem nunca. Notaria a falta de
critério e segurança na jurisprudência e, em não menor intensidade, na doutrina.
Se adentrasse ainda mais no sistema jurídico e lesse nosso vigente Código de
Processo Penal tenderia a achar que ela ficou reduzida a raras e diminutas ocorrências do
“in dubio pro reo”. Mas, ao ler o texto literal de nossa Constituição afirmaria haver uma
“presunção de não culpabilidade”, não encontrando qualquer referência à “presunção de
inocência”. Tenderia a afirmar, após esse périplo, que ela não existe. Porém, poderia ficar
perturbado e não compreenderia por que uma doutrina e uma jurisprudência
minoritárias e insistentes continuam a afirmar que a presunção de inocência existe no
Brasil.
Por fim, a perplexidade ficaria irresoluta se, consultando os Tratados e Convenções
Internacionais, em cujos textos encontra-se esse direito humano, verificar que o Brasil,
ao subscrevê-los, prometeu dar-lhes cumprimento tão inteiramente como eles se
apresentam.
Essa perplexidade, à qual todo estudante de direito ou operador jurídico está
submetido, justifica o estudo mais detalhado da presunção de inocência.
A justificativa para se estudar a presunção de inocência reside no fato desse direito
fundamental não ter existido (formalmente), na história do ordenamento jurídico
nacional, até o advento da Constituição da República de 1988 e, após sua vigência, ainda
não ter atingido a esperada efetividade.
Essa baixa efetividade tem uma única causa: a ausência de uma perfeita
compreensão da própria presunção de inocência, “o que” é, “por que” existe e “para que”
foi concebida e deve ser respeitada e cumprida por todos.
De fato, conquanto haja muitos e consistentes estudos sobre sua origem, sua força
político-ideológica e sua destinação humanitária, não são na mesma quantidade e
qualidade os trabalhos que procuram lhe desvendar o conteúdo normativo, os seus
efeitos e as suas conseqüências para o sistema processual penal. Necessário se dar
consistência àquele sempre tido como o mais “abstrato” dos princípios constitucionais
dirigidos ao processo penal.
De ordinário, os melhores trabalhos sobre a presunção de inocência não são estudos
específicos em que ela é analisada de forma isolada, mas trabalhos nos quais é examinada
em face de outro instituto jurídico (p.ex., a prisão provisória, os meios de prova ou de
obtenção de prova, ou, ainda, a motivação judicial). O presente livro pretende contribuir
para aqueles primeiros estudos citados, quais sejam, os que examinam a presunção de
inocência de modo individualizado.
Essa opção traz um benefício ao tema e um encargo a mais ao trabalho. O benefício
está em que muitos aspectos peculiares e essenciais à compreensão da presunção de
inocência podem ser examinados de forma mais aprofundada, permitindo com isso uma
mais consistente conclusão sobre eles e seus desdobramentos. Como nenhum trabalho
científico realmente tem valor se não produzir efeitos práticos na vida cotidiana da
sociedade, o encargo está em ter de aplicar, de modo coerente, todo este exame
aprofundado da presunção de inocência em vários pontos do sistema processual penal,
notadamente os mais críticos.
Para dar cabo desse encargo é necessário trabalhar com os institutos processuais
penais mais diretamente ligados e, portanto, influenciados pela presunção de inocência.
Todavia, como o trabalho está voltado para o estudo específico desse direito
fundamental, os institutos processuais não são analisados de modo igualmente detido e
aprofundado, mas sempre há uma expressa e clara postura sobre como são entendidos,
utilizando-se, para isso, de doutrina e jurisprudência de apoio a cada um deles.
O cerne do trabalho, como o próprio título da obra indica, é a análise da presunção
de inocência pela perspectiva de sua estrutura normativa e das conseqüências práticas
que isso propicia no processo penal, tanto em nível legislativo quanto em nível judicial.
Propõe-se a fixação de bases constitucionais para sua mais coerente, efetiva e sistêmica
aplicação.
Para empreender essa proposta não é possível iniciar o estudo da presunção de
inocência por sua origem mais consistente e remota, qual seja, a Revolução Francesa de
1789. É imprescindível iniciar a exposição antes, ou seja, em período em que ela não
existia. Isto para demonstrar quais os influxos juspolíticos necessários para se afirmar
quando um Estado oferece ou não condições mínimas para sua efetiva verificação.
Primeiro é necessário se entender as razões por que ela nunca existiu antes do
Iluminismo, para depois se compreender o que influi para seu surgimento exatamente
neste instante histórico. Isso permitirá, ainda, compreender por que ela foi sendo
expungida, paulatinamente, dos sistemas processuais da Europa continental do século
XIX e início do século XX e, também, por que emergiu revitalizada após as duas Grandes
Guerras do século passado.
O estudo das instituições jurídicas pré-iluministas, notadamente do sistema romano
e da Inquisição, oferece ainda uma outra vantagem. A possibilidade de pôr em ressalto
linhas argumentativas repressivas que, ainda hoje, alteradas e modernizadas em
insignificantes nuances, contando com o esquecimento provocado pelo tempo, são
utilizadas com ares de modernidade ou avanço. Tudo como se muito pouco tivesse sido
alterado, no que toca à presunção de inocência, nas instituições juspolíticas do século
XVIII até o século XXI.
Fixado o seu surgimento no Iluminismo, parte-se para a demonstração das razões
que a fizeram tão severamente combatida no século XIX, a ponto de ser expressamente
rejeitada em quase a totalidade dos sistemas jurídicos europeus do início do século XX.
Para essa rejeição foram preponderantes a Escola Positiva e a Escola Técnico-Jurídica
italianas, porquanto formaram a base ideológica e técnica para eliminar a presunção de
inocência dos Códigos de Processo Penal italianos de 1913 e 1930. Cediço que foi este
último diploma processual peninsular a base legislativo-ideológica de nosso (ainda) atual
Código de Processo Penal, elaborado em 1941, inclusive com o ressalto de que tal
legislação foi forjada sob o empuxo do Estado Novo getulista, conclui-se que nossa
legislação infraconstitucional (processual penal) é refratária e foi construída sobre base
avessa à presunção de inocência.
Se até esse ponto a análise direciona-se apenas à presunção de inocência, a partir
dele inicia-se a apresentação da atual feição constitucional brasileira, que se opõe
frontalmente àquela ideologia nazifascista do início do século XX, inserida em nossa
(ainda) vigente legislação processual penal.
O capítulo III, destinado a demonstrar que a presunção de inocência é um direito
fundamental, é um importante marco de transição entre todos os debates juspolíticos
limitados ao campo processual penal e uma abordagem mais acentuadamente
constitucional do tema. Nele se revela o profundo e inconciliável distanciamento entre a
Constituição e o Código de Processo Penal vigentes. Revela-se, ainda, que essa dicotomia
sistêmica somente começará a ser superada ao se notar que os direitos fundamentais têm
um conteúdo subjetivo/objetivo e que isso implica um dever estatal de proteção e de
estabelecimento de “organização e procedimento” aptos a efetivar esses direitos.
Somente após fixada essa base constitucional para o tema se pode adentrar ao estudo
de sua estrutura normativa, o que é realizado no Capítulo IV, conforme a “teoria dos
princípios”.
Pela falta de estudos constitucionais ou processuais penais preocupados em aplicar
essa teoria nesse ponto de intersecção (presunção de inocência) entre Constituição e
Processo Penal, esta obra tem um ônus argumentativo a cumprir. Demonstrar não apenas
a estrutura normativa com a qual examina a presunção de inocência no último capítulo,
mas também que essa forma de compreender os dispositivos constitucionais representa
uma maior garantia de seu conteúdo essencial e, de modo mais coerente, atende às
necessidades e resolve pontos críticos até então existentes na área processual penal.
Desenvolvem-se, assim, as concepções de suporte fático, de âmbito de proteção e de
intervenção estatal, todos pela perspectiva ampla, inerente àquela teoria. Na inter-
relação entre esses conceitos, expõe-se “por que” e “em que medida” os direitos
fundamentais, que apresentam estrutura normativa de princípio, devem ser realizados na
maior extensão possível e qual é a diferença entre restrição e violação a esses direitos.
Essa abordagem, contudo, não obstante pareça ser de cunho exclusivamente
constitucional, sempre está teleologicamente voltada ao âmbito processual penal. A cada
passo da exposição, utilizam-se exemplos de sua incidência prática na área criminal.
Fixados tais pressupostos lógico-argumentativos até aqui referidos, parte-se para sua
aplicação mais direta e de cunho mais prático aos estudiosos e operadores da área
criminal (penal e processual penal). Isso é feito no último capítulo do livro.
Como não é possível tratar de maneira aprofundada, em um único trabalho
científico, cada um dos institutos processuais penais que sofrem influências da presunção
de inocência, utilizou-se os que com ela guardam maior proximidade e, também,
apresentam questões mais críticas a serem resolvidas. Tudo a fim de colocar à prova se as
escolhas até então empreendidas e as inovações trazidas no curso do presente estudo são
úteis e coerentes.
Com esse desiderato e com a assunção expressa da perspectiva “Constituição 
Código de Processo Penal”, organiza-se de modo criterioso todos os aspectos e
significados atribuídos à presunção de inocência. Assim, mostra-se como se inter-
relacionam com ela o “in dubio pro reo” e o “favor rei” e, ainda, como isso deve ocorrer
nos planos legislativo e judicial. Também, em ambos os planos (legislativo e judiciário),
analisa-se esse direito fundamental como “norma de tratamento”, “norma probatória” e
“norma de juízo”.
Para tanto, é indispensável examinar como a presunção de inocência projeta efeitos
e se relaciona com os seguintes institutos processuais: as medidas coativas, notadamente a
prisão provisória; a absolvição por insuficiência de prova para a condenação; o alegado
“in dubio pro societate” como critério de decidir; a vedação legal de concessão de
liberdade provisória; a inclusão do nome do imputado no rol dos condenados, não
obstante haja recurso pendente; a prisão provisória decorrente de sentença condenatória
recorrível, ou de pronúncia; o ônus probatório, a inexistência de sua inversão e a
“mínima atividade probatória incriminadora”; a motivação judicial de toda decisão penal
que implique redução dos direitos do imputado; a reincidência e os antecedentes
criminais; a investigação preliminar; a revisão criminal; o abuso na exposição midiática; a
confissão e a dita delação premiada; a transação penal; entre outros temas relevantes.
Todos esses institutos jurídicos, importantes para o processo penal, são analisados
por essa nova abordagem estrutural normativa aplicada à presunção de inocência. A
perspectiva constitucional implementada a esse direito fundamental sempre será a
bússola orientadora de cada crítica ou nova compreensão que deve ser empreendida
tanto em nível legislativo quanto em nível judicial.
Nisso o trabalho renova uma crítica generalizada e assentada: a necessidade de se
elaborar um novo Código de Processo Penal. Renova, em aspecto tão remansado, na
medida em que no transcurso da exposição indica, a cada ponto, “por que” e “para que”
uma nova legislação é imprescindível. Rejeita, peremptoriamente, as tentativas de
adaptação judicial de parte do aparato legislativo existente e contaminado de
inconstitucionalidade, demonstrando como essa forma de julgar prejudica o sistema
processual penal e deslegitima a Constituição. O Judiciário pode interpretar o texto
normativo de modo conforme à Constituição, mas não pode criar lei nos pontos em que a
inércia legislativa constitui clara violação à presunção de inocência.
Para tudo o quanto já se disse, o presente livro busca fornecer um novo viés de cariz
constitucional ao analisar a estrutura normativa do direito fundamental da presunção de
inocência e aplicá-la tanto para uma maior efetivação no plano judicial
(interpretação/concreção), quanto para uma nova elaboração legal no plano legislativo.

Capítulo I
Inexistência de presunção de inocência até
sua inscrição na Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão
1.1. -Considerações iniciais: a imprescindibilidade da reconstrução
histórica no estudo da presunção de inocência

Um estudo das matrizes históricas de um instituto jurídico só se justifica se dele se


puder extrair razões reveladoras de sua atual importância e dirimir confusões ou ampliar
seu âmbito de incidência por ventura suprimido ou abarcado por outro instituto
correlato. Ao se tratar da presunção de inocência todos esses frutos da reconstrução
histórica podem ser hauridos. Aliás, além deles, somente com essa reconstrução é que se
pode eliminar equívocos que, de tão repetidos, tomaram ares de verdade e, outrossim,
minuciar debates doutrinários e juspolíticos que vêm sendo deixados para trás ou
omitidos sob pseudotecnicismos.
Na medida em que a análise histórica empreendida nos itens seguintes está
teleologicamente voltada aos institutos que revelem ou neguem a existência da
presunção de inocência no sistema processual examinado, pode-se demonstrar como as
bases romanas da presunção de culpa e do direito penal do inimigo surgiram, perpassam
todo o direito medieval e vão encontrar término apenas no iluminismo. Só o
rompimento com aquelas bases ideológicas e estruturantes do sistema criminal permitiu
e permitirá a mudança dos modelos processuais até então desenvolvidos e hoje ainda
encontráveis, dentre os quais se inclui o nosso atual código de processo penal.1
Em paralelo com essa linha teleologicamente comprometida com o tema do
trabalho, o estudo histórico demonstra-se imprescindível na medida em que por ele se
pode examinar, com vagar, institutos jurídicos que, a despeito de terem sido criados por
razões e com finalidades totalmente diversas de um ideário de presunção de inocência,
ainda podem ser encontrados (com algumas diferenciações e mitigações) em nosso código
de processo penal atual.
Assim, reveladas aquelas razões e finalidades, totalmente incompatíveis com a
presunção de inocência e, em paralelo, verificada a sua ocorrência até nossos dias, pode-
se perceber que, ao menos em nível infraconstitucional, temos uma legislação fundada na
presunção de culpa e na utilização seletiva e marginalizante do direito e do processo
penal.
Demonstrar essa afirmação é tarefa indeclinável de quem se propõe analisar a
presunção de inocência em sua extensão e em suas intervenções (legítimas e ilegítimas).
Porém, para que ela possa ser compreendida nesses termos amplos, é necessário começar
dos pontos iniciais da história e demonstrar todas as razões de sua evolução e involução.

1 Já é lugar-comum o reconhecimento de identidade técnico-jurídica e


ideológica entre o nosso atual código processual penal, datado de 1941,
e o Código de Processo Penal italiano de 1930, denominado Código
Rocco e de matrizes ideológicas nazifascistas. Sobre o tema, v. item 2.5
e seus subitens infra.
Os itens deste capítulo permitem compreender e revelar uma significativa carga
histórico-jurídica existente em nosso sistema atual e da qual precisamos nos liberar, se
realmente quisermos afirmar que nosso sistema tem como um de seus pilares a presunção
de inocência.

1.2. Direito Romano

O estudo histórico do direito romano, em regra, compreende o período desde a sua


fundação (754 a.C.) até o fim da Monarquia Absoluta, com a morte de Justiniano (565
d.C.). Fácil perceber que os institutos jurídicos do final desses mais de mil anos de
história eram muito mais evoluídos se comparados com a época de sua fundação. Isso se
deveu não apenas às inegáveis experiências jurídicas bem e mal sucedidas, mas também,
e principalmente, pelas conseqüências jurídicas decorrentes de enormes variações
políticas, complexidades econômicas e extensa dominação territorial e temporal sobre
outros povos.
Curial, outrossim, que os registros mais fiéis e numerosos refiram-se aos últimos
tempos, notadamente pela compilação, capitaneada por Justiniano, de toda a legislação
até então existente em um único diploma legal, o Corpus Iuris Civilis.
Não obstante a falta de registros históricos seguros tenha gerado dificuldades na
reconstrução ideal dos vários sistemas criminais romanos, notadamente os de épocas mais
remotas, é possível se traçar algumas considerações que, com apoio na doutrina
especializada, em alguns pontos, já atingiram certo consenso.
Um dos lugares-comuns na descrição dos procedimentos penais no curso da história
romana é fazê-la em paralelo com a evolução dos regimes políticos daquele Estado.
ROGÉRIO LAURIA TUCCI, com apoio em qualificada doutrina romanista nacional e
estrangeira, identifica quatro “fases do Direito Romano, tendo-se em vista o seu Direito
Constitucional, vale dizer, ‘as vicissitudes dos órgãos reveladores do direito (fontes do
direto)’ ”.2

2 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos do processo penal romano, São


Paulo: José Bushatsky, 1976, notadamente, sobre o tema, v. seu cap. V.
Nessa divisão da evolução histórica, considerada pela perspectiva externa, o autor
divide aquelas fases em: período régio (de 754 a.C. até 510 a.C); período da República (de
510 a.C. até 27 a.C); período do Principado, também denominado período do Alto
Império (de 27 a.C. até 284 d.C) e, por fim, período da Monarquia Absoluta, também
referido pela doutrina como período do Baixo Império ou do Dominato (de 284 d.C até
565 d.C).3

3 Para uma maior compreensão dos critérios usados pelos romanistas


adeptos dessa divisão em quatro fases, vale a referência expressa dos
fatos históricos que pontuaram essas fases. Leciona Rogério Lauria
TUCCI, Lineamentos cit., pp. 35/36, in verbis: “a) – o ‘período régio’,
desde a data convencional da fundação de Roma (754 a.C.), até quando
da expulsão dos reis (510 a.C), e em que, monárquica e patriarcal a
forma de governo, o ‘rex’ era o ‘magistrado único, vitalício,
irresponsável’; b) – o ‘da República’, de 510 a.C. até a instauração do
Principado, por volta de Otaviano Augusto, em 27 a.C., sucedendo aos
reis dois magistrados supremos e anuais – os ‘cônsules’, e multiplicando-
se as magistraturas, substancialmente colegiais, temporárias e
responsáveis; c) – o ‘do Principado’, de 27 a.C. a 284 d.C., quando da
ascenção ao trono do Imperador Diocleciano, e em que o ‘príncipe’ era o
‘primus inter pares’, dando-se realce, outrossim, à obra dos juristas (‘ius
respondendi ex auctoritate principis’); e d) – o ‘da Monarquia Absoluta’,
de 284 d.C. até a morte de Justiniano, no ano de 565 d.C., fazendo-se o
imperador, ‘dominus et deus’, o único órgão revelador do direito, e
burocratizando-se, no entanto, o estado, em todas as suas
manifestações”. Concorde com essa divisão, apenas acrescentando uma
outra fase, a Bizantina, v. Eduardo PESSOA, História do direito romano,
São Paulo: Habeas, 2001, p. 21. Rogério Lauria TUCCI, mais adiante, ao
lado dessa divisão pela perspectiva externa, expõe uma divisão do
Direito Romano pela perspectiva interna, fundada nos significativos
diplomas legais que caracterizaram importantes mudanças jurídicas
naquele Estado. Com lastro na doutrina romanista mais especializada,
Rogério Lauria TUCCI (op. cit., pp. 39/41) divide a história interna
romana em “direito antigo, quiritário ou pré-clássico”, “da fundação de
Roma até a época da ‘lex Aebutia’, cuja data é indicada, sem muita
certeza, entre os anos de 149 e 126 a.C.; a do ‘direito clássico’, desde a
edição desta lei, findando com o reinado do Imperador Diocleciano, no
ano de 305 d.C.; e a do ‘direito pós-clássico’ ou ‘romano-helenico’, a
contar de então, e até a morte de Justiniano, em 565 d.C.”. Eduardo
PESSOA (op. cit., p. 89), afirma que a “Lex Aebutia” foi promulgada
“entre 199 e 126 a.C. Refere-se ao direito judiciário e é considerada
como a lei que criou o processo formulário”.
Quanto às várias fases do processo penal no curso de toda a história romana há dois
consensos: o primeiro, sobre a ordem de surgimento e evolução dos procedimentos
penais e, o segundo, que, não obstante essa ordem, os sistemas não desapareciam em data
certa e no instante exato do surgimento do seu sucessor ou do outro que melhor se
adaptava à nova fase juspolítica do Estado Romano. Sempre houve uma fase de transição,
implementação e convivência do sistema novo com o anterior.
Partindo-se do período régio em direção ao período do Baixo Império, o
procedimento penal romano pode ser dividido, idealmente, em três espécies de
procedimentos.
O primeiro, historicamente, é o encontrado no período comicial e no qual se
identificaram dois procedimentos: a) o mais antigo, da “cognitio”, baseado na noção de
“inquisitio” e de “imperium” e, o mais recente, da “anquisitio”, caracterizada pela
“provocatio ad populum”, primeiro instituto jurídico a esboçar uma proteção ao
imputado.4
No período republicano surge, como segunda espécie, o procedimento penal
denominado “iudicium publicum”, baseado na participação popular nas decisões das
causas e na substituição do sistema da “inquisitio” pelo da “accusatio”; surge, neste
instante, o período das “quaestiones”.
Como terceira e última espécie de procedimento penal romano, no período da
ascensão dos Imperadores, no final da República e início do Império, surge a “cognitio
extra ordinem”. Sua denominação (“cognitio extra ordinem”) bem demonstra a
repristinação, pelo novo regime político autoritário e centralizador dos Imperadores, das
noções régias de “inquisitio” e de “imperium”, enfim, do julgamento baseado na
“cognitio”. “Extra ordinem”, por sua vez, origina-se do fato de que o sistema anterior do
“iudicium publicum”, baseado nas “quaestiones”, até então era denominado, pelos
próprios romanos, como “procedimento ordinário”. Logo, para sucedê-lo, uma vez que
não atendia mais às necessidades e anseios políticos do Estado Romano, preferiu-se
denominar o novo procedimento penal de “extra ordinário”.
Expostos como se situam, cronológica e dentro dos sistemas políticos, os modelos
procedimentais penais desenvolvidos por mais de 1.300 anos de história romana, impõe-
se analisá-los, isolada e detalhadamente. Isto a fim de se poder extrair, de alguns de seus
matizes juspolíticos, de alguns de seus institutos e seus mecanismos de funcionamento,
algumas conclusões para o desenvolvimento do trabalho. Dentre esses institutos será
dada ênfase àqueles relacionados com a prisão provisória, com a forma de tratamento do
imputado, com o ônus probatório, com alguns meios de prova e com a forma dos
julgadores decidirem.
1.2.1. Período Comicial

4 Para essa precisa divisão do período comicial do procedimento penal


romano em duas fases (“cognitio” e “anquisitio”), v. Rogério Lauria
TUCCI, Lineamentos cit., capítulos XIII a XV.
O período comicial abrange desde a fundação de Roma até o último século da
República.5 Esse longo período pode ser claramente dividido em duas fases, como já dito:
a cognitio, nascente no período régio e com ele identificada, e a anquisitio, procedimento
penal surgido com a República e no qual os cidadãos romanos iniciaram não apenas uma
participação direta no julgamento das causas penais, mas, principalmente, uma
estruturação de garantias aos imputados. Analisemos cada qual, começando pelo
primeiro e mais antigo.

1.2.1.1. (segue): procedimento da “cognitio”

A fase da cognitio, no período régio, pela perspectiva do direito penal, caracterizou-


se pela estreita relação entre religião e direito na definição e punição de crimes.6

5 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 59.


6 Nesse sentido, esclarecendo que nesta época não se procurava punir
infratores, mas principalmente “purificar a cidade”, v. Bernardo
SANTALUCIA, Processo penale: diritto romano, in ENCICLOPEDIA del
diritto, Milano: Giuffrè, 1971, v. 36, pp. 318/360. Sobre essa idéia de
definição e punição de ilícitos com base em forte influência religiosa, vale
transcrever a seguinte passagem de Franco GNOLI, Diritto penale nel
diritto romano, in DIGESTO: discipline penalistiche, 4ª ed., Torino: UTET,
2000, v. 4, pp. 43/64, em tradução livre: “Por tal simplicidade da estrutura
constitucional, acompanhada pela reduzida extensão territorial e pela
determinante influência das crenças religiosas tanto na vida cotidiana
dos indivíduos e dos grupos como na atividade pública dos magistrados,
senado e assembléia popular, surgem conexos três aspectos relevantes
na esfera penal: a) a maior parte dos ilícitos, que em seguida
ingressaram na competência das autoridades prepostas para a
repressão de polícia ou para jurisdição, foi deixada – ao que se refere à
individualização e à reação – às relações entre famílias; b) somente os
ilícitos que se acreditavam atinentes diretamente e irremediavelmente à
existência estrutural da coletividade foram individualizados e reprimidos
por esta última; c) tanto nos ilícitos de que trata a alínea a), quanto nos
ilícitos de que trata a alínea b) se observa uma violação de ordem
religiosa, que exige atos de expiação e de purificação, tanto públicos
quanto privados”. Também ao lado das sanções religiosas, quando se
tratava de crimes contra a estrutura ou segurança estatais (tais como
deserção, covardia, sedição e traição), a sanção perdia seu caráter
religioso e passava a ser de natureza militar, punindo-se o infrator até
com a pena de decapitação. Nesse sentido, v. Bernardo SANTALUCIA,
Diritto e processo penale nell´antica Roma, 2ª ed., Milano: Giuffrè, 1998,
pp. 19 e ss. Ainda sobre a importância da religião para o direito penal
antigo, v. Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. I.
Em sua perspectiva processual penal, essa fase ficou conhecida pelo exercício
arbitrário e desmedido do poder de “imperium” dos reis, ou de pessoas por eles delegadas
para perseguir e julgar infratores de modo inquisitivo (“inquisitio”), com punições sem
regras pré-definidas e sem limites, tudo sem procedimento previsto.
O direito penal, em um maior detalhamento, se dividia em “direito penal privado” e
“direito penal público”. Por direito penal privado deve-se entender os ilícitos penais que
atingiam apenas o indivíduo ou, quando muito, seus familiares. Esses ilícitos,
denominados “delicta”, eram julgados perante tribunais civis7 e segundo as regras da
justiça privada (“ius civile”). Diversamente, o ilícito penal público era a minoria das
infrações e tinha como característica ser um comportamento que colocava em risco não
uma pessoa ou família, mas a comunidade, em sua segurança contra ataques externos, e o
poder instituído, contra ataques internos (v.g., sedições). Esse tipo de ilícito público
recebia o nome de “crimina” e era julgado pelo “ius publicum”,8 com participação
decisiva e imperiosa do rex.

7 Nesse sentido, v. Carlo GIOFFREDI, I principi del diritto penale romano,


Torino: Giappichelli, 1970, pp. 4 e ss. O autor, na passagem citada,
ainda enumera, dentre os muitos ilícitos tidos como delicta e sujeitos a
essa forma de julgamento, o furto, as lesões corporais, as injúrias, o
dano injusto, etc.
8 Nesse sentido, v. Mário Curtis GIORDANI, Direito penal romano, 2ª ed.,
Rio de Janeiro: Forense, 1987, pp. 4 e ss. Não obstante a insegurança
das fontes, a afirmação de que era sempre o “rex” quem decidia as
causas penais deve ser tomada com ressalvas. Isto porque, faz todo o
sentido que, com a complexidade das relações do Estado Romano com
outros povos, um maior grau de ameaças internas e externas, houvesse
um aumento das causas penais em número e em graus de dificuldade.
Assim, afirma, p.ex., Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 21 e ss.,
que os julgadores não só nomeavam pessoas para agirem em seu nome
e com o imperium que possuíam, como também se utilizavam de
assessores ou consultores jurídicos para orientá-los. Nesse sentido,
quando se referem aos julgamentos serem feitos todos pelos reis,
significa dizer que ou eles ou pessoas por sua delegação julgavam.
Sobre as várias pessoas utilizadas nessa fase pelo rex, v., ainda, João
Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo criminal brazileiro, 3ª ed., Rio
de Janeiro: Typ. Baptista de Souza, 1920, v. 1, p. 22.
Essa separação entre ilícitos privados (“delicta”) e públicos (“crimina”) vai se manter
até o período monárquico, perpassando todo período régio e a República. Nesse sentido é
que se pode entender a comum afirmação de que o processo civil romano foi construído
sobre a concepção de direito penal; direito penal privado, no caso.9 Ilícitos penais que,
não obstante possuíssem uma tênue diferença com os ilícitos civis, recebiam o mesmo
tratamento legal para processamento e julgamento, por meio das várias modalidades de
“actio romana”.10
Dessa convivência, em juízo privado, do julgamento de causas cíveis e penais
(direito penal privado) resulta que a palavra “reus” era utilizada, também até o período
do Baixo Império, tanto ao demandado em ação civil quanto ao acusado em ação de
índole penal, mesmo de natureza pública (“iudicium publicorum”). Essa mesma
expressão (“reus”) era usada para significar o objeto do processo (de “res”) e, para fora do
processo, para se referir ao “obrigado” civil.11
Nesse contexto incipiente do direito penal, marcado profundamente pela religião e
por um Estado de cariz autoritário, derivando do “rex” todo o poder, o processo penal é
praticamente inexistente em regras ou procedimentos, revelando, pela “coercitio”, um
amplo poder discricionário dos magistrados. Podiam punir “quando”, “do modo” e “com a
intensidade” que entendessem oportunos.12

9 Carlo GIOFFREDI, I Principi cit., pp. 10 e ss., e Ugo BRASIELLO, Diritto


penale romano, in NUOVO digesto italiano, 2ª ed., Torino: UTET, 1938,
v. 16, p. 1139.
10 Para a demonstração de que o direito romano se desenvolveu, neste

instante mais antigo, não pela maior preocupação com o direito material,
formulando uma legislação definidora de direitos civis, mas por uma
angulação processual, por meio da criação de “actio”, a fim de buscar a
tutela daquilo que, mais por sensibilidade que por definição legal, se
entendia violado por ato de outrem, v. Ugo BRASIELLO, La repressione
penale in diritto romano, Napoli: Jovene, 1937, item 4, e idem, Diritto
penale romano cit., p. 1139.
11 Assim leciona Carlo GIOFFREDI, I principi cit., item 4, nota 25. No mesmo

sentido, v., ainda, Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio pro reo,


Buenos Aires: EJEA, 1971, pp. 45/47, e Giuseppe SABATINI, “In dubio
pro reo”, in NOVISSIMO digesto italiano, 3ª ed., Torino: UTET, 1962, v.
8, p. 612.
12 Nesse passo, v., ainda, Carlo GIOFFREDI, I principi cit., pp. 14/16. As

palavras de Ugo BRASIELLO, Diritto penale romano cit., p. 1139, são


precisas, em vernáculo: “Nesta época não existe processo, não existem
verdadeiras penas, e não existe, por conseqüência, ainda um verdadeiro
direito penal”.
O procedimento da “cognitio” era fundado no sistema da “inquisitio” e se
desenvolvia de modo “inquisitorial primitivo”, pelo qual o rei, ou alguém por ele
determinado, podia conhecer “ex officio” (cognição espontânea – “cognitio”) da causa
penal e, sem qualquer formalidade legalmente estabelecida, apurar, julgar e condenar o
tido infrator. Nesse período, pela total falta de regramento e utilização ilimitada do
“imperium”,13 a “coercitio” era empregada de modo amplo pelos julgadores (portadores
do “imperium” por delegação) para punir sem qualquer controle. Nessa perspectiva, esse
procedimento “judicante” não pode ser tido, ao menos nos moldes que hoje concebemos,
como verdadeiro “procedimento penal”. Não se tratava, nessa fase primeva, de
dispositivos rigorosos e desumanos, mas da ausência deles.14 O julgamento se dava com
base em costumes e no puro arbítrio do magistrado.15

13 Sobre a noção romana de “imperium”, v. Lucio BOVE, Imperium, in


NOVISSIMO digesto italiano, 3ª ed., Torino: UTET, 1962, v. 8, p. 209.
Para esse autor, o imperium era a mais ampla e irrefutável manifestação
do poder militar, político, religioso e jurídico exercido pelo rex. Ugo
BRASIELLO, Processo penale romano, in NUOVO digesto italiano, 2ª
ed., Torino: UTET, 1939, v. 17, p. 636, ao tratar dos magistrados do
período comicial da cognitio, assim descreve seus poderes, em
vernáculo: “O magistrado republicano investido de ‘cognitio’, isto é, de
um poder ilimitado que é ao mesmo tempo de prevenção, de repressão,
de correção e de polícia, derivada do seu ‘imperium’ ilimitado. Ele
procede contra fatos que entende puníveis por meio de investigações
que entende oportunas, aplicando a pena que entende adequada, salvo
algumas disposições das Doze Tábuas”.
14 Nesse sentido, são claras as palavras de Teodoro MOMMSEN, Derecho
penal romano, tradução de P. Dorado, Bogotá: Temis, 1976, p. 224, em
vernáculo: “É impossível fazer um estudo científico-expositivo da
cognição em sua forma pura, tal qual se verificava no procedimento
primitivo em que só intervinha o magistrado, tal qual se verifica também
no procedimento perante o imperador e seus mandatários, procedimento
que foi uma ressureição do anterior, e assim como se verificava durante
o Principado no chamado procedimento extraordinário, posto em prática
nesta época ao lado do acusatório. E é impossível dito estudo, porque a
essência da cognição consistia na carência de formalidades
estabelecidas legalmente. A lei não definia nenhuma forma fixa nem para
o início do juízo, nem em rigor tampouco para seu término” - grifamos.
15 Nesse sentido, Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. XIV.
Salvatore DI MARZO, Storia della procedura criminale romana: la
giurisdizione dalle origini alle XII tavole, Napoli: Jovene, 1986, pp. 661 e
ss., afirma que cabiam ao rei os julgamentos dos atos mais graves e a
pessoas com poderes por ele delegados os julgamentos de fatos
menores, porém, reiteradamente, afirma o exercício direto do poder
arbitrário do rei que, julgando sozinho, exercia um poder sem limites.
Do procedimento em “cognitio”, do período comicial, pode-se extrair, ao que nos
importa para o presente trabalho, as características que seguem.16
O procedimento começava por iniciativa do órgão público responsável (“cognitio”),
podia ser suspenso, encerrado e reaberto conforme entendesse melhor o magistrado
(“rex”). Não havia a vedação do “bis in idem”, uma vez que a suspensão ou encerramento
do procedimento não implicava absolvição do imputado.17
O direito de defesa somente era exercido se e até onde o magistrado entendesse
conveniente.18 O interrogatório do imputado era o momento mais importante da
instrução, não podendo o depoente se opor às indagações ou manifestações do magistrado
que – lembre-se, por ser o próprio “rex”, ou alguém por sua ordem –, exercia a “coercitio”
por derivação direta do “imperium” que possuía, no mais das vezes exercendo-o contra o
interrogado como bem entendesse. O magistrado podia ouvir qualquer pessoa como
testemunha por qualquer meio, inclusive em sigilo, o que permite supor, podendo
submetê-la a torturas para “obter a verdade”.19
O infrator, tido sempre como pecador ou traidor, era preso e levado a julgamento
(em regra, sumário) em que todo o procedimento resumia-se a aplicar a pena por uma
acusação e julgamento já realizado antes mesmo de sua apresentação ao magistrado. A
prisão provisória era decretada quando o magistrado entendesse conveniente,20 sendo
cabível supor que se realizasse, em alguns casos, até mesmo antes do acusado conhecer a
acusação. Conduta permitida em um sistema em que a certeza (ou quase ela) da culpa já
se formava antes do processo iniciar. Aliás, ele se iniciava porque aquela convicção já
existia, se não de modo definitivo, ao menos em alto grau.

16 Os aspectos a seguir destacados, e referentes à cognitio do período


régio, são os que, mais consensualmente, aparecem nas obras de:
Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 224 e ss.; Rogério Lauria TUCCI,
Lineamentos cit., cap. XIV; Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 18 e
ss.; Mário Curtis GIORDANI, Direito cit., pp. 95 e ss.; e Alessandro
MALINVERNI, Lineamenti di storia del processo penale, Torino:
Giappicheli, 1972, pp. 1/2.
17 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 45.
18 Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., p. 224.
19 Essas características podem ser vistas na obra de Teodoro MOMMSEN,

Derecho cit., p. 225, sendo válida a suposição da existência de torturas


pela referência daquele autor a regras, não legais ou impositivas,
surgidas após muito tempo de existência da cognitio, para se regular e
limitar a tortura apenas aos escravos a fim de “certificar” seus
depoimentos.
20 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 1/2.
O julgamento não era fundamentado e correspondia a pura manifestação de poder
(“coercitio”), não se exigia demonstração de análise e convencimento sobre a aplicação
ou não de uma norma jurídica (“iudicatio”).21 Daí por que muitos autores afirmem que o
julgamento penal era apenas um “iudicare” (decidir a causa), diversamente do “iudicium
privatum” (para o direito não-penal ou para o direito penal privado), no qual ocorria um
“ius dicere” (dizer o direito pela aplicação de uma regra – “ius” –, a fim de formar uma
jurisprudência para casos futuros e, assim, desenvolver o direito).22 Como não poderia
deixar de ser, diante do “imperium” dos julgadores no procedimento da “cognitio”, as
decisões eram irrecorríveis.23
De todo o expendido se pode verificar que a precariedade dos institutos processuais
penais, para não se dizer sua inexistência, aliada ao rigorismo punitivo da “cognitio”, não
só construíram um sistema persecutório fundado na presunção da culpa, como também
não tinham qualquer preocupação com a humanização do tratamento do imputado.
Logo, em um sistema com esse cariz não se concebia qualquer referência à presunção de
inocência.

1.2.1.2. (segue): o procedimento da “anquisitio”

A “anquisitio”, segunda fase do período comicial, surge paulatinamente como uma


evolução natural e necessária do procedimento da “cognitio” em razão das instituições
republicanas que se consolidavam. No âmbito processual penal a “anquisitio” vem com e
devido à República, regime sucessor da monarquia.
Nessa emergente conjuntura política, o cidadão romano passa a assumir a condução
da nação, diante do desaparecimento da figura onipotente do monarca. As novas leis e
transformações político-sociais revelam uma preocupação em limitar e controlar o poder
dos governantes e de fazer com que ao povo romano sejam reconhecidas garantias frente
ao Estado. Dessa forma, não haverá mais o exercício do “imperium”, como antes se
conhecia, e o cidadão romano começa também a determinar os destinos juspolíticos de
Roma.

21 Nesse sentido, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 20/22.


22 Nesse sentido, v. Carlo GIOFFREDI, I principi cit., pp. 15/16, e Rogério
Lauria TUCCI, Lineamentos cit., cap. VIII.
23 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 1/2.
O marco legislativo de início da “anquisitio” é a edição da Lei das XII Tábuas (450
a.C.).24 Esse diploma legal revela dois aspectos merecedores de destaque na evolução dos
procedimentos criminais romanos: o primeiro, o surgimento de um novo procedimento
penal (“anquisitio”) realizado perante o povo reunido em “comitia” e nos quais ele exerce
o poder judicante;25 o segundo, a permanência da divisão entre direito penal privado26 e

24 Antonio FERNÁNDEZ DE BUJÁN, Derecho público romano: recepción,


jurisdicción y arbitraje, 9ª ed., Madrid: Thomson Civitas, 2006, pp. 85 e
ss., informa que a Lei das XII Tábuas, também denominada “Lex
Decemviralis”, “Legis XII Tabularum” ou apenas Lex, teve inicialmente
redigidas, até o ano de 451 a.C., dez tábuas, sendo acrescentadas mais
duas no ano seguinte (450 a.C.), sendo este o marco da edição dessa lei
para a maior parte dos romanistas. Conforme consta do livro “Código de
Hamurabi – Código de Manu – Lei das XII Tábuas”, Bauru, São Paulo:
Edipro, 1994, p. 135, o inegável e enorme valor dessa obra é “ter sido
uma das primeiras leis que ditava normas eliminando as diferenças de
classes, isto em função de as leis do período monárquico não mais se
adaptarem à nova forma de governo, isto é, à República; e ter sido a que
deu origem ao Direito Civil e às ações da lei”. Antonio FERNÁNDEZ DE
BUJÁN, Derecho cit., p. 85, narra que o Colégio dos Tribunos propôs ao
Senado Romano a criação de uma comissão mista de patrícios e
plebeus que teria a missão de “la confección por escritos de leyes útiles
para ambas las partes y adecuadas para garantizar la libertad y la
igualdad”. O reconhecimento da força do povo na determinação dos
destinos da nação fica evidente quando se lê na XI Tábua, inscrição 1:
“Que a última vontade do povo tenha força de lei”. Para comentários
quanto à origem, conteúdo e críticas à Lei das XII Tábuas, v. Alfonso
CASTRO SÁENZ, Compendio histórico de derecho romano: historia,
recepción y fuentes, Madrid: Tébar, 2005, pp. 116 e ss. Isso bem
demonstra as bases e o perfil juspolítico em que se concebia o novo
sistema processual penal: o personagem principal como centro de poder
deixa de ser o rei e passa a ser o cidadão romano.
25 Conforme a IX Tábua, denominada “Do Direito Público”, segundo a
inscrição 4, determina-se: “Que os comícios por centúrias sejam os
únicos a decidir sobre o estado de um cidadão (vida, liberdade,
cidadania, família)”. Isso bem demonstra que em 450 a.C, data da edição
da Lei das XII Tábuas, já se encetava o procedimento criminal da
anquisitio que, paulatinamente, substitui o da “inquisitio”. Sobre a
importância da lei das XII Tábuas como marco para a inserção do
sistema procedimental perante o povo reunido em comícios (“provocatio
ad populum”), v. Salvatore DI MARZO, Storia cit., pp. 139 e ss.
direito penal público, nos moldes do período primevo da “cognitio”, e que persistirá, de
forma paulatinamente mitigada, até a fase imperial romana.27
Logo, ao lado do procedimento da “cognitio”, que se desenvolve pelo sistema
inquisitivo (“inquisitio”), com manifestação ilimitada e arbitrária da “coercitio” derivada
do “imperium”, surge, em progressivo avanço, o procedimento da “anquisitio”. Por esse
último sistema citado visava-se a limitação do poder dos magistrados que, para alguns
casos, viam-se submetidos a uma decisão final proferida pelo povo romano reunido em
comícios (comitia). Nesse novo sistema, surge como grande instituto jurídico
característico a “provocatio ad populum”, considerado por muitos o primeiro instituto
processual assegurador de garantias aos cidadãos frente ao Estado.28

26 Toda a VII Tábua, de “nomen iuris” “Dos delitos”, traz boa demonstração
da verdadeira proximidade romana entre ilícito civil (v., p.ex., inscrição 1:
“Se um quadrúpede causa qualquer dano, que o seu proprietário
indenize o valor desse dano ou abandone o animal ao prejudicado”, ou,
ainda, na inscrição 9: “Aquele que causar dano leve indenizará 25
asses”) e ilícito penal privado, os denominados delicta (v., p.ex.,
inscrição 10: “Se alguém difama a outrem com palavras ou cânticos, que
seja fustigado”, ou, ainda, inscrição 11: “Se alguém fere a outrem, que
sofra a pena de talião, salvo se houver acordo”).
27 Nesse sentido, v. Antonio FERNÁNDEZ DE BUJÁN, Derecho cit., pp.
92/94.
28 Sobre a “provocatio ad populum” como o primeiro grande instituto voltado
ao reconhecimento de garantias do cidadão frente ao Estado, v.
Giovanni PUGLIESE, As garantias do acusado na história do processo
penal romano, tradução de José Rogério Cruz e Tucci, in José Rogério
CRUZ e TUCCI, Contribuição ao estudo histórico do direito processual
penal: direito romano I, Rio de Janeiro: Forense, 1983, pp. 43/65. Nesse
sentido, v., também, Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 47.
Entendendo a provocatio como limitação legal do poder jurisdicional dos
magistrados, v. Antonio FERNÁNDEZ BUJÁN, Derecho cit., pp. 205 e ss.
Bernardo SANTALUCIA, Processo cit., itens 2 e 3, explica que a
provocatio é fruto de uma sucessão de leis que lhe aperfeiçoam e
ampliam o conteúdo, logo, há registros do julgamento pelo povo reunido
desde antes da Lei das XII Tábuas (450 a.C) até o ano de 300 a.C, com
a Lex Valeria de provocatione.
Em breves linhas, e ao que interessa no presente trabalho, a “provocatio” era uma
garantia conferida ao cidadão romano de poder provocar o envio de seu julgamento ao
povo reunido em assembléia (“comitia”), porquanto somente ela poderia proferir decisão
de condenação à pena capital ou à pena de multa grave (“multa maxima”).29 O que
inicialmente muitos autores entenderam tratar-se de um instituto recursal (apelação ao
povo reunido), fixou-se na doutrina como uma fase necessária do julgamento penal
romano que implicasse qualquer daquelas penas.30
Essa opção republicana de um procedimento fundado em um incipiente sistema
acusatório, limitador do poder dos magistrados, com inegável tendência de ampliar as
garantias dos cidadãos frente ao arbítrio (“imperium”) estatal, foi se espraiando pelos
vários institutos processuais e redesenhando-os em face do cidadão imputado.

29 Inicialmente, no surgimento da provocatio, apenas os cidadãos romanos


homens poderiam utilizar-se deste instituto, posteriormente, após o ano
de 300 a.C., por forma da Lex Valeria de provocatione, também era
possível às mulheres romanas. Como bem expõe Antonio FERNÁNDEZ
BUJÁN, Derecho cit., pp. 205/208, esse direito não era conferido aos
estrangeiros e escravos, assim como para os crimes cujas penas não
fossem as mais graves e indicadas como passíveis de um julgamento
popular. Além do que, seu âmbito de competência, inicialmente dirigido
apenas à pena de morte e multa maxima (3020 asses), foi sendo,
progressivamente, ampliado para incluir as penas corporais graves
(p.ex., de flagelação ou de espancamento). Contudo, não se pode deixar
de consignar que, nesse período comicial, a cognitio ainda se aplicava
de maneira íntegra para os casos criminais de competência dos
magistrados e que não implicassem em acusação a cidadão romano por
crimes com penas graves. Assim também ocorria com os crimes
militares, para os quais os chefes militares exerciam, por delegação, o
poder absoluto do imperium ao julgar.
30 Dos romanistas que entendem a provocatio como recurso ao povo
reunido, v., por todos, Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 224 e ss., e
Antonio FERNÁNDEZ BUJÁN, Derecho cit., pp. 205 e ss. Dos autores
que entendem a provocatio como fase procedimental para julgamento de
crimes com penas graves para limitação do poder dos magistrados,
entendimento ao qual nos filiamos, v., por todos: Giovanni PUGLIESE,
As garantias cit., itens IV a VII; Bernardo SANTALUCIA, Processo cit.,
item 2; e Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., itens 53 a 58.
Assim, quanto à prisão provisória, foi deixando, paulatinamente, de ser obrigatória e
tornou-se exceção aplicável apenas aos estrangeiros, escravos e pessoas de classe social
baixa, nesses casos, ainda por discricionariedade dos magistrados. As restrições àquela
espécie de prisão foram aumentando até que no século I a. C. a sua vedação tornou-se
regra para qualquer cidadão romano.31 Dentre as restrições que foram sendo criadas e
ampliadas desde a instituição da “provocatio” destaca-se a substituição daquela prisão
pelo pagamento de valores (“vadimonium” ou “praedes vades”) arbitrados pelos
magistrados, uma espécie precursora da fiança de nossos dias.32
Nos julgamentos perante as “comitia” (assembléias populares), os acusados tinham
direito à defesa, podendo ela ser exercida pessoalmente ou por terceira pessoa.
Produziam-se provas perante as partes e a população reunida e, terminada a fase
instrutória e de debates em contraditório, procedia-se a julgamento realizado pelo
sistema de votação, cuja decisão era irrecorrível.33
Tal sistema de votação, inicialmente aberto, tornou-se sigiloso para se evitar
pressões aos integrantes da “comitia”, porém, para ambas as formas, não se exigia
fundamentação. A ausência de motivação impede que se analise com mais profundidade
se a dúvida de cada cidadão, ao decidir, levava-o a optar por decisão absolutória ou, de
alguma forma, mais favorável ao imputado. Contudo, os tratadistas são sempre uníssonos
em determinar que a decisão condenatória se dava por maioria de votos, o que nos leva a
afirmar que, em caso de empate, declarava-se o réu inocente.34
De tal constatação não se pode deixar de observar uma manifestação, mesmo que
incipiente, do que hoje se denomina “in dubio pro reo”.

31 Essa diferença de tratamento entre cidadãos romanos de classe alta e os


de classe inferior, plebe, estrangeiros, mulheres e escravos, aliada à não
menor diferenciação de como as pessoas eram julgadas pelo povo
reunido em assembléias, quase sempre compostas por pessoas das
mais elevadas posturas sociais (políticos e militares, principalmente), são
apontadas como as maiores causas políticas da involução do sistema da
anquisitio para o surgimento do procedimento das quaestiones, adiante
estudado (v. item 1.2.2 infra).
32 Nesse sentido, v.: Giovanni PUGLIESE, As garantias cit., item VIII;
Pompeo PEZZATINI, La custodia preventiva, Milano: Giuffrè, 1954, item
4; Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 54; Teodoro
MOMMSEN, Derecho cit., pp. 115/116; e Bernardo SANTALUCIA, Diritto
cit., pp. 84/85.
33 Sobre o procedimento na anquisitio, v., por todos, Bernardo
SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 84/88, e Rogério Lauria TUCCI,
Lineamentos cit., itens 53 a 58.
34 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 58, afirma, com base em
Giuseppe Grosso, que a maioria exigida para a condenação era a
maioria absoluta. Este mesmo autor, em nota 238 ao seu texto, expõe
que não há registro preciso se o empate favoreceria o imputado.
Giovanni PUGLIESE, As garantias cit., item VIII, cita apenas que se
exigia maioria de votos, sem qualificá-la de simples ou absoluta.
Como se percebe, nessa fase do sistema processual penal romano inicia-se uma
humanização para com o imputado. A existência da prisão provisória obrigatória com
finalidade de antecipar a pena e a reconhecida violação da igualdade das pessoas no
tratamento processual não deixam dúvidas de que o sistema apenas iniciava a
humanização. Os privilégios e eventuais mitigações do perfil inquisitivo não são
suficientes para encetar a presunção de inocência como ideário do sistema.

1.2.2. Período Acusatório: “quaestiones perpetuae”

O sistema processual da “provocatio” começou a se mostrar insuficiente para


atender a todas as demandas penais surgidas com o desenvolvimento do Estado Romano.
Isto porque não se mostrava um procedimento ágil,35 demandava uma mobilização
popular significativa para o julgamento de cada causa penal e, outrossim, não abarcava
um grande número de ilícitos que estavam migrando do denominado “direito penal
privado” (“delicta”), cujo julgamento se fazia pela justiça privada, para a esfera cada vez
mais absorvente e ampla do “iudicium publicum”.36
Entre os séculos II e I a.C., final do período republicano, começa a surgir um novo
procedimento para julgamento das causas penais, as “quaestiones publicae”, as quais,
mais tarde, tornaram-se “quaestiones perpetuae”. Esse sistema processual penal vai,
progressivamente, aumentando sua competência e áreas de atuação na esfera penal,
fixando-se como o “procedimento ordinário” criminal romano.37

35 Eram necessárias três reuniões preparatórias da causa penal para, em


uma quarta data, ser realizado o julgamento pelo povo reunido em
assembléia. Nesse sentido, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp.
166/169.
36 Apontando essas razões, dentre outras, para o abandono do
procedimento da anquisitio e do surgimento das quaestiones, assim
como sua crescente ampliação de competência e área de abrangência
material penal, v., por todos: Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit.,
itens 59 a 63; Giovanni PUGLIESE, As garantias cit., itens X a XIII; e
Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 89/102.
37 Necessário reafirmar que o surgimento de novos procedimentos criminais
não implicava desaparecimento completo do sistema anterior, eles
coexistiam. Como já apontado no item supra, havia uma convivência dos
sistemas, surgindo apenas uma preferência e ampliação do sistema
novo, em relação ao antecedente, porquanto, no mais das vezes, era
mais afim com o sistema político que lhe emprestava base. Apenas a
título exemplificativo, do que ora se remarca, observe-se que a diferença
entre “delicta” e “crimina”, surgida na fase monárquica (754 a.C. até 510
a.C.) e que gerava o julgamento daquela (“delicta”) pela justiça privada,
estranha ao âmbito criminal, e o julgamento desta (“crimina”) pelo
“iudicium publicum”, perdurou o Império (de 27 a.C. até 565 d.C.).
Nas “quaestones perpetuae”, última fase da República Romana, diversamente do
período comicial, o procedimento se desenvolve pelo sistema acusatório,38 cabendo a
iniciativa da imputação ao particular (ofendido, pessoa por ele indicada ou, ainda,
qualquer do povo, desde que “de boa reputação”),39 permanecendo o magistrado
(“quaestor”) apenas como representante imparcial do Estado na solução da causa.
No âmbito material,40 as “quaestiones” encetam a noção de legalidade penal, pois,
para se poder processar e julgar alguém por crime, deveria haver prévia elaboração legal
a fixar a conduta ilícita, sua respectiva pena e órgão competente para julgá-la.41 Para cada
novo ato ilícito que se desejava tornar “crimen” (ilícito julgado pelo “iudicium
publicum”), era necessária a redação de uma lei que previsse o órgão julgador, a conduta
ilícita e a pena respectiva. A abrangência das “quaestiones” cresceu significativamente,
passando, nesse período, muitos ilícitos da esfera privada (direito penal privado) para a
esfera do direito penal público.
Na esfera processual, não obstante cada lei criasse competências e órgãos judicantes
diversos, havia uma certa similitude procedimental nos “iudicia publica”.42 Ao que
importa no presente trabalho, vale destacar os temas da prisão cautelar, os direitos do
imputado no curso da persecução (p.ex., direito à defesa, ao contraditório e à prova) e,
ainda, os critérios de decisão das causas penais.

38 Para um estudo comparativo do sistema acusatório das quaestiones em


face do sistema inquisitivo da cognitio extra ordinem, tratada no item
1.2.3 infra, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 241 e ss.
39 Sobre a iniciativa da ação criminal na fase das quaestiones como uma
das mais marcantes diferenciações com o período comicial e suas
razões políticas, v. Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 60, e
Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 165/166.
40 Para análise dos aspectos penais característicos da fase das
quaestiones, v. Carlo GIOFFREDI, I principi cit., pp. 17/20, e Franco
GNOLI, Diritto cit., item 5.
41 Analisando o princípio da legalidade como criação romana na fase das
quaestiones, v. Vincenzo GIUFFRÈ, La repressioine criminale
nell´esperienza romana, 5ª ed., Napoli: Jovene, 1998, pp. 69/75.
42 Sobre o tema, v.: Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 165/181;
Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., itens 61 a 66; Mário Curtis
GIORDANI, Direito cit., pp. 102/106; e Alessandro MALINVERNI,
Lineamenti cit., pp. 3/5.
Quanto à prisão cautelar, nesse sistema processual, a regra é a de que ela não seria
decretada no curso do procedimento.43 Tanto que, mesmo se o imputado não fosse
encontrado para a citação, se estivesse a ela se furtando ou se, citado, deixasse de
comparecer, a sanção pelo não comparecimento diante do juízo para início da ação era a
de inscrição de seus bens (“adnotatio”) para posterior confisco se, passado um ano, ele
ainda permanecesse ausente.44 Evidencia-se, desse modo, uma preferência pela medida
cautelar patrimonial em relação à pessoal (prisão).45
Se comparecesse, era informado da imputação e, imediatamente, interrogado. Não
se permitindo a tortura do acusado nesse período do direito romano,46 ele poderia
confessar o ilícito, ou negá-lo. Na primeira hipótese, passava-se à aplicação da pena, sem
necessidade de produção probatória. Caso negasse a irrogação, o juiz formalizava a
acusação (“nominis receptio”), recolhendo a assinatura do acusador (“subscriptio”), a ela
podendo aderir em subscrição outras pessoas diversas do acusador, porém sempre deveria
ter um titular da imputação que por ela se responsabilizava.47
Fixada a acusação, o imputado recebia a condição processual de réu (“reatus”),48
marcava-se a data para julgamento (“diei dictio”), com tempo suficiente para que o
acusador investigasse os elementos para demonstrar sua acusação, tudo acompanhado do
acusado ou de pessoa por ele indicada.49 Garantia-se, portanto, o direito à defesa.

43 Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., p. 170.


44 Nesse sentido, Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 64. Para
exposição sobre as hipóteses de crimes com penas menos graves, para
os quais se admitia o julgamento à revelia, nomeando-se defensor, v.
Giuseppino Ferrucio FALCHI, Diritto penale romano, Padova: R.
Zannoni, 1937, v. 3 – Procedura, pp. 26/28, e Bernardo SANTALUCIA,
Diritto cit., p. 246, nota 204. Sobre a manutenção desse critério de não
se julgar à revelia em crimes punidos com penas pequenas, v. Rogério
Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 81.
45 A situação de efetiva igualdade entre as partes acusadora e acusada,

implementada pelo sistema acusatório, permitia, como narram os


romanistas, não só que o acusador sofresse as penas do crime que
imputasse ao acusado, se visse seu pleito indeferido, como, outrossim,
podia ser submetido à prisão provisória, em certos casos, à espera do
julgamento. Nesse sentido, Pasquale Tuozzi, comentando legislação
theodosiana, apud Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., p. 174, nota
299.
46 Destaca Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 5, que a tortura era

possível para os escravos, fossem eles acusados ou testemunhas.


47 Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 167/168.
48 “Reus”, como é destacado pelos romanistas, vale tanto para a condição

do demandado na esfera penal quanto para a justiça não-penal (civil). V.,


por todos: Carlo GIOFFREDI, I principi cit., p. 16, nota 25; Ugo
BRASIELLO, Diritto penale romano cit., p. 1141; e idem, Processo
penale romano cit., p. 636.
49 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 64.
Naquela data (“diei dictio”), formava-se o órgão julgador (tribunal popular), após
aceitação pelas partes de alguns dos jurados convocados e presentes. As partes debatiam a
acusação, produzia-se50 a prova em contraditório, com pouquíssima participação do
“quaestor” presidente na sua formação, sendo-lhe vedado, inclusive, indagar as
testemunhas.51
No tocante ao “ônus probatório”, há passagens ciceronianas da prática forense que
permitiram à doutrina romanista entrever uma verdadeira “presunção de culpa” no atuar
dos jurados. Isto porque eles, por uma falha racional constatada na prática, compareciam
ao julgamento não para que o acusador provasse a imputação, mas a fim de constatar se o
defensor conseguiria refutar cada parte da acusação. A hábil oralidade dos defensores
atraía mais a atenção dos julgadores que a necessidade do acusador dever provar a culpa
do réu, e a falta daquela habilidade, ou seja, a falha do defensor, fazia fenecer o acusado.
Assim, procediam, de fato, a uma verdadeira “inversão do ônus da prova”.52
Encerrada a instrução, o “quaestor” presidente, sem emitir sua opinião, definia os
pontos controvertidos para a votação, e os membros do colégio eram convidados a
retirar-se para deliberar (“in consilium ire”).53 Da votação, da qual não participava o
“quaestor”,54 poderia resultar: a) a absolvição (votando A, de “absolvo”), b) a condenação
(votando C, de “condemno”) ou c) a renovação do julgamento (votando NL, de “non
liquet”), para uma instrução mais ampla (“ampliatio”), devido à incerteza dos jurados
quanto à responsabilização do réu.55

50 No período republicano das “quaestiones” as testemunhas que fossem


homens livres não podiam, em regra, ser torturadas, diversamente
ocorria com os escravos, que poderiam ser torturados para se obter a
“certeza de verdade” de seus depoimentos. Nesse sentido, v. Teodoro
MOMMSEN, Derecho cit., pp. 260/269, e Bernardo SANTALUCIA, Diritto,
cit., pp. 174/175.
51 Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 271 e 275. Sobre a limitação da

atividade do “quaestor” resumir-se à presidência dos trabalhos sem


atividade inquisitiva, instrutória ou decisória, v. Rogério Lauria TUCCI,
Lineamentos cit., item 70.
52 Nesse sentido, v. Vincenzo GIUFFRÈ, La repressione cit., pp. 76/79.
53 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 65, e Bernardo

SANTALUCIA, Diritto cit., p. 175.


54 Bernardo SANTALUCIA, Processo cit., p. 346.
55 Nesse sentido, v.: Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 65;

Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 175/177; e idem, Processo cit.,


pp. 346/347.
De se notar que, diferentemente dos registros para a votação nos julgamentos das
assembléias populares (“provocatio ad populum”), da fase da anquisitio,56 nas quaestiones,
há registros de que a condenação somente ocorria diante da maioria absoluta dos votos.
O empate era certamente tomado como decisão absolutória. Conforme se depreende, por
maioria absoluta compreendia-se que os votos condenatórios, para prevalecerem,
deveriam ser em número maior que a soma dos votos absolutórios com os votos non
liquet, desde que estes não fossem em número a caracterizar a “ampliatio”.57
Cresce, nesse período, os registros históricos no sentido de que, mesmo em decisões
colegiadas58 e por votação não fundamentada,59 emergia o espírito de que na dúvida sobre
a responsabilização do réu, dever-se-ia decidir por sua absolvição (“in dubio pro reo”).
Para confirmar a cristalização da noção do “in dubio pro reo” e o que se declarou no
início desse item – quanto à sempre coexistência de vários procedimentos criminais na
história romana –, veja-se que mesmo após o início do Império, ao final do século I a.C.,
e no início da era cristã, há registros de que foi conferido ao Imperador Augusto o poder
de, em caso de maioria condenatória apenas por um voto, votar pela absolvição do réu,
empatando a votação e, por conseqüência, absolvendo-o.60

56 Sobre o tema, v. item 1.1.2 supra.


57 Nesse sentido, com farta base nos fragmentos e registros históricos de
julgamentos, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 119, nota 50, e
176/177. Também, Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 65,
principalmente nota 271, com qualificado apoio em romanistas de escol
(Bonfante e Kunkel). Para Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., p. 283, não
há registros seguros de que se exigisse a maioria absoluta ou simples,
sendo certo apenas que para condenar era necessária a maioria,
significando que o empate se entendia como absolvição do acusado.
58 A decisão, nas “quaestiones”, por advir de uma votação e não de um

julgador, não era fundamentada e limitava-se a indicar a culpabilidade do


réu com a expressão “jure videtur fecisse”, em caso condenatório, ou
“non videtur fecisse”, para a absolvição. A pena não era fixada pelo
“quaestor” ou pelos jurados, mas advinha de modo direto da lei
definidora da “quaestio”.
59 As decisões, nas “quaestiones”, por não advirem de um magistrado no

exercício do imperium, mas do próprio povo reunido, detentor único do


poder na fase republicana, não comportavam recurso (“appellatio”) ou
reenvio para nova fase de julgamento, à semelhança da “provocatio ad
populum”. Nesse sentido, v. Ugo BRASIELLO, Processo penale: diritto
romano, in NOVISSIMO digesto italiano, 3ª ed., Torino: UTET, 1966, v.
13, p. 1159.
60 Bernardo SANTALUCIA, Processo cit., p. 349.
Percebe-se, pois, que o sistema funcionava com a presunção de culpa e o “in dubio
pro reo”. Isso não causa qualquer conflito na sua lógica interna, como poderia parecer em
uma primeira vista. A presunção de culpa servia para atribuir o ônus probatótio ao
acusado, porém caso ele gerasse a dúvida nos julgadores, deveria ser a ele reconhecido o
“in dubio pro reo”.61
A observação atenta dessa fase do sistema processual penal romano contribui para
desmistificar ao menos duas falsas impressões: a primeira é que o sistema que aceite o “in
dubio pro reo” está fundado na presunção de inocência e, a segunda, que se o sistema
processual é de modelo acusatório sempre haverá presunção de inocência.
Como se demonstrou por todo esse item, nessa fase romana, de modelo acusatório, a
presunção de inocência também estava ausente. Isto porque, para ela se efetivar depende
muito mais (i) da igualdade no tratamento humano dos jurisdicionados por toda a
persecução e (ii) de uma fundamentação justa e coerente entre a lei e o material
probatório produzido pelas partes, do que apenas pela distribuição de funções entre juiz,
acusador e acusado e de um critério hermenêutico para decidir em caso de dúvida fática
(“in dubio pro reo”).
Contudo, mesmo esse avanço incipiente em direção à humanização do sistema
processual penal teve um retrocesso na fase seguinte: a cognitio extra ordinem.

1.2.3. Período Imperial: “cognitio extra ordinem”

A partir do início do período imperial (27 a.C.), as instituições processuais penais,


forjadas com base na estrutura republicana e na descentralização do poder judicante para
os “quaestores” e para os mais diversos julgadores nomeados pelo Senado, não mais
atendiam aos anseios de um poder, novamente, centralizador.62
A noção de “imperium”, surgida com o “rex”, na fase monárquica, é repristinada e
uma única pessoa, agora simbolizada pelo “Princeps”, unifica todos os aspectos máximos
dos poderes militar, político e judicante.

61 Isso também se deu, historicamente, no código de processo penal italiano


de 1930, conhecido como Código Rocco, e, por conseqüência, em nosso
atual código de processo penal de 1941, conforme se nota já na
Exposição de Motivos deste último diploma citado (item II, denominado
“A reforma do processo penal vigente”). Para maiores exames sobre o
tema, v. itens 2.4.3 e 2.5.2 e seus respectivos subitens infra.
62 Dentre os aspectos políticos de limitação do poder do Príncipe que o

sistema acusatório das quaestiones provocava, pode-se citar, como os


mais significativos: i) o poder de julgar delegado a particulares cuja
nomeação escapava ao controle do soberano; ii) o modo de composição
e de decisão, lembrando-se aqui a votação secreta nos “comitia”, que se
tornou a regra ao final do período republicano, impedia a imposição das
novas disposições legislativas imperiais. Nesse sentido, v. Bernardo
SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 213/214.
Nesse novo e forte contexto político era necessário romper com a fase das
“quaestiones perpetuae”, até então denominado “procedimento ordinário” – porquanto o
mais comum e aplicável à maioria das infrações do período –, bem como com o sistema
acusatório.
O Principado (27 a.C. até 284 d.C.) necessita de um sistema centralizador e
autoritário, no qual a figura do soberano possa ser o ápice e o eixo do qual todo poder
emane e para o qual todas as demandas sejam, em última instância, encaminhadas.
Decidir causas é demonstrar poder, e decidir causas penais, determinando penas (tão
severas), é a forma mais significativa de controle social e imposição de uma nova
ideologia política.
Nesse contexto, o sistema político imperial vai à fase monárquica para revalorizar o
sistema da “cognitio”, de natureza inquisitiva evidente e inarredável, como o leito no
qual deitará o novo procedimento criminal a ser criado.63 Procedimento que, para não ser
confundido e não trazer qualquer matiz acusatório e, ainda, a fim de aparentar algo para
além do procedimento ordinário até então existente, foi denominado procedimento
“extra ordinem”. Daí sua nominação: “cognitio extra ordinem”.
Por força da vontade do Príncipe, esse novo sistema criminal avança velozmente
sobre as esferas de abrangência material e processual dos seus antecessores, assumindo
cada vez mais áreas e causas até então julgadas pela justiça privada (“delicta”) e pelas
“quaestiones perpetuae” (procedimento ordinário).64
Tal qual ocorrente entre a “provocatio ad populum” e as “quaestiones perpetuae”,
também entre este último sistema citado e a “cognitio extra ordinem” houve um longo
período de coexistência, que perdurou até o fim do período clássico (305 d.C.), chegando
a ser imposto como única forma processual criminal na fase pós-clássica do direito
romano (de 305 d.C a 565 d.C).65

63 No início do período imperial, mas antes da criação do novo sistema da


cognitio extra ordinem, houve puro arbítrio e exercício do imperium em
matéria criminal, somente depois se forjou um novo sistema, que não
poderia prescindir dessa natureza inquisitiva e dessa força coercitiva.
Sobre o tema, v. Ugo BRASIELLO, Diritto penale romano cit., item 3.
Sobre o retrocesso político em relação às garantias do cidadão frente ao
Estado Romano, porém com ressalto ao avanço técnico-jurídico
alcançado, v. Vincenzo MANZINI, Diritto penale, in DIGESTO italiano,
Torino: UTET, 1899/1902, v. IX, parte terza, pp. 45 e ss., e Rogério
Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 80.
64 Vincenzo ARANGIO-RUIZ, Storia del diritto romano, 7ª ed., Napoli:
Jovene, 2006, pp. 325/327.
65 Nesse sentido, v.: Mário Curtis GIORDANI, Direito cit., p. 109; Vincenzo
MANZINI, Trattato di diritto processuale penale italiano, 6ª ed., Torino:
UTET, 1967, v. I, pp. 5/7; Vincenzo ARANGIO-RUIZ, Storia cit., pp.
323/326; Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 232/233; Rogério Lauria
TUCCI, Lineamentos cit., itens 31, 32 e 67 a 70 e, ainda, Bernardo
SANTALUCIA, Processo cit., p. 357.
Necessário observar que a proeminência da cognitio extra ordinem não se deu
unicamente com base em razões políticas de implementação dos desígnios do Princeps.66
Não obstante a importância dessas razões, é inegável que o sistema acusatório das
“quaestiones” apresentou falhas e insuficiências técnico-jurídicas intrínsecas que também
contribuíram para seu desaparecimento.67

1.2.3.1. -(segue): reconstrução de um modelo inquisitivo baseado na


presunção de culpa

66 Para uma breve exposição da crise política vivida pelo Estado Romano ao
final da República e que justificava o apoio popular às mudanças em
direção à forma estatal do Império, fato propiciador das condições
necessárias para o surgimento do Principado e das mudanças e
influências provocadas nas e pelas instituições jurídicas, v. Alessandro
MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 5/7. Sobre as falhas políticas que
propiciaram um aumento das desigualdades no final da República e o
surgimento do Principado, com a tarefa de reduzir tais desigualdades
sóciopolíticas, e a rápida desilusão popular sobre esse último regime,
devido ao alto recrudescimento das penas e à criação de um sistema
punitivo arbitrário e desmedido, v. Giovanni PUGLIESE, As garantias cit.,
itens XI a XIII.
67 Como insuficiências e falhas prático-jurídicas do sistema acusatório das

“quaestiones”, pode-se destacar, como as mais importantes: i) o pré-


estabelecimento da pena de modo fixo, sem possibilidade de se adequá-
la à conduta, inclusive com a análise dos vários graus de culpabilidade,
diferenciação entre consumação e tentativa, e entre crime doloso e
culposo; ii) a legalidade rígida das “quaestiones” não atendia à crescente
ampliação punitiva – não só representada pelo aumento de penas, mas,
também, pela ampliação do número de ilícitos considerados crimes
(“crimina extraordinaria”) – implementada pelo soberano de um regime
autoritário, centralizador e sequioso de implantação; iii) a baixa qualidade
técnico-jurídica dos quaestores, iv) o recrudescimento dos ânimos entre
acusador e acusado, ao contrário de sua composição; v) as acusações
conduzidas não pelo espírito público de se evitar atos ilícitos e se buscar
a pacificação social, mas pela vaidade política de se mostrar um bom
tribuno a fim de galgar carreira política; vi) o aumento de acusações
infundadas; e vii) as injustiças das decisões populares que eram
influenciadas fortemente pelo maior poder social e econômico que o
acusador ou o acusado tivesse em relação ao adversário. Nesse sentido,
v.: Ugo BRASIELLO, Diritto penale romano cit., item 2; Bernardo
SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 214/215 e 243/245; e Rogério Lauria
TUCCI, Lineamentos cit., itens 31, 32, 67 e 68.
Em oposição ao sistema acusatório, o procedimento inquisitivo da “cognitio extra
ordinem”, para satisfazer os anseios autoritários do Império Romano em formação e,
simultaneamente, atender às necessidades de suprir um procedimento (ordinário)
insuficiente, caracterizou-se por: a) os magistrados imperiais (“cognitores”) não
dependiam da iniciativa de particular para deflagrar a “persecutio criminis”, mas, “ex
officio”, isoladamente ou auxiliado por funcionários (“curiosi”, “irenarchae”,
“stationarii”, etc), investigavam, acusavam e, ao final, decidiam sem a participação de
jurados;68 b) não haver regra definida para a produção e avaliação do material probatório
colhido; c) supressão significativa, ou quase total, dos direitos à defesa, ao contraditório e
à prova, uma vez que os debates das partes perderam seu valor de convencimento;69 d) o
ônus da prova é determinado pelo princípio da oficialidade, que impõe ao julgador o
dever da “busca da verdade”;70 e) o princípio da publicidade, regra nas “quaestiones”,
sofre progressivas restrições, até ser eliminado;71 f) a sentença, sempre motivada, passou a
ser obrigatoriamente escrita, a fim de permitir o recurso (“appellatio”) aos órgãos

68 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., item 72, e Bernardo


SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 242/243.
69 Nesse sentido, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., p. 284. Mantendo-

se uma tradição, já formada no final da República para o sistema das


quaestiones, não se admite, também no procedimento extraordinário, o
julgamento à revelia nos crimes com penas altas (p.ex., pena capital ou
trabalho nas minas). Nos casos de não localização do acusado para a
citação ou de seu não comparecimento, realizava-se um procedimento
especial para sua declaração de fugitivo e seus bens eram confiscados.
Para os crimes de penas menores, admitia-se o julgamento à revelia,
após providências para localização do acusado e manutenção das
provas. Especificamente para o procedimento extraordinário, v. João
Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., p. 46. Sobre as
vedações de iniciar a ação penal em face do ausente e as providências
para sua superação, assim como hipóteses de crimes leves em que se
admitia o julgamento de revel, v. Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp.
245/247.
70 José Miguel PIQUER MARÍ, La carga de la prueba en la jurisprudencia

romana clássica: exégesis de D. 22.3, Madrid: Edisofer, 2006, p. 18.


71 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 7, e Bernardo SANTALUCIA,

Diritto cit., pp. 283/284. Sobre os esforços improfícuos de Constantino


para, em um édito de 1º de novembro de 331 d.C., restabelecer a
publicidade dos julgamentos como forma de efetivar e garantir uma
melhor prestação jurisdicional, além de outras medidas, v. Giovanni
PUGLIESE, As garantias cit., itens XV e XVI.
judicantes imperiais superiores,72 restando o “Princeps” na posição de julgador supremo,
cujas decisões não comportavam impugnação.73
Para se analisar os institutos mais sensíveis a esse novo influxo político de forma útil
e objetiva ao presente estudo, far-se-á o exame com base nos registros legislativos
daquela época.74

1.2.3.1.1. (segue): prisão provisória como pena antecipada

72 Para conhecimento da hierarquia dos órgãos persecutórios e judicantes


do sistema imperial, v. Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., itens 75
a 77.
73 Rogério Lauria TUCCI, Lineamentos cit., itens 74 e 79.
74 Como texto base para a retirada e análise dos registros históricos, utiliza-

se a compilação do Corpus Iuris Civilis, isto porque dele se podem extrair


regras e orientações do período clássico do direito romano (ano 149 ou
126 a.C. até 305 d.C.) e, portanto, diretrizes tanto para o sistema das
quaestiones perpetuae como para a cognitio extra ordinem, inicialmente
coexistentes. Além do que, destinando-se aquela compilação ao período
pós-clássico do direito romano (ano 305 d.C. até 565 d.C.), pode-se,
ainda, verificar como os entendimentos foram extraídos do passado
(período clássico), adaptados à nova fase (período pós-clássico) e como
os desígnios dos jurisconsultos, nem sempre atendidos, eram projetados
para o sistema criminal. Sobre a orientação que se pode extrair daquela
compilação e sobre sua representação de uma fase de transição
(coexistência de dois sistemas até a prevalência de apenas um), v.:
Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 8; Alfonso CASTRO
SÁENZ, Compendio cit., itens 117/121 e 144/155; e Antonio
FERNÁNDEZ DE BUJÁN, Derecho cit., pp. 187/201. Este último
romanista, inclusive, em análise dos jurisconsultos citados em vários
fragmentos, indica exatamente o período coberto pelos textos que
compõem a obra, e também sua preocupação em ser atualizado para os
novos tempos do Baixo Império (ou Monarquia Absoluta).
Quanto à prisão provisória, desde o início da implementação do procedimento
“extra ordinem”, foi sendo cada vez mais aceita, em contraposição à tendência iniciada
na época republicana, sendo usada largamente na tentativa do Estado demonstrar sua
pronta atuação contra a sensação de impunidade reinante. Assim, como em nossos dias,
já no Baixo Império (284 d.C. até 565 d.C.) a finalidade cautelar e processual da prisão
preventiva era subvertida e ela era empregada como forma de antecipação de pena.75

75 Isso se evidencia no seguinte trecho de Giovanni PUGLIESE, As


garantias cit., item XIV: “Do mesmo modo, uma constituição de
Valentiniano e Valente (C.Th 9,2,2, do ano de 365, ‘Impp. Valentinianus
et Valens AA. Valentino consulari Piceni’) estabeleceu que o juiz deveria
imediatamente colocar sob custódia aquele que fosse acusado, e dirigir-
se ao Imperador; ou, em caso de ser excessiva a distância, ao Prefeito
do Pretório (ou, tratando-se de soldado, ao ‘magister militum’), relatando-
lhe o mérito da acusação e as qualidades da pessoa para que, ‘sub
specie vel verae ementitae dignitatis’, os delitos não permanecessem
impunes. O Imperador, ou seu substituto, forneceria ao juiz instruções
adequadas ao caso e, nesse ínterim, o acusado ‘cuiuscumque honore
esse dicatur’ deveria permanecer custodiado. Formou-se,
evidentemente, uma praxe pela qual o cidadão revestido de uma
‘dignitas’ tinha o privilégio de não ser preso, o que favorecia, entre outras
coisas, a fraude. A constituição não eliminava, inteiramente, tal privilégio,
mas subordinava ao controle e à valoração discricional do Imperador e
seus substitutos”. Encontra-se, ainda, no Digesto XLVIII, fragmento de
Ulpiano (D. 48, 19, 8, 9), no Título XIX, denominado “Das penas”, no qual
se explica que o cárcere não pode ser usado como pena, mas apenas
como local em que se deve pôr os acusados à espera de julgamento.
Fica evidente, com esse trecho legislativo romano, que a preocupação
daquele jurisconsulto em emprestar à prisão preventiva uma finalidade
processual revelava que ela era usada, em regra, como antecipação de
pena.
Na fase pós-clássica de Justiniano, foram várias as medidas para tentar diminuir as
diferenças entre as pessoas no tocante à prisão preventiva. Sem perder seu caráter
obrigatório,76 foram eliminadas as diferenças de classes sociais e dignidade entre as
pessoas acusadas, a qual, no passado, gerava insatisfação popular por desigualdade de
tratamento. Assim, sempre um maior número de pessoas sofria, obrigatoriamente, a
constrição preventiva desde o início da persecução penal.
Ainda na tentativa de regular a prisão preventiva para minorar seus efeitos,
encontramos na constituição grega de Justiniano, dirigida a Menna, prefeito do pretório,
claras disposições no sentido de que: a) a prisão preventiva somente se pode dar por
ordem do magistrado ou de pessoa que exerça cargo equivalente (C. 9, 4, 6 pr); b) os
bispos fiscalizassem os cárceres77 para, definida a imputação e qualidade dos réus (escravo
ou homem livre), serem julgados imediatamente ou, na hipótese de crime grave (p.ex.,
homicídio), em tempo não superior a um ano; c) nos crimes menos graves (p.ex.,
tumulto), fosse permitida a liberdade em troca de uma “caução juratória” (“iuratoriae
cautioni”).78
Também é dessa época, por clara influência católica, “tentativas” de “humanização”
dos cárceres.79 Nesse sentido, põe-se o fragmento a seguir, do Imperador Constantino,
referente à custódia dos réus, compilado no “Corpus Iuris Civilis”.80

76 Se a obrigatoriedade da prisão preventiva, desde o início da ação penal,


era a regra durante toda a fase do Império, notadamente no Baixo
Império (284 d.C. até 565 d.C.), não se pode negar alguns momentos em
que tal forma de tratamento provisório foi vedada. Como exemplo, tome-
se o edito dos Imperadores Graciano, Valentiano e Teodosio, constante
do fragmento C. 9, 3, 2, do Corpus Iuris Civilis, e pelo qual é vedada a
prisão preventiva, concedendo-se, inclusive, tempo para o acusado tratar
de seus bens e negócios antes de se apresentar em juízo para
responder à imputação. Como observa Giovanni PUGLIESE, As
garantias cit., item XVIII, essa vedação à prisão preventiva foi a seguir,
passados alguns decênios, derrogada.
77 Sobre as inspeções dos cárceres pelos bispos no século V d.C. para
verificar se havia pessoa presa indevidamente, ou alguma negligência,
incúria ou prevaricação, advertindo aos magistrados, v. João Mendes de
ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., p. 45.
78 Todas essas determinações de Justiniano para mitigar a obrigatoriedade
e as longas permanências nos cárceres estão nos parágrafos 1º a 4º,
fragmento 6, da citada constituição grega. Para algumas observações
doutrinárias quanto a essa passagem, v. Giovanni PUGLIESE, As
garantias cit., item XVIII.
79 Giovanni PUGLIESE, As garantias cit., item XVII, e João Mendes de
ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., pp. 48 e ss.
“1. Imp. CONSTANTINUS A. ad FLORENTIUM, Rationalem. – In quacunque causa reo
exhibito, sive accusator exsistat, sive eum publicae solicitudinis cura produxerit, statim debet
quaestio fieri, ut noxius puniatur, innocens absolvatur. Quodsi accusator aberit ad tempus, aut
sociorum praesentia necessaria videatur, id quidem debet quam celerrime procurari. Interea vero
reum exhibitum non ferreas manicas et inhaerentes ossibus mitti oportet, sed prolixiores catenas,
si criminis qualitas etiam catenarum acerbitatem postulaverit, ut et cruciatio desit, et permaneat
sub fida custodia. Nec vero sedis intimae tenebras pati debebit inclusus, sed usurpata luce
vegetari, et, ubi nox geminaveriti custodiam, vestibulis carcerum et salubribus locis recipi, ac
revertente iterum die, ad primum solis ortum, illico ad publicum lumen educi, ne poenis carceris
perimatur; quod innocentibus miserum, noxiis non satis severum esse dignoscitur”.

1. O Imperador Constantino, Augusto, a Florêncio, Contador. – Apresentado o réu em qualquer


causa, tenha acusador ou tenha sido apresentado pela vigilância pública, deve ser interrogado
imediatamente, para que culpado seja castigado e seja absolvido se inocente. Mas se o acusador
estiver ausente por certo tempo, ou se considerar necessária a presença dos cúmplices, deve-se
certamente atender a isto com suma celeridade. Porém, nesse ínterim, o réu apresentado não deve
ser metido em férreos grilhões que lhe pressionem os ossos, mas em grilhões mais frouxos, mesmo
se a qualidade do crime também exigir a severidade dos grilhões, a fim de que não haja martírio, e
ele permaneça sob segura custódia. Mas o encarcerado não deverá sofrer as trevas do lugar mais
recôndito, mas ser fortalecido pela luz solar, e, logo que chegue a noite duplicar a guarda, seja
recolhido no vestíbulo do cárcere e em locais salubres, e ao voltar o dia, no aparecimento do sol,
seja imediatamente levado à luz pública, a fim de que não se morra pelas penas do cárcere; o que
para os inocentes é lastimável, e não bastante severo para os culpados. (C. 9, 4, 1)

80 O fragmento que segue foi compilado na época pós-clássica de


Justiniano como norma a ser seguida pelos magistrados imperiais
romanos. O texto latino foi destacado da obra de Ildefonso L. GARCÍA
DEL CORRAL, Cuerpo del derecho civil romano, Valladolid: Lex Nova,
2004, t. 5, pp. 425/426. A coluna direita, traz nossa tradução da
correspondente versão espanhola constante na obra citada.
Todas as determinações imperiais no sentido de mitigar, humanizar ou limitar o
tempo da prisão preventiva não indicam uma tendência em reduzi-la, torná-la
facultativa ou suprimi-la.81
Tantos regramentos para a humanização e controle apenas demonstram sua
incontrolada ocorrência e seu mau uso. Nos cárceres, locais de baixíssima salubridade,
eram postas pessoas sem acusação, por tempo excessivo e, em regra, todos os que sofriam
alguma imputação (leve ou grave). Tudo a fim de, inicialmente, mostrar um
recrudescimento do sistema punitivo, atender à sensação de impunidade reinante no
final da República e, com isso, buscar, junto à população, uma legitimidade ao sistema
inquisitivo imperial.82
Explica-se a obrigatoriedade e difusão da prisão preventiva desde o início da ação
criminal porquanto o sistema da “cognitio extra ordinem” foi construído sobre a
“presunção de culpa”. Essa conclusão ressurte evidente pela lógica estrutural daquele
sistema.

81 Para provar a preocupação com o grande número de pessoas no cárcere


e sua longa duração, sem com isso se desejar eliminar a prisão
preventiva, há significativa passagem de Modestino (D. 48, 19, 25) em
que se determina: “Se alguém tiver estado por longo tempo na condição
de réu, se haverá de aliviar em algum tanto sua pena; porque também se
determinou que não tenha de ser castigado do mesmo modo os que
vivem um longo tempo na condição de réu, que aqueles sobre os quais
recai pronta sentença. § 1. Ninguém pode ser condenado sem que se
imponha uma pena” (nossa tradução da versão espanhola de Ildefonso
L. GARCIA DEL CORRAL, Cuerpo cit.). Sem dúvida trata-se, em uma
perspectiva material, de uma espécie de ensaio do que hoje se conhece
por “detração” (art. 42 do Código Penal). Por um viés processual, é a
origem da constatação hodierna de que o processo já constitui uma pena
a quem o responde, notadamente a quem o responde preso. Por uma
perspectiva constitucional, não se pode deixar de perceber a
preocupação com a proporcionalidade.
82 Posteriormente, passada a fase de implementação do procedimento
imperial extra ordinem, evidenciou-se um desvio de finalidade da prisão
preventiva, tornando-se o cárcere o local onde, mediante paga dos
acusadores, pessoas eram torturadas, mortas ou tinham sua
apresentação para julgamento adiada por tempo indefinido (C. 9, 4, 1, 1).
Nele, a imputação já nasce comprometida com um único resultado possível, a
condenação. Tal ocorre porque, estando o magistrado imperial incumbido das funções de
investigar, acusar e julgar, somente acusaria alguém se já guardasse em seu íntimo a
certeza de que ele cometera o delito. Caso isso ainda não lhe estivesse maduro no
“íntimo”, seguramente investigaria mais, não oferecendo pífia acusação que o
desacreditasse. Logo, oferecida a acusação, pela natural certeza da culpa na mente do
julgador/acusador/investigador, era necessário que o réu (invariavelmente culpado)
esperasse sua decisão (invariavelmente condenatória) preso. Era, por esse viés, natural
que se aceitasse para a prisão provisória uma finalidade de antecipação de pena.
Poder-se-ia dizer que, diante da regra da certeza apriorística de um julgador que
deduzia a acusação quando convicto do crime e da autoria, era até mesmo injustificável
que um acusado (futuro e com condenação certa) respondesse à persecução em liberdade.
Essa construção lógico-estruturante confirma-se no fragmento a seguir:83
Ҥ 5. РQuodsi eos nocentes esse praesumptio exstiterit, teneri eos in custodia, donec causa
terminetur. Et si iam sententia lata sit contra inclusos, hanc exsecutioni dari, sive corporalis sit
sive pecuniaria; in pecuniaria condemnatione eis concessa licentia bonis cedenti”.

§ 5. – Mas se houver a presunção de que eles são culpados, sejam mantidos em custódia até que
se termine a causa. E se já tenha sido proferido sentença contra os presos seja esta executada, seja
corporal ou pecuniária; ficando-lhes concedida, tratando-se de condenação pecuniária, a
faculdade de dar bens. (C. 9, 4, 6, 5)
Diante do fragmento citado, GIOVANNI PUGLIESE84 afirma que erram os que
imaginam que a presunção de culpa era um preceito irrefragável e geral a todos os casos.
Aduz o romanista que o texto deixa transparecer que, apenas se presentes situações claras
de culpa no início da persecução, era determinada a prisão preventiva. Para esse
romanista italiano, o fragmento, portanto, não seria uma regra, mas uma limitação à
liberdade em situações de robustez indiciária da culpa, já no início da ação penal.

83 O parágrafo destacado a seguir integra a citada epítome da constituição


grega de Justiniano, dirigida a Menna, prefeito do pretório, integrante do
Livro IX, no Título IV, inteiramente destinado às regras do cárcere e
denominado “da custódia dos réus” (“de custodia reorum”). A versão
latina foi extraída da obra de Ildefonso L. GARCÍA DEL CORRAL,
Cuerpo cit., t. 5, p. 424, e a coluna em português é nossa versão do texto
espanhol de referido autor.
84 Giovanni PUGLIESE, “As garantias cit.”, item XIX.
Não obstante a ressalva desse doutrinador, deve-se observar que era o magistrado
imperial quem decidia se havia ou não robustez na acusação, por ele mesmo deduzida –
acrescente-se –, para prender. Vemos que a “presunção de culpa” firmava-se na maior
parte dos casos, tornando-se regra a prisão provisória já no início do procedimento da
cognitio extra ordinem. Essa tendência ao crescente encarceramento prévio confirma-se
pela, já destacada, preocupação de se fiscalizar a superpopulação carcerária à espera de
julgamento e as suas péssimas condições de vida.85
Percebe-se que, ainda em nossos dias, mantemos o hábito romano de se proceder à
prisão “cautelar” como forma de garantir a “credibilidade” de uma instituição pública. Na
Roma Imperial, a instituição era o próprio modelo político que se apresentava, em nossos
dias, há julgados que pretendem resgatar com a prisão provisória a “credibilidade da
Justiça”.86

1.2.3.1.2. -(segue): inserção da tortura como meio de obtenção da


“verdade” e os poderes instrutórios do juiz

85 Nesse sentido, v. o primeiro fragmento e observações supra destacados


e, ainda, Giovanni PUGLIESE, As garantias cit., item XX.
86 Sem ingressar em tema adiante analisado com maior detalhamento (itens

2.5.2.2 e 5.4.1.2.1.4 infra), pode-se, neste passo, citar apenas um aresto


a título exemplificativo: “O crime a que responde o paciente é de
latrocínio do qual é acusado na condição de partícipe material ou
cúmplice. O hediondo delito de latrocínio é daqueles que causam forte
clamor público. É de excepcional violência e vilania a exigir da Justiça
uma tomada drástica de providência, sob pena daquela incidir em
descrédito público. Ordem denegada”. (RTRF 5ª Região, 25/276). Como
se percebe, no trecho destacado do aresto, foi a forma com que o crime
foi praticado – e uma forte crença de que o acusado era seu autor – que
determinou a necessidade da prisão com a finalildade de evitar o
“descrédito público” da Justiça. A causa, a finalidade e a providência
determinadas não guardam a mesma natureza nem estão em linha
lógica. Isto porque a medida processual deveria ter uma causa e uma
finalidade também processuais. A razão penal (forma de execução do
crime) levou por si só a uma providência processual (prisão provisória)
para garantir a credibilidade (sic) de uma instituição pública (a Justiça).
Toda essa confusão de níveis diversos (penal, processual e institucional)
foi realizada porquanto se desconsiderou um aspecto importante: que o
acusado não poderia ser tomado como autor da infração se o feito ainda
não apresentava decisão final. Subjaz neste tipo de raciocínio (supor a
autoria antes do julgamento final) o mesmo que sucedia na Roma dos
Imperadores: a presunção de culpa em lugar da presunção de inocência.
No campo probatório, os magistrados imperiais incumbidos de julgar os crimina
tinham um equivalente poder inquisitivo de atuação.87 Desde o surgimento da notícia do
crime, trazida por qualquer do povo ou por sua descoberta ex officio, já estavam
autorizados, com ou sem auxílio de outras pessoas por eles nomeadas, a decidir pelo
início da persecução, colhendo material instrutório para seu convencimento ou
deduzindo acusação formal em face de determinada pessoa.
No curso do julgamento, mantendo-se o amplo poder inquisitivo da “cognitio”, o
interrogatório era realizado sob tortura. Inicialmente, somente os escravos poderiam ser
submetidos a esse método de “obtenção da verdade”, mas, posteriormente, todos os
acusados eram submetidos a esse método de colheita de informações. Ao final do período
imperial, também as testemunhas tidas como falsas ou reticentes eram submetidas à
tortura. Inicialmente, na posição de testemunhas, somente eram torturados os escravos,
depois os cidadãos de classe inferior e, por fim, notadamente em crimes graves (p.ex., de
lesa-majestade – “crimen maiestatis”), todos poderiam ser submetidos à tortura.88
Quanto aos demais meios instrutórios no curso do julgamento, a “inquisitio”, do
procedimento “extra ordinem”, permitia ao magistrado, diversamente do que ocorria nas
“quaestiones perpetuae”, determinar e ir além das provas requeridas ou produzidas pelo
acusador, se houvesse, e pelo acusado.89

87 Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 243/246.


88 Nesse sentido vale destacar a significativa passagem de Vincenzo
MANZINI, Tratatto di diritto processuale cit., p. 7, para quem “foi o
procedimento extraordinário que introduziu a tortura entre os institutos
processuais romanos”, acrescentando em sua nota 3: “Por um longo
tempo a tortura foi estranha ao processo penal romano, enquanto era
usada em toda parte, incluindo a Grécia. Introduzida primeiro em relação
aos escravos, começou a aplicar-se, sob o Principado, também aos
cidadãos e aos homens livres de todas as nações. (...) A tortura era
aplicada pelos oficiais do tribunal: a direção cabia ao ‘quaestor’ e a
execução ao ‘tortor’ (Cód. Th., 9,12,1). A primeira a ser acolhida em
Roma foi a tortura do imputado. Quanto às testemunhas falsas ou
reticentes, o uso da tortura foi adotado no último período do Império,
enquanto antes aplicavam-se apenas o arresto e as sanções
pecuniárias” (nossa tradução do original). Teodoro MOMMSEN, Derecho
cit., pp. 262/263, é categórico ao dizer que a vedação à tortura na fase
republicana caracterizou um dos pilares do Estado jurídico romano,
porém, foi ela autorizada, com inevitáveis idas e vindas mais ampliativas,
após o início do Império. Inicialmente para os escravos, depois para os
cidadãos de classe inferior, finalmente para todos e em todos os tipos de
acusação. Nesse sentido, v., ainda, Alessandro MALINVERNI,
Lineamenti cit., pp. 8/9.
89 Bernardo SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 246/247.
Pelo exposto, também na fase instrutória, pode-se verificar aquela construção da
lógica estrutural da presunção de culpa. A tortura passa a ser o “meio mais eficaz” e
corriqueiro de se instruir uma causa, pois por meio dela, para além de se verificar a
fidedignidade de uma versão, pode-se mais facilmente construir a versão que se deseja.
No mais das vezes, aquela com a qual o magistrado já assumiu compromisso (íntimo ou
público) no início do julgamento, ao deduzir a acusação.

1.2.3.2. -Exigência de fundamentação das decisões: sua incipiente


utilização como forma de mitigar os rigores da presunção
de culpa

A presunção de culpa que animava todo o procedimento extraordinário,


notadamente no Baixo Império (Dominato ou Monarquia Absoluta, de 284 d.C. ate 565
d.C.), se levada a termos absolutos pelos magistrados imperiais redundaria apenas em
decisões condenatórias. Assim, para mitigar essa tendência sistêmica do procedimento
inquisitivo, os jurisconsultos foram, progressivamente, inserindo preceitos, na fase
decisória, a fim de mitigar as hipóteses de condenação e, outrossim, reduzir as penas a
serem aplicadas.
Para compreender por que essas regras puderam encontrar incidência no
procedimento da cognitio extra ordinem, é necessário ater-se não apenas à tendência
repressiva fortemente implementada pelo procedimento inquisitivo estruturado pelos
Monarcas, mas às próprias características dos atos decisórios desse período.
A sentença, no procedimento extraordinário, em comparação com as decisões nas
quaestiones, caracterizava-se, notadamente, por ser: a) fundamentada, pois passível de
appellatio e, portanto, precisava conter a exposição das razões fático-jurídicas de decidir;
b) não se limitava a reconhecer a culpa do réu, mas aplicava a pena, devendo o
magistrado dosá-la segundo critérios e características do crime e de seu agente; c) escrita,
também para possibilitar a cognição pelos órgãos judicantes superiores em grau de
recurso.90

90 Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 284/285, expõe as características


da decisão nessa fase do direito romano. V., também, Bernardo
SANTALUCIA, Diritto cit., pp. 285/286, e Ugo BRASIELLO, La
repressione cit., item 45. Para a sentença do procedimento
extraordinário, a forma escrita e a publicidade eram requisitos formais de
validade. Nesse sentido, v. José Rogério CRUZ E TUCCI e Luiz Carlos
de AZEVEDO, Lições de história do processo civil romano, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1996, pp. 146/148.
Os jurisconsultos e legisladores do Império notaram que poderiam se servir dessas
características da sentença da cognitio extra ordinem para inserir preceitos mitigadores
(i) da tendência condenatória determinada pelo sistema inquisitivo que lastreava aquele
procedimento e, ainda, (ii) da opção política pelo recrudescimento punitivo, seja para
reprimir condutas indesejadas seja por implementar, pela força, os novos e imperiais
desígnios políticos.
Assim, mesmo em um sistema pautado pela presunção de culpa, e exatamente por
ser um sistema baseado na noção apriorística de culpa, percebeu-se a necessidade de se
inserir cada vez mais um número de preceitos voltados a minorar os efeitos danosos
daquela lógica estrutural, ínsita a todo sistema inquisitivo. Isto a fim de se possibilitar,
tanto quanto possível, uma decisão mais justa e equilibrada, em lugar daquelas sempre
tendenciosas e apriorísticas.91
Demonstrações desses preceitos legais, destinados a determinar critérios justos e
equilibrados para os magistrados decidirem, são encontradas em vários fragmentos do
“Corpus Iuris Civilis”. Destaque-se, na área penal, os dois trechos seguintes,
respectivamente de Marciano e de Ulpiano, extraídos do Digesto, Livro XLVIII, título
XIX, destinado às penas.92
“11. Marcianus libro II. De publicis Iudiciis. – Perspiciendum est iudicanti, ne quid aut durius,
aut remissius constituatur, quam causa deposcit; nec enim aut severitatis, aut clementiae gloria
affectanda est, sed perpenso iudicio, prout quaeque res expostulat, statuendum est. Plane in
levioribus causis proniores ad lenitatem iudices esse debent, in gravioribus poenis severitatem
legum cum aliquo temperamento benignitatis subsequi.”

“13. Ulpianus ‘libro I. de Appellationibus. – Hodie licet ei, qui extra ordinem de crimine
cognoscit, quam vult sententiam ferre, vel graviorem vel leviorem, ita tamen, ut in utroque modo
rationem non excedat.”
11. Marciano; Dos Juízos Públicos, livro II. – Deve o julgador procurar não determinar coisa
alguma com mais dureza, ou com mais lenidade, que o que requer a causa; porque não há de se
aspirar à glória da severidade ou da clemência, senão que se deve determinar com maduro juízo,
segundo requer cada caso. E certamente que nas causas leves devem estar os juízes mais inclinados
à lenidade, e aterem-se tratando-se de penas mais graves à severidade das leis com certo
temperamento de benevolência. (D. 48, 19, 11, pr.)

13. Ulpiano; Das apelações, livro I. – Hoje é lícito ao que conhece extraordina-riamente de um
crime proferir a sentença que quiser, ou mais grave, ou mais leve, mas de modo que em um ou em
outro caso não exceda o que é a razão. (D. 48, 19, 13)

91 Nesse sentido, v. Giuseppino Feruccio FALCHI, Diritto cit., item 22.


92 Os textos latinos foram extraídos da obra de Ildefonso L. GARCÍA DEL
CORRAL, Cuerpo cit., t. 3, pp. 792 e 793. A coluna em português é
nossa tradução da versão espanhola de referido autor.
Como se percebe, o registro de passagens no sentido de orientar os magistrados a
julgarem com parcimônia e equilíbrio, sem se deixarem levar pela vaidade ou pela busca
de glórias, bem revela o que acontecia nos julgamentos e o desejo de orientar as decisões
em sentido contrário à dureza e repressão, inercialmente provocadas pelo sistema
inquisitivo.

1.2.3.3. -(segue): disposições mitigadoras dos excessos repressivos do


sistema inquisitivo da “cognitio extra ordinem”

Os vários preceitos inseridos pelos jurisconsultos, com força de lei, não se limitaram
à área penal.93 A cognitio extra ordinem era aplicada tanto para a esfera penal quanto
para a extrapenal, logo, sua lógica estrutural inquisitiva expunha tanto o imputado
quanto o obrigado. Assim, era o pólo passivo da ação (penal ou civil) que precisava de
preceitos aptos a tentar equilibrar uma estrutura construída sobre trilhos inquisitivos.
A incidência ambivalente de referidos preceitos fica evidente quando se observa as
várias disposições contidas no último título (XVII), denominado “Das diversas regras do
direito antigo” (“De diversis regulis iuris antiqui”), do último livro (de número L) do
Digesto, destinado ao direito em geral, portanto área penal ou não.
Claro que determinadas passagens, pela sua própria redação, têm incidência em
apenas um campo jurídico. Porém, se recordarmos que, até a parte final do direito
romano, o direito penal ainda se dividia em privado (delicta) e público (crimina) e que o
conceito de liberdade tinha conotação tanto penal (não aplicação de pena) quanto civil
(liberação do escravo pelo seu senhor), pode-se dessumir, com certa segurança, que o
ideário humanizador que informava os preceitos de julgamentos em favor do acionado
aplicava-se a todas as causas que envolvessem a liberdade individual.
Destacando-se apenas os fragmentos referentes à área criminal, objeto de nossos
estudos, já se pode antever como mesmo um sistema processual penal baseado na
presunção de culpa pode ter dispositivos benéficos ao acusado. Porém, essa mitigação não
pode ser tida como a presença ou mesmo o germe do que se deve entender por presunção
de inocência. Era só um esboço do que depois veio a se denominar “in dubio pro reo” e
“favor rei”, aspectos que estavam longe de representar a completude daquele direito
fundamental.94

93 No mesmo sentido, mas destinado aos delitos privados há, ainda, em


título específico aos delicta, o fragmento D. 47, 9, 4, 1. Em outro
fragmento, atribuído a Jovaleno (D. 50, 17, 200), determina-se que
quando não se puder proceder a uma investigação sem causar prejuízo,
deve-se escolher a que cause menos injustiça. No mesmo sentido, agora
destinado ao âmbito civil, veja-se passagem de Marcelo (D. 50, 17, 192):
“As coisas que não podem ser divididas em partes se devem íntegras
por cada herdeiro. § 1. Nos casos duvidosos não somente é mais justo,
como mais seguro, ater-se à interpretação mais benigna”.
94 Sobre as diferenças entre “in dubio pro reo” e “favor rei” e as suas inter-
relações com a presunção de inocência, v. item 5.4.1.1 infra.
1.2.3.3.1. -(segue): preceitos romanos para se julgar em favor do réu

Nesse tópico cabe, inicialmente, relembrar o já destacado quanto à palavra latina


“reus”. Tal expressão não se aplica, no direito romano, apenas e tão-somente ao
demandado em ação criminal. Era termo comum tanto ao âmbito penal quanto ao não-
penal.95
Assim, os vários preceitos voltados à mitigação do rigor das ações em benefício do
desfavorecido (autor ou réu) podem ser encontrados em ambas as áreas jurídicas
(criminal e civil).
Dos vários preceitos voltados ao favorecimento do réu, dando-se ênfase apenas ao
tocante à área penal, pode-se dividi-los em (i) preceitos gerais, sempre favoráveis ao pólo
mais débil (civil ou penal) e os relativos (ii) às penas aplicáveis, (iii) à escolha sobre a lei
aplicável e, ainda, (iv) à dúvida sobre os fatos.
Para preceitos gerais em favor do demandado (“favor benignitatis”), fosse ação
pública ou privada, juízo criminal ou não,96 podem-se destacar as seguintes passagens:97
“125. [167.] Gaius ‘libro V. ad Edictum provinciale.’ – Favorabiliores rei potius, quam actores
habentur.”

95 Sobre a palavra “reus” como designação tanto no campo penal quanto


não-penal para o demandado judicial, v. item 1.2.1.1, nota 12 e item
1.2.2, nota 49, supra. Carlo GIOFFREDI, I principi cit., p. 16, nota 25,
destaca, ainda, passagens em que a palavra latina é usada com sentido
extra-processual de “obrigado”. Armando TORRENT RUIZ, Diccionario
de derecho romano, Madrid: Edisofer, 2005, p. 1111, assim define a
palavra: “Aunque genéricamente con este término pueden designarse los
sujetos que intervienen en una obligación o en un proceso sin distinguir
entre el lado activo y el pasivo, (‘creditor y debitor’; vid. Hh.vv.)
específicamente designa al demandado en un proceso civil o al acusado
en un proceso penal”.
96 No verbete “favor benignitatis”, Armando TORRENT RUIZ, Diccionario

cit., p. 358, é claro em aplicá-lo tanto no campo penal quanto não-penal


e, para ambos, funciona como critério hermenêutico. Chegando ao
direito pós-clássico não apenas como “favor” mas como “praesumptiones
iuris”, isto é, o favor não se aplica somente em caso de dúvida, mas
como regra geral para qualquer situação. Sobre a concepção de
presunção no instante histórico pela escolha iluminista pela expressão
“presunção de inocência”, v. item 1.5.4 e seus subitens infra. Sobre o
“favor” (“rei”) ser critério axiológico de escolha da lei penal lato sensu em
favor do réu, v. item 5.4.1.1 infra.
97 Todos os fragmentos que seguem foram extraídos da obra de Ildefonso L.

GARCÍA DEL CORRAL, Cuerpo cit., t. 3. As colunas em português,


nossas traduções da versão espanhola de referido autor, trazem ao final
a localização do fragmento e, quando necessário, o nome de seu autor.
“155. [197.] Paulus ‘libro LXV. ad Edictum. – (…) § 2. – In poenalibus causis benignius
interpretandum est.”

“168. [128.] Idem ‘libro I. ad Plautium.” – Rapienda occasio est, quae praebet benignius
responsum.”

“56. [55.] Idem ‘libro III. de legatis ad Edictum urbicum.’ – Semper in dubiis benigniora
praeferenda sunt.”
125. [167.] Gaio; Comentários ao Édito Provincial, livro V. – Os réus são considerados mais
favoravelmente que os autores. (D. 50, 17, 125)

155. [197.] Paulo; Comentários ao Édito, livro LXV. – (...) § 2. – Nas causas penais se há de fazer
a interpretação com mais benignidade. (D. 50, 17, 155, 2)

168. [128.] Idem; ‘Comentários a Plaucio, Livro I.’ – Deve-se escolher a ocasião que facilita uma
resolução mais benigna. (Paulo, D. 50, 17, 168)

56. [55.] Idem; ‘Comentários ao Édito urbano sobre os legados, livro III.’ – Nos casos duvidosos
se há de preferir sempre o mais benigno. (Gaio, D. 50, 17, 56)
Também há orientação dos jurisconsultos dirigida aos magistrados a fim de
mitigarem seus rigores na aplicação da pena e, outrossim, que a escolha quanto à lei
aplicável deve ter a interpretação mais benigna.
“9. Ulpianus ‘libro XV. ad Sabinum.’ – Semper in obscuris, quod minimum est, sequimur.”

“32. Ulpianus ‘libro VI. ad Edictum.’ – (…) Sed si utriusque legis crimina obiecta sunt, mitior
lex, id est privatorum, erit sequenda.”

“42. Hermogenianus ‘libro I. Epitomarum.’ – Interpretatione legum poenae molliendae sunt


potius, quam asperandae.”

“18. Idem ‘libro XXIX. Digestorum.’ – Benignius leges interpretandae sunt, quo voluntas earum
conservetur.”
9. Ulpiano; ‘Comentários à Sabino, livro XV.’ – Nas coisas obscuras nos atemos sempre ao que é
menor. (D. 50, 17, 9)

32. Ulpiano; ‘Comentários ao Édito, livro VI.’ – (...) Mas se imputarem delitos de uma e outra
lei, deverá se observar a lei mais benigna, isto é, a dos (delitos) privados. (D. 48, 19, 32) –
acrescemos.
42. Hermageniano; ‘Epístolas, livro I.’ – Na interpretação das leis as penas devem ser bem mais
atenuadas que agravadas. (D. 48, 19, 42)

18. Idem; ‘Digesto, livro XXIX.’ – As leis devem ser interpretadas no sentido mais benigno, de
modo a se conservar sua disposição. (Celso, D. 1, 3, 18)
Comumente, os fragmentos destinados à definição de critérios de como decidir em
caso de dúvida sobre os fatos são tidos como os primeiros registros da presunção de
inocência na história.
Tal posição, não obstante tenha alguma relação distante e um tanto imprecisa,
somente poderá ser tida como aceitável aos que entendem a presunção de inocência
apenas como critério de decisão em caso de dúvida do julgador sobre os fatos. Nesse
estreitamento do âmbito da presunção de inocência ela tornar-se-ia sinônimo da
expressão “in dubio pro reo”.
Como se verá no decorrer do trabalho, essa última expressão citada não é sinônimo
nem exaure todo o conteúdo da presunção de inocência.98 Contudo, não se pode deixar
de destacar os já clássicos fragmentos sempre colacionados sobre o tema.
“38. Paulus ‘libro XVII. ad Edictum.’ – Inter pares numero iudices si dissonae sententiae
proferantur, in liberalibus quidem causis, secundum quod a Divo Pio constitutum est, pro
libertate statum obtinet, in aliis autem causis pro reo; quod et in iudiciis publicis obtinere
oportet.”

“5. Ulpianus ‘libro VII. de officio Proconsulis.’ – Absentem in criminibus damnari non debere,
Divus Traianus Iulio Frontoni rescripsit. Sed nec de suspicionibus debere aliquem damnari, Divus
Traianus Adsiduo Severo rescripsit; satius enim esse, impunitum relinqui facinus nocentis, quam
innocentem damnare. (...)”

98 Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO, Pronúncia e o “in dubio pro


societate”, in José Henrique PIERANGELI, Direito criminal, Belo
Horizonte: Del Rey, 2002, v. 4, pp. 55/56, nota 1, ao lado de Jorge de
Figueiredo Dias e Luigi Ferrajoli, aponta que os favores estabelecidos
em fragmentos como os citados serviam apenas para revelar um sistema
autoritário e tendente a arbitrariedades, o que obrigava a edição de
recomendações humanitárias constantes, a fim de reverter uma natural
tendência repressiva. Sobre a coexistência entre presunção de culpa e
“in dubio pro reo”, v: em sistemas processuais penais romanos, mesmo
de modelo acusatório, item 1.2.2 supra; no sistema processual italiano
de 1930, item 2.4.6 infra; em nosso atual sistema processual penal
vigente desde 1940, item 2.5.2 infra. Para uma melhor compreensão da
relação entre presunção de inocência e “in dubio pro reo”, v. itens 5.4.1 e
5.4.1.3 infra.
38. Paulo; ‘Comentários ao Edito, livro XVII – Se entre juízes em igual número se proferem
sentenças discordes, tratando-se de causas sobre a liberdade prevalece, segundo o que estabeleceu
o Divino Pio, o determinado a favor da liberdade, mas nas demais causas o decidido em favor do
réu; o que é conveniente também que se observe nos juízos públicos. (D. 42, 1, 38, pr.)

5. Ulpiano; ‘Do Cargo de Proconsul, livro VII.’ – O Divino Trajano respondeu por reescrito a
Julio Fronton, que se tratando de delitos não devia ser condenado um inocente. Mas o Divino
Trajano respondeu por reescrito a Assíduo Severo, que tampouco devia ser condenado alguém por
suspeitas; porque é melhor que se deixe impune o delito de um culpado, que condenar a um
inocente. (D. 48, 19, 5, pr.)
Este último fragmento é o mais citado na indicação da origem mais remota do que
hoje se tem como presunção de inocência. Deve-se acrescentar que a data do registro,
aliada ao fato de que Ulpiano se refere a período de Trajano, ainda mais anterior, permite
concluir que o preceito antecede ao período da influência cristã no direito romano,
pertencendo aos primórdios do seu período clássico (149 ou 126 a.C. até 305 d.C.). Logo,
coloca-se até mesmo em dúvida que o fragmento tenha sido inspirado pelo cristianismo.99

1.2.3.3.2. -(segue): preceitos romanos para se julgar em favor da liberdade

Os romanos emprestavam à expressão “favor libertatis” conotação diversa da atual.


Em nossos dias, ela tem forte conotação processual penal, visto seu relevo mais marcante
mostrar-se no estudo da oportunidade ou não da prisão no curso do processo penal
(prisão provisória). Hodiernamente, o instituto tende a se fixar no campo processual.
No direito romano, ao contrário, tinha matizes materiais não apenas no campo
penal, mas principalmente no campo civil encontrava maiores alvores, por caracterizar
as relações entre proprietário e escravo.100

99 No sentido de separar a influência cristã desse fragmento tido como


precursor do “in dubio pro reo”, v. Armando TORRENT RUIZ, Diccionario
cit., p. 359, no verbete “favor rei” e, na mesma obra, p. 443, no verbete
“in dubiis pro reo”. Sobre a presunção de inocência como direito natural,
porquanto decorrente da Bíblia, v. Kenneth PENNINGTON, Innocent until
proven guilty: the origins of a legal maxim, The Jurist, Washington, v. 63,
n. 1, pp. 112/117, 2003.
100 O conhecido instituto da “manumissio” era ato jurídico pelo qual o senhor

(dominus) concedia a seu escravo a liberdade (status libertatis),


expressão que atualmente se emprega para aquele que está em
liberdade no curso da persecução penal, ou seja, não sofre constrição
pessoal provisória. Sobre o instituto da manumissio e suas várias
aplicações, v. Armando TORRENT RUIZ, Diccionario cit., pp. 681/684.
Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO, Pronúncia cit., p. 57, demonstra a
relação que existiu entre o “in dubio pro reo”, entendido como favor à
liberdade, com a manumissão do escravo comum.
A escravidão, ocorrência pujante na República, foi paulatinamente perdendo
terreno e, em contrapartida, foi-se incentivando a liberdade dos escravos, não por razões
humanitárias, mas por questões econômicas.101 Eram “propriedades” com alto custo de
manutenção, seu proprietário era responsável por todos os danos que viessem a causar a
terceiros e, ainda, se libertos representariam aumento do mercado consumidor,
incrementando a economia romana, então em crise.
Nesse viés, mais econômico que humanitário, foram crescendo as disposições legais
em favor da concessão da liberdade aos escravos em caso de dúvida. Nessa esteira,
juntamente com os aspectos já citados no item anterior, de cunho eminentemente
criminal, vão crescendo as referências legais a favor da liberdade (penal ou civil) do
indivíduo.
Porém, não se olvide, na Roma Imperial o favor libertatis sempre é entendido em
sentido material extrapenal, não no campo processual da prisão preventiva que, como se
demonstrou,102 tornou-se regra em todo o julgamento criminal, notadamente no Baixo
Império.
Em uma concepção romana, o “favor libertatis”, de conteúdo material, foi-se
firmando como “princípio hermenêutico”.103
Como principais disposições, a bem demonstrar a grande relevância da idéia de
liberdade para o povo romano e sua interpenetração no âmbito penal (e também civil),
vejam-se as seguintes passagens do Corpus Iuris Civilis.104
“24. Ulpianus ‘libro V. Fideicommissorum.’ – (...) § 10. Si quis servo pignorato directam
libertatem dederit, licet videtur iure subtili inutiliter reliquisse, attamen, quase et fideicomissaria
libertate relicta, servus petere potest, ut ex fideicommisso líber fiat; favor enim libertatis suadet,
ut interpretemur, et ad libertatis petitionem procedere testamenti verba, quase ex fideicomisso
fuerit servus líber esse iussus; nec enim ignotum est, quod multa contra iuris rigorem pro libertate
sint constituta.”

101 Sobre a crise do Império Romano dos primeiros séculos da era cristã, v.
Vincenzo ARANGIO-RUIZ, Storia cit., pp. 305/308.
102 V. item 1.2.3.1.1 supra, quando se tratou da prisão preventiva no
procedimento da cognitio extra ordinem.
103 Sobre o tema, v. o verbete “favor libertatis” na obra de Armando
TORRENT RUIZ, Diccionario cit., p. 359. Sobre a atual aplicação do
“favor libertatis” como decorrência do “favor rei” na área processual
penal, v. itens 5.4.1.2.1 e 5.4.1.2.1.2 infra.
104 Os fragmentos que seguem foram extraídos da obra de Ildefonso L.
GARCÍA DEL CORRAL, Cuerpo cit., t. 3. A coluna em português
corresponde à nossa tradução da versão espanhola daquele autor.
24. Ulpiano; ‘Fideicomissos, livro V.’ – (...) § 10. Se alguém houver dado a liberdade direta a um
escravo penhorado, embora em estrito direito parece que o fez inutilmente, não obstante, o
escravo pode pedir, como se lhe houvesse deixado livre por fideicomisso, que se lhe faça livre em
virtude do fideicomisso; porque o favor da liberdade aconselha que interpretemos que as palavras
do testamento são pertinentes também para a petição da liberdade, como se por fideicomisso se
houvera determinado que o escravo fosse libertado; porque não é coisa ignorada que em favor da
liberdade se estabelecem muitas disposições contra o rigor do direito. (D. 40, 5, 10)
“47. [46.] Idem ‘ex libro XIV. ad Plautium.’ – Arrianus ait, multum interesse, quaeras, utrum
aliquis obligetur, an aliquis liberetur. Ubi de obligando quaeritur, propensiores esse debere nos, si
habeamus occasionem, ad negandum; ubi de liberando, ex diverso, ut facilior sis ad liberationem.”

“20. Pomponius ‘libro VII. ad Sabinum.’ – Quoties dubia interpretatio libertatis est, secundum
libertatem respondendum est.”

“106. Idem ‘libro II. ad Edictum.’ – Libertas inaestimabilis res est.”

“122. [164.] Gaius ‘libro V. ad Edictum provinciale.’ – Libertas omnibus rebus favorabilior est.”

“179. [139.] Idem ‘libro XVI ad Plautium.’ – In obscura voluntate manumittentis favendum est
libertati.”

47. [46.] Idem; ‘Comentários a Plaucio, livro XIV.’ – Disse Arriano, que há muita diferença se
perguntado se alguém se obriga, ou se alguém se libera. Quando se pergunta a respeito da
obrigação, devemos estar mais propensos, se tivermos oportunidade, para negar; e pelo contrário,
quando a respeito da liberação, há de ser mais fácil para liberar. (Paulo, D. 44, 7, 47)

20. Pompônio; ‘Comentários a Sabino, livro VII.’ – Sempre que é duvidosa a interpretação
relativa à liberdade se deverá responder a favor da liberdade. (D. 50, 17, 20)

106. Idem; ‘Comentários ao Edito, livro II.’ – A liberdade é coisa inestimável. (Paulo, D. 50, 17,
106)

122. [164.] Gaio; ‘Comentários ao Edito provincial, livro V.’ – A liberdade é mais favorável que
todas as coisas. (D. 50, 17, 122)

179. [139.] Idem, ‘Comentários a Pláucio, livro XVI.’ – Sendo obscura a vontade do manumissor
(libertador), se deve favorecer à liberdade. (Paulo, D. 50, 17, 179) - acrescentamos.
1.2.3.3.3. (segue): preceitos romanos sobre ônus da prova
Durante as quaestiones perpetuae o dever de provar e contraprovar era delegado às
partes, em procedimento acusatório. A parte mal sucedida na demonstração de sua
versão quedava-se derrotada. O quaestor, sem poder instrutório e decisório, apenas
organizava o julgamento diante do comitia e o submetia à votação dos jurados.105
Na fase da cognitio imperial as regras de instrução do julgamento foram
substancialmente alteradas, conforme já ressaltado.106 O julgador, assumindo também o
papel de acusador, exercia de ofício a instrução e preparava o julgamento para, ele
mesmo, decidir.
Se no procedimento das quaestiones a falta de comprovação da versão fazia com que
a parte inoperante fosse condenada – fosse ela acusadora ou imputada, uma vez que os
acusadores privados também poderiam ser condenados pelas penas requeridas aos
imputados se não provassem a acusação –, no procedimento extraordinário o magistrado
imperial não poderia sofrer a pena por ele requerida se não comprovasse o crime. Até
mesmo porque o Princeps era o magistrado supremo, podendo julgar e condenar, e não
teria sentido fosse ele condenado por não ter conseguido demonstrar a culpa de um
súdito. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos magistrados, pois, por agirem por
delegação do poder de “imperium” do Princeps, o insucesso daqueles macularia o poder
deste.
Dessa forma, inicia-se uma estruturação do ônus probatório no sentido de que se a
acusação não viesse a ser confirmada no curso do julgamento não haveria condenação,
nem do acusador, nem do acusado.
Nessa linha racional, definiu-se que a absolvição ocorreria não somente se o
julgador tivesse convicção da inocência do réu, mas, outrossim, se ele permanecesse na
dúvida sobre a ocorrência do crime e de sua autoria.107 O debate, portanto, desloca-se ao
quantum probatório necessário para formar a convicção do julgador, uma vez que, na
cognitio extra ordinem, o magistrado não podia decretar o non liquet (não líquido,
duvidoso), como no período das quaestiones.
A assunção do poder de julgar impõe um dever, indeclinável, de decidir. Desse
modo, os legisladores e jurisconsultos começam a construção de regras destinadas a
determinar a “quem” cabe provar “o quê”, e principalmente, o que sucede na falta de
atendimento deste ônus. Dessa necessidade surgem as presunções e as aparências, com as
quais se busca fixar, aprioristicamente, formas de orientar a decisão judicial.108

105 V. item 1.2.2 supra.


106 V. itens 1.2.3.1.2 e 1.2.3.1.3 supra.
107 Teodoro MOMMSEN, Derecho cit., pp. 278/280 e 259 e ss.
108 Nesse sentido, v. José Miguel PIQUER MARÍ, La carga cit., pp. 75 e ss.
No âmbito do ônus probatório, portanto, também há preceitos tanto para a esfera
criminal quanto para a extrapenal, devendo-se entender que, não raras vezes, as
diretrizes são tomadas combinadamente para auxiliar o magistrado em sua decisão.
Dentre os fragmentos mais relevantes sobre o tema cabe destacar os mais gerais e que,
dessume-se, eram diretrizes a serem seguidas.109
“2. Paulus ‘libro LXIX. ad Edictum.’ – Ei incumbit probatio, qui dicit, non qui negat.”

“18. Paulus ‘libro V. sententiarum.’ – (...) § 2. – In ea causa, in qua nullis reus argumentis
urgebatur, tormenta non facile adhibenda sunt, sed instandum accusatori, ut id, quod intendat,
comprobet atque convincat.”

“6. Idem ‘libro I. Sententiarum.’ – (...) § 3. – Nuntiatores, qui per notoria indicia produnt,
notoriis suis assistere iubentur.”

“25. Imppp. GRATIANUS, VALENTINIANUS et THEODOSIUS AAA. Floro P. P. – Sciant


cuncti accusatores, eam se rem deferre debere in publicam notionem, quae munita sit idoneis
testibus, vel instructa apertissimis documentis, vel indiciis ad probationem indubitatis et luce
clarioribus expedita.”
2. Paulo; ‘Comentários ao Edito, livro LXIX.’ – Incumbe a prova a quem afirma, não a quem
nega. (D. 22, 3, 2)

18. Paulo; ‘Sentenças, livro V.’ – (...) § 2. – Naquela causa, em que o réu não está oprimido com
algumas provas, não se deve proceder facilmente à sua tortura, caso em que se deve instar ao
acusador a que comprove o que sustenta, e convença disso. (D. 48, 18, 18, 2)

6. Idem; ‘Sentenças, livro I.’ – (...) § 3. – Aos denunciantes que delatam por indícios notórios,
manda-os provar seus indícios notórios. (Paulo, D. 48, 16, 6, 3)

25. Os Imperadores GRACIANO, VALENTIANIANO e TEODÓSIO, Augustos, a Floro, Prefeito


do Pretório. – Saibam todos os acusadores que devem levar a conhecimento público coisa que
esteja apoiada por testemunhas idôneas, ou fundada em evidentes documentos, ou de fácil prova
por indícios indubitáveis e mais claros do que a luz. (C. 4, 19, 25)

109 Também neste passo utiliza-se a obra de Ildefonso L. GARCÍA DEL


CORRAL, Cuerpo cit., t. 2 e 3, notadamente no tomo 2, pp. 96/102, no
qual se encontra o Livro XXII, do Digesto, cujo Título III denomina-se
“das provas e das presunções”. A coluna em português representa nossa
tradução da versão espanhola desse autor, acrescida da localização do
fragmento e, quando necessário, porquanto omisso no fragmento original
destacado, do nome de seu autor.
Aliando-se os fragmentos destacados nos itens anteriores com esses últimos
colacionados, pode-se concluir que, no sistema da cognitio extra ordinem, havia uma
diretriz bastante comum e inquestionável: na falta de demonstração segura e
convincente do fato pelo acusador, devia ser declarada a inocência do acusado.
Tal linha orientadora, não obstante pouco ocorrente, uma vez que as figuras do
acusador e do julgador fundiam-se em uma única pessoa, visava a suavizar, a um só
tempo, os rigores da política criminal do Princeps e o desequilíbrio sistêmico
naturalmente empreendido pela inquisitio.

1.2.4. -Direito romano e presunção de inocência: razões para uma impossível


convivência

De toda a exposição até então centrada nos institutos processuais concebidos e na


forma como eram estruturados e usados nos modelos inquisitivo e acusatório, chega-se à
conclusão da impossibilidade de se dizer que no direito romano houve presunção de
inocência.
Deixando-se de lado, nesse instante, o exame individualizado dos institutos, para
focar as razões por detrás daquela construção juspolítica dos sistemas processuais penais,
pode-se verificar duas grandes vertentes que explicam o porquê da impossível
convivência entre aquele direito e a presunção de inocência: a primeira era a presunção
de culpa que animava os institutos processuais e a segunda era o direito penal do inimigo
que direcionava o uso do aparato punitivo
Como se demonstrou nos itens anteriores, pouco importando se o modelo
processual era inquisitivo ou acusatório, se havia uma maior ou menor, efetiva ou
improfícua tentativa de humanização do procedimento e respeito ao imputado, o fato é
que a presunção de culpa sempre orientou a concepção e estruturação dos institutos
processuais.
O belicoso e expansionista Estado Romano soube bem diferenciar o “inimicus” do
“hostis”, sendo aquele o inimigo pessoal, “ao passo que o verdadeiro inimigo político seria
o ‘hostis’, em relação ao qual é sempre colocada a possibilidade de guerra como negação
absoluta do outro ser ou realização extrema da hostilidade. O ‘estrangeiro’, o ‘estranho’, o
‘inimigo’, o ‘hostis’, era quem carecia de direitos em termos absolutos, quem estava fora
da ‘comunidade’”.110

110 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo no direito penal, tradução de


Sérgio Lamarão, Rio de Janeiro: Revan, 2007, pp. 21/22.
A partir dessa perspectiva do inimigo do Estado (“hostis”) o direito romano
construiu as concepções de “hostis alienigena” e “hostis judicatus”. Na figura do “hostis
alienigena” os romanos incluíam tanto os estrangeiros, com os quais não havia interação
ou compreensão pelas diferenças de língua, costumes e crenças, quanto os escravos, ou
qualquer outro grupo que incomodasse o poder instituído. Por “hostis judicatus”
entendiam aqueles declarados hostis em função de decisão do Senado que, por força de
sua “auctoritas”, em certas situações, poderia declarar um cidadão romano, que
ameaçasse a segurança ou a estabilidade da República, um “inimigo público”.111
Assim, pela potencializadora interação entre a constante presunção de culpa que
informava todos os modelos processuais romanos e a construção de um direito penal do
inimigo, chega-se à conclusão de que por toda essa fase histórica não se pode afirmar que
a presunção de inocência tenha sido sequer encetada.
No sistema processual penal romano, muito mais que o germe da presunção de
inocência, pode-se encontrar o germe do direito penal do inimigo, que será adiante
estudado como uma das formas (ilegítimas) de se restringir o direito fundamental da
presunção de inocência.112
Mas esse modelo romano não deixou de existir com o fim do Estado Romano. Como
se verificará nos itens seguintes, que tratam do período medieval, todos os sistemas
processuais que derivaram ou foram buscar as matrizes sistêmicas daquele período foram
(em maior ou menor grau) por elas influenciados.

111 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., pp. 22/25.


112 Sobre o tema, v. item 5.4.3.1 infra.
1.3. -Direito na Alta Idade Média:113 aspectos processuais penais no direito
bárbaro

O Estado Romano atingiu seu fim na medida em que, mercê de muitos problemas
internos, não conseguiu suportar, em vários pontos de seus domínios, os avanços dos
povos ditos “bárbaros”.
Sob a égide generalizadora de “bárbaros”, deve-se entender vários povos que, vindos
do Norte, começaram a conquistar várias extensões do Império Romano. Nessa fase do
direito medieval da Alta Idade Média nota-se o cariz da cultura romana destinada à
figura do “hostis alienigena”, isto é, o estrangeiro, o estranho, que era perigoso porque
era desconhecido, e inspirava desconfianças porque não era compreendido.114

113 Para Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 19, a Alta Idade Média
compreende o período entre os séculos V e XI. John GILISSEN,
Introdução histórica ao direito, tradução de A. M. Despanha e L. M.
Macaísta Malheiros, 2ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995, pp.
128/130, por sua vez, delimita aquele período entre os séculos VI e XII,
definindo que neste período, na Europa, podiam ser encontrados os
seguintes direitos: “O direito muçulmano, no Sudoeste; o direito
bizantino, no Sudeste; o direito romano que sobrevive durante os séculos
VI a VIII; os direitos dos povos germânicos tornados sedentários:
Visigodos, Francos, Lombardos, Anglos, Saxões, Normandos, etc.; o
direito do Império Carolíngio (séculos VIII-IX); o direito dos povos
eslavos, no Leste; o direito feudal; o direito canônico”. Aceita-se, no
presente trabalho, a Alta Idade Média como o período compreendido
entre o final do direito romano, com a morte de Justiniano (ano 565 d.C.,
século VI) e o ressurgimento dos estudos jurídicos com a formação das
escolas européias e a fusão do direito romano repristinado com o direito
canônico (século XII). A partir do final do século XII dá-se início ao
período marcado pela inquisição católica como forma procedimental para
julgamento e punição de crimes.
114 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., p. 23, leciona que para “os

romanos, todos os estrangeiros eram ‘barbari’, palavra tomada do grego


que indicava o não-grego, de língua incompreensível, e que provém da
raiz sânscrita ‘baba-’, próxima a ‘balbucio’ e ‘palenda’”.
Devido à grande importância dos direitos português e italiano na formação do
direito brasileiro, ganha relevância o estudo, dentre os povos bárbaros, dos visigodos e
dos longobardos. Aqueles, por terem se firmado como os dominadores da península
ibérica (585 d.C.), antecessores e formadores do posterior direito antigo português.115 Os
longobardos, por sua vez, por terem se fixado na península itálica (568 d.C.) e
influenciado na formação das raízes do direito italiano,116 do qual se buscou a base
juspolítica de nosso atual Código de Processo Penal.
De comum entre esses dois povos, pode-se apontar sua inferioridade (notadamente
cultural e jurídica) em relação aos povos romanos e, outrossim, a falta de leis escritas para
formação de um direito forte e influenciador. Utilizavam regras costumeiras (direito
consuetudinário) para a resolução de seus conflitos.117
Os julgamentos criminais, em uma primeira fase, eram realizados pelo sistema das
“vendetas”, vingança privada em que o ofendido ou seus familiares tinham o direito de
vingar a lesão, atuando diretamente contra o seu causador. Também se utilizavam de
duelos ou desafios, restando com razão quem vencesse a disputa.118 Os julgamentos se
davam em assembléias populares reunidas e lideradas pelo chefe, cuja escolha também
era, inicialmente, feita em assembléia e, tempos depois, por transmissão hereditária.

115 Sobre o direito visigodo v., como obras de referência em doutrina


brasileira, João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., cap. IV,
e Augusto THOMPSON, Escorço histórico do direito criminal luso-
brasileiro, Rio de Janeiro: Liber Juris, 1976, cap. IV.
116 Sobre o estudo do direito criminal longobardo, v. Alessandro

MALINVERNI, Lineamenti cit., cap. II.


117 Alessando MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 11, e Augusto THOMPSON,

Escorço cit., p. 26.


118 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 12/13.
Posteriormente, com um maior desenvolvimento do poder central no controle das
infrações cometidas entre o grupo, estabeleceu-se um sistema penal fundado na
composição pecuniária, notadamente para os crimes menos graves e ocorridos no interior
dos grupos ou entre familiares.119 Esses procedimentos, ocorridos em bases acusatórias
(público, oral e formalista),120 eram de iniciativa privada e tendiam à composição
pecuniária e restabelecimento da harmonia entre as partes. A decisão competia ao
magistrado e tinha caráter contratual.121

119 João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., pp. 52/53, e


Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 14. Aquele autor ainda
aponta, na mesma passagem, que os crimes graves, p.ex., os de traição
ou deserção, eram punidos pelo grupo com a morte. Também no direito
longobardo, desta fase histórica, os crimes graves tinham procedimento
diverso. O sistema era o inquisitivo e a ação era pública, assumindo a
igreja um importante papel no julgamento das causas criminais; nesse
sentido v. Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 25/26.
120 João Bernardino GONZAGA, A inquisição em seu mundo, 3ª ed., São

Paulo: Saraiva, 1993, pp. 22/24.


121 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 23/25.
A precariedade de informações e o primitivismo dessas espécies de procedimentos
penais não permitem perceber-se qualquer instituto jurídico capaz de servir de raiz para
o que, futuramente, se instituiu como “presunção de inocência”.122

1.3.1. (segue): as ordálias e a presunção de culpa

122 Não obstante essa precariedade de informações quanto à força punitiva


e à dureza primitiva de incipientes diplomas legais à época, pode-se ler,
no texto do Código Visigótico (Fuero Juzgo), em seu livro 12º, item I, a
recomendação de que os juízes devem julgar com moderação, justiça e
misericórdia, notadamente com os “desgraçados” e “pobres”. Nesse
sentido, v. Augusto THOMPSON, Escorço cit., pp. 30/35.
Expressamente, extrai-se do texto da lei: “I. TITOL DEL
ATEMPLAMIENTO DE LA LEYES DE TODOS LOS HEREJES, É DE
TODOS LOS IVYCIOS DESFECHOS. I El Rey Don Reccaredo. ‘Cuemo
el rey manda á sus iueces que sean mesurados em dar el iudicio’. Nos,
que ponemos pena á la maldad de los omnes, qual devemos,
conviénemos que ayamos merced de los mezquinos, cuemo plega á
Dios. E por esto defendemos á todos los iueces que son en nuestro
regno, que na poder de iudgar, é los mandamos por la virtud de Dios,
que es poderoso sobre todas las cosas, que en todos los pleytos, y en
todas las cosas se ‘trabajen’, y ayan cuidado de saber la verdade, é que
terminen todos los pleytos, assí del rico, cuemo del pobre: que no caten
á la persona de ninguno. Mas todavia esto les mandamos, que contra los
omnes viles, que son pobres, que ‘atiemplen’ la pena de las leyes en
alguna cosa á los pobres. Ca si lo quisieren todo afincar, cuemo manda
el derecho, en ningun tiempo non farien neguno merced”. Por essa
passagem, pode-se concluir muito mais no sentido de que o sistema era
extremamente severo e rudimentar e o preceito valia mais como uma
recomendação – tímida, acrescente-se – para a benevolência, do que no
sentido de o preceito garantir um julgamento sempre magnânimo ou
complacente.
A dificuldade para reunião das assembléias populares na freqüência compatível com
o aumento dos crimes graves e, ainda, um crescimento do poder central123 são fatores a
instituir uma nova tendência de julgamentos das causas penais, qual seja, o julgamento
por meio das ordálias ou juízos de deus.124
As ordálias e os juízos de deus não consistiam em um procedimento criminal, mas
em forma de se “provar/julgar” a culpa de alguém, “uma devolução a Deus da decisão
sobre a controvérsia”.125 O julgamento não era mais realizado perante o povo e em
votação em assembléia, mas era realizado e presidido pelo líder.
Inicialmente, eram colhidos os juramentos, tanto do acusador quanto do acusado,
também denominados “expurgações canônicas”. Por eles as partes assumiam o
compromisso (“com deus”) de que diriam a verdade, atuariam com justiça e, no caso do
acusado, de que não tinha cometido o crime. Ao acusado era permitido trazer juramentos
de outras pessoas para apoiar o por ele prestado (os conjuratores126), o que bem indica a
menor credibilidade de que os acusados gozavam em relação aos acusadores.127 Tendência
com a qual vai se forjando e solidificando uma cultura da presunção da culpa.
Passadas as formalidades iniciais de juramentos e colheita de versões, avaliando a
necessidade de eliminar incertezas, poder-se-ia instituir ordálias que, conforme se
acreditava, provocariam a proteção divina a quem tivesse razão.128

123 Na Idade Média não havia valor jurídico mais relevante que o de “pax”,
por ele servir de esteio e estabilidade de todo o sistema político,
econômico, social e jurídico do período feudal. Assim, qualquer delito
que a colocasse em risco passou a ser considerado de alta gravidade
para a vida feudal e seu julgamento passou a ser feito por juízos públicos
e presididos pelos líderes da comunidade, não competiam mais aos
juízos conciliatórios de finalidade compositiva-indenizatória. O poder de
julgar tais crimes foi, paulatinamente, passando ao rei, tido como o
“senhor dos senhores feudais” (“ultimate lord of all lords”). Nesse sentido,
v. Giorgia ALESSI, Processo penale: direito intermedio, in
ENCICLOPEDIA del diritto, Milano: Giuffrè, 1971, v. 36, pp. 364/368.
124 João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., p. 53, e Alessandro

MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 15.


125 Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., pp. 10/12.
126 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., p. 22.
127 Franco CORDERO, Procedura penale, 2ª ed., Milano: Giuffrè, 1993, p.

18. Quanto à fase inicial de juramento e da produção de um pequeno


número de provas, v. Alessandro MALINVERNI, Principi del processo
penale, Torino: Giappichelli, 1972, pp. 471/472, e Giorgia ALESSI,
Processo cit., pp. 362/365.
128 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit. p. 23, assim define os

duelos e os “juízos de deus”: “Ambos se baseavam na mesma crença,


de um Deus sempre presente no mundo, a interferir nos negócios
humanos. Provoca-se pois a intervenção divina, para que apontasse o
culpa
Aos proprietários de bens de determinado valor e aos nobres reservavam-se os
duelos judiciários, uma das formas de ordália, em que os litigantes combatiam entre si, ou
em certas circunstâncias escolhiam seus representantes.129 Outras formas de juízos de
deus eram, p.ex., as provas de água quente (imersão da mão ou do braço) e do ferro em
brasa (carregava-se na mão um ferro em brasa por determinado número de passos),
segundo as quais, após cumprida a tarefa, enrolava-se o membro exposto em ataduras e
esperava-se por um período de três dias. Teria razão aquele que apresentasse os
ferimentos curados nesse espaço de tempo, caso ficassem infeccionados ou não
evoluíssem para a cicatrização, estava provada a sua culpa.130
A fase dos julgamentos com base nos juízos de deus aponta para dois dados
significativos ao presente trabalho: primeiro, um não desenvolvimento dos institutos
jurídicos e, segundo, uma forte influência religiosa na última fase do direito medieval da
Alta Idade Média. Analise-se cada qual.
Os institutos jurídicos normalmente observados para se mensurar eventual aceitação
da presunção de inocência em um sistema, em qualquer um de seus aspectos, não
mereciam maior atenção ou aperfeiçoamento. Tudo era dirigido à intervenção divina e,
por esse viés, era desnecessária qualquer evolução técnico-jurídica.
A prisão provisória, por exemplo, não era melhor tratada uma vez que, na fase
inicial das invasões bárbaras, aqueles povos, por nutrirem profundo apreço pela
liberdade, não aceitavam, como regra ou por costume, qualquer forma de constrição
provisória.131 Além do que, seus julgamentos não apresentavam rito ou demora que
justificasse a manutenção de alguém no cárcere até sua realização ou finalização. As
prisões provisórias, ao final da Alta Idade Média, eram muito mais usadas como forma de
forçar o imputado à escolha pelo procedimento inquisitivo, que vinha se revivificando
com fortes influências canônicas, em detrimento das ordálias e dos duelos, já vedados ou
em franco desprestígio.132

129 Sobre os duelos no direito luso dos séculos XI e XV, nos mesmos
moldes do expresso no texto, v. Augusto THOMPSON, Escorço cit., pp.
52/54. Sobre os duelos como forma de juízos de deus, v. Vincenzo
MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., p. 11. João Bernardino
GONZAGA, A inquisição cit., p. 23, também indica que os nobres
poderiam indicar seus representantes nas ordálias. do e não permitisse a
condenação de um inocente”.
130 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 15/16, e Franco

CORDERO, Procedura cit., pp. 17/18.


131 João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O Processo cit., pp. 59/60, ressalta

a preferência do Código Visigótico (652, d. C.) em substituir a prisão


preventiva pela “liberdade provisória sob caução de fiéis carcereiros”.
132 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 373/374.
As decisões, por sua vez, outro instituto jurídico pouco prestigiado neste período
histórico, não eram sentenças de mérito, pelas quais se chega à conclusão da culpa
criminal por meio de fundamentação lastreada no exame dos fatos demonstrados e do
direito aplicável. A sentença proferida era uma “sentença de prova”, ou seja, cabia ao
líder (tribal, feudal, militar ou religioso) decidir, diante da causa que lhe era exposta,
sobre a necessidade e o tipo de ordália ou duelo a ser realizado.133 O que se conhece hoje
por “decisão de mérito” era “atribuição divina”, que – acreditavam – sempre agraciaria o
justo.134 A conclusão sobre a culpa advinha diretamente do resultado das ordálias, o que
impossibilitava (i) a existência de dúvida no julgar – afinal, o julgamento era divino – e,
outrossim, (ii) um interesse ou preocupação em se fundamentar o decidido.
A observação sobre a existência de uma “sentença de prova”, não uma “sentença de
mérito”, permite concluir, legitimamente, que a “lógica probatória” ou a “estrutura
procedimental” funcionava com base na presunção de culpa.
Isto porque, a prova (ordália/duelo) somente ocorria se houvesse desconfiança sobre
a inocência do imputado ou, ainda, se ela não estivesse “provada suficientemente”.135 A
dúvida, portanto, não significava um “benefício” para o acusado (“in dubio pro reo”).136
Muito ao contrário. Gerava uma imposição a ele de provar sua inocência. Na dúvida, o
encargo não se dirigia ao acusador para melhor demonstrar a imputação, mas ao acusado,
para demonstrar sua inocência.

133 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 363/365.


134 Franco CORDERO, Procedura cit., p. 17, esclarece que este sistema
não levava em consideração fato ou direito. Era uma “racionalidade
criptosseletiva” que, guiada por uma instrução oculta, chegava-se à
solução divina da causa.
135 Isto porque a Corte, as assembléia ou colegiados, a quem eram

submetidas as causas penais poderiam entender, pelos juramentos,


depoimentos de testemunhas, conjuramentos em apoio ao imputado,
provas documentais ou qualquer outra forma de se demonstrar as razões
do imputado, que ele deveria ser liberado da imputação. Contudo, se não
firmasse essa convicção exculpadora, as ordálias ou duelos eram os
únicos meios de se decidir a causa. Sobre o procedimento criminal na
fase das ordálias, Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 363/367.
136 Sobre a incompatibilidade entre os “juízos de Deus” ou “provas divinas” e

o “in dubio pro reo”, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade de


inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra: Coimbra, 1997, pp. 25/26.
Os “juízos de deus”, determinados apenas aos imputados (e/ou suas testemunhas),137
representavam a crença de que “se inocentes” seriam “expurgados” da culpa ou da
imputação deduzida. Diante da acusação formulada e da dúvida, pela insuficiência da
prova da inocência, a “liberação” da presunção de culpa somente se daria por intervenção
divina. Só precisa ser expurgado quem tem algo a purgar, logo, pressupunha-se a sua
culpa a fim de que a “divindade” declarasse-a inexistente (expurgando-o).138
O segundo dado significativo ao presente trabalho, que se pode extrair dessa última
fase do direito na Alta Idade Média, é a sua aproximação e interpenetração com a
religião.

137 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., p. 23, indica que, caso
assim entendessem, também as testemunhas (conjuratores ou não)
indicadas pelo acusado eram submetidas às ordálias. O mesmo
(submissão às ordálias) não se dava com as testemunhas trazidas pela
acusação.
138 Alessandro MALINVERNI, Principi cit., pp. 471/474, afirma que há um
erro em se supor que no período das ordálias houvesse um “ônus de
provar a inocência”. Para justificar sua posição, assevera que o acusado
tinha direito a fazer juramento, apresentar provas e conjuradores que
poderiam isentá-lo de culpa, sem a necessidade das ordálias. Afirma,
ainda, que havia obrigações probatórias para o acusador, que também
tinha que prestar juramento de sua certeza quanto ao crime e de sua boa
intenção, assim como poderia levar provas de sua versão. Contudo, o
que o referido autor não consegue negar é o fato de que a dúvida quanto
à imputação sempre implicava na submissão do acusado às “provas de
deus”, não o contrário. Isto é, não era o acusador quem haveria de se
submeter ao ferro ou ao carvão em brasa, à água ou ao óleo ferventes.
Exceção feita ao procedimento em que nobres ou abastados eram
imputados, porquanto nesse caso poderiam ter direito ao duelo, para
todos os demais era o imputado quem suportava essa peculiar
“racionalidade” (“expurgação divina”) para se chegar à “verdade” sobre a
ocorrência ou não do crime. Nesse sentido, veja-se o seguinte trecho da
obra citada, em tradução livre: “Se após a prestação de ambos os
juramentos, o caso permanecia dúbio, a solução do processo vinha
confiada ao duelo ou ao juízo de Deus”. Lembre-se, mais uma vez, só o
acusado era submetido aos juízos de deus, nunca o acusador.
A igreja tem importante papel influenciador na última fase do direito dos povos
bárbaros das penínsulas ibérica e itálica. Em ambas as regiões, vai paulatinamente
interferindo na cultura bárbara e espraiando sua influência e controle sobre o exercício
do poder. Os invasores tornam-se uns “vencedores vencidos”, porquanto se deixam
“influenciar pela autoridade moral dos bispos e pela superioridade das leis romanas”.139
A cristandade, que já lançara sua decisiva influência ao final do direito romano,
notadamente a partir do período do Dominato,140 retoma sua força sobre os povos
invasores daquelas penínsulas e já triunfa na última parte da Alta Idade Média (séculos X
a XII). Faz ressurgir o sistema inquisitivo romano da cognitio extra ordinem que,
contaminado por marcada influência dos desígnios canônicos, vai influir decisivamente
no direito europeu dos séculos seguintes vindo, devida ou indevidamente, até nossos
dias.141

139 Palavras e expressão de João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O


processo cit., p. 53. Sobre esse importante papel da igreja e do direito
romano na transformação do direito visigodo em um direito que repristina
toda uma construção inquisitiva romana, v. Augusto THOMPSON,
Escorço cit., capítulos IV a VI. Este último autor citado, op. cit., p. 34,
comentando o Código Visigótico (Lex Visigorotum, Liber Legis Goticae,
Forum Judicum, Liber Judicis, Liber Judiciorum, Lex Visigorotum
Recesvindiana e Codex Legum), que traduzido ao espanhol recebeu o
nome de Fuero Juzgo, destaca, sobre a influência do direito romano no
direito visigodo: “No conjunto, o estatuto visigótico representa notável
combinação do Direito germânico com o romano, dele se afirmando, com
razão, ser, dos códigos bárbaros, o mais impregnado de romanismo”.
Sobre a vitória dos vencidos (romanos e cristãos) sobre os vencedores
(invasores bárbaros), v. Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto
processuale cit., pp. 13/16.
140 Vincenzo ARANGIO-RUIZ, Storia cit., pp. 319 e ss., é claro em fixar a
influência decisiva da igreja católica no direito romano, apontando como
marco legislativo o Édito de Milão (313 d.C.), de Constantino, o Grande,
com o qual o catolicismo passa a ser a religião oficial do Estado
Romano. Sobre a fase de perseguição dos cristãos até a sua ascensão e
influência em Roma, v. Vincenzo GIUFFRÈ, La repressione cit., pp. 114
e ss. e pp. 171 e ss.
141 Nesse sentido, v.: Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 26; João
Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., pp. 53/55; e João
Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 24/27.
Um inegável benefício da ascensão da Igreja e da projeção de sua influência nos
procedimentos criminais foi a rejeição das ordálias e dos juízos de deus como forma de
“provar/julgar” quem é culpado pela infração.142
A eliminação dos julgamentos por ordálias, rompendo tradição consuetudinária dos
povos invasores (germanos, francos, anglo-saxões, normandos, entre outros) e dos
cavaleiros e senhores feudais, pode ser explicada por duas vertentes que devem ser
combinadas.
A primeira, porquanto a força moral dos bispos e a melhor técnica judiciária impor-
se-iam, mais cedo ou mais tarde, aos costumes e ao primitivismo cognitivo das formas
bárbaras de julgamento.143
Por outro ângulo, não menos verdadeiro e importante, a segunda vertente consiste
na relevância político-ideológica de se substituir a pessoa incumbida de decidir. Trocava-
se a intervenção divina dos juízos de deus pela figura humana do detentor do poder
(julgador ou pessoa por ele escolhida) no novo procedimento (inquisitivo), sob os
auspícios e influxos católicos.144

142 Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 362, indica que foi o Papa Inocêncio III
quem determinou a eliminação dos juízos de deus como fase
procedimental. No mesmo sentido, sem a citação papal, mas marcando
a vedação da Igreja às ordálias v., ainda, Vincenzo MANZINI, Trattato di
diritto processuale cit., p. 12. Franco CORDERO, Procedura cit., p. 18,
indica que as ordálias foram vedadas já ao final do século XII, pelo
cânon 18, do “IV Concílio Laterano”, de 1215.
143 Essa é a causa apontada por Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto
processuale cit., p. 12, para a substituição das ordálias pelo sistema
inquisitivo romano, agora com forte influência canônica.
144 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 24/26, também indica
a melhor organização e evolução do direito romano como causas dessa
supremacia, porém não deixa de apontar a conveniência política de se
aproveitar um sistema processual centralizador e autoritário,
característico do último período romano, para o sistema político real
nascente na Europa dos séculos XII e seguintes.
Inegavelmente, houve uma mudança na racionalidade da “melhor” forma de decidir
o caso. Substitui-se o imponderável julgamento (“divino”) mediante ordálias por uma
outra forma de se “buscar a verdade”. Instituem-se outros meios de verificação de como
os fatos ocorreram, sua autoria, as razões que o motivaram e o direito aplicável ao caso.145
E, principalmente, não seria mais o “divino/imponderável” a dizer quem deveria ser
punido, mas esse poder seria centralizado nas mãos de quem exercesse a função
judicante. É o que RAÚL ZAFFARONI denominou de “o seqüestro de Deus” pelo
“dominus”, ou seja, era o julgador quem decidiria em lugar de “Deus”. “Deus já não
decide entre dois iguais como partes, mas sim está seqüestrado pelo senhor, pelo
‘dominus’”.146
Novamente, assim como ocorrido em Roma, para afirmação do Império, o processo,
notadamente em sua esfera penal, demonstra toda sua importância/conveniência ao
poder emergente. O processo penal volta a ser usado como instrumento relevante de
dominação política e ideológica na fase, agora, medieval.147

1.3.2. (segue): inexistência de presunção de inocência

Muito pouco há que se acrescentar, neste ponto da historicidade dos sistemas


processuais penais, ao antes expendido para o direito romano como um todo.148
Na primeira parte deste período medieval todos os institutos processuais eram
precários ou inexistentes, o que impede a verificação de qualquer fator indiciário de
presunção de inocência. No período medieval das ordálias, um segundo instante dessa
fase histórica, a própria constatação da existência da presunção de culpa, como ideário
para, na dúvida, submeter os acusados aos “juízos de deus”, expunge qualquer
possibilidade de se tentar inserir aquele preceito humanitário. Por fim, na última fase
desse quadrante histórico, com a retomada do poder de decidir pelo “dominus” (líder
militar, político, ou religioso), repristina-se com toda força o modelo inquisitivo
destinado a atender aos reclamos de um “direito penal do inimigo” aos moldes romanos,
notadamente na sua vertente de “hostis alienigena”.
Assim, de qualquer modo e em todo esse período examinado, não se pode
vislumbrar qualquer vestígio de presunção de inocência no direito processual penal.

145 Sobre a nova racionalidade que se estabelece no processo penal após a


vedação das ordálias, v. Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 362.
146 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., p. 38.
147 Sobre o caminhar das ordálias para o inquérito como forma de “buscar a

verdade” não ser uma evolução da racionalidade discursiva ou


investigativa mas uma demonstração de um “processo de governo” e
uma “técnica de administração, uma modalidade de gestão” e uma
modalidade do novo exercício de poder nascente, v. Michel FOUCAULT,
A verdade e as formas jurídicas, tradução de Roberto Cabral de Melo
Machado e Eduardo Jardim Morais, Rio de Janeiro: Nau, 1996, pp.
72/78.
148 Sobre o tema, v. item 1.2.4 supra.
No caminhar da história, o modelo dessa fase ainda será mais recrudescido com um
sistema estruturado sobre a presunção de culpa e mantido por um ideário punitivo
baseado no direito penal do inimigo. Foi o ocorrente na Inquisição, fase examinada a
seguir.

1.4. Direito na Baixa Idade Média:149 a Inquisição

Para se entender toda a mudança ocorrida no processo penal entre o final do


período das ordálias e a instituição do sistema inquisitivo romano, renovado por influxos
católicos, é necessário se destacar a realidade sociopolítica européia.
A Europa, principalmente a partir de meados do século XII, começou a sofrer uma
turbulência política pela mudança das forças até então estabelecidas. Os senhores feudais
e os líderes locais estavam perdendo poder devido ao grande crescimento das cidades
para além das muralhas dos feudos e, portanto, para além de seus controles primitivos e
pessoais.150
Começam a surgir centros de poder na figura de pessoas escolhidas ou eleitas pela
população das “cidades/comunidades”. Posteriormente, a legitimidade deixa de ser por
escolha direta (eleição) e passa a ser por linhagem hereditária. No primeiro instante
surgem os “Signorie” e, posteriormente, os Principados, ambos preocupados em manter
uma unidade e coerência social, cultural, política e econômica em seus domínios.151
Cada vez mais, as forças se agrupam sob novos comandos e, essas mesmas lideranças,
precisam de mais força militar e política para alcançar um maior poderio econômico e
territorial. Ampliação de poder econômico e territorial significava, naqueles tempos,
guerras freqüentes, sanguinárias e, não raro, fratricidas.
O poder central (Príncipe e Signore) começa a ter o controle político, militar e
econômico e, tal qual no Estado Romano, para cada nova expansão sobre novos
territórios e povos, precisava ainda mais da subserviência e da obediência inconteste dos
povos a ele submetidos. Obediência nem sempre voluntária e que, para ser atingida,
exigia doses cada vez maiores de jugo e de forte presença estatal frente à população.

149 Como período da Baixa Idade Média se designará, no presente trabalho,


o período entre os séculos XIII e XVIII. Nesse sentido, v. Alessandro
MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 27. Giorgia ALESSI, Processo cit., pp.
369/371, e John GILISSEN, Introdução cit., pp. 130/131, por sua vez,
chegam a estender o período entre o final do século XII até o último
quartel do século XVIII. Para este último autor, o período compreenderia
os seguintes grandes sistemas jurídicos na Europa: “os direitos
romanistas; o ‘common law’ inglês; os direitos eslavos; o direito
bizantino; o direito canônico; o direito muçulmano”.
150 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 27/30.
151 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 29.
Os poderes centrais emergentes ou expandidos a novos territórios precisavam impor
seus desígnios e implementar suas políticas. Diversamente dos antigos povos invasores,
apenas preocupados em destruir e saquear, aqueles poderes tinham a tendência de se
fixar regionalmente e, mais que isso, governar os outros povos e territórios. Nessa nova
fase, o poder central, já quase totalmente real e transmitido hereditariamente, pretendia
perenizar-se e, portanto, dependia diretamente de uma política de forte controle e
implementação da (sua) nova ordem.
Observando esse momento histórico agora pela perspectiva religiosa, pode-se
concluir que o quadro não é, em essência, distinto.
A Igreja Católica já integrava o poder no período do Dominato Romano, última fase
do Baixo Império Romano. Com as invasões bárbaras – povos que, em regra, professavam
outra religião –, a força, o domínio e a influência católicos foram reduzidos e, em muitos
locais, eliminados.
Paulatinamente, seja por força da reconquista seja pela catequização empreendida
pelos clérigos, a filosofia cristã foi, novamente, ascendendo ao poder, integrando-o ou
assistindo-o.152
Como se pode perceber, a situação política tanto do poder real quanto do poder
católico se equivaliam. Enquanto aquele desejava ampliar seus domínios (territoriais,
econômicos e militares), a Igreja também buscava aumentar seus domínios (conquistando
novos fiéis pelas conversões); enquanto aquele buscava fortalecer e proteger seus
domínios para não serem atacados e, de qualquer modo, reduzidos, a Igreja, outrossim,
buscava combater firmemente a heresia a fim de não ter sua área de influência
diminuída.153
Pela perspectiva processual penal, foi a Igreja quem se lançou à frente nessa luta
similar travada pelos poderes religioso e real contra seus “inimigos”.
Devido à sua grande atuação e participação no núcleo de poder do Estado Romano,
notadamente ao final do Dominato, a Igreja buscou nessa passada cultura jurídica as
bases para a estruturação de um direito para seus interesses e problemas internos.
Inicialmente, o direito romano revivificado, segundo orientação canônica,
destinava-se a questões internas da Igreja, funcionando como uma “Justiça da Igreja”, de
viés disciplinar.154 Nesse sentido, a vertente romana de inimigo que a Igreja Católica
resgatou, nesse primeiro instante e para suas necessidades internas, foi a do “hostis
judicatus”, já referida acima como aquele que, por força da “auctoritas” do poder
judicante, é declarado traidor dos ideais defendidos por aquele poder.

152 Sobre as várias lutas entre as diversas seitas religiosas e o catolicismo,


com a ascendência deste por força de sua busca da humanização e sua
inserção no Poder como religião oficial, v. João Bernardino GONZAGA,
A inquisição cit., pp. 92/99.
153 Nesse sentio, v. Giuseppe CAPUTO, Inquisizione, in ENCICLOPEDIA

del diritto, Milano: Giuffrè, 1971, v. 21, p. 711.


154 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 24/25.
No âmbito processual, mesmo para as causas interna corporis, foi repristinado o
sistema inquisitivo romano, notadamente em suas características (i) de iniciativa da ação
ex officio, (ii) de sigilo procedimental, (iii) de iniciativa persecutória/instrutória do juiz e
(iv) de primazia da confissão como “rainha das provas”.155
Essa forma processual significava um procedimento diverso de julgar, em
comparação com as regras existentes, até então, no sistema feudal. No início do período
feudal, vigia, em regra, o procedimento acusatório, do período romano da República.
Com o tempo, devido à mudança do perfil político das lideranças religiosas e laicas, foi se
implementando o procedimento inquisitivo.156
Há justificativas para a opção canônica pelo procedimento inquisitivo romano que,
pelas fortes influências religiosas sofridas, passou a se denominar “procedimento
inquisitivo canônico”.
As falhas, crimes e desvios cometidos pelos clérigos apresentavam dificuldade na
investigação, não eram denunciados pelos ofendidos e, quando passíveis de punição,
precisavam de sigilo para não expor aos fiéis as mazelas internas da Igreja, tudo a fim de
não perder sua credibilidade e, portanto, seus adeptos e seu poder. Assim, o
procedimento já historicamente existente e que melhor servia a tais finalidades era o
modelo inquisitivo,157 cuja iniciativa da ação penal era oficial, não necessitando de
denúncias, e o procedimento era sigiloso.
Tal procedimento foi repristinado, remodelado e implementado internamente na
Igreja,158 porém esse mesmo sistema também estava ao feitio dos desígnios externos da
Igreja para com os “hereges” e, ainda, satisfazia aos poderes (reais) políticos e
centralizadores da época.

155 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 24/25.


156 Sobre o procedimento acusatório nessa fase histórica, v. Vincenzo
MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., pp. 31/40, e Alessandro
MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 30/31.
157 No sentido de que o sistema inquisitivo atendia às necessidades de

aumento da criminalidade e ao perfil político dos, então, detentores do


poder, v. Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., pp.
40/43, e João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit., pp.
247/248.
158 A Igreja já vinha utilizando-se de um sistema inquisitivo com feições

peculiares às suas necessidades e características internas (v. Giuseppe


CAPUTO, Inquisizione cit., pp. 711/712), mas foi com o Papa Inocêncio
III, por meio de suas decretais (1198-1216), que aquele procedimento se
estruturou e foi regulamentado, com as necessárias adaptações e
acréscimos (cfr. Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 32). No
mesmo sentido, v. João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O processo cit.,
p. 248. Também, para essa adaptação do procedimento inquisitivo
romano para o perfil inquisitivo canônico, Giorgia ALESSI, Processo cit.,
pp. 369/372, destaca, ao lado de Inocêncio III, a atuação firme do Papa
Gregório IX.
O procedimento acusatório vai, de forma progressiva, deixando de ser o mais
comum em detrimento do sistema inquisitivo, o qual amplia sua esfera de abrangência
em toda Europa Continental159 e, em alguns instantes, até mesmo na Inglaterra de Maria
Tudor.160 Isto porque, o regime centralizador e belicoso dos Principados vai buscar, no
procedimento inquisitivo canônico, a fórmula ideal para a implementação de seus
desígnios.161
O poder central, já a partir de meados do século XIII, passa a assumir não apenas o
controle militar e econômico, mas também jurídico, entenda-se, passam a monopolizar o
poder de julgar. Nesse sentido, de todo conveniente e até mesmo necessário um sistema
processual centralizador e pelo qual o julgador assume função de investigar, acusar,
instruir e julgar.

159 Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., p. 30. Conforme


assevera Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 375/376, o sistema romano-
canônico de justiça punitiva consolidou-se definitivamente como regra,
ao final do século XIII.
160 Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 379, afirma, ao expor boa síntese de

cada país, que toda a legislação do século XVI, nos mais variados
estados e impérios, assume feições marcadamente inquisitivas, inclusive
a legislação inglesa de Maria Tudor (Marion Statutes), nos anos de 1554
e 1555.
161 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 30/31.
O processo penal, como já antes acontecera na fase romana, torna-se instrumento
estatal de implementação da (nova) política reinante.162 É meio pelo qual, mais que
controle da criminalidade, atinge-se o mais forte e desmedido controle social.163
Determinando não apenas o que seja crime, mas também quem o praticou e a pena a ser
aplicada, tudo de forma sigilosa, parcial e dirigida conforme a vontade do poder central.
Inimigo e criminoso passam a ser expressões sinônimas, assim como criminoso e herege
e, silogisticamente, herege torna-se inimigo.164
O processo penal, novamente, passa a ser entendido e utilizado como mais uma
forma – e, conforme se verá no item seguinte, em alguns momentos a forma mais
importante – para a defesa dos domínios reais e católicos contra seus inimigos (hereges
ou não).

162 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 317/372, expõe que a inquisição
católica surge da interseção entre o procedimento inquisitivo romano e a
necessidade católica da perseguição intensa dos hereges.
163 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., pp. 26/36, afirma que a

Justiça dos séculos XIII a XVIII “desconheceu quase todas as garantias


individuais que permeiam as ordens jurídicas da atualidade”.
164 Sobre a equiparação entre crime de heresia e crime de lesa-majestade é

pontual o trecho de Hélio TORNAGHI, Instituições de processo penal,


Rio de Janeiro, Forense, 1959, v. III, nota 6, p. 487: “‘Uma frase infeliz’ –
Um dos primeiros cuidados de Inocêncio III ao subir ao sólio pontificial foi
fazer cumprir as leis vigentes. Até aí, muito bem. Mas no decreto
pontificial de 25 de março de 1199 não somente ele insistiu na
equiparação feita pelos imperadores cristãos entre a heresia e o crime
de lesa-majestade, mas, também, afirmou ser muito mais grave o
ofender a majestade divina que a humana (‘longe gravius sit aeternam
quam temporalem offendere majestatem...’). Desta afirmação às
conseqüências de fato foi um passo: em 1220 o imperador Frederico II,
pela Constituição de 22 de novembro, assimilou os crimes dos hereges
aos de lesa-majestade”. Dessa confusão conceitual e política entre
heresia e crime, aproveitam-se, por conveniência, imperadores e clérigos
para estender cada vez mais e de forma cada vez mais intensa a
abrangência e o rigorismo do sistema inquisitorial canônico.
A partir desse ponto da evolução histórica dos sistemas processuais não há mais
utilidade, ao menos ao presente estudo, em se diferenciar um modelo repressivo voltado
ao “hostis alienigena” ou ao “hostis judicatus”.165 Em verdade, o que marca o perfil
punitivo e todos os institutos processuais concebidos, estruturados e utilizados nesse
período é a concentração de poder na mão do julgador, sua firme crença (ou
conveniência) na luta contra o “inimigo”, para o qual o único sistema possível é o
lastreado na presunção de culpa e sem qualquer direito ao imputado. Um sistema de
verdadeira desumanização do “outro”: o inimigo, o herege, enfim, o imputado.
Com base nesse ideário punitivo não há qualquer surpresa em se constatar que a
concepção de uma presunção de inocência ao imputado é claramente rejeitada.

1.4.1. -Inquisição: aspectos processuais penais relevantes ao tema da presunção de


inocência

“Em sentido lato, pelo termo ‘inquisição’ se designa um modo particular de se


posicionar diante da investigação da verdade no curso do processo penal canônico: sob
esse aspecto o sistema ‘inquisitório’, dominado pelo impulso do juiz, se contrapõe ao
sistema acusatório e constitui um ponto de chegada bastante tardio do mecanismo
processual no direito canônico”. “Em sentido mais marcante, com o termo ‘inquisição’ se
designa, ao contrário, o procedimento utilizado na repressão da heresia; e, em
decorrência, se indicam os órgãos pelos quais a atividade de repressão foi buscada, e
precisamente: a inquisição medieval, a inquisição espanhola e a inquisição romana”.166
Ao presente trabalho, releva esse segundo significado destacado.

165 Sobre esses dois tipos de inimigos criados pela cultura romana e sua
influência na formação de uma cultura punitiva do inimigo nos povos e
sistemas sucessivos, v. Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., pp.
18/25.
166 Tradução livre das palavras com que Giuseppe CAPUTO abre seu
verbete Inquisizione cit., p. 711.
De um modo geral, para toda a Europa, a Inquisição tem duas características que, ao
que importa no presente estudo, mais a matizam e a explicam: a primeira, dirige-se à
forma pela qual o poder (real ou católico) vê e considera o imputado,167 como é a
mentalidade do julgador; já a segunda vem representada pelo aparato instrutório,
disposto à consecução de finalidade pré-estabelecida.168

1.4.1.1. -A presunção de culpa inerente ao sistema inquisitivo


canônico-romano

O primeiro aporte a ser feito sobre a Inquisição deve ser de como o imputado é visto
e qual a inspiração dos operadores/julgadores daquele sistema.
O método inquisitivo foi posto como forma de se proteger os domínios territoriais
(dos inimigos do Estado) e os domínios católicos (dos hereges e dos não convertíveis). O
processo é usado como instrumento para fins políticos e religiosos.

167 Neste passo, deve-se entender a expressão “imputado” em sua forma


mais extensa, qual seja, aquela pessoa submetida à persecução penal,
desde sua fase pré-processual até a processual. Por imputado, nesse
instante, devemos entender desde o delatado até o punido, passando-se
pelas figuras do suspeito, indiciado, acusado, processado e, ao final,
julgado.
168 Para René GARRAUD, Compendio de direito criminal, tradução de A.T.
de Menezes, Lisboa: Teixeira, 1915, v. 1, pp. 31/32, o que mais
caracteriza o sistema inquisitivo, notadamente após o Papa Inocêncio III,
é o sistema da prova legal e o apelo a autoridades superiores.
Como os processos e julgamentos ficaram, com o decorrer dos tempos, a cargo dos
doutores da Igreja, toda a perspectiva empreendida pelo poder central contra os hereges
partia do pressuposto de defesa da Fé Católica, religião oficial dos Estados169 e, por
conseguinte, dos povos e do mundo, contra o mal ou o espírito diabólico que sempre
ronda o ser humano.170

169 Para confirmar essa primazia da defesa da Fé Cristã, até mesmo em


relação ao Poder dos Reis, basta notar nas Ordenações Afonsinas, em
seu Livro V, destinado à matéria criminal, que o Título I é destinado aos
Hereges, enquanto somente o Título II foi reservado aos crimes de lesa-
majestade. O mesmo se dá nas Ordenações Manuelinas, também no
Livro V, o Título II está destinado aos Hereges, enquanto o Título III
contém as punições de lesa-majestade. Nas Ordenações Filipinas, outra
vez no Livro V, o Título I abre com a significativa epítome “Dos Hereges
e dos Apóstatas”, restando a matéria religiosa, ainda, nos Títulos II a V,
destinando-se apenas e finalmente o Título VI aos crimes contra o poder
real (“Do crime de Lesa-Magestade”).
170 Leonardo Boff, ao prefaciar a tradução de Maria José Lopes da Sila da
obra de Frei Nicolau Eymerich, Manual dos Inquisidores – Comentários
de Francisco de La Peña, doutor em Direito Canônico e Civil, 2ª ed., Rio
de Janeiro, Universidade de Brasília e Rosa dos Tempos, 1993, pp.
11/12, assim se refere à “lógica férrea e irretorquível” da Inquisição: “Ao
instaurar a Inquisição, a Igreja produz e habilita esse discurso totalitário e
intolerante. Quem quiser entender o presente ‘Manual dos Inquisidores’
deverá imbuir-se dessa mentalidade e visão das coisas. Só assim fará
justiça a seus autores. Então tudo parece lógico e coerente. O inquisidor
é extremamente fiel e imbuído da melhor das intenções. A arquitetônica
de sua argumentação é irretorquível. É obra de mestre. Assim como
quem quiser entender a repressão e a tortura dos regimes militares
latino-americanos deverá entender a leitura da sociedade feita a partir da
ideologia da segurança nacional e repassada às mentes dos torturadores
e de seus mandantes. Da mesma forma as câmaras de gás e a limpeza
genética perpetradas pelo nazifascismo. Ou num nível maior, a cultura
ocidental, que foi incapaz de acolher a diferença e alteridade e que por
isso, historicamente, cometeu toda sorte de genocídios e exclusões,
ainda hoje, no processo de sua mundialização. Em todos esses
antifenômenos há uma lógica irretorquível. Em nome dela se excluem
outros, eventualmente até são mortos. Uma vez aceito o sistema de
idéias, tudo flui de forma férrea e coerente. É a verdade intra-sistêmica.
Evidentemente, cabe analisar o sistema. A boa intenção dos torturadores
certamente não é boa, pois produz a morte. O sistema é sacrificialista,
pois exige mais e mais vítimas para se manter. Como pode, como
pretende, ter o aval divino? Mas isso já é outra questão, não mais
analítica, mas ética e teleológica”.
Como afirmou FRANCO CORDERO, ao tratar dos impulsos dos julgadores no
sistema inquisitivo romano-canônico, o juiz, da posição impassível do sistema acusatório
e das ordálias, passa a ser o órgão responsável pela procura e punição dos “inimigos
ocultos”. Não mais obtempera, atua como agente principal. “Nasce uma mística”: a
necessidade de “escavar e extirpar a heresia ou os delitos”, “combatem-se potências
maléficas em uma cruzada cotidiana”, mérito dos juízes “se o mundo não é devorado pelo
diabo”, se eles fossem “neutrais” (imparciais) seriam “cúmplices do inferno”, qualquer
escrúpulo deve ser entendido como “preguiça” ou “indolência”. Surge uma ideologia, na
comunidade laica, de que “o próprio Deus aparece para a vingança” (“Deus ipse ad
vindictam exsurgit”) “quando os magistrados não punem suficientemente”.171
Essa introspecção judicial, ainda com CORDERO, gera a crença de que “o imputado,
culpado ou não, sabe coisas importantes” e que é necessário que o “analista entre em sua
mente, por cada possível brecha”.172

171 Franco CORDERO, Procedura cit., p. 23.


172 Franco CORDERO, Procedura cit., pp. 23/24.
O imputado, considerado herege já no início da persecução, com a delação ou
denúncia pelos membros da comunidade e, portanto, antes mesmo de qualquer
investigação, era o ser humano, o portador do “pecado original” e, exatamente por portá-
lo, sempre passível de um mal emergente ao mínimo descuido.173 Os inquisidores,
guardiões e garantidores da verdade, conheciam-na bem e ela era que todo herege é
culpado. A culpa vinha do fato da pessoa ser humana, sendo a heresia apenas um deslize
daqueles descuidados e não tementes ao deus ou aos desígnios políticos dos exercentes do
poder.
“No seu quadro cultural pessimístico, o animal humano nasce culpado: estando o
mundo contaminado, basta escavar em um ponto qualquer e aflora o mal. Este axioma
liquida todo o escrúpulo na investigação”.174
Por essa primeira e marcante característica da Inquisição não há como se negar que
no sistema procedimental a “culpa” do imputado está pressuposta, nunca a sua
inocência.175

173 Para demonstrar que o mal era inerente ao ser humano, não apenas ao
imputado, e se estendia por linha de sangue, o que viola o hoje
denominado “princípio da intranscendência” penal (a pena não deve
passar da pessoa do condenado), lembre-se da Instrução XI, de 1488,
feita pelo Inquisidor-Mor, Tomás de Torquemada, na qual os
descendentes dos condenados não podiam ter ofícios públicos ou
honrarias de qualquer natureza. Nesse sentido, v. a tradução de Mauro
Fonseca ANDRADE, Inquisição espanhola e seu processo criminal: as
instruções de Torquemada e Valdés, Curitiba: Juruá, 2006, p. 47. Tal
determinação prática e dirigida diretamente aos inquisidores espalhados
pela Europa tinha mais incidência que qualquer preceito legal em sentido
contrário. Seguramente havia preceitos no sentido de que o mal
praticado por uma pessoa não fosse transmitido aos descendentes do
agente condenado. Nesse sentido, v. a regra XVIII, da Partida VII, da Ley
de las Siete Partidas, no seu título final destinado às regras do direito: “E
disseram que a culpa de um não deve estender-se a outrem que não à
parte”. In verbis: “E dixeró que la culpa del vno non deue empecer a
outro que non ya a parte”. Para várias outras referências na Ley de las
Siete Partidas que se aproximam à noção do brocardo “in dubio pro reo”,
v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción de inocencia” del
imputado e “intima convicción” del Tribunal, Barcelona: Bosch, 1984, pp.
245/246. Porém, a lei espelhava muito mais um anseio do legislador do
que a realidade da vida cotidiana. Era mais um “dever ser” que o “ser” do
cotidiano judiciário. Tal qual já se tinha visto acontecer em Roma,
notadamente no Baixo Império, vários eram os preceitos então
favoráveis ao réu, mas, de fato, as prisões estavam cada vez mais
cheias e os procedimentos e as penas eram cada vez mais cruéis e
injustos (v. item 1.2.3 e seus subitens e item 1.2.4 supra).
174 Franco CORDERO, Procedura cit., pp. 24/25.
Isso contaminava de tal forma toda a condução do procedimento (fases
investigativa, instrutória e decisória) que o resultado (condenatório) já estava “fixado”,
antes mesmo do processo iniciar.
A lógica da “presunção da culpa”, sobre a qual se construiu o sistema inquisitivo
romano-canônico, tornava dificílima a absolvição.176

175 Nesse sentido, v.: Aldo CHIARA, Presunzione di innocenza, presunzione


di “non colpevoleza” e formula dubitativa, anche allá luce degli interventi
della Corte Costituzionale, Rivista italiana di diritto e procedura penale,
Milano, v. 1, gen./mar, p. 73, e Alessandro MALINVERNI, L’assoluzione
per insufficienza di prove, Studi in onore di Giuseppe Grosso, Torino, v.
3, 1970, p. 564, nota 16.
176 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 34, afirma, citando Caballas

(século XIII), que, a despeito deste último ter passado toda a sua vida
envolvido com causas penais, na prática nunca teria visto uma
absolvição por inocência. Em um raro estudo sobre as sentenças de
absolvição no “Antiguo régimen”, v. o trabalho de Pedro ORTEGO GIL,
Innocentia praesumpta: absoluciones en el Antiguo Régimen, Cuadernos
de historia del derecho, Madrid, 2003, v. 10, pp. 71/125, no qual o autor
esclarece que “dar-se por livre o acusado” não significava inocentá-lo,
pois, permanecia a possibilidade de voltar a ser processado em outro
feito, caso surgissem novas provas, indícios ou presunções (op. cit., pp.
74/80). Nesse sentido, v. Alexander GALLAHER HUCKE, La presunción
de inocencia y la presunción de voluntariedad, Santiago do Chile:
Editorial Jurídica ConoSur LTDA, 1996, p. 27, nota 67. Destaca Pedro
ORTEGO GIL que havia, ainda, principalmente por razões econômicas
voltadas ao custeio dos tribunais e juízes, a “absolvição de instância”,
pela qual o acusado era obrigado a “purgar” (por tortura ou por suplício)
eventuais indícios ou presunções que contra ele tivessem ou, em certos
casos cuja prova era mais tênue, era obrigado a assumir as custas e
pagar fiança para que fosse liberado do cárcere, retomando sua
liberdade (op. cit., pp. 79/83). Pedro ORTEGO GIL, em levantamento na
Real Audiência de Galícia, informa que: no século XVI, de 191
sentenciados, 19 (10%) foram absolvidos, sendo 15 da acusação
(absolvição plena) e 4 de instância; no século XVII dos 775
sentenciados, 107 obtiveram absolvição (13,8%), sendo que 47 foram
absolvidos da acusação e 60 de instância; durante o século XVIII, com
registros menos precisos, 873 pessoas foram julgadas, das quais 199
foram absolvidas (22,8%), sendo 173 da acusação e 26 de instância (op.
cit., pp. 76/77). Nos três séculos estudados, completa o autor espanhol
(op. cit., p. 77), dos 260 recursos processados, 42 deles (9,39%)
resultaram em absolvição, sem informar se plena ou apenas de
instância.
Não podia ser diferente. Se a culpa era inata ao ser humano (portador do pecado
original) e se, ainda, sobre ele houvesse denúncia, sua culpa potencial (portador do
pecado original), confirmava-se (materializava-se em ato) e, por meio da tortura,
oficialmente admitida e regulada, obtinha-se a confissão (a rainha das provas). Diante da
confissão (pouco importando se de conteúdo verdadeiro ou não), a aplicação da pena era
inexorável e, inclusive, permitia que o processo inquisitivo se instaurasse pelo rito
sumário.177 A confissão tornava o acusado o maior colaborador em sua condenação, o
que, na visão dos inquisidores, legitimava a decisão e os meios com os quais a ela se
chegou.
Para refrear ou minorar a sanha inquisitiva e as convicções inerentes ao pensamento
canônico-persecutório-punitivo dos inquiridores não se mostrava eficiente (convincente)
qualquer recomendação quanto à benevolência, à moderação ou que, em caso de dúvida,
o julgamento devesse ser favorável ao acusado.178 Isto porque, a dúvida era resolvida com
a utilização da tortura, meio pelo qual se obtinha aquilo que o inquiridor desejasse,
pouco importando ser o resultado verdadeiro ou não.179

177 Sobre o rito sumário do procedimento inquisitivo canônico, v. Alessandro


MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 34, e Vincenzo MANZINI, Trattato di
diritto processuale cit., pp. 65/67.
178 Franco CORDERO, Procedura cit., p. 34, aponta que nas Ordenações

Francesas, notadamente a de 1670, denominada por ele como um


“sofisticado tecnicismo” posto a serviço do algoz espírito romano-
canônico da Inquisição, caso houvesse empate nos votos para julgar o
acusado, prevalecia a opinião “plus douce”, o que já não sucedia, em
fase recursal, quando se impugnava em busca de pena “plus
rigoureuse”. Ainda sobre o comedimento na utilização das torturas e de
que não se deveria condenar alguém na dúvida, v. passagem de H.
Maisonneuve, citada por João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit.,
p. 127.
179 Conforme se verifica no item 1.4.1.2 infra. A caracterização da Inquisição

pela violência sem limites do inquisidor (“dominus”) sobre o interrogado


(objeto de investigação) na sua busca pelo poder (o saber representado
pelo “bem”) sem limites foi muito bem apreendida e exposta por Eugenio
RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., pp. 40/43.
Os teoremas sobre a culpa do imputado são elaborados “como deseja o inquiridor,
trabalhando em segredo sobre os animais confessantes: concebida uma hipótese,
edificam-se tramóias indutivas; a ausência de contraditório abre um vazio lógico sujeito a
pensamentos paranóicos; tramas destiladas eclipsam os fatos. Donos do jogo dispõem
sobre o tabuleiro como lhes convém: a inquisição é um mundo verbal similar ao onírico;
tempos, lugares, coisas, pessoas, eventos flutuam em quadros manipulados”. “Jogo
perigoso: o elucubrante compõe à mão livre, seletivamente atento ou surdo aos dados,
conforme convalidem ou não sua hipótese; e sendo as palavras uma matéria plástica, toda
conclusão resulta possível; o entusiasmo criador desenvolve um sentimento narcisístico
de onipotência no qual se esvai toda cautela autocrítica”.180
Nicolau Eymerich, em 1376, escreveu um “verdadeiro tratado sistemático” aos
inquisidores, o Directorium Inquisitorum (Manual dos Inquisidores), pelo qual se
estruturaram as regras de comportamento e conduta aos inquisidores/julgadores daquele
momento histórico do processo penal.
O ânimo persecutório dos julgadores pode ser bem percebido na Parte II daquela
obra, quando trata da “prática inquisitorial”, especificamente no item “E”, intitulado “os
interrogatórios”.
Nessa passagem, pela relação direta entre inquisidor e inquirido, depreende-se a
postura preconceituosa e antiética daquele, in verbis: “23. ‘Os dez truques do inquisidor
para neutralizar os truques dos hereges’. (...) 4. O herege – ou réu – não quer confessar. O
inquisidor sabe que os depoimentos das testemunhas não são suficientes como provas,
mas não faltam indícios de que é culpado. Neste caso, o inquisidor deporá contra ele. O
acusado nega? O inquisidor apanhará o seu dossiê, começará a folheá-lo atentamente,
dizendo, depois: ‘Claro que estás mentindo, eu é que tenho razão! E então? Dize a
verdade sobre teu problema’ (o truque consiste em fazê-lo ouvir que o dossiê realmente o
incrimina e que ele aparece como uma pessoa verdadeiramente culpada de heresia). Ou,
então, o inquisidor espantado, dirá: ‘Como podes negar: ainda não está bastante claro?’ E
começará a ler o papel, mudando o que achar melhor. Depois, dirá: ‘Eu é quem dizia a
verdade! Confessa logo, porque, como estás vendo, sei de tudo!’. Porém, o inquisidor, ao
proceder assim, deve tomar cuidado para não se deter muito nos detalhes, para que o
herege não perceba que o inquisidor, na verdade, ignora os fatos! Deve-se prender às
generalidades, dizendo, por exemplo: ‘Sabemos onde estavas, com quem, quando, e o que
dizias!’ E deve juntar tudo o de que tem certeza. (...) 7. Se o inquisidor perceber que o
herege não quer, absolutamente, dizer a verdade, não lhe fará promessas, tomando a
precaução de não liberá-lo sob fiança, porque as promessas não se revelariam úteis para
fazê-lo confessar. Soltar um herege sob fiança só tem uma conseqüência: permitir que se
corrompa mais, apenas retardando, afinal de contas, o desfecho do problema”.181

180 Franco CORDERO, Procedura cit., p. 25.


181 Manual cit., pp. 124/126.
Sobre esse trecho, de 1376, FRANCISCO DE LA PEÑA, outro inquisidor, faz, em
1578, o seguinte acréscimo: “XVI. Um comentário se impõe: não se há de objetar que
malícia é sempre proibido? Deve-se fazer uma distinção entre mentira e mentira, malícia
e malícia! A malícia cuja única finalidade é enganar deve ser proibida e não tem nada a
ver com a prática do Direito; mas a mentira que se prega judicialmente, em benefício do
Direito, do bem comum e da razão, é absolutamente louvável. Quanto mais, a mentira
que se prega para detectar a heresia, erradicar os vícios e converter os pecadores.
Lembremo-nos do julgamento de Salomão!”.182
Nesse pequeno trecho bem repousa a convicção pré-processual que animava a alma
dos inquisidores e, não é menos perceptível, a ética empreendida na Inquisição.

182 Manual cit., p. 126.


Assim, de todo irrelevantes passagens legais como a que se pode encontrar na
Legislação Espanhola de “Las Siete Partidas”, especificamente na Terceira Partida, Título
XIIII, denominado “Das Provas e das suspeitas que os homens aduzem em juízo sobre as
coisas negadas e duvidosas”, in verbis: “‘Lei XII. Como o pleito criminal não se pode
provar por suspeita se não em coisas determinadas’. Criminal pleito que seja movido
contra alguém por acusação ou por repto deve ser provado abertamente por testemunhos
ou por cartas, ou por consciência do acusado, e não tão-somente por suspeitas. O correto
é que o pleito movido contra a pessoa do homem, ou contra sua fama, seja provado e
averiguado por provas claras como a luz e que não sobrevenha nenhuma dúvida (...)”.183

183 Trecho extraído da Ley de las Siete Partidas, Livro III, cujo Título XIIII (o
número, em algarismo romano, consta dessa forma no original) tem o
seguinte texto: “Ley. XII. ‘Como el pleyto criminal non fe puede prouar
por fospecha fi non en cofas feñaladas’. Criminal pleyto que fea mouido
contra alguno em manera de acufacion o de riepto deuefer prouado
abiertamete por teftigos o por cartas, o por conocecia del acufado, e no
por fofpechas tanfolamente. Ca derecha cofa es que el pleyto que es
mouido contra la perfona del omne, o contra fu fama que fea prouado, e
aueriguado por prueuas claras como la luz en que non venga ninguna
dubda. (...)”. A Ley de las Siete Partidas, como preceitua José Henrique
PIERANGELLI, Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas,
Bauru, SP: Javoli, 1983, pp. 38/40: “Outra Obra de D. Afonso X, o Sábio,
foi a Lei das Sete Partidas, também sob influência do direito romano
renascido. A Lei das Sete Partidas, como o próprio nome está a indicar,
está dividida em sete partes, tendo sido elaborada com caráter
subsidiário em relação aos outros diplomas legislativos. Guilherme Braga
da Cruz afirma que as Sete Partidas se constituíram em ‘uma espécie de
Corpus Juris em castelhano’”. Augusto THOMPSON, Escorço cit., pp.
72/75, afirma que ao final do século XII e início do século XIII, Portugal e
Espanha passam por profundo embate entre o direito antigo e o direito
romano renovado, completando: “Esta revolucionária atividade jurídica
vai desembocar na adoção, como código geral, da Lei das Sete Partidas.
Compilação projetada por Fernando III, o Santo, Rei de Castela, com o
fim prescípuo de delir privilégios da fidalguia e atalhar os funestos efeitos
da anarquia feudal, foi começada em 1256 e terminada em 1263, já
reinando Afonso X, o Sábio, filho de Fernando. Papel fundamental na
sua elaboração tiveram os doutores da Universidade de Salamanca.
Extremamente metódico, pode ser considerado como o corpo mais
completo de Direito Público e Privado que se realizou entre as nações da
Europa por aqueles tempos”.
Este fragmento legislativo espanhol, assim como outros da mesma Lei das Sete
Partidas,184 não impediu que, naquele país, surgisse a mais violenta e radical manifestação
da Inquisição, a Inquisição Espanhola.185
Sobre o pressuposto da culpa, como base do procedimento inquisitivo romano-
canônico, ver que, nas Instruções de Tomás de Torquemada, feitas em Sevilha no ano de
1484, tratando-se de revelia, a determinação era a de que os “culpados ausentes” fossem
julgados à revelia, após algumas formalidades na tentativa de localizá-los. Como se vê, a
construção da concepção de “culpados ausentes”, já antes da citação, bem demonstrava o
fim a que o processo, inexoravelmente, chegaria.186

1.4.1.1.1. (segue): ônus da prova e momento decisório

A abrasividade e dureza do regime inquisitivo, advindas da inderrogável presunção


de culpa, manifesta-se tanto na aplicação do “favor rei” quanto do “in dubio pro reo”,
preceitos principalmente destinados ao momento decisório do juiz.
Nesse instante vigorava, para os juízes, um preceito “que hoje causa imenso espanto
e que se enunciava em latim: ‘In atrocissimis leviores conjucturae sufficiunt, et licet
judici jura transgredi’. Vale dizer, nos crimes atrozes, geralmente os mais difíceis de
apurar, ficava liberto das regras legais sobre as provas necessárias, e podia condenar com
base em elementos precários”.187

184 No mesmo sentido, v., ainda, disposições daquela legislação espanhola


na mesma Partida III, Título XI e XVI, Leis X e LV, respectivamente e, na
Partida VII, Títulos I, Lei XXVI e Título XXXI, Leis VII e IX.
185 No Malleus Maleficarum (Heinrich KRAMER e James SPRENGER, O

Martelo das feiticeiras: Malleus Maleficarum, Tradução de Paulo Fróes,


16ª ed., Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2002), p. 402, um dos cinco
mais importantes diplomas legais da Inquisição, encontra-se uma
passagem, quanto à qualidade dos testemunhos, em que se determina a
não aceitação da condenação com base em depoimentos contraditórios
entre si. Contudo, tal preceito que, inegavelmente, tem relação com o “in
dubio pro reo”, não deixa de ser severamente mitigado quando, mais
adiante (op. cit., pp. 411/412), ao tratar de como devem ser dirimidas as
dúvidas, esclarece-se que eventuais discrepâncias nos depoimentos, ou
até mesmo serem em número insuficientes, não devem impedir a
condenação se, a critério do julgador, houver evidências da feitiçaria, por
exemplo, cita-se na obra, quando um animal foi lesado ou privado de seu
leite.
186 Essa passagem pode ser obtida na obra de Mauro Fonseca ANDRADE,

Inquisição cit., p. 35, in verbis: “Assim mesmo determinaram que contra


os que acharem culpados no dito delito, se forem ausentes: os
inquisidores devem fazer seus processos citando-os por editos públicos
(...)”.
187 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., p. 31.
Quanto a isso, é importante observar que no período medieval a ciência do direito
criminal (penal e processual penal) não tinha a evolução técnico-jurídica de nossos dias.
Assim, havia um paralelismo um tanto simplório entre prova, culpabilidade e pena.
Somente se aplicaria a maior pena (“poena extraordinaria”) se a maior culpabilidade
(“culpa latissima” ou “dolus verus”, uma vez que não diferenciavam os delitos entre
culposos e dolosos) fosse demonstrada por meio de uma prova plena (“probatio plena”). A
pena seria tanto maior quanto maior fosse o grau de certeza que a prova produzida
trouxesse.188
Portanto, caso a prova não fosse plena, v.g., semiplena, indiciária ou por presunção,
haveria uma redução da pena, em decorrência da menor demonstração de culpabilidade,
não uma declaração de inocência plena.189
A dúvida do julgador, portanto, era quanto à inocência não provada pelo imputado,
não quanto à sua culpa, que era presumida desde o início da persecução, cabendo ao
acusado o ônus de provar em contrário.190

188 Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale e pena: la crisi del sistema tra
evo medio e moderno, Napoli: Jovene, 2000, pp. 41/44. No mesmo
sentido, v.: Pedro ORTEGO GIL, Innocentia cit., p. 74; Luigi
FERRAJOLI, Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, 3ª ed., Bari:
Laterza, 1996, p. 560 e nota 14; e Aury LOPES JÚNIOR, Introdução
crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade
constitucional, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 185.
189 Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale cit., pp. 181/185, tratando da
jurisprudência napolitana dos séculos XV e XVI, indica que a colheita de
provas em quantidade e qualidade insuficientes para uma condenação
às penas previstas em lei – em regra, de “galera” –, implicava até mesmo
no saneamento de eventuais nulidades processuais, tudo em face de
uma pena bem mais branda do que os parâmetros inquisitivos
estabeleciam à época. Como se disse acima (v. nota 176), com apoio em
Pedro ORTEGO GIL, Innocentia cit., pp. 78/89, havia várias espécies de
absolvições, sendo que apenas a “absolvição do crime”, também
conhecida por “absolvição da acusação ou de juízo” era aquela para a
qual não se aplicava qualquer sanção. Se houvesse mínimos indícios,
presunções ou apenas a “má fama” do imputado, ele seria, a critério do
juiz, obrigado a purgar, por meio de tortura ou suplícios leves, aqueles
elementos contra ele existentes. Podendo, ainda, ser obrigado a pagar
as custas processuais e uma fiança para ser libertado, deixando-se,
outrossim, em aberto, a possibilidade de ser submetido novamente a
outro processo pelo mesmo crime, continuando, portanto, com o ônus de
provar sua inocência (op. cit., pp. 79/82).
Portanto, diversamente do que hoje se entende por “in dubio pro reo”, na Inquisição
a dúvida do julgador/inquisidor não se resolvia pela absolvição (plena), mas por uma
condenação a uma pena menor ou, se nada houvesse contra o imputado, nem sequer má
fama, uma absolvição de instância.191

190 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção de inocência e prisão


cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, p.10, e Aldo CHIARA, Presunzione
cit., p. 73. Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., pp.
63/65, destaca que na fase investigativa, para crimes menos graves, se
o juiz/investigador colhesse provas tidas por ele como reveladoras de
uma culpa clara e inegável, poderia utilizar o rito sumário, no
procedimento inquisitivo, e aplicar diretamente uma pena, sem
necessidade de se iniciar um processo. Nada mais evidente para se
perceber a presunção de culpa ínsita à lógica inquisitiva e à psique do
julgador/inquisidor.
191 Sobre a “absolvição de instância” como antecedente histórico da
“absolvição por insuficiência de prova”, v. Mario PISANI, Introduzione al
processo penale, Milano: Giuffrè, 1988, pp. 66/72. Sobre a “absolvição
de instância” ser forma de perpetuar a pendência do julgamento à espera
da “prova plena”, a demonstrar cabalmente a culpa do imputado, não
raro se socorrendo de novas sessões de tortura, e sendo, portanto,
incompatível com o “in dubio pro reo”, v. Cristina Líbano MONTEIRO,
Perigosidade cit., p. 21 e notas. Sobre a “absolvição de instância” como
opção político-legislativa do sistema inquisitivo para decidir em caso de
dúvida por insuficiência de prova, v. Jaime VEGAS TORRES, Presunción
de inocencia y prueba en el proceso penal, Madrid: La Ley, 1993, pp.
201/202. Neste ponto repousa a origem do que ainda hoje temos em
nosso Código de Processo Penal, art. 386, inciso VII, a “absolvição por
falta de prova para condenar”. A diferença entre o passado e o presente
é que a absolvição, em nossos dias, se lastreada nesse dispositivo,
produz plenos efeitos na esfera penal. Porém não veda a propositura de
evental ação civil para reparação do dano ou, ainda, eventual sanção
administrativa. Indicando os efeitos de pagamento das custas
processuais para a absolvição por falta de prova para condenar como
uma evidência de uma “absolvição de segunda categoria” e de um
resquício de que a dúvida ainda marca o imputado com conseqüências
processuais negativas, v. Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio cit., pp.
144/146 e 150/151. Sobre o tema, v., ainda, Mercedes FERNÁNDEZ
LÓPEZ, Prueba y presunción de inocencia, Madrid: Iustel, 2005, pp.
162/163, e Francisco TOMAS Y VALIENTE, “In dubio pro reo”, Libre
apreciación de la prueba y presunción de inocencia, Revista Española de
Derecho Constitucional, Madrid, v. 7, n. 20, mayo/ago, 1987, pp. 11/14.
Sobre as críticas à sentença por insuficiência de provas em nosso atual
sistema processual, v. itens 2.5.2.4 e 5.4.1.3.1 infra.
Nos casos em que o imputado já tinha sido anteriormente condenado por outro fato
ou possuía má fama, a presunção de culpa aflorava mais evidente. Isto porque, alegada a
sua má fama, equivalente a um indício de culpa, ou sua reincidência, o imputado já partia
de uma condição passada que, mesmo nada tendo a ver com o fato a ser julgado, já lhe
conferia o ônus de contraprová-la, em verdadeiro ônus probatório de sua inocência.192
Se, portanto, não conseguisse agir no sentido de eliminar aquela dita condição
prévia de “malo” (má fama ou reincidência), a dúvida sobre sua inocência permaneceria e
ele não poderia ser “inocentado”. Restando-lhe, sempre a critério subjetivo do julgador, o
uso da tortura e, se esta também não se mostrasse eficaz, a “absolvição de instância”.

1.4.1.1.2. -(segue): prisão provisória como pena antecipada e como forma


de transferência de bens

A presunção de culpa não permitia melhor sorte ao imputado nesta fase histórica
também quanto ao “favor libertatis”.
As disposições legais eram no sentido de que somente dever-se-ia prender
cautelarmente após uma verificação sobre eventual verdade das delações e se os
inquisidores entendessem existentes provas suficientes para aquela medida preventiva.193
Contudo, também como em Roma, e tal qual antes se disse para o “favor rei” e para
o “in dubio pro reo”, eventuais preceitos legais de natureza restritiva e limitadora em
relação àquela medida cautelar pessoal não tinham ocorrência no cotidiano inquisitivo.
A prática se mostrava diferente. A prisão das pessoas ocorria antes mesmo que se fizesse a
verificação sobre se havia ou não verdade na notitia de heresia levada por particulares
aos inquisidores.194

192 Na Partida VII, da Ley de las Siete Partidas, última parte, destinada às
“reglas del derecho”, está definido na regra XXXIII que “aquele que foi
uma vez dado por mau, sempre se deve tê-lo como tal, até que se prove
o contrário”, in verbis: “E aun dixeron que el q es vna vez dado por malo,
fiempre lo deue tener por tal, afta q fe pueue lo contrario”.
193 Instruções de 1488, do Inquisidor-Mor, Tomás de Torquemada,

traduzidas por Mauro Fonseca ANDRADE, Inquisição cit., p. 53.


194 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., p. 10.
Como se vê, assim como na fase romana, a prisão provisória não tinha nenhum
cunho processual, mas era uma antecipação de pena, acompanhada de expropriação de
bens dos presos “provisórios”.195 A prisão, em regra, já se dava no início da persecução e,
por tempo indeterminado, se estendia até seu fim.196

“As prisões da Inquisição viviam abarrotadas de presos, grande número dos


quais ainda não tivera nenhuma acusação feita contra eles. Podiam ficar
encarcerados durante anos, sem ao menos saber a transgressão de que se dizia
que eram culpados. Enquanto isso, eles e suas famílias eram privados de toda a
propriedade, pois a prisão era invariavelmente seguida do imediato confisco de
todos os pertences do acusado – tido, desde a casa até os pratos e panelas. E
enquanto o homem definhava na prisão, ainda sem nenhuma acusação feita,
suas posses eram vendidas para pagar sua manutenção no cativeiro”.197

A prisão no curso persecutório, portanto, servia não apenas a desígnios de uma


maior e antecipada punição, mas, outrossim, como forma de transferência de riqueza do
suspeito/preso ao poder, ao qual estivesse o magistrado vinculado (imperial ou
eclesiástico). Em um momento histórico, no qual o processo penal é usado como
instrumento de busca de maior proteção e expansão das políticas dominantes (estatais ou
religiosas), o resultado econômico que se podia extrair do procedimento inquisitivo não
pode ser desconsiderado como um dos principais motivos de a prisão cautelar ser a regra
do sistema implementado pelo poder expropriante.198

195 Sobre a expropriação de bens como decorrência automática da prisão


provisória, v. as Instruções de Valdés, de 1561, também traduzidas por
Mauro Fonseca ANDRADE, Inquisição cit., pp. 102/103.
196 Ana Lucia SABADELL, Tormenta juris premissione: tortura e processo
penal na Península Ibérica (séculos XVI - XVIII), Rio de Janeiro: Revan,
2006, tratando da Ley de las Siete Partidas, assevera, com base em
passagens legais desse diploma, que tanto no procedimento acusatório
(op. cit., p. 92) quanto no procedimento inquisitivo (op. cit., p. 98), ambos
presentes naquela legislação, a prisão cautelar no início do
procedimento era a regra. Sobre ser regra a decretar-se no início do
processo e sua duração ser indeterminada, v. Giuliano AMATO,
Individuo e autorità nella disciplina della liberta personale, Milano:
Giuffrè, 1967, pp. 179/180.
197 Passagem, sobre a Inquisição Espanhola, de Michael BAIGENT e
Richard LEIGH, A inquisição, tradução de Marcos Santarrita, Rio de
Janeiro: Imago, 2001, p. 80. Nesse mesmo sentido, João Bernardino
GONZAGA, A inquisição cit., p. 29.
198 Sobre o processo penal como instrumento de expansão econômica do
poder central, Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 361 e 388.
Nas determinações (jurisprudenciais, doutrinárias e/ou legais) em se aplicar, ou não,
a prisão provisória como regra, reside mais um aspecto marcante do conflito interno
vivido pelo sistema procedimental da Inquisição. Enquanto havia uma preocupação de se
fixar regras escritas,199 a fim de se garantir a liberdade como regra, a prática cotidiana se
mostrava diversa.

199 Exemplo de preceito legal dirigido a todos os julgadores sobre ser regra
a liberdade e não a prisão ou a condenação, v., os determinados pela
Ley de las Siete Partidas. Na parte destinada às regras de direito, fixava-
se como a primeira regra a determinação de que a liberdade sempre
deveria ser favorecida, por ser da natureza dos homens e dos animais.
Preceituava a “Regla j”, in verbis: “E dezimos que regla es de derecho, q
todos los fudgadores deuen ayudar ala libertad, porq es amiga dela
natura: que la aman non tan folamente los omes, mas aun todos los
otros animales”.
A estrutura da lógica canônica implementada no procedimento penal não permitiria
aceitar a liberdade (ou inocência) como regra. As medidas cautelares (pessoais e
patrimoniais) eram obrigatórias200 e executadas antes mesmo da formalização de uma fase
pré-processual de investigação.
Se a pressuposição da culpa, intrínseca à alma humana, induz um processamento
com fim já “encomendado”, não haveria porque, no curso procedimental, não se ir
expropriando (da liberdade e dos bens) o herege.

200 Assim como ocorrente já em fase romana do Dominato, também para o


período inquisitivo medieval e as legislações que lhe deram suporte, a
prisão não era obrigatória a todos. Havia exceções. Como exemplo muito
próximo à história jurídico-criminal brasileira, veja-se, nas Ordenações
Filipinas, o seu Livro V, Título LXVII, denominado “Em que casos os
Cavaleiros, e Fidalgos, e semelhantes pessoas devem ser presos”:
“Mandamos que os Fidalgos de Solar, e cavaleiros, e os Nossos
Desembargadores, e os Doutores em Leis, ou em Degredos, ou em
Física, feitos em estudo universal por exame (e suas mulheres, enquanto
com eles forem casadas, ou estiverem viúvas honestas depois de suas
mortes) não sejam presos em ferro, se não por feitos, em que mereçam
morrer morte natural, ou cruel; e por os outros, em que não caiba a dita
pena de morte, serão presos sob suas menagens (palavra ou juramento,
empenhado pelo próprio acusado ou por outrem de ilibada reputação,
que serviam para substituir a prisão física do imputado), as quais devem
prestar aos juízes que os prenderem, ou mandarem prender, os quais
lhe tomarão as ditas menagens, e lhe darão por prisão o Castelo da
Cidade, ou Vila, ou a sua Casa, ou Cidade, ou Vila, ou lugar, segundo for
a qualidade do crime, e caso, por que o prender. (...) 3. E mandamos que
os Fidalgos de grandes estados, e poder, não sejam presos em nenhum
caso, sem Nossos especiais mandado. E quando tais casos
acontecerem as Justiças No-lo farão saber, declarando-Nos as culpas
que deles tiverem, para nisso Provermos como for justiça” – acrescemos
para explicar. Como se percebe, a criação do sistema inquisitivo na
Roma Imperial para acabar com os privilégios e desigualdades de
tratamento entre os acusados, ainda na fase medieval não tinha atingido
seu falacioso desiderato. As diferenças sempre existiram e, em um
sistema arbitrário e punitivo, são elas cada vez maiores e mais sentidas.
Essas razões, que fundamentavam a prisão preventiva obrigatória (antecipação de
pena e transferência de bens), têm como fundo único o fato de se aceitar que o imputado
é o culpado desde o início da persecução. Como se verificará no próximo capítulo,201 foi
com base na mesma premissa (presunção de culpa) que se construiu o código de processo
penal italiano fascista de 1930 e, por decorrência, o atual código processual brasileiro
getulista de 1940.202
Essa é mais uma demonstração de como a presunção de culpa e o direito penal do
inimigo, ambos gestados no direito romano, perpassaram e foram incrementados pela
Inquisição e, em regimes autoritários, sempre são repristinados em maior ou menor grau,
com uma ou outra aparência e justificativa.

1.4.1.2. A lógica inquisitiva na busca da prova: prova legal e tortura

Como segunda característica que matiza e explica a Inquisição, tem-se o


instrumental concebido e posto à disposição dos magistrados, leia-se, detentores do poder
e implementadores de desígnios políticos e religiosos, para obtenção de provas.
Conforme já destacado, se havia, na concepção de então, uma cruzada cotidiana
para salvar as almas dos hereges, qualquer meio nessa busca era válido, não havendo
limitação ética ou moral na consecução desse desiderato.203

201 Nesse sentido, v., de modo especial, itens 2.4.4, 2.4.5 e 2.5.2.2 infra.
202 A redação original do art. 312 do Código de Processo Penal brasileiro de
1941, preceituava: “A prisão preventiva será decretada nos crimes a que
for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior
a dez anos”. Como se percebe, e será adiante melhor exposto (item
2.5.2.2 infra), essa prisão não se justificava por qualquer fundamento
processual, mas derivava automaticamente da imputação de um crime
grave, por decorrência única da pena ser igual ou superior a dez anos.
Não se aceitava qualquer alegação de dúvida sobre a culpa do ainda
acusado, bastava a imputação, nada mais. Daí decorria, ipso facto, a
necessidade da prisão. Esse instituto, assim como era utilizado,
demonstra claro sistema apoiado na presunção da culpa. Sobre a
violação que essa caracterísitica da obrigatoriedade gera na presunção
de inocência, v. item 5.4.2.1 infra.
203 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., p. 41, bem aponta que no

interrogatório todo o bem estava em se obter do interrogado (objeto de


investigação) a verdade que se desejava. O mal era se impedir que essa
busca pela verdade acontecesse.
Nessa linha, o corpo dos imputados foi a primeira fronteira a ser rompida.204 A
tortura, já presente no processo penal romano do Baixo Império, é utilizada
largamente.205 Contudo, se na fase romana os grandes inimigos eram os traidores e
invasores, entre os séculos XIII e XVII àquelas figuras foi acrescida a do herege,
representação física da ameaça aos domínios da Igreja.
No procedimento inquisitivo canônico a prova legal e a tortura passaram a ser as
maiores características.206
O sistema da prova legal ou “tarifada”, implementado nesse período, pretendia
diminuir o arbítrio dos julgadores. Com ele, previa-se em lei, de forma minudente, o
valor de cada prova, sua classificação (plena, semi-plena, perfeita, imperfeita e, também,
valores para os indícios e presunções)207 e, ainda, fixava-se em que quantidade e
qualidade eram necessárias para cada espécie de decisão (condenação, absolvição plena,
absolvição de instância, etc.).208
Esse sistema da prova legal não se destinava apenas a fixar a decisão de mérito
(condenação ou absolvição) do acusado. Também era prescrito ao julgador, a fim dele
saber quais os procedimentos a serem seguidos (p.ex., rito sumário ou ordinário) e,
também, o nível de autorização que possuía para determinar a tortura (“tormentos”), a
fim de dirimir eventuais dúvidas sobre a culpabilidade do imputado. Fixavam-se
pressupostos para se proceder à tortura.209
De um modo geral, pode-se afirmar que era necessário um mínimo de elementos
para que o juiz iniciasse a investigação pré-processual, a qual se realizava em sigilo.

204 Para a mentalidade inquisitiva canônica, como destaca Alessandro


MALINVERNI, Principi cit., pp. 472/473, a violação física do corpo
pouquíssimo significava se comparada com o “objetivo último” de salvar
a alma da pessoa.
205 Sobre o ingresso paulatino da tortura no sistema inquisitivo canônico,

inicialmente de modo moderado e uma única vez, com a Bula Ad


Extirpanda, do Papa Inocêncio IV, e depois com seu alargamento para
todos os casos e com permissão para repetições, v. João Bernardino
GONZAGA, A inquisição cit., pp. 124 e ss.
206 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 376/377. V., também, nota 168 supra.
207 Sobre a relação entre o sistema da prova legal e “presunção”, no direito

medieval, e como isso caminhou até a formação iluminista da expressão


“presunção de inocência”, v. item 1.5.4.1 infra.
208 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 37/39; João Bernardino

GONZAGA, A inquisição cit., pp. 29/31; Giorgia Alessi PALAZZOLO,


Prova legale cit., pp. 3/24; e Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade
cit., pp. 30/33.
209 Para a Península Itálica, por exemplo, Alessandro MALINVERNI,

Lineamenti cit., p. 35, afirma que havia pressupostos positivos (a certeza


do crime e indícios de culpabilidade) e pressupostos negativos (a falta de
uma prova plena de culpabilidade e a falta de qualquer outro meio de se
obter a prova).
Após essa fase de busca de elementos de convicção, o magistrado, já convencido da
ocorrência da heresia ou da infração e sua autoria, formalizava o início do processo pelo
qual o acusado seria julgado. Dependendo do sistema e do momento histórico, já nessa
fase se dava vistas ao acusado dos elementos de convicção contra ele colhidos, a fim de se
defender. A regra, contudo, era que tudo corresse em sigilo, também nessa segunda fase
do julgamento.
Provas testemunhais e documentais eram colhidas pelo julgador também nessa
última fase citada, assim como poderia se proceder à consulta a técnicos jurídicos
(clérigos de reconhecida capacidade jurídica ou doutores das Universidades européias).
Ainda nessa fase, em regra sigilosa, o acusado era interrogado para que confessasse. Caso
isso não ocorresse, e o número de provas atingisse o que a lei entendia como suficiente
para formar uma “certeza da culpa” do acusado, o juiz decidia pelo encaminhamento do
réu à tortura, a fim de que confessasse o crime do qual, insista-se, já havia a certeza do
seu cometimento e de sua culpa. Buscava-se, por meio da tortura, apenas a legitimação
daquela “certeza prévia”.210
Nessa decisão, ainda como parte do sistema da prova legal, o juiz deveria indicar, de
acordo com as características do caso e da pessoa a ser torturada, qual o método de
tortura a ser empregado, sua intensidade e duração, assim como deveria zelar pela
integridade física do torturado, valendo-se, inclusive, se necessário, de médicos. Se fosse
mais de uma as pessoas a serem torturadas, também a lei fixava a ordem a que seriam
submetidas à “questão judiciária”.211
À tortura, nos mesmos moldes lógicos empreendidos para as ordálias, não eram
submetidos os acusadores do povo (delatores, denunciadores, etc.) e muito menos o juiz
que, no procedimento inquisitivo, também era o investigador/acusador.

210 René GARRAUD, Compendio cit., p. 42, informa que a tortura nessa
época era tão comum e generalizada para todos os casos e países que
era denominada “simplesmente na linguagem usual” de “questão
judiciária”. Informa aquele autor (op. cit., p. 43), ainda, que a Ordenação
Criminal francesa de 1670, que regulamentou todo o processo inquisitivo
naquele país, determinava que houvesse três interrogatórios, um antes,
um durante e outro depois das sessões de tortura. Veja-se como esse
aumento progressivo de subsumíveis à tortura acompanhou a mesma
racionalidade romana quando da criação da tortura como meio de
“obtenção da verdade”. Sobre esse ponto, v. item 1.2.3.1.2. supra.
211 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 34/37.
Tal qual nas ordálias, eram submetidos à tortura os acusados e, eventualmente, suas
testemunhas, caso fossem contraditórias (entre si ou com as testemunhas da acusação).
Contudo – e continua o paralelo com as ordálias – não eram quaisquer acusados os
passíveis de tortura, pois se excluíam os nobres, os militares, os membros do judiciário,
exceção feita aos crimes graves, nos quais todos podiam ser submetidos a ela.212

212 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 35. Ana Lucia SABADELL,


Tormenta cit., p. 289, ao tratar da tortura na Catalunha, destaca o
privilégio da imunidade da tortura de que, em 1380, gozavam os barões
e os ‘milites’, exceção feita aos crimes de lesa-majestade (divina ou
humana), nos quais todos poderiam ser submetidos à tortura.
A crueldade e a extrema violência desse método de obtenção de prova, como é
cediço, levam a todos, mais cedo ou mais tarde, à confissão, pouco importando se ela
contém ou não a verdade.213 Essa falta de veracidade dos interrogatórios/depoimentos
obtidos sob tortura já era sabida pelos inquiridores, juízes e legisladores.214

213 Cesare BECCARIA (cujo verdadeiro nome era Cesare Bonesana,


ficando conhecido pelo pseudônimo Cesare Beccaria por tê-lo utilizado
para se proteger contra represálias quando da publicação de sua obra,
em 1764), em Dos delitos e das penas, tradução de Paulo M. Oliveira, 6ª
ed., São Paulo: Atena, 1959, Biblioteca Clássica, v. 4, capítulo XII,
intitulado “Da Tortura”, pp. 67/70, foi um dos primeiros a destacar que a
tortura não revelava a verdade, mas apenas infligia sofrimento ao
torturado, absolvendo os que resistissem e condenando os que não a
suportassem, independente de serem culpados ou inocentes. Como um
dos precursores do racionalismo iluminista para a área criminal (penal e
processual penal), Beccaria expôs uma lógica que desqualificava a
tortura como meio de se buscar a verdade, in verbis: “A única diferença
entre a tortura e as provas de fogo é que a tortura só prova o crime
quando o acusado quer confessar, ao passo que as provas queimantes
deixavam uma marca exterior, considerada como prova do crime.
Todavia, essa diferença é mais aparente do que real. O acusado é tão
capaz de não confessar o que se exige dele, quanto o era outrora de
impedir, sem fraude, os efeitos do fogo e da água fervendo. Todos os
atos da nossa vontade são proporcionais à fôrça das impressões
sensíveis que os causam, e a sensibilidade de todo homem é limitada.
Ora, se a impressão da dor se torna muito forte para ocupar todo o poder
da alma, ela não deixa a quem a sofre nenhuma outra atividade que
exercer senão tomar, no momento, a via mais curta para evitar os
tormentos atuais. Dessa forma, o acusado já não pode deixar de
responder, pois não poderia escapar à impressões do fogo e da água. O
inocente exclamará, então, que é culpado, para fazer cessar torturas que
já não pode suportar; e o mesmo meio empregado para distinguir o
inocente do criminoso fará desaparecer tôda diferença entre ambos. A
tortura é muitas vêzes um meio seguro de condenar o inocente fraco e
de absolver o celerado robusto. É êsse, de ordinário, o resultado terrível
dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade, dêsse uso
digno dos canibais, e que os romanos, malgrado a dureza dos seus
costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de
um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado. De dois homens,
igualmente inocentes ou igualmente culpados, aquêle que fôr mais
corajoso e mais robusto será absolvido; o mais fraco, porém, será
condenado em virtude dêste raciocínio: ‘Eu, juiz, preciso encontrar um
culpado. Tu, que és vigoroso, soubeste resistir à dor, e por isso eu te
absolvo. Tu, que és fraco, cedeste à fôrça dos tormentos; portanto, eu te
condeno. Bem sei que uma confissão arrancada pela violência da tortura
não tem valor algum; mas, se não confirmares agora o que confessaste,
Assim, como que para expurgar as influências da extrema dor física a que eram
submetidos, determinava-se que a confissão feita sob tortura, para ser válida como a
prova prevista em lei como a “rainha das provas” (“probatio probatissima”), deveria ser
ratificada diante do juiz em local e data diversos daqueles em que se empreenderam os
atos de tortura.215
Passada a dor, refeito o torturado, se ele não ratificasse a confissão diante do juiz,
seria reenviado a novas sessões de tortura quantas vezes fosse necessário para que
ratificasse sua confissão diante do juiz e “longe” do espetáculo e das dores das
tormentas.216

far-te-ei atormentar de novo’ (...) Resulta ainda do uso das torturas uma
conseqüência bastante notável: é que o inocente se acha numa posição
pior que a do culpado. Com efeito, o inocente submetido à tortura tem
tudo contra si: ou será condenado, se confessar o crime que não
cometeu, ou será absolvido, mas depois de sofrer tormentos que não
mereceu. O culpado, ao contrário, tem por si um conjunto favorável: será
absolvido se suportar a tortura com firmeza, e evitará os suplícios de que
foi ameaçado, sofrendo uma pena muito mais leve. Assim, o inocente
tem tudo a perder, o culpado só pode ganhar”. Na esteira do
pensamento deste autor, veio, já à época, VOLTAIRE, em famosos
comentários que fez à citada obra, os quais podem ser encontrados na
obra VOLTAIRE, Comentario al libro “De los delitos y de las penas”,
Madrid: Alianza Editorial, 1998.
214 No sentido de que pela tortura se extrai o que se quer, não a verdade,

deve-se destacar a passagem das Ordenações Manuelinas, Livro V,


Título LXIV, denominado “Dos tormentos, e em que casos eram dados
aos Fidalgos e Cavaleiros”, pela qual se estabelece que a confissão
obtida mediante tortura deverá ser ratificada perante o juiz em local
diverso daquele onde houve a tortura “e ainda se deve fazer a ratificação
depois do tormento por alguns dias, de tal modo que já o dito preso não
tenha dor do tormento que houve; de outro modo se presume por Direito,
que com dor, e medo do tormento que houve, a qual ainda nele dura
receando a repetição, ratificará a dita confissão, ainda que verdadeira
não fosse”. No mesmo sentido, já fixava as Ordenações Afonsinas, Livro
V, Título LXXXVII, item 5 e, ao depois daquela, vieram na mesma esteira
as Ordenações Filipinas, Livro V, Título CXXXIII, denominado “Dos
Tormentos”.
215 João Bernardino GONZAGA, A inquisição cit., p. 124, e Cesare

BECCARIA, Dos delitos cit., p. 68, em trecho citado duas notas acima.
216 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 36.
Em raras hipóteses de grande resistência física do torturado, se ele não confessasse
nas seguidas sessões de tormentos e, ainda, se contra ele não houvesse elementos
significativos de sua culpa, p.ex., houvesse apenas indícios ou má fama, havia uma
tendência em absolvê-lo.217 Nunca é demais lembrar que a valoração e produção dos
elementos de convicção estavam a cargo do juiz/inquisidor, a quem competia, portanto,
em última análise, definir se havia ou não elemento probatório ou indiciário suficiente
para a condenação ou para uma absolvição de instância.
Dessa forma, de ordinário, assim estava disposta a lógica na obtenção da prova:
atingido um mínimo plausível para a instrução, restava ao acusado provar sua inocência.
Completamente inaplicáveis, nesse passo, os preceitos do “favor rei” ou do “in dubio pro
reo”, vigia claro o pressuposto da culpa.218
Caso não provasse a sua inocência, restando pendente de refutação os elementos de
investigação colhidos pelo juiz na fase preliminar de verificação da notitia criminis,
deveria confessar o crime. Negando-se a confessar, diante da certeza trazida por aqueles
elementos, e com eventual acréscimo de mais provas colhidas na instrução judicial, o
acusado era submetido à tortura até que confessasse e, depois, ratificasse sua confissão.

217 Nesse sentido, v. o valioso estudo de Pedro ORTEGO GIL, Innocentia


cit. pp. 85/87.
218 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 37/38, aponta que o
sistema da prova legal também trouxe preceitos que determinavam,
repristinando o que já vigia em Roma, “actore non probante reus
absolvitur”. Contudo, tal preceito não parece ter sido aplicado na fase
inquisitiva, visto que no procedimento inquisitivo quem começava o
processo era o próprio juiz, na dupla função acusador/julgador, logo, é
ilógico aceitar que o julgador, como regra de julgamento, entenderia que
sua incúria em provar deveria implicar na absolvição do acusado.
Máxime, se notarmos que tinha à sua disposição a tortura para obter a
confissão do acusado e, com isso, tê-lo como colaborador (porque
confessou) em sua própria condenação. No mesmo sentido daquele
autor italiano, e para o qual também servem as mesmas críticas (os
diversos mundos legal e prático), v., ainda, João Bernardino GONZAGA,
A inquisição cit., p. 127. No sentido de, como nós, entender que na fase
da prova legal e da tortura não havia espaço para o “in dubio pro reo”,
v.: Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade cit., pp. 30/35 e 49;
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 162/163; e Francisco
TOMAS Y VALIENTE, “In dubio pro reo” cit., pp. 11/14. Sobre a
impossível aplicabilidade, por diferenças lógicas e ideológicas, do “in
dubio pro reo” no sistema da prova legal, v. Giuseppe BETTIOL, La
regola “in dubio pro reo” nel diritto e nel processo penale, in Giuseppe
BETTIOL, Scritti giuridici, Padova: CEDAM, 1966, t. 1, pp. 307/310.
Da culpa pressuposta, nascida do espírito do juiz/inquiridor, passava-se à culpa
demonstrada pelo juiz/investigador/acusador no início do procedimento. Com isso,
inexoravelmente, buscava-se a confissão a fim de que, participando e colaborando com
sua própria condenação (porquanto confessara), o sistema inquisitivo se legitimasse.219

1.4.3. -Inexistência de presunção de inocência no modelo processual da


Inquisição

Da análise dos instrumentos empreendidos pelo sistema processual da Inquisição,


notadamente de seu momento histórico final, para a busca do que entendiam ser a
“verdade”, não se pode concluir algo diverso da inexistência de qualquer sinal de
presunção de inocência.
Como o sistema tinha como pressuposto um ser humano como o cerne e a fonte de
todo o mal e o inimigo do Estado, não haveria espaço para qualquer aceitação efetiva da
idéia de sua presunção de inocência.
Aliás, para se confirmar/verificar essa irrefragável postura sistêmica, basta ver que o
que se punia ou se buscava coibir era a heresia. Logo, ela era o que se deveria demonstrar
ao final da persecução. Deveria, portanto, integrar a conclusão do procedimento
persecutório. Porém, a heresia já era posta no início da investigação. Isto porque, em
todos os diplomas legais inquisitivos e, outrossim, nos diversos “manuais inquisitivos”, o
investigado/delatado, desde o instante da notitia levada por qualquer do povo, logo, antes
mesmo do início de uma verificação preliminar realizada pelo inquiridor, já era tratado
sob a denominação de “herege”.

219 Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale cit., pp. 37/44.


Assim, o que deveria ser apenas o resultado da conclusão, extraído após toda a
persecução, repousava já na denominação dada ao imputado desde o primeiro instante da
investigação (fase persecutória extraprocessual). Partia o imputado da condição de
herege. Não poderia ser mais evidente ao sistema a pressuposição de sua culpa.220
Em um sistema tão vinculado à presunção de culpa, todos os institutos processuais
são criados e operados para que em nada favoreçam a posição contrária, qual seja, a
presunção de inocência. Aliás, talvez seja a Inquisição o mais perfeito antípoda do que se
deva entender por um sistema fundado na presunção de inocência.

1.5. -Iluminismo: revolução proporcionada pela inscrição legal da


“presunção de inocência”

O procedimento inquisitivo, em sua versão medieval, desde seu resgate da cultura


romana (séc. XII), passando por sua inserção paulatina e sua primazia como sistema mais
usado (séc. XIII), até sua incidência, com quase exclusividade, em toda Europa
Continental (até o último terço do séc. XVIII), teve quase seis séculos e meio de história.

220 Hélio TORNAGHI, Instituições cit., pp. 490/491, após buscar expor
vantagens e desvantagens, justificativas e abusos da Inquisição Cristã,
após esclarecer todo o espírito cristão que a levou a ser um avanço no
processo penal da época, termina com essas palavras que, em muito,
servem ao encerramento deste item: “Por mais aparelhados que
estivessem os juízes, não era de esperar que, com tamanha soma de
poderes, não aparecessem alguns para deslustrar a instituição. Conrado
de Marburgo, João Galand, Roberto, o Bugre, Foulques de São Jorge e
outros monstros teriam de deturpar e comprometer o tribunal
eclesiástico. Pouco importa que ele tivesse milhares de juízes padrões
de justiça e de mansuetude. Se, ‘por sua organização’, ele ensejasse um
só capaz de cometer as mais graves injustiças e os atos mais
desumanos, sinal seria de que essa organização falhava.
Desgraçadamente não foram poucos os inquisidores cruéis e totalmente
afastados daquele espírito cristão que havia ditado, alguns séculos
antes, os movimentos e as palavras de misericórdia de Santo Ambrósio
e Santo Agostinho em favor dos hereges, mesmo dos que sacrificaram
os cristãos; (...) Mas a verdade deve ser dita sempre e sem restrições e
o amor à verdade obriga a reconhecer que os abusos foram sem conta e
nem sempre reprimidos. Pobres homens! Que seria da Igreja se não
fosse sustentada de cima? Que destino teria tido se repousasse nos
ombros enfraquecidos dos homens? Conta-se que Napoleão ameaçava
Pio VII de acabar com a Igreja e que o Pontífice lhe respondera: –
Majestade, é impossível! Nós, padres, há dezenove séculos que
tentamos fazê-lo e não conseguimos. Verdade ou não, a anedota é muito
eloqüente”.
Se todo sistema inquisitivo, cedo ou tarde, conduz à sua deslegitimação devido às
suas falhas intrínsecas (lógicas e psicológicas), a Inquisição foi mais além, foi ao cume da
violência institucionalizada pelos povos, até então tidos como os mais civilizados.
Foi desse final destemperado e ilegítimo que restaram as maiores marcas e lições do
que não deve ser um sistema processual penal minimamente equilibrado e justo. Foi com
a Inquisição que o processo penal conheceu, em tantos povos e por tão longo tempo, sua
pior forma.
Os anseios iluministas não desconsideraram, para fazer severas críticas, como o
espírito inquisitivo forjou e utilizou o processo penal (inquisitivo) como instrumento de
exercício do poder político estatal para imposição de seus desígnios e controle
(aparentemente legalizado) dos seus adversários (opositores e hereges).221 Os
reformadores perceberam que o sistema criminal da Inquisição (direito e processo
penais) era a maior fonte de exemplos dos abusos e desmandos da política estatal até
então reinante. Portanto, após dele haurirem os fundamentos fáticos para suas críticas ao
desprezo para com o ser humano, foi para ele que dirigiram suas maiores preocupações e
desejos reformistas.
Contudo, antes de se discutir um novo sistema processual penal, e até mesmo
porque as reformas empreendidas no curso do século XVIII foram mais profundas que
apenas uma mudança naquele sistema, tornou-se necessário definir primeiro quais as
novas bases político-filosóficas sobre as quais a sociedade deveria ser erigida.
Os pensadores dessa nova corrente não eram apenas homens de leis, e não desejam
apenas a substituição do procedimento penal da Inquisição. Eram filósofos, escritores,
historiadores, diplomatas e, também, juristas, que expunham toda a sua insatisfação com
o status quo político, social, econômico e, por conseguinte, jurídico. Insurgiram-se contra
o predomínio do poder central em todos os campos, e do seu total descomprometimento
com os interesses e necessidades da população.
Limitando-se apenas ao que releva ao presente estudo, a maior alteração foi quanto
ao novo dimensionamento que se deu ao indivíduo diante do poder estatal central.
Para essa nova corrente filosófica, encetada nos séculos XVI e XVII, o ser humano
não deveria ser mais visto como inimigo do Estado, mas como fonte e destino de seu
poder. Ao lado da consciência da necessidade de um ente supra-individual (Estado) com
dever de reger e proteger a sociedade para garantir sua melhoria e aperfeiçoamento,
colocou-se, com a mesma importância, o ser humano, início e fim desse agir estatal.
Início, por ser ele, como integrante do corpo social, a única fonte legítima do poder,
apenas exercido pelo Estado. Fim, porquanto deve ser em seu favor e para sua melhoria
de condições que o Estado deve atuar.
Dessa forma, para aquela corrente filosófica, qualquer agir estatal que não tivesse
em vista a mais profícua ação em favor do indivíduo se deslegitimaria na origem, pois o
Estado agiria em interesse próprio ou contra o indivíduo, desmerecendo o poder que a
ele o cidadão conferiu.

221 Nesse sentido, v. item 1.4 supra.


Nessa transformação político-filosófica sai de cena o Estado machiavelliano,222 cuja
autoridade advinha de um direito natural ou hereditário e poderia ser exercida sem
limites e em prejuízo do cidadão. Passa-se a uma teoria contratualística,223 que fundava a
origem da autoridade estatal na consciente renúncia do povo de parte de sua liberdade
natural em favor de um ente maior e supra-individuial (Estado) que garantisse uma vida

222 Referência a Nicolau Machiavel (Niccolò di Bernardo Machiavelli, 1469-


1527), historiador e diplomata que, com sua obra “O príncipe” (1532),
divulgou o pensamento reinante de que a autoridade do Estado advém
da força (em caso de conquista) ou hereditariamente, devendo o
governante empreender todos os instrumentos para manter o poder e
controlar seus domínios.
223 A teoria contratualista nasceu e floresceu nos séculos XVI e XVII,
encontrando na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), “O
Contrato Social” (1762), a sua manifestação mais simbólica. René
GARRAUD, Compendio cit., item 27, ao comentar o direito penal na
Revolução, assim expõe essa nova postura contratualística em face da
mentalidade punitiva do Antigo Regime: “Nos termos do artigo 2 da
declaração dos direitos, o fim de toda associação política é a
‘conservação de todos os direitos naturais imprescritíveis do homem’.
Segue esse principio extraído das teorias do ‘contracto social’, de que o
poder não deve e não pode preocupar-se senão com a ‘boa ordem’ nas
relações dos homens entre si. D´onde: 1º – no que diz respeito às
incriminações: a ‘lei não tem o direito de reparar senão as acções
nocivas à sociedade’. Assim, ninguem deve ser inquietado pelas suas
opiniões mesmo religiosas, estabelecido que a sua manifestação não
perturbe a ordem pública. É o principio sagrado da liberdade de
consciencia; e com ele desaparecem todas as incriminações que os
antigos chamavam ‘crimes de lesamagestade’ divina, tais como a
blasfêmia, a heresia, a feitiçaria ou a bruxaria etc. 2º – no que toca á
penalidade, ‘a lei não pode estabelecer senão penas estritamente e
evidentemente necessarias’”. Com isso, completa o autor, a Assembléia
Constituinte Revolucionária eliminou as penas “arbitrárias”, “desiguais” e
aquelas ditas não pessoais (terminando, p.ex., com a passagem de
penas ou infamações aos sucessores ou aos descendentes do
condenado).
plena a cada indivíduo da sociedade.224 O Estado deixa de ser fruto da força ou da
hereditariedade e passa a ser fruto da vontade (contrato) social em cujo contexto o
indivíduo passa a ter papel primordial.225
Essa base ideológica de valorização do indivíduo, retirando-lhe dos ombros a
pressuposição da maldade intrínseca e do “pecado original” a lhe caracterizar a alma de
maneira indelével, afronta, a um só tempo, os preceitos religiosos e os preceitos
monárquicos até então dominantes.

224 Nesse sentido, v. Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 43/44.


Em sua obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens, em tradução de Maria Ermantina Galvão,
São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 122, J.J. ROUSSEAU, já no ano de
1754, quase uma década antes de publicar sua mais famosa obra (“O
Contrato Social”, 1762), já acenava seus ideais sobre esse ponto na
seguinte passagem: “Teria desejado nascer num país em que o
soberano e o povo só pudessem ter um único e mesmo interesse, a fim
de que todos os movimentos da máquina sempre tendessem apenas
para a felicidade comum; como isso é impossível, a menos que o povo e
o soberno sejam uma mesma pessoa, conclui-se que eu desejaria haver
nascido sob um governo democrático, sabiamente moderado”.
225 Wienfried HASSEMER, Processo penal e direitos fundamentais, Revista
Del Rey Jurídica, São Paulo, v. 8, n. 16, 2006, pp. 71/72, assim preceitua
essa postura contratualista na relação entre Estado e indivíduo:
“Segundo a teoria do contrato, cada cidadão renuncia a uma parcela de
sua liberdade. Essa parcela é atribuída ou confiada ao Direito, à ordem
social e estatal, e representa a sujeição a um Direito geral no qual eu,
como cidadão, participei, de que sou idealmente co-autor e que por isso
tenho de fazer valer para mim. O Estado é instituído como um
instrumento de garantia dos limites da liberdade. Essa é por excelência a
tarefa do Estado. Trata-se de uma tarefa derivada e não originária; de
uma tarefa ao serviço das pessoas, segundo o ideário iluminista. O
Estado zela para que um indivíduo não trate os outros com desprezo,
para que ele não penetre nos limites da liberdade do outro. Tarefa do
Estado é cuidar que esses limites não sejam infringidos. Dado que o
Estado pode fracassar, dado que ele pode cometer erros, pode ser
injusto e discriminatório, é reconhecido um direito de resistência contra o
Estado”.
Vai de encontro aos preceitos religiosos, por pressupor um indivíduo não mais como
uma pessoa má e sempre tendente ao crime (pecado), mas, ao contrário, um ser, em
regra, bom, sendo seu atuar criminoso uma exceção.226 Vai de encontro aos desígnios
monárquicos, porquanto não considera mais legítimo a exercício do poder derivado de
um direito hereditário, passa a justificá-lo como derivado da soma de poderes de cada
indivíduo do corpo social e somente legitimado quando o poder supra-individual é
exercido em benefício de cada cidadão.
Inegavelmente, se o empuxo primordial do pensamento iluminista se deu pela
violência e injustiça perpetradas pelo poder (religioso e real) até então existente,227 o
desenvolvimento dessa nova ideologia somente foi possível porque encontrou apoio na
crescente e poderosa burguesia e em novas lideranças ansiosas por mais liberdade
(econômica, social e política) para se expandir em busca de objetivos econômicos e
políticos. Logo, a breve exposição de alguns aspectos extrajurídicos torna-se importante
para a compreensão do tema na evolução do pensamento e acontecimentos humanos.

1.5.1. -Contexto socioeconômico propiciador das mudanças político-


filosóficas

Sob a angulação social, o grupo composto pelos burgueses e pelas pessoas destituídas
de qualquer poder militar, hereditário ou religioso, que formava a grande massa
populacional, não suportava mais os desmandos e as opressões político-religiosas
exercidas de várias formas pelo poder central, dentre elas pela persecução penal.

226 Nesse sentido, v. Giovanni CARMIGNANI, Elementi di diritto criminale,


tradução para o italiano de Caruana Dingli, Milano: Carlo Bricola, 1882,
pp. 181/182, notadamente em seus §§ 513 a 518. Jeremías BENTHAM,
Tratado de las pruebas judiciales, tradução espanhola de Manuel
Ossorio Florit, Granada, ES: Comares, 2001, capítulo XV, pp. 299/300
traz a seguinte passagem paradigmática para o pensamento referido no
texto, em tradução livre: “É preciso partir de um ponto fixo: ‘a inocência
se deve presumir’. Não se trata de uma dessas belas máximas
humanitárias que fazem mais honra ao coração que à experiência de
quem a sustenta, senão de uma máxima fundada sobre bases sólidas.
As quatro sanções tutelares atuam com maior ou menor força sobre
todos os indivíduos para afastá-los do crime. Pela sanção natural, o
homem sente repugnância em cometer atos de maldade ou de injustiça
e, por consequência, teme expor-se à inimizade ou à vingança daqueles
a quem tivesse ofendido; pela sanção política, teme as penas legais;
pela sanção da opinião, teme perder a estima e incorrer na reprovação
ou no desprezo da sociedade; pela sanção religiosa, teme as penas que
a religião prega para todas as classes de crimes; inclusive no caso de ter
escapado à persecução dos tribunais humanos”.
227 Nesse sentido, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade cit., p. 36.
Formou-se, durante séculos, um acúmulo de insatisfação e de perda da legitimidade
do poder central que, inicialmente aceito como forma de proteção do grupo social contra
as invasões e ataques de outros povos (os bárbaros), com o tempo passou a ser o maior
algoz social. Essa insatisfação ia desde um viés persecutório inerente a todo governo
autoritário, que sempre busca sua perpetuação pela força contra seus súditos, até a
crescente cobrança de impostos para manter sua imensa estrutura bélica e de governo.
A burguesia, integrante e alimentadora de uma cada vez maior insatisfação na
população, passa a ser a classe mais espoliada pela sanha tributária e arrecadatória do
Estado Absoluto. Os burgueses, classe social em franca expansão, passam a deter o
verdadeiro poder econômico em suas mãos, tornando o Estado seu dependente, uma vez
que a função pública não estava voltada à produção de riquezas, mas apenas a montar
estruturas de controle bélico e ideológico.
Essa dependência econômica fez com que, de modo progressivo, a burguesia
penetrasse e influenciasse as esferas de poder, ora comprando títulos nobiliárquicos, ora
financiando ou sustentando os desejos monárquico-religiosos.
Nesse contexto, as mudanças passam a ter justificativas sociais e econômicas
comuns, quais sejam, a mudança do poder político reinante por meio não apenas da
queda de seus ocupantes, mas, principalmente – e essa foi uma característica da
Revolução Francesa –, pela mudança dos primados e paradigmas até então vigentes. O
Estado não deveria mais ter como escopo sua perpetuação e locupletamento por meio da
força produtiva de seus súditos, mas deveria servir-lhes e voltar todas suas preocupações
no sentido de propiciar-lhes melhores condições de vida.
Filosoficamente, portanto, os pensadores iluministas rompem com a idéia de poder
fundada em critérios religiosos, militares ou hereditários. A secularização estabelece a
“racionalidade” como novo alicerce para a construção de um novo sistema político,
social, econômico e, como não poderia deixar de ser, jurídico.
A racionalidade leva à valorização do indivíduo diante do Estado e este passa a ser
justificado de forma legítima apenas pelo “contratualismo”. Só se legitima enquanto for a
comunhão das vontades individuais. A racionalidade coloca o indivíduo no centro de
importância do Estado Iluminista e para quem estava voltado todo o atuar público.
As idéias revolucionárias, na França, dada a conquista de espaço político na
Assembléia Francesa, tem na lei o seu pilar fundamental de sustentação. A lei passa a ser
o meio dos revolucionários inscreverem seus ideais.228 A secularização impunha que a lei
não fixasse privilégios e não reconhecesse vantagens (políticas ou sociais) de um
indivíduo diante do outro. A lei deveria ser elaborada de forma abstrata, geral e sem
qualquer diferenciação entre os cidadãos.229 A concepção de igualdade torna-se um dos
fundamentos do pensamento revolucionário iluminista.230
Em síntese, pode-se afirmar que as insatisfações sociais e a opressão econômica
levaram à transformação do status quo político pela secularização implementada por
meio do racionalismo. Racionalismo e secularização assentados na concepção de
igualdade, garantida e promovida por meio de leis gerais e abstratas que, sem reconhecer
qualquer privilégio a determinada classe ou grupo de indivíduos, garantem a segurança
jurídica necessária para o pleno exercício das liberdades dos cidadãos.231
1.5.2. Reflexos das idéias iluministas no sistema criminal

228 Sobre as visões individualista da Revolução estadunidense e a


legislativa da Revolução Francesa, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo
MARTINS, Teoria geral dos direitos fundamentais, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, pp. 26/32.
229 Essa clara inter-relação entre legalidade-igualdade foi expressa no art. 6º

da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A lei é a


expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de
concorrer pessoalmente, ou por meio de seus representantes, à sua
formação. Ela deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna.
Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente
admissíveis a todas as dignidades, cargos e empregos públicos,
segundo sua capacidade e sem outra distinção a não ser a de suas
virtudes e seus talentos”.
230 Sobre o princípio da igualdade na Revolução Francesa, v. Paula Bajer

Fernandes Martins da COSTA, Igualdade no direito processual penal


brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 34/41. A
importância basilar desse princípio na Revolução Francesa pode ser
constatada pela sua inscrição legal já no art. 1º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem
fundar-se na utilidade comum”.
231 Sobre os importantes papéis desempenhados pelo racionalismo e pela

secularização para a construção de uma revolução fundada na lei, v.


Luis PIETRO SANCHÍS, La filosofia penal de la Ilustración, in Gregorio
PECES-BARBA MARTÍNEZ, Eusebio FERNÁNDEZ GARCIA, Rafael DE
ASÍS ROIG, Historia de los derechos fundamentales: el derecho positivo
de los derechos humanos. Derechos humanos y comunidad
internacional: los orígenes del sistema, Madrid: Dykinson, 2001, t. II, v.
III, itens 1 e 2.
Muito ao contrário do que poderia se imaginar, o contratualismo iluminista não
negou a necessidade do Estado. Apenas alterou sua fonte de legitimação, rejeitando suas
bases religiosas, hereditárias e militares; busca pela racionalidade estabelecer parâmetros
legais para sua atuação em prol de todos os indivíduos de forma indistinta e igualitária.
Se o contratualismo assegura a necessidade do Estado, o seu racionalismo
(individualista e igualitário) determina que as leis controlem o atuar estatal para evitar a
supressão das liberdades do cidadão. Nasce a consciência de que é pelo sistema criminal
que se manifestavam as maiores violências estatais contra o indivíduo e, por essa razão, o
direito penal passa a ser tratado como última instância de atuação estatal na esfera de
liberdades do cidadão (ultima ratio).232 Reconhece-se, outrossim, que a lei somente
poderá punir as condutas externas dos indivíduos; não mais se aceitava a criminalização
de convicções religiosas ou morais interiores.233

232 No sentido da elaboração de um sistema criminal estar mais ligado às


escolhas políticas que sobre desenhos jurídicos de institutos técnicos, v.
Luigi KALB, La “ricostruzione orale” del fatto tra “efficienza” ed “efficacia”
del processo penale, Torino: Giappichelli, 2005, pp. 112/113.
233 Nesse sentido, v. Luis PIETRO SANCHÍS, La filosofia cit., pp. 149/150. A

consagração dessa nova percepção pode ser percebida na primeira


parte do art. 5º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789: “A lei não pode proibir senão as ações danosas para a sociedade
(...)”.
Como reflexo processual direto dessa mudança na área penal (somente se pode
punir as condutas exteriorizadas e danosas à sociedade), torna-se indispensável
demonstrar a ocorrência da conduta efetivamente praticada e, portanto, o sistema de
provas e a motivação das decisões judiciais passam a ocupar importância crucial no
processo penal.234 O sistema processual passa a ser bastante influenciado pela experiência
inglesa do júri e, com base em princípios como a oralidade, o contraditório pleno, a
imediatidade das provas e o júri popular,235 a forma de avaliação das provas deixa de ser a
tarifada e passa para o sistema da livre apreciação das provas (livre convencimento),
típica dessa espécie de julgamento por leigos.236

234 Luis PIETRO SANCHÍS, La filosofia cit., pp. 147/148.


235 Sobre maiores considerações sobre o sistema processual criminal
revolucionário, v. item 1.5.2 infra. Para a subversão da “íntima
convicção” a partir do Código de Instrução Criminal Napoleônico de
1808, seja quanto à sua aplicação ao juiz togado seja quanto à indevida
e ilimitada extensão que passou a ter, v. Jaime VEGAS TORRES,
Presunción cit, pp. 157/159; Massimo NOBILI, Il principio del libero
convincimento del giudice, Milano: Giuffrè, 1974, pp. 17/23 e 168/175;
Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação das decisões
judiciais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 145/148; e Luigi
FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 118/119. Sobre as mudanças pós-iluministas
e as características do sistema processual penal misto napoleônico, v.
item 2.2.2 infra. Sobre a dúvida como produto inerente ao sistema da
íntima convicção, v. nossos comentários nos itens 5.4.1.3 e 5.4.2.3 e
seus subitens infra, ao tratarem, respectivamente, do “in dubio pro reo” e
do dever judicial da motivação.
236 Inegavelmente, a íntima convicção (para os brasileiros e portuqueses

também conhecida como “livre apreciação das provas”, e pelos italianos


como “livre convencimento”) é uma das maiores conquistas humanistas
do sistema criminal iluminista. Por isso sua total desvirtuação ocorreu
quando os sistemas autoritários pós-iluministas, a começar pelo código
criminal napoleônico, transformou-a em via de poder ilimitado do juiz
togado. V. nossas ponderações nos itens 2.2.2 (para o sistema criminal
napoleônico), 2.4.6 (para a fase nazifascista do código de processo
penal italiano de 1930), 2.5.2.4 (para nosso atual código de processo
penal) e, por fim, o item 5.4.2.3.2 infra, no qual tratamos da necessidade
de motivação para limitar uma inconstitucional violação, pelos poderes
judiciais, da presunção de inocência.
As forças políticas mais sensíveis àquela insatisfação crescente começaram, de
meados do século XVII até o final do século XVIII, a produzir alterações legislativas em
reinos mais infensos às idéias iluministas.237 Surgem os monarcas chamados “déspotas
esclarecidos” ou “monarcas iluministas”.238 Em França, já em 08 de maio de 1788, foi
elaborado um édito suprimindo muitos abusos do sistema inquisitivo vigente desde a
Ordenança Criminal de 1670. Dentre essas mudanças legais pode-se citar, atendo-se
apenas ao campo processual penal: as sentenças deveriam ser motivadas; a fase
persecutória de preparação produzida pelo juiz investigador foi abolida; os acusados que
fossem absolvidos teriam direito a indenização; e, principalmente, a tortura é abolida
como forma de se obter a confissão do imputado.239
No que importa ao presente estudo, dentre as muitas e significativas mudanças
legislativas empreendidas em vários reinos europeus, destaque-se: (a) a obrigatoriedade
de defesa de ofício; (b) a publicidade e a oralidade passaram a ser a tônica procedimental;
(c) a necessidade do juiz indagar sobre provas favoráveis ao acusado; (d) os
interrogatórios deviam ser feitos na presença de duas pessoas; e, por ser este o eixo
central dos sistemas processuais penais imediatamente anteriores (ordálias e Inquisição),
(e) a presunção de culpa foi substituída pela presunção de inocência e, em decorrência
disso, as hipóteses de prisão cautelar foram reduzidas e melhor racionalizadas.240
1.5.3. -Inclusão da “presunção de inocência” na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão (1789): revolução processual penal

Diante desse cada vez mais expressivo descompasso ideológico e de interesses entre
as classes ascendentes e o povo de um lado e as classes dominantes e os religiosos, de
outro lado, os choques tornaram-se mais freqüentes e intensos e resultaram em revoltas e
guerras civis inevitáveis.

237 A íntima convicção como forma de substituir o sistema da prova legal já


vinha prevista em leis processuais anteriores à Revolução Francesa e
influenciadas por um crescente espírito racional-legicentrista; sobre o
tema, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade cit., pp. 36/39.
238 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 44/46. Para alguns
institutos processuais penais da Inquisição que tais monarcas foram
retirando de suas legislações internas, no período pré-revolucionário,
como fruto do pensamento iluminista, v. Giorgia ALESSI, Il processo
penale: profilo storico, 5ª ed., Roma-Bari: Laterza, 2005, pp. 131/133.
239 René GARRAUD, Compendio cit., item 25, e Jaime VEGAS TORRES,
Presunción cit., p. 18, notas 21 e 22.
240 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 46, e Luis PIETRO
SANCHÍS, La filosofia cit., pp. 163/172.
Dentre todas as revoltas do século XVIII, a mais significativa para a história é a
Revolução Francesa, da qual, ao que importa ao presente trabalho, defluiu a “Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão” (1789), posteriormente promulgada em 1793.241
Nessa declaração francesa, destinada a fixar preceitos fundamentais ao cidadão e
invioláveis pelo Estado, foi inserida, legalmente, pela primeira vez,242 a concepção de
“presunção de inocência”, em vernáculo: “9. Todo homem deve ser presumido inocente
até que tenha sido declarado culpado; se julgar-se indispensável detê-lo, todo rigor que
não seja necessário para prendê-lo, deverá ser severamente reprimido pela lei”.243
Fica evidenciada a clara intenção dos revolucionários iluministas em estabelecer
outro eixo para o processo penal, qual seja, a abolição da presunção de culpa e a fixação
da presunção de inocência para (todos) os imputados.
Dentro do espírito revolucionário francês de rompimento de tudo quanto antes
vigia, para início de um mundo novo, pela primeira vez na história fixa-se expressamente
a necessidade de a persecução penal partir da perspectiva de inocência do
investigado/acusado, devendo ser assim tratado no curso do processo. Apenas ao final da
persecução processual poderia haver, se assim fosse provado, a consideração de sua culpa.

241 Ateremo-nos tão-só à carta francesa, não obstante tenha ela forte
inspiração estadunidense, que também proclamara sua independência
(1776) com um respectivo diploma político não menos importante (Carta
de Independência dos Estados Unidos da América). Nossa preferência
se explica porque, nesse último documento, não há menção expressa à
presunção de inocência, tema central de nossos estudos.
242 Alexander GALLAHER HUCKE, La presunción cit., pp. 19/20, com apoio
em Tomaz Y Valiente, entende que a referência mais remota da
presunção de inocência é a Ordenança Criminal Francesa de 1670, art.
28, inciso V, no qual estava escrito: “Omnis praesumitur bonus nisi
probetur malus”. Não nos parece com razão essa doutrina, visto que a
presunção de inocência só pode ser tida como tal em um sistema
igualitário e democrático como o surgido, pela primeira vez, na
Revolução Francesa. Além do fato de, a prevalecer o entendimento do
citado autor, seria por demais paradoxal que aquela expressão tivesse
sido posta em um dos ordenamentos criminais mais despóticos que a
humanidade já conheceu em sua história.
243 In verbis: “9. Tout homme étant présumé innocent jusqu´a ce qu´il ait été
declaré coupable; s´il est jugé indispensable de l´arrêter, toute riguer qui
ne serait nécessaire pour s´assurer de as personne, doit être sévèrement
reprimée par la loi”.
Essa determinação iluminista foi, de fato, revolucionária, na acepção que o termo
recebeu na Revolução Francesa. Os franceses, quebrando o significado semântico do
termo latino “revolutio”, não revolveram ao passado, mas, em verdade, romperam com
ele. Procurando, assim, estabelecer uma nova ordem.244
Quanto ao sistema processual penal, esse passo decisivo, para o rompimento com o
passado e a implementação de um novo parâmetro, foi dado pela inscrição formal, em
dispositivo de lei, de que todo homem deve ser presumido inocente até que sobre ele
recaiam provas tais que sejam aptas a evidenciar, além de qualquer dúvida, a sua culpa.
Em termos lógico-sistêmicos, o procedimento não seria mais uma seqüência de atos
para se demonstrar aquilo que o inquiridor já tinha em sua mente como certo, desde o
início da persecução. Partindo-se da concepção de inocência, a persecução deveria ser
uma efetiva “persecução”, isto é, uma investigação cognitiva na busca dos mais confiáveis
meios de prova para evidenciar os fatos no processo. “Investigar” não mais significaria
“confirmar” aquilo que antes já se tinha como certo ou conveniente para o julgador.
“Cognição” não significaria mais “desígnio político/religioso” a ser realizado pelo
processo. Por “meio de prova confiável” não mais se aceitaria a “manipulação” dos termos
e da vontade de quem pudesse e quisesse colaborar na demonstração dos fatos ocorridos.
E, por fim, como um novo “processo” não se aceitaria mais o sigilo ao imputado, a
ausência de defesa e de contraditório, passou-se a assegurar o respeito às integridades
física, moral e religiosa do investigado/acusado, a imparcialidade do juiz e o direito ao
recurso.
Como se demonstrou por todo este capítulo, durante toda a história da humanidade
até este instante, nunca houvera tal tomada prévia do imputado como inocente. Nunca
houvera, em sistemas inquisitivos e/ou acusatórios, qualquer assunção da condição de
inocente para o imputado até que contra ele fosse demonstrada a culpa.
Isso foi possível porque, com a nova base racionalista de que o Estado deve atuar na
proteção do indivíduo e na concepção fundamental de igualdade entre os indivíduos, o
processo deixou de ser uma arma política do Estado Autoritário na opressão de seus
inimigos (hereges e revoltosos). Passou a ser uma forma de proteção do indivíduo contra
abusos estatais, típicos e por demais ocorrentes na Inquisição. Saem de cena o “hostis
alienigena” e o “hostis judicatus” e entra em cena o cidadão acusado que, embora
acusado, acima e antes disso, é cidadão. Sai de cena o direito penal voltado ao inimigo e
passa-se ao direito penal do cidadão.245

244 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos


humanos, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 122/127, destaca que a
partir da Revolução Francesa a palavra latina “revolutio”, que significava
volver ao passado (revolver) passa a ser empregada no sentido de
rompimento com o passado e implica criação de uma nova ordem.
245 Sobre a criação romana do inimigo no direito penal v. Eugenio RAÚL
ZAFFARONI, O inimigo cit. pp. 22/25 e, ainda, nossos comentários no
item 1.2.4 supra. Sobre o direito penal e processual penal do inimigo
como violação da presunção de inocência, v. item 5.4.3.1 infra.
Essa nova dimensão, emprestada ao processo penal, evidentemente tinha muito
mais uma feição filosófico-política que jurídica. Isto porque, é inegável a lógica perversa,
ínsita a qualquer procedimento inquisitivo e geradora, cedo ou tarde – por mais bem
intencionado que o julgador se considere –, de uma distorção na busca dos fatos e do seu
responsável. No procedimento inquisitivo, a conclusão antecede ou coincide com a
premissa persecutória, busca-se demonstrar aquilo que já se tem como certo. Há um
comprometimento prévio com um resultado que o julgador/inquiridor acredita – ou lhe
determinam que acredite – ser o correto.
Interessante notar que, muito ao contrário do que se supunha – e ainda hoje muitos
acreditam –, o pressuposto de inocência do imputado, até demonstração em contrário,
como eixo central do processo penal, não implica inviabilidade de condenação ou a
impossibilidade de aplicar, v.g., qualquer medida cautelar (pessoal ou patrimonial) ao
investigado/acusado no curso da persecução criminal.
A despeito do tema ser desenvolvido de forma mais minudente adiante,246 não se
pode, neste passo, deixar de fazer duas considerações para revelar os erros do argumento
supra expendido. Primeiro, o fato de procurarem exagerar o argumento para que ele
perdesse a razão, ou seja, procuraram criar uma presunção de inocência tão ampla e
abrangente que a colocaram como um direito absoluto e, tornando-a irrestringível,
afirmaram-na um absurdo. No atual desenvolvimento da teoria dos direitos
fundamentais, não há mais dúvida de que não há princípio constitucional ilimitado e a
presunção de inocência não é exceção.247

246 Para uma desconstrução e demonstração do raciocínio da doutrina


técnico-jurídica italiana liderada, neste tema, por Vincenzo Manzini, v.
item 2.4.7 e seus subitens infra. Sobre as restrições à presunção de
inocência, v. item 5.5 e seus subitens infra.
247 Essa abordagem da presunção de inocência como direito fundamental e
seus reflexos na teoria dos princípios é tratada nos itens 3.7.1 e 4.3 infra.
Porém, os críticos dos séculos XIX e XX ainda foram mais desonestos
doutrinariamente ao fazerem vistas grossas ao próprio texto iluminista. Mesmo no auge
filosófico dessa construção iluminista, o preceito não foi alçado a dogma intocável e
ilimitado. Na segunda parte daquele 9º dispositivo da Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão,248 poucas vezes citada (quando não omitida) pelos seus críticos, se inseriu
uma restrição à sua abrangência, qual seja: a condição de inocente do imputado não
impediria sua prisão provisória.249 Esse aspecto é de fundamental importância para, no
capítulo seguinte, apontar-se um dos erros da doutrina adepta das Escolas Positiva e
Técnico-Jurídica, na crítica que fez à presunção de inocência, qual seja, a de que, a
prevalecer ou se aceitá-la como base estrutural do processo penal, estar-se-ia negando o
próprio processo penal, uma vez que, para iniciá-lo ou prender cautelarmente alguém
durante o seu curso, era necessário não ter o imputado como inocente.250
Necessário reconhecer que o pensamento iluminista, com a inscrição legal da
“inocência”, como pressuposto metodológico do processo penal em face do imputado,
determinou uma nova perspectiva metodológica até então inexistente. Firmou, nesse
quadrante histórico, novo paradigma filosófico que ainda está em busca de sua efetivação
plena tanto na legislação infraconstitucional, quanto na jurisprudência brasileiras atuais.

1.5.3.1. Características do procedimento penal revolucionário francês

No curso das legislações revolucionárias criminais,251 a justiça foi separada, por


matéria, entre jurisdição civil e penal. Na área penal, profundamente influenciada pelo
sistema inglês, haveria um procedimento de três fases.252

248 Equivalente à segunda parte do art. 13, da Declaração dos Direitos do


Homem e do Cidadão da Constituição de 1793.
249 In verbis: “Tout homme étant présumé innocent jusqu´a ce qu´il ait été

declaré coupable; s´il est jugé indispensable de l´arrêter, toute riguer qui
ne serait nécessaire pour s´assurer de as personne, doit être sévèrement
reprimée par la loi” - destacamos. Diz o trecho ressaltado: “(...); se julgar-
se indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário para
prendê-lo, deverá ser severamente reprimido pela lei”.
250 Sobre a análise desse ponto, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
251 Sobre as leis criminais revolucionárias, v. cronologia em René

GARRAUD, Compendio cit., item 30.


252 Nesse sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Direito à prova

no processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, pp. 28/29.
A primeira, era uma instrução sumária perante um “juiz de paz”, que desempenhava
uma função de “oficial de polícia judiciária”, servia à instauração de uma investigação e
colheita dos primeiros elementos de materialidade e autoria da infração. Permitia-se a
iniciativa da parte ofendida e, outrossim, podia o magistrado iniciar a investigação de
ofício. Em seu curso procedia-se ao interrogatório do investigado, a oitiva de
testemunhas e recolhia-se eventuais elementos de convicção da infração. Aponta-se
como crítica a essa primeira fase a pouca quantidade de magistrados e a sua pouca
experiência nessa atividade; com isso se delegava a colheita de elementos de convicção
aos particulares ofendidos, e, ainda, não havia participação do Ministério Público nessa
fase, o que fazia com que o magistrado acumulasse as funções de perseguir e instruir.253
A segunda fase desenvolvia-se perante um “júri de acusação”, composto de um juiz
togado presidente e oito jurados leigos. Competia a tal júri a verificação da consistência
da avaliação feita na fase anterior e a continuidade da instrução. Refeita a prova oral e
exposta a questão pelo juiz togado, os jurados, sem a presença do presidente, deliberavam
pela admissibilidade ou não da acusação. A votação pela admissibilidade sempre deveria
ser colhida por maioria de votos, o que indica uma aceitação da cláusula romana do “in
dubio pro reo”. Em caso de admissibilidade, o juiz togado decidiria pela necessidade do
acusado ser preso ou de responder em liberdade a nova fase que se iniciaria.254
A terceira fase consistia em debates definitivos e no julgamento diante do “tribunal
criminal”, composto por três juízes e um presidente, que decidiam sobre a pena, e por
doze jurados leigos, que decidiam sobre o fato (materialidade e autoria). Era,
essencialmente, oral, público e em contraditório. Findos os debates, a votação pela
procedência da acusação somente poderia ser extraída por no mínimo dois terços dos
votos.

253 René GARRAUD, Compendio cit., item 28.


254 René GARRAUD, Compendio cit., item 28.
Como se percebe, a influência inglesa no procedimento revolucionário francês é
profunda e em todos os sentidos, seja pela forte inclusão do júri seja pela exigência de que
a absolvição fosse imposta mesmo que a maioria simples (metade mais um) decidisse pela
condenação. Era necessária uma certeza acima de qualquer dúvida, aritmeticamente
definida pela fração de dois terços (oito dos votos possíveis), para uma condenação. A
condenação somente poderia ocorrer se quase a unanimidade dos jurados entendesse pela
culpa do imputado.255 Para além da fórmula do “in dubio pro reo”, tradicional na cultura
da Civil Law, introduz-se a concepção “dúvida além do razoável” (“beyond reasonable
doubt”), típica da Common Law.256

1.5.4. -“Presunção de inocência”: etimologia e razões político-filosóficas


para a escolha da expressão na Revolução Francesa

O estudo das raízes etimológicas de um instituto jurídico somente tem utilidade se a


análise revelar algo que o distinga de outros institutos similares ou explique alguns de
seus aspectos olvidados ou descumpridos. Com a presunção de inocência ocorreu, porém,
um fato sui generis.
Muitos de seus críticos do século XIX e início do século XX, notadamente os
integrantes da Escola Técnico-Jurídica italiana, utilizaram a própria etimologia do
instituto contra ele mesmo. Com base no exame das raízes romanas da “presunção”
demonstraram uma pretensa incoerência na expressão “presunção de inocência”, quando
e se aplicada ao processo penal. Essa crítica dessa Escola ainda hoje é repetida e aceita e,
portanto, sua “anticrítica” se mostra não só atual, mas necessária para expurgar da
presunção de inocência falsas objeções criadas, no fundo, para negar direitos aos cidadãos
no período nazifascista europeu.
A crítica é fundada em outra desonestidade científica daqueles doutrinadores do
período europeu do nazifascismo.257 Ao buscarem as raízes romanas da palavra
“presunção”, desconsideraram e omitiram qual era o desenvolvimento desse instituto nos
séculos que antecederam à Revolução Francesa (séculos XVI e XVII).

255 René GARRAUD, Compendio cit., item 28. Aponta, este autor (op. cit.,
item 33), que houve uma mitigação – que o autor classificou de
“retrocesso” – do recém criado sistema misto napoleônico (1808) por
força de uma lei de 4 de março de 1831 que fixava a necessidade de
que, para que se punisse o acusado, sete dos doze votos precisariam
ser favoráveis à condenação. Para o autor, o retrocesso estava em que
era necessário um número maior de pessoas convictas da condenação
para a punição do imputado, o que configurava, mesmo que em termos,
uma volta ao espírito mais libertário do período revolucionário.
256 a presunção de inocência como “norma de juízo”, v. item 5.4.2.3 infra.
257 Sobre a primeira desonestidade representada pela absolutização da

presunção de inocência, v. itens 1.5.3 supra e 2.4.7.3 infra.


Para que não haja uma deslealdade científica e uma outra com o pensamento
iluminista, primeiro a cunhar a expressão “presunção de inocência”, não se podem
analisar os dois pólos dessa expressão (“presunção” e “inocência”) com a compreensão do
mundo atual (século XXI), nem com aquela empreendida pela técnica dogmática do final
do século XIX e início do século XX. Para se compreender as razões da escolha é
necessário prescrutar, tanto quanto possível, a cultura jurídica e lingüística vigentes até o
século XVIII, pois era o mundo científico até então conhecido quando a expressão
“presunção de inocência” foi concebida.
Os itens com os quais se conclui o presente capítulo demonstram as razões
iluministas para sua escolha. Para isso, sem descurar as raízes etimológicas de cada parte
da expressão (“presunção” e “inocência”), o maior destaque será dado para o ponto de
desenvolvimento científico que cada uma delas tinha no instante em que os iluministas
conceberam-na.
A conclusão desse exame demonstrará que “presunção de inocência” é repetida até
nossos dias – e sempre o será – não porquanto seja um exemplo de precisão técnico-
jurídica nos moldes atuais ou em conformidade com suas raízes romanas, mas porque seu
conteúdo político-ideológico258 induz à idéia motriz que a expressão propicia, o que é
essencial para um agir persecutório não preconceituoso, logicamente não deformado e
minimamente justo.259

1.5.4.1. -“Presunção”: etimologia e uso jurídico do termo até o iluminismo

“Presunção” vem do latim praesumptio, onis, cujo verbo é praesumere,260


significando antecipar, tomar antes ou primeiro, prever, imaginar antes. Resulta da
combinação do verbo “sum, es, fui, esse” – cujo significado é, entre outros, acontecer,
existir, suceder, valer – com o prefixo “prae”, que indica prioridade no tempo e no espaço
e, ainda, anterioridade.261

258 No sentido de que presunção de inocência deva ser compreendida mais


em seu sentido ideológico que em sua redação técnico-jurídica, v.
Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 35/37.
259 V., sobre o tema, item 1.5.4.3 infra.
260 José CRETELA JÚNIOR e Geraldo de Ulhoa CINTRA, Dicionário latino-

português, São Paulo: Anchieta, 1944, p. 896.


261 Sobre o significado semântico das expressões latinas, v. José CRETELA

JÚNIOR e Geraldo de Ulhoa CINTRA, Dicionário cit., pp. 1133/1134 e


877. Sobre “presunção” como derivado do prefixo e do verbo citados, v.
Hugo ROCHA DEGREEF, Presunciones e indícios en juicio penal, 2ª
ed., Buenos Aires: EDIAR, 1997, pp. 57/58.
Sua origem latina, portanto, indica ser a presunção uma forma de se tomar,
antecipadamente, algo que ainda não aconteceu ou que se prevê provável de acontecer.262
Há um juízo antecipado, uma pré-concepção de que algo deve ser tratado ou concebido
de determinada maneira.
Partindo do significado apenas semântico e indo em direção à aplicação vulgar do
vernáculo, apontavam-se diferentes sentidos para essa aplicação e que iam desde o ato ou
efeito de presumir, passando pela conjectura, opinião ou juízo de si mesmo e baseado na
vaidade, aparência, afetação, arrogância, orgulho e jactância, para terminar com a
acepção de suspeita, suposição ou desconfiança.263
Os termos “presunção” ou “presumir” também foram adquirindo significados
distintos no mundo jurídico. No direito romano, cujos registros sãos os mais antigos e
seguros, a palavra presunção (praesumptio) significou privilégio (D. 37, 10, 3, 13; D. 43,
4, 3, 3; C. 8, 11, 12; C. 8, 14, 7), usurpação (C. Th. 8, 5, 12; C. Th. 8, 5, 61), arrogância (C.
Th. 6, 4, 22; C. Th. 8, 5, 65; C. 3, 2, 1) e opinião (D. 29, 2, 30, 4; D. 33, 7, 18, 3). Já a
palavra presumir (praesumere) foi empregada como: tomar antes (Gai. Epit. 2, 5, 1; C.
Th. 15, 1, 25), usurpar (C. Th. 8, 5, 62; C. 5, 27, 7, 3), ousar (C. Th. 16, 5, 8; C. Th. 8, 7,
20; Gai. Epit. 2, 11, 3), arrogar-se (C. Th. 12, 10, 1; C. 3, 12, 3; C. 10, 74, 1) e acreditar ou
julgar (C. 2, 42, 4; D. 12, 6, 3).264

262 Este é o primeiro significado apontado por Nicola ABBAGNANO,


Dicionário de filosofia, 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 790. O
segundo significado por ele indicado diz respeito à confiança excessiva
de alguém em suas próprias qualidades.
263 Sintetizando esses sentidos para o uso vulgar da expressão, v. Maria

Thereza Rocha de Assis MOURA, A prova por indícios no processo


penal, São Paulo: Saraiva, 1994, p. 43, com base em extensa bibliografia
jurídica e dicionarista.
264 Significados e passagens extraídas de Roberto REGGI, Presunzione: dir.

rom., in ENCICLOPEDIA del diritto, Milano: Giuffrè, 1986, v. 35, p. 256.


O direito da Idade Média, fortemente influenciado pelas fontes romanas,
notadamente a partir da compilação legislativa empreendida por Justiniano, foi
reservando o mais relevante uso da palavra “presunção” para o campo probatório.265
Nesse período, que vai desde a Alta Idade Média (séculos V a XII) até o final da Baixa
Idade Média (séculos XIII a XVIII), principalmente em seu final, com o período da
Inquisição, a doutrina e a legislação medievais preocupavam-se em regular o poder
decisório jurisdicional pelo controle fixo (legal) da prova. Definiam em lei os meios de
prova, seu valor em cada caso concreto e, também, a necessidade de se produzir
determinado tipo de prova não só para a comprovação do crime como para se saber qual
o grau de punição (leve, média ou alta) e, em caso de uma insuficiência para condenar,
qual seria o tipo de absolvição (plena ou de instância).266
A demonstração máxima desse controle probatório legislativo apriorístico recebeu o
nome de “sistema da prova legal”. A idéia síntese desse sistema probatório era a de que o
valor e a necessidade de cada prova já estavam pré-definidos em lei, cabendo ao juiz
apenas proceder à colheita e à soma aritmética de seus pesos (valores probantes) para se
chegar à conclusão ou não da culpa do imputado.267

265 Adriana CAMPITELLI, Presunzione: dir. interm., in ENCICLOPEDIA del


diritto, Milano: Giuffrè, 1986, v. 35, pp. 260/261.
266 Sobre o tema da correlação entre quantidade de elementos de convicção

(prova, indícios, presunções ou argumentum) e a espécie de decisão e


sua intensidade no direito medieval, v. itens 1.4.1.1.1 e 1.4.1.1.2 supra.
267 267 Nesse sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Direito à prova cit., pp. 22/23.
Por essa forma de valorar o material colhido na persecução, a “presunção”
desempenhava papel importante. O legislador poderia dela se servir para pré-definir
quando determinado meio de prova podia ser obtido (v.g., a tortura somente estava
autorizada se houvesse ao menos um quantum indiciário ou presuntivo já alcançado) e,
outrossim, pré-estabelecer quando ela (a presunção) era o próprio meio de prova
suficiente para condenar alguém.268 Tudo para que, acreditavam os legisladores da época,
o juiz tivesse, no caso concreto, pouco espaço de subjetividade na avaliação da prova.269
Ocorreu, porém, que o uso da “presunção”, ao lado dos indícios e do
“argumentum”,270 instrumentos de extrema subjetividade, permitia ao julgador relativizar
o sistema pretensamente fechado e “objetvo” da prova legal. Por meio deles o juiz
emrestava maior ou menor creditbilidade até mesmo às provas testemunhais e
documentais, tidas como as mais objetivas e “seguras” à época.
Esse crescente e descontrolado subjetivismo jurisdicional provocou, entre o final do
século XVII e o início do século XVIII, severas críticas de doutrinadores, por isso tidos
como humanistas.

268 Sobre as posições doutrinária e legal em se utilizar a “presunção, indício,


conjectura, sinal ou suspeita” como meios equiparáveis às provas
artificiais, para com eles se permitir a tortura, assim como para deles se
utilizar a fim de condenar o imputado, mesmo que ele não confessasse
durante as sessões de tortura, v. Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova
legale cit., pp. 122/126. Essa autora (op. cit., p. 127) aponta que até o
século XVII, por obra de Benedict Carpzov, foi mantido o “princípio”
medieval-inquisitorial de que mesmo se houvesse contra o imputado
apenas presunções, ele deveria ser condenado a uma pena leve (“pena
pecuniaria o di relegazione”). Sobre a relação entre o sitema da prova
legal e a tortura no direito medieval da Inquisição, v. item 1.4.1.2 infra.
269 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Direito à prova cit., p. 56,

demonstra que o sistema da prova legal fora concebido também para se


evitar subjetividades e abusos judiciais na avaliação da prova, era uma
forma de controle das decisões.
270 O “argumentum”, ao lado da crença ou fé (“fides”), era uma forma do juiz

suprir as provas faltantes e exigidas pelo sistema da prova legal para


demonstrar a culpa do imputado. Pelo “argumentum”, o juiz desenvolvia
idéias próprias e baseadas em experiências pessoais que levassem à
conclusão de que, das provas (diretas ou indiretas) já obtidas, era
possível demonstrar a existência do crime e da autoria. Explicando esse
meio de “complementação” da prova admitido em fase medieval, v.
Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale cit., pp. 133/137.
Eles demonstravam que aquelas formas subjetivas de formação de convencimento
(presunção, indício e argumentum), cada vez mais utilizadas, permitiam não apenas uma
potencialização dos males já intrínsecos ao sistema processual penal da Inquisição
(segredo, inexistência de defesa e contraditório no momento de obtenção das provas,
preferência pela forma escrita e pelo uso da tortura como instrumento de obtenção da
verdade), mas, também, colocavam em risco o próprio sistema da prova legal, em cujo
esteio se fundava o procedimento criminal inquisitivo. Isto porque permitiam o arbítrio
judicial para além das desejadas amarras da “prova legal”. Criticavam esse sistema de
avaliação da prova tanto por ser subjetivo (na medida em que aceitava aquelas formas de
“complementar” a prova produzida) quanto por ser pouco respeitado, dada a freqüência
com que a “prova legal” era descumprida em favor de uma postura contra reum.271
Em meados do século XVI e início do século XVII, período em que começa a
florescer um interminável debate entre os doutrinadores sobre como classificar a
“praesumptio” (“temeraria, probabilis, violenta”), surge a obra de Andrea Alciato
(“Tractatus de praesumptionibus”). Nesse trabalho, o autor propõe o uso processual penal
da presunção apenas de três formas: uma adesão à ordem natural das coisas (“qualitas
quae naturaliter inest homini, semper adesse praesumitur”), um critério de escolha na
distribuição do ônus da prova (“mutatio non praesumitur”) e, por fim, uma indicação
“ética” de valoração geral da prova (“semper fit praesumptio in meliorem partem”). Para
aquele autor, dessas formas decorriam todas as espécies de presunção previstas em lei ou
utilizadas pelos julgadores.272
Após essa nova classificação tripartida da “praesumptio” no procedimento penal,
abriu-se um interminável e candente debate entre a escolástica medieval e o nascente
humanismo doutrinário. Para aquela, processualmente, a presunção deveria ser utilizada
como elemento de prova (subjetivo, indireto e artificial) e/ou como critério de valoração
das demais provas obtidas (por exemplo, testemunhal e documental), tudo com base na
crença e argumentação utilizada pelo julgador em suas experiências pessoais. Para a
nascente doutrina humanista (séculos XVI e XVII), a presunção deveria ser usada apenas
como critério de orientação do julgador no momento de decidir, em caso de dúvida, seja
distribuindo o ônus da prova seja favorecendo a situação do imputado.

271 Sobre a subjetividade do sistema da “prova legal” levar ao “in dubio


contra reum”, v. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp.
163/164. Sobre essas críticas doutrinárias e o uso desenfreado do
“argumenta” ao lado da “crença” do julgador no exame das provas
colhidas, v. Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale cit., pp. 128/141.
272 Giorgia Alessi PALAZZOLO, Prova legale cit., pp. 141/144.
Foi dentro desse embate doutrinário sobre o papel jurídico-funcional da
“presunção” no campo probatório processual penal que se chegou às portas do
Iluminismo e se adentrou ao ambiente da Revolução Francesa, momento de primeira
inscrição legal da expressão “presunção de inocência”.273 E foi todo esse debate entre
escolásticos e humanistas que as Escolas Positiva e Técnico-Jurídica italianas não
enfrentaram, omitiram e desconsideraram.
Pela inegável qualidade técnica dos integrantes dessas escolas criminológicas, não se
pode aceitar como sequer provável que tenham desconsiderado tais fatos científicos e
históricos, seria um desrespeito a sua capacidade imaginar que desconhecessem tais
aspectos inerentes à noção de “presunção” no instante do Iluminismo. Assim, houve, no
mínimo, uma gravíssima falha desses doutrinadores do início do século XX ao
desconsiderarem todos esses aspectos e desenvolvimentos da “presunção”, limitando sua
observação às raízes etimológicas romanas em que se presume o que é provável, e o
provável no processo penal, para eles, é a “condenação”. Foi muito conveniente à essas
Escolas essa redução discursiva, máxime ao se notar que, como já se demonstrou acima,
todo o direito criminal romano (penal e processual penal), no qual foram buscar seus
argumentos, era fundado em duas premissas: o direito penal do inimigo e a presunção de
culpa.274 Ambas premissas das quais se valeram, respectivamente, os integrantes da
Scuola Positiva e da Escola Técnico-Jurídica italianas.

1.5.4.2. -“Inocência”: etimologia e proximidade com a concepção


iluminista de igualdade

273 Sobre a presunção de inocência ser incompatível com o sistema da


prova legal, v. Esteban Romero ARIAS, La presunción de inocencia:
estudio de algunas de las consecuencias de la constitucionalización de
este derecho fundamental, Pamplona: Aranzadi, 1985, p. 29.
274 Sobre a presença sempre constante da presunção de culpa, por todo o
direito romano, v. nossas observações por todo o item 1.2 supra,
notadamente no item 1.2.4, com o qual se procurou fazer uma síntese de
todo o então exposto.
“Inocência” advém do termo latino “innocentia, ae”, cujos significados também
podem ser múltiplos, quase todos em acepção vulgar ou religiosa do termo.275 Inocência
pode ser, em sentido vulgar: inteireza ou simplicidade de costumes; candidez,
virgindade, ausência de malícia, pureza, desinteresse ou ingenuidade. No campo
religioso, é qualidade de quem nunca pecou e ignora o mal.
Na religião católica, o estado de inocência é a situação na qual Deus concebeu Adão,
o primogênito dos homens.276 Nesse estado, ou como alguns afirmam, em “inocência
original”, viveram Adão e Eva até pecarem (pecado original que marca todos os homens
desde então) e serem expulsos do paraíso.277 É um estado moral de perfeição, que não se
pode ter sobre a terra. Ainda segundo a fé católica, este estado é uma graça de Deus,
sobrenaturalmente comunicada ao homem e que uma vez perdida, torna tanto o corpo
quanto a alma do homem sujeita aos males da terra e às punições divinas.278

275 José CRETELA JÚNIOR e Geraldo de Ulhoa CINTRA, Dicionário cit., p.


558; Laudelino FREIRE, Grande e novíssimo dicionário da língua
portuguesa, 3ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, v. III, p. 2981;
Francisco da Silveira BUENO, Grande dicionário etimológico-prosódico
da língua portuguesa, São Paulo: Saraiva, 1965, v. 4, p. 1936; Cândido
de FIGUEIREDO, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 6ª ed., Lisboa:
Bertrand, 1939, v. II, p. 110; Antônio Geraldo da CUNHA, Dicionário
etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa, 2ª ed., Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1996, p. 437; Francisco S. BORBA (org.), Dicionário
UNESP do português contemporâneo, São Paulo: UNESP, 2004, p. 772;
Aurélio Buarque de Holanda FERREIRA, Novo Aurélio Século XXI: o
dicionário da língua portuguesa, 3ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1999, p. 1114; Guillermo CABANELLAS, Diccionario enciclopédico de
derecho usual, 15ª ed., Buenos Aires: Heliasta, 1981, t. 4, p. 429;
Diccionario Enciclopedico U.T.E.H.A., México: Unión Tipográfica Editorial
Hispano Americana, 1951, t. 6, p. 337.
276 S. OFFELLI, Innocenza, Stato di, in CENTRO DI STUDI FILOSOFICI DI
GALLARATE, Enciclopedia filosofica, Venezia: Istituto per la
Collaborazione Culturale, 1957, pp. 1430/1431.
277 DICCIONARIO Enciclopédico Salvat, 2ª ed., Barcelona: Salvat, 1945, t.
8, p. 86, e SOCIETÀ PER L’EMANCIPAZIONE INTELLETTUALE,
Lexicon Vallardi: enciclopedia universale illustrata, Milano: F. Vallardi,
189-?, v. 6, p. 6.
278 SOCIETÀ PER L’EMANCIPAZIONE INTELLETTUALE. Lexicon cit., p. 6.
Para Silvio de MACEDO, Inocência, in Rubens Limongi FRANÇA
(coord.), Enciclopédia Saraiva do direito, São Paulo: Saraiva, 1977, v.
44, p. 334, a “inocência distingue-se da graça, porque é estado primitivo,
enquanto que esta última é adquirida – elevação. Santo Anselmo
distingue o estado de inocência do estado de graça: a primeira é uma
retidão natural da vontade, e a segunda, obtida por meio do poder
superior”.
Na laicização do racionalismo iluminista, houve o rompimento com as concepções
católica ou vulgar do termo, inserindo-o no sentido filosófico de um estado ideal e
hipotético a ser conferido ao cidadão. A criminalização apenas de condutas
exteriorizadas e comprovadas impunha a necessidade de provas para sua demonstração e,
racionalmente, não se podia tomar, a priori, alguém como autor de um crime sem que
antes houvesse a certeza de seu cometimento. Assim, pela secularização, a justiça
humana se distanciava da justiça divina e de todos os seus preconceitos e subjetivismos.279
O termo “inocência”, portanto, se despe de toda história e conteúdo religiosos para
ser usado por uma perspectiva racional da filosofia iluminista. Por ela releva notar que,
diferente da “presunção”, a expressão “inocência” sempre está ligada a um indivíduo. Não
é forma de raciocínio e não se relaciona com fatos, com coisas ou com animais, sequer
com a noção de certeza, de verdade ou de probabilidade dos acontecimentos
juridicamente relevantes. Inocência é, essencialmente, um atributo, uma qualidade ou
uma característica positiva do “ser humano”.
A questão mais relevante sobre a noção iluminista de inocência se estabelece
quando se indaga: quem pode receber esse atributo? E, ainda: quando alguém é
merecedor de tal qualidade?
A resposta a essas perguntas exige uma tomada de posição do observador em relação
ao “outro”. Entendido “outro” como toda e qualquer pessoa diversa daquele que qualifica,
classifica, observa ou estabelece padrões.
Porém, para se responder àquelas perguntas de modo uniforme e coerente, exige-se
que o observador não tome apenas uma posição sobre quem ele examina (o “outro”), mas,
principalmente, sobre si mesmo em relação ao outro. Essa posição comparativa entre o
“eu” e o “outro”, mais do que necessária, revela as razões pelas quais se aceita, ou não,
que todos “são” (potencialmente) culpados ou, ao contrário, que todos “somos” inocentes.

279 Nesse passo é emblemática a passagem de Charles-Louis de Secondat


MONTESQUIEU, Do espírito das leis, tradução, introdução e notas
complementares Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2004, livro XXVI,
capítulo XII, continuação do capítulo XI intitulado “Não convém, em
absoluto, regulamentar os tribunais humanos pelas máximas dos
tribunais que tocam à outra vida”, e que em pp. 498/499 assim preceitua:
“Constitui um abuso por parte desse tribunal que, de duas pessoas que
são acusados do mesmo crime, a que nega é condenada à morte e a
que confessa evita o suplício. Isso é tirado das idéias monásticas,
segunda as quais aquele que nega parece estar na impenitência e
condenado, e aquele que confessa parece estar no domínio do
arrependimento e salvo. Mas uma tal distinção não pode dizer respeito
aos tribunais humanos; a justiça humana, que somente vê as ações, tem
apenas um pacto com os seres humanos, que é o da inocência; a justiça
divina, que vê os pensamentos, tem dois, o da inocência e o do
arrependimento”.
O cerne da problemática, sobre se a inocência é ou não para todos, está em se
definir se o agente classificador, qualificador, legislador, investigador, acusador, defensor
ou julgador se inclui ou não ao lado dos demais integrantes da comunhão social. Mais, se
tal agente estabelece, de modo confessado ou não, várias divisões sociais e, portanto,
várias classes de pessoas, ou se, ao contrário, busca atingir uma igualdade entre todos.
Essa postura, que para a grande maioria dos indivíduos não passa de opção pessoal
em face do “outro”, para os ocupantes do poder instituído traz profundas e largas
conseqüências, porquanto eles têm força política suficiente para fazer e perpetuar um
sistema jurídico conforme suas crenças e convicções. O sistema jurídico, portanto, e de
forma especial o ordenamento criminal, passa a ser um instrumento para que seus
desígnios (dentre os quais aquele de se ver diferente do outro) possam existir e se impor.
Assim ocorreu e ocorre nos governos autoritários – desde a Roma Antiga até nossos
dias –, ganhando um aplomb técnico com o nazifascismo e o positivismo da Europa do
final do século XIX e início do século passado. Para esses sistemas (autoritários,
despóticos, racistas, excludentes ou preconceituosos) o “outro” é um criminoso potencial,
e esta convicção pode ser formada por critérios biopsicológicos ou sociais, cujos maiores
representantes estavam na Scuola Positiva italiana, por razões religiosas, cujo maior
exemplo ocorreu na Inquisição, ou, ainda, por motivos político-ideológicos como
empreendido na Escola Técnico-Jurídica italiana e cujos efeitos se estendem até hoje em
nosso Código de Processo Penal.280
A escolha em se estender (ou não) a todos os indivíduos a qualidade de inocente está
diretamente ligada a se os ocupantes do poder julgam-se melhores que as demais pessoas
ou, ainda, se desejam ou não criar um sistema jurídico criminal desigual, já a partir de sua
gênese informadora (presunção de culpa ou presunção de inocência).
Atribuir com força de lei, portanto, a todos os integrantes de uma dada sociedade a
condição de “inocentes” é primeiro uma escolha político-filosófica, não apenas pessoal. E,
uma escolha dessa natureza feita e exercida diariamente pelos ocupantes do poder (ou
apenas de fração dele), vai influenciar a concepção, elaboração, aplicação, interpretação e
finalidade de todo sistema jurídico, notadamente em sua porção criminal.
No momento crucial da escolha em se atribuir ou não a todos a condição de
“inocentes”, preponderou na Revolução Francesa a força de seu primado da igualdade,
tão caro à racionalidade dos iluministas.

280 Sobre a visão que a Scuola Positiva tinha do indivíduo, v. item 2.3 e seus
subitens infra. Sobre a inquisição e a rejeição da presunção de
inocência, v. item 1.4 supra. Sobre o ideário nazifascista da Escola
Técnico-Jurídica, v. itens 2.4.2 e 2.4.3 e seus subitens infra. Para uma
análise das modernas correntes criminológicas que tomam, ao menos
em parte, a visão criminalizante do “outro” (o direito penal e processual
penal do inimigo e o direito penal e processual penal do autor), v. item
5.4.3.1 infra.
Entendida a importância que a igualdade tinha para eles na quebra de paradigmas
de estruturação de um sistema juspolítico hierarquizado sobre padrões religiosos e
hereditários, não poderia ter sido outra a posição em se considerar inocente, ou seja,
isento de qualquer punição pela justiça dos homens, o cidadão até que sua culpa criminal
ficasse demonstrada por provas racionalmente obtidas e avaliadas como suficientes além
de qualquer dúvida razoável.

1.5.4.3. -Presunção de inocência: razões político-filosóficas e


conseqüências jurídicas da escolha revolucionária

A expressão “presunção de inocência”, consagrada e mantida até nossos dias, desde a


sua inscrição legal em 1789, na primeira parte do art. 9º da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, tomou o avanço e o status quo científico, político, social e
filosófico até então reinante.
Não se pode criticar, pela perspectiva técnico-processual, com base em padrões
científicos inexistentes até o século XVIII, uma expressão cunhada primordialmente por
razões político-filosóficas.281
Os iluministas revolucionários, da França do final do século XVIII, ao lutarem pela
inscrição de vários direitos humanos em uma Carta Política de enorme significação
mundial (à época) e histórica (desde então), não eram técnico-jurídicos e não tinham
suas preocupações voltadas apenas à ciência criminal (penal ou processual penal).
Atingiram-na, indubitavelmente, mas de maneira conseqüente e reflexa. Seu motor
genético era a transformação político-social e a ruptura do status quo político
institucionalizado.

281 O que se deve criticar, se assim fosse possível, e não acreditamos que o
seja, é se aqueles padrões ideológicos estavam errados, ou não eram e
não são ideais para os dias atuais. Os críticos da virada do século XIX
para o século XX entenderam-nos “absurdos”. Nós, ao contrário, e como
se verá a partir do capítulo III, entendemo-los corretos, não obstante
possam e devam ser restringidos em face das condições fáticas e
jurídicas do caso concreto, as quais devem ser demonstradas por uma
indispensável justificação constitucional e proporcional.
Nesse sentido, o pensamento iluminista francês, embebido pelos avanços
humanistas iniciados nos séculos XVI e XVII para o processo penal e o direito penal,282
foi buscar naquela classificação tripartida da “presunção” (técnica e mais humana) uma
forma de revestir o cidadão de uma proteção ética e jurídica contra os desmandos estatais
perpetrados pelo sistema processual penal inquisitivo.283 A esse termo juntou-se a noção
de “inocência”, agora desprovida de conteúdo teológico e voltada a consagrar a noção
racional-iluminista de igualdade, um dos pilares da Revolução em todas as áreas
(econômica, política, social e, também, jurídica). Por ela, todos são inocentes e gozam
desse estado político284 diante do poder estatal até que, por meio de um sistema
probatório racional, consiga-se demonstrar que a conduta externa do cidadão é um
crime.285
Na escolha iluminista pela expressão “presunção de inocência” há uma inegável
fusão do racional e do ideológico. Analisá-la por uma perspectiva dogmático-positivista,
como empreendido pelos técnico-juristas do nazifascismo, é deslocar o debate para a
etimologia, relegando a sua essência ao recanto ou ostracismo.286 É, a um só tempo,
neutralizar a razão e a filosofia que animaram a concepção da expressão, em prol de um
pseudo-purismo técnico que desconstitui aquelas conquistas humanas e omite os avanços
doutrinários dos séculos XVI e XVII e, ainda, esconde sob uma capa falsamente técnica
verdadeiras opções ideológicas (nazifascistas) totalmente diversas daquelas que animaram
o Iluminismo.

282 Sobre os fundamentos ideológicos humanistas penais e processuais


penais da Revolução Francesa e suas origens já nos séculos XVI e XVII,
v. Gregório PECES-BARBA MARTÍNEZ, Fundamentos ideológicos y
elaboración de la Declaración de 1789, in Gregório PECES-BARBA
MARTÍNEZ, Eusebio FERNÁNDEZ GARCIA, Rafael DE ASÍS ROIG,
Historia de los derechos fundamentales, Madri: Dykinson, 2001, t. II, v.
III, capítulo XVI, primeira parte, pp. 121/124.
283 Nesse sentido, v. item 1.5.4.1 supra.
284 Gregório PECES-BARBA MARTINEZ, Fundamentos ideológicos cit., p.

285, expõe que para a Revolução a presunção de inocência era uma


“manifestação da dignidade humana”.
285 Para críticas mais aprofundadas sobre a manipulação ideológica do

discurso técnico-jurídico italiano, v. item 2.4.7.1 infra.


286 Sobre esse deslocamento para fins de negação da presunção de

inocência, v. item 2.4.3.1 infra. Sobre todos os erros e distorções


técnicas empreendidas pelos defensores da exclusão da presunção de
inocência, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
Pelo vetor racional empreendido pelo Iluminismo na expressão “presunção de
inocência” assevera-se a certeza de que a maioria dos homens é honesta e não
criminosa287 e que a reconstrução probatória atinge somente o provável, jamais a
perfeição.288 Logo, remanescendo a dúvida sobre o cometimento ou não do crime, o
razoável é manter o estado de inocência do indivíduo, não reconhecer sua culpa, que é
exceção à regra. Nasce assim a parêmia latina: “quilibet praesumitur bonus, donec
contrarium probetur” (qualquer um se presume bom, até se provar o contrário) e o ônus

287Nesse sentido, já destacava Cesare BECCARIA, Dos delitos cit., capítulo


XII, intitulado “Da tortura”, p. 65: “Se é verdade que a maioria dos
homens respeita as leis pelo temor ou pela virtude, se é provável que um
cidadão prefira segui-las a violá-las, o juiz que ordena a tortura expõe-se
constantemente a atormentar inocentes”. O autor abre esse mesmo
capítulo com uma firme convicção pela presunção de inocência, sem
ainda cunhar a expressão: “Um homem não pode ser considerado
culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a
proteção pública depois que seja decidido ter êle violado as condições
com as quais tal proteção lhe foi concedida. Só o direito da fôrça pode,
pois, autorizar um juiz a infligir uma pena a um cidadão quando ainda se
duvida se ele é inocente ou culpado. Eis uma proposição bem simples:
ou o delito é certo, ou é incerto. Se é certo, só deve ser punido com a
pena fixada pela lei, e a tortura é inútil, pois já não se tem necessidade
das confissões do acusado. Se o delito é incerto, não é hediondo
atormentar um inocente? Com efeito, perante as leis, é inocente aquêle
cujo delito não se comprovou”.
288 Luis PIETRO SANCHÍS, La filosofia cit., pp. 164/166, indica que a

consciência racional de que qualquer prova conduz apenas a um maior


ou menor grau de probabilidade, jamais de certeza, quebra um dos
pilares do sistema inquisitivo, a “prova legal”. Sobre certa incoerência
dos iluministas em valorizar o legicentrismo e rejeitar o sistema da prova
legal, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Direito à prova cit., pp.
26/27 e 31/33.
da prova, por essa observação da regra dos acontecimentos humanos, já então ficava
relegado à acusação.289

289 Com essa base lógica Nicola Framarino dei MALATESTA, A lógica das
provas em matéria criminal, tradução de Waleska Girotto Silverberg da
terceira edição de 1912, São Paulo: Conan, 1995, v. I, capítulo IV sobre
“o ônus da prova”, pp. 143/145, assim se expressou sobre o valor da
presunção de inocência para determinar o ônus da prova para a
acusação: “O ordinário no homem é a inocência, por isso ela se presume
e é ao acusador que cabe a obrigação da prova no juízo penal. Mas é
preciso esclarecer esta presunção de inocência, determinando seu
conteúdo. ‘Quilibet praesumitur bonus, donec contrarium probetur’: eis o
célebre adágio, que serviu para demonstrar a obrigação da prova a
cargo da acusação. Mas como se deve compreender essa presunção de
bondade? Será esta presunção de inocência de que falamos? O homem
se presume inocente, por que se deve presumi-lo bom? Em verdade, é
preciso uma grande dose de otimismo para aceitar, na sua plenitude,
esta presunção de bondade. Tal presunção, tomada como é formulada e
levada às suas conseqüências, leva a presumir não só que o homem
não incorre em ações ou omissões conscientes, contrárias à bondade,
mas que, além disso, pratica todos os atos bons de que se sabe capaz.
Quanto ao lado positivo da presunção, relativamente à de que o homem
pratica todos os atos bons de que se sabe capaz, até os otimistas dele
duvidarão; e não é este, de resto, o lado pelo qual se faz uso da
presunção no problema probatório. Mas será talvez verdadeira a
presunção em seu lado negativo, que leva a crer que o homem não
incorre em ações e omissões, contrárias à bondade? Será porventura
verdade que o homem ordinariamente não comete más ações?(...) Mas
tudo isso enquanto se entenda por ações más tudo aquilo que está
subentendido, isto é, todos os atos conscientemente contrários à
bondade. Mas se por ações más se entenderem, ao contrário, as
‘criminosas’, então a presunção não é mais uma rósea ilusão de otimista
e sim uma observação severa de estadista. A experiência nos mostra
que são, felizmente, em número muito maior os homens que não
cometem crimes que aqueles que os cometem; a experiência nos afirma,
por isso, que o homem ordinariamente não comete ações criminosas,
isto é, que o homem é, via de regra, inocente: e como o ordinário se
presume, também a inocência. Eis a que fica reduzida a presunção
indeterminada e inexata de bondade, quando se queira determinar nos
limites racionais. Não falamos, por isso, de presunções de bondades,
mas de presunção de inocência, presunção negativa de ações e
omissões criminosas, presunção sustentada pela grande e severa
experiência da vida. O homem, no maior número de casos, não comete
ações criminosas; é, ordinariamente, inocente; portanto, a inocência se
presume. A presunção de inocência não é, pois, senão uma
especialização da grande presunção genérica que expusemos: o
Pelo vetor filosófico, em outro sentido iluminista, a presunção de inocência se
justificava pela certeza de que os cidadãos têm o direito supremo e inalienável de serem
tratados de forma igual. Não mais se aceitava que um grupo/classe de indivíduos fosse
tratado, aprioristicamente, como inimigo/herege ou, ao contrário, houvesse classe/grupo
de pessoas imunes à jurisdição penal, ou mesmo mais “inocentes” que os demais, devido a
seu elevado status na estrutura de poder (econômico, político, militar ou religioso).
Por esse mesmo vetor da igualdade, a inscrição da presunção de inocência tinha a
finalidade de assegurar um tratamento de inocente ao imputado desde o início da
persecução criminal e até que sua culpa ficasse definitivamente decidida.290
Compreendida a razão da junção dos dois termos na formação da expressão
iluminista “presunção de inocência”, entende-se porque os revolucionários, para se
manterem coerentes com o seu legiscentrismo, inscreveram-na com força de lei.
Pela consciência clara que possuíam de que tal expressão implicaria mudança
radical do sistema processual penal até então vigente, tiveram a sensibilidade política de
alçá-la ao nível político da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Única forma de garantir a hierarquia juspolítica suficiente, para que tal primado
ideológico projetasse seus efeitos em todo um sistema processual penal que estava por se
formar em decorrência da Revolução.
A posição político-hierárquica da inscrição legal da “presunção de inocência” foi,
portanto, coerente com todas as aspirações e as diretrizes revolucionárias. Pela
concepção iluminista, era a única maneira de se garantir aos cidadãos uma segurança
jurídica contra os excessos e abusos do Estado no exercício da persecução penal.291

ordinário se presume. E como, para o princípio ontológico, presumindo-


se o ordinário, é o extraordinário que se deve provar, segue-se que,
aberto o debate judiciário penal, é à acusação que cabe a obrigação de
prova”.
290 Sobre a presunção de inocência como princípio geral incondicionado
cuja finalidade também era atuar como norma de tratamento, por isso
inscrita no preceito do art. 9º da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, v. Aldo CHIARA, Presunzione cit., p. 75.
291 Gregório PECES-BARBA MARTINEZ, Fundamentos ideológicos cit., pp.
284/286, assevera a importância, para a segurança do cidadão, da
inscrição revolucionária da presunção de inocência na Declaração de
1789, pois, afirma, em tradução livre: “sem embargo, o princípio da
legalidade, este sim novo, a dota (a presunção de inocência) de um
fundamento mais forte, ‘porque não há infração sem texto, toda a
atividade do homem deve ser tida como lícita, salvo que se demonstre
que é contrária à lei’; em todo caso, não se deve diminuir a importância
de sua positivação no máximo nível normativo, porque assim passará a
constituir um princípio básico do Direito processual, quando antes sua
eficácia não tinha passado de ser, na melhor das hipóteses, irregular” –
acrescemos para esclarecer.
Como o monopólio da atividade processual penal deve ser do Estado – entendiam os
pensadores – é necessário limitar e controlar esse poder. Pelo viés processual penal uma
das formas mais seguras de cumprir esse desiderato é atribuir ao acusador o ônus de
provar a culpa do imputado, sob pena de, não provada de modo suficiente, não ser
quebrado o estado de inocência conferido constitucionalmente ao cidadão.
Dessa forma, a presunção de inocência mostrou-se totalmente coerente com o
pensamento iluminista da Revolução Francesa, transportando-o, de forma harmônica e
coerente, ao campo processual penal.
Se pela fé católica o “estado de inocência” era uma graça divina, para o racionalismo
laico dos iluministas ele era um primado filosófico-político inscrito no mais elevado nível
(a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789).292 Deste modo, projetava
seus efeitos para todo o sistema processual penal vindouro e para todas as pessoas.
A razão iluminista que levou à escolha pela expressão “presunção de inocência” foi
de natureza político-filosófica, seus reflexos deveriam ser jurídico-criminais. “Deveriam”,
porquanto as coisas não se deram como os iluministas ansiavam e desejavam. Quanto às
razões desse insucesso nas legislações processuais penais pós-iluministas, até o código de
processo penal brasileiro de 1941, tratamos no capítulo seguinte.

Capítulo II
Razões para a eliminação da presunção de inocência: da fase
napoleônica pós-iluminista à promulgação do Código de
Processo Penal brasileiro de 1941

2.1. Considerações iniciais

A primeira inscrição legal, por obra do iluminismo francês, de que em toda


persecução penal o imputado deva ser tratado como inocente, até que se tenham provas
suficientes para demonstrar a sua culpa, significou uma atitude transformadora na
mentalidade do processo penal até então existente. Porém, ela foi apenas o primeiro
passo.

292 Sobre a inserção da presunção de inocência nas Constituições francesas


de 1791 e 1793 e, por fim, sua exclusão na Constituição de 1795, v. nota
2 do Capítulo II, infra e itens 2.2.1 e 2.2.2 infra.
Como qualquer nova concepção juspolítica, ela também precisava de três fases para
sua realização. Devia ser concebida, isto é, sentida a sua necessidade e importância,
precisava ser trabalhada em termos racionais para sua concepção se moldar às carências e
vicissitudes do momento histórico. Como segundo passo, precisava ser materializada por
meio de sua inscrição legal, inserida no mundo juspolítico por força de lei. Essas duas
fases foram realizadas a contento. Todavia, não se chegou à terceira fase, consistente em
uma criação sistêmica apta a implementar de modo detalhado aquela ideação pelo tempo
necessário a que os novos institutos criassem raízes culturais nos operadores do direito.293
As duas primeiras fases foram levadas a cabo porquanto os iluministas bem se
aperceberam que a mudança da “presunção de culpa” – até então única existente na
história processual penal – para a presunção de inocência provocaria uma profunda
ruptura com o passado, permitindo a inauguração de uma nova história processual penal.
O processo penal deixaria de ser instrumento de coesão política pela força, usado em
prejuízo dos indivíduos contrários ou dissonantes aos desígnios do poder dominante, e
passaria a ser instrumento de defesa do cidadão frente ao poder estatal punitivo.

293 Nesse passo, faz-se, para a presunção de inocência, um paralelismo


entre o que a doutrina percebeu faltar para a efetiva implementação dos
direitos humanos consagrados no Iluminismo. Nesse sentido, Norberto
BOBBIO, A era dos direitos, 9ª ed., Rio de Janeiro: Campus, 1992, pp.
28/30, assevera que o universalismo dos direitos humanos passa por
três fases: a primeira nasce com as teorias filosóficas; a segunda vem
representada pela inserção legislativa dos pensamentos filosóficos, já
amadurecidos, no contexto interno dos Estados; e por fim, a terceira fase
consiste na inscrição legal daqueles preceitos humanitários em diplomas
legais internacionais que vinculem vários Estados, constituindo a fase
legislativa internacional.
Também contribuiu para a consecução daquelas duas fases o fato de se ter
conseguido inscrever tal preceito em documento de estatura juspolítica apropriada a
projetar todos seus efeitos metodológicos e filosóficos aos diplomas legais que lhe
deveriam ser hierarquicamente inferiores.294
Contudo, o desenvolvimento necessário não obteve o mesmo sucesso na sua
indispensável terceira fase, qual seja, a regulamentação e organização aptas a dar
concretude àquela profunda transformação filosófica e metodológica na persecução
penal. A fase legislativa não se completou no interior do Estado Revolucionário Francês.
A inscrição constitucional não teve seu indispensável eco na formação de um aparato
infraconstitucional (notadamente institutos jurídicos e organização de instituições
governamentais – judiciárias e administrativas) apto a implementar os desígnios
humanitários projetados.

294 A presunção de inocência, após ser inserida no art. 9º da Declaração dos


Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, foi mantida, agora com força
de norma constitucional, na Constituição francesa de 1791 e no art. 13
da Constituição francesa de 1793 (“Como todo homem presume-se
inocente até que seja declarado culpado, se se julgar indispensável detê-
lo, todo rigor desnecessário para sua detenção deve ser severamente
reprimido pela lei”). Esta última Carta citada, antes de entrar em vigor,
devido a vários conflitos políticos e militares, foi substituída pela Carta
francesa de 1795, limitadora de vários direitos fundamentais
conquistados pela Revolução, inclusive a expressa menção à presunção
de inocência. Esse passo atrás dos próprios franceses foi motivado pelo
perturbador instante de guerras internas e externas. Mais uma vez o
Estado vê na presunção de inocência um limitador para o exercício de
seu poder por meio do processo penal. Sobre essas mudanças
constitucionais e o clima político e conflituoso que as determinaram, v.
Fábio Konder COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos
humanos, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 144/160. Sobre a
retirada da presunção de inocência e os respectivos influxos processuais
penais trazidos pelos problemas sociais e pelos conflitos militares
franceses (internos e externos), v. itens 2.2.1 e 2.2.2 infra.
Reconheça-se, a bem da verdade, que essa incompletude não deve ser atribuída
apenas aos pensadores dos séculos XVIII e XIX, precursores e adeptos daquela nova
perspectiva processual. Até nossos dias, nos albores do século XXI, a presunção de
inocência ainda figura apenas como um pórtico filosófico e juspolítico, e não plenamente
no plano prático, ao menos no direito brasileiro. Inscrita como direito fundamental,295
carece ainda de uma estrutura procedimental (nova) e de uma (re)organização das
estruturas governamentais para lhe garantirem efetividade prática cotidiana.296 O grande
erro dos seus críticos – antigos e atuais – é que, ao não perceberem a incompletude
legislativa e organizacional causadora de sua deficiente aplicação, entendem-na abstrata
e imaterial demais, partindo para sua rejeição com a alegação de que é, na prática
cotidiana, inaplicável.297
O presente trabalho nasceu da constatação das dificuldades da presunção de
inocência se efetivar no atual cotidiano nacional.298 Para isso o presente capítulo ocupa
papel relevante, pois, também na fase pós-iluminista, a presunção de inocência não
vingou da forma desejada. É possível se estabelecer um paralelo entre as razões que a
impediram tanto na fase pós-iluminista como na atualidade nacional pós-constituinte.
Por isso é fundamental entender as razões desses obstáculos históricos, todos localizados
naquela terceira fase de implementação de um direto fundamental, pois também no
Brasil ela já foi concebida e se encontra inscrita em nível constitucional.

295 Sobre a presunção de inocência como direito fundamental, no


ordenamento brasileiro, v. item 3.4 infra.
296 Sobre o dever estatal de proteção e de “organização e procedimento”
para efetivação dos direitos fundamentais em seu aspecto objetivo, v.
maiores considerações dirigidas à presunção de inocência nos itens
3.8.2.2.2 e 3.8.2.2.3 infra.
297 Por esta razão é que Norberto BOBBIO, A era cit., pp. 25/26, bem
destaca, já no último terço do século XX, mais de dois séculos depois da
Revolução Francesa, que os direitos humanos por ela concebidos não
precisam mais em nossos dias de justificação, mas de uma efetivação.
Já se sabe de forma inconteste de sua indispensabilidade e
oportunidade nas nações democráticas, o que ainda está no porvir é a
sua plena realização no cotidiano da vida humana.
298 Expor o conteúdo da presunção de inocência e sua estrutura normativa,
assim como suas violações legais e a “inércia legislativa”, é a finalidade
principal do presente trabalho. Sobre esses pontos, v., de modo especial,
itens 5.2 a 5.5 infra.
Voltando à fase histórica pós-iluminista constata-se que, à época, a terceira fase
ficou irrealizada não porque a nova concepção estivesse equivocada, ou não fosse teórica,
lógica ou politicamente a mais apropriada. Muito ao contrário. Foi o acerto daquela
proposta de ruptura – que implicava (i) redução do poder central em face dos cidadãos,
(ii) respeito pelo ser humano submetido a julgamento e, ainda, (iii) imprescindível
melhoria na estruturação do aparelho juspersecutório, para melhor cognição fático-
jurídica, com conseqüente julgamento mais justo – que fez com que fossem opostas várias
barreiras àquele avanço. A profunda ruptura que provocaria no sistema processual penal
fez com que as resistências a sua implementação se recrudescessem.
Apercebendo-se do que significaria a mudança de paradigma proposta pelos
revolucionários iluministas, o preceito foi duramente criticado pelas novas correntes
juspolíticas e, outrossim, inviabilizou-se, na prática, sua implementação pelo retorno, em
grande medida, aos sistemas procedimentais penais anteriores à proposta revolucionária.
Não houve tempo necessário para que os novos ideais amadurecessem, criassem raízes e,
mais importante, fossem-lhes garantidas novas instituições e institutos que refletissem
uma nova concepção de política legislativa e de cultura social.299
Percebem-se duas linhas de argumentos ao pronto ataque efetuado no período pós-
iluminista à presunção de inocência: (i) uma, de fundo político-econômico e externa ao
direito, muito embora nele projetasse efeitos; (ii) outra, de matiz criminológico-
positivista e que, nascente do mundo jurídico, foi buscar em outras áreas do
conhecimento (medicina, sociologia, antropologia, etc.) novos aportes para a rejeição da
presunção de inocência.

299 J.J. ROUSSEAU, Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens, tradução de Maria Armantina Galvão,
São Paulo: Martins Fontes, 1993, pp. 122/123, em 1754, mais de trinta
anos antes da Revolução Francesa eclodir (1789), já antevia que um
novo sistema fundado na igualdade e na liberdade, fundamentos
inaceitáveis à mentalidade de séculos de autoritarismos anteriores,
precisaria de tempo para fincar raízes no poder e no corpo social;
vaticinou aquele pensador: “Não teria desejado morar numa República
de instituição nova, por melhores leis que pudesse ter, receando que o
governo, talvez constituído de modo diferente daquele necessário para o
momento, não conviesse aos novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo
governo, e ficasse o Estado sujeito a ser abalado e destruído quase em
seu nascimento. Porque ocorre à liberdade o mesmo que aos alimentos
sólidos e suculentos, ou aos vinhos generosos, apropriados para nutrir e
fortificar aos temperamentos robustos a eles habituados, mas que
prostram, arruínam e embriagam os fracos e delicados que não lhes são
afeitos. Os povos, uma vez acostumados a senhores, já não têm
condições de dispensá-los. Se tentam sacudir o jugo, afastam-se ainda
mais da liberdade, pois, tomando-a por uma liberdade desenfreada que
lhes é oposta, suas revoluções quase sempre os entregam a sedutores
que apenas agravam seus grilhões”. Palavras sábias que, ao que
parecem, não só prediziam a necessidade de um tempo para que as
idéias se implementassem de modo eficaz, como anteviam o novo jugo
representado por Napoleão Bonaparte. Concluindo ao final do parágrafo:
“Portanto, teria procurado para mim uma República feliz e tranqüila, cuja
ancianidade de certo modo se perdesse na noite dos tempos, que só
houvesse sofrido golpes próprios para manifestar e fortalecer em seus
habitantes a coragem e o amor à pátria, e onde os cidadãos, de há muito
acostumados a uma sábia independência, fossem não só livres, mas
também dignos de sê-lo”.
A exposição dessas duas linhas argumentativas inicia-se pela análise da história
juspolítica criminal da França Napoleônica, uma vez que foi a partir do ordenamento
processual elaborado nessa fase que se rejeitou pela primeira vez a presunção de
inocência e, em seu lugar, criou-se o sistema misto. Sistema processual que orientou a
formação da maior parte dos códigos de processo penal europeus até final do século XIX
e início do século XX.
Posteriormente, já demonstrada a influência do sistema processual penal misto na
Europa, o desenvolvimento deste capítulo se concentrará em analisar a doutrina e a
legislação italianas do final do século XIX e início do século XX. Isto porque, fortemente
influenciadas pelo sistema misto francês e embebidas por problemas sociopolíticos,
produziram significativas correntes criminológicas e técnico-jurídicas das quais
resultaram códigos de processo penal que se tornaram a base de nossa legislação atual.
Pela riqueza nos debates doutrinários sobre a exclusão da presunção de inocência
como princípio reitor do processo penal italiano dessa época, a exposição parte da Scuola
Positiva italiana e do dito “primeiro código moderno e verdadeiramente italiano”,300 o
“Codice di Procedura Penale” italiano aprovado em 1913, por obra do Ministro
Finocchiaro Aprile. Ponto de partida necessário para, ao final, permitir se expor com
coerência e racionalidade como o recrudescimento empreendido pela política
nazifascista nos Códigos de Processo Penal italianos de 1913 e 1930 projetou seus
reflexos no sistema processual brasileiro; muitos dos quais perduram até os dias atuais.

2.2. Obstáculos à presunção de inocência na França pós-iluminista

No período revolucionário, tinha duas implicações a afirmação de que um processo


penal humanitário somente seria possível se, no curso da persecução penal, ninguém
fosse tratado como culpado: a primeira, mais imediata, o poder arbitrário dos juízes
sofreria um freio em sua sanha punitiva ante à valorização e ao necessário respeito a ser
dispensado aos direitos do imputado; a segunda, não tão imediata, mais afeita à técnica
processual, era a imprescindibilidade da construção de um sistema processual mais
técnico, com a reestruturação dos órgãos persecutórios e o abandono de qualquer
resquício dos sistemas anteriores, notadamente o inquisitivo.
Se a primeira implicação foi sentida por todos, animou as transformações iniciais e
foi a principal causa de muitas de suas críticas, a segunda não se realizou por vários
fatores, que foram se sucedendo na história e se arrastaram até meados do século XX.

2.2.1. -Guerras napoleônicas: razões para a reversão do ideário


iluminista nas legislações criminais européias

300 Assim referido por Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale


penale italiano, 6ª ed., Torino: UTET, 1967, v. 1, p. 82, e por Alessandro
MALINVERNI, Lineamenti di storia del processo penale, Torino:
Giappicheli, 1972, pp. 50/51.
Para melhor se entender o contrafluxo juspolítico napoleônico, em resposta ao
movimento iluminista, deve-se observar como foi a evolução política do Estado francês
pós-revolucionário e seus reflexos na Europa.
Como observa FÁBIO KONDER COMPARATO, o “grande problema político do
movimento revolucionário francês foi, exatamente, o de encontrar um outro titular da
soberania, ou poder supremo, em substituição ao monarca”.301 Esse vazio de poder foi
ainda mais sentido porque a ele se agregaram dois fatores. O primeiro, a Revolução
precisava de um poder central forte uma vez que pretendia, em busca da igualdade e
liberdade prometidas, terminar com focos institucionalizados de desigualdade histórica
nos mais variados setores (econômico, profissional, social e político).302 O segundo, o
anseio dos revolucionários de não limitar os seus ideais à França, mas espalhá-los a todas
as demais nações do mundo, como garantidores da liberdade do homem em qualquer
local que estivesse,303 fez com que a França abrisse guerra, ou ao menos provocasse receio
nos Estados monárquicos vizinhos.304
A França, berço da maior expressão revolucionária, precisava, portanto, que o poder
voltasse a ser ocupado por uma figura central e, simultaneamente, unificadora das
funções de governar, legislar e julgar. Esse espaço de poder veio a ser ocupado, como já
sucedido na Roma dos Césares, por alguém advindo dos campos de batalha e que lá
tivesse provado seu patriotismo e destemor. Surge a figura de Napoleão Bonaparte para
preencher esse espaço de poder, “jovem e obscuro general de pequenas forças” francesas
em luta na Sardenha e Áustria.305

301 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 135 e ss., destaca que
a rejeição das lideranças religiosas e reais pelos revolucionários, aliada à
eliminação das representações de classes e de grupos, tornando todos
os cidadãos iguais e com a mesma representatividade, fez surgir um
vazio de legitimados a ocupar o poder. Máxime se notarmos que havia
profunda dissensão entre os integrantes do “terceiro estamento” (le Tiers
Etat), composto pelos excluídos da nobreza e do clero (sem privilégios),
pela classe burguesa e pelo restante do povo.
302 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 130/134.
303 Fabio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 133/134.
304 Sobre os avanços revolucionários contra países ainda monárquicos e a

coalizão antifrancesa formada por Prússia, Rússia, Inglaterra, Espanha,


Reinos da Sardenha e de Nápoles e o Gran Ducado da Toscana, v.
Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 46/49. Esse autor cita,
ainda, outra razão menos humanitária, e muito provável, para o avanço
externo da França contra os países vizinhos, qual seja, a crise
econômica (carestia e inflação) e social (aumento da pobreza nas
cidades) internas, abertas pela nova ordem ainda instável. A ruptura com
a ordem do Ancien Régime não trouxe, de pronto, uma nova ordem, até
mesmo porque se desejava algo novo que, enquanto não surgia,
produziu a desordem.
305 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 46/47.
Diante desse novo estado francês centralizador, agora pós-revolucionário, os
avanços processuais penais conquistados na Assembléia Nacional de 3 de novembro de
1789, pelos Decretos de 22 de abril e 16 de agosto de 1790 e, ainda, pela Constituição de
1791, notadamente em seu título 3, capítulo 5, art. 9º, pelo qual “o sistema de
procedimento inquisitivo é abolido completamente e substituído por um sistema
acusatório modernizado, inspirado no procedimento inglês (iniciativa da ação penal por
parte do ofendido e para todo cidadão o conhecimento do crime, introdução de um júri
composto por leigos e presidido por um juiz de paz competente para o reenvio a juízo, e
por outro júri leigo presidido por um magistrado responsável pela sentença definitiva;
juízo público, oral, em contraditório)”,306 tiveram seu fim já em 1811, por força da
promulgação, por Napoleão Bonaparte, do Código Penal e do Código Processual Penal
franceses.307 Dessarte, pouco mais de 20 anos após a promulgação da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão (1789), há um forte retrocesso no campo processual
penal.
Essa codificação criminal francesa oitocentista, que serviu de fonte inspiradora para
muitos outros códigos criminais europeus do século XIX,308 não podia romper por
completo com o espírito liberal (humanitário) da Revolução que lhe propiciou o
surgimento, mas, também, não poderia deixar de ser um instrumento para a instalação do
novo absolutismo francês.
O processo penal, portanto, e mais uma vez na história, foi utilizado como
instrumento de exercício do poder estatal para que, aquele governo em implantação, por
meio da “força legalizada”, imprimisse seus novos desígnios frente a todos que fossem
tidos como seus opositores (criminosos ou não). Tentando compatibilizar o ainda muito
recente espírito revolucionário, e que em última análise tinha permitido a ascensão de
Napoleão Bonaparte ao poder, com a necessidade de centralização dos poderes inerentes
e necessários de um sistema criminal novo, suas maiores preocupações foram limitar as
garantias dos imputados e tornar ilimitado os poderes judiciais no exame da prova.309

306 Tradução livre de Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 46. Para


uma análise detalhada do procedimento penal francês instituído na fase
revolucionária, v. R. GARRAUD, Compendio de direito criminal, tradução
de A.T. de Menezes, Lisboa: Teixeira, 1915, v. 1, item 28. Para
considerações sobre aspectos do “in dubio pro reo” e da presunção de
inocência naquele sistema, v. item 1.5.3.1 supra.
307 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 47.
308 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 48 e Giorgia ALESSI, Il

processo penale: profilo storico, 5ª ed., Roma-Bari: Editori Laterza, 2005,


pp. 158/159.
309 Nesse sentido, tanto do recrudescimento do sistema processual como da

ilimitada ampliação dos poderes judiciais no exame da prova, v. Massimo


NOBILI, Il principio del libero convincimento del giudice, Milano: Giuffrè,
1974, pp. 17/23 e 168/175.
Diante de um Estado centralizador e absolutista, preparado para a guerra com todos
os seus vizinhos e para o enfrentamento de conflitos e carências internas, desfaz-se o
momento político, social e econômico propício para o desenvolvimento do espírito
humanitário e liberal da Revolução, e os rumos institucionais passam à realidade política,
já vivida tantas vezes, de um continente em guerra. A repressão rápida e a punição severa
de conflitos penais internos era um dos instrumentos estatais franceses para “dar uma
resposta” política aos cidadãos diante da criminalidade e, principalmente, um meio de
fortalecimento do Estado diante do “inimigo (interno ou externo)”.

2.2.2. Surge o procedimento penal misto napoleônico

Napoleão Bonaparte, necessitando construir um novo sistema criminal a seu feitio


totalitário, não poderia manter a incipiente legislação criminal revolucionária, cuja
estruturação estava apenas esboçada e para a qual a cultura jurídica ainda não
amadurecera. Dessa forma, para resolver essa dicotomia juspolítica e que, em decorrência
inevitável, veio projetar efeitos no âmbito processual penal (espírito revolucionário
humanitário versus necessidade punitiva), buscou-se uma “solução de compromisso: a
atribuição do caráter burocrático e secreto na primeira fase do procedimento, redimida
pelo espaço acordado para a publicidade e para a introdução de elementos não togados na
segunda”.310

310 Giorgia ALESSI, Processo penale: direito intermedio, in ENCICLOPEDIA


del diritto, Milano: Giuffrè, 1971, v. 36, p. 397, assim se manifesta na
íntegra do texto, in verbis: “La codificazione francese del primo Ottocento
– che servì da modello a diversi codici preunitari e, attraverso i codici
sardi del 1847 e 1859, allo stesso codice di procedura del 1865, risolve le
tensioni pubblicità-segreto, efficienza-garantismo attraverso una
soluzione di compromesso: l´attribuzione del carattere burocratico e
segreto alla prima fase del procedimento, riscatta dallo spazio accordato
alla pubblicità e all´introduzione di elementi non togati nella seconda”.
Nesse mesmo sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Significados da presunção de inocência, in José Francisco de FARIA
COSTA e Marco Antonio Marques da SILVA (coord.), Direito penal
especial, processo penal e direitos fundamentais: visão luso-brasileira,
São Paulo: Quartier Latin, 2006, item 2, p. 313, e Paolo FERRUA,
Riforme processuali con aspirazioni accusatorie e pericoli di
degenerazione inquisitoria, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale,
Milano, v. 20, n. 1, gen./mag., 1977, itens 3 e 13.
Criou-se, assim, o procedimento penal misto como forma de compatibilizar o
incompatível, qual seja: “o modelo inglês e a ordenança francesa de 1670. Enquanto o
primeiro perde influência devido aos conflitos militares e à resistência das cortes
francesas (sempre rebeldes a recepcionar-lhes os institutos, antes de tudo o júri); a
segunda volta a impor as suas razões, sobretudo ao que concerne à escrita e ao segredo da
fase instrutória”.311
No procedimento penal misto francês, do início do século XIX, privilegia-se, na
primeira fase, de cariz inquisitivo, a relação “processo-aparatos” de persecução, que
consiste no regramento das funções judiciárias como funções altamente burocratizadas, e
pelo qual se sobrepõem os direitos do Estado aos direitos dos cidadãos. Dessa primeira
fase, são as principais características importantes ao presente estudo: o segredo e a forma
escrita já nos primeiros momentos de busca da “prova”; a onipotência do magistrado
instrutor (uma vez abolido o júri de acusação); a impossibilidade do imputado produzir
“prova” a seu favor ou participar da investigação preliminar; o aumento dos poderes do
Ministério Púbico (órgão estatal de nomeação pelo governo); a ampliação das hipóteses e
maior severidade na prisão preventiva; o peso decisivo dessa fase preliminar sobre a
segunda fase instrutória; e, por fim, um livre convencimento judicial ilimitado nessa
segunda fase.312

311Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 397. Nessa obra (op. cit., pp. 397/398),
a autora aponta que a quebra da tendência liberal do espírito
revolucionário francês, pela retomada de um procedimento de fase
preliminar secreta e escrita, foi arrefecida por um grande incremento
tecnicista, exemplificando com um exaustivo sistema de nulidades
(absolutas e relativas) e um preciso controle das hipóteses de prisão
provisória em face das espécies de penas previstas no tipo penal.
Porém, ressalva, tal tecnicismo foi deixado de lado pelo Código de
Instrução Criminal de 1808 (Code d´instruction criminelle), cuja tendência
foi reforçar e incrementar os poderes discricionários do julgador, como
sói acontecer em regimes autoritários. R. GARRAUD, Compendio cit.,
item 32, abordando a superposição de elementos dos sistemas
inquisitivo e acusatório, assim se manifesta: “O código de instrução
criminal é uma obra eclética onde se encontram em proporções mais ou
menos iguais, antes sobrepostas que fundidas, os dois elementos
históricos já assinalados. Organisa com efeito um processo ‘mixto’ que
da ordenação de 1670 contém a sua informação secreta e escrita, e dos
códigos da assembléia constituinte e da convenção guarda a instrução
oral com publicidade e debates que precedem o julgamento. O júri
d´acusação é suprimido e mantido o do julgamento”.
312 Todas essas características são apontadas por Massimo NOBILI, Il

principio cit., pp. 172/173.


Na segunda fase procedimental, de perfil acusatório, pretendeu-se uma concepção
mais atenta à relação “processo-cidadão”, na qual se volta, preferencialmente, a eliminar
a contraposição entre garantias individuais e interesses do Estado, favorável ao
distanciamento técnico dos juízes e controle pela opinião pública, pela inserção do
sistema inglês do júri.313 Ao final dos debates legislativos franceses, o sistema que acabou
prevalecendo foi o do júri popular na segunda fase. Porém, o modelo discutido tão
vivamente de substituição do júri popular por juízes togados já tinha se espalhado por
toda Europa.314 Assim, o livre convencimento, inerente àquele sistema inglês, é utilizado,
sem as limitações das regras da law of evidence, por aquele juiz funcionário que passa a
decidir sem limites ou compromissos com a prova produzida nos autos, muitas vezes
usando seus próprios meios ou convicções extraídas de fatos externos ao processo.315

313 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 393/395. Massimo NOBILI, Il principio
cit., pp. 173/176, bem retrata essa difícil “busca de solução de consenso”
que, em verdade, buscava extirpar de um recente e incipiente sistema
criminal revolucionário o cariz de direitos ao cidadão, pela fixação de um
sistema autoritário e repressivo ao feitio do novo titular do poder. Sobre
os reflexos da vitória autoritária no sistema processual penal misto
napoleônico e como isso tornou ilimitado o livre convencimento judicial,
de modo a propiciar o enfraquecimento da produção de provas na
segunda fase processual (de feições mais garantistas), limitando-a a
uma mera repetição do que antes foi produzido em fase investigativa
(sem qualquer direito ao cidadão), v. item 2.4.6 infra, ao tratarmos de
como isso se fixou no sistema processual penal italiano de 1930. V.,
ainda, no item 2.5.2.4 infra, considerações de que isso foi inserido em
nosso ainda atual código processual de 1940.
314 Sobre a influência do modelo misto francês, com a substituição do júri
popular pelo juiz togado, no sistema italiano desde o Codice per il Regno
d´Italia, de 1807, v. Massimo NOBILI, Il principio cit., pp. 175/179 e
200/2005, com importantes considerações do autor sobre os efeitos
disso para o sistema do livre convencimento motivado italiano.
315 Nesse sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação
das decisões judiciais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp.
145/148.
Na codificação criminal francesa de 1808 (código de instrução criminal) e 1810
(código penal), com vigência a partir de 1811, a criminalização de determinados
comportamentos e de pessoas voltou a ser utilizada como instrumento de controle
político, tal qual ocorrente no Ancien Régime: “o vagabundo como objeto privilegiado de
repressão; os furtos na região rural ou a falsa moeda como crimes que comprometem a
vida civil; a ameaça à ordem constituída como expressão de inimizade contra toda a
comunidade”.316 “O codigo penal de 1810 tem por caracter organisar a ‘defesa social’ por
meio da ‘intimidação’”.317
Como se percebe, tal codificação foi alimentada pelo pretexto de uma “emergência
política”, que se baseava em um crescimento da criminalidade interna318 e no risco de
subversões políticas, perigosíssimas a um Estado em guerra com seus vizinhos.
Novamente, em alegada situação de emergência (política, militar, institucional, de
segurança pública interna, etc.), o Estado lança mão de medidas de exceção justificadas
pela figura do “inimigo público”.319
Constata-se, portanto, que o espírito liberal revolucionário não conseguiu produzir
mudanças perenes no sistema processual penal uma vez que as necessidades criadas pela
violência interna e externa, aliada à falta de experiência histórico-jurídica com qualquer
outro sistema processual penal que não fosse o inquisitivo, fez com que o temor
orientasse à legitimação de um “novo” autoritarismo estatal. Esse, por sua vez, para
responder aos anseios de segurança (interna e externa) que o legitimaram, lança mão do
processo penal como instrumento de exercício político da força estatal contra os “novos”
inimigos do Estado.

316 Giorgia ALESSI, Processo cit., p. 398, in verbis: “Ritornano in queste


leggi, sotto la spinta dell´emergenza politica , figure e reati ricorrenti nella
trattatistica criminale d´Antico Regime: il vagabondo come oggetto
privilegiato di repressione; i furti in campagna o la falsa moneta come
reati che compromettono la convivenza civile; la minaccia all´ordine
costituito come espressione di inimicizia verso la comunità tutta”. Para
uma maior exposição sobre o tema, v., do mesmo autora, Il processo cit.,
pp. 161/163.
317 R. GARRAUD, Compendio cit., item 32. Antônio MAGALHÃES GOMES
FILHO, Direito à prova no processo penal, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1997, pp. 29/31, mostra como o sistema processual misto
francês representa um retrocesso ao humanismo iluminista em prol de
uma mentalidade repressiva aos moldes napoleônicos.
318 Para comentários sobre a mudança legislativa sob o argumento político
do aumento da criminalidade interna no final do século XVIII, v. R.
GARRAUD, Compendio cit., item 30.
319 Qualquer semelhança desse instante francês com a anterior cultura
inspiradora da Inquisição e com os momentos atualmente vividos neste
início de século XXI não é mera coincidência. Para toda uma civilização
sem imaginação e coragem institucional, a história apenas se repetiu e
ainda hoje se repete.
Não obstante ainda fossem fortes o ideário e a lógica humanitária dos iluministas
quanto à necessidade de aperfeiçoamento que a introdução da presunção de inocência
causaria no processo penal, notadamente no sentido de sua melhoria técnica e maior
garantia ao cidadão, o discurso de “emergência política”, por seu sempre imediatismo,
revivificou os procedimentos romano e medieval. Só que agora, como que se algo “novo”
estivesse sendo “inventado”, fundiam-se os modelos acusatório e inquisitivo em um
único procedimento, doravante conhecido como “misto”.320
A presunção de inocência não integrou esse “novo” procedimento penal uma vez
que as razões e justificativas para criação desse novo modelo procedimental, assim como
sua estrutura persecutório-cognitiva, nada trouxeram de novo aos procedimentos penais
pré-revolucionários, todos, como se viu,321 infensos à presunção de inocência.
Em detrimento do avanço humanitário iluminista, pelo desinteresse e conveniência
de não criar condições organizacionais e procedimentais para efetivar a presunção de
inocência, cedia-se, mais uma vez na história, à conhecida figura do “inimigo”.
Repristinada a construção romana do hostis,322 estava aberto o caminho para a
revivificação da presunção de culpa na persecução penal.

320 Giorgia ALESSI, Processo cit., pp. 393/395. Esse “novo” sistema é assim
descrito por Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit. p. 47, em tradução
livre: “No ano de 1811 eram promulgados por Napoleão o código penal e
o código de processo penal. O código processual, porém, abandonava o
sistema totalmente acusatório das leis revolucionárias, e, em coerência
com o caráter ditatorial do regime político instaurado, realizava um
parcial retorno ao sistema inquisitório. A primeira fase do processo tinha
caráter nitidamente inquisitório. A ação penal era confiada a um
magistrado dito ‘procureur imperial’; a obrigação de proceder às
primeiras investigações para recolher os depoimentos era atribuída a um
juiz instrutor; a obrigação de manifestar-se sobre a instrução era
atribuída à Câmara de conselho do Tribunal correcional, com faculdade
de recorrer à Câmara de acusação. A segunda fase do processo era, ao
contrário, inspirada mais largamente pelo princípio acusatório, o debate
era público, oral, em contraditório, e a sentença vinha pronunciada por
um júri formado por leigos”. Sobre a utilização do discurso de
“emergência” até nossos dias e seus efeitos deletérios ao sistema
criminal, v. item 5.4.2.3.2 infra.
321 Sobre a existência da presunção de culpa em todos os sistemas

processuais analisados no capítulo I e anteriores ao iluminismo, v. itens


1.2.4, 1.3.2 e 1.4.3 supra.
322 Sobre a figura do hostis e da presunção de culpa no direito romano, v.

item 1.2.4 supra.


Tanto os sistemas processuais anteriores quanto o dito “sistema misto” foram postos
à disposição e criados por um poder central para seu uso político (no caso napoleônico,
absolutista-militar), com criminalização marginalizante de pessoas previamente
selecionadas, e ainda fundados em um discurso de segurança (interna e externa) da
comunidade. Tudo isso, insista-se, sempre justificado pelos sempre repristinados riscos
causado pelos “inimigos” (internos e externos) do Estado e decorrente da necessidade
(real ou fictícia) de “segurança da comunidade” contra a criminalidade.323
A concepção da presunção de inocência, por sua natureza, é incompatível com
qualquer procedimento penal concebido e orientado para finalidades político-
persecutórias marginalizantes e subservientes a um Estado que vê o indivíduo (criminoso
ou não) como inimigo público. Isto porque, todo modelo penal assim desenhado vai se
projetar na esfera processual penal por meio da presunção de culpa.
A par das inegáveis melhorias técnico-legislativas e um aumento de garantias
processuais, hauridas entre o final do século XVIII e o último quarto do século XIX, se
comparadas com o período da Inquisição, assim como a par do afastamento da cultura
religiosa como critério determinante do julgamento, nada houve de diferente no “sistema
misto francês” em relação aos sistemas processuais penais repressivos antecedentes.324 A
concepção de “inocência” do imputado até decisão final foi esquecida. Não é por outra
razão que, a despeito de a presunção de inocência ter sido afirmada na Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e reproduzida nas Constituições Francesas de
1791 e 1793, omitiram-na na Constituição de 1795 e no Código de Instrução Criminal
francês de 1808.325
Pelas razões políticas e econômicas expostas, não houve condições propícias, seja no
campo legislativo seja no campo organizacional, para a consecução da já citada terceira
fase de implementação da presunção de inocência como novo eixo processual penal no
período histórico pós-revolucionário (final do século XVIII e século XIX). Permaneceu
apenas a força lógica e filosófica do racionalismo humanitário do Iluminismo.

323 É inevitável encetar aqui o paralelo, de todo atual, entre o discurso


repressivo e de exceção francês do início do século XIX e o
estadunidense do final do século XX e início do século XXI. Invadir
países estrangeiros a pretexto de levar a liberdade a outros povos, com
um inegável contexto sub-reptício econômico, e, para isso, no campo
processual penal, reduzir as garantias individuais de grupos
considerados inimigos (internos e externos) do Estado não ocorria
apenas no passado, como nos mostra o Patriot Act estadunidense, de
2001.
324 Sobre a análise dos sistemas processuais antecedentes em face da
presunção de inocência, v. capítulo I supra.
325 Essa ausência constitui aspecto sintomático de o código de processo
penal francês ter sido uma codificação repressiva e pouco democrática,
conforme observado por Alessandro MALINVERNI, Principi del processo
penale, Torino: Giappichelli, 1972, p. 473.
2.3. -Escola Positiva: a defesa social volta ao centro do processo penal

Para que se possa entender como os fortes e transformadores efeitos do pensamento


iluminista foram se enfraquecendo por toda a Europa até o final do século XIX e início
do século XX, é necessário compreender como foi se alterando o cenário socioeconômico
e político.
Como já se viu nos exemplos históricos estudados, e sempre ocorrerá com o
processo penal, há uma profunda relação entre esse ramo do direito e os desígnios
políticos defendidos pelos ocupantes do poder. Nesse sentido, necessário destacar, mesmo
que de modo breve, como um movimento revolucionário tão importante se esvaziou em
pouco menos de um século e meio de existência.
O movimento revolucionário iluminista, eclodido na segunda metade do século
XVIII, não se limitava a transformações filosóficas e políticas, contendo, outrossim,
matizes científicos e econômicos a lhe darem suporte e motivação.
A crescente e cada vez mais pujante sociedade burguesa se afinava cada vez mais
com as idéias revolucionárias, principalmente pela necessidade de expandir seus
domínios econômicos para além dos limites e da opressão tributária e territorial impostos
pelos monarcas e senhores feudais. O desenvolvimento científico, aliado aos novos
anseios de lucro e produção em massa, propiciou o surgimento e desenvolvimento da
Revolução Industrial, já em franca expansão no século XVIII e cujo auge foi atingido no
século XIX e início do século XX.
A Revolução Industrial, grande movimento econômico-burguês da época, foi
decisivo para o estabelecimento de novos fluxos populacionais para os grandes centros
urbanos, em busca de melhores condições sociais e econômicas. Os avanços científicos na
área das ciências biomédicas garantiram uma maior expectativa de vida, o que, em fase
de plena expansão industrial, significava mais tempo do ser humano na produção.
Contudo, o crescimento econômico do século XIX e início do século XX não
implicou melhor distribuição das riquezas.
Houve a ascensão e estabilização de uma nova classe social fortalecida (a burguesia),
sem que com isso deixasse de haver um forte e crescente proletariado que, se não vivia
mais nas subcondições da zona rural, ainda infensa à mentalidade feudal em muitos
pontos, estava longe de gozar de um bem-estar ideal para o pleno desenvolvimento
humano. Todos conhecem o fim dessa convivência de cada vez maiores desigualdades
socioeconômicas com espaço territorial tão exíguo e de alta densidade demográfica:
cresce a violência nas urbes. Diga-se, violência e não apenas crimes, pois, nem toda a
violência é criminalizada, nem todo crime deve ser considerado violência.
O sistema criminal formal (direito penal e processo penal) apenas acenado, mas não
estruturado pelo ideário iluminista no final do século XVIII e início do século XIX, não
oferecia segurança e os operadores do direito não estavam maduros para enfrentar a nova
e crescente criminalidade por meio daqueles ideais. A base contratualista, seja a pensada
por Rousseau seja a pensada por John Locke, começa a ser desacreditada. Sem a
necessária informação científica de que a criminalidade é apenas o mais visível e último
aspecto externo da violência, a qual somente pode ser eficazmente combatida se as suas
causas são neutralizadas, acreditava-se que a filosofia racional do iluminismo não servia à
constatação prática da realidade da violência urbana.
Junte-se a isso uma inegável constatação: se o ideal revolucionário foi útil à
burguesia em um primeiro momento, representado pela desconstituição forçada do poder
central existente (reis e clero), abrindo espaço para sua ascensão, em um segundo
momento, quando já se estabeleceram no poder, os ideais de igualdade e de presunção de
inocência para todos já não lhes pareciam tão perfeitos.326
No âmbito científico, com o desenvolvimento de métodos e equipamentos de
análise empírica, a pesquisa das ciências naturais começa a contaminar todas as demais
áreas do conhecimento devido a sua (pretensa) maior precisão e, por conseqüência,
aparente incontestabilidade auferida da observação de casos e do levantamento de dados
objetivos para conclusão estatística. Com isso, a compreensão filosófico-racional
(iluminista) é substituída pela análise empírica, científica e estatística, típicas da Escola
Positiva. Dentre essas novas descobertas científicas cite-se, por profunda influência para
essa nascente Escola, notadamente em face de CESARE LOMBROSO, a teoria da
evolução das espécies de CHARLES DARWIN, afirmando que o homem era uma
evolução do símio e, portanto, negando a crença da criação divina (teoria do
criacionismo).327
Esse feixe de fatores produziu as condições históricas necessárias para explicar o
surgimento da Escola Positiva.

2.3.1. -Breves considerações sobre os fundamentos da Escola Positiva:


cotejamento com a Escola Clássica

326 Nesse sentido, v. Eugênio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo no direito


penal, tradução de Sérgio Lamarão, Rio de Janeiro: Revan, 2007, pp.
43/46.
327 Ricardo de Brito A. P. FREITAS, As razões do positivismo penal no
Brasil, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, pp. 54/57.
Durante o século XIX, travou-se uma profunda cizânia entre os defensores das
idéias humanitárias da Revolução Francesa e os seus opositores, adeptos de um sistema
criminal mais rigoroso e que tendia à defesa social, em detrimento dos direitos
individuais. Estes últimos formaram a chamada “Escola Positiva”, por muitos entendida
como o berço da criminologia328 e que veio para se opor à corrente ideológica iluminista,
por eles denominada “Escola Clássica”.

328 Para Jorge de Figueiredo DIAS e Manuel da Costa ANDRADE,


Criminologia: o homem delinqüente e a sociedade criminógena, Coimbra:
Coimbra, 1984, pp. 6/7, a criminologia, como ciência, surge já no
movimento iluminista que, posteriormente, foi denominado Escola
Clássica. Para os autores, a natureza sistêmica das idéias e o corpo
racional de mudanças, baseado em críticas organizadas e propostas
reformistas teleologicamente dirigidas à consecução de finalidades
claras e discutidas por um grupo de pensadores em vários países, pode
e deve ser aceito como o primeiro movimento da ciência criminológica.
Entendendo de forma diversa, no sentido de que qualquer ramo da
ciência, para merecer esse nome, deve partir de estudos empíricos e de
fatos constatáveis da realidade, a fim de formar um corpo de dados
passíveis de análise, v. Antonio GARCÍA- PABLOS DE MOLINA,
Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos, tradução e
notas de Luiz Flávio Gomes, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pp.
100/101. Este autor entende que a criminologia, como ciência, somente
surge com a Escola Positiva italiana, no último quarto do século XIX.
Sérgio Salomão SHECAIRA, Criminologia, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, pp. 73/77, muito bem destacou ser impossível deixar de
ver na corrente racional de pensadores clássicos do final do século XVIII
a gênese da criminologia. Adotamos essa última posição de reconhecer
na Escola Clássica a primeira corrente criminológica. Isto porque, além
dos fatores indicados pelos citados autores portuguêses, acrescemos
que se o Positivismo, inegável corrente criminológica, sentiu a
necessidade de denominar seus antecessores de “Escola Clássica”, para
definir com clareza a corrente contra a qual levantava suas críticas, foi
dele a primeira percepção de que aquela forma de pensar dita “clássica”
era de fato uma corrente de pensamento e, portanto, a precursora da
criminologia como ciência.
A Escola Positiva foi motivada pelas insuficiências da Escola Clássica329 em
decorrência dos já destacados aspectos do (i) intervencionismo econômico-social, (ii) do
aumento desmedido da criminalidade nos grandes centros urbanos, (iii) da ciência
empírica que alcançava desenvolvimento inédito e, por fim, (iv) dos novos anseios da
nova classe dominante.
Nessa confluência de fatores, decide-se pelo uso do processo penal e do direito penal
– novamente e mais uma vez na história da humanidade – como meio de implementação
de desígnio político do poder instituído. Tornaram o processo meio de intervenção social
contra o indivíduo insubordinado em face das regras (penais) de comportamento
impostas.
Contudo, na Scuola Positiva, a marca da delinqüência não vem mais por um viés
religioso (heresia), mas, por influxo das ciências emergentes. Deriva de uma observação
estatística das ocorrências criminais, do perfil biopsicológico ou do meio social de quem
as praticava. O estigma do crime, para essa nascente escola criminológica, não residiria
mais na alma, mas no gene (biopsicológico ou social) do indivíduo.
Por meio do direito criminal (penal e processual penal) a política de intervenção
social inverte as posições entre Estado e indivíduo, anteriormente fixadas pela Escola
Clássica. O processo penal deixa de ser instrumento de proteção do indivíduo em face do
arbítrio ou da natural sanha punitivo-estatal e volta a ser meio de implementação de
política estatal. Nessa perspectiva de busca do “bem para a comunidade” ou de “defesa
social frente ao crime”, é lógico e esperado que os interesses punitivos, prolatados
erroneamente como públicos, sempre se sobreponham às garantias processuais
equivocadamente tidas como privadas e particulares e, portanto, de interesse secundário.

329 O fato de a Escola Clássica mostrar-se incapaz de atender às demandas


criminais do século XIX, não significa que a Escola Positiva atendesse-
as a contento. Ela era apenas uma nova corrente criminológica que
aparentava ser forte e inovadora, pois estava em seu instante de
concepção e formação. Porém, já na última década do século XIX e
início do século XX, a Escola Positiva mostrou muitas divisões, cismas,
falhas e precipitações na análise experimental-científica. Portanto,
também se revelou insuficiente para apresentar solução eficaz para as
causas penais. Sobre essa quebra de consistência na Escola Positiva, v.
Fausto COSTA, Delitto e pena nella storia del pensiero umano, Torino:
Fratelli Bocca Editori, 1928, pp. 218/226.
Assim, se a falta de uma preparação organizacional e procedimental impediu que o
ideário iluminista da Escola Clássica tivesse garantida a sua efetivação desde o final do
século XVIII e início do século XIX, foi a política socioeconômica e as ciências naturais
do final do século XIX e início do século XX que forneceram o aparato técnico necessário
para se fundar uma nova escola criminológica (a Scuola Positiva).330

330 Sobre a falta de o Estado cumprir seus “deveres estatais de proteção”


dos direitos fundamentais e seu dever de “organização e procedimento”
como o principal fator para a falta de efetivação da presunção de
inocência na atual realidade nacional, v. itens 3.8.2.2.2, 3.8.2.2.3 e 5.2
infra.
Cotejando, ainda que de modo breve, a Escola Clássica331 e a então nascente Escola
Positiva332 pode-se afirmar que: a) quanto ao método, enquanto os clássicos utilizavam
uma lógica dedutiva para análise racional e abstrata da relação Estado-indivíduo, os
positivistas utilizavam experimentos científico-empíricos sobre a realidade criminal;333 b)
quanto ao plano de pesquisa, para os clássicos era o racional filosófico, enquanto para os
positivistas era a realidade criminosa; c) quanto ao objeto de análise, para os clássicos era
o fato (crime), para os positivistas, notadamente, o homem (o delinqüente era tido como
a causa do crime); d) quanto ao fundamento, para os clássicos era o livre-arbítrio, já para
os positivistas era o determinismo (resultado previsível de origem biológica, psicológica
ou sociológica);334 e) quanto à finalidade, para os clássicos era proscrever os abusos
punitivos estatais por meio da racionalidade do sistema criminal (proporcionalidade
entre crime e pena, humanidade e utilidade do sistema para segurança do indivíduo
frente ao Estado), para os positivistas era recrudescer o sistema penal para reprimir a
crescente criminalidade e pautar conforme se desejava o comportamento social.335

331 A corrente clássica, também denominada “idealista” ou “jurídica”, teve


como seu precursor mais famoso Cesare Beccaria, com a obra Dos
delitos e das penas. Mas, na Itália, foi com Francesco Carrara (1805–
1888) que atingiu a sua maior expressão, consagrada na obra
Programma del Corso di Diritto Criminale.
332 A Escola Positiva, também denominada “italiana”, “nova”, “moderna” ou
“antropológica”, teve na Itália sua mais significativa formação. Para nos
atermos apenas aos seus maiores expoentes nesse país, cite-se: Cesare
Lombroso (1835-1909), com sua obra L´Uomo Delinqüente; Enrico Ferri
(1856-1929), com a obra Sociologia criminale; e Raffaele Garofalo
(1851–1934), com Criminologia.
333 Antonio GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Tratado de Criminología, 2ª ed.,
Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, pp. 367/371, coloca no método empírico
e indutivo-experimental um dos pontos, se não o mais marcante, da
Escola Positiva.
334 Sobre a prova científica, em especial a pericial, como forma de dar mais
“garantia de certeza” ao julgamento, como decorrência do pensamento
positivista dessa fase européia das ciências, v. Cristina Líbano
MONTEIRO, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”, Coimbra:
Coimbra, 1997, pp. 42/43.
335 Para um estudo comparativo entre as Escolas Clássica e Positiva, v.
Vera Regina Pereira de ANDRADE, A ilusão de segurança jurídica: do
controle da violência à violência do controle penal, 2ª ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003, itens 2 e 3.
Em relação ao tema em estudo, a Scuola Positiva “inovou”, em relação à postura
clássica, quando alterou a finalidade do processo penal.336 Na fase clássica, o processo era
meio de tutela do indivíduo frente às pretensões punitivas ou abusivas do Estado até que
contra ele ficasse provado um crime. Para os positivistas, ao contrário, uma vez que os
fatores biopsico-sociais já determinassem, com alto grau estatístico de certeza e,
portanto, com alta probabilidade de culpa, quem era o delinqüente (doente social337), o
processo volta-se à aplicação da pena mais apropriada à defesa da sociedade.338

336 Para uma análise em âmbito penal, recomenda-se a obra de Sérgio


Salomão SHECAIRA, Criminologia cit., item 2, no qual se encontra, em
pp. 102/103, a seguinte síntese: “Superadas as diferenças pontuais entre
os principais autores do positivismo, algumas importantes idéias comuns
podem ser identificadas entre eles. O crime passa a ser reconhecido
como um fenômeno natural e social, sujeito às influências do meio e de
múltiplos fatores, exigindo o estudo da criminalidade a adição do método
experimental. A responsabilidade penal é responsabilidade social, por
viver o criminoso em sociedade, tendo por base a periculosidade. A pena
será, pois, uma medida de defesa social, visando à recuperação dos
criminosos. Tal medida, ao contrário do que pensavam os clássicos,
defensores da pena por tempo determinado, terá denominação de
medida de segurança e será por tempo indeterminado, até ser obtida a
recuperação do condenado. O criminoso será sempre psicologicamente
um anormal, temporária ou permanentemente”.
337 Na expressão e concepção externada por Afrânio PEIXOTO,

Criminologia, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1953, pp. 297/298.


338 Para Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, 3ª

ed., Bari: Laterza, 1996, capítulo I, item 2.2, o “substancialismo penal” é


o padrão antigarantista oposto ao “convencionalismo penal”, por ele
defendido como modelo garantista. Aquele modelo substancialista tem
como característica a punição do que julga imoral e anti-social e entende
o crime como inevitável produto de conduta de pessoas doentes ou
desviadas. O tema ainda é tratado pelo citado jusfilósofo italiano nessa
mesma obra no item 2.3, quando trata do pensamento de “defesa social”.
Os positivistas, em essência prática, voltam ao processo penal pré-iluminista.
Contudo, substituem o doente d´alma (da Inquisição) pelo doente físico, psicológico ou
social. Justificam, agora, pelo método experimental científico da “realidade criminosa”,
um “direito penal do autor”,339 em detrimento do “direito penal do fato”, defendido pelos
clássicos.340
As críticas mais contundentes e certeiras à Escola Positiva dirigiram-se a dois
pontos. O primeiro, as análises experimentais e o espectro humano estudado limitava-se
a determinada classe social e aos condenados, tornando aquele empirismo um
cientificismo etnocentrista.341 O segundo, a redução forçada do problema criminal à
pessoa do delinqüente e, por decorrência, o desejo de transformar as questões da
violência em assuntos médicos ou sociológicos ligados ao indivíduo.

339 Nesse sentido manifestou-se Cezar PELUSO, Garantias constitucionais


da liberdade, palestra proferida no XII Seminário Internacional do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo: Instituto Brasileiro
de Ciências Criminais, 2006, disponível na videoteca do referido instituto.
Sobre o direito penal do autor como fator ilegítimo de diminuição do
âmbito de proteção da norma fundamental da presunção de inocência, v.
item 5.4.3.1 infra.
340 Esse enfoque positivista destinado ao delinqüente, relegando o crime

(conduta ilícita) a um plano secundário, em claro contraste com a Escola


Clássica, é bem exposto por Antonio GARCÍA-PABLOS DE MOLINA,
Tratado cit., pp. 373/374, em vernáculo: “Os clássicos acentuaram o
binômio ‘delito – pena’ como suporte do sistema. O delinqüente é só o
‘sujeito ativo’ da infração, um conceito lógico de referência, como o é o
sujeito passivo ou o material. Os positivistas, pelo contrário, fazem valer
o dito que ‘não existe o delito sem o delinqüente’. E conferem ao exame
deste – como realidade biopsíquica e social – o máximo interesse. A
pessoa do delinqüente ocupa o centro do sistema: o delito é só um
‘sintoma’ da periculosidade ou ‘temibilidade’ do autor. (...) O
protagonismo do delinqüente polariza a análise positivista, matiza todas
suas proposições”. Nessa linha, Luigi FERRAJOLI, Diritto e Ragione cit.,
capítulo I, item 2.2, citando o mesmo momento histórico, demonstra essa
técnica punitiva como modo falsamente “jurídico” de tratar o “ser
humano” do grupo indesejado como fator a ser criminalizado pela lei.
341 Antonio GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Tratado cit., p. 371.
Do embate entre os clássicos e os positivistas nenhuma corrente saiu incólume.
Ambas tiveram equívocos expostos e insuficiências reveladas. Nenhuma sufocou
plenamente as posições da outra e, pode-se dizer, ambas influenciaram todos os
pensamentos criminais que se seguiram, em maior ou menor intensidade.342
Não foram poucas as escolas ou as correntes dissidentes ou surgidas de tentativas de
composição entre alguns aspectos de ambas aquelas Escolas ou, com a mesma
intensidade, de negar tudo o que elas professavam. Foi nesse contexto, de tentar criar
uma nova forma de pensar e se posicionar quanto às questões criminais, que surgiu a
denominada Escola Neoclássica; também denominada “Positivismo Jurídico” ou “Escola
Técnico-Jurídica”.
Antes de se adentrar à influência dessa última corrente doutrinária na formação da
legislação criminal italiana do início do século XX (item 2.4 infra) e, por decorrência, do
nosso atual Código de Processo Penal, datado de 1941, é necessário assentar os
argumentos utilizados pela Escola Positiva para rejeitar a presunção de inocência.343
2.3.2. -Escola Positiva: rejeição da presunção de inocência e do
‘in dubio pro reo’

342 Reconhecendo as influências do positivismo até nossos dias, Jorge de


Figueiredo DIAS e Manuel da Costa ANDRADE, Criminologia cit., pp.
17/19. Sobre as influências tanto do positivismo quanto do classicismo
nas legislações do século XX, v. Vera Regina Pereira de ANDRADE, A
ilusão cit., pp. 71/73. Roberto LYRA, Novíssimas escolas penais, Rio de
Janeiro: Borsoi, 1956, pp. 35/37, afirma, já em meados do século XX,
que das tendências clássica e positivista, esta foi a que mais efeitos
produziu na América Latina. Sérgio Salomão SHECARIA, Criminologia
cit., pp. 122/126, cita vários dispositivos penais da legislação criminal
brasileira, formada no início do século XX (Lei das Contravenções
Penais – Decreto-Lei 3.688 de 03/10/1941 – e Código Penal – Decreto-
Lei 2.848, de 07/12/1940), da qual emerge clara a punição da presunção
de periculosidade, tida por ele como sinônimo de “presunção de culpa”.
343 Sobre como esses argumentos da Scuola Positiva influenciaram a
Escola Técnico-Jurídica ou do Positivismo Jurídico, v. item 2.4.5 infra.
Como para a Escola Positiva todo crime revelava um desvio atávico da
personalidade do indivíduo, derivado de inexoráveis fatores biopsicológicos ou sociais, ao
identificar o ato ilícito era necessário apenas verificar a que grupo pertencia o
delinqüente344 para, ipso facto, aplicar-lhe a sanção (medida de segurança) como forma
de “tratá-lo”, uma vez que era um “doente social”.
Se o crime está no indivíduo, afirmava o positivismo, sua periculosidade ou
temibilidade social emergiria tão-só com a análise comparativa entre o seu perfil
antropológico, psicológico, ou seu meio social em face de uma parametrização estatística,
previamente elaborada. A ocorrência de um fato tido como ilícito apenas confirmava
aquela provável ou potencial periculosidade (presunção de culpa) e legitimava a
aplicação da punição (medida de segurança).
ENRICO FERRI,345 expoente da corrente positivista que tentou, com relativo
sucesso à época, empreender seus ideais ao sistema criminal (penal e processual penal),
tratando da presunção de inocência em um sistema processual positivista, classificou-a
como “exagero individualista” quando estendida a todos os indivíduos.346
Esse é o ponto nevrálgico para a negação da presunção de inocência e do qual
partiam os positivistas. Para eles, os indivíduos não eram iguais. FERRI é claro ao afirmar
que esse foi o erro dos clássicos, pois, segundo ele, aplicaram a presunção de inocência
indistintamente a todos, não sabendo a diferença, p.ex., entre delinqüente ocasional
(delinquente evolutivo) e delinqüente nato (delinquente atavico).347

344 Apenas para citar uma das várias classificações empreendidas pelos
positivistas, cite-se Enrico FERRI, Princípios de direito criminal: o
criminoso e o crime, tradução de Luiz de Lemos D´Oliveira, São Paulo:
Saraiva, 1931, pp. 254/268, e sua classificação antropológica: “As
categorias antropológicas de delinquentes são as seguintes: I.
‘Delinquente nato’ ou instintivo ou por tendência congênita; II.
‘Delinquente louco’; III. ‘Delinquente habitual’; IV. ‘Delinquente ocasional’;
V. ‘Delinquente passional’”.
345 Especificamente sobre a presunção de inocência, v. Enrico FERRI,

Sociologia Criminale, 5ª ed., Torino: UTET, 1929, v. 2, pp. 306/322.


346 Enrico FERRI, Sociologia cit., pp. 308/309, traz a seguinte passagem,

em vernáculo: “Disposição razoável certamente nos casos de


delinqüentes eventuais ou por paixão; mas ingênua e perigosa, como
regra geral, nos casos freqüentes de delinqüentes habituais ou
reincidentes”.
347 Sociologia cit., pp. 306/307.
Com essa perspectiva, procurando demonstrar o dito exagero clássico quanto à
presunção de inocência, FERRI a aceitava porque tinha “em si uma base positiva
inegável: que os delinqüentes (compreendidos aqui os não descobertos) são de fato uma
mínima minoria diante do total dos cidadãos honestos”.348 Porém, limitava-a à fase
investigativa e desde que não houvesse confissão ou prisão em flagrante.349 Mas, mesmo
sem confissão ou flagrância, também cessava a presunção de inocência na fase
investigativa, por “forza logica e giuridica”, se o sujeito fosse reincidente ou se o crime do
qual era investigado, por sua própria natureza, em seus motivos ou circunstâncias,
revelasse um delinqüente habitual, louco ou nato.350

348 Sociologia cit., p. 307, segue todo o trecho de onde se extraiu a frase do
texto, in verbis: “Questa presunzione, derivata dalla necessità di
considerare – sino a prova in contrario – come onesto ogni cittadino, ha
per sè una base positiva innegabile: che cioè i delinquenti (compresi
quelli non scoperti) sono appunto una minima minoranza di fronte al
totale dei cittadini onesti”.
349 Destacando esse pensamento de Enrico Ferri, v. Alexandra VILELA,
Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual
penal, Coimbra: Coimbra, 2000, pp. 41/42.
350 Sociologia cit., pp. 307/308. No mesmo sentido da citada manifestação
de Enrico Ferri, vem Raffaele GAROFALO, Criminologia: estudo sobre o
delicto e a repressão penal, tradução de Julio de Mattos, São Paulo:
Teixeira, 1893, pp. 406/417. Esse último, prosélito da Scuola Positivista,
após defender o sistema inquisitivo puro, em detrimento de qualquer
aspecto acusatório, afirmando, inclusive, a “leniência” do sistema francês
misto, rejeita qualquer defesa ou sequer debate sobre os fatos se a
pessoa for presa em flagrante ou tiver confessado. Priva-a de defesa,
afirmando que muitos criminosos habituais preferem a prisão em muitos
meses do ano para ter casa e comida de graça. Não concorda com o
contraditório e a publicidade do julgamento após a definição dos fatos,
respeitando a matéria de direito apenas ao julgador. É contra as
apelações em liberdade e a vedação da reformatio in pejus, afirmando
que, se o condenado recorrente vier a ser absolvido pelo tribunal, terá
direito à indenização, afinal, eventual erro judiciário é “uma d´estas
infelicidades que pode suceder ainda ao mais honesto. Mas o homem de
bem, o que acima de tudo deseja em tal caso é a rehabilitação da própria
honra; e, por outro lado, alguns mezes de prisão não constituem um mal
intolerável, principalmente se existe o direito de indemnisação. Depois, a
causa do erro deve quase sempre attribuir-se em parte á imprudência do
imputado, á sua leviandade, á sua conducta excêntrica ou estranha, á
má companhia em que se achava, e apenas em raríssimos casos é uma
circumstancia impossível de prevêr-se”.
Fica claro, portanto, que para a Escola Positiva a presunção de inocência não
passava da porta da denúncia. Não adentrava à segunda fase da persecução penal, o início
da ação penal. E, mesmo no âmbito investigativo preparatório dessa ação, ela era
entendida pelos positivistas com muitos limites, decorrentes da pessoa, da gravidade da
infração ou de ocorrências como a confissão ou o flagrante. Contudo, mesmo se nada
disso fosse constatado no caso concreto, demonstrado o fato e iniciada a ação penal, não
aceitavam qualquer forma de sua influência na mecânica processual.
Diante das “provas” colhidas em fase preparatória acerca do fato e, por decorrência,
porquanto revelassem a doença social congênita à pessoa do investigado, FERRI,
concordando com a opinião de criminosos ouvidos por ele, concluía que a presunção que
deveria haver após a formalização da acusação era a presunção de culpa. Para ele, colhido
o material e proposta uma acusação, havia maior probabilidade de condenação, não de
absolvição. Logo, era a culpa que se deveria presumir. E arrematava: se algum erro
ocorreu na apuração investigativa daqueles fatos,351 o acusado terá toda a fase de debates
públicos para demonstrá-lo.352
Para FERRI, na medida em que se caminhava na persecução penal em direção à
certeza judicial da delinqüência, com a mesma intensidade se desfazia a lógica jurídica da
presunção de inocência.353 Assim, nesse ponto em perfeita sintonia com GAROFALO,
afirmava ser uma impropriedade lógica aceitar-se a presunção de inocência após a
sentença condenatória do juiz. Para reforçar sua opinião, apontava a incoerência
existente em se determinar a prisão preventiva, para algumas espécies de crimes, antes da
sentença, mas se permitir a apelação em liberdade, quando já havia a convicção de que “o
acusado era um delinqüente”. Para ele, se já se declarou que ocorrera um crime, a
liberdade do criminoso (a causa do crime) continuaria a colocar em perigo o convívio
social.354

351 Denominado por ele “erro giudiziario”, uma vez que a fase preparatória
da ação penal era, à época, empreendida sob os auspícios de um
magistrado. Nesse sentido, Sociologia cit., p. 308.
352 Nesse passo, Enrico FERRI, Sociologia cit., pp. 308/309, mostra-se mais

flexível que Raffaele GAROFALO, Criminologia cit., pp. 408/409, para


quem, após a confissão, flagrante ou demonstração da materialidade,
não haveria direito à defesa mesmo na ação penal, podendo atuar um
defensor apenas se o acusado insistisse em negar os fatos.
353 Alexandra VILELA, Considerações cit., p. 42.
354 Enrico FERRI, Sociologia cit., pp. 309/311, e Raffaele GAROFALO,

Criminologia cit., pp. 409/410.


Nessa linha da lógica positivista, a regra era que a ação penal se iniciasse com a
prisão provisória obrigatória, com raras exceções, porém após a condenação, mesmo
ainda recorrível, desapareceriam aquelas poucas exceções.355
Estendendo essa mesma lógica para o campo do “in dubio pro reo”, os positivistas
entendiam que não seria admissível determinar como regra geral que, sempre que
houvesse dúvida na votação dos jurados (p.ex., por cédulas em branco ou rasuradas),
esses votos fossem contados em favor do acusado. Entendiam, também, um exagero que
em caso de empate de votos a decisão fosse a mais favorável ao acusado. Não aceitavam a
vedação da reformatio in pejus e defendiam que eventuais irregularidades
procedimentais ou de forma não fossem sempre interpretadas a favor do imputado. Tudo
para eliminar, diziam, o excesso de direitos do imputado em detrimento da defesa da
sociedade e, processualmente, para eliminar a desigualdade que ele possuía em prejuízo
do Ministério Público.356
FERRI, mais temperado, oferecia vias que ele denominava de “equilíbrio” para
eliminar os excessos individualistas em favor da “suprema necessidade de defesa social”.
Porém, essas vias de “equilíbrio” sempre e apenas se dirigiam à limitação das
interpretações ou decisões favoráveis ao indivíduo pela criação de alternativas que
estendessem o processo (lembre-se que o acusado estava, em regra, preso cautelarmente),
ou à diferenciação de tratamento determinada pelo tipo do delinqüente (p.ex., nato ou
passional).357

355 Raffaele GAROFALO, Criminologia cit., p. 413, é peremptório nesse


sentido: “Assim, resumindo, eis as reformas que eu proporia para os
julgamentos em appellação: 1ª prisão do réu, immediata á primeira
condemnação, a despeito da appellação e sem liberdade provisoria;
(...)”. Para algumas linhas argumentativas que tentam manter esse
discurso positivista da necessidade do imputado se recolher à prisão
como decorrência automática da prolação de uma decisão judicial
recorrível (p.ex., de pronúncia ou condenatória não definitiva), v. item
5.4.2.1.3 infra. Sobre as críticas à violação consistente na proibição legal
da concessão de liberdade provisória de modo genérico para um grupo
de crimes, v. item 5.4.2.1.1 infra.
356 Defendendo a mais radical e dura eliminação da “mentalidade do ‘pro
reo’” se posicionava Raffaele GAROFALO, Criminologia cit., pp. 413/417.
Em outra passagem, La detenzione preventive, Scuola Positiva, Milano,
v. 2, 1892, p. 199, aquele autor é categórico em afirmar que no processo
penal existe a presunção de culpa, não de inocência.
357 Para vários outros aspectos processuais estranhos ao tema e nos quais
a Escola Positiva instituiu um retrocesso por rejeitar a presunção de
inocência e qualquer de suas conseqüências, v. José Luis VAZQUEZ
SOTELO, “Presunción de inocência” del imputado e “intima convicción”
del Tribunal, Barcelona: Bosch, 1984, pp. 247/250.
Como exemplos da primeira hipótese, tem-se (i) a reintrodução do “non liquet”
romano em caso de empate na votação dos jurados, de forma que a instrução deveria se
renovar, não havendo o término em favor do imputado; e (ii) a inclusão da sentença de
“non consta” como meio termo entre a condenação e a absolvição, pois, afirmava FERRI,
se no caso de dúvida do juiz o acusado tinha o direito de não ser condenado, também a
sociedade tinha o direito de não vê-lo declarado inocente, logo, por sua proposta, melhor
que se declarasse o “non consta”.358
Como exemplo da segunda hipótese (diferenciação de tratamento pelo “tipo” de
acusado), tinha-se que todas as vezes que emergisse a dúvida judicial quanto à
interpretação da lei ou do fato, somente deveria decidir-se “pro reo” se o acusado fosse
primário, delinqüente passional e o crime, por sua natureza, intensidade ou efeitos, não
revelasse ser ele criminoso nato, louco ou habitual. Caso contrário, a interpretação
judicial sempre deveria pender em favor da defesa social (“contra reum”).359

2.4. -Escola Técnico-Jurídica italiana: sua influência na formação dos


códigos processuais penais italianos de 1913 e de 1930

358 Enrico FERRI, Sociologia cit., pp. 312/319. Indubitavelmente essa forma
de julgar (“non consta”) seria mais rigorosa que a “a absolvição por falta
de prova para condenar”, do Código Processual Penal italiano de 1930 e
que infelizmente ainda figura no art. 386, inciso VII, de nosso Código de
Processo Penal. Sobre o tema desta forma de absolvição e sua violação
à presunção de inocência, v. item 5.4.1.3.1 infra.
359 Enrico FERRI, Princípios cit., pp. 183/187.
Foi da combinação de argumentos da Escola Positiva e da Escola Técnico-Jurídica
que partiram todos os mais contundentes ataques à Escola Clássica. A Scuola Positiva, de
RAFFAELE GAROFALO e ENRICO FERRI, baseou suas críticas em uma perspectiva
político-criminal, fundada na alegada ineficiência do direito criminal clássico em
reprimir a criminalidade crescente nos centros urbanos, e da impercebida desigualdade
entre os delinqüentes. A Escola Técnico-Jurídica, de VINCENZO MANZINI, ALFREDO
ROCCO e ARTURO ROCCO, por sua vez, partia suas críticas de uma perspectiva lógico-
dogmática, baseada em alegadas deficiências técnicas na elaboração de alguns
fundamentos do pensamento clássico-iluminista.360 Dentre elas, percebendo o crucial
papel que a presunção de inocência desempenha na elaboração, estruturação e exercício
de muitos institutos processuais penais, os últimos autores citados também não lhe
pouparam de severas críticas.361
Embora essa segunda Escola, de refinada dogmática técnica, rejeitasse as bases
criminológicas da Scuola Positiva, inegavelmente teve com ela pontos comuns e foi por
ela influenciada.362 Isso se confirma quando se observa que os pressupostos dos quais
partiu a Escola Técnico-Jurídica (a prevalência do interesse público de punir sobre o
interesse à liberdade, e o processo penal ter o escopo de realizar a pretensão punitiva do
Estado, não de ser instrumento de proteção do cidadão contra os excessos punitivos
estatais) foram bandeiras criadas, erigidas e defendidas por aquela escola criminológica.363

360 Essa percepção também foi sentida por Jaime VEGAS TORRES,
Presunción de inocencia y prueba em el proceso penal, Madrid: La Ley,
1993, pp. 23/25; Aldo CHIARA, Presunzione di innocenza, presunzione
di “non colpevoleza” e formula dubitativa, anche allà luce degli interventi
della Corte Costituzionale, Rivista italiana di diritto e procedura penale,
Milano, v. 1, gen./mag., p. 77; e Vincenzo GAROFOLI, Presunzione
d´innocenza e considerazione di non colpevolezza. La fungibilità delle
due formulazioni, Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano, v.
41, 1998, p. 1176. Sobre as críticas técnico-jurídicas e sua
desconstrução, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
361 Nesse sentido, v. Mario CHIAVARIO, La presunzion d’innocenza nella

giurisprudenza della corte europea dei diritti dell’uomo, in Studi in ricordo


di Giandomenico Pisapia, Milano: Giuffrè, 2000, v. 2 – procedura penale,
pp. 75/77.
362 Sobre essa influência, v. maiores considerações no item 2.4.5 infra.
363 Sobre esses fundamentos da Scuola Positiva, v. as palavras com que

Raffaele GAROFALO abre seu famoso artigo: La custodia preventiva,


Scuola Positiva, Milano, v. 2, 1892, p. 199. Para outras referências
dessas bases positivas, v. crítica de Vincenzo GAROFOLI, Presunzione
cit., pp. 1173/1178.
VINCENZO MANZINI, o maior representante do positivismo jurídico italiano para
o tema da presunção de inocência, rejeitou a antropologia e a sociologia como
fundamentos para o direito criminal (penal e processual penal) e lutou para manter o
crime como objeto das ciências criminais, afastando-o da medicina ou da sociologia.
Porém, como se verá nos itens que seguem, em vários pontos se percebe a influência da
Scuola Positiva italiana no nascente positivismo jurídico do início do século XX. Para
isso, após termos visto o quadro social, econômico e científico do final do século XIX, são
necessárias breves considerações sobre o quadro político-ideológico das três primeiras
décadas do século XX, período em que mais vicejou e teve influência o positivismo
jurídico.

2.4.1. Recrudescimento político italiano do início do século XX

A já indicada profusão de transformações sociais, econômicas e científicas do final


do século XIX e início do século XX formou as condições políticas necessárias para que o
patriotismo daquele século se tornasse um nacionalismo cada vez mais acentuado desse
século que se iniciava. As lutas por independência (p.ex., da Sérvia em relação à Áustria)
e as resistências de vários países contra as tentativas de invasões por potências
emergentes ou por alianças internacionais, detonaram a I Guerra Mundial (1914-1918).364
O término dessa Grande Guerra, de proporções mundiais, não arrefeceu o
nacionalismo. Ele, apoiado em pseudociências etnocentristas e em desejos incontidos de
expansões econômicas, transforma-se, irremediavelmente, em ultranacionalismo e passa
a buscar seu espaço no poder político de várias nações européias.
Na Itália, havia uma penúria de todos os tipos de bens, inflação, violências étnicas e
um uso sempre mais constante e exacerbado da violência para resolução de conflitos
políticos e econômicos, com evidentes focos de guerra civil. O partido liberal perdia
espaço político para o partido popular dos católicos e a idéia socialista era usada pelo
proletariado para alimentar espíritos revolucionários.365

364 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 53/54.


365 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 54/55.
Nesse clima de alta tensão sociopolítica, surge Benito Mussolini e, sobre a base de
um “aceso nacionalismo”, valoriza os combatentes em detrimento das organizações
políticas e dos sindicalistas, instaurando um regime autoritário com o argumento de
restabelecer a “ordem”. A despeito da perda das eleições de 1919 para os socialistas, o
poder fascista cresce pelo uso da força e de um progressivo consenso na monarquia. Por
hábeis ingerências políticas e fiscais, com organização militar e política fascistas,
Mussolini ascende ao poder. Com a vitória legislativa do fascismo em 1924, transforma o
regime liberal em fascista, assume “a responsabilidade política, moral e histórica do
acontecimento (1925)” e dissolve todos os partidos políticos e sindicatos não fascistas.
Suprime a liberdade de imprensa, de manifestação e de reunião, cria o Tribunal Especial
de Defesa do Estado para crimes políticos e introduz a pena de morte, permitindo, ainda,
que órgãos administrativos prendessem qualquer cidadão sem processo. “O fascismo
estende, portanto, o seu controle sobre todos os setores da vida”.366
Politicamente, fica vedada a apresentação de qualquer nome para cargo legislativo
que não fosse autorizado pelo partido fascista e, ainda, há uma aproximação com a Igreja
por meio de vários pactos e pela instituição de seu ensino obrigatório nas escolas
médias.367
A essa expansão autoritária, de alto grau de repressão pela violência de qualquer
dissidência política, econômica ou social, de militarização das instituições públicas e de
controle ideológico dos cidadãos, faltava apenas se institucionalizar por meio de um
sistema criminal (penal e processual penal) formal. Não obstante a lei existente não
impedisse as violências (fascistas) para ascender e manter-se no poder, o regime (fascista)
sabia a relevância de uma formulação legal para que, por meio dela, houvesse: primeiro,
uma falsa legitimação de seu ideário; e, segundo, uma forma de controle mais sistemático
e cogente das pessoas e dos conflitos. Pretendia-se confundir, como na Alemanha
nazista, legalidade com legitimidade. Difundia-se a crença de que tudo que fosse legal
seria legítimo. Com isso ficava mais fácil o controle político-ideológico do que definissem
como conduta indesejada socialmente, sempre pela ótica nazifascista. Em linguagem
criminal formal, ficava mais fácil para decidir e impor o que entendiam por crime e
criminoso e como eles seriam julgados.
Nesses instáveis esteios políticos do início do século XX foram editados dois códigos
de processo penal na Itália. O primeiro, dito “primeiro código moderno e
verdadeiramente italiano”,368 o “Codice di Procedura Penale” italiano aprovado em 1913,
por obra do Ministro Finocchiaro Aprile. O segundo, produzido no auge do fascismo
italiano, teve como pedra fundamental a iniciativa governamental de 1925, para
alteração daquele código de 1913.369

366 Todo esse contexto exposto no parágrafo é tratado por Alessandro


MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 55/56.
367 Ainda com Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 56.
368 Assim referido por Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit.,

p. 82, e Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 50/51.


369 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 56/57.
Em ambas as situações, os diplomas processuais foram inspirados fortemente pelos
sequazes do positivismo jurídico, os quais tinham plena consciência da força política que
um sistema criminal pode exercer. Mais uma vez na história, o processo penal é utilizado
como instrumento institucionalizador dos desígnios dos ocupantes do poder.

2.4.2. Escola Técnico-Jurídica: uso político do processo penal

As determinações fascistas de elaboração de um novo sistema penal não poderiam


prescindir do desenvolvimento até então empreendido pelas ciências do final do século
XIX e início do século XX.
Como já se acenou acima,370 os debates entre a Escola Clássica e a Escola Positiva
não resultaram na vitória de uma ou outra, mas na formação de linhas criminológicas
diversas.371 Surge e ganha relevo, notadamente por sua qualidade técnico-jurídica e,
portanto, aptidão em implementar seus desígnios em âmbito legislativo, a corrente
denominada “neo-clássica”, também conhecida como “técnico-jurídica” ou “positivista
jurídica”.372 Foram os maiores representantes dessa corrente, na Itália, ALFREDO
ROCCO, ARTURO ROCCO, VINCENZO MANZINI e EDOARDO MASSARI.373

370 V. item 2.3.1 supra.


371 Para uma visão sobre as denominadas escolas ecléticas ou
intermediárias decorrentes do embate entre os clássicos e os
positivistas, v. Antonio GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Tratado cit., cap.
IX, e Israel DRAPKIN, Manual de criminologia, tradução de Ester
Kosovski, São Paulo: Bushatsky, 1978, cap. 4 e 5 da parte I.
372 Para a explicação desses termos e a sua sinonímia de conteúdo, v.

Afrânio PEIXOTO, Criminologia cit., pp. 42/43; e para esclarecimentos


sobre as expressões “neo-clássica” e “técnico-jurídica”, v. Vera Regina
Pereira de ANDRADE, A ilusão cit., item 5.2.1. Gabriel IGNÁCIO
ANITUA, Historias de los pensamientos criminológicos, Buenos Aires:
Del Puerto, 2005, item V.7, pp. 224/225, para a sinonímia entre as
expressões “neo-clássica”, “positivista jurídica” e “dogmática”. Essa
multiplicidade de nomes apostos em uma mesma escola, muito mais que
confundir, explica qual era sua essência. Essas denominações ressaltam
não apenas sua oposição ao pensamento clássico iluminista italiano,
mas, também, e principalmente, o fato de sua base dita inovadora partir
exatamente de uma propalada necessidade de se apurar o sistema
criminal por via de uma melhora técnica dos institutos jurídicos.
Alegavam que, pelo apuro técnico dos preceitos legais, chegar-se-ia a
uma melhora do sistema. Conquanto correta a premissa – a melhora
técnica invariavelmente leva a um aperfeiçoamento da eficiência do
sistema criminal –, o que não era revelado é que, sob essa base técnica
dita sempre “neutral”, escondia-se uma refinada defesa e justificativa
para claras escolhas ideológicas. No caso italiano das três primeiras
décadas do século XX: a ideologia fascista.
373 Com a indicação da posição de destaque desses doutrinadores v.

Afrânio PEIXOTO, Criminologia cit., p. 43, e Enrico FERRI, Sociologia


cit., p. 22, nota 1.
Para fugir às polêmicas envolvendo as duas escolas criminológicas até então
principais (Clássica e Positiva) e, também, a pretexto de buscar uma “neutralidade”
técnica para a ciência jurídica, a corrente neo-clássica alega rejeitar qualquer conteúdo
filosófico, moral ou ético para a formação do sistema criminal (penal e processual
penal)374 buscando na técnica do direito privado, alegada e pretensamente “imune”,
“racional” e “neutra”, o meio de aperfeiçoamento dos institutos jurídicos.375 Esta corrente
doutrinária retirava o crime (Escola Clássica) ou o delinqüente (Escola Positiva) como
cerne das preocupações e dos estudos do direito criminal. Em seus lugares colocava as
normas jurídicas lógicas e sistêmicas, qualidades que as tornavam “neutras” e, segundo
seus defensores, faziam-nas melhores.

374 Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto penale italiano, 2ª ed., Torino:


UTET, 1926, v. 1, p. 5, abre sua obra fazendo uma profissão de fé contra
a filosofia e determinando que os fundamentos supremos e as noções
divinas em um fantástico direito natural são humanamente inconcebíveis
em uma ciência social, positiva e de bom senso, como o direito penal.
“Não sobre sentimentais profissões de fé, mas sobre dados certos e
precisos, capazes de prepararem um seguro e objetivo fundamento à
persecução, deve elevar-se a ciência do direito. Essa deve basear-se
sobre princípios unívocos, universalmente aceitos, porque o direito faz-
se para a universalidade dos cidadãos, e não já para os sequazes desta
ou daquela religião, ou seita filosófica”. In verbis: “Non sopra sentimentali
professioni di fede, ma sopra dati certi e precisi, capaci di apprestare um
sicuro e obiettivo fondamento all´indagine, deve elevarsi la scienza del
diritto. Essa deve basarsi su principi univoci, universalmente accettati,
perchè il diritto è fatto per la universalità dei cittadini, e non già per i
seguaci di questa o quella religione, o setta filosófica”. O mesmo autor,
tratando do escopo, conteúdo e interesses do processo penal , (Trattato
di diritto processuale cit., pp. 220/221), não é menos contundente ao
expungir de seu âmbito qualquer aspecto ético para a expressão
“inocente”, afirmando que, juridicamente, o imputado é ou não culpado
pelo ato do qual foi acusado, pois, acrescentava que aquele contra quem
não houve prova suficiente pode ser o mais “perverso dei delinquenti
abituali”.
375 Na Itália, os fundamentos dessa corrente técnico-jurídica ou positivista
jurídica foram expostos pela primeira vez, de modo sistemático, por
ARTURO ROCCO, em 15 de janeiro de 1910, na aula inaugural dos
cursos da Universidade de Sassari, depois convertida na obra “Il
problema e il metodo della scienza del diritto penale”. Nesse sentido, v.
Vera Regina Pereira de ANDRADE, A ilusão cit., p. 80, com nota sobre
os expoentes dessa corrente e um breve resumo sobre essa nova
postura doutrinária, e Giorgia ALESSI, Il processo cit., p. 194.
Ocorre, porém, que não há ciência jurídica neutra e infensa aos influxos sociais,
políticos e econômicos da comunidade da qual nasce e para a qual se destina. E, em toda
a ciência jurídica, a área processual penal é a mais sujeita àqueles influxos. São eles que
de fato a conformam e norteiam sua interpretação e sua aplicação.376
O positivismo jurídico, não por coincidência, surgiu na Alemanha pré-nazista, do
início do século XX, e foi rapidamente aceito e desenvolvido na Itália. Os fatos históricos
demonstraram que aquela propalada neutralidade foi o espaço ideal que os influxos
nazifascistas desejavam para pautar um trabalho dito apenas de “ciência” jurídica. Isto
porque, tal tecnicismo neutral dava ao legislador toda onipotência377 de ditar o que
desejasse e, como os poderes legislativos dos dois países estavam dominados pela
violência e arbitrariedade daqueles regimes políticos autoritários, todo o trabalho técnico
voltava-se à proteção de seus interesses (do poder instituído), mesmo que para isso
fossem usados eufemismos, tais como: “prevalência do interesse público sobre o interesse
privado”. Claro que, ao assim afirmarem, suas intenções não mencionavam que, por
estarem no poder, eram deles os ditos “interesses públicos”, eram eles que os escolhiam
conforme suas conveniências (econômica, política, religiosa, social etc.), enquanto os
“interesses privados” eram os dos outros, fossem ou não criminosos.378

376 Nesse sentido, v. Ernesto D´ANGELO e Francesco BERTOROTTA, Il


nuovo processo penale al bivio: tra le ragioni del garantismo e il mito
dell´efficienza, in Studi in ricordo di Giandomenico Pisapia, Milano:
Giuffrè, 2000, v. 2 – procedura penale, p. 238, em vernáculo: “Quando
um ilustre processualista (Giusseppe de Luca) comentava as repetidas e
repentinas mudanças que o legislador, em conjunto com a Corte
constitucional, impuseram ao novo código de rito penal, recordou que
‘um código vale mais pelas idéias com as quais é construído que por sua
ordem técnica’. O mito do tecnicismo, de fato, termina sempre por
enganar os seus seguidores, se não é acompanhado de uma ampla
leitura das idéias e valores que se entendem perseguir”. Na mesma
linha, v. James GOLDSCHMIDT, Princípios gerais do processo penal,
tradução de Hiltomar Martins Oliveira, Belo Horizonte: Líder, 2002, p. 71,
nos seguintes termos: “30. O processo penal de uma nação: o
termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de sua
constituição. Os princípios da política processual de uma nação não
são outra coisa senão os segmentos de sua política estatal em geral.
Pode-se dizer que a estrutura do processo penal de uma nação não é
mais do que o termômetro dos elementos corporativos ou autoritários de
sua constituição” – destaque do original.
377 Gabriel IGNACIO ANITUA, Historias cit., pp. 224/225.
378 Para várias passagens das obras de Manzini e Mortara, que bem

demonstram suas opções políticas de “defesa social” e de proteção aos


interesses punitivos estatais contra os interesses privados de liberdade
dos indivíduos, v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., p. 262,
nota 310.
Os fascistas, como referido no item anterior, não permitiam que as listas de
integrantes do Legislativo fossem compostas por opositores, não permitiam a liberdade
de imprensa, manifestação ou reunião. Mas, permitiam, em contrapartida, a prisão de
qualquer cidadão sem processo e por decisão de órgão administrativo, os quais eram por
eles liderados e controlados. Portanto, é pueril imaginar-se que foram neutrais e apenas
técnico-jurídicas as escolhas das pessoas responsáveis pela elaboração e condução
legislativa do sistema processual italiano, notadamente o código de processo penal de
1930.
Para a reforma do Código de Processo Penal foi designado o Ministro ALFREDO
ROCCO, responsável pelo controle das propostas e seus debates perante o Legislativo e,
para a elaboração do código, foi ativo participante VINCENZO MANZINI.379 Impossível
se acreditar que para tão importantes funções teriam sido pinçadas pessoas discordantes
da mentalidade fascista ou, como queria este último, “neutras” e preocupadas apenas com
a “técnica jurídica”.
Claro que é inegável a melhora técnica empreendida por aqueles doutrinadores para
os institutos jurídicos, porém, também não se pode negar que era esse o grande perigo do
positivismo italiano. Era por baixo desse qualificado argumento técnico que se escondia
sua evidente opção política.380
Para a verificação objetiva dessa influência da Escola Positiva Jurídica italiana em
ambos os códigos de processo penal e, com isso, a rejeição da presunção de inocência de
seus âmbitos, vejamos cada um desses diplomas mais de perto. Contudo, para maior
utilidade ao presente estudo, os comentários não envolverão todos os aspectos de
referidos códigos, mas apenas a alguns pontos demonstradores das razões pelas quais se
pode afirmar que, em ambos, a presunção de inocência foi expungida.

2.4.3. -Características do procedimento penal misto italiano de 1913 e sua


tendência político-legislativa

379 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 56/57.


380 Alfredo ROCCO, na sua manifestação de entrega do Código de
Processo Penal de 1930 ao Rei da Itália, cita expressamente a sua
obediência aos ditames do fascismo, tido por aquele Ministro como sua
“severa disciplina”. Em sua parte final, após assegurar que o que mais
diferia o novo código do seu antecessor de 1913 era o arrefecimento das
muitas garantias “della libertà dell´innocente” em comparação com o
“diritto dello Stato alla punizione del reo”, assim se expressou, em
vernáculo: “É justo acrescentar que o melhor costume forense, acrescido
à autoridade dos magistrados e à mais severa disciplina instaurada pelo
Fascismo tinham há alguns anos já alcançado muitas melhoras na
administração da justiça penal. Eu estou certo que a reforma processual
acelerará tal evolução benéfica. Com esta fé, honro-me de submeter à
Augusta assinatura da Vossa Majestade o novo código de processo
penal do Reino da Itália”.
O código processual de 1913, sem se distanciar do sistema misto francês, garantia ao
imputado o direito de defesa, mas apenas após iniciada a ação penal, a qual era
antecedida por uma instrução preliminar para verificar o fato e se alguém seria
judicialmente acusado. Essa fase investigativa anterior tinha função preparatória de
eventual ação penal e caráter inquisitivo. Se ao imputado, durante a fase preliminar,
fosse determinada qualquer medida cautelar patrimonial ou pessoal, era-lhe garantido o
direito à defesa técnica.381
Ao já acusado formalmente, na fase processual, era garantido: o direito à defesa
técnica; ser interrogado e não responder às perguntas, uma vez que a prova deveria ser
formada independente da versão do acusado; comparecer espontaneamente em juízo;
entrevistar-se com o defensor depois de conhecer a acusação; o defensor tinha amplo
poder probatório e, na fase instrutória, acesso aos autos e demais material produzido em
face do acusado; contestar de modo preciso a acusação; receber a notificação relativa às
perícias a fim de nomear seu próprio perito; obter termos dos autos para realizar sua
defesa; produzir provas; presenciar as audiências, que eram realizadas de modo oral,
público e em contraditório; ter as hipóteses de prisão provisória previstas em lei e
impugnar as decisões dos magistrados, sem necessidade de caução ou pagamento de
valores para recorrer. Para os crimes punidos com pena não inferior a 5 anos, o
julgamento era feito diante do júri composto por juízes leigos que decidiam sobre o fato e
a autoria, enquanto a “Corte di Assise”, composta por um juiz presidente e dois
auxiliares, decidia pela aplicação da norma penal. Para os crimes que não fossem de
competência da “Corte di Assise” (ou de índole social), sempre que houvesse prisão em
flagrante, prova evidente da culpa do agente ou ele confessasse, procedia-se a uma
instrução sumária sob a presidência do Ministério Público. Para as contravenções, o
procedimento era mais simples e denominado procedimento por decreto.382
A despeito do aumento de garantias do imputado na fase judicial e diminuições do
excesso inquisitivo na fase preliminar de instrução, a presunção de inocência foi rejeitada
expressamente pelo legislador como critério informador do modelo processual.383

381 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 51.


382 Todas as características especificadas neste parágrafo podem ser
colhidas em Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 51/53.
383 Sobre o debate legislativo anterior e formador do Código de Processo

Penal italiano de 1913, v. obra de Bruno FRANCHI, Nuovo codice di


procedura penale: testi del progetto e del codice, delle norme
d´attuazione e di coordinamento, delle disposizioni transitorie,
regolamentari e pel Casellario, Milano: Società Editrice Libraria, 1914.
Especificamente sobre a rejeição política da presunção de inocência na
fase dos debates legislativos desse Código de 1913, v., da obra citada, a
“Tornata 5 marzo”, pronunciada por MORTARA, pp. 177/194. Sobre a
rejeição da presunção de inocência nesse código italiano de 1913, v.
ainda, Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 47/49.
Essa exclusão era inevitável ao se notar as bases sobre as quais foi assentado aquele
código: (i) a ideológica, de defesa social, e (ii) a técnico-jurídica, derivada do positivismo
jurídico italiano. Ambas defensoras da sobreposição dos interesses “estatais” punitivos
sobre os direitos “individuais” de liberdade do cidadão submetido à persecução penal.
Ambas lastreadas em um discurso uníssono de necessária repressão ao enorme
“incremento da delinqüência na sociedade industrial” italiana do final do século XIX e
início do século XX. 384
Não obstante outros fossem os empuxos técnico-científicos, as posturas diante do
processo e do cidadão imputado não se diferenciavam, na prática, daquelas tidas na fase
da Inquisição: retorna a figura do “inimigo”, a qual vai informar toda a postura punitiva
e, no campo processual penal, retomava-se a “presunção de culpa”.385

384 Sobre esse argumento de emergência e pânico social diante do


crescente número de crimes, constou expressa referência na citada
“Tornata” legislativo-preparatória de 5 de março, logo após rejeitar-se a
presunção de inocência como princípio fundamental do processo penal
(v. Bruno FRANCHI, Nuovo cit., pp. 179/181) e defender-se a linha
ideológica da “defesa social” (op. cit., p. 182). Nesse sentido, v. Bruno
FRANCHI, Nuovo cit., p. 182, em tradução livre: “O incremento da
delinqüência na sociedade industrial. – Antes, na vida social moderna,
o fenômeno da aglomeração de todas as classes sociais nos grandes
centros urbanos, do enorme desenvolvimento do industrialismo que
angaria uma quantidade enorme de trabalhadores, nem todos
preparados e educados à pacífica cooperação civil, algumas vezes
levados ao mal pela desocupação, ou pelo vício, ou pela desproporção
entre ganhos e necessidades, condições estas da vida moderna de
todos conhecidas, multiplicam as causas da delinqüência. As estatísticas
da delinqüência nos grandes centros urbanos são pavorosas em toda
parte. A Itália, do ponto de vista do urbanismo, não atingiu, ainda, as
proporções mastodônticas das aglomerações de muitas grandes
capitais estrangeiras; mas a Itália tem outras condições, sejam técnicas,
sejam históricas, sejam de diversa espécie, pelas quais a delinqüência,
também para além dos grandes centros urbanos, é um fenômeno
infelizmente extensíssimo”. Para comentários sobre o uso desse mesmo
discurso de emergência na atualidade brasileira como meio de se buscar
um recrudescimento do sistema violador da presunção de inocência
como “norma de juízo”, v. item 5.4.2.3.2 infra.
385 Sobre a origem romana dessas duas constantes punitivas, v. item 1.2.4
supra.
Os discursos legislativos de defesa social em face do crime se desenvolviam com a
crença de que “o Estado estabelece no código penal as proibições e as sanções, o Estado
exercita a função da justiça penal segundo as normas fornecidas pelo código de processo
penal para a tutela da vida civil, do corpo social, contra o elemento dissolvente que se
manifesta mediante o delito. E, infelizmente, não é lícito nutrir ilusões, não é sério
abandonar-se pela onda da poesia que embala ilusões fantásticas em alguns intelectos: o
delito é um fato imanente na sociedade por suas origens: não só imanente, mas crescente
em progressão espetacular na sociedade civil em razão, quase diriam, do crescer da
civilização. Todos recordamos a sábia e mortificante alegoria bíblica, a qual narra que
quando existiam dois homens sobre a face da terra um deles era delinqüente: alegoria de
uma verdade dolorosa, que, milhares de anos passados desde que foi escrita, certamente
não perdeu a sua triste sinceridade ”.386
Essas bases ideológica e doutrinária, de estruturação legislativa sob influxo punitivo
de defesa social, em detrimento de direitos fundamentais, marcaram toda a elaboração do
código de processo penal italiano de 1913.387

2.4.3.1. -Escola Técnico-Jurídica: rejeição da “presunção de inocência” e criação


da “presunção de não culpabilidade”

Coube a VINCENZO MANZINI, principalmente nos primeiros anos do século XX,


já então Professor Ordinário de Direito e Processo Penal, na Universidade de Torino,
capitanear, na área processual penal, a dogmática do positivismo jurídico. Em seu
Manuale di Procedura Penale,388 de 1912, obra sempre referida nos debates legislativos
que culminaram com a exclusão da “presunção de inocência” do código de processo
penal de 1913, teve o mérito de condensar e harmonizar, no âmbito dogmático, todas as
críticas desenvolvidas até então contra a presunção de inocência. Torna-se, assim, uma
referência a seus adeptos e opositores. Sua postura pode ser resumida nas seguintes linhas
argumentativas.

386 v. Bruno FRANCHI, Nuovo cit., p. 182.


387 Para várias referências às estatísticas criminais, à insegurança social, ao
necessário controle dos “delinqüentes habituais” (concepção criada pela
Scuola Positiva) como substrato de discussão legislativa para a
elaboração do código de 1913, v. reiteradas passagens e citações em
muitas “tornate legislative” na citada obra de Bruno FRANCHI, Nuovo cit.
A luta legislativo-ideológica travada entre os doutrinadores clássicos e os
positivistas, “vencida” pelos últimos, foi destacada, com várias indicações
legislativas e doutrinárias, por Aldo CHIARA, Presunzione cit., pp. 78/81.
Esse último autor citado é claro em asseverar que foi a retirada da
presunção de inocência do código processual penal italiano de 1913 que
possibilitou o giro fascista dos anos que se seguiram e que culminaram
com o Código ROCCO de 1930.
388 Vincenzo MANZINI, Manuale di procedura penale italiana, Torino: Fratelli

Bocca Editori, 1912.


Inicialmente, MANZINI fixa como seus pressupostos discursivos dois pontos: o
primeiro, que o “escopo” do processo é conseguir a realização da pretensão punitiva
derivada do crime e exercida pelo Estado;389 o segundo, a prevalência do interesse

389 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., item 37, in verbis: “La scopo
caratteristico del processo penale è quello di accertare se nel caso
concreto sia o no fondata la pretesa punitiva derivante da un reato, fatta
valere dallo Stato” – destaque do original. Posteriormente, em seu
Trattato di procedura penale italiana, Torino: Bocca, 1914, v. 1, p. 91,
como se vê, editado no ano seguinte à elaboração do código de
processo penal de 1913, acrescentou na redação anterior de seu Manual
o seguinte trecho adiante ressaltado: “(...) fatta valere per lo Stato dal
pubblico ministero” – nosso destaque. Destacando essa posição de
Manzini como seu maior argumento para a supressão da presunção de
inocência do processo penal, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Presunção de inocência e prisão cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, pp.
16/17.
público, de alcançar a punição do culpado, buscando realizar contra ele a pretensão
punitiva do Estado, sobre o interesse de declará-lo inocente.390

390 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., item 38, in verbis: “dato pertanto il
suddeto scopo, contenuto e carattere, è manifesto che l´interesse
fondamentale, che determina il processo penale, è quello di
giungere alla punibilità del colpevole, di rendere cioè realizzabile la
pretesa punitiva dello Stato contro l´imputato, inquanto costui risulti
colpevole: non già l´interesse di prevenire alla proclamazione
dell´innocenza dell´incolpato” – destaques do original. Na mesma obra,
já no item 39 (intitulado “As normas processuais penais tutelam
principalmente o interesse social relativo à repressão da delinqüência”) o
autor radicaliza ainda mais seu discurso de primazia do poder punitivo do
Estado sobre qualquer direito do cidadão, em vernáculo: “39. ‘As normas
processuais penais tutelam principalmente o interesse social relativo à
repressão da delinqüência’. Este interesse sobressai naturalmente sobre
aquele conseqüente relativo à liberdade civil. De fato, o processo penal,
como já dissemos, não tem um escopo acadêmico nem, principalmente,
ético: ele tende a verificar uma pretensão punitiva do Estado feita valer
mediante a imputação penal. E, uma vez que, dado o caráter do órgão
estatal do Ministério Público e a ausência de qualquer interesse pessoal
no exercício da sua função, é lógico presumir que as imputações são
geralmente fundadas sobre um suficiente acertamento preliminar: disso
advém que o processo penal se apresenta como um meio principalmente
dirigido a tornar possível a punição do culpado, a realizar, assim, a
pretensão punitiva do Estado”. In verbis: “39. ‘Le norme processuali
penali tutelano principalmente l´interesse sociale relativo alla repressione
della delinquenza’. Questo interesse primeggia naturalmente su quello
conseguenziale relativo alla libertà civile. Infatti il processo penale, come
abbiamo detto, non ha un scopo accademico nè principalmente etico:
esso tende a sindacare una pretesa punitiva dello Stato fatta valere
mediante la imputazione penale. E poichè, dato il carattere d´organo
statuale del pubblico ministero e l´assenza d´ogni interesse personale
nell´esercizio della sua funzione, è logico presumere che le imputazioni
siano generalmente fondate sopra un sufficiente accertamento
preliminare: ne viene, che il processo penale si presenta come un mezzo
principalmente diretto a rendere possibile la punizione del colpevole, a
realizzare cioè la pretesa punitiva dello Stato”.
MANZINI, ressalve-se, reconhece, no processo penal, um “interesse nella libertà
civile” do cidadão, mas o coloca em claro e confessado segundo plano. Não o admite
como um direito fundamental do ser humano, oponível, portanto, contra atos estatais
(p.ex., processuais) ilegais ou abusivos ou, ainda, como fator limitador do arbítrio
punitivo estatal. Vê, naquele interesse de liberdade, um interesse também de origem e
natureza “social”, “concedido” pelo Estado ao cidadão. Assim, segundo sua concepção,
sendo ambos os interesses derivados da natureza social e concedidos pelo Estado, aquele
punitivo deve sempre se sobrepor ao de liberdade.391

391 Vincenzo MANZINI, in Manuale cit., p. 53, em vernáculo: “Ora, uma vez
que o escopo do processo penal é definir o fundamento da pretensão
punitiva do Estado no caso concreto, e não outro, de torná-la a todo
custo realizável, é natural que ao lado do interesse repressivo encontre
tutela, no Estado livre, também aquele incerto da liberdade civil dos
indivíduos. Mas uma vez que, segundo a ordem das coisas, é presumível
o fundamento da imputação e a veracidade da decisão, e não o
contrário: assim o interesse referente à liberdade civil do indivíduo
representa no processo penal uma parte essencial, mas não a mais
característica ou a prevalente. Do mesmo modo que a garantia não pode
se pôr ao mesmo nível da função que protege. Isso é conseqüência, não
principal”. In verbis: “Ora, posto che lo scopo del processo penale è di
accertare la fondatezza della pretesa punitiva dello Stato nel caso
concreto, e non l´altro, di renderla ad ogni costo realizzabile, è naturale
che accanto all´interesse repressivo trovi tutela, nello Stato libero, anche
quello eventualmente pericolante della libertà civile degli individui. Ma
poichè, secondo l´ordine delle cose, è presumibile la fondatezza
dell´imputazione e la verità della decisione, e non l´opposto: cosi
l´interesse riguardante la libertà civile dell´individuo rappresenta nel
processo penale una parte essenziale bensì, ma non la più caratteristica
e la prevalente. Allo stesso modo che la guarentigia non può porsi allo
stesso livello della funzione che protegge. Esso é conseguenciale, non
principale”. Para outras referências do autor sobre o mesmo ponto, v. op.
cit., item 40, subitem IV. Como se vê, pelo trecho destacado, não
chegando a afirmar, o autor desenha todo um argumento pela presunção
da culpa, em face da alta credibilidade (“presumibile la fondatezza”) que
empresta à imputação e “à ordem (normal) das coisas”.
Por essa perspectiva, é lógico não se ver a liberdade como um direito fundamental,
mas como um interesse social secundário àquele outro punitivo. É desse ponto que o
autor retira a conclusão de que a liberdade somente existirá se não for reconhecida a
pretensão punitiva.392
Para MANZINI as prioridades de análise jurisdicional no processo penal são claras:
primeiro se verifica se o acusado é culpado, se não for, e apenas nessa hipótese,
prevalecerá seu interesse (social e concedido pelo Estado) à liberdade; jamais à sua
declaração de inocência.393 Até mesmo porque MANZINI é expresso em dizer que seria
uma falha proferir a inocência do acusado, pois poderia ele não ser de fato inocente, mas
apenas não ter sido provada sua culpa, seja por falha persecutória seja por critério judicial
quanto à insuficiência das provas para condená-lo.394
Com isso, fica fácil entender como o autor, e todos os seus sequazes,395 justificam a
inexistência de “inocência” no processo penal e, por conseguinte, entendem uma
ilogicidade ainda maior em se pensar em presunção de inocência.396

392 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., p. 54, ao numerar as razões pelas


quais a presunção de inocência inexiste no processo, afirma: “Em
segundo lugar, não é ofício do processo penal aquele de proclamar a
inocência do imputado, mas simplesmente de constatar se concorrem ou
não as condições para permitir a realização da pretensão punitiva do
Estado”. In verbis: “In secondo luogo non è ufficio del processo penale
quelllo di proclamare l´innocenza dell´imputato, ma semplicemente di
constatare se concorrano o no le condizioni per consentire la
realizzabilità della pretesa punitiva dello Stato”.
393 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., p. 55: “O que as normas processuais

penais tutelam não é, portanto, o interesse (privado) da inocência, mas


aquele público, pelo qual o cidadão não deve suportar restrições à
liberdade ou à propriedade que não sejam expressamente determinadas
pela lei e declaradas justas no caso concreto pela jurisdição”. In verbis:
“Cio che le norme processuali penali tutelano non è dunque l´interesse
(privato) dell´innocenza, ma quello pubblico, per cui il cittadino non deve
sopportare restrizioni alla libertà o alla proprietà che non siano
espressamente determinate dalla legge e dichiarate giuste nel caso
concreto dalla giurisdizione”. Esse erro de premissa em se considerar a
presunção de inocência como interesse privado e não público é
analisado com mais vagar no item 3.8.1.1 infra.
394 Nesse sentido, comentando vários dispositivos daquele recém-

promulgado código de processo penal de 1913, v. Vincenzo MANZINI,


Trattato di procedura cit., itens 37 e 38.
395 Para os autores que entendem não haver espaço técnico-jurídico para se

considerar que o imputado seja reconhecido “inocente” no curso da


persecução, v., por todos, Guglielmo SABATINI, Principi di diritto
processuale penale italiano, 3ª ed., Catania: Casa del Libro, 1948, v. I,
pp. 38/39.
De uma ação penal que começa com uma imputação, deduzida por órgão público
(Ministério Público) – tido por MANZINI como imparcial –, calcada em elementos
colhidos (inquisitivamente) em uma fase preliminar (sem garantias ao imputado),
acreditava ele que somente poderia emergir dois tipos de veredicto: culpado ou não
culpado; jamais inocente.

396 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., p. 54: “Se portanto errado é o critério
que as normas jurídicas penais são dirigidas à tutela da inocência, mais
errada ainda é a crença comum que no procedimento penal se tenha a
favor do imputado uma ‘presunção de inocência’. Pela qual o imputado
deveria ser tido inocente até que não tenha sido condenado por
sentença irrecorrível”. In verbis: “Se pertanto errato è il criterio che le
norme giuridiche penali siano rivolte alla tutela dell´innocenza, più errata
ancora è la credenza comune che nel procedimento penale si abbia a
favore dell´imputato una ‘presunzione di innocenza’. Per la quale
l´imputato stesso dovrebbe ritenersi innocente finchè non sia stato
condannato con sentenza irrevocabile”.
A sua crença na legitimidade da imputação (nos termos antes referidos), levava-o a
descartar, já desde o início da ação penal, qualquer atributo de inocente para o acusado.
Ou ele seria culpado – o mais provável para aquele autor – ou “não culpado”; nunca
“inocente”. Com base nesses itens (imputação lastreada em elementos de convicção
analisados e deduzidos por um órgão público desinteressado – Ministério Público –), e
analisada, tecnicamente, a natureza jurídica da “presunção” no processo, como “meio de
prova indireta da qual se deduz um dado convencimento absoluto ou relativo da
experiência comum”, afirmava que se alguma “presunção” existe no processo penal é a de
“culpabilidade” do acusado. Uma vez que, probabilisticamente, é mais comum a
condenação que a inocência da pessoa submetida à ação penal. Para confirmar tal
assertiva com dados processuais, MANZINI traz em seu abono o fato de haver no
processo penal atos cautelares patrimoniais (p.ex., seqüestro ou arresto de bens) e
pessoais (p.ex., a prisão preventiva) que muito mais caracterizam uma presunção de
culpa, do que de inocência.397

397 V. Manuale cit., p. 54, em vernáculo: “Basta pensar nos casos de arresto
preventivo, no segredo da investigação e no próprio fato da imputação.
Se esta última constitui de fato e necessariamente uma presunção de
culpabilidade, como colocar que equivalha no seu lugar: a uma
presunção de inocência? De resto a prática dos juízos fez e vem fazendo
justiça sumária de tal absurdidade teórica inventada pelo empirismo
francês. A presunção, de outro modo, é um meio de prova indireta que
deduz um dado convencimento absoluto ou relativo da experiência
comum. Ora, se desejará colocar que a experiência histórica coletiva
ensina que a maior parte dos imputados é inocente?! Não se trata de
uma presunção; se trataria de uma ficção, se alguma coisa de similar
existisse no nosso direito positivo como sonham eles ”. In verbis: “Basti
pensare ai casi di arresto preventive, alla segretezza dell´istruttoria e al
fatto stesso dell´imputazione. Se quest´ultima costituisce appunto e
necessariamente una presunzione di colpevolezza, come ammettere che
equivalga al suo posto: a una presunzione di innocenza? Del resto la
pratica dei giudizi ha fatto e va facendo giustizia sommaria di simile
assurdità teorica, escogitata dall´empirismo francese. La presunzione
inoltre è un mezzo di prova indireta che deduce un dato convincimento
assoluto o relative dalla commune esperienza. Ora, si vorrà ammettere
che l´esperienza storica collettiva insegni che la massima parte degli
imputati è innocente?! Non se tratta di una presunzione; si tratterebbe di
una finzione, se qualche cosa di simile ci fosse nel nostro diritto positivo,
come sognano i più”. Esse argumento de Manzini (a presunção de
inocência não existia porquanto incompatível com o sistema processual
então vigente) sofria de um mal lógico intransponível: era sabido que
tanto o código de 1913 quanto os seus antecedentes foram construídos
sobre a expressa a confessada rejeição da idéia clássico-iluminista da
presunção de inocência. Logo, sempre que se fizesse a comparação
entre a presunção de inocência e o sistema então vigente, aquela seria
Nessa linha de raciocínio, MANZINI admite que haja culpado e não culpado, sem
espaço para outra qualificação. Conclui que enquanto o juiz não tenha decidido pela
culpa do acusado ele será presumivelmente não culpado, jamais inocente. Por seu prisma
ótico de qual seria o escopo do processo penal, ele entende que este instrumento não se
presta a analisar se alguém é ou não inocente, mas apenas se é ou não culpado. Nasce,
daí, a justificativa para a substituição da “presunção de inocência” iluminista pela
“presunção de não culpabilidade”, criada pelo positivismo jurídico italiano do século
XIX.398
Não pode ser declarado inocente porquanto não há certeza de que o seja. Aliás, para
aquele autor, pela legitimidade da imputação, eventual insuficiência de prova pode
apenas levar a não ser declarado culpado.
Em caso de dúvida judicial, aquele autor aceitava a aplicação do antigo brocardo “in
dubio pro reo” como critério de solução em favor do acusado. Porém, destacava que esse
critério não equivalia a inocentar o acusado; apenas significava que a quantidade de
provas produzidas pelo acusador não foi suficiente para convencer o juízo da tese
condenatória.399
Percebe-se, portanto, que MANZINI e os seguidores de suas idéias, arrefecendo o
rigor da Scuola Positiva,400 retomam a compatilização do direito romano da fase imperial,
e constroem um modelo no qual se rejeita expressamente a presunção de inocência, não
obstante se aceite o “in dubio pro reo”.401

uma estranha a ser rejeitada, não porque fosse uma “assurdità” haver
um sistema nela centrado, mas porque os sistemas processuais postos
como paradigmas a rejeitavam de partida e na origem. Sobre a ausência
da presunção de inocência desde o Estatuto Albertino e os códigos de
1865, v. Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1173/1176,
principalmente notas 26 e 39.
398 Não obstante seja mais claro e incisivo sobre esse ponto nas edições de seu “Trattato di diritto processuale penale
italiano”, posteriores ao código de processo penal italiano de 1930, não se pode deixar de extrair essa conclusão das
seguintes palavras de Vincenzo MANZINI, já em 1912, em seu Manuale cit., item 40, subitem III, em tradução livre:
“III. O nosso direito processual penal tutela o interesse à liberdade civil do indivíduo ‘sem alguma presunção ou
ficção’. É de bom senso que, até que não venham definitivamente acertadas as condições que tornam realizável a
pretensão punitiva do Estado, o imputado não possa ser tido como condenado, e deva portanto ser tratado por
imputado, como aquele cuja culpabilidade ainda se duvida. O que não equivale precisamente a dizer que, antes da
condenação, se deva presumir a sua inocência até prova em contrário!”. In verbis: “III. Il nostro diritto processuale
penale tutela l´interesse relativo alla ‘libertà civile’ dell´individuo ‘senza alcuna presunzione o finzione’. É di buon
senso che finchè non vengano definitivamente accertate le condizioni che rendono realizzabile la pretesa punitiva
dello Stato, l´imputato non possa ritenersi condannato, e debba quindi trattarsi da imputato, cioè al modo di colui
della cui colpevolezza ancora si dubita. Il che non equivale precisamente a dire che, prima della condanna, si debba
presumere la sua innocenza fino a prova contraria!”. Essa mesma conclusão pela “presunção de não culpabilidade”,
nunca de “inocência”, pode ser observada na obra de Bruno FRANCHI, Nuovo cit., p. 180, a qual revela que os
trabalhos legislativos preparativos do código de processo penal italiano de 1913 caminharam, nesse ponto, em
confessada trilha doutrinária firmada por MANZINI, citando inclusive várias passagens de seu Manuale cit., editado
em 1912. Para uma crítica às inconfessadas raízes político-criminológicas dos pensamentos de Vincenzo MANZINI
no preparo do código de processo penal italiano de 1930, v. item 2.4.7 e seus subitens infra.
399 Vincenzo MANZINI, Manuale cit., item 4.1. Sobre o tema, v. maiores considerações no item 2.4.6 infra.
400 Sobre a rejeição tanto da presunção de inocência como do “in dubio pro reo” pela Scuola Positiva, v. item 2.3.2 supra.
401 Sobre a existência do “in dubio pro reo” já nos sistemas processuais pré-revolucionários, sem que isso significasse a
aceitação da presunção de inocência, v. itens 1.2.2 e 1.2.3 supra.
2.4.4. -Recrudescimento jurídico do Código de Processo Penal italiano de 1930

Todos os trabalhos legislativos para formação do código de processo penal italiano


de 1930 foram pautados pelo argumento de se buscar “um ‘justo equilíbrio entre as
garantias processuais destinadas a salvaguardar os interesses do Estado na sua função
repressiva e aquelas referentes ao imputado”. Propunha-se obter “a máxima rapidez nos
procedimentos, compatibilizando-os com as exigências da justiça; eliminar todas as
superfluidades; combater as causas e as manifestações de artimanhas; opor-se à
degeneração acadêmica e teatral das discussões; aumentar o prestígio e a seriedade da
defesa; punir as fraudes e as temeridades processuais, impedir impugnações infundadas;
elevar a autoridade do juiz, restituir ao ministério público as funções que lhe são
próprias, fazer com que a justiça material sempre se sobreponha à justiça formal”. E, para
isso, manteve-se o sistema processual misto napoleônico de fase preliminar secreta e fase
processual pública.402
A despeito do propalado “equilíbrio”, o que se viu foi um evidente recrudescimento
de vários dispositivos em face do código de 1913.403

402 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 57, terminava assim o período de sua autoria e já traduzido no texto,
em tradução livre: “A estes fins se conservava a conhecida combinação. Inventada pelo código napoleônico e aceita
pelo código de 1913, de uma investigação preliminar (istruttoria) secreta e uma instrução judicial (dibattimento)
pública”. Como se demonstrará no item 2.5.2 infra, essas foram quase as mesmas expressões usadas pelo legislador
brasileiro de 1940 ao justificar o texto de nosso (ainda) atual código de processo penal.
403 Para uma referência a esses pontos de maior restrição aos direitos do cidadão no processo, v. Aldo CHIARA,
Presunzione cit., pp. 80/81.
Para se ater apenas aos temas que tocam à presunção de inocência, deve-se destacar
que: a defesa técnica foi reduzida e limitada a contravenções com pena superior a um
mês, sendo, ainda, suprimido o direito do defensor em ter vistas ou em copiar os autos e
de participar de atos como perícias, inspeções e inquirições; a publicidade também foi
limitada, pois os imputados não mais receberiam aviso de que estavam sendo
investigados, com convite para virem apresentar sua versão e poder receber a
comunicação dos atos; as nulidades absolutas referentes à falta ou deficiência de defesa
desapareceram por meio de um sistema de saneamento; as hipóteses de prisão em
flagrante obrigatórias foram ampliadas e as facultativas foram reduzidas; a liberdade
provisória deixava de ser ato exclusivo do juiz e passa a sê-lo, também, do Ministério
Público, porém sem que houvesse recurso para a sua denegação; aumentaram as
hipóteses de instrução sumária (fase preliminar de investigação) conduzida pelo
Ministério Público e pela qual ele poderia apurar, julgar e apenar, sem aviso ou a
presença de um juiz; a instauração de instrução formal (fase preliminar presidida pelo
juiz) era determinada pelo Ministério Público, uma vez que era ele quem decidia se havia
ou não “prova evidente” contra o imputado, o que faria com que a instrução fosse
sumária e sobre sua responsabilidade de apurar, julgar e apenar; por fim, a Corte de
Assise e o júri, fundidos em um único órgão presidido por dois juízes togados e cinco
assessores leigos, necessariamente integrantes do partido fascista, proferia decisão secreta
e extraída por votação, valendo de modo igual os votos de seus integrantes (togados ou
leigos).404
Além do evidente recrudescimento pela alteração dos institutos processuais de
garantia aos direitos do imputado, importante ressaltar o controle que o partido fascista
tinha tanto na fase preliminar investigativa quanto diante do tribunal.
No tocante à fase investigativa preparatória da ação penal, porquanto quem
determinava se haveria ou não instrução preliminar perante o juiz ou o Ministério
Público, era este último órgão que, como ressaltava ALESSANDRO MALINVERNI, por
não gozar das garantias de inamovibilidade do juiz e, ainda, por estar disciplinarmente
submetido ao Ministro da Justiça, tornava-se um “órgão mais doce às diretivas do poder
executivo”.405
No tocante à fase perante o tribunal, porque, se a decisão era dada pela maioria dos
sete votantes e se o partido fascista nomeava cinco deles, necessariamente leigos em
direito, os seus critérios de decidir eram, natural e prevalentemente, mais políticos que
técnico-jurídicos. Logo, evidencia-se falaciosa a “neutralidade” prolatada pelos
dogmáticos italianos responsáveis pela elaboração do código de processo penal.

404 Todas características expostas por Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., pp. 57/60. Na mesma obra, pp. 62/65,
esse autor expõe que o recrudescimento autoritário do sistema processual fascista somente viria a ser arrefecido nas
décadas de cinqüenta e sessenta, com o fim da II Guerra Mundial e após a incorporação, no ordenamento italiano
interno, da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, elaborada pelo
Conselho da Europa e celebrada em Roma, em 04 de janeiro de 1950 (cfr., sobre a datação deste diploma
internacional, assim como algumas referências sobre seu texto, Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., p.
267). Observe-se que tal Convenção traz, em seu art. 6.2, expressamente, a presunção de inocência, como um de seus
fundamentos.
405 Alessandro MALINVERNI, Lineamenti cit., p. 59.
De que adiantava uma técnica minudente e exacerbada se os integrantes do
Ministério Público (que aplicava pena ou decidia pela instauração de ação penal) eram
nomeados pelo partido fascista? De que adiantava uma técnica minudente e exacerbada
se a maior parte dos julgadores (cinco em sete) eram leigos escolhidos dentre os
integrantes do partido fascista?
Como se vê, se no Código Processual Penal italiano de 1913 ainda não havia se
revelado, em toda a sua nudez, a falácia positivista jurídica quanto à busca de uma
“neutralidade” ideológica e filosófica pela técnica dogmático-processual, tudo ficou de
clareza meridiana ao se elaborar o Código de Processo Penal italiano de 1930.

2.4.5. -Escola Técnico-Jurídica: influências sofridas da ‘Scuola Positiva’


para a rejeição da presunção de inocência

O positivismo jurídico da Escola Técnico-Jurídica recebeu claros influxos


criminológicos da Scuola Positiva que lhe antecedera. A Escola Positiva projetou forte
influência por todo o século XX, não sendo diferente com o pensamento italiano das três
primeiras décadas daquele século. Máxime ao se perceber que foi nesse período que
floresceu o fascismo e que a forma positivista de pensar lhe era muito ao feitio.406
A questão, portanto, não é se analisar se a Scuola Positiva projetou ou não influência
no tecnicismo jurídico de MANZINI; isso é um fato.407 Releva apenas saber em qual grau
isso afetou o tema da “presunção de inocência”.
Sobre o tema, já se destacaram os argumentos tecnicistas vivaz e argutamente
defendidos por MANZINI, mesmo antes do Código de Processo Penal de 1913 e
consignados em seu Manuale di procedura penale italiana, de 1912.408 Argumentos que,
como também já se destacou, foram mantidos e potencializados nos trabalhos do código
processual fascista de 1930, pelo forte controle político empreendido por ALFREDO
ROCCO.409
De todos os argumentos tidos como “neutrais” e “apenas técnicos”, destaque-se o
mais emblemático ao presente tema e pelo qual se evidencia como as posturas políticas,
de raiz na Scuola Positiva, se escondiam sob os tecnicismos dogmáticos.

406 Sobre a utilização pelo fascismo dos princípios e idéias da Scuola Positiva, v. Enrico FERRI, Princípios cit., pp.
315/316 e nota 1. Na mesma obra (p. 43), assim se manifesta o autor: “Afirmou a necessidade de restabelecer o
‘equilibrio entre os direitos do individuo e os do Estado’; pelo que eu disse que se a idade-media tinha visto sómente o
‘delinquente’ e a Escola Clássica tão sómente o ‘homem’, a realidade impunha ter em conta o ‘homem deliquente’,
não desconhecendo no delinquente os direitos insuprimíveis do homem, mas não esquecendo nunca a insuprimível
necessidade da defesa social contra o delinqüente”. Acrescentando em nota de rodapé ao texto destacado: “Esta a
razão fundamental do acôrdo prático entre o ‘Fascismo e a Scuola Positiva na defesa social contra a criminalidade’,
por mim salientado nos ‘Studi sulla criminalità’, 2ª ed., Torino, UTET, pág. 696-737 (reproduzido na ‘Scuola Positiva’,
julho de 1926)”.
407 Nesse sentido, José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., pp. 249/250, assim se manifesta: “O ‘perigo político’
das doutrinas positivistas consistiu, curiosamente, em ter servido e ser utilizadas a serviço dos movimentos e regimes
totalitários que dominaram a Europa na época que mediou entre uma e outra grande guerra” (op. cit., p. 249).
408 Sobre o tema, v. item 2.4.3.1 supra.
409 Sobre o tema, v. item 2.4.4 supra.
Os positivistas jurídicos afirmavam que a presunção de inocência era inaceitável no
processo penal pois, por sua visão técnica, não seria nem “presunção” nem se trataria de
“inocência”.410 MANZINI demonstrou, com bastante argúcia, cada um desses pontos.
Afirmava que não se podia falar de inocência porque o processo penal não declara se
alguém é ou não inocente, mas se ele é ou não culpado pelo crime do qual é acusado.
Sobre a “presunção”, MANZINI afirmava que, tecnicamente, ela é “meio de prova
indireta” pelo qual se extrai um dado absoluto ou relativo de uma base da experiência
comum. E, se há alguma presunção a se extrair da “experiência do processo penal”,
concluía MANZINI, é a presunção de culpa, não de inocência, pois a maior parte dos
acusados são, ao final, condenados.411
Esses dois pontos, aparentemente técnicos e lógicos, escondem o preconceito e a
visão antropológica e sociológica inerente ao pensamento da Escola Positiva, que
MANZINI tanto se esforçava em rejeitar, ao menos em seus escritos.412
Faça-se uma análise comparativa entre o pensamento manziniano e o ideário da
Scuola Positiva para cada uma daquelas duas partes da expressão: “presunção” e
“inocência”.
Quanto à “presunção”, o raciocínio está impregnado de preconceito, pois parte do
pressuposto de que, se houve uma acusação formalizada com base em elementos colhidos
no curso da fase preparatória, a imputação tenderia a ser verdade. Conferia, portanto,
extremo valor ao colhido pelos órgãos persecutórios (Polícia e Ministério Público), não
admitindo igualdade entre a versão destes e a do investigado. Mais que isso,
desconsiderava, ou, em suas palavras, considerava “pouco provável”, que ele conseguisse
reverter a situação jurídica com que se dava início à ação penal. Desvalorizava, com isso,
contudo sem confessar, a utilidade da fase processual e o trabalho da defesa em juízo. O
“material incriminador” com que se iniciava a ação penal já continha uma alta
probabilidade de certeza, dificilmente reversível.

410 Sobre a rejeição expressa da presunção de inocência pelo Código Rocco, v. Mario PISANI, Introduzione al processo
penale, Milano: Giuffrè, 1988, p. 43, e Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione cit., p. 561.
411 Sobre toda a exposição das linhas argumentativas do positivismo jurídico sobre o tema da presunção de inocência, v.
item 2.4.3.1 supra. Sobre as exposições de Vincenzo MANZINI no tocante ao tema, v. seu Manuale cit., pp. 54 e ss. e,
no Trattato di diritto processuale cit,, pp. 221 e 226/227.
412 Sobre a rejeição expressa de MANZINI quanto aos pensamentos antropológicos e sociológicos da Scuola Positiva, v.
item 2.4.2 supra.
Além do que não trazia ao contexto, nesse ponto de seu argumento, que a fase
preliminar e preparatória realizava-se em moldes inquisitivos, com profundas restrições
ao exercício dos direitos inerentes ao devido processo legal.413 Dar amplos poderes aos
órgãos persecutórios e restringir a quase nenhum os direitos do investigado para, após
essa escolha, dar mais crédito ao trabalho daqueles órgãos administrativos, não é
“equilibrar” os interesses persecutórios e defensivos.414 É, em verdade, promover o
desequilíbrio de posições jurídicas. É fazer exatamente o oposto do preconizado por
ALFREDO ROCCO como objetivo da reforma processual penal de 1930.
O preconceito dos positivistas jurídicos, nesse ponto, residia exatamente em conferir
maior valorização e credibilidade à fase preparatória inquisitiva do que à fase acusatória,
realizada com maiores garantias ao imputado.
Em síntese, a conclusão que adviesse da fase preparatória formava a convicção de
MANZINI. Se ela fosse pelo início da ação penal, seria atécnico dizer que se deveria
presumir a inocência do acusado, pois, estatisticamente (típico raciocínio da Scuola
Positiva), deveria presumir-se a sua culpabilidade.
Quanto ao termo “inocência”, o argumento técnico-positivista era de que consistia
em um conceito ético e não jurídico, uma vez que o processo apenas dizia se a pessoa
cometera ou não aquele fato do qual a acusavam. Classificavam a “inocência” de postura
“ética” para deslocá-la do espaço “apenas jurídico” do código de processo penal. Nada há
de mais ideológico e de maior conveniência política em um Estado autoritário do que
referido raciocínio.
MANZINI afirmava que, a inocência não poderia ser declarada, pois, mesmo se não
provada a culpa do acusado naquele processo, ninguém poderia garantir que ele não fosse
um dos mais perigosos “delinqüentes habituais”.415

413 Conforme já exposto no item 2.4.4 supra.


414 Sobre a relação direta entre o livre convencimento judicial do positivismo e sua autorização para aceitar e valorar de
igual modo, se não exclusivamente ou com clara preponderância, as “provas” colhidas em fase investigativa em
detrimento daquelas produzidas em contraditório perante o juízo, v. Massimo NOBILI, Il principio cit., pp. 260/266,
quando preleciona: “É típico do aspecto historicamente mais notável e interessante da ‘nova’ concepção do livre
convencimento – onde se procura a recuperação de uma instância de racionalidade, no seio das novas concepções
processuais – que a tentativa destinou-se a alargar às mais perigosas conclusões. (...) No ponto de vista da estrutura do
processo, se assiste à mesma tendência, através do retorno de um ideal do tipo inquisitório, no qual campeia soberana
a imagem do juiz e de seus poderes, e um sistema dominado sim por uma instância de racionalidade, mas perseguido
por um total empobrecimento do contraditório. Que coisa torna-se de fato a assim denominada cientificidade do
convencimento se ela é entendida como instrumento da função de defesa social dirigida ao rito judiciário e se às
formas processuais e ao método probatório se olha de uma perspectiva um tanto alterada? Liberdade do juiz vinha
significar convencimento fora do contraditório, (...). Tudo está enquadrado na necessidade superior da descoberta da
verdade e toda atividade deve considerar-se como meio para tal descoberta. A via melhor para alcançar este objetivo
não é a contradição entre as partes. O que – também em tema de convencimento do juiz – se alcança com o repúdio
de toda orientação de tipo acusatória e pela exaltação de um novo ‘espírito inquisitório’ que marca a atividade
probatória e processual na sua totalidade. O critério do livre convencimento encontra assim – na sua secular evolução
– um sistema no qual ‘a verdade ... não precisa revelar-se pelo contraditório de dois adversários; ... a crítica do juiz, já
adulta e treinada, a sua mente indagadora ... a cria com as próprias forças’. Na atividade cognitiva do juiz reconhece-
se, portanto, um elemento auto-suficiente para proceder à descoberta de uma verdade que se afirma e se quer por
racional, mas que de tal racionalidade perdeu a dimensão mais concreta e satisfatória: aquela dialética, que se extrai
do contraditório das partes” (op. cit., pp. 260/262).
415 Vincenzo MANZINI, Tratatto di diritto processuale cit., p. 221.
Mais uma vez se evidencia a postura, nunca externada, pela qual MANZINI via os
cidadãos. Mesmo sem prova quanto ao fato julgado, mesmo sem investigação iniciada
para qualquer outro fato, mesmo sem sequer se saber notícia de um crime, para
MANZINI não se podia dizer que alguém era inocente. Isto porque, afirmava esse
dogmático positivista, podia ter ocorrido uma falha do Estado em “demonstrar” qual
crime aquela pessoa praticou, mas isso não significava dizer que ela não fosse
delinqüente. Não há mera coincidência entre essa postura de MANZINI e a visão da
Escola Positiva sobre o determinismo e que o mal é algo biopsicológico ou social atávico
à pessoa, apenas aguardando o momento para aflorar e ser descoberto.
Em relação a essa posição de MANZINI deve-se perguntar: se não há crime,
porquanto não foi condenado ou, ainda, porque nenhuma investigação foi iniciada, como
ele poderia afirmar que alguém agira ilicitamente? O que lhe garantia que aquela pessoa
era um “criminoso habitual”? Como ele poderia afirmar que alguém não era inocente se
nada de objetivo lhe apontava o contrário? Com que base técnico-jurídica “certa e
precisa”416 poderia fazer tal afirmação?
Se como disse até mesmo o próprio ENRICO FERRI o normal é que haja mais
honestos que desonestos, de qual base segura MANZINI extraía sua convicção para
afirmar que não se podia dizer que alguém era inocente, se nem mesmo houvera
condenação após toda a persecução?
Os “dados certos e seguros” que lastreavam MANZINI são de fácil percepção se
observado o momento histórico em que desempenhava seu magistério: a “presunção de
culpa” (de periculosidade, de temibilidade, de heresia ou de insurgência política ou
militar) advinda de uma postura embebida e fomentada por uma visão estatal autoritária
(fascista e violenta) e pela qual todos, que não estivessem a seu lado (seguidores, adeptos,
correligionários, familiares, companheiros de fé ou de partido), são maus (doentes,
criminosos, hereges, rebeldes ou um perigo social), pela própria e simples condição de
não lhe serem afins.
A inversão manziniana da lógica humanitária, proposta pelos clássicos e que se
baseava no ideal de que não se pode ter juízos de valor negativos contra ninguém até que
exista prova incriminadora suficiente disso, somente se justificava diante de um Estado
fascista e que a tudo e a todos queria controlar. Reservando para si a exclusividade de
dizer o que é lícito (pelo controle do poder de legislar) e quem é o criminoso (pelo
controle dos órgãos administrativos de persecução - Polícia e Ministério Público – e dos
tribunais), por meio do estabelecimento de “novas” leis processuais para julgá-lo.
Não declarar a pessoa inocente ao final do processo, p.ex., julgando sua absolvição
por “insuficiência de prova” para condená-la, não é apuro técnico-jurídico. É
inconfessado desejo ideológico de manter o processado criminalmente sempre com uma
marca social.417

416 Dados objetivos e base racional certa e segura era a única forma defendida por MANZINI para estabelecer um
aceitável pensamento jurídico. Nesse sentido, Trattato di diritto penale cit., itens 3 a 9.
417 Sobre a violação à presunção de inocência representada por essa forma de “absolvição”, v. item 5.4.1.3.1 infra.
Assim, como para EDMUND MEZGER, na Alemanha nazista,418 também na Itália
fascista de VINCENZO MANZINI e ALFREDO ROCCO, a dogmática jurídica que se
dizia uma ciência neutral e baseada apenas na técnica, foi o melhor instrumento para dar
amparo formal e legal aos anseios políticos daqueles Estados autoritários. O positivismo
jurídico de MANZINI, por mais que seu autor negasse, demonstrou que não era neutral,
mas politicamente dirigido pelo fascismo e com raiz na antropologia e sociologia da
Scuola Positiva italiana.

2.4.6. -Aceitação do “in dubio pro reo” pela Escola Técnico-Jurídica

Conquanto influenciados pela Scuola Positiva italiana, os técnicos-juristas, mentores


do código de processo penal italiano de 1930, não aceitaram integralmente alguns
primados idealizados pelos integrantes daquela escola criminológica.419
Essa a razão pela qual MANZINI, conquanto negue peremptoriamente a presunção
de inocência, aceitou o “in dubio pro reo”.420 Essa aceitação foi incondicional apenas para
o julgador dirimir dúvida no campo fático e ao final da instrução. Esse autor, contudo,
rejeita a aplicação de qualquer forma benigna correlata ao “pro reo”, v.g., “favor rei”, no
instante da interpretação da norma penal ou processual penal.421

418 Gabriel IGNACIO ANITUA, Historias cit., lembrando o trabalho de Edmund MEZGER, demonstra a relação direta
entre o dogmatismo dos positivistas jurídicos e o regime nazista. Nas palavras daquele autor, em português: “O maior
e melhor expoente deste direito penal e criminologia neokantianos foi Edmund MEZGER (1883-1962), que
abandonou o suposto ‘apoliticismo’ que manteve durante a República de Weimar imediatamente depois da ascensão
de Adolf HITLER (1889-1945). E não só o abandonaria na cátedra, como que o representou ofensivamente até o final
do Estado nazi a nova reforma penal e política criminal nacional-socialista. (...) Na Criminologia de MEZGER,
publicada a primeira vez em 1934 e que teve duas edições em 1942 e 1944, se revelava a conivência entre um
pensamento jurídico sólido e as idéias racistas de exterminação, de raiz biologista e positivista. Já no prólogo
MEZGER afirmava que a política criminal tinha como missão a ‘conformação racial do povo como um todo’, e que a
meta da Administração da Justiça no futuro seria ‘a segregação da comunidade do povo dos elementos daninhos ao
povo e à raça’. (...) A prova de que o positivismo jurídico não era, finalmente, neutral se obteve justamente no
pensamento e obra deste autor, que se apoiaria – antes e depois do nazismo – neste tipo de ciência não
comprometida, para não obstante se comprometer durante doze anos de governo nazista com as práticas racistas de
eliminação de indesejáveis”.
419 Como um dos vários exemplos de propostas de elaboração de um código de processo penal segundo os princípios
positivistas, v., por todos, a obra de Raffaele GAROFALO e Luigi CARELLI, Riforma della procedura penale in Italia,
Torino: Fratelli Bocca Editori, 1889, notadamente pp. CLXVI/CLXXIV, e pela qual os autores pugnavam pela
eliminação não apenas da presunção de inocência, mas também do “in dubio pro reo”.
420 Trattato di diritto processuale cit., itens 24 e 41.
421 Conforme se pode ver nas duas obras publicadas pelo autor logo após a edição do Código de Processo Penal de 1930:
Vincenzo manzini, Istituzioni di diritto processuale penale: secondo il nuovo codice di procedura penale, 5ª ed.,
Milano: Cedam, 1932, p. 36, e Trattato di diritto processuale penale italiano: secondo il nuovo codice, Torino: UTET,
1931, v. 1, pp. 104/105 e 184. Vale notar que a afinidade desse pensamento do autor com a mens legislatoris ressurte
clara, notadamente nesta última obra citada, que conta inclusive com o prefácio de Alfredo Rocco, então Ministro da
Justiça de Benito Mussolini e responsável pelos debates legislativos “técnico-jurídicos” de elaboração tanto do código
processual quanto do código penal.
Assim, distanciou-se tanto da posição positivista mais radical de RAFFAELE
GAROFALO, que pugnava pela eliminação completa da cultura “pro reo”422 no processo
penal, em qualquer de suas formas ou aplicações, quanto da posição seletiva de ENRICO
FERRI,423 para quem o “in dubio pro reo” somente poderia ser aplicado para os
“delinqüentes ocasionais” ou os “delinqüentes passionais”, sendo vedado aos natos,
profissionais ou habituais.
Também nesse aspecto o pensamento positivista jurídico do código processual penal
de 1930 em nada se distancia do sistema processual penal romano da cognitio extra
ordinem e do modelo misto francês: a presunção de inocência era expressamente
rejeitada, mas se aceitava uma mitigação na decisão judicial se, após toda a persecução e a
interpretação do fato pela íntima convicção do julgador, sem controle e orientada
politicamente, ele ainda restasse em dúvida sobre a culpa do acusado. Nesse caso, e
apenas para matéria de fato, deveria decidir em seu favor (“in dubio pro reo”).
Para que essa posição final fosse permitida, reforçou-se e não se limitou o “livre
convencimento judicial”,424 não se estabelecendo regras pré-definidas para o juiz decidir
diante de cada espécie de prova. Para isso, os positivistas reforçaram e ampliaram, de
modo exagerado, os poderes instrutórios judiciais, permitindo uma verdadeira
investigação do juiz na busca de meios e fontes de prova, independente da atuação das
partes. A ampliação da investigação judicial, contudo, não eliminava a possibilidade de
dúvida inerente ao sistema do livre convencimento, uma vez que a demonstração fática
dos dados históricos relevantes à decisão penal pode encontrar limites materiais em sua
reconstrução. Assim, prestigiando a forma decisória do livre convencimento, mesmo com
amplos poderes instrutórios, não se eliminava a possibilidade de existir a dúvida ao final.
Logo, se surgisse a dúvida sobre questão de fato ao final de todo o labor instrutório das
partes e do juiz, os positivistas aceitavam que ela fosse resolvida em favor do acusado (“in
dubio pro reo”), apenas e tão-só no instante da decisão de mérito.425

422 Para a diferença entre “in dubio pro reo” e “favor rei” e suas inter-relações com a presunção de inocência, v. item
5.4.1.1 infra.
423 Sobre essa posição positivista dos autores citados, com indicação bibliográfica, v. item 2.3.2 supra.
424 Eugenio FLORIAN, Delle prove penali, Milano: Francesco Vallardi, 1921, v. 1, item 176, pp. 353/356, destacado
positivista, ressalta que as provas colhidas no curso persecutório e a análise que sobre elas deva fazer o juiz de forma
livre (negando o sistema da prova legal como eficiente) e motivada (reforçando a necessidade de uma lógica
expositiva do raciocínio a ser externado pelo julgador) é que determina a culpa ou inocência do imputado, não tendo
razão lógica para a utilização da presunção de inocência para essa finalidade valorativa. Na visão desse dogmático
positivista, não existiria um princípio de inocência do imputado, mas um princípio natural de prova. No mesmo
sentido, v. A. MARUCCI, Presunzione d´innocenza, atteggiamento del giudicante, errori giudiziari, Rassegna di
studi penitenziari, Roma, v. 9, n. 3, mag./giug., 1959, pp. 364/366.
425 Sobre a necessidade de aplicação do “in dubio pro reo” e do “favor rei” também em outras decisões judiciais no curso
persecutório, v. item 5.4.1.2.1, 5.4.1.3 e 5.4.2.3.1 infra.
Ocorre, porém, e isso precisa ser colocado em ressalto, que tanto para o código
processual penal italiano de 1930 quanto para o brasileiro de 1940, a possibilidade de o
juiz restar em dúvida era muito diminuta.426 Primeiro, porque os poderes instrutórios do
juiz reduziam aquela margem ao mínimo, uma vez que sempre que desejasse provar algo
poderia fazê-lo sem peias. Segundo, porque ao sair em busca de fontes e meios
probatórios se vinculava psicologicamente à tese que pretendia provar ou ao tema que
pretendia esclarecer, tendendo a avaliar com mais peso as provas que ele “descobrisse” ou
“determinasse”. Terceiro, e mais importante, porque sendo a dúvida um estado
psicológico que primeiro surge no íntimo do julgador, ele pode removê-la por meio de
fatos externos aos autos, por suas experiências sociais, culturais, religiosas e psicológicas,
e, ainda, o que era muito comum na fase fascista, por razões políticas, econômicas ou de
Estado.427 Esses fatores “extraprocessuais”, considerados de hábito pelos julgadores,428
foram tão marcantes na formação cultural jurídica ítalo-brasileira que o livre
convencimento foi sendo considerado como “certeza moral” do julgador.429

426 No sentido de que o sistema da investigação judicial ampla associado ao livre convencimento do juiz não elimina a
dúvida, mas a reduz ao menor campo de atuação do “in dubio pro reo”, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade
cit., pp. 54/56.
427 Sobre esse instante como o momento mais crítico para a presunção de inocência como “norma de juízo”, v. item
5.4.2.3.2 infra.
428 Essa mesma realidade de se considerar elementos externos aos autos processuais ou dar maior importância a fatos
indiciários ou de pouca objetividade incriminadora por ter-se convencido com base naqueles elementos, também foi
percebida na Espanha, ainda nos anos oitenta do século XX, conforme constatou Jaime VEGAS TORRES, Presunción
cit., pp. 157/164.
429 Massimo NOBILI, Il principio cit., pp. 221/265, trata como o livre convencimento ilimitado foi utilizado desde a
Escola Positiva para dar ao julgador a liberdade ilimitada necessária para a “defesa social” e a proteção dos interesses
repressivos “públicos” frente ao direito de liberdade “privado” do cidadão. O prometido arrefecimento daquele
ilimitado poder pelo código de processo penal italiano de 1930 não ocorreu de fato. Aquele autor citado, analisando o
sistema em meados da década de setenta do século passado, quando ainda estava vigente na Itália o referido diploma
processual, demonstrou em profunda análise jurisprudencial e doutrinária (op. cit., pp. 267/296) que a cultura jurídica
era a de que o livre convencimento era ilimitado e podia ser definido como uma “certeza moral” do julgador (op. cit.,
p. 281). Não obstante se exigisse, em alguns julgados dos Tribunais, a necessidade de motivação por parte dos juízes,
de tão genéricas e pouco incisivas aquelas “recomendações” em nada contribuíam para o tema do livre
convencimento (op. cit., p. 283). Para demonstrar o ilimitado poder jurisdicional na formação de seu livre
convencimento e as fortes influências que o pensamento positivista e técnico-jurídico daquelas escolas penais
projetaram no código italiano de 1930 até sua revogação, ao final da década de oitenta, veja-se o expressivo trecho de
Massimo Nobili, pelo qual comenta a posição de vários doutrinadores que interpretavam o código já na década de
sessenta na Itália: “É essa a imagem do livre convencimento que herdamos das ‘novas escolas’ penais e que se
insinuam até os nossos dias, uma vez que não é raro ouvir repetir, ainda hoje – especialmente entre os magistrados - ,
que ‘o escopo da justiça processual não é de sacrificar a busca da verdade à presunção de inocência’; que o
contraditório propicia o perigo de ‘inúteis formalidades’; de dispêndio de energias humanas e está em contraste com a
‘defesa social’; ver figurar entre as propostas de reforma, a idéia de ‘um processo sumário, o mais ágil possível, para
usar como instrumento útil e rápido, ...como eficaz instrumento de luta saneadora e redentora contra o delito’; ou ler
em algumas sentenças que ‘pelo princípio do livre convencimento, o juiz está desvinculado de qualquer formalismo,
em tudo que concerne a definição das condições indispensáveis para atuação da pretensão punitiva do Estado’” ( op.
cit., pp. 265/266).
O ordenamento processual desenhado aos moldes positivistas, portanto, assim como
o misto francês e o romano da cognitio extra ordinem, não era liberal ou garantista por
aceitar o “in dubio pro reo”. A aceitação dessa cláusula, conforme afirmava o próprio
VINCENZO MANZINI, era apenas um “doveroso obbligo morale”,430 nunca uma
imposição legal431 de se escolher a decisão mais favorável ao acusado em caso de
dúvida.432

2.4.7. -Revelação e desconstrução dos fundamentos da crítica da Escola Técnico-


Jurídica italiana à presunção de inocência

Se há algo de essencial a explicar toda a mudança de eixo empreendida pelo


pensamento técnico-jurídico capitaneado, na área das ciências criminais, por
VINCENZO MANZINI, é que essa forma de pensar estava ao feitio do então nascente e
pujante regime fascista.
Para implementar tal regime, os juristas da Escola Técnico-Jurídica iniciaram por
esvaziar todo o conteúdo político-ideológico da Escola Clássica, a qual representava a
continuidade do pensamento iluminista pela liberdade, igualdade, e fraternidade
humanas, com as quais se inaugurou mais fortemente uma preocupação com os direitos
humanos. Procederam a tal esvaziamento com o argumento de que no direito não há
espaço para ideologias ou pensamentos filosóficos abstratos, apenas e tão-somente para a
técnica. Afirmavam que, por meio de um aperfeiçoamento técnico-jurídico de linguagem
e dos institutos, haveria uma melhora prática do direito criminal, de maneira que não se
perderia tempo e energia em discussões ou divagações abstratas.

430 Trattato di diritto processuale cit., item 24.


431 Sobre a presunção de inocência como forma de se determinar, por força constitucional, a imposição do “in dubio pro
reo” e do “favor rei”, v. item 5.4.1.1 infra.
432 Sobre a possibilidade de se ter o “in dubio pro reo” mesmo em sistemas reconhecidamente repressivos, v. itens 1.2.3 e
1.2.4 supra. Sobre o “in dubio pro reo” se vincular mais ao sistema probatório e decisório escolhido do que ao perfil
mais ou menos garantista do ordenamento, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade cit., p. 47, em especial a
nota 101, e pp. 54/59.
Com essa atuação, defendiam abertamente uma neutralidade ideológica dos
institutos jurídicos, mas, à socapa, incutiam uma ideologia político-criminal autoritária
sob o argumento de que o interesse punitivo estatal, por ser coletivo, sempre deveria
prevalecer sobre o interesse de defesa do imputado, por ser individual. Apesar do
discurso técnico, promoviam sua posição político-ideológica: a postura autoritária e
arbitrária conveniente ao nazifascismo que levou a Europa à II Guerra Mundial. Se essa
não era a finalidade da Escola Técnico-Jurídica ou da Escola Dogmático-Positivista, tal
forma de pensar foi bem utilizada pelos ocupantes do poder. E, para isso, era
fundamental destruir e desmoralizar o preceito iluminista da “presunção de inocência”,
porquanto não há como se construir um sistema processual penal a serviço de uma
política autoritária se o seu eixo central for a presunção de inocência.433
Assim, para expungir a inaceitável noção de “inocência”, porquanto por detrás e
como substrato dessa idéia está o ideário motriz da igualdade,434 os positivistas não se
colocaram, em um primeiro plano, contra ela, mas sim contra o termo “presunção”.
Habilmente, desqualificaram tecnicamente o termo “presunção” para depois rejeitarem a
noção de “inocência”. A qualidade e habilidade técnica e semântica dos artífices da
Escola Técnico-Jurídica foram admiráveis. Partindo de um raciocínio indutivo, típico da
Scuola Positiva, mostravam que o que mais ocorre no processo penal, passada a fase
investigativa de cariz inquisitivo, era a condenação; assim, concluíam, o termo presunção
está tecnicamente equivocado, mas se há uma presunção no processo penal ela é a de
culpa, jamais a de inocência.
Feita a revelação de que o pensamento positivista jurídico não era “neutro” ou
técnico-jurídico, mas legitimador e justificador do ideário nazifascista435 e, portanto,
destinado à eliminação de qualquer barreira ao autoritarismo, cabe proceder à sua
desconstrução pela demonstração dos erros técnicos cometidos por essa ideologia.
Fixada essa premissa ideológica racional para o ataque dos positivistas à presunção
de inocência no processo penal, deve-se retomar alguns pontos já destacados de modo
esparso nos itens anteriores quanto ao erro e à deslealdade positivistas relativos à crítica
ao termo “presunção”. Porém, para além disso, é por demais importante, para o
desenvolvimento futuro do trabalho, destacar outro erro positivista, qual seja, a
absolutização da presunção de inocência sobre qualquer outro direito ou posição jurídica,
para, assim, ridicularizarem-na a aplicação.

2.4.7.1. -(segue): a ideologia nazifascista sob a crítica técnico-jurídica do termo


“presunção”

433 No sentido de ser a presunção de inocência apenas compatível com um sistema processual penal garantista, v.
Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1170/1173, e Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 83/85. Jaime VEGAS
TORRES, Presunción cit., p. 29, afirma que o rechaço fascista de 1930 à presunção de inocência encontra sua
explicação, além de qualquer justificativa lógico-jurídica, em considerações de índole claramente política, pois “el
principio de presunción de inocencia tiene um carácter de símbolo antiautoritarismo ante el cual el fascismo no
podia permanecer indiferente”.
434 Sobre essa relação indissolúvel entre a noção de “inocência”, inserida na expressão “presunção de inocência”, e o
primado revolucionário da igualdade, v. itens 1.5.4.2 e 1.5.4.3 supra.
435 Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1177/1178.
Como já se demonstrou, houve uma deslealdade técnica ao se criticar a escolha do
termo “presunção” pelos pensadores revolucionários iluministas. Isto porque, a palavra,
ao menos até aquele instante histórico da escolha (meados do século XVIII), tinha um
conteúdo humanitário e racional baseado em uma classificação tripartida.436
É cediço que o movimento revolucionário de 1789 não foi uma mudança técnico-
jurídica por excelência, mas uma transformação filosófico-política e que apenas de modo
reflexo atingiu o sistema jurídico-constitucional. O principal, portanto, era uma
mudança de eixo político, no qual o homem deveria ser respeitado pelo Estado, que, por
sua vez, tinha limites em sua atuação. Foi esse eixo político que os tecnicistas do final do
século XIX e início do século XX rejeitavam e conseguiram mudar, ao colocarem os
interesses do Estado acima de qualquer direito do cidadão.
Para a consecução de tal desiderato, tomaram a presunção de inocência como se
fosse uma espécie de “presunção”, termo técnico cujo significado foram buscar no campo
do direito civil, aplicando-o, sem restrições ou ressalvas (técnicas ou filosóficas) em área
jurídica diversa, qual seja, a área jurídico-criminal.437

436 Sobre o tema, v. itens 1.5.4.1 e 1.5.4.3 supra.


437 Sobre a redução operada pela Escola Técnico-Jurídica na presunção de inocência, tratando-a no âmbito das
presunções, indícios ou probabilidades, negando, desta forma, seu status de eixo estrutural do processo penal, v.
Fabián I. BALCARCE, Presunción de inocencia: crítica a la posición vigente, Córdoba: Marcos Lerner Editora
Córdoba, 1996, pp. 29/31. Sobre a presunção de inocência como direito fundamental estrutural do processo penal, v.
item 5.3.3 e seus subitens infra.
Contudo, como bem observado pela doutrina,438 a inscrição iluminista “tout homme
étant présumé innocent”, de 1789, “não pode ser pensada a partir de um sentido
puramente técnico de prova indireta; o apelo à ‘presunção’, no caso, pouco tinha que ver
com a idéia de conseqüência que a lei extrai de um fato conhecido para um fato
desconhecido, significando, antes disso, uma atitude emocional de repúdio ao sistema
processual até então vigente, no qual o acusado devia provar a improcedência da
acusação, sob pena de suportar as conseqüências do ‘non liquet’”.439 “A rigor, somente no
processo dominado por regras legais sobre a prova seria possível falar em ‘presunções’ de
culpabilidade ou de inocência; a adoção do princípio do livre convencimento do juiz não
enseja o estabelecimento de presunções desse tipo”.440
Em respeito à excelência técnico-jurídica dos neoclássicos, pode-se afirmar que em
suas críticas ao termo “presunção” foram, no mínimo, incoerentes em seu tecnicismo.
Isto porque, ao mesmo tempo em que defendiam o livre convencimento judicial para a
decisão das causas penais, aplicavam em sua argumentação um raciocínio típico do
direito privado e, ainda mais, não elaborado para o esse sistema de avaliação da prova
(livre convencimento), mas para o sistema da prova legal, já não mais existente.

438 Para essa constatação do matiz político prevalente sobre o técnico-jurídico da escolha pela expressão “presunção de
inocência”, v., na Itália, as obras de: Giulio ILLUMINATI, La presunzione d´innocenza dell´imputado, 6ª ed.,
Bologna: Zanichelli Editore, 1984, pp. 17/30; Girolamo BELLAVISTA, Studi sul processo penale, Milano: Giuffrè,
1976, v. IV, pp. 83-93; e Mario PISANI, Introduzione cit., pp. 43/47. No Brasil, v.: Antônio MAGALHÃES GOMES
FILHO, Presunção cit., pp. 35/37; Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus da prova no processo penal, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, pp. 280/284; Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo processual tridimensional do
princípio da presunção de inocência, in Luiz Flávio GOMES, Estudos de direito penal e processo penal, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, pp. 107/108; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO, Processo penal e
Constituição: princípios constitucionais do processo penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp. 156/157;
Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela da liberdade no processo penal, São Paulo: Malheiros, 2005,
pp. 69/71; Guilherme Madeira DREZEM, Presunção de inocência: efeito suspensivo dos recursos extraordinário e
especial e execução provisória, Revista Brasileira de Ciências Criminais, p. 275; e a exposição de Cezar PELUSO,
Garantias cit. Na doutrina espanhola, v., por todos, as observações de Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp.
28/30.
439 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 35/36.
440 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit., p. 318. Sobre a presunção de inocência não ser presunção
na acepção técnica, v.: Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 13/14; Alexander GALLAHER HUCKE, La
presunción de inocencia y la presunción de voluntariedad, Santiago do Chile: Editorial Jurídica ConoSur LTDA,
1996, pp. 19/25; Esteban ROMERO ARIAS, La presunción de inocencia: estudio de algunas de las consecuencias de la
constitucionalización de este derecho fundamental, Pamplona: Aranzadi, 1985, pp. 38/46; Fabián I. BALCARCE,
Presunción cit., pp. 47/50; José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., pp. 268/273; Mario PISANI, Introduzione
cit., pp. 44/45; Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 81/83 e 85; Rui PATRÍCIO, O princípio da presunção de
inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, Lisboa: Associação Acadêmica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2000, p. 37; Giuseppe BETTIOL, Instituições de direito e de processo penal, tradução
de Manuel da Costa Andrade, Coimbra: Coimbra, 1974, pp. 298/299; Renato Barão VARALDA, Restrição ao princípio
da presunção de inocência: prisão preventiva e ordem pública, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007, pp.
50/51; Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La presunción de inocencia: análisis doctrinal y jurisprudencial,
Pamplona: Aranzadi, 1999, p. 37; e Odone SANGUINÉ, Prisión provisional y derechos fundamentales, Valencia:
Tirant lo Blanch, 2003, pp. 430/431.
O que explicou a necessidade, o surgimento, a importância sistêmica e a extensão
que deveria se dar à “presunção de inocência” foi o seu cunho ideológico-político.441
Retirá-lo é o mesmo que desnaturá-la. Desconsiderá-lo é mudar a fonte juspolítica
daquele preceito humanitário.
Quando o legislador (constitucional ou infraconstitucional) estabelece presunção,
cabe indagar qual o fundamento e finalidade que a ela se atribui no instante normativo.
Como já se demonstrou acima, no período pré-revolucionário francês, o pensamento
humanista somente aceitava a idéia de “praesumptio” como forma de sanar a dúvida, seja
atribuindo o ônus probatório para o acusador, seja decidindo em favor do acusado.442
Nesse sentido, a “presunção” não foi inserida na idéia política de “presunção de
inocência” para representar uma constatação de probabilidade do que ocorre ou não na
realidade processual penal, mas como orientação ao Estado de seu dever de sempre
considerar e tratar o indivíduo como inocente até decisão judicial condenatória final.
É erro palmar entender que os filósofos iluministas tivessem tomado a “presunção”
com o fundamento do que provavelmente ocorria ao final de uma persecução penal. Isto
porque as experiências até então havidas no direito processual penal eram as da
Inquisição, na qual a única certeza era a de que quase a totalidade das pessoas submetidas
ao Santo Ofício eram, desde o início da persecução, tidas e tratadas como culpadas. Não
se pode supor que os iluministas desconhecessem que a condenação era quase a única
forma de se terminar um julgamento que, indefectivelmente, se iniciava com uma
confissão, em regra, extorquida por meio da tortura.443
Diante dessa realidade, que os iluministas pretendiam mudar, foi um (proposital?)
erro dos positivistas afirmar que aqueles erraram ao não observar que a maioria dos
acusados seriam, provavelmente, culpados, nunca inocentes, já que são condenados ao
final.
Para ganhar ainda mais consistência em sua lógica tecnicamente tortuosa,
afirmavam que a “presunção de inocência” era incompatível com vários institutos
processuais penais dos códigos italianos de 1865, de 1913 e de 1930. Contudo, não
alertavam que tais códigos, já em sua gênese legislativa, rejeitavam a “presunção de
inocência”. Assim, os parâmetros usados pelos técnico-dogmáticos como “os certos”
eram, na verdade, sempre aqueles que rejeitavam a “presunção de inocência” em sua
gênese política formadora. Essa jamais poderia ser uma lógica analítica honesta para se
discutir se um preceito juspolítico (presunção de inocência) deveria ou não fundar um
sistema processual penal. Os parâmetros usados como “certos” estavam comprometidos
com a “presunção de culpa” desde sua formação. Logo, sempre seriam incompatíveis com
qualquer argumento baseado na “presunção de inocência”.

441 Sobre o inegável conteúdo político da presunção de inocência, v.: Aldo CHIARA, Presunzione cit., pp. 75/77; Giulio
ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 80/84; Vincenzo GAROFOLI, Presunzione cit., pp. 1170/1173; Antonio
Magalhães GOMES FILHO, Significados cit., pp. 318/319; Renato Barão VARALDA, Restrição cit., pp. 50/53;
Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 283/284; e Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 28.
442 Sobre o tema, v. itens 1.5.4.1 e 1.5.4.3 supra.
443 Sobre o tema do sistema processual da Inquisição estar alicerçado na presunção de culpa e as conseqüências disso para
os imputados, v. item 1.4.3 supra. Sobre a tortura ser o meio de obtenção da prova mais comum e sua estruturação no
procedimento penal da Inquisição, v. item 1.4.1.2 supra.
Os iluministas e a doutrina da Escola Clássica nunca fundamentaram sua “presunção
de inocência” nos dados prováveis ou não da realidade persecutória criminal, mas,
exatamente para impedir os abusos e violências estatais daquela atividade persecutória
até então existente (séculos XVI a XVIII) – única realidade que conheciam –, fixaram
uma escolha axiológica e baseada na técnica até então existente para aquele conceito de
“presunção”.444
Assim, a régua de medir aquela presunção não é a técnico-jurídica, v. g., da
presunção absoluta ou relativa, legal ou judicial. Isto foi criado para, no campo do direito
privado, com base na realidade provável, auxiliar a superar dificuldades surgidas na
reconstrução fática. Tecnicamente, essas presunções originárias do direito privado podem
ser transportadas para o campo processual penal em certa medida e para determinadas
situações, mas, definitivamente, não têm a mesma natureza, finalidade e função da
“presunção de inocência”.445 Esta presunção se mede com a régua da ideologia política do
humanismo, voltada, principalmente, ao legislador infraconstitucional, mas também ao
julgador e ao administrador público, sem olvidar os agentes privados da comunidade na
qual aquele preceito se insira. Sua finalidade é a proteção dos interesses do imputado na
persecução penal, isso sempre ficou claro, não viram e não vêem os que não querem.446
Nesse sentido, com toda a propriedade, conclui ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES
FILHO: “É justamente por isso que na leitura da expressão ‘presunção de inocência’ há de
ser considerado prioritariamente o seu valor ideológico; trata-se, como afirmou Pisani,
de uma ‘presunção política’ na medida em que exprime uma orientação de fundo ao
legislador, qual seja a de garantia da posição de liberdade do acusado diante do interesse
coletivo à repressão penal”.447

2.4.7.2. -(segue): ao se negar a “presunção de inocência” resta apenas a “presunção


de culpa”, não a “presunção de não culpabilidade”

444 Quanto à idéia de presunção e sua relação com o preceito iluminista de “presunção de inocência”, v. Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., p. 36, quando assevera que o “que parece essencial ao tratamento do
tema, na verdade, é a consideração de que as presunções são normas de comportamento e através delas o legislador
formula regras de ‘dever ser’ e não asserções da realidade. As presunções, também sublinhou Wroblewisk, estão
fundamentadas em valores ideológicos e técnicos; no caso da presunção de inocência, o valor ideológico é a garantia
do interesse do acusado no processo penal, enquanto o valor técnico, instrumental ao primeiro, contribui para a
segurança e a certeza do direito, indicando ao juiz a regra a ser obedecida no caso de incerteza sobre a culpabilidade”.
Sobre a concepção até então existente de “presunção”, na área criminal, v. item 1.5.4.1 supra. Sobre a condenação ser
a regra na persecução penal da Inquisição, v. item 1.4.1.1 supra, em especial nota 176.
445 Para um estudo sobre as presunções derivadas do direito privado e aplicáveis ao direito processual penal, v. Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 261/279, e Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela
cit., p. 70. Mário PISANI, Introduzione cit., p. 44, afirma que a palavra “presunção” tem significado múltiplo e nem
todos partem do significado privado constante no código civil napoleônico de “presunção judicial, isto é, do
procedimento lógico com base no qual o juiz, ou alguém por ele, parte do fato conhecido para o fato desconhecido”
(em tradução livre). Sobre a finalidade e função da presunção de inocência, v. item 5.3.3 e seus subitens infra.
446 Nesse sentido, v. Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela cit., pp. 69/71, e Mário PISANI,
Introduzione cit., p. 44. Não obstante se refira à expressão “in dubio pro reo”, porém, tomando-a com o que aqui
denominamos de “presunção de inocência”, v. Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio pro reo, Buenos Aires: EJEA,
1971, pp. 78/79.
447 Presunção cit., p. 37.
Ao tratar da rejeição da presunção de inocência pela Escola Técnico-Jurídica448
demonstrou-se que, para os seus adeptos, jamais poderia emergir uma declaração de
inocência de um julgamento processual penal. Afirmavam que na persecução penal
apenas se determinava se alguém era ou não culpado por aquele fato imputado, não se
devendo declarar alguém inocente porque, segundo apregoavam, a despeito de falha da
acusação ou de convicção equivocada do juízo, o imputado poderia ser o mais cruel dos
criminosos.
Para eles, o julgamento trazia a visão tão-só do caso submetido à apreciação judicial.
Não era uma declaração de idoneidade do imputado que tanto para aquele crime quanto
para eventuais outros ainda não descobertos, poderia ser até mesmo um delinqüente
habitual. Assim, concluíam que se na persecução penal era uma “absurdidade” jurídica
aceitar a “presunção” de inocência e se antes da condenação o imputado não podia ser
tratado como “culpado”, então o que havia era, no máximo, uma “presunção de não
culpabilidade”.
Não obstante toda essa tentativa de argumentação dita “técnica”, o que os sequazes
daquela ideologia (nazifascista) deixam claro em suas palavras era uma verdadeira e
insofismável crença na “presunção de culpa”, a qual esconderam sob uma “nova”
construção denominada por eles “presunção de não culpabilidade”. Por todos, vejam as
palavras sempre lembradas de VINCENZO MANZINI sobre esse ponto: “Existem alguns
‘delinqüentes’ não imorais; muitíssimas pessoas são imorais sem ser ‘delinqüentes’. O
termo ‘inocente’, no uso da prática processual penal, não tem um significado ético, mas
exclusivamente jurídico, enquanto o ‘inocente’, isto é, aquele que resulta não culpado do
crime imputado a ele, pode ser também o mais perverso dos delinqüentes habituais e de
todo modo a sua ‘inocência’ se refere exclusivamente ao fato de que se trata, ou também
somente às condições de punibilidade do próprio fato”.449
Emerge clara a presunção de culpa do texto do maior crítico técnico-jurídico da
presunção de inocência. Sua proposta de utilização da “presunção de não culpabilidade” é
mero eufemismo técnico típico daquela escola jurídica que, como já visto no item
anterior, escondia por debaixo de abordagens pseudotécnicas uma verdadeira intenção de
justificar o sistema autoritário fascista.
No instante em que o autor afirma que o “não condenado” pode ser “o mais perverso
delinqüente habitual” está supondo (presumindo) sem prova e contra a análise judicial de
mérito. Para além disso, está afirmando, ainda, que todos são, ao menos potencialmente,
culpados por crimes ainda não descobertos ou ainda não provados, ficando sempre uma
dúvida de culpa por sobre as pessoas levadas a julgamento, sejam ou não condenadas ao
final.450 Isso é verdadeira “presunção de culpa”.

448 Sobre o tema ora tratado, v. item 2.4.3.1 supra.


449 Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., v. 1, item 37.
450 Vincenzo MANZINI, Trattato di diritto processuale cit., v. 1, item 40.I.
Ao afirmar que não é missão do processo penal e que está errado afirmar a inocência
de alguém, bastando dizer que não é culpado, fez com que se acreditasse que “não
culpado” é sinônimo de “inocente”. Porém, o que não se percebia, e muitos ainda não
percebem até hoje, é que ao assim afirmar estava mistificando e repristinando, com
tecnicismos já demonstrados impróprios,451 o que a Inquisição ao menos teve a
honestidade de expor e defender abertamente: a “presunção de culpa”.452
Na Inquisição, de maneira clara, e na doutrina fascista, de maneira envergonhada, a
“presunção de culpa” alimentava e justificava toda a construção do sistema processual.
Ela não cessava seus efeitos mesmo após a sentença de “absolvição”. Para se perceber a
sub-reptícia e indefectível “presunção de culpa” mesmo nessa decisão, basta notar dois
pontos: primeiro, naqueles dois sistemas nunca se declarava a “inocência” do acusado no
processo, apenas a sua “absolvição” e apenas se não houvesse a mais tênue demonstração
(por presunção, indício ou argumentum)453 de sua culpa; segundo, que na linguagem
religiosa o termo “absolver” somente é aplicado no sentido de “remir” ou de “perdoar
pecados”, ou seja, quando se “absolvia” alguém nunca se deixava de a ele reconhecer um
pecado anterior (presumido) e que lhe fora retirado por falta de condições para condená-
lo.
Ao assim argumentar, os técnico-jurídicos esqueceram que a revolução
empreendida pela presunção de inocência, desde o Iluminismo, era exatamente a de
atribuir a qualidade de inocente para o imputado desde antes do início da persecução
penal. Não valia mais, como até então era feito pela Inquisição, a “presunção” (de
inocência) nascida da constatação judicial de falta de prova para condenar.454 Após a
Revolução Francesa, a presunção não era derivada de uma decisão judicial, mas anterior
à própria persecução penal e igualitariamente deferida a todos os cidadãos. Era uma
condição juspolítica conferida a todo e qualquer cidadão desde seu nascimento; uma
situação jurídica que todos usufruíam e dela extraíam direitos.
Esse é o ponto em que precisa ser feita uma distinção entre duas possíveis acepções
do termo “inocência”. Para a primeira, implementada pelo Iluminismo, ela é um estado
jurídico comum a todos os indivíduos que ainda não foram submetidos à persecução,
àqueles ainda submetidos a ela e, também, àqueles em face dos quais não se provou a
culpa em um devido processo legal. Para a segunda acepção, esta sim desejada pelos
técnico-positivistas, incluída claramente no trecho manziniano antes destacado, é
sinônimo de “não culpabilidade”.455

451 Sobre os erros técnicos dos positivistas e dos dogmáticos jurídicos sobre suas críticas técnico-jurídicas sobre a
expressão “presunção de inocência”, v. itens 1.5.4 e 1.5.4.1 supra.
452 Sobre a insuficiência de prova para condenar, mas justificadora de penas mitigadas ou de absolvições de instância para
as quais o processo sempre poderia ser reaberto e o “absolvido” novamente processado, v. itens 1.4.1.1.1 e 1.4.1.2
supra.
453 Sobre esses meios para se chegar a condenações mais tênues ou à absolvição semiplena ou de instância, v. itens
1.4.1.1.1, 1.4.1.2 e 1.5.4.1 supra.
454 Hélio TORNAGHI, Manual de processo penal (prisão e liberdade), Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A, 1963, v.
I, pp. 273/275.
455 Nesse sentido, v. Fabián I. BALCARCE, Presunción cit., pp. 35/38.
Os técnico-positivistas, portanto, a fim de rejeitarem essa inversão clássico-
iluminista empreendida pela “presunção de inocência”, criam a “presunção de não
culpabilidade”; forma de repristinar a presunção de culpa da Inquisição sem que para isso
precisassem reconhecer tal retrocesso de modo expresso. Porém, ao assim agirem,
desconsideraram um aspecto ontológico do processo penal: sua finalidade deve ser
sempre declarar a situação jurídica do cidadão ao final de toda a persecução. Ou ela é
uma nova situação (a condenação), ou ela é a declaração do status quo ante (pré-
persecutório). Afirmar que o processo penal chega à “culpa” ou à “não culpa”, e com isso
limitar os debates apenas ao âmbito da persecução penal, é não aceitar um ambiente
juspolítico anterior e conformador das estruturas do próprio sistema processual penal. Ao
afastar a “presunção de inocência” como fonte informadora do processo penal, os
positivistas e dogmáticos abriram espaço para a influência da “presunção de culpa” já na
formação do sistema processual, porquanto pela “presunção de não culpabilidade” o
processo era usado para se “ratificar” ou “retificar” a suspeita de culpa que pairava sobre o
imputado.456 O que se presumia, portanto, para começar a persecução penal, era a
“culpa”, cuja confirmação ou negação se daria no curso processual.
Não há espaço lógico-jurídico para meio termo. São dois âmbitos imiscíveis e
excludentes: se há culpa não há inocência, e se há inocência não há culpa. Isto porque
todo e qualquer sistema processual penal, no curso de toda a história humana, ou foi
construído sobre a presunção de culpa ou sobre a presunção de inocência.457
O ponto crucial para se determinar todo o perfil sistêmico do processo penal é saber
se o cidadão, ao ingressar na persecução penal, ou seja, antes do início da investigação de
seu comportamento, deve ser considerado previamente inocente ou previamente
culpado. Pois é esse estado jurídico que o acompanhará durante todo o iter
procedimental.
Se a escolha for pela presunção de inocência, ao não se demonstrar a culpa do
imputado ao final da persecução deve ser declarado que ele “continua” inocente. Já era
inocente antes da persecução, permaneceu assim durante todo o seu curso e, ao final, se
não condenado, é declarado que ele continua inocente (como sempre foi). É nesse ponto
que se compreende por que se deve dizer que há um “estado de inocência”458 que
acompanha o cidadão desde o seu nascimento até que se declare sua culpa, após um
devido processo legal, por meio de provas lícitas, incriminadoras e suficientes.

456 Fabián I. BALCARCE, Presunción cit., p. 36.


457 Nesse sentido já se manifestou Cezar PELUSO, Garantias cit.
458 Nesse sentido, v.: Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 41/46; Alexander GALLAHER
HUCKE, La presunción cit., pp. 21 e 43/45; Fabián I. BALCARCE, Presunción cit., pp. 21/22 e 51, “passim”; Juan
Javier JARA MÜLLER, Principio de inocencia: el estado jurídico de inocencia del imputado en el modelo garantista
del proceso penal, Revista de derecho – Valdivia, Valdivia – Chile, v. 10 supl. Especial, agosto, 1999, item 6; e
Eduardo M. JAUCHEN, derechos del imputado, Buenos Aires: Rubinzal-Culzioni, 2005, pp. 104/107. Sobre os
interesses públicos que informaram o direito fundamental da presunção de inocência como justificadores dessa
postura juspolítica do “estado de inocência”, v. item 3.8.1.1 infra.
Ao contrário, se o sistema é construído sobre a presunção de culpa, o cidadão já é
tratado assim pelas instituições estatais desde antes de ingressar na persecução, sendo
todo o sistema criminal (penal e processual penal) assim estruturado normativamente.
Há uma inversão lógico-sistêmica tal como havia na Inquisição, na qual a conclusão (pela
culpa) era tida como pressuposto para iniciar a persecutio.459 Quando a persecução se
inicia, as estruturas processuais são as mais restritivas aos direitos e garantias do
imputado e sempre visam antecipar uma pena já pressuposta e esperada, p.ex., por meio
de prisão provisória obrigatória, inversões do ônus da prova, vedação da concessão de
liberdade provisória, eliminação ou grande limitação ao direito à ampla defesa ou, ainda,
pelo uso de métodos indignos e violentos de obtenção da prova.460 Somente em um
sistema baseado na presunção de culpa é que a decisão final, que não entenda provada de
modo definitivo e seguro essa culpa, é de “absolvição”. “Absolver” de quê, se era inocente
e a persecução não provou de modo diverso?
A aceitação da presunção de inocência, portanto, é uma posição ideológica anterior
ao início do processo penal, refere-se a e relaciona-se com a visão que o Estado tem do
indivíduo e como o tratará no curso persecutório.461 É a única forma de se excluir a opção
juspolítica da “presunção de culpa”. Analiticamente: ao se aceitar apenas o binômio
“culpa” e “não culpa”, a inocência não apenas foi rejeitada do âmbito processual penal,
mas também o foi do seio comunitário, do meio social e, portanto, é um estado não
atribuível ou aceitável ao ser humano.
Não há espaço lógico e juspolítico para a “presunção de não culpabilidade” como
algo diverso da “presunção de culpa” e tecnicamente mais correto que a “presunção de
inocência”. Sem a devida e indispensável perspectiva ideológica, também não é correto
ter “presunção de inocência” e “presunção de não culpabilidade” como sinônimos.462 Esta
última serviu apenas para afastar a presunção de inocência como fonte de inspiração
juspolítica para o legislador criminal (penal e processual penal).

459 Nesse sentido vale trazer à colação as palavras de Fabián I. BALCARCE, Presunción cit., p. 37, em tradução livre:
“Por outra parte, tal pensamento (o que há é a não culpabilidade, não a inocência, acrescentamos) adoece da
indeterminação própria das negações. Diz-nos tudo que fica fora da culpabilidade, mas não nos precisa o que está
incluído na “não culpabilidade”, menos ainda, qual é o rol da inocência em tal construção, deixando um amplo campo
no meio para a construção de instituições jurídicas eqüidistantes de ambos os extremos – inocência e culpabilidade –,
(...). Como é sabido, só quando se aplica a norma penal substantiva ao fato podemos falar de ‘culpado’ ou ‘não
culpado’. Mas essa subsunção é o epílogo do processo, o qual, assim, se converte em pressuposto daquela. Mas se de
‘não culpado’ só podemos falar depois do momento indicado: a que estado do indivíduo nos referiremos durante a
realização do processo? Evidentemente ao estado de inocência, mas limitada ao direito que se intenta atuar, não em
relação ao direito atuante. Do contrário estaríamos utilizando o processo como meio para adiantar opinião sobre a
aplicação da regra substantiva, neste caso a de não culpável, confundindo, assim, o âmbito de atuação de cada um dos
ramos penais”. Sobre a técnica persecutória da Inquisição e a inerente presunção de culpa, v. item 1.4.1.1 supra.
460 Sobre essas características na redação original do atual código de processo penal e os indeléveis reflexos que ainda
projetam em nossos dias, v. item 2.5.2 e seus subitens infra.
461 Nesse sentido, v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, Presunción cit., pp. 260/261. Para um específico desenvolvimento da
presunção de inocência como escolha política do constituinte e a sua influência na análise do suporte fático, v. item
5.3 e seus subitens infra.
462 Sobre a devida aproximação ideológica entre as expressões após as subscrições e incorporações de Tratados e
Convenções Europeus pela Itália e do forte trabalho doutrinário, v. nossos comentários com as indefectíveis
similitudes com o sistema brasileiro nos itens 3.7.1.2 e 3.8.2.1 infra.
O cidadão existe e deve ser respeitado pelo Estado em seus direitos e garantias
mesmo antes da persecução penal. Assim, o Estado tem sobre aquele indivíduo uma
postura política: ou o vê como hostis, inimigo, traidor, herege, opositor ou adversário, ou
o trata como seu integrante e fonte de seu poder. O cidadão, antes de ser submetido a
uma persecução, já goza de uma postura juspolítica em face do Estado e é com essa
mesma postura que deverá ser visto durante toda a persecução penal e, no seu final, se
não houver convicção judicial extreme de dúvidas de que está provada a sua culpa.
Dessa forma, diversamente do que fez crer MANZINI, quando o julgador reconhece
que não há prova da culpa do acusado, não decide apenas improcedente aquela ação
penal movida pelo Estado, sem qualquer outro efeito. Ao julgar improcedente a ação
penal, a conseqüência inevitável é que se reconhece, mesmo que de forma implícita, que
aquele indivíduo continua a possuir a mesma situação jurídica anterior ao início daquela
ação. Por reconhecer a inexistência de culpa, “declara” a improcedência da ação e,
também, que o indivíduo continua com a mesma situação jurídica que possuía antes do
início da persecução penal.
Pela alta e inegável qualidade técnica de Vincenzo Manzini, é impossível supor que
desconhecesse que antes de iniciar a persecução o indivíduo já possui uma inegável
situação jurídica frente ao Estado (seja ela de culpa ou de inocência). Ao ser declarado
“não culpado” é essa situação que manterá jurídica, social e politicamente após o término
da ação penal. Essa decorrência para o indivíduo se mostra coerente e desvela a exata
situação jurídica com que o Estado Fascista via os indivíduos: a situação de “não
culpados”, até prova em contrário (prova de sua culpa). Típica postura de toda e qualquer
ideologia autoritária e de todo e qualquer controle sociopolítico pelos instrumentos da
força e pelo sistema criminal (penal e processual penal).
Após se perceber que “presunção de culpa” ou “presunção de inocência” não são
presunções em sentido técnico-processual, mas formas ideológicas do Estado determinar
sua forma de tratamento dos indivíduos por suas instituições,463 ressurte claro que não há
espaço lógico ou jurídico no sistema processual penal para a criação dogmático-
positivista da “presunção de não culpabilidade”. Essa foi a razão por que nos sistemas
constitucionais do pós-guerra que mantiveram em seus textos aquela fórmula da
“presunção de não culpabilidade”, como ocorreu com o Brasil de 1988 e a Itália de 1948,
tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm-na como sinônimo da “presunção de
inocência”.464

2.4.7.3. -(segue): do erro no argumento da “absolutização” da presunção de


inocência

463 Sobre o tema, v. item 2.4.7.1 supra.


464 Sobre a sinonímia entre presunção de inocência e presunção de não culpabilidade no atual sistema constitucional
brasileiro, v. item 3.7.1.2 infra.
Como já se demonstrou acima, um dos argumentos utilizados tanto pelos positivistas
quanto pelos técnico-jurídicos era que a presunção de inocência consistia em verdadeira
“absurdidade” na medida em que, se fosse aplicada de modo efetivo e amplo,
inviabilizaria qualquer prisão provisória e até mesmo o início da persecução penal.465
Afirmavam que, se a pessoa deve ser tida como inocente, não se pode contra ela proceder
a qualquer medida restritiva, ou se supor que ela possa ter cometido um crime; logo, é
inviável até mesmo o início de qualquer investigação.466
Exageravam o argumento dos clássicos até limites que nem mesmo estes defendiam,
para, depois, atingido um estágio de verdadeira “absolutização” da presunção de
inocência, levá-la ao descrédito.
Ocorre, porém, que nem mesmo os iluministas ou clássicos mais ferrenhos levaram
a presunção de inocência a tal ponto. A bem da verdade, tal linha argumentativa não era
sequer uma das mais utilizadas pelos próprios positivistas jurídicos, que sempre a
colocavam de forma secundária e como uma “fina ironia” técnica para ridicularizar os
defensores da “presunção de inocência”.
Francesco CARRARA, seguramente um dos maiores representantes da Escola
Clássica, é claro em demonstrar que a tendência em beneficiar o acusado no momento de
sentenciar deverá ocorrer apenas em caso de dúvida, o que não impede nem a existência
da persecução, nem mesmo de uma condenação, se as provas levarem o juízo à certeza da
materialidade e da autoria.467 Assim também, a despeito de combater severamente a
tendência das legislações existentes no Reino da Itália do século XIX, pela excessiva
condescendência em aplicar a prisão provisória como regra e como forma de
cumprimento antecipado de pena, faz propostas para aceitá-la (a prisão provisória) de
modo excepcional. Para arrefecer tal tendência legislativa, propõe alguns instrumentos
(p.ex., caução) para substituir essa prisão e pugna para que fosse considerada medida
excepcional, e não a regra, como ocorria até então. Porém, jamais defendeu sua exclusão,
assim como qualquer impossibilidade de se iniciar ação penal pelo fato de alguém ser
“presumivelmente inocente”. Em várias oportunidades fica claro que esse autor, assim
como quase todos os clássicos, defendiam a erradicação do arbítrio e dos abusos em se
encarcerar desmedidamente sem condenação e em prende provisoriamente como
regra.468

465 Para maiores considerações sobre o tema, v. item 2.4.3.1 supra.


466 No sentido do texto, v., expressamente, Vincenzo MANZINI, Tratatto di diritto processuale cit., 1931, item 40.II, pp.
180/181.
467 Programma del corso di diritto criminale: del giudizio criminale, Bologna: Il Mulino, 2004, § 816.
468 Francesco CARRARA, Programma cit., pp. 381/384, em artigo intitulado “Il carcere preventivo e l´applicazione della
pena”.
Essa postura dos clássicos se confirma ao se observar o próprio dispositivo “legal”
iluminista que encetou o tema no século XVIII: a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Basta constatar que a própria redação revolucionária de seu artigo 9º já trazia
uma cláusula restritiva no texto, pois, logo após afirmarem a presunção de inocência,
admitiam a possibilidade de prisão provisória, desde que praticada dentro da legalidade e
de forma não abusiva.469 Em tradução livre, assim preceituava o dispositivo: “Todo
homem deve ser presumido inocente até que tenha sido declarado culpado; se julgar-se
indispensável detê-lo, todo rigor que não seja necessário para prendê-lo deverá ser
severamente reprimido pela lei” – destacamos.470
Para reforçar a certeza de que os próprios iluministas não entendiam incompatível a
coexistência de ação penal ou de prisão provisória com a presunção de inocência, basta
observar o artigo 7º daquela Declaração: “Ninguém pode ser acusado, detido ou preso,
senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por ela prescritas. Os
que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser
punidos; mas todo cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer
incontinenti: ele se torna culpado em caso de resistência”.
Apenas com essa constatação, a crítica positivista já perderia consistência. Porém,
há ainda um ponto a ser destacado: não há e nunca houve qualquer princípio
fundamental absoluto e que não devesse ser interpretado e aplicado em conformidade
com os demais direitos, de acordo com as condições fáticas e jurídicas advindas da
situação concreta.471

469 Luigi LUCCHINI, Elementi di procedura penale, 3ª ed., Firenze: G. Barbèra, 1908, pp. 9/10, outro expoente dentre os
clássicos, afirmava literalmente que: “‘Innocente’ e ‘onesto’ vanno intensi in un senso non absoluto, ma relativo. Le
garanzie processuali devono estendersi anche si colpevoli, nello stesso tempo che la procedura è diretta a conseguirne
la più facile, pronta e sicura scoperta e convinzione. Siano scoperti, convinti e condannati, ma non pìu e non oltre il
loro misfatto e la loro responsabilità: prima di tutto, perchè, eccedendosi, si violerebbe la legge e si conculcherebbe la
giustizia; e poi, perchè l´ingiustizia e l´illegalità sono altrettanto funeste e deleteria se in odio agli onesti, quanto se
in odio ai delinquenti”.
470 Preceituava a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, posteriormente promulgada em 1793, em seu
artigo 9º, in verbis: “Tout homme étant présumé innocent jusqu´a ce qu´il ait été declaré coupable; s´il est jugé
indispensable de l’arrêter, toute riguer qui ne serait nécessaire pour s´assurer de sa personne, doit être sévèrement
reprimée par la loi”.
471 A postura doutrinária expressa no texto advém de nossa aceitação da
“teoria dos princípios” desenvolvida por Robert Alexy, notadamente em
sua obra clássica Teoría de los derechos fundamentales, tradução de
Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002. Toda a importância metodológica e analítica que
a escolha dessa teoria projeta no estudo da presunção de inocência será
demonstrada nos capítulos IV e V infra, porém, não se poderia deixar de
mencioná-la desde já.
Se, ao final do século XVIII, a afirmação do parágrafo anterior não estava tão clara,
até porque fruto de uma evolução da teoria constitucional dos direitos fundamentais
surgida em meados do século XX, não se pode deixar de percebê-la, ou ao menos sua
gênese, na redação do art. 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789: “A liberdade consiste em poder fazer tudo que não prejudique a outrem: em
conseqüência, o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que
assegurem aos demais membros da sociedade a fruição desses mesmos direitos. Tais
limites só podem ser autorizados por lei”.472 Se nesta passagem não restavam ainda tão
claros o sopesamento e a proporcionalidade que devem existir entre os direitos
fundamentais, não se podia deixar de ver, ao menos, que nunca se propugnou pela
absolutização de qualquer daqueles direitos concebidos e inscritos pelos iluministas e
pelos clássicos.
Com esse último dispositivo trazido à colação se demonstra que já vem dos próprios
iluministas, e sempre assim foi defendido por todos os doutrinadores clássicos, que a
presunção de inocência, como qualquer outro princípio jusfundamental, não deve ser
absolutizada, mas interpretada e aplicada na maior medida possível diante das condições
fáticas e jurídicas do caso concreto.
Dessa forma, é tecnicamente incorreto e historicamente desonesto afirmar que um
sistema que aceitasse e promovesse da maneira mais ampla possível a presunção de
inocência estaria fadado a não ter prisão provisória ou sequer persecução penal; enfim,
que não seria um sistema processual penal eficaz e apto a reprimir a criminalidade.473

2.5. -Escola Técnico-Jurídica italiana e Código de Processo Penal italiano


de 1930: influências na formação do atual Código de Processo Penal
brasileiro de 1941

Todo esse debate doutrinário e a vitória política e legislativa pela consagração de um


processo penal autoritário, expressamente infenso à presunção de inocência e fundado
nas velhas concepções da presunção da culpa e do inimigo no direito penal, adentram ao
Brasil do início do século passado.
O atual código de processo penal brasileiro, não obstante suas várias alterações
legislativas ao longo de seus quase 70 anos, foi promulgado em 03 de outubro de 1941,
em plena vigência do Estado Novo getulista e no curso da Segunda Guerra Mundial
(1939-1945).

472 Tradução para o vernáculo empreendida por Fábio Konder


COMPARATO, A afirmação cit., p. 154. Praticamente a mesma redação
foi mantida no artigo 6º da Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão da Constituição de 1793 (v. op. cit., p. 155).
473 Sobre a natureza jurídica da presunção de inocência como norma
fundamental com estrutura de princípio e a conseqüência disso para a
sua aplicação nos casos concretos, v. itens 4.4.3.1.3.2, 5.4 e 5.5 e seus
subitens infra.
Necessário se entender um pouco do contexto social, político e econômico do Brasil
à época, assim como o perfil dos juristas e das elites brasileiras, para compreender por
que as idéias positivistas italianas e, principalmente, o código de processo penal
peninsular de 1930 foram confessadamente tidos como modelos legais e doutrinários
para a construção da cultura jurídico-criminal brasileira do século XX.474
2.5.1. -Estado Novo: contexto político propício para a reformulação da legislação
processual penal brasileira sob os influxos positivistas

Em novembro de 1937, em plena campanha presidencial, cujas eleições estavam


marcadas para janeiro de 1938, Getúlio Vargas capitaneia um golpe de Estado com a
justificativa de evitar uma “revolução comunista”. Tal alegado levante comunista não
estava para ocorrer e não faltam registros históricos a apontar que aquela situação de dita
ameaça às instituições foi artificialmente criada para justificar a instauração de um
regime autoritário, o Estado Novo getulista.

474 Não obstante seja recomendável o estudo histórico sem saltos,


deixamos de analisar toda a história do direito criminal brasileiro desde o
período colonial até o fim do período imperial e início da República
(1889), porquanto a linha expositiva do presente estudo tem diretriz
diversa. A presente exposição fixa-se na dependência e transposição
sem crítica do positivismo fascista italiano e de seu código de processo
penal de 1930 como elementos formadores da doutrina jurídica
brasileira, em moldes sempre conservadores. Porém, para se
compreender como o conservadorismo mandonista e dos proprietários
de terra sempre existiu durante todo o curso do século XIX, moldando
um pseudoliberalismo às necessidades e interesses dos grandes
latifúndios e oligarquias, v. Ricardo de Brito A. P. FREITAS, As razões
cit., pp. 213/263. Para uma análise histórica da formação autoritária da
sociedade brasileira e do cunho antidemocrático e antigarantista dos
sistemas criminais (penal e processual penal) por ela utilizados, desde o
descobrimento até o decreto-lei 898, de 21 de novembro de 1969, a
chamada Lei de Segurança Nacional, v. Rubens R. R. CASARA,
Interpretação retrospectiva: sociedade brasileira e processo penal, Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2004, item 2.2, denominado “História,
sociedade brasileira e controle social”, pp. 22/52.
Desde a escolha do nome (Estado Novo)? retirado da ditadura fascista portuguesa de
Antônio Salazar? até a essência do golpe, tudo foi de inspiração européia: o fechamento
do Congresso Nacional, a extinção dos partidos políticos, a imposição de uma nova
Constituição (a Constituição Polaca de 1937) e a promessa de convocação de plebiscito
para aprovação dos atos emergenciais do Executivo e, também, para a escolha de novos
representantes no Congresso Nacional. A bem da verdade, tudo foi fruto da pior
inspiração européia, a inspiração autoritária dos governos nazifascistas, notadamente o
italiano, devido à afinidade cultural. É inegável a feição fascista da ditadura brasileira de
Getúlio Vargas, seja pela sua clara ideologia militarista e autoritária seja pela estrutura da
nova Constituição, feita aos moldes da constituição polonesa do ditador fascista Józef
Pilsudski.
Nesse instante (1937/1938), os estados autoritários europeus já estavam
suficientemente fortes para revelar e atingir os indefectíveis desígnios de todo Estado
Absoluto, qual seja: a guerra para controle das economias e riquezas circunvizinhas.
Naquele instante mundial, a Segunda Guerra já era inevitável.
Da Constituição “polaca” de 1937 até o código de processo penal de 1941, todo o
processo sociopolítico foi de recrudescimento das instituições e violações às instituições
democráticas. A Constituição de 1937 trouxe os seguintes pontos reveladores de seu
matiz: Getúlio Vargas era o chefe supremo do Poder Executivo e seus poderes iam desde
a nomeação de interventores nos Estados até a possibilidade de governar por meio de
decretos-leis; encerra o liberalismo e o federalismo; as eleições seriam indiretas para
Presidente da República, cujo mandato passava a ser de 6 anos; estabelece a pena de
morte; elimina o direito de greve; desaparece a garantia do juiz natural, entre outras
medidas.
Tal Constituição, de inegável inspiração fascista, foi elaborada sob os auspícios de
Francisco Campos, jurista conservador, que, após a implementação do Estado Novo, foi
nomeado Ministro da Justiça. Para demonstrar a sempre perfeita sintonia que precisa
haver entre um sistema político autoritário e o código de processo penal por ele usado
para implementar seus desígnios, foi o então Ministro de Justiça Francisco Campos quem
orientou a formação e levou a cabo o Decreto-lei 3.689, promulgado em 3 de outubro de
1941, atual Código de Processo Penal brasileiro.475

475 Conforme informado por José Henrique PIERANGELLI, Processo penal:


evolução histórica e fontes legislativas, Bauru–SP: Javoli, 1983, pp.
168/169, trabalharam na elaboração desse código Vieira Braga, Nelson
Hungria, Narcélio de Queiroz, Roberto Lyra, Florêncio de Abreu e
Cândido Mendes de Almeida, este último substituindo Margarinos Torres,
todos citados no item XVIII, da Exposição de Motivos elaborada por
Francisco Campos. Necessário se destacar que a maioria dos juristas
nomeados tiveram seu maior reconhecimento na área do direito penal,
não sendo à época os maiores expoentes brasileiros na área processual
penal.
Nesse cenário juspolítico e nesse contexto doutrinário, vem um código aos moldes
autoritários e que, em vários de seus dispositivos, deixa clara a sua intenção em rejeitar a
“presunção de inocência”.

2.5.2. -Atual Código de Processo Penal brasileiro: as influências


doutrinária e legislativa do positivismo italiano reveladoras da rejeição da
presunção de inocência

A afinidade política e ideológica entre o Estado Novo brasileiro e o Estado Fascista


italiano permitiu que toda a produção doutrinária forjada na Scuola Positiva476 e
desenvolvida pela doutrina técnico-positivista de VINCENZO MANZINI e ALFREDO
ROCCO477 fosse inserida, sem qualquer juízo crítico depurador, na realidade brasileira.478

476 A grande influência que a Escola Positiva de Lombroso, Ferri e Garofalo


projetava na doutrina brasileira pode ser vista nas admiradas e
esperançosas palavras que João Mendes de ALMEIDA JÚNIOR, O
processo criminal brazileiro, 3ª ed., Rio de Janeiro: Typ. Batista de
Souza, 1920, v. 1, pp. 252/253, depositava nesse novo e promissor
pensamento “científico”. Analisando a importância tanto da escola
criminológica quanto da doutrina técnico-jurídica da Itália, do final do
século XIX e início do século XX, v. Marcos César ALVAREZ,
Apontamentos para uma história da criminologia no Brasil, in Andrei
KOERNER (org.), História da justiça penal no Brasil: pesquisas e
análises, São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, série
Monografias, 2006, v. 40, itens 2 e 3.
477 A forte penetração do positivismo italiano na doutrina penal brasileira foi
destacada por Ricardo de Brito A. P. FREITAS, As razões cit., cap. XI,
pp. 265/338, inclusive com a análise dos trabalhos de vários penalistas
brasileiros, alguns dos quais integrantes da comissão (p.ex. Roberto
LYRA, op. cit., pp. 319/322) que trabalhou na elaboração do código de
processo penal de 1941.
478 Quanto ao código de processo penal italiano de 1930 ter servido de
modelo para o nosso atual código elaborado em 1940, v. Luiz Flávio
GOMES, Sobre o conteúdo cit., p. 104.
Francisco Campos confessa tal influência já na Exposição de Motivos de nosso
Código de 1941479 e a estrutura deste, quando comparada com o Código italiano de 1930,
não deixa dúvidas. A rejeição do juizado de instrução480 e a exclusão da parte civil foram
as maiores diferenças entre os dois diplomas processuais, porém não faltam artigos de lei
que são quase traduções literais do texto italiano.
Para o que importa ao presente trabalho, verifica-se que tanto na Constituição
“Polaca” de 1937 quanto no referido decreto-lei de 1941, não há qualquer menção à
presunção de inocência.

479 A inspiração do Código Processual de Alfredo Rocco pode ser vista


nessa explícita referência de Francisco Campos àquele trabalho
legislativo e à sua ideologia, ambos encampados pelo nosso então
Ministro da Justiça: “II. (...) Quando da última reforma do processo penal
na Itália, o ministro Rocco, referindo-se a algumas dessas medidas e
outras análogas, introduzidas no projeto preliminar, advertia que elas
certamente iriam provocar o desagrado daqueles que estavam
acostumados a aproveitar e mesmo abusar das inveteradas deficiências
e fraquezas da processualística penal até então vigente. A mesma
previsão é de ser feita em relação ao presente projeto, mas são também
de repetir-se as palavras de Rocco: ‘Já se foi o tempo em que a
alvoroçada coligação de alguns poucos interessados podia frustrar as
mais acertadas e urgentes reformas legislativas”.
480 As razões para a rejeição do juizado de instrução existente no modelo
italiano foram expostas por Francisco Campos no item IV da Exposição
de Motivos do Código.
Tal qual no regime italiano da época, o positivismo brasileiro aceitou apenas, e de
forma muito restrita, o “in dubio pro reo”.481 Limitou a sua incidência às situações em que
o juiz permanecesse na dúvida sobre a culpa do acusado, mesmo após exaurir o exercício
de seu amplíssimo poder instrutório e exercer seu ilimitado “livre convencimento”.482
Nunca permitiu ou criou formas de se aplicar aquele preceito “pro reo” em decisões sobre
prisão provisória ou para início de fases persecutórias, como o oferecimento de denúncia
ou de pronúncia.483
Dessa forma, muito mais do que afirmar que não há presunção de inocência no
código de processo penal, elaborado em 1940 e ainda hoje vigente, o que se deve ter em
mente, devido àquela clara e direta influência positivista italiana, é que o atual código
rejeita em sua estrutura toda a dimensão juspolítica da presunção de inocência.484 Está
forjado estruturalmente com base na concepção de que o que há é uma “presunção de
culpa” e sempre um “inimigo” a ser perseguido e punido.

481 Assim está assentado na Exposição de Motivos do Código de Processo


Penal, pela dicção de seu mentor, Francisco Campos: “II. (...) As
nulidades processuais, reduzidas ao mínimo, deixam de ser o que têm
sido até agora, isto é, um meandro técnico por onde se escoa a
substância do processo e se perdem o tempo e a gravidade da justiça. É
coibido o êxito das fraudes, subterfúgios e alicantinas. É restringida a
aplicação do ‘in dubio pro reo’ (...)”. Sobre o tema, v. nossos comentários
no item 2.4.6 supra.
482 Isso fica claro na seguinte passagem da Exposição de Motivos: “VII. (...)
Por outro lado, o juiz deixará de ser um espectador inerte da produção
de provas. Sua intervenção na atividade processual é permitida, não
somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar a final, mas
também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao
esclarecimento da verdade. Para a indagação desta, não estará sujeito a
‘preclusões’. Enquanto não estiver averiguada a matéria da acusação ou
da defesa e houver uma fonte de prova ainda não explorada, o juiz não
deverá pronunciar o ‘in dubio pro reo’ ou o ‘non liquet’”. Sobre os
poderes instrutórios excessivos do julgador como marca da tendência
inquisitiva de um procedimento desprovido da presunção de inocência,
conjuntamente com o critério desmedido de avaliação judicial da prova
(“livre apreciação” e “livre convencimento”), v. item 2.5.2.4 infra.
483 Sobre o tema do “in dubio pro reo” nessas decisões, v. item 5.4.1.3 e
seus subitens infra.
484 Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo cit., pp. 104/107, com base em
Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 29, indica essa absorção das
idéias técnico-jurídicas por nosso atual código de processo penal. Sobre
a rejeição da presunção de inocência pelo código processual penal
italiano de 1930, v. item 2.4.4 supra.
Se, no atual instante processual penal brasileiro, pode parecer excessiva a afirmação
de que nosso atual código não foi estruturado segundo os padrões ideológicos da
presunção de inocência, isso se deve aos influxos que a Constituição tem projetado desde
sua edição, não porque estivéssemos sendo atécnicos com a estrutura normativa do
código. Não se podem esquecer dois pontos: primeiro, o código, embora ainda vigente,
foi elaborado em 1940, com entrada em vigor em 1941, logo, com todos os influxos
políticos e ideológicos já ressaltados; segundo, a presunção de inocência somente
ingressou no sistema jurídico brasileiro a partir de 1988, com a edição da atual
Constituição.485
Sendo assim, mesmo que hoje se veja, no cotidiano forense e doutrinário, decisões
que a citem como um direito fundamental a ser examinado e a regrar os comportamentos
judiciais, o fato é que o código foi redigido para a sua rejeição. Se antes a aplicação da
presunção de inocência não ocorria e hoje está mitigada, isso não muda a constatação de
que a normatização processual penal infraconstitucional ainda existente não aceita
aquele preceito constitucional e faz com que sua aplicação ainda esteja muito aquém do
devido e necessário.
Como se verá nos subitens seguintes, mesmo em um breve exame de alguns
capítulos do Código de Processo Penal, como redigido originalmente, revela que suas
bases estruturais foram elaboradas e implementadas, no plano legislativo, para não haver
a influência plena daquele princípio humanitário.
Esse exame é de importância ímpar para o presente trabalho porquanto, como se
verá adiante, reside nessa dicotomia entre os dispositivos constitucionais e o sistema
processual fascista, ainda vigente em nossa realidade, uma das principais causas da não
efetivação plena da presunção de inocência em nosso cotidiano jurídico e legislativo.486
Nos itens seguintes, os pontos centrais de detecção da rejeição estrutural da
presunção de inocência serão ressaltados de forma apenas indicativa e em um breve
paralelo do que ficou até nossos dias, seja em matéria legislativa seja em posições
jurisprudenciais.487

485 Sobre a natureza jurídica da presunção de inocência como direito


fundamental, no atual estágio juspolítico nacional, e sua inscrição
material no art. 5º, inciso LVII, da Constituição da República, v. item
3.7.1 e seus subitens infra.
486 Sobre a necessidade de uma elaboração legislativa e de uma
organização governamental de institutos e instituições para garantir de
modo efetivo e pleno a presunção de inocência como direito
fundamental, v. itens 3.8.2, 5.2 e 5.4.1, todos também em seus subitens,
infra.
487 Esses pontos serão melhor examinados, pela perspectiva analítica da
“teoria dos princípios” nos direitos fundamentais, em vários aspectos, no
capítulo V deste trabalho.
2.5.2.1. -(segue): fase investigativa preliminar na forma
inquisitiva pura

Assim como propalado tanto pelos integrantes da Scuola Positiva quanto pelos
positivistas dogmáticos, na fase persecutória anterior ao início da ação penal não foi
conferido qualquer direito ao investigado. Nos moldes da Inquisição, era em regra
sigilosa, sem direito à defesa e contraditório, promovida sob os auspícios dos órgãos
administrativos (Polícia e Ministério Público) politicamente controláveis pelo poder
central, fosse pela possibilidade de nomeação, fosse pelo controle econômico de ambas as
instituições.
No Brasil, a atribuição conferida à Polícia e ao Ministério Público para o controle da
fase preliminar, diante dos parâmetros expressos na redação dos artigos 20488 e 21489 do
Código de Processo Penal, não deixa dúvida sobre a intenção de restringir todas as
garantias nessa fase persecutória.

488 “Art. 20. A autoridade assegurará no inquérito o sigilo necessário à


elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade”.
489 “Art. 21. A incomunicabilidade do indiciado dependerá sempre de
despacho nos autos e somente será permitida quando o interesse da
sociedade ou a conveniência da investigação o exigir”.
Os doutrinadores, ao comentarem o então “novo” Código, nos idos da década dos
anos quarenta, não depreendiam outra determinação juspolítica daqueles dispositivos.
Tanto que ao definir o caráter, objeto e noção do inquérito policial lecionavam que ele
“via de regra, é secreto e sumaríssimo. Durante êle não se admite defesa. A intervenção
pessoal é permitida: - a) para requerer que se proceda ao inquérito; - b) recorrer do
despacho que indeferir o requerimento de abertura; - c) requerer qualquer diligência,
que será realizada ou não, a juízo da autoridade”.490 Sobre a incomunicabilidade definida
no art. 21 citado, lecionavam que era “a extensão do segrêdo dos atos do inquérito à
pessoa do acusado (‘mise au secret’). (Garraud – Tr. De l´instruction criminelle, pág. 142,
n. 856). Privado o criminoso nos primeiros momentos de comunicação com o exterior da
prisão, pode a autoridade mais fàcilmente achar os vestígios e provas que seriam do
interesse do responsável destruir, e assim aproveitá-los em favor da causa social.(Vêde:
João Mendes – Proc. crim. bras., I, n. 288, página 388; Pimenta Bueno – Proc. crim., n.
152)”.491

490 Inocencio Borges da ROSA, Processo penal brasileiro, Porto Alegre:


Livraria Globo, 1942, v. 1, pp. 111/112.
491 BENTO DE FARIA, Código de processo penal, 2ª ed., Rio de Janeiro,
Record, 1960, v. I, p. 113. Nessa obra, já passados quase 20 anos da
edição do código, percebem-se uns pontos de mitigação em relação aos
comentários feitos logo após a edição daquele diploma processual.
Contudo, impossível deixar de perceber um (talvez) “lapso” do autor,
provocado seguramente pela mentalidade ainda forte ao seu tempo, em
chamar o preso provisório, logo, ainda não julgado, de “criminoso”. Esse
autor, para lhe dar apoio nessa passagem, cita João Mendes e Pimenta
Bueno. Na mesma linha, v. Eduardo ESPÍNOLA FILHO, Código de
processo penal brasileiro anotado, 6ª ed., Rio de Janeiro: Editora Rio,
1980, v. I, pp. 313/314
A força ideológica que alimenta tão clara redação somente começou a ser arrefecida,
mesmo que ainda nem todos assim entendam, com a entrada em vigor da atual
Constituição da República, em outubro de 1988.492 Não obstante na atualidade não faltem
obras e estudos na tentativa de arejar de princípios constitucionais o âmago dessa fase
investigativa preliminar, o que merece ficar consignado é a marca expressa e clara da
ideologia autoritária do início do século passado e caracterizadora de nosso código
processual penal.493
Pela redação estrita da legislação processual ainda vigente, portanto, não há dúvida
de que essa fase da persecução não foi construída sobre os auspícios da presunção de
inocência, mas sobre a presunção de culpa e do inimigo no direito penal.494
2.5.2.2. -(segue): a prisão provisória obrigatória e o uso da expressão “ordem
pública”

492 Por todos, ainda defendem o inquérito como procedimento investigativo


sigiloso, porquanto sendo assim possui “ação benéfica, profilática e
preventiva, tudo em benefício do Estado e do cidadão”: Julio Fabbrini
MIRABETE, Processo penal, 14ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 78, e
Fernando da Costa TOURINHO FILHO, Processo penal, 27ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2005, v. 1, p. 204.
493 Na doutrina brasileira, sobre estudos específicos que demonstram o
imperativo constitucional de se necessitar inserir direitos e garantias ao
imputado em fase preliminar de investigação, v., como obras de
referência: Aury LOPES JÚNIOR, Sistemas de investigação preliminar
no processo penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006; Fauzi
Hassan CHOUKR, Garantias constitucionais na investigação criminal, 2ª
ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001; e Marta SAAD, Direito de defesa
no inquérito policial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
494 Na obstante o texto do código de processo penal quanto ao sigilo na
investigação (art. 20) continue imutável desde 1941, a construção
doutrinária e jurisprudencial pós Constituição de 1988 deu um passo
adiante. Após a Emenda Constitucional nº 45/2004, que permitiu a
edição de súmulas jurisprudenciais com força vinculante, foi editada, no
primeiro semestre de 2009, quase 21 anos após a vigência da atual
Constituição, a Súmula Vinculante nº 14, com a seguinte redação: “É
direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentados em procedimento
investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária,
digam respeito ao exercício do direito de defesa”. Porém, não obstante
tal preceito jurisprudencial com força vinculante, as numerosas petições
de reclamação dirigidas ao Supremo Tribunal Federal, a fim de fazer
valer tal determinação, deixam transparecer que a cultura jurídica ainda
é infensa a tal manifestação dos princípios constitucionais da ampla
defesa e da publicidade dos atos investigativos.
O capítulo da prisão preventiva (arts. 311 a 318 do Código de Processo Penal)495
parecia uma síntese da proposta de RAFFAELE GAROFALO e LUIGI CARELLI para um
código processual aos moldes positivistas.496 Isto porque a prisão preventiva era
obrigatória em decorrência da gravidade do crime cometido, ou seja, se o crime possuísse
pena máxima igual ou superior a 10 anos, a prisão decorreria de forma automática já no
início da persecução penal. Era algo automático, que desconsiderava por completo
qualquer justificativa processual e impedia qualquer aplicação de proporcionalidade pelo
julgador em face do caso concreto. Baseava-se, exclusivamente, na intensidade abstrata

495 Assim foram dispostos os artigos 311 e 312, do Código de Processo


Penal, em 1941: “Art. 311. Em qualquer fase do inquérito policial ou da
instrução criminal, caberá a prisão preventiva, decretada pelo juiz, de
ofício, a requerimento do Ministério Público ou do querelante, ou
mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da
existência do crime e indícios suficientes de autoria. Art. 312. A prisão
preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de
reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos”.
496 Sobre essa proposta positivista radical, v. Luigi CARELLI e Raffaelle
GAROFALO, Riforma cit., pp. 64/65, ao tratarem do “mandato di cattura”.
do crime ainda investigado/imputado e na necessidade de se dar uma satisfação à opinião
pública e à defesa social e da lei.497

497 BASILEU GARCIA, Comentários ao Código de Processo Penal, Rio de


Janeiro: Forense, 1945, v. III, p. 156/159, item 141, não obstante tente,
em muitos pontos, mitigar a dureza dos dispositivos legais, cede à força
do texto e da doutrina positiva jurídica brasileira e européia e é claro em
basear seu raciocínio em uma “presunção” que só pode ser a de “culpa”
do investigado. In verbis: “presume-se que deseje furtar-se, pela fuga, à
ação da justiça, o delinqüente que está sujeito a pena privativa de
liberdade, por haver cometido crime a propósito do qual não pode
invocar, com êxito, uma causa excludente de antijuridicidade. (...) Os
crimes graves abalam o meio social. O pensamento colhido no texto é
também o de que, em tais casos, a prisão preventiva do delinqüente
satisfaz a opinião pública, antecipando, em benefício do prestígio da lei
violada, a ulterior restauração da ordem jurídica, de que se incumbe a
pena” - grifamos. O uso freqüente da expressão “delinqüente” (em lugar
de imputado/investigado/acusado) na explicação não deixa dúvidas da
influência positivista recebida e difundida à época. No mesmo sentido,
também em muitos pontos mitigador e julgando a fundamentação
elemento sempre essencial, inclusive quando a prisão é obrigatória,
BENTO DE FARIA, Código cit., v. 2, p. 51, não deixa de asseverar, como
que cedendo às posições doutrinárias e jurisprudenciais dominantes: “A
prisão preventiva – é uma medida de segurança, um meio de instrução e
uma garantia de execução do julgamento. (...) É um estado de privação
da liberdade pessoal reclamado pelo interêsse social, o qual pode ser
impôsto ao acusado até o julgamento. Seus principais objetivos são os
de – obstar a fuga do presumido responsável e tolher-lhe a faculdade de
fazer desaparecer quaisquer outros vestígios do crime, além dos já
indicados, de subornar, amedrontar as testemunhas e concertar-se com
os seus possíveis cúmplices” – grifamos.
Com base em elementos informativos colhidos de forma inquisitiva (muitas vezes
meros “indícios”) que deveriam lastrear a denúncia ou existiam na investigação, feito o
requerimento ou até mesmo de ofício, a prisão era decretada antes de se julgar ou até
mesmo se acusar formalmente o imputado por aquele “crime grave”. Bastavam indícios
de autoria em face de um crime com pena alta para aquela prisão surgir como
decorrência inevitável e da qual o julgador não poderia fugir ou examinar a sua
conveniência.498
A prisão provisória obrigatória, como já se expôs,499 sempre foi um sintoma
característico de todos os modelos processais penais baseados na “presunção de culpa” e
da perseguição a todo custo do criminoso/inimigo.

498 Com base nessa cultura jurídica decidia o Supremo Tribunal Federal, à
época, que vigia a prisão obrigatória. Por todos, v.: “Prisão preventiva
obrigatória; provada a existência do crime e havendo indícios suficientes
de autoria, independentemente da sua conveniência, e autorizada (Cod.
do (sic) Proc. Penal, art. 312). Habeas-corpus denegado” (STF – 2ª T. –
RHC 31.775 – rel. Edgard Costa – j. 29.10.1951 – ADJ 13.02.1952).
“Prisão preventiva obrigatória. Art. 312 do Cod. de Proc. Penal. -
Constitucionalidade. -Peculato. - Democracia não e só liberdade para os
cidadãos; deve ser também responsabilidade para os que governam.
Não há como argumentar que o art. 312 não contém o advérbio sempre
ou o adjetivo obrigatória, de modo a ter este caráter a prisão preventiva,
de que ele cogita. A obrigatoriedade claramente resulta do confronto
entre os arts. 312 e 313, o segundo dizendo que o juiz poderá decretar a
prisão preventiva nos crimes menos graves como garantia da ordem
pública, por conveniência da instrução ou para assegurar a aplicação da
lei penal, enquanto o primeiro, no tocante aos crimes graves (a que for
cominada pena de reclusão por tempo no máximo, igual ou superior a
dez anos), dispõe que a prisão preventiva será decretada (não diz que
poderá ser, nem a subordina a razões de conveniência). Prisão
preventiva e pena não se confundem. Certeza se exige para a
condenação, não para a prisão preventiva. Para aquela, não para esta,
vale o princípio in dubio pro reo. Distinção entre poder discricionário e
poder arbitrário, consistindo o primeiro no criterioso exercício de uma
faculdade legal e o segundo em atos de puro arbítrio ou mero capricho.
Não é somente ao tempo da pena que atende o juiz para decretar a
prisão preventiva obrigatória do art. 312. Ele terá de verificar, como está
expresso no art. 311, se há prova da existência de algum dos graves
crimes a que corresponde aquela prisão, bem como se há indícios
suficientes da autoria. Se, no correr do processo, a indicação da autoria
se evidência falsa, ou se comprova a inexistência do delito imputado, a
prisão preventiva deve ser revogada, mesmo no caso do art. 312. -
h.corpus negado” (STF – TP – HC 39.292 – rel. Luis Gallotti – j.
29.08.1962 – ADJ 16.11.1962).
499 Sobre o tema da prisão obrigatória, v. itens 1.2.3.2, 1.2.4, 1.4.1.1.2,
2.2.2, 2.4.3 e 2.4.4 supra.
Esses dispositivos de 1941 somente passaram a ter a redação atual com o advento da
Lei nº 5.349, de 03 de novembro de 1967, contudo, já haviam deixado marcas até hoje
indeléveis na cultura jurídica brasileira. Tanto que, não obstante os vinte anos da atual
Constituição, ainda se vê empregar o mesmo raciocínio da gravidade da infração, apenas
investigada ou imputada, para se determinar a prisão provisória ou se negar a liberdade
do preso (investigado/acusado).500
Claro que a alteração da norma, deixando de ser uma imposição ao julgador,
permitiu que se iniciasse a busca por fundamentações idôneas para se determinar a prisão
ou para revogá-la.

500 A vedação legal genérica e abstrata de concessão de liberdade


provisória para alguns crimes tidos pelo legislador como “graves” é uma
outra face da mesma moeda inconstitucional cunhada para por em
circulação a prisão provisória obrigatória. Sobre a inconstitucionalidade
que essa vedação abstrata representa por violar, entre outros, o princípio
jusfundamental da presunção de inocência, v. item 5.4.2.1.1 infra.
Porém, o que se pretende pôr em ressalto é que aqueles influxos ideológicos que
forjaram o atual Código, a despeito das poucas e insuficientes mudanças legais, ainda
existem. Tanto que, mesmo após a promulgação da atual Constituição Federal, com
regularidade se fundamentam prisões provisórias apenas na gravidade da infração
investigada/imputada501 ou na presunção de culpa forjada em idéias positivistas do
delinqüente atávico, conquanto ainda não “descoberto”.502

501 A título apenas exemplificativo, dentre os muitos julgados nesse sentido,


v.: “Prisão preventiva. Decretação. Gravidade do delito. Envolvimento de
delegado, investigadores e carcereiro. Primariedade e bons
antecedentes. Irrelevância. Garantia da ordem pública e conveniência da
instrução criminal. Prisão que não ofende a garantia constitucional da
presunção de inocência. Ordem denegada. Decretação. Delito
afiançável. Circunstância que não impede o decreto de prisão. Ordem
denegada” (TJSP – 1ª Câm. Crim. Férias – j. 22.06.1998 – JTJ-LEX
214/322).
502 Como exemplo dessa mentalidade preconceituosa, reflexo da cultura
processual penal autoritária do início do século XX, v. o seguinte
exemplo da história do Supremo Tribunal Federal: “1. Primário é o
criminoso que não sofreu condenação criminal anterior. Todavia, pode
ser pessoa perigosa pelo fato de haver cometido infrações que não
foram sequer noticiadas, nem verificadas oficialmente. Assim também o
réu de bons antecedentes, visto que estes podem ser desconhecidos da
justiça criminal. Por conseguinte, a primariedade e os bons antecedentes
podem indicar ausência de periculosidade do réu, mas o certo e que isso
não constitui algo absoluto, indiscutível, pois o indício, qualquer que seja,
deve ser apreciado com cautela, visto que ele desaparece diante de
prova contrária daquilo que inculca. 2. Se o réu, pelo crime terrível que
praticou, demonstra que é perigoso ao convívio social, é de se lhe
decretar a prisão preventiva, mesmo que tenha 19 anos de idade, viva
em companhia dos pais e esteja empregado, seja primário e tenha bons
antecedentes visto que a primariedade e os bons antecedentes não
excluem aquilo que haja de perigoso na sua personalidade, como se
conclui de sua conduta quando provocou a vítima para matá-la em
circunstâncias densamente comprometedoras. 3. Prisão preventiva
denegada pelo juiz de primeiro grau mas concedida, em recurso estrito,
pelo Eg. Tribunal de Justiça de São Paulo, e confirmada pelo Supremo
Tribunal ao indeferir em julgamento uniforme, a petição de habeas
corpus formulada em favor do réu” (STF – 1ª T. – HC 58.825 – rel.
Antonio Neder – j. 09.06.1981 – DJU 03.07.1981).
Mesmo no campo legislativo infraconstitucional pós-Constituinte essa deletéria
cultura deixou raízes. Em 1990, ao se editar a denominada Lei dos Crimes Hediondos
(Lei nº 8.072), foi, novamente em âmbito legal, determinado que a gravidade da infração,
por si só, determinaria a impossibilidade de se conceder liberdade provisória para os
cautelarmente presos. Novamente, e agora já sob a égide da atual Constituição, a cultura
autoritária implementada no e pelo código de processo penal mostrou-se mais eficaz.
Somente em 2007, com a edição da Lei nº 11.464, após muitos trabalhos doutrinários503 e
tantas decisões de nossos Tribunais Superiores, foi revogada a parte daquela lei que
vedava, em abstrato, a concessão de liberdade provisória para os investigados/acusados
por crimes hediondos.
Ainda dentro do tema das prisões provisórias, não se pode deixar de observar,
mesmo que de forma inicial e preliminar, a inserção da expressão “ordem pública” como
critério para se avaliar a necessidade ou não de se manter alguém preso
provisoriamente.504
Tal expressão, que na edição do código estava no art. 313, como requisito a ser
indicado pelo juiz no caso de prisão preventiva facultativa, foi mantida no atual art. 312,
mesmo após a reforma de 1967. Tanto em um quanto em outro dispositivo a expressão
não possui qualquer limitação sistêmica para evitar que sirva de porta de entrada de
muitos influxos subjetivos, desproporcionais e sem qualquer justificação
constitucional.505

503 Dentre os vários comentários críticos à Lei 8.072/90, destaque-se o


realizado já desde o primeiro instante por Alberto Silva FRANCO, Crimes
hediondos, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pelo qual
traça, desde sua primeira edição, várias críticas penais e processuais
penais, além de demonstrar uma gama de ineficiências e
inconstitucionalidades legislativas.
504 Sobre a análise da falta de parâmetros para o termo “ordem pública”
como causa de sua inconstitucionalidade, assim como nossa sugestão
para sua aplicação em um âmbito limitado de situações concretas de
modo a restringir a presunção de inocência, sem violá-la, v. itens
5.4.1.2.1.3 e 5.4.1.2.1.4 infra.
505 Para severas críticas sobre o uso autoritário dessa expressão e sua total
incompatibilidade com a presunção de inocência, v. Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 66/69.
Devido à proposital porosidade de seu conteúdo e à sua falta de parâmetros internos
ou externos, é por meio dela (ordem pública) que a doutrina e a jurisprudência, menos
afeitas a toda extensão que se deve emprestar ao direito fundamental da presunção de
inocência, desde a edição do código, já inseriam em seu conteúdo as seguintes
justificativas: “gravidade da infração”; periculosidade do agente;506 forma do
cometimento do crime;507 clamor público,508 entre outras. Todas, sem exceção, a princípio
incompatíveis com aquele direito fundamental.

506 Para demonstrar que o argumento da periculosidade é antigo e fruto do


desenho político-legislativo do nosso Código de Processo Penal de
inspiração também positivista, v. os seguintes julgados do Supremo
Tribunal Federal anteriores a 1988: “Habeas corpus. Prisão em flagrante.
Agentes de roubo a mão armada presos sucessivamente após fuga.
Quase flagrância caracterizada. ‘Liberdade provisória (art. 310, par.
único do CPP). Não faz jus ao benefício o meliante dotado de extrema
periculosidade, preso logo após cometer roubo duplamente qualificado,
por se tratar de hipótese em que se justificaria a prisão preventiva para
garantia da ordem pública’. Recurso não provido” (STF – 1ª T. – RHC
56.557 – rel. Rodrigues Alckmin – j. 26.09.1978 – DJU 16.10.1978).
“Prisão preventiva. Alegação de motivação insuficiente. Improcedência
da alegação, uma vez que o decreto se fundamenta, inclusive, na
periculosidade do agente, o que diz respeito também à garantia da
ordem pública. Recurso ordinário a que se nega provimento” (STF – HC
58.931 – rel. Moreira Alves – j. 18.09.1981).
507 Também com base na jurisprudência histórica do Supremo Tribunal
Federal, percebe-se que a forma de cometimento do crime, considerada
de modo isolado, desde sempre foi aceita como justificativa para prisões.
Por todos, v.: “‘Habeas corpus’ - concessão de liberdade provisória.
Benefício expressamente recusado, na pronúncia, ‘em vista da maneira
de execução do crime e grau de perversidade demonstrado pelo réu’.
Inadmissibilidade de reexame e, menos ainda, acolhimento da
pretensão. ‘Habeas corpus’ indeferido” (STF – 1ª T. – HC 61.064 – rel.
Oscar Correa – j. 05.08.1983 – DJU 26.08.1983).
508 O clamor público também é construção antiga, originária da cultura
fascista e que se perpetua até os dias atuais, tendo sido, inclusive,
aplicado pelo Supremo Tribunal Federal, antes da atual Constituição. Por
todos, v.: “‘Habeas corpus’. Crime afiançável. Prisão preventiva com
base no clamor público causa do pelos assaltantes, incentivados pelos
receptadores. Superada a demora no encerramento da instrução.
Recurso desprovido” (STF – 1ª T. – rel. Soares Munoz – j. 27.10.1981 –
DJU 13.11.1981).
Ocorre, porém, que tal expressão porosa e sem limites possui um efeito estrutural
não apenas para a prisão preventiva, em cujo capítulo foi inserida, mas, por ser essa
forma de prisão a base para a verificação de todas as outras modalidades de medidas
congêneres, também projeta seus deletérios efeitos às outras formas de prisões provisórias
(p.ex., a decorrente de decisão condenatória recorrível ou de decisão de pronúncia), já
existentes desde o surgimento do Código.509
Resta evidente, portanto, que para o importante tema da prisão no curso
persecutório, quando se examina o sistema apenas pela perspectiva processual penal,
percebe-se que não há qualquer influência da presunção de inocência em sua
estruturação. O que vigia, inicialmente (1941), era a prisão obrigatória (manifestação
inconteste da “presunção de culpa”) por força de lei (notadamente nos arts. 311 e 312), e,
mesmo após sua alteração (1967), continuamos a ter um sistema processual insuficiente e
dependente dos influxos constitucionais sempre que se busque evitar, com fundamento
na presunção de inocência, a decretação de uma prisão ou conceder liberdade
provisórias.

2.5.2.3. (segue): interrogatório e confissão

O exame dos capítulos do interrogatório (arts. 185 a 196 do Código de Processo


Penal) e da confissão (arts. 197 a 200 do mesmo diploma), conforme projetados pelo
legislador de 1940, também reforça a constatação de que a presunção de inocência não
foi considerada nesses instantes de contato mais próximo e intenso entre inquiridor
(autoridade policial ou juiz) e o imputado.

509 Como essa matéria será objeto de comentários específicos no item


5.4.2.1.3 infra, resta destacar neste ponto apenas que as alterações
implementadas inicialmente pela Lei 5.941/73 (dita Lei Fleury) tanto no
art. 408, § 2º (que tratava da prisão em decorrência de pronúncia)
quanto no art. 594 (que tratava da prisão para apelar), ambos CPP, já
mitigaram o conteúdo obrigatório da prisão provisória nessas situações,
sem, contudo, eliminá-lo. Mais recentemente, nova tentativa em busca
da constitucionalização do tema foi feita com o advento da Lei 11.719/08,
que impõe fundamentação judicial específica, baseada nos pressupostos
e requisitos do art. 312, tanto para a prisão provisória decorrente da
pronúncia (parágrafos 2º e 3º, do art. 413, CPP) quanto para aquela
decorrente de decisão condenatória recorrível (parágrafo único do art.
387, CPP).
Até dezembro de 2003, quando todo o capítulo do interrogatório foi reformulado
pela Lei 10.792/2003, a fim de adaptá-lo aos ditames constitucionais, ele apresentava as
seguintes características: a) era ato privativo entre inquiridor e inquirido; b) a presença
do defensor não era obrigatória, não havendo qualquer nulidade quando o acusado era
interrogado sem qualquer comunicação prévia com seu defensor, ou mesmo na ausência
deste; c) quando era constituído o defensor e ele estava presente no ato, era-lhe proibido
intervir ou influir na colheita feita pelo inquiridor.510
Por dispositivos existentes no capítulo do interrogatório, percebia-se que era ato
encaminhado na direção de se obter a confissão,511 fosse ela voluntária (art. 190),512 ou
fosse ela presumida pelo silêncio do imputado (art. 186).513
Se unirmos o até agora expendido para o interrogatório e sua ligação com a
confissão e aplicarmos à fase investigatória, a qual, como se viu instantes atrás, era em
regra sigilosa com a incomunicabilidade do preso (tido como criminoso), entende-se por
que estavam criadas todas as condições para que nesse instante ocorressem violências e
abusos. Em tristes momentos da história brasileira, muitos atos de tortura (física ou
psicológica) eram cometidos nesses instantes de extremo confronto entre inquiridor e
inquirido, com franca prevalência daquele, pela própria posição hierárquica e de poder
que possui na presidência e condução do ato.
Se verificarmos que os interrogatórios poderiam ser repetidos por quantas vezes a
autoridade (policial ou judiciária) entendesse necessárias (art. 196),514 percebe-se que o
quadro era muito próximo àquele exposto na fase histórica da Inquisição,515 exceção feita
a que, em 1941, a tortura, ao menos em nível legislativo, não era mais aceita oficial e
legalmente como fonte eventual de prova.

510 Era assim a redação do art. 187 do Código de Processo Penal, antes de
sua revogação em 2003: “Art. 187. O defensor do acusado não poderá
intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas” -
grifamos.
511 Sobre a confissão como hipótese de restrição legítima da presunção de

inocência, obedecidas algumas condições, v. item 5.5.3.1 infra.


512 Assim estava disposto na redação original do Código de Processo Penal:

“Art. 190. Se o réu confessar a autoria, será especialmente perguntado


sobre os motivos e circunstâncias da ação e se outras pessoas
concorreram para a infração e quais sejam”.
513 Assim estava disposto na redação original do Código de Processo Penal:

“Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que,


embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem
formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria
defesa” - grifamos.
514 Assim estava disposto na redação original do Código de Processo Penal:

“Art. 196. A todo tempo, o juiz poderá proceder a novo interrogatório”.


515 Sobre o tema da repetição de interrogatório e sua relação com a tortura

na Inquisição, v. as observações e notas do item 1.4.1.2 supra.


O sigilo e a incomunicabilidade estavam assegurados por lei, assim como a
inexistência de auxílio técnico defensivo ou intervenção de qualquer pessoa no ato de
inquirição; todo o cenário era feito para um constrangimento e uma pressão psicológica
aptos a levar a interrogado à confissão. Tudo, novamente, como na fase histórica em que
existia expressamente a presunção de culpa e o inimigo/herege era o objeto a ser ceifado
do convício social. Com tudo isso, não se pode supor que a estruturação e
desenvolvimentos dos atos no instante do interrogatório tivessem a presunção de
inocência como sua referência. Essa constatação se confirma ao se examinar como se
estrutura o interrogatório nos dias atuais, após dezembro de 2003.
Essa assertiva não significa que antes dessa reforma de 2003 todo ato de
interrogatório era abusivo, ou que depois dela não exista mais qualquer ato abusivo ou
violento no curso do interrogatório (policial ou judicial). Tais críticas têm a finalidade
apenas de apontar que, como foi estruturado inicialmente, o ato de interrogatório e sua
finalidade em se alcançar a confissão proporcionavam as condições necessárias e ideais
para que aqueles que quisessem tivessem maiores oportunidades de ser arbitrários,
abusivos e violentos. Tais atos, atualmente, ocorrem em situações de tibieza da defesa
técnica ou de sua eventual anuência.

2.5.2.4. -(segue): amplos poderes investigatórios judiciais e absolvição por


insuficiência de prova para condenar

Não se vai, nesse ponto, fazer uma escolha entre o sistema processual inquisitivo e o
acusatório, uma vez que já se demonstrou que ambos os modelos podem ser estruturados
sem qualquer influxo da presunção de inocência.516
O que aqui se quer destacar é o fato de que o legislador de 1941 deu ao julgador
enormes poderes instrutórios. No Título “Da prova” são elencados vários meios de prova
e outros meios de obtenção de prova, para todos e em todos se admite a produção por
iniciativa do juiz. O juiz, portanto, poderá instruir o processo o quanto entender
conveniente e suficiente para formar seu convencimento. A princípio, poderia se
entender que com tal poder o julgador poderia tanto produzir prova para absolver
quanto para condenar, vale dizer, teria poderes instrutórios para a dita “descoberta da
verdade”, pouco importando se ao final tal comportamento vier a beneficiar a tese
acusatória ou defensiva. Essa era a idéia central que se queria passar: um juiz ativo para a
busca da melhor reconstrução dos fatos.

516 Sobre o tema, no exame do direito romano, v. item 1.2.4 supra.


Ocorre, porém, que ao se examinar esse extenso poder instrutório, em paralelo com
a possibilidade de o juiz decidir a causa em favor do acusado se estivesse na dúvida
quanto à sua culpabilidade, aplicando o “in dubio pro reo” (art. 386, incisos VI e VII,
CPP),517 verifica-se que o julgador só tem razões para exercer seu poder instrutório para
demonstrar uma culpa que entende ainda improvada. Se o julgador deve, por força de lei,
absolver diante da dúvida, todas as vezes que estiver em dúvida não precisa usar qualquer
poder instrutório, basta usar o critério do “in dubio pro reo” para decidir. Se ele, na
dúvida, busca novas provas ou meios de provar determinada tese é porque está, em regra,
insatisfeito com o trabalho instrutório do órgão acusador.518 Voltaria a ser o juiz que
busca a prova para condenar, o juiz nos papéis de investigador e de acusador.
Esse quadro de incremento dos poderes instrutórios foi em certa medida prestigiado
recentemente, com o advento da Lei 11.690/2008, que mudou todo o capítulo das
“Disposições Gerais” (arts. 155 a 157) do Título “Da Prova”, no Código de Processo Penal.
Isto porque, a redação do art. 156 manteve, em seu caput, que é “facultado ao juiz de
ofício” produzir prova, seja na fase de investigação preliminar (inciso I) seja na fase de
instrução processual, até antes de proferir a sentença (inciso II, do mesmo artigo).519

517 Veja-se a nova redação do art. 386, com a alteração promovida pela Lei
11.690, de 10.06.2008: “Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a
causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (...) VI – existirem
circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20,
21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se
houver fundada dúvida sobre sua existência; VII - não existir prova
suficiente para a condenação”.
518 A iniciativa instrutória judicial ilimitada e incentivada pelo legislador
compatibilizava-se com outros pontos nos quais o código de processo
penal deixava clara a sua tendência inquisitiva. Cite-se, a título
exemplificativo, o mais significativo deles representado pelo
procedimento judicialiforme (arts. 531 e ss.), nos quais se previa que as
ações penais eram iniciadas por portaria do próprio juiz que, ao final,
julgaria o caso.
519 Não obstante várias manifestações doutrinárias ressalvem que essa
iniciativa na fase investigativa é inconstitucional (p.todos, v.: Nereu José
GIACOMOLI, Reformas (?) do processo penal, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008, item 3.4; Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO
e Sólon Bittencourt DEPAOLI, Por que o juiz não deve produzir provas –
a nova redação do art. 156 do CPP - Lei nº 11.690/2008, Boletim do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, ano 16, nº 190, pp. 6-7, set.,
2008), o fato é que o legislador de 2008 perdeu uma grande
oportunidade de reforçar a determinação constitucional por um sistema
processual penal acusatório. Para não incidir na inconstitucionalidade
inegável do novo texto legal, o legislador deveria ter restringido ao
máximo os poderes instrutórios ex officio do juiz na fase processual,
chegando a eliminá-lo em certas situações no curso da ação penal e na
fase de investigação preliminar deveria tê-lo feito de modo integral.
Com essa constatação não se está afirmando que todo e qualquer magistrado sempre
que se utilizou dos poderes instrutórios que a lei lhe confere sempre o tenha feito
animado por uma sanha punitiva. Sabe-se que muitos agiram e poderão agir exatamente
no sentido contrário. Não se está aqui julgando pessoas ou procurando exemplos mais ou
menos aplicáveis apenas a uma linha argumentativa. O que se procura demonstrar com o
exame desses pontos é apenas uma tendência do sistema criado em 1941. Tendência essa
que pode ou não ser mais ou menos forte em uma ou outra pessoa, porém não deixa de
ser uma tendência sistêmica e, como tal, produziu e produz sempre mais efeitos em uma
direção (punitiva) do que em outra (defensiva).
A tendência punitiva que se aliava a esse ilimitado e constante poder instrutório
judicial é possibilitada pela “livre apreciação das provas” (atual primeira parte do caput
do art. 155, CPP),520 também denominado, principalmente pela doutrina italiana, como
“livre convencimento judicial”. Isto porque, como já se demonstrou,521 esta forma de
decisão típica do sistema do júri inglês, o qual possui um rígido e complexo sistema de
exclusão e depuração de provas (law of evidence), foi transposta ao julgamento togado e,
com isso, deu-se ao julgador um poder de decidir conforme sua “certeza moral”. Não
obstante tanto no código italiano de 1930 quanto no brasileiro de 1941 terem tentado
colocar peias àquela liberdade excessiva pela exigência de motivação,522 o certo é que
nunca se criou uma estrutura segura para que ela fosse prolatada de forma verificável e
crítica.

520 Até o advento da Lei 11.690/08, a livre apreciação da prova estava assim
prevista no art. 157 desde 1941: “Art. 157. O juiz formará sua convicção
pela livre apreciação da prova”. A partir de meados de 2008, essa
mesma determinação está assim transposta ao art. 155 atual: “Art. 155.
O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida
em contraditório judicial, (...)” - grifamos. Não obstante haja alteração
com o complemento não grifado, ao que importa (a parte grifada do
dispositivo) a mens legislatoris de 2008 mostrou-se ainda uniforme com
o ditame de 1941.
521 Já expusemos que o livre convencimento nasceu no iluminismo (v. item

1.5.2 supra) e foi deturpado para uma poder ilimitado tanto na fase
imediatamente posterior, com o código processual penal misto francês
(v. item 2.2.2 supra), quanto pela Escola Positiva (v. item 2.3.2 supra) e
pela Escola Técnico-Jurídica (v. item 2.4.6 supra).
522 Nessa linha, o item XII da Exposição de Motivos do Código de Processo

Penal, que trata da sentença: “(...) A sentença deve ser motivada. Com o
sistema do relativo arbítrio judicial na aplicação da pena, consagrado
pelo novo Código Penal, e o do livre convencimento do juiz, adotado pelo
presente projeto, é a motivação da sentença que oferece garantia contra
os excessos, os erros de apreciação, as falhas de raciocínio ou de lógica
ou os demais vícios de julgamento. No caso de absolvição, a parte
dispositiva da sentença deve conter, de modo preciso, a razão específica
pela qual é o réu absolvido. É minudente o projeto, ao regular a
motivação e o dispositivo da sentença”. Para dar corpo a essa
disposição do legislador, mesmo antes da atual Constituição, exigia-se
que a decisão de mérito fosse fundamentada. Assim vinham dispostos
os artigos 381 (“Art. 381. A sentença conterá: (...) III - a indicação dos
motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão”) e 564 (“Art.
564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: (...) IV - por omissão de
formalidade que constitua elemento essencial do ato”). Para a prisão
preventiva já havia, também, cláusula expressa: “Art. 315. O despacho
que decretar ou denegar a prisão preventiva será sempre
fundamentado”.
Essa falta de estrutura de controle à fundamentação judicial era tão evidente que,
não raro, até após o advento da atual Constituição, era comum aos juízes justificarem
condenações apenas com base em elementos informativos colhidos em fase inquisitiva
pré-processual.523

523 No sistema espanhol, para essa utilização do material produzido em fase


anterior (juizado de instrução) jà realizada em plenário, de forma oral,
imediata e em contraditório, v. Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción
de inocencia em la jurisprudencia constitucional, Madrid: AKAL/IURE,
1987, pp. 24/26. Para esse mesmo mau uso da livre convicção judicial
para o sistema italiano, v. item 2.4.6 supra.
A consolidação da melhor doutrina no sentido de ser inconstitucional a
fundamentação de decisões condenatórias apenas com base em investigações
preliminares produziu efeitos primeiro na jurisprudência524 e, posteriormente, na
legislação.525

524 O que pode ser visto por esse aresto paradigmático de nosso Supremo
Tribunal Federal: “A unilateralidade das investigações desenvolvidas
pela Polícia Judiciária na fase preliminar da persecução penal
(‘informatio delicti’) e o caráter inquisitivo que assinala a atuação da
autoridade policial não autorizam, sob pena de grave ofensa à garantia
constitucional do contraditório e da plenitude de defesa, a formulação de
decisão condenatória cujo único suporte seja a prova, não reproduzida
em juízo, consubstanciada nas peças do inquérito. Por isso mesmo, a
orientação jurisprudencial dos Tribunais (RT 422/299, 426/395, 448/334,
479/358. 547/355) firmou-se no sentido de que ‘é nula a decisão
proferida em processo que correu em branco, sem que nenhuma prova
fosse produzida em Juízo’ (RT 520/484). ‘A prova colhida no inquérito
não serve, sabidamente, para dar respaldo a um decreto condenatório, à
falta de garantia do contraditório penal’ (RT 512/355). Nem se diga que o
princípio do livre convencimento do magistrado deveria preponderar,
sem qualquer limitação, tendo presente, apenas, a realidade do conjunto
probatório e não o lugar em que este se produziu. Como
apropriadamente observa Fernando de Almeida Pedroso (ob. cit., p. 56,
item 14), ‘sufragar-se tal escólio implicaria postergar-se, de maneira
flagrante, o princípio basilar do contraditório...’. Outro não é o magistério
de José Frederico Marques (‘Tratado de direito processual penal’,
Saraiva, 1980, vol. I), para quem não há prova (ou como tal não se
considera), quando não produzida contraditoriamente (p. 194). Afinal,
salienta o eminente Mestre paulista, se a Constituição solenemente
assegura aos acusados ampla defesa, importa violar essa garantia valer-
se o juiz de provas colhidas em procedimento em que o réu não podia
usar do direito de defender-se com os meios e recursos inerentes a esse
direito (p. 104). Nenhuma acusação penal se presume provada. Esta
afirmação, que decorre do consenso doutrinário e jurisprudencial em
torno do tema, apenas acentua a inteira sujeição do Ministério Público ao
ônus material de comprovar a imputação penal consubstanciada na
denúncia. Com a superveniência da nova Constituição do Brasil,
proclamou-se, explicitamente (art. 5º, LVII), um princípio que sempre
existira, de modo imanente, em nosso ordenamento positivo: o princípio
da não-culpabilidade das pessoas sujeitas a procedimentos
persecutórios (Dalmo de Abreu Dallari, ‘O renascer do direito’,
Bushatsky. 1976, p. 94-103 ; Weber Martins Batista, ‘Liberdade
provisória’, Forense, p. 34, 1981). Esse postulado – cujo domínio de
incidência mais expressivo é o da disciplina da prova – impede que se
atribuam à denúncia penal conseqüências jurídicas apenas compatíveis
com decretos judiciais de condenação definitiva. Esse princípio tutelar da
Contudo, essa nova postura tanto jurisprudencial quanto legal não impede que,
ainda hoje, o subjetivismo judicial, decorrente da livre apreciação das provas, não
apresente seguros critérios elaborativos para seu controle de coerência, veracidade e
racionalidade.526
Por essa razão, não obstante se possa reconhecer um avanço naquela postura antes
destacada, melhor seria que o legislador infraconstitucional de 2008 mantivesse a redação
originária do projeto de reforma do tema da prova, que deu origem à Lei 11.690. Nele
estava fixado que o juiz formaria sua convicção apenas com as provas produzidas em
contraditório judicial, excluindo-se, de maneira absoluta, todo o material colhido em fase
investigativa ou sem contraditório. Esse talvez fosse o primeiro passo significativo para
romper, neste tema, com a estrutura e a cultura inquisitivas formadora do Código de
Processo Penal e presentes ainda em nossa realidade forense.527
Como se percebe, também por esse viés revela-se a ausência da presunção de
inocência neste âmbito da legislação processual penal codificada.

liberdade individual repudia presunções contrárias ao imputado, que não


deverá sofrer punições antecipadas e nem ser reduzido, em sua pessoal
dimensão jurídica, ao ‘status poenalis’ do condenado. De outro lado, faz
recair sobre o órgão da acusação, agora de modo muito mais intenso, o
ônus substancial da prova, fixando diretrizes a serem indeclinavelmente
observadas pelo magistrado e pelo legislador” (declaração de voto do
Ministro Celso de Mello no HC 67.917, rel. Sepúlveda Pertence, j.
17.04.1990, DJU 05.03.1993).
525 Nesse sentido foi a orientação para a nova redação da segunda parte do

caput do art. 155, conforme a Lei 11.690/08: “O juiz formará sua


convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos
elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas
cautelares, não repetíveis e antecipadas” - grifamos.
526 Sobre o exame desses aspectos como necessidade de toda decisão a

fim de se verificar se houve ou não respeito à presunção de inocência, v.


item 5.4.2.3 infra.
527 No sentido de maior constitucionalidade e controle em tema de “livre

convencimento judicial” põe-se o atual “Anteprojeto de Reforma do


Código de Processo Penal”, elaborado por Comissão de Juristas
designada pelo Senado Federal. Isto porque, sobre o tema assim
preceitua: “Art. 165. O juiz formará livremente o seu convencimento com
base nas provas submetidas ao contraditório judicial, indicando na
fundamentação os elementos utilizados e os critérios adotados”. Este
dispositivo, em conjunto com outros (p.ex., arts. 4º e 162 do mesmo
Anteprojeto), compõem, enfim, um significativo rompimento com a
mentalidade autoritária de 1941.
Como conclusão de todo o exposto no presente capítulo pode-se afirmar, sem medo
de incidir em erro ou precipitações técnicas: nosso sistema processual penal ainda
vigente, examinado pelo modelo concebido e projetado pelo código de processo penal,
em 1941, é um modelo autoritário, com tendência punitiva, e que rejeita a presunção de
inocência em todos os seus aspectos fundamentais.
Todos os influxos efetivados pela presunção de inocência no cotidiano forense são
muito mais decorrência do esforço jurisprudencial e doutrinário de efetivação da
Constituição do que fruto de uma mudança de postura do legislador nacional.
Lembrando que, mesmo se incluídas as reformas legislativas de 2008, todas as mudanças
pontuais realizadas de forma mais ou menos profunda não foram suficientes para romper
com a estrutura autoritária e inconstitucional do ainda atual código processual penal em
relação àquele direito fundamental.

Capítulo III
Presunção de Inocência como
Direito Fundamental

3.1. Considerações iniciais

No capítulo anterior constatou-se que, após a inscrição iluminista da presunção de


inocência, uma série de fatores (políticos, ideológicos, econômicos e científicos)
conduziram à sua supressão.
Ao final do século XIX e início do século XX, fruto da associação entre a doutrina
positivista italiana e o tecnicismo jurídico nazifascista, aquela concepção passou a ser
considerada uma “absurdidade jurídica” e, como tal, foram rejeitados quaisquer de seus
influxos no âmbito processual penal, exceção feita ao “in dubio por reo”. Tal qual na
Roma dos Imperadores e na Inquisição,528 a partir desse referido pensamento autoritário,
o sistema criminal passou a aceitar apenas o “in dubio pro reo” tão-só no instante de se
decidir o mérito da causa e, como ressaltado, após o julgador ter esgotado todas as vias
instrutórias que entendesse necessárias.529
Ao final do capítulo anterior, demonstrou-se, outrossim, que foi essa concepção
processual penal, de um sistema estruturado com base na rejeição da presunção de
inocência, que o legislador brasileiro de 1941 utilizou e teve como parâmetro para
elaborar a legislação que até nossos dias continua em vigor. Um processo penal que, em
nível infraconstitucional, não aceita a presunção de inocência em suas estruturas
jurídicas.
Não obstante essa afirmação e constatação, não se deixou de apontar, como última
parte do capítulo,530 que muitos pontos da redação empreendida pelo legislador de 1941
foram mitigados, alterados e são hoje lidos sob uma necessária influência cogente de
dispositivos constitucionais, dentre os quais se encontra a presunção de inocência.
Diante dessa constatação de verdadeira contradição entre os dispositivos processuais
penais de natureza constitucional e infraconstitucional, o presente capítulo está
destinado a explicar como e por que ocorreu tal dicotomia entre aqueles níveis legais.
Nesse sentido, iniciando-se pela explicação do surgimento da atual Constituição e seu
perfil mais marcante, todo o estudo está teleologicamente endereçado a demonstrar a
força cogente para a maior realização possível da presunção de inocência, seja por força
vinculativa dos diplomas internacionais incorporados pelo Brasil em seu ordenamento
interno seja pelas próprias características, dimensões e efeitos que os recentes estudos
constitucionais emprestam aos direitos fundamentais.
O presente capítulo, portanto, tem o importante papel de fazer e explicar a transição
entre o sistema processual penal de bases ideológico-fascistas, elaborado no início do
século XX, e os influxos juspolíticos que a moderna teoria dos direitos fundamentais
empresta e extrai do atual sistema constitucional brasileiro no que toca aos direitos de
liberdades.

528 Sobre o tema do “in dubio pro reo” em Roma, v. item 1.2.3.3.1 supra, e
para a Itália fascista, v. item 2.4.6 supra.
529 Sobre os amplos poderes investigatórios do juiz, no Código de Processo

Penal brasileiro de 1941, e a aplicação do “in dubio pro reo” apenas na


decisão final do mérito da causa e quando esgotado todo exercício
probatório do julgador, v. item 2.5.2.4 supra.
530 Sobre o tema, v. item 2.5 e seus subitens supra.
Nesse enfoque, o estudo dos aspectos jusfundamentais mais importantes à presunção
de inocência sempre partirá desses direitos, também denominados direitos humanos de
primeira geração, como gênero, do qual ela é uma das espécies aplicáveis ao processo
penal.

3.2. -“Sofrer para compreender”: a Declaração Universal dos Direitos do Homem


como fonte moderna da Presunção de Inocência

Citando Ésquilo, na peça Agamenon, na passagem em que Zeus “abriu aos homens o
caminho da prudência, ao dar-lhes por lei: ‘sofrer para compreender’ (‘tô pathei
mathos’)”, FÁBIO KONDER COMPARATO aponta que “a compreensão da dignidade
suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande
parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os
homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante
de seus olhos; e o remorso pelas torturas, as mutilações em massa, os massacres coletivos
e as explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de
novas regras de uma vida mais digna para todos”.531
Como é de conhecimento histórico, a tendência econômico-expansionista dos
regimes fascista, nazista, franquista e salazarista, além de sua marcada característica
racista e despótica, levaram a raça humana à 2ª Guerra Mundial (1939 a 1945). Conflito
bélico que, por sua extensão e profundos danos – os registros históricos indicam 60
milhões de mortos (civis e militares) e 45 milhões de refugiados, como alguns de seus
malefícios –, serviu de marco para a afirmação internacional dos direitos humanos
através de tratados, convenções e organismos supranacionais.532
A técnica jurídica do positivismo dogmático nazifascista serviu de verniz,
pseudamente neutro e eficientista, a posições ideológicas violadoras do ser humano. No
nível interno, essa ideologia desaguou na construção de um sistema criminal legitimador
de violências, abusos e perseguições estatais, e, no nível internacional, no fortalecimento
de poderes totalitários que, inevitavelmente – séculos de história provam isso –, sempre
extravasam para a intolerância com os países vizinhos. Foi exatamente o que ocorreu
antes das duas Grandes Guerras Mundiais do século passado.

531 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos


humanos, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, pp. 36/37. O autor coloca
também, ao lado da dor e do sofrimento, as descobertas e invenções
científicas como as grandes causas da evolução humana para o
reconhecimento de seus direitos mais elementares.
532 José Carlos de BARTOLOMÉ CENZANO, Derechos fundamentales y
liberdades públicas, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003, pp. 43/44.
Passada aquela última Grande Guerra, todas as nações compreenderam que era
necessário criar bases ético-sociais para a convivência pacífica de todos os povos e de
todos os seres humanos, pouco importando suas características biopsicológicas, culturais,
religiosas, sociais, lingüísticas ou, ainda, a localização geográfica do Estado no planeta.
Nessa importante dimensão da evolução do ser humano em busca de sua plenitude para
uma convivência pacífica, os seus direitos mais essenciais (“direitos humanos”) passaram
a ser a preocupação primeira e a ter abrangência universal, pois passaram a ser
elaborados para todo o (universo) humano sobre a Terra.533

533 No sentido de que essa concepção de “universalidade”, fundada


inegavelmente na mais ampla concepção de igualdade do ser humano,
rompe com qualquer legado racista do nazismo, v. Flávia PIOVESAN,
Direitos humanos e o Direito Constitucional Internacional, 7ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 131. Para maior consideração sobre a
característica da universalidade, v. item 3.6.1 infra. Sobre como isso se
reflete na presunção de inocência, v. item 5.4.3.1 infra, quando tratamos
da extensão subjetiva desse direito fundamental.
Nesse anseio de fixação de paradigmas para a proteção internacional dos direitos
essenciais da pessoa humana, foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU).
Diferente da Sociedade das Nações – criada ao final da 1ª Guerra Mundial, com o fim
único de regular os conflitos bélicos534 –, a ONU surgiu com uma preocupação maior e
anterior às guerras, foi concebida para tentar evitá-las por meio de medidas de respeito à
dignidade humana, à democracia e à paz entre os povos.535 Tornou-se imprescindível,
portanto, a elaboração de tratados e convenções internacionais que inscrevessem os

534 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 214/216.


535 Assim, restou fixado no excerto inicial da Carta das Nações Unidas:
“NÓS, OS POVOS DAS NAÇÕES UNIDAS, RESOLVIDOS a preservar
as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no
espaço de nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a
reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no
valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das
mulheres, assim como nas nações grandes e pequenas, e a estabelecer
condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes
de tratados e outras fontes do direito internacional possam ser mantidos,
e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de
uma liberdade mais ampla, E PARA TAIS FINS praticar a tolerância e
viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir nossas
forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela
aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada
não será usada a não ser no interesse comum (...)” – destaques no
original.
direitos humanos de forma vinculativa a todas as nações que deles viessem a fazer
parte.536
Essa indispensável criação de paradigmas universais de direitos humanos e sua força
vinculativa tinham uma função preventiva imanente, qual seja, forçar os vários Estados-
membros a aceitarem uma pauta mínima e indispensável de respeito aos direitos
elementares do ser humano a fim de que, já ao nível interno de suas legislações, fossem
neutralizados eventuais e futuros focos de autoritarismo e abusos contra o ser humano:
germes indefectíveis de violências e guerras internas e internacionais.
Com isso, esses mecanismos vinculativos internacionais antecipavam a proteção da
pessoa humana para o nível legislativo interno, o que traz dois benefícios, um imediato e
o outro mediato, ambos voltados à busca da plenitude humana em paz. O primeiro
benefício é que a proteção do ser humano é feita e fiscalizada já internamente e,
portanto, de maneira mais pronta ao indivíduo, revela-se, assim, a preocupação dos
organismos internacionais com o respeito imediato da dignidade humana de cada
indivíduo; o segundo benefício, de natureza mais mediata e mais próxima às
preocupações internacionais em evitar novos conflitos bélicos multilaterais, consiste em
se antecipar ao surgimento de focos antidemocráticos, detectáveis sempre pelo
desrespeito aos direitos humanos, pela obrigatoriedade em se ter e garantir uma
legislação interna de respeito aos cidadãos.

536 Por isso, já em seu artigo 1º, inserido no capítulo intitulado “Propósitos e
Princípios”, preceitua a Carta das Nações Unidas, de 26 de junho de
1945: “Os propósitos das Nações Unidas são: (...) 3. Conseguir uma
cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de
caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e
estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais
para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4. Ser um
centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução
desses objetivos comuns”. Para completar e dar concretude àqueles
princípios, no art. 2º vincula-se cada Estado-membro aos seus
cumprimentos: “A Organização e seus membros, para a realização dos
propósitos mencionados no art. 1º, agirão de acordo com os seguintes
princípios: (...) 2. Todos os membros, a fim de assegurarem para todos
em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de
membros, deverão cumprir de boa-fé as obrigações por eles assumidas
de acordo com a presente Carta”. No sentido do constitucionalismo do
pós-guerra ter-se preocupado em garantir, em nível internacional e
nacional, uma pauta de direitos exigíveis pelo ser humano como forma
de superar qualquer ameaça de sua destruição por vontade de Estados
autoritários, v. Luigi KALB, La “ricostruzione orale” del fatto tra
“efficienza” ed “efficacia” del processo penale, Torino: Giappichelli, 2005,
pp. 109/112. No mesmo sentido, v. Giovanni TRANCHINA, Tutela della
collettività e garanzie individuali: perenne ambiguità del processo penale,
in Studi in ricordo di Giandomenico Pisapia, Milano: Giuffrè, 2000, v. 2 –
procedura penale, p. 746.
A comunidade internacional percebeu que se para evitar o surgimento de Estados
totalitários, deve evitar que as legislações internas desrespeitem os indivíduos e, por meio
do sistema criminal, perpetrem perseguições políticas e violações a direitos essenciais aos
cidadãos. Pequenas ditaduras nascem, no mais das vezes, com falsos argumentos de maior
controle do “mal” interno (crescimento da violência, em regra), caminham e crescem
pelos abusos e perseguições a seus opositores e “inimigos” (políticos, econômicos, sociais
ou raciais) e, após soberanas em suas “republiquetas”, lançam-se à guerra, sempre sob o
pretexto de proteção contra os “inimigos” internacionais que querem atacar “sua paz” ou
prejudicar o “bem estar” “conseguido” pelos seus cidadãos.
Nesse sentido, sobreleva a relação feita por NORBERTO BOBBIO entre as idéias de
“direitos do homem”, “democracia” e “paz”. Para esse autor, “sem direitos do homem
reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as
condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a
democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são
reconhecidos direitos fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra
como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele
estado, mas do mundo”.537

537 Norberto BOBBIO, A Era dos Direitos, 9ª ed., Rio de Janeiro: Campus,
1992, p. 1. No sentido de ser ideal uma relação entre “paz”, “democracia”
e “direitos do homem”, pode-se ler no preâmbulo do Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, da ONU: “Os Estados-partes do
Presente Pacto, Considerando que, em conformidade com os princípios
proclamados na Carta das Nações Unidas, o reconhecimento da
dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus
direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo, Reconhecendo que esses direitos decorrem
da dignidade inerente à pessoa humana, Reconhecendo que, em
conformidade com a declaração Universal dos Direitos do Homem, o
ideal do ser humano livre, no gozo das liberdades civis e políticas e
liberto do temor e da miséria, não pode ser realizado a menos que se
criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos civis
e políticos, assim como de seus direitos econômicos, sociais e culturais,
(...)”.
Por isso, para ser atingida a paz (interna ou externa), princípio e fim do direito,
deve-se começar com a inclusão dos direitos humanos no ordenamento interno das
várias nações: única forma de se garantir um sistema normativo democrático e, portanto,
menos infenso a soluções bélicas para resolução de questões internas ou externas.538
Nesse novo contexto humanitário surgido no pós-guerra, houve a reafirmação
internacional da presunção de inocência como um dos primados juspolíticos mais
importantes para a constituição de nações livres e democráticas. Tal reafirmação foi feita,
formalmente, na Declaração Universal dos Direitos do Homem539 de 1948, inegável
marco do ressurgimento do humanismo no pós-guerra.

538 Com a exata compreensão dessa indissolúvel relação entre aquelas três
idéias (direitos do homem, paz e democracia) é que se entende por que,
sempre que se quer solapar a democracia, inicia-se pela vulneração de
seus direitos fundamentais (negando-os ou limitando-os). Tal supressão
(total ou parcial) sempre ocorre a pretexto de uma guerra (interna ou
externa) iminente (para os conflitos bélicos) ou do aumento da violência
urbana (para a violação interna e até para guerras civis). Assim, se deu,
por exemplo, no Império Romano (v. itens 1.2.3 e 1.2.3.1 supra), no
período medieval (v. itens 1.4.1 e 1.4.1.1), ao final do século XIX e início
do século XX (v. itens 2.3, 2.4.1 e 2.4.4 supra), na ascensão dos regimes
fascista e nazista, e, mais recentemente, nos governos militares da
América Latina. Em todas essas oportunidades, justificando na
necessidade de maior recrudescimento punitivo para proteção do povo
diante de inimigos (religiosos, políticos, econômicos, externos ou
internos), obtém-se um manipulado apoio popular originário do medo
perspicazmente incutido na sociedade, suprimem-se os direitos
fundamentais, amordaçam os meios de protesto ante as violências e os
abusos estatais internos, limitam a liberdade e, por fim, levam o povo à
guerra (civil ou internacional). A receita é conhecida e se repete na
história humana com uma triste e incompreensível freqüência.
539 Sobre essa Declaração da ONU como marco da internacionalização da
preocupação com os direitos humanos, v.: José Adércio Leite SAMPAIO,
Direitos fundamentais: retórica e historicidade, Belo Horizonte: Del Rey,
2004, pp. 246/247; Carlos WEIS, Direitos humanos contemporâneos,
São Paulo: Malheiros, 1999, pp. 66/68; e Antônio Augusto Cançado
TRINDADE, A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil
(1948 - 1997): as primeiras cinco décadas, 2ª ed., Brasília: Universidade
de Brasília, 2000, p. 23.
Assim, a partir dessa Declaração de 1948, elaborada e promulgada pela Organização
das Nações Unidas, a presunção de inocência foi recolocada como direito essencial da
universalidade humana, a ser seguido e respeitado por todos os Estados-membros tanto
em sua regulamentação interna, como em sua relação com outros Estados.540
Se a fonte histórica e originária daquele preceito humanitário foi a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, da Revolução Francesa de 1789,541 a partir de 1948
surge um novo marco de direito internacional como fonte próxima da presunção de
inocência para a humanidade: a Declaração Universal dos Direitos do Homem. Preceito
internacional que se tornou fonte vinculativa dos direitos internos dos países
subscritores,542 vinculação inexistente em sua forma revolucionária precursora de 1789, e
muito mais afeito às necessidades de nosso tempo e às realidades dos Estados
contemporâneos.
A presunção de inocência deixa, portanto, de ter como referência internacional a
construção iluminista dos pensadores do século XVIII, muitas vezes tomada como
idealista e abstrata, para ter nos Tratados de Direitos Humanos do pós-guerra, todos
decorrentes daquela Declaração Universal, a origem mais moderna e vinculativa a
efetivar e qualificar aquele preceito humanitário como valor básico e universal de todos
os seres humanos, devendo ser incorporado e obedecido por todas as nações como direito
fundamental.

3.3. -Sistema internacional de proteção aos direitos humanos: importância,


extensão e força vinculante

540 Foi inserida a presunção de inocência no art. XI, 1 da Declaração


Universal dos Direitos do Homem, com a seguinte redação: “1. Todo
homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com
a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas
as garantias necessárias à sua defesa”. Nesse sentido, da Declaração
ser um novo marco para a presunção de inocência, v. Alexandra VILELA,
Considerações acerca da presunção de inocência em direito processual
penal, Coimbra: Coimbra, 2000, pp. 53/54.
541 Quanto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão como o

primeiro marco legislativo de inscrição da presunção de inocência, v.


item 1.5 supra.
542 Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 137/138.
A afirmação vinculativa e a defesa dos direitos humanos por uma perspectiva
internacional é fenômeno posterior à 2ª Guerra Mundial, pois – sempre é importante
repisar – as atrocidades perpetradas por vários países contra uma multiplicidade de
indivíduos de diferentes continentes fizeram com que a comunidade internacional
percebesse que a tutela dos direitos do homem não pode ser deixada apenas a critério de
cada Estado, mas, de modo vinculativo, deve ser uma pauta indispensável e impositiva
dos organismos internacionais.543
A fundação da Organização das Nações Unidas – ONU, em 1945, foi um marco
político e institucional para a formação do primeiro organismo internacional com a
preocupação de declarar, induzir um número cada vez maior de Estados à aceitação e,
ainda, arbitrar violações a direitos essenciais a todos seres humanos. Tornando-se, assim,
fonte para o direito interno, nunca antes existente nessas proporções e extensão.544

543 Jorge MIRANDA, Manual de direito constitucional: direitos fundamentais,


3ª ed., Coimbra: Coimbra, 2005, t. IV, pp. 26/27, afirma que, superada a
crença oitocentista de que bastava a existência da Constituição para que
os direitos fundamentais fossem garantidos na realidade interna dos
países, percebeu-se que o Estado, não raras vezes, rompe barreiras
jurídicas e converte-se em um fim em si mesmo, provocando uma crise
interna. Para evitar isso, a comunidade internacional percebeu a
necessidade de instituir vários sistemas de proteção internacional dos
direitos humanos.
544 Nesse sentido, v. Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 130 e ss. Para
referências anteriores à 2ª Guerra Mundial, nascentes no século XIX, v.
Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 52/53. Porém, esse
mesmo autor indica a Declaração Universal dos Direitos do Homem e
todos os demais tratados de direitos humanos dela decorrentes como
uma fase posterior e nunca antes vivida pela humanidade em matéria de
internacionalização dos direitos do homem, qualificando-a como “a
culminância de um processo ético que (...) levou ao reconhecimento da
igualdade essencial de todo o ser humano em sua dignidade de pessoa,
isto é, como fonte de todos os valores, independente das diferenças de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição, como diz em seu artigo
II”.
Inicia-se, assim, a elaboração de um sistema internacional de proteção dos direitos
humanos.545 A inscrição dos direitos humanos em diplomas internacionais inaugura a
última fase evolutiva de sua formação apta a ultrapassar e a vincular os diplomas
nacionais: a fase de positivação internacional. Passadas a primeira fase, de cunho
filosófico e na qual se conceberam os ideais humanitários, e a segunda fase, de inscrição
interna a critério de cada Estado, as atrocidades das Guerras Mundiais da primeira
metade do século XX fizeram com que a humanidade compreendesse a necessidade de
um maior e mais abrangente recrudescimento da proteção daqueles direitos. Inaugurou-
se, assim, a fase da positivação internacional dos direitos humanos e sua universalização
vinculativa.546
Os Estados, portanto, não estão mais totalmente livres para deliberar em seu
ordenamento interno, pois, sem perder e deixar de ter reconhecida sua soberania, devem
se submeter a certos preceitos humanos universais se desejarem se inserir na comunidade
internacional e ter relações políticas e econômicas com as demais nações. Como a
Declaração Universal dos Direitos do Homem não tem força cogente de lei entre os
Estados-membros, os organismos internacionais potencializam sua força jurídica
vinculativa, ao ressaltarem que seu conteúdo já integra os princípios gerais de direito,
pois são preceitos éticos mínimos e por todos reconhecidos como essenciais para proteção
da dignidade humana do cidadão, qualquer que ele seja, em qualquer lugar em que ele
esteja.547 Logo, por constituírem princípios gerais, podem e devem servir de baliza e fonte
aos e nos ordenamentos internos.548
Dessarte, se para se chegar à terceira fase de formação do sistema de proteção
internacional dos direitos humanos foi necessário antes concebê-los filosoficamente
(primeira fase) e extraí-los de tradicionais inscrições de direito interno de alguns países
(segunda fase), agora, alcançado aquele último e terceiro estágio, o vetor se inverte. Os
direitos humanos, já positivados internacionalmente, são direcionados a todos os povos
como parâmetro a todas as suas legislações.

545 Nesse diapasão, Antônio Augusto Cançado TRINDADE, Tratado de


direito internacional dos direitos humanos, 2ª ed., Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2003, v. I, p. 38, chega a defender a existência de
um novo ramo das ciências jurídicas contemporâneas, qual seja, o
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
546 Sobre as três fases de formação dos direitos humanos em nível
internacional, v. Norberto BOBBIO, A era cit., pp. 28/31.
547 Nesse sentido, com pequenas variações argumentativas, v. Flávia
PIOVESAN, Direitos cit., pp. 137/141, e Fábio Konder COMPARATO, A
afirmação cit., pp. 226/228.
548 No Brasil, a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu art. 4º, preceitua:
“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
No interior de cada ordenamento, portanto, os direitos humanos terão mais ou
menos força cogente, conforme tenham maior ou menor hierarquia legal. Para os países
que não se inserem na comunidade internacional de maneira plena, porquanto não
subscrevem e internalizam tratados ou convenções de direitos humanos – hipótese cada
vez mais rara no mundo globalizado atual –, pode-se considerar quase nula a força
vinculativa dos direitos humanos na formação de sua legislação. Em uma outra hipótese,
também pouco numerosa – mas mais comum que a anterior –, tem-se os países que
subscrevem aqueles diplomas internacionais humanitários, mas não os positivam
expressa e internamente, nesse caso as normas de direitos humanos valem como
princípios gerais de direito, sem força legal, mas admissíveis no sistema legal interno
como fontes de direito. De forma diversa das duas anteriores, para uma maioria sempre
crescente de países, não há apenas a subscrição dos direitos humanos nos tratados e
convenções internacionais, mas sua expressa internalização; os direitos humanos,
portanto, adquirem força legal no seu ordenamento interno. Nesse último caso, hipótese
de inscrição interna dos direitos humanos reconhecidos internacionalmente, a maior ou
menor força cogente dentro do ordenamento nacional varia conforme a inserção tenha
se dado em nível constitucional (força cogente máxima), ou infraconstitucional.
Positivados os direitos humanos em nível internacional e verificada sua crescente
incorporação no âmbito de cada nação, a preocupação da comunidade internacional
passou a ser a de garantir-lhes concretude e eficácia transformadora na realidade de cada
Estado-membro.
Em meados da década de sessenta, menos de vinte anos após a edição da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, NORBERTO BOBBIO já enfatizava que esses direitos
não precisavam mais ser concebidos ou inscritos, mas protegidos e efetivados. Afirmava
que o problema dos direitos humanos não era mais filosófico, mas jurídico e, num
sentido mais amplo, político, de proteção e concretização.549
3.3.1. -‘International Bill of Rights’ e Convenção Americana sobre Direitos
Humanos: sistemas global e regional de proteção aos direitos humanos

549 Norberto BOBBIO, A era cit., pp. 23/25.


Na busca de efetiva tutela dos direitos humanos foram elaborados, em 1966, no
âmbito da Organização das Nações Unidas, dois pactos internacionais: o Pacto
Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e o Pacto Internacional sobre
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). Com eles os direitos humanos
tiveram “juridicização”, porquanto estabeleceram “previsões juridicamente vinculantes e
obrigatórias” aos Estados que os ratifiquem ou os incorporem internamente.550
Esses dois Pactos, juntamente com a Declaração Universal dos Direitos do Homem,
formaram a International Bill of Rights (Carta Internacional de Direitos Humanos),
instrumento que significou o primeiro passo para a formação de um sistema global de
proteção aos direitos humanos.551
O Brasil sempre participou ativamente dos debates e trabalhos preparatórios de
formação dos Tratados e Convenções Internacionais de direitos humanos na Organização
das Nações Unidas, não havendo como não se inserir política e juridicamente nessa
tendência mundial.

550 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 225/226 e 277/282,


expõe que tais Pactos foram uma etapa posterior à edição da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, passagem necessária à
criação de mecanismos sancionatórios às violações dos direitos
humanos. A vinculação dos Estados-partes aos direitos humanos
previstos nesses dois Pactos citados e a assunção de compromissos de
cumprimento obrigatório do respeito aos direitos humanos neles
previstos são destacados já em seus preâmbulos e em seus artigos 2º e
3º. Acrescente-se que o Brasil ratificou-os em 24 de janeiro de 1992,
aprovando o PIDCP pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro
de 1991, promulgado pelo Decreto Presidencial nº 592, de 6 de julho de
1992 e, quanto ao PIDESC, ele foi aprovado pelo mesmo Decreto
Legislativo citado, sendo promulgado pelo Decreto Presidencial nº 591,
também de 6 de julho de 1992. Assim, mais que subscrevê-los, o Brasil
já os incorporou internamente em seu ordenamento.
551 Nesse sentido, Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 151/153, indica que
“os instrumentos de proteção geral abarcam o Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, o protocolo Facultativo ao Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos, o Segundo Protocolo Facultativo contra a
Pena de Morte e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais. Os instrumentos de proteção especial abrangem a
Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, a
Convenção Internacional contra a Tortura, a Convenção sobre a
Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção
sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher e a Convenção
sobre os Direitos da Criança, dentre outras”. Antônio Augusto Cançado
TRINDADE, A proteção cit., pp. 29/30, esclarece a necessária integração
entre aquela Declaração Universal e os Pactos Internacionais citados
para a formação da Carta Internacional de Direitos Humanos.
Ao lado daquele sistema global de tutela dos direitos humanos foi elaborado nas
Américas um sistema regional. Nesse âmbito, mantendo sua aceitação e defesa dos
direitos humanos, foi do Brasil a propositura de criação da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, na IX Conferência Internacional Americana, em 1948, na cidade de
Bogotá.552
Todavia, na década de sessenta, pelas dificuldades políticas de estar em pleno regime
militar, o governo brasileiro teve posição vacilante nos trabalhos e encontros
preparatórios para a elaboração da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que
veio a ser aprovada em 1969 e entrou em vigor em 1978, após o depósito da décima
primeira ratificação por um Estado americano.553 O governo brasileiro resistiu a apoiar
um sistema americano de proteção aos direitos humanos, preferindo apoiar um único
sistema global já existente. Nos encontros e trabalhos preparatórios para aquela
Convenção Americana, ocorridos no curso da década de sessenta, a postura política
brasileira não se afastava da defesa intransigente dos direitos humanos, porém resistia a
aderir incondicionalmente a futuro conteúdo material do texto e a se submeter à
hierarquia da Corte Interamericana que se anunciava. A solução de consenso foi uma
participação ativa do Brasil em referida Convenção, atestando sua tradicional postura
pela defesa dos direitos humanos, mas ressalvando sua “eventual adesão” ao texto final e,
também, em aceitar a hierarquia da Corte Interamericana sob o argumento de que
poderia haver conflito com a Constituição Brasileira então vigente.554

552 Antônio Augusto Cançado TRINDADE, A proteção cit., pp. 39/40,


destaca: “Tal proposta fez-se acompanhar de uma clara e elucidativa
‘Exposição de Motivos’, que alertou com clarividência para as possíveis
‘arbitrariedades insuperáveis’, de que era vítima o indivíduo, cometidas
pelas ‘próprias autoridades governamentais’. Na advertência da
Delegação do Brasil, ‘algumas vezes os próprios tribunais, estreitamente
subordinados ao poder executivo opressor, cometem injustiças
evidentes; ou então, o indivíduo se vê privado de acesso aos tribunais
locais. Em tais casos, se se trata realmente de direitos fundamentais,
impõe-se a possibilidade de recorrer a uma jurisdição internacional’; a
proposta do Brasil, que, em suma, acentuava a necessidade da criação
de um tribunal internacional para tornar adequada e eficaz a proteção
jurídica dos direitos humanos internacionalmente reconhecidos, foi
aprovada e adotada como resolução XXI da Conferência de Bogotá de
1968”.
553 Sylvia Helena de Figueiredo STEINER, A Convenção Americana sobre

Direitos Humanos e sua integração ao processo penal, São Paulo:


Revista dos Tribunais, 2000, item 2.4.2.
554 Antônio Augusto Cançado TRINDADE, A proteção cit., pp. 39/49.
A adesão, como pode se perceber de maneira óbvia, não se deu na constância
daquele regime militar brasileiro, mas veio a ocorrer apenas em 1992, após a edição da
atual Constituição da República, datada de outubro de 1988, a qual incorporou em seu
texto, de modo quase literal, todo o rol de direitos da Convenção Americana sobre
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).555
Importante ressaltar, no âmbito do presente estudo, que o direito à presunção de
inocência é reafirmado como primado juspolítico essencial à proteção da dignidade da
pessoa humana em ambas as esferas de proteção internacional (global e regional). Está
inserido tanto no art. 14.2 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,556 quanto
no art. 8.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.557 Logo, na medida em que
o Brasil incorpora ambos os diplomas internacionais humanitários em seu ordenamento
jurídico, também assume a obrigação perante os organismos internacionais de efetivar e
garantir em sua ordem interna, plenamente, dentre outros direitos humanos, a presunção
de inocência.558

555 A ratificação da Convenção Americana pelo Brasil data de 25 de


setembro de 1992 e foi celebrada pelo Decreto Legislativo nº 27 e
promulgada pelo Decreto Presidencial nº 678, de 6 de novembro de
1992.
556 Por decorrência inconteste do artigo XI, 1, da Declaração Universal dos
Direitos do Homem, assim se incorporou, por mais esse instrumento, a
presunção de inocência, no art. 14.2 do PIDCP: “2. Toda pessoa
acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência
enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”
557 O artigo 8º, voltado às garantias judiciais processuais penais, assim
preceitua em seu número 2: “2. Toda pessoa acusada de delito tem
direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove
legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em
plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...)”.
558 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 26/27, assevera, citando o
exemplo brasileiro, russo e português, que é uma característica de
países que tiveram, durante um período de sua história, uma
compressão aos direitos fundamentais, aceitarem, em suas
Constituições, uma fortíssima relação entre o Direito Constitucional e o
Direito Internacional, declarando a aceitação interna da eficácia e da
vinculação dos vários sistemas internacionais de proteção dos direitos
humanos.
Dessa forma, o Brasil assume a obrigação de promover um sistema criminal
centrado no paradigma da presunção de inocência, devendo tomar todas as providências
para que aquele direito humano não seja limitado na prática legislativa, judicial ou
cotidiana dos indivíduos, sob pena de ser sancionado por descumprimento daquele
compromisso internacional.559

3.3.2. -Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana


sobre Direitos Humanos: mecanismos de vinculação dos Estados-partes aos
direitos humanos neles previstos

Tratando-se do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a verificação sobre


a efetiva tutela de seus preceitos pelos Estados-partes se dá por meio de relatórios a serem
entregues para se verificar as providências legislativas, administrativas e judiciárias
adotadas para garantir e expandir a aplicação dos direitos humanos, dentre os quais se
insere a presunção de inocência. Esses relatórios devem ser entregues ao Comitê de
Direitos Humanos da ONU, sempre que ele venha a solicitá-los, por força do estabelecido
na alínea “b” do art. 40.1 do referido Pacto.560

559 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição dirigente e vinculação


do legislador: contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas, 2ª ed., Coimbra: Coimbra, 2001, pp. 363/365, assevera
que o legislador omisso tem responsabilidade pela não efetivação dos
direitos fundamentais, ou seja, quando deixa de exercer o seu mister na
consecução da plenitude daqueles preceitos essenciais ao ser humano.
Nas palavras desse autor: “a problemática dos direitos fundamentais não
se sintetiza hoje na fórmula: ‘a lei apenas no âmbito dos direitos
fundamentais’; exige um complemento; ‘a lei como exigência de
realização dos direitos fundamentais’”. Sobre a dimensão objetiva dos
direitos fundamentais e a necessidade de intensa e efetiva participação
legislativa para sua efetivação, v. item 3.8.2 e seus subitens infra e, para
considerações sobre a inércia legislativa infraconstitucional como uma
das mais significativas violações da presunção de inocência na
atualidade brasileira pós-constitucional, v. item 5.2 infra.
560 Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 156/160. Preceitua o texto do
dispositivo citado: “Artigo 40 – 1. Os Estados-partes no presente Pacto
comprometem-se a submeter relatórios sobre as medidas por eles
adotadas para tornar efetivos os direitos reconhecidos no presente Pacto
e sobre o progresso alcançado no gozo desses direitos: (...) b) a partir de
então, sempre que o Comitê vier a solicitar”.
Além desses relatórios, o Pacto também prevê “comunicações interestatais”, pelas
quais um Estado-parte poderá denunciar as violações cometidas por outro Estado-parte
(art. 41). Há, ainda, uma outra forma de conhecimento de eventuais violações ou de não
providências quanto à implementação dos direitos humanos, que consiste na denúncia
feita direta e pessoalmente pela vítima da ação ou omissão estatais. Nessa última forma
(iniciativa da vítima), porém, para que o Estado-parte seja denunciado é necessário que
ele tenha ratificado o Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos. Como o Brasil ainda não ratificou tal protocolo,561 não é possível uma denúncia
nesses termos ao Comitê de Direitos Humanos da ONU a fim de instá-lo a verificar
eventuais violações ou descumprimentos de suas obrigações.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, por sua vez, com maior poder
vinculante perante seus Estados-partes, tem “um aparato de monitoramento e
implementação dos direitos que ela enuncia” e que é formado pela Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos.562
Diversamente do ocorrente com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
ao se tornar parte daquela Convenção, o Brasil, automaticamente, se obriga à garantia
dos direitos ali consagrados e se sujeita à Comissão Interamericana, cuja principal
atribuição é promover e observar o respeito àquele conteúdo humanitário. Conta, para
isso, com o poder de: fazer recomendações; prescrever adoção de medidas aos Estados-
partes; requerer informações sobre medidas por estes adotadas; examinar comunicações
individuais ou de grupos denunciando violações a qualquer direito previsto naquela
Convenção; e preparar estudos e relatórios das ocorrências na região, apresentando um
relatório anual à Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.563 Caso
reconheça a existência de violação a ela encaminhada, a Comissão deve buscar uma
solução de consenso entre o peticionário e o Estado-parte violador. Caso isso não ocorra,
poderá elaborar recomendações ao Estado-parte e encaminhar o caso à Corte
Interamericana, “órgão jurisdicional desse sistema regional”.564

561 Conferido em 22 de julho de 2009 no sítio


“www.unhchr.ch/pdf/report.pdf”.
562 Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 227/230.
563 Sylvia Helena de Figueiredo STEINER, A Convenção cit., p. 54, e Flávia

PIOVESAN, Direitos cit., pp. 233/237.


564 Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 231/237, e Carlos WEIS, Direitos cit.,

pp. 103/104.
A Corte Interamericana, por sua vez, tem competência consultiva e contenciosa,
sendo que para a submissão do Estado-parte à sua jurisdição é necessário reconhecê-la
expressamente, como feito pelo Brasil em 03 de dezembro de 1998, pelo Decreto
Legislativo nº 89.565 A Corte não aceita denúncias individuais, apenas feitas pela
Comissão ou por Estados.566 A Corte não se constitui em instância recursal de cada
Estado-parte, não a substitui e não integra o Poder Judiciário de nenhuma nação, porém
eventuais decisões que violem os direitos humanos podem a ela ser levados para punição
vinculante e obrigatória ao Estado-parte violador. A Corte, em casos de extrema
gravidade e urgência, ainda tem o poder de determinar medidas provisórias pertinentes
nos casos levados a seu conhecimento para evitar danos irreparáveis, por força do art.
63.2 da Convenção.567

565 Carlos WEIS, Direitos cit., pp. 103/104 e 106/108.


566 Sylvia Helena de Figueiredo STEINER, A Convenção cit., p. 55.
567 Sylvia Helena de Figueiredo STEINER, A Convenção cit., p. 54, e Flávia

PIOVESAN, Direitos cit., pp. 237/250. Esta última autora cita uma
providência provisória e urgente dessa Corte imposta ao Brasil no caso
do Presídio Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, “onde trinta e sete
internos foram brutalmente assassinados entre 1º de janeiro e 5 de junho
de 2002” (op. cit., p. 247 e nota 61).
O Brasil deve, por meio de seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, não
apenas implementar os direitos humanos previstos na Convenção Americana, mas
promover todos os meios e remover todas as barreiras para o seus plenos exercício e
fruição por todos os indivíduos. Não basta ao legislador pátrio, portanto, não elaborar
normas que os limitem, mas deve, se necessário,568 remodelar o sistema normativo e
fornecer organização institucional de modo a efetivar em sua plenitude os direitos
fundamentais nele incorporados e postos como metas de consecução juspolítica.569

568 Como já se demonstrou (item 2.5.2 supra) e está melhor desenvolvido


em termos de teoria dos direitos fundamentais no item 3.8.2 infra,
tratando-se da presunção de inocência há evidente necessidade de se
elaborar um novo sistema processual penal estruturado sobre tal direito,
uma vez que nosso atual código processual penal foi forjado de maneira
a rejeitá-lo. Sobre a inércia legislativa como violação da presunção de
inocência, v. item 5.2 infra.
569 Sobre essa necessidade de uma postura ativa e transformadora do
legislador brasileiro para implementar o definido na Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, veja-se o texto legal do Decreto
678/92: “(...) Considerando que a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) entrou em vigor, para o
Brasil, em 25 de setembro de 1992, de conformidade com o disposto no
segundo parágrafo de seu art. 74; decreta: art. 1º A Convenção
Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),
celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969,
apensa por cópia ao presente decreto, deverá ser cumprida tão
inteiramente como nela se contém. (...) art. 3º O presente decreto entra
em vigor na data de sua publicação” - grifamos. Publicação ocorrida no
Diário Oficial da União de 09 de novembro de 1992. André de Carvalho
RAMOS, Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional, Rio
de Janeiro: Renovar, 2005, p. 227, afirma que a Corte Interamericana de
Direitos Humanos decidiu, no Parecer Consultivo 07/86, que a
Convenção Americana é “auto-aplicável”. Destaca o autor que: “Uma vez
em vigor a Convenção, os direitos protegidos devem ser aplicados
perante todos os órgãos estatais (tribunais inclusive), sem que haja
ainda a necessidade de novas leis ou atos de aplicação dos citados
direitos. Para a Corte, a correta interpretação do artigo 1º (obrigação de
respeitar e garantir) e do artigo 2º (dever de adotar as medidas cabíveis)
da Convenção Americana de Direitos Humanos consiste em reconhecer
que o artigo 2º introduz obrigação apenas complementar à imediata
obrigação internacional de respeitar e garantir diretamente os direitos
reconhecidos pela Convenção”.
Não obstante os sistemas internacionais de controle e proteção dos direitos humanos
terem recente formação570 e, ainda, pouca jurisprudência,571 não se pode negar que
representam uma significativa força vinculativa e coercitiva para que os Estados
assumam uma postura irreversível e não acomodada na preservação dos direitos
humanos, notadamente os incorporados por eles como direitos em seus ordenamentos
normativos internos.
Essa pauta elaborada pela comunidade internacional e que ela vem, atualmente, por
meio de maior ou menor eficácia vinculativa, impondo às nações, fornece todo o
contexto internacional garantidor para a efetivação plena da presunção de inocência no
direito brasileiro, sob pena de nosso Estado ser colocado à margem do progresso
humanitário, pelo anacronismo de seu sistema processual penal.

3.4. -Atual Constituição da República e a inserção dos direitos humanos


internacionalmente consagrados

Nossa atual Constituição da República veio pôr cobro ao mais longo período de
expressa e imposta privação das liberdades e das garantias essenciais ao cidadão, iniciado
com o golpe militar de 1964. Durante sua constância, foram vários os atos
governamentais a atingir todos os Poderes da República, sempre com o fito de retirar-
lhes qualquer sopro democrático e, de um modo geral, impedi-los de pensar ou agir de
modo contrário aos ditames impostos pelos então ocupantes do poder.
O Congresso, quando não teve seus trabalhos suspensos provisoriamente,572 era
manietado. Ao Supremo Tribunal Federal foi imposta a aposentadoria de alguns de seus
Ministros, em clara alusão, aos que ficaram e também aos demais integrantes do Poder
Judiciário, de como estavam limitados e como deveriam se orientar para aplicar e para
interpretar a Constituição. A Constituição de 1946 foi pronta e apropriadamente mudada
para outra mais conveniente aos desígnios dos detentores do poder, emergindo a Carta de
1967 e Atos Institucionais que recrudesciam ainda mais o sistema juspolítico.
Enfim, nossa atual Constituição teve uma dupla missão, qual seja: por fim ao
autoritarismo e àquele regime juspolítico antidemocrático e, outrossim, reinserir a nação
brasileira no cenário mundial da segunda metade do século XX; o qual primava pela
revalorização do ser humano em suas liberdades e conquistas sociopolíticas.

570 Sobre esse ponto, v. observações esperançosas e críticas construtivas


de Antônio Augusto Cançado TRINDADE, A proteção cit., pp. 137/140.
571 Confira-se para consulta de jurisprudência da Corte Interamericana no

endereço www.cidh.oas.org.
572 Para demonstrar que o regime autoritário militar tentou mostrar sua força

autoritária até seus estertores, pode-se citar o “pacote” de 29 de abril de


1977, editado pelo então Presidente Geisel, pelo qual se determinou,
entre outras medidas, o recesso do Congresso Nacional por meio de seu
fechamento provisório.
Essa missão dúplice pôde ser concretizada por uma via comum, qual seja, a
incorporação da plêiade de direitos humanos consagrados internacionalmente no
ordenamento legal interno. Para tanto, eles foram inscritos na categoria dos direitos e
garantias fundamentais do cidadão (Título II da Constituição da República). Contudo,
para se compreender melhor o que representou e deve representar tal inserção, veja-se
um breve aceno dos instantes juspolíticos internos vividos pela nação e que antecederam
à edição da atual Constituição da República.

3.4.1. -Revolução Militar de 1964 como antecedente político interno motivador


da incorporação dos direitos humanos pela atual Constituição

Para uma coerência da linha expositiva do presente trabalho, não se pode deixar de
traçar um paralelo entre os regimes políticos autoritários de alguns países europeus na
primeira metade do século XX – no período das duas Grandes Guerras Mundiais – e o
regime militar instituído no Brasil a partir da revolução militar de 1964. Muito embora as
razões que determinaram os regimes autoritários europeus tenham sido diversas das
razões determinantes das “repúblicas militares” na América Latina, não se pode deixar de
extrair um ponto comum entre os dois períodos, qual seja, o cerceamento (total ou
parcial) dos direitos e das garantias do cidadão em prol de uma imposição da vontade
uníssona e arbitrária dos ocupantes do poder.
Esse ponto comum é essencial para se compreender o perfil humanitário da nossa
atual Constituição da República, pois esse perfil se explica a partir daquela redução de
liberdades individuais em paralelo com o encaminhamento mundial em busca de uma
revalorização do ser humano como centro das preocupações dos Estados.
No plano interno brasileiro após os primeiros instantes do Golpe Militar de 1964,
como sempre acontece para instauração de um novo regime político, foi necessária a
edição de uma nova Carta Constitucional que pudesse, a um só tempo, aparentemente
legitimar um governo de exceção e definir, ao menos em nível formal, as novas balizas
juspolíticas impostas ao povo brasileiro. Veio a lume a Constituição de 1967 e,
sucessivamente, cinco Atos Institucionais destinados a correções de rota na busca de uma
maior restrição, necessária para espancar determinados focos de resistência àquele
regime autoritário.
O Golpe Militar de 1964, como é comum a regimes autoritários, surgiu legitimado
sob o pretexto de garantir as instituições democráticas ao povo brasileiro, induzindo-o a
acreditar que aquele paternalismo de exceção seria passageiro e de transição. Ledo
engano, não vinha para ser transitório. Assim como todo regime autoritário, que promete
retirar dos cidadãos os seus mais elementares direitos para “salvá-los” de um mal
iminente (violência urbana, inimigo de estado, ou perigo institucional), ele não foi
passageiro, mas oportunista, com declarada tendência de se perpetuar no poder.
Os detentores do poder alegavam que os “progressos democráticos” por eles
instaurados sempre poderiam ser revertidos e, portanto, tornavam-se necessárias
mudanças e reformas constantes para garantir a longevidade da democracia por eles
instaurada. Veio o AI 1 (Ato Institucional nº 1), por obra de Francisco Campos, para
garantir que a revolução militar permanecesse pelo tempo necessário para que o processo
por eles instaurados fosse irreversível.573
Foram necessárias mais de duas décadas de intensa violência contra os cidadãos e as
instituições democráticas, de falta de liberdade e crescente controle ideológico, para que
os argumentos revolucionários se revelassem falsos e falaciosos. Foi necessário se
conhecer a “democracia dos arbitrários” para se perceber que a verdadeira democracia
não é um receituário fundado na falta de liberdade aliada a um pensamento diretivo
intransigente. Foi necessário se perderem várias vidas e as liberdades humanas mais
essenciais para se perceber que a verdadeira democracia não é um produto final perfeito,
mas um meio aberto e de busca coletiva por um processo constante e livre de realização
do ser humano.
A atual Constituição brasileira foi projetada, elaborada e promulgada no contexto
dos anseios de liberdade e redemocratização nacionais e em plena ascensão e consagração
internacional da proteção dos direitos humanos. Se as várias lutas de resistência interna
compunham os motivos mais fortes e próximos da população, os paradigmas
humanitários fixados pelos organismos internacionais deram o esteio e o direcionamento
necessário para o Brasil estabelecer uma nova ordem juspolítica.
Para tal desiderato atingir sua plenitude, era necessária a convocação de uma
Assembléia Nacional Constituinte, pois a redação de uma nova Carta Política era a única
forma de fixar, com a hierarquia legal necessária, quais eram os novos pressupostos,
objetivos, meios e princípios desejados para a nação brasileira. Somente em nível
constitucional se poderia implementar de forma cogente os novos padrões políticos,
sociais, econômicos e jurídicos.

573 Mais uma vez o pensamento e a ideologia de Francisco Campos


produziram efeitos autoritários no Brasil, ele que ao ser Ministro da
Justiça de Getúlio Vargas, em pleno Estado Novo, transformara o Código
de Processo Penal italiano e fascista de Alfredo Rocco em nosso,
infelizmente ainda atual, código de processo penal. Sobre o tema do
paralelismo entre os códigos, v. item 2.5 supra. Sobre o tema dos vários
atos institucionais do regime militar e seus reflexos na restrição de
liberdades no Brasil, v. Paulo BONAVIDES e Paes de ANDRADE,
História constitucional do Brasil, 3ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1991, pp. 429/431.
Foi convocada uma Assembléia Nacional Constituinte em 1º de fevereiro de 1987,
iniciando-se um longo e profundo debate juspolítico, com a interferência de várias
correntes ideológicas, políticas e econômicas, vários grupos sociais e profissionais
participaram e foram consultados, o Brasil iniciava a formação dos novos esteios para a
nação.574
Ficou claro, portanto, que a nova Constituinte instalada tinha o dever de romper de
maneira marcante e significativa com os paradigmas autoritários anteriores, notadamente
com a perspectiva de que o Estado e a sua defesa eram mais importantes que o respeito ao
cidadão. Deveria haver uma revalorização do cidadão frente ao Estado e uma refundação
de meios para sua ampla participação nos destinos da nação. Como referência bastante
eloqüente dessa ruptura determinada ao e pelo constituinte pode-se ver o “preâmbulo”
da Constituição, pórtico que anuncia as diretrizes com que a Carta Política foi escrita.
O preâmbulo excede a uma função meramente formal ou de pompa introdutória da
Carta Política, exerce verdadeira função e justificação político-constitucional de invocar
e enunciar as “idéias mestras que presidem à nova lei fundamental”.575 Em nossa atual
Constituição, ele trouxe os desígnios impostos aos constituintes pelo povo para que não
traíssem, por omissão ou excesso, o poder a eles conferidos. Sobre a consciência dos
legisladores constituintes de colocar o povo brasileiro no centro do poder, afastando a
idéia de que o poder devesse estar acima dos cidadãos, veja-se as primeiras palavras do
texto de nosso preâmbulo: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em
Assembléia Nacional Constituinte...”.

574 Para uma visão panorâmica sobre as dificuldades, conflitos e forças


determinantes e atuantes na elaboração da atual Constituição, v. Paulo
BONAVIDES e Paes de ANDRADE, História cit., pp. 451/469.
575 José Joaquim Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição da
República Portuguesa anotada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
v. I, p. 180.
Cada palavra e expressão utilizadas no preâmbulo devem ter seu valor semântico e
político vivificado, e devem ser lidas como se fossem forjadas pela primeira vez. Sua
função de portadora dos desígnios determinantes e sua posição de pórtico de uma nova
ordem constitucional lhe garantem o poder de transformar e fundar o novo, com isso as
palavras adquirem um peso semântico e uma força política sem igual.576 Nesse sentido, o
constituinte de 1987 bem sabia qual era a finalidade para a qual estava sendo convocado
pelo povo brasileiro: “... para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o
exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, (...)”.577
Como se percebe, já em suas primeiras palavras, a Constituição consagra e inter-
relaciona aqueles ideais já destacados de “democracia”, “direitos do homem” e “paz”, tão
essenciais para o desenvolvimento humano.578
Ao se notar que essa Assembléia Nacional Constituinte foi convocada ao final de um
regime de exceção, bem se percebe – pelas palavras antes destacadas – a profunda ruptura
realizada e o importante papel que o ser humano passou a ocupar nos novos lindes
constitucionais em relação ao Estado. O Estado sai do centro do poder, passando o
indivíduo para essa posição; o Estado não é mais fim, mas meio de realização do
indivíduo, daí por que ele deve “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”,
além das demais essencialidades humanas descritas no preâmbulo constitucional.
A partir desse ponto inicial, todos os tópicos da nossa Constituição são
especificações, mais ou menos pormenorizadas, da realização daquele anseio de
superação de qualquer espécie de autoritarismo e da construção de um Estado
democrático e garantidor dos direitos sociais e individuais do ser humano.

3.5. -Estado democrático de direito e dignidade da pessoa humana como


fundamento da Constituição

576 Jorge MIRANDA, Manual de direito constitucional: Constituição, 4ª ed.,


Coimbra: Coimbra, 2000, t. II, p. 239, assevera que o “alcance político
literário do preâmbulo é evidente em qualquer Constituição. Ele reflecte a
opinião pública ou o projeto de que a Constituição retira a sua força;
mais do que no articulado as palavras adquirem aqui todo o seu valor
semântico e a linguagem todo o seu poder simbólico”. No mesmo
sentido, v. Walter Claudius ROTHENBURG, Princípios constitucionais,
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 74.
577 Trecho destacado do Preâmbulo da Constituição.
578 V. item 3.2 supra e Norberto BOBBIO, A era cit., p. 1.
O Título I de nossa atual Constituição vem nomeado como “Princípios
Fundamentais” e se compõe de quatro artigos. Esses princípios são os fundamentos para a
Constituição. Estabelecem o conteúdo, as diretrizes e as finalidades além das quais o
legislador (constitucional ou infraconstitucional) não pode ir, sob pena de transgressão, e
não pode ficar aquém, sob pena de omissão; ambas hipóteses de descumprimento da
ordem constitucional.579
No caput do seu artigo 1º, a Constituição afirma nossa República como um Estado
Democrático de Direito fundado – ao que importa destacar no presente estudo – na
dignidade da pessoa humana (inciso III). Tal fundamento, assim como os demais
constantes do citado artigo primeiro, está dirigido à consecução de objetivos também
fundamentais (artigo 3º), dentre os quais se destacam – limitando-se, mais uma vez, ao
que importa ao presente trabalho –: “construir uma sociedade livre, justa e solidária”
(inciso I) e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV). Ainda naquele Título I,
demonstrando ter absorvido e introjetado os influxos recebidos dos organismos
internacionais de direitos humanos, o Brasil se compromete com as demais nações a dar
prevalência aos direitos humanos (art. 4º, inciso II).
Os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e do Estado
Democrático de Direito, de acentuada relevância no presente estudo, constituem
diretrizes estruturais e axiológicas que não apenas determinaram a inscrição dos vários
direitos fundamentais na Constituição da República, mas continuam a ser valores a guiar
todo o trabalho hermenêutico do legislador, do administrador público, do julgador e de
todos os cidadãos em suas relações privadas.580

3.5.1. Estado Democrático de Direito: algumas considerações

579 Para José Afonso da SILVA, Curso de direito constitucional positivo, 29ª
ed., São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 92/93, esses princípios
fundamentais são denominados princípios político-constitucionais,
representando, portanto, escolhas políticas conformadoras de toda a
Constituição.
580 Ingo Wolfgang SARLET, Algumas notas em torno da relação entre o
princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais na
ordem constitucional brasileira, in George Salomão LEITE (org.), Dos
princípios constitucionais: considerações em torno das normas
principiológicas da Constituição, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 223, ao
analisar como a positivação da dignidade da pessoa humana, como
princípio constitucional fundamental, relaciona-se com os direitos
fundamentais, bem destaca a “função instrumental integradora” e a
“função hermenêutica” daquele princípio não só para esses direitos, mas
para todo o ordenamento jurídico.
Nesse item não se procurará exaurir toda a extensão que o “conceito-chave”581 de
Estado Democrático de Direito tem para a nossa Constituição. O presente estudo não se
dirige ou comporta tarefa por demais extensa e merecedora de trabalho específico. A
preocupação está em se mostrar o que caracteriza um regime político desses moldes, sua
relação com os direitos fundamentais e, principalmente, o papel de cada instituição e
instituto, assim como dos cidadãos em geral, na construção de um Estado com aquele
perfil.
Para isso é necessário partir da visão de que o Brasil é uma República e, com isso,
fixar-se que o poder, em sua acepção mais larga, advém do povo e não da força militar, de
linhas hereditárias ou por escolha divina. Em nossa República, conforme preceitua o
parágrafo único do art. 1º da Constituição, “todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de seus representantes eleitos diretamente, nos termos dessa Constituição”.
Logo, há uma soberania popular que se faz presente através dos procedimentos por ela
escolhidos para ser representada.582
Nessa perspectiva de soberania popular no ápice do poder, a determinação de que o
Brasil seja um Estado Democrático de Direito garante que a nação seja guiada não por
homens, mas por leis (Estado de Direito) soberanamente escolhidas pelo povo, o que lhe
confere o atributo “democrático”.

581 Sobre a extensão do Estado de Direito Democrático e sobre ser ele um


“conceito-chave” para a Constituição Portuguesa, v. José Joaquim
Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição cit., p. 204, item III.
582 Para uma análise da soberania popular como um dos pontos mais
relevantes de um regime republicano, e o reflexo disso para o sistema
constitucional, v. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Coimbra: Almedina,
2002, pp. 224/228.
No atual estágio da ciência do direito constitucional, a fórmula eleita por nosso
constituinte mostra-se a ideal, pois, além de exceder tanto ao conceito de Estado de
Direito quanto ao de Estado Democrático, extrai de ambas as fórmulas o que apresentam
de melhor.583 Houve na história humana Estados de Direito profundamente violadores
das mais elementares garantias humanas (v.g. o regime nazista); assim como também
houve Estados Democráticos (no sentido clássico de governo representativo, no qual a
maioria decide os destinos) que, por não possuírem limites legais à atuação dos seus
líderes tornavam-se autoritários, porquanto entendiam que em nome do povo, do
público ou do estatal poderiam violar a vida e os interesses privados, particulares ou
individuais (v.g. muitos Estados comunistas).584
Nesse contexto, em um Estado Democrático de Direito não há um governo dos
homens (mesmo estando em maioria) ou de qualquer lei, mas de supremacia das leis tidas
pela população como as mais relevantes para sua pacífica convivência em busca da
felicidade. Essas leis, soberanamente escolhidas e limitadoras da atuação ou do poder do
homem, mesmo em eventual ou momentânea maioria, são as leis postas a nível
constitucional e, de modo mais especial, os direitos fundamentais consagrados nesse
nível hierárquico.

583 José Afonso da SILVA, Curso cit., p. 119, é claro em apontar em que o
Estado Democrático de Direito excede os outros dois conceitos: “A
configuração do ‘Estado Democrático de Direito’ não significa apenas
unir formalmente os conceitos de Estado Democrático e Estado de
Direito. Consiste, na verdade, na criação de um conceito novo, que leva
em conta os conceitos dos elementos componentes, mas os supera na
medida em que incorpora um componente revolucionário de
transformação do ‘status quo’”.
584 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 27/30, expõe uma crítica ao
retrocesso, em matéria de direito fundamental, ocorrido no interior dos
regimes soviético, fascista e autoritário, não obstante fossem de “direito”,
e, ainda, em muitos outros regimes atuais, de diferentes tendências, da
Ásia e da África.
O Estado Democrático de Direito é a formula empregada a fim de haver uma
perfeita interação entre dois “princípios substantivos – o da soberania do povo e o dos
direitos fundamentais – e a mediatização dos princípios adjetivos da constitucionalidade
e da legalidade. Numa postura extrema de irrestrito domínio da maioria, o princípio
democrático poderia acarretar a violação do conteúdo essencial de direitos fundamentais;
assim como, levado aos últimos corolários, o princípio da liberdade poderia recusar
qualquer decisão política sobre sua modelação; o equilíbrio obtém-se através do esforço
de conjugação, constantemente renovado e actualizado, de princípios, valores e
interesses, bem como através de uma complexa articulação de órgãos políticos e
jurisdicionais, com gradações conhecidas”.585

585 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, p. 211. Nesse mesmo sentido, a favor
da vinculação efetiva e irrestrita do legislador às normas de direitos
fundamentais positivadas como forma de evitar que maiorias
parlamentares eventuais descumpram-nos, v. Martin BOROWSKI, La
estructura de los derechos fundamentales, tradução de Carlos Bernal
Pulido, Bogotá: Universidad Externato de Colombia, Série de Teoría
Jurídica y Filosofía del derecho nº 25, 2003, pp. 36/37 e 85. Comentando
o sistema italiano, que também possui tanto a concepção “democrática”
como a “de direito”, Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione: Teoria del
garantismo penale, 3ª ed., Bari: Laterza, 1996, item 57 A) 2, pp. 898/901,
em tradução livre: “É supérfluo recordar que o estado moderno nasceu
historicamente como estado de direito, antes de nascer como estado
democrático; como monarquia constitucional e não como democracia
representativa. Mais exatamente, nasceu como estado de direito limitado
por vedações (ou deveres negativos de não fazer) e ainda vinculado a
obrigações (ou deveres positivos de fazer). (...) mas também
axiologicamente, e não só cronologicamente, a limitação legal do poder
soberano precede a sua fundamentação democrático-representativa. A
primeira regra, de todo pacto constitucional sobre convivência civil não é
de fato que sobre tudo se deve decidir por maioria, mas que não se pode
decidir sobre tudo (ou não decidir), nem mesmo pela maioria. Nenhuma
maioria pode decidir a supressão (ou não decidir a proteção) de uma
minoria ou de um único cidadão. Sob este aspecto o estado de direito,
entendido como sistema de limites substanciais impostos legalmente aos
poderes públicos para a garantia dos direitos fundamentais, se contrapõe
ao estado absoluto, seja ele autocrático ou democrático. Também a
democracia política mais perfeita, representativa ou direta, é de fato um
regime absoluto e totalitário se o poder do povo é nela ilimitado. As suas
regras são, sem dúvida, as melhores para determinar quem pode decidir
e como deve decidir, mas não são suficientes para legitimar qualquer
decisão ou não decisão. Nem por unanimidade um povo pode decidir (ou
consentir que se decida) que um homem morra ou seja privado sem
culpa de sua liberdade, que pense ou escreva ou não pense ou não
escreva de um dado modo, que não se reúna ou não se associe com
outros, que se case ou que não se case com dada pessoa ou fique com
3.5.1.1. (segue): o cidadão como sujeito de deveres

O Estado Democrático de Direito também representa, como fórmula política, uma


superação da dialética entre Estado Liberal e Estado Social,586 pois, tem como
compromisso a “harmonização de interesses que se situam em três esferas fundamentais:
a ‘esfera pública’, ocupada pelo Estado; a ‘esfera privada’, em que se situa o indivíduo, e
um segmento intermediário, a ‘esfera coletiva’, em que se tem os interesses de indivíduos
enquanto membros de determinados grupos, formados para a consecução de objetivos
econômicos, políticos, culturais ou outros”.587 Há, pois, uma convicção, que vai se
generalizando na doutrina constitucional brasileira, mercê da plêiade de direitos
fundamentais sociais e liberais incorporados na Carta Constitucional, que o Brasil é, em
essência, um Estado Democrático e Social de Direito.588
Nesse perfil juspolítico, a participação popular para a garantia de uma fórmula
política não pode se limitar à escolha do que deve ou não ser assegurado (direitos),
esperando com isso que o conteúdo e finalidade da norma se auto-realizem ou sejam
efetivados por ente (público ou privado) diverso do cidadão, porquanto este último lhe é,
a um só tempo, o determinador e o titular. Inscrever na lei os aspectos da vida cotidiana
que o indivíduo quer ver protegidos e efetivados não lhe encerra a missão constitucional
de cidadão. A cidadania, outro fundamento de todo o ordenamento brasileiro (art. 1º,
inciso II, CR), exige que cada integrante (público ou privado) da nação brasileira assuma
os deveres e responsabilidades pelas escolhas feitas democraticamente e, dentre essas
responsabilidades, está a promoção, realização e respeito daquelas escolhas.

ela indissoluvelmente ligado, que tenha ou não tenha filhos, que faça ou
não faça determinado trabalho, ou outras coisas semelhantes. A garantia
desses direitos vitais é a condição indispensável da convivência pacífica.
Por isso a sua lesão por parte do Estado justifica não simplesmente a
crítica ou o dissenso, como para as questões não vitais sobre as coisas
vale a regra da maioria, mas a resistência à opressão, até à guerra civil.
‘Sobre questões de resistência’, se disse, ‘não se deixa pôr à minoria’”.
586 Nesse sentido, v. José Afonso da SILVA, Curso cit., pp. 119/120.
587 Willis Santiago GUERRA FILHO, Processo constitucional e direitos

fundamentais, 4ª ed., São Paulo: RCS, 2005, p. 24.


588 Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia dos direitos fundamentais, 7ª ed.,

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 69/74, com farta referência
bibliográfica nacional e estrangeira.
O nomen juris do Capítulo I do Título II da Constituição da República relembra a
todos que nos dispositivos nele inseridos há “direitos e deveres individuais e coletivos”
(grifamos). Os deveres, naturalmente, decorrem dos direitos “na medida em que cada
titular de direitos individuais tem o dever de reconhecer e respeitar igual direito do
outro, bem como o dever de comportar-se, nas relações inter-humanas, com postura
democrática, compreendendo que a dignidade da pessoa humana do próximo deve ser
exaltada como a sua própria”.589 Se o Estado Democrático de Direito é uma garantia aos
cidadãos, são estes, em suas atuações (públicas ou privadas), os grandes responsáveis por
sua efetivação em cada aspecto de seu conteúdo político-estrutural. Os direitos
fundamentais, para serem efetivados, dependem da atuação cotidiana dos agentes
privados (individuais ou coletivos) e dos agentes públicos (individuais ou institucionais).
Há, no Brasil, um vezo em se transferir responsabilidades pela não efetivação dos
dispositivos constitucionais. Isso ocorre, com freqüência, pelos agentes privados
(individuais ou coletivos) que, desconsiderando sua importante atuação privada na
realização dos ideais constitucionais, entendem que todas as escolhas por eles feitas no
texto legal ou devem ser efetivadas pelo Estado, ou sua não realização é culpa da falta ou
da insuficiência de leis. Agindo nessa “terceirização” ao “outro” de “suas”
responsabilidades, os cidadãos negam – não vendo ou fingindo não ver – um meio
relevante para a realização dos desígnios legais (constitucionais e infraconstitucionais),
qual seja, a sua atuação cotidiana. A atuação dos indivíduos, no exercício diário da
cidadania, é uma das formas mais importantes de transformar os preceitos
constitucionais de “law in the books” para uma “law in action”, para uma “living
constitution”.590

589 José Afonso da SILVA, Curso cit., p. 196.


590 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., pp. 1146/1147, não
apenas destaca a iniciativa dos cidadãos como importante para tornar os
preceitos constitucionais uma realidade prática, mas a coloca ao lado
dos processos judiciais, dos procedimentos eleitorais e legislativos.
Esses três últimos, ao lado da atuação administrativa, são comumente
tidos como os meios mais, se não os únicos, indicados pelos agentes
privados brasileiros como os responsáveis para a realização dos direitos
e deveres que deveriam competir a todos. Willis Santiago GUERRA
FILHO, Processo cit., p. 17, assevera que a Constituição “se apresenta
como um ‘programa de ação’ a ser partilhado por todo o integrante da
comunidade política, e por isso, responsável a um só tempo pela sua
mobilidade e estabilidade”.
Analisando-se a “fórmula política” do Estado Democrático de Direito em face dos
direitos fundamentais,591 não se pode deixar de perceber um profundo nexo de
“interdependência genética e funcional” entre ambos, pois os direitos fundamentais
reconhecidos no texto constitucional impõem um gama de valores básicos a serem
respeitados e efetivados.592 Fixados na Constituição, condicionam não apenas toda a
aplicação e a interpretação dos vários dispositivos nela contidos, mas se tornam normas
conformadoras de toda a legislação infraconstitucional. São melhores especificações, um
melhor detalhamento, do que se deve entender como Estado Democrático de Direito e,
por meio de suas efetivações, realizam este princípio fundamental.
Quando um Estado Democrático de Direito inscreve, em nível constitucional, um
conjunto de direitos fundamentais, das mais variadas naturezas (liberais, sociais,
coletivos, etc.), está deixando claro não apenas seu perfil juspolítico, mas impondo
valores essenciais a toda e qualquer ação (pública ou privada) sob seu auspício.593
Disso se podem extrair duas conseqüências relevantes para o presente estudo: a
primeira, que aos direitos fundamentais não se pode agregar apenas uma visão
individualista, como se fossem o antípoda do coletivo ou do social; a segunda, que
aqueles direitos essenciais não têm no cidadão apenas um de seus destinatários, mas
também seu mais relevante promotor e garantidor. Em síntese, os direitos fundamentais
não são óbices individualistas à consecução estatal do bem comum e não são efetivados
exclusivamente por atos do Estado, necessitando também da atuação de cada cidadão em
suas relações privadas.
Não obstante o acima exposto valha para todos os direitos fundamentais, pode-se
dirigi-lo aos direitos fundamentais destinados à tutela penal e processual penal do
cidadão, dentre os quais se encontra a presunção de inocência. Ao assim agir, resolve-se
um apenas aparente, não obstante recorrente, paradoxo racional de muitos membros da
sociedade atual: como pode o Estado ser garantidor desses direitos fundamentais se são
eles que impedem (ou retardam) a realização da punição aos infratores?

591 Sobre o conteúdo dos direitos fundamentais e a sua diferença, para


muitos doutrinadores, com os direitos humanos, v. item 3.6 infra.
592 Antonio E. PEREZ LUÑO, Los derechos fundamentales, 3ª ed, Madrid:
Editorial Tecnos, 1988, pp. 19/21, não obstante trate referida
interdependência entre direitos fundamentais e Estado de Direito, usa
argumentos de todo aplicáveis ao Estado Democrático de Direito, na
medida em que se explicitou ser este programa político continente do
qual aquele (Estado de Direito) é conteúdo, notadamente no aspecto
referido pelo constitucionalista espanhol.
593 Por essa razão, observada a gama significativa de direitos fundamentais
de segunda geração (direitos sociais) na Constituição, é que se vem
afirmando que o Brasil é, materialmente, um Estado Democrático e
Social de Direito. Sobre o fato do Estado ser mais liberal ou social
dependendo do perfil dos direitos fundamentais por ele assegurados em
nível constitucional, v. Antonio E. PEREZ LUÑO, Los derechos cit., pp.
19/20.
Esse paradoxo é apenas aparente porquanto mesmo os direitos fundamentais penais
e processuais penais não são direitos contrários aos interesses sociais, mas valores básicos,
historicamente consagrados e relevantes para se evitar o retorno às barbáries estatais
contra os cidadãos submetidos à persecução penal. Os direitos fundamentais dirigidos ao
processo penal são uma conquista da humanidade e uma demonstração de que o ser
humano é um valor supremo contra o qual o Estado não pode dirigir atos arbitrários e
sem balizamentos, mas deve fazê-lo respeitando limites e formas legítimas e eficazes
para: investigar sem desrespeitar, acusar sem humilhar e julgar com oportunidades.594
Retomando a idéia já acima exposta, a comunidade (nacional e internacional) não
pode esquecer todas as dores sofridas e violências para com ela perpetradas e, com isso,
abrir mão de direitos tão dolorosamente conquistados pela humanidade.595 Assim, na
medida em que o Estado Democrático de Direito brasileiro inseriu aqueles direitos no
texto constitucional, afirmou, em conformidade com a comunidade internacional, à qual
deve fidelidade,596 que a arbitrariedade e a violência não são valores aceitos como meios
legítimos de solucionar controvérsias penais. Para além e acima disso, a inserção daquela
categoria de direitos fundamentais assegura que o ser humano a ser julgado é aquele
integrante da comunidade política, que escolheu e votou as leis e, portanto, é um de nós,
e nós podemos nos tornar imputados, no sentido de que todos somos iguais e sujeitos a
sermos submetidos a uma persecução penal. Enfim, o imputado não é o “outro” (inimigo,
opositor político, excluído, religioso ou doente), mas pode ser qualquer um de nós,
integrantes da comunidade, e as leis não são, ou não deveriam ser, feitas para “o outro”,
mas para todos e cada de nós.597

594 Sobre os direitos fundamentais dirigidos à área criminal como direitos de


conteúdo coletivo e também individual, sem contradições ou exclusões,
v. item 3.8.1.1 infra.
595 Sobre o tema, v. tem 3.2 supra.
596 Sobre o tema, v. item 3.3.2 supra.
597 Sobre essa visão igualitária como a base político-filosófica do

pensamento iluminista e como suporte para a inserção juspolítica da


presunção de inocência, v. item 1.5.4.3 supra e 5.3.1 infra.
O exercício da cidadania não pode, portanto, afastar-se desses valores maiores
escolhidos e insculpidos a nível constitucional e, portanto, impostos em todas as atuações
públicas ou privadas. Apesar de ser matéria melhor examinada adiante,598 não se pode
deixar de citar neste passo a aplicação dessas assertivas no âmbito do direito fundamental
à presunção de inocência. Nesse sentido, é deletério à higidez de nosso Estado
Democrático de Direito que o desrespeito desse direito fundamental decorra de ato
estatal (p.ex., prisão provisória sem justificação constitucional, fora da legalidade ou
desproporcional),599 ou de ação de agente privado (p.ex., quando a imprensa ou os
agentes públicos tratam a pessoa, ainda submetida à persecução penal, como verdadeiro
culpado).600
Os valores supremos representados pelos direitos fundamentais são o mínimo
elementar e essencial para o desenvolvimento humano dos seus cidadãos. Como ocorre
em nossa Constituição, formam o âmago irredutível do Estado Democrático de Direito e,
no âmbito formal, constituem-se em cláusulas pétreas não suprimíveis nem mesmo por
força de emenda constitucional.601 Isto significa dizer que, independentemente de
eventual e circunstancial maioria legislativa, não se pode retirar ou de qualquer forma
esvaziar, na esfera legislativa, todo conteúdo daqueles direitos.602
Dessa forma, para que não haja uma negação de vigência e validade fática dos
direitos fundamentais, cabe a uma nação, fundada na proposta juspolítica de um Estado
Democrático de Direito, não apenas garantir sua manutenção normativa mas por eles
zelar através da manutenção e promoção de seu conteúdo essencial. Cabe, portanto, não
apenas manter a norma constitucional insuscetível de supressão, mas, a fim de torná-la
uma verdade ao cidadão, dar-lhe a maior efetividade possível. Não basta, portanto, não
suprimi-la do ordenamento ou não proceder à regulamentação que lhe negue eficácia, é
necessário mais que isso, é imprescindível que se empreendam todos os esforços para lhe
dar a maior extensão prática possível.603

598 Sobre o tema, v. item 3.7 e seus subitens infra.


599 Sobre o tema, v. itens 5.4.1.2.1 e 5.4.2.1, e seus respectivos subitens,
infra.
600 Sobre o tema, v. item 5.5.1.1 infra.
601 Preceitua o art. 60, § 4º, inciso IV, da CR: “A Constituição poderá ser

emendada mediante proposta: (...) § 4º Não será objeto de deliberação a


proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – Os direitos e garantias
individuais”.
602 Sobre as legítimas restrições dos direitos fundamentais, v. item 4.4.3 e

seus subitens infra.


603 Sobre a formação e compreensão do denominado “conteúdo essencial”

da presunção de inocência e que ele, pela aceitação da teoria relativa,


deva ser aplicado na maior medida possível em face das condições
fáticas e jurídicas concretas do caso, v. itens 5.3 a 5.5 e seus subitens
infra.
Na medida em que o Brasil se firmou no cenário mundial como um Estado
Democrático de Direito, afinado com os mais tradicionais direitos humanos consagrados
internacionalmente, tanto que os introjetou em seu sistema constitucional, caberá a ele,
sob pena de sanções e represálias internacionais (políticas, econômicas e jurídicas), não
apenas manter os direitos fundamentais da Constituição, mas regulá-los de modo a tornar
seu conteúdo tanto mais extenso e efetivo quanto for possível.
Esse talvez seja o paradoxo mais perverso dos Estados Democráticos de Direito em
nações de economia emergente ou de modernidade tardia. São os países cuja população
mais precisa da efetivação dos direitos fundamentais, são os que mais dependem de
aparatos públicos para efetivá-los e, ao mesmo tempo, são os mais desprovidos de
recursos (políticos, econômicos, educacionais, sociais, etc.) para torná-los realidade.
A determinação juspolítica de ser o Brasil um Estado Democrático (e Social) de
Direito, portanto, não é uma meta, mas um ponto de partida. É um objetivo e um
princípio fundamental de todo o ordenamento. Não está realizada porque tenha sido
inscrita, mas é um programa de ação aberto e contínuo. Como princípio que é, orienta e
informa o sistema na busca de objetivos representados pelos direitos fundamentais,
produto ainda inacabado dos anseios da humanidade para sua realização plena e pacífica.

3.5.2. Dignidade da pessoa humana

No princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, o que merece


destaque é sua importância política e estrutural a determinar que o cidadão é fonte e
destino dos direitos fundamentais e, também, a definir os processos e os procedimentos
(legislativos, eleitorais, processuais e administrativos) para que o cidadão exerça sua
representação e participação na escolha daqueles direitos. Da dignidade da pessoa
humana o que emerge mais relevante é o direcionamento que ela estabelece, é o
componente teleológico e axiológico que ela impõe ao ordenamento e que vem
representado pelo escopo em se reconhecer, promover e tutelar o respeito do ser humano
em todos os seus aspectos.
Sendo o Estado Democrático de Direito um programa político de ação do Brasil, a
dignidade da pessoa humana lhe dá um critério, um limite e uma finalidade. Por maior
eficientismo, utilitarismo ou funcionalismo que se queira empreender nas ações (públicas
ou privadas), se elas não respeitarem o cidadão em sua integralidade carecerão de
legitimidade e resultarão inconstitucionais por violação direta da “dignidade da pessoa
humana”. Assim, por mais que se queira, como programa de ação sociopolítica, erradicar
a fome, não se pode querer atingir tal desiderato por meio da decretação da morte,
expulsão de pessoas ou vedação delas terem filhos.604 Outro exemplo menos extremado, e
muito mais afeito à área processual penal, é o de que, por mais que seja um bem comum
desvendar crimes, não se poderá torturar pessoas para se atingir esse desvendamento. A
dignidade da pessoa humana é o impedimento constitucional de qualquer ação ou
raciocínio baseado na crença de que “os fins justificam os meios”, “máxima do
maquiavelismo”.

604 Em matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, de 25 de outubro de


2007, caderno Cidades, p. C1, noticiou-se que o governador do Rio de
Janeiro, Sérgio Cabral, afirmou: “A questão da interrupção da gravidez
tem tudo a ver com a violência. Quem diz isso não sou eu, são os
autores do livro ‘Freakonomics’ [Steven Levitt e Stephen J. Dubner]. Eles
mostram que a redução da violência nos EUA na década de 90 está
intrinsecamente ligada à legalização do aborto em 1975 pela Suprema
Corte. Sou favorável ao direito da mulher interromper uma gravidez
indesejada. Sou cristão, católico, mas que visão é essa? Esses atrasos
são muito graves. Não vejo a classe política discutir isso. Fico muito
aflito. Tem tudo a ver com a violência. Você pega o número de filhos por
mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão
sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma
fábrica de produzir marginal. O estado não dá conta. Não tem oferta da
rede pública para que essas meninas possam interromper a gravidez.
Isso é uma maluquice só”. O “argumento de autoridade” invocado pelo
governador para justificar sua posição não poderia ter natureza mais
econômico-utilitária.
A “dignidade da pessoa humana” é a representação constitucional brasileira do
primeiro preceito da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948: “Todos os
homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir uns para com os outros com espírito de fraternidade”. Esse fato
bem demonstra a proximidade entre a nossa Carta Política e os Tratados Internacionais
de Direitos Humanos no desiderato de colocar o ser humano como valor primaz do
Estado brasileiro.605
Sua topologia legal lhe confere hierarquia de princípio fundamental não apenas da
Constituição, mas de todo o ordenamento jurídico e das ações (públicas ou privadas)
reguladas e implementadas sob os auspícios daquele diploma juspolítico.606 Com ele se
afirma, em nível nacional, ser a pessoa humana o princípio e o fim da sociedade, do
Estado e do Direito. A dignidade da pessoa humana eleva o homem à posição de
finalidade última dos programas de ação (pública e privada), e não como meio para a
consecução de algo.607

605 Nesse sentido, v. Flávia PIOVESAN, Direitos humanos e princípio da


dignidade humana, in George Salomão LEITE (org.), Dos princípios
constitucionais: considerações em torno das normas principiológicas da
Constituição, São Paulo: Malheiros, 2003, p. 188. Também Ana Paula de
BARCELLOS, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o
princípio da dignidade da pessoa humana, Rio de Janeiro: Renovar,
2002, pp. 108/109, indica a dignidade da pessoa humana como oposição
ao positivismo dogmático do fascismo e do nazismo nos ordenamentos
internos e externos.
606 Para Flávia PIOVESAN, Direitos cit., p. 192, “o valor da dignidade da
pessoa humana impõe-se como núcleo básico e informador de todo o
ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar
a interpretação e compreensão do sistema constitucional”.
607 Nesse sentido, v. André Ramos TAVARES, Curso de direito
constitucional, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 508/511. Luiz
Vergílio DALLA-ROSA, O direito como garantia: pressupostos de uma
teoria constitucional, Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 71,
afirma que o Direito, mesmo como experiência jurídica, e antes mesmo
da conseqüência científica, tem na pessoa humana o seu valor primeiro
e último.
Essa sua hierarquia constitucional e os fins humanos a que se propõe colocam-na
como um “princípio de valor que está à base do estatuto jurídico dos indivíduos e confere
unidade de sentido ao conjunto dos preceitos relativos aos direitos fundamentais”.608
Coloca-se, portanto, à base axiológica de todos os direitos fundamentais, pois seria um
contra-senso imaginar-se um direito fundamental que não tivesse como causa e
finalidade a completude do ser humano em algum ponto de sua dignidade. Esse princípio
fundamental, portanto, tem necessária e profunda inter-relação com os direitos
fundamentais, havendo apenas variação no grau dessa vinculação. É um “superprincípio”
que compendia a “unidade material da Constituição” e, seja no plano nacional ou
internacional, “unifica e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial
prioridade”.609
INGO WOLFGANG SARLET, lançando-se à dura tarefa de definir o que se deva
entender por dignidade da pessoa humana, delimitando tanto quanto possível e
recomendável seu conteúdo material, entende-a como “a qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato
de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais
mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e
co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos”.610
Por todo o expendido, o princípio da dignidade da pessoa humana coloca-se frente
aos direitos fundamentais do cidadão não apenas como valor básico e informador, mas
como “princípio supremo” a conferir ao catálogo daqueles direitos uma conexão
sistemática e apta a eliminar eventuais lacunas e a indicar uma finalidade comum.611

608 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos fundamentais na


Constituição Portuguesa de 1976, 3ª ed., Coimbra: Almedina, 2006, pp.
101/102. No mesmo sentido, v. André Ramos TAVARES, Curso cit., pp.
517/519.
609 As palavras são de Flávia PIOVESAN, Direitos cit., pp. 193/196, com

lastro nos juristas Paulo Bonavides e Konrad Hesse, respectivamente.


610 Ingo Wolfgang SARLET, Algumas notas cit., pp. 213/214.
611 No sentido do texto e direcionando seus comentários para o sistema

alemão, Konrad HESSE, Elementos de direito constitucional da


República Federal da Alemanha, tradução de Luís Afonso Heck, Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pp. 244/245. José Carlos
Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp. 97/98, coloca a dignidade da
pessoa humana como um princípio de valor que dá unidade e sentido
aos direitos fundamentais. Ana Paula de BARCELLOS, A eficácia cit.,
pp. 110/111, afirma que a dignidade da pessoa humana sempre será
respeitada enquanto os direitos fundamentais forem realizados.
Ao se verificar que a dignidade da pessoa humana, em diferentes graus de
vinculação, se relaciona e orienta o feixe de direitos fundamentais, dentre os quais estão
os sociais e os coletivos, revela-se o equívoco em analisá-la como algo destinado apenas
ao indivíduo e cuja tutela dificulte ou obstaculize os interesses da sociedade.612 A
construção desse equívoco se deve ao encontro de alguns pontos da ideologia
nazifascistas – na qual o interesse dito público ou social se sobrepunha até mesmo à vida
dos cidadãos que a ele se opusessem – com outros da ideologia comunista – no aspecto de
que o homem só existe em função da comunidade, para a qual perde sua individualidade
e tem deslegitimado qualquer direito contrário aos ditos interesses públicos/estatais. O
que ambas as ideologias têm em comum é a visão do público, estatal ou comunitário
como inimigo ou antípoda do individual ou, em sentido inverso, de que o interesse
privado, particular ou individual seja um obstáculo à consecução do bem comum. Na
sociedade atual, tal postura se mostra anacrônica e imprópria, pois o que se deve buscar é
a compatibilização dos interesses (públicos, privados e coletivos), numa comunhão para a
realização do ser humano, integrante e destinatário último e sempre presente nessas
esferas de interesses.
A dignidade da pessoa humana, em um modelo político de Estado Democrático (e
Social) de Direito como o brasileiro, transcende a visão que lhe é atribuída em um Estado
Liberal e agrega ao que dela se poderia esperar em um Estado Social. A dignidade da
pessoa humana, como princípio fundamental, é posta para benefício de todos, pois
somente com esse direcionamento a ordem jurídica decidirá “pelo” e “para” o homem,
não “apesar” dele, marginalizando-o ou desconsiderando-o. Porém, é garantida e
exercida, em regra, pelo indivíduo – ou grupo de indivíduos – em face de omissões ou
ações ilegais, sejam elas públicas ou privadas. Enfim, não se pode confundir o seu
exercício, em regra individual e em face de omissões ou ação ilegais (públicas ou
privadas), com a sua destinação e benefício a todo o universo humano.
Nessa visão de ser algo posto e desenvolvido para o bem comum, assim como ocorre
com o Estado Democrático (e Social) de Direito, e demais direitos e garantias individuais
do ser humano, a dignidade da pessoa humana tem vedada a possibilidade de ser
suprimida do texto constitucional (art. 60, § 4º, inciso IV, CR).

612 Sobre a dimensão subjetiva dos direitos de defesa e seus interesses


individuais e coletivos intrínsecos, v. item 3.8.1.1 infra.
Resta pontualizar, contudo, que, pelas linhas doutrinárias aceitas no presente
trabalho, do conteúdo essencial relativo e do âmbito de proteção amplo da norma, como
todo e qualquer princípio fundamental, também a dignidade da pessoa humana não é
princípio absoluto e comporta restrições, desde que justificadas de modo jusfundamental,
ou seja, com base em outras normas fundamentais que se mostrem aplicáveis para o caso
concreto em determinada condição fática e jurídica. Assim, por exemplo, é possível se
restringir a dignidade da pessoa humana quando se submete o imputado ou a testemunha
a um interrogatório ou a um depoimento. Contudo, tal restrição jamais poderá ir ao
ponto de autorizar a aplicação de tortura ou de tratamentos desumanos e degradantes,
isto porque nada justificará esse nível de restrição da dignidade humana, porquanto há
norma constitucional (art. 5º, III, CR)613 que, por sua estrutura de regra jusfundamental,
veda aquela ação estatal ou particular em qualquer condição (fática ou jurídica).614
Porém, mesmo com essa ressalva quanto à possibilidade de sua restrição, ela não
deixa de ser referência cultural, axiológica e normativa em relação a qualquer dúvida ou
incerteza quanto à aplicação ou interpretação dos direitos fundamentais relacionados ao
processo penal, e em especial à presunção de inocência.
A dignidade da pessoa humana será sempre uma referência axiológico-normativa
para o desenvolvimento dos estudos da presunção de inocência, porque este direito
fundamental tem maior significação para o ser humano exatamente no instante em que
ele está colocado em posição pública e social das mais desvalorizadas, qual seja, a de
imputado, a de cidadão submetido à persecução estatal.615

3.6. -Direitos fundamentais como incorporação legislativa interna dos


direitos humanos: considerações sobre algumas de suas características

613 Preceitua o art. 5º, inciso III, da CR: “Ninguém será submetido a tortura
nem a tratamento desumano ou degradante”.
614 Sobre a teoria relativa e sua relação com a dignidade da pessoa
humana, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais: conteúdo
essencial, restrições e eficácia, São Paulo: Malheiros, 2009, item 5.4.2.
Para uma justificativa também baseada na teoria dos princípios, mas
entendendo a dignidade da pessoa humana como uma norma
constitucional de estrutura dupla (princípio e regra), v. Robert ALEXY,
Teoría de los derechos fundamentales, tradução de Ernesto Garzón
Valdés, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002,
pp. 135/138. Sobre o debate travado pelas teorias relativas e absolutas
sobre a dignidade da pessoa humana, v. importante trabalho de Ingo
Wolfgang SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos
fundamentais na Constituição Federal de 1988, 3ª ed., Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2004, pp. 124 e ss. Para uma negação da
dignidade da pessoa humana como princípio absoluto e ilimitado, v.
André Ramos TAVARES, Curso cit., pp. 514/517.
615 Sobre esse aspecto da relação entre dignidade da pessoa humana e
presunção de inocência, v. item 5.3.1 infra.
Um aspecto preliminar a ser enfrentado relaciona-se com as escolhas terminológicas
empreendidas no decorrer do trabalho. Assim, aceitando a distinção já clássica e cada vez
mais comum na doutrina, diferenciam-se direitos humanos de direitos fundamentais.
Embora não haja uma separação definida entre os conteúdos e conceitos dos direitos
humanos e dos direitos fundamentais, vem se generalizando uma aceitação doutrinária
de que os direitos fundamentais são a positivação nacional dos direitos humanos
reconhecidos internacionalmente. Essa introjeção nos ordenamentos nacionais não
provocam qualquer alteração na origem, objeto, finalidade, eficácia, extensão ou força
ética dos direitos humanos.616

616 Nesse sentido, v.: Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 35/36;
Willis Santiago GUERRA FILHO, Processo cit., pp. 42/43, de modo
especial, em nota 77; Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria
geral dos direitos fundamentais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 40; com pequenas ressalvas, Antonio E. PEREZ LUÑO, Los derechos
cit., pp. 43/51; Luis Maria DÍEZ-PICAZO, Sistema de derechos
fundamentales, 2ª ed., Navarra: Editorial Aranzadi, 2005, pp. 159/160.
Para um significativo estudo terminológico, não obstante o autor aceite
as expressões, para as finalidades de seu trabalho, como sinônimas, v.
José Adércio Leite SAMPAIO, Direitos cit., pp. 7/22. Também em estudo
terminológico específico, concluindo que se trata de sinônimos, v. André
de Carvalho RAMOS, Teoria cit., pp. 17/29. Fábio Konder COMPARATO,
A afirmação cit., pp. 56/57, entende que os direitos fundamentais são os
direitos humanos positivados, seja em nível nacional ou internacional.
José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., p. 391, assim distingue
direitos do homem e direitos fundamentais: “As expressões ‘direitos do
homem’ e ‘direitos fundamentais’ são frequentemente utilizadas como
sinónimas. Segundo sua origem e significado poderíamos distingui-las
da seguinte maneira: ‘direitos do homem’ são direitos válidos para todos
os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista);
‘direitos fundamentais’ são os direitos do homem, jurídico-
institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente. Os
direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu
carácter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais
seriam os direitos objectivamente vigentes numa ordem jurídica
concreta”. Após ressalvar algumas debilidades na posição de Carl
Schmitt – para quem os direitos fundamentais são os direitos humanos
positivados constitucionalmente –, Robert ALEXY, Tres escritos sobre
los derechos fundamentales y la teoría de los principios, tradução e
apresentação de Carlos Bernal Pulido, Bogotá: Universidad Externado
de Colômbia, 2003, pp. 24/26, afirma ser aconselhável que os direitos
fundamentais sejam conceituados materialmente como os direitos
alçados a direitos positivos com o propósito e a intenção de dar uma
dimensão positiva aos direitos humanos, por conseguinte, completa o
constitucionalista alemão, “os direitos fundamentais ‘devem representar’
direitos humanos transformados em direito constitucional positivo” (nossa
tradução livre). Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 30/33, por sua
vez, aceita que direitos humanos são direitos morais que valem por sua
fundamentalidade e correção material, não por sua força vinculativa de
Os direitos fundamentais, portanto, compõem a essência do que um indivíduo deve
ter respeitado para ter sua dignidade plena, tal qual os direitos humanos historicamente
formados, reconhecidos e garantidos em nível internacional. Sua única diferença está no
âmbito em que se inserem, pois, ao ingressarem no ordenamento legal de um país os
direitos humanos passam a ser denominados “direitos fundamentais”, notadamente se são
positivados em nível constitucional.617 A mudança sofrida é apenas quanto à
denominação doutrinária, o direito tutelado não tem alterado seu fundamento ético, sua
força histórica ou sua finalidade de assegurar, de modo integral e por uma interação
conjunta, a dignidade humana de todo e qualquer cidadão. Claro que a força cogente
desses direitos será tanto maior quanto estejam ou não inseridos na Constituição, por isso

judicialidade. Para esse autor, direitos fundamentais internacionais ou


supranacionais são aqueles direitos humanos positivados em
convenções e tratados e, portanto, com força vinculante. Já os direitos
fundamentais nacionais são “os direitos individuais que adquirem uma
dimensão positiva nas constituições nacionais dos Estados democráticos
constitucionais e que em geral representam uma intenção de transformar
direitos humanos em direitos positivos. (...) estes direitos têm a máxima
hierarquia no sistema jurídico nacional e são exigíveis judicialmente”.
Para o presente estudo, aceita-se que os direitos humanos e os direitos
fundamentais diferem pelo tipo de ordenamento em que são positivados,
são direitos humanos quando postos em textos internacionais e, de outro
modo, serão denominados neste trabalho direitos fundamentais quando
inscritos no ordenamento nacional, em nível constitucional.
617 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 52/56, após afirmar que diante do

atual desenvolvimento da doutrina constitucional e do constitucionalismo,


aceito por um número sempre crescente de países, justifica-se que a
expressão “direitos fundamentais” apresente melhor técnica uma vez que
tais direitos estão sendo inseridos nas constituições, o texto juspolítico
fundamental de uma nação. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 63/66, após
analisar a “relação de precisão” e a “relação de fundamentação” como
critério identificador de fundamentalidade da norma, adota o critério
formal para determinar quando uma norma é ou não de direito
fundamental, estendendo-o, por força de derivação ou delegação das
normas iusfundamentais originárias, às “normas adstritas” de direito
fundamentais.
uma parcela da doutrina entende serem fundamentais apenas os direitos que tiverem esse
nível legislativo.618
Os direitos fundamentais trazem para o ordenamento pátrio as características já
consagradas dos direitos humanos, quais sejam: a universalidade, a interdependência e a
inter-relação.619 Logo, aplicam-se a todos os cidadãos do Estado que os incorporou, em
plenas condições de igualdade, de modo complementar620 e interativo, não havendo
conflito em suas incidências, mas um necessário e imprescindível sopesamento para
terem a mais ampla e exaustiva abrangência em cada situação concreta.621 Em
decorrência dessa positivação material e formal como direitos fundamentais, são
irrevogáveis, inalienáveis e imprescritíveis.622

3.6.1. (segue): universalidade

618 Dos autores já citados e que seguem a diferenciação direitos humanos


 âmbito internacional e, por outro lado, direitos fundamentais  âmbito
nacional, destaque-se aqueles que preferem considerar fundamentais
apenas aqueles inseridos constitucionalmente, uma vez que acreditam
em uma conceituação material desses direitos, p.ex., o constitucionalista
português Jorge Miranda (cfr. nota anterior). No Brasil podemos citar, a
título exemplificativo, Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria
cit., p. 53, e André Ramos TAVARES, Curso cit., pp. 433/437, para quem
não se pode limitar os direitos fundamentais apenas ao catálogo
constitucional.
619 Os direitos fundamentais possuem ainda outras características que
deixarão de ser desenvolvidas pela falta de utilidade ao presente estudo
sobre presunção de inocência. As características postas em destaque e
a serem minudenciadas vêm inscritas tanto na Resolução 32/130 (1968)
da ONU, quanto no § 5º da Declaração de Direitos Humanos de Viena
de 1993.
620 A complementaridade, assim como a irrevogabilidade, são aspectos
desenvolvidos por Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp.
63/65.
621 Sobre o sopesamento e a proporcionalidade lato sensu como formas de
solucionar eventuais contradições entre princípios, entre regras ou,
ainda, entre regras e princípios a fim de compatibilizar, diante do caso
concreto, qual norma deverá ser aplicada e até que extensão, v. item
4.4.3.1.3 e seus subitens e item 4.5.1 e seus subitens infra.
622 Estas últimas, algumas características dos direitos fundamentais
apontadas por José Afonso da SILVA, Curso cit., pp. 180/182.
A característica da universalidade, tal qual os próprios direitos humanos, sofreu uma
transformação. De uma universalidade abstrata e filosófica, concebida e inscrita na
Revolução Francesa de 1789,623 após o advento da Declaração Universal dos Direitos do
Homem de 1948 é vista hoje como uma universalidade positivada e jurisdicizada. Essa
nova perspectiva, carreada para dentro dos sistemas nacionais, faz com que os direitos
fundamentais tenham maior grau de explicitação e exigibilidade perante o Estado e seus
cidadãos. Eles não só têm como destinatários todo e qualquer cidadão, sem qualquer
distinção de cor, raça, religiosidade, língua, origem, classe social ou econômica, formação
cultural ou intelectual, como passam a ser juridicamente exigíveis por qualquer
indivíduo capaz de agir e exercer aqueles direitos. A universalidade se relaciona
diretamente à amplitude de titularidade conferida aos direitos fundamentais, na medida
em que garante, em regra e a princípio, que todos sejam titulares de todo e qualquer
direito fundamental.624
Essa nova acepção de universalidade, já incorporada aos direitos positivados pelos
países em seus ordenamentos, veio aumentar ainda mais a eficácia dos ditos direitos
fundamentais de primeira geração, classicamente divididos em direitos civis e políticos.
Isto porque, esses direitos, por se caracterizarem mais pelo direito à abstenção do Estado
de intervir na esfera de liberdades do cidadão, muitas vezes perdiam ou tinham reduzida
a sua eficácia prática por não se criarem condições ou não se delimitarem espaços claros
de atuação livre do cidadão, ou de restrição à ação do Estado ou dos agentes privados.
Assim, essa nova universalidade, já agora ampliada pelos ditos direitos fundamentais de
segunda (direitos de igualdade) e de terceira geração (direitos de fraternidade), veio
conferir mais positivação e exigibilidade àqueles direitos de liberdade (direitos de
primeira geração), fazendo-os atingir um “grau mais alto de juridicidade, concretude,
positividade e eficácia. É universalidade que não exclui os direitos da liberdade, mas
primeiro os fortalece com as expectativas e os pressupostos de melhor concretizá-los
mediante a efetiva adoção dos direitos de igualdade e da fraternidade”.625

623 Em termos bem amplos a todos os cidadãos, não apenas franceses


como do mundo, já se posicionava o preâmbulo da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
624 Nesse sentido, v. Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 215/218.
625 Paulo BONAVIDES, Curso de direito constitucional, 21ª ed., São Paulo:

Malheiros, 2007, pp. 573/574.


Há violação dessa característica na presunção de inocência e, portanto, desse
próprio direito fundamental quando ele não é assegurado, p.ex.: a) a determinado grupo
de pessoas (v.g., os estrangeiros que, apenas por essa condição, se supõe, de antemão, que
fugirão no curso da persecução penal); b) às pessoas que detenham certa característica
(v.g., serem reincidentes, ou responderem a outra ação penal); c) às pessoas desprovidas
de determinados atributos (v.g., não possuírem residência ou domicílio, não terem
emprego); ou d) a pessoas que sejam “classificáveis” como inimigas ou marginalizadas
pelos ocupantes do poder, categoria na qual se inserem os hostes do direito penal (direito
penal do inimigo e direito penal do autor).626 Na atualidade esse último grupo está
representado por todos aqueles tidos como integrantes da dita “criminalidade
organizada”, para quem se propugnam a eliminação de alguns direitos fundamentais,
dentre eles a presunção de inocência em muitos de seus sentidos.
Enfim, estará violada essa característica sempre que às pessoas não for concedido, de
maneira igualitária, o exercício mais abrangente possível de sua situação juspolítica de
inocente.
3.6.2. (segue): irrevogabilidade

Os direitos fundamentais, por serem conquistas da humanidade à custa de muitas


injustiças, sofrimentos e vidas, uma vez normatizados passam a ser conquistas
irreversíveis do ser humano,627 proibindo-se a sua supressão ou limitação. Com isso,
garante-se não apenas a permanência do direito formalmente no texto legal (proibição de
retrocesso formal), mas, também, garante-se que seu conteúdo sempre tenha uma
tendência de expansão, fazendo com que os novos campos da vida humana já atingidos
por aquele direito fundamental não possam mais ser dele privados (proibição de
retrocesso material) e, ainda, novas áreas da vida possam vir a ser por ele reguladas e
conformadas.
Esses dois aspectos da irrevogabilidade são complementares e interdependentes,
pois a vedação formal de revogação dos direitos fundamentais garante a aplicação de seu
conteúdo material sempre de modo mais abrangente. Por outra perspectiva, a vedação de
revogação material do conteúdo dos direitos fundamentais torna efetiva a sua positivação
no ordenamento, na medida em que o direito deixa o mundo normativo e passa a ter
efetiva e prática incidência em benefício de todos os cidadãos. A irrevogabilidade
material garante a dignidade e eficácia da norma, a irrevogabilidade formal é pressuposto
para efetividade de seu conteúdo.

626 Sobre o tema, v. item 5.4.3.1 infra, quando tratamos da extensão


subjetiva da presunção de inocência.
627 Fábio Konder COMPARATO, A afirmação cit., pp. 63/65.
No sistema constitucional brasileiro, a irrevogabilidade formal está garantida, ao
menos para os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, pela vedação a que tais
normas sejam insuscetíveis de deliberação (supressão ou redução), mesmo por emenda
constitucional (art. 60, § 4º, inciso IV, CR). A irrevogabilidade material, por sua vez,
deve ser uma conquista diária não apenas por obra dos Poderes Públicos (Legislativo,
Executivo e Judiciário), mas, também, pela atuação dos agentes privados; muitos dos
quais, em um mundo de capitalismo globalizado e de grandes conglomerados
econômicos, têm mais capacidade lesiva ou garantista que muitos países de economia
emergente ou debilitada.628
Contudo, a irrevogabilidade, com suas decorrentes impossibilidades de retrocesso
formal ou material, não pode ser confundida ou levada ao extremo de não permitir
restrições ao exercício daqueles direitos fundamentais em situações fáticas nas quais com
eles se choquem outros direitos de igual estatura.629 Para isso, é crucial se ter em mente
que todo direito fundamental não é absoluto e que todos comportam restrições, desde
que essas sejam proporcionais e justificadas com base em argumentos constitucionais
consistentes e coerentes em face das condições fáticas do caso concreto.630

3.6.3. (segue): complementaridade e interdependência

Na medida em que os direitos fundamentais foram concebidos para assegurar ao ser


humano um grupo de interesses e necessidades que lhe são essenciais, todos têm a mesma
gênese axiológica e destinação funcional, qual seja, atender, em diversos graus e
vinculações, à pessoa humana na integralidade de sua dignidade.
Sua percepção e reconhecimento no curso da história da humanidade fazem com
que várias vezes se recorra ao termo “gerações” de direitos fundamentais, a fim de
caracterizar com maior nitidez o critério da historicidade desses direitos. Porém, a
palavra “geração” não autoriza imaginá-los como uma sucessão de direitos, na qual os
posteriores abrangem, revogam ou superam os anteriores. Também essa ampliação
contínua não se limita a uma somatória dos direitos, mas consiste em verdadeira
conjugação e interpenetração mútua entre os novos, os antigos e os que ainda estão no
porvir.631 Nesse ponto é que se deve compreender as características da
complementaridade e da interdependência.

628 Sobre o dever de cada cidadão em garantis os direitos fundamentais em


seu exercício diário de cidadania, seja em sua atuação pública ou
privada, v. item 3.5.1.1 supra.
629 Sobre a restrição a direito fundamental somente poder ser feita por outra

norma de igual estatura, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 272/276.


630 Para determinação de restrições legítimas aos direitos fundamentais, v.

item 4.4.3 e seus subitens infra. Para as restrições legítimas e


constitucionais à presunção de inocência, v. item 5.5 e seus subitens
infra.
631 No sentido do texto, v. Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 24/25.
Com os sucessivos acréscimos ao catálogo sempre expansível dos direitos
fundamentais, os direitos posteriores colmatam espaços deixados pelos anteriores,
transformam-nos e ampliam seus âmbitos de incidência, seja por decorrência automática
do aperfeiçoamento doutrinário propiciador do surgimento de novas séries de direitos
essenciais ao homem seja pela dependência que os novos preceitos fundamentais têm dos
anteriores, por pressupô-los existentes e efetivados na realidade da vida.
Assim, exemplificando, o moderno direito fundamental à informação, direito de
quarta geração,632 pressupõe, potencializa e é incrementado pelo direito fundamental à
educação (art. 6º, caput c/c art. 205, CR), integrante da denominada segunda geração.633
A educação é pressuposto para o acesso à informação e o direito à informação será tanto
mais efetivo quanto maior o nível educacional de seu titular. Em sentido inverso, o
direito à educação, quando alçado historicamente à categoria de direito fundamental
(séculos XIX e início do século XX), não era integrado, em seu conteúdo material, pela
gama de informações acessíveis, p.ex., pelos meios informáticos. Logo, esse direito à
educação teve seu conteúdo tão ampliado por força da informática quanto a gama de
informações, nela contidas, exige cada vez mais pessoas com maiores níveis educacionais.
Ambos os direitos, somente quando atuantes de modo complementar asseguram-se
mutuamente e se efetivam da maneira mais ampla possível. Somente se inter-
relacionando garantem ao indivíduo a efetiva inclusão na atual sociedade globalizada.
As conquistas possibilitadas por novas séries de direitos fundamentais reconhecidos
e incorporados ao catálogo já existente vêm agregar atributos aos direitos preexistentes e
são por estes incrementadas.
Quando se aplica o retroexpendido aos direitos de defesa (direitos de primeira
geração634), verifica-se como maior benefício por eles recebidos dos denominados direitos
sociais a percepção de que para a sua realização não basta apenas uma abstenção de
interferências estatais na esfera de liberdade do indivíduo, mas, em certas hipóteses,
deverá haver uma atuação do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) para garantir
sua efetividade. Para assegurar plenamente aqueles direitos não basta ao Estado se abster,
mas, muitas vezes, deverá agir no sentido de criar condições (operacionais, legais ou
organizacionais) ao exercício efetivo e completo daquelas liberdades. Esse atuar tanto
pode ser no sentido de criar procedimentos ou organizações de fruição do direito, quanto
no sentido de traçar restrições claras e legítimas à atuação dos agentes privados e
públicos ou, ainda, conceber instrumentos jurídicos eficazes para reverter eventuais
violações (públicas ou privadas) daqueles espaços legais de liberdade.

632 Paulo BONAVIDES, Curso cit., pp. 570/572.


633 José Adércio Leite SAMPAIO, Direitos cit., pp. 261/263.
634 Nesse sentido, v.: José Adércio Leite SAMPAIO, Direitos cit., p. 260;

Paulo BONAVIDES, Curso cit., pp. 562/564; e André Ramos TAVARES,


Curso cit., pp. 427/428, ressalvando que este último prefere a expressão
“dimensão” em substituição à já clássica “geração” (op. cit., pp. 426/427).
Dada a falta de um sistema processual penal estruturado com respeito à presunção
de inocência,635 a atuação estatal (legislativa, executiva e judiciária) torna-se
imprescindível como primeiro passo para efetivação daquele direito fundamental.636
3.7. Presunção de Inocência como direito fundamental

A presunção de inocência tem uma sina sempre mais difícil e sempre mais saborosa
para quem lhe deita atenção. No tocante a quase todos os outros preceitos processuais
penais mais diretamente ligados aos desígnios juspolíticos constitucionais é fácil saber se
estamos diante de um direito fundamental ou não. Para tanto, a tarefa imediata é
verificar se aquele preceito se encontra insculpido no Título II da Constituição da
República, denominado “Direitos e Garantias Fundamentais”. Se lá estiver o preceito
procurado, o legislador constituinte facilitou o trabalho, restando a tarefa de medir as
conseqüências daquela inserção no sistema processual penal.
Procurando em nossa Constituição, o investigador mais apressado dirá que a
presunção de inocência não é direito fundamental, uma vez que não encontrará aquela
exata expressão (“presunção de inocência”) prevista em sua literalidade naquele Título
constitucional, nem no capítulo dos direitos e deveres fundamentais e nem tampouco em
qualquer outro ponto da Carta. Nisso não errará. Mas, por mais paradoxal que seja, não
poderá afirmar que ela não esteja inscrita como direito e garantia fundamental do
cidadão no sistema constitucional brasileiro.637

635Sobre o tema, v. item 2.5 supra.


636Sobre a relação entre a baixa efetividade da presunção de inocência e a
inércia legislativa em elaborar nova legislação processual penal, v. item
5.2 infra.
637 O sistema alemão é um claro exemplo de ordenamento jurídico

constitucional que não possui a inscrição literal da presunção de


inocência na Constituição, mas nem por isso a doutrina ou a
jurisprudência deixam de reconhecer-lhe a natureza de direito
fundamental. Nesse sentido, v. Ricardo Alves BENTO, Presunção de
inocência no processo penal, São Paulo: Quartier Latin, 2007, pp. 78/82,
e Renato Barão VARALDA, Restrição ao princípio da presunção de
inocência: prisão preventiva e ordem pública, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2007, pp. 57/58. Winfried HASSEMER, Introdução
aos fundamentos do direito penal, tradução de Pablo Rodrigo Alflen da
Silva, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, pp. 221/222, em
seus comentários sobre a presunção de inocência, extrai esse princípio
para o sistema alemão da MRK, abreviatura utilizada pelo autor para
“Europäische Konvention zum Schutze Der Menschenrechte und
Grundfreiheiten” (Convenção Européia para Proteção dos Direitos
Humanos e Liberdades Fundamentais).
Para dissipar esse apenas “aparente” paradoxo é necessário formular algumas
observações sobre a diferença entre “norma” e “enunciado normativo”, ou seja, entre o
texto do dispositivo (enunciado normativo) e o seu significado (norma). Para isso são
necessárias breves considerações sobre o conceito semântico de norma e como ele se
aplica aos textos de direitos fundamentais e, de modo especial, como de sua compreensão
se poderá extrair que a presunção de inocência é norma de direito fundamental no
sistema brasileiro.
3.7.1. -(segue): norma de direito fundamental e enunciado normativo de direito
fundamental
O presente trabalho não comporta uma discussão das razões e diferentes
conseqüências entre as várias teorias que, no âmbito da teoria geral do direito, propõem-
se a explicar o conceito de “norma” e, por conseqüência, de “norma fundamental”.638
Parte-se, assim, neste ponto, de um campo de certo consenso da doutrina,639 pelo qual se
afirma que há uma diferença entre “norma” e “enunciado normativo” (“texto
normativo”). Esse modelo consensual é o “modelo semântico”, para o qual o conceito de
norma parte da idéia de que há uma diferença entre “norma” e “enunciado normativo”.640
A norma é o significado do enunciado normativo e, portanto, está além da literalidade
das expressões escolhidas e inseridas pelo legislador no texto,641 é o “produto da
interpretação desse enunciado”.642

638 Sobre o enunciado das várias linhas teóricas explicativas do conceito de


norma, v.: Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 48/50; idem, El concepto y la
validez del derecho, 2ª ed., Barcelona: Gedisa Editorial, 1997, cap. 2 e 3;
e Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 26/27.
639 Neste ponto do trabalho, intencionalmente utilizaremos linhas
argumentativas de Robert Alexy e Friedrich Müller. Sabe-se que as
teorias desses dois autores são inconciliáveis em vários pontos e, ainda,
que na própria visão que têm da estrutura do direito e da norma isso
ocorre; porém, apenas ao ponto que importa nessa parte do trabalho, as
teorias se aproximam. Dessa mesma opinião é Virgílio Afonso da SILVA,
Princípios e regras: mitos e equívocos acerca de uma distinção, Revista
Latino-Americana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1,
jan./jun., 2003, item 3, especificamente nota 36. Para aqueles autores há
uma distinção entre “norma” e “enunciado normativo” (“texto normativo”
ou “disposição normativa”): a norma é o significado que se extrai do
texto. Para uma excelente análise em paralelo entre as duas teorias, no
ponto tratado no texto, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 73/80.
640 Sobre o modelo semântico, v. Martin BOROWSKI, La estructura cit., p.

27, com boa citação bibliográfica, e Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 50/53.
641 Eros Roberto GRAU, Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação

do direito, 2ª ed., São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 71/83, com muitas
referências da doutrina alemã, notadamente de Friedrich Müller, afirma
que a “norma” é diversa de “texto normativo” e que este é apenas uma
fração daquela, que foi absorvido pela linguagem jurídica. Para aquele
autor (op. cit., p. 73) a “norma congrega todos os elementos que
compõem o âmbito normativo (= elementos e situações do mundo da
vida sobre os quais recai determinada norma)”. Mais adiante (op. cit., p.
79), afirma, agora com base em Canotilho: “‘Texto’ e ‘norma’ não se
identificam: o ‘texto’ é o ‘sinal lingüístico’; a ‘norma’ é o que se ‘revela,
designa’”.
642 Virgílio Afonso da SILVA, Princípios e regras cit., p. 616.
A partir do texto se compreendem e se extraem significados atuais e apropriados ao
caso concreto submetido à análise e, do mesmo modo, com as normas superiores podem
se conformar normas inferiores que dêem a maior organização e efetividade possíveis ao
significado contido nos enunciados superiores. Assim, não obstante o texto permaneça o
mesmo, a interpretação permite que dele se extraiam vários significados, até mesmo
porque qualquer texto pode ser escrito de várias formas, que deixem um ou outro ponto
de seu significado com maior ou menor realce.
A doutrina entende que um critério seguro para a conceituação de norma são as
“modalidades deônticas básicas” do mandado, da proibição e da permissão. Expressões
como “pode”, “proibido” e “deve”, quando postas em enunciados normativos ou em sua
redação estão implícitos, formam “enunciados deônticos”, modalidades do “dever ser”
inseridos no dispositivo normativo. “Nem todo enunciado normativo é um enunciado
deôntico, mas todo enunciado normativo pode ser transformado em um enunciado
deôntico”.643
O “enunciado normativo” é o texto, o conjunto lingüístico com o qual se forma o
dispositivo legal. A “norma” é o significado de um enunciado normativo e, como tal,
pode ser um conceito anterior àquele enunciado, uma vez que o texto escolhido pelo
legislador tem em vista atender ao significado que ele pretende imprimir e que, portanto,
pré-existe ao texto de lei. 644
Ao sair do campo da teoria geral da norma e ingressar no campo da “norma
fundamental”, dentre os critérios indicados pela doutrina para se verificar se uma norma
é ou não uma norma fundamental, o mais conveniente, para os efeitos do tema do
presente trabalho, é o critério formal.645 Esse critério está baseado na “forma de
positivação” feita pelo constituinte (legislador fundamental) na Constituição. Assim,
todos os “enunciados normativos” inseridos no capítulo dos direitos e garantias
fundamentais (arts. 5º a 17, CR) são “enunciados normativos de direitos e garantias
fundamentais” ou, dizendo de modo mais simples, “disposições de direitos
fundamentais”. Por esse mesmo critério, as “normas de direito fundamental” são “as
normas diretamente expressas por esses enunciados”.

643Robert ALEXY, Teoría cit., p. 54.


644 Segundo Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 50/53, como a norma é anterior
ao enunciado não se pode buscar nele um critério para a sua
conceituação.
645 Para breves explanações sobre os critérios material e estrutural e

algumas críticas a eles, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 63/65; na


mesma obra (op. cit., pp. 65/66), o autor explica e mostra os benefícios
do critério formal. Para algumas críticas ao critério formal e uma breve
explicitação sobre os critérios material e procedimental v., Martin
BOROWSKI, La estructura cit., pp. 34/37. Importante ressaltar que, não
obstante a pertinência das críticas, nenhuma delas afeta a escolha
empreendida no texto, pela qual se chega à solução da questão para o
tema da presunção de inocência.
Sendo essa norma o significado emprestado pelo intérprete ao enunciado normativo
de direito fundamental, e como o conteúdo lingüístico não é a única nem estrita fonte de
informação para a formação do significado contido nesse dispositivo, devem-se
empreender as mais apropriadas formas e métodos de interpretação para se compreender
o melhor e mais abrangente espaço normativo daquele tipo de enunciado.
É necessário empreender uma interpretação genético-sistêmica e outra de cunho
doutrinário-comparativo para se compreender como se extrai da disposição normativa do
inciso LVII do art. 5º da Constituição da República646 toda a extensão humanitária e
doutrinária que a comunidade internacional do pós-guerra emprestou (e vem
emprestando) à presunção de inocência.

3.7.1.1. -“Presunção de Inocência” e “Não Consideração Prévia de


Culpabilidade”: escolhas material e formal do constituinte de 1988

Já foi exposto que a noção de “não consideração prévia de culpabilidade” foi uma
criação positivista do fascismo habilmente elaborada a fim de que, por meio de um
ataque técnico-jurídico sobre a palavra “presunção”, se atingisse a palavra “inocência”.
Afirmava-se, à época, que se não se pode dizer que o imputado seja culpado no início da
persecução penal, também não se pode afirmar seja ele inocente. Portanto, concluía-se
melhor afirmá-lo “não-culpado”; jamais inocente.647
Como também já foi exposto, nossa Constituição atual, promulgada após um longo
período de autoritarismo e forte redução dos direitos fundamentais, determinou ser o
Brasil um Estado Democrático (e Social) de Direito, constituindo um de seus primados o
respeito à dignidade da pessoa humana.648
Diante desses dois pontos destacados poderia surgir a seguinte perplexidade: não
obstante afirmar a dignidade da pessoa humana e fixar um longo e aberto catálogo de
direitos fundamentais, tudo em sintonia com os preceitos internacionais de direitos
humanos do pós-guerra, não haveria uma quebra sistêmica perpetrada pelo constituinte
ao ceder às tentações nazifascistas da fórmula da “presunção de não culpabilidade”?

646 “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da


sentença penal condenatória”.
647 Sobre o tema, v. item 2.4.3.1 supra. Sobre a diferença de base

juspolítica entre as concepções de presunção de inocência, como


concebida pelo Iluminismo, e de presunção de não culpabilidade, como
concebida pelo positivismo técnico-jurídico, v. item 2.4.7.2 supra.
648 Sobre o tema, v. item 3.5 e seus subitens supra.
A contradição é apenas aparente. A coerência emerge ao se perceber que o
constituinte procurou elaborar o texto normativo com o que ele entendeu ser um melhor
apuro técnico na linguagem. Cedeu aos argumentos ditos neutros da Escola Técnico-
Jurídica italiana, contudo, em momento algum se afastou do conteúdo e de toda a
extensão do preceito humanitário universal da “presunção de inocência”. Muito ao
contrário, reafirmou-o e entendeu que a expressão “presunção de não culpabilidade”
seria a melhor forma de proteger exatamente aquele princípio maior e mais tradicional.
Essa escolha pela forma da “não consideração prévia de culpabilidade” e a escolha
material pelo valor humanista da “presunção de inocência” fica muito evidente ao se
analisar as razões daquela escolha redacional.649

3.7.1.1.1. -Análise genético-sistêmica dos trabalhos da Assembléia Nacional


Constituinte de 1988

Como resultante de toda luta pela redemocratização do Brasil, corporificada em


dado instante na “histórica cruzada das Diretas Já, de que nasceu paulatinamente a nova
República”,650 foi encaminhada por José Sarney, recém-empossado Presidente da
República, ao Congresso Nacional, em 28 de junho de 1985, a proposta de convocação de
uma Assembléia Nacional Constituinte.
Ainda na fase pré-Constituinte foi instituída, como passo mais importante para os
trabalhos constituintes futuros, uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais,
pelo Decreto 91.450, de 18 de julho de 1985. Essa Comissão, cujo presidente foi o jurista
Afonso Arinos de Melo Franco, composta de 50 membros, denominados de “notáveis”,
teve como tarefa elaborar um anteprojeto constitucional, documento finalizado e
entregue ao Presidente da República, em 18 de setembro de 1986.651

649 Quando se trata de “escolha material” do constituinte isso muito se


aproxima do “critério material” de determinação do conceito de “norma
de direito fundamental”; nesse sentido, v. Martin BOROWSKI, La
estructura cit., pp. 35/36 e nossas ressalvas no item 3.7.1 supra, no qual
escolhemos o critério formal, sem negarmos a importância dos demais.
Contudo, preferiu-se desenvolver o tema pelo método genético da
formação da Constituição, por entendermos que essa peculiaridade não
só põe em relevo nossa diferença – para melhor – em relação à
Constituição Italiana de 1948, como também bem explica toda a mens
legislatoris fundamentalis nacional. Escrito de outra forma, o subitem que
segue muito bem poderia servir para fundamentar a presença da
presunção de inocência, no inciso LVII do art. 5º da Constituição, pelo
critério material. Preferiu-se, contudo, de forma consciente, o método
genético pelas razões já expostas.
650 Paulo BONAVIDES e Paes de ANDRADE, História cit., pp. 452/453.
651 Idem.
Em seu texto, o anteprojeto trazia, no capítulo II, denominado “Dos Direitos e
Garantias”, mais exatamente no parágrafo 7º do art. 43, a seguinte proposta: “Ninguém
será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e decisão fundamentada da
autoridade competente, nos casos expressos em lei. (...) § 7º - Presume-se inocente todo
acusado até que haja declaração judicial de culpa”.
Necessário esclarecer que com o anteprojeto foi entregue um estudo consistente em
um quadro comparativo entre as propostas apresentadas e o texto constitucional então
vigente. Desnecessário asseverar que o texto constitucional do regime militar não
contava com preceito semelhante ou análogo àquele referente à presunção de inocência.
Assim, e pela primeira vez na história da nação brasileira, foi inserida a cláusula da
“presunção de inocência” em uma proposta legislativa de alteração constitucional.652
Instalada a Assembléia Nacional Constituinte, em 1º de fevereiro de 1987, passada
uma fase crítica de dificuldades para se operacionalizar os trabalhos, elaborou-se um
Regimento de orientação, que previa a formação de 8 Comissões temáticas. Cada
Comissão era integrada por 63 membros titulares e 63 suplentes, restando ainda uma
Comissão de Sistematização, integrada por 49 membros titulares e igual número de
suplentes. Dentre aquelas Comissões uma denominava-se “Comissão da Soberania e dos
Direitos e Garantias do Homem e da Mulher”, que, pela extensão dos temas abordados,
subdividiu-se em três subcomissões, sendo uma delas responsável pelos Direitos e
Garantias Individuais.653

652 Sobre a ausência de qualquer referência constitucional brasileira,


anterior a 1988, quanto à presunção de inocência, v. Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção de inocência e prisão
cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, pp. 30/32.
653 Paulo BONAVIDES e Paes de ANDRADE, História cit., pp. 454/458.
Essa subcomissão constituinte apresentou, em 25 de maio de 1987, a primeira
proposta de redação do anteprojeto, em cujo texto pode-se encontrar, no seu § 11, de um
artigo cujo número ainda seria definido, a seguinte proposta: “(...) São direitos e garantias
individuais: (...) § 11º Considera-se inocente todo o cidadão, até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”. Em 15 de junho do mesmo ano, referida Comissão
entregou a sua proposta de redação final para a Comissão de Sistematização, podendo-se
destacar que no inciso XIX, alínea “g”, de seu art. 3º vinha aquele preceito mantido nos
seguintes termos: “Título I – Dos Direitos e Liberdades Individuais –. Capítulo I – Dos
Direitos Individuais –. (...) Art. 3º- São direitos e liberdades individuais invioláveis: (...)
XIX – A Segurança Jurídica. (...) g) presume-se a inocência do acusado até o trânsito em
julgado da sentença condenatória”.654
Oferecidas as propostas de todas as Comissões, os trabalhos seguiram com a abertura
para propostas de emendas das mais variadas ordens e origens e dirigidas a todos os
pontos do texto constituinte. No que importa ao tema tratado no presente trabalho, as
mais significativas ocorreram em 12 de agosto de 1987, sendo seu autor o constituinte
José Ignácio Ferreira (emenda nº 1P11802-6 e nº 1P11998-7).655

654 Essa redação já havia sido proposta, com a mesma topologia, no


“Parecer e Substitutivo”, de 06 de junho de 1985, desta mesma
Comissão. Não foi possível identificar se a alteração de aspectos
secundários entre as propostas de maio de 1985 e as duas de junho do
mesmo ano se deu por influência de duas emendas propostas à
Comissão: uma de autoria do Deputado Délio Braz (emenda nº 100315-
1) e outra da Deputada Sandra Cavalcanti (emenda nº 1S0369-3),
ambas com textos exatamente iguais entre si e também idênticos àquele
constante da redação final da Comissão.
655 Antes dessas emendas citadas no texto, foram encaminhadas, sobre o
tema específico, as emendas nº CS02510-5 e nº 1P023366-1, ambas de
autoria do Deputado Ivan Vanderlinde, em 02/07/1987, e, na mesma
data, as emendas nº CS01481-2 e nº 1P01381-0, ambas do constituinte
José Santana de Vasconcelos, além das emendas nº CS05420-2 e nº
1P05042-1, ambas do Deputado José Egreja. Todas as emendas aqui
referidas tinham a mesma redação do proposto pela Comissão no texto
de 15/06/1987.
A primeira emenda referida, publicada nas páginas 1228/1229 do volume II
(contendo as emendas de nº 7081 à de nº 14135) do caderno destinado às emendas
oferecidas em plenário pelos constituintes e eleitores, propõe apenas a alteração da
palavra “acusado”, do texto da Comissão, por “imputado”. Resumidamente, ressalvava o
proponente, em sua justificativa, que a mudança levaria a presunção de inocência
também à fase pré-processual, destinada à investigação, e, também, à fase recursal,
evitando-se que, em qualquer fase, fosse designado como “acusado”, palavra que no
entender do constituinte tinha uma conotação de “culpa presumida”.656
O mais interessante é que, na mesma data, em folhas 1244 do mesmo volume, foi
publicada uma emenda (nº 1P11998-7) do mesmo proponente (José Ignácio Ferreira), em
que sugere, pela primeira vez no seio da Constituinte, a mudança de redação daquele
dispositivo de 15 de junho de 1987 da Comissão, para o seguinte texto: “Ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Surge
pela primeira vez nos trabalhos constituintes a redação da denominada “presunção de
não culpabilidade”.

656 Da “justificação” da emenda 1P11802-6, do constituinte José Ignácio


Ferreira, extrai-se o seguinte trecho conclusivo: “Enfim, esta emenda
substitutiva não se destina apenas a troca da palavra acusado, pela de
imputado. A segunda forma consta da Constituição da República da
Itália: o imputado não é considerado réu até a condenação definitiva. É
necessário que ao lado da proclamação do esquecido direito de que é
presumir-se sempre a inocência do cidadão, sejam afastadas as
interpretações judiciárias, e revista a legislação que permite ao Poder
Público cometer verdadeiras violências, contra o cidadão indefeso, que
não é apenas imputado de uma falta, mas que se considera, de
antemão, réu e crime, e como tal é tratado desde a identificação criminal,
além dos corretivos e das torturas que se aplicam nas prisões brasileiras,
onde a violação dos direitos do cidadão é o pão-nosso de cada dia. Não
se luta por um aprimoramento apenas de linguagem. O que se quer é
que numa democracia participativa o cidadão se sinta garantido em sua
integridade física e moral, e só após o devido processo legal, e
esgotados os recursos da lei, possa a vir a ser identificado
criminalmente, chamado de réu, querelado ou outra expressão do Direito
Processual Penal, mas nunca, e desde logo, designado como acusado,
dando sempre a conotação da culpa presumida. É a justificação”.
A justificativa para tal alteração é curta, singela, mas diz muito quanto à escolha
constituinte pela forma da “presunção de não culpabilidade” e, quanto ao conteúdo
juspolítico da norma, sua total fidelidade à ideologia humanista e internacional da
“presunção de inocência”. É o texto da justificativa: “A proposta visa apenas a
caracterizar mais tecnicamente a ‘presunção de inocência’, expressão doutrinariamente
criticável, mantida inteiramente a garantia do atual dispositivo” – ressaltos nossos.657
Lembre-se que o “atual dispositivo”, ao qual a justificativa destacada faz menção, era
aquele datado de 15 de junho de 1987, em cujo texto havia a referência expressa à
“presunção de inocência”.
Vale destacar que a Comissão de Sistematização, cuja presidência era de Afonso
Arinos e a relatoria de Bernardo Cabral, foi favorável à aprovação integral da emenda
1P11802-6, que propunha a alteração de “acusado” para “imputado”, no texto de 15 de
junho, da Comissão, pelas seguintes razões: “A alteração, a nosso ver, tem procedência,
haja visto a teoria penal que faz distinção entre os dois termos. Pela aprovação”. Já
quanto à emenda que propunha a alteração do texto para a substituição da expressão
“inocência” (nº 1P11998-7) pela da “não consideração prévia de culpa”, aquela Comissão
foi pela aprovação parcial, com a seguinte manifestação: “A Emenda nos parece
procedente e merece ser acolhida pelo Substitutivo. Pela aprovação parcial”. Não se
define, como se vê, a qual parte se sugeriu a aprovação e a qual se propôs a rejeição. O
fato é que foram substituídos os termos (texto normativo) e mantido o conteúdo material
dos trabalhos constituintes (a norma).

657 Pelo que se pode colher dos anais constituintes, outras emendas
posteriores foram apresentadas sobre o tema. Emenda nº 1P16855-4, de
13 de agosto de 1987, do Deputado Bonifácio de Andrada, com a
seguinte redação: “Presume-se inocente todo o acusado, até que haja
declaração judicial de culpa”. Emenda ES21209-5, de 31 de agosto de
1987, do deputado Cunha Bueno, com a seguinte redação: “todo
acusado se presume inocente até que haja declaração judicial de culpa;
e tem direito a ser preservada, ao máximo possível, essa condição”.
Emenda nº ES29767-8, de 04 de setembro de 1987, do Deputado
Osvaldo Coelho, com a seguinte redação: “Ninguém será considerado
culpado nem identificado criminalmente antes do trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”. Em 04 de setembro de 1987, através da
emenda nº ES32071-8, o constituinte José Paulo Bisol, que fora o relator
da Comissão de Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, apresenta
emenda com texto idêntico ao constante da redação feita pela Comissão
em 15 de junho de 1987. Em 05 de setembro de 1987, os constituintes
Antônio Mariz e Nelton Friedrich apresentam um texto idêntico ao
sugerido no mês anterior por José Ignácio Ferreira. Na mesma linha de
repetição do texto de José Ignácio Ferreira seguem o Senador José
Richa “e outros”, na emenda nº ES33996-6, de 05 de setembro de 1987.
O “Projeto de Constituição”, de setembro de 1987, fruto da incorporação de várias
propostas de emenda, traz, no § 17 do art. 5º do Capítulo I – Dos Direitos Individuais e
Coletivos –, a exata redação proposta por José Ignácio Ferreira, na emenda nº 1P11998-7.
A mesma redação é mantida no § 17 do art. 6º do “Projeto de Constituição (A)”, da
Comissão de Sistematização, de dezembro de 1987, e no inciso LVIII do art. 5º do
“Projeto de Constituição (*) (B) - 2º Turno”, de agosto de 1988. Importante ressaltar, para
confirmar a manutenção do conteúdo material que se imprimia à norma jusfundamental,
que este último projeto citado, o único a ter índice remissivo, classificava o referido
inciso, não obstante tratar a redação do texto de “presunção de não culpabilidade”, sob a
epígrafe “presunção de inocência”. A mesma sugestão de José Ignácio Ferreira é mantida
no inciso LVII do art. 4º do “Projeto de Constituição (C) – Redação Final”, de setembro
de 1988, e no inciso LVII do art. 5º do “Projeto de Constituição (D) – Redação Final”,
aprovado pela Comissão de Redação, em reuniões nos dias 19 e 20 de setembro de 1988.
A reconstrução empreendida dos debates constituintes tem como finalidade
demonstrar que, desde o seu primeiro instante, na fase pré-Constituinte, as citações e
referências tanto à “presunção de inocência” quanto à “presunção de não culpabilidade”
foram feitas pelos constituintes em sinonímia. Conforme indicam os registros daquela
Assembléia, a atual redação se originou da sugestão de José Ignácio Ferreira, na qual
consta uma verdadeira identidade entre ambas as expressões.658
Pode-se afirmar, pelo exposto, dentro do maior rigor que nos foi possível, que a
mens legislatoris formadora de nossa atual Constituição colocou, em seu inciso LVII do
art. 5º, todo o conteúdo e força juspolítica da “presunção de inocência”. A mens
legislatoris transforma-se, inegavelmente, em mens legis fundamentalis. A Constituinte
incorpora o princípio fundamental humanitário concebido após o período das trevas da
Inquisição, revitalizado e revivificado como primado humano universal, pela
comunidade internacional, na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.
Não bastassem essas constatações de caráter genético, não se pode olvidar em
nenhum momento que a Constituição é um sistema e, como tal, deve apresentar uma
necessária coerência e inter-relação entre suas normas. Seria uma verdadeira contradictio
in re ipsa admitir-se a inserção, como um direito e garantia fundamentais do cidadão, da
“não consideração prévia de culpabilidade” do imputado, conforme concebida nos
moldes da Escola Técnico-Jurídica nazifascista. Máxime ao se observar que a
Constituição determina que o Brasil seja um Estado Democrático de Direito (caput do
art. 1º da CR), baseado na dignidade da pessoa humana (inciso III do mesmo artigo)659 e
na afirmação de que todos são iguais perante a lei, sendo assegurada a inviolabilidade da
liberdade (caput do art. 5º da CR) e a segurança jurídica decorrente da garantia do devido
processo penal (inciso LIV do art. 5º da CR).

658 Concluiu nesse mesmo sentido Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO,


Presunção cit., p. 32.
659 Para considerações sobre os princípios fundamentais do Estado
Democrático (e Social) de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana, v.,
respectivamente, itens 3.5.1 e 3.5.2 supra.
Essa impossível coexistência de conteúdos (constitucional brasileiro e ideológico
fascista), aliada à análise genético-sistêmica agora empreendida, permitem concluir que,
se na escolha formal o constituinte vacilou até tender à aceitação da técnica redacional
da “não consideração prévia de culpabilidade”, em essência jamais se afastou da força
juspolítica e ideológica da presunção de inocência, nos moldes aceitos e informados pela
comunidade internacional no pós-guerra.

3.7.1.2. -Análise doutrinária brasileira e suas matrizes italianas: uma


uniformização político-ideológica para a presunção de inocência

A clareza de direcionamento quanto à escolha material pelo conteúdo político-


ideológico da presunção de inocência e a força das razões determinadoras da formação da
própria Constituinte,660 acima destacadas, produziram e produzem incontestável e
unívoco efeito por toda a cultura661 jurídica nacional, tanto no âmbito doutrinário quanto
no âmbito jurisprudencial. Há um consenso em se admitir que, no atual sistema jurídico
brasileiro, as expressões “presunção de inocência” e “não consideração prévia de
culpabilidade” são expressões equivalentes. Por força constitucional, afastam-se
quaisquer inspirações ou limites ideológicos fascistas dessa segunda expressão, tendo sido
ela escolhida pelo constituinte para representar, semanticamente, aquilo que toda a
tradição iluminista e, mais modernamente, a comunidade internacional atribuem à
clássica expressão “presunção de inocência”, inspirada pelos ideais de igualdade,
dignidade da pessoa humana e devido processo legal.

660 Para tanto vejam-se, já no preâmbulo constitucional, as suas razões


democráticas, de igualdade, liberdade, segurança e justiça como valores
supremos de um Estado Democrático de Direito.
661 Por “cultura” deve-se entender “(...) 5. O conjunto de características
humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou
aprimoram através da comunicação e cooperação entre os indivíduos em
sociedade. (...) 7. O processo ou estado de desenvolvimento social de
um grupo, um povo, uma nação, que resulta do aprimoramento de seus
valores, instituições, criações, etc.; civilização, progresso. 8. Atividade e
desenvolvimento intelectuais de um indivíduo; saber, ilustração,
instrução. (...)”, significados extraídos do verbete “cultura”, do Novo
Aurélio Século XXI: O Dicionário da Língua Portuguesa, 3ª ed., 1999, p.
591.
A cultura jurídica brasileira aproveitou-se, outrossim, de todo o debate já ocorrido
na Itália sobre o mesmo ponto técnico-doutrinário, pois lá, tanto como aqui, foi inserida
na Constituição do pós-guerra a seguinte norma: “o imputado não é considerado culpado
até a condenação definitiva” (art. 27.2 da Constituição Italiana de 1948).662
Na Itália, a tarefa da doutrina e da jurisprudência foi um pouco mais árdua que no
Brasil. Diferentemente do aqui ocorrido, conforme se verificou no item anterior, foi
novamente trazida aos trabalhos constituintes a diatribe doutrinária entre clássicos e
positivistas. Ficou registrada, nos anais dos trabalhos peninsulares, a volta à velha e
desmoralizada parêmia técnico-positivista: antes do final do processo penal não se deve
ter ninguém como culpado, mas isso não significa dizer que se deva considerar alguém
inocente.663

662 In verbis, lê-se no segundo parágrafo do art. 27: “L´imputato non è


considerato colpevole sino alla condanna definitiva”. Muitos são os
autores a indicar que foi essa fonte italiana a referência para a redação
do dispositivo de nossa Constituição. Nesse sentido, v. Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 32/33, e Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus da prova no processo penal, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 281.
663 Sobre a volta desse debate na Constituinte italiana, com reprodução de
registros históricos e manifestações legislativas, v. Giulio ILLUMINATI,
La presunzione d´innocenza dell´imputado, 6ª ed., Bologna: Zanichelli
Editore, 1984, pp. 20/21, e idem, Presunzione d´innocenza e uso della
carcerazione preventiva come sanzione atipica, Rivista italiana di diritto e
procedura penale, Milano, v. 3, lug./set., pp. 940/944. Tratando do
mesmo tema, v. ainda: Vincenzo GAROFOLI, Presunzione d´innocenza
e considerazione di non colpevolezza. La fungibilità delle due
formulazioni, Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano, v. 41,
1998, pp. 1178/1181; Aldo CHIARA, Presunzione di innocenza,
presunzione di “non colpevoleza” e formula dubitativa, anche alla luce
degli interventi della Corte Costituzionale, Rivista italiana di diritto e
procedura penale, Milano, v. 1, gen./mar., pp. 82/87; Pier Paolo
PAULESU, Presunzione di non colpevolezza, in DIGESTO: Discipline
Penalistiche, 4ª ed., Torino: UTET, 1995, v. 9, pp. 671/674; e Mario
CHIAVARO, La presunzione d’innocenza nella giurisprudenza della corte
europea dei diritti dell’uomo, in Studi in ricordo di Giandomenico Pisapia,
Milano: Giuffrè, 2000, v. 2 – procedura penale, pp. 77/79. No sentido de
forte influência de Manzini ainda nos trabalhos legislativos
constitucionais italianos de 1947 quanto à presunção de inocência, v.
José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción de inocencia” del imputado e
“intima convicción” del Tribunal, Barcelona: Bosch, 1984, pp. 258/260; e
manifestação Cezar PELUSO, Garantias constitucionais da liberdade,
palestra proferida no XII Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais, São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,
2006, disponível na videoteca do referido instituto.
O texto italiano, diferente do brasileiro – insista-se –, não foi uma escolha pela “não
consideração prévia de culpabilidade” apenas por preferência lingüística. A razão de
fundo que orientou a escolha constitucional peninsular foi ainda o pensamento técnico-
positivista da escola fascista. Lá, muito ao contrário, os debates constitucionais de 1947
buscaram um consenso, admitindo-se a manutenção da fórmula fascista, tanto material
quanto formalmente, como uma solução de compromisso.664
Porém, tanto a incorporação dos tratados internacionais de proteção aos direitos
humanos surgidos posteriormente quanto as compreensões doutrinária e jurisprudencial,
destinadas a harmonizar o Estado de Direito italiano com aquele preceito, extrapolaram a
literalidade do dispositivo. O entendimento também para aquela Constituição foi que o
significado a ser extraído (norma) daquele enunciado de direito fundamental (texto do
dispositivo do art. 27.2) é o de que por ele a presunção de inocência se insere no
ordenamento italiano.665
Doutrina e jurisprudência se preocuparam, em um primeiro momento, em fazer a
tarefa mais difícil, qual era: eliminar todo o conteúdo político-ideológico daquela
expressão fascista (presunção de não culpabilidade). Esse era o intuito doutrinário
quando diziam que as expressões eram sinônimas.

664 Nesse sentido, Gilberto LOZZI, “Favor rei” e processo penale, Milano:
Giuffrè, 1968, pp. 10/11. Para uma referência ao primeiro texto do projeto
constitucional italiano de 1947 no qual constava a expressão “presunção
de inocência”, v. Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., p. 561, nota 25.
665 Nesse sentido, Francesco CARNELUTTI, Principi del processo penale,
Napoli: Morano, 1960, pp. 244/245, afirma que melhor que considerar
aquele preceito constitucional italiano (art. 27.2, citado) um “favor rei” é
considerá-lo “favor innocentiae”. Na linha desse autor italiano, inclusive
citando-o na mesma referência antes feita, colocou-se Santiago SENTÍS
MELENDO, In dubio pro reo, Buenos Aires: EJEA, 1971, pp. 130/133,
não obstante este último autor prefira tratar o instituto sob o nome de “in
dubio pro reo”. Mario PISANI, Introduzione al processo penale, Milano:
Giuffrè, 1988, p. 43, trata o art. 27.2 da Constituição italiana como se
fosse presunção de inocência, usando, não raro, e de modo proposital, a
expressão “presunção de não culpabilidade” como sinônima.
Não bastasse essa linha da estratégia doutrinária, que via no Estado de Direito
italiano um obstáculo a qualquer interpretação fascista daquele preceito inserido na sua
Constituição, firmou-se a convicção que, tecnicamente, não há diferenciação possível ou
juridicamente útil entre “inocente” e “não culpado”.666 Seriam elas “variações semânticas
de um mesmo conteúdo”,667 restando superada a distinção de conteúdo ideológico, pela
qual se desejava eliminar qualquer estado ou aspecto da inocência com a criação de uma
expressão (“não consideração prévia de culpabilidade” ou “presunção de não
culpabilidade”) desprovida daquela conotação juspolítica iluminista.668
Consciente dessa questão, a doutrina italiana se pacificou no sentido de expungir
qualquer resquício fascista limitador de seu dispositivo constitucional. Aproximando-se
as expressões, eliminou-se a dicotomia político-ideológica. O significado (norma de
direito fundamental) passou a ser aquele conferido historicamente à “presunção de
inocência”, não obstante o texto normativo contivesse outra expressão.

666 Nesse sentido, v.: Jaime VEGAS TORRES, Presunción de inocencia y


prueba en el proceso penal, Madrid: La Ley, 1993, pp. 30/32; Pier Paolo
PAULESU, Presunzione cit., p. 673; Luiz Flávio GOMES, Sobre o
conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção de
inocência, in Luiz Flávio GOMES, Estudos de direito penal e processo
penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 105/108; Giulio
ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 28/29; Antônio MAGALHÃES
GOMES FILHO, Significados da presunção de inocência, in José de
Faria COSTA e Marco Antonio Marques da SILVA (coord.), Direito penal
especial, processo penal e direitos fundamentais, São Paulo: Quartier
Latin do Brasil, 2006, p. 316; e Alexandra VILELA, Considerações cit.,
pp. 50/53.
667 Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 282.
668 Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 27, afirma que as discussões

entre as escolas italianas são uma discussão sobre a visão do processo


penal, não apenas um debate por escolha semântica. Na mesma obra
(op. cit., p. 31), afirma ter-se chegado à sinonímia na doutrina italiana
entre as duas expressões: “presunção de inocência” e “presunção de
não culpabilidade”. Porém, isso somente foi possível, acrescentamos,
quando a Itália subscreveu tratados de direitos humanos e igualou os
influxos político-ideológicos para ambas as expressões. Sobre a
diferença ideológica e seus reflexos no processo penal segundo se
aplique uma ou outra concepção (“presunção de inocência” ou
“presunção de não culpabilidade”), v. item 2.4.7.2 supra.
Todos esses debates e avanços foram hauridos pela doutrina brasileira. Isso era
inevitável, uma vez que há inegável identidade entre os preceitos constitucionais
peninsular e nacional. Há, atualmente, uma sólida formação jurídica nacional no sentido
de interpretar e aplicar o preceito constitucional como se nele estivesse explícito o
princípio tradicional da “presunção de inocência”, não obstante seja outro o seu texto.669

669 Nenhum trabalho de fundo e específico sobre o tema diverge da escolha


constitucional pela identidade entre as duas expressões. Nesse sentido,
v., como obras de referência, no campo processual penal: Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 30/34; idem,
Significados cit., p. 317; Rogério Lauria TUCCI, Direitos e garantias
individuais no processo penal brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004, pp. 378/380; Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ,
Ônus cit., pp. 280/283; Renato Barão VARALDA, Restrição cit., pp.
44/49; Geórgia Bajer Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela da
liberdade no processo penal, São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 99/104;
André Luiz NICOLITT, As subversões da presunção de inocência:
violência, cidade e processo penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,
pp. 61/64; e Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo cit., pp. 107/108.
Entendendo prevista na Constituição de 1988 a presunção de inocência,
não obstante afirme que por força da forma como o texto foi redigido ela
não tem toda extensão que deveria ter, indicando que ela pode ser
extraída do princípio do devido processo legal, v. Ricardo Alves BENTO,
Presunção cit., pp. 76/78. Na área do direito constitucional, são
partidários da equivalência entre as expressões: Alexandre de MORAES,
Direito constitucional, 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2005, pp. 103/104; Luiz
Alberto David ARAÚJO e Vidal Serrano NUNES JÚNIOR, Curso de
direito constitucional, 5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 141; André
Ramos TAVARES, Curso cit., p. 630; e Gilmar Ferreira MENDES,
Inocêncio Mártires COELHO e Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso de
direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 593. Apresentam
ressalvas a essa sinonímia, limitando o âmbito de incidência do
dispositivo constitucional: Marcelo Fortes BARBOSA, Garantias
constitucionais de direito penal e processo penal na Constituição de
1988, São Paulo: Malheiros, 1993, p. 85, e Walter Fanganiello
MAIEROVITCH, Presunção de não culpabilidade – Anotações, Revista
de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, São
Paulo, v. 126, 1990, p. 26. Para uma doutrina estrangeira que analisa o
sistema italiano e vê uma equivalência das expressões, v., por todos,
Alexandra VILELA, Considerações cit., p. 51.
Não obstante a doutrina nacional não tenha apoiado sua argumentação
expressamente em critérios interpretativos jusfundamentais, ao empreender um dúplice
sentido ao dispositivo normativo do inciso LVII, do art. 5º, da Constituição, o que a
doutrina processual penal fez foi, em essência, exatamente isso, conferindo um duplo
significado (“norma”) a um mesmo enunciado normativo. O que está conforme àquele
“modelo semântico” de consenso já referido670 e criado pela doutrina jusfilosófica dos
direitos fundamentais.671
Porém, ressalve-se mais uma vez – e à exaustão – o que já foi exposto no item
anterior que tratou da interpretação genética do dispositivo: diferentemente do ocorrido
na Itália de 1948, cujo texto constitucional foi uma solução de compromisso entre duas
ideologias (humanitária e fascista) que ainda se digladiavam doutrinária e politicamente,
no Brasil de 1988 a proposta de emenda que originou o texto constante da atual
Constituição672 tinha como justificativa e razão673 uma maior garantia e a reafirmação dos
valores político-ideológicos da igualdade, do respeito à dignidade da pessoa humana e do
devido processo legal, que inspiraram os clássicos-iluministas a conceberem a expressão
“presunção de inocência”.674 Em nenhum instante de nossos trabalhos constituintes foi
sugerido ou sequer cogitado qualquer argumento técnico-fascista violador daquele
direito fundamental.

3.8. -Decorrências da Presunção de Inocência como direito


fundamental: dimensão subjetiva e dimensão objetiva

670 Sobre o tema, v. item 3.7.1 supra.


671 No sentido de serem possíveis vários significados a um mesmo
enunciado normativo, assim como um único significado a vários
enunciados normativos, v. Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp.
27/28.
672 “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da

sentença penal condenatória”.


673 Relembre-se, mas uma vez, a justificativa apresentada para a emenda

que substituiu a expressão “inocência” por “não consideração prévia de


culpabilidade” e já anteriormente citada: “A proposta visa apenas a
caracterizar mais tecnicamente a ‘presunção de inocência’, expressão
doutrinariamente criticável, mantida inteiramente a garantia do atual
dispositivo”.
674 Sobre a integração de conteúdos jurídicos de cada expressão para se

formar um conteúdo normativo mais amplo, como segundo passo


decorrente dessa conformação político-ideológica entre as expressões
“presunção de inocência” e “presunção de não culpabilidade”, v. item
3.8.2.1 infra.
O presente estudo, desenvolvido para a área processual penal, não comporta um
exaustivo ensaio sobre os “direitos fundamentais” em toda a extensão que o tema merece.
Todavia, não há como se analisar um único ponto do direito processual penal sem se
partir desse importante capítulo do direito constitucional. Direta ou indiretamente, o
tema dos direitos fundamentais sempre atinge o processo penal e, em sentido contrário,
não há instituto processual penal relevante que não tenha sua gênese ou não esteja
teleologicamente vinculado à Constituição, de modo especial em seu capítulo dos direitos
e garantias fundamentais do cidadão. Máxime, quando, como no presente caso, o tema
sob exame integra a categoria dos direitos fundamentais.
O presente item guarda relevante destaque no desenvolvimento do tema central do
presente trabalho, pois tem como objetivo trazer todos os avanços já auferidos pela teoria
dos direitos fundamentais e aplicá-los à presunção de inocência.
Faz-se necessária, portanto, uma análise desses direitos em um corte epistemológico
limitativo à categoria dos direitos fundamentais dirigidos e mais relevantes ao processo
penal, sempre aplicando as observações daí auferidas à presunção de inocência. A
limitação do estudo jusfundamental, neste trabalho, visa eliminar divagações para além
do necessário e pertinente à abordagem do presente tema. Porém, evitar-se-á limitar o
desenvolvimento da matéria constitucional a tal ponto que comprometa ou distorça a
fidedignidade das escolhas doutrinárias realizadas ou a coerência expositiva.
No caminhar evolutivo das descobertas, reconhecimentos e positivações dos direitos
fundamentais de sucessivas gerações, percebeu-se um enriquecimento da doutrina
constitucional na busca de uma ampliação de conceitos e criação de perspectivas aptas a
garantir (i) a melhor extensão e eficácia e (ii) uma técnica mais apropriada na aplicação e
interpretação daqueles direitos. Verificado até que ponto essas conquistas e avanços
podem servir para melhor compreensão da presunção de inocência, poder-se-á, ao
depois, entender quais equívocos impedem sua melhor e maior efetividade e quando a
intervenção estatal é legítima (restrição) ou ilegítima (violação) em seu âmbito de
proteção.675

675 Sobre o âmbito de proteção e a restrição como integrantes do suporte


fático da norma de direito fundamental, v., respectivamente, itens 4.4.2 e
4.4.3 infra. Para os mesmos pontos no tema da presunção de inocência,
v., respectivamente, itens 5.4 e 5.5 e seus respectivos subitens infra.
Uma grande conquista da atual doutrina constitucional foi compreender que ao lado
da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais há uma dimensão objetiva.676 A
dimensão subjetiva sempre foi tradicionalmente mais analisada, porquanto nos direitos
fundamentais, máxime nos direitos de defesa (primeira geração), sempre teve relevo o
exame da relação que se estabelece entre o seu titular e o seu destinatário. A preocupação
com a hierarquia e tipo dessas relações entre Estado e indivíduo enriqueceu o debate
sobre o aspecto subjetivo daqueles direitos, passando-se a percebê-los como direitos
subjetivos.
Ocorre, porém, que com o passar do tempo se verificou que nos direitos subjetivos
há uma tríade constitutiva composta do “titular”, do “destinatário” e do “objeto”.677 A
dimensão objetiva começou a ter reconhecida sua importância na medida em que os
estudos dirigiram atenções ao “objeto” daquele direito subjetivo e a como melhor realizá-
lo. Isso se deu de forma mais significativa após o reconhecimento dos direitos
fundamentais de segunda geração, denominados, de forma abrangente, como direitos
sociais.
O perceber e o valorizar a dimensão objetiva, por sua vez, jogaram luzes ao
conteúdo, aos efeitos para o ordenamento como um todo e também às necessidades de
realização de ações públicas e privadas para a plena consecução dos direitos
fundamentais. Isso pode ser aplicado aos direitos fundamentais dirigidos ao processo
penal. Máxime em um sistema processual penal anacrônico e dicotômico como o nosso,
ainda mais quando ele é examinado em face da atual realidade constitucional.
Essa é a finalidade do presente item: demonstrar como se aplicam à presunção de
inocência essas dimensões e, também, em que medida e por quais razões revelam a
tendência expansiva desse direito fundamental. Tais dimensões servem de balizas
técnicas seguras e preparam os subsídios necessários para, nos próximos capítulos,
definir-se seu conteúdo essencial e quando é legítima ou ilegítima a intervenção estatal
nesse conteúdo.

3.8.1. (segue): dimensão subjetiva

676 Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 166/167, prefere o termo
“perspectivas” subjetiva e objetiva à palavra “dimensão”, termo este mais
comum à doutrina. Preferimos utilizar o termo “dimensão” por ser mais
consensual, não obstante, para facilitação expositiva, utilizaremos
doravante como equivalentes àquele termo as expressões “perspectiva”
ou “aspecto”.
677 Nesse sentido, v.: José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., p.
1238; Robert ALEXY, Derechos individuales y bienes coletivos, in Robert
ALEXY, El concepto e la validez del derecho, 2ª ed., Barcelona: Gedisa
Editorial, 1997, p. 182; e Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p. 178.
Deixando de lado toda a polêmica doutrinária vicejante desde o final do século XIX
sobre direito subjetivo,678 não se pode deixar de reconhecer que os direitos fundamentais,
notadamente os voltados ao processo penal, têm como principal finalidade “conferir aos
indivíduos uma posição jurídica de direito subjetivo, em sua maioria de natureza
material, mas às vezes de natureza processual e, conseqüentemente, limitar a liberdade
de atuação dos órgãos do Estado”.679 Nessa esteira, deve-se entender direito subjetivo em
um sentido amplo, “como posição jurídica subjectiva activa ou de vantagem”,
determinando “um ‘poder’ ou uma ‘faculdade’ para a realização ‘efectiva’ de ‘interesses’
que são reconhecidos por uma ‘norma’ jurídica como ‘próprios’ do respectivo titular”.680

678 Como referência doutrinária da polêmica sobre o tema dos direitos


subjetivos, v.: José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 118,
nota 13; Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 173/185; Martin BOROWSKI, La
estructura cit., pp. 42/43; e Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp.
177/178.
679 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 63.
680 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp. 117/119. Para os

limites e interesses do presente trabalho, aceita-se a definição de direito


subjetivo empreendida por José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito
cit., p. 1238, nos seguintes termos: “Diz-se que uma norma garante um
‘direito subjectivo’ quando o titular de um direito tem, face a seu
destinatário, o ‘direito’ a um determinado acto, e este último tem o dever
de, perante o primeiro, praticar esse acto. O direito subjectivo
consagrado por uma norma de direito fundamental reconduz-se, assim, a
uma ‘relação trilateral’ entre o titular, o destinatário e o objecto do
direito”.
Essa espécie de direitos fundamentais, inegavelmente, caracteriza-se por criar para o
indivíduo uma posição ativa ou de vantagem em relação ao Estado, o qual fica obrigado a
atuar de determinado modo ou a não atuar (abstenção) dentro de determinado âmbito
definido em razão de norma posta em favor daquele titular.681 Nesse aspecto, tais direitos
são tidos como direitos subjetivos682 aptos a criar “direitos a actos negativos

681 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 63.


682 Konrad HESSE, Elementos cit., pp. 232/238, afirma que os direitos
fundamentais são direitos subjetivos.
(‘Abwehrrechte’)”, também denominados direitos de liberdade ou direitos de defesa,
“direitos a acções positivas” e, ainda, “competências”.683

683 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., pp. 1242/1245. Para o
constitucionalista português, com evidente base no pensamento sobre o
“sistema de posições jurídicas fundamentais”, de Robert ALEXY, Teoría
cit., cap. 4, item II, o direito a “actos negativos” se subdivide em três
outros direitos, quais sejam, (i) o direito ao não impedimento de
determinados atos por parte dos entes públicos (p.ex., o direito de
exprimir ou divulgar livremente qualquer pensamento, sem qualquer
impedimento ou limitação do poder público), (ii) direito à não intervenção
dos entes públicos em situações jurídicas subjetivas (p.ex., é proibida a
ingerência de autoridades públicas em correspondências ou
telecomunicações), e, por fim, (iii) o direito à não eliminação de posições
jurídicas (p.ex., direito à não eliminação da propriedade privada). Na
linha do constitucionalista luso, v., na doutrina nacional, Paulo Gustavo
Gonet BRANCO, Aspectos de Teoria Geral dos Direitos Fundamentais,
in Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Inocêncio Mártires COELHO, Gilmar
Ferreira MENDES, Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais,
1ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2002, pp. 140/142. Quanto a direitos a
ações positivas, CANOTILHO assevera que há direitos fundamentais
que garantem ao seu titular ações positivas estatais tanto de ordem
fática (p.ex., direito a atos fáticos para segurança nacional) quanto de
ordem normativa (p.ex., proteção do direito à vida pela edição de normas
penais). Esse autor, ressalvando uma certa obscuridade que envolve o
conceito de “liberdades”, difere deste o direito à liberdade física ou de
movimentos, o qual prefere denominar “direito de liberdade” – no singular
–, ligando esta noção à idéia de liberdade pessoal. Como “direito de
liberdades” – no plural –, por exemplo, indica a liberdade de religião ou
de culto, a liberdade de criação cultural, a liberdade de associação ou a
liberdade de consciência, para as quais o autor atribui posições
fundamentais subjetivas de natureza defensiva. Conclui, por fim, que
tanto o direito de liberdade quanto o direito de liberdades identificam-se
com as referidas ações negativas. As competências, por fim, consistem
em uma outra posição jurídica dos direitos fundamentais e que
asseguram que o indivíduo, titular daquele direito, pratique determinados
atos jurídicos com os quais poderá alterar posições jurídicas de outrem.
Nesse mesmo sentido, v. Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp.
179/180.
Os direitos fundamentais de primeira geração têm, portanto, seu “núcleo estrutural”
constituído por “posições jurídicas subjetivas consideradas fundamentais e atribuídas a
todos os indivíduos ou a categorias abertas de indivíduos”.684 Por serem essas posições
jurídicas radicadas em normas constitucionais atribuidoras de direitos essenciais à busca
de efetivação pacífica da dignidade humana em uma sociedade democrática, recebem o
nome de “direitos subjetivos fundamentais”, como que especificando os direitos
subjetivos que contenham aquele tipo de hierarquia jusfundamental.685
O direito fundamental, portanto, do ponto de vista do indivíduo, é um direito
subjetivo (fundamental) a lhe garantir uma posição de vantagem ou ativa em relação ao
Estado (destinatário daquela norma). Já do ponto de vista desse destinatário, o direito
fundamental é uma norma de “competência negativa”, no sentido de impedir ou limitar
suas possíveis atuações.686 O grau de exigibilidade ou de “justiciabilidade” daquele direito
é de intensidade variável e depende da normatividade de cada direito fundamental.687
Assim, por exemplo, na medida em que se asseguram aos indivíduos o direito ao devido
processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR) e o direito à inviolabilidade de sua casa (art. 5º,
inciso XI, CR), proíbe-se o Estado de aplicar pena àquele titular sem antes submetê-lo ao
processo justo ou, ainda, impede o ingresso de agentes policiais na residência alheia fora
das hipóteses legais. Para que haja limites exigíveis pelo indivíduo em face do
destinatário (em regra, público), é necessária a inscrição legal do direito para que se possa
melhor auferir seu “suporte fático amplo”.688
Sem se negar que exista entre indivíduo e Estado essa “relação de subjetividade”
inerente aos direitos fundamentais processuais penais, é importante destacar que a sua
aceitação, sem maiores considerações, tem contribuído para uma acomodação
doutrinária no âmbito processual. Acomodação representada pelo entendimento que os
direitos subjetivos fundamentais dirigidos ao processo penal serão realizáveis apenas e
tão somente com a abstenção de atuação estatal.

684 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 82.


685 Sobre essa característica de “fundamentalidade” acrescida à estrutura
dos direitos subjetivos como criadora do “direito subjetivo fundamental”,
v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp. 140/142. Para
uma posição contrária a uma perfeita sinonímia entre “direitos
fundamentais” e “direitos subjetivos”, v. Jorge MIRANDA, Manual cit., t.
IV, pp. 56/58.
686 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 63.
687 Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p. 180.
688 Sobre o conceito de “suporte fático amplo”, composto por “âmbito de

proteção” e “intervenção estatal”, e sua importância na definição do


conteúdo essencial relativo do direito fundamental, v. itens 4.4 e 4.5, e
seus respectivos subitens, e, também, item 4.6 infra.
Essa acomodação, em grande medida, advém do fato de os direitos fundamentais
processuais penais serem inseridos, sem maiores ressalvas, entre os denominados
“direitos de defesa”. Para tal, segue-se a tradicional classificação de GEORG JELLINEK,
elaborada para os direitos subjetivos.689 Segundo essa classificação, os direitos
fundamentais processuais penais690 inserem-se na categoria dos direitos de status
negativus (ou status libertatis), também denominados pela doutrina de direitos à
resistência,691 direitos de defesa692 ou direitos de liberdade.693

689 Nessa classificação, o autor identificou quatro status para os direitos


subjetivos em geral, não sendo essa classificação feita para os direitos
subjetivos fundamentais, uma vez que a obra data do final do século XIX
e início do século XX. Feita essa última ressalva, assim classificava
JELLLINEK: a) status subjectionis ou status passivus, pelo qual o
indivíduo se encontra em posição de sujeição e subordinação frente ao
Estado, caracterizando-se como portador apenas de deveres para com
os poderes públicos; b) status negativus ou status libertatis, no qual são
inseridos, habitualmente, os direitos fundamentais do processo penal,
também denominados direitos de defesa, e que atribuem ao indivíduo
um espaço de liberdade frente aos poderes públicos, conferindo ao
homem personalidade e liberdade oponíveis ao e exigíveis do Estado; c)
status civitatis, também conhecido como status positivus, de direitos
sociais ou de direitos a prestações, nas hipóteses em que ao indivíduo é
permitido exigir determinadas prestações do Estado, que deve agir em
favor do cidadão; por fim, como quarta categoria, d) o status activae
civitatis ou apenas status activus, também denominados como direitos
políticos ou direitos de participação, pelo qual ao indivíduo são
conferidos poderes para influir e participar nas escolhas e vontades do
Estado, é seu direito de participar nas decisões públicas. Para uma visão
mais exaustiva da teoria dos status, v. Giorgio JELLINEK, Sistema dei
diritti publici subbiettivi, tradução italiana de Gaetano Vitagliano, Milano:
Società Editrice Libraria, 1912, itens VIII a X.
690 Em uma classificação que tenha como critério a historicidade dos direitos

fundamentais, os direitos dessa natureza ligados ao processo penal


integrariam a denominada primeira geração dos direitos humanos. Nesse
sentido, na doutrina brasileira, v.: Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit.,
pp. 55/56; José Adércio Leite SAMPAIO, Direitos cit., p. 260; Paulo
BONAVIDES, Curso cit., pp. 562/564; e André Ramos TAVARES, Curso
cit., pp. 427/428.
691 Como adeptos dessa opção, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS,

Teoria cit., pp. 64/67.


Não obstante tal classificação ainda hoje seja considerada “el ejemplo más grandioso
de una teorizacíon analítica en el ambito de los derechos fundamentales”, conforme
assevera ROBERT ALEXY,694 não se pode mais considerá-la satisfatória para todo o
complexo de direitos fundamentais e também como exauriente de todos os aspectos dos
direitos fundamentais processuais penais.695 Isto porque uma mera abstenção estatal,
suficiente à concepção de status negativus de JELLINEK, não atende muitas das
necessidades mínimas de efetivação desses direitos. Destacou ALEXY que no âmbito
desse status estavam inseridas, pela concepção de GEORG JELLINEK, apenas as
“liberdades não protegidas”, entendidas essas liberdades como liberdades jurídicas
negativas que oferecem uma alternativa de comportamento, isto é, liberdade de fazer ou
não fazer algo.696

692 Entendendo essa a melhor tradução para a expressão alemã


correspondente, v.: Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Aspectos cit., pp.
140/142; Edílson Pereira de FARIAS, Colisão de direitos: a honra, a
intimidade, a vida privada e a imagem “versus” a liberdade de expressão
e informação, 2ª ed., Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000,
pp. 104/106; e Gilmar Ferreira MENDES, Direitos fundamentais e
controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional, 3ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 2004, pp. 2/4.
693 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., pp. 1242/1245.
694 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 261.
695 Não obstante a esmagadora maioria da doutrina constitucional faça, sem

ressalvas, referência à teoria dos status de Georg Jellinek, indicam-se,


nessa passagem, autores que ressalvam aquela classificação: Robert
ALEXY, Teoría cit., cap. V, e Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp.
87/90. Na doutrina brasileira, indicando críticas e apoios àquela teoria, v.
Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp. 68/71.
696 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 251/255 e, sobre o conceito de

“liberdades não protegidas”, v. op. cit., pp. 219/223.


Ocorre, porém, que, como se vem notando com o desenvolvimento da teoria dos
direitos fundamentais, aquela espécie – direitos de defesa – carece de uma atuação
positiva do Estado, não sendo suficiente apenas a abstenção estatal para sua realização
plena.697 Nesse aspecto, a doutrina tem indicado que, ao lado da relação subjetiva
perceptível pela dimensão subjetiva, há uma necessidade de atuação do Estado
principalmente em nível organizacional e procedimental, ponto tratado mais adiante
quanto analisarmos a dimensão objetiva dos direitos subjetivos fundamentais do processo
penal. Por ora, no estudo da dimensão subjetiva, resta estacar, pelo até aqui exposto, que
os direitos fundamentais processuais penais não se realizam plenamente apenas com a
abstenção estatal, carece, também, de um agir estatal e várias órbitas.698
O estudo da dimensão subjetiva dos direitos subjetivos fundamentais ainda mostra
uma outra vantagem, qual seja, eliminar uma outra falsa impressão dos operadores do
direito, qual seja, que esses direitos são formados apenas por interesses individuais.

697 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 252/254, dissecando de modo analítico os
status sugeridos por JELLINEK, demonstra, servindo-se de trechos e
expressões do próprio texto deste último autor, que os direitos de defesa
inseridos, por JELLINEK e pela maior parte da doutrina, entre os direitos
integrantes do denominado status negativus têm caráter oscilante.
ALEXY indicou que o próprio JELLINEK reconhecia que aos direitos de
defesa – entre os quais se incluem os direitos fundamentais processuais
penais – eram necessárias prestações positivas do Estado, não sendo
suficiente a mera abstenção estatal. Como as prestações positivas do
Estado sempre foram inseridas no status positivus, o direito de defesa
oscilaria ora como integrante de um, ora como pertencente a outro dos
status. Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos
cit., pp. 172/174, e Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 6.7.2.2.
698 Vírgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., pp. 78/79, afirma

que “também as liberdades públicas e os direitos políticos exigem uma


prestação estatal. No caso das liberdades, pode-se dizer, por exemplo,
que elas exigem que o Estado aja no sentido de protegê-las e, além
disso, que crie as instituições e os procedimentos necessários ao seu
exercício. (...) os direitos decorrentes desses deveres estatais são os
direitos a prestações em sentido amplo e se diferenciam dos direitos
sociais na medida em que não têm como objetivo a realização de uma
igualdade material entre os indivíduos, que é o escopo por excelência
desses últimos”. É o que será analisado no item 3.8.2 infra e seus
subitens, quando tratarmos dessas decorrências da dimensão objetiva
dos direitos fundamentais.
Mesmo limitando o exame dos direitos fundamentais processuais penais como
direitos de defesa (de resistência, de liberdade ou de status negativus699), ressurte
importante ao operador notar que eles não têm apenas feição individual, mas também
conotação coletiva, porquanto essencial para a vida em sociedade. Essa consciência de
ampliação de perspectiva – do individualismo liberal para o coletivo, típico de um Estado
Democrático e Social de Direito – desmistifica o que para muitos está na base de um
dualismo insuperável e que acompanha o processo penal desde o conflito entre a Escola
Clássica e a Escola Positiva: a luta entre o interesse público de punir contra o interesse
privado à liberdade.
Para o bem da evolução da ciência processual penal, não se pode mais aceitar o
maniqueísmo de que no processo penal ou se protege o imputado ou se promove uma
política repressiva estatal legítima e eficiente. Há de haver uma compatibilização e uma
coexistência equilibrada desses interesses.700
Ao se perceber que os direitos fundamentais têm titularidade individual, mas
também cuidam de interesses e bens coletivos, dá-se o primeiro passo para se
compreender que o processo penal não pode mais ser pensado como um instrumento a
serviço do direito de liberdade do cidadão “ou” do direito punitivo do Estado. Com isso,
também se superará aquela pergunta que atormenta a muitos: qual interesse deve
prevalecer no processo penal, o estatal ou o individual?

3.8.1.1. -(segue): fundamentação da presunção de inocência em


interesses individuais e coletivos

699 No presente trabalho, todas as expressões serão utilizadas como


equivalentes e sinônimas; não obstante tenhamos a preferência pela
denominação “direitos de defesa”, por entendermos trazer melhor a idéia
pela qual foram criados no passado e que, ainda hoje, mantém a sua
pertinência.
700 Antonio SCARANCE FERNANDES, Teoria do procedimento e o
procedimento no processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2005, pp. 39/43, expõe que o estudo do processo penal deve tender à
busca de uma fórmula que assegure “eficiência com garantismo”,
porquanto sejam estes os valores fundamentais deste ramo processual
na modernidade.
Há uma causa histórica e outra funcional para a visão meramente individualista dos
direitos de defesa. Historicamente, esses direitos foram os primeiros direitos
fundamentais reconhecidos pela humanidade, fato ocorrido por força da Revolução
Francesa de 1789, instituindo-os em pleno vigor da ascensão do Estado liberal burguês.
Funcionalmente, é inegável que os direitos fundamentais voltados ao processo penal
(p.ex., direito à ampla defesa, ao contraditório, à publicidade dos atos persecutórios, ao
juiz natural ou à motivação) são direitos subjetivos (fundamentais) e, portanto, visam, em
uma primeira abordagem, à proteção de interesses de seus titulares.701 Contudo, no atual
estágio da evolução juspolítica dos Estados constitucionais e da doutrina dos direitos
fundamentais, não é mais possível ou correto manter essa visão individualista como a
única ou, quiçá, a mais relevante.
Para superar essas duas causas (historicidade e funcionalidade) é necessário
desmistificar alguns pontos e por outros às claras.
Deve-se superar aquela cultura jurídica formada na historicidade derivada do
pensamento iluminista porquanto é impossível encontrar-se, nos Estados atuais, qualquer
purismo liberal burguês. Os programas políticos dos Estados, a economia globalizada e
operada em tempo real em todo o mundo, o reconhecimento de desigualdades materiais
a serem supridas por intervenção (fática ou normativa) do Estado na vida cotidiana, não
admitem mais um sistema juspolítico nos moldes empreendidos pelos revolucionários
franceses. O Estado não é mais um inimigo a se manter afastado e muitos dos cidadãos
não são auto-suficientes para atingir toda a realização dos direitos fundamentais para eles
dispostos. Além do que há atividades (p.ex., as atividades persecutória e judiciária) que
são monopolizadas pelo Estado e, portanto, muitas das conquistas dos direitos
fundamentais, quando inseridas nessas áreas de monopólio, somente podem ser
implementadas por atos e posturas estatais (executivas, legislativas ou judiciárias).
A escolha política do Brasil em ser, materialmente, um Estado Democrático e Social
de Direito,702 inspirado e parametrizado por um catálogo de direitos fundamentais tidos
como valores supremos das opções juspolíticas dos cidadãos, não admite mais que sejam
vistos como direitos apenas voltados à tutela individual.
Os direitos fundamentais, também em nível processual penal, não são apenas formas
de conferir direitos ao indivíduo, mas, principalmente, o reconhecimento de que o
homem, para ser cidadão na acepção política do termo, necessita de proteção contra o
arbítrio estatal. Isto porque “também a democracia é domínio de pessoas sobre pessoas,
que está sujeito às tentações do abuso do poder, e porque poderes estatais, também no
estado de direito, podem fazer injustiças. Asseguramento eficaz da liberdade e igualdade
do particular torna, por conseguinte, mais além da configuração das ordens objetivas da
democracia e do estado de direito, necessária a garantia de direitos subjetivos à liberdade
e à igualdade”.703

701 Quanto a esse primeiro plano funcional dos direitos subjetivos funcionais,
v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 119.
702 Sobre o tema, v. item 3.5.1 supra.
703 Konrad HESSE, Elementos cit., p. 235.
Fixada a pauta de direitos fundamentais como critério axiológico de comportamento
(individual e coletivo; público e particular), o Estado precisa se legitimar e legitimar seus
atos, notadamente em momentos de crise interna, mesmo que essa crise seja uma
violação do dever de comportamento de um cidadão por meio do cometimento de um
delito.
Funcionalmente, os direitos fundamentais processuais penais não têm nenhuma
importância prática para o cidadão, visto como ser individualizado, enquanto não houver
qualquer ato de persecução penal. Antes de iniciada a persecução, eles são apenas uma
previsão abstrata do sistema para aplicação futura e no instante em que se fizerem
necessários. Esse instante surge para os cidadãos quando estão submetidos à qualquer ato
de persecução penal. As normas jusfundamentais são criadas para a universalidade de
cidadãos, mas são efetivadas e utilizadas quando o cidadão, individualmente analisado, é
submetido a atos persecutórios.
Os direitos fundamentais processuais penais são valores superiores que foram
escolhidos pelo Estado Democrático e Social de Direito brasileiro como compromisso da
nação para com os organismos internacionais e, em outro sentido, como compromisso
estatal para com a universalidade de seus cidadãos (a coletividade) e, ainda, como
compromisso destes entre si. Se o programa político-constitucional consubstanciado nos
direitos fundamentais (processuais penais, inclusive) superou de há muito o Estado
Liberal, não há como se manter a visão individualista como a única em relação àqueles
direitos.
A perspectiva funcional, inicialmente referida, também precisa servir à superação
da visão individualista como a única a justificar os direitos fundamentais. Nesse caso, sem
esquecer a posição hierárquico-axiológica acima referida dos direitos fundamentais
processuais penais, deve-se tomar um redobrado cuidado com o seguinte ponto: os
direitos fundamentais processuais penais são elaborados e inscritos para o benefício de
todos e para a legitimidade da atividade persecutória estatal, embora sejam exercidos, em
regra, individualmente.
Sendo os direitos fundamentais processuais penais também direitos subjetivos,
ressalta-lhes a função de proteção ao interesse do indivíduo. Porém, são direitos
extraídos de uma conscientização útil e benéfica a todos. O melhor à coletividade é uma
persecução mais justa e equilibrada, na qual o Estado tem seus poderes controlados e
legitimados por escolhas de consenso.704 Esses direitos são de todos e foram inscritos por
todos constitucionalmente, sendo que só os exerce ou deles exige a efetivação aquelas
pessoas submetidas à persecução. O exercício individual daquele direito não deve
significar que o interesse e o valor que o inspiraram são exclusivamente individuais.
Como já assente pela doutrina,705 não se pode confundir o direito e seu conteúdo
com a sua fundamentação. ROBERT ALEXY assevera que um direito individual pode
estar justificado por um feixe de fundamentos heterogêneos e por trás de diferentes
direitos podem haver fundamentações totalmente diferentes. “Sobre a base de direitos
individuais e coletivos podem distinguir-se três justificações dos direitos. Um direito
pode ser justificado em geral ou em uma determinada situação (1) exclusivamente por
bens individuais, (2) tanto por bens individuais quanto coletivos e (3) exclusivamente
por bens coletivos”.706 Assim, conclui o jusfilósofo citado, o direito como posição jurídica,
já normatizado, pode ser um direito individual também quando justificado por bens
coletivos,707 sendo, por essa razão, acertado denominar os direitos individuais, de um
modo geral, como direitos subjetivos.708

704 Nesse sentido, v. Antonio SCARANCE FERNANDES, Teoria cit., pp.


43/46, e Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio SCARANCE FERNANDES,
Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, As nulidades no processo penal,
9ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 25/26. Para maior
clareza do pensamento dos autores citados, deve-se extrair o seguinte
trecho da última obra referida: “Os preceitos constitucionais com
relevância processual têm a natureza de normas de garantia, ou seja, de
normas colocadas pela Constituição como garantia das partes e do
próprio processo. (...) Da idéia individualista das garantias
constitucionais-processuais, na ótica exclusiva de direitos subjetivos das
partes, passou-se, em épocas mais recentes, ao enfoque das garantias
do ‘devido processo legal’ como sendo qualidade do próprio processo,
objetivamente considerado, e ator legitimante do exercício da função
jurisdicional”.
705 Robert ALEXY, Derechos individuales cit., pp. 180/182.
706 Tradução livre de trecho contido em Robert ALEXY, Derechos

individuales cit., p. 181.


707 No mesmo sentido, inclusive com lastro em Robert Alexy, v. Jesús

González AMUCHÁSTEGUI, Los límites de los derechos fundamentales,


in Luis PIETRO SANCHÍS et al, Constituición y derechos fundamentales,
Madrid: Centro de Estudos Políticos y Constitucionales, 2004, pp.
454/458.
708 Robert ALEXY, Derechos individuales cit., p. 181. Não deixa o autor de

apontar a possibilidade de outras terminologias, porém justifica de modo


convincente e prático sua opção, à qual nos filiamos no presente estudo.
Aplicando o até aqui expendido para os direitos fundamentais processuais penais,
sem com isso deixar de entendê-los como direitos individuais, percebe-se, facilmente, a
existência de interesses e valores coletivos que eles visam tutelar, sendo, portanto,
direitos fundamentados tanto em interesses individuais quanto coletivos. Duas perguntas
podem ajudar a uma melhor compreensão: para que serve o processo penal? e como deve
ser o processo penal em um Estado Democrático de Direito?
Está assente na cultura jurídica que o processo penal existe como meio de
verificação estatal da ocorrência, ou não, de um fato tido como delituoso e de quem é o
seu responsável. O processo penal, portanto, tem sua razão essencial (ratio e essentia) em
ser meio para obtenção de certeza estatal quanto à necessidade de eventualmente se
aplicar, ou não, uma pena em conseqüência de um injusto praticado. O processo não é
meio de aplicar pena, nem tampouco de evitar que ela seja aplicada. Aplicá-la ou não é
uma eventualidade de cada caso, não é a sua “razão”. Observando-o sem precipitações ou
influências do direito penal, ele consiste em meio de obtenção do maior grau de certeza
possível sobre a ocorrência ou não de um fato, a fim de que, desta constatação, se possa
analisar a oportunidade de aplicar ou não uma sanção penal. Com essas observações
responde-se à primeira questão antes formulada (para que serve o processo penal?)
A resposta à segunda questão (como deve ser o processo penal em um Estado
Democrático de Direito?) parte da conclusão anterior que atendeu ao “para quê”.
Já se verificou, pelos capítulos I e II, que todas as formas inquisitivas, arbitrárias ou
despóticas de construção de um sistema procedimental penal não têm em vista uma
melhor reconstrução fática, mas, tão-somente, criar um instrumento de aplicação dos
desígnios (políticos, econômicos, expansionistas, ideológicos, religiosos etc.) dos
ocupantes momentâneos do poder. Assim, o processo penal tem sua missão desvirtuada e
sua eficiência não se dirige à reconstrução fática, mas à mais rápida e eficaz punição de
determinadas pessoas, nem sempre agentes de crimes.
Em um Estado Democrático de Direito, em cujos primados fundamentais estão a
dignidade da pessoa humana, a igualdade e o cidadão como fonte primaz do poder – logo,
como princípio e fim dos atos (públicos e privados) –, a persecução não pode ter aquele
matiz despótico, inquisitivo ou arbitrário. Por essa razão, nossa atual Constituição não
autoriza a realização de “qualquer” processo penal, mas apenas de um devido processo
penal,709 feito em moldes a respeitar aqueles primados na busca da melhor reconstrução
possível dos fatos penalmente relevantes. Nesse contexto, e apenas nesse contexto,
explica-se e insere-se todo o catálogo de direitos fundamentais constitucionais na
elaboração, aplicação e interpretação de todo o sistema processual penal.710

709 Expressão cunhada por Pedro Juan BERTOLINO na obra El debido


proceso penal, La Plata: Platense, 1986, pp. 20/21. No Brasil, essa
expressão ficou consagrada a partir da tese de titularidade do professor
Rogério Lauria TUCCI, apresentada perante a Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, em 1993, e hoje já publicada, em sua
segunda edição, sob o título Direitos cit., pp. 67/71.
710 Antonio SCARANCE FERNANDES, Teoria cit., pp. 43/46, assevera: o
“direito a um sistema de regras e princípios que conjuguem eficiência e
garantia não representa direito a um procedimento certo, determinado,
com todos os seus atos e fase, em seqüência predeterminada, mas o
direito a um procedimento assentado em alguns paradigmas extraídos
de normas constitucionais do devido processo penal. A palavra
paradigma significa ‘modelo, exemplo, padrão’. No direito, tem sido
usada como expressão do ‘concerto científico’ sobre ‘teorias, modelos,
métodos de compreensão do mundo’. Aqui, usa-se a expressão
‘paradigmas procedimentais’ para representar algumas diretrizes
extraídas de princípios constitucionais e que devem ser levadas em
conta pelo legislador na criação de procedimentos processuais penais”.
A não efetivação daqueles direitos fundamentais a um dos integrantes da
comunidade, no curso da persecução penal, coloca todos os cidadãos em estado de
insegurança, pois se percebe que o compromisso constitucional não está sendo cumprido
pelos poderes públicos, únicos entes com o monopólio da persecução.711

711 Somente quando os agentes públicos fazem e cumprem um sistema


persecutório respeitador dessas balizas fundantes de uma sociedade
pacífica e justa é que os poderes públicos cumprem o seu
“compromisso”, interno e internacional, formalizado na Constituição e,
assim, efetivam aqueles direitos. Sobre os compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil em face dos direitos fundamentais inseridos em
sua Constituição e, também, em face dos direitos humanos reconhecidos
nos Tratados por ele subscritos já nos manifestamos no item 3.3.2 supra.
Necessário enfatizar, que se, no instante de sua efetivação, tendo em
vista a gravidade do crime irrogado ou as características do imputado, os
poderes públicos agem fora e aquém daquele catálogo de direitos
essenciais, deslegitimam-se exatamente no único momento de provarem
que cumprem as normas fundamentais por eles próprios assumidas e
estabelecidas. Ao descumprirem-nas, perdem a legitimidade de exigir
dos cidadãos que cumpram outras normas da mesma natureza, p.ex.,
não violar a integridade física e psicológica de outrem, não violar a
intimidade, ou, mais, respeitar o patrimônio alheio (público ou privado) e,
ainda, as liberdades das demais pessoas. Surgiriam dois violadores, um
certo e outro ainda sujeito à verificação: este último o agente do ilícito,
suspeito a ser submetido a julgamento; e o violador certo passaria a ser
o Estado, por meio de seus agentes públicos (persecutórios e
judiciários). A prevalecer essas violações de ambas as partes não há
paz, porquanto não haverá direitos fundamentais, Constituição, Estado
de Direito e, por fim, respeito à dignidade da pessoa humana. Não
haverá cidadão, porquanto não haverá mais homens; viveríamos todos
em estado de barbárie.
Pela mesma via, se o catálogo de normas se mostrar inaplicável faticamente e
carcomido em sua eficácia, levará toda a coletividade à consciência de que não poderá
mais acreditar nas leis e nos poderes instituídos, restando-lhe resolver suas controvérsias
penais, a quem possuir recursos para isso, pela criação ou aproveitamento de desvios no
sistema criminal (penal e processual penal). Esse comportamento auto-salvacionista leva
a maiores ineficiências do aparato público, as quais passam a impressão de que somente
poderão ser sanadas com medidas mais duras de repressão, pouco importando se legais ou
não. Com isso, aumenta-se o descrédito no sistema, agora pela perspectiva de seus
agentes internos, que passam a ser os promotores das violências e das arbitrariedades no
curso da persecução, como forma (ilegítima e anti-produtiva) de reduzir aquelas
ineficiências. Viola a Constituição tanto o cidadão criminoso, quanto o Estado
ineficiente, leniente, omisso e arbitrário. As pessoas imputadas, nesse sistema deformado
e com agentes brutalizados, tendem a ser coisificadas e, a partir desse ponto, para essas
“coisas”, de comportamento “fora do ordenamento”, os direitos fundamentais parecem
inaplicáveis. Não são mais pessoas, não são mais merecedoras de serem qualificadas como
“seres humanos”; tornam-se hostis.712 Esse é o pensamento (quase uma crença) desviado e
ineficiente que começa a vicejar. A espiral é viciosa, veloz e irreversível; o sistema terá
uma incontrolável tendência à brutalização (e não humanização) de seus agentes para
com seus destinatários.
O que não se pode esquecer é que os destinatários de um sistema processual penal
somos todos nós, a sociedade. Ninguém está dele distante que não possa ser alcançado e
nem imune o suficiente de suas ineficiências que seja capaz de alcançar um julgamento
justo. Inevitável se perceber que a aplicação efetiva e plena dos direitos fundamentais
processuais penais é, também, um interesse e um valor coletivos.713

712 Sobre a figura do hostis como o inimigo no direito penal, v. Eugenio


RAÚL ZAFFARONI, O inimigo no direito penal, tradução de Sérgio
Lamarão, Rio de Janeiro: Revan, 2007. Para comentários sobre a
inserção romana e medieval desse conceito, v. itens 1.2.4, 1.3 e 1.3.2
supra.
713 Nas palavras de José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p.
114: “Na realidade, ultrapassadas as perspectivas puramente
individualistas associadas a concepções atomísticas da sociedade, é
hoje entendimento comum que os direitos fundamentais são os
pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para
o indivíduo como para a comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa
comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta por homens
livres e dignos”.
Isso não significa dizer que tais direitos deixem de ser direitos individuais.714 O que
se quer esclarecer é que também estão justificados por interesses coletivos; logo, são
daqueles direitos que têm em sua fundamentação, concomitantemente, interesses
individuais e coletivos.
A consciência da multiplicidade de interesses como justificadores dos direitos
fundamentais destinados ao processo penal permite duas pontuações: a primeira, que
aqueles direitos, quando vistos e exercidos de forma individual, não podem ser tidos
como óbices aos interesses comunitários; a segunda, que os interesses das partes em
conflito no caso concreto – por uma condenação ou uma absolvição – não são da mesma
natureza, isto é, não se instalam no mesmo plano axiológico daqueles interesses
(individuais e coletivos) que servem de fundamento para as normas constitucionais
dirigidas ao processo penal.
Essa segunda postura revela um erro muito recorrente aos que confundem
interesses defendidos na causa penal com os interesses conformadores dos direitos
fundamentais processuais penais. Incide em erro palmar quem estabelece um paralelo
entre o interesse pela condenação como um interesse público, e o interesse pela
absolvição como um interesse privado ou individual. Não assiste razão a quem pense
assim mesmo se alegar que a acusação é feita pelo Ministério Público e a defesa é
exercida por agente privado, pois se sabe que em muitos sistemas processuais, inclusive o
brasileiro, é possível haver acusação privada e defesa pública. A confusão é desfeita
quando se percebe que os planos são distintos e facilmente verificáveis: há interesses que
se digladiam “no” processo penal e outros interesses que se conjugam e se harmonizam
“ao” processo penal mais justo e equânime possível. Aqueles são casuísticos e
pertencentes às partes do processo, os últimos são gerais e pertencentes a toda a
comunhão social.

714 Entendem a presunção de inocência como direito público subjetivo: José


María LUZÓN CUESTA, La presunción de inocencia ante la casación,
Madrid: Editorial Colex, 1991, p. 13; Geórgia Bajer Fernandes de Freitas
PORFÍRIO, A tutela cit., p. 73; e André Luiz NICOLITT, As subversões
cit., p. 89.
Para a presunção de inocência, a citada justificação constitucional lastreada em
interesses e valores individuais e coletivos fica mais evidente. Não se presume inocente
um imputado específico, mas se confere aquele estado (“estado de inocência”) a todos,
imputados e imputáveis, já antes e independente da persecução penal.715 A presunção de
inocência, nesse ponto, revela com mais evidência seu aspecto de informador juspolítico
do processo penal, uma vez que impõe o processo como uma necessidade entre a pena e o
cidadão.716 O processo, informado pela presunção de inocência, garante ao imputado e a
todos os imputáveis não apenas a necessidade de existência de um processo penal antes
de serem eventualmente condenados, mas também que ele não seja um processo
qualquer, um processo arbitrário e tendencialmente condenatório.
Ao lado dessa perspectiva da presunção de inocência como informadora ideológica
de um sistema processual penal em nível infraconstitucional, e adentrando na sua
influência no curso de uma persecução específica e já instaurada, não se chega a resposta
diferente. A presunção de inocência não impede a eficiência persecutória, uma vez que
se rejeita a sua “absolutização”, legitimando-se, portanto, prisões no curso persecutório
quando o imputado pratica atos que visam impedir ou conturbar o seu curso, ou em
situações excepcionais, mesmo por razões materiais.717 Esse exemplo não é único, mas
bem demonstra que a presunção de inocência não deve ser colocada como algo
irrestringível. Não é essa a idéia defendida nesse trabalho por dois motivos: a) sua
absolutização leva-a ao descrédito, uma vez que há situações fáticas e jurídicas em que
ela deva ceder em face de argumentos mais fortes e b) porque atrás de toda absolutização
(para condenar ou para inocentar) escondem-se culpados e inocentes e, quando isso
ocorre, sem qualquer ponderação em virtude das condições da situação concreta, abrem-
se espaços às injustiças (perseguições ou privilégios).

715 Sobre o reconhecimento do “estado de inocência” como marco da


evolução juspolítica dos Estados Democráticos de Direito do pós-guerra
em comparação com as posturas autoritárias dos governos nazifascistas
do início do século XX e os reflexos ideológicos disso na compreensão
das diferenças entre “presunção de inocência” e “presunção de não
culpabilidade”, v. item 2.4.7.2 supra.
716 Sobre a finalidade e a função do suporte fático (âmbito de proteção e

restrição estatal) da presunção de inocência, v. item 5.3.3 infra.


717 Sobre o tema, v. item 5.4.1.2 e seus subitens infra.
Evidentemente, a presunção de inocência não é empecilho para a persecução – até
mesmo porque é possível haver persecução em ordenamentos jurídicos que a aceitam
como primado juspolítico – porquanto não impede os atos estatais de reconstrução dos
acontecimentos penalmente relevantes e a ponderação casuística das condições fáticas e
jurídicas. É, para garantia de todos, uma balizadora de “como” devem ser essas
persecução e ponderação. É um direito de fundamentação individual “e” coletiva.718 Não
visa à proteção dos criminosos, como afirmavam os técnico-jurídicos nazifascistas, mas
confere, pela perspectiva individual, uma situação jurídica a todos e quaisquer indivíduos
desde antes da persecução penal e por todo o seu curso. Pela perspectiva coletiva, por sua
vez, assegura e conforma um sistema processual penal justo e equilibrado.719

3.8.2. (segue): dimensão objetiva

A dimensão objetiva teve sua importância revelada quando da inscrição dos direitos
fundamentais sociais. Percebeu-se que os direitos fundamentais têm sua importância não
apenas pelas relações subjetivas (obrigações, direitos, deveres, liberdades, garantias) que
estabelecem, mas também pelo aspecto objetivo do disposto normativamente.720 Essa
dimensão objetiva conforma, informa e parametriza todo o ordenamento jurídico e todas
as ações públicas e particulares, tornando-se um complemento para a dimensão
subjetiva.721 Nesse sentido, é a base da ordem jurídica coletiva a estabelecer uma
cooperação e reciprocidade com o aspecto subjetivo da norma.722

718 Nesse sentido, v. Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 559/560.


719 Nesse sentido, v. item 5.3 e seus subitens infra.
720 Sobre a dimensão objetiva ter se evidenciado com mais nitidez com os

direitos sociais, v. Paulo BONAVIDES, Curso cit., p. 565. Não obstante o


autor não negue suas incidências aos denominados “direitos de defesa”,
refere-se sempre àquela espécie de direitos fundamentais ao tratar do
tema.
721 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 115, e André de

Carvalho RAMOS, Teoria cit., p. 238.


722 Konrad HESSE, Elementos cit., pp. 239/241, itens 290/294.
Pela perspectiva objetiva, os direitos fundamentais projetam efeitos e exercem
função mesmo que não haja uma necessidade específica de um indivíduo, ou seja, atuam
sem que haja uma específica relação subjetiva entre cidadãos ou entre cidadão e
Estado.723 A dimensão objetiva é uma “mais valia” em relação à dimensão subjetiva e
cobre espaços juspolíticos que esta última dimensão não abarcaria.724
A disposição normativa de um direito fundamental, por força de sua inserção em
nível hierárquico constitucional, estabelece critérios à atuação estatal na construção de
toda uma infra-estrutura normativa, organizacional e procedimental destinada à maior
efetivação dos direitos fundamentais, sem que para isso seja necessário estarmos diante
de um caso específico.725
Na medida em que há uma escolha jusfundamental de natureza jurídico-objetiva, é
necessário que o Estado crie previamente todo um arcabouço apto a propiciar o pleno
exercício do direito elevado à categoria de fundamental. Nessa perspectiva, a dimensão
objetiva não pauta e orienta a atuação do Estado apenas no instante em que o direito
fundamental está sendo exercido por seu titular para a proteção do interesse (individual
ou coletivo) contido na norma, mas também, e principalmente, em um momento
anterior àquele exercício,726 a fim de propiciar as condições necessárias a uma efetivação
mais abrangente possível.
Alguns exemplos podem esclarecer o acima referido. Ilustrando com um direito
social, pode-se compreender que não seria uma realidade efetiva para o cidadão se o
Estado assegurasse-lhe o direito à educação (art. 6º, caput, c/c art. 205, CR), mas não
implementasse medidas necessárias para sua plena fruição. Torna-se necessária, portanto,
a criação de condições estruturais prévias, antes que o cidadão efetive/exerça o seu
direito à educação. Para isso a dimensão objetiva daquele direito impõe ao Estado que,
p.ex., construa escolas e centros educacionais de qualidade para oferecê-los a todos.
Exemplificando, agora, no âmbito processual penal: não se pode ter como efetivamente
garantida a assistência jurídica ao cidadão desprovido de recursos (art. 5º, LXXIV, CR)
sem que se estruture, previamente, uma Defensoria Pública apta a atender os imputados
e necessitados em geral (art. 134, CR).

723 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp. 118/119.


724 Sobre a concepção de dimensão objetiva como “mais valia” e sua
importância complementar à dimensão subjetiva, v. José Carlos Vieira de
ANDRADE, Os direitos cit., p. 142, e Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia
cit., pp. 168/169. Jorge Reis NOVAIS, As restrições aos direitos
fundamentais não expressamente autorizadas pela constituição,
Coimbra: Coimbra, 2003, item 3.1, cap. I, aponta as várias bases
teóricas (de “valores”, de “institutos”, “institucionais” e de “deveres”) que
justificaram e afirmaram a relevância da dimensão objetiva como
acréscimo e complemento da dimensão subjetiva.
725 Sobre o dever de “proteção estatal” e o dever de “organização e

procedimento”, v., respectivamente, os itens 3.8.2.2.2 e 3.8.2.2.3 infra.


726 Nesse sentido, v. Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., p. 59.
Compreendido que a força normativa dos preceitos não se revela apenas no instante
em que os direitos fundamentais são exercidos, mas se projeta antes mesmo da relação
subjetiva surgir, quando ainda não há conflito ou necessidade imediata para sua
utilização, percebe-se como a dimensão objetiva daqueles direitos contribui de forma
contundente com o rompimento com sua origem liberal (“indivíduo versus Estado”).
A dimensão objetiva torna clara a percepção de que mesmo os classicamente
denominados direitos individuais estão voltados à coletividade. Ela revela uma
irreversível superação da visão individualista de matiz liberal.727 Quando um direito
fundamental é posto, aparentemente, em favor de um indivíduo, como, por exemplo, o
direito à vida, isso não significa que tal direito exista “apenas” com escopo individual,
essa é uma falsa “aparência”. O reconhecimento constitucional e objetivo do direito à
vida (art. 5º, caput, CR) impõe ao Estado criar para todos os cidadãos da coletividade as
condições, p.ex., de saúde pública, de alimentação e de normatização penal (v.g.,
tipificação do homicídio), para evitar o ataque ou até mesmo a violação do âmbito de
proteção da norma. Com isso não se quer dizer que aquele direito fundamental à vida
tenha perdido por completo a sua perspectiva individual. Apenas se demonstra que a
norma constitucional também tem funções dirigidas a exigir do Estado atos e posturas
não vinculadas apenas a um caso específico.728
A necessidade de superação dessa construção liberal abre o tema dos direitos
fundamentais não apenas para um significado coletivo mas permite ampliar-lhes o
conteúdo.
A maior relevância da dimensão objetiva dos direitos fundamentais não se esgota,
portanto, na constatação de que complementa o aspecto subjetivo desses direitos
fundamentais derivados de interesses individuais e coletivos. Também decorre da
perspectiva objetiva uma ampliação do conteúdo desses direitos.

727 Sobre o significado coletivo da justificativa objetiva do direito


fundamental, José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito cit., pp.
1240/1241, assim se manifesta: “Fala-se de uma fundamentação
objectiva de uma norma consagradora de um direito fundamental
quando se tem em vista o seu significado para a colectividade, para o
interesse público, para a vida comunitária. É esta ‘fundamentação
objectiva’ que se pretende salientar quando se assinala à ‘liberdade de
expressão’ uma ‘função objectiva’, um ‘valor geral’ uma ‘dimensão
objectiva’ para a vida comunitária (‘liberdade institucional’)” – destaque
no original. No sentido de conferir uma transindividualidade, pela
perspectiva objetiva, aos direitos fundamentais, v. Ingo Wolfgang
SARLET, A eficácia cit., pp. 171/172. No mesmo sentido, v. José Carlos
Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp. 80 e 114/115.
728 Essa constatação de direcionamento ao coletivo, propiciada pela
dimensão objetiva, corrobora e colabora com o exposto no item 3.8.1.1
supra. Nele se expôs, então pela dimensão subjetiva, que os direitos
fundamentais processuais penais têm fundamentação tanto em
interesses individuais quanto coletivos.
Nesse sentido, os direitos fundamentais têm como finalidade informar e regular
todas as atividades públicas e privadas, seja pautando as atuações estruturais dos órgãos
públicos e agentes privados seja orientando-os na integração, na interpretação e na
aplicação das normas fundamentais.

3.8.2.1. -(segue): finalidade expansiva dos direitos fundamentais e a


“presunção de inocência em sentido amplo”

Decorre dessa tendência dinamizada pela dimensão objetiva uma finalidade de


constante ampliação do conteúdo dos direitos fundamentais.729 Uma vez que esses
direitos são escolhas axiológicas de alta relevância para a sociedade, aquela dimensão
impõe aos agentes e órgãos que sempre atuem no sentido de aumentar o âmbito de
proteção da norma.730
Um exemplo ajudará na compreensão do afirmado. Tomemos como referência o
direito à defesa técnica no processo penal. No passado, em muitos sistemas processuais
penais, o direito à defesa era vedado; posteriormente, tiveram-no como assegurado ao se
permitir ao próprio imputado exercê-lo. Com o tempo, verificou-se que a defesa assim
exercida não tinha a eficácia desejada, portanto aquele direito teve seu conteúdo
ampliado a fim de “facultar” ao imputado a assistência de defensor técnico. Atualmente,
apesar da garantia constitucional da ampla defesa (art. 5º, inciso LV, CR) não trazer em
seu texto a impositividade da participação do defensor técnico, o termo “ampla” faz com
que tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconheçam-na como indispensável, sob
pena de nulidade absoluta da persecução penal. Nota-se, com isso, que, para o direito à
defesa técnica, caminhou-se da não-permissão à exigência de assistência técnica de
defensor.

729 Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 176/177.


730 Sobre a relação entre “âmbito de proteção” e “intervenção estatal” e
como esse binômio compõe o suporte fático amplo da norma de direito
fundamental, v. itens 4.4 e 4.4.1 infra.
Essa tendência de ampliação de abrangência desse direito fundamental, contudo,
continua em constante crescimento. É o que se pode constatar pela edição da Lei nº
10.792/2003, que, entre outros temas, passou a exigir manifestação fundamentada do
defensor público ou dativo, no exercício da defesa técnica. Como se vê, em 2003, quinze
anos após a edição da atual Constituição, o legislador infraconstitucional ampliou ainda
mais, e de maneira expressa, o conteúdo da “ampla defesa”. Por força do atual parágrafo
único inserido no art. 261 do Código de Processo Penal,731 não basta qualquer defesa
técnica, mas ela deve ser qualificada e efetiva, atributos constatáveis por análise da
“manifestação fundamentada”, que agora passou a ser obrigatória. Mais recentemente, no
ano de 2007, quase vinte anos após a edição da Constituição, dando continuidade a essa
tendência expansível dos direitos fundamentais possibilitada pela perspectiva objetiva, o
legislador, por meio da Lei 11.449, mais uma vez estende o âmbito de proteção da norma
constitucional da ampla defesa em nível ordinário. Incorporando ao texto
infraconstitucional do art. 306 daquele código o dispositivo constitucional do inciso
LXIV, art. 5º, acrescentou um parágrafo único que garante ao preso, sem defensor por ele
contratado, o direito de que o seu “auto de prisão em flagrante” será encaminhado à
Defensoria Pública dentro de 24 horas. O que lhe garante mais uma ampliação de
conteúdo do direito constitucional à defesa técnica.
Aplicando-se essa tendência expansionista possibilitada pela dimensão objetiva dos
direitos fundamentais à presunção de inocência, não se justifica mais uma visão
inconciliável ou excludente que as linhas evolutivas do direito (direito anglo-saxão e
direito germânico-romano) inseriram em seu conteúdo.732

731 “A defesa técnica, quando realizada pelo defensor público ou dativo, será
sempre exercida através de manifestação fundamentada”.
732 Sobre a necessidade de compreender a presunção de inocência para

além da literalidade dos textos constitucionais, nela incorporando ideais


advindos de tratados e convenções internacionais e, também, de
estudos doutrinários, v. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba y
presunción de inocencia, Madrid: Iustel, 2005, pp. 117/118.
Historicamente é possível perceber duas vertentes integrativas (principais, mas não
exclusivas) para a construção do que se pode hoje compreender como “presunção de
inocência em sentido amplo”. Uma, de matriz anglo-saxã, cujo direcionamento mais
relevante se dá no campo probatório, entendendo a presunção de inocência como
“norma de juízo” ou como “norma probatória”.733
Já para os países da Civil Law, na qual a presunção de inocência sempre teve como
seu principal foco de preocupações o tipo de tratamento destinado ao imputado no curso
da persecução penal, esse direito fundamental era tido como “norma de tratamento”, seja
em face do regramento a ser dispensado à prisão provisória seja na relação entre
indivíduo e autoridade nos vários atos estatais persecutórios (p.ex., no interrogatório).734

733 Normalmente associa-se a expressão “presunção de inocência” à linha


histórico-cultural da Common Law e cuja consagração internacional tem
na Convenção Européia para Proteção dos Direitos do Homem (art. 6.2.
Everyone charged with a criminal offence shall be presumed innocent
until proved guilty according to law) seu específico documento pós-
guerra para o continente europeu. Por força das já destacadas evoluções
do sistema misto francês na Itália do final do século XIX e início do
século XX, a rejeição da presunção de inocência pela Escola Positiva e,
principalmente, por força da Escola Técnico-Jurídica, criadora da idéia
da “presunção de não culpabilidade” (v., respectivamente, itens 2.2.1,
2.3.2 e 2.4.3.1 supra), relaciona-se esta última expressão como
decorrente do Civil Law. Nesse sentido, v. Ennio AMODIO, La tutela
della libertà personale dell’imputato nella Convenzione Europea dei Diritti
dell’Uomo, Rivista italiana de diritto e procedura penale, Milano, v. 10, n.
3, lug./set., 1967, notadamente item 7; sem significativas divergências,
Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 28/30; Aldo CHIARA,
Presunzione cit., pp. 72/74, e nota 8; e Jaime VEGAS TORRES,
Presunción cit., pp. 34/35.
734 Ennio AMODIO, La tutela cit., itens 6 e 7, bem expressa essa duplicidade

de linhas históricas, essas diferenças de preocupações e de usos


diversos para a presunção de inocência. Analisando os artigos 27
(presunção de não culpabilidade) e 13 (custódia preventiva) da
Constituição italiana, ainda antes da reforma processual penal italiana de
1988, apontava aquele autor uma perplexidade da doutrina tradicional
que não compreendia como poderiam conviver aqueles dois dispositivos
constitucionais sem se anularem. Toda a preocupação, portanto, era
conformar um sistema que pudesse comportar ambas as determinações.
Com isso o autor considerava inconstitucional, p.ex., o preceito
processual penal italiano que, inspirador de nossa prisão obrigatória (v.
item 2.5.2.2 supra), determinava a “cattura obbligatoria”.
A doutrina, percebendo essa divergência não só histórico-cultural mas,
principalmente, de endereçamento daquele direito fundamental, notou que, feita a
necessária uniformização juspolítica para ambas as expressões, ou seja, retirando da
presunção de não culpabilidade aquela sua origem técnico-positivista,735 elas se
complementavam.736 As expressões (“presunção de inocência” e “presunção de não
culpabilidade”), portanto, deixaram de ser antinômicas e passaram a ser complementares.
Necessário se deixar claro este ponto. É comum que se tomem as expressões como
sinônimas. Elas não nasceram sinônimas,737 foram apenas uniformizadas no nível
político-ideológico como decorrência da nova mentalidade da comunidade internacional
do pós-guerra.738 A partir desse ponto, não importando mais qual a preferência feita no
“texto normativo” da Constituição,739 começou-se um processo científico-doutrinário de
integração de seus conteúdos no plano juspolítico, ou seja, iniciaram um processo de
ampliação do seus textos normativos constitucionais por meio de compreensões e
interpretações a fim de se extrair dos textos significados como:740 “norma de juízo”,

735 O que a tornava absolutamente incompatível com os princípios


inspiradores da presunção de inocência, conforme se demonstrou no
item 2.4.7.2 supra.
736 Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit. p. 29, ao tratar da norma

constitucional italiana e a prevista na Convenção européia, afirma que,


em vernáculo: “A recíproca integração opera portanto a nível cons-
titucional”. Nesse sentido, v. Alexandra VILELA, Considerações cit., pp.
53/60. Essa autora, após analisar os comentários da doutrina sobre os
dispositivos de tratados e convenções européias sobre presunção de
inocência, conclui que se caminha para a superação da dicotomia entre
os sistemas jurídicos continentais e anglo-saxônicos a fim de uniformizar
o âmbito de proteção daquele princípio fundamental de forma ampla (op.
cit., pp. 53/58).
737 Conforme já se demonstrou nos itens 2.4.3.1, 2.4.7.1 e 2.4.7.2 supra.
738 Conforme já se expôs, principalmente para a doutrina ítalo-brasileira, no

item 3.7.1.2 supra.


739 Por exemplo: Brasil e Itália preferiram o texto normativo na forma de

“presunção de não culpabilidade”, já Portugal e Espanha preferiram a


expressão legal “presunção de inocência”.
740 Sobre a diferença já referida sobre “norma” como significados extraíveis

de um mesmo “texto normativo”, v. item 3.7.1 supra. A favor da não


redução da presunção de inocência apenas a “norma de juízo” ou “regra
probatória”, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade de inimputáveis
e “in dubio pro reo”, Coimbra: Coimbra, 1997, pp. 60/63.
“norma de tratamento”, “norma probatória”, “in dubio pro reo”, “favor rei”, entre
outros.741
Doravante, portanto, as expressões somente poderão ser tomadas como sinônimas se
o estudioso tiver claro que possui um instituto constitucional com múltiplo conteúdo no
âmbito de proteção do direito fundamental.742
Sem anteciparmos pontos que ainda carecem de um melhor desenvolvimento, não
se pode deixar de demonstrar a importância prática dessa compreensão de ampliação do
âmbito de proteção por acréscimos de áreas de eficácia. Quando um imputado é preso no
curso da ação penal, logo, antes da decisão condenatória definitiva, ele tem restringida a
sua presunção de inocência de modo quase total no seu aspecto de “norma de
tratamento”. Porém, isso não significa dizer que o preso não tenha a seu favor a
presunção de inocência como “norma de juízo” e, portanto, não tenha a possibilidade de
ser solto, antes do término do processo, por decisão em que o julgador a quo, ou o
Tribunal ad quem, substitua aquela decisão provisória por outra menos gravosa (p.ex.,
concessão de liberdade provisória com ou sem fiança) devido a uma análise fática ou
jurídica mais favorável ao imputado. Nessa hipótese, mesmo antes de se decidir o
meritum causae, a presunção de inocência se manifestou, pela incidência do “favor rei”
ou do “in dubio pro reo”, como “norma de juízo”.
Um âmbito de proteção amplo permite, como se vê, que o direito fundamental em
parte ocorra e em outra parte possa ser suprimido ou não exercido, se, neste último caso,
assim entender conveniente o imputado.743 Tal qual ocorre, por exemplo, com a ampla
defesa, para a qual a recusa do imputado em exercer sua autodefesa (parte disponível
daquele direito fundamental) não impede ou torna menos obrigatório o respeito pela
“defesa técnica” (parte indisponível daquele direito), aqui também se tem um direito
fundamental que, como já se indicou no início desse item, possui tendência expansível.

741 Sobre a perspectiva ampla do “âmbito de proteção” como uma


decorrência da compreensão de suporte fático amplo e os reflexos disso
para presunção de inocência, v. item 4.4.2 infra. Para uma análise mais
detalhada desses vários aspectos destacados no texto, seus âmbitos de
incidência e suas projeções para a presunção de inocência, v. item 5.4 e
seus subitens infra.
742 Nesse sentido, v. Francisco RAMOS MÉNDEZ, El proceso penal: tercera

lectura constitucional, Barcelona: Bosch Editor, 1993, p. 14. Sobre a


finalidade juspolítica do suporte fático amplo da norma da presunção de
inocência, v. item 5.3.3.1 infra.
743 Sobre a presunção de inocência ter parte disponível de seu conteúdo por

seu titular, v. itens 5.5.3.1 e 5.5.3.2 infra.


A dimensão objetiva, portanto, ao permitir uma constante ampliação do conteúdo
de todo e qualquer direito fundamental, justifica e fundamenta constitucionalmente a
convivência complementar e integrativa entre todos os modos e formas de manifestação
decorrentes da escolha juspolítica do constituinte pela inserção da presunção de
inocência em nosso ordenamento. Assim, constrói-se um sistema coerente com o
exercício mais amplo possível daquele direito.744
Nesse sentido, caminha-se de forma coerente com um modelo teórico de consenso
que pretende explicar o conceito de “norma de direito fundamental”, qual seja, o modelo
semântico. Por esse modelo, na medida em que se distingue “norma” de “enunciado
normativo”,745 é possível se dar a um mesmo “enunciado normativo” vários significados
(“norma”).746 Dessa forma, a expansividade inerente aos direitos fundamentais e,
portanto, à presunção de inocência, mostra-se coerente com os espaços de consenso
teóricos dos jusfilósofos dos direitos fundamentais.

744 Sobre o tema, v. item 5.4 infra e seus subitens.


745 Sobre o tema, v. item 3.7.1 supra.
746 Sobre a aplicação desse modelo e a sua coerência com o pensamento

da doutrina processual penal italiana e brasileira sobre o tema da


presunção de inocência, v. item 3.7.1.2 supra.
A partir dessa expansividade dirigida ao enunciado normativo da presunção de
inocência (inciso LVII do art. 5º da CR), possibilitada pela doutrina dos direitos
fundamentais, percebe-se a desnecessidade de qualquer debate sobre o nível hierárquico
das previsões internacionais daquela expressão ao ingressarem no direito brasileiro.747
Não se descarta, com isso, a excelência argumentativa da doutrina que também justifica a
natureza da presunção de inocência como direito fundamental por força da interação
entre o art. 5º, § 2º, da Constituição da República com o art. 8º, número 2, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, que prevê expressamente aquele direito.748 Apenas
se prefere, pela perspectiva que se empreende no presente estudo, justificar referida
ampliação do âmbito de proteção do inciso LVII do citado art. 5º pela dimensão objetiva.

747 Já dissemos anteriormente (item 3.7.1 supra) que se preferiu o critério


formal para determinar se uma norma é ou não de direito fundamental.
Com isso não se excluiu qualquer outro critério, como o material e o
procedimental. O debate sobre a conseqüência da subscrição dos
diplomas internacionais de direitos humanos em nosso sistema interno,
quando a mesma forma literal do texto internacional não estiver
reproduzida internamente na Constituição, diz muito mais respeito a
esses dois últimos critérios referidos (procedimental e material). Assim,
sem rejeitá-los como formas de justificativa, apenas não se pretendeu
desenvolvê-los por se entender suficiente o critério formal para as
finalidades do presente trabalho.
748 Na doutrina nacional, manifestam-se nesse sentido: Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit., pp. 317/318; Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 286/287; Luiz Flávio
GOMES, Sobre o conteúdo cit., pp. 110/111; e Renato Barão VARALDA,
Restrição cit., item 2.2. Para a doutrina estrangeira que analisou o
sistema italiano em paralelo com os Tratados e Convenções de direitos
humanos europeus, v., por todos: para a Itália, as já clássicas palavras
de Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 26/28. Para Portugal, não
obstante aquela Constituição incorpore já a expressão “presunção de
inocência”, porém, reafirmando o poder cogente dos tratados
internacionais, Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 53/57. Para o
direito espanhol, Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción de inocencia en
la jurisprudencia constitucional, Madrid: Akal, 1987, pp. 11/17, e Miguel
Angel MONTAÑÉS PARDO, La presunción de inocencia: análisis
doctrinal y jurisprudencial, Pamplona: Aranzadi, 1999, pp. 33/35. O que
se pretende mostrar com o presente desenvolvimento das idéias a partir
da “dimensão objetiva” é que é desnecessário e somente agregador de
mais debates e fragilizações a busca da natureza jurídica da presunção
de inocência pela via da incorporação interna de dispositivo
internacional. Desde o seio da Constituinte e, agora, pela perspectiva
objetiva dos direitos fundamentais, desenvolvida e já consagrada na
doutrina constitucional, a interpretação ampla da presunção de inocência
se faz de maneira muito mais natural e desde uma perspectiva
eminentemente intranormativa do ordenamento constitucional brasileiro.
Isso se realiza pelo modelo semântico de determinação da “norma de direito
fundamental”, embora não destoe dessa doutrina em resultado, visto que, por vias
diversas, também inclui aquele direito humano no ordenamento jurídico brasileiro.
Desta forma, se as análises genético-sistêmica e doutrinária acima expendidas são
suficientes para demonstrar a escolha material da Constituição pela presunção de
inocência, com toda a carga juspolítica que a história até então lhe conferia, é a partir da
perspectiva objetiva de efetivação e garantia dos direitos fundamentais que àquela
concepção vêm se agregar todos os demais aspectos a ela relacionáveis.

3.8.2.2. (segue): desdobramentos da dimensão objetiva

A dimensão objetiva não pode ser considerada uma “descoberta” recente749 da


doutrina constitucional, contudo a doutrina processual penal brasileira ainda não lhe
extraiu todos os possíveis benefícios e aplicações.
No contexto do presente trabalho não se poderá analisar essa dimensão para todos
os direitos fundamentais dirigidos ao processo penal, porquanto extravasaria muito nosso
objeto de estudo. Todavia, é de extrema relevância analisar algumas funções e efeitos750
da dimensão objetiva no âmbito específico da presunção de inocência, já que isto
contribuirá de forma sensível para a compreensão de muitas das causas das dificuldades,
vicissitudes e impedimentos, até hoje existentes, para a implementação mais abrangente
possível daquele direito fundamental.
Nos itens seguintes, portanto, analisar-se-ão apenas as decorrências mais relevantes
da dimensão objetiva para este estudo da presunção de inocência, sem com isso se
pretender exaurir, dentro da dogmática constitucional, a extensão e os debates
doutrinários de cada uma das funções ou dos efeitos escolhidos.
3.8.2.2.1. (segue): efeitos irradiante e horizontal

749 Conforme Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 118, a


dimensão objetiva é mais recente, embora já tenha longa história
doutrinária e a maioria de suas decorrências sejam consenso entre os
doutrinadores.
750 Por ser o presente trabalho um estudo voltado ao direito processual
penal, não caberão maiores discussões técnicas ou semânticas se as
decorrências extraídas da dimensão objetiva dos direitos fundamentais
são “funções”, “efeitos”, “espécies de direitos fundamentais” ou
concepções teóricas criadas para demonstrar sua relevância a uma
maior efetividade e judicialidade daqueles direitos. Elaborar-se-ão
algumas considerações sobre o que se pode denominar “espaço de
consenso” doutrinário. Sobre as divergências terminológicas e
conceituais, v. Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 167/168.
É comum que a doutrina751 estabeleça um estreito vínculo entre esses dois efeitos e
os estude de modo muito próximo, pois ambos têm em vista a construção de vínculos
entre o aspecto objetivo dos direitos fundamentais e os agentes (públicos e privados) que
com ele se relacionam. Na análise individualizada de cada um poderá perceber-se que
atuam de forma complementar e teleologicamente voltados a manter a higidez e
promover aqueles direitos.
Os direitos fundamentais, como cláusulas objetivamente inscritas no texto
constitucional, produzem efeitos irradiantes752 na medida em que vinculam todo o
sistema jurídico, seja em seu momento legislativo, judiciário ou executivo. Com isso se
quer fixar e garantir uma produção e aplicação do ordenamento segundo um parâmetro
constitucional de respeito e tutela daqueles direitos.753
O efeito horizontal ou externo754 dos direitos fundamentais, por sua vez, estende
aquela vinculação também às relações entre particulares, isto é, para além da relação
vertical entre indivíduo e Estado.755 Passou-se a discutir se os valores axiológica e
objetivamente fixados constitucionalmente, por força de preceitos fundamentais, criam
vínculos também para os particulares em suas relações privadas; em uma relação
indivíduo/indivíduo.756

751 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
116 e ss., e Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 80/85. No direito
brasileiro, conquanto denominando o efeito irradiante como “efeito
vinculante”, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp.
104/115.
752 Alguns autores denominam essa decorrência da dimensão objetiva como

“eficácia irradiante”. Nesse sentido, v. Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia


cit., pp. 173/174, e André Ramos TAVARES, Curso cit, p. 434. José
Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 116, e Jorge Reis
NOVAIS, As restrições cit., pp. 80/85, denominam-na “efeito de
irradiação”; não obstante, o primeiro autor luso citado denomine-a, mais
a frente (p.ex., op. cit., pp. 145/149), “efeito irradiante”.
753 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 120, e Ingo

Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p 173.


754 Estabelecendo essa sinonímia, v., por todos, José Carlos Vieira de

ANDRADE, Os direitos cit., pp. 146/147.


755 Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p. 174, afirma que esta idéia de

direitos fundamentais irradiarem efeitos também às relações privadas, e


não apenas serem direitos oponíveis aos poderes públicos, vem sendo
considerada um dos mais relevantes desdobramentos da perspectiva
objetiva dos direitos fundamentais.
756 Todo o debate doutrinário que se estabeleceu sobre a eficácia externa

ou horizontal, teve início com o julgamento do caso Lüth, pelo Tribunal


Constitucional Federal Alemão, em 1958. Para uma análise da doutrina
pátria desse caso e como o debate se desenvolveu, v. Dimitri DIMOULIS
e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp. 106/115 e 263/278.
Abstraindo as questões sobre a eficácia imediata ou mediata que envolvem o tema –
por fugir em muito do encaminhamento que se pretende nesse ponto do trabalho –,
estabeleceu-se o debate sobre se os direitos fundamentais seriam exigíveis diretamente
entre os particulares (eficácia imediata) ou se dependeriam de norma a ser criada para tal
exigibilidade. Teriam, portanto, nessa última hipótese, eficácia mediata e somente
verificável por intervenção, primeiro, legislativa e, depois, por intervenção judicial,
quando e somente se houvesse demanda sobre eventual violação de um direito
fundamental por particular.
Quando se aplica o exposto para o efeito irradiante ao âmbito da presunção de
inocência, verifica-se que, como princípio constitucional, ela deve vincular toda e
qualquer produção legislativa, assim como deve, outrossim, ser critério hermenêutico das
normas infraconstitucionais aplicáveis ao caso concreto. A presunção de inocência,
portanto, pela dimensão objetiva, é preceito informador e conformador das atuações
públicas na produção, aplicação e interpretação do ordenamento jurídico. A influência
do preceito constitucional não se limita, como tradicionalmente a colocam, ao espaço da
instrução processual do caso concreto, isto é, não está limitada, p. ex., à avaliação da
(in)suficiência do quantum probatório para a condenação do acusado (“in dubio pro
reo”).
A eficácia irradiante, portanto, projeta a presunção de inocência como direito
informador do sistema desde a elaboração legislativa, controlando a constitucionalidade
de leis eventualmente violadoras do conteúdo daquele direito fundamental, até a
aplicação e interpretação normativa feitas por órgãos do Executivo e, principalmente, do
Judiciário.757
Quanto ao efeito externo ou horizontal, de outra banda, a presunção de inocência
também tem um ganho, não obstante no sistema brasileiro ainda dependa de uma
conformação legislativa. Explica-se: como direito fundamental, a presunção de inocência
não vincula apenas os poderes públicos, mas também os agentes privados; porém, para
essa vinculação ser exigível entre particulares, é necessária a normatização de
comportamentos.758

757 Sobre a presunção de inocência como princípio vinculante de todos os


órgãos públicos e agentes privados, v. item 5.3.3.1 infra.
758 Sobre a inércia legislativa como principal aspecto violador da presunção
de inocência e causa maior de sua ineficácia, v. item 5.2 infra.
O presente trabalho, por limitar o estudo da presunção de inocência ao âmbito do
processo penal, não cuidará do efeito horizontal daquele direito fundamental quando se
refira apenas à relação privada entre particulares. Apenas lhe importará o respeito que os
particulares devem guardar em relação à condição de inocente de qualquer pessoa
submetida à persecução penal até que se declare sua culpa de maneira definitiva. Com
isso, coloca-se em ressalto a inadmissibilidade de um imputado ser tratado como culpado
por agentes privados de modo que isso reflita negativamente no julgador que preside a
causa penal. Essa perspectiva, necessariamente parcial que se extrai dos efeitos
horizontais para a presunção de inocência, revela quão violadoras e materialmente
inconstitucionais têm sido várias matérias jornalísticas feitas sobre pessoas ainda
submetidas a julgamento.759
Se os valores constitucionais são por todos escolhidos axiologicamente como
relevantes para si, devem ser respeitados pelos poderes públicos em face do cidadão e
pelos cidadãos entre si. Quem os considerou relevantes, a ponto de inscrevê-los
constitucionalmente, deve também respeitá-los em face de outrem. Quem exige respeito,
deve respeitar.
Contudo, é fato que o óbice, que atingiu a aplicação imediata do efeito horizontal no
campo privado,760 repete-se para a presunção de inocência: é dificílimo regular os
comportamentos entre particulares de forma exigível e constitucional sem a intervenção
legislativa prévia mediante a elaboração de normas balizadoras desses comportamentos.
Voltando-se ao exemplo acima citado, tanto a presunção de inocência quanto a liberdade
de expressão e a liberdade de imprensa são direitos fundamentais que devem ser
respeitados. Para tal fim, o primeiro, mas não o único nem o decisivo passo – uma vez
que a intervenção judicial em casos críticos é inevitável –, é a elaboração de leis que,
balizadas pela presunção de inocência, regulem a atividade da imprensa no trato de casos
de pessoas ainda submetidas à persecução penal.761

759 Sobre o tema, v. item 5.5.1.1 infra.


760 Sobre a temática da eficácia horizontal e suas dificuldades no campo
privado, v. Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 80/82, e Dimitri
DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp. 108/112.
761 André Ramos TAVARES, Curso cit., pp. 457/459, tendo em vista os

direitos fundamentais em geral, não apenas os processos penais, nos


quais a carência legislativa é ainda maior, afirma: “A Constituição do
Brasil não previu a vinculação dos particulares, mas também não a
proibiu expressamente. Se o problema é a abstratividade, as ‘cláusulas
gerais’ da legislação (porta de entrada para os direitos fundamentais)
são tão imprecisas quanto as previsões constitucionais desses direitos.
Ademais, não se pode negar a inércia legislativa que tem sepultado
diversos direitos constitucionais”.
A necessidade de intervenção legislativa acima apontada fez com que a doutrina
percebesse que a questão encontraria solução pela associação daqueles efeitos com a
concepção de “deveres de proteção” (Schutzpflichten)762 do Estado e com o dever estatal
de criar e regular “organizações e procedimentos” para efetivar e viabilizar os direitos
fundamentais.763

3.8.2.2.2. (segue): dever estatal de proteção

762 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
146/149, e Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 81/83.
763 Os temas dos “deveres de proteção” e “organização e procedimento”
envolvem perspectivas e desdobramentos para os quais a doutrina
constitucional ainda não tem unanimidade. Alguns autores, dentre os
quais se pode citar Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 86/87;
Konrad HESSE, Elementos cit., pp. 278/281, itens 349/350; Ingo
Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 175/176; e Dimitri DIMOULIS e
Leonardo MARTINS, Teoria cit., p. 121, entendem que o “dever de
proteção” do Estado deve se dirigir à tutela dos direitos fundamentais
tanto em face de agentes públicos quanto em relação a atos de
particulares. Porém, esses autores não deixam de dar maior destaque
para essa atuação estatal no tocante às violações ou ameaças
originárias de agentes privados. Há autores, por sua vez, p.ex., José
Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 153; José Joaquim
Gomes CANOTILHO, Constituição e défice procedimental, in José
Joaquim Gomes CANOTILHO, Estudos sobre direitos fundamentais,
Coimbra: Coimbra, 2004, pp. 76/79; e Robert ALEXY, Teoría cit., pp.
435/436, que aplicam a concepção de “deveres de proteção” do Estado
apenas às ameaças ou violações originárias de particulares (“sujetos
jurídicos iguales”), em clara complementação aos efeitos horizontais já
referidos no texto. Esse último constitucionalista luso citado deixa a
categoria dos “direitos de defesa” à atuação positiva do Estado em face
de violações ou ameaças perpetradas pelos poderes públicos. José
Carlos Vieira de ANDRADE, op. cit., p. 153, por outro lado, afirma que a
“dimensão organizativa e procedimental” está em parte relacionada às
garantias institucionais e, no tocante aos particulares, diria respeito ao
“dever de proteção”. Como se vê, a resolução, ou até mesmo a
exposição completa, das divergências doutrinárias sobre o tema
extravasa em muito o âmbito do presente trabalho. Assim, aceitar-se-á
como critério diferenciador entre “deveres de proteção” e “organização e
procedimento” o objeto da prestação positiva por parte do Estado. Isto
significa dizer que não se fará diferença quanto à natureza (pública ou
privada) da pessoa (potencial ou efetivamente) violadora dos direitos
fundamentais, mas se utilizará o tipo de prestação que cabe ao Estado
provedor proporcionar para garantir e promover esses direitos.
O dever de proteção estatal, como desdobramento da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, nasceu da constatação irrefragável de que para a consecução desses
direitos não basta uma abstenção do Estado, é necessária sua atuação. Não uma atuação
invasiva ou lesiva ao âmbito de liberdade dos indivíduos e que os direitos fundamentais
de primeira geração (direitos de defesa) vieram para evitar, porquanto tal atuação não
garante ou promove os direitos fundamentais, mas os destrói. A ação positiva que se
espera do Estado com a concepção de “deveres de proteção” deve ser no sentido de não
apenas garantir, mas também de atuar para prevenir eventuais lesões ou reduções
inconstitucionais dos direitos fundamentais.
No dizer de JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, o Estado deixa de ter a postura
de inimigo e passa a ser o “Estado-amigo dos direitos fundamentais ou, pelo menos, do
Estado responsável por sua garantia efectiva”.764 Ele deixa de ser mero respeitador do
conteúdo dos direitos fundamentais, em atuação notadamente de abstenção, para ser seu
promotor e protetor não apenas em face dos vários órgãos públicos, mas sobretudo em
face de ataques (efetivos ou potenciais) de particulares.765
O Estado deve passar, notadamente em seu âmbito legislativo, mas não apenas nesse
âmbito, a ser inspirado pelo “princípio de ‘proibição de défice’ (Unterma?verbot), nos
termos do qual o Estado está obrigado a assegurar um nível mínimo adequado de
proteção dos direitos fundamentais, sendo responsável pelas omissões legislativas que não
assegurem o cumprimento dessa ‘imposição genérica’”.766 Na sua tarefa de “observar e
proteger” os direitos fundamentais o Estado deve atuar na “prevenção de riscos”, no
fomento à “segurança” e, se for o caso, chegando a “proibir” condutas a eles lesivas.767

764 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 147. No mesmo


sentido, v. André Ramos TAVARES, Curso cit., p. 434.
765 Nesse sentido, v. Jorge Reis NOVAIS, As restrições cit., p. 86, e Ingo

Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p. 175.


766 José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp. 148/149.
767 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria cit., pp. 121/122, com

base em observações da jurisprudência alemã do Tribunal Constitucional


Federal.
Por esse reposicionamento do Estado como responsável pela efetivação dos direitos
fundamentais, as normas de direito penal, notadamente as de criminalização, “passaram a
ser vistas com outros olhos”.768 Começou-se a compreender que as normas penais não são
feitas apenas para reduzir a esfera de liberdade do indivíduo, mas também atuam como
forma de limitar as atuações (pública e particular) contrárias à plena fruição de alguns
direitos fundamentais. Também passou-se a compreender que as normas processuais
penais garantidoras de direitos fundamentais não são destinadas a impedir uma punição
do imputado.769 Ambas as espécies de normas são de responsabilidade exclusiva do
Estado, que, para garantia de todos os direitos fundamentais envolvidos (p.ex., direito à
vida, à segurança pública, ao devido processo legal e à presunção de inocência), deve agir
de modo preventivo e repressivo para evitar violações à maior extensão e pleno
desenvolvimento desses direitos.
De um modo geral, cabe ao Legislativo o mais significativo papel neste “dever de
proteção”.770 Porém não se deve desconsiderar as possibilidades de atuação estatal a nível
Executivo e Judiciário. Se ao Legislativo cabe a produção de normas aptas a distinguir o
lícito do ilícito, o permitido do vedado, ao Executivo caberá aplicar as normas dentro do
âmbito definido, e ao Judiciário dirimir eventuais dúvidas quanto a se a lei foi obedecida
ou não, e a dar eventual significado diverso e atual ao enunciado normativo.
Ao aplicar o acima referido quanto aos “deveres de proteção” no âmbito da
presunção de inocência, pode-se constatar um ganho significativo no tocante à uma
melhor conformação e aplicação daquele direito para além do âmbito processual penal,
influindo em outras áreas da vida (administrativa, trabalhista, cível, etc.).
Assim, ilustrando os efeitos benéficos que o “dever de proteção” estatal traz para a
presunção de inocência, indicam-se três exemplos de sua influência no âmbito
legislativo.

768José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p. 147.


769 Sobre o dever estatal de regular os direitos fundamentais por meio de
normas penais e processuais penais, além de administrativas e privadas,
v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 435/438.
770 Nesse sentido, enfocando a necessidade de conformação do direito

fundamental pelo legislador, notadamente nos direitos fundamentais que


possuem “âmbito de proteção estrita ou marcadamente normativa”, como
é o caso da presunção de inocência, v. Gilmar Ferreira MENDES,
Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit.,
pp. 286/288, e sua aplicação para a presunção de inocência, op. cit., p.
602. Para maiores considerações sobre esse ponto, no tema da
presunção de inocência, v. item 5.2 infra.
O primeiro é a necessidade de se impedir a criação de normas que proíbam que
pessoas submetidas a ações ou a investigações criminais inconclusas assumam cargos,
participassem de processos seletivos para empregos ou, ainda, possam se inscrever em
concursos públicos771 ou se candidatar a cargos eletivos.772

771 Sobre a inconstitucionalidade de se formular leis ou regras normativas


para regular concursos públicos no sentido de vedar acesso à pessoa
submetida a persecução penal a cargo público, o Supremo Tribunal
Federal já se manifestou em algumas oportunidades. Em um julgado
(RHC 194.872, 2ª T., rel. Ministro Marco Aurélio, j. 07.11.2000, RTJ
177/435) declarou violar a presunção de inocência o fato de se
considerar incapacitado moralmente para concurso público alguém que
responde a ação penal sem o devido trânsito em julgado de decisão
condenatória. Esse mesmo Tribunal Constitucional, indo mais além,
decidiu que “uma vez declarada a prescrição da pretensão punitiva do
Estado, descabe evocar a participação do candidato em crime, para se
dizer da ausência da capacitação moral exigida relativamente a concurso
público. (...) Uma vez ocorrido o trânsito em julgado para a acusação
(art. 110, § 1º). No caso concreto, ocorreu a prescrição retroativa. A
Juíza declarou extinta a punibilidade pela ocorrência da prescrição
punitiva do Estado. Ou seja, a prescrição da ação. Considerou que, entre
a data da publicação da sentença, com transito em julgado para a
acusação, e o recebimento da denúncia, decorreu o prazo prescricional
de 4 (quatro) anos. (...) A prescrição da pretensão punitiva eliminou
todos os efeitos da condenação. É como se o crime não tivesse existido.
Os antecedentes não foram maculados. Há precedentes. Leio Rezek:
‘(...) a prescrição punitiva não implica responsabilidade do acusado, não
desabona seus antecedentes, nem induz futura reincidência. Assim, a
extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva do Estado
não deixa seqüelas jurídicas na vida do acusado’ (HC 72.844, DJ
11.4.1997). Conclusão: o candidato não pode ser penalizado com a
incapacitação moral. Acompanho o relator. Dou provimento ao recurso”
(RE 212.198, 2ª T., rel. Ministro Marco Aurélio, j. 14.08.2001, RTJ
183/327).
772 Exemplo atual e relevante sobre esse ponto pode ser visto na recente
discussão sobre a proposta de lei de se proibir que pessoas,
processadas criminalmente sem decisão condenatória irrecorrível, se
candidatem a cargos eletivos. A proposta de lei vetando os - assim
denominados pela imprensa - “candidatos ficha suja” não deverá ter sua
constitucionalidade reconhecida pelo Congresso Nacional, notadamente
após o julgamento pelo Pleno da ADPF 144, de relatoria do Ministro
CELSO DE MELLO, e cuja ementa deve aqui ser reproduzida in verbis
pela precisão com que trata os efeitos da dimensão objetiva da norma
fundamental da presunção de inocência: “Argüição de descumprimento
de preceito fundamental – Possibilidade de Ministros do STF, com
assento no TSE, participarem do julgamento da ADPF – Inocorrência de
incompatibilidade processual, ainda que o Presidente do TSE haja
prestado informações na causa – Reconhecimento da legitimidade ativa
“ad causam” da Associação dos Magistrados Brasileiros – Existência,
quanto a ela, do vínculo de pertinência temática – Admissibilidade do
ajuizamento de ADPF contra interpretação judicial de que possa resultar
lesão a preceito fundamental – Existência de controvérsia relevante na
espécie, ainda que necessária sua demonstração apenas nas argüições
de descumprimento de caráter incidental – Observância, ainda, no caso,
do postulado da subsidiariedade – Mérito: relação entre processos
judiciais, sem que neles haja condenação irrecorrível, e o exercício, pelo
cidadão, da capacidade eleitoral passiva – Registro de candidato contra
quem foram instaurados procedimentos judiciais, notadamente aqueles
de natureza criminal, em cujo âmbito ainda não exista sentença
condenatória com trânsito em julgado – Impossibilidade constitucional de
definir-se, como causa de inelegibilidade, a mera instauração, contra o
candidato, de procedimentos judiciais, quando inocorrente condenação
criminal transitada em julgado – Probidade administrativa, moralidade
para o exercício do mandato eletivo, “vita anteacta” e presunção
constitucional de inocência – Suspensão de direitos políticos e
imprescindibilidade, para esse efeito, do trânsito em julgado da
condenação criminal (cf, art. 15, III) – reação, no ponto, da Constituição
Democrática de 1988 à ordem autoritária que prevaleceu sob o regime
militar – Caráter autocrático da cláusula de inelegibilidade fundada na Lei
Complementar nº 5/70 (art. 1º, I, “n”), que tornava inelegível qualquer réu
contra quem fosse recebida denúncia por suposta prática de
determinados ilícitos penais – Derrogação dessa cláusula pelo próprio
Regime Militar (Lei Complementar nº 42/82), que passou a exigir, para
fins de inelegibilidade do candidato, a existência, contra ele, de
condenação penal por determinados delitos – Entendimento do Supremo
Tribunal Federal sobre o alcance da LC nº 42/82: necessidade de que se
achasse configurado o trânsito em julgado da condenação (RE
99.069/BA, rel. Min. OSCAR CORRÊA) – Presunção constitucional de
inocência: um direito fundamental que assiste a qualquer pessoa –
O segundo exemplo é a necessidade de criação de leis que, em cotejamento com
outros preceitos fundamentais, melhor regulem os casos excepcionais em que há

Evolução histórica e regime jurídico do princípio do estado de inocência


– O tratamento dispensado à presunção de inocência pelas declarações
internacionais de direitos e liberdades fundamentais, tanto as de caráter
regional quanto as de natureza global – O processo penal como domínio
mais expressivo de incidência da presunção constitucional de inocência
– Eficácia irradiante da presunção de inocência – Possibilidade de
extensão desse princípio ao âmbito do processo eleitoral - Hipóteses de
inelegibilidade – Enumeração em âmbito constitucional (CF, art. 14, §§
4º A 8º) – Reconhecimento, no entanto, da faculdade de o Congresso
Nacional, em sede legal, definir “outros casos de inelegibilidade” –
Necessária observância, em tal situação, da reserva constitucional de Lei
Complementar (CF, art. 14, § 9º) – Impossibilidade, contudo, de a Lei
Complementar, mesmo com apoio no § 9º do art. 14 da Constituição,
transgredir a presunção constitucional de inocência, que se qualifica
como valor fundamental, verdadeiro “cornerstone” em que se estrutura o
sistema que a nossa Carta Política consagra em respeito ao regime das
liberdades e em defesa da própria preservação da ordem democrática -
Privação da capacidade eleitoral passiva e processos, de natureza civil,
por improbidade administrativa – Necessidade, também em tal hipótese,
de condenação irrecorrível – Compatibilidade da Lei nº 8.429/92 (art. 20,
“caput”) com a Constituição Federal (art. 15, V, c/c o art. 37, § 4º) – O
significado político e o valor jurídico da exigência da coisa julgada –
Releitura, pelo Tribunal Superior Eleitoral, da Súmula 01/TSE, com o
objetivo de inibir o afastamento indiscriminado da cláusula de
inelegibilidade fundada na LC 64/90 (art. 1º, I, “g”) – Nova interpretação
que reforça a exigência ético-jurídica de probidade administrativa e de
moralidade para o exercício de mandato eletivo – Argüição de
Descumprimento de Preceito Fundamental julgada improcedente, em
decisão revestida de efeito vinculante”. No instante em que o Pleno do
Supremo Tribunal Federal, exceção apenas aos Ministros JOAQUIM
BARBOSA e CARLOS BRITTO, julgou improcedente essa ADPF,
consagrou efeitos irradiantes ao princípio da presunção de inocência e,
ainda, traçou claros limites ao poder estatal de legislar, na medida em
que definiu que ao atuar o legislador deve proteger aquela norma
fundamental, mesmo que, aparentemente, legisle matéria estranha ao
direito criminal (processo penal e direito penal).
possibilidade de aplicação de restrições a direitos de pessoas ainda não julgadas
definitivamente.773

773 Em nossa legislação, podem ser encontrados dispositivos legais que


permitem a cautelar restrição de direitos. O Código de Trânsito
Brasileiro, em seu art. 294, preceitua que: “Em qualquer fase da
investigação ou da ação penal, havendo necessidade para a garantia da
ordem pública, poderá o juiz, como medida cautelar, de ofício, ou a
requerimento do Ministério Público ou ainda mediante representação da
autoridade policial, decretar, em decisão motivada, a suspensão da
permissão ou da habilitação para dirigir veículo automotor, ou a proibição
de sua obtenção. Parágrafo único: Da decisão que decretar a suspensão
ou a medida cautelar, o da que indeferir o requerimento do Ministério
Público, caberá recurso em sentido estrito, sem efeito suspensivo”. A
atual lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre
Drogas (Lei 11.343/2006), em seu art. 56, § 1º, dispõe: “§ 1º. Tratando-
se de condutas tipificadas como infração do disposto nos arts. 33, ‘caput’
e § 1º, e 34 a 37 desta Lei, o juiz, ao receber a denúncia, poderá
decretar o afastamento cautelar do denunciado de suas atividades, se for
funcionário público, comunicando ao órgão respectivo”. Para
comentários mais extensos desses dois dispositivos serem forma de
restrição constitucional da presunção de inocência, observado algumas
condições fáticas e jurídicas, v. item 5.5.1 infra.
O terceiro exemplo seria a regulamentação da liberdade de imprensa a fim de evitar
divulgações ou matérias de cunho sensacionalista, que submetessem pessoas à
irreversível condição de culpadas em seu meio social, ou influenciassem no julgamento
de causas penais, notadamente quando as informações divulgadas são obtidas junto aos
operadores jurídicos que atuam nos casos.774
Todos os exemplos acima citados foram propositalmente escolhidos dentro da
função legislativa do Estado. Porém, como já dito acima, esses mesmos exemplos podem
ser adaptados às atuações estatais no âmbito do Executivo e do Judiciário, por exemplo,
com a regulamentação, mesmo em nível administrativo, do impedimento que
autoridades públicas (v.g., integrantes de órgãos persecutórios penais) convoquem a
imprensa para dar declarações nas quais tratem eventuais imputados (suspeitos,
investigados, denunciados ou acusados) como autores de crimes. Isto porque, tais
comportamentos de integrantes de órgãos públicos da Administração Pública violam
tanto o respeito à presunção de inocência como “norma de tratamento”, quanto maculam
de maneira indefectível, notadamente junto à opinião pública, a dignidade da pessoa dos
imputados.

774 Nesse sentido, constitui um avanço a edição da Resolução nº 58, de


25.05.2009, pelo Conselho da Justiça Federal, destinada estabelecer
“diretrizes para membros do Poder Judiciário e integrantes da Polícia
Federal no que concerne ao tratamento de processos e procedimentos
de investigação criminal sob publicidade restrita, no âmbito da Justiça
Federal de primeiro e segundo graus”. Não obstante tal Resolução não
tenha citado a presunção de inocência no rol de direitos fundamentais
que visou proteger, não resta dúvida que tal direito constitucional foi
melhor garantido com a edição dessa normativa. Para demonstrar essa
inegável proteção às informações processuais e, portanto, evitar uma
exposição pública de situações processuais que poderia violar o
tratamento de inocente que se deve dar a todos os imputados, vale
destacar um dispositivo desta regulamentação: “Art. 10. É absolutamente
vedado aos magistrados, servidores, autoridades policiais e seus
agentes o fornecimento de quaisquer informações, direta ou
indiretamente a terceiros ou a órgão de imprensa, de elementos contidos
em processos e procedimentos de investigação criminal sob publicidade
restrita, sob pena de sua responsabilização funcional, nos termos
disciplinados nos arts. 8º, 9º e 10 da Lei n. 9.296, de 24 de julho de
1996; 5º e 7º, parágrafo único, da Lei n. 11.111, de 5 de maio de 2005;
198, inciso I, da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966; 1º, § 4º, da lei
Complementar n. 105, de 10 de janeiro de 2001 e 153, § 1º - A, do
Código Penal, introduzido pela Lei n. 9.983, de 14 de julho de 2000”.
Para comentários sobre o tema no tocante à atuação da imprensa, v.
item 5.5.1.1 infra.
Dessarte, tanto o Poder Judiciário quanto o Poder Executivo podem e devem aplicar
e interpretar o direito fundamental da “presunção de inocência” sempre no sentido de
assegurar uma melhor proteção e efetivação por parte tanto de seus integrantes quanto
dos agentes privados que com eles se relacionem.

3.8.2.2.3. (segue): organização e procedimento

A constatação da doutrina jusfundamental de que todo direito dessa natureza tem


como característica a efetividade fez com que o tema da “organização e procedimento” se
tornasse talvez o ponto mais relevante dos estudos nessa área juspolítica.775 Vários
autores transformaram o tema no ponto central da busca de uma melhor garantia e
promoção daqueles direitos e conceberam novas abordagens da temática para colocá-la
no centro dos estudos dos direitos fundamentais.776 Nesse desiderato, criaram os
conceitos de “status activus processualis” e “due process iusfundamental” (PETER
HÄBERLE) a fim de demonstrar sua imprescindibilidade no sistema jurídico. Todo esse
esforço solidificou, nas consciências doutrinária e jurisprudencial, que qualquer direito
fundamental necessita, em maior ou menor grau, de uma organização e de um
procedimento para tornar-se realidade.777
No presente estudo, não haverá uma preocupação maior em se distinguir
“organização” de “procedimento”, aceitando-se a concepção ampla de procedimento,
afirmada por ROBERT ALEXY, que pode ser compreendida como toda forma de
“regularización y aseguramiento de los derechos fundamentales”.778 Dentro dessa
perspectiva, não há como se negar uma natural aproximação entre “dever de proteção” e
o tema ora tratado.779 Até mesmo porque, ambos, são espécies de prestação positiva do
Estado e se destinam a uma efetivação do conteúdo dos direitos fundamentais.780

775 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 454/456.


776 Sobre o tema, Robert ALEXY, Teoría cit., p. 455, traz nesse contexto as
obras de Peter Häberle (“Grundrechte im Leistungsstaat”, em VVDStRL
30:1972, pp. 43-131), de Konrad Hesse (“Bestand und Bedeutung der
Grundrechte in der Bundesrepublik Deustchland”, em EuGRZ 1978, pp.
167-224) e de H. Goerlich (Grundrechte als Verfahrensgarantien, Baden
– Baden, 1981).
777 Nesse sentido, v.: José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p.

150; Konrad HESSE, Elementos cit., pp. 287/288, itens 358/360; e Jorge
Reis NOVAIS, As restrições cit., pp. 84/85.
778 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 456/458.
779 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 3.2.4.2, trata os

deveres estatais de proteção e de organização sob a denominação de


“direitos a prestações em sentido amplo”.
780 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., p.

153, e Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., p. 176.


Compete ao Estado, portanto, conformar toda a ordem jurídica (privada e pública;
civil e penal; administrativa e processual; etc.), em todas as suas fases (elaboração,
aplicação e interpretação), e promover as transformações fáticas (p.ex., pelo aumento e
melhor preparação dos órgãos persecutórios e de Defensoria Pública, além de Tribunais e
órgãos auxiliares) necessárias para criar estrutura apta à mais completa efetivação dos
direitos fundamentais.781
Dentre as várias espécies de direitos fundamentais, a presunção de inocência – como
direito daquela natureza, destinado precipuamente a processo penal – integra os direitos
que guardam uma maior e estreita relação de dependência com a necessidade de
estruturação organizacional e procedimental eficiente.782

781 Ações fáticas e normativas no sentido empreendido por Robert ALEXY,


Teoría cit., pp. 194/196, como espécies de ações positivas. No sentido
do texto, v.: José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
150/153; Ingo Wolfgang SARLET, A eficácia cit., pp. 176/177; Konrad
HESSE, Elementos cit., pp. 247/249, itens 303/307; e Cláudia Perotto
BIAGI, A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais na
jurisprudência constitucional brasileira, Porto Alegre: SAFE, 2005, pp.
49/50.
782 Jorge MIRANDA, Manual cit., t. IV, pp. 93/94, inclui os direitos
fundamentais processuais penais como integrantes dos direitos
fundamentais dependentes de um procedimento para ser realizado
efetivamente ou, ao menos, não ter seu conteúdo e esfera de abragência
diminuídos. Esse constitucionalista português inclui aqueles direitos
dentro da categoria dos “direitos fundamentais procedimentais”.
É um direito que necessita de uma ampla e segura prestação estatal tanto no que diz
respeito à organização de entes públicos relacionados (direta ou indiretamente) com a
persecução e julgamento criminais, quanto no tocante à normatização de um
procedimento conformado à sua realização.783

783 Nesse sentido, v. José Carlos Vieira de ANDRADE, Os direitos cit., pp.
152 /153. Tal necessidade já foi afirmada pelo Supremo Tribunal
Federal, em voto da lavra do Min. Gilmar Ferreira Mendes, in verbis: “Tal
concepção legitima a idéia de que o Estado se obriga não apenas a
observar os direitos de qualquer indivíduo em face das investidas do
Poder Público (‘direito fundamental enquanto direito de proteção ou de
defesa – Abwehrrecht’), mas também a garantir os direitos fundamentais
contra agressão propiciada por terceiros (‘Schutzpflicht des Staats’)
[HESSE, Konrad. ‘Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik
Deutschland’. 16. ed. Heidelberg, 1988, p. 155-156]. A forma como esse
dever será satisfeito constitui, muitas vezes, tarefa dos órgãos estatais,
que dispõem de alguma liberdade de conformação [HESSE, Konrad.
‘Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland’, cit.
p. 156]. Não raras vezes, a ordem constitucional identifica o dever de
proteção e define a forma de sua realização. A jurisprudência da Corte
Constitucional alemã acabou por consolidar entendimento no sentido de
que do significado objetivo dos direitos fundamentais resulta o dever do
Estado não apenas de se abster de intervir no âmbito de proteção
desses direitos, mas também de proteger tais direitos contra a agressão
ensejada por atos de terceiros [Cf., a propósito, BverfGE, 39, 1 e s.; 46,
160 (164); 49, 89 (140 e s.); 53, 50 (57 e s.); 56, 54 (78); 66; 39 (61); 77
170 (229 s.); 77, 381 (402 e s.); ver, também, DIETLEIN, Johannes. ‘Die
Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten’. Berlin, 1991, p. 18].
Essa interpretação da Corte Constitucional empresta sem dúvida uma
nova dimensão aos direitos fundamentais, fazendo com que o Estado
evolua da posição de ‘adversário’ para uma função de guardião desses
direitos [Cf., a propósito, DIETLEIN, Johannes. ‘Die Lehre von den
grundrechtlichen Schutzpflichten’, cit., pp. 17 e s.]. É fácil ver que a idéia
de um dever genérico de proteção fundado nos direitos fundamentais
relativiza sobremaneira a separação entre a ordem constitucional e a
ordem legal, permitindo que se reconheça uma irradiação dos efeitos
desses direitos sobre toda a ordem jurídica [von MÜNCH, Ingo.
‘Grundgesetz-Kommentar, Kommentar zu Vobemerkung’ Art 1-19, Nº
22]. Assim, ainda que não se reconheça, em todos os casos, uma
pretensão subjetiva contra o Estado, tem-se, inequivocamente, a
identificação de um dever deste de tomar todas as providências
necessárias para a realização ou concretização dos direitos
fundamentais [von MÜNCH, Ingo. ‘Grundgesetz-Kommentar, cit.]. Os
direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como
proibições de intervenção (‘Eingriffsverbote’), expressando também um
postulado de proteção (‘Schutzgebote’). Utilizando-se da expressão de
Tomando como objeto de análise a generalidade dos direitos fundamentais
processuais penais, percebe-se que toda aquela necessidade de reestruturação
organizacional e normativa torna-se, no Brasil, imprescindível e premente. A vigência de
um código de processo penal de estrutura inquisitivo-fascista impede e corrói,
paulatinamente, todas as conquistas constitucionais.784 Isso não é novidade e vem sendo
proclamado, sem sucesso, desde 1988, com a entrada em vigor da atual Constituição.
Ocorre, contudo, que, passados mais de 20 anos, o sistema processual penal não só
não sofreu alteração estrutural significativa, na busca de uma efetivação completa
daqueles direitos processuais, como tem produzido o efeito contrário, qual seja: os
dispositivos constitucionais estão sendo interpretados conforme a lei processual penal
infraconstitucional. Em verdadeira ilogicidade sistêmica, a inércia cultural de parte
significativa da doutrina e da jurisprudência, aliada a uma inconfessada – e, às vezes,
inconsciente – mentalidade repressiva, têm levado a um constante e progressivo
esvaziamento de toda a afirmação e efetivação dos direitos constitucionais.785

Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não


apenas uma proibição do excesso (‘Übermassverbote’), mas também
podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou
imperativos de tutela (‘Untermassverbote’) [CANARIS, Claus-Wilhelm.
Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitprinzip in der
richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts. ‘JuS’, 1989,
p. 161 (163)]. Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da
Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação
do dever de proteção [RICHTER, Ingo; SCHUPPERT, Gunnar Folke.
‘Casebook Verfassungsrecht’. 3. ed. München, 1996, p. 35-36]: a) dever
de proibição (‘Verbotspflicht’), consistente no dever de se proibir uma
determinada conduta; b) dever de segurança (‘Sicherheitspflicht’), que
impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de
terceiros mediante a adoção de medidas diversas; c) dever de evitar
riscos (‘Risikopflicht’), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de
evitar riscos para o cidadão em geral mediante a adoção de medidas de
proteção ou de prevenção especialmente em relação aos
desenvolvimentos técnico ou tecnológico” (voto proferido na ADIn 3.112,
rel. Ricardo Lewandowski, j. 02.05.2007, DJ 26.10.2007) – pela
importância das notas de rodapé, do texto original, elas foram inseridas
entre colchetes na citação supra.
784 Sobre a influência técnico-fascista decisiva do código de processo penal
italiano de 1930 no atual código de processo penal brasileiro de 1940, v.
item 2.5.2 e seus subitens supra.
785 Para pontuações sobre o tema, em alguns pontos de nosso atual
sistema processual penal, v. itens 2.5.2.1 a 2.5.2.4 supra.
Tratando, agora de modo específico, da presunção de inocência, diante de um
código de processo penal formado sobre confessada estrutura fascista – que a rejeitava,
ressalte-se e relembre-se786 –, bem se percebe quão está distante do cotidiano forense e
social a efetivação desse direito fundamental.787
No direito processual penal brasileiro atual, mas forjado em 1940, o déficit
legislativo quanto à presunção de inocência é abissal, para não dizer, total. Note-se que
não se está no campo de uma expansão deficitária ou de uma normatização em processo
de formação. A questão, quanto à presunção de inocência, não é ampliar seu espectro
legislativo ou o âmbito de incidência de seus efeitos, mas reconhecê-los e consagrá-los,
em nível infraconstitucional, pela primeira vez na história da República. A plenitude de
sua efetivação começa, indubitavelmente, por meio de uma legislação processual penal
que tome aquele direito fundamental como o parametrizador do sistema jurídico.

786 Sobre o tema, v. item 2.5.2 supra.


787 Para a demonstração da falta de “organização e procedimento”, assim
como do dever estatal de proteção às garantias constitucionais do
processo penal, como as causas principais do insucesso da
implementação da presunção de inocência na fase pós-iluminista, v.
itens 2.1, 2.2 e seus subitens e 2.3.1 supra.pressando também um
postulado de proteção (‘Schutzgebote’). Utilizando-se da expressão de
Canaris, pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não
apenas uma proibição do excesso (‘Übermassverbote’), mas também
podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou
imperativos de tutela (‘Untermassverbote’) [CANARIS, Claus-Wilhelm.
Grundrechtswirkungen und Verhältnismässigkeitprinzip in der
richterlichen Anwendung und Fortbildung des Privatsrechts. ‘JuS’, 1989,
p. 161 (163)]. Nos termos da doutrina e com base na jurisprudência da
Corte Constitucional alemã, pode-se estabelecer a seguinte classificação
do dever de proteção [RICHTER, Ingo; SCHUPPERT, Gunnar Folke.
‘Casebook Verfassungsrecht’. 3. ed. München, 1996, pp. 35-36]: a) dever
de proibição (‘Verbotspflicht’), consistente no dever de se proibir uma
determinada conduta; b) dever de segurança (‘Sicherheitspflicht’), que
impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de
terceiros mediante a adoção de medidas diversas; c) dever de evitar
riscos (‘Risikopflicht’), que autoriza o Estado a atuar com o objetivo de
evitar riscos para o cidadão em geral mediante a adoção de medidas de
proteção ou de prevenção especialmente em relação aos
desenvolvimentos técnico ou tecnológico” (voto proferido na ADIn 3.112,
rel. Ricardo Lewandowski, j. 02.05.2007, DJ 26.10.2007) – pela
importância das notas de rodapé, do texto original, elas foram inseridas
entre colchetes na citação supra.
Diante da ausência de um sistema processual condizente com a presunção de
inocência, toda a carência de efetividade constitucional passa a ser suprida por
intervenções judiciais, o que vem gerando dois problemas. O primeiro, é uma hipertrofia
do Poder Judiciário e uma atrofia do Poder Legislativo no tema, substituindo-se decisões
públicas, que deveriam ser políticas e com a abrangência erga omnes, típicas do processo
legislativo, exclusivamente pela casuística judicial.788 O segundo, praticamente uma
decorrência do primeiro, é que, sem um balizamento normativo claro e estruturalmente
inovador quanto a um sistema processual penal que se guie pela presunção de inocência,
a aplicação e interpretação daquele direito fundamental perde muito da tendência
expansiva que seu conteúdo deveria apresentar, porquanto ela fica sujeita aos influxos
(pessoais, ideológicos, midiáticos, sociais e culturais) recebidos pelo julgador e que, em
regra, têm conotação restritiva ou até violadora.
Essa atuação judiciária “salvacionista” promove e esconde as falhas e
insuficiências do Estado, notadamente em sua função legislativa conformadora.
“Promove”, porque atuar para atender ao cotidiano dos casos que lhe são apresentados
diminui a percepção da ausência do Legislativo; o Judiciário, assim, contribui para a
permanência do déficit legislativo organizacional e procedimental. “Esconde”, porquanto
os cidadãos e a doutrina têm uma falsa percepção de que a presunção de inocência existe
no ordenamento processual penal, olvidando que sua ocorrência se dá apenas por
conseqüência de eventuais interpretações judiciais em casos concretos específicos.
Precisa ser dito que a permanecer o atual sistema processual forjado em 1940, sob o
signo repressivo-fascista, a presunção de inocência sempre será um corpo estranho
tendente a reduções constantes e ilegítimas em seu conteúdo.

788 Gilmar Ferreira MENDES, Os direitos fundamentais e suas limitações:


breves reflexões, in Gilmar Ferreira MENDES, Paulo Gustavo Gonet
BRANCO, Inocêncio Mártires COELHO, Hermenêutica constitucional e
direitos fundamentais, 1ª ed., Brasília: Brasília Jurídica, 2002, pp.
204/205, é claro em apontar os riscos dessa inversão de papéis entre o
Poder Judiciário de um lado e os Poderes Legislativo e Executivo de
outro, com estes últimos perdendo a primazia na função de dar forma e
corpo aos direitos fundamentais mediante ações normativas e fáticas.
Vindo deste doutrinador, atual Presidente da mais alta Corte Nacional,
merece atenção o alerta dirigido aos direitos às prestações positivas do
Estado, mas em tudo aplicáveis aos direitos fundamentais voltados ao
processo penal, como ele mesmo aponta ao final do item: “A submissão
dessas posições a regras jurídicas opera um ‘fenômeno de
transmutação’, convertendo situações tradicionalmente consideradas de
natureza política em situações jurídicas. Tem-se, pois, a ‘juridicialização’
do processo decisório, acentuando-se a tensão entre direito e política”
(op. cit., p. 205).
Capítulo IV
Conteúdo Essencial da Presunção de Inocência

4.1. -Considerações iniciais: conteúdo essencial de direito


fundamental e escolha metodológica

Não é raro que se veja na doutrina e na jurisprudência a afirmação de que uma ou


outra norma não pode ser aplicada ou deve ter sua extensão reduzida porque “fere” ou
“atinge” o “conteúdo essencial” de um princípio disposto constitucionalmente. No
processo penal, o “conteúdo essencial” é sempre tido como uma garantia contra a
indevida intervenção (de ordinário, estatal) em um direito fundamental destinado a essa
área jurídica.789 Contudo, a idéia de “conteúdo essencial”, notadamente no campo
processual penal brasileiro, tem se construído mais sobre uma intuição ou uma
percepção, nunca expostas de forma clara, do que sobre uma base analítico-dogmática.

789 Para referência à noção de “conteúdo essencial” no tema da presunção


de inocência, v.: Francisco RAMOS MÉNDEZ, El proceso penal: tercera
lectura constitucional, Barcelona: Bosch Editor, 1993, pp. 14/15;
Alexandra VILELA, Considerações acerca da presunção de inocência em
direito processual penal, Coimbra: Coimbra, 2000, p. 73; Esteban
ROMERO ARIAS, La presunción de inocencia: estudio de algunas de las
consecuencias de la constitucionalización de este derecho fundamental,
Pamplona: Aranzadi, 1985, pp. 28 e 48/52; Francisco CAAMAÑO, La
garantia constitucional de la inocencia, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003,
em várias passagem do item 3 de seu cap. IV; Luiz Flávio GOMES,
Sobre o conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção
de inocência, in Luiz Flávio GOMES, Estudos de direito penal e processo
penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 106; e Odone
SANGUINÉ, Prisión provisional y derechos fundamentales, Valencia:
Tirant lo Blanch, 2003, p. 430. Para noção de “conteúdo essencial” da
garantia do devido processo legal e suas críticas e dificuldades de
formação, v. Pedro Juan BERTOLINO, El debido proceso penal, La
Plata: Platense, 1986, pp. 44/49.
Esse topos argumentativo tem sido usado no direito processual penal como algo
inconteste e intransponível, como se todos soubessem não apenas do que se fala
(“conteúdo essencial”), mas também o que ele protege (âmbito do direito), do que ele
protege (intervenção estatal) e, por fim, qual a legítima extensão de um ou outro desses
elementos normativos.
Para se compreender e realizar a aplicação mais extensa possível de um direito
fundamental e, ainda, para se perceber quando seu conteúdo sofre uma intervenção
(estatal ou particular) legítima (restrição) ou ilegítima (violação) é intuitivo que se deva
primeiro conhecer do que ele é composto. Porém, uma referência casuística e intuitiva
não basta para responder a essas necessidades.
Nesse mister, a ciência jurídica precisa analisar e expor de modo racional uma forma
de se identificar e examinar, em extensão e profundidade, a área normativa ocupada pelo
“conteúdo essencial” do direito. Essa é uma tarefa a ser executada para cada direito
fundamental específico e é o que se empreenderá neste e no próximo capítulo para a
presunção de inocência.
Para dar cobro a essa missão, deve-se utilizar o desenvolvido pela doutrina
constitucional sobre importantes variáveis relacionadas com o “conteúdo essencial” dos
direitos fundamentais. Muitas, todavia, são as teorias e outras tantas são as formas mais
ou menos coerentes de definir e compreender esse conceito. No presente trabalho,
aceitamos a noção de “conteúdo essencial de direito fundamental” construída a partir da
“teoria dos princípios”.790 A escolha metodológica empreendida no presente estudo não
foi feita por ser um método melhor que os demais, mas por se acreditar que forneça uma
opção argumentativa mais racional para identificar o que forma o “âmbito de proteção”
da presunção de inocência, primeiro passo para se verificar até que ponto é legítima ou
ilegítima uma “intervenção” (pública ou particular) e, com isso, determinar-se qual o seu
“conteúdo” normativamente tutelado.

790 Segundo Paulo BONAVIDES, Curso de direito constitucional, 21ª ed.,


São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 266/268, e, no mesmo sentido, Eros
Roberto GRAU, A ordem econômica na Constituição de 1988:
interpretação e crítica, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 1997, item 40, no
que são secundados por Ruy Samuel ESPÍNDOLA, Conceitos de
princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação
dogmática constitucionalmente adequada, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1988, pp. 61/63, a primeira referência sobre a base da “teoria
dos princípios” (normas se dividem em regras ou princípios) vem de Jean
Boulanger (“Les principes dans le Droit Français du Travail”). Os autores,
contudo, reconhecem que se a primeira visualização nesse sentido foi
desse autor francês, seu melhor desenvolvimento veio, inicialmente, com
Ronald Dworkin (“Taking rights seriously”, com tradução para o
português, cujo título é “Levando os direitos a sério”) e, posteriormente,
com um inegável detalhamento e melhoria empreendidos por Robert
Alexy (“Theorie der Grundrechte”, com tradução para o espanhol sob o
título “Teoría de los derechos fundamentales”, e para o português, em
tradução de Virgílio Afonso da Silva, com o título “Teoria dos direitos
fundamentais”). Construímos nossas observações, notadamente, sobre
os ensinamentos deste último jusfilósofo alemão, pois o grande
desenvolvimento que ele conferiu ao debate permitiu significativa
repercussão e depuração das idéias iniciais, sendo muitos os seus
seguidores e críticos. Sem adentrarmos de modo aprofundado nas
críticas e anticríticas formuladas a essa teoria, exporemos o que de mais
consensual e relevante há sobre o tema, sempre atento à sua relevância
para o restante do trabalho. Para uma breve, mas precisa, exposição das
perspectivas de Ronald Dworkin em comparação com as de Robert
Alexy, v. Virgílio Afonso da SILVA, Princípios e regras: mitos e equívocos
acerca de uma distinção, Revista Latino-Americana de Estudos
Constitucionais, Belo Horizonte, n. 1, jan./jun., 2003, pp. 609/611.
Uma ressalva há que ser feita já neste ponto inicial do capítulo: a metodologia
escolhida, mesmo sendo fundada na racionalidade analítica, não excluirá totalmente a
subjetividade inerente a qualquer decisão judicial ou escolha legislativa sobre o tema.
Diante de um caso, um juiz pode, por exemplo, aplicar a presunção de inocência e não
determinar a prisão provisória de alguém e, diante do mesmo caso, outro julgador poderá
entender que há condições fáticas e jurídicas que autorizam a prisão. Não só não há
método capaz de eliminar esse subjetivismo, como ele não deve ser eliminado, sob pena
da evolução do direito ser obstada. Somente os sistemas despóticos, pelo uso histórico da
força ou do controle ideológico dos juízes, são capazes de abolir a multiplicidade
subjetiva.791
Quando se optou pela aplicação da metodologia propiciada pela “teoria dos
princípios” não se teve a pretensão de atingir – e isso não se promete no presente
trabalho – uma rígida e matemática intersubjetividade decisória capaz de determinar, de
forma prévia e absoluta, como se deva decidir sempre. Apenas se percebeu que o método
pode, a um só tempo: a) identificar como é a estrutura da norma jusfundamental, suas
partes e inter-relações; b) revelar que muitas argumentações utilizadas atualmente para
afastar a aplicação da presunção de inocência estão travestidas como se fossem linhas
interpretativas, quando na verdade estão baseadas em opções ideológicas para reduzir de
forma inconstitucional o “âmbito de proteção da norma”; e, ainda, c) criar padrões
jusfundamentais mais racionais e sistêmicos de orientação no exame mais consistente e
coerente das variáveis casuísticas de intervenção na presunção de inocência. Tudo a fim
de se alcançar, da maneira mais racional possível, uma justificação constitucional para as
decisões judiciais sobre o tema, contribuindo na formação de uma intersubjetividade
argumentativa capaz de construir uma (nova) cultura sobre a presunção de inocência.
Aquele último benefício citado (alínea “c” supra), diferente do que possa parecer,
não eliminará do mundo forense escolhas ilegítimas, inconstitucionais ou
ideologicamente voltadas para uma opção diversa daquela feita pelo constituinte. Em
outras palavras, o método (escolhido) não evitará algumas ilegalidades (decisórias)
casuísticas. Apenas permitirá, com uma maior segurança racional – acreditamos –,
identificar em quais pontos o julgador baseou sua escolha decisória e se ele, para
legitimar essa escolha, empreendeu uma argumentação jusfundamental apta e coerente a
tornar sua decisão legítima, em face do sistema político-constitucional existente.792

791 Sobre a necessidade de se balizar racional e constitucionalmente essa


subjetividade e não de eliminá-la, v. item 5.4.2.3.2 infra.
792 Sobre a pluralidade aleatória, contraditória e animada por subjetivismos
inconciliáveis como uma das causas da ilegitimidade social do sistema
criminal (penal e processual penal), v. Luigi KALB, La “ricostruzione
orale” del fatto tra “efficienza” ed “efficacia” del processo penale, Torino:
Giappichelli, 2005, pp. 121/123.
O presente capítulo, respeitando os limites de um trabalho voltado à área processual
penal, notadamente, à presunção de inocência, não se estenderá quanto às divergências
ou incoerências entre as linhas constitucionais sobre a estrutura da norma de direito
fundamental. Porém, dentro do necessário, justificará suas escolhas, demonstrando em
que pontos é relevante este ganho argumentativo propiciado pela “teoria dos princípios”
para a área do direito processual penal e, principalmente, para a compreensão da norma
constitucional da presunção de inocência.793

4.2. Conteúdo essencial objetivo e conteúdo essencial subjetivo

Há certo consenso, em toda a doutrina constitucional, de que o conteúdo essencial


de um direito fundamental pode ser analisado pela perspectiva objetiva ou subjetiva ou,
por outro viés, pela perspectiva do conteúdo essencial absoluto ou relativo.794

793 Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo


Gonet BRANCO, Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva,
2007, pp. 291/292, nota 34, em longa tradução de trecho de Robert
Alexy, apontam as vantagens da “teoria dos princípios” no estudo da
norma constitucional: “A grande vantagem da teoria dos princípios reside
no fato de que ela pode impedir o esvaziamento dos direitos
fundamentais sem introduzir uma rigidez excessiva. Nos seus termos, a
pergunta sobre a legitimação de uma restrição há de ser respondida
mediante a ponderação. O postulado da ponderação corresponde ao
terceiro subprincípio do postulado da proporcionalidade no direito
constitucional alemão. (...) A teoria dos princípios logra não apenas a
solução das colisões de direitos, mas a estruturação de solução das
colisões de direito. Essa teoria tem uma outra qualidade que é
extremamente relevante para o problema teórico do Direito
Constitucional. Ela permite uma via intermediária entre vinculação e
flexibilidade”.
794 Nesse sentido, v. Antonio-Luis MARTÍNEZ-PUJALTE, La garantía del
contenido esencial de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de
Estudios Constitucionales, 1997, pp. 33/34.
A primeira forma de se analisar o conteúdo essencial (objetiva-subjetiva) é a que
angaria maior consenso entre as várias correntes doutrinárias. Por essa perspectiva o que
importa no exame da norma fundamental é identificar se o direito/dever por ela
assegurado garante posições subjetivas (teoria subjetiva) ou se garante situações objetivas
(teoria objetiva).795 Como a segunda forma de analisar o conteúdo essencial (teoria
absoluta ou teoria relativa) parte de modo especial da visão subjetiva citada, comecemos
pela explicação da primeira abordagem: o limite às intervenções indevidas no conteúdo
essencial do direito fundamental deve ser determinado pela perspectiva objetiva ou
subjetiva daquele direito.
Um consenso doutrinário do constitucionalismo atual permitiu que muito do que se
costuma analisar como conteúdo essencial pela perspectiva objetiva/subjetiva já fosse
desenvolvido ao final do capítulo anterior.796 Porém, mesmo de modo breve, pode-se
afirmar que para a teoria objetiva o conteúdo essencial é uma garantia do direito
fundamental voltada a proteger o bem da vida por ele alçado à condição de “instituição
jurídica” com importância para toda a comunidade. A maior relevância conferida a
determinadas “porções da vida” pelo constituinte faz com que ele crie enunciados
normativos constitucionais para protegê-las. O conteúdo essencial, portanto, para essa
teoria, visa limitar as intervenções indevidas nos direitos fundamentais como se eles
fossem “instituições objetivas do sistema jurídico”.797 A finalidade daquele conteúdo, pela
perspectiva objetiva, é a de proteger essas “instituições” (bens jurídicos) de intervenções
(públicas ou privadas) que os afastem de todo corpo social ou de parte significativa dele.
O conteúdo essencial, em sua dimensão objetiva, está preocupado em assegurar, manter e
tornar realidade para todos (ou quase todos) os cidadãos os bens jurídicos protegidos pela
norma, vedando sua violação e estimulando sua expansão.798

795 Robert ALEXY, Teoría de los derechos fundamentales, tradução de


Ernesto Garzón Valdés, Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002, pp. 286/287.
796 Conferir item 3.8 e subitens supra.
797 Martin BOROWSKI, La estructura de los derechos fundamentales,

tradução de Carlos Bernal Pulido, Bogotá: Universidad Externato de


Colombia, Série de Teoría Jurídica y Filosofía del derecho nº 25, 2003, p.
97, e Antonio-Luis MARTÍNEZ-PUJALTE, La garantía cit., p. 34.
798 Nesse sentido, v. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito

Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Coimbra: Almedina,


2002, p. 1240. Para Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais:
conteúdo essencial, restrições e eficácia, São Paulo: Malheiros, 2009,
item 5.2.1, esse aspecto objetivo do conteúdo essencial não protege
muito mais do que já está garantido pela idéia de “cláusula pétrea” (art.
60, § 4º, inciso IV, CR).
Para a teoria subjetiva, por sua vez, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais,
notadamente os direitos de defesa (dentre os quais está a presunção de inocência),
garante esses direitos como direitos subjetivos voltados a impedir intervenções (de
ordinário, estatais) excessivas ou de qualquer modo ilegítimas nas posições jurídicas
individualmente exercidas.799 Por essa perspectiva, a teoria subjetiva demonstra que
apenas garantir normativamente o direito a toda a comunidade (teoria objetiva) não é
suficiente para fazer com que ele se torne uma realidade aos cidadãos em suas
necessidades e conflitos individuais. Por essa teoria, garantir que o direito não será
reduzido para todos não impede que ele seja reduzido, e até mesmo eliminado
integralmente, a um indivíduo, em determinada hipótese concreta. Em resumo,
demonstra que a violação ou denegação de um direito a um cidadão em um caso
específico não esvazia o seu conteúdo para os demais, não afeta a sua dimensão objetiva.
Porém, o contrário não é verdade, ou seja, a despeito de sua manutenção normativa (para
todos) pode ocorrer que, em um dado caso concreto, ou para uma pequena porção de
pessoas, ele seja inteiramente negado.800
É o que ocorre, por exemplo, quando em dado caso concreto o juiz nega aos
acusados os direitos à ampla defesa e ao contraditório, impedindo-os de se manifestarem
sobre documentos juntados pelo Ministério Público e por ele utilizados em sua sentença.
Ao assim agir, haja um ou dezenas de acusados, o juiz não diminuiu, para os demais
membros da sociedade, o conteúdo objetivo (bem da vida) do preceito constitucional
contido no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal.801 Porém, pela perspectiva
subjetiva, negou que esse mesmo conteúdo tivesse efetiva aplicação e, portanto, deixa-se
o plano normativo e encontra-se concretude no plano fático. O texto normativo continua
vigente, mas não teve sua aplicação permitida.

799 Martin BOROWSKI, La estructura cit., p. 97.


800 Nesse sentido, Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item
5.2.2.
801 Preceitua esse inciso constitucional: “LV – aos litigantes, em processo

judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o


contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Pela teoria subjetiva do conteúdo essencial, portanto, para haver lesão ao direito
fundamental basta que um indivíduo sofra violação em seu direito, de modo concreto e
casuístico. Para a teoria objetiva, ao contrário, a violação ao conteúdo do direito só
ocorreria se o bem da vida que está na norma fundamental perdesse essa proteção como
instituição jurídica, deixando de integrar o direito fundamental não apenas para uma
pessoa ou um grupo delas, mas para toda a coletividade (ou uma parcela significativa
dela).802 Por isso, conforme já asseverado anteriormente,803 essas formas objetiva e
subjetiva de compreender o conteúdo essencial dos direitos fundamentais não se
excluem, mas, ao contrário, se inter-relacionam e se complementam a fim de garantir
uma maior efetividade às normas fundamentais.804
As perspectivas objetiva e subjetiva, como se percebe, têm importante função ao
bem explicarem a extensão e finalidade do direito fundamental, mas não atendem de
modo tão eficiente o exame de suas reduções (intervenções estatais). Para isso ganha em
importância o estudo do conteúdo essencial pela perspectiva absoluta/relativa.
As teorias que analisam o conteúdo essencial do direito fundamental como algo
absoluto e irrestringível (conteúdo essencial absoluto) ou como algo relativo e, portanto,
restringível (conteúdo essencial relativo), diante de certas condições, são linhas
doutrinárias mais ligadas à teoria subjetiva.805
Como já se mostrou a importância e as conseqüências das dimensões subjetiva e
objetiva do direito fundamental da presunção de inocência,806 nossa maior preocupação, a
partir deste ponto do trabalho, será demonstrar a relevância em se escolher a teoria
relativa do conteúdo essencial do direito fundamental para garantir a melhor proteção da
presunção de inocência.
Para isso, a partir do próximo item, definiremos inicialmente, com base na “teoria
dos princípios”, se a presunção de inocência deve ser considerada como regra ou como
princípio. Posteriormente, se exporá quais os elementos que integram o conteúdo dessa
norma fundamental, como interagem e os argumentos justificadores de nossa opção pela
teoria relativa do conteúdo essencial como a melhor para a tutela das normas
fundamentais.

802 Antonio-Luis MARTÍNEZ-PUJALTE, La garantía cit., p. 34.


803 Para outras considerações sobre o tema, v. item 3.8.2 supra.
804 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 287/288; Konrad

HESSE, Elementos de direito constitucional da República Federal da


Alemanha, tradução de Luís Afonso Heck, Porto Alegre: Sérgio Antônio
Fabris Editor, 1998, pp. 290/294; e Antonio-Luis MARTÍNEZ-PUJALTE,
La garantía cit., pp. 36/37. Indicando mais referências doutrinárias para
uma teoria mista (objetiva e subjetiva), v. Martin BOROWSKI, La
estructura cit., pp. 97/98.
805 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 288; Virgílio Afonso da SILVA, Direitos

fundamentais cit., item 5.2.2; e Martin BOROWSKI, La estructura cit., p.


98.
806 Para nossas considerações dessas duas perspectivas para a realização

da presunção de inocência, v. item 3.8 e seus subitens supra.


4.3. -Presunção de inocência e sua estrutura normativa de princípio

Para a “teoria dos princípios”, o modelo analítico que melhor responde às


necessidades de interpretação e aplicação das normas constitucionais é aquele que toma a
norma como gênero do qual as regras e princípios são espécies.807

807 Para uma exposição e críticas do modelo puro de regras ou do modelo


puro de princípios, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 115/128. Para a
exposição do autor sobre o modelo regra/princípios, v., op. cit., pp.
129/138.
Como já ressaltado, “norma” se diferencia do “enunciado normativo” (texto
normativo, disposição legal, texto de lei), porquanto ela é o significado que deste se extrai
e este, por sua vez, é o conjunto lingüístico escolhido pelo legislador para a formação do
texto legal.808 Assim, de um enunciado normativo é possível se extrair um ou vários
significados (normas) que terão ou a estrutura de regra ou a estrutura de princípio. Essas
duas formas (regra e princípio) são espécies de normas, pois ambas dizem com o “dever
ser” e podem ser formuladas com base em expressões deônticas básicas como a proibição,
a permissão e o mandamento.809 É, portanto, um modelo de estrutura normativa com dois
níveis diversos: o nível das regras e o nível dos princípios.810
É importante um exame detalhado da estrutura de cada uma dessas espécies de
norma para melhor compreensão das diferenças entre esses dois níveis e a sua
importância para o trabalho.

808 Sobre o tema, v. item 3.7.1 supra.


809 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 83.
810 Com essa opção metodológica, deixa-se de comentar nesse trabalho

qualquer classificação dos princípios como normas de maior grau de


abstratividade ou generalidade ou, ainda, maior grau de importância.
Para uma visão quanto às classificações elaboradas pelo critério da mais
alta generalidade ou abstratividade, v. Luís Roberto BARROSO,
Interpretação e aplicação da Constituição, 3ª ed., São Paulo: Saraiva,
1999, pp. 147/156. Como classificação empreendida pelo critério da
importância, v. José Afonso da SILVA, Curso de direito constitucional
positivo, 29ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007, pp. 92/96. Sobre os
múltiplos significados de princípio, com apoio em Ricardo Guastini, v.
Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados da presunção de
inocência, in José Francisco de Faria COSTA e Marco Antonio Marques
da SILVA, (coord.), Direito penal especial, processo penal e direitos
fundamentais: visão luso-brasileira, São Paulo: Quartier Latin, 2006, item
6. O característico no modelo adotado no atual trabalho é que a
diferenciação entre princípios ou entre esses e as regras se dá por
critério qualitativo e estrutural, não de grau (Robert ALEXY, Teoría cit., p.
87). Isso não significa que um princípio não possa ter grau de
abstratividade ou importância maior que uma regra, apenas toma como
critério distintivo a sua estrutura lógica (Martin BOROWSKI, La estructura
cit., p. 48) e a sua qualidade. Nas palavras de Virgílio Afonso da SILVA,
Princípio e regras cit., p. 613, a diferença entre as classificações
baseadas em outros critérios e a apresentada por Robert Alexy, na sua
obra já citada, repousa no fato de que o “conceito de princípio, na teoria
de Alexy, é um conceito que ‘nada’ diz sobre a fundamentalidade da
norma. Assim, um princípio pode ser um ‘mandamento nuclear do
sistema’, ‘mas pode também não o ser’, já que uma norma é um princípio
‘apenas em razão de sua estrutura normativa’ e não de sua
fundamentalidade”.
4.3.1. -Princípios são “direitos prima facie” e regras são
“direitos definitivos”

Para a “teoria dos princípios”, toda a espécie de norma, que garanta um direito – e,
por conseqüência, imponha um dever –811a ser cumprido na maior medida possível e
diante das condições fáticas e jurídicas do caso concreto, tem estrutura normativa de
“princípio”.812 Compõem o nível dos princípios todos aqueles que possam ser tidos como
relevantes, como argumentos ponderáveis em uma decisão sobre matéria
jusfundamental. No campo abstrato, para integrar tal nível normativo, não importa se o
princípio está atribuído em norma que trate de direito individual e/ou coletivo, se ele
será favorável ou contrário à determinada justificação constitucional. Basta que possa
contribuir de maneira correta com a formação de uma argumentação jusfundamental.813

811 Daí porque, diante da perspectiva que se examine a norma, pode-se


falar que há um direito prima facie que ela garante ou um dever prima
facie que ela determina. Será direito se examinada pela perspectiva do
titular do garantido pela norma. Ao contrário, será dever quando
examinado pela perspectiva de quem é o responsável pelo cumprimento
do bem da vida garantido pela norma. Assim, exemplificando, se há um
direito prima facie à publicidade dos atos processuais há, também, em
contrapartida, um dever prima facie que os atos processuais sejam
públicos. O direito é exigível pelo seu titular, o “dever” tem o seu
cumprimento imposto ao agente público responsável. Sobre o acima
exposto para os direitos subjetivos, v. item 3.8.1 supra.
812 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 86 e 99. No mesmo sentido, v. José
Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 1239.
813 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 130. Para maiores considerações sobre
qual tipo de princípio integra o denominado “nível dos princípios”, v. op.
cit., pp. 130/133.
A “regra” é mais descritiva de condutas que valorativa ou finalística, essas duas
características mais afeitas aos princípios.814 Ela é uma norma cuja estrutura garante um
direito de forma definitiva,815 isto quer dizer, quanto à sua forma de aplicação, que o
significado daquele texto (“norma”) ou se realiza por inteiro ou não se realiza no caso
concreto. A norma-regra é aplicada como está prevista, ou não é aplicada, é a forma
“tudo ou nada” (“all or nothing”) de aplicação. Não poderá ser em parte afastada e em
parte aplicada. Os direitos/deveres garantidos mediante regras, diferente do que ocorre
com os princípios, não são suscetíveis de ponderação com outras normas a fim de que
sejam, em determinados casos, afastados em parte e em outra parte produzam efeitos
jurídicos. As regras não são restringíveis, os princípios são.816
Os princípios podem ser cumpridos em diferentes graus de consecução, são
“mandamentos de otimização” que tendem a uma realização na maior intensidade
possível.817 Mas sua não realização integral não os invalida como norma jurídica, apenas
diminui sua eficácia no caso concreto. Uma norma-princípio é elaborada e deve ser
interpretada para que seja aplicada no maior grau de realização possível, tendo em vista
as condições fáticas e jurídicas. O que não significa dizer que está garantido que sempre
haverá sua total realização. Os princípios são normas restringíveis mediante outras
normas (regras ou princípios), desde que para isso sejam obedecidos critérios formais e
materiais, tudo conforme as condições do caso concreto.818

814 Luís Roberto BARROSO e Ana Paula BARCELLOS, O começo da


história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no
direito brasileiro, in Virgílio Afonso da SILVA (coord.), Interpretação
constitucional, São Paulo: Malheiros, 2005, p. 283.
815 Nesse sentido, v. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito

Constitucional cit., p. 1239.


816 Nesse sentido, Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 77/78, e Robert

ALEXY, “Kollision und Abwägung als Grundproblem der


Grundrechtsdogmatik”, palestra proferida no Rio de Janeiro, Fundação
Casa Rui Barbosa, em 10-12-1998, apud Gilmar Ferreira MENDES,
Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit.,
p. 291, nota 33.
817 Martin BOROWSKI, La estructura cit., p. 49.
818 Nesse sentido, v. Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 76/82.
Importante, aqui, distinguir que os princípios, como expressões deônticas (do “dever
ser”) positivadas, notadamente quando postos em nível constitucional, são redigidos de
forma a compreender um largo espectro de situações concretas, para as quais,
idealmente, é elaborado e deve ser interpretado a fim de ser aplicado da forma mais
ampla possível. Isso é o ideal normativo, não uma garantia. “No caso dos princípios, não
se pode falar em realização sempre total daquilo que a norma exige. Ao contrário: em
geral essa realização é apenas parcial”.819 De ordinário, esse ideal tende a ocorrer com a
maior incidência possível (dificilmente de forma total) se não entra em contradição com
outra norma (princípio ou regra) e se as condições fático-jurídicas são ideais. Caso
contrário, existindo entrechoque com outra norma820 ou inexistindo condições ideais, sua
incidência é, em maior ou menor grau, apenas parcial.
Quanto à norma-regra, as condições fático-jurídicas do caso concreto não importam
para determinar o grau de sua aplicação.821 Elas possuem “uma determinação no âmbito
das possibilidades jurídicas e fáticas”, contém “mandamentos definitivos” e a
interpretação ou indica que devem ser integralmente aplicadas por meio de subsunção,
ou que não serão aplicadas em nenhuma de suas porções.822 Havendo subsunção da
situação concreta ao previsto pela norma, a sua estrutura de regra determina que ela seja
inteiramente aplicada. Caso contrário, não havendo adequação fática ou jurídica entre a
situação concreta e o significado que se extrai do texto legal (“norma”), não há subsunção
e a norma-regra em nada se aplicará ao caso.
A regra, contudo, contém certo grau de generalidade na medida em que não é
elaborada para resolver uma situação concreta, mas para regular um espectro de situações
abstratamente previstas pelo legislador. Assim, quando não há uma situação de
contradição normativa, ocorre a interpretação do significado do seu texto normativo em
face do caso concreto. Se houver subsunção, a norma é aplicável. Porém, se não for
aplicável, isto é, a situação concreta não se subsumiu àquela regra, não significa que tal
regra tenha se tornado inválida. Apenas não é aplicável por falta de subsunção daquela
situação específica à norma. Isso não altera sua forma de aplicação “tudo ou nada”,
porquanto a regra deixou de ser aplicada apenas porque o significado empreendido ao
texto normativo não estava adequado àquela situação concreta apresentada.

819 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 45.


820 As espécies de contradição normativa e suas formas de resolução estão
examinadas no item 4.4.3.1.3 e seus subitens infra.
821 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 2.2.2.
822 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 99.
Direcionando todo antes expendido para a presunção de inocência, para se
identificar se a norma na qual está prevista constitucionalmente é uma regra ou um
princípio, podem-se escolher três critérios de exame: a estrutura normativa, a forma de
aplicação e o tipo de conteúdo normativo-axiológico.823 Por qualquer desses aspectos
sempre se chega à conclusão de que a norma constitucional na qual se insere a presunção
de inocência apresenta-se como “norma-princípio”.824
Quanto à perspectiva do conteúdo (normativo-axiológico), a presunção de inocência
é norma-princípio, porquanto sua norma identifica um valor a ser preservado e um fim a
ser alcançado, trazendo em seu bojo uma decisão político-ideológica.825 Não é, como as
normas-regras, prescritiva de condutas.
Já quanto à estrutura normativa, a presunção de inocência se caracteriza também
como princípio, por prescrever “fins e estados ideais a serem alcançados”, um “dever
ser”,826 e que caberá ao intérprete decidir e cumprir. Atividade que será mais sofisticada e
complexa na medida em que além das condições fático-jurídicas surgem as inevitáveis
contradições normativas (colisões com uma regra ou com outro princípio) a serem
resolvidas.827

823 Esses critérios aqui indicados e a serem desenvolvidos nos dois


próximos parágrafos são expostos por Luís Roberto BARROSO e Ana
Paula BARCELLOS, O começo da história cit., pp. 282/285, para
diferenciar regra de princípio, segundo a “teoria dos princípios”.
824 Para Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo
Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., p. 291, todos os direitos
fundamentais individuais, dentre os quais se insere a presunção de
inocência, são princípios, conforme a “teoria dos princípios” aqui
desenvolvida.
825 Para maiores considerações sobre o tema, v. item 5.3.3 e seus subitens
infra.
826 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção de inocência e prisão
cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 36.
827 Como já afirmado, as contradições normativas e suas formas de
resolução estão examinadas no item 4.4.3.1.3 e seus subitens infra.
Por fim, e o que mais interessa ao trabalho, quanto à forma de aplicação a presunção
de inocência também se identifica como uma “norma-princípio”. Observado o texto
normativo da presunção de inocência e, ainda, cotejando-o com o sistema constitucional,
mesmo observado apenas o âmbito dos direitos fundamentais, percebe-se coexistirem
limitações sistêmicas da presunção de inocência, p.ex., pela prisão em flagrante ou por
prisão provisória determinada judicialmente. Se, como antes já destacado nesse item,
perceber-se que os princípios têm conteúdo tão expansível que criam, com outros
princípios e com regras, campos de contradição e, ainda, ao se notar uma restrição
natural de sua eficácia diante das condições fáticas do caso concreto, mesmo se ausente
qualquer contradição normativa, conclui-se que a presunção de inocência tem estrutura
de princípio. Ela poderá ser restringida diante das condições fáticas e jurídicas do caso
concreto. Por condições fáticas devem-se entender as condições da vida que se
apresentam no caso concreto e que influenciam o intérprete no instante de dar àquele
princípio sua melhor extensão. Por condições jurídicas, de ordinário, devem ser
entendidas as suas inevitáveis colisões com outras normas (regras ou princípios).
A presunção de inocência é, portanto, um direito garantido a seu titular nos moldes
“prima facie” ou como “mandamento de otimização”, o que significa dizer que a norma
será cumprida dentro da maior eficácia possível. Isso não significa dizer que os agentes
(públicos e privados) não tenham o dever de respeitar e promover aquele direito, mas
apenas que isso deve acontecer na “maior medida possível”. Possibilidade que se extrai
das condições fático-jurídicas do caso concreto.
Compreendida a estrutura normativa da presunção de inocência como uma norma-
princípio,828 necessário se identificar todos os elementos específicos e formadores de seu
conteúdo. Como o exame exaustivo de todas as variantes constitucionais foge ao presente
estudo, todo o trabalho doravante será desenvolvido tendo em vista as normas-princípios
de direito fundamental direcionadas ao processo penal.

4.4. Suporte fático da norma fundamental

Ao se mencionar o termo “suporte fático” da norma fundamental imagina-se, de


modo intuitivo, que ele se refira a todo o espectro da vida tutelado constitucionalmente.
Embora isso não esteja errado, não traduz a melhor forma de compreendê-lo. O suporte
fático é formado pelo fato, ato ou situação jurídica inseridos no âmbito de proteção da
norma. Contudo, essa é apenas uma das partes em que ele se estrutura. Para se entender
os demais elementos integrantes do suporte fático é necessário perceber qual a sua
finalidade e função.829 Nesse sentido, mostra-se relevante trazer ao contexto as visões
doutrinárias de suporte fático abstrato e de suporte fático concreto.

828 Para uma classificação da presunção de inocência como princípio


segundo outros critérios doutrinários, v. Antônio MAGALHÃES GOMES
FILHO, Significados cit., item 6.
829 Sobre a finalidade e função do suporte fático na presunção de inocência,

v., respectivamente, itens 5.3.3.1 e 5.3.3.2 infra.


O suporte fático abstrato compreende todos os fatos, atos e situações da vida, enfim,
bens jurídicos protegidos pelo enunciado de uma norma fundamental e de cuja realização
ou violação decorre uma conseqüência jurídica. É a previsão legal e suas decorrências
jurídicas. O suporte fático concreto, por sua vez, é a ocorrência daquilo que estava
previsto no texto legal.830
Posta a questão nesses termos, em uma primeira observação, pode parecer pouca a
relevância do estudo do que seja, qual a função e qual a finalidade do suporte fático para
os direitos fundamentais. Pareceria que basta ler o texto normativo, empreender sobre
ele uma interpretação apta a lhe extrair o significado em face do caso concreto e, por fim,
aplicá-lo. Porém, se constatarmos que, por sua redação, as normas de direitos
fundamentais são abertas e imprecisas, aplicáveis a extensas porções das realidades fáticas
e jurídicas e, ainda, que são muitas as normas que as conformam, as restringem e as
violam (notadamente para a presunção de inocência), percebe-se que a mera constatação
do texto normativo quanto ao “algo” que é protegido e a conseqüência jurídica dele
decorrente não ajuda muito nos casos mais complexos.
Formular quatro indagações é muito útil para se iniciar a percepção analítica do que
seja e do que se compõe o suporte fático: “(1) o que é protegido? (2) contra o quê? (3)
qual a conseqüência jurídica que poderá ocorrer? (4) o que é necessário ocorrer para que
a conseqüência possa também ocorrer?”.831
Percebe-se, portanto, que diversamente do que se poderia imaginar, o suporte fático
não é composto apenas por aquilo que se quer proteger com a norma. Também o compõe
aquilo contra o que se quer proteger (intervenção), pois “a conseqüência jurídica – em
geral a exigência de cessação de uma intervenção – somente pode ocorrer se houver uma
‘intervenção’ nesse ‘âmbito’”.832 O suporte fático não é formado apenas pelo “âmbito de
proteção” (o bem jurídico protegido), mas também pela “intervenção”.833

830 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,


item 3.2.
831 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 71.
832 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 71.
833 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 294, define, para os direitos de defesa, os

“bens protegidos” como as “ações, propriedades ou situações e posições


de direito ordinário que não devem ser impedidas, afetadas ou
eliminadas”, e por “intervenção”, para a mesma espécie de direitos
fundamentais, “o gênero dos conceitos de impedimento, afetação ou
eliminação”.
A esses dois elementos do suporte fático, parte da doutrina contrapõe um terceiro
fator que é a “justificação constitucional para a intervenção”.834 Afirma que o exame do
suporte fático, nos direitos de defesa, deve se dar em três passos: a definição do “âmbito
de proteção”, a definição da intervenção e, por fim, a verificação se tal intervenção tem
justificação constitucional.835 Sem essa justificação a intervenção não é legítima (ou não é
permitida) e a conseqüência jurídica prevista na norma deve operar.836
Entendemos melhor, porém, o chamado “modelo alternativo”, proposto por
VIRGÍLIO AFONSO DA SILVA,837 para quem os três pontos antes referidos devem
também se relacionar, mas de modo mais próximo, trazendo a justificação constitucional
para dentro do suporte fático da norma como qualidade da intervenção estatal. A
intervenção, justificada constitucionalmente, será considerada legítima e, portanto,
sendo uma “restrição” (intervenção legítima), vem integrar aquele suporte fático para
reduzir o “âmbito de proteção” da norma. Para esse autor, não se deve formar o suporte
fático apenas com dois elementos (“âmbito de proteção” e “intervenção”) para, depois,
verificar se este segundo elemento tem justificação constitucional e, se positiva a
resposta, a intervenção está constitucionalmente legitimada a integrar aquele suporte. A
divergência é sutil, mas relevante. Por esse modelo alternativo não se admite o ingresso
de qualquer intervenção que não seja, a priori, justificada constitucionalmente.
Há duas formas de intervenção: uma legítima, denominada restrição, e que integrará
o suporte fático a fim de reduzir o âmbito de proteção da norma constitucional; outra
ilegítima, denominada violação, e que se ocorrente provocará a conseqüência jurídica
prevista na norma.
Parece-nos acertado o modelo alternativo, pois, não nos apresenta útil incluir no
suporte fático de uma norma constitucional algo que não seja correto, aceitável ou
justificável constitucionalmente. Claro que toda norma-princípio, como ocorre com a
presunção de inocência, é restringível e a restrição deve compor o suporte fático da
norma, seja em seu aspecto abstrato, ou concreto. Porém não nos parece que uma
violação constitucional (intervenção ilegítima) primeiro deva ser inserida dentro daquele
suporte, para, depois, verificada sua falta de justificação, ser retirada.

834 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 292/297; Dimitri DIMOULIS e Leonardo
MARTINS, Teoria geral dos direitos fundamentais, São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007, item 9.2.4.2; e Martin BOROWSKI, La estructura
cit., p. 120.
835 Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit., p. 149,

afirmam que a “análise da constitucionalidade formal e material da


concretização dos limites dos direitos fundamentais é conhecida como
‘justificação constitucional de uma intervenção estatal na área de
proteção do direito fundamental’”.
836 Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 123/124.
837 Sobre as diferenças entre os modelos e sua decorrência na formulação

lógica proposta por Robert Alexy, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos


fundamentais cit., item 3.2.3.
Melhor que se veja a norma-princípio fundamental como algo restringível, portanto
com suporte fático composto também pela intervenção, mas apenas e enquanto esta for
justificada constitucionalmente (restrição). Caso contrário, sendo injustificada (violação),
não integrará aquele suporte fático e sua ocorrência fará com que a conseqüência jurídica
da norma se verifique a fim de impedir-lhe a ocorrência ou fazer cessar a ilegalidade.
Nesse ponto cabe uma relevante observação, a fim de que o que acima se disse sobre
suporte fático não pareça contraditório com o antes referido sobre conteúdo essencial em
sua dimensão objetiva.838
Os direitos de defesa, direitos fundamentais de primeira geração nos quais se insere
a presunção de inocência, têm sido vistos não apenas como direitos de resistência a
intervenções indevidas, mas também e tão importante quanto, como direitos a prestações
estatais positivas (p.ex., formulação de procedimentos e organização suficiente para sua
plena efetivação). Nesse sentido, todo o acima referido ao suporte fático é válido para os
direitos de defesa também em sua dimensão objetiva, ou seja, como direitos que exigem
do Estado uma atuação positiva no sentido de proteger e efetivar seu conteúdo objetivo.
Basta, para isso, que, tal qual ocorrente com os demais direitos de prestação em sentido
amplo (p.ex., os direitos sociais), a idéia de “intervenção estatal” seja substituída, quando
oportuno, pela de “inércia estatal”.839
A “inércia estatal”, portanto, também é fator de redução do âmbito de proteção da
norma, pois, como os direitos a prestações positivas precisam de atuações estatais para se
realizar, quando elas deixam de ser efetivadas pelo Estado (inércia estatal), também há
uma indevida diminuição (violação) da efetivação do respectivo direito.

838 Sobre o tema, v. itens 3.8.2 e seus subitens e 4.2 supra.


839 Sobre a coerência tanto da “teoria dos princípios” quanto do modelo
alternativo para ambas as espécies de direitos fundamentais, v. Virgílio
Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., itens 3.2.4 e seus subitens.
Tanto assim que a própria formulação lógica elaborada para os direitos
de defesa [(x) (APx  ¬ FC(IEx)  OCJx)] também tem aplicabilidade,
feita uma pequena adaptação explicativa, para os direitos sociais. Aquela
formulação, para os direitos de defesa em geral, significa que se um
direito (x) é protegido pelo âmbito de proteção de um direito fundamental
(APx) e se não há uma fundamentação constitucional (¬ FC) para a
intervenção estatal naquele direito (IEx), então deverá ocorrer a
conseqüência prevista na norma ( OCJx). Para os direitos de defesa,
como direitos carentes de prestação estatal para sua efetivação, basta
que o termo “intervenção estatal” seja substituído por “inércia estatal”,
mantendo-se, inclusive, a mesma expressão lógica: IEx. Assim, para
essa segunda feição dos direitos fundamentais, aquela formulação lógica
deve ser lida da seguinte forma: se um direito (x) é protegido pelo âmbito
de proteção de um direito fundamental (APx) e se não há uma
fundamentação constitucional (¬ FC) para a “inércia estatal” deixar de
proteger e de efetivar aquele direito (IEx), então deverá ocorrer a
conseqüência prevista pela norma daquele direito ( OCJx).
Como se percebe, o suporte fático é composto por dois elementos (“âmbito de
proteção” e “intervenção/inércia estatal”), cujos estudos individualizados para a
presunção de inocência fornecerão seguras balizas para o exame e explicação de quando
uma intervenção será ou não legítima em seu conteúdo. Porém, antes de se expor cada
um daqueles elementos, é necessário tomar-se uma posição sobre como aquele suporte
fático deve ser concebido, ou seja, deverá ele ser visto de forma ampla, ou restrita.
4.4.1. (segue): suporte fático amplo

A doutrina constitucional, ao tratar do conteúdo essencial para os direitos


fundamentais, costuma se dividir entre os que aceitam o suporte fático amplo e aqueles
que o aceitam como restrito. Para a “teoria dos princípios”, tendo em vista uma maior
preocupação com a garantia dos direitos fundamentais, entendem seus adeptos ser mais
apropriado aceitar a teoria ampla.840
Ambas as correntes têm algo em comum e algumas diferenças. O que guardam em
comum é que, para ambas, os direitos constitucionais, quando assumem a estrutura de
normas-princípios, são restringíveis.841 Assim, tanto a teoria restrita quanto a teoria
ampla do suporte fático admitem que esses direitos fundamentais sejam direitos
restringíveis. A diferença, por sua vez, reside em dois pontos: o primeiro refere-se ao
instante em que o suporte fático deva ser reduzido; e o segundo diz com o método de se
empreender essa redução do suporte fático.

840 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 298/300, e Virgílio
Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., itens 3.3, 3.3.2, 5.4, 5.7,
passim.
841 Nesse sentido, v. Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 133/134.
Para os adeptos da teoria restrita,842 a redução do suporte fático é feita a priori e no
instante em que se concebe toda a extensão e conteúdo do “âmbito de proteção” e das
espécies de restrições aceitáveis (constitucionalmente justificáveis). Assim, a partir da
posição restrita de suporte fático, excluem-se determinadas ações, estados ou posições
jurídicas como passíveis de integrar a proteção da norma, mesmo no campo abstrato. Essa
exclusão a priori – e esse ponto é o que permanece irrespondível por seus adeptos – faz-
se muitas vezes de modo intuitivo e em significativos espaços dos bens da vida. Não
obstante se utilizem de métodos interpretativos (p.ex., o histórico-sistêmico), do critério
da especificidade do tema tratado pela norma, estabelecendo-se prioridades axiológicas e
excluindo determinadas variáveis, ou, ainda, baseiem-se em leis gerais, o que remanesce
carente de uma definição mais precisa e clara é como se formam esses modelos que
justificam as exclusões a priori.843 Exclusões que, de ordinário, ocorrem no “âmbito de
proteção” por meio da eliminação de determinada situação ou de determinado grupo de
pessoas da esfera de proteção normativa. Porém, também pode haver exclusões a priori
de situações por meio da ampliação da esfera da “intervenção/inércia”, de modo que gere
uma maior limitação do direito fundamental. Isso ocorre, p.ex., quando se amplia

842 Dentre os autores adeptos dessa forma de compreender o suporte fático,


o de maior representatividade na doutrina germânica, e que em muito
tem influenciado autores por todo o mundo, é Friedrich Müller com sua
teoria estruturante da norma jurídica e, por conseqüência, da norma de
direito fundamental. Sobre as críticas às idéias defendidas por esse
autor, destacando-se os pontos de semelhança com a “teoria dos
princípios”, e no que esta última melhor atende às necessidades de
maior proteção dos direitos fundamentais, v. Robert ALEXY, Teoría cit.,
pp. 300/306, e Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item
3.3.1.1.2. Aquele autor ainda traz longas referências a outras bases
teóricas para o suporte fático restrito, op. cit., pp. 306/311. Virgílio Afonso
da SILVA, Direitos fundamentais cit., itens 3.3.1.1 e 3.3.2.1, e seus
subitens, cita ainda outros autores e linhas argumentativas, com as
respectivas críticas e anticríticas à teoria do suporte fático restrito.
843 Para uma crítica ao critério da especificidade, da teoria estruturante de

Friedrich Müller, e das leis gerais como meio de excluir a priori situações
e posições jurídicas e fáticas do suporte fático, v. Robert ALEXY, Teoría
cit., pp. 300/311. Para uma exposição crítica sobre a teoria de Müller, a
exclusão de determinadas variáveis e estabelecimento de prioridades
axiológicas, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item
3.3.1 e seus subitens.
indevidamente uma “cláusula restritiva” inserida na norma constitucional,844 ou quando
se desconsidera a exigência constitucional (“reserva de lei”) de que a restrição seja feita
com base em lei ainda não existente.845
Um exemplo daquele “corte inicial” (exclusão a priori) no suporte fático, com base
em critérios argumentativos excludentes de várias posições jurídicas merecedoras de
proteção jusfundamental, pode melhor ilustrar o método restritivo dessa linha teórica. O
exemplo se dirige ao princípio da presunção de inocência, não obstante antecipe o que
será melhor especificado adiante.
Não obstante a construção legislativa não tenha sequer feito referência à teoria
restrita do suporte fático, ou a qualquer autor ou doutrina constitucional a respeito, o
antigo dispositivo da Lei 8.072/90, denominada Lei dos Crimes Hediondos, que vedava a
concessão de liberdade provisória (pelo revogado inciso II do art. 2º da referida lei), é um
exemplo da costumeira tendência nacional (consciente ou inconsciente) pela teoria
restrita.

844 Sobre cláusula restritiva de direito fundamental como forma de restrição,


v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 276/285. Sobre o tema das cláusulas
restritivas, voltaremos a ele no item 4.4.3.1.2 infra. Sem anteciparmos o
que será melhor tratado adiante (v. item 5.4.2.1.3 infra), ocorre violação
de cláusula restritiva da presunção de inocência nas hipóteses de prisão
provisória derivada de decisão judicial recorrível porquanto se
desconsidera o constante no texto normativo (“até o trânsito em
julgado”).
845 Um exemplo dessa segunda hipótese ocorreu com a parte final do inciso
XII do art. 5º da atual Constituição, ao se exigir que a restrição do direito
à intimidade, por força de interceptação telefônica, somente pudesse ser
autorizada mediante aprovação de lei que a regulamentasse (a atual Lei
9.296/96). Durante muito tempo, por se entender que a Lei das
Telecomunicações preenchia tal “reserva de lei”, muitas interceptações
foram deferidas pelo Judiciário, propiciando profundas violências aos
direitos do cidadão. Como se vê, na medida em que se ignorou aquela
exigência constitucional de lei própria, violou-se direito fundamental pois
as intervenções na esfera das comunicações telefônicas se davam de
forma não exigida pela Constituição.
A referida lei, a fim de regulamentar a parte do inciso XLIII do art. 5º da atual
Constituição,846 referente aos crimes hediondos, entendeu que não fazia parte do suporte
fático da norma constitucional a “concessão de liberdade provisória” aos presos
provisórios para os quais se imputasse, em qualquer hipótese, aquele tipo de crime. Com
isso, vedou que tal benefício pudesse ser concedido a todo e qualquer cidadão investigado
ou processado por crime hediondo, por prática de tortura, por tráfico ilícito de
entorpecente e por terrorismo, sem que para isso o juiz pudesse examinar a pertinência
ou não daquela intervenção estatal (prisão provisória) na situação concreta. Justificou-se
tal redução excessiva, mesmo que de forma inconsciente, pela linha da “especificidade”
do tema tratado e, com isso, violou-se a “reserva de lei” constante no citado inciso
constitucional.
Não foram poucos os autores a justificar a supressão abstrata e geral da liberdade
provisória pela linha argumentativa de que, se aquelas espécies de crimes são
inafiançáveis, por determinação constitucional, a vedação da liberdade provisória era
mera decorrência (especificidade) do desejado pelo constituinte, qual seja, que todo
imputado por aquelas infrações respondesse à persecução penal preso. A linha da
especificidade excluiu, de modo absoluto, qualquer situação jurídica da possibilidade de
ponderação judicial para a resolução de eventual contradição normativa (condição
jurídica) em face das peculiaridades (condições fáticas) do caso concreto. Ao assim agir, o
legislador excluiu, a priori, do suporte fático da norma, p.ex., situações como aquela do
adolescente que, surpreendido portando meia dúzia de cigarros de maconha para uma
festa entre amigos, é preso e mantido no cárcere durante toda a persecução penal para se
apurar e julgar se teria cometido o crime de tráfico ilícito de entorpecente.
Tendo em vista o princípio da presunção de inocência, resta evidente a violação à
justificação constitucional e à necessária proporcionalidade na elaboração desse tipo de
lei, já em plano abstrato-legislativo. Isto porque “repristinou-se” o sistema da prisão
obrigatória, inserido no texto original do Código de Processo Penal de 1941 e, em boa
hora, revogado desde 1967.847

846 Dispositivo que preceitua: “A lei considerará crimes inafiançáveis e


insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura, o tráfico ilícito de
entorpecente e drogas a fins, o terrorismo e os crimes definidos como
hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que,
podendo evitá-los, se omitirem”.
847 Sobre o tema da prisão obrigatória como caracterizador da presunção de

culpa e, portanto, violador da presunção de inocência, v. item 2.5.2.2


supra. Sobre o tema da violação da presunção de inocência pela
vedação legal à concessão de liberdade provisória, v. item 5.4.2.1.1
infra.
A limitação oferecida pela teoria restrita do suporte fático está exatamente em
colocar toda a justificação no instante de fixar de antemão (de ordinário no plano legal
abstrato, suporte fático abstrato) aquilo que deve ser protegido pela norma e o que é e até
que ponto se estende uma intervenção em seu conteúdo. Pela teoria restrita do suporte
fático o que se determina legislativamente já é o que está “definitivamente protegido pela
norma”.848 Ao procurar justificar esses pontos, peca tanto pela falta de clareza e de
segurança em seus argumentos (o que acontece de ordinário) quanto pela falta de
possibilidade de prever a complexidade e a multiplicidade das ocorrências da vida. E,
mesmo quando consegue justificá-los de modo convincente, como ao delimitar o suporte
fático já determinou o “direito definitivo a ser aplicado”, tendo que aplicá-lo na forma
“tudo ou nada”, não permite qualquer margem para se aferir a proporcionalidade ou se
realizar o sopesamento (proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação) entre
princípios na situação concreta.
Para a teoria ampla, por sua vez, definir o que é protegido é apenas o primeiro
passo, uma vez que situações e condutas, inicialmente abarcadas no âmbito de proteção,
podem ser excluídas após um sopesamento ou pela desproporcionalidade entre o bem
protegido e a adequada e necessária intervenção estatal na situação concreta.849 Na base
de toda a construção do suporte fático amplo está a diferenciação entre “o que é
protegido prima facie” e “o que é protegido definitivamente”.850 Distinção básica para,
partindo-se da norma constitucional, poder se verificar a argumentação jusfundamental
da regra infraconstitucional restritiva de direitos pela proporcionalidade lato sensu e,
ainda, resolver eventual colisão entre princípios constitucionais pelo sopesamento. Para a
teoria ampla, todo trabalho argumentativo se realiza na fundamentação da
intervenção/inércia estatal no âmbito de proteção no instante da proteção efetiva e
definitiva do direito.851 Nesse contexto, a teoria ampla tem um inegável ganho tanto em
conferir uma sempre maior atualidade às expressões lingüísticas do texto normativo,
quanto uma melhor peculiaridade à ponderação dos argumentos jusfundamentais no
instante da realização do direito.

848 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 3.3.2.2.1.


849 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 3.3.2.2.1.
850 Nesse sentido, v. Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO

e Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., p. 285; Virgílio Afonso da


SILVA, Direitos fundamentais cit., item 3.3.2.2.1; e José Joaquim Gomes
CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 1255.
851 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,

item 3.3.2.
Assim, nessa concepção ampla do suporte fático, tanto o “âmbito de proteção”852
como a “intervenção”853 são tomados, igualmente, da forma mais abrangente possível, a
fim de que eventual redução seja feita no instante de se chegar ao “direito definitivo”,
determinado em face do caso concreto.854
Como se vê, o exame individualizado tanto do “âmbito de proteção” quanto das
possíveis “intervenções” é fundamental para a compreensão do conteúdo essencial da
norma.

4.4.2. “Âmbito de proteção” da norma fundamental

Dentro da lógica da estrutura do suporte fático antes exposta, o “âmbito de


proteção” é o ponto sobre o qual incidem as intervenções estatais.855 Por isso se dizer que
a delimitação daquele âmbito normativo constitui o ponto inicial e crucial da dogmática
dos direitos fundamentais.856

852 Sobre uma necessária correlação entre a extensão maior ou menor do


“âmbito de proteção” e a também maior ou menor extensão da
“intervenção”, v. Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO,
Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., p. 285.
853 Sobre a ampliação do conceito clássico de intervenção para abarcar toda

e qualquer ação ou omissão que impeça, mesmo que parcialmente, a


prática de um comportamento incluído na área de proteção de um direito
fundamental, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral
cit., pp. 146/147.
854 Nesse mesmo sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos
fundamentais cit., item 3.3.2.2.2, e Robert ALEXY, Teoría cit., pp.
311/313.
855 Nesse sentido, v. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito

Constitucional cit., pp. 1257/1259. Cita (op. cit., p. 1246) como


expressões correlatas ao “âmbito de proteção” as seguintes: “domínio
normativo” e “pressupostos de fato dos direitos fundamentais”, preferindo
ele a expressão “âmbito normativo”. Sobre o “âmbito de proteção” dever
ter sua extensão definida materialmente a fim de que, somente depois,
se possa analisar as intervenções estatais que sobre ele incidam, v.
Wilson Antônio STEINMETZ, Colisão de direitos fundamentais e princípio
da proporcionalidade, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 28.
856 Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo

Gonet BRANCO, Curso cit., p. 286, e José Joaquim Gomes


CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 1257.
Sua definição, como antes asseverado, não ocorre de maneira definitiva, ou seja, em
sua delimitação não se deve ter em mente a determinação final do que se deve garantir
em todas as situações concretas. Deve ser captado todo o espectro da vida que o
legislador constituinte quis, prima facie, assegurar, por reputá-lo relevante para todos (ou
grande parte) da coletividade. São as realidades da vida consideradas “bens” ou “domínios
existenciais”, exemplificados como vida, domicílio, religião, educação, criação artística,
liberdade, etc.857 Nessa linha, “toda ação, estado ou posição jurídica que tenha alguma
característica que, isoladamente considerada, faça parte do ‘âmbito temático’ de um
determinado direito fundamental, deve ser considerada como abrangida por seu âmbito
de proteção, ‘independente da consideração de outras variáveis’”.858
O âmbito de proteção, contudo, não tem apenas uma conotação objetiva, mas,
também, deve ser analisado por seu conteúdo subjetivo, tema muito próximo à definição
de titularidade dos direitos fundamentais. Para as normas fundamentais processuais
penais, de um modo geral, e de modo especial para a presunção de inocência, pode-se
afirmar a não exclusão de ninguém de sua esfera de proteção. Isto porque, na própria
redação do dispositivo constitucional específico é dito que “ninguém – e o destaque recai
sobre esse pronome indefinido e que inclui a todos – será considerado culpado até o
trânsito em julgado da decisão condenatória”. Assim, o “âmbito de proteção” da
presunção de inocência, em seu espectro subjetivo, não permite qualquer exclusão a
priori de uma pessoa, de um grupo de pessoas ou de qualquer pessoa que preencha certas
condições pré-definidas e indicadoras de alguma modalidade de desigualdade ou
discriminação.859
Como se está diante de uma formação ideal (prima facie) para a integração de um
“mandado de otimização”, representado por um princípio constitucional processual
penal, tudo deve se dar de maneira aberta e o trabalho interpretativo das expressões
lingüísticas do preceito fundamental posto deve sofrer um sempre renovado esforço
hermenêutico amplo.860

857 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 1246.


858 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p 109. Nesse
mesmo sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 311/312.
859 Sobre o tema das linhas criminológicas promotoras da desigualdade de

tratamento no processo penal como violação (“intervenção ilegítima”) da


norma fundamental da presunção de inocência em seu aspecto
subjetivo, v. item 5.4.3.1 infra.
860 Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo

Gonet BRANCO, Curso cit., p. 286, e Robert ALEXY, Teoría cit., p. 312.
Demarcar a extensão do “âmbito de proteção” é uma operação mental para
construção de um espaço juspolítico ideal àquele âmbito. Não significa que o direito
fundamental posto irá se realizar nessa extensão, apenas que o processo para se extrair,
para o caso concreto, o “direito definitivo” do direito prima facie deverá ter a base mais
ampla possível. O mesmo se dará, como se verificará no item seguinte, com a análise
ideal das intervenções. Também essas devem ser tomadas da forma mais ampla possível
nesse instante inicial do processo de materialização do princípio fundamental prima facie
em direito definitivo, diante do caso concreto.
Essa forma ampla de se conceber o “âmbito de proteção” traz inegáveis benefícios
porquanto estenderá as margens de proteção, ao menos no momento inicial (prima
facie), para os direitos fundamentais.861 O que não pode ser tido como absolutização desse
direito.
De fato, há uma expansão de seu conteúdo objetivo e subjetivo no maior grau
possível, porém se sabe que na sua realização, ou seja, na extração do “direito definitivo”
para o caso concreto, de ordinário, aquele âmbito será reduzido pelas inevitáveis
intervenções legítimas (restrições). Intervenções que, para serem legítimas, decorrem de
um processo de sopesamento em nível legislativo abstrato. No caso do presente trabalho,
tal medida está representada por uma norma processual penal infraconstitucional que já
tenha se mostrado, no âmbito legislativo, proporcional e constitucionalmente conforme.
Como se desenvolve mais detalhadamente no próximo capítulo, o “âmbito de
proteção” da norma-princípio da presunção de inocência deverá também, neste instante
prima facie, ter a maior amplitude possível.862 Assim, não há mais lugar para se procurar
um único conteúdo ou conceituação para a expressão do constituinte inserida no inciso
LVII do art. 5º da Constituição da República. Pelos novos papéis desempenhados pelos
princípios fundamentais, não cabe mais se discutir se a presunção de inocência deverá ser
compreendida como “in dubio pro reo”, ou “favor libertatis”, ou “favor dignitatis”, ou
“favor rei”, ou como questão político-ideológica que diferencie a “presunção de não-
culpabilidade” da “presunção de inocência”, ou, ainda, que a entenda como “norma de
juízo” ou “norma de tratamento” ou “norma probatória”.
Na estruturação ampla do “âmbito de proteção” da norma fundamental da
presunção de inocência– sempre repetindo que este é apenas o seu primeiro passo de
concretização, no instante prima facie e de concepção do “ótimo” da proteção normativa
–, o que há é uma cumulação de todos aqueles significados, sem exclusão de nenhum. A
construção do “âmbito de proteção” não se dá pela alternativa “ou...ou...ou”, mas é uma
construção aditiva, nos moldes “e...e...e”.

861 Esse atributo tem sido visto por muitos como ponto frágil da teoria ampla
do suporte fático, pois, afirmam, promete-se muito (no instante prima
facie) e se garante pouco (no instante definitivo). Para resposta a essa
crítica e outras mais, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 313/320.
862 Sob o âmbito de proteção em sentido amplo para a presunção de

inocência, v. item 5.4 e seus subitens infra.


4.4.3. -“Intervenção estatal” no âmbito de proteção da norma
fundamental

Antes de se desenvolver o presente item, é necessário definir uma escolha


semântica, uma escolha expositiva e um corte temático empreendidos neste ponto do
presente trabalho.
Como escolha semântica deve-se deixar claro que para o presente estudo
“intervenção” é gênero, do qual são espécies (i) a intervenção legítima ou permitida,
denominada por nós de restrição, e (ii) a intervenção ilegítima ou não permitida,
denominada como “violação”.
A escolha expositiva consiste em que o tema será tratado neste item, de modo
preferencial, pela perspectiva da “intervenção estatal”, ou seja, da ação do Estado na
esfera jurídica do indivíduo, deixando-se, em um segundo plano, a perspectiva da
“inércia estatal” como forma de violação do princípio fundamental. Isto porque, para os
direitos fundamentais processuais penais, como direitos de defesa, a perspectiva de serem
garantias dos indivíduos contra invasões estatais ilegítimas é o ponto normalmente mais
estudado. Não que, especificamente para a presunção de inocência, não seja relevante a
violação estatal pela sua abstenção ou pelo déficit de atuação, notadamente no âmbito
legislativo (inércia legislativa).863
O corte temático consiste em não se tratar, neste item, nem de todas as espécies de
restrições admitidas,864 nem das violações de modo específico, apenas das restrições e suas
formas de controle. Desde já deixando claro que sempre que houver excesso na restrição,
adentra-se no campo da inconstitucionalidade e, portanto, da violação da norma
fundamental.865 As hipóteses de violação serão todas aquelas em que a intervenção for
além do que é admissível para uma restrição, ou seja, sempre que não houver uma
“justificação constitucional” e proporcionalidade na ação limitadora de direito
fundamental.

863 Sobre o tema da inércia legislativa como a principal forma de violação


estatal da presunção de inocência, v. item 5.2 infra.
864 Há hipóteses de restrições legais que, não obstante relevantes, não têm
pertinência para o tema da presunção de inocência. É o ocorrente, p.ex.,
com as limitações gerais previstas constitucionalmente para casos
excepcionais como em situações em que se decreta “Estado de defesa”
(art. 136, §§ 1º e 3º, da CR) ou “Estado de sítio” (art. 137, incisos I e II,
da CR). Essas e outras hipóteses deixarão de ser comentadas para
evitar digressões desnecessárias ao tema central do trabalho.
865 No próximo capítulo, quando tratarmos especificamente sobre o suporte
fático amplo da presunção de inocência, analisaremos tanto o “âmbito de
proteção” (item 5.4 e seus subitens infra) quanto as restrições (item 5.5 e
seus subitens infra) em paralelo com as suas violações.
Feitos esses necessários esclarecimentos preliminares, deve-se ressaltar que a
doutrina constitucional oferece duas teorias para explicar o tema das restrições866 nos
direitos fundamentais: a teoria interna (“Innentheorie”) e a teoria externa
(“Aussentheorie”).
Para a “teoria interna” não há dois elementos distintos, a norma prima facie (o
direito restringível) e a restrição, mas apenas um único elemento: o direito já em sua
formação definitiva e, portanto, já previamente determinado em sua extensão e limites.867
Para essa teoria, na norma-princípio constitucional a noção de restrição é substituída
pela de limite,868 o qual já vem ínsito ao “direito definitivo”; são os denominados “limites
imanentes”.869 O direito já nasce limitado no plano legislativo e em sua configuração
definitiva, impassível, portanto, de restrição; na verdade esta inexistiria após a edição
legal. Para tal teoria, o direito já é formado em moldes definitivos e, portanto, feitas as
reduções em sua formação, torna-se a partir desse ponto um “direito definitivo”,
irrestringível por qualquer condição fática ou jurídica peculiar à situação ou ao
comportamento concretos. A “teoria interna” é um modelo de “pré-formação” em que o
“âmbito de proteção” e o “direito definitivo” ou a “garantia efetiva” são idênticos.870
A “teoria externa”, por sua vez, entende que “direitos fundamentais” e “restrição”
são categorias autônomas e sem uma relação necessária. Para ela não há “nenhuma
relação necessária entre o conceito de direito e o de restrição. A relação é criada apenas
devido a uma necessidade, externa ao direito, de compatibilizar os direitos de diferentes
indivíduos assim como também os direitos individuais e os bens coletivos”.871

866 Trata-se, neste ponto, apenas de restrição, uma vez que a violação
estatal, como intervenção não permitida, é por ambas as teorias rejeitada
como método de redução dos direitos fundamentais porquanto carente
de fundamentação constitucional.
867 Para uma análise da teoria interna, com críticas e ponderações às suas

características em paralelo com a teoria externa, v. Virgílio Afonso da


SILVA, Direitos fundamentais cit., item 4.2 e seus subitens.
868 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 268/269, e Gilmar

Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO e Paulo Gustavo Gonet


BRANCO, Curso cit., p. 290.
869 Sobre a concepção de “limites imanentes”, aceita pelos adeptos da teoria

interna das restrições, e para comentários sobre a posição peculiar de


José Joaquim Gomes CANOTILHO (Direito Constitucional cit., p.
1261/1265), adepto da “teoria dos princípios” e da teoria externa, v.
Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 4.3.1. Para uma
crítica à teoria institucional dos direitos fundamentais de Peter Häberle
como forma de limitação a priori daqueles direitos e sua identidade com
a teoria interna, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 4.2.1.2, e Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 306/311.
870 Martin BOROWSKI, La estructura cit., p. 76.
871 Nossa tradução de Robert ALEXY, Teoría cit., p. 268. Nesse exato

sentido, v. Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo


Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., p. 290.
A opção pela “teoria dos princípios”872 e por um “suporte fático amplo”873 para os
direitos fundamentais impõem, para coerência analítica e metodológica, que se
compreenda a restrição como algo diverso do direito prima facie (teoria externa). São
elementos distintos e de cuja incidência de um (a “intervenção estatal”) sobre o outro (o
“âmbito de proteção”) resultará o “direito definitivo” para o caso.
A coerência precisa pautar a escolha do operador jurídico. Caso se entenda a norma
jusfundamental como algo restringível ou posição prima facie há que se trabalhar com a
teoria externa. Se, ao contrário, trabalha-se com uma noção de direito definitivo e de
norma jusfundamental como algo irrestringível, somente há que se trabalhar com a
teoria interna.874
Assim, a escolha de uma ou outra forma de compreender a existência de um (o
direito definitivo; pré-formado de forma irrestringível) ou dois (o direito prima
facie/restringível “e” a restrição) elementos, mais do que um ponto final, é um marco
inicial da posição que se tem dos direitos fundamentais e, por força disso, dos direitos
individuais. De ordinário, os que assumem uma visão do indivíduo frente à sociedade e
ao Estado tendem à teoria externa, já os que entendem o indivíduo como membro da
sociedade preferem a teoria interna.875

872 Sobre o estreito vínculo entre a “teoria dos princípios” e a noção de


restrição dos direitos ser inerente à teoria externa, v. Martin BOROWSKI,
La estructura cit., p. 75.
873 Sobre a estreita coerência entre as noções de “suporte fático amplo” e a

“teoria externa”, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,


item 4.2.
874 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 269.
875 Sobre essas preferências, assim se posicionam Robert ALEXY, Teoría

cit., p. 269, e Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO,


Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., pp. 290/291.
Há um ponto relevante para este trabalho e que merece uma referência especial
neste instante: se o direito é pré-formado de modo definitivo e sem possibilidade de
restrição, em face das condições fático-jurídicas do caso concreto, é um erro falar que
este direito possa passar por ponderação ou pelo crivo da proporcionalidade quando se
analisa o caso concreto. Na medida em que se empreendam limites ao direito de modo a
já concebê-lo, de início, em sua forma definitiva (teoria interna), não há mais espaço
normativo para restrição, logo, não cabe mais reduzi-lo por força da ponderação
(proporcionalidade stricto sensu) ou do princípio da proporcionalidade lato sensu
(necessidade e adequação).876 Essa ressalva, a bem da coerência teórica, é relevante na
medida em que é prática comum, notadamente no campo processual penal, que se
empreendam, simultaneamente, as duas formas de redução da norma de direito
fundamental: são inseridos limites já em sua pré-formação e, depois, no instante de

876 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,


item 4.2. Sobre o tema da proporcionalidade lato sensu, na qual se
insere como um de seus elementos a ponderação ou sopesamento, v.
item 4.5.1 e seus subitens infra.
aplicá-lo, reduz-se novamente sua incidência por força da ponderação ou da
proporcionalidade, conforme o caso, diante das condições fáticas e jurídicas.877

877 Um exemplo pode facilitar a compreensão do que foi exposto neste


ponto no texto. O art. 59 da Lei 11.343/2006 (Lei de Tóxicos), prevê que
nos “crimes previstos nos arts. 33, ‘caput’ e § 1º, e 34 a 37 desta Lei, o
réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e
de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória”.
Primariedade e bons antecedentes, portanto, foram os limites inseridos
no texto normativo para pré-formar o direito de modo definitivo, sem
possibilidade de futura e maior limitação. Assim, todos que apresentem
bons antecedentes e primariedade podem, em tese, apelar em liberdade.
Ocorre, contudo, que a jurisprudência é farta em exemplos nos quais
àqueles limites se acrescem outros, sempre para tornar a norma mais
limitativa, ou seja, impedir a liberdade nessa fase processual. O texto
normativo do citado art. 59 – não obstante sua inconstitucionalidade
ínsita por tornar a prisão provisória regra, excepcionando-a apenas para
os de bons antecedentes e primários, o que em si inverte e subverte a
clra posição constitucional (sobre a liberdade ser a regra e a prisão
provisória a exceção, v. item 5.3.2.2 infra) – já veio elaborado de modo
definitivo, sem possibilidade de comportar mais intervenções limitadoras
no direito de liberdade do cidadão. Logo, para uma coerência técnica,
uma vez optado pela teoria interna, pela qual direito e restrição formam
um único elemento incindível e insuscetível de novas reduções em seu
âmbito de proteção (direito já restringido a priori e de modo definitivo), os
operadores jurídicos que quisessem se manter coerentes deveriam
aplicar o preceituado e, portanto, determinar que os condenados
provisórios primários e de bons antecedentes sempre recorressem em
liberdade. Porém, não é o que ocorre na prática forense. Após o corte do
direito fundamental à liberdade, já operado em nível legislativo quando
da elaboração do texto normativo nos moldes da teoria interna, os
operadores do direito aplicam-lhe novas reduções do âmbito de
proteção, determinando que, a despeito de serem primários e de bons
antecedentes, deverão apelar presos se, p.ex., (i) responderam presos à
ação penal até então; (ii) o crime imputado é grave ou, ainda, (iii) se o
condenado não tem residência fixa. Nesse sentido v. o seguinte aresto:
“Processual penal - Habeas corpus - Tráfico de entorpecentes
(quantidade de drogas transportada: 500 quilos em cada caminhão) -
Sentença condenatória - Direito de apelar em liberdade - Prisão em
flagrante - Réu preso durante toda a instrução criminal - Ausência de
constrangimento ilegal - Posição consolidada do STF sobre a vigência do
art. 44 da lei 11.343/2006. Ordem denegada. I - Nas hipóteses de
condenação pelos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37
da Lei 11.343/2006, a regra é a prisão do condenado, como condição de
admissibilidade de eventual recurso voluntário, excepcionada a
possibilidade de o réu recorrer em liberdade, quando reconhecida, na
Já para os sectários da teoria externa, devido ao fato de defenderem uma construção
ampla do “âmbito de proteção”, há uma irrefragável necessidade de se empreender uma
redução daquele espectro projetado prima facie, o que se faz por força de formas de
intervenção estatal justificadas constitucionalmente e da proporcionalidade em face do
caso concreto. Intervenção estatal que, nesses moldes, configura-se legítima (restrição).

4.4.3.1. Formas de restrição

sentença, a sua primariedade e os bons antecedentes. II - No caso,


embora a sentença condenatória tenha reconhecido os bons
antecedentes do paciente, o fato de ter sido mantido preso, desde o
flagrante e durante toda a instrução processual, suprime o direito de
recorrer em liberdade. III - A jurisprudência pátria pacificou-se no sentido
de que o paciente que permanece encarcerado durante a instrução
criminal, por força de prisão em flagrante, não tem o direito de apelar em
liberdade, depois de declarada a sua culpabilidade pela sentença
condenatória. IV - Precedente da Turma, referente ao mesmo decreto
sentencial: HC 2008.01.00.020217-7/GO, Relatora Des. Federal
Assusete Magalhães, DJU/II de 13/06/2008. V – (...). VI - Habeas Corpus
denegado” (TRF1ªR – HC 200801000357598–GO – 3ª T. – j. 26.08.2008
– p. 05/09/2008 – v.u.) – grifamos. Essa cultura jurisprudencial de
ampliar as restrições já fixadas de modo definitivo de modo a violar o
preceito fundamental foi forjada de há muito pela redação dada, em
1973, ao art. 594 do Código de Processo Penal, atualmente revogado
pela Lei 11.719/2008. Referido art. 594 também garantia ao imputado
apelar em liberdade se fosse primário e tivesse bons antecedentes.
Porém, até sua revogação, era lugar comum a cumulação de
intervenções estatais, inserindo-se mais limites à pré-formação
normativa já definida inicialmente com restrições fixas. Isto pode ser
observado no seguinte julgado: “Em se tratando de delito de natureza
grave, qual o de roubo qualificado pelo concurso de agentes e pelo
emprego de arma, não faz jus o condenado ao benefício de aguardar
solto o julgamento do recurso, como proclamado, na sentença
condenatória. Nesta hipótese, os bons antecedentes, residência fixa e
primariedade não possibilitam, por si sós, a concessão do favor legal. -
Recurso conhecido e improvido” (STJ – 5ª T. – RHC 5760 – j.
22.10.1996 – DJU 02.12.1996). Como se vê, neste último aresto, a
“gravidade do delito” foi inserida como peculiaridade do caso concreto a
provocar “nova” redução ao âmbito de proteção, sem que estivesse
inserida no dispositivo normativo. Sobre o tema da prisão provisória
nessa fase processual, v. específicas considerações à presunção de
inocência no item 5.4.2.1.3 e seus subitens infra.
Como já ressaltado no início do item anterior, e aqui retomado apenas de modo
breve, toda forma de intervenção estatal que possua justificação constitucional e
proporcionalidade é modo legítimo de restrição do direito fundamental. Toda forma de
redução do disposto na lei fundamental, mesmo que apresente em nível legislativo a
correspondente justificação e sopesamento, será violação ou invasão indevida na esfera
de direito constitucionalmente previsto se houver excesso em sua concretização
(interpretação/aplicação).
Depreende-se, portanto, o que seja violação de direito fundamental com base em
duas constatações: a primeira, que houve uma intervenção ou uma inércia estatais; e a
segunda, que essa intervenção/inércia não apresenta justificação constitucional ou
proporcionalidade. À constatação de que houve violação, portanto, pode-se chegar por
duas vias: ou não há qualquer justificativa para a intervenção já no plano abstrato-
legislativo da norma, ou o limite de uma eventual justificativa foi excedido no instante
de aplicá-lo.

4.4.3.1.1. (segue): inércia estatal na conformação da norma fundamental

A relação entre a conformação legal de um direito e sua restrição por meio de lei é
um tema complexo que foge aos limites do presente trabalho. Teoricamente, há uma
diferença entre “normas legais restritivas” e “normas legais conformadoras”. Aquelas
“limitam ou restringem posições que, ‘prima facie’, se incluem no domínio de protecção
dos direitos fundamentais”. As leis conformadoras são normas que “completam,
precisam, concretizam ou definem o conteúdo de protecção do direito fundamental”.878
A conformação (ou configuração) pressupõe, portanto, “uma insuficiência ou um déficit
material do direito fundamental que impossibilita a sua máxima optimização ou
prejudica a possibilidade de aplicação de seu sentido prescritivo”.879

878 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 1247.


879 Wilson Antônio STEINMETZ, Colisão cit., pp. 27/28.
A facilidade teórica de distinção não se repete no campo empírico, onde surgem
enormes dificuldades de se identificar, em determinados dispositivos, uma ou outra
feição da norma infraconstitucional. Essa dificuldade prática fez com que a doutrina se
debruçasse de forma cada vez mais detida sobre o tema,880 surgindo certo consenso
quanto a um critério para a diferenciação entre um e outro tipo de norma. O critério é o
da “não obstaculização da realização de um princípio constitucional” e que implica “que
sempre que seja necessária (caso de direito fundamental atual) ou meramente possível
(caso de direito fundamental potencial) uma ponderação orientada pelo princípio da
proporcionalidade, não deve se supor uma configuração, mas uma restrição”.881
Como sempre é necessária uma constante análise casuística e proporcional para se
verificar se uma norma infraconstitucional conforma ou restringe um direito
constitucional, a diferenciação teórica perde muito de seu sentido prático. Melhor é
aceitar que toda forma de normatização infraconstitucional de um direito
jusfundamental pode ser ou não restrição, dependendo de como a intervenção se opera
no caso.882 Isto é, pode haver normatizações profundamente invasivas do direito que, por
apresentar justificação constitucional, não se configure uma violação e, em sentido
contrário, haver pequenas regulamentações que, a despeito de pouco expressivas
normativamente, causem intervenções injustificadas no âmbito de proteção da norma.883

880 Nesse sentido, v., por todos, Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 321/329, e
Peter HÄBERLE, La garantía del contenido esencial de los derechos
fundamentales: una contribuición a la concepción institucional de los
derechos fundamentales y a la teoría de la reserva de la ley, tradução de
Joaquín Brage Camazano, Madrid: Dykinson, 2003, parte IV, item 3.
881 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 328.
882 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,

itens 3.3.1.1.3., 3.3.1.1.4., 3.3.2.1.3, passim. No sentido de entender que


toda concretização da norma constitucional pode gerar sua limitação,
não sendo possível traçar uma linha clara entre leis conformadoras e leis
restritivas, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit.,
pp. 152/153, e Martin BOROWSKI, La estructura cit., pp. 94/96.
883 Nesse sentido podem-se indicar, como exemplos, diversas portarias ou

normas internas de juízos ou de Corregedorias em que se limita o


acesso aos autos judiciais pelas partes, se prevê o recolhimento de
custas e qualquer tipo de valor para intimação de testemunhas da defesa
em processo criminal ou, ainda, o recolhimento de custas e preparo para
recorrer. Todas essas medidas, embora não previstas em lei, e até
mesmo quando previstas em leis, são restrições que devem ter sua
justificação constitucional verificada em cada caso.
Para o presente estudo, o que mais importa, quanto à relação entre os temas da
“conformação” e da presunção de inocência, é que o poder de legislar é correlato ao
“dever de legislar”, “no sentido de assegurar uma proteção suficiente dos direitos
fundamentais (‘Untermassverbot’)”.884 Isso está, conforme exposto acima, totalmente
ausente na atual legislação infraconstitucional processual penal para o citado direito
fundamental.885
Nesse ponto, reafirma-se que a inércia estatal representa uma violação ao direito
fundamental da presunção de inocência. O legislador brasileiro tem desconsiderado por
completo seu dever de legislar e, com isso, deixa ao Poder Judiciário toda a tarefa de
interpretar e aplicar constitucionalmente as normas processuais feitas ao feitio fascista.
Os males dessa inércia têm comprometido em muito a maior efetivação daquela
disposição fundamental, isto porque se relega a uma aplicação casuística, sem parâmetros
seguros e pré-fixados e, ainda, infensa aos influxos ideológicos de cada juiz o que deveria
advir de uma estruturação nova, harmônica, sistemática e construída sobre novas bases
político-ideológicas.886
Com uma conformação normativa infraconstitucional haveria uma reestruturação
da legislação processual penal sobre novos padrões juspolíticos estabelecidos pela
incorporação da presunção de inocência por nossa atual Constituição. Os ganhos não
seriam apenas no campo ideológico-cultural de toda uma nova geração de operadores de
direito, mas, principalmente, em uma regulamentação completa e eficaz para estabelecer
padrões mínimos e comuns de decisão nos vários âmbitos em que aquele dispositivo
fundamental projeta seus efeitos.

4.4.3.1.2. (segue): reserva legal e cláusula restritiva

884 Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo


Gonet BRANCO, Curso cit., p. 312.
885 Quanto à demonstração de que o sistema infraconstitucional processual
penal brasileiro, de modo especial em seu código de processo penal,
feito, em 1940, aos moldes fascistas, rejeita a idéia de presunção de
inocência, v. item 2.5.2 e subitens supra. Sobre os vários efeitos da
dimensão objetiva da presunção de inocência e as ausências legislativas
nesse campo, v. item 3.8.2 e seus subitens supra.
886 Sobre a inércia legislativa como uma das maiores, mas não a única,
violação da presunção de inocência, v. item 5.2 infra.
Os direitos fundamentais prima facie são direitos restringíveis e esta redução em seu
âmbito pode se dar apenas por meio de uma norma que também seja uma “norma
constitucional”.887
No caso, por constitucional, devem ser entendidas tanto normas cuja natureza e
posição hierárquica se vinculem diretamente ao capítulo constitucional dos direitos
fundamentais, como também aquelas normas de nível inferior, mas elaboradas por
determinação constitucional. Ambos os tipos de normas citados podem restringir um
direito fundamental. O primeiro grupo recebe o nome de “normas restritivas
diretamente constitucionais”, e o segundo grupo são as “normas restritivas indiretamente
constitucionais”.888 Neste segundo grupo de normas incluem-se as “reserva legais
constitucionais”, enquanto o primeiro grupo é formado pelas próprias normas
constitucionais em contradição e pelas “cláusulas restritivas” inseridas no texto
normativo pelo constituinte.
Para o tema da presunção de inocência o que mais importa são as hipóteses de
contradição normativa e as de normas constitucionais com “cláusula restritiva”, sendo
esta última tratada nos parágrafos seguintes quanto à sua natureza e efeitos.889
Como a aplicação dessa forma de restrição (cláusula restritiva) ao tema da presunção
de inocência necessita de considerações paralelas como a natureza e finalidade, p.ex., da
revisão criminal e da prisão provisória (decorrente de decisão judicial recorrível), assim
como do próprio âmbito de proteção daquele direito fundamental, sua aplicação
específica nos temas referidos será feita adiante de forma mais minudente.890 No presente
item apenas se exporá como as “cláusulas restritivas” se inserem dentro do tema das
restrições normativas a direitos fundamentais, segundo a “teoria dos princípios”.

887 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 272/274. Esse mesmo autor, sintetizando
o antes referido por ele em várias passagens de sua obra (p.ex., op. cit.,
pp. 279/280), afirma que “os direitos fundamentais, como direitos de
nível constitucional, podem ser restringidos apenas por meio de, ou
sobre a base de, normas de nível constitucional” (op. cit., p. 277) -
traduzimos.
888 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., p. 277.
889 As contradições normativas serão tratadas no próximo item 4.4.3.1.3 e

seus subitens.
890 Sobre o tema da incidência da presunção de inocência na revisão

criminal, v. item 5.4.3.2.2 infra, e sobre a prisão provisória decorrente de


decisão recorrível, v. item 5.4.2.1.3 infra.
De um modo mais abrangente, sem analisarmos sua estrutura segundo a “teoria dos
princípios” ou conforme qualquer outra linha relacionada com a teoria interna das
restrições, pode-se identificar que a “cláusula restritiva” é uma espécie de restrição ao
âmbito de proteção do direito fundamental. Ainda no campo de considerações
desprovidas de um direcionamento por qualquer linha teórica, resta esclarecer que há
duas modalidades de cláusulas restritivas: as expressas, que são postas de forma literal e
clara no próprio texto da norma constitucional restringida, e as tácitas, as derivadas de
outros dispositivos constitucionais expressos que revelam certa sistemática e uma
totalidade de valores que a Constituição quer tutelar e empreender.891 Como se percebe, a
“cláusula restritiva”, tanto em sua forma expressa quanto em sua modalidade tácita,
sempre será classificada como “norma restritiva diretamente constitucional”.892
Procurando, agora, inserir o tema em linhas teórico-constitucionais, percebe-se que,
novamente, deve o estudioso fazer uma escolha. Ou ele aceita a “teoria dos princípios”,
com os consectários (i) do direito prima facie restringível, (ii) do suporte fático amplo,
(iii) da teoria externa para a restrição de direitos, (iv) da aplicação da proporcionalidade
conforme as condições fático-jurídicas do caso concreto e, por fim, (v) da idéia de
conteúdo essencial relativo;893 ou, em sentido contrário, deverá escolher correntes
teóricas que aceitam noções como (i) “limites imanentes”, “limites institucionais” ou
“limites internos”, “direito definitivo” (não restringível após conformado no texto
normativo), (ii) suporte fático restrito, (iii) teoria interna para o tema das restrições e,
por fim, (iv) conteúdo essencial absoluto. Sendo que, aceitando a teoria interna, após
todos os cortes ideológicos e valorativos realizados a priori (no momento legislativo de
elaboração do texto normativo), estará impossibilitado de aplicar a proporcionalidade
para qualquer necessária adaptação da norma à situação concreta. Isto porque, lembre-se,
como para a teoria interna os direitos são irrestringíveis, uma vez (con)formados,
constituem-se em “direitos definitivos”, impassíveis de redução por meio da ponderação
ou da proporcionalidade.

891 Para o tema da presunção de inocência as duas modalidades de


cláusulas restritivas têm importância, como se vê nos itens 5.4.1.2.1 e
5.4.3.2.2 infra. Apenas encetando a temática, note-se que para a
presunção de inocência a cláusula restritiva expressa está no texto
constitucional ao dispor que ela opera “até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória”. Já a cláusula restritiva tácita pode ser
observada pelos dispositivos constitucionais que aceitam como
excepcionalidade a prisão provisória, o que demonstra a vontade do
constituinte em não “absolutizar” a presunção de inocência no tocante a
vedar, sempre e de qualquer modo, a restrição da liberdade do imputado
antes da decisão penal condenatória definitiva.
892 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 277 e 281/282, e Wilson

Antônio STEINMETZ, Colisão cit., pp. 29/32.


893 Sobre o tema do “conteúdo essencial relativo”, v. exposição nos itens

4.5.2 e 4.6 infra.


Como se percebe, a consciência dessas escolhas deve nortear uma opção coerente
por parte dos operadores jurídicos, dos agentes estatais e dos indivíduos em suas relações
horizontais (particular com particular) ou verticais (particular com o Estado). Não se
pode misturar, segundo a conveniência ou por desconhecimento científico, frações ou
partes de correntes e linhas doutrinárias constitucionais diversas e, em muitos pontos,
conflitantes, seja essa conduta tida para aumentar ou diminuir o âmbito de proteção da
norma jusfundamental. A melhoria da ciência jurídica, assim como a verificação de qual
linha doutrinária deve avançar como marco do desenvolvimento das relações humanas,
exige uma escolha consciente e coerente por parte de todos.
No tema das cláusulas restritivas essa necessária escolha fará com que elas tenham
uma ou outra natureza dentro da norma de direito fundamental que visam reduzir e,
com isso, produzam efeitos distintos, conforme a opção feita. Comecemos o exame pelas
“cláusulas restritivas expressas”.
Para a teoria institucional ou para os que aceitam os “limites imanentes”, ou seja,
para os sequazes das limitações internas do direito, a cláusula restritiva expressa é uma
manifestação do constituinte pela redução do “âmbito de proteção” e, por conseqüência,
do suporte fático da norma. Nessa perspectiva doutrinária da cláusula restritiva, a
situação, ou o comportamento, ou o estado, ou a ação é retirada da esfera de proteção da
norma de modo prévio e apriorístico pelo legislador no instante de elaboração do texto.
Assim, para essa linha doutrinária, se uma situação se subsume na hipótese retratada pela
cláusula restritiva não haveria qualquer limitação ao direito constitucional, pois, desde o
início, tal hipótese foi colocada fora da tutela jusfundamental.
Para a “teoria dos princípios”, a natureza da “cláusula restritiva” é distinta. Ela tem
estrutura normativa de “regra” (direito definitivo), cuja inserção expressa dentro de um
direito prima facie (mandamento de otimização, princípio) faz com que, no âmbito
daquela regra, surja um “não-direito definitivo”. Algo que o constituinte quis, por
expressa disposição, colocar em confronto com o disposto no restante da norma-
princípio prima facie na qual ela foi inserida.
Assim, para as “cláusulas restritivas expressas” tem-se que: para a “teoria dos
princípios” ela é uma “regra” inserida no contexto de uma norma-princípio e, ao
contrário, para a teoria dos limites internos, ela retrata um bem da vida excluído, de
modo absoluto e apriorístico, do âmbito de proteção da norma.
A opção pela “teoria dos princípios” se justifica, também para o tema da “cláusula
restritiva”, por ser apropriada às necessidades práticas e por ser a que oferece uma maior
racionalidade argumentativa ao mais seguro exame analítico da questão, principalmente
quando nos deparamos com as “cláusulas restritivas tácitas”.
Isto porque, como a “cláusula restritiva tácita” não é perceptível por um texto do
qual se possa, de forma mais confiável, apreender qual o espaço do bem da vida excluído
pelo legislador, as teorias internas se apegam, com inegável dificuldade, em uma
construção valorativa e intuitiva das limitações internas. Essa forma de extrair os “limites
internos” de cada norma em face das outras normas constitucionais não transmite a
mesma segurança se comparada à argumentação e verificação possibilitada pela “teoria
dos princípios”.
Para essa teoria, as demais normas do sistema e que, tacitamente, representariam
uma compressão natural, sistêmica e valorativa de uma norma-princípio específica,
também seriam direitos prima facie e, como tal, deveriam propiciar uma restrição por
força de uma contradição normativa do tipo “princípio versus princípio”.894

894 No plano legislativo ideal, ou seja, se as normas constitucionais fossem


elaboradas pelo constituinte consciente dessas linhas técnico-
doutrinárias distintas, dever-se-ia evitar que, simultaneamente, as
normas jusfundamentais comportassem as duas formas de compressão
de seu âmbito de proteção. Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires
COELHO, Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., pp. 303/304,
embora sob a denominação de “direitos fundamentais sem expressa
previsão de reserva legal”, parecem tratar do mesmo tema aqui
denominado “cláusula restritiva tácita”. Isto porque afirmam que, a
despeito de algumas normas prima facie não possuírem a restrição da
“reserva legal”, elas não são irrestringíveis e, portanto, estão sujeitas às
colisões com outras normas constitucionais de mesma natureza (op. cit.,
p. 304). Na mesma linha, agora sob a denominação de “direitos
fundamentais sem reservas legais e direito constitucional de colisão”,
parecem caminhar Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral
cit., pp. 163/165. Estes últimos autores citados destacam inclusive que
essa forma de restrição propiciada pela colisão entre normas
constitucionais não pode ser somada à outra forma de restrição
denominada “reserva legal”. Preceituam: “O uso desse limite (o
denominado por eles “direito constitucional de colisão ou colidente –
‘kollidierendes Verfassungsrecht’), entretanto, é absolutamente vedado
quando o constituinte, ao prever o conflito, no caso concreto do exercício
da liberdade outorgada na norma de direito fundamental, estabeleceu
uma reserva legal simples ou qualificada. Neste caso, a única limitação
possível é aquela decorrente da correta aplicação da reserva legal, com
especial observância dos pressupostos definitivos nas reservas legais
qualificadas. Não se trata, portanto, de limites sobrepostos, mas
alternativos, sendo o limite do direito constitucional de colisão só
permitido no caso dos direitos fundamentais sem reserva” – com nossa
inserção explicativa. Também contrários à cumulação de restrições (de
reserva legal com a originária da colisão de direitos constitucionais)
posicionam-se os primeiros autores citados (op. cit., p. 331). José
Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito Constitucional cit., pp. 1256/1257,
não diverge de todos os autores já citados, tanto à concepção de direitos
constitucionais não suscetíveis de restrições por reserva legal, mas por
contradição normativa, quanto pela não cumulatividade entre essas duas
formas de restrição (reserva legal “E” contradição entre normas
constitucionais). Com isso, todos os autores referidos nessa nota
demonstram a importância da proporcionalidade para a solução dessas
situações de colisão de normas fundamentais, o que se verifica tanto no
item seguinte (4.4.3.1.3 infra) do presente trabalho, sobre contradição
Com isso, não se permite que órgão estatal (ou agente privado) se entenda
legitimado a comprimir direitos fundamentais apenas com base na previsão de um outro
princípio constitucional que com eles conflite. Para a “teoria dos princípios”, para se
evitar uma instabilidade normativa jusfundamental, exige-se que essa restrição tácita
somente esteja autorizada na medida em que se ampare em “posições formais” e “posições
materiais”.895 Por posição formal entende-se o cumprimento de todo o procedimento
legislativo e o respeito pelas áreas de competência legislativa para a edição de normas
infraconstitucionais (normas-regras, de ordinário), e por posição material deve-se
entender que esse poder/dever de legislar seja exercido/obedecido de forma correta. Essa
correção material se dará na medida em que a elaboração infraconstitucional para dar
corpo às necessidades constitucionais produza normas prévias, estritas e escritas e, por
fim, conforme padrões de sopesamento capazes de justificar constitucionalmente sua
aptidão restritiva de direitos fundamentais prima facie. No comum da linguagem
doutrinária penal e processual penal, quando a produção legislativa infraconstitucional
obedecer aos padrões de legalidade formal e material.896
Para melhor esclarecer as exigências formais e materiais de um regramento
infraconstitucional que permita aceitar as “cláusulas restritivas tácitas” no âmbito
processual penal, tomemos o exemplo das prisões provisórias.

normativa, quanto no item 4.5.1 e seus subitens infra, específicos sobre


a proporcionalidade. Exatamente porque esse instrumento
(proporcionalidade), afeito e coerente unicamente com a “teoria dos
princípios”, ter a função de tornar o âmbito de proteção da norma
fundamental tendencialmente expansível e, em contrapartida, fazer com
que as inevitáveis restrições a ele impostas sejam também
tendencialmente limitadas (por isso muitos denominarem a
proporcionalidade de “restrição das restrições”), é essa a teoria
entendida nesse estudo como a melhor para resolver os denominados
“hard cases”, sejam estes criados pelas condições fáticas do caso
concreto sejam eles originários da falta (consciente ou inconsciente) de
coerência técnica dos legisladores.
895 Expondo todas as idéias retratadas nesse parágrafo, v. Robert ALEXY,
Teoría cit., pp. 281/286.
896 Sobre o tema da importância da legalidade formal e da legalidade
material no exame da proporcionalidade lato senso de uma norma-regra
infraconstitucional restritiva no processo penal, v. item 4.5.1.1 infra.
A atual Constituição, no caput do art. 5º, garante, na forma estrutural de direito
prima facie (como mandado de otimização), a inviolabilidade da liberdade do cidadão
brasileiro. Como esse direito não é garantido de forma absoluta, percebe-se, em outros
dispositivos também constitucionais (art. 5º, notadamente incisos, LXI a LXVI),897 a
admissão de prisão provisória em situações excepcionais e observados outros direitos do
imputado quando de sua realização. Pois bem, há uma cláusula restritiva tácita que
restringe a liberdade prima facie (do caput, art. 5º, CR) na medida em que se percebe que
o constituinte admitiu a existência de prisão no curso persecutório, ou seja, antes de
decisão condenatória definitiva. Porém, essa mera admissão não assegura o direito de que
essas prisões sejam decretadas com base, por exemplo, em um poder geral de cautela.
Para que essa cláusula tácita possa ser exercida como redutora daquele direito prima
facie, é necessário que antes ela seja corporificada em lei infraconstitucional formal e
materialmente correta. Por isso, nenhuma prisão pode ser determinada sem que primeiro
esteja prevista em lei regularmente elaborada (legalidade formal) e materialmente
consentânea com os demais preceitos constitucionais. Logo, para o âmbito das prisões
provisórias, impõe-se uma legalidade que obedeça a padrões formais e materiais em sua
elaboração legislativa.898 Ambos os padrões também devem ser verificados e obedecidos
quando da aplicação da lei ao caso concreto.899

897 Preceituam esses dispositivos: “LXI – ninguém será preso senão em


flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade
judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime
propriamente militar, definidos em lei;” e “LXVI – ninguém será levado à
prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com
ou sem fiança;”.
898 Para uma sugestão de “lege ferenda” sobre um novo modelo de medidas

de coação no curso persecutório, tendo em vista a presunção de


inocência, objeto de nosso estudo, v. item 5.4.1.2.1 e seus subitens infra.
899 Exemplo de abuso, quanto à restrição de liberdade por meio da prisão

provisória, já foi citado anteriormente quando se tratou do dispositivo


revogado da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/90) e pelo qual se
mantinha essa prisão (pela vedação a priori de concessão de liberdade
provisória para qualquer hipótese concreta) sem qualquer exame das
posições materiais tanto na elaboração da norma (plano legislativo)
quanto da aplicação ao caso concreto (planos executivo e judiciário).
Como exemplos da necessidade de obediência estrita quando da verificação da
“legalidade formal” para se determinar prisão provisória, pode-se citar a impossibilidade
de prisão em flagrante delito fora daquelas hipóteses taxativas do art. 302 do Código de
Processo Penal, e de prisão temporária para crimes não integrantes do rol taxativo do
inciso III do art. 1º da Lei 7.960/89. Materialmente, a verificação deve ser realizada, tanto
na elaboração (nível legislativo), quanto na aplicação (níveis judiciário e executivo),
dentro do exame das condições fático-jurídicas do caso concreto e em face da
proporcionalidade.900 Assim, é inconstitucional, por violação a qualquer justificação
constitucional quanto àquela posição material, determinar-se, já em nível legal, a
vedação em caráter absoluto de concessão de liberdade provisória para qualquer pessoa
que seja acusada de uma espécie de crime, pouco importando as condições (fático-
jurídicas) de sua ocorrência.901
Para a “teoria dos princípios”, cumpridas as posições formais e materiais citadas, as
“cláusulas restritivas tácitas” são uma decorrência inevitável da convivência harmônica
entre direitos constitucionais prima facie com tendência expansiva e estrutura
restringível.
Pode-se concluir, portanto, com base nessa teoria, que as incidências das cláusulas
restritivas (expressas ou tácitas) no âmbito dos direitos prima facie devem ser decididas
por meio das “leis de colisão” entre normas-regras e normas-princípio, pois também a
contradição normativa é forma de restrição de direitos fundamentais.

4.4.3.1.3. (segue): contradição normativa

Em um sistema complexo e composto por várias normas, tanto com estrutura de


regras quanto de princípios, é natural e esperado que surjam choques entre elas.

900 Sobre o duplo sentido da proporcionalidade e sua incidência para limitar


as restrições legais tanto em nível legislativo de elaboração da norma
quanto em face de inconstitucionalidade em sua aplicação (fase
judiciária ou executiva), v. Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires
COELHO, Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., pp. 311/329, e
nossos comentários no item 4.5.1.1 infra.
901 Sobre o tema da inconstitucionalidade, já no plano abstrato da norma,
pela vedação de concessão de liberdade provisória estabelecida no art.
44, da Lei 11.343/2006 (Lei de Tóxicos), no art. 3º da Lei 9.613/1998 (Lei
de Lavagem de Dinheiro) e no art. 7º da Lei 9.034/1995 (dita “Lei do
Crime Organizada), v. item 5.4.2.1.1 infra.
A idéia de contradição normativa baseia-se na “possibilidade de aplicação, a um
mesmo caso concreto, de duas ou mais normas, cujas conseqüências jurídicas se mostrem,
pelo menos para aquele caso, total ou parcialmente incompatíveis”.902
Esse é um ponto crítico para qualquer modelo argumentativo e não seria diferente
para a “teoria dos princípios”. Diante das contradições normativas pode-se verificar se a
teoria, o estudioso ou o operador forense têm coerência e se apresentam argumentos mais
aptos e verificáveis para resolvê-las.
Contudo, como essa teoria se mostra mais clara e coerente com a definição do
conteúdo da norma fundamental e suas formas de restrição, ela colabora de forma mais
consistente nessas situações de tensão sistêmica de contradição normativa. Isto porque
expõe métodos empregados para a solução dessas contradições, com a determinação de
qual norma e em que medida seus efeitos jurídicos devem ser aplicados.
Havendo duas espécies de normas, as regras e os princípios, as possibilidades de
contradição limitam-se a três: a) a colisão entre princípios; b) a colisão entre princípio e
regra; e c) o conflito entre regras.
Para uma compreensão mais detalhada de tão importante ponto na “teoria dos
princípios”, convém a exposição individualizada de seus métodos de aplicação de normas
(princípio e regra) quando há o choque entre elas.

4.4.3.1.3.1. (segue): conflito entre regras

902 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 47. Nessa mesma
passagem o autor aponta que há várias polêmicas sobre os
denominados “conflitos normativos”, inclusive com bibliografia a respeito.
Para nós, no presente estudo, preferimos usar a expressão “contradição
normativa” para referir o gênero dos possíveis choques de normas.
Quanto ao mais, seguimos uma tradução das expressões escolhidas por
Robert Alexy. Usamos a expressão “conflito” quando só normas do tipo
“regra” participarem da contradição normativa e reservamos a expressão
“colisão” para quando houver princípios envolvidos, seja na hipótese
“princípio versus princípio” seja na situação “princípio versus regra”. Há,
ainda, mais um esclarecimento sobre o corte temático de um trabalho
voltado apenas à área processual penal: no presente estudo, trataremos
apenas das denominadas “colisões em sentido amplo”. Como asseveram
Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO e Paulo Gustavo
Gonet BRANCO, Curso cit., pp. 332/333, com expressa referência a
Robert Alexy, as colisões desse tipo amplo são aquelas que “envolvem
os direitos fundamentais e outros princípios ou valores que tenham por
escopo a proteção de interesses da comunidade (...) que envolvem
direitos fundamentais e outros valores constitucionalmente relevantes.
(...) Da mesma forma, não raro surgem conflitos entre as liberdades
individuais e a segurança interna como valor constitucional”.
Como para a “teoria dos princípios” as regras são normas que explicitam
direitos/deveres definitivos cuja aplicação se faz pela forma “tudo ou nada”, sendo
irrestringíveis sempre que houver conflito entre regras, a solução, por coerência, dá-se
pela exclusão de uma delas do ordenamento. Essa exclusão ocorre motivada pela perda de
validade da regra ou pela criação de uma “cláusula de exceção”. Uma ou outra solução
dependerá do nível da incompatibilidade (total ou parcial) entre as regras.
Se os conteúdos de ambas as regras são totalmente excludentes, a regra inaplicável
será declarada inválida, devendo ser excluída do ordenamento. Se, por sua vez, a
incompatibilidade é apenas parcial em suas conseqüências jurídicas, pode ser formada
uma “cláusula de exceção” em uma delas.903 As soluções, portanto, para o conflito entre
regras, ou é a inserção de uma “cláusula de exceção”,904 ou a declaração de invalidade de
uma das regras em conflito.905 Exemplos para essas duas situações podem auxiliar na
compreensão.

903 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,


item 2.2.3.1.
904 A inserção das “cláusulas de exceção”, como forma de solução do
conflito entre regras, é uma das diferenças entre os modelos de Robert
Alexy e Ronald Dworkin, conforme exposto por aquele autor na obra
Teoría cit., p. 99.
905 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 88, e Jorge Reis NOVAIS, As restrições
aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela
constituição, Coimbra: Coimbra, 2003, pp. 326/327.
A hipótese de construção de uma “cláusula de exceção” para a solução de conflitos
entre regras pode ser encontrada na previsão constitucional de inviolabilidade da casa.906
Nessa previsão constitucional há uma primeira parte que se aplica de modo definitivo,
qual seja, “a casa é o asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o
consentimento do morador”. O constituinte, ao assim agir, teve em vista proteger, de
modo definitivo, de violações (públicas e particulares) o direito do indivíduo à sua
privacidade e intimidade. Contudo, esse mesmo constituinte criou uma “cláusula de
exceção” àquela regra a fim de compatibilizar aquele direito subjetivo com outros
interesses coletivos (i) de evitar o cometimento de crime (situação de flagrância), (ii) de
manter a integridade física ou patrimonial em casos de desastre, (iii) de garantir a
prestação de socorro ou, ainda, (iv) de dar cumprimento a ordem judicial (“por
determinação judicial”). Sendo que, neste último caso (ordem judicial), foi claro ao
excepcionar a regra da inviolabilidade apenas no período diurno. Com a redação
normativa escolhida, já em nível constitucional, houve a criação de uma “cláusula de
exceção” capaz de compatibilizar as regras (de direito à inviolabilidade e de um não-
direito à inviolabilidade) em uma situação específica. Assim, diante do caso concreto,
caberá decidir qual regra será aplicada, a regra geral da inviolabilidade, ou a regra
correspondente à “cláusula de exceção” exposta nas situações (i, ii, iii e iv) citadas.
Na segunda hipótese, aquela em que o conflito entre regras produz uma
incompatibilidade total e, portanto, gera a invalidade da regra declarada inaplicável,
tome-se como exemplo o choque entre o parágrafo único do artigo 186 do Código de
Processo Penal, após a redação empreendida pela Lei 10.792/2003,907 e o art. 198 do
mesmo diploma legal, conforme a sua redação original desde 1940.908

906 A previsão encontra-se no inciso XI do art. 5º, CR, e está assim disposta:
“XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo
penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante
delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por
determinação judicial”.
907 Preceitua o atual art. 186 e seu parágrafo único: “Art. 186. Depois de

devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o


acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu
direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe
forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em
confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.
908 Determina o artigo 198: “Art. 198. O silêncio do acusado não importará

em confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do


convencimento do juiz”.
Com a inserção do parágrafo único no citado artigo 186 (“O silêncio, que não
importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”) e a não
revogação expressa da segunda parte do artigo 198 (“mas poderá constituir elemento para
a formação do convencimento do juiz”) surge uma incompatibilidade total entre as regras
que regem um mesmo ponto da vida. Ou apenas o citado parágrafo único é o válido,
havendo perda da validade da referida parte do artigo 198, ou é esta que deve prevalecer,
declarando-se o parágrafo único inválido e, portanto, fora do sistema. A
incompatibilidade total, portanto, sempre gera uma necessidade de escolha de uma das
regras em conflito.
Definida a incompatibilidade total das conseqüências jurídicas, o intérprete deverá
proceder à exclusão de uma das duas regras do ordenamento jurídico. Para se determinar,
nas situações concretas, qual das duas regras deve prevalecer, a “teoria dos princípios”
lança mão de regras de solução de antinomias como “lex posterior derogat legi priori”,
“lex specialis derogat legi generali” e “lex superior derogat legi inferiori” e, também, da
importância das regras em conflito, por exemplo, se possuem hierarquias distintas
(constitucional e infraconstitucional).909 No exemplo citado, está declarada a invalidade
da referida segunda parte do art. 198 não só pela regra “lex posterior derogat legi priori”
como, também, e por outro viés argumentativo, porque a regra definida no parágrafo
único é a materialização infraconstitucional das atuais normas constitucionais da ampla
defesa (art. 5º, inciso LV, CR) e do direito do imputado silenciar (art. 5º, inciso, LXIII,
CR) e seria ilógico e uma negação da própria existência desses direitos fundamentais que
de seus exercícios pudesse advir qualquer forma de prejuízo para a esfera jurídica do
cidadão.
Disso se extrai que “sempre que há conflito entre regras, há alguma forma de
declaração de invalidade”,910 seja pela formação de “cláusulas de exceção” (invalidade
parcial) seja pela invalidade total de uma delas. É no plano da validade que se resolvem
os conflitos entre regras.

4.4.3.1.3.2. (segue): colisão entre princípios

Como os princípios têm natureza de “mandamentos de otimização”, devendo ser


realizáveis na maior medida possível diante das condições fático-jurídicas, eles possuem
uma tendência expansiva de realização total.911 Com isso, grandes porções da vida
tendem a ser áreas de intersecção de um ou mais princípios simultaneamente.

909 Critérios citados por Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 2.2.3.1, e, quanto aos dois primeiros, também por Robert ALEXY,
Teoría cit., p. 88.
910 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 49.
911 Sobre as características das normas-princípios e sua tendência de

expansão de seu conteúdo, mas não garantia de sua realização total, v.


item 4.3.1 supra.
Quando a incidência de dois ou mais princípios para regular uma mesma situação
concreta (ato, fato ou posição jurídica) produz conseqüências jurídicas diferentes,
conforme um ou outro prevaleça, surge uma colisão entre princípios. Essa colisão, de
modo diverso do que antes se propôs para as regras (criação de “cláusula de exceção” ou
declaração de invalidade), se resolve pela criação de uma “relação condicionada de
precedência”.912
A “relação condicionada de precedência” é o resultado do método de aplicação de
um princípio em colisão com outro: o denominado sopesamento ou ponderação.913 O
método de aplicação do sopesamento sempre deverá ter em conta as condições fático-
jurídicas da contradição que se quer decidir, são essas peculiaridades (os princípios
envolvidos e a situação prática conflitiva que se pretende resolver) que trazem a idéia de
“condicionada” àquela “relação de precedência”. Seu resultado, tendo em vista as
específicas “condições”, determinará qual princípio prevalecerá e em que medida haverá
a sua precedência (ou prevalência).
Tomando-se uma colisão apenas entre dois princípios, formula-se a seguinte “lei da
colisão”: “(P1 P P2) C”.914 Essa fórmula significa que o princípio P1 prevalece – tem
precedência – (P) sobre o princípio P2, nas condições C.915 É nesse sentido que se aceita a
afirmação de que um princípio tenha mais peso em face de outro, ou seja, um princípio
ganha peso maior em relação ao outro com o qual se entrechoque, sempre diante das
condições específicas.916

912 Robert ALEXY, Teoría cit., p. 92; José Joaquim Gomes CANOTILHO,
Direito Constitucional cit., pp. 1256/1257; Virgílio Afonso da SILVA,
Direitos fundamentais cit., item 2.2.3.2; e Jorge Reis NOVAIS, As
restrições cit, pp. 326/328.
913 Sobre o sopesamento ser o meio de solução de colisões entre princípios

e o principal método de escolha e análise legislativa, v. Virgílio Afonso da


SILVA, Direitos fundamentais cit., item 4.4.5.
914 As letras citadas no texto e que determinam os elementos lógicos

compositivos da “lei de colisão” mantêm o critério de Robert Alexy, tudo


a fim de auxiliar o leitor em eventual estudo comparativo com a obra
desse autor já tantas vezes citada. Para José Joaquim Gomes
CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 1256, a equação se dá nos
seguintes moldes: (D1 P D2) C. Nessa última fórmula, conforme
proposto anteriormente por Alexy, o autor português apenas trata os
elementos como o direito 1 (D1) prevalecendo (P) sobre o direito 2 (D2)
em determinadas condições fático-jurídicas (C).
915 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 92/93.
916 Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 89/90. O autor é expresso ao afirmar, em

tradução livre: “O princípio P1 tem, em um caso concreto, um peso maior


que o principio P2 quando existem razões suficientes para que P1
preceda a P2, sob condições C dadas no caso concreto” (op. cit., p. 93).
A mudança de qualquer variável naquela equação [(P1 P P2) C] torna altamente
provável a mudança da “relação de precedência”. “É possível – e provável – contudo, que
em uma situação C’, seja o princípio P2 que prevaleça sobre o princípio P1, ou seja, (P2 P
P1) C’. A despeito de se tratar, nos dois casos, dos mesmos princípios, não é possível
formular, em abstrato, uma relação de precedência entre eles. Essa relação é sempre
condicionada à situação concreta”.917
Por isso, afirmar-se que a não prevalência de um princípio em um dado ato, fato ou
posição jurídica não o torna uma norma inválida. O princípio, desde que esteja formal e
materialmente conforme aos padrões jusfundamentais, sempre será válido, tenha ou não
precedência em face de certas condições casuísticas.918 Não se pode dizer que ele tenha
perdido a validade ou que será retirado do sistema, uma vez que poderá prevalecer se as
condições mudarem ou se o princípio colidente for outro (P3, por exemplo).
Para se incluir mais um elemento importante àquela fórmula (“lei da colisão”),
deve-se compreender que, a partir do instante em que se determine que o princípio P1
tem maiores razões para prevalecer sobre o princípio P2, sob aquelas condições fático-
jurídicas específicas, estabelece-se uma conseqüência jurídica para o caso concreto: a
conseqüência derivada do conteúdo de P1 (no caso, o princípio prevalente). Assim,
tendo-se R como a conseqüência jurídica derivada do princípio precedente, tem-se: “(P1
P P2) C  R”,919 ou, de modo mais simples: “C  R”. “As condições sob as quais um
princípio precede a outro constituem o suporte fático de uma regra que expressa a
conseqüência jurídica do princípio precedente”.920 O direito/dever prima facie contido na
norma-princípio prevalente (precedente), quando se torna “direito definitivo”, ou seja,
quando se aplica ao caso após passar pelo sopesamento entre os princípios, diante das
condições do caso, torna-se uma regra (“direito definitivo”) de conseqüências jurídicas
determinadas para o caso específico e que serão integralmente aplicadas.921 O direito
prima facie torna-se direito definitivo para o caso.

917 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., pp. 50/51.


918 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 89 e 91.
919 Essa fórmula poderia ser assim lida: a prevalência (P) do princípio P1

sobre o princípio P2, nas condições C, determina a conseqüência


jurídica R, derivada de P1.
920 Nossa tradução de Robert ALEXY, Teoría cit., p. 94.
921 Nas palavras de Robert ALEXY, Teoría cit., p. 98, em tradução livre:

“como resultado de toda a ponderação jusfundamental correta, pode-se


formular uma norma de direito fundamental adscrita com caráter de regra
sob a qual pode ser subsumido o caso”.
A dependência constante das condições fático-jurídicas do caso concreto para se
determinar as conseqüências jurídicas impede que haja uma “relação absoluta de
precedência”. Isto é uma idéia essencial à “teoria dos princípios”. O resultado da “relação
condicionada de precedência”, obtido em dada situação, não garante que ele sempre se
repetirá caso as condições mudem. Portanto, não é possível afirmar que aquela “relação
‘condicionada’ de precedência” resultante se tornará uma “relação ‘absoluta’ de
precedência”.922
Por mais que se dê força a uma argumentação em favor de um princípio ou de um
determinado tipo de princípios, eles não ganham, de antemão, tanto peso na ponderação
que cheguem a mudar sua estrutura normativa para “direito definitivo”, ou seja, não se
transformarão em norma-regra. A ponderação casuística sempre será necessária. Não há
princípio que, no campo abstrato (em sua previsão legal ou no campo racional de análise
para sua efetivação), tenha seu peso aumentado a tal ponto que ‘sempre’ preceda
(prevaleça) aos demais ou a todo um grupo de princípios de forma completa e para
qualquer hipótese concreta. Não há “relação absoluta de precedência”. Isso é a
absolutização dos princípios, argumento e resultado racional impossíveis para a “teoria
dos princípios”.
Mesmo que se venha a criar uma “regra de reforço de argumentação”, isso não
desobriga a se estabelecer, no caso concreto, as respectivas “condições” que vão influir na
“relação de precedência”. Quando muito, para expressas hipóteses de norma com reforço
argumentativo, poderá se dar, apenas em caso de dúvida, uma preferência constitucional
por um princípio em relação a outro. É nessa “preferência argumentativa constitucional”
sobre o processo racional de ponderação que sobressaem com maior peso,
especificamente para o campo processual penal, a presunção de inocência, o devido
processo legal e a dignidade da pessoa humana. Deixe-se claro: sobressair não é se impor
de forma ampla e absoluta.923
Compreender esse ponto, assim como o asseverado no item anterior sobre conflito
de regras, cujo método de aplicação é “tudo ou nada”, é determinante para se perceber
como estavam errados os juristas do fascismo ao criticarem o princípio da presunção de
inocência.

922 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 94/95.


923 Toda a idéia expressa nesse parágrafo, inclusive as expressões
traduzidas em destaque, está em Robert ALEXY, Teoría cit., pp.
100/101.
Em sua argumentação (ideológica),924 construída desde o início para levar ao
resultado final de exclusão da presunção de inocência, aqueles doutrinadores
“absolutizavam” esse princípio e, ao demonstrarem sua inaplicabilidade em uma
determinada situação concreta (p.ex., por falta das condições ideais ou pela prevalência
de outro princípio naquela situação), concluíam que se tratava de uma “absurdidade”
jurídica, expungindo-a do ordenamento. Tecnicamente, aqueles autores erravam duas
vezes em sua argumentação.
Por primeiro, erravam ao absolutizar um princípio, quando não há como se
aumentar em tal grau o peso de sua justificação que o transforme em “norma-regra”, ou
seja, em “direito definitivo” ou “princípio absoluto”. E aqui o termo “direito definitivo”
está nos moldes afirmados pela teoria interna, qual seja, o direito, desde sua concepção
como disposição normativa, já nasce definitivo e irrestringível, não como o concebe a
teoria externa, para a qual ele só é definitivo após passar pelo crivo da ponderação e da
proporcionalidade na aplicação ao caso concreto.
Por segundo, erravam os positivistas na medida em que, ao constatarem que a
presunção de inocência não se aplicava em uma dada situação concreta, tornavam-na
inválida e a expungiam do sistema jurídico. Enfim, os positivistas do dogmatismo
nazifascista erravam ao tratar como norma-regra a presunção de inocência, que tem
estrutura de “norma-princípio”.925

4.4.3.1.3.3. (segue): colisão entre princípio e regra

Como é intuitivo supor, não há apenas colisões entre princípios e conflitos entre
regras, mas, devido à complexidade normativa do sistema jurídico, também ocorrem
colisões entre princípios e regras. Contudo, é necessário um cuidado redobrado nesse
caso de contradição normativa, pois não é possível a aplicação pura e simples dos
métodos anteriores de resolução de conflitos apenas entre regras ou de colisões apenas
entre princípios.

924 Sobre a ideologia nazifascista ínsita aos argumentos da Escola Técnico-


Jurídica, v. item 2.4.7.1 supra, e sobre o erro técnico na absolutização da
presunção de inocência, v. nossas considerações no item 2.4.7.3 supra.
925 Sobre a estrutura de princípio da presunção de inocência, v. item 4.3.1
supra.
O sopesamento (ponderação), método de solução da colisão de princípios,926 muitas
vezes determina que uma norma seja aplicada parcialmente, diante das condições do
caso, afastando em parte suas conseqüências jurídicas. Essa forma parcial de aplicação
não serve às normas com estrutura de “regra”, pois ela ou se aplica como um todo, ou não
se aplica (método “tudo ou nada”). Nesse caso, o sopesamento não se mostraria coerente
com a “teoria dos princípios”, pois ponderar para aplicar a norma apenas de forma parcial
ou não aplicá-la é negar a estrutura não restringível concebida para a aplicação das
normas-regras (aplicação “tudo ou nada”).
Em sentido contrário, a aplicação da invalidade não se mostra coerente com a
estrutura concebida por aquela teoria para aplicação das normas-princípios. De tal
solução resultaria a invalidade do princípio e, com isso, ele teria que ser retirado do
ordenamento, o que inviabilizaria sua aplicação em outras situações em que as condições
fossem diversas ou, ainda, se estivesse diante de outras normas (princípios e regras).927

926 Nesse sentido, v. José Joaquim Gomes CANOTILHO, Direito


Constitucional cit., p. 1256.
927 No sentido de rejeitar a aplicação pura do método da ponderação ou da
aplicação “tudo ou nada” para a colisão entre princípio e regra, v. Virgílio
Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 2.2.3.3.
Comumente, essa espécie de colisão vem sendo resolvida pela percepção de que não
se está diante de uma “regra” propriamente dita. Afirma-se que subjaz à regra em choque
com um princípio P1 um outro princípio P2 que a justifica ou a conforma. Para os que
assim compreendem, o método de resolução da colisão volta a ser o “sopesamento”.
Porém, não o sopesamento entre a regra e o princípio P1 em colisão, mas entre este (P1)
e o princípio P2, que está “por detrás” da norma-regra, subjaz e dá suporte a ela.928 A
ponderação, nesse caso, sempre se dará de maneira aceitável e coerente, sem ferir a
estrutura e a hierarquia normativas se ambos os princípios forem normas constitucionais
dispostas como direitos fundamentais.929

928 Essa forma de solução da colisão é explicitada por Robert ALEXY,


Teoría cit., p. 86, nota 24 e, de forma mais completa, por Virgílio Afonso
da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 2.2.3.3.
929 Martin BOROWSKI, La estructura cit., p. 81 e nota 137, também indica
essa forma de restrição dos princípios por regras e esclarece que,
somente visualizando-se que por detrás da regra há um princípio que a
forma e conforma, é que se pode compreender como uma norma
constitucional (norma-princípio) pode ser legitimamente restringida por
uma regra infraconstitucional. Isto ocorre, na explicação desse autor,
porque o princípio que dá suporte àquela norma-regra também possui
hierarquia constitucional; logo, a ponderação poderá ser feita entre os
princípios sem violação da hierarquia normativa. Nas palavras do autor,
em tradução livre: “Em todo caso de restrição de um direito fundamental
por via de uma regra legal, esta tem que estar sustentada por princípios
constitucionais. Isto explica igualmente como é possível a restrição de
direitos fundamentais mediante as leis. Se a restrição de um direito
fundamental provém unicamente da lei, dita restrição não poderia ser
nunca legítima. As liberdades fundamentais estão garantidas por normas
constitucionais. Uma restrição que se realiza mediante normas legais de
inferior hierarquia na pirâmide do ordenamento jurídico, vulneraria o
princípio da supremacia da Constituição. Mas, se a restrição se funda
materialmente nos princípios constitucionais que a sustentam,
apresenta-se formalmente uma colisão entre normas de igual hierarquia
que pode ser resolvida mediante ponderação” (op. cit., pp. 81/82). Nesse
sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 272/276.
Exemplificando, para melhor esclarecer o quanto se disse. O art. 20 do Código de
Processo Penal estabelece uma regra no sentido de determinar que a “autoridade
assegurará no inquérito o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse
da sociedade”. Essa é uma norma-regra que se aplica na forma “tudo ou nada”, ou há
sigilo, porque necessário à elucidação do fato ou por interesse social, ou não há.930 O
princípio que justifica a manutenção de tal regra,931 no tocante ao interesse à elucidação
do fato, é o princípio da eficiência da Administração Pública, previsto no caput do art. 37
da Constituição. Ocorre que essa mesma cabeça de artigo constitucional prevê que todos
os atos da administração pública direta (no qual se inclui a Polícia Judiciária) e indireta
devem ser públicos. Há, portanto, de ordinário, também por determinação
constitucional, o princípio da publicidade dos atos administrativos. Estabelece-se,
portanto, uma “aparente” colisão entre regra (art. 20, CPP) e princípio (da publicidade,
art. 37, caput, CR) e que pode ser tratada como uma colisão entre princípios (“princípio
da eficiência versus princípio da publicidade”), ambos de mesma hierarquia
constitucional.932
Logo, em um dado inquérito policial, no qual a autoridade determine o sigilo, por
conveniência da investigação, estariam afetados tanto o direito à publicidade do terceiro
interessado em ter acesso à persecução (p.ex., parentes da vítima, jornalistas, parentes do
imputado, etc.) quanto o direito do imputado. Direito assegurado pela norma-princípio
referida (art. 37, caput, CR, quanto à publicidade dos atos) e afetado em razão da
aplicação de uma regra processual penal (art. 20, citado). Para quem veja aqui, em
verdade, uma colisão entre princípios (“princípio da eficiência versus princípio da
publicidade”), a solução se dará pelo método da “ponderação” entre esses princípios em
face das condições fático-jurídicas do caso concreto.

930 Não importa aqui se o sigilo se dá em moldes externos (para todos os


terceiros à persecução), ou nos moldes internos (também para as partes,
leia-se, imputados, vítimas e seus defensores). Isto porque, tanto o
terceiro quanto o imputado poderão apresentar, dentro de suas
perspectivas jurídicas, o argumento que segue no texto.
931 Melhor dizer que esse princípio justifica a “manutenção” de tal regra,
uma vez que sua criação se deu em 1941 e teve nítida inspiração
fascista repressiva em sua elaboração, sendo utilizada pelo Estado Novo
getulista para usar o sistema criminal como instrumento de força e
controle ideológico-político da sociedade. Sobre esse perfil do nosso
ainda atual código de processo penal, v. algumas considerações no item
2.5.2.3 supra.
932 Para uma mais detalhada exposição de como se deve solucionar
constitucionalmente a colisão entre os princípios da publicidade e da
eficiência no tocante ao sigilo das informações no curso da persecução
penal pela perspectiva da presunção de inocência como “norma de
tratamento”, v. item 5.5.1.1 infra.
Nessas condições, poderá o juiz decidir que deva prevalecer o princípio da eficiência
e, com isso, vedar acesso aos autos a todos, p.ex., porquanto haja diligências relevantes
em curso (v.g., interceptações telefônicas) e para as quais o sigilo seja fundamental.
Também poderá, se as razões diante das condições concretas lhe parecerem melhores,
determinar a publicidade dos autos ao imputado, p.ex., porque a garantia à publicidade,
para o imputado, irá propiciar-lhe exercer de modo pleno outro princípio constitucional,
o direito de defesa. Por isso, entende haver razões mais fortes (maior peso) para assegurar
a “precedência” da publicidade para o imputado em detrimento do princípio da
eficiência. Na mesma situação, porém, poderá não estabelecer a mesma “relação
condicionada de precedência” para o terceiro, porque, p.ex., ele não precisa se defender
e, portanto, pode esperar pelo término das investigações. De um terceiro modo, o mesmo
julgador poderá entender que o interesse da investigação em nada será afetado com a
publicidade ampla a todos os interessados (imputado ou não), vindo a determinar o fim
do sigilo e a precedência em termos absolutos do princípio da publicidade para todos
cidadãos (terceiro ou imputado). Em todas as três decisões (não garantir a publicidade a
ninguém; garanti-la apenas ao imputado; ou garanti-la a todos), o método aplicado para
solução da colisão foi a ponderação ou sopesamento entre princípios. O resultado variou
porquanto algumas condições foram, propositalmente, sendo alteradas.
No campo processual penal, a declaração de inconstitucionalidade de uma regra
infraconstitucional (formada ou não por determinação constitucional) de ordinário é
definida pelo Judiciário pelo critério apontado anteriormente, qual seja, a ponderação
entre o princípio com o qual ela colida e aquele que a justificou.933 A sua retirada do
sistema, em caso de reconhecimento de falta de justificação constitucional para sua
manutenção, faz com que não possa mais ser utilizada como parâmetro para qualquer
outro tipo de contradição normativa (“regra versus regra” ou “princípio versus regra”); a
regra perde sua validade no campo abstrato pela declaração judicial de sua
inconstitucionalidade.
Citemos um exemplo já ocorrido no ordenamento nacional, para melhor
compreensão.

933 Nesse sentido, Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item
2.2.3.3.
A atual Constituição, em dois dispositivos,934 assegura o princípio do juiz natural, no
qual, por sua vez, alguns doutrinadores inserem a imparcialidade judicial.935 A
imparcialidade também é assegurada de maneira implícita em outras normas
fundamentais como o devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR) e o princípio
acusatório que, também incorporado pelo texto constitucional em vários dispositivos,
tem como uma de suas principais características a de distinguir as funções de acusar,
defender e julgar e as atribui a pessoas distintas.936
Não obstante essa realidade constitucional, promulgou-se lei para dispor “sobre a
utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por
organizações criminosas” (Lei 9.034/95), denominada, impropriamente, “Lei do Crime
Organizado”. Nessa lei, definiu-se que, em havendo “o acesso a dados, documentos e
informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais” (inciso III do art. 2º) e “ocorrendo
hipótese de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será
realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça” (caput do
art. 3º, com nosso destaque). Essa regra prevista no citado artigo 3º entrou em colisão
com o princípio da imparcialidade judicial. Surgiu, portanto, uma colisão entre princípio
(da imparcialidade) e regra infraconstitucional (caput do art. 3º).

934 Inciso XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”) e inciso LIII
(“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade
competente”), ambos do art. 5º da Constituição.
935 Sobre o princípio do juiz natural compreender a garantia da

imparcialidade do juiz, sendo esta entendida como “a primeira condição


para que possa exercer sua função dentro do processo”, já se tornou
clássica a lição de Ada Pellegrini GRINOVER, Antônio Araújo CINTRA,
Cândido Rangel DINAMARCO, Teoria geral do processo, 19ª ed., São
Paulo: Malheiros, 2003, item 18. No mesmo sentido, v., ainda, Ada
Pellegrini GRINOVER, Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, Antônio
SCARANCE FERNANDES, As nulidades no processo penal, 9ª ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, cap. IV, itens 5 a 9. Nesse mesmo
sentido já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal em várias
oportunidades, dentre elas, cite-se: “A lei não poderá frustrar a garantia
derivada do postulado do juiz natural. Assiste, a qualquer pessoa,
quando eventualmente submetida a juízo penal, o direito de ser
processada perante magistrado imparcial e independente, cuja
competência é predeterminada, em abstrato, pelo próprio ordenamento
constitucional” (STF – 1ª T. – HC 73.801 – rel. Celso de Mello – j.
25.06.1996 – DJU 27.06.1997).
936 Para uma correlação entre sistema acusatório e presunção de inocência,

v. Guilherme Madeira DREZEM, Presunção de inocência: efeito


suspensivo dos recursos extraordinário e especial e execução provisória,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, pp. 276/278.
Em meio a muitas discussões judiciais e doutrinárias,937 o Supremo Tribunal Federal
se pronunciou pela inconstitucionalidade da dita regra na Ação Direta de
Inconstitucionalidade nº 1.570-2, proposta pela Procuradoria Geral da República. Na
inicial dessa ação direta de inconstitucionalidade alegou-se que a imparcialidade judicial
estava sendo afetada na medida em que se violavam tanto o princípio acusatório quanto o
devido processo legal. Em resposta à alegação daquela inicial, o Congresso Nacional, por
meio de seu Presidente, manifestou-se no sentido de negar a violação ao princípio
acusatório e, também, que a referida regra destinava-se a garantir outra norma
constitucional, qual seja, a do “sigilo garantido pela Constituição ou por lei” – para o
Congresso, norma jusfundamental de igual hierarquia. No desenvolvimento dos debates
entre os Ministros da Suprema Corte, verifica-se, sem que essa expressão seja referida,
uma verdadeira ponderação entre os princípios ditos violados (acusatório, devido
processo legal e imparcialidade) e os que justificaram a edição da regra (“garantia do
sigilo constitucional ou legal”). Ao final, entendeu o Supremo Tribunal Federal que as
razões em favor dos princípios que a regra restringia eram mais consistentes
(apresentavam maior peso) em relação àquele que a justificou. Portanto, estabeleceu uma
relação de precedência na qual os princípios acusatório, da imparcialidade e do devido
processo legal prevaleceram, e a regra foi declarada sem justificação constitucional
suficiente para ser mantida no sistema jurídico como válida. Uma vez retirada do
ordenamento jurídico, a norma-regra do art. 3º citado não servirá mais como parâmetro
válido para qualquer contradição normativa futura. Não haverá, portanto, contradição a
ser resolvida em qualquer caso concreto para os quais ela fora, inicialmente, elaborada.
Como se percebe do exemplo trazido, o método aplicado foi o da ponderação entre
princípios e, determinada a relação de precedência, a conseqüência jurídica foi a
declaração de inconstitucionalidade da norma-regra com sua decorrente retirada do
sistema jurídico (infraconstitucional); ela perdeu a validade a partir de então.

937 Nesse ponto, v., por todos, v. o trabalho de Geraldo PRADO, Sistema
acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais,
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, item 4.1.
Necessário ressaltar que, na área criminal, tanto em seu âmbito penal quanto
processual penal, por força das normas constitucionais938 que determinam a necessidade
de previsão legal anterior à autorização/execução de qualquer restrição a direito
fundamental, as hipóteses de colisão entre princípio e regra é o que de ordinário
ocorre.939
Espécie de colisão que se dá das duas formas antes especificadas: a primeira, na
verificação pelo Judiciário da constitucionalidade de uma regra infraconstitucional,
elaborada em decorrência de reserva legal (simples ou qualificada) ou para necessidade
de conformação ou de regulamentação, pelo método do sopesamento (ponderação); a
segunda, por força da verificação da proporcionalidade lato sensu de uma regra
infraconstitucional que, embora em tese seja constitucional, não pode ser aplicada de
modo abusivo, no caso concreto. Tanto em uma quanto em outra hipótese citada cabe ao
Judiciário o papel preponderante de verificar a existência da justificação constitucional
para a intervenção, representada por uma lei infraconstitucional.
4.5. Limites das restrições

Da mesma forma como o “âmbito de proteção” não pode permanecer ilimitado e


absoluto, sob pena do direito prima facie atingir um nível expansivo tão elevado que
chegue à sua “absolutização”, também as restrições não podem ser ilimitadas sob pena de
levarem à supressão da norma fundamental. Para isso, a doutrina constitucional
identifica formas de limitação para as restrições.

938 Prevista uma de modo genérico para todas as áreas da vida (art. 5º,
inciso II, CR – “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei”), e especificamente para o campo material
penal (art. 5º, inciso XXXIX, CR – “não há crime sem lei anterior que o
defina, nem pena sem prévia cominação legal”). Para o campo
processual penal, mesmo que de modo menos expresso, ainda
encontramos um reforço da exigência da legalidade por influxo do
princípio do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR – “ninguém
será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo
legal”), notadamente em sua feição material voltada a essa área jurídica,
e denominada devido processo legal penal. Sobre o tema da legalidade
no devido processo penal, v. Pedro Juan BERTOLINO, El debido
proceso cit., pp. 63/70.
939 Sobre o pressuposto da legalidade formal e material para o exame da
proporcionalidade em sentido lato, v. nossos comentários no item 4.5.1.1
infra.
Para o presente trabalho, importam duas de modo especial, a proporcionalidade e o
conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Ambas as formas de limitação não estão
expressas no ordenamento constitucional brasileiro, mas inferidas uma vez que se está
diante de um Estado Democrático (e Social) de Direito, no qual há primazia dos direitos e
garantias fundamentais.940

4.5.1. -Proporcionalidade: considerações relevantes para seu exame no processo


penal

940 Sobre a importância e a conseqüência do Brasil ter sido instituído, por


força constitucional, como um Estado Democrático (e Social) de Direito,
v. item 3.5.1 supra. Quanto à incorporação pelo Brasil dos direitos
humanos inscritos nos mais importantes Tratados e Convenções
internacionais para se colocar ao lado das mais modernas nações do
mundo no tocante ao respeito a todas as necessidades para o
desenvolvimento pleno e pacífico do ser humano, v. item 3.3 e seus
subitens supra.
A proporcionalidade é um dos temas mais amplos, complexos e controvertidos no
atual estágio dos debates de direitos fundamentais. Não deixa dúvidas a esse respeito o
aumento das ocorrências de sua aplicação pela jurisprudência como, também, o
significativo crescimento da produção doutrinária sobre o assunto. Esse profícuo debate
doutrinário tem produzido, em quase todos os pontos desse tema, algumas divergências
mais ou menos profundas e extensas e, não raro, decorrentes de opções teóricas
inconciliáveis.941

941 Apenas a título ilustrativo, cite-se que há divergências desde sua


natureza, estrutura normativa, origem histórica e fundamento
constitucional na legislação brasileira. Quanto à divergência sobre sua
natureza, a maioria dos autores entendem-na como “princípio”, não
obstante, quando assim a ela se referem, não têm em mente um
conceito normativo oposto à “regra”, conforme leciona a “teoria dos
princípios”. Normalmente, quando há essa referência, feita inclusive por
nós em trabalho anterior (cfr., nosso “Publicidade e proporcionalidade na
persecução penal brasileira”, in: SCARANCE FERNANDES, Antônio;
ALMEIDA, José Raul Gavião de; MORAES, Maurício Zanoide de
(coord.), Sigilo no processo penal – eficiência e garantismo, São Paulo,
Revista dos Tribunais, 2008), empresta-se ao termo “princípio” uma
conotação de relevância e fundamentalidade sobre outras tantas
indagações juspolíticas, algo a nortear exames e análises concretas (em
decisões judiciais) e abstratas (em nível legislativo). Sobre a divergência
terminológica do tema, na qual se inserem preferências de natureza
quanto à proporcionalidade, v.: Virgílio Afonso da SILVA, Direitos
fundamentais cit., item 4.4.1; idem, O proporcional e o razoável, Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 798, abril, 2002, item 2; Suzana Toledo de
BARROS, O princípio da proporcionalidade e o controle de
constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, Brasília:
Brasília Jurídica, 1996, pp. 67/72; e Humberto ÁVILA, Teoria dos
princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2ª ed., São
Paulo: Malheiros, 2003, item 3.3.3.3 e seus subitens. Em ambos os
trabalhos citados de Virgílio Afonso da SILVA, com farta referência
bibliográfica, defende-se a preferência em tratar a proporcionalidade
como “regra”, não como “princípio”, “postulado”, “critério” ou “máxima”.
Quanto à fundamentação constitucional da proporcionalidade no direito
brasileiro atual, apenas para uma pequena referência doutrinária,
confira-se a divergência existente entre os pensamentos de Paulo
BONAVIDES, Curso cit., pp. 398/402; Gilmar Ferreira MENDES,
Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit.,
pp. 312/320; Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit.,
pp. 184/193; Suzana Toledo de BARROS, O princípio cit., pp. 85/94; e
Mariângela Gama de Magalhães GOMES, O princípio da
proporcionalidade no direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2003, item 2.6.
Conforme já afirmado acima, ressurte incoerente aceitar-se a teoria que defende o
suporte fático restrito para os direitos fundamentais e, após realizar cortes apriorísticos
tanto no âmbito de proteção (excluindo-se situações, posições ou estados) quanto nas
“intervenções estatais” (excluindo-se algumas formas de regulamentação ou conformação
como possíveis reduções a serem analisadas) da norma, ainda se aplicar outras reduções
àqueles direitos por força da proporcionalidade no exame casuístico.942 Assim, ou os
adeptos da teoria institucional dos direitos fundamentais (limites imanentes), por
coerência, não se utilizam da proporcionalidade no momento da aplicação da norma ao
caso concreto, ou estarão, de forma imprópria, cumulando erroneamente formas diversas
de reduções aos direitos fundamentais.
A proporcionalidade, como garantia dos direitos fundamentais, tem seu sentido e
finalidade voltados para a limitação das restrições. Logo, serve de proteção da norma
fundamental para controle da constitucionalidade em dois níveis distintos: o primeiro,
destinado ao campo legislativo-abstrato, pelo qual o Judiciário verifica se a elaboração
legislativa apresentou justificação constitucional; e o segundo nível, relacionado com o
campo concreto da aplicação e execução das leis pelo Judiciário e pelo Executivo, no caso
específico.
Esse controle da justificação constitucional pela proporcionalidade, portanto, é feito
em dois instantes distintos e associados,943 ambos relevantes para a área processual penal.
No plano abstrato, a importância do controle constitucional das leis pela
proporcionalidade se mostra relevante para esse âmbito processual, no tocante à
necessidade de controle da (in)constitucionalidade da legislação pelo julgador. Assim, de
modo difuso ou concentrado, muitas vezes o Judiciário deverá se pronunciar sobre
eventual falta de justificação constitucional de uma lei, afastando sua incidência ao caso
concreto ou, se for reconhecida sua inconstitucionalidade de forma concentrada,
declarar sua retirada do ordenamento jurídico. Isso ocorre porquanto o Judiciário, ao
analisar o sopesamento feito pelo legislador para a elaboração do texto legal, dele
(sopesamento) diverge e, portanto, entende-o (texto legal) sem justificação
constitucional.
O plano concreto, contudo, é o de maior ocorrência prática para a área processual
penal. Nesse âmbito, deverá o julgador examinar a proporcionalidade da aplicação de
uma lei, sobre a qual já se tenha feito o primeiro controle (em nível abstrato). Assim,
mesmo uma lei com justificação constitucional correta no plano abstrato da norma
poderá, no caso concreto, mostrar-se desproporcional devido a sua aplicação ser abusiva
ou excessiva. Por essa razão a proporcionalidade também é denominada “proibição de
excesso”.

942 Sobre o tema, v. item 4.4.3.1.2 supra.


943 Sobre o duplo controle da proporcionalidade e sua incidência em níveis
distintos (abstrato-legislativo e concreto-judiciário ou executivo), v.
Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO e Paulo Gustavo
Gonet BRANCO, Curso cit., pp. 326/329, e Dimitri DIMOULIS e Leonardo
MARTINS, Teoria geral cit., pp. 194/196.
Para melhor ilustrar essa hipótese, tome-se um exemplo da área penal para
demonstrar que mesmo uma lei abstratamente proporcional (justificada
constitucionalmente) poderá ter sua incidência considerada desproporcional diante do
caso concreto. É o que ocorre, por exemplo, nas situações de crimes de bagatela ou cuja
conduta não gere ofensividade penal relevante.944 Não se discute a justificação
constitucional, no plano legislativo, v.g., do crime de furto ou de sonegação fiscal; porém,
se o valor furtado ou sonegado for irrisório – o que ocorre com os “furtadores de
supermercado” ou com as dívidas tributárias que não ultrapassem o mínimo fixado pela
Receita Federal para cobrança judicial pela Fazenda –, a aplicação da pena geraria uma
desproporção entre a conduta praticada e a conseqüência jurídico-penal prevista. Em
casos como esses é comum se afirmar, em linguagem técnico-penal, que não há
“tipicidade material”. A identificação é total; pois, na linguagem técnico-constitucional, a
proporcionalidade é tida como a forma primaz de verificação “material” da justificação
constitucional.945

944 Sobre a falta de ofensividade não atender à necessidade, um dos filtros


existentes no exame da proporcionalidade, v. Mariângela Gama de
Magalhães GOMES, O princípio cit., item 3.3. Sobre os crimes de
bagatela não passarem pelo crivo da proporcionalidade em concreto, v.
Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo
Gonet BRANCO, Curso cit., p. 329.
945 Nesse sentido, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral
cit., p. 191.
Na doutrina dos direitos fundamentais, normalmente preocupada com o âmbito
legislativo e o controle da constitucionalidade na produção das normas, é comum que
toda a ênfase no estudo da proporcionalidade se dê aos elementos da “adequação”, da
“necessidade” e da “proporcionalidade em sentido estrito”.946 Porém, quando se aplica o
seu exame no campo processual penal deve se ter como já fixados determinados pontos
relevantes antes de ingressar no exame daqueles três elementos.
Esses pontos prévios, no estudo da presunção de inocência, assumem papel
importantíssimo. São eles (i) a existência de norma infraconstitucional, porquanto
nenhuma restrição poderá ocorrer no campo criminal (penal ou processual penal) sem
prévia existência de lei que a preveja (impositivo das legalidades penal e processual
penal), e (ii) que ela seja justificada teleológica e constitucionalmente, isto é, seja fruto de
um aceitável sopesamento constitucional ao menos no campo abstrato da norma. A
peculiaridade dessa área processual impõe, ainda, que o exame sobre aqueles pontos
pressupostos seja sempre realizado por juiz competente e por meio de decisão
fundamentada.

946 Conforme se entenda a proporcionalidade como princípio, regra ou


critério, a doutrina denomina esses elementos como “subprincípios”,
“subregras” ou “subcritérios”. Por ser irrelevante o debate ao tema do
trabalho, denominaremos todos de “elementos” ou “fases” do exame da
proporcionalidade. Voltado ao âmbito legislativo, Virgílio Afonso da
SILVA, Direitos fundamentais cit., item 4.4.5 diferencia sopesamento
(sinônimo de proporcionalidade strito sensu ou ponderação) de
proporcionalidade lato sensu. Para ele, o sopesamento é o principal
modo de o legislador elaborar leis infraconstitucionais, fase em que não
ocorreria proporcionalidade lato sensu. Ela também não ocorreria na
aplicação do caso concreto em hipóteses bem mais raras e nas quais
falte norma infraconstitucional a corporificar a restrição. Conquanto não
seja aplicável ao âmbito criminal (penal e processual penal), porque
nessa área sempre há necessidade de lei infraconstitucional prevendo a
restrição (princípio da legalidade material e processual), vale destacar a
razão pela qual, na sua concepção, não haveria proporcionalidade lato
sensu no âmbito legislativo ou em casos concretos raros para os quais
não haja lei infraconstitucional restritiva. Nas suas palavras: “A razão é
muito simples: se a aplicação da regra da proporcionalidade implica três
questões - (a) a medida é adequada para fomentar o objetivo fixado? (b)
a medida é necessária? e (c) a medida é proporcional em sentido
estrito? –, é mais do que óbvio que ‘deve haver uma medida concreta
que será testada’. Isso é o que deveria ter ocorrido, por exemplo, no
caso da ADI-MC 2566: nas três perguntas acima, bastaria substituir
‘medida’ por ‘vedação de proselitismo nas emissões de radiodifusão
comunitária’. Mas, nos casos em que se deve aplicar princípios
diretamente ao caso concreto, ‘falta essa variável de referência’. Se não
há medida adotada, não há possibilidade alguma de se adotar a regra
da proporcionalidade” (op. cit., p. 179).
É dessa forma que a doutrina vem aceitando que o exame da proporcionalidade na
área processual penal se faça tendo em vista a existência de pressupostos (legalidade e
justificação) e requisitos extrínsecos (judicialidade e motivação), antes que se realize o
exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito
(sopesamento ou ponderação), entendidos como “requisitos intrínsecos” da
proporcionalidade lato sensu.947
Essa opção expositiva da doutrina processual não conflita com a tradicional doutrina
dos direitos fundamentais, apenas muda a forma de classificar aquilo que os
constitucionalistas já aceitavam. A doutrina constitucional não nega, em verdade
pressupõe, de forma expressa ou implícita, que o exame do conteúdo da
proporcionalidade tenha como os dois primeiros passos o exame da “licitude do propósito
perseguido” e da “licitude do meio utilizado”,948 pontos que a citada doutrina processual
chama, respectivamente, de pressupostos material (justificação teleológica ou
constitucional) e formal (legalidade).

947 Essa divisão doutrinária foi concebida por Nicolas GONZALES-


CUELLAR SERRANO em sua obra Proporcionalidad y derechos
fundamentales en el proceso penal, Madrid: Editorial Colex, 1990, sendo
seguido por autores processuais penais pátrios como Antonio
SCARANCE FERNANDES, Processo penal constitucional, 5ª ed., São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, cap. 4, item 4.5, e Fábio Machado de
Almeida DELMANTO, Medidas substitutivas e alternativas à prisão
cautelar, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, cap. 2. Também preferimos
essa forma de analisar a proporcionalidade, nesse sentido v. o item 1 de
nosso Publicidade cit.,. Convém ressalvar, a bem da verdade, que não
obstante essa posição, há autores que preferem manter, mesmo para o
campo processual penal, a tradicional divisão da doutrina constitucional
da proporcionalidade apenas em seus elementos de “adequação”, de
“necessidade” e de “proporcionalidade em sentido estrito” (ponderação).
Nesse último sentido destacada, v., por todos, Flávia D´URSO, Princípio
constitucional da proporcionalidade no processo penal, São Paulo: Atlas,
2007, item 8 e seus subitens, e Denílson Feitoza PACHECO, O princípio
da proporcionalidade no direito processual penal brasileiro, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, cap. 7 a 9.
948 Nesse sentido, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral
cit., pp. 198/205. Citados autores inclusive deixam claro que o exame da
“adequação” e da “necessidade” “pressupõe” (op. cit., p. 209) e tem
como “exame preliminar” (op. cit., p. 204) a triagem no âmbito da “licitude
do propósito perseguido” e da “licitude do meio empregado”.
Na área criminal (penal ou processual penal), por força de disposições
constitucionais,949 por não se admitir intervenção estatal sem prévia lei (“nullum crimen
sine lege” e “nulla coactio sine lege”), o exame desses dois pressupostos se mostra
relevante. Porém, pelos influxos das correntes criminológicas e de distintas opções de
política criminal incidirem exatamente neste instante, para o exame da presunção de
inocência o estudo detido daqueles pressupostos torna-se indispensável.950
Como na área processual penal, ainda por força de disposições constitucionais, salvo
limitadas exceções,951 também não se admite qualquer intervenção estatal na esfera de
liberdade do cidadão sem ordem judicial motivada, mostra-se relevante o estudo, mesmo
que em breve referência neste capítulo, do que tem sido chamado de requisitos
extrínsecos da proporcionalidade lato sensu: a “motivação” e a “judicialidade”.
Todos esses aspectos (legalidade, justificação teleológica ou constitucional,
motivação e judicialidade, além das tradicionais adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito) serão analisados nos itens seguintes. A exposição,
contudo, se dará por duas perspectivas: a primeira, de que o destacado visa atender as
necessidades do tratamento que se dará à presunção de inocência no próximo capítulo; e,
a segunda, de que a análise dos sete pontos citados será feita, tanto quanto possível, pela
perspectiva do controle judicial da proporcionalidade da norma processual penal
infraconstitucional quer no plano abstrato (de previsão normativa) quer casuístico (de
aplicação e execução da norma).

4.5.1.1. (segue): legalidade e justificação constitucional

949 São dispositivos constitucionais nesse sentido: para o campo material


penal, o inciso XXXIX do artigo 5º da CR (“não há crime sem lei anterior
que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”) e, para o campo
processual penal, por influência do aspecto material (“substancial due
process of law”) do devido processo penal, o inciso LIV do mesmo artigo
(“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido
processo legal”).
950 Sobre o tema, v., notadamente, itens 5.4.2.3.1 e 5.4.2.3.2 infra, quando
se trata da motivação judicial na presunção de inocência como “norma
de juízo”.
951 Como exceção de medida restritiva autorizada pela Constituição sem
ordem judicial prévia, veja-se a possibilidade de prisão em flagrante
delito (art. 5º, inciso LXI, primeira parte, CR), a qual deverá ser, no
entanto, imediatamente comunicada ao juiz (art. 5º, inciso LXII, CR) para
que a verificação posterior de judicialidade da medida se dê no menor
tempo possível.
A legalidade processual penal, como pressuposto formal para o exame da
proporcionalidade, aufere toda sua justificação e impositividade do texto expresso da
Constituição. O preceito do devido processo legal (art. 5º, inciso LIV, CR), em sua feição
material (“substantive process of law”), associado às regras da legalidade geral (art. 5º,
inciso II, CR) e penal material (art. 5º, inciso XXXIX, CR), formam a base jusfundamental
que determina a imprescindibilidade de que toda medida estatal processual penal
restritiva de direito fundamental seja prévia, escrita, estrita e se dirija a um fim
constitucionalmente legítimo. Esse é o ponto de união entre os dois pressupostos tratados
neste item: é imprescindível uma lei formalmente correta e com um fim
constitucionalmente justificável.
Partindo-se desse ponto de necessária intersecção entre os dois pressupostos,
vejamos melhor como cada um deverá ser compreendido em sua extensão.
A noção de legalidade processual penal deriva, indubitavelmente, de todo o
desenvolvimento da regra da legalidade para o campo penal material.952 Se não se discute
mais a impositividade da parêmia “nulla poena nullum crimen sine lege”, o mesmo se dá
com sua correspondente projeção processual (“nulla coactio sine lege”) e pela qual devem
ser “tipificadas” tanto as condições de aplicação, como o conteúdo das intervenções
processuais no âmbito dos direitos fundamentais dos cidadãos.953 Nessa transposição de
áreas jurídico-criminais, os atributos inerentes a toda lei penal material serão também
ínsitos às normas processuais penais infraconstitucionais, de finalidade restritiva, pois
elas deverão ser prévias, escritas e estritas. Dessas características ressurte a anterioridade
e especificidade normativa. Tal qual no âmbito penal, não se pode restringir direito
fundamental sem lei processual anterior que determine o modo, a intensidade e a
finalidade da restrição.954

952 Nesse sentido, v. Fernando FERNANDES, O processo penal como


instrumento de política criminal, Coimbra: Almedina, 2001, pp. 89/91, e
Manuel JAÉN VALLEJO, Principios constitucionales y derecho penal
moderno: estudios sobre cuestiones de especial relevancia
constitucional, Buenos Aires: Ad-Hoc, 1999, pp. 28/31.
953 Nesse sentido, v. Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO,
Proporcionalidad cit., p. 77.
954 O mais recente Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal,
elaborado por Comissão nomeada pelo Senado Federal, determina, em
seu art. 514, inserido no Título I (“Disposições Gerais”), do Livro III (“Das
Medidas Cautelares”), a necessária legalidade de toda a medida
cautelar, in verbis: “As medidas catelares dependem de expressa
previsão legal e somente serão admitidas como meio absolutamente
indispensável para assegurar os fins de persecução penal e de
reparação civil, (...)”. Negando um “poder geral de cautela” para o juiz
penal, exigindo sempre a existência prévia de lei no campo da prisão
provisória, v. Silvio César Arouck GEMAQUE, Dignidade da pessoa
humana e prisão cautelar, São Paulo: RCS, 2006, pp. 77/78.
Exemplo dessa exigência já foi anteriormente citado quando se tratou do suporte
fático amplo.955 O Supremo Tribunal Federal, entendendo que a reserva qualificada de
lei, inserida no inciso XII do art. 5º, CR,956 não estava atendida pela aplicação dos
preceitos do Código de Telecomunicações, entendeu ilícita interceptação telefônica
realizada sem lei anterior e que viesse para colmatar aquela reserva de lei imposta
constitucionalmente, mesmo reconhecendo que a interceptação declarada ilícita tinha
decorrido de ordem judicial e sido baseada em lei prévia.957 No caso, havia justificação
constitucional, judicialidade e motivação para o ato; porém, por falta de lei processual
específica (“meio”) e exigida por determinação jusfundamental, a intervenção estatal
tornou-se violação (invasão indevida), constitucionalmente ilegítima, conduzindo à
ilicitude daquele meio de obtenção de prova.
Tão importante quanto a anterioridade, para nosso estudo, coloca-se a qualidade da
clareza e especificidade da lei processual; a lei deve ser estrita. Não obstante se admita a
analogia e a extensividade na aplicação da lei processual penal,958 não se poderá nela
inserir termos imprecisos ou abertos que permitam o descumprimento da justificação
(teleológica) que o legislador fixou em sua formação ou da justificação (constitucional)
que a Constituição exige para haver conformidade daquela norma.

955 Sobre o tema, já se tratou no item 4.4.1 supra, nota 57.


956 “XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal” – grifo
nosso.
957 Nesse sentido, v. nossos comentários, com farta indicação
jurisprudencial, em Interceptação telefônica, in Alberto Silva FRANCO e
Rui STOCO (coord.), Leis penais especiais e sua interpretação
jurisprudencial, 7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp.
1764/1774.
958 Preceitua o art. 3º do Código de Processo Penal: “A lei processual penal

admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o


suplemento dos princípios gerais de direito”.
A lei processual não poderá determinar qualquer restrição ou restrições que, mesmo
quando não vedadas constitucionalmente, se façam em moldes abertos e imprecisos a
facilitar o abuso em sua aplicação. Com isso não se afirma que somente poderá existir lei
para atender alguma restrição exigida constitucionalmente por meio de reserva legal.959
Pode haver elaboração de lei processual de conteúdo restritivo, porém, e exatamente por
ser destinada a melhor explicitar o preceito jusfundamental, ela deverá ser descrita da
forma mais precisa e estrita possível. Tudo a fim de evitar que, da vagueza do texto
normativo, derivem interpretações que atinjam o âmbito de proteção da norma em áreas
vedadas pela Constituição (sem justificação constitucional).960
Assim, não haver permissão constitucional expressa para se regulamentar espécies
de restrição patrimonial ao imputado (p.ex., apreensão, seqüestro, arresto, etc.) ou
algumas modalidades de prisão provisória (p.ex., prisão temporária), não significa afirmar
que esteja vedada a elaboração dessas previsões de leis restritivas. Ocorre, porém, que
essas previsões, para estarem conforme a Constituição, devem ser elaboradas de forma
estrita, clara e precisa. O excesso ou a lassidão no texto normativo das leis poderá ocorrer
tanto por meio de uma redação para além do constitucionalmente devido, como também
por uma redação extremamente vaga e imprecisa. Em ambos os casos (restrição legal
expressamente ampla ou restrição legal por meio de uma redação vaga) não haverá
justificação constitucional para a norma processual. No seu exame no plano abstrato,
uma previsão legal excessivamente restritiva (por amplitude redacional ou vagueza de
expressões) será considerada desproporcional (sem ponderação) e, portanto,
inconstitucional.
Entendido que é apenas por meio das normas infraconstitucionais que se podem
promover intervenções estatais nos direitos fundamentais do indivíduo, percebe-se que a
lei processual penal será o meio pelo qual essa intervenção se realizará. Não basta,
contudo, ser formalmente correta, deverá, no plano abstrato, ou seja, no instante de sua
formulação legislativa, possuir um propósito também constitucionalmente justificado, ou
seja, não poderá ter sua justificação teleológica contrária às determinações
constitucionais.

959 Giulio ILLUMINATI, La presunzione d´innocenza dell´imputado, 6ª ed.,


Bologna: Zanichelli Editore, 1984, pp. 36/37, tendo em vista a presunção
de inocência, afirma a necessidade de que para toda restrição à
liberdade, no curso do processo, deve haver reserva de lei.
960 Nesse sentido, v. Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral
cit., pp. 200/201.
Ao se compreender essa relação entre as justificações constitucionais da finalidade e
da existência da lei processual, entende-se, por exemplo, por que não se admitia a
tortura, como método de realização de depoimentos, muito antes de ela ser tipificada
como crime (Lei 9.455/97) em nosso ordenamento interno. Regular a atuação por meio
de tortura já seria uma inconstitucionalidade na elaboração do meio (normas processuais
que a instituíssem como técnica de interrogatório), porquanto seria a antítese do preceito
da dignidade da pessoa humana, que está à base de nossa Constituição.961
Deve haver, portanto, um controle da licitude do propósito a ser atingido pela lei
processual, ou seja, um controle da constitucionalidade da justificação teleológica da
norma.962 Controle que deve ser aferido no instante da elaboração da norma (instante
legislativo) e mantido no momento de sua aplicação. O desvirtuamento da finalidade de
uma medida constritiva processual penal para atingir propósito não previsto pelo
legislador torna inconstitucional a medida. Uma norma infraconstitucional elaborada
com fins ilegítimos (contrários ao constitucionalmente determinado) não resistirá ao
crivo da proporcionalidade stricto sensu no campo abstrato, ou seja, será declarada
inconstitucional. Porém, mesmo se abstratamente constitucional, também resultará
desproporcional, agora no campo concreto de sua aplicação, se o fim, para o qual foi
criada, for desvirtuado em sua realização casuística. E a vagueza e imprecisão no instante
de redigir restrições a direitos fundamentais contribui para esse desvirtuamento
(consciente ou inconsciente).

961 Sobre a dignidade da pessoa humana como fundamento constitucional


do Estado brasileiro, v. item 3.5.2 supra.
962 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., pp. 69
e 99/106, em tudo aproxima sua justificação teleológica dos fundamentos
constitucionais que se deverá obedecer para a elaboração do texto
normativo, chegando a afirmar que haverá justificação teleológica se
houver legitimidade constitucional e relevância social do fim almejado
com a norma. Por isso tratarmos, no presente item, justificação
teleológica como sinônimo do que a doutrina dos direitos fundamentais
denomina “justificação jusfundamental” ou “justificação constitucional”
para as restrições.
Exemplos de desvios de finalidade de normas processuais por descumprimento do
propósito estabelecido ou pela vagueza dos termos podem ser constatados quando se
observa, respectivamente, a prisão temporária e a expressão “ordem pública” que autoriza
a prisão preventiva. Quanto à prisão temporária, percebe-se que sua utilização tem sido
excessiva, e sua principal finalidade legislativa? qual seja, ser imprescindível para a
investigação policial de um rol taxativo de crimes? tem sido deturpada para transformar
essa espécie de prisão provisória em forma de pressão psicológica (violando a vedação
constitucional da tortura963) e de coagir o preso a depor (violando outro preceito
fundamental que lhe garante o direito ao silêncio964).965 Sobre a incerteza emprestada pela
expressão “ordem pública”, que será tratada melhor adiante,966 cabe apenas apontar que,

963 Artigo 5º, inciso XLIII, CR: “a lei considerará crimes inafiançáveis e
insuscetíveis de graça ou anistia a prática de tortura (...)”.
964 Artigo 5º, inciso LXIII, CR: “o preso será informado de seus direitos, entre

os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência


da família e de advogado”.
965 Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 448/449.
966 Sobre o tema, v. item 5.4.1.2.1.3 infra.
não raro, se utiliza dessa forma lingüística imprecisa e aberta para se prender
cautelarmente, p.ex., para “garantir a credibilidade da Justiça”.967
A legalidade fixa a constitucionalidade do “meio” e a justificação teleológica
estabelece a constitucionalidade do “fim”; dois pontos cruciais no exame da
proporcionalidade da norma infraconstitucional processual penal.
É nesse ponto de intersecção de ambos os pressupostos que se inserem as diversas
correntes criminológicas e escolhas de política criminal violadoras da presunção de
inocência. Conforme está exposto no capítulo seguinte, a elaboração de uma norma
processual penal, cuja legalidade e justificação estejam conformes à presunção de
inocência, mesmo que tenham função restritiva, é o primeiro e mais importante instante
de proteção daquele direito fundamental.968

967 Vejam-se, como exemplos, os seguintes julgados: 1 - “Habeas corpus.


(...).”Operação Themis”. (...). Prisão preventiva decretada com base no
sério agravo à credibilidade das instituições públicas. Possibilidade.
Necessidade da custódia demonstrada em dados concretos. Ordem
denegada. Liminar do STJ concedendo alvará de soltura ao paciente.
Acatamento da decisão para manter o paciente em liberdade. I - À luz da
nova ordem constitucional que consagra o princípio da presunção da
inocência entre as garantias individuais (CF, artigo 5º, LVII), a prisão
preventiva é medida de exceção, somente podendo ser decretada
quando presentes os pressupostos previstos no artigo 312, do CPP, e
desde que haja necessidade incontrastável da medida. II- O sério agravo
à credibilidade das instituições públicas pode servir de fundamento para
a prisão preventiva. Precedente do STF. (...) VII – Ordem denegada (...)”
(TRF 3 – 5ª T. – HC 2007.03.00.082262-4 – j. 22.10.2007 – DJU
13.11.2007). 2 - “‘Habeas corpus’. (...). Prisão preventiva. Presença dos
requisitos legais da custódia cautelar. Reconhecimento do requisito legal
expresso no ‘fumus boni iuris’. Presença de risco à garantia da ordem
pública. Credibilidade da justiça. Necessidade de manutenção da
tranqüilidade pública. Ordem denegada. (...) 6. Mantida deve ser a
custódia cautelar quando, provada a existência do crime imputado e a
presença de indícios de autoria, resultar demonstrado o requisito legal
expresso no chamado ‘periculum libertatis’, que decorre, no caso, da
necessidade da custódia para fins de garantia da ordem pública. 7. O
conceito de ordem pública não está circunscrito, exclusivamente, ao de
constituir fundamento necessário para se prevenir a reprodução de fatos
criminosos, mas, também, engloba a idéia de acautelar o meio social e a
própria credibilidade da justiça, em face da gravidade do crime e de sua
repercussão. Repousa, principalmente, na necessidade de ser mantida a
tranqüilidade pública e assegurada a noção de que o ordenamento
jurídico há de ser respeitado para que possa reinar a segurança no meio
social. (...) 9. Ordem denegada” (TRF 3 – 5ª T. – HC 2006.03.00.037734-
0 – j. 10.07.2006 – DJU 15.08.2006).
968 Sobre o tema, v. itens 5.2 e 5.3 infra.
4.5.1.2. (segue): judicialidade e motivação

Ao se analisar as normas processuais penais infraconstitucionais, constata-se que,


nos dois níveis de incidência da proporcionalidade (verificação da inconstitucionalidade
da lei e de sua correta aplicação), o seu exame depende do Poder Judiciário. O papel do
juiz no controle da justificação constitucional das normas processuais penais é
irrefragável.
A imposição dessa constante presença do órgão judiciário estatal tem lastro
constitucional pelas regras de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, inciso XXXV, CR) e, outrossim, que “ninguém será
processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art. 5º, inciso LIII, CR).
De forma específica, para as prisões provisórias, a Constituição determina que “a prisão
ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária” (art. 5º, inciso LXV), e de
forma mais abrangente ao direito de locomoção por decisão judicial alcançada por meio
de habeas corpus (art. 5º, inciso LXVIII). Como outro meio de tutela constitucional de
direitos fundamentais diversos do direito de locomoção, há o mandado de segurança
penal (art. 5º, inciso LXIX), também este instrumento constitucional somente decidido
por autoridade judiciária.
Esses preceitos constitucionais determinam que o juiz penal não poderá se afastar,
em qualquer instante da persecução penal, de seu poder/dever de julgar todos os atos
estatais constritivos da esfera de direitos fundamentais do indivíduo (p.ex., o de
liberdade, de intimidade ou de privacidade, o patrimonial, além de todos os direitos
fundamentais de cunho processual penal). Assim, o julgador deverá analisar os fatos e o
direito, interpretando-os e aplicando-os, em cada instante da persecução, não apenas no
momento de decisão do mérito da causa.
A “reserva de jurisdição”, entendida como uma garantia constitucional decorrente
do Estado Democrático de Direito e da cláusula do devido processo legal, atribui ao
Poder Judiciário, e somente a ele, o poder/dever de decidir conflitos ou controvérsias
sobre a norma aplicável em uma situação concreta.969 No âmbito criminal (penal e
processual penal), a reserva de jurisdição compõe-se de um duplo aspecto: o “monopólio
da última palavra” ou “monopólio dos tribunais” e, também, o “monopólio da primeira
palavra” ou “monopólio do juiz”.970 Na área processual penal, portanto, deverá o
magistrado julgar (analisar e decidir) sempre e na medida em que o ato estatal praticado e
requerido interfira na esfera de direitos do cidadão.971
Ocorre que, no exercício de seu mister, ao juiz não é dado decidir de qualquer
forma, mas apenas de modo motivado e em obediência aos preceitos constitucionais. Por
isso a motivação também é um preceito constitucional.972
Assim, uma intervenção estatal na área processual penal somente poderá ocorrer
com lei e finalidade constitucionais e quem verificará essa ocorrência, tanto no plano
abstrato do exame da (in)constitucionalidade da norma quanto no plano concreto da sua
aplicabilidade casuística, será uma autoridade judiciária constitucionalmente competente
e por meio de uma decisão motivada.

969 Sobre o tema, v. nossas breves referências em Alberto Silva FRANCO e


Maurício Zanoide de MORAES, Devido processo legal, in Alberto Silva
FRANCO e Rui STOCO (coord.), Código de processo penal e sua
interpretação jurisprudencial, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004, v. 2, cap. I, item 2.22, pp. 331/336.
970 Sobre a vinculação da juridicidade à presunção de inocência, v. Luigi
FERRAJOLI, Diritto e ragione: teoria del garantismo penale, 3ª ed., Bari:
Laterza, 1996, pp. 559/560. Explica o autor, com base em seu axioma A7
(“nulla culpa sine iudicio”, para o autor, “principio di giurisdicionalità,
anch`esso in senso lato o in senso stretto”) e sua tese T63 (“nullum
iudicium sine accusatione, sine probatione et sine defensione”), que não
se declare a culpa do cidadão até que ela esteja provada de modo
definitivo, com todos os corolários que disso decorre. Sobre a relação
entre presunção de inocência e reserva de jurisdição, v., ainda: Antônio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit., item 7; Giulio
ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 36/37; e Alexandra VILELA,
Considerações cit., p. 102.
971 Esse ponto, um tanto óbvio no presente estágio do trabalho, será de
grande utilidade quando tratarmos do âmbito de incidência do “in dubio
pro reo” e da necessária motivação judicial específica e objetiva, no
capítulo seguinte, respectivamente nos itens 5.4.1.3 e 5.4.2.3 e seus
subitens infra e, também, do “favor rei”, item 5.4.1.2 e seus subitens
infra.
972 Art. 93, inciso IX, CR: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder
Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena
de nulidade (...)”.
Se com os pressupostos extrínsecos, citados no item anterior, se identifica a norma
(lei processual penal) e sua finalidade (justificação teleológica/constitucional), nesse item
a preocupação é definir “quem” (juiz penal) analisa e decide as questões e “como”
(motivação) se darão essas análise e decisão sobre a constitucionalidade daqueles “meio”
(lei) e “fim” (justificação).973
No presente ponto, o mais relevante para o tema da presunção de inocência não é
tanto que sempre cabe ao órgão judiciário constitucionalmente competente decidir, mas,
principalmente, como deve ser a estrutura e conteúdo (motivação) dessa decisão para se
demonstrar que os pontos aceitos e desenvolvidos pelo julgador não violaram, em
nenhum instante de seu iter racional, aquele direito fundamental. Não obstante a
matéria seja tratada mais adiante, deve-se fazer breves considerações sobre a importância
política e jurídica da motivação na área criminal.974
Em um Estado Democrático de Direito, a motivação vem justificada não apenas por
razões técnico-jurídicas, mas também por razões políticas. Politicamente a necessidade
de motivação está ligada à noção de controle contra as arbitrariedades dos órgãos
judiciais pela efetiva e correta aplicação do direito.975 O exercício do poder público, em
qualquer de seus aspectos, notadamente quando ligado à restrição de uma garantia
fundamental (no caso, a presunção de inocência), deve ser realizado segundo padrões de
“legitimação racional e objetiva”. Deve ser orientado “por procedimentos que satisfaçam
as exigências de uma ‘correção argumentativa’” como forma de buscar o “consenso (...)
por meio de uma atuação estatal que possa refletir os anseios e valores compartilhados
pela maioria dos membros da comunidade política”.976

973 Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., capítulo I, itens 1.2 e 1.3, após esclarecer
que a “legalidade estrita” deriva do “convencionalismo penal”, sendo o
primeiro elemento constitutivo do modelo garantista, transpõe-na ao
processo penal por meio do segundo elemento desse modelo garantista,
denominado por ele como “cognitivismo processual”, o qual, por sua vez,
vem complementar/assegurar aquela legalidade estrita e deve ser
compreendido como “jurisdicionalidade estrita”.
974 Maiores considerações sobre a formação ideológica dos magistrados e a

influência que isso projeta sobre seu modo de apreender os fatos e o


direito no instante de decidir, v. item 5.4.2.3 e seus subitens infra.
975 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., pp.

141/142.
976 Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação das decisões

penais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 76.


Essa legitimidade política propiciada pela motivação não significa dizer que o
julgador deverá tornar-se subserviente da opinião pública ou da “opinião publicada”,
assumindo discursos punitivos ou liberais desprovidos de justificação constitucional.
Deve haver, na consciência judicial, uma clara diferença entre a “responsabilidade social
do juiz” de informar com clareza e precisão todos os caminhos fáticos e jurídicos
escolhidos em sua decisão, sem com isso se deixar guiar por razões outras que se
distanciem dos fatos demonstrados nos autos ou das razões constitucionais impostas pela
lei.977 É a manutenção da legitimidade e do prestígio jurisdicional pela coerência contida
na decisão diante das condições fático-jurídicas, não pela obrigatória identificação de sua
decisão com razões estabelecidas por outros critérios manipuláveis e momentâneos.978
Pela perspectiva jurídica, o dever constitucional, de que todas as decisões judiciais
sejam motivadas, busca uma maior certeza do direito pela intersubjetividade criada pelos
constantes debates técnicos sobre pontos e aspectos da ciência jurídica.
Intersubjetividade que, exposta ao reexame jurisdicional interno (mediante recursos), ou
ao debate doutrinário, poderá ajudar no desenvolvimento dos institutos jurídicos.979
A motivação das decisões judiciais penais, portanto, permitirá não apenas constatar
as razões que levaram o julgador a autorizar ou não a intervenção estatal e em que
medida isso se dará. Mas também, e principalmente para a presunção de inocência, se na
construção da argumentação empreendida e revelada na motivação houve a interferência
de qualquer fator criminológico ou de política criminal inconstitucionais, e se a
interpretação dos dispositivos se deu conforme a “presunção de culpa”, implícita ao
sistema processual penal infraconstitucional, ou, ao contrário, em consonância com
aquele preceito fundamental que é objeto de nosso estudo: a presunção de inocência.980

4.5.1.3. (seque): adequação

977 Nesse sentido, v. Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione cit., pp. 616/618, e
Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., pp. 80/86.
Sobre a interferência da mídia na presunção de inocência como “norma
de juízo”, por meio de “juízos paralelos” que violam aquele direito
fundamental ao influírem na decisão judicial, v. item 5.5.1.1 infra.
978 Nesse sentido, v. Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO,
Proporcionalidad cit., p. 142.
979 Nesse sentido, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação

cit., pp. 86/89; Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO,


Proporcionalidad cit., p. 142; e Virgílio Afonso da SILVA, Direitos
fundamentais cit., item 4.4.4.1.
980 Nas palavras de Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit.,

p. 86, “se na aplicação da lei não é possível excluir certa


‘discricionariedade interpretativa’, trata-se, então, de assegurar pela
explicitação dos motivos um ‘controle’ que permita verificar se os
espaços de criação judicial foram utilizados de forma legítima”.
A adequação, primeiro requisito da proporcionalidade a ser analisado, consiste em
um exame empírico realizado sobre a aptidão do meio contribuir para a consecução do
fim almejado. É um exame empírico porque deve ter em consideração uma relação
comprovada ou comprovável de aptidão (idoneidade) segundo experiências da vida,
pesquisas científicas, exames de probabilidade, enfim, qualquer modo pelo qual se possa
demonstrar que por aquele meio específico é possível “fomentar” ou “facilitar” a
realização do propósito almejado.
No exame da adequação, portanto, não se deve considerar que o meio “deva”,
necessariamente, implicar a realização completa do fim, já que é impossível se
determinar, nesse instante avaliativo inicial, se o emprego do meio realmente levará ao
fim almejado.981 Para que o meio seja considerado adequado basta que se possa
estabelecer uma relação de causalidade entre ele e o fim.982 Assim, uma medida é
inadequada somente se for completamente imprópria a sua relação de causalidade; caso
contrário, havendo a mínima aptidão para fomentar a consecução do resultado, deverá
ser considerada idônea.983
Como a adequação é uma constatação de aptidão, é natural se concluir pela
existência de medidas mais ou menos idôneas; isso se relaciona com o conceito de
eficiência da medida em relação ao fim. No âmbito processual penal, seja ao se elaborar a
lei seja no instante de requerê-la ao juízo, tem-se em conta características como a
qualidade e a quantidade da medida.
Assim, há a previsão legal de que para a mesma medida (p.ex., a prisão temporária,
Lei 7.960/89) – que sempre deveria ter o propósito de somente ser decretada se
indispensável para a investigação – haja uma variação do tempo de sua duração
(quantidade). No exemplo citado, será de cinco dias (para os crimes previstos no rol do
inciso III do art. 1º da referida lei) ou de trinta dias (para os crimes definidos por lei
como hediondos, para a tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o
terrorismo).984 Ainda tratando de prisão temporária, também se verifica que ela não
precisa ter necessariamente esse prazo máximo de cinco ou de trinta dias de duração
sempre e em todos os casos, mas poderá ser decretada em prazos menores pelo juiz, ou
até mesmo haver a liberação do preso antes do término desses marcos. Logo, o fator
quantidade também vale nessa perspectiva.

981 Sobre a idéia de que o meio adequado é aquele que contribui e é apto a
colaborar com a realização do fim, mas não uma garantia de sua
realização plena, v., com citações bibliográficas nesse sentido, Virgílio
Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., item 4.4.2, e também Dimitri
DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit., pp. 207/210.
982 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., p. 156.
983 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., p. 157.
984 Conforme previsto no art. 2º, § 4º, da Lei 8.072/90.
Nessa constatação de eficiência, é necessário se considerar critérios objetivos como a
quantidade e a qualidade do meio em relação ao fim. No processo penal, tais
características devem ser levadas em conta não para que se exclua definitivamente um
meio como idôneo, mas para que, ao se passar ao próximo ponto (a “necessidade”), essas
características (quantitativa e qualitativa) dos meios e seus diferentes graus de eficiência
sejam tomadas em consideração.985
Importante, ainda, destacar que, no exame da idoneidade do meio, para muitos
autores não se pode deixar de considerar tanto esses aspectos objetivos, já destacados
(quantidade e qualidade), quanto os aspectos subjetivos. Notadamente no processo penal,
campo no qual deve preponderar o exame casuístico da restrição do direito fundamental
em face de uma pessoa específica.986
O exame da adequação deve ser feito de modo individualizado a cada cidadão titular
do direito a ser restringido. O sujeito passivo da medida restritiva deve ser identificado e
suas características devem ser consideradas no exame da idoneidade do meio tanto no
instante que se requer a medida, quanto no da decisão que a julgue (deferindo-a ou
não).987 A não individualização geraria uma maior dificuldade no instante de se avaliar a
idoneidade da medida requerida. Ainda integra a preocupação do aspecto subjetivo, na
avaliação da idoneidade, que a medida seja determinada em face de uma pessoa certa,
não seja estendida a outrem sem um novo exame de proporcionalidade (em todos os seus
pressupostos e requisitos) e, também, que uma medida não seja indeferida para uma
determinada pessoa porque se mostra inidônea em face de outra.988

985 Sobre o exame quantitativo e qualitativo como exigências derivadas do


exame da adequação, v. Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO,
Proporcionalidad cit., pp. 160/179.
986 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., pp.
157/160.
987 Sobre a necessidade da motivação indicar as características da pessoa
a ser submetida à prisão preventiva e a razão da indispensabilidade da
medida em face dessa pessoa, v. Antônio MAGALHÃES GOMES FILHO,
A motivação cit., pp. 225/226, in verbis: “Finalmente, é preciso observar
que a justificação sobre a presença das apontadas exigências cautelares
deve ser individualizada, sempre que houver mais de um acusado no
mesmo processo, levando-se em conta as condições pessoais de cada
um deles na constatação do ‘periculum libertatis’. Seria de todo arbitrário,
caracterizando absoluta falta de motivação, indicar globalmente uma
situação que autorize a prisão de vários acusados, sem consignar os
dados individuais que indicam a necessidade da segregação”.
988 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., pp.
179/185.
Essa preocupação de vincular a medida restritiva processual penal a pessoa
específica, em face da qual ela é solicitada, vem clara na determinação do parágrafo único
do art. 2º da Lei 9.296/96, denominada Lei das Interceptações Telefônicas.989 Tal
parágrafo preceitua que haja identificação dos investigados quando do instante tanto da
requisição da medida quanto de seu deferimento. O descumprimento de tais cautelas
propiciou, conforme noticiado pela imprensa nacional, que juíza do interior da Bahia,
supondo deferir interceptações em linhas telefônicas dos investigados a ela apresentados,
acabou por autorizar a quebra do sigilo das comunicações telefônicas de pessoas
estranhas à investigação. Outra situação, que relaciona a verificação da adequação à
pessoa, pode ser imaginada em situações em que várias pessoas são acusadas de crimes
diversos, sendo que uma delas é suspeita de cometer apenas crimes punidos com
detenção. Nessa hipótese, por determinação legal (art. 2º, inciso III, da mesma Lei
9.296/96), a interceptação não poderá ser determinada em face daquele indivíduo, mas
poderá ser determinada, se for o caso, para os demais acusados de crimes punidos com
reclusão.
Importante ressaltar que no exame da adequação, embora seja natural que a medida
tenha constatada a sua idoneidade em face de aspectos objetivos e subjetivos, a
preocupação não deve ser a de determinar “a” medida mais ou menos idônea, mas apenas
identificar quais são “as” medidas que sirvam, em maior ou menor grau, para promover a
realização do fim. A triagem comparativa entre as características será feita apenas no
exame da “necessidade”

4.5.1.4. (segue): necessidade

Somente após passar pelo crivo anterior da adequação é que uma norma processual
penal restritiva poderá ter examinada a sua necessidade, segundo requisito da
proporcionalidade lato senso. A adequação é um filtro seletivo em relação à necessidade,
só será necessária uma medida que antes se mostrou idônea.
Diante dos meios declarados idôneos procede-se a um exame comparativo entre eles
para se determinar qual é o necessário. Quando se fala em comparação, natural se
perguntar quais são as variáveis a serem comparadas. No caso da avaliação comparativa
da necessidade as variáveis são: a) o grau de eficiência da medida em relação ao fim
almejado e b) o grau de restrição do direito fundamental a ser restringido.990 Como se
percebe, o exame da necessidade não é tão linear e objetivo quanto o anterior
(adequação/idoneidade), implicando tomar uma posição sobre qual dessas duas variáveis
(alíneas “a” e “b” supra) terá prevalência.

989 “Em qualquer hipótese deve ser descrita com clareza a situação objeto
da investigação, inclusive com a indicação e qualificação dos
investigados, salvo impossibilidade manifesta, devidamente justificada”.
990 Nesse sentido, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 4.4.3.
É natural e intuitivo, já que a idéia de proporcionalidade nasce para estabelecer um
limite às restrições de direitos fundamentais, que sempre a variável prevalente será a da
menor restrição prevista por norma processual penal. Logo, desprezar-se-iam todas as
medidas idôneas em favor da que menos restringisse o direito. O raciocínio estará correto
apenas se as medidas comparadas e desprezadas forem igualmente eficientes em face do
fim almejado e tiverem apenas variações de lesividade ao direito que se quer restringir na
menor medida possível. Neste caso, para dar cumprimento à finalidade da
proporcionalidade, estaria protegido na maior medida possível o direito ao se optar pela
medida processual penal menos restritiva.991
Ocorre, porém, que a resposta não poderá ser sempre e de modo definitivo que a
medida, a ser escolhida dentre as possíveis (adequadas), sempre será a de menor restrição
ao direito fundamental que se quer proteger. Poderá haver situações em que as medidas a
serem comparadas apresentem diferentes graus de eficiência no fomento do propósito
almejado e lesem também de formas diferentes o direito fundamental que se quer
proteger. Além do que, poderá ocorrer que entre as medidas comparadas haja igualdade
de eficiência quanto ao propósito almejado (sejam igualmente idôneas), mas a que menos
lesa o direito a ser protegido tenha efeitos prejudiciais a outros direitos fundamentais.
Em situações difíceis como essas, escolher qual a medida processual penal mais
proporcional para o caso é a tarefa a ser empreendida no exame da proporcionalidade em
sentido estrito.

4.5.1.5. (segue): proporcionalidade em sentido estrito

991 Nesse sentido, v. Suzana Toledo de BARROS, O princípio cit., pp. 77/79,
com expresso apoio em Robert Alexy.
Há uma respeitável parcela da doutrina dos direitos fundamentais que não aceita
esse instante do exame da proporcionalidade, entendendo que todas as escolhas, mesmo
para aqueles casos mais difíceis citados ao final do item anterior, devam ser
empreendidas até o instante da necessidade.992

992 Com referência bibliográfica desse pensamento doutrinário, v. Dimitri


DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral cit., pp. 214/223. Na
crítica formulada a este terceiro instante do exame da proporcionalidade
lato senso, o ponto mais destacado é um alegado subjetivismo
extremado e baseado em escala de valores formada sobre padrões e
escolhas criticáveis, e que isso tem “dado azo à usurpação da
competência de decisão política própria dos órgãos do Poder Legislativo
por órgãos do Poder Jurisdicional. Do ponto de vista material, os direitos
fundamentais são heterogêneos e isso impede um sopesamento que só
seria possível entre elementos comensuráveis. Do ponto de vista formal,
os direitos possuem a mesma força jurídica e isso impede a
hierarquização. Isso indica a impossibilidade de se efetuar uma
ponderação fundamentada na Constituição. Assim sendo, quando um
julgador constata que uma restrição é adequada e necessária, deve
encerrar o exame de constitucionalidade ainda que discorde da opção do
legislador” (op. cit., p. 230). Para esses autores citados, feita a valoração
pela adequação e pela necessidade, em caso de dúvida ou equivalência
não resolvida pela distribuição do ônus argumentativo dos interessados,
deverá prevalecer a perspectiva do titular do direito violado e a escolha
deverá se dar segundo o “critério interpretativo geral ‘in dubio pro
libertate´” (op. cit., pp. 211/213 e 222/223). Para uma resposta a essa
linha doutrinária, v. Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit.,
item 4.4.4.1, e de forma mais precisa e exauriente, do mesmo autor, v. O
proporcional e o razoável, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 798, abril,
2002, item 5.
É de fato relevante essa última fase do exame e representado pela proporcionalidade
em sentido estrito (ponderação), porque nela se coloca em destaque que uma medida
idônea e necessária para um fim almejado e específico pode aniquilar de forma completa
outros direitos fundamentais no caso concreto e que não tinham sido considerados
quando da elaboração da norma processual, portanto, não podem deixar de ser
considerados no instante da decisão judicial.993
Fazer apenas uma relação entre meio e fim específicos, deixa à margem de qualquer
proteção outros direitos fundamentais tão relevantes quanto aquele direito que se
pretende garantir da restrição a ser implementada.

993 Nesse sentido, Suzana de Toledo BARROS, O princípio cit., p. 81, assim
esclarece, com base em passagem de Robert Alexy: “A diferença básica
entre o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade em
sentido estrito está, portanto, no fato de que o primeiro cuida de uma
otimização com relação a possibilidades fáticas, enquanto este envolve
apenas a otimização de possibilidades jurídicas. A proporcionalidade
‘stricto sensu’ encontra seu verdadeiro sentido quando conectada aos
outros princípios da adequação e necessidade e, por isso mesmo,
representa sempre a terceira dimensão do ‘princípio da
proporcionalidade’. Quando estão em causa situações nas quais não se
pode concluir qual seria o meio menos restritivo, porque a constelação
do caso é bastante ampla e com várias repercussões na ordem
constitucional, somente a ponderação entre valores em jogo pode
resultar na escolha da medida. Imagine-se a situação em que M1 e M2
são meios igualmente adequados para a realização de um fim F,
reclamado pelo direito D1. M2 afeta a realização de D2 menos que M1,
mas, em contrapartida, M1 é menos restritivo a D3 que M2. Nesse caso,
a máxima da necessidade não permite decisão alguma entre as três
hipóteses que surgem: a) eleger M1, realizar D1 e, com isto, estabelecer
preferência de D3 frente a D2; b) eleger M2, realizar D1, dando-se
prevalência a D2 em relação a D3, ou c) não eleger nem M1 nem M2,
elegendo preferência de D2 conjuntamente com D3 frente a D1.
Qualquer que seja a escolha, esta será dada pela justificativa da
precedência de um direito sobre o outro, exigida pela máxima da
proporcionalidade em sentido estrito”.
Nesse sentido é que se compreende quando se afirma que por esse nível de
verificação da proporcionalidade strictu sensu o que se busca definir é se a medida
processual penal restritiva, não obstante idônea e necessária, irá além daquilo que a
realização do fim almejado seja capaz de justificar. Evita-se, com o exame desse terceiro
requisito da proporcionalidade, o exagero de medidas que, tendo em vista apenas aquela
relação “meio-fim” analisada nas fases anteriores, mostrou-se adequada e necessária.994
Para um exemplo da área criminal, pode-se citar a prisão provisória. Se há o receio,
fundado em elementos objetivos e constantes dos autos, de que uma pessoa sairá do país
e, portanto, poderá frustrar o resultado eventualmente condenatório da ação penal,
indiscutivelmente a prisão é o mais eficiente meio para diminuir aquele receio. Por outro
lado, não se nega que a prisão provisória não elimina apenas a liberdade do imputado ir e
vir, mas também vários outros direitos fundamentais, tais como o direito ao trabalho, à
privacidade, à educação, à saúde, ao pleno exercício da autodefesa, o direito à
convivência familiar, entre tantos outros. Logo, disso se extrai que, não obstante
eficiente, a prisão é a mais invasiva das medidas coativas, reduzindo (parcial ou
totalmente) vários outros direitos. Dessa forma, em uma análise valorativa daquela
medida (prisão) em face do receio de fuga ao exterior, melhor à preservação dos demais
direitos que antes de prender seja determinada a apreensão do passaporte do imputado e
sejam avisadas as autoridades de controle das fronteiras. Em uma avaliação valorativa
entre as medidas adequadas e necessárias e o rol de direitos atingidos, prevalecerá a
escolha pela medida menos invasiva, a menos que, no caso concreto, esteja demonstrado
que a prisão é a única forma para se garantir a proficuidade processual.995
Se a adequação é um juízo objetivo e a necessidade é um juízo comparativo, a
proporcionalidade stricto sensu, por sua vez, é um juízo valorativo996 e é nesse âmbito
que se realiza a ponderação indispensável entre todos os direitos fundamentais afetados
ou afetáveis pela medida processual penal, já definida como idônea e necessária, para se
determinar se ela será ou não realizada.997 Haverá um sopesamento entre os direitos
fundamentais para se verificar se o fim perseguido pela medida processual penal (meio)
justifica a restrição, muitas vezes total, de outros direitos fundamentais.

994 Nesse sentido, v. Antonio SCARANCE FERNANDES, Processo cit., pp.


59/60; Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo
Gustavo Gonet BRANCO, Curso cit., p. 322; Virgílio Afonso da SILVA,
Direitos fundamentais cit., item 4.4.4; José Joaquim Gomes
CANOTILHO, Direito Constitucional cit., p. 270; e Wilson Antônio
STEINMETZ, Colisão cit., p. 152.
995 Sobre o tema da necessária verificação da proporcionalidade nas
medidas coativas, v. itens 5.3.2 e 5.4.1.2.1.3 a 5.4.1.2.1.5 infra.
996 Nicolas GONZALES-CUELLAR SERRANO, Proporcionalidad cit., pp.
225/226.
997 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Teoría cit., pp. 114/115; Martin
BOROWSKI, La estructura cit., p. 131; Suzana de Toledo BARROS, O
princípio cit., pp. 82/84; e Wilson Antônio STEINMETZ, Colisão cit., pp.
152/153, entre outros autores.
4.5.2. Conteúdo essencial do direito fundamental

A doutrina constitucional estrangeira, notadamente a alemã, a espanhola e a


portuguesa, aponta que a idéia de “conteúdo essencial” é um limitador das intervenções
no âmbito dos direitos fundamentais. Isto porque, nas Constituições daqueles países, há
dispositivos que impõem ao legislador respeitar o “conteúdo essencial” dos direitos
fundamentais.998
Mesmo sem dispositivo semelhante em nosso texto constitucional, a doutrina
nacional vem aceitando, não sem exceções,999 aquela concepção como implícita na idéia
de proteção aos direitos fundamentais que a nossa Constituição claramente determina.1000
Não se pode deixar de inserir no âmbito dessa inegável preocupação do constituinte
em garantir, da melhor forma possível, o respeito e a realização dos direitos
fundamentais, a noção de “conteúdo essencial”.
A idéia básica que está a nortear essa concepção de “conteúdo essencial”, pouco
importando as variantes teóricas que pretendem explicá-la,1001 é a de que o direito
fundamental deve ter em seu interior algo cuja limitação, mais ou menos intensa, não
possa ser feita sem a devida justificação constitucional. É, portanto, uma natural
resistência que os direitos fundamentais oferecem para sua autoproteção em face de
intervenções indevidas ou de inércias violadoras. Uma garantia a mais que possuem
contra uma tendência (estatal e privada) em violá-los ou não efetivá-los.
No processo penal, notadamente no capítulo da presunção de inocência, essa
garantia deve ser analisada tanto em sua esfera negativa, de proteção contra atos
violadores de seu conteúdo, quanto em sua faceta positiva, no sentido de impor seu
respeito a todos órgãos públicos e aos agentes privados e sua necessária otimização por
parte, primordialmente, do Estado, em suas três esferas de poder.

998 Na Constituição Portuguesa de 1976, a previsão vem no art. 18, inciso


III. Na atual Constituição Espanhola, desde 1978 está inserido no art.
53.1. Para o direito alemão, está no art. 19.2 da Lei Fundamental de
1949.
999 Há corrente doutrinária que, pela falta de dispositivo legal expresso em

nossa Constituição, prefere não tratar do tema no direito brasileiro.


Nesse sentido, v., Dimitri DIMOULIS e Leonardo MARTINS, Teoria geral
cit., p. 168.
1000 De forma expressa, afirmando que a noção de conteúdo essencial

advém do modelo garantístico de nossa atual Constituição, v. Gilmar


Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires COELHO, Paulo Gustavo Gonet
BRANCO, Curso cit., pp. 309/311.
1001 Sobre a teoria absoluta e a teoria relativa do conteúdo essencial e

nossa preferência pela segunda corrente doutrinária como a melhor e


mais apta à tutela dos direitos fundamentais, v. nossos comentários no
item seguinte.
Embora todos concordem com a existência dessa outra garantia dos direitos
fundamentais, desse outro limite às intervenções/inércias violadoras, e qual seja sua
finalidade (conferir maior proteção àqueles direitos), há uma divergência teórica quando
se busca explicar como se forma esse “conteúdo essencial”.

4.6. -Considerações finais: conteúdo essencial relativo como melhor forma


de proteção aos direitos fundamentais

Iniciamos este capítulo demonstrando a necessária relação entre as dimensões


objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais e as respectivas teorias objetiva e subjetiva
do conteúdo essencial desses direitos.1002 Para essas dimensões o conteúdo essencial
também é garantia daqueles direitos fundamentais na medida em que limita as
intervenções/inércias, seja em sua porção objetiva (bem jurídico constitucional como
“instituição jurídica”) seja em seu aspecto subjetivo (direito subjetivo de cada indivíduo).
Dessa forma, por aquelas dimensões, o conteúdo essencial tem a finalidade de proteger
tanto o direito como “bem de todos”, quanto o direito de cada indivíduo em seu exercício
particularizado e cotidiano.
Por todo o presente capítulo, de modo diverso, sem perder a referência de que a
noção de conteúdo essencial funciona como garantia de proteção aos direitos
fundamentais, a perspectiva assumiu um viés analítico da estrutura da norma
fundamental. Procurou-se demonstrar cada elemento que a compõe e, para isso,
declinou-se a opção metodológica pela “teoria dos princípios”.
Essa escolha criou-nos o ônus argumentativo de expor as razões por um modelo de
suporte fático no sentido amplo, cuja decorrência lógica é a também ampliação do seu
“âmbito de proteção” e de sua “intervenção estatal”, partes daquele suporte. Demonstrou-
se que todo direito fundamental que possua estrutura normativa de princípio, como é o
caso da presunção de inocência, é restringível e que essa restrição pode advir ou de uma
previsão legal infraconstitucional, ou de colisões entre ela e outras normas jurídicas
(regras ou princípios). Porém, da mesma forma que não há direito absoluto, também não
há restrição ilimitada. Para isso inseriu-se o importante papel que a proporcionalidade
ocupa nessa divisão de águas entre as intervenções constitucionalmente justificadas
(restrições) e aquelas que não o são (violações).
Nesse contexto, como parte final e compreensiva de todo o exposto neste capítulo,
vem novamente a noção de conteúdo essencial como garantia dos direitos fundamentais.
Porém, agora, não mais por sua perspectiva objetivo-subjetiva, mas com a preocupação
de coerentemente determinar o que deve ser tido como constitucionalmente protegido
pela norma.

1002 Sobre esse ponto, v. item 4.1 concertado com o item 3.8 supra.
Se, durante todos os itens deste capítulo, negou-se a possibilidade de se excluir a
priori tanto posições, ações ou estados do “âmbito de proteção”, quanto qualquer forma
de conformação ou regulamentação do campo da “intervenção estatal”, buscando a
identificação do constitucionalmente protegido mediante a motivação jusfundamental da
proporcionalidade da medida processual penal invasiva, segundo as condições fático-
jurídicas da situação concreta, não podemos aceitar como mais correta a teoria absoluta
do conteúdo essencial. Isto porque, para essa teoria a idéia de “conteúdo essencial” está
ligada a uma porção de direito fundamental intangível e insusceptível de qualquer
interferência (estatal ou privada). É um espaço normativo-fundamental irrestringível e
imune a qualquer intervenção estatal e, portanto, nesse âmbito absoluto não há como ser
legítima qualquer redução.1003 Este é o ponto: esse “espaço normativo irrestringível” é
uma definição doutrinariamente sedutora, mas, de ordinário, não constatável na prática e
de difícil clareza para se estabelecer um espaço crítico seguro.
Aqui se cria mais um ônus argumentativo para este presente trabalho, pois, antes da
atual reflexão, aceitávamos que todo direito fundamental possuía um conteúdo essencial
irredutível e o qual o Estado não estava legitimado a ultrapassar, com qualquer
justificativa que fosse. Porção fundamental para a qual a redução ou qualquer forma de
intervenção estaria vedada. Ocorre, porém, que após algumas reflexões, percebemos que,
empiricamente, não conseguíamos encontrar um âmbito normativo-fundamental de um
princípio processual penal constitucional que estivesse total e aprioristicamente imune a
toda e qualquer intervenção estatal. Claro que há casos em que determinada intervenção
é negada e em outros deferida, porém, isso depende e varia muito mais devido às
condições fático-jurídicas do caso em si e das convicções ideológicas e juspolíticas do juiz
penal do que de um “conteúdo essencial” absoluto e irrestringível que tenha sido
construído a priori em nível legislativo, doutrinário ou jurisprudencial.
Note-se, por ser importante, que ao se afirmar que não há norma-princípio
destinada ao processo penal que não seja, em muitos casos e hipóteses, afastada como um
todo, não nos referimos à negativa total de proteção fundamental decorrente de um ato
ilegal (privado ou judicial). As violações a direitos fundamentais processuais penais ou se
constituem em crimes (no âmbito material) ou implicam nulidades (no âmbito
processual).
Tratamos de decisões judiciais motivadas e pelas quais se determina, por exemplo,
uma interceptação telefônica, uma prisão provisória, a apreensão de bens, a quebra de
sigilo financeiro ou fiscal, entre muitas outras medidas congêneres. Ao assim decidir, e
há casos em que essas medidas são corretas, os sujeitos àquelas medidas ficam totalmente
desprovidos da privacidade das comunicações, da liberdade de ir e vir, do direito de
exercer a posse de determinado bem e da intimidade de seus dados financeiros e fiscais.
Essas privações são totais, todo o direito é afastado por força de ordem judicial. Não há
“conteúdo essencial” que reste intangível para essas pessoas em situações como as citadas.

1003Para uma boa compreensão das características, críticas e justificativas


tanto da teoria absoluta quanto da teoria relativa do conteúdo essencial,
v. Antonio-Luis MARTÍNEZ-PUJALTE, La garantía cit., pp. 19/38.
Argumentações, no sentido de que essa privação completa não se estende a todo o
tempo e para outras áreas daqueles mesmos direitos, não ajudam os sectários da teoria
absoluta por dois motivos distintos. O primeiro, de ordem lógica, porque a se pensar
assim a própria idéia de conteúdo essencial ruiria, porquanto sempre restará uma parte
daquele direito ou de um outro direito diverso não afetado pela medida restritiva. O que
se quer demonstrar é que o juiz pode determinar a supressão total do direito pelo tempo
e na intensidade que entender corretos e, ao assim decidir, pode não restar nada desse
direito específico. Nada em seu conteúdo será “absoluto” e, portanto, um óbice
intransponível à decisão do magistrado. O segundo motivo é que o direito (totalmente)
restringido no tempo, forma e intensidade estabelecidos pelo juiz não se restitui,
substitui ou pode ser compensado por outro direito, mesmo que de mesma natureza.
Assim, não se pode aceitar que a interceptação telefônica de uma linha não impede sua
privacidade de comunicação por outra, pois, caso essa outra linha constasse da ordem
judicial, também seria sua privacidade restringida; totalmente restringida, acrescente-se.
Não importa que o titular tenha outras situações em que pode usufruir daquele direito, o
que se quer demonstrar é que no âmbito da decisão judicial pode ser que nada reste do
direito. Não há “mínimo” essencial preservado ou preservável e sobre o qual a decisão
judicial não possa intervir.
Aí está a sedução da teoria absoluta do conteúdo essencial e que faz com que a
teoria relativa pareça contra-intuitiva. Aparenta ser mais seguro ao direito fundamental
que uma parte de seu conteúdo seja considerada irrestringível, porém, ao não se definir
qual é essa parte por uma argumentação clara e segura, nada resta, na prática forense, da
promessa feita. Não há doutrinador que tenha conseguido delimitar com critérios seguros
e fixos qual é a porção de qualquer direito fundamental com estrutura de princípio que
seja a priori e sempre insuscetível de restrição.
Por essa razão, parece-nos mais eficiente a garantia lógica oferecida pela teoria
restrita para limitar as intervenções ao conteúdo dos direitos fundamentais.
Por essa teoria todo o direito disposto em norma fundamental com estrutura
normativa de princípio pode ser restringível desde que exista argumentação
constitucional para isso. “Para a teoria relativa o conteúdo essencial coincide
precisamente com essa exigência de justificação”.1004 Para a teoria relativa, o conteúdo
essencial não é “um âmbito de contornos fixos e definíveis ‘a priori’ para cada direito
fundamental. (...) a definição do que é essencial – e, portanto, a ser protegido – depende
das condições fáticas e das colisões entre diversos direitos e interesses no caso concreto.
Isso significa, sobretudo, que o conteúdo essencial de um direito não é sempre o mesmo,
e poderá variar de situação para situação, dependendo dos direitos envolvidos em cada
caso”.1005

1004 Antonio-Luis MARTÍNEZ-PUJALTE, La garantía cit., p. 21.


1005 Virgílio Afonso da SILVA, Direitos fundamentais cit., p. 196.
Relegar a proteção do conteúdo essencial ao exame de cada caso concreto não
enfraquece o direito fundamental, como pode parecer à primeira vista, porque impõe ao
julgador penal que demonstre todas as razões constitucionais que o fizeram decidir de
uma ou outra forma.
Logo, a proteção se fortalece tanto a curto quanto a longo prazo. A curto prazo
porque se passa a exigir a demonstração clara de todos os aspectos fáticos e jurídico-
constitucionais para a decisão específica, não satisfazendo mais razões a priori,
argumentos de autoridade ou justificativas inconstitucionais. A teoria relativa exige que
se demonstre justificação convincente e clara. A longo prazo, o ganho está em que o
debate doutrinário sobre um repertório jurisprudencial que exponha às críticas seus
argumentos (constitucionais ou não) sobre o “âmbito de proteção”, a “intervenção
estatal” e as interferências que as condições fático-jurídicas venham estabelecer entre
eles formará uma cultura científica apta a fortalecer posturas intersubjetivas mais
maduras e claras em seus fundamentos.
Quando acima se disse que se entende a teoria relativa do conteúdo essencial como
a mais eficiente para a tutela dos direitos fundamentais não se prometeu que o caminho
seria (mais) fácil. Porém, é na tarefa cotidiana da doutrina em estudar todos elementos
estruturais da norma de cada direito fundamental específico que consiste o primeiro
passo para essa construção científica sólida.
Para a presunção de inocência, é o que se intenta realizar no próximo capítulo.

Capítulo V
5.1. -Legislação infraconstitucional e decisão judicial: níveis para efetivação
da presunção de inocência

O presente capítulo destina-se à aplicação da análise da estrutura dos direitos


fundamentais no princípio da presunção de inocência. É a demonstração de que esse
método permite um estudo sistemático, coerente, mais abrangente e detalhado de cada
ponto da presunção de inocência, como ela se manifesta no processo penal e como a
intervenção estatal em seu conteúdo poderá ser considerada legítima (restrição) ou
abusiva (violação).
Neste capítulo não se fará um estudo da presunção de inocência em face de todos os
institutos processuais penais com os quais ela se relacione. Isso desvirtuaria o capítulo
como ponto de verificação das escolhas e métodos sugeridos para realizar o estudo da
presunção de inocência. Também não se realizará um estudo da presunção de inocência
com um único e específico instituto jurídico-processual, porquanto isso levaria à
necessidade de desenvolvê-lo de modo também individualizado e exauriente para, ao
final deste estudo específico, mostrar os consensos e conflitos entre as duas partes do
estudo (a presunção de inocência e o instituto jurídico escolhido).
A proposta do trabalho é diversa. É oferecer uma perspectiva de análise da
presunção de inocência a fim de melhor identificar seu conteúdo essencial, com tudo que
isso implica, ou seja, como resultante dos exames prévios de seu âmbito de proteção e a
sua relação com as intervenções/inércias estatais (restrições e violações).
Porém, para que esse método analítico seja considerado válido, é necessário que por
ele se demonstre melhores ganhos na compreensão, interpretação, coerência e aplicação
da presunção de inocência em todos os setores da persecução penal. Esse ganho deve
acontecer tanto em nível legislativo quanto judiciário, âmbitos estatais mais diretamente
ligados à efetivação daquele direito.
Por essas razões, os institutos processuais penais apontados como forma de
comprovação da pertinência da tese apresentada no presente trabalho não serão objetos
de análises profundas e individualizadas. O que não significa que não terão seus aspectos
essenciais expostos na medida do necessário para se compreender em que medida eles se
relacionam com a presunção de inocência.
O desenvolvimento deste capítulo, portanto, feitas essas necessárias considerações,
parte da exposição do maior problema da presunção de inocência no sistema processual
penal brasileiro: a ausência de melhores especificações quanto a seu conteúdo e, em
decorrência, sua baixa efetividade.1006
Exposto o problema, passa-se ao exame da finalidade e função do suporte fático da
presunção de inocência. Nesse ponto, é inevitável a retomada da já tratada dicotomia
político-ideológica entre nossa atual Constituição e o (ainda) vigente Código de Processo
Penal, elaborado em 1940, em pleno Estado Novo, mesmo que mitigada, em alguns
pontos, por muitas reformas pontuais no decorrer das últimas décadas, notadamente as
reformas processuais penais de 2008.
Diante dessa dicotomia, o estudo particularizado dos elementos integrantes do
suporte fático (“âmbito de proteção” e “restrições”) está feito sempre em paralelo com as
violações (intervenções estatais ilegítimas) já existentes no sistema.

1006 Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba y presunción de inocencia,


Madrid: Iustel, 2005, pp. 117/118, tratando da presunção de inocência no
direito espanhol, aponta que este direito fundamental precisa ser
estendido para além da literalidade do texto constitucional, uma vez que
os tratados e convenções internacionais, além das experiências
legislativas e judiciárias de outros países, demonstram um conteúdo
amplo que deve ser melhor sistematizado pela doutrina.
Juntamente com o exame do “âmbito de proteção” da presunção de inocência se
procede à indicação de todas as violações já previstas, de modo prévio e abstrato, em lei
processual penal existente. Violações já postas no plano normativo abstrato e que devem
sofrer as conseqüências jurídicas de seu descompasso constitucional, ou seja, serem
expungidas do sistema (ou não aplicadas na prática forense), como forma de se depurar
constitucionalmente o Código de Processo Penal.
Já quanto ao exame das restrições, o estudo também não examinará todas as
hipóteses existentes ou possíveis de intervenção estatal legítima na presunção de
inocência. O estudo das restrições foi feito em paralelo com as violações derivadas da
aplicação desproporcional de dispositivos processuais penais constitucionais em nível
legislativo abstrato.

5.2. Razões da pouca efetividade da “presunção de inocência”

Ao iniciar o exame da presunção de inocência, o maior dilema a ser superado pelo


estudioso, notadamente tendo em vista a realidade nacional, é dar concretude a um
preceito constitucional que vem sendo chamado de “mito”1007 e que a população em geral
não percebe como algo real e efetivo.

1007 René Ariel DOTTI, O mito da presunção de inocência, Boletim do


Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, n. 136, mar., 2004,
p. 9, defende que sua baixa efetividade está tornando-a um mito para os
que dela precisam. Conforme Alexandra VILELA, Considerações acerca
da presunção de inocência em direito processual penal, Coimbra:
Coimbra, 2000, p. 12, citando Eduardo Lourenço, “a ficção legal da
presunção de inocência pode ler-se – e é lida por aquele que é inculpado
– como o exemplo mesmo da má ficção. De resto, a esfera da justiça, o
lugar onde o seu exercício se efectua, o dispositivo legal que o autoriza,
o sujeito através do qual a sua exigência se manifesta e se cumpre – o
juiz –, supõem, não a presunção, mas a verdade, não enunciada nunca,
mas implícita, de uma espécie de evidência inconfessável, a da não
inocência da condição humana. O que Hegel, numa fórmula genial e
atroz, exprimiu, escrevendo: ‘Só as pedras são inocentes’”. Nesse
mesmo sentido, v. Odone SANGUINÉ, Prisión provisional y derechos
fundamentales, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003 p. 434.
A população em geral, incluídos os operadores do direito, não obstante não negue
sua existência em nível constitucional, toma a “presunção de inocência” como algo por
demais abstrato1008 e sem efetividade. Para além disso, não raras vezes, conforme se
divulga pelos meios de comunicação, é tida como óbice à realização da repressão punitiva
estatal. Pela perspectiva do imputado, seja ou não inocente, ela sempre vem de forma
insuficiente e determinada por critérios judiciais exclusivamente subjetivos e aleatórios,
o que impossibilita criar um esteio seguro para a compreensão de sua extensão e possíveis
restrições.
Para piorar, esse subjetivismo não raro baseia-se em linhas criminológicas ou de
política criminal inconstitucionais e a sua não declaração expressa nas decisões ou a falta
de consciência judicial de sua inconstitucionalidade contribuem para um afastamento
crítico do conteúdo do referido direito fundamental. Tudo a impedir uma compreensão,
baseada em uma crítica racional, da estrutura normativa da presunção de inocência em
toda a sua extensão e efeitos. Necessário, portanto, começar a colocar as insatisfações e
rejeições, que rondam a presunção de inocência, em seus devidos termos.
Observadas todas as críticas à sua pertinência no sistema processual penal, pode-se
agrupá-las em duas correntes básicas. A primeira, mais radical, de cunho político-
ideológico, rejeita a idéia da presunção de inocência porquanto não aceita conferir um
“estado de inocência” a todos os cidadãos de modo indistinto, amplo e igualitário.1009 Para
essa linha crítica, normalmente baseada em uma postura (expressa ou disfarçada)
violadora do princípio constitucional da igualdade, os cidadãos podem ser divididos em
categorias dentro das quais uns têm mais “facilidade” ou “propensão” à criminalidade (e,
portanto, à punição) que outros.1010 Uma segunda corrente, mais condescendente que a
anterior, pretende a redução da efetividade da presunção de inocência, alegando que ela
diminui a “eficiência processual”. Para essa segunda corrente, a eficiência estatal
persecutória está em se obter a mais rápida decisão final da causa penal, permitindo a
antecipação de alguns efeitos jurídicos condenatórios, notadamente a execução
provisória da pena, decorrente de decisão recorrível.1011

1008 Giulio ILLUMINATI, La presunzione d´innocenza dell´imputato, 6ª ed.,


Bologna: Zanichelli Editore, 1984, pp. 11/13 e 23.
1009 Sobre a importância do reconhecimento do “estado de inocência” como

pressuposto político-ideológico para se construir um sistema processual


penal diverso dos sistemas inquisitivos e autoritários, v., notadamente,
itens 1.5.4.3, 2.4.7.2 e 3.8.1.1 supra.
1010 Sobre essas linhas críticas à presunção de inocência e desenvolvidas

no passado, já houve expressa referência em vários itens do presente


trabalho. Para síntese de longos períodos históricos, v. itens 1.2.4
(direito romano em suas várias fases), 1.3.2 (sistema da Alta Idade
Média), 1.4.3 (processo penal da Inquisição), 2.2.2 (sistema misto
napoleônico), 2.3.2 (pensamento da Escola Positiva) e 2.4.3 a 2.4.5
(pensamento da Escola Técnico-Jurídica, cuja influência chegou até
nosso atual Código de Processo Penal). Para as “novas” correntes
Os defensores da presunção de inocência, por sua vez, também podem ser divididos
em duas correntes básicas: a primeira, mais radical, pela qual a incorporação da
presunção de inocência no sistema constitucional impede, de forma absoluta, qualquer
efeito condenatório antes que uma decisão judicial dessa natureza se torne definitiva;1012
a outra corrente, mais numerosa e menos radical, entende que a presunção de inocência
pode ser, em alguns casos, restringida. O presente trabalho se inclui nesta última linha
doutrinária citada.
Descartadas as duas correntes radicais, pró e contra a presunção de inocência, o
debate se estabelece entre as correntes, por assim dizer, moderadas. Contudo, há pontos
em que os choques de idéias e pressupostos dessas correntes tornam o debate doutrinário
inevitável e inconciliável.
Elas confrontam idéias no campo científico-acadêmico e mostram eventuais
sucessos ou insucessos na realidade jurídico-forense. Exceção feita a maiores exaltações,
notadamente no âmbito forense – decorrentes da natural relação deste âmbito com as
vidas humanas necessariamente envolvidas (p.ex., vítimas e imputados) –, o debate
parece ter chegado a dois pontos de consenso. O primeiro – repita-se, retiradas as
posições extremistas e mais exaltadas – é não haver mais quem aceite que o processo
penal é apenas meio de defesa social, deixando de lado sua função de garantia do cidadão.
Aceita-se, de um modo geral, que tão importante quanto o processo é “como” ele é
realizado. Nesse sentido, o processo não serve apenas para apurar a culpa do imputado de
qualquer modo e a qualquer custo, mas, ao contrário, possui uma pauta mínima de justiça
e dignidade em seu desenvolvimento, ao final da qual se concluirá pela punição dos
culpados ou pela absolvição dos inocentes.1013 O segundo ponto de consenso é que o
nosso atual sistema criminal (penal e processual penal) é insatisfatório, incoerente e não
atende aos anseios sociais da comunidade a que se destina e às melhores expectativas de
eficiência e de garantia dos operadores do direito.

criminológicas que “tentam reinserir” a penalização criminal decorrente


de critérios de desigualdade entre indivíduos, v. item 5.4.3.1 infra.
1011 Sobre esse ponto, especificamente para a doutrina que defende a

prisão provisória como execução provisória da pena, v. item 5.4.2.1.3


infra.
1012 Por todos, v. Luigi FERRAJOLI, Diritto e ragione: teoria del garantismo

penale, 3ª ed., Bari: Laterza, 1996, pp. 566/572, quando afirma que a
existência da presunção de inocência impediria, ao menos até a decisão
de primeiro grau, qualquer forma de prisão preventiva. Para o direito
espanhol, v. José Maria ASENCIO MELLADO, La prisión provisional,
Madrid: Civitas, 1987, p. 30. Ambos os autores citados, contudo,
reconhecem que um sistema sem medidas coativas (pessoais ou
materiais) ainda está, infelizmente, no plano do “dever ser”, sem
nenhuma ocorrência histórica ou nas legislações atuais.
1013 Nessa linha retoma-se a posição de equilíbrio já defendida desde a

Escola Clássica, para a qual o processo não serve apenas a um único


fim (punir ou absolver). O processo torna-se, assim, forma de se decidir
Contudo, ambas as correntes cometem um erro comum: preocupadas em fazer
prevalecer uma opinião sobre a outra, deixam de lado os dois maiores fatores geradores
de insuficiências no sistema processual penal. O primeiro e mais importante é a inércia
legislativa na elaboração de um novo Código de Processo Penal conforme a atual
Constituição e afeito aos novos avanços tecnológicos e às experiências internacionais na
implementação de legislações congêneres. O segundo é o fato do Código de Processo
Penal atual, vigente desde 1941, além de não possuir qualquer das qualidades antes
apontadas, ter sido elaborado sobre um eixo autoritário e que rejeita a idéia da presunção
de inocência,1014 assim como não permite o efetivo respeito à dignidade da pessoa do
imputado, à igualdade e ao devido processo legal.
Em síntese: a presunção de inocência não tem a necessária efetividade porque ainda
não foi feita uma legislação infraconstitucional cujos institutos (todos) sejam elaborados
tendo em vista sua natureza de preceito fundamental e, para piorar, a legislação existente
possui toda a sua estrutura e base epistemológica voltada a negar efetividade àquele
princípio.

questões penais de alta relevância jurídica de modo racional e


constitucionalmente parametrizado, eliminando-se uma ou outra posição
mais radical em benefício da busca equilibrada de solução. Sobre as
características da referida Escola, em paralelo com a Escola Positivista,
de cunho marginalizador e punitivo, v. item 2.3.1 supra. No sentido de
um processo penal mais equilibrado com base na aceitação da
presunção de inocência, uma vez que não se busca apenas julgar de
qualquer modo, mas “como” julgar também passa a ser uma
preocupação estatal, v. Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 16 e
77/80, e Jaime VEGAS TORRES, Presunción de inocencia y prueba en
el proceso penal, Madrid: La Ley, 1993, pp. 20/21. Sobre esse ponto de
relação entre o “estado de inocência” e “como” o processo penal é
realizado em um Estado Democrático de Direito, v. itens 3.8.1.1 supra e
5.3.3.2 infra.
1014 Como já desenvolvido no item 2.4.6 e no item 2.5 e seus subitens supra,

o único aspecto aceito pelos técnico-juristas e que permeou o Código de


Processo Penal italiano de 1930, penetrando em nosso código atual, foi
a manifestação da presunção de inocência como “in dubio pro reo”.
Todos os demais aspectos, notadamente a sua finalidade político-
ideológica (v., sobre o tema, item 5.2.3 infra), foram rejeitados e o
sistema foi construído de modo que até mesmo o “in dubio pro reo”
tivesse uma diminuta incidência por força da falta de limite ao sistema da
livre apreciação das provas (art. 155, primeira parte, CPP) e da
ampliação dos poderes instrutórios judiciais (especificamente o art. 156,
CPP; além de dispositivos específicos colocados em todos os capítulos
que tratam de meios de prova ou de obtenção de prova).
Esses dois obstáculos podem ser analisados em diversos âmbitos nos quais projetam
e dos quais recebem influxos: o constitucional, o forense, o social e o doutrinário. Todos
esses espaços da vida são divisíveis em uma análise ideal, porém, na realidade, associam-
se em uma inter-relação que está levando à paralisia e ao colapso do sistema: uma espiral
viciosa que precisa ser rompida.
Pela perspectiva constitucional, a presunção de inocência não tem uma efetiva
oportunidade de ser aplicada em um sistema processual novo e coerente, o que a está
levando e a todos os demais direitos fundamentais processuais penais ao descrédito, uma
vez que, embora existam constitucionalmente, não são aplicados na prática.1015
Pelo prisma forense, há uma sobrecarga argumentativa e cultural a todos que
queiram fazer prevalecer a Constituição sobre a legislação infraconstitucional, porquanto
esta, por ter aplicação mais cotidiana e ser melhor detalhada normativamente, conta com
a inércia intelectual e institucional do aparato público que a aplica há quase sete décadas.
Com isso, aumenta-se o espaço para decisões muito incompatíveis, projeção casuística da
incompatibilidade primeira entre a Constituição e o Código de Processo Penal.
Pela perspectiva doutrinária, há uma acomodação e um conforto intelectual das
duas linhas moderadas acima referidas, pois, por existirem dois sistemas jurídicos
antagônicos e paralelos (Constituição e Código de Processo Penal), cada linha fixa-se no
sistema que lhe forneça as melhores bases para elaborar um “discurso” e um
“antidiscurso”, ambos formalmente justificados. Assim, aceitam e toleram a convivência
dos dois sistemas incompatíveis e não se tenta formar um ordenamento
infraconstitucional afim àquele direito fundamental. Prevaleça uma ou outra posição, o
fato é que o discurso científico não busca formar esse espaço único como via para iniciar
uma discussão em busca do consenso.
Pelo prisma social, o mais importante e mais atingido pelos erros e desencontros dos
anteriores, há uma total insatisfação com um sistema que não atende aos anseios de
justiça e que apresenta, de forma muito além do admissível, um decisionismo aleatório e
contraditório. À vista dos leigos, esse decisionismo induz a uma crise de legitimidade dos
poderes instituídos, uma crença na efetiva desigualdade entre as pessoas e uma descrença
especial no Poder Judiciário e na própria Constituição.1016

1015 Renato Barão VARALDA, Restrição ao princípio da presunção de


inocência: prisão preventiva e ordem pública, Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris Editor, 2007, p. 59, afirma que, pela perspectiva da
legislação infraconstitucional processual penal, a “presunção de
inocência não passa de um mito, uma vez que os dispositivos
processuais prevêem medidas de conteúdo tendentes à presunção de
culpabilidade”. Sobre o não cumprimento do “dever de legislar” do
Estado como forma de violação do dever de proteção estatal dos direitos
fundamentais, v. item 4.4.3.1.1 supra.
1016 Luigi KALB, La “ricostruzione orale” del fatto tra “efficienza” ed “efficacia”

del processo penale, Torino: Giappichelli, 2005, pp. 119/122, destaca


como aumenta na população uma sensação de descrédito nas
instituições judiciárias e legislativas pela falta de obediência a uma
O presente capítulo, assim como todo o trabalho, tem o escopo de oferecer um
início de debate técnico sobre a estrutura e conteúdo da norma fundamental do princípio
da presunção de inocência. Se para isso parte de uma base constitucional, não é porque se
assuma que referido direito seja absoluto e irrestringível,1017 mas por dois motivos: o
primeiro é que o tema (presunção de inocência) tem essa natureza jurídica; o segundo é
que ele foi rejeitado, exceção feita a um diminuto “in dubio pro reo”, pela legislação
infraconstitucional editada pelo regime autoritário do Estado Novo, sob os influxos
nazifascistas europeus.1018
Esse é o ponto que deve ficar claro a qualquer intérprete dos direitos fundamentais
processuais penais, notadamente da presunção de inocência. O Código a rejeita em sua
gênese, essência e estrutura, logo, não é possível analisá-la pelo vetor “Código?
Constituição”, uma vez que naquele, conforme declarado por seus mentores e redatores,
ela não existe. Assim, ao se querer interpretar referido princípio constitucional pela
legislação infraconstitucional que o nega, a resultante sempre será a sua constrição
extremada, desproporcional e, portanto, inconstitucional.
Logo, seu estudo, assim como a análise de qualquer direito fundamental, deve partir
da Constituição em direção ao sistema infraconstitucional, pois só assim se iniciará um
debate para a construção de um novo sistema e não, como tem ocorrido, haja um esforço
científico-doutrinário para legitimar o sistema processual penal que (ainda) possuímos.
Nosso processo penal está anacrônico, insuficiente, desatualizado e é, em essência,
inconstitucional. Não há como justificá-lo pela perspectiva “Constituição? Código”.1019

legalidade político-ideológica coerente e orientadora de decisões


consistentes e com finalidade clara.
1017 O que já se afirmou reiteradamente pela escolha da “teoria dos

princípios”, do suporte fático amplo e do conteúdo essencial relativo.


Nesse sentido, v., respectivamente, itens 4.3, 4.4 e 4.6 supra.
1018 Conforme já se demonstrou por todo capítulo II supra, notadamente nos

itens 2.4 e 2.5 e seus subitens.


1019 Alberto Silva FRANCO, Crimes hediondos, 6ª ed., São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2007, p. 493, com base em José Joaquim Gomes


Canotilho e Jorge Miranda, defende nesses termos uma necessidade de
se proceder a uma interpretação da lei ordinária a partir da Constituição
e não, como de ordinário ocorre, no sentido inverso. São suas palavras:
“Desde logo, é mister que se acentue a evidente preocupação do
intérprete e do julgador em analisar a norma constitucional em função de
uma legislação ordinária que lhe é precedente. Essa atitude, ora movida
por um espírito de resistência a mudanças, ora impulsionada pela
intenção de conservar situações legais já estratificadas, contém o ‘perigo
de a interpretação da Constituição, de acordo com as leis, ser uma
interpretação inconstitucional’, ‘porque o sentido das leis passadas
ganhou um significado completamente diferente na Constituição’. Bem
por isso, Jorge Miranda, salienta que ‘no tocante ao Direito ordinário a
Constituição não assume, nem tem de assumir a regulamentação; a
Constituição tem apenas de o penetrar, de o impregnar dos seus valores,
Nessa linha, o presente trabalho toma como ponto de partida o mesmo juramento
que todo integrante dos Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo fazem como
necessário compromisso à assunção de suas funções, poderes e deveres públicos: cumprir
a Constituição. Não juram cumprir o código, cuja ideologia é totalmente contraditória
àquela Carta Política.
Aplicando esse ponto de partida analítico (Constituição) às bases conceituais
expostas no capítulo anterior, pode-se afirmar que a presunção de inocência é direito
fundamental que pode ser restringido, desde que de maneira excepcional, prevista em lei
justificada constitucionalmente e aplicada de modo proporcional por decisão judicial
motivada em seus desígnios juspolíticos.
Importante, pois, deixar claro que a efetividade é a regra; excepcionalmente se pode
restringi-la. O espaço a ser limitado é sempre o preponderante, o mais importante e
maior que os fatores limitadores, os quais, por sua vez, são excepcionais, eventuais e
devem ser proporcionais e sempre justificados constitucionalmente, seja em nível
legislativo seja em nível judiciário.
A presunção de inocência, portanto, é que será limitada, segundo os referidos
critérios, por autorizadas e proporcionais formas previstas em lei. Não o contrário. Isto é,
os meios restritivos não são o parâmetro a ser aplicado para que a presunção de inocência
seja efetivada apenas e tão-só nos espaços da vida que para ela “sobrem”. Eles são a
redução de algo que lhes é maior e mais amplo: um direito fundamental.

de o modular e, se necessário, de o transformar; e é nesta medida que


ele pode dizer-se recriado ou novado’. A idéia de recriação ou novação,
segundo ainda Jorge Miranda, envolve três corolários principais, que
devem servir de roteiro no exame da legislação ordinária preexistente: ‘a)
os princípios gerais de todos os ramos de Direito passam a ser os que
constem da Constituição ou os que dela se infiram directa ou
indiretamente, enquanto revelações dos valores fundamentais da ordem
jurídica acolhidos pela Constituição; b) as normas legais e
regulamentares vigentes à data de entrada em vigor da nova
Constituição têm de ser reinterpretadas em face desta e apenas
subsistem se conformes com as suas normas e os seus princípios; c) as
normas anteriores contrárias à Constituição, mesmo que contrárias a
normas programáticas, não podem subsistir - seja qual for o modo de
interpretar o fenômeno da contradição’. O princípio da presunção de
inocência, consagrado no inciso LVII do art. 5º da CF, está incluído entre
os valores fundamentais da ordem jurídica instaurada pela Magna
Carta”.
A compreensão do exposto é crucial para o exame desse princípio, pois a escolha do
vetor de análise colocará como premissa o ponto mais importante, o que preponderará.
Para os que defendem a Constituição, sabedores de que o código a nega em muitos
pontos, é a presunção de inocência o direito expansível e a ser limitado em situações
excepcionais. Não são essas situações excepcionais (restrições) que formam a premissa e
serão limitadas ou não pela presunção de inocência.1020 Em poucas palavras: é pela
Constituição que se deve começar a desenhar uma nova legislação; não é por um código
fascista e anacrônico que se deve interpretar e aplicar os espaços normativos definidos
pelo constituinte.
Algumas idéias que adiante serão melhor desenvolvidas podem ilustrar o antes
referido: é a presunção de inocência (Constituição) que limita e conforma o conceito de
“ordem pública” (processo penal), não é este conceito que dá o espaço normativo para
que aquele princípio se realize. A presunção de inocência não elimina a “ordem pública”,
mas a limita e conforma a espaços excepcionais e tendencialmente diminutos.1021
Concluindo tudo o que antes foi exposto. O problema a ser resolvido é dúplice: a
inércia legislativa na elaboração de um novo Código de Processo Penal conforme à
Constituição, e a existência de um Código de Processo Penal que rejeita a presunção de
inocência. O objetivo é único: iniciar um debate científico-doutrinário a fim de que as
várias compreensões sobre o tema formem um consenso para orientar o legislador e o
aplicador das normas. O meio é único: analisar a estrutura normativa da presunção de
inocência. O ponto de partida para análise também é único: a Constituição.
A efetiva realização da presunção de inocência, portanto, inicia-se pelo trabalho
legislativo. Logo, pela constatação feita acima sobre a falta de legislação processual penal
conforme à atual Constituição, notadamente respeitadora da presunção de inocência,
pode-se afirmar com segurança que a primaz e mais importante violação na efetivação
desse direito advém da inércia legislativa.

1020 Sobre a hierarquia constitucional da presunção de inocência determinar


e conformar o sistema processual para que as restrições existentes
sejam mínimas, previstas (em lei) e aplicadas judicialmente de forma
proporcional, v. Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 20/24, ao
asseverar: “Concluindo, a presunção de inocência, ao ser
constitucionalizada do jeito que foi, para lá de norma que encerra em si
um direito fundamental, que não carece da mediação do legislador
ordinário para a sua aplicação, vê as suas restrições apertadas ao limite,
dado que se assume beneficiária do regime dos direitos, liberdades e
garantias e constitui, em última análise, uma garantia constitucional
substantiva tendente à protecção judicial dos direitos do acusado,
assumindo-se muito para lá de um mero princípio programático”. No
mesmo sentido, da presunção de inocência ser fator determinante de
como as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas, v. Miguel
Angel MONTAÑÉS PARDO, La presunción de inocencia: análisis
doctrinal y jurisprudencial, Pamplona: Aranzadi, 1999, p. 35.
1021 Sobre o tema, v. item 5.4.1.2.1.3 infra.
O legislador, ao se omitir, produz a primeira e a mais relevante causa de violação à
presunção de inocência: a inércia legislativa infraconstitucional consubstanciada pela
não conformação de um novo Código de Processo Penal. É na sua conta, e não na do
Judiciário, nem, principalmente, na do cidadão, que se deve tributar a maior e primeira
violação àquele preceito fundamental: não conformá-lo em nível infraconstitucional.1022
Dessarte, as exposições seguintes sobre o suporte fático amplo, o âmbito de proteção
da norma e as intervenções (restrições e violações) serão feitas com dois objetivos
distintos, mas concomitantes. De modo mais mediato, oferecer subsídios para contribuir
com o início de uma elaboração legislativa processual penal. De modo mais imediato,
auxiliar na verificação do respeito à presunção de inocência, em cada instante da
persecução penal, por meio de exame do conteúdo da motivação de todas as decisões
judiciais produzidas em todo e qualquer espaço judiciário em que se trate de uma
controvérsia penal de alta relevância.

5.3. Suporte fático amplo da presunção de inocência

Como já houve oportunidade de se expor de forma mais detalhada, o suporte fático


de uma norma de natureza fundamental é composto pelo âmbito de proteção e pelas
intervenções estatais consideradas justificadas e proporcionais (restrições).1023 A
presunção de inocência, direito fundamental1024 com estrutura normativa de princípio,
apresenta em sua composição aqueles dois elementos: “âmbito de proteção” e
“restrições”.1025

1022 Sobre a falta de preocupação dos poderes públicos nacionais


cumprirem seus “deveres de proteção”, e viabilizarem “organizações e
procedimentos” aptos a efetivarem os direitos fundamentais processuais
penais, em especial a presunção de inocência, v. item 3.8.2.2 e seus
subitens supra.
1023 Sobre suporte fático e suporte fático amplo, v., respectivamente, itens

4.4 e 4.4.1 supra.


1024 Para a presunção de inocência como direito fundamental, com todos os

seus consectários de determinar a interpretação das leis


infraconstitucionais, assim como conformar as que venham a ser
editadas, v., por todos: Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Significados da presunção de inocência, in José Francisco de Faria
COSTA e Marco Antonio Marques da SILVA (coord.), Direito penal
especial, processo penal e direitos fundamentais: visão luso-brasileira,
São Paulo: Quartier Latin, 2006, item 8; Luiz Flávio GOMES, Sobre o
conteúdo processual tridimensional do princípio da presunção de
inocência, in Luiz Flávio GOMES, Estudos de direito penal e processo
penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 109; Miguel Angel
MONTAÑÉS PARDO, La presunción cit., p. 35; Manuel JAÉN VALLEJO,
La presunción de inocencia en la jurisprudencia constitucional, Madrid:
Akal, 1987, pp. 19/22 e 16/23; Alexandra VILELA, Considerações cit., pp.
O estudo do suporte fático de uma norma fundamental não tem importância apenas
pelos elementos que contém – o que é importante e será estudado a seguir –, mas,
principalmente para a presunção de inocência, por relevar sua origem e relação com
outros direitos fundamentais e a força juspolítica decorrente de sua inserção neste nível
hierárquico (Constituição). Ser um direito fundamental indica claramente uma opção do
constituinte em imprimir, em nosso ordenamento, toda a extensão do indefectível e
constante perfil ideológico que acompanha a presunção de inocência por toda sua
história e seu desenvolvimento até nossos dias.1026

5.3.1. -Direitos fundamentais justificadores da gênese da presunção de inocência

É muito comum a preocupação da doutrina e da jurisprudência em demonstrar que


a presunção de inocência, como direito fundamental, está em constante inter-relação
com os demais direitos fundamentais, notadamente os voltados ao processo penal. Isso é
uma relevante decorrência de que todo direito fundamental se completa com outros
direitos da mesma natureza e com eles guarda uma relação de interdependência.1027

16 e 89; Esteban ROMERO ARIAS, La presunción de inocencia: estudio


de algunas de las consecuencias de la constitucionalización de este
derecho fundamental, Pamplona: Aranzadi, 1985, pp. 22 e 47/48; Jaime
VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 22; e Fabián I. BALCARCE,
Presunción de inocencia: crítica a la posición vigente, Córdoba: Marcos
Lerner Editora Córdoba, 1996, pp. 55/56 e 71/72.
1025 Sobre a presunção de inocência como direito fundamental, v. item 3.7

supra e sobre sua estrutura de princípio, v. item 4.3, e seus subitens,


supra.
1026 Sobre o conteúdo ideológico da presunção de inocência, v. item 2.4.7.1

supra.
1027 Sobre as características da complementaridade e da interdependência

dos direitos fundamentais, v. item 3.6.3 supra. Sobre a aplicação dessas


características à presunção de inocência e os direitos fundamentais mais
relevantes ao presente estudo, v. item 5.3.2 infra.
Porém, antes de se examinar essa indispensável interdependência, é necessário
destacar quais foram os princípios fundamentais que historicamente propiciaram a
formação e autonomia da presunção de inocência como direito independente e, ainda
hoje, estão a lhe dar justificação e base: a dignidade da pessoa humana, a liberdade,1028 a
igualdade1029 e o Estado Democrático de Direito, em sua vertente mais próxima ao
processo penal e que está representada pelo “devido processo penal”.1030

1028 A idéia de liberdade aqui exposta deve ser entendida não apenas no
seu aspecto de “ir e vir”, mas, também, quanto a seu conteúdo
patrimonial, ou seja, também a liberdade de ter e dispor de patrimônio
próprio.
1029 Sobre a igualdade como base para a característica da universalidade

dos direitos fundamentais e, portanto, como base para a presunção de


inocência, v. item 3.6.1 supra.
1030 Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit., item 6, destaca

que a presunção de inocência é inerente aos Estados que respeitam “os


valores inerentes à liberdade e à dignidade da pessoa humana”. Para a
relação da presunção de inocência com o devido processo legal e a
igualdade, v.: do mesmo autor, o item 8 da obra citada; idem, Presunção
de inocência e prisão cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, pp. 47/48; e
Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución y derecho a la presunción
de inocencia, Valencia: Tirant lo Blanch, 2006, pp. 339/340. Também no
sentido de fundamentar a presunção de inocência nos direitos à
liberdade e à dignidade, v. Helena Magalhães BOLINA, Razão de ser,
significado e conseqüências do princípio da presunção de inocência: art.
32.º, n.º 2, da CRP, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, n. 70,
1994, pp. 435/436. Fundamentam a presunção de inocência com maior
ênfase na dignidade da pessoa humana os seguintes autores: Alberto
GALLARDO RUEDA, El derecho a la presunción de inocência,
Cuadernos de política criminal, Madrid, n. 38, 1989, item 1; Juan Alberto
belloch julbe, Enrique Torres y López de lacalle, José guerra san martin,
El derecho a la presunción de inocencia, La Ley, Madrid, v. 4, 1982, item
II.1; José I. CAFFERATA NORES, Proceso penal y derechos humanos,
Buenos Aires: Centro de Estudios Legales y Sociales, 2000, pp. 69/71; e
Fernando GONÇALVES e Manuel João ALVES, A prisão preventiva e as
restantes medidas de coacção: a providência do habeas corpus em
virtude de prisão ilegal, 2ª ed., Coimbra: Almedina, 2004, p. 52. Para
uma maior relação da presunção de inocência com o Estado
Democrático de Direito, v. Javier BOIX REIG, Consideraciones sobre los
delitos relativos al tráfico de drogas, in José Ramón SORIANO
SORIANO (org.), Delitos contra la salud pública y contrabando, Madrid:
Consejo General del Poder Judicial, 2000, item III.
Deve-se observar, ainda, que a presunção de inocência, não tem sua origem
justificada apenas por um daqueles direitos fundamentais, pois, se assim o fosse, seria
uma subespécie ou um desdobramento de um direito único do qual derivasse. Tal como
ocorre, p.ex., com o direito fundamental à defesa técnica, desdobramento de um único
princípio maior e representado pela “ampla defesa” (art. 5º, inciso LV, CR).
A presunção de inocência teve a sua criação justificada porquanto veio preencher
um espaço juspolítico de intersecção de todos aqueles direitos fundamentais referidos.
Um âmbito em que todos atuavam, mostrando-se necessária a criação de uma idéia única
e individualizada que os representasse e os enfeixasse para espaços de vida específicos. A
presunção de inocência, assim, está fundada em todos e em cada um daqueles direitos
fundamentais. Daí por que se ter afirmado que sua concepção político-ideológica surgiu
apenas na Revolução Francesa, a qual trouxe, pela primeira vez na história, uma
concepção combinada e interdependente dos ideais, em sentido mais amplo, de
“igualdade, fraternidade e liberdade”.1031
Dessa forma, a sua efetivação está garantida pelos direitos fundamentais que lhe
justificaram a autonomia e, ao mesmo tempo, é na sua realização que referidos direitos se
concretizam no espaço processual penal ao qual a presunção de inocência projeta sua
tutela. Nesse sentido, antes de se inter-relacionar com outros direitos fundamentais que a
completam e a auxiliam em sua realização mais ampla, a efetivação da presunção de
inocência garante um processo justo, com respeito à liberdade, igualdade e dignidade do
ser humano submetido à persecução penal. Não há, no mundo moderno, Estado
Democrático de Direito que não a possua como um dos preceitos basilares do seu sistema
processual penal.

1031 Quanto aos reflexos que a concepção iluminista representou de


inovação ao processo penal da época, v. itens 1.5.2 e 1.5.4.3 supra.
Sobre a rejeição da presunção de inocência pela Escola Positiva por via
da negação à igualdade entre os cidadãos, v. item 2.3.2 supra. Sobre as
atuais tentativas de repristinação dos pensamentos de desigualdade
social, v. item 5.4.3.1, infra, quando se trata do direito processual penal
do inimigo e do direito processual penal do autor como violadores da
extensão subjetiva da presunção de inocência.
Essa gênese juspolítica da presunção de inocência hoje orienta todos os aspectos,
desdobramentos e manifestações que integram seu âmbito de proteção e, também, limita
e controla suas restrições. Isso fica evidente, p.ex., ao se analisar os ideais de igualdade e
respeito à dignidade humana como o “favor rei” e o “in dubio pro reo”, integrantes de seu
âmbito de proteção. Não obstante a origem romana desses preceitos, assim como das
idéias a eles correlatas (“favor libertatis” e “favor benignitatis”; “in dubio pro libertate” e
“in dubio pro benignitate”; etc.), estivesse ligada apenas à necessidade de se diminuir a
desigualdade entre os indivíduos envolvidos na causa jurídica (civil ou penal, na posição
de demandante ou demandado), a eles é atribuída aquela justificativa múltipla (diferentes
direitos fundamentais) ao serem inseridos como manifestações ou desdobramentos
modernos do ideário da “presunção de inocência”.1032
A presunção de inocência, assim como todos seus aspectos e desdobramentos,
incluídos aqui o “in dubio pro reo” e o “favor rei”, representa um direito que veio atender
à igualdade, ao respeito à dignidade da pessoa humana, à liberdade do cidadão e ao
devido processo penal porquanto: a) torna a relação jurídica entre imputado e órgãos
persecutórios mais equilibrada (garantia à igualdade), impedindo que as manifestações do
poder público ultrapassem o necessário para a apuração dos fatos; b) impede, de
ordinário, que ao imputado seja dado tratamento de condenado, antes do
reconhecimento definitivo de sua culpa (garantia à dignidade da pessoa); c) impõe a
necessidade de um processo condizente com todos os padrões constitucionais de justiça
para que se proceda à verificação e declaração de culpa do cidadão (garantia do devido
processo legal); d) impõe uma decisão menos prejudicial ao imputado sempre que houver
dúvida fática ou se possa proceder à mais favorável escolha jurídica, como asseveração do
prestígio à dignidade da pessoa humana em toda e qualquer decisão judicial penal.

1032 Para compreensão da origem de todos os ideais de igualdade


representados por aqueles brocardos latinos, sem que com isso se
pudesse ver nos sistemas romanos da Antigüidade qualquer
identificação com o que atualmente se compreende por presunção de
inocência, v. itens 1.2.3.3 e seus subitens e 1.2.4 supra. Pode-se afirmar,
por essa perspectiva, que em todo sistema processual em que se tem a
presunção de inocência também existe o “favor rei” e o “in dubio pro reo”,
porém nem todo sistema em que tenha um ou ambos brocardos citados
haverá necessariamente presunção de inocência. Foi o que já se
demonstrou no exame do Código Rocco de 1930 (v. item 2.4.6 supra) e
em nosso atual Código de Processo Penal de 1941 (item 2.5 e seus
subitens supra). Sobre o “in dubio pro reo” e o “favor rei”, suas diferenças
e relação com a presunção de inocência, v. item 5.4.1.1 infra.
A presunção de inocência, nesse sentido, não é posição de vantagem, mas de
equilíbrio, no sentido de que a persecução penal, iniciada e em desenvolvimento, já teve
seu início e desenvolvimento autorizados pelo ordenamento para a verificação de
qualquer violação de comportamento do cidadão. Já há, portanto, um desequilíbrio em
desfavor do imputado, porquanto há atos de persecução e restrição a seus direitos (em
maior ou menor grau) durante todo iter persecutório. Autorizada a persecução penal,
para frear qualquer antecipação de tratamento de condenado ao ainda imputado, o
constituinte compensa o cidadão com a proteção representada pela presunção de
inocência. O constituinte procurou, com a instituição da presunção de inocência,
reequilibrar a relação cidadão-Estado, uma vez iniciada a persecução penal. Assim como
também há compensação, pelas mesmas razões de desequilíbrio, ao se determinar que o
julgador, em qualquer decisão restritiva de direitos do cidadão, decida em favor dele se,
esgotados todos os meios, estiver com qualquer dúvida fática e, ainda, sempre aplique
interpretação jurídica mais favorável, se houver multiplicidade interpretativa da norma.
Sem a presunção de inocência, ou seja, sem a vedação prima facie de que qualquer
efeito condenatório seja aplicado ao cidadão antes da declaração definitiva de sua culpa, a
persecução penal justa (devido processo legal)1033 perderia sua própria razão de ser, pois,
antes mesmo de chegar ao final para verificar a culpa ou inocência do acusado, ele já
teria sido tratado como condenado. Do mesmo modo, ao se permitir que, em caso de
dúvida, se decida da forma mais prejudicial ao imputado estar-se-ia negando o preceito
fundamental e eixo de toda a atual Constituição representado pelo respeito à dignidade
da pessoa humana.1034 Satisfazer-se com a dúvida para reduzir direitos fundamentais do
cidadão, em qualquer fase ou instância da persecução, é o mesmo que afirmar a
inconsistência e desprestígio daqueles prometidos direitos. É descumprir compromissos
internacionais assumidos pelo Estado brasileiro.1035 No caso, é o mesmo que descumprir a
presunção de inocência, ou seja, é agir e decidir inconstitucionalmente.

1033 Com essa afirmação se compreende o ensinamento de Pedro Juan


BERTOLINO, El debido proceso penal, La Plata: Platense, 1986, p. 47,
para quem o devido processo legal “constitui um ‘prius’ (‘o que’ se deve);
logo, por conseqüência, se perfilará o ‘posterius’ (‘como’ deverá regular-
se e atuar-se ‘esse’ processo); a conjugação de ambos os elementos
constituirá, assim e de modo definitivo, a noção compreensiva do
‘devido’” (traduzimos). Citando o mesmo autor, v., ainda, Antonio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit., p. 324, e idem,
Presunção cit., pp. 46/47. No sentido de que a presunção de inocência,
junto com outros direitos fundamentais do processo penal, é uma das
principais diretrizes do “processo justo”, v. Juan Javier JARA MÜLLER,
Principio de inocencia: el estado jurídico de inocencia del imputado en el
modelo garantista del proceso penal, Revista de derecho – Valdivia,
Valdivia – Chile, v. 10, supl. Especial, ago., 1999, p. 41; Ana María
OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 334/337; Manuel JAÉN
VALLEJO, La presunción de inocencia, Revista de derecho penal y
procesal penal, Buenos Aires, n. 2, oct., 2004, item I; Willman Ruperto
Se respeitada essa base constitucional justificadora de sua formação, para a qual a
presunção de inocência também projeta seus efeitos, definir-se-ia que, ao se restringi-la,
o que se está a restringir é um direito fundamental formado por interesses públicos e
coletivos tão relevantes quanto os interesses públicos que justificam qualquer outro
objetivo constitucional. Assim, não é correto, conforme já demonstrado pela doutrina
constitucional dos direitos fundamentais, afirmar que a presunção de inocência é
justificada por um interesse particular ou individual enquanto a segurança pública, a
ordem pública ou defesa social é um objetivo constitucional justificado por interesse
público ou coletivo.1036
A presunção de inocência é formada por interesses públicos, assim como é público o
interesse à segurança pública ou à ordem pública ou, ainda, à vida dos cidadãos. Violá-la,
em qualquer de seus aspectos ou desdobramentos, é violar interesses públicos. Sua
restrição, portanto, deve ser justificada na medida em que seja necessária e adequada à
tutela de outros interesses públicos que se demonstrem mais relevantes nas condições
fático-jurídicas do caso específico. Não há dicotomia entre público-privado, haverá uma
“relação condicionada de precedência”, nos termos já expostos no capítulo anterior.1037

5.3.2. -Presunção de inocência e outros direitos fundamentais processuais


penais: complementaridade e interdependência

DURÁN RIBERA, Las garantías procesales de la constitución boliviana,


in Willman Ruperto DURÁN RIBERA et al, Homenaje al profesor dr.
Gonzalo Rodríguez Mourullo, Navarra: Aranzadi, 2005, item 1.3; Adauto
SUANNES, Os fundamentos éticos do devido processo penal, 2ª ed.,
São Paulo: Revista dos Tribunais, pp. 147/149; e Aury LOPES JÚNIOR,
Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade
constitucional, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 188.
1034 Para alguns comentários sobre o importante papel que o princípio

fundamental da dignidade da pessoa humana desempenha como diretriz


primeira de toda a conformação e interpretação constitucional, v. item
3.5.2 supra.
1035 Sobre a introjeção dos direitos humanos consagrados em tratados

internacionais como um compromisso do Brasil perante as demais


Nações para seu respeito e sua inserção no cenário mundial, com as
respectivas sanções para eventual descumprimento desse compromisso,
v. item 3.3 supra.
1036 Sobre a presunção de inocência estar fundamentada em interesses

públicos, e por isso ter sido alçada a direito fundamental, v. item 3.8.1.1
supra.
1037 Para o exame da “relação condicionada de precedência” como forma de

solução de conflito entre princípios, v. item 4.4.3.1.3.2 supra. Sobre o


necessário exame pela proporcionalidade, v. item 4.5.1 e seus subitens
supra.
Explicada a gênese e a autonomia que a presunção de inocência guarda em relação
aos direitos fundamentais que justificaram sua criação, deve-se analisar com quais outros
direitos fundamentais ela se relaciona de forma complementar e interdependente para
atingir o maior nível de efetivação possível.
Como a presunção de inocência está na base da estrutura processual, é inevitável
que se relacione, de forma mais ou menos intensa, com um ou outro direito fundamental,
a depender do instante da persecutio criminis em que se manifesta.1038 Já tratados os
direitos à liberdade, à igualdade, ao devido processo legal e ao respeito à dignidade da
pessoa humana, para os estreitos limites do presente trabalho,1039 resta-nos, no presente
item, considerar sua relação com o direito à liberdade e à duração razoável do
processo.1040

5.3.2.1. (segue): com o direito ao prazo razoável

A presunção de inocência em nada gera a procrastinação da persecução penal. Sua


finalidade é apenas impedir que o imputado seja tratado como condenado antes da
decisão final sobre sua culpa e que ela só seja declarada quando houver certeza por parte
do julgador. Não há como colocá-la no bojo de uma crítica, um tanto generalizada, de
que quanto mais ela for garantida mais lento será o curso persecutório.1041 Não é ela que
determina a maior ou menor extensão do devido processo legal, ela apenas garante que
até seu final, não se pode, de ordinário, antecipar-se punição ao imputado.

1038 Nesse sentido, v. Mario CHIAVARIO, Presunzione d´innocenza e diritto


di difesa nel pensiero di Francesco Carrara, Rivista Italiana di Diritto e
Procedura Penale, v. 34, n. 2, apr./giug., 1991, pp. 357/361, e Mercedes
FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 122/123.
1039 Para referências da inter-relação entre a presunção de inocência e

outros direitos fundamentais de natureza processual penal, v. Jaime


VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 38/39; Helena Magalhães
BOLINA, Razão cit., item 3.3 e seus subitens; Giulio ILLUMINATI, La
presunzione cit., pp. 77/80; Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Presunção cit., pp. 46/49; e Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La
presunción cit., p. 37. Sobre a inter-relação entre presunção de inocência
e motivação das decisões judiciais já se encetou o tema no item 4.5.1.2
supra e a ele se retorna, de forma mais específica, no item 5.4.2.3 e
seus subitens infra. Deixa-se, portanto, de tratá-la neste item. O mesmo
se dá entre presunção de inocência e inadmissibilidade da prova ilícita
(art. 5º, LVI, CR); sobre o tema, v. item 5.4.2.2 infra.
1040 Este direito está expresso no inciso LXXVIII do art. 5º da Constituição

da República, in verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são


assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam
a celeridade de sua tramitação”.
1041 Para uma análise mais detalhada sobre o ponto de convergência entre o

direito de recorrer, a presunção de inocência e o direito à liberdade como


A presunção de inocência opera, de fato, exatamente no sentido de exigir do Estado
um processo o mais célere possível, visto que a própria existência da persecução penal em
face do indivíduo já é uma situação desfavorável a seu status dignitatis.1042 É cediço que “a
demora e o prolongamento excessivo do processo penal vai, paulatinamente, sepultando
a credibilidade em torno da versão do acusado. Existe uma relação inversa e proporcional
entre a estigmatização e a presunção de inocência, na medida em que o tempo
implementa aquela e enfraquece esta”.1043
Essa situação fica ainda mais evidente quando se está diante de um imputado preso
provisoriamente, porquanto a prisão sempre é mais visível ao público em geral e marca
muito mais profundamente o imputado que a existência sobre si de uma persecução.1044

regra até o trânsito em julgado da decisão penal condenatória,


notadamente no tema da vedação de “execução provisória” de
condenação ainda não definitiva, pois sujeita a recurso extraordinário
e/ou recurso especial, v. item 5.4.2.1.3 infra.
1042 Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., p. 28, com apoio

em Jorge Figueiredo Dias, assim se manifesta sobre a presunção de


inocência impor a necessidade de um processo célere: “O preceito
adquiriu, portanto, conotação expressamente abrangente do direito à
celeridade processual, diante da constatação de que a presunção de
inocência do acusado ‘se torna em pesada ironia quando a paz jurídica
daquele, quebrada com a promoção do processo, só possa ser
restaurada anos após’”. No mesmo sentido, v.: Adauto SUANNES, Os
fundamentos cit., pp. 295/296; José I. CAFFERATA NORES, Proceso
cit., pp. 79/82; Alejandro D. CARRIÓ, Garantias constitucionales en el
proceso penal, 4ª ed., Buenos Aires: Hammurabi, 2004, § 63; José
Joaquim Gomes CANOTILHO e Vital MOREIRA, Constituição da
República Portuguesa anotada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
v. I, p. 519; Helena Magalhães BOLINA, Razão cit. p. 453; e Fernando
GONÇALVES e Manuel João ALVES, A prisão cit., pp. 59/60. Cristina
Líbano MONTEIRO, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio pro reo”,
Coimbra: Coimbra, 1997, p.23, aplica o mesmo raciocínio do texto para o
“in dubio pro reo”, uma vez que para ela há sinonímia entre as
expressões (presunção de inocência e “in dubio pro reo”).
1043 Aury LOPES JÚNIOR e Gustavo Henrique Righi Ivay BADARÓ, Direito

ao processo penal no prazo razoável, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006,


p. 8.
1044 No sentido da maior visibilidade ao público e, com isso, a mácula

perene a que o imputado está sujeito, mesmo que resulte sua absolvição
ao final, v. Aury LOPES JÚNIOR e Gustavo Henrique Righi Ivay
BADARÓ, Direito cit., p. 9.
Nessa hipótese, porque autorizado o seu encarceramento antecipado, deverão todos
os partícipes da persecução empreender o máximo de celeridade a fim de se chegar à
solução final, para dar uma resposta definitiva à situação indesejada de prisão provisória.
O julgamento final no menor tempo possível, respeitando-se as demais garantias
processuais, é, portanto, uma forma de se atribuir maior efetividade e respeito à
presunção de inocência.1045

5.3.2.2. (segue): com o direito à liberdade

Quanto à interação entre presunção de inocência e direito à liberdade no curso da


persecução penal impende esclarecer, neste ponto, a influência que ela projeta sobre as
hipóteses constitucionais de prisão provisória.1046
É necessário destacar que, por força da opção juspolítica de sua inserção no sistema,
essa situação de restrição de liberdade, e dos atos necessários ao seu cumprimento, foi
estabelecida pelo constituinte de modo excepcional e cercada por garantias.1047 Tudo de
forma coerente e a denotar uma clara e indefectível tendência favor libertatis, concepção
derivada do favor rei que, por sua vez, no processo penal, integra o âmbito de proteção
da presunção de inocência.
A excepcionalidade daquela prisão fica evidenciada na medida em que “ninguém
será preso (provisoriamente) senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente”1048 e “a prisão ilegal será
imediatamente relaxada pela autoridade judiciária”.1049 Sua diminuta incidência ressurte
ainda mais evidente quando, embora preso nessas condições e não constituindo a prisão
uma ilegalidade, “ninguém será levado à prisão, ou nela mantido, quando a lei admitir a
liberdade provisória, com ou sem fiança”.1050

1045 Sobre o direito ao prazo de duração processual razoável ser um aspecto


de efetividade da presunção de inocência, uma vez que diminui o tempo
em que o imputado fica submetido à persecução, notadamente se
encarcerado cautelarmente, v.: Rui PATRÍCIO, O princípio da presunção
de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal
português, Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de
Lisboa, 2000, pp. 36/37; Alexandra VILELA, Considerações cit., pp.
26/27; e Juan Javier JARA MÜLLER, Principio cit., item 8.2.5.
1046 Sobre inconstitucionalidade da vedação, já no plano abstrato, da

concessão de liberdade provisória por influxo da presunção de inocência,


v. item 5.4.2.1.1 infra.
1047 Sobre a excepcionalidade da prisão no curso persecutório, como

manifestação da presunção de inocência, v. Germano Marques da


SILVA, Curso de processo penal, Lisboa: Verbo, 1993, v. I, p. 41.
1048 Inciso LXI, primeira parte, do art. 5º da Constituição da República, com

nossos acréscimos entre parênteses.


1049 Inciso LXV do art. 5º da Constituição da República.
1050 Inciso LXVI do art. 5º da Constituição da República.
Quanto às várias garantias na execução da prisão provisória, de molde a respeitar a
dignidade da pessoa humana e assegurar uma gama de direitos ao preso, estabeleceu-se
constitucionalmente que: “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão
comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele
indicada”;1051 “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer
calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”;1052 tendo, ainda,
“direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório
policial”.1053 Portanto, mesmo nos casos em que a prisão for necessária, sua execução deve
atender à dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, CR),1054 e os órgãos públicos
devem conferir os meios necessários para que o preso tenha assistência e pronto exame
de sua condição por parte do juiz competente.
Como se percebe, os dispositivos constitucionais acima citados foram
intencionalmente escritos e organizados pelo legislador fundamental para marcar que a
restrição da presunção de inocência, representada pela prisão provisória, se dá em moldes
excepcionais, porquanto a liberdade no curso persecutório deve ser a normalidade. Essa
prisão, por ser a medida coativa pessoal mais invasiva e redutora de um feixe de direitos
fundamentais, é tratada em nível constitucional a fim de que, mesmo nessas situações
excepcionais, já se assegurem garantias mínimas em sua execução.
Por esse desenho cogente da Constituição, resta absolutamente incorreto, porquanto
sem justificação constitucional, a compreensão de que o legislador ordinário, a pretexto
de conformar os preceitos ordinários ao texto constitucional, possa empreender uma
inversão de valores e, em flagrante desrespeito constitucional, determinar de modo
abstrato que, em qualquer hipótese ou fase persecutória, a prisão provisória é a “regra” e
a liberdade tornar-se-ia a exceção no tratamento do imputado.1055

1051 Inciso LXII do art. 5º da Constituição da República.


1052 Inciso LXIII do art. 5º da Constituição da República.
1053 Inciso LXIV do art. 5º da Constituição da República.
1054 Sobre a violação da presunção de inocência pela exposição indevida do

imputado à mídia e a responsabilidade dos agentes públicos, v. item


5.5.1.1 infra.
1055 No sentido desse evidente posicionamento inconstitucional quanto à

indevida abrangência que se dá à prisão provisória, v. item 5.4.1.2; e


sobre a mesma inconstitucionalidade interpretativa e legislativa quanto à
vedação abstrata de concessão de liberdade provisória, v. item 5.4.2.1.1
infra.
Sua elaboração constitucional nesses moldes já permite perceber que a prisão
provisória se impõe como última das medidas cautelares a serem aplicadas no curso da
persecução. Isto porque, a perda da liberdade de ir e vir provoca a perda colateral e
equivalente de uma gama de outros direitos fundamentais, tais como: o direito ao
exercício da profissão; da intimidade e privacidade; da dignidade da pessoa, notadamente
em um sistema carcerário como o brasileiro; da comunicação e convivência familiar; do
uso e disposição do patrimônio próprio. Além da redução, a níveis bem baixos, de outros
direitos não menos relevantes como: o direito de acesso e de interação com a defesa
técnica e o direito à busca de provas para sua defesa.
Nesse sentido, deve-se ter em conta que a prisão provisória não significa apenas a
restrição do direito da liberdade de ir e vir, mas implica a eliminação ou redução
significativa de um feixe amplo e relevante de outros direitos fundamentais.
Assim, no estabelecimento da proporcionalidade da medida, deve-se ter em conta
que a liberdade no curso persecutório não garante apenas o direito de ir e vir do cidadão,
mas assegura o mais amplo exercício de uma plêiade de direitos que também devem ser
ponderados no instante de se decidir pela precedência daquele direito sobre o interesse
na maior segurança pela prisão do imputado.1056
Por essa razão a preocupação do constituinte foi permitir a prisão provisória em
níveis restritivos e residuais, ou seja, como ultima ratio das medidas coativas pessoais e,
quando necessária em casos limites, ser executada de forma a garantir o mínimo de
direitos ao preso. Sua natureza de ultima ratio deve, portanto, ser respeitada pelo
legislador infraconstitucional quando da elaboração de um novo Código de Processo
Penal, e pelo julgador no instante de interpretar e aplicar as normas restritivas.1057

5.3.3. Suporte fático da presunção de inocência: finalidade e função

Destacados os direitos fundamentais que propiciaram o surgimento da presunção de


inocência e como ela se relaciona com outros direitos fundamentais que a
complementam e com ela interagem para suas melhores efetivações, evidencia-se o perfil
ideológico e a escolha juspolítica que o constituinte imprimiu ao sistema processual penal
brasileiro. A presunção de inocência representa uma orientação cogente (porquanto
constitucional) ao legislador e ao julgador em suas atividades a fim de efetivá-la da forma
mais abrangente possível.

1056 Sobre a aplicação da proporcionalidade stricto sensu (ponderação) no


tema da prisão provisória, v. item 4.5.1.5 supra.
1057 Sobre o tema, v. item 5.4.1.2.1.1 infra, quando se trata do âmbito de

proteção da presunção de inocência em sua manifestação na esfera


legislativa por força do “favor rei” nas medidas coativas.
Nesse mister, desponta relevante o estudo da finalidade e da função do suporte
fático da presunção de inocência e, com isso, estende-se a análise daqueles influxos
juspolíticos também para o âmbito de proteção da norma e suas restrições. Essa é a razão,
portanto, da importância do estudo da finalidade e da função no nível estrutural do
suporte fático da norma: definindo-as para esse ponto (suporte fático) nortearão o estudo
daqueles elementos (âmbito de proteção e restrições) que o integram.
Ressalve-se, mais uma vez, que a presente exposição se limitará a estudar a
presunção de inocência apenas para o processo penal. A complexidade de tão
significativo princípio constitucional não permite, nos limites deste trabalho,
considerações sobre sua incidência em outras áreas jurídicas.1058

1058 Alguns autores aplicam a “presunção de inocência” no âmbito do direito


administrativo sancionador; nesse sentido, v.: Fábio Medina OSÓRIO,
Direito administrativo sancionador, 2ª ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, item 6.1 e seus subitens; Luis rodriguez ramos,
Presunción de inocencia no minimizada, La Ley, Madrid, n. 4, 1983, p.
1250; José María BOQUERA OLIVER, Presunción de inocencia del
hombre, presunción de legalidad del acto administrativo y tutela judicial
efectiva, in José María BOQUERA OLIVER et al, Actualidad y
perspectiva del derecho público a fines del siglo XX: homenaje al
profesor Garrido Falla, Madrid: Universidad Complutense, 1992, pp.
1027/1041; José Antonio CHOCLAN MONTALVO, El derecho
constitucional a la presunción de inocencia, Manuales de Formación
Continuada: derechos procesales fundamentales, Madrid, v. 22, 2004,
item III; Ernesto PEDRAZ PENALVA, Derecho procesal penal –
Princípios de derecho procesal penal, Madrid: Colex, 2000, t. I, p. 332;
Esteban ROMERO ARIAS, La presunción cit., pp. 68/73, com análise de
várias decisões do Tribunal Constitucional espanhol na área
administrativa; e Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit., pp. 29 e 32.
Outros entendem que ela possa ser aplicada no âmbito do direito
trabalhista; nesse sentido, v.: Luiz Eduardo GUNTHER e Cristina Maria
Navarro ZORNIG, A regra do in dubio pro misero no direito processual
do trabalho, LTr: suplemento trabalhista, São Paulo, v. 40, n. 4, 2004, pp.
169/172; Francisco HERVÁS VERCHER, El principio de presunción de
inocencia y las actas de la inspección de trabajo, Cuadernos de derecho
judicial: derecho administrativo sancionador, Madri, v. 13, 1993, pp.
477/486; e Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit., pp. 30/32, com
análise de decisões do Tribunal Constitucional espanhol na área
trabalhista. Outros autores afirmam que a “presunção de inocência” está
presente no âmbito penal: Esteban ROMERO ARIAS, La presunción cit.,
pp. 117/125, e Germano Marques da SILVA, Curso cit., p. 41. Aplicando
a presunção de inocência para todas as áreas do âmbito processual
(penal, civil, juvenil, trabalhista, contencioso-administrativo, entre outros),
v. Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La presunción cit., cap. 5. Na linha
deste último autor citado, vem Alexandra VILELA, Considerações cit.,
asseverando que a presunção de inocência, conforme várias decisões
5.3.3.1. (segue): finalidade

A finalidade da inserção constitucional da presunção de inocência é político-


ideológica.
O constituinte ao consagrá-la em tal nível normativo demonstrou uma escolha
juspolítica clara: a persecutio criminis deve ter, em todos os seus instantes, um cunho
garantidor e igualitário ao imputado, não se admitindo mais um sistema autoritário e
desigual típico de regimes despóticos.
Por ser uma norma fundamental com estrutura de “princípio”, impõe-se cumpri-la
na maior medida possível. Entendendo-se como “maior medida possível”, conforme já
exposto, o fato de ser expansível até que uma intervenção estatal justificada
constitucionalmente a restrinja em situações concretas, específicas e proporcionalmente
limitadas. Logo, restringe-se apenas em situações previstas em lei infraconstitucional
desde que seja (i) elaborada e interpretada conforme as escolhas jusfundamentais do
constituinte e, ainda, seja (ii) redigida e aplicada de modo proporcional.1059
A presunção de inocência corporifica e empreende nova realidade ideológica
nacional de conceber a justiça criminal (direito e processo penais).1060 O sistema jurídico
processual penal, portanto, deverá ser conformado, interpretado e aplicado conforme
esses desígnios.1061 É dar cumprimento aos compromissos assumidos pelo Brasil junto à
comunidade internacional colocando o país ao lado dos modernos sistemas persecutórios
mundiais.1062

do Tribunal Constitucional português, “estará sempre presente quando


se trate de imputações ou acusações, tornando-se, assim, operante no
direito laboral, no direito administrativo, nas suas vertentes
sancionatórias” (op. cit., pp. 11/12, nota 1). No mesmo sentido desta
última autora citada, v. Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución cit.,
pp. 113/115. Para sua incidência em matéria eleitoral, no ordenamento
jurídico brasileiro, v. item 3.8.2.2.2., em especial nota 245.
1059 Sobre o papel político da presunção de inocência com o ponto de

equilíbrio entre o interesse a reprimir a criminalidade e o interesse de


defesa da dignidade e liberdade do cidadão, v. Mercedes FERNÁNDEZ
LÓPEZ, Prueba cit., pp. 120/122. Sobre as normas-princípios de direitos
fundamentais serem normas expansíveis prima facie, v. item 4.3.1 supra.
Sobre as possibilidades de suas restrições e os cuidados legislativos e
judiciários para a atuação concreta de norma infraconstitucional
restritiva, v., respectivamente, item 4.4.3 e seus subitens supra, e item
4.5.1 e seus subitens, de modo especial, o item 4.5.1.1 supra.
1060 Nesse sentido, voltado ao processo penal italiano do início da década

de setenta, v. Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 12/13. Jesús


ZAMORA-PIERCE, Garantías y proceso penal, 8ª ed., México: Porrúa,
1996, pp. 427/428, afirma, em vernáculo: “Ao consagrar a presunção de
inocência como finalidade última e fundamento primeiro do processo
penal, o homem pretende que o cérebro intervenha antes que o músculo,
que o conhecimento preceda à reflexão, e esta à decisão e à execução.
Por ser escolha constitucional, a presunção de inocência conforma e orienta todos
os poderes públicos1063 e agentes privados1064 em seus atos, funções, atribuições, poderes e

Quer o homem, enfim, que sua essência se defina não só pelo gênero
próximo ‘homo’, mas pela diferença específica ‘sapiens’”. No mesmo
sentido, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 432.
1061 Luigi KALB, La “ricostruzione” cit., pp. 112/113, destaca que um sistema

processual marca a evolução política de um povo e é sobre essas


determinações, mais que sobre técnicas jurídicas, que ele deve ser
estruturado, em vernáculo: “Os estudos sobre o processo penal têm
sublinhado com freqüência, em feliz síntese, como a disciplina
processual é a representação do grau de civilidade de um povo, não se
podendo pôr em dúvida que a lei com a qual se regula o procedimento
penal reflete a ordem dada por todo sistema político às relações entre
‘autoridade’ e ‘liberdade’, assumindo conteúdos inevitavelmente
relacionados aos valores sentidos no momento em que vem promulgado.
Há tempo se colocou na devida luz a estrita relação intercorrente entre
sistema político e legislação penal, seja em relação às escolhas de
política criminal, seja em relação às peculiaridades que caracterizam o
desenvolvimento do procedimento penal. Como sublinhava Montesquieu,
não se pode teorizar a melhor legislação penal – universalmente válida
para qualquer tempo e para qualquer Constituição – visto que as
escolhas verificáveis sobre o plano jurídico são ditadas em razão da
finalidade que se entende perseguir com um dado sistema político”. No
mesmo sentido, v. Ernesto D´ANGELO e Francesco BERTOROTTA, Il
nuovo processo penale al bivio: tra le ragioni del garantismo e il mito
dell´efficienza, in Studi in ricordo di Giandomenico Pisapia, Milano:
Giuffrè, 2000, v. 2 – Procedura penale, pp. 238/239, e James
GOLDSCHMIDT, Princípios gerais do processo penal, tradução de
Hiltomar Martins Oliveira, Belo Horizonte: Líder, 2002, p. 71.
1062 Sobre o Brasil integrar o sistema internacional de proteção aos direitos

humanos e, por conseqüência, dever efetivar os vários preceitos


incorporados em sua Constituição como direitos fundamentais, dentre os
quais se encontra a presunção de inocência, sob pena de
descumprimento de compromissos internacionais e de se sujeitar a
sanções de órgãos multilaterais, v. item 3.3 e seus subitens supra.
1063 Nesse sentido, ora se referindo aos poderes de modo geral, ora a um

poder específico, v., por todos, Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción


cit., pp. 11/17, e Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 40/42.
Especificamente para o Poder Legislativo, v.: Antonio MAGALHÃES
GOMES FILHO, Significados cit., item 7; Luiz Flávio GOMES, Sobre o
conteúdo cit., p. 117; Rui PATRÍCIO, O princípio cit., pp. 37/38; Alberto
GALLARDO RUEDA, El derecho cit., pp. 316/317; Miguel Angel
MONTAÑÉS PARDO, La presunción cit., p 38; e Helena Magalhães
BOLINA, Razão cit., p. 446.
deveres.1065 Não há esfera de poder ou ato privado que possa se escusar a seu
cumprimento, cabendo ao legislador tecer normas de conduta e, quando necessárias,
punições (civis, administrativas ou penais) para o descumprimento delas.1066
A escolha político-ideológica do constituinte não se limitou à presunção de
inocência. Ao contrário. Ao definir o Brasil como um Estado Democrático de Direito,
respeitador da dignidade da pessoa humana e cujo processo penal deve ser realizado
dentro de um sistema acusatório e segundo o feixe de garantias integrantes de um
“devido processo penal”, ou da noção de “fairness”, como no direito anglo-saxão,1067 a
Constituição harmoniza o sistema em um único sentido: o processo deve ser humanitário
e justo (punir culpados e absolver inocentes), antes de ser repressivo e autoritário.1068

1064 Para a presunção de inocência como direito regulador das atividades


dos agentes privados, v. Esteban ROMERO ARIAS, La presunción cit.,
pp. 47/48 e 66, e Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 40/42.
Para um estudo específico de como a presunção de inocência se
relaciona com a liberdade de informação, v. Aurélia María ROMERO
COLOMA, Libertad de información frente a otros derechos en conflicto:
honor, intimidad y presunción de inocência, Madrid: Civitas, 2000, pp.
85/100. No sentido de que todos os agentes e entidades, públicos e
privados, estão submetidos à presunção de inocência, v. Eduardo Maia
COSTA, A presunção de inocência do argüido na fase de inquérito,
Revista do Ministério Público, Lisboa, v. 23, n. 92, out./dez., 2002, pp.
77/78, e Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 115/129.
1065 Esteban ROMERO ARIAS, La presunción cit., pp. 15 e 61/62, afirma

que a presunção de inocência deveria ser norma de conduta social a


todos dirigida para ser por todos respeitada. Sobre a importância da
consciência social para se iniciar a construção de uma cultura também
jurídica de prestígio à presunção de inocência, v. Giulio ILLUMINATI, La
presunzione cit., pp. 7/9. Germano Marques da SILVA, Curso cit., p. 40,
afirma que, para efetivação da presunção de inocência, é necessário que
a crença no ser humano seja um fator ético-social de todos.
1066 Sobre o tema da presunção de inocência e mídia, v. item 5.5.1.1 infra.
1067 Nesse sentido, v. Mario CHIAVARIO, Processo e garanzie della

persona, 3ª ed., Milano: Giuffrè, 1984, v. II – Le garanzie fondamentali,


pp. 20/23.
1068 Nesse sentido, v. Vincenzo GAROFOLI, Presunzione d´innocenza e

considerazione di non colpevolezza. La fungibilità delle due formulazioni,


Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano, v. 41, 1998, pp.
1171/1172, e Alexandra VILELA, Considerações cit., p 47. Jaime VEGAS
TORRES, Presunción cit., p. 29, expõe que toda base ideológica
fascista, inserida na construção da presunção de não culpabilidade, deve
ser eliminada.
A Constituição, nessa perspectiva sistêmica, não garante ao cidadão o direito à
presunção de inocência apenas a partir do início da persecução penal, mas, assegura-lhe
um “estado de inocência”1069 desde seu nascimento e até que, por decisão definitiva,
venha a ser reconhecida sua culpa penal. É nesse contexto que a presunção de inocência
é tida como “verdade interina provisória”.1070
Não é presunção em sentido técnico-jurídico, mas situação jurídica afirmada por
força constitucional e que não depende de um fato-base provado para dever ser
obedecida por todos. Basta sua afirmação constitucional para que se a tenha como
pressuposto no exame judicial da culpa, e forma de tratamento do cidadão. Aliás, como se
verá adiante, na atual fase das teorias constitucionalistas expansíveis dos direitos
fundamentais,1071 a presunção de inocência, como “norma de juízo”, projeta seus efeitos
até após a decisão condenatória definitiva, em eventual fase revisional.1072

5.3.3.2 (segue): função

A função da presunção de inocência é servir de eixo estrutural de um processo penal


a ser feito conforme ao determinado pela Constituição.
Sua posição central explica-se na medida em que ela representa uma maneira de
compreender, administrar e construir um sistema processual penal para o qual o
indivíduo, já no início da persecução, é inocente e assim deve ser considerado e tratado
até que o Judiciário tenha a certeza e declare de modo definitivo a sua culpabilidade, com
base em conjunto probatório incriminador mínimo e lícito.1073

1069 Para considerações sobre a presunção de inocência representar uma


escolha política em conferir ao cidadão um “estado de inocência”, seja
como fator diferenciador da presunção de não culpabilidade, como
concebida nos moldes nazifascistas, seja para comprovar-lhe os
interesses públicos informadores, v., respectivamente, itens 2.4.7.2 e
3.8.1.1 supra. Sobre a incompatibilidade entre estado de inocência e
“absolvição por insuficiência de prova”, v. item 5.4.1.3.1 infra.
1070 Construção desenvolvida por José Luis VAZQUEZ SOTELO,
“Presunción de inocencia” del imputado e “intima convicción” del
Tribunal, Barcelona: Bosch, 1984, pp. 273/276, e que, após ser assim
desenvolvida pelo autor, foi apoiada por: Alexandra VILELA,
Considerações cit., pp. 83/87; Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La
presunción cit., pp. 43/44; Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit., p.
33; e Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 430/433.
1071 Sobre o tema da tendência expansiva dos direitos fundamentais, v.,

notadamente, item 3.8.2.1 supra.


1072 Sobre o tema, v. item 5.4.3.2.2 infra.
1073 Nesse sentido, v. Teresa ARMENTA DEU, Principios y sistemas del

proceso penal español, in Gonzalo QUINTERO OLIVARES e Fermín


MORALES PRATS (Coord.), El nuevo derecho penal español: estudios
penales en memoria del profesor José Manuel Valle Muñiz, Pamplona:
É um “princípio-cardinal”1074 do processo penal apto a orientar toda a conformação
legal de um novo sistema porque, como já referido, representa a idéia síntese da área
criminal (penal e processual penal) advinda da intersecção formada pelos princípios da
igualdade, do respeito à dignidade da pessoa humana e do Estado Democrático de
Direito. Ideário que informa e orienta a formação e aplicação de todos os atos da
persecução penal, uma vez que um cidadão sempre estará submetido à constrição estatal
desde o primeiro ato persecutório até à sua conclusão definitiva e, ainda, em âmbito
revisional.
Sua ampla extensão e incidência faz com que ela se relacione, direta ou
indiretamente, com cada ponto do sistema, porém, é como “norma de tratamento”,
“norma probatória” e “norma de juízo” que tem maior emprego na prática forense.1075

Aranzadi, 2001, pp. 76/77. Na mesma linha, destacando ora um, ora
outro aspecto sintetizado no parágrafo, v.: Giulio ILLUMINATI, La
presunzione cit., pp. 11/15; Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit.,
item IX; Germano Marques da SILVA, Curso cit., pp. 40/41; Mercedes
FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 119/123; Eduardo Maia COSTA, A
presunção cit., pp. 69/70; Luigi FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 559/560, em
especial nota 19; Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados
cit., pp. 318/319; Rui PATRÍCIO, O princípio cit., pp. 13 e 35/36; Aury
LOPES JÚNIOR, Introdução cit., p. 185; e idem, Sistemas de
investigação preliminar no processo penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 18. Também essa é a posição de Mario PISANI,
Introduzione al processo penale, Milano: Giuffrè, 1988, pp. 35/36 e
43/46, baseada em Resolução do XII Congresso da Associação
Internacional de Direito Penal (AIDP), realizado em 22 de setembro de
1979, em Hamburgo, e pela qual se decidiu com relação à presunção de
inocência: “Resoluções: 1) Presunção de inocência. A presunção de
inocência representa um princípio fundamental da justiça penal. Ela
comporta sobretudo que: a) ninguém pode ser condenando ou
formalmente declarado culpado sem ter sido julgado em conformidade
com a lei vigente e por um procedimento judiciário. b) nenhuma sanção
penal ou sanção equivalente poderá ser imposta a uma pessoa até que a
sua culpabilidade esteja definida nas formas previstas pela lei. c)
ninguém deverá ser obrigado a provar a própria inocência. d) a dúvida
deve sempre favorecer ao acusado” (op. cit., p. 36).
1074 Expressão de Mario CHIAVARIO, La presunzione d’innocenza nella

giurisprudenza della corte europea dei diritti dell’uomo, in Studi in ricordo


di Giandomenico Pisapia, Milano: Giuffrè, 2000, v. 2 – Procedura penale,
pp. 79/82, e também utilizada por Mario PISANI, Introduzione cit., pp.
43/47, e Ernesto PEDRAZ PENALVA, Derecho cit., p. 331.
1075 Tradicionalmente os doutrinadores denominam esses significados ou

aspectos da presunção de inocência como “regra de tratamento”, “regra


probatória” ou como “regra de juízo”. Não há erro em tal denominação,
sendo coerente com a linha doutrinária seguida. Concordamos com a
doutrina tradicional quanto a serem esses âmbitos de incidência espaços
Porém, sua função não se exaure apenas na conformação de seu “âmbito de
proteção”, mas também atinge ao outro elemento componente do suporte fático, qual
seja, a “intervenção estatal” justificada de forma constitucional e proporcionalmente
elaborada e aplicada: a restrição.
Sem perder a sua ratio essendi consistente em ser uma constrição (legítima) àquele
direito fundamental, todas as possíveis “restrições” devem ser elaboradas em nível
legislativo de modo proporcional, específico e teleologicamente conformes à
Constituição. Tal qual o constituinte o fez, como já destacado,1076 quando inseriu a
possibilidade de prisão provisória ao lado da presunção de inocência.
Somente dessa forma a presunção de inocência terá todos os elementos de seu
suporte fático cumprindo a função a ela destinada pela Constituição.
Nessa perspectiva se demonstra mais uma vez a desconformidade constitucional de
nosso atual Código de Processo Penal de índole fascista: primeiro porque ele rejeita a
presunção de inocência; segundo porque possui constrições sem justificação
constitucional ou elaboradas e constantemente interpretadas e aplicadas de modo
desproporcional (violações). Para ficarmos em apenas dois exemplos nascidos naquele
esteio autoritário e até nossos dias mantidos, os quais serão adiante tratados de forma
mais detida, veja-se: a falta de justificativa constitucional para a absolvição por “não
existir prova suficiente para a condenação” (art. 386, inciso VII, CPP)1077 e, ainda, a falta
de proporcionalidade na legislação e na aplicação judiciária, ao uso da expressão “ordem
pública”, como razão para prender preventivamente (art. 312, caput, do CPP).1078

jurídicos de manifestação ou de sentido da presunção de inocência.


Porém, devido às distinções feitas no trabalho entre “princípio” e “regra”,
e todas as conseqüências que isso traz para a “teoria dos princípios”,
prefere-se denominar aqueles “significados” ou “sentidos” que se podem
extrair do texto normativo da presunção de inocência” como: “norma de
juízo”, “norma probatória” e “norma de tratamento”. Sobre as diferenças
entre “norma” e “texto normativo”, v. itens 3.7.1 e 4.3 supra.
1076 Sobre o tema, v. item 5.3.2.2 supra.
1077 Necessário ressaltar, nesse ponto, que o atual inciso VII, do art. 386,

CPP, apenas repetiu o originário inciso VI, do Código de 1940. A Lei


11.690/2008, nesse ponto, infelizmente, não introduziu nenhuma
modificação no dispositivo. Para maiores considerações sobre a falta de
justificação constitucional na absolvição por insuficiência de provas para
condenar, v. item 5.4.1.3.1 infra.
1078 Sobre o tema da violação da presunção de inocência pela inserção da

expressão “ordem pública” sem qualquer parâmetro ou limitação


constitucional, v. itens 5.4.1.2.1.3 e 5.4.1.2.1.4 infra.
Se a presunção de inocência é um princípio constitucional a operar com grande e
extensa incidência em um sistema processual penal a ser elaborado e aplicado em nosso
país, caberá à doutrina e à jurisprudência fornecer os aprofundamentos necessários para
que ela seja um guia ideológico para os trabalhos tanto legislativos quanto judiciários e,
também, “um princípio-cardinal para as garantias de liberdade do imputado”.1079 É com o
que se pretende colaborar nos próximos itens ao se tratar do “âmbito de proteção” da
norma e de suas “restrições”.

5.4. Âmbito de proteção amplo da “presunção de inocência”

Como já foi explicitado, é pelo “âmbito de proteção” de uma norma de direito


fundamental que se estabelece a extensão de tutela da norma-princípio, dentro da qual se
deve incluir todo o segmento da vida que o constituinte quis assegurar aos cidadãos.1080
Essa tutela extensa e tendencialmente expansível, contudo, não significa que todo o
seu campo de cobertura será protegido de forma absoluta e permanente em todos as
hipóteses concretas, pois ele foi estabelecido prima facie. Por isso, primeiro deve-se
definir o “âmbito de proteção” para depois fazer com que sobre ele incidam as restrições
(reduções constitucional e proporcionalmente elaboradas e aplicadas). Conforme as
condições fático-jurídicas do caso concreto, após a incidência das restrições sobre o mais
abrangente “âmbito de proteção”, resultará qual a porção dos bens da vida protegida de
modo efetivo pela norma constitucional naquela situação específica.1081

1079 Adaptamos para a nossa atual realidade as palavras de Mario PISANI,


Introduzione cit., p. 46, quando o autor, em meados de 1965, assim
concluía seu estudo sobre o tema, em vernáculo: “A presunção de não
culpabilidade, em suma – e para concluir –, representa um princípio que
opera com larga extensão, e com notável incidência, nas estruturas
atuais do nosso processo; e que, se é suscetível de posteriores
aplicações normativas, e de posteriores aprofundamentos, na doutrina e
na jurisprudência, desde já, consagrada no texto constitucional, está a
exprimir princípio-guia para metodologia do acertamento penal, um
princípio-cardinal para as garantias de liberdade do imputado”.
1080 Sobre o tema do âmbito de proteção da norma de direito fundamental, v.

item 4.4.2 supra. Para a relação entre âmbito de proteção e suporte


fático da presunção de inocência, v. item 5.3 supra.
1081 Sobre o critério de formação do “conteúdo essencial” pela teoria relativa,

v. item 4.6 supra.


O objetivo, neste ponto do trabalho, é organizar e expor todos os aspectos que
devem compor o “âmbito de proteção” daquele princípio para que se perceba “como” e
“até onde” ele projeta seus efeitos em todas as áreas processuais penais. Com isso,
fornecem-se subsídios tanto para o legislador infraconstitucional elaborar um novo e
necessário arcabouço normativo processual penal, quanto para o Judiciário iniciar uma
discussão crítica de até onde se deve ou não aplicar a “presunção de inocência” em um
caso concreto.1082
O exame da extensão e conteúdo, pela perspectiva do “âmbito de proteção”, traz
benefícios maiores que os estudos até então realizados para a presunção de inocência.
Isto porque esses estudos sobre qual seria o âmbito de incidência da “presunção de
inocência” apresentam diversidade de critérios que, não raro, tornam-se discrepantes,
contraditórios, quando não são apenas parciais, ou seja, preocupam-se apenas com um
único aspecto da presunção de inocência. Não raro, surge uma impossibilidade
organizativa porquanto os critérios e as razões juspolíticas escolhidas pelos doutrinadores
são, propositalmente, díspares. A título exemplificativo dessa divergência cite-se a
acirrada e intensa discussão entre adeptos da “presunção de inocência” e defensores da
“presunção de não culpabilidade”, nos moldes como esta última foi concebida no início
do século passado.1083
Os influxos políticos e históricos não afetaram apenas os adeptos daquelas correntes
de pensamento, mas, a partir do início da segunda parte do século XX, não faltaram
autores cuja posição, em um admirável esforço para se manter coerente com a rejeição da
“presunção de inocência” como instituto jurídico autônomo e constitucional, reduziam-
na a um único ponto de seu conteúdo, p.ex, ora o “favor rei”1084 ora o “in dubio pro
reo”.1085

1082 Não obstante todo o foco de nosso trabalho esteja voltado para os
âmbitos Legislativo e Judiciário destinados ao processo penal, não se
pode negar que a presente exposição pode servir de baliza ao Executivo
e aos agentes privados identificarem os exatos espaços constitucionais
que devem respeitar e para os quais podem exigir o respeito de outrem
no tema da presunção de inocência.
1083 Disputa juspolítica já tratada e que colocou em campos opostos

verdadeiras correntes doutrinárias com vários adeptos (clássicos versus


positivistas e, posteriormente, clássicos versus técnico-jurídicos). Sobre
o tema, v. itens 2.3 e 2.4, com todos os seus respectivos subitens, supra.
1084 Entendendo a “presunção de não-culpabilidade”, prevista no art. 27.2 da

Constituição italiana, como a materialização em nível constitucional do


“favor rei” e, portanto, conferindo a esta última idéia muito do conteúdo
que outros autores, assim como no presente trabalho, aplicam à
presunção de inocência, v., por todos, Gilberto LOZZI, “Favor rei” e
processo penale, Milano: Giuffrè, 1968.
1085 Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio pro reo, Buenos Aires: EJEA,

1971, trata esse aspecto como mais abrangente que a presunção de


inocência, criticando-a como termo tecnicamente incorreto em algumas
A impossibilidade de organização ainda pode ser aplicada mesmo àqueles autores
que aceitam a “presunção de inocência” como direito fundamental, sinônimo da
presunção de não culpabilidade, e com a qual já guarda identidade não apenas ideológica,
mas também de conteúdo juspolítico. Isto porque, dada a extensão do tema, alguns se
preocupam com um ponto, v.g., a sua incidência na forma de tratamento do imputado no
curso da persecução penal,1086 enquanto outros focam como ele influi na decisão do
julgador em caso de dúvida fática.1087
Há, ainda, outros autores preocupados em definir cada um dos modos de
manifestação da “presunção de inocência” conforme as “famílias histórico-jurídicas” com
as quais guardam maior afinidade. Com isso partem suas análises das fontes e reflexos da
“presunção de inocência” na Common Law (mais próxima ao modo de decisão judicial)
ou na Civil Law (mais preocupada com os reflexos na forma de tratamento do
imputado).1088
Enfim, é racionalmente impossível, com base em um único dos critérios expostos,
uniformizar e organizar todo o pensamento e todos os aspectos e sentidos existentes na
presunção de inocência. A noção de “âmbito de proteção”, portanto, serve como critério
único e linha organizativa de todos os sentidos e significados da presunção de inocência
no direito processual penal.

passagens (v.g., op. cit., pp. 79/81). Para esse autor, o “in dubio pro reo”
contém vários aspectos que a doutrina, atualmente, atribui à presunção
de inocência. O momento político e histórico em que o autor elaborou
sua obra muito explica sua tentativa de garantir um tratamento e
julgamento mais justos aos imputados por meio de um conceito diverso
da presunção de inocência.
1086 Como trabalho nacional específico, precursor e de referência sobre esse

ponto, v., por todos, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção


de inocência e prisão cautelar.
1087 Como trabalho nacional específico e de referência sobre esse ponto, v.,

por todos, Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus da prova no


processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
1088 Como autores que analisam alguns aspectos da presunção de inocência

ligados a Common Law e Civil Law, v.: Ennio AMODIO, La tutela della
liberta personale dell’imputato nella convenzione europea dei diritti
dell’uomo, Rivista italiana de diritto e procedura penale, Milano, v. 10, n.
3, lug./set., 1967, pp. 867/868; Alexandra VILELA, Considerações cit.,
pp. 53/60; Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 28/30; Aldo
CHIARA, Presunzione di innocenza, presunzione di “non colpevoleza” e
formula dubitativa, anche alla luce degli interventi della Corte
Costituzionale, Rivista italiana di diritto e procedura penale, Milano, v. 1,
gen./mag., 1974, pp. 72/74, e nota 8; e Jaime VEGAS TORRES,
Presunción cit., pp. 34/35. Sobre o tema, v. algumas considerações no
item 3.8.2.1, quando se trata da visão ampla do conteúdo da presunção
de inocência.
Na tentativa de compreender de forma harmônica e integrativa tudo o quanto já se
disse sobre “presunção de inocência”, deve-se analisar as três partes em que se pode
subdividir o “âmbito de proteção” desse específico direito fundamental. Para facilitar a
percepção de cada uma, elas podem ser percebidas por meio de três perguntas básicas: a)
a efetivação da presunção de inocência no processo penal depende, de modo mais direto,
de quais níveis estatais? b) quais os bens da vida protegidos por ela? c) qual a sua extensão
subjetiva e objetiva no âmbito processual penal?1089
Nessas três porções podem ser organizados racionalmente todos os desdobramentos
e significados atribuídos e atribuíveis à presunção de inocência. Por esses pontos a
presunção de inocência se manifesta de forma cogente e se aplica ao processo penal.
Porém, necessário destacar, mais uma vez, que o presente estudo não se propõe a
examinar cada instituto jurídico-processual penal com o qual a presunção de inocência se
relaciona (direta ou indiretamente). Pretende-se apenas fornecer um método para a mais
abrangente e analítica compreensão de sua estrutura normativa e como essa abordagem
pode emprestar mais coerência no exame de alguns daqueles institutos em face da
presunção de inocência.
Dessa forma, e para que se comprove o ganho também prático da exposição, na
medida em que se analisa cada uma daquelas porções do “âmbito de proteção” utiliza-se
de ao menos um instituto processual penal para se demonstrar a coerência e abrangência
propiciada pela proposta do presente trabalho.

5.4.1. -“Presunção de inocência” como norma de orientação legislativa e


judiciária: “favor rei” e “in dubio pro reo”

Ao se formular a primeira indagação acima (“a efetivação da presunção de inocência


no processo penal depende, de modo mais direto, de quais níveis estatais?”) busca-se
analisar de quais ações estatais ela depende mais diretamente para se realizar no
ordenamento processual penal brasileiro.
Já se demonstrou que os direitos fundamentais de primeira geração, mesmo os
voltados ao processo penal, carecem de uma atuação estatal para sua realização.1090 Com
apoio na doutrina constitucional, expôs-se que aqueles direitos carecem que o Estado
cumpra seu “dever estatal de proteção” e propicie “organização e procedimento” a fim de
que aqueles direitos possam ser efetivados da forma mais abrangente possível.

1089 Essas perguntas orientam as considerações feitas, respectivamente,


nos itens 5.4.1, 5.4.2 e 5.4.3, e seus respectivos subitens, infra.
1090 Sobre o tema, v. item 3.8.2 e seus subitens supra.
Com a presunção de inocência não é diferente, emergindo de forma mais
significativa para ela a atuação do Poder Legislativo e do Poder Judiciário.1091 Isto porque
do Legislativo advêm as necessárias leis infraconstitucionais conformadoras daquele
preceito fundamental no sistema processual penal, e do Poder Judiciário esperam-se as
mais proporcionais e justificadas interpretações e aplicações daquelas leis ao caso
concreto. Como se percebe, com esses dois Poderes a presunção de inocência guarda uma
relação de influência e de dependência mais estreitas.
Quanto ao Poder Legislativo, a presunção de inocência influi (ou deveria influir)
nas escolhas e elaborações legais na medida em que, como princípio constitucional,
precisa ser observada e respeitada pelo legislador. Ao mesmo tempo, e em sentido
vetorial inverso (Legislativo  presunção de inocência), ela depende do trabalho
legislativo para ter seu espaço normativo mais minudenciado e, com isso, permitir sua
melhor aplicação e efetividade.1092
Quanto ao Poder Judiciário, tal qual exposto antes, por ser a presunção de inocência
um direito fundamental, dita (ou deveria ditar) a forma de analisar os fatos e
interpretar/aplicar as leis. Em sentido inverso (Judiciário  presunção de inocência), sua
efetivação depende do Judiciário na medida em que não será uma realidade para o
cidadão se não for aplicada por ele nos casos concretos. De nada adianta tê-la em texto
constitucional se esse preceito lingüístico não se tornar realidade para quem dele precisa
em sua relação com os órgãos estatais de persecução e jurisdição criminais. Máxime
quando se percebe que, também por determinação constitucional, ninguém poderá ser
privado de seus bens ou liberdade sem ordem judicial escrita e fundamentada. Em outras
palavras: só o Judiciário pode, em cada caso concreto, efetivamente, garanti-la.
Para melhor compreensão da relação entre a presunção de inocência e aqueles dois
Poderes, é de grande utilidade a análise das tradicionais e históricas idéias presentes em
dois brocardos jurídicos ligados àquele preceito constitucional: o “favor rei” e o “in dubio
pro reo”. Contudo, são necessárias algumas explicações iniciais para se delimitar como
tais expressões se ligam aos âmbitos legislativo e judiciário e qual a relação que se
entende melhor entre elas e o direito fundamental da presunção de inocência.

1091 Não se quer, com isso, afirmar que tanto o Executivo quanto os agentes
privados não sejam importantes em sua realização. Ocorre apenas uma
escolha do trabalho por preferir o estudo apenas daqueles dois âmbitos
de poder/função/atividade pública. Sobre as influências que a presunção
de inocência projeta e recebe do Executivo e dos agentes privados, v.
item 5.3.3.1 supra.
1092 Nesse sentido, v. José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción” cit., pp.

295/298. Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 361/365,


afirma que a influência da presunção de inocência no âmbito legislativo
vem desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789, estando hoje consagrada tanto a sua perspectiva subjetiva, de
direito individual, quanto objetiva, de conformadora da ordem legal e da
comunidade política. Sobre as perspectivas objetiva e subjetiva da
presunção de inocência, v. item 3.8 e seus subitens supra.
5.4.1.1. -“Favor rei” e “in dubio pro reo”: diferenças entre os significados e
a relação de ambos com a presunção de inocência

Como já foi demonstrado inicialmente, o “favor rei” e o “in dubio pro reo”, assim
como seus corolários (“favor libertatis” e “favor benignitatis”; “in dubio pro libertate” e
“in dubio pro dignitate”; entre outros), eram aplicados tanto no campo penal como no
campo não-penal, uma vez que, nos primórdios, não havia uma diferenciação técnica tão
precisa entre as áreas jurídicas (penal e não-penal) e as citadas expressões.1093
Atualmente, mercê de toda uma evolução técnica, as expressões devem ser diferenciadas
e seus âmbitos de incidência distinguidos.
O ponto central para referida distinção resulta da observação do sentido que as
próprias expressões empregam. “In dubio pro reo” traz em si uma idéia de que há
“dúvida” (“in dubio”) e de que ela deve ser resolvida favoravelmente ao réu (“pro reo”).
“Favor rei”, por sua vez, é uma escolha valorativa que não tem como causa a “dúvida”,
sua base informadora são os ideais de igualdade, dignidade da pessoa humana e proteção
da liberdade e do patrimônio do cidadão, por meio de um devido processo legal.
O “favor rei”, por ser uma forma de realização efetiva desses ideais, incide tanto no
campo legislativo, para conformação de leis que visem garanti-los, quanto no campo
judicial, na medida em que indica ao julgador qual é a opção axiológica definida
constitucionalmente e que ele também deverá ter ao interpretar o dispositivo legal
(extrair a “norma” ou “sentido” do texto da lei) ao caso concreto.

1093Sobre os termos “reus” ou “rei” serem aplicáveis tanto ao campo penal


como ao campo não-penal, no direito romano antigo, v. itens 1.2.1.1
(nota 11), 1.2.2 (nota 48) e 1.2.3.3.1 (notas 95 e 96) supra. Sobre os
corolários do “favor rei” assim como do “in dubio pro reo”, e seus
desdobramentos, v. as várias passagens romanas destacadas nos
subitens do item 1.2.3.3 supra.
O “in dubio pro reo”, ao contrário, não tem incidência no campo legislativo, uma
vez que a lei não traz dúvidas, seja em sua formação, seja em sua interpretação ou
aplicação. A lei apresenta apenas possibilidades interpretativas, dentro das quais não há
espaço para dúvidas técnicas. Cada forma de interpretar é certa e tecnicamente clara o
suficiente para que o intérprete entenda suas conseqüências. Com isso não se quer
afirmar que o processo interpretativo não seja complexo e não apresente dificuldades em
sua elaboração, apenas se demonstra que a interpretação é uma escolha entre
possibilidades, em si mesmas, certas. A variedade não traz a dúvida, apenas a necessidade
de se empreender uma escolha. Um ou outro modo de interpretar significa escolher
entre várias posturas coerentes com os pressupostos teórico-ideológicos tomados e,
portanto, são, em si mesmas, tecnicamente certas e claras. Não se pode confundir a
dúvida gerada pelo desconhecimento ou pelo conhecimento parcial de algo, típica do “in
dubio pro reo”, com a escolha que deve ser feita conforme a linha doutrinária,
metodológica ou ideológica que o intérprete possua. O “favor rei” incide exatamente
neste instante da escolha valorativa, indicando ao intérprete, dentre as opções
tecnicamente justificáveis e, portanto, em si mesmas certas e claras quanto à
compreensão do texto normativo, qual ele deve escolher.
Quando o intérprete do texto legal é o julgador, ele deverá fazer as escolhas
conforme os valores constitucionais. O legislador, durante os debates legislativos, não
permanece em dúvida quanto ao significado das várias possibilidades de enunciados
normativos, dos quais ele poderá escolher este ou aquele para representar sua intenção.
Sabe (ou deveria saber) exatamente o que cada um produzirá de efeitos. O que ocorre no
debate legislativo também é uma escolha valorativa, a qual, por sua vez, já está
axiologicamente determinada pelos preceitos constitucionais, aos quais o legislador,
como o julgador, está submetido. Qualquer escolha que não esteja conforme com os
valores constitucionais resultará em “lei inconstitucional”, devendo ser retirada do
ordenamento jurídico por vício de conformidade.
A “dúvida”, inerente ao “in dubio pro reo”, sempre advém dos fatos, os quais podem,
ou não, estar provados nos autos criminais. Daí se dizer que o “in dubio pro reo” está
ligado a fatos (não provados ou provados de forma insatisfatória) e pode incidir em
qualquer momento decisório judicial, não apenas no instante da decisão sobre o meritum
causae.1094 Desta forma, o “in dubio pro reo” limita-se ao âmbito judiciário, destinado e
determinado pelo caso concreto, e não projeta seus efeitos no âmbito legislativo, voltado
à elaboração da lei em nível abstrato.1095

1094Quanto ao “in dubio pro reo” ser forma de superação de dúvida fática
em favor do imputado, v: Giuseppe BETTIOL, Instituições de direito e de
processo penal, tradução de Manuel da Costa Andrade, Coimbra:
Coimbra, 1974, p. 300; idem, La regola “in dubio pro reo” nel diritto e nel
processo penale, in Giuseppe BETTIOL, Scritti giuridici, Padova:
CEDAM, 1966, t. 1, pp. 315/316; Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO,
Pronúncia e o in dubio pro societate, in José Henrique PIERANGELI,
Direito criminal, Belo Horizonte: Del Rey, 2002, v. 4, p. 58, nota 5; Cezar
PELUSO, Garantias constitucionais da liberdade, palestra proferida no
Destacadas essas diferenças entre o “favor rei” e o “in dubio pro reo”, deve-se
analisar, agora, por que esses preceitos compõem o âmbito de proteção da presunção de
inocência quando aplicados ao direito processual penal.
No presente trabalho, entende-se que a melhor forma de integrar e inter-relacionar
tanto o “favor rei” quanto o “in dubio pro reo”, é percebê-los como aspectos, significados,
projeções ou manifestações da presunção de inocência.1096 São manifestações ou aspectos
do enunciado normativo daquele princípio; são sentidos que dele se extraem, “normas”
que ele contém em seu texto legal.1097

XII Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais,


São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2006 (disponível
para consulta na videoteca do Instituto); Cristina Líbano MONTEIRO,
Perigosidade cit., pp. 9, 50/54 e 65/70, passim; Manuel JAÉN VALLEJO,
La presunción cit., pp. 19/22; idem, La presunción cit., item VII; Esteban
ROMERO ARIAS, La presunción cit., pp. 19/20; Ernest BELING,
Derecho procesal penal, tradução de Miguel Fenech, Barcelona: Editorial
Labor, 1943, pp. 181/182; Aurélia María ROMERO COLOMA, Libertad
cit., pp. 96/97; Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 201/207;
José Maria LUZÓN CUESTA, La presunción de inocencia ante la
casación, Madrid: Colex, 1991, p. 18; Helena Magalhães BOLINA, Razão
cit., p. 445; Willman Ruperto DURÁN RIBERA, Las garantías cit., pp.
1830/1831; Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La mínima actividad
probatoria en el proceso penal, Barcelona: Bosch, 1997, p. 606; Juan
Alberto belloch julbe, Enrique Torres y López de lacalle, José guerra san
martin, El derecho cit., pp. 1185/1186; e Mercedes FERNÁNDEZ
LÓPEZ, Prueba cit., p. 191.
1095 Sobre o “in dubio pro reo” não se aplicar à interpretação de lei, v., por

todos, Giuseppe BETTIOL, Instituições cit, pp. 311/312.


1096 José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción” cit., pp. 265/268, após

apontar as diferenças existentes entre “favor rei”, “in dubio pro reo” e
“presunção de inocência”, coloca este último conceito como o ponto de
convergência dos demais devido à sua estatura de direito fundamental
do cidadão e, por isso, abrangendo os outros dois. Dessa forma, entende
a presunção de inocência com as seguintes características (op. cit., p.
280): a) como critério informador e inspirador do ordenamento jurídico
processual, é manifestação ou aplicação concreta do princípio geral do
“favor rei”; b) como preceito constitucional é um critério normativo de
aplicação direta, vinculante de todos os poderes públicos; c) é garantia
constitucional do processo e direito fundamental do cidadão; e d) não se
trata de genuína “presunção”, mas de “verdade interina ou provisória”.
1097 Sobre a concepção de “norma” como sentido, significado ou produto da

interpretação do enunciado normativo (texto normativo ou texto de lei), v.


item 3.7.1. Para a possibilidade de vários significados integrarem o
conceito amplo de presunção de inocência, v. item 3.8.2.1 supra. Para
presunção de inocência como norma-princípio na “teoria dos princípios”,
v. item 4.3.1.
Antes da inscrição da presunção de inocência nos tratados internacionais do pós-
guerra e antes do surgimento das teorias constitucionais de direitos fundamentais, as
quais tiveram melhor desenvolvimento a partir da década de setenta, formou-se uma
significativa corrente doutrinária que afirmava o contrário, ou seja, que é do “favor rei”
que advém a presunção de inocência e também o “in dubio pro reo”.1098 Esta corrente
doutrinária afirma que o “favor rei” é “princípio geral de direito”, destinado à

1098Dentre os autores que primeiro trabalharam de modo mais consistente


essa perspectiva, destacam-se: Giuseppe BETTIOL, Instituições cit., pp.
296/298, e Gilberto LOZZI, “Favor rei” cit., pp. 6/11. Ambos rejeitam, em
verdade, a idéia de presunção de inocência, ligando ao “favor rei” a
construção do princípio da “presunção de não culpabilidade”, conforme
disposto no art. 27.2 da Constituição italiana. Porém, muito do que esses
autores citados afirmam pertencer ao “favor rei” a doutrina, desde o
quarto final do século passado, compreende como inserido na
“presunção de inocência”. Atendo-se apenas ao escólio de Giuseppe
BETTIOL, nota-se, em várias passagens de sua obra, que ele coloca o
“favor rei” como “princípio base de toda legislação processual penal” (op.
cit., p. 295), “princípio inspirador da interpretação. Isto significa, nos
casos em que não for possível uma interpretação unívoca, mas se
conclua pela possibilidade de duas interpretações antagônicas de uma
norma legal (antinomia interpretativa), há obrigação de escolher a
interpretação mais favorável ao arguido” (op. cit., p. 296). Tanto
Giuseppe Bettiol quanto Gilberto Lozzi são conformes em afirmar que o
“favor rei” é um princípio geral de direito aplicado ao processo penal
como critério interpretativo e, ainda, implícito em vários dispositivos.
Aliás, por entenderem-no como princípio geral de direito, não o limitam
ou o circunscrevem a uma única área jurídica, projetando seus efeitos
em vários campos do ordenamento (p.ex., o direito penal). Alexandra
VILELA, Considerações cit., pp. 43/45, e José Luis VAZQUEZ SOTELO,
“Presunción” cit., pp. 250/254, observaram esta posição assumida por
Giuseppe BETTIOL, detectando, inclusive, como a posição desse autor
foi se alterando com o tempo e, em sua última versão, defendia que o
“favor rei” é um “princípio básico de toda legislação penal e processual
de um Estado inspirado, em sua ação política e em seu ordenamento
jurídico, em um critério superior de liberdade” (Instituições cit., p. 295).
Ainda no sentido de entender que a presunção de inocência e o “in dubio
pro reo” derivam do “favor rei”, v.: Manuel JAÉN VALLEJO, La
presunción cit., pp. 19/22; José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción”
cit., pp. 291/292; André Luiz NICOLITT, As subversões da presunção de
inocência: violência, cidade e processo penal, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2006, p. 89; e Rogério Schietti Machado CRUZ, Prisão cautelar:
dramas, princípios e alternativas, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, pp.
68/69. Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La presunción cit., p. 45, é um
dos autores a rejeitar a construção doutrinária de que a presunção de
inocência ou o “in dubio pro reo” derivam do “favor rei”.
interpretação de dispositivos legais e que, nesta qualidade, fornece a base necessária para
a criação da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”.1099
Diante da perspectiva constitucional empreendida no presente trabalho, não se
toma essa corrente como a que oferece a melhor explicação da relação mais profícua
entre aquelas três idéias (“in dubio pro reo”, “favor rei” e “presunção de inocência”). Isto
porque, ao se vincular a presunção de inocência a um princípio geral de direito (“favor
rei” ou “in dubio pro reo”), colocar-se-á a latere sua natureza de norma fundamental
constitucional e suas decorrentes força cogente e tendência expansiva. Não se nega, com
isso, a identidade de origem entre as três idéias citadas, porquanto todas derivam da visão
igualitária, humanística e justa que deve orientar um ordenamento jurídico.1100
Contudo, emerge melhor compreender o “favor rei” e o “in dubio pro reo” como
aspectos da presunção de inocência, ou seja, como integrantes do seu “âmbito de
proteção”, porque, desta forma, estendem-se a eles a mesma força cogente e tendência
expansiva deste princípio constitucional ao qual se ligam.1101 Assim, deixam de ser opções
interpretativas para escolha judicial ou legislativa, para tornarem-se imposições
constitucionais.1102 Como integrantes de um direito fundamental destinado à aplicação
em âmbito processual penal, passam a ser determinações constitucionais às quais
legislador e julgador não poderão se furtar, sob pena de agirem inconstitucionalmente,
por descumprimento da presunção de inocência.1103

1099 Em sentido contrário, entendendo o “in dubio pro reo” como princípio
geral do direito precursor da presunção de inocência, v. Esteban
ROMERO ARIAS, La presunción cit., p. 22.
1100 Para referência ao “in dubio pro reo” com origem na “justiça” e na

“legitimidade do exercício do “jus puniendi”, v. Cristina Líbano


MONTEIRO, Perigosidade cit., pp. 57/59. Para Manuel JAÉN VALLEJO,
La presunción cit., p. 20, o “in dubio pro reo” está vinculado às noções de
justiça e humanidade.
1101 Esteban ROMERO ARIAS, La presunción cit., p. 22, entende que, como

o “in dubio pro reo” foi fonte formadora da presunção de inocência, no


instante em que essa foi erigida à norma constitucional aquele também o
foi.
1102 Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 20/24, afirma que a

presunção de inocência, na medida em que se torna um direito


fundamental, deixa de ser apenas um princípio geral do direito. O
afirmado pela a autora pode, sem qualquer reparo, ser estendido aos
aspectos e manifestações nos quais aquele princípio se desdobra, no
presente ponto do trabalho: o “favor rei” e o “in dubio pro reo”.
1103 Mario PISANI, Introduzione cit., pp. 45/46, entende, como exposto no

presente trabalho, que a noção de “presunção de inocência” oferece um


fundamento unitário à disciplina do processo penal melhor que a idéia
fragmentária do “favor rei”. Isto porque sua análise parte do princípio
constitucional com força política e ideológica, externa ao âmbito da
norma infraconstitucional e, portanto, de preceito hierarquicamente
superior (Constituição). Mutatis mutandis, a mesma razão e benefício
Ao se inserir, pelas razões já expostas, o “favor rei” e o “in dubio pro reo” no âmbito
da presunção de inocência, não se afirma que eles não projetem influências em outros
âmbitos normativos para além do processo penal.1104 O “favor rei” e o “in dubio pro reo”
não se exaurem na presunção de inocência quando aplicada ao processo penal, mas têm
nela um de seus importantes significados. A presunção de inocência, por sua vez, para se
efetivar em uma relevante gama de situações, precisa do “favor rei” como modo de
elaborar e interpretar disposições jurídicas no campo processual penal e, por outro lado,
precisa do “in dubio pro reo” como modo de decisão de dúvidas fáticas do juízo. Esse
critério axiológico, para se criar e aplicar as normas, e esse critério de decisão judicial, em
caso de dúvida no processo penal, são manifestações (sentidos e significados) da
“presunção de inocência”.
Diferenciado o “favor rei” do “in dubio pro reo” e explicitada a razão pela qual
ambos integram o âmbito normativo da “presunção de inocência”, deve-se analisar como
eles colaboram na efetivação daquele princípio fundamental nos âmbitos legislativo e
judiciário.

5.4.1.2. (segue): “favor rei” como significado da presunção de inocência

Como já exposto no item anterior, o “favor rei” é relevante para a “presunção de


inocência” tanto no instante legislativo, quando deve orientar a formação legislativa
infraconstitucional processual penal de modo a não se elaborarem leis abstratamente
desconformes àquele dispositivo constitucional, quanto no âmbito judicial, para orientar
a escolha da interpretação mais favorável ao imputado.
Para uma melhor didática expositiva da interação dos dois âmbitos de incidência do
“favor rei” (o legislativo e o judiciário), ambos serão tratados conjuntamente na medida
em que se sugere um modelo (constitucional) de medidas de coação no processo penal.
Essa opção didática em nada prejudica a compreensão do “favor rei” naqueles dois
âmbitos, pois os influxos axiológicos constitucionais norteadores são idênticos e devem
ser aplicados segundo os mesmos critérios tanto pelo legislador quanto pelo julgador.

são percebidos e defendidos por Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ,


Prueba cit., pp. 187/190, para inserir o “in dubio pro reo” na presunção
de inocência, mais especificamente na presunção de inocência como
“norma de juízo”.
1104 Sobre o “in dubio pro reo” ser forma de solução de dúvida judicial para

qualquer área processual destinada à reconstrução fática, v. Cristina


Líbano MONTEIRO, Perigosidade cit., p. 16, e Santiago SENTÍS
MELENDO, In dubio cit., p. 55. Quanto ao “favor rei”, v. algumas
considerações para o direito penal em Gilberto LOZZI, “Favor rei” cit.,
cap. VI, quando trata do tema da sucessão das leis penais no tempo.
5.4.1.2.1. -“Favor rei” na elaboração de lei processual penal e na
orientação de decisão judicial: medidas de coação no
processo penal

Como não é possível, nos limites do presente trabalho, empreender-se uma


exposição de como deve ser todo um sistema processual penal conforme à atual
Constituição, optou-se pela aplicação de todo o até aqui expendido no campo das
medidas de coação.1105

1105 Prefere-se tratar o tema sob a denominação de “medidas de coação” e


não “medidas cautelares”, exatamente porque se aceita no presente
trabalho, nesse modelo sugerido por nós e a ser criado, hipóteses
residuais e excepcionais de prisão no curso da persecução por motivos
materiais. No mesmo sentido, porém preferindo a expressão “medidas
de coerção”, foi redigido o Capítulo 6 do Título III (“A atividade
processual”) do Livro Primeiro (“Disposições gerais”) do Código
Processual Penal Modelo para a Ibero-América, sendo que esta
legislação sugerida para o continente ainda possui a expressa inserção,
em seu art. 3º, do princípio da presunção de inocência como princípio
básico àquela referência legislativa latino-americana. Assim, seria um
equívoco incluí-la como medida cautelar, uma vez que a doutrina
processual, de há muito, fixou que medida cautelar é aquela com
finalidade processual e pela qual se visa assegurar o processo e seu
resultado. Assim, qualquer prisão material (provisória ou definitiva) não
pode ser inserida nesse conceito criado com justificação teleológica
específica e doutrinariamente clara. Em nossa escolha tomamos como
referência o atual Código de Processo Penal português, o qual tem, em
seu Livro IV da Parte Primeira, a previsão “Das medidas de coacção e de
garantia patrimonial”. Como referência doutrinária de aplicação dos
estudos sobre a cautelaridade no tema da prisão provisória, v. Aury
LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 198/229. O presente trabalho,
nesse ponto referente à possibilidade de prisão provisória por razões
materiais, representa uma mudança de posição que até então
defendíamos. Nosso posicionamento teórico anterior pode ser verificado
na obra de Alberto Silva FRANCO e Rui STOCO (coord.), Código de
processo penal e sua interpretação jurisprudencial, 2ª ed., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004, v. 3, pp. 197/200. Analisando o tema pela
perspectiva da cautelaridade, a aporia entre prisão provisória e
presunção de inocência era evidente e intransponível, fazendo com que
nosso apreço incondicional à defesa da Constituição fizesse com que
apoiássemos esse direito fundamental e, portanto, rejeitássemos
qualquer prisão provisória sem fundamento processual. No decorrer dos
estudos do presente tema, porém, percebemos que a melhor e maior
defesa dos direitos fundamentais se dá pela perspectiva do conteúdo
essencial relativo desses direitos. A mudança de ponto de vista foi uma
A escolha desse ponto se justifica pelo fato de que, na realidade brasileira, as prisões
no curso da persecução representam uma banalizada forma de violação da presunção de
inocência1106 e, também, porque representam uma área do sistema processual em que se
pode mostrar a pertinência de muitos aspectos até aqui desenvolvidos no trabalho.

decorrência lógica e material. Não mudou nossa defesa intransigente da


Constituição, o que mudou foi que percebemos que pela perspectiva da
cautelaridade a aporia é indissolúvel e a presunção de inocência não
ganha em efetividade e desenvolvimento. Nos parágrafos que seguem,
no texto principal, pretende-se expor as aplicações e melhorias que
entendemos justificam nossa mudança de posição neste ponto
específico do tema: possibilidade de prisão provisória por motivos
materiais somente se o sistema processual brasileiro tiver nova
estruturação normativa e em casos excepcionalmente justificáveis e de
modo proporcional. A prevalecer o sistema atual, continuamos a
entender inconstitucional a amplitude e falta de parâmetro dos conceitos
de “ordem pública” e de “ordem econômica”, principais meios sempre
usados para inserção de justificativas materiais inconstitucionais para a
prisão no curso persecutório.
1106 Consultado o sítio eletrônico do Conselho Nacional de Política Criminal

e Penitenciária (www.mj.gov.br/cnpcp), em 31.03.2008, extraíram-se os


seguintes dados: a) o total populacional no sistema prisional (não
incluídos os presos pelas Secretarias de Segurança Pública estaduais)
somava 366.359 pessoas; b) o total de presos dos sistemas
penitenciários estaduais e das Polícias estaduais (Secretarias de
Segurança Pública) somava 422.373 pessoas; c) o total de presos
provisórios (não incluídos os das Secretarias de Segurança Públicas)
somava 127.452; d) o total de presos das Secretarias de Segurança
Pública dos Estados somava 56.014. Em uma análise percentual, tem-
se, portanto, que a se considerar como base de cálculo “c” e dividi-la por
“a” chega-se a um percentual de aproximadamente 35% de presos
provisórios. Se, de modo diverso, a análise percentual se der com a
inclusão dos presos das Secretarias mencionadas (“c” + “d”) dividido por
“b”, chega-se ao alarmante percentual de quase 44% de presos
provisórios. A realidade nacional não difere em nada do ocorrente com a
América Latina como um todo. Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo no
direito penal, tradução de Sérgio Lamarão, Rio de Janeiro: Revan, 2007,
p. 109, revela a importância do tema para nosso continente ao informar
que três quartos (3/4) da população carcerária de nosso continente está
presa com base em título cautelar, preventivo, não-definitivo ou, de um
modo geral, provisório.
Há dois pressupostos básicos a serem postos em ressalto já em um instante inicial: o
primeiro é que a estatura constitucional da presunção de inocência não significa que a
pessoa não possa sofrer restrições à sua liberdade e, o segundo, é que essas restrições
devem ser elaboradas e aplicadas de modo proporcional e com justificação
constitucional.1107 Em outras palavras: o direito constitucional da presunção de inocência
exige que suas restrições sejam elaboradas, interpretadas e aplicadas de modo estrito e
rigoroso porquanto se está no campo excepcional da redução do âmbito de proteção de
um direito fundamental. Se a sua redução é inevitável em um sistema de princípios
interdependentes, ela deve sempre ocorrer da menor forma possível.1108
Pela perspectiva da presunção de inocência, o ponto crucial na elaboração de um
modelo de coação de direito à liberdade do cidadão é saber se é possível haver sua prisão
por razões materiais no curso da persecução penal.1109 Em outros termos, e utilizando-se,
a título exemplificativo, de uma expressão que já faz parte de nossa legislação processual,
deve-se perguntar: é possível uma prisão fundada no conceito material de “ordem
pública”?1110 Pode ocorrer prisão por razões materiais antes da decisão condenatória
definitiva?

1107 Para uma análise da proporcionalidade como limite na elaboração das


normas processuais penais restritivas de direitos fundamentais, v. item
4.5.1 e seus subitens supra.
1108 Sobre a necessidade de que toda restrição a direito fundamental

também seja restringida (limite dos limites), v. item 4.5 e seus subitens
supra. Para o fato de que o mais importante referencial constitucional é a
presunção de inocência, sendo qualquer possível restrição uma
excepcionalidade que deve ser analisada pela perspectiva vetorial
“Constituição  legislação infraconstitucional”, v. item 5.2 supra.
1109 No presente trabalho, utiliza-se o termo “prisão provisória” para qualquer

forma de prisão determinada no curso da persecução, em contraponto,


pois, à “prisão definitiva” ou “prisão-pena” decorrente de decisão
condenatória definitiva.
1110 Nosso foco de atenção, na exposição de nosso perfil de modelo

constitucional para medidas coativas, terá sempre como referência


apenas a expressão “ordem pública”. Deixa-se de lado a correlata
expressão “ordem econômica”, inserida no art. 312 do Código de
Processo Penal pela Lei 8.884/94, por duas razões: primeira, a
expressão “ordem econômica” sofre as mesmas críticas que a doutrina
dirige à “ordem pública”; segunda, muito do que se dirá doravante
também pode ser aplicado àquela expressão, não sendo necessário
adentrar-se ao tema da definição de “ordem econômica”, ainda muito
debatido. Como obra de referência sobre o tema da “ordem econômica”
em campo jurídico diverso do direito criminal, v. Eros Roberto GRAU, A
ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica, 3ª
ed., São Paulo: Malheiros, 1997.
Seria admissível responder-se a essas indagações de modo afirmativo somente e
apenas em um novo sistema processual penal, a ser construído com base na
proporcionalidade e na justificação constitucional do “favor libertatis” e do “favor
dignitatis” (derivações do “favor rei”), pelas quais a prisão por ordem pública teria
ocorrência reduzida e residual (ultima ratio), em situações limites e com motivação
judicial consistente e específica.
Fica claro, já nessa afirmação inicial, que a “ordem pública”, nos moldes em que
hoje se encontra prevista em nossa legislação, é inconstitucional e não pode ser aplicada
nos moldes abertos em que nossa cultura jurisprudencial e doutrinária se habituou a
fazer. Isso não porque o conceito precise ser retirado do sistema, mas porque ele precisa
ser reduzido ao mínimo por meio de um balizamento infraconstitucional ainda não
existente.1111
Para se compreender o acima exposto, há necessidade de explicitar as indispensáveis
características de um novo modelo constitucional de coação da liberdade individual na
constância da persecução penal.

5.4.1.2.1.1. -“fumus delicti commissi” e “periculum libertatis”:


excepcionalidade de qualquer medida coativa

Para que a presunção de inocência informe toda a construção legislativa do sistema,


é necessário ter-se em mente que qualquer medida de coação anterior à decisão final é
excepcional, por mais tênue que seja sua incidência na esfera de direitos do imputado.
Em uma concepção ampla de suporte fático da presunção de inocência, tanto o
âmbito de proteção quanto as restrições devem ser compreendidos de modo amplo. Por
essa perspectiva, qualquer ato (público ou privado) pode ser tido como restrição, mesmo
que tenha pequenas repercussões no direito fundamental.1112 Assim, restrição à
presunção de inocência, em qualquer de seus aspectos ou em qualquer intensidade, deve
guardar justificação constitucional e proporcionalidade (abstrata e concreta).1113

1111 A inaplicação, portanto, nos moldes atuais, dar-se-ia porquanto o


conceito de ordem pública, como está hoje posto em nosso sistema, não
apresenta nem justificação constitucional nem proporcionalidade. Sobre
o tema específico da ordem pública consistir, na atual legislação,
violação da presunção de inocência já no plano abstrato da norma, v.
item 5.4.1.2.1.3 infra.
1112 Sobre a escolha do suporte fático amplo e as suas conseqüências no

âmbito de proteção e nas restrições, sendo que entender essas últimas


de modo amplo significa que haverá restrição a ser limitada e tratada no
campo da excepcionalidade, mesmo que a redução na esfera de
garantia da norma de direito fundamental seja ínfima, v. itens 4.4.1 e 4.5,
e seus subitens, supra.
1113 Sobre esses aspectos como valores a orientarem a formação legislativa

e a decisão judicial, v. item 5.4.1.2.1.2 infra.


Como toda e qualquer intervenção estatal na esfera jurídica do imputado é, em
menor ou maior grau, antecipação de eventuais efeitos de uma condenação, ela não
poderá ocorrer de ordinário, mas apenas em caráter excepcional.1114 Assim, criar várias
medidas anteriores e menos invasivas aos direitos do cidadão, quando comparadas com a
prisão provisória, não as desnatura como medidas restritivas e, portanto, excepcionais.
Não torna desnecessário o exame da sua constitucionalidade tanto em plano legislativo
abstrato, quanto na esfera judicial de concreção da norma. Desde a restrição mais leve até
a mais intensa devem apresentar em nível legislativo (nível abstrato da norma)
proporcionalidade e justificação constitucional, cujas verificações e cumprimento devem
ocorrer também em nível judicial, ao se interpretar e aplicar a lei ao caso concreto.
Na elaboração de um modelo legislativo, que obedeça a essa excepcionalidade das
medidas restritivas, o primeiro passo consiste em se determinar ao juiz que justifique se o
caso concreto subsume-se àquela excepcionalidade.1115 Assim, o legislador deverá definir
que o juiz, em cada caso concreto, demonstre o que a doutrina já consagrou como “fumus
delicti commissi” e “periculum libertatis”. A fixação da excepcionalidade da medida
inicia sua demonstração pela constatação desses dois pontos.1116
Pela previsão do “fumus delicti commissi” o legislador exigirá que o juiz demonstre,
de modo objetivo e concreto, quais são os elementos constantes dos autos (investigativos
ou judiciais) reveladores da existência de crime (materialidade) e em que medida o
imputado a ser submetido à coação está envolvido com os fatos (autoria).1117 Determinará
também que o grau de convicção judicial seja tão mais elevado quanto mais restritiva for
a medida a ser aplicada.1118 O julgador deverá indicar sempre de quais elementos
objetivos e constantes dos autos extraiu a base fática para formar sua convicção de que o
crime ocorreu e que o sujeito a ser submetido à constrição está envolvido em seu
cometimento.1119

1114 Sobre a necessidade das prisões provisórias serem sempre


excepcionais, v. Cezar PELUSO, Garantias cit. Para o tema da
excepcionalidade das restrições a quaisquer direitos fundamentais, v.
item 4.5 supra. Para a presunção de inocência, v. item 5.3.2.2 supra.
1115 Nesse sentido, v. Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit.,

pp. 65/66.
1116 Nesse sentido, v.: Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 133;

Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., p. 210; e Odone SANGUINÉ,


Prisión cit., pp. 440/441, com base em Jacques Robert (Droits de
l’homme et libertès fondamentales, 5ª ed., 1993, p. 244).
1117 Sobre a essencialidade e necessária preexistência de demonstração da

materialidade do fato e indícios de autoria e sua natureza de pressuposto


de qualquer medida cautelar, não apenas a de prisão, assenta a mais
recente legislação processual penal projetada. Comissão de Juristas,
nomeada pelo Senado Federal, elaborou recente Anteprojeto de
Reforma do Código de Processo Penal no qual se prevê, em seu art. 515
que “não será imposta medida cautelar sem que existam indícios
suficientes de autoria e materialidade do crime”. Essa norma vem
completada e reafirmada pelo art. 520, no qual se define a obrigação do
julgador motivar toda decisão sobre qualquer que seja a medida cautelar,
definindo especificamente a “indicação dos indícios suficientes de autoria
e materialidade do crime” (inciso, II, do § 2º, do citado artigo).
1118 Nesse sentido, v. Robert ALEXY, Colisão e ponderação como problema

fundamental da dogmática dos direitos fundamentais, palestra proferida


na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10.12.1998,
tradução informal de Gilmar Ferreira Mendes, apud Gilmar Ferreira
MENDES, Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Inocêncio Mártires COELHO,
Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 292, nota
34, in verbis: “O postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode
ser formulado como uma lei de ponderação, cuja fórmula mais simples
voltada para os direitos fundamentais diz: ‘quanto mais intensa se revelar
a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se
revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção’. Segundo a lei
de ponderação, esta há de se fazer em três planos. No primeiro plano,
há de se definir a intensidade da intervenção. No segundo, trata-se de
saber a importância dos fundamentos justificadores da intervenção. No
terceiro plano, então, se realiza a ponderação em sentido específico e
estrito”. Na mesma esteira, tratando da prisão provisória em comparação
com outras medidas coativas, v. Odone Sanguiné, Prisión cit., pp.
471/472.
1119 Todas essas indicações foram atendidas na elaboração do art. 520, do

Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal da Comissão do


Senado Federal. Neste artigo nota-se a preocupação com a necessidade
da especificação objetiva e subjetiva da decisão judicial. Pela relevância
do dispositivo projetado, transcrevesse-o, in verbis: “A decisão de
decretar, prorrogar, substituir ou denegar qualquer medida cautelar será
sempre fundamentada. § 1º A fundamentação será específica para cada
agente, ainda nos casos de eventual concurso de pessoas ou de crimes
plurissubjetivos. § 2º Sem prejuízo dos requisitos próprios de cada
medida cautelar, a decisão conterá necessariamente: I – o fundamento
legal da medida; II – a indicação dos indícios suficientes de autoria e
materialidade do crime; III – as circunstâncias fáticas que justificam a
adoção da medida; IV – considerações sobre a estrita necessidade da
medida; V – as razões que levam à escola da medida, como também à
aplicação cumulativa, se necessária; VI – no caso de decretação de
prisão, os motivos pelos quais o juiz considerou insuficiente ou
inadequada a aplicação de outras medidas cautelares pessoais; VII – a
data de encerramento do prazo de duração da medida, observados os
limites previstos neste livro; VIII – a data para reexame da medida,
quando obrigatório”.
Porém, para se aplicar a medida de prisão provisória, a mais restritiva das medidas
de coação1120, é necessário que aquela convicção se baseie em elementos que indiquem
um alto grau de probabilidade da materialidade e da autoria.1121 Não são suficientes
provas ou elementos informativos circunstanciais e que demonstrem só mera
possibilidade de autoria e de materialidade. Tal “possibilidade” permite o início da
persecução penal e, se indispensáveis e proporcionais, a determinação de medidas
coativas menos gravosas aos direitos do imputado. Meras suspeitas, conclusões
infundadas ou conjecturas baseadas na experiência ou em lógica investigativa (da Polícia
Judiciária ou do Ministério Público), mas sem comprovação fática no caso, não são
suficientes para lastrear, legitimamente, a medida coativa mais restritiva.1122

1120 Sobre a prisão cautelar ser a ultima ratio das medidas cautelares e,
portanto, guardar caráter residual frente às demais medidas, v. item
5.3.2.2 supra.
1121 Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 459, assim expõe a relação entre

“fumus delicti commissi” e necessidade de demonstração da “alta


probabilidade” dos fatos e da autoria, em vernáculo: “A doutrina, em
geral, deseja resolver as dificuldades expostas estabelecendo uma
distinção baseada no binômio juízo de probabilidade-certeza, é dizer,
entre o ‘plano cautelar’ e o ‘plano probatório’. Por sua vez, no ‘plano
cautelar’, caberia diferenciar dois níveis: 1º) quando a culpabilidade é só
‘possível’, segundo suposições originadas de ‘simples suspeitas’,
‘crenças ou opiniões subjetivas do investigador’, está vedada a adoção
da prisão provisória; 2ª) o segundo grau está representado por numa
espécie de ‘provável culpabilidade’, que se alcança quando estão
presentes os ‘graves indícios de culpabilidade’ (‘fumus comissi delicti’)
que legitimam a medida cautelar de privação de liberdade”. Com base
na doutrina e jurisprudência alemãs, o autor analisa que para atingir esse
“alto grau de probabilidade” é necessário “qualitativamente” mais
elementos e “uma intensidade maior” que uma “suspeita”, autorizadora,
por sua vez, apenas do início de uma investigação preliminar ou de
medidas coativas menos invasivas (op. cit., pp. 471/472).
1122 Nesse sentido, v. Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO,

Processo penal e Constituição: princípios constitucionais do processo


penal, 4ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 213, e Aury LOPES
JÚNIOR, Introdução cit., pp. 202/204.
Essa exigência legislativa de correspondência entre o grau de probabilidade e o
binômio materialidade/autoria não é novidade em nosso sistema, pois, como é cediço, o
alto grau de probabilidade é um dos motivos que justifica e faz com que todos aceitem a
legitimidade da prisão em flagrante.1123 Prisão com a qual se inicia a persecução e que é
determinada, no primeiro instante, sem ordem judicial, conforme excepciona a
Constituição.1124 Logo, a correlação entre “alto grau de probabilidade”1125 e “medida mais
restritiva” já está posta em nível constitucional, bastando ao legislador reproduzir o
modelo, com as necessárias adaptações e melhores especificações, para as demais medidas
coativas.
Demonstrado o “fumus delicti commissi”, deverá o julgador ingressar no importante
instante de individualizar o “periculum libertatis”. O “fumus delicti commissi” é um
prius ao exame do “periculum libertatis”; se aquele restar inexistente ou insuficiente, não
há que se adentrar nesta segunda parte do exame.
Se para a demonstração do “fumus delicti commissi” basta ao julgador constatar se
os atos passados e tidos como criminosos e imputáveis a determinada pessoa foram
reproduzidos nos autos de modo confiável e seguro, para o “periculum libertatis” os
elementos objetivos e constantes nos autos não devem apenas atestar um fato passado,
mas precisam indicar que dessa constatação se poderá extrair um perigo (“periculum”)
advindo da manutenção da liberdade do imputado (“libertatis”).1126 Se para demonstrar o
“fumus delicti commissi” deve haver demonstração nos autos de acontecimentos
passados, para a verificação do “periculum libertatis” deverá haver a segura demonstração
do perigo (atual ou futuro) decorrente da liberdade do indivíduo.

1123 Nesse sentido, Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 225, aponta a
natureza “pré-cautelar” da medida.
1124 Assim dispõe o inciso LXI do art. 5º da Constituição da República:

“ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e


fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”.
1125 Sobre a necessidade de o juiz demonstrar em sua decisão a

probabilidade, não a mera possibilidade, ao decretar a prisão preventiva,


v. Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação das decisões
penais, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 222/224.
1126 Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., p. 219, assim

se manifesta sobre esses dois pontos como de análise obrigatória na


matéria das medidas cautelares em geral: “Disso resulta, diante do que
se afirmou sobre as funções de garantia da motivação, que também a
adoção dos provimentos cautelares deve vir adequadamente justificada,
segundo as características da cognição realizada: com relação ao direito
que fundamenta a cautela, trata-se de apresentar argumentos que
mostrem a sua ‘probabilidade’, ao passo que em relação ao ‘periculum in
mora’ deve ser convenientemente demonstrada a sua efetiva
ocorrência”.
Neste instante da exposição ainda não é o caso de se analisar para quem se dirige
esse perigo, se para o processo ou para a “ordem pública”, porquanto isso é tratado mais
abaixo.1127 O que importa, neste ponto, é demonstrar que também para o “periculum
libertatis” é indispensável ao julgador apontar fatos objetivamente existentes nos
autos.1128 Por esses fatos certos e comprovados é que o julgador deverá justificar a
existência de perigo, sua natureza (material ou processual), seu grau (mediato ou
imediato, mais ou menos intenso) e, por conseqüência, também justificará a melhor
forma de evitá-lo.
A forma de evitá-lo será escolhida dentre aquelas integrantes do rol das medidas de
coação a ser criado pelo legislador. Porém, saber qual a mais apropriada (justificada
constitucionalmente e proporcional) dependerá, fundamentalmente, da individualização
judicial de qual é o “perigo” a ser diminuído ou evitado. Indicar objetivamente de qual
elemento dos autos se extrai a conclusão de sua existência e no que consiste esse perigo é
etapa indispensável para uma apropriada escolha e uma verificação racional dessa escolha
pelos interessados (p.ex., Ministério Público e imputado). Porquanto escolher uma
medida mais restritiva que o necessário será tão prejudicial quanto escolher uma medida
menos restritiva que o necessário e, com isso, não se reduzir ou eliminar o “perigo”
indicado pelo juiz em sua motivação e representado pela liberdade do imputado.
O “periculum libertatis” não nasce, portanto – e nesse passo é idêntico ao “fumus
delicti commissi” – de conjecturas ou de pré-conceitos judiciais, mas de elementos
objetivamente constantes dos autos. Se o “fumus delicti commissi” deve trazer uma
probabilidade de materialidade e de autoria tão alta quanto mais gravosa for a medida de
coação a ser determinada, o “periculum libertatis”, para restar verificado, deve
especificar os elementos constantes dos autos que indicam o perigo, em que medida (mais
ou menos intensa) isso ocorre, por qual razão e, ainda, individualizar qual bem jurídico
está posto em perigo. O “periculum libertatis” exige, portanto, maior carga de
demonstração judicial, e é dessa demonstração que emergirá a maior parte do acerto e da
legitimidade da medida a ser determinada.1129

1127 Para outras considerações sobre o tema, v. item 5.4.1.2.1.3 infra.


1128 Por essa razão o inciso III, do art. 520, do Anteprojeto de Reforma do
Código de Processo Penal, traz a exigência de o juiz especificar “as
circunstâncias fáticas que justificam a adoção da medida”, para além da
exigência já feita anteriormente em seu inciso II de que o julgador já
tivesse indicado “os indícios suficientes de autoria e materialidade do
crime”.
1129 Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio SCARANCE FERNANDES, Antonio

MAGALHÃES GOMES FILHO, As nulidades no processo penal, 9ª ed.,


São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 326, assim se manifestam: “A
sumariedade ou superficialidade da cognição, com efeito, não se
confundem com o arbítrio ou qualquer forma de automatismo no que se
refere aos provimentos que importem restrição ao direito de liberdade;
ademais, se a lei se contenta com mero juízo de probabilidade
relativamente ao ‘fumus boni juris’, o mesmo não pode ser afirmado
Um exemplo poderá contribuir com a compreensão da necessidade de se
individualizar o perigo da liberdade (“periculum libertatis”) em bases fáticas para
orientar a escolha da medida coativa mais apropriada. Partindo-se do pressuposto de que
está demonstrada a materialidade de um crime e que já se conheça o seu mais provável
autor, ou seja, partindo-se do pressuposto da demonstração do “fumus delicti commissi”
com alto grau de probabilidade, deve-se analisar o “periculum libertatis”.
Nessa referida fase da motivação o juiz verifica, por elementos objetivos e
constantes dos autos, que, por exemplo, o imputado é estrangeiro não residente no país,
aqui só passando férias, e que na véspera de seu retorno, já estando com bilhete de
viagem marcado, deu-se a ocorrência do crime. Com isso surge um temor de que o
imputado saia do país, uma vez que aqui não tem quaisquer laços (afetivos, profissionais,
familiares, sociais, etc.) e, ainda, como se verifica da emissão do bilhete aéreo, já estava
pronto para retornar a seu país de origem. Nesse caso, o “perigo” na sua “liberdade”
estaria em que há possibilidade de o imputado deixar o Brasil e, com isso, frustrar,
impedir, procrastinar ou de qualquer modo perturbar o trâmite persecutório.
Individualizado o “perigo” nesses termos e o que se pretende evitar (sua saída do país), já
se intui que emergirá totalmente desproporcional sua prisão provisória, bastando, para
afastar o “perigo”, que o imputado permaneça em território nacional. Para alcançar esse
desiderato (permanência no Brasil), basta, v.g., que seja obrigado a entregar seu
passaporte e sejam avisadas as agências públicas, responsáveis pelo controle das
fronteiras, da ordem judicial de que ele está proibido de deixar o país.1130
No exemplo citado, para além do nível de probabilidade extraível dos elementos
constantes dos autos, foi a perfeita individualização judicial do que consistiria o
“periculum libertatis” o ponto crucial para emergir clara a medida coativa suficiente para
evitar o perigo, sem que para isso fosse necessária a decretação de prisão cautelar.

5.4.1.2.1.2. -Valores constitucionais orientadores da escolha da medida


coativa mas apropriada

Passada a fase preliminar de exame e demonstração do “fumus delicti commissi” e


do “periculum libertatis, ou seja, definido que há elementos objetivos e seguros de
envolvimento da pessoa no crime que se apura, e que seu comportamento coloca em
perigo um bem jurídico que precisa de tutela, o julgador deverá demonstrar que, em sua
escolha (nível concreto de realização da norma), a medida de coação por ele aplicada é a
mais proporcional e constitucionalmente justificada.

quanto ao ‘periculum libertatis’, que deve obrigatoriamente resultar de


avaliação mais aprofundada sobre as circunstâncias que indicam a
necessidade da medida excepcional”.
1130 Necessário ressalvar que para o exemplo atender à proporcionalidade,

o crime cometido pelo estrangeiro deverá ter previsão abstrata de pena


cujo montante justifique uma prisão provisória. Caso contrário, sequer há
que se conjecturar sobre a possibilidade dessa medida.
Quanto à proporcionalidade, é indispensável que o legislador fixe os valores
constitucionais a serem obedecidos e elabore um rol amplo de medidas já em nível
normativo abstrato.1131
Quanto à diretriz constitucional, a presunção de inocência desempenha um papel
crucial no caso das medidas de coação destinadas a limitar o direito de liberdade do
cidadão porquanto, em sua complementaridade e interdependência com outras normas
constitucionais, projeta uma escolha axiológica pelo “favor libertatis” (liberdade) e pelo
“favor dignitatis” (dignidade da pessoa humana), ambos desdobramentos do “favor
rei”.1132

1131 Nesse sentido foram concebidos os artigos 191 a 195 do Código de


Processo Penal português, que fixam as diretrizes axiológicas
específicas a orientar o julgador na determinação de qualquer medida
coativa ou patrimonial no curso da persecução. No mesmo sentido,
agora como exemplo de legislação projetada, indica-se o art. 196 do
Código Processual Penal Modelo para a Iberoamérica. Como aplicação
prática desse modelo legislativo sugerido para toda a América Latina,
foram redigidos os arts. 122 e 129 do atual Código de Processo Penal
chileno. O citado Código Modelo (art. 209) prevê um rol de medidas
alternativas e menos gravosas ao imputado se comparadas com a
prisão. Nessa mesma linha, encontra-se o art. 155 do referido e atual
Código chileno.
1132 Para se exemplificar com legislações já estruturadas segundo a

presunção de inocência, cite-se, dentre outros códigos, o Código


Processual Penal Modelo para a Iberoamérica (art. 3º) e o Código de
Processo Penal do Chile (art. 4º) que trazem já nas suas disposições
gerais o princípio da presunção de inocência como princípio básico e
impositivo a orientar toda a interpretação e aplicação de qualquer norma
processual penal. Sobre o exame do “favor rei” como ponto de partida
em um sistema a ser elaborado de medidas privativas de liberdade no
curso da persecução, v. Rogério Schietti Machado CRUZ, Prisão cit., pp.
57/58. Para considerações sobre a relação da presunção de inocência
com o direito constitucional à liberdade provisória, v. item 5.3.2 supra.
Para considerações sobre a presunção de inocência como critério
orientador da aplicação das medidas coativas do Código de Processo
Penal português, v. Fernando GONÇALVES e Manuel João ALVES, A
prisão cit., pp. 50/60.
Pelo exposto, o legislador tem de criar uma série de medidas anteriores e menos
invasivas que a prisão provisória;1133 medidas proporcionalmente menos restritivas se
comparadas à prisão.1134 O estabelecimento desse rol poderá prever desde medidas

1133 Mario CHIAVARIO, Problemi attuali della liberta personale – tra


“mergenze” e “quotidiano” della giustizia penale, Milano: Giuffrè, 1985,
pp. 65/68, expõe que o projeto italiano de Lei Delegada de 1974 previa
várias medidas restritivas menos invasivas que a prisão provisória e uma
gradação em suas aplicações como forma de compatibilizar aquele tipo
de encarceramento no curso persecutório com a previsão constitucional
da presunção de inocência.
1134 No projeto de Lei 4.208/2001, elaborado por uma comissão de juristas

incumbida de apresentar propostas de reforma para o atual Código de


Processo Penal brasileiro, foram inseridas as seguintes medidas
denominadas “medidas cautelares diversas da prisão”: “art. 319. As
medidas cautelares diversas da prisão serão as seguintes: I –
comparecimento periódico em juízo, quando necessário para informar e
justificar atividades; II – proibição de acesso ou freqüência a
determinados lugares em qualquer crime, quando, por circunstâncias
relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante
desses locais para evitar o risco de novas infrações; III – proibição de
manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias
relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer
distante; IV – proibição de ausentar-se do país em qualquer infração
penal para evitar fuga, ou quando a permanência seja necessária para a
investigação ou instrução; V – recolhimento domiciliar no período noturno
e nos dias de folga nos crimes punidos com pena mínima superior a dois
anos, quando o acusado tenha residência e trabalho fixos; VI –
suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza
econômica ou financeira quando haja justo receio de sua utilização para
a prática de novas infrações penais; VII – internação provisória do
acusado em crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando
os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 e
parágrafo único do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII –
fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento
aos atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso
de resistência injustificada a ordem judicial. Parágrafo único. A fiança
será aplicada de acordo com as disposições do Capítulo VI, deste Título,
podendo ser cumulada com outras medidas cautelares”. A essas
medidas constantes do referido artigo, acrescessem outras, também
previstas no projeto (art. 320) como a retenção de passaporte e proibição
de saída do país. Se analisadas as legislações estrangeiras congêneres
extrair-se-ão vários outros exemplos que podem servir para elaboração
de um rol mais amplo que o acima projetado. No sentido de ampliar o rol
acima indicado, por influência de outras legislações (nacionais e
estrangeiras), o já tantas vezes citado Anteprojeto de Reforma do Código
restritivas de liberdade do mesmo gênero, mas de menor grau, p.ex., recolhimento
domiciliar do imputado nos períodos e dias em que não trabalhar, até medidas de
restrição a outros direitos fundamentais (gênero diverso), como proibir a aproximação de
determinada pessoa ou mesmo a suspensão do direito de exercer determinada função,
profissão ou cargo.1135 As medidas anteriores à prisão podem ser, portanto, do mesmo
gênero, mas de menor duração ou intensidade, ou de gêneros distintos, uma vez que
atinjam outros direitos fundamentais diversos da liberdade de ir e vir.

de Processo Penal, apresenta, em seu art. 521, o acréscimo das


seguintes medidas: monitoramento eletrônico (inc. IV); suspensão das
atividades da pessoa jurídica (inc. VI); suspensão de habilitação para
dirigir veículo automotor, embarcação ou aeronave (inc. VIII);
afastamento do lar ou outro local de convivência com a vítima (inc. IX);
suspensão do registro de arma de fogo e de autorização para porte (inc.
XIII); e suspensão do poder familiar (inc. XIV). Como o presente trabalho
não se destina ao exame dessas várias medidas, mas apenas
demonstrar a necessidade de um rol mais extenso delas em nossa
legislação, indica-se a obra de Fábio Machado de Almeida DELMANTO,
Medidas substitutivas e alternativas à prisão cautelar, Rio de Janeiro:
Renovar, 2008, na qual se realiza um exame mais detalhado de várias
dessas medidas em legislações estrangeiras. Não obstante haja uma
discordância com esse último autor, para quem são inadmissíveis
medidas substitutivas ou alternativas à prisão que não tenha natureza
cautelar, porquanto ele afirme que o princípio da presunção de inocência
não pode ser relativizado (op. cit., p. 276), o exame por ele empreendido
sobre o direito comparado não pode deixar de ser feito por valer como
referência sobre o tema. Para uma relação de mais de quinze medidas
coativas anteriores à prisão, v. Rogério Schietti Machado CRUZ, Prisão
cit., pp. 174/178.
1135 Essas medidas indicadas no texto constam, respectivamente, dos

incisos V e VI do artigo 319 do Projeto de Lei 4.208/2001. Tais medidas


são examinadas com mais vagar por Rogério Schietti Machado CRUZ,
Prisão cit., cap. VI, itens 1.5 e 1.6. No Anteprojeto de Reforma do Código
de Processo Penal, constam do art. 521, inciso V. Fábio Machado de
Almeida DELMANTO, Medidas cit., item 6.2.1, critica as medidas
exemplificadas no texto e constantes da legislação projetada, sob a
alegação de que guardam natureza material, não servindo, portanto, à
finalidade cautelar que esse tipo de medida deve tender. No mesmo
sentido deste último autor citado, vêm as críticas de Fauzi Hassan
CHOUKR e Kai AMBOS, A reforma do processo penal no Brasil e na
América Latina, São Paulo: Método, 2001, p. 173.
O que importa é que a prisão no curso persecutório deva ser imposta como a ultima
ratio das medidas.1136 Para isso o legislador deve fixar, de maneira clara e expressa, que
cabe ao julgador demonstrar que nenhuma medida coativa e menos invasiva do que a
prisão é apropriada ao caso concreto. Em uma verdadeira inversão cultural, se comparado
com nossos dias, o julgador deverá justificar por que as medidas menos invasivas não são
apropriadas no caso concreto. E não, como ocorre atualmente, manter o hábito de
decretar primeiro a prisão preventiva ou temporária, para depois determinar medida
alternativa ou substitutiva menos invasiva.
Como decorrência dessa necessária inversão cultural, o julgador deverá primeiro e
antes fixar qual o aspecto da conduta do agente que ele precisa evitar (“periculum
libertatis”); feito isso, deverá procurar no rol legal a medida mais adequada no sentido
vetorial da menos para a mais invasiva. Justificando, inclusive, por que as medidas menos
invasivas não escolhidas não são, no caso concreto, mais apropriadas do que a medida
escolhida (mais restritiva).1137
Todo esse processo de fundamentação decisória, a fim de justificar a escolha, deverá
ser orientado pelo “in dubio pro reo” em matéria fática e pelo “favor rei” em matéria
legal, porquanto são manifestações da presunção de inocência que projetam efeitos no
instante decisório. Como se desenvolve melhor adiante, eles são aspectos desse direito
fundamental destinados a, no instante da concreção da norma processual penal, intervir
como preceitos orientadores da presunção de inocência como norma de juízo.1138 Não
influem apenas no instante da decisão de mérito da causa, mas também devem ter
incidência, por imposição constitucional da presunção de inocência, em qualquer decisão
em que o órgão judiciário é chamado a decidir sobre direitos fundamentais do cidadão
envolvido em persecução penal (p.ex., ao decidir sobre medida coativa de qualquer
natureza e intensidade).1139

1136 Nesse sentido, v. Pedro Juan BERTOLINO, Código procesal penal de la


Provincia de Buenos Aires - comentado y anotado com jurisprudencia
provincial, reimpressão da 7ª ed., Buenos Aires: Depalma, 2003, p. 204.
Nesse sentido, v. itens 5.3.2.2 e 5.4.1.2.1.1 supra.
1137 No sentido de se recepcionar a inversão lógica proposta o Anteprojeto

de Reforma do Código dispôs vários preceitos, sendo o texto do § 3º, do


art. 544, o mais expressivo nessa linha: “§ 3º A prisão preventiva
somente será imposta se outras medidas cautelares pessoais revelarem-
se inadequadas ou insuficientes, ainda que aplicadas cumulativamente”.
1138 Para considerações sobre o “in dubio pro reo” como forma de decisão

de dúvida fática, v. item 5.4.1.3 infra. Sobre a presunção de inocência


como norma de juízo e a interpenetração do “in dubio pro reo” e do “favor
rei” nesse instante, v. item 5.4.2.3.1 infra.
1139 Não obstante não faça distinção entre os âmbitos de incidência do

“favor rei” (escolha legal) e do “in dubio pro reo” (dúvida fática) nos
moldes empreendidos no presente trabalho, pode-se encontrar em
Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 463, a incidência do “in dubio pro reo”
para decisão em caso de dúvida judicial sobre prisão provisória do
Deve haver, portanto, uma correspondência entre a medida coativa mais gravosa e a
imposição legal da mais ampla justificativa por sua escolha. O legislador deve fixar que a
ponderação judicial seja tão mais aprofundada e detalhada quanto mais invasiva for a
restrição por ela determinada. E, ainda, associado a essa necessária motivação, uma
determinação de critérios axiológicos. Sempre que houver dúvida fática ou possibilidade
de escolha de lei menos gravosa pelo julgador, ele deverá aplicar, respectivamente, os
preceitos do “in dubio pro reo” e do “favor rei” para orientar sua decisão.
Enfim, a construção desse modelo exige, passada a identificação e demonstração do
“fumus delicti commissi” e do “periculum libertatis”, a definição legal de critérios
orientadores ao julgador e de um rol amplo de medidas de coação para que ele possa
escolher, com maior especificidade e eficiência, a medida mais proporcional.1140
5.4.1.2.1.3. -Prisão provisória por motivos materiais: a prisão por “ordem pública”
em um novo modelo processual penal

Ocorre, contudo, que, por mais amplo que seja o rol e mesmo se obedecido o “favor
libertatis” quanto a ser a medida de prisão a ultima ratio das medidas de coação, é
possível haver um grupo de ocorrências para as quais a prisão seja a medida apropriada.
Mesmo reduzindo-se ao extremo as hipóteses de prisão provisória – e isso já seria um
ganho significativo se comparado com nossa atual realidade1141 –, percebe-se que há
situações para as quais ela se mostra a única medida indicada.

imputado. Para ele (op. cit., pp. 464/469) a dúvida deverá ser decidida
em favor do imputado não apenas quanto à ocorrência da infração ou à
sua autoria, mas também sobre a existência de uma causa excludente
de antijuridicidade ou de culpabilidade. Quanto ao “favor rei”, em sua
modalidade do “favor libertatis”, no mesmo sentido se manifesta o autor,
ainda sem diferenciá-lo do “in dubio pro libertate” (op. cit., pp. 485/489).
1140 Como nesse ponto partimos da existência de lei e de motivação judicial,

para considerações sobre os demais elementos da proporcionalidade


(adequação, necessidade e proporcionalidade stricto sensu ou
ponderação), v. itens 4.5.1.3 a 4.5.1.5 supra. Não obstante o Anteprojeto
de Reforma do Código de Processo Penal exija proporcionalidade nas
decisões judiciais referentes a medidas cautelares em muitos pontos do
texto de forma indireta, é especifico no parágrafo único do art. 517: “Art.
517. As medidas cautelares poderão ser aplicadas isolada ou
cumulativamente, nas hipóteses e condições previstas neste livro.
Parágrafo único. A escolha será orientada pelos parâmetros da
necessidade, adequação e da vedação de excesso, atentando-se o juiz
para as exigências cautelares do caso concreto, tendo em vista a
natureza e as circunstâncias do crime”.
1141 Em matéria intitulada “CNJ ibertou 3.831 presos em inspeções judiciais

pelo país”, o jornal Folha de S.Paulo, no dia 26/07/09, caderno Cotidiano


(localizável na internet no endereço eletrônico
www.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2607200903.htm), informou que nos
mutirões realizados pelo Conselho Nacional nos Estados brasileiros,
Para essas hipóteses limites ainda há duas situações a serem distinguidas. A restrição
total da liberdade por razões processuais ou por motivos materiais. Esse é o divisor de
águas entre as correntes moderadas a favor da presunção de inocência.
Há uma doutrina para a qual, em breve síntese, a existência da presunção de
inocência impede, de forma absoluta, qualquer espécie de prisão por razões materiais,
leia-se: fundada na “ordem pública” ou em qualquer outra expressão que traduza essa
idéia.1142 Afirma essa doutrina, doravante denominada processualista, que a prisão nesses
termos materiais é antecipação de pena e que, assentado aquele princípio em nível
constitucional, não seria possível qualquer forma de prisão com fundamento material
(p.ex., ordem pública) no curso da persecução. Para confirmar suas posturas, os
doutrinadores dessa linha argumentativa trazem a idéia de cautelaridade que, no direito
processual, só poderá ter como finalidade assegurar a regular realização da persecução e,
também, seu resultado.1143 Por essa perspectiva da cautelaridade, aceita-se que a prisão só
ocorra no curso da persecução se houver, e apenas se houver, razões processuais para a
medida.

detectou-se que “de cada 4 presos em Alagoas, 3 ainda não foram


julgados, onde o índice de presidiários provisórios é o mais alto do país
(77%)”. Em 11 dos 27 Estados, ao menos a metade da população
carcerária é de presos provisórios. Depois de AL, têm mais presos nessa
situação PI (71%), MA (69%) e MG (67%). Os dados, do Departamento
Penitenciário Nacional, são usados pelo CNJ para embasar os mutirões
carcerários”. A mesma agência ainda noticiou, na mesma data
(localização www.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2607200901.htm), em
matéria que tratava de um caso em que a prisão provisória dura mais de
11 anos sem julgamento do preso, que o CNJ informara que dos 446,6
presos no Brasil, 42,9% deles são presos provisórios.
1142 Nesse sentido, v., por todos: Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp.

32 e ss.; Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 101/104; e Odone


SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 452/453. Na doutrina nacional, v., por todos:
Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio SCARANCE FERNANDES, Antonio
MAGALHÃES GOMES FILHO, As nulidades cit., p. 312; Eduardo M.
JAUCHEN, Derechos del imputado, Buenos Aires: Rubinzal-Culzioni,
2005, pp. 117/118; e Antonio SCARANCE FERNANDES, Processo penal
constitucional, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp.
328/329. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 132/133, após
se incluir entre vários autores que aceitam a idéia de prisão provisória
apenas por razões processuais, mitiga sua posição para aceitar, em
certas situações, uma ponderação que leve à prisão com base em
motivos materiais.
1143 Nesse sentido, v. Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 199/205.
Uma outra corrente doutrinária entende que a prisão por essas razões processuais
deve ser decretada sempre, porém também aceita a prisão provisória por motivos
materiais e, para confirmar seus argumentos, justifica que a legislação processual penal
prevê essa hipótese quando insere os conceitos de “ordem pública” e “ordem econômica”
no art. 312 do Código de Processo Penal. Afirma, ainda, essa corrente doravante
denominada “materialista”, que no cotejo do interesse público da segurança (ou defesa
social) com o interesse privado da liberdade do indivíduo o primeiro sempre (ou quase
sempre) deve prevalecer.1144
Como no presente trabalho se parte de um exame constitucional da restrição à
presunção de inocência, neste ponto representada pela “prisão provisória”, e não pela
perspectiva da cautelaridade, e como também não se entende que a presunção de
inocência se justifique e sempre tutela apenas interesses privados, mas, muito ao
contrário, tem ela em sua formação interesses públicos mais relevantes e
preponderantes,1145 propõe-se uma outra via de solução, diversa das correntes anteriores.
Por se rejeitar as idéias básicas das duas doutrinas citadas (processualista e
materialista), propõe-se uma outra opção argumentativa para uma convivência racional
entre prisão provisória e presunção de inocência.
Antes de expor a proposta, que já começou a ser explicitada desde que se iniciou a
sugestão de um novo modelo para medidas coativas, é necessário apontar alguns pontos
sujeitos a críticas nas duas correntes anteriores.

1144 Há autores que caminham nesse sentido, não obstante relacione com
mais freqüência a necessidade da prisão com a idéia de gravidade da
infração. Nesse sentido, v. Fábio Ramazzini BECHARA, Prisão cautelar,
São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 166 e 169/170, e Renato Barão
VARALDA, Restrição cit., item 4.2.
1145 Nesse sentido v.item 3.8.1.1 supra.
Iniciando-se pela doutrina processualista, pode-se observar que nem toda ameaça
direta ou perturbação ao desenvolvimento regular do curso persecutório, ou mesmo a
fuga do imputado, gerará, ipso facto, a necessidade de prendê-lo. Veja-se, por exemplo, a
hipótese de alguém que esteja sendo submetido a uma persecução penal por crime de
menor potencial ofensivo (v.g., lesão corporal culposa na direção de veículo). Mesmo que
esse imputado venha a ser surpreendido ameaçando gravemente uma testemunha, a fim
de favorecer-se no feito criminal, não deverá ser preso provisoriamente. Pois, nenhum
dos crimes nos quais se vê envolvido, tanto a lesão corporal culposa (art. 303, da Lei
9.503/97, cuja pena é de 6 meses a 2 anos), quanto a coação no curso do processo (art.
344, CP, cuja pena é de 1 a 4 anos), apresentam penas suficientes para, pela
proporcionalidade, justificar a prisão provisória. Não se nega que a atuação do imputado
perturbou o regular desenvolvimento processual, porém esse crime dificilmente gerará
de per si a perda de sua liberdade, uma vez que ou terá direito à suspensão condicional
do processo (art. 89 da Lei 9.099/95), ou receberá pena cujo cumprimento se dará em
regime aberto (art. 33, § 2º, alínea “c”, CP).1146
Mesmo que se associe àquela postura, baseada na cautelaridade, o exame da
proporcionalidade, ainda há um ponto sujeito à crítica na doutrina aqui denominada
processualista.1147
Pela perspectiva da cautelaridade, essa doutrina cria um conteúdo absoluto para a
presunção de inocência, para o qual não admite qualquer redução.1148 Percebendo ou não
sua opção por essa linha de direito constitucional, tais doutrinadores aceitam a teoria
absoluta do conteúdo essencial da presunção de inocência. Ocorre, porém, que, em
situações limites e infelizmente ocorrentes em nossa vida cotidiana, juízes e tribunais
rompem cotidianamente – e sem qualquer critério racional ou regramento juspolítico –
aquele conteúdo essencial dito ou tomado como absoluto por motivos, em regra, de
conotação material. Nessas situações, o conteúdo essencial tido como absoluto é rompido
e, no tocante à presunção de inocência como “norma de tratamento”, a garantia
constitucional resta negada de forma total.

1146 Claro que, em um sistema a ser elaborado, o juiz, verificando o nível da


ameaça que o imputado praticou contra a testemunha, poderá apenas
proibir que ele procure ou de qualquer modo se comunique com ela.
Medida cautelar prevista no inciso XII, do at. 512, do já citado
Anteprojeto de Reforma do Senado Federal. Dessa forma, aplicar-se-á
medida menos restritiva. O exemplo, contudo visou apenas indicar uma
situação em que a doutrina processualista entende aceitável a
determinação da prisão por motivos cautelares.
1147 Como exemplo de doutrina processualista que associa ambas as

noções citadas (cautelaridade e proporcionalidade), v., além dos autores


já citados, Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 211/212, e Roberto
DELMANTO JÚNIOR, As modalidades de prisão provisória e seu prazo
de duração, 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 87/92.
1148 Nesse sentido, v. Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., p. 211, e Fábio

Machado de Almeida DELMANTO, Medidas cit., p. 276.


Este é o momento para se reconhecer uma realidade indefectível e incontornável: a
lógica sistêmica que inspira a presunção de inocência como “norma de tratamento”, ou
seja, que veda qualquer forma de antecipação de pena, está em confronto direto e
insuperável com a prisão provisória ou qualquer outra medida coativa, pouco importando
a justificativa apresentada (material ou processual).1149 Ela está em confronto lógico com
qualquer medida restritiva, por mais tênue que seja, p.ex., a apreensão do passaporte do
imputado para impedi-lo de sair do país antes do fim do processo. Aliás, a contradição
insuperável existirá sempre, pouco importando que a prisão provisória tenha
fundamento processual ou material. LUIGI FERRAJOLI já destacou que a concessão feita
desde e pelos iluministas, e por todos os maiores defensores da presunção de inocência,
no sentido de que se tolerasse a prisão provisória por razões processuais, não afasta ou
diminui a aporia.1150 Não há e nunca houve na história da humanidade, em todos os
sistemas jurídicos conhecidos e sempre referidos como padrões pela doutrina, algum que
resolvesse a mencionada contradição lógica.1151

1149 Essa contradição lógica de impossível equacionamento ou


compatibilização já foi constatada e revelada por Luigi FERRAJOLI,
Diritto cit., pp. 566/570. No dizer de Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O
inimigo cit., p. 112, lembrando o mesmo autor italiano, é “um problema
sem solução, uma ‘quadratura do círculo’, da qual só é possível sair
assumindo com sinceridade o reconhecimento de uma natureza punitiva
e sua conseqüente ilegitimidade, por mais que a possibilidade de um
processo penal sem confinamento preventivo pareça distante”. No
mesmo sentido, v., ainda, Perfecto ANDRÉS IBÁNEZ, Presunción de
inocencia y prisión sin condena, Revista de la asociación de ciencias
penales de Costa Rica, San José, Costa Rica, v. 9, n. 13, ago., 1997, pp.
15/16, e Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 452/455.
1150 V. Diritto cit., pp. 561/566. Jesús ZAMORA-PIERCE, Garantías cit., p.

428, também é claro ao afirmar que há uma contradição lógica na


coexistência entre prisão preventiva e presunção de inocência, pouco
importando qual a natureza do fundamento que se dê àquela prisão. Em
vernáculo: “Há quem pretenda escapar desta inevitável conclusão,
afirmando que a prisão preventiva não é uma pena, nem conduz a uma
privação de direitos, se não que é tão-só uma medida processual
cautelar e provisória. Semelhante afirmação é um sofisma, irmão gêmeo
daquele outro que, em séculos passados, elaboraram em latim doutos
juristas para convencer-nos que a tortura não era uma pena, se não um
meio processual lícito para se investigar a verdade”. Reconhecendo a
inevitável contradição lógica, mas ainda tentando resolvê-la pela prisão
provisória apenas por razões processuais, v., ainda, Giulio ILLUMINATI,
La presunzione cit., pp. 48/49.
1151 Para um exame histórico e da recente legislação italiana, v. Luigi

FERRAJOLI, Diritto cit., pp. 561/566. Para uma análise da legislação


comparada de vários países europeus e latino-americanos sobre a
prisão preventiva sem que em qualquer dessas legislações a aporia
Na medida em que tal doutrina processualista fixa-se em uma posição firme de
negar de forma absoluta – para qualquer hipótese concreta – uma redução no núcleo
dessa norma constitucional, não contribui para a formação de uma discussão que procure
dar margens limitadoras ao conceito de “ordem pública”, ou à expressão congênere que
tenha em “argumentos materiais” sua razão de ser. Rejeitar o conceito de “ordem
pública” como inconsistente, como aberto,1152 ou como válvula de arbitrariedades, ou
seja, desejar expungi-lo, não contribui para compreendê-lo e, diante da norma
constitucional da presunção de inocência, para reduzir-lhe a abrangência.
Regular e abrir um debate com bases racionais e parâmetros constitucionais
permitirá uma maior proteção à presunção de inocência. Até mesmo porque não se pode
deixar de reconhecer uma larga abertura nas expressões e termos freqüentemente usados
para justificar inclusive as prisões com finalidade cautelar. Tanto o termo “conveniência
da instrução criminal”, quanto a expressão “assegurar a aplicação da lei penal” contam
com uma margem larga de indeterminação.1153

tenha sido resolvida, v. Fábio Machado de Almeida DELMANTO,


Medidas cit., itens 5.2 a 5.6.3. Esse último autor citado, após examinar
todas essas legislações, assim expõe: “A questão de como conciliar – se
é que isso é possível -, à luz da garantia da presunção de inocência, a
cautelaridade de medidas restritivas da liberdade do acusado que não
estejam voltadas à realização do processo ou à garantia de seus
resultados, constitui, na verdade, um dos problemas mais intrincados do
processo penal. O problema atinge não apenas o Brasil, mas
praticamente todos os países do mundo, que, de forma mais ou menos
direta, permitem o emprego da prisão provisória para evitar a prática de
crimes. A Itália amenizou (mas não resolveu) o problema ao admitir essa
modalidade de prisão apenas para crimes de especial gravidade,
elencados taxativamente pelo legislador, desde que seja satisfeita uma
série de requisitos legais”. Ainda no sentido de constatar na legislação
estrangeira a presença da expressão “ordem pública”, ou qualquer outra
que desempenhe a mesma função material, v. Fábio Ramazzini
BECHARA, Prisão cit., item 3.2.5.3. Para a análise da legislação
mexicana, de alguns outros países da América Central e de legislações
internacionais, atuais ou já revogadas, v. Jesús ZAMORA-PIERCE,
Garantías cit., pp. 428/431.
1152 Sobre o conceito de ordem pública ser aberto e permitir a inclusão de

concepções subjetivistas e ideológicas, v., como primeiro trabalho


consistente nesse sentido e voltado ao exame desse ponto da prisão
cautelar com o princípio da presunção de inocência, Antonio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 66/69.
1153 Nesse sentido, v. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp.

133/134. Sobre a nossa proposta de limitar os conceitos de “ordem


pública” e outros congêneres por meio de parâmetros externos, que os
confinariam em espaços constitucionais aceitáveis para situações
excepcionais, uma vez que tais expressões, em todos os sistemas
Ao se falar da necessidade da criação de um espaço de consenso juspolítico na
delimitação do conceito de “ordem pública”, não se está afirmando que o consenso possa
resolver aquela contradição lógica. Não há como resolvê-la. No limite, o que deve
ocorrer é uma escolha.1154 Nesse contexto, a opção deste trabalho pelo “conteúdo
essencial relativo” da presunção de inocência abre um caminho para que, racionalmente,
inicie-se uma diminuição do espaço do conflito (presunção de inocência versus prisão
provisória) até um mínimo de hipóteses excepcionais e, chegado a esse ponto – o que já
seria uma melhora sistêmica e uma contribuição social para incontáveis cidadãos –,
orientar uma escolha baseada na ponderação de valores diante das condições fáticas e
jurídicas do caso concreto.
O consenso apenas diminuirá, dentro do melhor debate racional, a extensão da
“ordem pública” de modo que seu campo de incidência não apenas fique reduzido, mas,
também, e principalmente, haja concordância quando, pela aplicação da
proporcionalidade, tiver que ser usada como restrição ao significado da presunção de
inocência como “norma de tratamento”.
A bem se ver, já há uma prisão provisória com base em razões materiais, aceita sem
ressalvas pela majoritária doutrina, inclusive aquela por nós denominada “corrente
processual”: a prisão em flagrante.1155 Não obstante ser uma prisão decorrente de razões
materiais,1156 está e sempre esteve presente em todos os sistemas jurídicos.1157

processuais que as utilizam, foram concebidas para não comportar uma


limitação interna, v. o próximo item do trabalho (5.4.1.2.1.4 infra).
1154 Nesse sentido, v. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 138, e

Perfecto ANDRÉS IBÁNEZ, Presunción cit., p. 17.


1155 No sentido de apontar a prisão em flagrante como uma exceção à

finalidade processual, a que toda prisão provisória deve ter, v.: Alexandra
VILELA, Considerações cit., pp. 105/106; Vittorio GREVI, Libertà
personale dell´imputato e costituzione, Milano: Giuffrè, 1976, pp. 49/50; e
idem, Alla ricerca di um processo penale “giusto” – itinerari e prospettive,
Milano: Giuffrè, 2000, pp. 99/107. No sentido de definir essa espécie de
prisão como “pré-cautelar”, v. Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp.
224/228. Se, como afirma esse último autor citado, com forte lastro em
Carnelutti, a prisão em flagrante é “pré-cautelar” é porque “cautelar” não
é. Ao menos no instante de sua decretação e nos momentos que se
seguem a este instante inicial. Se não é cautelar e ainda não há sequer
persecução penal iniciada, somente poderá ser, nesse primeiro
momento, de natureza material.
1156 A razão material identificável na prisão em flagrante, notadamente nas

hipóteses de flagrante próprio (incisos I e II do art. 302, CPP), está em


fazer cessar a conduta tida como criminosa e na qual o imputado é visto
cometendo-a ou acabando de cometê-la. Para as hipóteses previstas
nos incisos III e IV do mesmo dispositivo, a razão estaria em evitar que
empreenda fuga com eventuais produtos do crime ou que eles sejam
perdidos (p.ex., bens expropriados) e, também, agora muito mais por
Dizer-se que ela deve passar pelo crivo judicial, após ter sido decretada, não a
desnatura como prisão provisória decretada sem finalidade cautelar, isto é, decretada por
motivo material (“certeza” visual do cometimento do “crime” pelo tido “autor”).
Acrescente-se, ainda, que ela é decretada na ausência de qualquer persecução, sendo ato
de incoação persecutória em face de alguém. Ela destina-se a uma persecução futura, não
sendo por ela justificada. Aceita-se a sua existência, mesmo sabendo que quando ela
ocorre, sendo ou não mantida pelo juiz posteriormente, o conteúdo essencial da
presunção de inocência como “norma de tratamento” é totalmente restringido. A
persecução já se inicia com uma restrição máxima da presunção de inocência como
“norma de tratamento”.1158 Dizer-se que essa restrição (quase) absoluta ocorre por horas,

razões processuais, desapareçam os vestígios e objetos necessários


para comprovação da materialidade e autoria.
1157 Necessário ressalvar, neste ponto, que quando a doutrina afirma que a

prisão em flagrante tem “natureza administrativa” quer dizer que foi


efetivada por autoridade administrativa, recebendo apenas depois o crivo
jurisdicional (p.ex., v. José Frederico MARQUES, Elementos de direito
processual penal, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1965, v. I, pp.
158/160, e Tales Castelo BRANCO, Da prisão em flagrante, São Paulo:
Saraiva, 1980, p. 43). A natureza da prisão, segundo essa forma de
classificá-la, advém do critério de quem está legitimado para determiná-
la. No texto, quando se afirma que a sua natureza é material, usa-se
critério diverso. O critério é que ela não tem finalidade processual,
diferenciando-se da argumentação da “cautelaridade” expendida pela
doutrina aqui denominada “processualista”. Daí a necessidade sentida
por Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 224/228, em classificá-la
como “pré-cautelar”. Se é “pré-cautelar” e se ocorre, no mais das vezes,
antes mesmo do início de qualquer ato de persecução penal, mesmo de
caráter investigativo, está no âmbito da regulação material dos atos
jurídicos.
1158 Por isso, e mais uma vez, é necessário se compreender que a

presunção de inocência possui aspectos autônomos e interdependentes,


como “norma de juízo”, “norma probatória” e “norma de tratamento”. É
por essa compreensão autônoma entre os três aspectos que se rejeita a
posição de Enrico Ferri e dos demais positivistas de que com a prisão
em flagrante cessa a presunção de inocência (cfr., item 2.3.2 supra). Há
rematado equívoco ao assim se afirmar, pois o que se restringe de forma
quase absoluta com a prisão provisória é a presunção de inocência
como “norma de tratamento”, remanescendo ainda incólume a
presunção de inocência como “norma de juízo” e “norma probatória”, a
qual deve acompanhar o indivíduo por toda a persecução. Até mesmo
porque, como é cediço, é necessário constatar a veracidade de
depoimentos e as justificativas do “flagrado”. Tudo isso compõe um
necessário e irrefragável trabalho judicial a ser orientado pela presunção
de inocência também e ainda como “norma de tratamento” (p.ex., em
dias ou meses agrava o problema do preso, mas não muda o fundamento material dessa
prisão.
Decorrente de flagrante ou de outra situação específica para cada sistema processual
penal estrangeiro, o fato é que todos possuem previsões de prisão por razões materiais. O
desafio de todos os sistemas é reduzi-la ao mínimo possível, sendo até hoje impossível a
sua eliminação.
A corrente doutrinária aqui denominada materialista também não está infensa a
críticas. A primeira reside no fato de que seus seguidores insistem em afirmar que a
prisão com fundamentos materiais (p.ex., ordem pública) atende a interesses públicos ou
coletivos, enquanto a presunção de inocência atende a interesses particulares ou
individuais. Ao se posicionarem dessa forma, cometem dois equívocos. O primeiro é que
desconsideram os interesses públicos e coletivos que formam e informam a presunção de
inocência, tanto que erigida a direito fundamental.1159 O segundo é estabelecer como
pressuposto um critério que tomam como absoluto, notadamente se referente a crime
tido como grave ou de agente tido como de “alta periculosidade”, e pelo qual qualquer
exame de proporcionalidade já está decidido de antemão: o público sempre prevalece
sobre o privado.
Para essa forma de argumentar, portanto, não há ponderação, há uma constante e
indefectível prevalência. Para ela, a “relação condicionada de precedência” não existe,
pois em verdade rejeitam que haja alguma “condição fática ou jurídica” apta a inverter
aquela precedência por ela já estabelecida a priori. Por esse viés, essa doutrina
materialista também rejeita a “teoria dos princípios” e, portanto, a aplicação da
proporcionalidade como forma de resolução da colisão entre princípios. Como o público
“sempre” precede (prevalece) sobre o privado, a relação de proporcionalidade já está
decidida a priori e sem qualquer possibilidade de ponderação casuística. Isto significa
dizer: a relação de precedência já está decidida, pouco importando as condições fáticas e
jurídicas do caso concreto.1160 Ela defende uma “relação absoluta de precedência”.1161
Outra crítica que pode ser feita à doutrina materialista, muito próxima neste ponto
ao que antes se afirmou para a processualista, é que ela também não colabora para a
formação de um espaço de consenso. Como essa doutrina materialista fixa que os
interesses públicos “sempre” prevalecem sobre os privados, não procura reduzir as
hipóteses por ela inseridas no espaço conceitual aberto de “ordem pública”, tais como:
“clamor público”; “credibilidade da justiça”; “periculosidade do agente”; “gravidade do
crime”; etc.

sue interrogatório judicial). Sobre a inter-relação e a autonomia dessas


três manifestações da presunção de inocência, v. item 5.4.2 infra.
1159 Nesse sentido, v. Perfecto ANDRÉS IBÁNEZ, Presunción cit., pp. 14/15.

Sobre o tema, v. nossas considerações no item 3.8.1.1 supra.


1160 Sobre o tema da “relação condicionada de precedência”, v. item

4.4.3.1.3.2 supra.
1161 Sobre o tema da “relação absoluta de precedência”, suas críticas e
incompatibilidades com a “teoria dos princípios” e, por decorrência, com
o exame da proporcionalidade, v. item 4.4.3.1.3.2 supra.
Para essa doutrina, há uma comodidade oferecida pelo atual Código de Processo
Penal, marcadamente fascista e refratário à presunção de inocência, pois nele está
inserido um conceito material aberto e sem qualquer parametrização, o que permite que
neste conceito tudo seja inserido e nele tudo caiba. Afinal, insista-se, se ele é tomado pela
doutrina materialista como um conceito formado por interesses públicos e se para ela
todo e qualquer interesse classificável como “público” sempre prepondera sobre a
presunção de inocência (que segundo ela tutelaria interesses privados), qualquer hipótese
que se insira naquele continente (“ordem pública”) será considerado “interesse público”
e, portanto e aprioristicamente, prevalecerá sobre a presunção de inocência.1162
O presente trabalho, por aceitar e defender a idéia de “conteúdo essencial relativo”,
não propõe a exclusão do conceito de “ordem pública”, mas sugere o estabelecimento de
três requisitos cumulativos como proposta inicial de debate para a delimitação mais
segura no exame crítico do conceito. Delimitá-lo por parâmetros fixados pela doutrina e
pela jurisprudência não significa engessá-lo de forma a não permitir sua análise
casuística, o que é indispensável para o estabelecimento de uma “relação condicionada de
precedência”. O que se deseja é fornecer padrões mínimos fora dos quais há ilegalidade
(por abuso ou excesso) na utilização daquele conceito de “ordem pública”.1163 Esses
parâmetros são externos ao conteúdo de “ordem pública” e funcionam como limites para
sua expansão indevida e desregrada.
Dessa forma, como início de debate, propõe-se que o conceito de “ordem pública”
seja determinado caso a caso, desde que atendidas exigências mínimas e cumulativas.

5.4.1.2.1.4. -Requisitos cumulativos para a aceitação do conceito de “ordem


pública”

Para que a prisão provisória possa ser determinada com base na “ordem pública”,
sugere-se a observância de três requisitos cumulativos: a pena prevista para o crime
imputado; as circunstâncias e a forma demonstradas de cometimento do suposto crime; e,
por fim, uma relação temporal entre o conhecimento da autoria e o instante de
determinação da prisão.

1162 Para o reconhecimento de que o conceito de “ordem pública” é


aberto e possui em seu conteúdo apenas interesses públicos, v. Fábio
Ramazzini BECHARA, Prisão cit., item 3.1 e seus subitens. Na mesma
obra (op. cit., item 3.2.1) o autor tenta estabelecer uma afinidade entre o
que entende como conteúdo da “ordem pública” e o que para ele são os
fins do processo penal.
1163 No sentido da necessidade de se delimitar o excesso de abertura ao

conceito de “ordem pública”, utilizado sempre como baliza para qualquer


prisão provisória, v. Silvio César Arouck GEMAQUE, Dignidade da
pessoa humana e prisão cautelar, São Paulo: RCS, 2006, pp. 57/58, e
Fauzi Hassan CHOUKR, A “ordem pública” como fundamento da prisão
cautelar – uma visão jurisprudencial, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, ano 1, n. 4, out./dez., 1993, itens 1 e 11.
Antes de se explicar a razão da escolha desses três requisitos, é necessário fixar o que
eles têm em comum: o ato ocorrido. É sobre esse eixo central que se identificará qualquer
outro requisito que se mostre necessário e àqueles venha se juntar. Não há outro aspecto,
anterior ou posterior aos fatos tidos como criminosos e que lhe seja estranho, do qual se
possa extrair conseqüências materiais que justifiquem a medida coativa extrema da prisão
provisória. Não se pode buscar o seu fundamento, por exemplo, nas características
pessoais do imputado, ou em outros atos atribuídos ou atribuíveis a ele, pois a se permitir
que o legislador defina e o julgador extraia razões para decidir de pontos estranhos e
alheios ao ato imputado, abre-se a fresta sempre usada ao ingresso de análises
impregnadas de subjetivismos e preconceitos, todas inconstitucionais.1164
Qualquer impressão, razão ou causa de decidir judicial que se funde em aspecto
estranho ao fato imputado representa um afastamento da análise do caso concreto,
passando-se a determinar prisões por fatores emotivos,1165 voltados a punir o imputado
pelo que ele é ou, pior, pelo que ele foi,1166 e não pelo que eventualmente tenha feito.
Abre-se a possibilidade de se afirmar como “razões materiais”, ou seja, que deveriam
advir do ato a ser julgado, motivos, na verdade, institucionais,1167 ou de “eficientismo
punitivo”,1168 ambos totalmente alheios e desconectados com a causa a ser decidida.1169

1164 Sobre o direito penal do autor e o direito penal do inimigo, e sua


influência negativa e violadora sobre a análise do titular do direito
fundamental à presunção de inocência, v. item 5.4.3.1 infra.
1165 Nesse aspecto estão inseridos o “clamor público”, o “abalo social” e a

“repercussão social” gerados pela alegada prática do suposto crime, e


que, muitas vezes, são utilizados como causa justificadora da prisão
provisória, como se depreende do seguinte julgado: “Prisão preventiva.
Decreto fundamentado no clamor público provocado pelo delito.
Admissibilidade. Motivo que traduz o anseio da sociedade em garantir a
ordem pública. Constrição mantida. Habeas corpus denegado. O clamor
público pode servir de motivo para decretação da custódia cautelar, por
traduzir ele o anseio da sociedade em garantir a ordem pública. Além
disso, o clamor público, como circunstância impeditiva para a concessão
da liberdade provisória mediante fiança (art. 323, V, do CPP), pode ser,
igualmente, objeto de análise para a caracterização de ofensa à ordem
pública com vista à decretação da prisão preventiva. Ordem denegada”
(TJGO – 2ª C. – HC 12.200-0/217 – j. 10.05.1994 – RT 708/336).
1166 São várias as decisões que mantém a prisão provisória com base nos

antecedentes criminais do imputado ou na sua condição de reincidente.


Como exemplos, v.: “Processual penal. Roubo de caminhão e formação
de quadrilha. Prisão preventiva. Ausência de justa causa. Excesso de
prazo. 1. Devidamente fundamentado o decreto de prisão preventiva,
nos termos do Código de Processo Penal, art. 312, para assegurar a
ordem pública e a regular instrução criminal, em virtude do temor
causado na população pela audácia dos crimes praticados, bem como
da periculosidade do réu, envolvido em outros inquéritos policiais. 2.
Habeas Corpus parcialmente conhecido e, nessa parte, indeferido” (STJ
– 5ª T. – HC 18.831 – j. 07.03.2002 – DJU 22.04.2002). “Habeas corpus.
Recurso ordinário constitucional. Recorrente tecnicamente primário
ostentando maus antecedentes por envolvimento em diversos inquéritos
policiais. Custódia que atende ao imperativo da ordem pública e da
futura aplicação da lei penal. Decisão fundamentada. Inexistência de
ilegalidade na decretação da prisão cautelar. Hipótese em que não há
razão para se revogar a prisão preventiva ante a presença de justa
causa, existindo prova da existência do crime e indícios suficientes de
autoria. Não tem bons antecedentes quem, mesmo sendo tecnicamente
primário, é contumaz no envolvimento em ocorrências policiais e
processos judiciais. Primariedade, residência fixa e ocupação lícita.
Circunstâncias que, isoladamente, não inviabilizam a custódia
preventiva, quando fundada nos requisitos dos artigos 311 e 312 do
CPP, configurados, no caso. Recurso desprovido” (STJ – 5ª T. – RHC
9.791 – j. 04.05.2000 – DJU 12.06.2000).
1167 Em diversos casos a prisão provisória é decretada para se manter a

“credibilidade da Justiça”. Nesse sentido: “Processual penal. ‘Habeas


corpus’. Prisão preventiva. Decreto. Fundamentação. Suficiente.
Conveniência. Sensibilidade do juiz. Primariedade. Bons antecedentes.
Residência fixa. 1. Contendo a ordem de custódia preventiva
fundamentos suficientes, com suporte idôneo em elementos concretos e
reais, que demonstrem a presença de uma das circunstâncias inscritas
no artigo 312 do Código de Processo Penal, inexiste constrangimento
ilegal passível de reparação por via de habeas corpus. 2. A conveniência
para decretação da medida deve ser regulada pela sensibilidade do juiz
mais próximo das provas da causa e da reação do meio ambiente à
prática delituosa, em virtude de estar mais apto a aferir a necessidade do
acautelamento do meio social e da credibilidade da Justiça. 3. Nem
sempre as circunstâncias da primariedade, bons antecedentes e
residência fixa, são motivos que impedem a decretação da excepcional
medida, se presentes os pressupostos para tanto” (TRF 1ª R. – 4ª T. –
HC 2006.01.00.038542-1 – j. 18.12.2006 – DJU 23.02.2007). Para outros
exemplos jurisprudenciais nesse sentido, v. item 4.5.1.1 (nota 180)
supra.
1168 Insere-se, também, no conceito de “ordem pública”, a necessidade de

se dar uma resposta à sociedade diante de um determinado delito, para


que não haja um “sentimento de impunidade”. Nesse sentido, v., por
todos: “Penal e processual penal. Habeas corpus. Homicídio qualificado.
Prisão preventiva. Fundamentação. Clamor público e periculosidade. I –
A grande comoção que o delito causa na sociedade, gerando expectativa
de impunidade, é motivo para a decretação da segregação cautelar. II –
A forma de execução de delito gravíssimo, revelando, em princípio,
periculosidade, serve de fundamento para a prisão ad cautelam, ainda
que o agente seja primário, de bons antecedentes, afora outras
qualificações normalmente elogiáveis. Writ denegado” (STJ – 5ª T. – HC
17.630 – j. 05.02.2002 – DJU 04.03.2002). “Habeas corpus. Prisão
preventiva decretada para garantia da ordem pública e conveniência da
instrução criminal. Apropriação indébita, formação de quadrilha e
corrupção, dentre outros crimes investigados. Participação de auditores-
fiscais da previdência social. Indícios suficientes de existência de crime e
de autoria. - A imputação de associação criminosa de agentes públicos,
dotados de poder fiscalizatório e investigativo, sugere inversão e
descontrole social, eis que não deve pairar mácula ou suspeita sobre
aqueles encarregados pelo Estado de manter a ordem. - A imagem de
impunidade é comprometedora da Ordem Pública, e merece reação
imediata para acautelar o meio social. (...) A análise do caso concreto
revela que se encontram presentes os pressupostos que autorizam a
prisão preventiva, quais sejam: provas mínimas da existência do crime e
indícios suficientes de autoria, bem como a participação, em tese, de
forma relevante do Paciente” (TRF 2ª R. – 1ª T. Esp. – HC
2004.02.01.013889-5 – j. 13.04.2005 – DJU 27.04.2005).
1169 O Supremo Tribunal Federal tem feito rígido controle da
inconstitucionalidade desses desvios freqüentemente inseridos nos
termos “ordem pública” ou “ordem econômica”. Para além de qualquer
julgado que possa ser citado – e são muitos na atual composição dessa
Corte –, vale destacar o pensamento de dois de seus integrantes,
respectivamente seus atuais Presidente e Vice-Presidente. O jornal
Folha de S. Paulo, conforme matéria escrita por Silvana de FREITAS,
publicada em 20.03.2008, p. A4, intitulada “Gilmar Mendes afirma que há
excesso de prisões provisórias”, informou que o Ministro Gilmar Ferreira
Mendes, após sabatina na Comissão de Constituição e Justiça do
Senado, “negou a intenção de que o conselho [Nacional de Justiça]
coíba o poder dos juízes de decretar prisões provisórias. Disse que o
órgão poderá, por exemplo, fazer levantamento estatístico de prisões
que são decretadas no início de apurações e depois suspensas porque
não se enquadram nas exigências legais. A crítica ao suposto abuso nas
prisões provisórias o coloca em confronto com a Polícia Federal, o
Ministério Público Federal e juízes das instâncias inferiores, dos quais
normalmente partem as ordens de prisão. A prisão provisória antecede a
condenação ou até mesmo a existência de processo. O STF só a admite
em casos excepcionais como risco de fuga, obstrução das apurações por
coação das testemunhas e ameaça à ordem pública” – acrescemos para
esclarecer. Nessa mesma linha, também declarou em entrevista a
Alexandre OLTRAMARI, repórter da revista Veja (Fumaça de casuísmo,
entrevista com Gilmar Mendes, Veja, São Paulo, ano 41, n. 16,
23.04.2008, p. 14): “lidar com réu preso é dramático. Fui relator de um
caso em que o réu estava preso havia seis anos esperando julgamento.
Mandei soltá-lo. Isso nunca é bem-visto pela opinião pública. Mas
suponho que esse enunciado tenha sido construído por meio de uma
obra de marketing com o intuito de fazer uma propaganda institucional
da polícia. Qualquer pessoa alfabetizada juridicamente sabe que, a não
ser em flagrante, a polícia só prende por meio de uma ordem judicial.
Quem manda prender é a Justiça, e quem manda soltar também é a
Justiça. Ocorre que alguns magistrados ficam impressionados com os
argumentos da polícia e não observam os fundamentos legais da prisão
preventiva, o que provoca uma revisão da decisão em instância superior.
É natural que essas divergências causem alguma insegurança jurídica.
Mas o papel do STF é sempre o de consolidar o estado de direito
democrático”. O Ministro Cezar PELUSO, atual Vice-Presidente da
Corte, em palestra proferida no XII Seminário Internacional do Instituto
Brasileiro de Ciências Criminais (Garantias cit.), assim criticou a atual
cultura jurisprudencial quando da interpretação do conceito de “ordem
pública”, conforme nossa transcrição: “Há uns quinze ou dezoito anos,
durante o Congresso dos Tribunais de Alçada – que, então, existiam –,
fiz uma conferência sobre ordem pública e tive o trabalho, naquela época
– evidentemente não vou repetir aqui –, de examinar uma larga
bibliografia sobre o que a ordem pública significa no mundo jurídico, qual
é o significado jurídico, normativo de ordem pública. Recordo-me, muito
bem, de que a primeira vez que se falou em ordem pública, no mundo
jurídico, foi após a Revolução Francesa. Quis com isso significar o quê?
A mudança da ordem socioeconômica e política. Isto é, falava-se na
ordem pública como uma ordem nova, adveniente da mudança
revolucionária. Era esse o significado jurídico da expressão ‘ordem
pública’. Em que se transformou essa expressão? Numa palavra ou
numa expressão que os teóricos dizem tratar-se de uma palavra oca, um
conceito indeterminado, que esconde razões jurídicas e razões não-
jurídicas, todas reprováveis. Compreende sede de vingança (porque
ninguém textualmente diz ‘não, eu gostaria’, mas afirma ‘a ordem pública
está sendo ofendida’); parcialidade do julgador (que já acha que aquele
réu, antes de começar o julgamento, só pelo ‘jeitão’, está condenado;
então, ele ofende a ordem pública, tem de ficar preso); justiça sumária (o
juiz se transforma, então, no grande julgador: ‘para mim não tem
problema nenhum, sou eu que faço a justiça’); o juiz como porta-voz da
opinião pública (despe-se da condição de juiz e passa a exprimir os
sentimentos da opinião pública); ou recorre à ordem pública por
obsessão de caráter ideológico, na qual se encontram as idéias de
defesa social, certas repugnâncias de caráter pessoal, etc. Em resumo,
tudo isso é claro e frontalmente ofensivo ao princípio constitucional (da
presunção de inocência), que não tolera juízos de culpabilidade
provisória, nem a chamada execução provisória. Daí o Supremo Tribunal
Federal não tolerar prisão preventiva baseada na necessidade de
satisfazer sentimento público de justiça. ‘O povo está revoltado: tem de
prender’. ‘Aplacar o clamor público ou o chamado alarme social’.
Transformar a prisão preventiva numa forma de prevenção especial:
‘evitar outros crimes’. Isso não é função de prisão preventiva. Presumir a
O legislador, atento aos padrões constitucionais, não pode permitir a abertura de
espaços para o retorno às teorias sociopolíticas de marginalização (política, religiosa,
social, racial, econômica etc.) e do uso processual penal para legitimar instituições e
idéias repressivas, historicamente próximas ao sistema criminal (penal e processual
penal).
É necessário afirmar que o eixo central indicado (o ato imputado) sempre deverá ser
o esteio fixado pelo legislador, do qual a doutrina e a jurisprudência poderão extrair
outros requisitos para, agregados àqueles três já citados, cumprir a tendência redutiva a
que toda restrição deve propender.
Fixado o eixo central sobre o qual deve girar o exame dos requisitos indicados, cabe
ainda neste tópico explicar a razão de suas escolhas.
O primeiro requisito, referente à “pena fixada abstratamente para o crime”,
justifica-se porquanto deriva diretamente da idéia de proporcionalidade, a qual deve
orientar toda a análise de medida restritiva. Não há razão material que justifique,
segundo o exame da proporcionalidade, a prisão de alguém por crime, cuja pena prevista
em abstrato não implicará privação de sua liberdade. Esse parâmetro racional já existe em
nosso sistema e foi empregado na elaboração da Lei dos Juizados Especiais Cíveis e
Criminais, quando até mesmo a prisão em flagrante foi vedada se o autor do fato aceitar a
condição de comparecer em juízo na data e hora determinadas pela autoridade
policial.1170
O raciocínio é simples e deve ser estendido para outras hipóteses de medidas
cautelares, mesmo aquelas que não impliquem privação provisória de liberdade:1171 se a
pena arbitrada pelo legislador não implicará eventual restrição da liberdade do imputado,
não há razão para que responda preso à ação penal ou assim seja mantido no curso
persecutório.

periculosidade do agente: ‘Ah! Ele cometeu isso, é um sujeito muito


perigoso’. ‘A prisão preventiva é o meio de resguardar a credibilidade da
Justiça’, ‘exemplaridade da prisão’ ou, então, a ‘gravidade teórica’ ou
‘concreta do delito’. Não precisa ser muito inteligente para perceber que,
por trás disso tudo, estão posturas altamente violadoras e ofensivas do
princípio constitucional, porque, no fundo, se trata sempre, de algum
modo, de expressão de um juízo provisório de culpabilidade” –
acrescemos para esclarecer.
1170 Assim dispõe o parágrafo único do art. 69 da Lei 9.099/95: “Ao autor do

fato que, após a lavratura do termo, for imediatamente encaminhado ao


juizado ou assumir o compromisso de a ele comparecer, não se imporá
prisão em flagrante, nem se exigirá fiança. Em caso de violência
doméstica, o juiz poderá determinar, como medida de cautela, seu
afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a vítima”.
1171 A extensão desse raciocínio baseado na proporcionalidade para todas

as medidas cautelares, sejam ou privativas de liberdade, está inserida no


art. 515, do Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal,
disponibilizado em 2009, in verbis: “Art. 515. É vedada a aplicação de
O segundo requisito, representado pelas “circunstâncias e forma demonstradas do
cometimento do suposto crime”, explica-se na medida em que há situações em que o
modo como o crime é cometido traz maior conotação aos fatos que o crime em si. Como
exemplos de tais situações podem-se citar homicídios por esquartejamento ou após
sessões de tortura; tráfico de drogas com uso de crianças ou em quantidades industriais
de drogas; apreensão, na posse de cidadãos, verdadeiros arsenais privativos das Forças
Armadas nacionais, ou por elas nem utilizados; inserção ou adulteração de informações
falsas em sistema de informática que cause pane no sistema público de controle fiscal ou
de saúde pública.1172
Esses exemplos não estão sendo citados para servirem de numerus clausus, ou
sequer como modelos. São indicados apenas para demonstrar que há formas e formas de
se cometer um homicídio, um tráfico de entorpecente, uma fraude fiscal ou qualquer
outro crime. Assim, será a forma demonstrada por elementos objetivos e existentes nos
autos quanto ao cometimento do suposto crime, tendo em vista as situações objetivas da
ação e dos sujeitos envolvidos, que deverá ser considerada, conjuntamente com os demais
requisitos destacados neste item, para servir de base na fundamentação em cada caso
concreto.1173

medida cautelar que, em tese, seja mais grave do que a pena decorrente
de eventual condenação”.
1172 Nesse sentido entendemos ter atendido a observação de Giulio

ILLUMINATI, La presunzione cit., p. 44, quanto à necessidade de se


verificar a possibilidade de se determinar a prisão em casos de especial
gravidade. O autor, em verdade, embora reconheça a necessidade de
examinar com cuidado essas situações, pretendeu dar-lhes uma razão
processual ao afirmar que uma pessoa que cometa esse tipo de crime
apresenta maior possibilidade de não cumprir eventual pena e, portanto,
haveria uma razão processual para sua prisão ser fundada na garantia
do provimento final. Não nos parece possível torcer a tal ponto as
finalidades processuais sob o risco de tudo tornar-se “finalidade
processual”, e, com isso, também para essa razão, faltaria controle de
constitucionalidade e ocorreriam abusos. Há certa dificuldade em se
justificar que a prisão (cautelar) para garantia do processo não tenha, no
fundo de sua justificativa, um conteúdo material (sobre essa dificuldade,
v., op. cit., pp. 45/47). Melhor reconhecer que nessas hipóteses a prisão
tem fundamento material e, não obstante este aspecto, procurar delimitar
as hipóteses em que poderá, legitimamente, ocorrer.
1173 Parece ter sido a preocupação com a forma de cometimento, aliada ao

bem jurídico tutelado, a razão pela qual Roberto DELMANTO JUNIOR,


As modalidades cit., pp. 179/183, reconhece razões a alguns pontos do
argumento utilizado pela corrente por nós denominada “materialista”.
A escolha pela teoria relativa do conteúdo essencial exige, necessariamente, um
exame casuístico para que as condições fáticas e jurídicas específicas sejam ponderadas. A
exemplificação citada, portanto, visa apenas demonstrar que a forma de cometimento é
um importante fator a ser considerado. Isso, porém, não significa que sempre e em
qualquer hipótese em que o crime seja cometido de forma qualificada, agravada, ou
diversa dos padrões comuns ao meio social no qual ele ocorreu, deva ser decretada a
prisão. A análise desse fator exige uma conjunção de aspectos que somente o caso
concreto pode oferecer e que deve ser feita de modo associado aos outros dois requisitos
aqui indicados.
Dessa forma, antes de se ingressar no terceiro aspecto urge ressaltar a importância
da cumulatividade como fator de controle desse segundo requisito citado.
Dos três requisitos sugeridos esse segundo (“circunstâncias e forma demonstradas de
cometimento do suposto crime”) é o que permite maiores extensões interpretativas.
Portanto, deve sempre vir acompanhado dos demais requisitos como forma de controle
de subjetivismos exagerados, que pretendam (re)inserir, por seu intermédio, toda uma
argumentação de prevenção geral ou especial à finalidade da prisão provisória; tão
peculiar à cultura fascista-repressiva, da qual nosso código e jurisprudência precisam ser
afastados. A cumulatividade, portanto, desempenha papel fundamental como limitadora
em eventual interpretação destinada a ampliar o conceito de “ordem pública”.
Por fim, mas não menos importante, é o terceiro requisito cumulativo: “a relação de
tempo entre o conhecimento da autoria e do ato imputado e a decretação da prisão
provisória”.
A partir do ato imputado, mais exatamente do descobrimento de seu autor, a prisão
provisória e o tempo passam a ter relação inversa de proporcionalidade. Isto é, quanto
maior for o tempo decorrido desde aquele marco tanto menor será a necessidade de se
efetuar a prisão provisória, salvo se forem descobertos novos atos relacionados com o
primeiro acontecimento e que o agravem.
Esse requisito temporal ora sugerido também guarda estreita relação com a prisão
em flagrante e, ainda, vai buscar sua justificação no instituto da prescrição penal.
Um dos aspectos que autorizam e legitimam a prisão em flagrante é uma quase
imediatidade entre o ato visualizado e a realização da prisão. A repulsa advinda da
proximidade com o ato tido como crime e a alta probabilidade de seu cometimento
extraída da certeza visual justificam a medida de restrição total da liberdade por razões
materiais.1174 Se a prisão por “ordem pública” tem razão material, não se pode deixar de
considerar que quanto mais tempo passar entre a data do conhecimento da autoria e a
decretação da prisão, mais desnecessária se mostrará essa prisão. A fluência do tempo vai,
progressivamente, desconstituindo qualquer justificativa material para a prisão
provisória, notadamente porque a alegação de perigo advindo da liberdade do indivíduo
vai perdendo consistência fática.

1174 Tales Castelo BRANCO, Da prisão cit., pp. 48/49, leciona que as
características básicas e mais importantes da “flagrância” são
“atualidade” e “evidência”: “A flagrância, portanto, sugere, sempre, em
Esse requisito também encontra base no instituto da prescrição penal; instituto de
política criminal, destinado à não punição de eventual culpado, que tem seu
reconhecimento em todas as legislações conhecidas e amparo em nossa atual
Constituição.1175
Há unanimidade doutrinária quanto a um de seus principais fundamentos: o
decurso do tempo. Todos entendem que sua principal justificação está exatamente em
que o passar do tempo vai, progressivamente, deslegitimando a atuação repressiva do
Estado, e isso por dois motivos principais: o primeiro é pelo esquecimento dos efeitos do
crime pela sociedade, à qual seria um mal maior trazê-lo novamente ao contexto, após
vários anos de sua ocorrência; o segundo motivo é que o passar do tempo, sem que novo
fato seja imputado ao agente, revela que ou a punição era indevida, ou era desnecessária
para a sua correção.1176

primeiro lugar, a atualidade e, em segundo, a evidência. Costuma-se,


entre nós, dizer que é flagrante não só o que é atual, mas, também, o
que é inequívoco, manifesto, evidente. Os gregos, ao se referirem ao
furto flagrante, mencionavam o agente surpreendido ‘ao praticar o ato’.
Os romanos, fazendo remissão ao termo grego, usavam a locução
‘furtum manifestum’, para traduzir a mesma idéia. Os alemães referem-
se ‘ao acontecimento (ainda) fresco’ e ao fato de alguém ‘surpreender
outrem na comissão do ato (ainda) fresco’”. No mesmo sentido, v. Daniel
GERBER, Prisão em flagrante: uma abordagem garantista, Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003, pp. 105/106, e Silvio César Arouck
GEMAQUE, Dignidade cit., pp. 119/120.
1175 O constituinte reconheceu o instituto da prescrição na medida em que

aceitou como imprescritíveis apenas os crimes de racismo (inciso XLII do


art. 5º, CR) e de “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a
ordem constitucional e o Estado Democrático” (inciso XLIV do art. 5º,
CR). Dessa forma, deixou ao legislador ordinário a possibilidade de
regular o instituto, porém, impôs não só a sua existência, mas também a
sua incidência a todos os crimes, excluindo aqueles especificados.
1176 René Ariel DOTTI, Curso de direito penal: parte geral, Rio de Janeiro:

Forense, 2001, pp. 679/680, explana que o “tempo é um fenômeno


relevantíssimo para se determinar a aplicação da lei penal e que opera
não somente para o efeito de se extinguir a punibilidade (morte,
prescrição, decadência e perempção), mas também para muitos outros
efeitos. A prescrição é uma das formas de extinção da punibilidade pelo
decurso do tempo. A passagem do tempo apaga a lembrança dos fatos
fazendo com que o crime caia no esquecimento de maneira a cessar o
alarma e o desequilíbrio social por ele causado”. No mesmo sentido, v.:
Miguel REALE JÚNIOR, Instituições de direito penal: parte geral, Rio de
Janeiro: Forense, 2003, v. 2, item 11.10.2; Damásio E. de JESUS,
Prescrição penal, 12ª ed. revista e ampliada, São Paulo: Saraiva, 1998,
pp. 18/19; idem, Direito penal: parte geral, 26ª ed. revista e atualizada,
São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, pp. 721/722; e Antonio Rodrigues
Portanto, se o passar do tempo retira os efeitos do ato, levando à extinção de sua
punibilidade, com muito mais razão, porém em um lapso temporal muito menor, pode-se
aplicar o mesmo raciocínio para a prisão provisória. O tempo, como fator gerador da
extinção de punibilidade pela ocorrência da prescrição penal, também deve ser
considerado como fator para se determinar a legitimidade para a decretação de qualquer
prisão provisória.
Acredita-se que, sem prejuízo de outros requisitos que a doutrina e a jurisprudência
queiram agregar aos três aqui supracitados, eles são postos para já servirem de pauta
inicial e mínima para o debate necessário de como parametrizar constitucionalmente o
conceito de “ordem pública”.
Esse conceito (“ordem pública”), assim como muitos outros do direito processual
penal (p.ex., ampla defesa, devido processo legal e presunção de inocência) não foi criado
para permitir reduções internas, ou seja, inseridas em seu conteúdo. Porém, assim como
os direitos fundamentais acima citados, a “ordem pública” não pode deixar de sofrer
limitações, notadamente porque, no âmbito processual penal, atua como restrição a
direito fundamental e, portanto, deve ser tendencialmente reduzida. O seu controle, por
conseguinte, não pode advir de uma perspectiva interna, mas sim por via externa, ou
seja, por meio de reduções representadas por fatores externos àquele conceito. Ao se
estabelecer parâmetros externos e limitadores, evita-se ingressar em seu conteúdo (que
deve ter espaço interpretativo suficiente para ser atualizado no tempo e conforme as
condições concretas), sem que com isso fique isento de margens restritivas que sejam
simultaneamente proporcionais e constitucionais. Só nesses termos o conceito de “ordem
pública” pode ser inserido no tema das medidas coativas a serem estabelecidas pelo
legislador ordinário.
Dessa forma, não se aceita, e nesse ponto não há como não se colocar a par com a
doutrina processualista, que os conceitos de “ordem pública” e “ordem econômica”
continuem a desempenhar papel de restrição de direito fundamental nos moldes
ilimitados em que hoje vêm previstos no ordenamento processual penal.1177

PORTO, Da prescrição penal, 4ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais,


1988, pp. 14/15. Eduardo Reale FERRARI, Prescrição da ação penal:
suas causas suspensivas e interruptivas, São Paulo: Saraiva, 1998, cap.
III, expõe ao menos nove teorias para fundamentar o instituto da
prescrição, preferindo como teorias mais apropriadas: a teoria do
esquecimento; a teoria político-criminal; e a teoria da dispersão das
provas.
1177 Nesse sentido, na doutrina nacional, v., por todos, Antonio

MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 66/69. Mercedes


FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 132/133, aponta o mesmo
problema da falta de limitação legal para expressões jurídicas na
Espanha, afirmando ser o exagero inconstitucional.
Toda intervenção estatal a direito fundamental somente pode ser considerada
legítima e, portanto, ser considerada uma restrição aceitável, se ela cumpre o pressuposto
da legalidade processual estrita e se pode ser controlada pela proporcionalidade.1178
Em nossa legislação processual penal infraconstitucional ambas expressões indicadas
são carentes tanto de legalidade estrita quanto de proporcionalidade. Falta-lhes
legalidade “estrita” porquanto são conceitos abertos e não estão acompanhados de
qualquer referência limitadora em sua extensão, ou que possa servir de parâmetro para o
juiz extraí-los a partir do caso concreto. E, ainda, não há limite, por exemplo, para
inferências subjetivas e advindas de razões midiáticas, pseudo-eficientistas ou, ainda, de
escolhas íntimas do julgador. Todas essas ilegítimas formas subjetivas de descontrole do
conteúdo da decisão judicial são sempre aplicadas ao tema das prisões provisórias por
meio daqueles dois conceitos abertos: “ordem pública” e “ordem econômica”.1179

5.4.1.2.1.5. -Revisão periódica da decisão judicial determinadora de medida


de coação

Se a presunção de inocência como norma de tratamento tem seu maior nível de


restrição quando a prisão provisória é decretada, isso não significa dizer que o imputado
perca de maneira definitiva e até decisão final essa forma de manifestação da presunção
de inocência.
Cabe ao legislador, para preservar aquele aspecto da presunção de inocência, não
apenas definir os meios mais racionais para sua proteção, mas também deve determinar
ao juiz da causa que reexamine periodicamente as razões de sua decisão. Isso para
verificar se, com o passar do tempo e o eventual advento de novas condições fático-
jurídicas, a sua oportunidade ainda se justifica e se a proporcionalidade da medida coativa
determinada se mantém.1180 Esse reexame necessário, durante o cumprimento da medida,
não deve se limitar às prisões provisórias, uma vez que o passar do tempo e a mudança
das condições podem retirar a justificação e a proporcionalidade de qualquer medida
restritiva, pouco importando se ela é menos ou mais invasiva.1181

1178 Sobre a falta de lei estrita ser uma violação às necessárias legalidade
processual e justificação constitucional, v. item 4.5.1.1 supra.
1179 Sobre os influxos íntimos e externos à causa penal e que não devem

ser aceitos pelo juiz ou devem ser controlados ao máximo, v. itens


5.4.2.3 e seus subitens e 5.5.1.1 infra.
1180 Nesse sentido, v., não obstante aplicada apenas à prisão provisória,

Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp. 82/84, e Aury


LOPES JÚNIOR, Introdução cit., p. 209.
1181 Nesse sentido, mais correta a redação do Anteprojeto de Reforma do

Código de Processo Penal da Comissão do Senado Federal que o


legislador processual penal de 1941.. Nosso atual art. 316 apenas dá
poderes ao julgador revogar ou decretar a prisão preventiva no curso da
persecução, enquanto a legislação projetada (art. 518) impõe a
necessidade de revisão da decisão judicial a toda medida cautelar (art.
Toda a medida de coação determinada poderá ser substituída por outra que se
mostre mais adequada e eficiente diante das novas situações naturalmente
proporcionadas pela passagem do tempo. Isso faz com que possa haver uma readequação
na escolha de uma nova medida tanto para recrudescer a inicialmente decretada quanto
para minorar os seus efeitos restritivos. Se uma medida coativa é determinada ao
imputado e ele não a cumpre, mostra-se insuficiente a restrição e, portanto, torna-se
necessária uma nova medida que poderá, inclusive, ser mais restritiva. O contrário
também é verdade. Uma medida restritiva que com o tempo se mostre excessiva deverá
ser eliminada ou substituída por outra menos restritiva.1182
Com isso diminuem-se os tão recorrentes excessos de prazos nas prisões provisórias
e em outras medidas coativas que, se inicialmente estavam conformes, com o passar do
tempo se mostraram ilegítimas e/ou desproporcionais. Isso ocorre, p.ex., quando um
preso provisório permanece recluso, aguardando seu julgamento definitivo, por mais
tempo do que as normas penais prevêem como prazo para cumprimento de eventual
pena a lhe ser atribuída.

5.4.1.2.1.6. -Direito à indenização por indevida decretação de medida de


coação

Com o expendido até este ponto, a presunção de inocência, em sua manifestação do


“favor libertatis”, mostra seus efeitos em nível legislativo e judiciário para se decretar
medida de coação e para se proceder à constante verificação de sua justificação
constitucional e sua proporcionalidade. Porém, seus efeitos não se projetam apenas
“para” e “durante” o cumprimento da medida, ela também deve produzir efeitos
legislativos, e em decorrência judiciários, após cessada a medida coativa.

518, do Anteprojeto) e em períodos pré-definidos (art. 520, § 2º, inciso


VIII). O Anteprojeto define, para a prisão preventiva, em artigo específico
(art. 550), que o seu reexame será obrigatório, estabelecendo nesses
termos o regramento: “ Art. 550. Qualquer que seja o seu fundamento
legal, a prisão preventiva que exceder a 90 (noventa) dias será
obrigatoriamente reexaminada pelo juiz ou tribunal competente, para
avaliar se persistem, ou não, os motivos determinantes da sua aplicação,
podendo substitui-la, se for o caso, por outra medida cautelar. § 1º O
prazo previsto no caput deste artigo é contado do início da execução da
prisão ou da data do último reexame. § 2º Se, por qualquer motivo, o
reexame não for realizado no prazo devido, a prisão será considerada
ilegal”.
1182 Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 134, aponta que, na

Espanha, há uma falha do legislador em não prever a obrigatoriedade de


revisões periódicas de prisões provisórias mesmo quando decretadas
por razões processuais, o que dificulta a verificação se essas razões,
com o tempo, deixaram de existir.
Nesse terceiro instante, o “favor libertatis” deve assegurar a necessária e justa
indenização por eventual erro judiciário quando da determinação ou manutenção de
medida coativa sem justificação constitucional, ou proporcionalidade.
Não obstante a Constituição determine que “o Estado indenizará o condenado por
erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”,1183 não
determina que o Estado “só” indenizará o preso nessas circunstâncias. O impositivo
constitucional garante um direito, sem com isso afastar o outro.1184 Até mesmo porque é
garantido em lei que todo aquele que causar prejuízo ou dano a outrem por ato ilegal
deverá ressarci-lo e indenizá-lo na medida do prejuízo causado.1185

1183 Inciso LXXV do art. 5º da CR.


1184 Nesse sentido, com posição precursora na abordagem da presunção de
inocência, v. Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção cit., pp.
75/76. Silvio César Arouck GEMAQUE, Dignidade cit., p. 114, afirma que
“o direito à indenização por erro judiciário deve ser estendido às prisões
cautelares injustas, como instrumento eficaz para prevenir que estas
sejam decretadas quando evidentemente não se tratar de hipótese de
prisão cautelar”. Antônio Alberto MACHADO, Curso de processo penal,
2ª ed., São Paulo: Atlas, item 21.7, p. 559, reconhece que além da prisão
além do fixado em decisão irrecorrível ou de caso de reconhecimento,
por decisão judicial, de inocência do acusado preso provisoriamente há,
ainda, direito à indenização por erro judiciário por prisão provisória
decretada de modo indevido. Nesse sentido, pela doutrina portuguesa, v.
Fernando GONÇALVES e Manuel João ALVES, A prisão cit., pp.
172/173. Com apoio em Manuel Maia Gonçalves, afirmam esses autores
que tal indenização se apóia na responsabilidade do Estado por ato de
gestão pública, integrada à função jurisdicional. Indicam, ainda,
situações de erros grosseiros e prisões manifestamente ilegais (op. cit.,
pp. 174/175).
1185 Assim determina o inciso V do art. 5º da Constituição da República: “é

assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da


indenização por dano material, moral ou à imagem”. O Código Civil
também fornece base legal suficiente para que o legislador ordinário
processual penal possa elaborar meios indenizatórios por decretações
indevidas de medidas coativas. Nesse sentido, serve como referência o
seu art. 954, parágrafo único, inciso III, in verbis: “Art. 954. A indenização
por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e
danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não puder provar prejuízo,
tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal: (...) III –
a prisão ilegal”.
Nesse contexto, e como se procurou demonstrar nos parágrafos anteriores, medida
coativa determinada sem justificação constitucional e proporcionalidade é medida ilegal;
portanto, sem se entrar na discussão da existência ou não de dolo na sua determinação,
gera direito à indenização.1186
O conceito de “erro judiciário”, utilizado com freqüência pela doutrina para a
revisão criminal,1187 pode aqui ser aplicado, uma vez que o magistrado tanto pode errar
ao condenar, quanto pode errar ao determinar a prisão provisória de alguém.1188

1186 Silvio César Arouck GEMAQUE, Dignidade cit., pp. 114/115, posiciona-
se no sentido de que a indenização não deverá atingir a pessoa física do
juiz, “salvo nas hipóteses de dolo”.
1187 Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão criminal, São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1998, item 7.2, leciona que o erro judiciário “é cometido pelos
juízes, voluntária ou involuntariamente, em suas sentenças e acórdãos
(...). Resulta o erro judiciário, conforme Silvio de Macedo, da não
observância da lei ou fundado em engano resultante de ato e
documentos da causa. É inerente a atos do processo, judiciários,
judicativos ou das partes. Álvaro Villela alerta que ‘um fantasma negro
acompanha sempre o organismo judiciário, como se fosse a sua sombra.
É a projeção de um ‘quid’ ínsito a todos juízos humanos - a eterna
falibilidade e chama-se ‘erro judiciário’” (op. cit., pp. 206/207). Rui
STOCO, Responsabilidade civil por erro judiciário em ação penal
condenatória, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano
11, n. 44, jul./set., 2003, item 2, não obstante também se refira ao
reconhecimento do erro judiciário na revisão criminal, fornece os
elementos necessários para se iniciar uma discussão do direito à
indenização por indevido decreto de prisão provisória: “A questão relativa
ao erro judiciário, por mais que sobre ela se tenha debruçado e debatido,
ainda enseja disceptações e exige disquisição, seja qual for o enfoque
que se lhe dê, até mesmo à luz do aspecto evidenciado no prólogo
acima. Como não se desconhece, para que surja a obrigação de
indenizar, quando se fala em responsabilidade aquiliana decorrente de
ato ilícito, exige-se uma ação ou omissão, que dela decorra; um
resultado danoso ou a ocorrência de um dano; um elo de ligação entre o
comportamento do agente e o dano (nexo causal) e que esse
comportamento seja doloso ou culposo (elemento subjetivo). Contudo,
quando a responsabilidade é objetiva, prescinde-se apenas do último
elemento, como sói acontecer, ‘ad exemplum’, nas hipóteses do art. 37,
§ 6º, da CF. Basta a ação, o dano e o nexo etiológico entre eles,
dispensada qualquer investigação acerca da culpabilidade do agente”.
1188 Oreste Nestor de Souza LASPRO, A responsabilidade civil do juiz, São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, em obra voltada ao processo civil,


trata o erro judiciário como causa de indenização. Bem observa que essa
espécie de erro, apto a causar prejuízo e o correspondente direito à
indenização, não obstante esteja mais relacionado “à sentença, como
ato jurisdicional que põe termo ao processo, a verdade é que o erro
Questão que pode ser levantada diante da afirmação de que a prisão provisória
indevida (ou qualquer medida coativa) gera indenização é a que teme, com isso, que as
decisões de mérito tendam a ser condenatórias, como forma de o juiz justificar a sua
decisão quanto à medida coativa anterior.
Conquanto isso possa gerar uma tendência subjetiva na interpretação de alguns
juízes, o risco diminui ao se compreender que o direito indenizatório não nasce da
eventual condenação ou absolvição que venha a ser decretada. A indenização advém da
ilegalidade da medida coativa, pouco importando se a decisão final será ou não
condenatória. A ilegalidade está vinculada ao acerto ou desacerto da determinação da
medida coativa, não possuindo qualquer relação com o mérito da causa.
Assim, para exemplificar, podemos citar eventual decisão de suspensão do direito de
dirigir 1189 determinada sem elementos objetivos a demonstrar nos autos o “fumus delicti
commissi” (materialidade e autoria). Ou, outro exemplo mais evidente, quando o juiz
determina a prisão preventiva com base em provas ilícitas (p.ex., interceptação telefônica
ou de correspondência, sem autorização judicial).1190

judiciário pode estar presente em qualquer tipo de decisão do juiz,


ficando afastado o despacho, na medida em que tendo por escopo
simplesmente dar andamento à demanda, impossível que cause
gravame capaz de gerar direito ao ressarcimento” (op. cit., pp. 218/219).
Rui STOCO, Tratado de responsabilidade civil: responsabilidade civil e
sua interpretação doutrinária e jurisprudencial, 5ª ed. revista, atualizada
e ampliada, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 795, aplicando o
entendimento anterior, incluindo o tema das prisões provisórias, aponta
uma tendência inevitável e para a qual nossos tribunais precisam
começar a atentar: “Nada justifica – hoje – excluir da possibilidade do
erro, no sentido genérico a que se refere a Carta Magna, qualquer tipo
de prisão, seja definitiva, decorrente de sentença; seja ela, ainda,
preventiva, cautelar ou provisória”.
1189 Assim está disposto no art. 294 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei

9.503/97): “Em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo


necessidade para a ordem pública, poderá o juiz (...) decretar, em
decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para
dirigir veículo automotor (...)”.
1190 A indenização a ser exigida como decorrência de uma prisão provisória

decretada em prova ilícita não afasta, por óbvio, a indispensabilidade do


juízo, que eventualmente foi levado a erro, determinar a apuração e
punição dos responsáveis pela produção de prova ilícita.
Nas situações exemplificadas, independente da decisão de mérito, as medidas
coativas guardam uma ilegalidade intrínseca, a qual não será eliminada ou sanada com
eventual decreto absolutório ou condenatório. No instante em que se percebe que o
direito à indenização nasce da ilegalidade1191 na determinação ou na manutenção da
medida coativa, e não da decisão final de mérito, qualquer que ela seja, compreende-se
que não há como aquele direito ressarcitório influir no julgamento de mérito por parte
do juiz ou do tribunal.
Dessarte, o “favor libertatis”, corolário do “favor rei” e manifestação da presunção
de inocência no âmbito legislativo e judiciário, deve garantir não apenas providências
legislativas para se fixar critérios de interpretação e se normatizar um rol extenso de
medidas coativas. Deve ir além, deve determinar períodos de tempo dentro dos quais o
juiz deve rever a oportunidade das razões que o levaram a tomar a decisão restritiva,
assim como também precisa garantir o direito de indenização para os casos de ilegalidade
na determinação ou na manutenção da medida coativa.

5.4.1.3. -(segue): “in dubio pro reo” como significado da presunção de


inocência

Em todo o processo cognitivo parte-se da ignorância sobre um determinado fato ou


sobre algo (objeto a se conhecer) com o objetivo de se chegar a um estado subjetivo de
certeza.1192 A dúvida é um estágio intermediário no qual permanece a pessoa que, já
tendo alguns conhecimentos sobre o objeto, não consegue atingir a certeza.

1191 Antônio Alberto MACHADO, Curso cit., p. 559, diferencia decisões


ilegítimas de decisões ilegais, mas para ambas atribui o dever do Estado
em indenizar.
1192 Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La mínima cit., p. 56, expõe que a

finalidade da prova é conseguir o convencimento judicial de certeza


quanto às afirmações feitas pelas partes. Descarta a verdade como uma
finalidade da prova, entendendo que ela muitas vezes é inatingível no
processo, sendo possível apenas atingir a “certeza”, como a ausência de
dúvida no convencimento do juiz. Gustavo Henrique Righi Ivahy
BADARÓ, Ônus cit., pp. 25/26, afirma que “certeza” e “verdade” são
conceitos intimamente ligados, mas não se confundem. A verdade “é um
conceito de relação”, uma concordância entre o objeto e a imagem que o
sujeito dele capta. A certeza, por sua vez, é uma “manifestação subjetiva
da verdade”; “a certeza do juiz é a verdade do processo”. Nesse sentido,
embora focando o tema pela perspectiva do erro judiciário, v. Sérgio de
Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp. 202/210.
As decisões judiciais não deixam de ser um processo cognitivo, no qual o juiz parte
da ignorância sobre os fatos que lhe são apresentados na inicial acusatória a fim de que,
no curso da persecução, mercê das provas coligidas, conheça o fato de modo a tê-lo como
certo.1193
Em um Estado Democrático de Direito, o direito processual penal informado pelas
regras do devido processo legal tem duas limitações para a reconstrução dos fatos no
curso da persecução: a primeira derivada da impossibilidade de se reproduzir em juízo os
fatos como ocorreram, portanto uma impossibilidade fática e insuperável de se recompor
com exatidão os fatos passados e relevantes para a causa; a segunda consiste em uma
limitação constitucional consistente em vedar a prova ilícita como apta a integrar os
autos e, portanto, influir na formação da convicção judicial.1194 Essas limitações
probatórias impedem que a convicção judicial atinja o estado subjetivo de certeza em
todos os casos.1195

1193 Mais propriamente, um processo re-cognitivo de um juiz que não sabe


(ignorância), mas precisa saber (certeza) por meio de provas. Para
cumprir seu mister, o juiz (que não sabe; ignorante) deve se fiar em
pessoas (testemunhas, vítimas, imputado) e em objetos (documentos,
perícias, etc.) que “sabem” (cognitio) e que devem fornecer-lhe a
informação para que possa conhecer (re-cognitio). Nesse sentido, v.
Jacinto Nelson de Miranda COUTINHO, Glosas ao Verdade, Dúvida e
Certeza de Francesco Carnelutti, para os operadores do Direito, Revista
de Estudos Criminais, Porto Alegre, ano 4, n. 14, 2004, item II, e Aury
LOPES JÚNIOR, Direito processual penal e sua conformidade
constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, v. I, pp. 543/545. Por
isso, conclui este último autor que a sentença é “um ato de crença, de fé.
Se isso coincidir com a ‘verdade’, muito bem. Importa é considerar que a
verdade é contingencial e não fundante” (op. cit., p. 547).
1194 Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La mínima cit., pp. 51/56, afirma que a

finalidade da prova é influir no convencimento judicial, sendo que não se


pode confundir finalidade com resultado, uma vez que nem sempre as
provas são adequadas e eficazes o suficiente para formar o
convencimento do juiz de uma ou outra afirmação feita pelas partes. A
finalidade é certa e sempre ocorre: influir no convencimento. O resultado
é eventual: convencê-lo; levá-lo à certeza.
1195 Quanto aos limites do direito à prova como forma de garantia

constitucional de obediência ao devido processo legal, e todos os seus


corolários, v. Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Direito à prova no
processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, cap. IV, no qual
expõe as razões da exclusão de vários meios de prova por motivos
diversos de inconstitucionalidade.
Como ao Estado-jurisdição não é permitido não decidir as causas que a ele são
levadas, pronunciando o non liquet, surge a necessidade de se superar o impasse: como o
juiz decidirá em caso de dúvida.1196
No processo penal, a maneira pela qual se estabelece como o juiz deve decidir nesses
casos revela o perfil juspolítico do Estado e qual o nível de respeito que ele tem pelo
cidadão. Como já se demonstrou, a opção pelo “in dubio pro reo” não indica, por si só,
que o Estado seja democrático e de direito, respeite o cidadão em sua dignidade e em sua
liberdade e tenha tais direitos como fundamentos de sua Constituição.1197
Essa não necessária identificação entre o “in dubio pro reo” e um Estado
Democrático de Direito ocorre sempre que se entende que o “in dubio pro reo” é algo
diverso da presunção de inocência, ou que o “in dubio pro reo” é sinônimo de presunção
de inocência. Ambos esses modos de se compreender aqueles dois institutos estão
equivocados.
Pelo primeiro modo, como ocorreu no regime fascista do Código Rocco, pode-se
construir um sistema processual que em alguns instantes reconheça o “in dubio pro reo”,
mas que em momento algum confira ao cidadão um “estado de inocência”, ou seja, um
sistema que confessadamente rejeita a presunção de inocência. O segundo modo (“in
dubio pro reo” = presunção de inocência), por sua vez, não obstante melhor que o
anterior, uma vez que não rejeita a idéia de presunção de inocência, acaba por reduzi-la
unicamente à noção do “in dubio pro reo”, como se, no conteúdo essencial desse direito
fundamental, não houvesse outras formas de manifestação ou desdobramentos diferentes
daquela concepção de raízes histórico-romanas.1198

1196 Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 163, afirma que pela
natureza do processo cognitivo judicial não há sistema que seja imune à
dúvida, como estado mental do juiz, podendo haver apenas uma forma
de orientar a solução nesses casos.
1197 Quanto à existência de concepções assemelhadas ao “in dubio pro reo”

em várias fases do direito romano, sem que isso significasse um


reconhecimento da presunção de inocência ou de que Roma aceitasse
preceitos característicos do que hoje concebemos como Estado
Democrático de Direito, entre elas a presunção de inocência, v. itens
1.2.3.3 e seus subitens e 1.2.4 supra. Quanto às recomendações para se
julgar com mais mansuetude na fase da inquisição, sem que isso
representasse qualquer efeito prático ou um regime menos repressivo, v.
item 1.4.1.1.2 supra. Para a verificação da aceitação do “in dubio pro
reo” pela Escola Técnico-Jurídica fascista, não obstante ela rejeitasse
expressamente a presunção de inocência, v, item 2.4.6 supra. Todos
esses sistemas processuais penais são exemplos históricos de que o “in
dubio pro reo” não guarda necessária relação com a presunção de
inocência, entendida nos termos de um Estado Democrático de Direito.
1198 Necessário esclarecer que, na evolução dos sistemas processuais, o “in

dubio pro reo” sempre sofreu influxos e rejeições do sistema político


reinante. Dessa forma, e limitando-nos apenas às análises doutrinárias a
partir do século passado, sem esquecer a grande influência européia da
O “in dubio pro reo” não é diferente da presunção de inocência e tampouco igual a
ela; ele é uma parte da presunção de inocência, apenas “um” de seus desdobramentos e
aspectos.1199
A compreensão da presunção de inocência como um continente maior, no qual se
insere o “in dubio pro reo”, garante tanto a este, quanto àquela, uma maior eficácia. A
utilização do conceito de suporte fático amplo e, em decorrência disso, de um âmbito de
proteção amplo, traz benefícios para a presunção de inocência porque não a limita apenas
a um de seus desdobramentos, no caso o “in dubio pro reo”, e, outrossim, a este não
vincula os outros significados da presunção de inocência. Há desdobramentos e sentidos
da presunção de inocência que não dependem ou guardam relação com o “in dubio pro
reo”.

Escola Técnico-Jurídica, e de várias tentativas doutrinárias posteriores


para reinserir a presunção de inocência no processo penal, é necessário
destacar que a primeira corrente que tentou aproximar o “in dubio pro
reo” e a presunção de inocência colocou-os como expressões sinônimas.
Há, no direito português, forte corrente nesse sentido; v., por todos,
Alexandra VILELA, Considerações cit., p. 71, que após analisar vários
autores portugueses, conclui que “o que se nos afigura, enfim, em
Portugal quanto à presunção de inocência, é que esta é essencialmente
assumida enquanto regra probatória”. Nessa linha doutrinária ainda se
pode citar Jorge de Figueiredo DIAS, Direito processual penal, Coimbra:
Coimbra, 1974, v. I, pp. 213/215. Aquela autora (op. cit., p. 65) indica,
ainda, que o Tribunal de Cassação francês trata como equivalentes as
duas expressões. A doutrina espanhola, principalmente após o advento
da atual Constituição de 1978, diferenciou aqueles institutos em um
primeiro instante. Nesse sentido, Miguel Angel MONTAÑÉS PARDO, La
presunción cit., pp. 45/48, os aceita com âmbitos de aplicação e formas
de proteção jurisdicional distintas, sendo a presunção de inocência um
direito constitucional, enquanto o “in dubio pro reo” é apenas princípio
jurídico.
1199 Enrique BACIGALUPO, Presunción de inocencia, in dubio pro reo y

recurso de casación, Anuario de derecho penal y ciencias penales,


Madrid, v. 41, n. 2, mayo/ago., 1988, p. 365, afirma que pela teoria dos
direitos fundamentais e do direito processual moderno o “in dubio pro
reo” é um componente substancial da presunção de inocência. No
mesmo sentido, ressalvadas pequenas nuances, v.: Rui PATRÍCIO, O
princípio cit., pp. 30/32; Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo cit., p.
113; e Eduardo Maia COSTA, A presunção cit., pp. 70/71. Jaime VEGAS
TORRES, Presunción cit., pp. 212/213, após distinguir os dois preceitos,
sem demonstrar uma forma clara e segura de relacioná-los, afirma que o
melhor é que guardem uma relação entre si, sem com isso se
identificarem plenamente.
Há também benefícios ao “in dubio pro reo” na medida em que aquela norma lhe
estende uma proteção constitucional e o transforma de mera “recomendação” ou
“princípio interpretativo” a um preceito que deve ser obedecido de modo cogente pelo
julgador no instante de decidir em caso de dúvida fática.1200
A partir do último quarto do século passado, a doutrina processual penal vem
reconhecendo vários desdobramentos à presunção de inocência. Há certo consenso em se
entendê-la como “norma de tratamento”, como “norma probatória” e como “norma de
juízo”. Sem antecipar o que será melhor explicitado adiante,1201 é necessário fazer uma
breve referência a esses aspectos para indicar em que ponto o “in dubio pro reo” se insere
na presunção de inocência.

1200 A doutrina espanhola, fortemente influenciada por decisões de seu


Tribunal Constitucional e de seu Tribunal Supremo, estabelece profícuo
debate sobre qual a relação existente entre a presunção de inocência e o
“in dubio pro reo”. A razão de fundo para essa discussão reside no fato
de que reconhecer o “in dubio pro reo” como integrante da presunção de
inocência implica tê-lo como norma jurídica de natureza constitucional e,
portanto, ser possível recorrer àqueles Tribunais com base em sua
violação. Essa razão de ordem prática foi apontada com precisão por:
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., itens 1.1 a 1.3; Manuel
MIRANDA ESTRAMPES, La mínima cit., item III.2.2; Enrique
BACIGALUPO, Presunción cit., pp. 369/377; e Francisco CAAMAÑO, La
garantia constitucional de la inocencia, Valencia: Tirant lo Blanch, 2003,
cap. IV, item 3. Esses autores citados, e parte significativa da doutrina
espanhola mais recente, entendem que a melhor relação entre o “in
dubio pro reo” e a presunção de inocência é a que o integra como parte
do âmbito de proteção desta norma fundamental. Nesse sentido, v.:
Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La mínima cit., item III.2.3; Enrique
BACIGALUPO, Presunción cit., pp. 379/383; Mercedes FERNÁNDEZ
LÓPEZ, Prueba cit., item 1.3; Francisco tomas y valiente, “In dubio pro
reo”, libre apreciación de la prueba y presunción de inocencia, Revista
Española de Derecho Constitucional, Madrid, v. 7, n. 20, mayo/ago.,
1987, p. 25; e Francisco CAAMAÑO, La garantia cit., pp. 238/246. Sobre
a forte doutrina que entende que o “in dubio pro reo” é critério de decisão
sobre dúvida fática, não interferindo nas questões legais, v. nota 82
supra.
1201 Sobre o tema, v. item 5.4.2 e seus subitens infra.
A presunção de inocência como “norma de tratamento” garante, na maior medida
possível, que ao imputado não seja dado qualquer tratamento de culpado antes do
trânsito em julgado de eventual decisão condenatória. Como “norma probatória”, a
presunção de inocência impõe que, para se ter uma decisão condenatória legítima ou se
requerer qualquer tipo de restrição aos direitos do imputado no curso da persecução, é
necessário que o acusador apresente provas incriminadoras e lícitas. A presunção de
inocência, como “norma de juízo”, por sua vez, impõe que o juiz demonstre que aquele
material incriminador é suficiente para lhe dar a certeza fática para decidir em desfavor
do imputado. O “in dubio pro reo” ingressa na presunção de inocência apenas neste
último instante citado, isto é, em sua manifestação de norma de juízo, e o faz como
último momento do exame judicial, qual seja, determina ao juiz, por imposição
constitucional, que em caso de dúvida fática sempre decida da melhor maneira para o
imputado.1202

1202 Nesse sentido, Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp.


187/188, e Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 104/107. Enrique
BACIGALUPO, Presunción cit., pp. 378/379, após identificar os vários
sentidos que a doutrina empresta ao “in dubio pro reo”, demonstra que
se critica o fato de parte da doutrina relacioná-lo como “princípio de ônus
e valoração da prova”, uma vez que na opinião desse autor, assim como
na do presente trabalho, “o princípio não regula a prova como tal, dado
que não diz quais conclusões se devem extrair dos meios de prova,
apenas intervém precisamente quando a prova, apesar do esgotamento
dos meios probatórios, fracassou” – traduzimos.
Como se percebe, o “in dubio pro reo” não incide apenas na decisão de mérito da
causa, ou seja, quando se decida pela culpa ou pela inocência do imputado. Ele integra a
norma de juízo em cada e em todas as decisões judiciais penais que impliquem restrições
à esfera de direitos do cidadão decorrentes da persecução penal.1203 Assim, p.ex., o “in
dubio pro reo” deve ser aplicado no instante do juiz decidir sobre a decretação ou não de
prisão provisória ou de qualquer outra medida coativa, inclusive de cunho patrimonial,
ou, ainda, ao decidir pela continuidade da persecução penal em cada uma de suas fases
(da investigativa à revisional).1204 Em regra, em todos os instantes de dúvida fática
judicial o “in dubio pro reo” deverá ser obedecido como manifestação da presunção de
inocência.1205
Importa ressaltar, ainda, quanto ao tema do “in dubio pro reo”, que sua aplicação
não resultará apenas na absolvição ou na rejeição absoluta de alguma intervenção na
esfera de direitos do indivíduo requerida pelos órgãos de persecução. Ele também mostra
a sua oportunidade e, portanto, cumpre neste aspecto a norma constitucional, quando a
dúvida fática não é resolvida em favor da absolvição, mas de uma condenação menos
prejudicial ao imputado.1206 Isso se dá, p.ex., quando há uma dúvida fática não quanto ao
crime cometido, mas quanto à sua qualificadora. Nesse caso, existe uma certeza de culpa
do acusado; porém, pela incidência do “in dubio pro reo”, a dúvida fática referente à
qualificadora deve ser resolvida por sua rejeição, vindo ele a ser condenado pelo crime
em sua figura simples.

5.4.1.3.1. -Absolvição por insuficiência de prova para condenar: violação à


presunção de inocência

1203 Nesse sentido, v. Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 211/213.
1204 Como a estrutura normativa de princípio confere à presunção de
inocência a possibilidade de sofrer restrições (limitação proporcional e
constitucionalmente justificável), em seu sentido de “in dubio pro reo”
não é diferente. Este aspecto da presunção de inocência sofre restrição
aceitável em sua incidência quanto às sentenças de absolvição
sumárias, previstas nos atuais artigos 397 e 415 do Código de Processo
Penal. Nesse sentido, v. sobre essa restrição nos itens 5.4.1.3.2.1 e
5.4.1.3.2.2 infra.
1205 Girolamo BELLAVISTA, Il processo come dubbio, Rivista italiana di

diritto penal, Milano, v. 10, n. 3, giug./sep., 1967, p. 768, não limita a


necessidade de certeza apenas à decisão de mérito, mas
especificamente afirma que todas as medidas cautelares e que envolvem
prisão somente poderão ser decididas quando o órgão Judiciário tiver
certeza. Nesse sentido, v. também Marcelo A. SOLIMINE,
Independencia entre procesamiento y libertad procesal por duda,
Cuadernos de doctrina y jurisprudencia penal, Buenos Aires, v. 4, n. 8A,
oct., 1998, itens 3 e 4.
1206 Nesse sentido, v. Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade cit., pp.

69/70.
Em nosso sistema processual penal constam atualmente sete incisos no art. 386 para
que o julgador possa indicar, na parte dispositiva da decisão de mérito, o mais adequado
às razões que o levaram a decidir pela absolvição do acusado.1207 De início, isso não
causaria maiores críticas, uma vez que poderia parecer que a multiplicidade de situações
concretas exigiria um rol de possibilidades para melhor subsunção.
Contudo, a sétima hipótese do Código para declarar improcedente uma ação penal é
reconhecida por todos como uma “absolvição de segunda classe”1208 ou uma “decisão
dúbia”1209 porquanto todas as falhas ou erros dos órgãos persecutórios, não obstante não
tivessem a força para condenar, continuarão pesando sobre a honra do “absolvido”.
Tal constatação não é fruto de purismo técnico, mas decorrência da lógica em se
criar dois tipos de “absolvição”, uma baseada na certeza judicial (incisos I a VI do art.
386) e outra na dúvida (inciso VII), o que deixa clara a intenção, desde o regime
autoritário fascista e de o Estado Novo brasileiro, em marcar o indivíduo. São necessárias
algumas explicações para se compreender as razões –atualmente inconstitucionais – que
influíram na aceitação de dito dispositivo em nosso Código de Processo Penal.

1207 A redação do art. 386, desde 1941, data da entrada em vigor de nosso
atual código processual, era a seguinte: “Art. 386. O juiz absolverá o
réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: I -
estar provada a inexistência do fato; II - não haver prova da existência do
fato; III - não constituir o fato infração penal; IV - não existir prova de ter
o réu concorrido para a infração penal; V - existir circunstância que
exclua o crime ou isente o réu de pena (arts. 17, 18, 19, 22 e 24, § 1º, do
Código Penal); VI - não existir prova suficiente para a condenação” –
grifo nosso. Em 10.06.2009, pelo advento da Lei 11.690, referido artigo
ganhou nova redação, pois foi inserido novo inciso fundamentador da
absolvição (atual inciso IV, que preceitua: “estar provado que o réu não
concorreu para a infração penal”), foi reescrito o antigo inciso V para
atualizá-lo pela atual parte geral do Código Penal e, por fim, em
decorrência da renumeração procedida pelo legislador, o antigo inciso VI
passou a ser o atual inciso VII, sem qualquer alteração de redação.
Dessa forma, toda a doutrina pátria e a jurisprudência adiante citadas
referem-se ao inciso VI antigo, sendo necessária uma adaptação do
leitor. Como em essência o dispositivo não sofreu alteração, mantendo a
mesma gênese juspolítica fascista, as críticas a seu conteúdo podem ser
mantidas.
1208 Com base na doutrina alemã, v. Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio

cit., p. 128. No mesmo sentido, v. Gustavo Henrique Righi Ivahy


BADARÓ, Ônus cit., p. 379.
1209 Nesse sentido, v. Giovanna Maria ANCA, Insufficienza di prove, in

DIGESTO: discipline penalistiche, 4ª ed., Torino: UTET, 2001, v. 7, p.


148.
Conforme já destacado em passagens anteriores, a “absolvição por insuficiência de
prova para condenar” teve origem em sistemas jurídicos que rejeitavam a presunção de
inocência e partiam da presunção de culpa.1210 Logo, sua lógica é contrária a se aceitar
para o indivíduo um “estado de inocência” antes da persecução e até que se declare sua
culpa, de modo definitivo, por decisão judicial.1211
Como instituto jurídico incorporado por nossa legislação por influência direta do
Código Rocco de 1930,1212 necessário se compreender que nessa legislação fascista aquela
forma de “absolvição dúbia” tinha uma razão política que procurava “justificar-se”
tecnicamente. A “justificativa” de cunho técnico-processual baseava-se no fato daquele
sistema processual dividir-se em duas fases: como a primeira fase estava sob os auspícios
de um juiz de instrução, a segunda fase já começava com um material probatório de
incriminação selecionado por aquele juiz. Assim, não havendo confirmação por outras
provas incriminadoras, ou mesmo se surgissem nessa segunda fase provas da defesa em
sentido contrário, não se eliminava aquele material probatório que lhe dera início e,
portanto, permaneceria um quid probatório que, se não era suficiente para condenar, era
suficiente para impedir a declaração de uma absolvição “plena”.1213

1210 Sobre as origens daquela forma de “absolver” por insuficiência de prova


no modelo desenvolvido na Inquisição para aplicar penas mitigadas ou
declarar “absolvição de instância” em cuja ocorrência o processo sempre
poderia ser reaberto e o “absolvido” novamente acionado, v. itens
1.4.1.1.1 e 1.4.1.2 supra. Nesse sentido, v., também, Giovanna Maria
ANCA, Insufficienza cit., pp. 151/154. Sobre a relação entre essa forma
de absolvição e o ideário da Escola Positiva sobre a decisão “non
consta”, v. item 2.3.2, última parte, supra.
1211 Demonstrando a subversão do argumento empregado pela Escola

Técnico-Jurídica, ao procurar justificar a substituição da “presunção de


inocência” pela “presunção de não culpabilidade” com base na sua
afirmação de que poderia haver absolvição sem inocência (absolvição
por falta de prova), v. itens 2.4.3.1 e 2.4.7.2 supra.
1212 Sobre a inserção desta forma de absolvição no atual Código de

Processo Penal brasileiro por influência do Código Rocco de 1930, v.


item 2.5.2.4.
1213 Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio é empregado no direito brasileiro

quanto ao material incriminador apresentado pelo órgão da acusação no


instante da propositura da ação. Dá-se da seguinte forma: como houve
um material incriminador que legitimou o início de uma ação, se ele não
for confirmado por provas incriminadoras, e mesmo que desmentido por
provas defensivas, ainda persistirá como “indício de uma quase-
culpabilidade” e, portanto, é por essa razão que a maioria das decisões
absolutórias no Brasil têm como fundamento o inciso VII do art. 386 do
Código de Processo Penal. Indicando a prevalência desse tipo de
decisão sobre os demais incisos do mesmo artigo, v. Vicente GRECO
FILHO, Manual de processo penal, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, p.
337.
A razão política, e que era a única a explicar verdadeiramente tal escolha, visto que
há sistemas de juizado de instrução sem a referida “absolvição dúbia”, residia em marcar
de forma indelével o acusado que, se não era condenado, passava a ter uma redução em
sua honra porquanto sempre sobre ele pairaria a dúvida sobre sua culpa.1214
Como se vê, tanto a origem histórica quanto a razão política da inserção de tal
dispositivo em nosso ordenamento estão em contradição lógica e ideológica com a atual
imposição constitucional do “estado de inocência”.
Pela hierarquia normativa do dispositivo constitucional da presunção de inocência,
a resposta sobre a falta de justificação constitucional para o referido inciso VII do art. 386
da legislação processual penal infraconstitucional ressurte evidente: declarar absolvição
por insuficiência de prova é fundamento legal inconstitucional, pois o cidadão absolvido
é levado à condição de “não culpado”, não retornando à condição de inocente que
possuía antes da persecução penal.1215
Por este ponto se demonstra o benefício prático e jurídico da inserção do “in dubio
pro reo” no âmbito de proteção da presunção de inocência. Ao se distanciar o “in dubio
pro reo” da presunção de inocência, permitem-se decisões que o acatem (na dúvida
decidir em favor do réu), sem com isso se declarar o acusado inocente. Foi exatamente
essa a técnica utilizada pelos juristas do Código Rocco. Reconheciam o “in dubio pro reo”
e, com isso, na dúvida, absolviam o acusado, porém, como rejeitavam a presunção de
inocência, não o declaravam inocente, apenas reconheciam não haver prova suficiente
para condená-lo. Como não reconheciam aos cidadãos o “estado de inocência”, deixavam
o acusado na condição de “quase culpado”.

1214 Nesse sentido, sobre o dano moral ao “absolvido”, v. Giovanna Maria


ANCA, Insufficienza cit., p. 154. Sobre o duplo sistema italiano de não
proceder por insuficiência de prova tanto para enviar à fase de
julgamento, quanto para decidir o mérito da causa, v., op. cit., pp.
158/159. Sobre a impossibilidade de convivência entre a absolvição por
insuficiência de prova para condenar e o ingresso no ordenamento
italiano da presunção de inocência por força da Convenção Européia dos
Direitos do Homem, v. Ennio AMODIO, La tutela cit., p. 869.
1215 Pela supressão do dispositivo no direito italiano, notadamente após a

edição da Constituição Italiana de 1948 e a subscrição pela Itália da


Convenção Européia dos Direitos do Homem, v., por todos, Giulio
ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 127/130, com muitas referências
doutrinárias em nota 113. A favor da manutenção da absolvição
naqueles termos, v., por todos, Giovanni CONSO, Costituzione e
processo penale, Milano: Giuffrè, 1969, cap. IX, notadamente itens 7 e 8.
No direito espanhol José Luis VAZQUEZ SOTELO, “Presunción” cit., pp.
261/265, é claro em determinar que a sentença absolutória dubitativa
italiana não respeita o “estado de inocência” decorrente da previsão
constitucional da presunção de inocência. No mesmo sentido, v.:
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 181/186; Manuel
MIRANDA ESTRAMPES, La mínima cit., pp. 612/613 e 619/620; e Jaime
VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 208/210.
Na medida em que se compreende que o “in dubio pro reo” é uma das várias
manifestações da presunção de inocência e, portanto, está nela inserido, não se pode, de
nenhum modo (com ou sem dúvida), decidir-se pela inexistência de prova da culpa do
acusado sem que com isso não se garanta, ipso facto, a declaração judicial de sua
permanência no “estado de inocência” que já possuía antes do início da persecução penal.
Somente em um Estado que rejeita a presunção de inocência se pode compreender uma
“absolvição dúbia”. Logo, diante de nossa atual Constituição, a reforma do Código de
Processo Penal também deve atingir esse ponto.1216
A questão mais relevante sobre o tema é verificar quais as conseqüências que a
retirada desse dispositivo poderia acarretar em um novo sistema.
Ao que importa ao estudo da presunção de inocência, a análise deve se limitar à
indagação sobre se com tal supressão os julgadores estariam mais propensos a decidir, em
caso de dúvida, a favor ou em prejuízo do acusado. Nessa hipótese, teme-se que a retirada
não favoreceria a presunção de inocência, mas, em possível recuo judicial em decidir
conforme o “in dubio pro reo”, representado nesse ponto pelo citado inciso VII, faria
com que aquele direito fundamental restasse prejudicado ou de qualquer modo reduzido.
Não nos parece que o risco de haver uma tendência psicológica do juiz em
prejudicar o acusado, decidindo contra seus interesses em caso de dúvida, deva ser
argumento a favor da manutenção da “absolvição duvidosa”.1217 Isto porque não se pode
aceitar que existir ou não aquela forma de afirmar a absolvição na parte dispositiva mude
a parte da sentença que lhe é anterior, ou seja, a motivação.
A dúvida judicial é um estado psíquico, uma possibilidade que pode ocorrer em
qualquer julgamento, e não é a existência ou inexistência de uma forma híbrida de
“etiquetar” essa dúvida, apenas na parte dispositiva da decisão, que pode ou não evitá-
la.1218

1216 No direito brasileiro, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Presunção


cit., pp. 40/41, já apontava esta inconstitucionalidade desde os primeiros
instantes da vigência da atual Constituição. Nesse sentido, v. Aramis
NASSIF, Sentença penal: o desvendar de Themis, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. 14. Vicente GRECO FILHO, Manual cit., p. 337,
em sentido contrário, defende que o dispositivo precisa “de
aperfeiçoamento redacional”, não sendo, contudo, inconstitucional.
Ressalte-se que no Anteprojeto de Reforma do Código de Processo
Penal de 2009 é mantido o texto desse mesmo inciso VII, deslocando-o
apenas para o art. 410.
1217 Nesse sentido, v., Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit.,

pp. 380/381, com apoio em importante doutrina italiana.


1218 Nesse sentido, v. Alessandro MALINVERNI, Principi del processo

penale, Torino: Giappichelli, 1972, p. 484, e Santiago SENTÍS


MELENDO, In dubio cit., pp. 127/136.
A dúvida já foi enfrentada e deve ter sido exposta pelo julgador por toda a fase da
motivação. Concluir esse iter racional, que não chegou à certeza, é uma conseqüência
natural: a imputação não se mostrou indene de dúvidas. A conseqüência a partir desse
ponto, já exposto na motivação, está fixada na Constituição pela escolha juspolítica feita
em favor da presunção de inocência e, portanto, também pelo seu desdobramento do “in
dubio pro reo”: declarar a permanência do cidadão no “estado de inocência” que possui
antes do início da ação penal. A forma de classificar a absolvição em caso de dúvida é
uma imposição constitucional, não deve ser um fator para o julgador pender ou não para
a condenação de alguém.
O juiz que se vê mais incentivado a decidir “a favor” do acusado porque a sua
“absolvição” não será plena e, portanto, sabe que deixará no “absolvido” uma marca
moral e social, está violando conscientemente um preceito constitucional representado
pela presunção de inocência. E um julgador que tem esse critério a nortear sua análise
fático-jurídica do caso concreto não terá pruridos em se dizer mais convencido pela
pouca prova incriminadora do que por qualquer eventual prova favorável ao acusado,
por mais contundente que esta seja. O julgador que entende que o acusado deve ao
menos sair marcado com a cicatriz jurídico-social da “absolvição duvidosa” parte da
mesma base político-ideológica nazifascista e inquisitiva de que todo acusado tem um
quid de culpado, restando apenas descobri-lo.1219
Para esse tipo de juiz não há outra forma de se exercer a verificação do respeito à
presunção de inocência que não seja pelo exame de seus fundamentos de decidir expostos
na motivação. Exatamente por essas razões é permitido se recorrer de absolvição por
insuficiência de prova quando o “absolvido”, examinando os fundamentos judiciais,
perceber que por meio do recurso poderá ter sua situação jurídica melhorada.1220

1219 Santiago SENTÍS MELENDO, In dubio cit., p. 145, denominando juízes


com essa índole de “jueces negros” ou “jueces duros”, afirma que tais
magistrados ao assim agirem atuam em “verdadeira extrapolação”, em
“desafogo espiritual e, sobretudo, representa um desconhecimento do
direito. É dizer ao imputado: em justiça, não te pude condenar; mas vou
te importunar, molestar e prejudicar” – nossa tradução. Citando
Calamandrei, afirma que, para esse perfil de julgador, “a inocência é um
desaforo à magistratura” – em vernáculo.
1220 Já destacamos, em trabalho anterior, Interesse e legitimação para

recorrer no processo penal brasileiro, São Paulo: Revista dos Tribunais,


2000, pp. 362/363, que a despeito de a tendência jurisprudencial diminuir
no sentido de reconhecer sentença absolutória por insuficiência de prova
como maus antecedentes, não faltam exemplos, nesse sentido, ainda
atuais e posteriores à Constituição de 1988. Para ilustrar a afirmação
citamos julgados antes de 1988 (p.ex., RTJ 114/563 e JUTACrim 44/424)
e posteriores àquela Carta Política (TACRIM/SP - AP 204.033-3/9 4ª C. -
rel. Hélio de Freitas - j. 25.06.1996). Adauto SUANNES, Os fundamentos
cit., pp. 297/303, analisa vários julgados que usaram decisões
absolutórias por insuficiência de prova, e até mesmo registros de
Para se evitar que formas dubitativas de absolvição constem do dispositivo da
decisão, melhor se eliminar os diferentes incisos hoje existentes no Código de Processo
Penal, fazendo com que conste da parte dispositiva apenas o resultado final pela
“inocência” do imputado.1221 Fica para o instante da motivação toda a exposição sobre se
ela teria se dado pela certeza ou pela dúvida judicial.1222 Portanto, não acarretará
qualquer prejuízo prático ou jurídico para o ordenamento brasileiro o fato de tal
classificação das hipóteses de absolvição ser alterada.
Com isso, ao mesmo tempo em que não há qualquer influência para o campo não-
penal, no qual poderá se discutir, nas hipóteses legais, eventual direito indenizatório,
eliminar-se-á qualquer marca prejudicial à honra do indivíduo que, com aquela
declaração, continuará a gozar de seu status juspolítico de inocente.

5.4.1.3.2. “In dubio pro societate”: violação à presunção de inocência

inquéritos policiais arquivados, como maus antecedentes dos acusados,


impondo-lhes, com isso, agravamento na sua situação processual em
outra ação penal. Nesse mesmo sentido, v. Márcio Orlando BÁRTOLI,
Antecedentes criminais e presunção de inocência, Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, ano 4, n. 15, jul./set., 1996, pp. 390/392,
em comentário de decisão do Supremo Tribunal Federal, que reduziu a
pena aplicada porque a decisão reformada entendia que absolvições e
inquéritos arquivados configurariam maus antecedentes aptos a
aumentar a pena-base. No sentido de que a absolvição por insuficiência
de prova comporta recurso por mudança de fundamento, v.: Julio
Fabbrini MIRABETE, Processo penal, 14ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p.
460; Damásio E. de JESUS, Código de processo penal anotado, 21ª ed.,
São Paulo: Saraiva, 2004, p. 291; e Rogério Schietti Machado CRUZ,
Garantias processuais nos recursos criminais, São Paulo: Atlas, 2002,
pp. 53/55.
1221 Ressalve-se que a opção pelo termo “inocente” e não “absolvido”,

conforme já externado neste trabalho (v. item 2.4.7.2 supra), deve-se à


necessária eliminação da idéia subjacente de que todo acusado tem
“pecados” dos quais sempre decorrerá um juízo negativo: ou a sua
condenação, porque foram provados, ou a sua “absolvição”, porque o
juiz os expurgou. Necessário se iniciar um processo de “laicização” do
direito criminal brasileiro e, com isso, eliminar-se a mentalidade de que,
mesmo um inocente, deve ao menos ser “absolvido” (de seus “pecados”)
pelo julgador.
1222 No sentido de que qualquer dúvida sobre a inocência deve se limitar à

motivação, não projetando efeitos na parte dispositiva da decisão, v.:


Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 181/183 e 205;
Alessandro MALINVERNI, Principi cit., p. 484; e Manuel MIRANDA
ESTRAMPES, La mínima cit., pp. 619/620.
O “in dubio pro societate” não encontra qualquer previsão legal em nosso
ordenamento jurídico, seja em nossa atual Constituição, seja em nosso Código de
Processo Penal de 1940.1223 Não obstante a falta de qualquer base constitucional ou
infraconstitucional na área processual penal, é significativa a jurisprudência que aplica
tal método de decisão em alguns instantes processuais.
Assim ocorre no instante do recebimento da denúncia,1224 na decisão de
pronúncia1225 e, por fim, no julgamento da revisão criminal.1226 Como esta última
hipótese será tratada em momento posterior,1227 neste item apenas as duas hipóteses
inicialmente citadas serão examinadas.

1223 O Código de Processo Penal, não obstante vários dispositivos legais


reveladores de sua incorporação do “in dubio pro reo”, entre eles o já
citado art. 386, inciso VII, e o art. 615 (que determina a decisão mais
favorável ao réu em caso de empate na votação de julgamentos perante
os Tribunais), menciona-o expressamente apenas em sua Exposição de
Motivos (inciso II). Como já se viu, na mesma linha do Código Rocco de
1930, que aceitava o “in dubio pro reo” mas rejeitava a presunção de
inocência.
1224 “Habeas corpus. Ação penal. Recebimento. Justa causa. 1. Na fase do

recebimento da denúncia, o juiz deve aplicar o princípio ‘in dubio pro


societate’, verificando a procedência da acusação no curso da ação
penal. A rejeição da denúncia constitui-se numa antecipação do juízo de
mérito e cerceia o direito de acusação do Órgão Ministerial. Assim, não
há que se falar que o recebimento da denúncia teria inviabilizado o
direito de defesa do paciente em face da alegada inversão do ônus
probatório. (...) 5. Ordem de habeas corpus denegada” (TRF 3ª R. – 5ª T.
– HC 2008.03.00.002755-5 – j. 17.03.2008 – DJU 08.04.2008). Na
mesma linha: “(...) Quando a denúncia descreve conduta que, em tese,
constitui crime, incabível é a alegação de falta de justa causa, tanto mais
porque, nessa fase processual, prevalece o princípio do ‘in dubio pro
societate’, bastando, para o recebimento da denúncia, a mera
probabilidade de procedência da ação penal (...)” (STJ – 6ª T. – RHC
21170 – j. 04.09.2007 – DJU 08.10.2007).
1225 “(...) A sentença de pronúncia é decisão de mera admissibilidade,

bastando que haja o crime e os indícios da autoria. Mantença. Provas


neste sentido. Por outro lado, não é caso de desclassificação do delito
Questão diretamente ligada ao ‘meritum causae’. Inteira competência do
Tribunal do Júri (art. 5º, XXXVIII, CF), sendo certo que, na atual fase
processual, o princípio do ‘in dubio pro societate’ adquire supremacia em
relação ao não menos relevante princípio do ‘in dubio pro reo’.
Desclassificação do delito, portanto, inviável. Sentença mantida,
inclusive no pertinente à qualificadora, eis que somente aquela
manifestamente improcedente e em flagrante contrariedade com a prova
é que deve ser afastada, o que não ocorre no presente caso concreto.
Recurso em sentido estrito não provido” (TJSP – 8ª Câm. Crim. – RESE
1.004.577.3/4 – j. 25.03.2008 – pendente de publicação). No mesmo
A doutrina já demonstrou que o “in dubio pro societate” é um “absurdo lógico-
jurídico”1228 uma vez que o órgão acusador, que tem o ônus de provar sua tese jurídica,
será o beneficiado por não cumpri-lo de modo suficiente: quem deveria provar não

sentido, tem-se: “Tratando-se de crime doloso contra a vida, o


julgamento pelo Tribunal do Júri somente pode ser obstado se
manifestamente improcedente a acusação, cabendo a solução das
questões controvertidas ao órgão competente, devido à aplicação, na
fase do ‘judicium accusationis’, do princípio ‘in dubio pro societate’” (STJ
– 5ª T. – Ag. Rg. no Ag. 850.473 – j. 14.11.2007 – DJU 07.02.2008). Em
sentido contrário: “I. Habeas-corpus: cabimento: direito probatório. 1.
Não é questão de prova, mas de direito probatório – que comporta
deslinde em habeas-corpus –, a de saber se é admissível a pronúncia
fundada em dúvida declarada com relação à existência material do
crime. II. Pronúncia: inadmissibilidade: invocação descabida do ‘in dubio
pro societate’ na dúvida quanto à existência do crime. 2. O aforismo ‘in
dubio pro societate’ que – malgrado as críticas procedentes à sua
consistência lógica, tem sido reputada adequada a exprimir a
inexigibilidade de certeza da autoria do crime, para fundar a pronúncia –,
jamais vigorou no tocante à existência do próprio crime, em relação a
qual se reclama esteja o juiz convencido. 3. O convencimento do juiz,
exigido na lei, não é obviamente a convicção íntima do jurado, que os
princípios repeliriam, mas convencimento fundado na prova: donde, a
exigência – que aí cobre tanto a da existência do crime, quanto da
ocorrência de indícios de autoria, de que o juiz decline, na decisão, ‘os
motivos do seu convencimento’. 4. Caso em que, à frustração da prova
pericial – que concluiu pela impossibilidade de determinar a causa da
morte investigada –, somou-se a contradição invencível entre a versão
do acusado e a da irmã da vítima: conseqüente e confessada dúvida do
juiz acerca da existência de homicídio, que, não obstante, pronunciou o
réu sob o pálio da invocação do ‘in dubio pro societate’, descabido no
ponto. 5. Habeas-corpus deferido por falta de justa causa para a
pronúncia” (STF – 1ª T. – HC 81.646 – j. 04.06.2002 – DJU 09.08.2002).
1226 “Penal. Processual. Revisão criminal. Tráfico internacional de
entorpecentes. Trânsito em julgado da sentença: verdade cristalizada
segundo o apurado. Inversão do princípio da presunção de inocência:
dúvida ‘pro societate’ (...) I - Após o trânsito em julgado da condenação,
inverte-se o princípio de presunção de inocência do réu, passando a
dúvida a militar ‘pro societate’, ou seja, de que a coisa julgada cristalizou
a verdade segundo o que foi apurado (...)” (TRF 3ª R. - 1ª Seção - RC
95.03.06282-0 – j. 05.09.2001 – DJU 25.09.2001).
1227 Sobre na revisão criminal vigorar também o princípio do “in dubio pro

reo”, como decorrência da presunção de inocência como “norma de


juízo”, v. item 5.4.3.2.2 infra.
1228 Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO, Pronúncia cit., pp. 62/63.
provou ou não o fez de modo suficiente, porém, mesmo não provando sua tese de modo
pleno, sairá vencedor (?)1229

1229Por esse exato argumento, tratando especificamente da rejeição do “in


dubio pro societate” na decisão de pronúncia, v.: Guilherme de Souza
NUCCI, Código de processo penal comentado, 5ª ed., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006, pp. 710/711; idem, Júri: princípios
constitucionais, São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, pp. 94/95; Paulo
RANGEL, Direito processual penal, 10ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005, p. 533; e Márcio BÁRTOLI, O princípio “in dubio pro reo” na
pronúncia, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, número
especial de lançamento, dez., 1992, pp. 131/132. Sérgio Marcos de
Moraes PITOMBO, Pronúncia cit., pp. 64/65, já preceituava: “Se os
meios de prova, ao término da formação da culpa, despontam
conflitantes, a acusação mal suportou o ônus de demonstrar que: (a) o
fato concreto exibe-se ilícito e típico; (b) estão presentes, ao menos,
indícios veementes de autoria – indícios, pois, acrescidos no juízo de
acusação –; e (c) irrompe alguma prova – conforme a razão – da
culpabilidade do imputado. Ficou-se, portanto, no que, tão-só, bastava
para acusar, incoando o procedimento especial. Ora, a única solução
técnico-jurídica cabente acha-se na impronúnica, que abriga os casos de
não-convencimento, por motivo das provas obtidas ou produzidas (art.
409 do CPP). Vale renitir: aflorando provas em sentido contrário – uma
não desmentindo, ou infamando a outra, inobstante opostas -, tal
sucesso implica falta de prova, causando hipótese de impronúncia.
Jamais seria, pois, de pronunciar-se o acusado, em base do adágio ‘in
dubio pro societate’, mais fictício de que seu inverso, ou adverso, porque
fora de toda razão e proporção”. Em sentido contrário, v. Damásio E. de
JESUS, Código cit., p. 332. Aramis NASSIF, Sentença cit., pp. 124/125,
defendendo a revisão do “in dubio pro reo” para um “in dubio pro
inocentiae veritatis”, rejeita qualquer forma de decisão com base no “in
dubio pro societate”.
Seguindo a lógica constitucional, as coisas podem ser colocadas nestes termos: pelo
reconhecimento da presunção de inocência como direito fundamental, é conferido a
todos os cidadãos um estado juspolítico de inocência; para tirá-lo dessa condição jurídica,
afastando, portanto, a presunção de inocência, é preciso provar a sua culpa de modo
suficiente. Para tanto, é necessário que o órgão da acusação demonstre, de modo a
extirpar a dúvida, uma situação (culpa) que o ordenamento jurídico não pressupõe. Para
que se reconheça a situação jurídica de culpado contra aquele pressuposto juspolítico, é
necessário prová-lo e de modo suficiente, pois a dúvida sempre favorecerá o
imputado.1230 Em termos simples, é desta lógica que nasce, no processo penal, a convicção
doutrinária e jurisprudencial de que o ônus da prova cabe ao acusador.1231
A praxe jurisprudencial que afirma a existência do “in dubio pro societate” não nega
(nem poderia) a lógica constitucional antes expendida. Parte, porém, de outra base
racional, entendendo que, como impera a dúvida até que se chegue à decisão definitiva,
não se pode obstar a persecução penal até que esta chegue ao final.
Ocorre, porém, que, ao pensar desta forma, deixam-se de lado momentos
importantes do curso persecutório, quais sejam, aqueles momentos em que cabe ao juiz
decidir se a persecução, que até ali se desenvolveu, tem legitimidade para continuar. São
momentos em que a lei determina que se faça a verificação judicial da legitimidade
acusatória, uma vez que, como é cediço, a própria existência da persecução é um mal
(social, moral, jurídico, econômico, entre outros) que se impõe ao imputado e representa,
outrossim, um custo para o Estado.
Dessa forma, a cada fase, desde a investigação até a decisão final de mérito, a
persecução só poderá caminhar ao se mostrar legítima. Essa legitimidade, por sua vez,
depende da eficácia/adequação do material probatório incriminador apresentado pelo
órgão da acusação. Há, por exigência legal, uma progressão contínua desde o primeiro ato
de investigação até o último de julgamento do mérito. O imputado, de ordinário, começa
na condição de suspeito podendo passar a partir desse ponto para a condição de
indiciado, denunciado, acusado e, por fim, condenado. A progressão não é automática,
precisa que a carga incriminadora vá legitimando, passo a passo, as mudanças nessas
posições jurídicas. Para a suspeita bastam conjecturas, desconfianças, leves opiniões
subjetivas a respeito da materialidade e da autoria. Para se passar à condição de indiciado
é necessário um pouco mais, são necessários indícios que demonstrem a autoria provável
de um crime já tido como demonstrado. Sem esses indícios não há como se passar do
primeiro para o segundo estágio; a decisão (administrativa ou judicial) do indiciamento,
nesse sentido, é ilegal.1232

1230 Nesse sentido, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Significados cit.,


pp. 325/326, e Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 190/191.
1231 Sobre o tema do ônus de provar para a acusação como integrante da

presunção de inocência no seu aspecto de “norma probatória”, v. item


5.4.2.2 infra.
1232 Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO, Pronúncia cit., pp. 68/70, e idem,

Inquérito policial: novas tendências, Belém: Cejup, 1987, pp. 38/40, bem
Nem todo indiciado torna-se denunciado, pois o órgão acusador pode entender que
não há elementos que justifiquem uma denúncia, não obstante a convicção da autoridade
policial pelo indiciamento.1233

demonstra essa progressiva formação de juízos de convicção em


intensidades cada vez maiores. Nesse mesmo sentido, v. Francesco
CARNELUTTI, Observaciones sobre la imputación penal, in Francesco
CARNELUTTI, Cuestiones sobre el proceso penal, tradução de Santiago
Sentís Melendo, Buenos Aires: EJEA, 1961, pp. 138/139, e Aury LOPES
JÚNIOR, Introdução cit., pp. 202/204. Esta necessidade de aumento de
convicção com base em elementos incriminadores é reconhecida na
Portaria DGP-18/98, da Delegacia Geral de Polícia de São Paulo, cujo
artigo 1º define que a autoridade policial deve instaurar o inquérito
fundamentando “com a preliminar indicação de autoria ou da
momentânea possibilidade de apontá-la, e ainda a classificação
provisória do tipo penal alusivo aos fatos”. Já em seu artigo 5º, quando
trata do indiciamento do suspeito, os termos são outros e, também por
meio de decisão fundamentada, exige que a autoridade justifique o ato
“com base nos elementos probatórios objetivos e subjetivos coligidos na
investigação, os motivos de sua convicção quanto a autoria delitiva e a
classificação infracional atribuída ao fato”. Nesse sentido, tem-se os
seguintes julgados: “Indiciamento prematuro ante a necessidade de
indícios e outros meios de prova a embasar tal medida que,
reconhecidamente, afeta o status dignitatis da pessoa. Ordem concedida
em parte, apenas para obstar o indiciamento até eventual oferecimento
da denúncia, mantendo-se o curso das investigações policiais” (TJSP –
HC 1.117.567.3/8 – 6ª Câm. Crim. – j. 04.10.2007 – DJE 29.11.2007).
“Somente se justifica o indiciamento em inquérito policial, no caso de
estarem presentes elementos de convicção que atestem, de forma
objetiva, a prática do delito e a sua autoria. Em caso contrário, estará
caracterizado o constrangimento ilegal” (TACRIM/SP – 2ª C. – HC
443874/7 – j. 17.07.2003 – RT 817/471). “(...) Sob pena de constituir
violência contra o ‘status dignitatis’ do indivíduo, o indiciamento em
inquérito policial a lei unicamente permite em face da prova cabal da
existência do crime e de indícios veementes de sua autoria”
(TACRIM/SP – 15ª C. – RHC 136.176-1/8 – j. 10.04.2003).
1233 Eduardo Maia COSTA, A presunção cit., pp. 70/71, afirma que tanto o

Ministério Público ao denunciar quanto o juiz da instrução devem estar


atentos para que toda dúvida fática seja decidida “pro reo”, desde o início
da persecução, o que impede o suceder de fases procedimentais sem a
necessária legitimação.
Se o órgão acusador entender que possui prova da materialidade e indícios
suficientes de autoria deverá oferecer denúncia.1234 “Oferece” a denúncia para que o juiz
verifique a sua legitimidade, isto é, submete-a à apreciação judicial.1235 Não se trata de
decidir, neste instante, se há certeza quanto ao crime e sua autoria, mas há uma
imposição legal ao juiz que verifique a legitimidade da imputação formulada, verifique se
há “justa causa” para a ação penal.1236 Daí porque o legislador fixou no inciso III do atual
art. 395 do Código de Processo Penal, com a nova redação dada pela Lei 11.719/2008, que
ao analisar a denúncia o juiz deverá decidir de modo fundamentado o seu recebimento,
desde que haja justa causa para essa admissibilidade da imputação.
Dúvida quanto a essa justa causa é dúvida quanto à legitimidade da acusação ou, em
outras palavras, falta de legitimidade para se continuar com a persecução penal em fase
judicial. Para os dois outros incisos do mesmo art. 395, há uma maior dificuldade prática
de o juiz ficar em dúvida quanto a ser ou não a inicial inepta (inciso I) ou faltar condição
para o exercício válido do direito de ação penal ou pressuposto processual (inciso II). Por
se tratar de hipóteses objetivas (inciso II) ou ser facilmente constatável pela coerente e
completa narrativa acusatória (inciso I), a margem para “dúvida” será diminuta, quando
não inexistente. Porém, se houver, deverá provocar decisão de rejeição favorável ao
denunciado.

1234 Por força da lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais (Lei
9.099/95), caso o Ministério Público entenda que há elementos para
oferecer a denúncia de um crime de menor potencial ofensivo (art. 61),
observadas as hipóteses impeditivas previstas no § 2º de seu art. 76,
deverá propor transação penal. Deixa-se o oferecimento da denúncia
para situação de eventual recusa de transação penal por parte do autor
do fato.
1235 Sobre a necessidade de que o ato de recebimento de denúncia ou

queixa-crime passe a ser devidamente fundamentado, exatamente para


que esses aspectos de legitimidade sejam aferidos pelo juiz em
momento inicial e importante para evitar ações penais ilegítimas, v.
Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., pp. 208/210.
1236 Em estudo específico sobre o tema da justa causa, Maria Thereza

Rocha de Assis MOURA, Justa causa para a ação penal: doutrina e


jurisprudência, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, pp. 222/223,
assevera que “a análise da ‘justa causa’, vale dizer, da justa razão ou da
razão suficiente para a instauração da ação penal não se faz apenas de
maneira abstrata (vale dizer, em tese), mas também, e principalmente,
calcada na conjugação dos elementos acima mencionados (isto é, em
hipótese), que demonstrem a existência de fundamento de fato e de
Direito, a partir do caso concreto”.
Contudo, caso o juízo tenha certeza de que não há justa causa ou tenha dúvida
quanto a sua existência, não deverá autorizar o início da ação penal, rejeitando a peça
acusatória (denúncia ou queixa-crime). Isto porque estaria iniciando uma nova fase
persecutória, com todos os encargos que isto representa para o Estado e para o imputado,
sem a necessária demonstração de sua necessidade e legitimidade acusatória.1237

1237 Maria Thereza Rocha de Assis MOURA, Justa causa cit., p. 247, ao
aplicar aquele conceito de justa causa no instante do recebimento da
acusação, é categórica ao afirmar que: “a justa causa para o
recebimento da acusação não sobressai apenas em seus elementos
formais, mas, mormente, da sua fidelidade à prova que demonstre a
legitimidade da imputação. Segue-se que a necessidade de existência
de justa causa funciona como mecanismo para impedir, em hipótese, a
ocorrência de imputação infundada, temerária, leviana, caluniosa e
profundamente imoral”. No sentido de entender faltar justa causa pela
ilegitimidade da imputação sempre que não houver fidelidade entre os
elementos de convicção lastreadores da denúncia e a imputação ali
deduzida, v. Ada Pellegrini GRINOVER, As condições da ação penal,
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 15, n. 69,
nov./dez., 2007, p. 189. Nesse sentido, v., ainda, Sidney Rosa da SILVA,
Tribunal do Júri: Aplicabilidade do princípio da presunção de inocência
diante do princípio do “in dubio pro reo” e “in dubio pro societate”,
levando-se em conta o princípio da razoabilidade, Revista de direito do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n. 56,
jul./set., 2003, p. 401, e Eduardo M. JAUCHEN, Derechos cit., pp.
119/120. Há significativa corrente jurisprudencial nesse sentido; por
todos, v.: “Não basta, em realidade, à admissão da ação penal, como
outrora já se entendeu, a singela imputação de fato que, em tese,
constitua crime. Não basta, ao recebimento da denúncia, o atendimento
às formalidades do art. 41 do CPP, nem a descrição de comportamento
hábil, em tese, à identificação da figura típica. Reclama-se, mais do que
isso, para a validade da instauração do processo criminal, um princípio
de correspondência entre o fato imputado e o comportamento do agente
retratado no inquérito; exige-se, é curial, a fumaça do bom direito, que
justifique alguma possibilidade, ainda que remota, de prática, pelo
acusado, do fato descrito. Deve, em suma, a ‘opinio delicti’ calcar-se em
suspeita fundada e razoável, não presumida ou cerebrina, pelo que, se
ela não se faz presente com tais atributos, falta verdadeira condição da
ação a justificar a persecução, em sua fase processual, persecução que,
por suas características e efeitos, sempre atinge, sem dúvida, não só o
‘status libertatis’, como, ainda, o ‘status dignitatis’ do cidadão incriminado
pela denúncia” (TJSP – 5ª Câm. Crim. – HC 383.751-3/2 – j. 17.06.2002
– JTJ-LEX 257/434). “Em que pese o esforço do órgão do Ministério
Público de primeiro grau, deve ser ressaltado que só há legitimação para
agir no processo penal condenatório quando existir ‘fumus boni iuris’ que
ampare a acusação de forma explícita. Exige-se, portanto, que a
Como será desenvolvido nos próximos dois subitens, é necessário se terminar com a
indevida aplicação da parêmia inconstitucional do “in dubio pro societate” tanto na
análise da decisão de recebimento de denúncia ou queixa quanto na decisão de
pronúncia.
Na verdade, a doutrina tem apontado que a praxe judicial de se afirmar que, tanto
no instante do primeiro recebimento da denúncia (art. 395, CPP) quanto na decisão de
pronúncia (art. 413, CPP), vige o “in dubio pro societate”, está baseada em excesso de
trabalho e em certa comodidade de não se examinar de forma minudente cada uma
dessas decisões, deixando-as para um momento posterior, em um pretenso exame mais
amplo.1238
Porém, ao assim decidir, o julgador tolera e faz com que a falta de estrutura
judiciária, ante a enorme demanda de causas, seja motivo para descumprimento do
preceito constitucional e, pior, faz com que o cidadão suporte todas as conseqüências de
um sistema, cuja ineficiência não foi ele quem originou. Pior ainda é se constatar que, ao
tributar as falhas estruturais à esfera de direitos do cidadão, está-se a produzir dois males:
o primeiro é compensar as falhas estruturais com a redução dos direitos constitucionais, o
que implica, a médio prazo, a deslegitimação da própria Constituição que se jurou
cumprir; o segundo é que o Judiciário deixa de utilizar um forte argumento
constitucional para exigir dos demais poderes (Executivo e Legislativo) que cumpram seu
“dever estatal de proteção” e seu dever de provisão de “organização e procedimento”
estruturais para a implementação efetiva da Constituição.

5.4.1.3.2.1. -(cont.): “in dubio pro reo” no recebimento da denúncia (art.


395, CPP) e sua não incidência na absolvição sumária (art. 397, CPP)

denúncia venha acompanhada de um mínimo de prova sobre a


materialidade e autoria, para que se opere o recebimento da denúncia ou
da queixa, e mais, para que possa ao menos viabilizar a existência da
ação penal” (TJSP – 1ª Câm. Crim. – HC 422.770-3/1 – j. 04.06.2003 –
JTJ-LEX 271/566).
1238 Márcio Orlando BÁRTOLI, O princípio cit., p. 132, aponta que a

aplicação do “in dubio pro societate” pela praxe judicial funciona “até
como desculpa, pois é, inegavelmente, mais cômodo remeter a dúvida
ao Júri do que ter de resolvê-la, penetrando mais profundamente no
conjunto de provas existente no processo. (...) Num processo penal
democrático, onde vigora a idéia de uma igualdade de armas entre as
partes, não há julgamento ‘pro societate’”.
Não há que se falar em “in dubio pro societate” no momento do recebimento da
denúncia. Há duas dúvidas nesse instante decisório: uma aceitável e que não deve ser
resolvida; outra impeditiva da continuidade da persecução. A dúvida aceitável é aquela
quanto ao mérito da causa, ou seja, a que versa sobre a culpa pelo crime. Não é esta que o
juiz deverá enfrentar ou resolver no instante do recebimento da denúncia. Deverá
decidir, segundo a imposição constitucional do “in dubio pro reo”, uma outra dúvida, a
referente à legitimidade para a continuidade da persecução. Isto é, se tiver dúvida quanto
(i) à demonstração de existência de crime, (ii) à suficiência dos indícios de autoria, (iii) à
narrativa escorreita e apta para a compreensão da imputação com todos os seus
elementos e circunstâncias e, com isso, servir de base para o exercício da ampla defesa,
(iv) à existência de condições para o exercício da ação penal ou, ainda, (v) à existência de
pressupostos processuais, deverá decidir em favor do denunciado e, portanto, rejeitar a
denúncia, nos termos do atual art. 395 do Código de Processo Penal.1239
A reforma processual penal empreendida em 2008 trouxe um problema adicional à
doutrina quando estabeleceu um duplo recebimento da peça acusatória: o primeiro
recebimento, de que tratamos até o presente instante, definido no art. 395 e cuja
conseqüência jurídica será ou o prosseguimento da ação penal com a citação do imputado
ou a rejeição da denúncia ou queixa; e o segundo, instituído pelo art. 397 concertado com
o artigo 399,1240 do qual resultará ou a absolvição sumária do imputado ou a continuidade
do feito com designação de audiência una de instrução, debates e julgamento.

1239 No sentido de aplicar o “in dubio pro reo” como forma de decidir a
dúvida quanto à legitimidade da atuação criminal do Estado, fazendo
dele “um guardião do próprio Estado de Direito material e não somente
da liberdade individual de cada cidadão”, v. Cristina Líbano MONTEIRO,
Perigosidade cit., p. 64. Esta autora afirma que o “in dubio pro reo” deve
ser utilizado a cada momento de intervenção do ius puniendi na esfera
jurídica do cidadão, seja impedindo medidas restritivas de liberdade
como a prisão provisória, seja não recebendo acusações sem o mínimo
de “probabilidade” fática. Ela defende que para o início da ação judicial
penal é necessário mais do que possibilidade, é necessário
“probabilidade”, concluindo que não parece “necessário recorrer à idéia
de que prosseguir um processo penal de admissibilidade dúbia equivale
arriscar uma condenação ilegítima. Ainda que a sentença final desse
processo fosse absolutória, seria a própria sujeição do arguido aos
caminhos da justiça criminal do Estado que estaria ferida de
ilegitimidade” (op. cit., p. 74).
1240 Preceituam esses dispositivos após o advento da Lei 11.719/08: “Art.

397. Após o cumprimento do disposto no art. 396-A, e parágrafos, deste


Código, o juiz deverá absolver sumariamente o acusado quando
verificar: I – a existência manifesta de causa excludente da ilicitude do
fato; II – a existência manifesta de causa excludente da culpabilidade do
agente, salvo inimputabilidade; III – que o fato narrado evidentemente
não constitui crime; ou IV – extinta a punibilidade do agente” e “Art. 399
Tudo o que foi explicitado anteriormente sobre a aplicação do “in dubio pro reo”
para o indicado primeiro recebimento (art. 395, CPP) não se aplica ao dito segundo
recebimento (art. 397, CPP). Isto porque, o legislador foi claro na redação dos três
primeiros incisos deste último artigo citado, exigindo que a demonstração das
excludentes fosse “manifesta” e fosse “evidente” a atipicidade da conduta. Não usou
termo congênere quanto a eventual ocorrência de extinção de punibilidade (inciso IV, do
art. 397), pois ela só ocorre com a comprovação direta nos autos das hipóteses objetivas
previstas em lei (p.ex., art. 107, CP), logo, inocorrente espaço para dúvida fática do
julgador.
A opção legislativa pela redação do art. 397 justifica-se na medida em que se está em
instante inicial da ação penal, no qual não houve início de instrução processual e, parar o
fluxo da causa penal nesse ponto com uma decisão de mérito (absolvição sumária), gera a
impossibilidade de repropositura de nova ação penal idêntica por ocorrência da coisa
julgada penal.
São os conteúdos diversos de cada decisão negativa de continuidade da ação penal
(no primeiro caso, a decisão de rejeição prevista no art. 395, CPP, e, no segundo caso, a
decisão de absolvição sumária, prevista no art. 397, CPP), com seus respectivos efeitos
também diversos (no primeiro caso, a ação penal, suprida a ausência ou corrigida a falha,
poderá ser reproposta; já no segundo caso, por influxo da coisa julgada penal, não poderá
haver repetição da ação penal) que justificam porque ao art. 395 aplica-se o “in dubio pro
reo” e, em sentido diverso, para o exame das hipóteses inseridas no art. 397, impôs-se a
certeza para que o julgador absolvesse de modo sumário.
Tem-se, portanto, duas situações no instante de receber ou rejeitar a denúncia: a) a
primeira, havendo dúvida do julgador quanto à demonstração de materialidade e de
autoria no oferecimento da denúncia, mesmo que ele perceba essa insuficiência
probatória após a apresentação da resposta defensiva (art. 396, Código de Processo
Penal), levará à incidência do “in dubio pro reo” e, em conseqüência, à rejeição da
denúncia por falta de justa causa (art. 395, inciso III, Código de Processo Penal); b) a
denúncia somente poderá ser aceita se houver certeza do julgador quanto à suficiência
probatória quanto à materialidade e autoria, suficiência essa que atenda à legitimidade
que toda imputação formal deve ter para iniciar uma persecução penal em fase judicial.
Já para a análise da absolvição sumária (art. 397, CPP) o juiz sempre deverá se
pautar pela certeza para decretá-la. Ele deverá ter certeza da “existência manifesta” de
uma causa excludente de ilicitude (inciso I), ou de uma causa excludente de
culpabilidade, salvo a imputabilidade (inciso II), ou, ainda, a certeza da presença de uma
causa extintiva de punibilidade (inciso IV) ou, por fim, de que o fato narrado
“evidentemente” não constitui crime (inciso III). Qualquer dúvida quanto a essas quatro
hipóteses de absolvição sumária não autoriza o julgador a encerrar o feito com
julgamento de mérito. A causa penal deverá seguir seu curso, em fase instrutória.

recebida a denúncia ou a queixa, o juiz designará dia e hora para a


audiência, (...)”.
O material sob exame judicial quando se analisa se haverá rejeição ou absolvição
sumária é diferente. Logicamente, o julgador primeiro verifica se a imputação tem
plausibilidade (narrativa coerente), validade (atende às condições da ação penal e aos
pressupostos processuais exigidos em lei) e legitimidade (suficiência de demonstração da
materialidade e autoria) para iniciar uma nova fase persecutória, a fase judicial. Se tiver
certeza de que lhe falta algum desses atributos ou se tiver dúvida se estão presentes, não
há como a persecução caminhar em fase judicial, por isso, em caso de dúvida sobre esses
pontos, deve aplicar o “in dubio pro reo” e rejeitar a imputação (denúncia ou queixa).
Mesmo que perceba essa insuficiência após a resposta preliminar da defesa (art. 396,
CPP), deverá rejeitar a denúncia em caso de dúvida. Em um segundo instante lógico
jurídico, porquanto somente há de se falar em absolvição (sumária) após verificada a
idoneidade (plausibilidade, validade e legitimidade) da imputação, o julgador não
examina se a imputação deve ou não prosseguir – isso já foi decidido quando ele a
recebeu ou a rejeitou –, mas examinará se aquela idônea imputação deve ser julgada de
modo definitivo e, com isso, por fim à persecução penal de modo peremptório, pela
formação da coisa julgada material. Verificada a idoneidade da imputação, o feito
somente poderá ser encerrado definitivamente nessa fase inicial se o julgador tiver a
certeza de que há causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade (excluída a de
inimputabilidade), se houver causa extintiva de punibilidade ou, ainda, se for evidente
que o fato não constitui crime (atipicidade).
Em caso de dúvida, na análise desse segundo instante (absolvição sumária), deverá
prevalecer a imputação deduzida e que examinada se mostrou idônea, ao menos no
instante inicial de seu recebimento. Portanto, a dúvida não leva á absolvição sumária
porque se aplique o “in dubio pro societate”. Tal parêmia é inconstitucional e não
encontra qualquer previsão legal em nosso sistema, como já se demonstrou no item
anterior. A dúvida não autoriza a absolvição sumária por incidência do “in dubio pro
reo” porquanto em contraposição a ela (dúvida) há uma certeza da idoneidade da
imputação, ao menos nessa cognição preliminar em fase de recebimento da denúncia.
Nesse instante decisório inicial o julgador não está apenas com a dúvida para
decidir. Ele tem, em uma das mãos, a certeza de que a imputação deduzida é idônea (não
é inepta, preenche as condições da ação penal e os pressupostos processuais e tem
legitimidade probatória quanto à materialidade e autoria) e, na outra mão, a dúvida sobre
a existência de causas excludentes, de extinção de punibilidade ou a evidência de que o
fato narrado não seja crime. Como esse instante ainda não é o momento final dessa fase
persecutória processual, aquele em que o julgador terá que escolher pela absolvição ou
pela condenação do acusado, a certeza da idoneidade da imputação deverá prevalecer
sobre a dúvida das causas de absolvição sumária e, com isso, deverá ser iniciada a fase de
instrução processual.

5.4.1.3.2.2. -(cont.): “in dubio pro reo” na decisão de pronúncia (art. 413,
CPP) e sua não incidência na absolvição sumária (art. 415, CPP)
No instante de o julgador decidir ou não pela pronúncia do acusado, como se está
diante de um novo momento de exame da legitimidade da imputação para que a
persecução penal alcance outra fase processual (o julgamento perante o Tribunal do Júri),
o raciocínio se daria da mesma forma como antes observado para a denúncia. A decisão
de pronúncia só poderá existir se o juiz estiver “convencido da materialidade do fato e da
existência de indícios suficientes de autoria ou de participação”.1241 O termo “se
convencido”, escolhido pelo legislador de 2008, não deixa margem para interpretações de
que o juiz não poderá pronunciar em caso de “dúvida” fática sobre a demonstração de
materialidade e de autoria.1242 Dúvida não é convencimento. Convencimento é certeza,
quanto à materialidade e à autoria ou participação, para legitimar o envio do caso ao juiz
natural do Tribunal do Júri, superando-se, assim, mais um degrau cognitivo e anterior ao
mérito.1243

1241 Assim preceitua o atual art. 413, caput, do Código de Processo Penal,
que trata da decisão de pronúncia, após a alteração empreendida pela
Lei 11.689/2008.
1242 Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., p. 232, assim

preceitua sobre a garantia da inocência nesse instante processual,


comentando o antigo art. 408, que previa em que termos estava o
julgador autorizado a pronunciar alguém: “Essa avaliação antecipada,
superficial e provisória sobre os fundamentos do pedido condenatório
constitui, de um lado, uma verdadeira ‘garantia da inocência’ do cidadão
contra acusações infundadas ou temerárias; sob outro aspecto, também
garante o próprio Judiciário contra o custo e a inutilidade em que
redundariam, inserindo-se, portanto, naquele conjunto de garantias
processuais inicialmente referidas, que visam à proteção do indivíduo e
da própria jurisdição”. Concluindo, após citar o texto do caput do artigo
408: “Dessa previsão fica claro, em primeiro lugar, que a ‘prova’ sobre a
existência material do próprio fato criminoso deve conduzir a um juízo de
‘certeza’ ou, como ressalta Frederico Marques, não é diversa da prova
que se exige para a condenação; quanto à autoria, ao contrário, ao
referir-se a ‘indícios’, o legislador admite serem suficientes elementos
probatórios de menor eficácia persuasiva, capazes de levar a um simples
juízo de probabilidade, ou, segundo o ensinamento de Moura Bittencourt,
à mera ‘opinião’ (mais do que a ‘dúvida’ ou a ‘suspeita’, menos,
entretanto, do que a ‘certeza’) de quem seja o autor do crime” (op. cit.,
pp. 232/233).
1243 Para a não aceitação do “in dubio pro societate” no instante da decisão

de pronúncia, já pela nova redação do art. 413, estabelecida pela Lei


11.689/2008, v. Guilherme de Souza NUCCI, Tribunal do Júri, São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 60/62 e Fauzi Hassan CHOUKR,
Júri: reformas, continuísmos e perspectivas práticas, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009, item 2.1.5.
Em caso de dúvida quanto à materialidade ou à suficiência dos indícios de autoria
deverá o juiz decidir favoravelmente ao acusado, ou seja, aplicando “in dubio pro reo”,
deverá impronunciá-lo.1244 Não há que se falar em “in dubio pro societate”, porquanto
impróprio, inconstitucional e imprevisto em nossa legislação.
A dúvida do julgador não permite que ele pronuncie o acusado alegando que a
denúncia antes recebida era idônea e, portanto, deverá prevalecer sobre aquela dúvida e,
portanto, autorizar a continuidade da persecução diante do plenário do Júri. Isto porque,
entre o recebimento da denúncia e o momento de se decidir ou não pela pronúncia, há
toda uma fase de instrução processual preliminar durante a qual a acusação tem o ônus
de incrementar e robustecer o material probatório constante da denúncia a fim de que a
legitimidade da imputação possa passar por mais esse filtro cognitivo (final da fase de
instrução sumária no procedimento do Júri). O julgador, portanto, ou tem a certeza (“está
convencido”) da materialidade e indícios suficientes da autoria, ou deverá aplicar o “in
dubio pro reo” e, pelo nosso sistema processual, impronunciar o acusado.

1244 Nesse sentido, comentando ainda o antigo art. 408 que tratava da
pronúncia, v.: Guilherme de Souza NUCCI, Código cit., pp. 710/711;
idem, Júri cit., pp. 94/95; Paulo RANGEL, Direito cit., p. 533; Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., pp. 390/391; Márcio BÁRTOLI,
O princípio cit., pp. 130/131; Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO,
Pronúncia cit., itens 7 a 9; Rui STOCO, Dos processos dos crimes da
competência do Tribunal do Júri, in Alberto Silva FRANCO e Rui STOCO
(coord.), Código de processo penal e sua interpretação jurisprudencial,
2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, v. 4, p. 856; Aury LOPES
JÚNIOR, Introdução cit., pp. 153/155 e 191; idem, Direito cit., vol. II, pp.
261/262; Sidney Rosa da SILVA, Tribunal cit., p. 401; José Frederico
MARQUES, Elementos de direito processual penal, Rio de Janeiro:
Forense, 1962, v. III, p. 1999; Álvaro Antônio Sagulo Borges de AQUINO,
A função garantidora da pronúncia, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p.
47; Eduardo ESPÍNOLA FILHO, Código de processo penal brasileiro
anotado, 6ªed., Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, v. IV, item 800; e Luís
Fernando Camargo de Barros VIDAL, Homicídio qualificado e
procedimento do júri, Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 8, nº
32, out./dez., 2000, p. 106. Nesse sentido, já comentando o atual artigo
415, v. Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Tribunal do Júri – Lei
11.689, de 09.06.2008, in Maria Thereza Rocha de Assis MOURA
(coord.), As reformas no processo penal: as novas Leis de 2008 e os
Projetos de Reforma, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 88;
Guilherme de Souza NUCCI, Tribunal cit., pp. 61/62.
Se a certeza quanto à demonstração da materialidade e de indícios suficientes de
autoria leva à pronúncia e a dúvida quanto a existência desses dois pontos leva à
impronúncia, a reforma processual penal de 20081245 definiu que a certeza da
“inexistência do fato” (certeza de inexistência de materialidade) e a prova de que o
acusado não é o “autor ou partícipe do fato” (certeza de que o imputado não é agente da
infração penal) levam à absolvição sumária prevista no atual art. 415, do Código de
Processo Penal.1246
Quanto à materialidade e autoria não há hipótese lógico-racional de convencimento
judicial que não esteja prevista em lei. Se tiver certeza de que ambos estão demonstrados
deve pronunciar, se tem dúvida sobre qualquer dos pontos deverá impronunciar e, por
fim, se tem uma certeza em sentido contrário à imputação, ou seja, tem certeza de que
está provada a inexistência da materialidade ou da autoria (ou da participação) deverá
absolver sumariamente.
A absolvição sumária ainda traz outros dois incisos para seu reconhecimento. O
inciso III, do art. 415, preceitua que deverá haver absolvição, já nesta fase, se o fato, a
despeito de provado (materialidade), for atípico (“não constituir infração penal), p.ex.,
verifica-se o crime impossível (art. 17, CP); e o inciso IV determina que haverá
absolvição se “demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime”.
Se o julgador tiver certeza quanto à ocorrência das situações previstas nos
dispositivos citados, deverá, conforme determina o texto legal, absolver sumariamente o
acusado, pondo fim ao processo. Porém, caso haja dúvida do julgador quanto à existência
de causa que exclua o crime ou isente o réu de pena ou, ainda, não tenha certeza quanto
a ser ou não o fato atípico, deverá seguir para a próxima fase processual diante do
Tribunal do Júri. Nessas hipóteses, a dúvida não cria a incidência do “in dubio pro reo”,
uma vez que remanesce a certeza judicial quanto à materialidade e a autoria e, portanto,
a imputação se mostra legítima para ultrapassar mais esse juízo de sua admissibilidade.

5.4.2. -Presunção de inocência: “norma de tratamento”, “norma probatória” e


“norma de juízo”

1245 A Lei 11.689/2008, que remodelou todo o procedimento do Júri, assim


define a absolvição sumária ao final da fase do iudicium accusationis:
“art. 415. O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado,
quando: I – provada a inexistência do fato; II – provado não ser ele autor
ou participe do fato; III – o fato não constituir infração penal; IV –
demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. (...)”.
1246 Nesse sentido, já comentando o novo dispositivo do art. 415, v.: Antônio

Alberto MACHADO, Curso cit., p. 192 e Guilherme de Souza NUCCI,


Tribunal cit., p. 94. Em sentido contrario, entendendo aplicar-se também
para a absolvição sumária o “in dubio pro reo”, v. Aury LOPES JÚNIOR,
Direito cit., vol. II, pp. 261/262 e 271.
Para responder de forma completa a segunda pergunta acima formulada (quais os
bens da vida protegidos pela presunção de inocência?)1247 deve-se compreender que a
presunção de inocência tutela bens da vida de forma direta e indireta, assim como fazem
os demais direitos fundamentais. Como já foi exposto, há bens da vida diretamente
relacionados com um direito fundamental, porém, por ele também se garante (parcial ou
totalmente), de forma indireta, outros direitos fundamentais. Com a presunção de
inocência não é diferente.1248
Também como já foi objeto de considerações, atualmente, mercê de um esforço
doutrinário e juspolítico de décadas, a concepção de presunção de inocência, sob a
perspectiva constitucional de um âmbito de proteção amplo, compreende um significado
de “norma de tratamento”, relacionado mais diretamente com a figura do imputado, e
outros dois significados (“norma de juízo” e “norma probatória”) mais ligados à matéria
probatória.1249
Sob a perspectiva ora implementada, no âmbito de proteção da norma fundamental
da presunção de inocência articulam-se esses três significados, que ela orienta e inspira
como norma constitucional maior. São formas de manifestações autônomas que
interagem e não esgotam a presunção de inocência.1250
Não se deve considerar esses três significados como algo destacado do já referido
sobre “favor rei” e sobre “in dubio pro reo”. Muito ao contrário, deve-se pressupor estas
duas formas de manifestação, pois, como se viu quando delas se tratou de modo
específico, será na presunção de inocência, como “norma de juízo”, que serão aplicadas
no nível judicial de efetivação das normas ao caso concreto.

1247 V. item 5.4 supra.


1248 Sobre a complementaridade e interdependência da presunção de
inocência, v. item 5.3.2 supra. Para essas características nos direitos
fundamentais em geral, v. item 3.6.4 supra.
1249 Sobre a formação da concepção de presunção de inocência em sentido

amplo, v. item 3.8.2.1 supra.


1250 Por isso a necessidade de se empreender um estudo tão abrangente do

âmbito de proteção da presunção de inocência por todo este item 5.4.


Esse direito fundamental tem vários aspectos e desdobramentos, cuja
real extensão somente um estudo orientado pela sua estrutura normativa
poderia propiciar.
A sistematização empreendida no presente trabalho visa apenas revelar, de modo
mais individualizado, cada aspecto e desdobramento daquele princípio constitucional.
Não se está a afirmar que cada um de seus desdobramentos seja algo totalmente apartado
e sem relação com os demais aspectos. Até mesmo porque todos estão sob uma mesma
norma jusfundamental e, portanto, devem se articular a fim de atingir, da forma mais
interativa possível, a finalidade e a função para as quais essa norma foi instituída.1251 São,
portanto, áreas autônomas e que se inter-relacionam a fim de garantirem uma melhor
efetividade à presunção de inocência. Seu estudo, portanto, visa apenas revelar, com mais
nitidez, como e quais efeitos cada aspecto da presunção de inocência projeta no âmbito
processual penal.
Apenas para exemplificar a referida autonomia entre esses três modos de a
presunção de inocência se manifestar no processo penal, pode-se observar que como
“norma de tratamento” aquele direito pode ser reduzido de forma significativa no curso
da persecução, sem que isso implique supressão ou redução, na mesma proporção ou
intensidade, da presunção de inocência como “norma de juízo” ou “norma probatória”.
Isso ocorre no curso da persecução, por exemplo, quando há decretação de prisão
provisória. Nesse caso, a porção representada pela “norma de tratamento” é reduzida de
maneira muito significativa, chegando até mesmo à sua supressão em alguns pontos.
Todavia, essa imposição de tratamento bem restritivo não elimina a necessidade do órgão
da acusação demonstrar, por meio de provas lícitas e incriminadoras, a necessidade da
medida restritiva. Da mesma sorte, aquela restrição na forma de tratamento não provoca
redução semelhante ou correspondente na porção da presunção de inocência entendida
como “norma de juízo”, tanto que não é incomum que uma pessoa presa no curso da
persecução seja posteriormente liberada e, também, possa ser ao final absolvida pelo
mesmo juízo que determinou sua prisão.1252
Exposta a autonomia, deve-se explicar como esses aspectos interagem.

1251 Sobre a finalidade e a função da presunção de inocência influenciarem


tanto o exame do âmbito de proteção quanto a análise das intervenções
estatais (legítimas ou ilegítimas), v. item 5.3.3 e seus subitens supra.
1252 Outro exemplo dessa autonomia de significados ocorre, como se vê

mais adiante (item 5.4.3.2.2 infra), com a revisão criminal. Para uma
restrição da presunção de inocência como “norma de juízo” sem a
correspondente e necessária redução como “norma de tratamento”, v.,
p.ex., o item 5.5.3.1 infra, ao se tratar da confissão.
A presunção de inocência, como “norma de tratamento”, tem relevância pois por ela
se garante que, até o término do devido processo penal, a esfera de direitos dos
indivíduos não sofrerá com eventuais atos estatais violadores. Porém, isso será tanto mais
efetivo e garantido se o julgador, a cada instante que seja chamado a decidir (p.ex.,
admissibilidade da acusação, determinação de medida coativa de qualquer espécie,
julgamento de mérito) demonstre em sua motivação que, baseado em um mínimo
probatório lícito e necessário ao nível cognitivo daquela decisão, não teve dúvida ao
proferi-la. Nesse contexto, há uma profícua e inevitável interação entre os aspectos
citados.1253
Tanto o primeiro significado da presunção de inocência (“norma de tratamento”)
quanto os demais (“norma de juízo” e “norma probatória”) são bens da vida diretamente
protegidos por ela.1254 Integram o “âmbito de proteção” dessa norma fundamental.
Quando se observa a presunção de inocência como “norma de tratamento”,
evidenciam-se com mais nitidez outros direitos fundamentais também garantidos por ela,
mas agora de modo indireto. Esses direitos são aqueles que sofrem constrições (totais ou
parciais) quando sobre a presunção de inocência se aplica uma intervenção estatal e, com
isso, antecipa-se um ou mais efeitos de eventual e futura condenação. Todas as espécies
de sanções penais previstas para as mais diversas infrações implicam lesão total ou parcial
a um feixe de direitos fundamentais; portanto, todas as vezes em que uma dessas sanções
é antecipada afasta-se (total ou parcialmente) a presunção de inocência e, com isso,
atingem-se indiretamente também outros direitos.

1253 Citam esses três aspectos, sem, contudo, colocarem a inter-relação nos
termos do texto: Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., p. 39;
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 118; Perfecto ANDRÉS
IBÁNEZ, Presunción cit., p. 7; e Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit.,
p. 165.
1254 Entendem que a presunção de inocência comporta as manifestações

como “norma de tratamento” e “norma de juízo”: Antonio MAGALHÃES


GOMES FILHO, Presunção cit., p. 37; Gustavo Henrique Righi Ivahy
BADARÓ, Ônus cit., pp. 284/286; Helena Magalhães BOLINA, Razão
cit., item 3.2.3; Luiz Flávio GOMES, Sobre o conteúdo cit., itens 3.5 e
3.6e Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., notadamente cap. 2 e 4.
Destaque-se, ainda, que no sistema processual penal brasileiro, há intervenções
estatais que podem ser consideradas “violações” já no plano abstrato da elaboração
legislativa.1255 Isso ocorre quando faltam justificativa constitucional e proporcionalidade à
norma processual penal já no plano abstrato. São, portanto, inconstitucionalidades
inseridas na norma quando de sua elaboração, independente de eventual excesso ou
abuso em sua aplicação.1256 Disposições normativas que, por violarem (já no plano
abstrato, repita-se) aquela norma fundamental, devem sofrer a conseqüência jurídica de
serem declaradas inconstitucionais e expungidas do ordenamento legal. Assim, sempre
que necessário, os três significados ora analisados da presunção de inocência terão seus
estudos feitos em paralelo com as violações já constantes do sistema processual penal
atual.

5.4.2.1. Presunção de inocência como “norma de tratamento”

Na cultura da Civil Law, a forma mais tradicional de se compreender a presunção de


inocência é considerá-la como uma garantia de que o cidadão será tratado na persecução
penal como inocente. Isto é, garante-se que os efeitos de uma eventual decisão
condenatória somente sejam aplicados após o seu trânsito em julgado.1257
Nessa linha, violam a presunção de inocência como “norma de tratamento” todos os
dispositivos legais que, de forma absoluta e apriorística, imponham antecipação de
qualquer espécie de sanção que, prima facie, somente adviria por força de decisão
condenatória definitiva.

1255 Quando tratamos da presunção de inocência como “favor rei” (item


5.4.1.2 e subitens supra) e como “in dubio pro reo” (item 4.1.3 e subitens
supra) já tivemos oportunidade de destacar e analisar as razões de
algumas violações legais e jurisprudenciais àquele princípio.
1256 Quando a norma é constitucional no plano abstrato, mas sua aplicação

é desproporcional ou de modo a violar a justificação constitucional para a


qual ela foi elaborada, estamos diante de uma norma restritiva que foi
aplicada de modo abusivo no plano concreto e, portanto, torna-se
inconstitucional no nível de sua aplicação judicial. Essas hipóteses de
violação por abuso em sua aplicação judicial são tratadas nos subitens
do item 5.5 infra, quando se cuida das restrições à presunção de
inocência.
1257 A despeito de não ser o único significado extraível da presunção de

inocência, este é diretamente perceptível do texto literal de nossa


Constituição: “LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em
julgado de sentença penal condenatória”.
Um exemplo dessa espécie de violação existiu até 1967, quando, por força da Lei
5.349, revogou-se a prisão preventiva obrigatória e automática para todos os imputados
por crime com pena prevista “de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez
anos”.1258 Outro exemplo histórico e muito ilustrativo da falta de constitucionalidade por
violação da presunção de inocência decorrente de descumprimento da proporcionalidade
e da inexistência de fundamentação jusfundamental era o art. 48 do Decreto-Lei nº
314/1967 (Lei de Segurança Nacional). Este dispositivo previa, de forma absoluta, uma
aplicação automática e antecipada de efeitos condenatórios ao estabelecer que ao preso
em flagrante, ou ao denunciado por crime contra a segurança nacional, decorreria de
modo automático a suspensão do exercício profissional, do emprego na área privada, ou
do cargo ou função pública.1259
Ambos os exemplos têm em comum dois pontos: o primeiro é que foram inseridos
em diplomas legais autoritários, o que confirma mais uma vez o repúdio que essa forma
de pensar e agir tem pela presunção de inocência; o segundo consiste em que a
inconstitucionalidade de ambos estava na forma absoluta e automática com a qual
impunham a intervenção estatal, não permitindo que o juiz, segundo as peculiaridades
do caso, pudesse sequer examinar a oportunidade e proporcionalidade da medida.
Há, porém, exemplos atuais e (ainda) vigentes de violações da presunção de
inocência como “norma de tratamento”.

5.4.2.1.1. -Vedação legal de concessão de liberdade provisória: violação


constitucional já no plano abstrato da lei processual penal

Há violação da presunção de inocência, por falta de justificação constitucional e de


respeito à proporcionalidade, sempre que o legislador proíbe, de forma absoluta e
apriorística, a concessão de liberdade provisória.

1258 Trecho final da redação original elaborada em 1940 para o art. 312 do
Código de Processo Penal. Para maiores considerações sobre o tema, v.
item 2.5.2.2 supra.
1259 Preceituava o art. 48 do referido Decreto-Lei: “A prisão em flagrante

delito ou o recebimento da denúncia, em qualquer dos casos previstos


neste Decreto-Lei, importará, simultaneamente, na suspensão do
exercício da profissão, emprego em atividade privada, assim como de
cargo ou função na Administração Pública, autarquia, em empresa
pública ou sociedade de economia mista, até a sentença absolutória”.
Conforme relatam Gilmar Ferreira MENDES, Inocêncio Mártires
COELHO e Paulo Gustavo Gonet BRANCO, Curso de direito
constitucional, São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 314/316, o Supremo
Tribunal Federal, por voto do então Ministro Themístocles Cavalcanti,
declarou referida constrição a direito fundamental desproporcional e,
portanto, reconheceu sua inconstitucionalidade.
Em nosso sistema podem ser citados três exemplos atuais a merecer comentário em
face da presunção de inocência.1260 São eles: o artigo 44, caput, da Lei 11.343 de 2006,
atual lei destinada ao combate ao tráfico de drogas e que institui o Sistema Nacional de
Políticas Públicas sobre Drogas;1261 o artigo 3º da Lei 9.613 de 1998, denominada Lei de
Lavagem de Capitais;1262 e o artigo 7º da Lei 9.034 de 1995, denominada Lei do Crime
Organizado.1263 Em todos os dispositivos a violação é a mesma: vedação legal absoluta, e
já em nível abstrato de elaboração da norma, de que o juiz conceda liberdade provisória
para o preso. A análise dos dispositivos pode ser feita de forma conjunta, pois, nesses
pontos destacados, suas inconstitucionalidades têm a mesma origem: carecem de

1260 Deixa-se de tratar do art. 21 (“os crimes previstos nos arts. 16. 17 e 18
são insuscetíveis de liberdade provisória”) da Lei 10.826/2003,
denominado Estatuto do Desarmamento, que também vedava a
concessão de liberdade provisória para determinados crimes nela
previstos, uma vez que tal dispositivo foi declarado inconstitucional por
força da ADIn 3.112-1, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em
26.10.2007 e publicada no DOU de 10.05.2007. Ao que importa ao
presente ponto, extrai-se o seguinte trecho da ementa do aresto: “(...) V
– Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto a delitos elencados
nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto
magno não autoriza a prisão ‘ex lege’, em face do princípio da presunção
de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de
prisão pela autoridade judiciária competente. (...) IX – Ação julgada
procedente, em parte, para declarar a inconstitucionalidade dos
parágrafos únicos dos artigos 14 e 15 e do art. 21 da Lei 10.826, de 22
de dezembro de 2003”. Ressalta-se, desde já, que muitos trechos do
referido aresto serão utilizados no decorrer da exposição do presente
item.
1261 “Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta

Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e


liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas
de direitos”.
1262 “Art. 3º Os crimes disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e

liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá


fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”. Necessário
informar que referido dispositivo teve sua constitucionalidade
questionada, junto ao Supremo Tribunal Federal, em face do princípio da
presunção de inocência na Reclamação 2.391/PR. Já tinham se
posicionado pela inconstitucionalidade por violação da presunção de
inocência os Ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Carlos Aires
Brito e Gilmar Ferreira Mendes, quando a medida perdeu seu objeto,
pela soltura dos pacientes, e foi declarada prejudicada, em Sessão
Plenária de 10.03.2005.
1263 “Art. 7º Não será concedida liberdade provisória, com ou sem fiança,

aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na


organização criminosa”.
justificação constitucional e proporcionalidade da medida, já em plano normativo
abstrato.
Falta-lhes justificação constitucional por duas razões que se combinam. A primeira
razão é que não se pode utilizar, nem mesmo para o “tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins”, o dispositivo constitucional que recrudesce o tratamento penal e processual
penal para essa espécie de crime, uma vez que ali não está definida a vedação absoluta e
apriorística de concessão de liberdade provisória.1264 A segunda razão é que uma
interpretação conforme os demais dispositivos inseridos no capítulo dos direitos e
garantias fundamentais aponta para o sentido inverso, qual seja, o de que há um direito
constitucional à liberdade provisória, a qual somente poderá ser restringida em casos
excepcionais, jamais de forma absoluta e prévia (sem exame casuístico) como regra em
nível legislativo infraconstitucional.1265
Iniciando pela primeira razão apontada, necessário expor, de pronto, que o
dispositivo que confere tratamento mais rigoroso aos crimes hediondos e afins, dentre os
quais está o tráfico ilícito de entorpecentes, determina apenas que para essas espécies de
crimes não sejam concedidas fiança, graça e anistia. Nada há quanto a estar vedada a
concessão de liberdade provisória. Logo, e estendendo o raciocínio para todos os outros
dispositivos objetos do presente comentário, se o constituinte recrudesceu na medida
destacada apenas para os crimes por ele definidos, não cabe ao legislador ordinário
estender ou ampliar o âmbito fechado dessa restrição constitucional a direito
fundamental.
Quando se está diante de uma intervenção estatal em direitos fundamentais, o
legislador ordinário não pode interpretá-la de forma extensiva, notadamente quando tal
redução está prevista por meio de “reserva de lei qualificada”.1266 Máxime quando o
direito fundamental que ela visa restringir (o direito à liberdade) é tratado como o direito
que deve, em regra, ocorrer, ou seja, sempre existirá o direito à liberdade provisória de
forma plena, a menos que situações excepcionais venham a mostrar a necessidade de sua
restrição.1267

1264 Assim dispõe o inciso XLIII do art. 5º da CR: “a lei considerará crimes
inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o
tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos
como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os
executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”.
1265 Sobre o tema da complementaridade entre presunção de inocência e

direito à liberdade provisória, v. item 5.3.2.2 supra. Sobre o “favor


libertatis” como manifestação da presunção de inocência tanto na
formação legislativa quanto na decisão judicial, v. item 5.4.1.2 e seus
subitens. Sobre o direito à liberdade como um dos fundamentos para a
criação da presunção de inocência, v. item 5.3.1 supra.
1266 Sobre a diferença sobre “reserva de lei simples” e “reserva de lei

qualificada”, sendo esta um espaço normativo mais limitado e dirigente,


porquanto o constituinte já determina, de forma inextensível, “os
seguintes elementos: o tipo, a finalidade, ou o meio de intervenção
A redação dos dispositivos infraconstitucionais citados, assim como de qualquer
outro que venha a ser criado na mesma linha violadora, inverte o raciocínio
constitucional, ou seja, emprega justificação teleológica inconstitucional. São leis
ordinárias taxativas que subvertem a determinação constitucional, tornando a prisão
provisória, que deveria ser medida excepcional, em algo absoluto, irreversível e de
impossível exame judicial casuístico. Isto porque, por aqueles artigos, o juiz está proibido
de conceder liberdade provisória em toda e qualquer situação.1268

autorizados” ao legislador infraconstitucional, v. Dimitri DIMOULIS e


Leonardo MARTINS, Teoria geral dos direitos fundamentais, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2007, item 9.3.2. Para nossas considerações
sobre reserva de lei e cláusula restritiva como restrições autorizadas dos
direitos fundamentais mas que devem ser rigidamente respeitadas, v.
item 4.4.3.1.2 supra.
1267 Rogério Lauria TUCCI, Direitos e garantias individuais no processo

penal brasileiro, 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, cap. 13,
indica, já no título do referido capítulo, que há um direito à liberdade
provisória com ou sem fiança. Na mesma linha, v., ainda, Luis Gustavo
Grandinetti Castanho de CARVALHO, Processo cit., p. 209 e Antônio
Alberto MACHADO, Curso cit., p. 568. Alberto Silva FRANCO, Crimes
cit., pp. 455/457, identificando um “direito constitucional à liberdade
provisória”, inserido no já citado inciso LXVI do art. 5º da Constituição,
assevera que “pouco importa que o texto constitucional, referindo-se à
liberdade provisória, aluda à cláusula ‘quando a lei admitir’. Isto não
significa, à evidência, que a Constituição Federal, ao referir-se à
mencionada cláusula, tivesse autorizado o legislador ordinário a proibir,
de forma absoluta, ou mesmo em relação a certos e determinados
delitos, a liberdade provisória. Tal entendimento conduziria a lei
infraconstitucional a uma posição diametralmente oposta ao direito
fundamental consagrado pelo legislador constituinte e em contraste com
outros direitos fundamentais correlatos. O poder que o legislador
ordinário tem ao seu alcance, quer lhe seja atribuído expressamente ou
implicitamente, não pode englobar, em si, um poder de disposição” (op.
cit., p. 455).
1268 Sobre a excepcionalidade da prisão provisória em um modelo legislativo

aos moldes da atual Constituição da República, v. itens 5.3.2.2 e


5.4.1.2.1.1 supra.
Têm, a bem se ver, a mesma finalidade político-repressiva e inconstitucional da
prisão obrigatória da redação original do art. 312, dela se diferenciando apenas porque ao
contrário de determinar a prisão de forma obrigatória, proíbe a liberdade provisória de
forma impositiva.1269 É modo diverso de se cumprir a mesma finalidade inconstitucional:
negar o direito à liberdade provisória e, com isso, violar a presunção de inocência por
antecipação automática de pena e sem possibilidade de exame judicial de
proporcionalidade e justificação constitucional conforme o caso concreto.1270

1269 Sobre esse ponto como crucial para a determinação da


inconstitucionalidade da justificação para se elaborar norma com esse
cariz, v. o seguinte trecho do voto do Ministro Gilmar Ferreira Mendes,
externado na referida ADIn 3.112-1, ao comentar a redação do (já
declarado inconstitucional) art. 21 da Lei 10.826/03: “A norma, como se
vê, estabelece um tipo de regime de ‘prisão preventiva obrigatória’, na
medida em que torna a prisão uma regra, e liberdade, a exceção. Por
isso, ela remonta ao vetusto dogma que lastreava o processo penal sob
uma outra concepção de Estado de Direito: o da presunção de
culpabilidade (e não de inocência), segundo a qual a liberdade era
apenas ‘provisória’, e a prisão, permanente. A Constituição de 1988 – e
antes, como demonstrado, a Lei 6.416/77 – instituiu um novo regime no
qual a liberdade é a regra, e a prisão, apenas provisória, exigindo-se a
comprovação, devidamente fundamentada, de sua necessidade cautelar
dentro do processo”. No mesmo sentido foi o voto do relator do feito, o
Ministro Ricardo Lewandowski: “Com efeito, embora a interdição à
liberdade provisória tenha sido estabelecida para crimes de suma
gravidade, com elevado potencial de risco para a sociedade, quais
sejam, a ‘posse ou porte ilegal de arma de fogo’ e o ‘tráfico internacional
de arma de fogo’, liberando-se a franquia para os demais delitos, penso
que o texto constitucional não autoriza a prisão ‘ex lege’, em face do
princípio da presunção de inocência (art. 5º, LVII, da CF), e da
obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela
autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, da CF)”.
1270 Nesse sentido vem se posicionando o Supremo Tribunal Federal, o que

bem pode ser percebido, pela afinidade argumentativa com o texto


principal, da decisão monocrática do Ministro Celso de Mello ao analisar
o art. 44, da atual Li de Drogas no HC 100.959 MC/TO, j. em 08/10/2009:
“(...) Essa repulsa a preceitos legais, como esses que venho de referir,
também encontra apoio em autorizado magistério doutrinário (LUIZ
FLÁVIO GOMES, em obra escrita com Raúl Cervini, “Crime Organizado”,
pp. 171/178, item n. 4, 2ª ed., 1997, RT; GERALDO PRADO e WILLIAM
DOUGLAS, “Comentários à Lei contra o Crime Organizado”, pp. 87/91,
1995, Del Rey; ROBERTO DELMANTO JUNIOR, “As modalidades de
prisão provisória e seu prazo de duração”, pp. 142/150, item n. 2, “c”, 2ª
ed., 2001, Renovar e ALBERTO SILVA FRANCO, “Crimes Hediondos”,
pp. 489/500, item n. 3.00, 5ª ed., 2005, RT, v.g.). Vê-se, portanto, que o
Poder Público, especialmente em sede processual penal, não pode agir
imoderadamente, pois a atividade estatal, ainda mais em tema de
liberdade individual, acha-se essencialmente condicionada pelo princípio
da razoabilidade. Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz
limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. O exame da
adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade,
exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com
fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo,
no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições
normativas emanadas do Poder Público. Esse entendimento é
prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por
mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de
maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele
deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade.
Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio
da proporcionalidade, que se qualifica - enquanto coeficiente de aferição
da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE
MELLO, “Curso de Direito Administrativo”, pp. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª
ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, “Curso de Direito
Administrativo”, p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) - como
postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público. Essa é a
razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse
postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação
do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa -
adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade
do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das
liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder,
extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas
constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão
substantiva ou material, a garantia do “due process of law” (RAQUEL
DENIZE STUMM, “Princípio da Proporcionalidade no Direito
Constitucional Brasileiro”, pp. 159/170, 1995, Livraria do Advogado
Editora; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, “Direitos Humanos
Fundamentais”, pp. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO
BONAVIDES, “Curso de Direito Constitucional”, pp. 352/355, item n. 11,
4ª ed., 1993, Malheiros). Como precedentemente enfatizado, o princípio
da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder
Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no
desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa
perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental
de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro
parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos
estatais. Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do
desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este
não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma
imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento
Não se diga, outrossim, que, quando o constituinte vedou a concessão de fiança,
estaria, implicitamente, impedindo a liberação do imputado por meio de liberdade
provisória. Esse raciocínio (equivocado) se daria nos seguintes moldes: ao se vedar o
menos queria, implicitamente, se vedar o mais; em uma verdadeira subversão do adágio
“quem pode o mais pode o menos”.
Como já exposto, o constituinte, por meio de reserva de lei qualificada determinou o
menos, não sendo técnica e constitucionalmente admissível fazer interpretação extensiva
desse dispositivo restritivo de direito fundamental.1271 Não se pode, por via
infraconstitucional, eliminar de forma absoluta o princípio constitucional da presunção
de inocência, em seu aspecto de “norma de tratamento”.

institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo,


de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal. A
jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso,
tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que,
desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do
Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade
e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos
inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos
das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ
176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADI 1.063/DF, Rel. Min.
CELSO DE MELLO, v.g.)”.
1271 Alberto Silva FRANCO, Crimes cit., p. 76, assim leciona sobre esse

ponto: “Numa quinta abordagem, é inequívoca a necessidade de o


legislador ordinário estar submetido às limitações penais e processuais
penais procedentes do comando constitucional. Diante delas, não lhe
compete aferir se são pertinentes ou não. Encontra-se ele diante de um
expediente comunicatório de deliberação de nível superior e só lhe cabe
obedecer, incluindo, no texto legal, as restrições preestabelecidas. O ato
de conformação às limitações provindas do dispositivo constitucional não
pode, contudo, ser compensado com o alargamento dessas limitações
para efeito de excluir, radical e peremptoriamente, o eventual infrator de
qualquer dos tipos, que compõem o microssistema, de outros direitos ou
benefícios não relacionados na norma criminalizadora e que participam
do sistema penal geral. Numa sexta abordagem, deve ficar consignado
que a Lei 8.072/90, que contextualizou os crimes hediondos e deu corpo
às limitações impostas pelo comando constitucional, não se adequou
corretamente ao inc. XLIII do art. 5º da Constituição Federal. O legislador
penal, em termos de restrições penais e processuais penais, foi muito
além do que lhe autorizava a norma constitucional criminalizadora. No
campo penal, incluiu a proibição do indulto e também a proibição do
regime prisional progressivo. No campo processual penal, suprimiu a
liberdade provisória, por entender que o conceito de inafiançabilidade
não significava, por si só, impedimento para a obtenção da liberdade
provisória”.
A reserva de lei constitucional, no caso, é do tipo “qualificada” e, portanto, não
permite ao legislador infraconstitucional ampliá-la para além dos elementos nela
inseridos. Esses elementos são uma ordem constitucional, da qual o legislador ordinário
não pode se afastar, seja para ampliá-la (violação por excesso legislativo) seja para não
atendê-la (violação por omissão legislativa).1272 Até mesmo porque, como é cediço, os
institutos jurídicos da fiança e da liberdade provisória são distintos e nada impede que se
que conceda liberdade provisória a crimes inafiançáveis.1273

1272 Nesse sentido, sem contudo citar expressamente a questão da violação


pelo legislador ordinário da “reserva de lei qualificada”, assim se
manifestou o Ministro Cezar Peluso na já referida ADIn 3.112-1:
“Demais, parece-me que a Constituição estabeleceu os casos que
considerou insusceptíveis de fiança, de graça e de anistia, mediante
juízo de valor a respeito da gravidade dos delitos que prevê. E, quando,
a meu ver, com o devido respeito, se remete à lei para definição dos
crimes hediondos, apenas abre uma exceção. Noutras palavras, a
interpretação do inciso XLIII implica dizer que, além dos casos que a
própria Constituição estabelece, como os do inciso anterior e dos
subseqüentes, por exemplo, a lei só pode prever inafiançabilidade e
insusceptibilidade de graça e anistia àqueles crimes considerados por
ela, lei, como hediondos. A alternativa estava posta para o legislador.
Bastaria que ele tivesse considerado esses crimes como hediondos –
ambos, aliás, já foram considerados meras contravenções penais. Se o
legislador tivesse optado por qualificar tais delitos como hediondos, eu
até questionaria sua razoabilidade. Mas prescindo de fazê-lo, porque a
lei não os considerou hediondos”. Arrematando, mais adiante, em
resposta às considerações do então Ministro Sepúlveda Pertence: “Vou
discutir, quando estiver em jogo aqui. Fiquei muito feliz de Vossa
Excelência ter admitido que o XLIII é exceção do LXVI. Se é exceção, a
interpretação é restritiva, não apenas porque é exceção, mas porque é
exceção gravosa á liberdade individual!”. E, ainda, em troca de opiniões
com o Ministro Ricardo Lewandowski (relator), em outro trecho: “O
SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO – A meu ver, a constituição,
quando quis remeter à lei ordinária o poder de tornar os delitos
inafiançáveis e insusceptíveis de graça, fê-lo abrindo a cláusula para os
crimes que a lei considera hediondos. Não é qualquer crime! O SENHOR
MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (RELATOR) – Estabeleceu num
‘standart’, não é, Ministro? O SENHOR MINISTRO CEZAR PELUSO –
Exatamente. Ela abriu e dispôs: a lei está autorizada a negar fiança,
graça e anistia, além desses crimes que ela própria considera
gravíssimos, àqueles que sejam reputados hediondos. Não a qualquer
outro. O legislador já não tem, a meu ver e com o devido respeito,
liberdade de conceder, ou não, fiança. Penso que a norma constitucional
já não o permitiu” – destaque do original.
1273 Nesse sentido, v. Alberto Silva FRANCO, Crimes cit., pp. 456/457 e 485,

com apoio em qualificada e tradicional doutrina, expõe que ao legislador


Assim, a justificação dos três dispositivos citados viola a presunção de inocência
porquanto nega o direito constitucional à liberdade que a embasa e com o qual ela tem
relação de complementaridade.
Porém, também falta justificação constitucional para as três disposições legais
citadas na medida em que violam, diretamente, outro direito fundamental que também
dá suporte e que depende da presunção de inocência para sua realização, qual seja: o
devido processo legal.1274
A violação, ao devido processo legal e, por conseqüência, à presunção de inocência,
se dá porque há uma automática e absoluta antecipação de pena, sem que o processo
tenha sido concluído. Logo, essa antecipação torna, pela perspectiva do cidadão,
desnecessário o processo, pois antes mesmo de ser julgado já lhe é aplicada a pena.1275

ordinário não cabia confundir os institutos da fiança e da liberdade


provisória. Esclarece: “Por outro lado, não há possibilidade de confusão,
em nível constitucional e, por via de conseqüência, na legislação
ordinária entre os conceitos de liberdade provisória e fiança. O inciso
LXVI do art. 5º da Constituição Federal é de clareza solar: ‘ninguém será
levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade
provisória, com ou sem fiança’. O texto constitucional deixa à mostra,
para quem quiser ler, que o instituto da liberdade provisória tem uma
área de significado bem mais extensa do que a fiança, na medida em
que guarda aplicabilidade em relação a infração penal que não comporta
fiança. E nisso o legislador constituinte seguiu à risca a doutrina
brasileira. Não obstante ocorra ‘a relação de gênero e espécie’ entre a
liberdade provisória e a fiança, não há possibilidade de fundir ou de
confundir os dois conceitos. Daí ‘a possibilidade de concessão de
liberdade provisória até mesmo nos casos em que a infração penal seja
inafiançável’”. No mesmo sentido, v. Rogério Lauria TUCCI, Direitos cit.,
item 13.4, e Vicente GRECO FILHO, Manual cit., pp. 281/283.
1274 Sobre esse ponto da violação e o reflexo que isso causa para a

presunção de inocência, v. Alberto Silva FRANCO, Crimes cit., pp.


459/460.
1275 Nesse sentido, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 435.
Por outro viés, também falta justificação constitucional por violação da presunção
de inocência porque, ao redigir o dispositivo legal de modo peremptório,1276 o legislador
subtrai do Poder Judiciário sua função constitucional de julgar os casos conforme as
condições fático-jurídicas específicas. Com isso, norma infraconstitucional viola o
princípio da “reserva de jurisdição”, imposição direta de um Estado Democrático de
Direito e direito fundamental com o qual a presunção de inocência também guarda
relação de interdependência e complementaridade.1277
Portanto, a inexistência de justificativa constitucional de normas com esse cariz de
“constrição absoluta” está no afrontamento em termos absolutos da presunção de
inocência e de cada um de seus fundamentos. A prevalecer esse seu afastamento de
forma peremptória, e já no plano abstrato da lei, norma-regra infraconstitucional
invalidaria princípio constitucional, o que é inadmissível para a “teoria dos
princípios”.1278

1276 Veja-se, p.ex., o art. 3º da Lei 9.613/98, assim redigido: “os crimes
disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória
e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá
fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.
1277 A inconstitucionalidade, neste ponto, ressurte destacada com precisão

no seguinte trecho do voto-vista da Ministra do Superior Tribunal de


Justiça Maria Thereza Rocha de Assis Moura, proferido no HC 76.779:
não cabe “a adoção da tese de que, nos casos de crimes graves, há uma
presunção relativa da necessidade da custódia cautelar, em se tratando
de flagrante. E isto porque a Constituição da República não distinguiu, ao
estabelecer que ninguém poderá ser considerado culpado antes do
trânsito em julgado de sentença condenatória, entre crimes graves ou
não, tampouco estabelecendo graus em tal presunção. A necessidade
de fundamentação decorre do fato de que, em se tratando de restringir
uma garantia, é preciso que se conheça dos motivos que a justificam. É
nesse contexto que se afirma que a prisão cautelar não pode existir ‘ex
legis’, mas deve resultar de ato motivado do juiz” (apud Alberto Silva
FRANCO, Crimes cit., p. 486). Sobre a inter-relação entre presunção de
inocência e “reserva de jurisdição”, v. item 4.5.1.2 supra.
1278 Sobre as possíveis formas de solução de colisão entre princípio e regra,

v. item 4.4.3.1.3 e seus subitens supra.


Além disso, a elaboração legislativa nesses termos absolutos viola a
proporcionalidade que toda norma infraconstitucional deve ter no plano abstrato. Como
já se afirmou, se não há princípio fundamental absoluto (presunção de inocência)
também não pode haver intervenção estatal absoluta (vedação legal de concessão de
liberdade provisória).1279 A forma como o texto normativo infraconstitucional foi
redigido não respeitou a proporcionalidade em nível legislativo porque, ao sopesar de um
lado os direitos fundamentais à presunção de inocência, à liberdade provisória, ao devido
processo legal e à reserva de jurisdição e, de outra banda, a necessidade de
encarceramento provisório, preteriu a todos aqueles direitos e, de forma absoluta e
abstrata, definiu que a exceção deveria virar regra para qualquer caso concreto. Em
afronta à Constituição, determinou-se o retorno à prisão ex lege ou obrigatória.1280
Esse é o ponto, em tema de liberdade provisória, no qual se tocam e interagem a
proporcionalidade em nível legislativo (sopesamento), a garantia da “reserva de
jurisdição” e a presunção de inocência. O legislador, ao sopesar as normas fundamentais
de uma forma que, por força de lei (ex lege), elimina, peremptória e absolutamente, um
direito constitucional (no caso, o direito à liberdade provisória), sem deixar qualquer
margem de exame ao juiz (eliminando a “reserva de jurisdição”), leva esse sopesamento
(legislativo) a tal nível que elimina a possibilidade de aplicação da proporcionalidade em
nível judiciário, ou seja, no instante da concreção (interpretação/aplicação) da norma no
caso concreto. Resulta disso que a presunção de inocência será quase totalmente
excluída, ao menos em seu aspecto de “norma de tratamento”, uma vez que sempre se
tratará o imputado como condenado por força da antecipação de prisão obrigatória (ex
lege) e não pelas condições fático-jurídicas do caso.
Um sopesamento legislativo inconstitucional, porquanto levado ao extremo e a
ponto de suprir para todos (os cidadãos) e sempre (em qualquer situação) um direito
fundamental (reserva de jurisdição), leva à impossibilidade de se aplicar a
proporcionalidade em nível judicial e, pelo fato desse sopesamento ter vedado a
concessão de liberdade provisória, tema afeito à presunção de inocência, viola-se também
este princípio constitucional.1281

1279 Sobre o tema da necessidade de limites às intervenções estatais para


que elas possam ser, ao menos no campo legislativo, constitucional e
proporcionalmente aceitas, v. item 4.5 supra.
1280 Afirmando que a negativa, já no plano abstrato da lei, de concessão de

liberdade provisória ser o mesmo que o retorno à prisão cautelar em


termos obrigatórios, v. Eugênio Pacelli de OLIVEIRA, Processo e
hermenêutica na tutela penal dos direitos fundamentais, 2ª ed., Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, item 86.
1281 No julgamento da ADIN 3.112-1, que decidiu pela inconstitucionalidade

do referido art. 21 do Estatuto do Desarmamento, foi posto em ressalto


que a desatenção quanto a esse ponto de interseção entre
proporcionalidade e reserva de jurisdição materializa-se em violação à
presunção de inocência. Nesse sentido, se manifestou o Ministro Gilmar
Ferreira Mendes em seu voto: “No entanto, a norma do art. 21 do
Estatuto também parte do pressuposto de que a prisão é sempre
necessária, sem se levar em consideração, na análise das razões
acautelatórias, as especificidades do caso concreto. A necessidade da
prisão decorrerá diretamente da imposição legal, retirando-se do juiz o
poder de, em face das circunstâncias específicas do caso, avaliar a
presença dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal:
necessidade de garantir a ordem pública, a ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal, ou assegurar a aplicação da lei
penal, havendo prova da existência do crime e indício suficiente de
autoria. Assim, em vista do que dispõe o art. 5º, inciso LVII, o qual
consagra o ‘princípio da presunção de inocência’, a proibição total de
liberdade provisória prescrita pelo art. 21 do Estatuto do Desarmamento
é patentemente inconstitucional. Ademais, e por conseqüência, a norma
do art. 21 do Estatuto inverte a regra constitucional que exige a
fundamentação para todo e qualquer tipo de prisão (art. 5º, inciso LXI),
na medida em que diretamente impõe a prisão preventiva (na verdade,
estabelece uma ‘presunção de necessidade da prisão’), afastando a
intermediação valorativa de seu aplicador. Por fim, não é demais
enfatizar a desproporcionalidade dessa regra da proibição de liberdade
provisória nos crimes de posse ou porte de armas. Comparado com o
homicídio doloso simples, essa desproporção fica evidente. De acordo
com a legislação atual, o indivíduo que pratica o crime de homicídio
doloso simples poderá responder ao processo em liberdade, não
estando presentes os requisitos do art. 312 do CPP; por outro lado, a
prisão será obrigatória para o cidadão que simplesmente porta uma
arma. Trata-se, portanto, de uma violação ao princípio da
proporcionalidade como proibição de excesso (‘Übermassverbot’). Esses
fundamentos são suficientes para constatar a inconstitucionalidade do
art. 21 do Estatuto do Desarmamento” – destaque do original.
Concluindo mais adiante em seu voto: “No rol de direitos e garantias
limitadores dessa atividade legislativa em matéria penal, assume
especial relevância o princípio da presunção de inocência. Como bem
assevera Ferrajoli, ‘a presunção de inocência não é apenas uma garantia
de liberdade e de verdade, mas também uma garantia de segurança ou,
se quisermos, de defesa social: da específica ‘segurança’ fornecida pelo
Estado de direito e expressa pela confiança dos cidadãos na justiça, e
daquela específica ‘defesa’ destes contra o arbítrio punitivo’. O princípio
fundamental da presunção de inocência impõe que toda prisão, antes do
trânsito em julgado do caso, esteja lastreada em razões, devidamente
fundamentadas pela autoridade judicial, justificadoras da necessidade de
se garantir o funcionamento eficaz da jurisdição penal. Essa análise da
efetiva necessidade da prisão, apenas como medida cautelar no
processo, deve se basear nas circunstâncias específicas do caso
concreto e, por isso, constitui uma função eminentemente jurisdicional. O
legislador viola o princípio da presunção de inocência quando, no âmbito
Apenas para exemplificar a que nível de distorção chega essa opção legislativa,
impõe-se ao julgador que trate do mesmo modo e tenha como equivalente a situação de
um traficante internacional que opera com quantidades verdadeiramente industriais de
drogas, e a do rapaz que, desavisado, leva gratuitamente a seus colegas pequena
quantidade de droga para consumo em um evento do qual participariam.
Todavia, os referidos desacertos do legislador infraconstitucional quanto à vedação
absoluta de concessão de liberdade provisória parecem ter chegado ao fim. Isto porque,
as críticas doutrinárias e jurisprudenciais fundadas nas bases constitucionais antes
referidas produziram uma mudança exatamente no ponto inicial dessa tendência de
elaboração de leis ordinárias sem justificação constitucional ou respeito à
proporcionalidade: a Lei 8.072/90, denominada Lei dos Crimes Hediondos.

de uma política criminal de enrijecimento do controle de certas atividades


(como o uso e comércio das armas de fogo e munições), proíbe a
liberdade provisória, com ou sem fiança, tornando obrigatória a prisão
cautelar do acusado pelos crimes nela definidos e, dessa forma,
retirando os poderes do juiz quanto à verificação, no âmbito do processo
e segundo os elementos do caso, da real necessidade dessa medida
cautelar. Trata-se de um excesso legislativo e, portanto, de uma violação
ao princípio da proporcionalidade como proibição de excesso
(‘Übermassverbot’), que exige a atuação do Tribunal quanto ao controle
de sua constitucionalidade. O art. 21 do Estatuto do Desarmamento, ao
prever que os crimes prescritos nos artigos 16 (posse ou porte ilegal de
arma de fogo de uso restrito), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18
(tráfico internacional de arma de fogo) são insuscetíveis de liberdade
provisória, com um sem fiança, e, dessa forma, estabelecer um regime
de prisão preventiva obrigatória, viola o princípio da presunção de
inocência, o princípio que exige a fundamentação de toda e qualquer
ordem de prisão, assim como o princípio da proporcionalidade”. Nesse
sentido já se manifestara o Ministro Ricardo Lewandowski, relator: “A
prisão obrigatória, de resto, fere os princípios constitucionais da ampla
defesa e do contraditório (art. 5º, LV), que abrigam um conjunto de
direitos e faculdades, os quais podem ser exercidos em todas as
instâncias jurisdicionais, até a sua exaustão. Esses argumentos, no
entanto, não afastam a possibilidade de o juiz, presentes os motivos que
recomendem a prisão ‘ante tempus’, decretar justificadamente a custódia
cautelar. O que não se admite, repita-se é uma prisão ‘ex lege’,
automática, sem motivação. Em outras palavras, o magistrado pode,
fundamentadamente, decretar a prisão cautelar, antes do trânsito em
julgado da condenação, se presentes os pressupostos autorizadores,
que são basicamente aqueles da prisão preventiva, previstos no art. 312
do Código de Processo Penal. É dizer, cumpre que o juiz demonstre,
como em toda cautelar, a presença do ‘fumus boni juris’, e do ‘periculum
in mora’ ou, no caso, do ‘periculum in libertatis’”.
Referida lei sofreu um importante ajuste constitucional por meio da Lei 11.464, de
29 de março de 2007, que lhe alterou vários dispositivos. Ao que importa neste ponto da
exposição, esta última lei mudou a redação original do art. 2º da Lei 8.072/90, excluindo
de seu inciso II1282 a expressão “liberdade provisória”. Desse modo, conformou as
hipóteses previstas naquele artigo à justificação constitucional da presunção de inocência
e ao necessário exame judicial da proporcionalidade em concreto da medida.1283

1282 A antiga redação do inciso II do art. 2º da Lei 8.072/90 era: “Art. 2º Os


crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: II – fiança e ‘liberdade
provisória’” – destaque nosso. Essa parte posta em destaque foi a
suprimida pela Lei 11.464/2007.
1283 O debate constitucional da doutrina e da jurisprudência encontrou eco

no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, cujas


decisões pela inconstitucionalidade da referida vedação abstrata de
concessão de liberdade provisória fundamentou a Exposição de Motivos
do Projeto de Lei 6.793/2006, que deu origem à Lei 11.464/07. Nos itens
2, 3 e 4 da referida Exposição percebem-se, respectivamente: item 2 a
falta de sintonia entre a norma revogada e os princípios que regem o
Direito Penal e Processual Penal; item 3 – a falta de justificação
constitucional para a vedação absoluta e abstrata; item 4 – o necessário
respeito pela “reserva de jurisdição” como única forma de exame de
proporcionalidade na aplicação concreta da norma. In verbis: “(...) 2. O
Projeto pretende modificar o artigo 2ª da Lei nº 8.072, de 1990, com
objetivo de adequá-la à evolução jurisprudencial ocorrida desde sua
entrada em vigor, bem como de torná-la coerente com o sistema adotado
pela Parte Especial do Código Penal e com os princípios gerais do
Direito Penal. 3. A proposta de alteração do inciso II do artigo 2º busca
estender o direito à liberdade provisória aos condenados por esses
delitos, em consonância com o entendimento que já vem se tornando
corrente nas instâncias superiores do Poder Judiciário (STF, HC nº
69.950; HC 77052 / MG; HC nº 79.204; HC nº 82.903; HC-QO nº 83.173;
HC nº 84.797-MC; HC nº 84.884; HC nº 85.036; HC nº 85.900; HC
87343MC; HC nº 87.424; HC 87438 MC/SP. STJ, RHC 2556/SP;
RHC 2996/MG): “A gravidade do crime imputado, um dos malsinados
‘crimes hediondos’ (Lei nº 8.072/90), não basta à justificação da prisão
preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse dos interesses (sic)
do desenvolvimento e do resultado do processo, e só se legitima quando
a tanto se mostrar necessária: não serve a prisão preventiva, nem a
Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem
processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual,
entretanto, ‘ninguém será considerado culpado ate o trânsito em julgado
de sentença penal condenatória’ (CF, art. 5º, LVII)” (RHC nº 68.631, Rel.
Min. SEPÚLVEDA PERTENCE). 4. Dessa forma, preserva-se o poder
geral de cautela do juiz, que decidirá se os acusados dos crimes
previstos na Lei nº 8.072, de 1990, poderão ou não responder ao
Não está mais vedada a concessão de liberdade provisória para os crimes hediondos
e para os demais crimes a ele assemelhados por força constitucional.
Com isso o legislador deu importante passo para manter a harmonia constitucional
em nível ordinário, ou seja, para os crimes hediondos e os demais previstos no caput do
art. 2º da Lei 8.072/90 não há mais vedação de os juízes examinarem, caso a caso, a
oportunidade de conceder liberdade provisória. Não há mais falta de justificação
constitucional e, também, inatenção à proporcionalidade.
A revogação da expressão “liberdade provisória” projetou efeitos diretos e imediatos
na inicialmente citada Lei 11.343/2006, pois, no caput daquele artigo 2º da Lei dos
Crimes Hediondos, há referência expressa aos crimes de “tráfico ilícito de entorpecentes
e drogas afins”. Sendo assim, o art. 44 da Lei 11.343/2006 foi tacitamente revogado a
partir da entrada em vigor da Lei 11.464/2007.1284

processo em liberdade. Pretende-se, com isso, evitar os efeitos


negativos da privação de liberdade quando, diante do exame das
circunstâncias do caso concreto, a medida se mostrar eventualmente
desnecessária (...)”.
1284 Nesse sentido, v. Alberto Silva FRANCO, Crimes cit., pp. 490/491. A

jurisprudência começa a tomar esse mesmo posicionamento, v., os


seguintes arestos do Superior Tribunal de Justiça: a) “(...) 1. Ilegal é a
prisão mantida por força de decisão que se funda apenas na gravidade
abstrata do crime, sem indicar elementos concretos a justificar a medida.
Com a alteração trazida à Lei dos Crimes Hediondos pela Lei 11.464/07,
indispensável se torna a motivação concreta da necessidade da
manutenção da prisão em flagrante pela autoridade judicial, em
consonância com as garantias constitucionais da motivação das
decisões judiciais e da presunção de inocência. (...)” (trecho extraído da
ementa do HC 76.324/RS, 6ª T., rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura,
j. 13.11.07, p. DJe 29.09.2008); e b) “(...) 4.Por outro lado, a ordem deve
ser concedida, de ofício, ante a ausência de fundamentação da decisão
que indeferiu o pedido de liberdade provisória aos ora pacientes. 5. A
Sexta Turma desta Corte vem decidindo no sentido de que, com o
advento da Lei nº 11.464/07, que alterou a redação do art. 2º, II, da Lei
8.072/90, tornou-se possível a concessão de liberdade provisória aos
crimes hediondos ou equiparados, nas hipóteses que não estejam
presentes os requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal.
Destarte, a vedação contida na Lei nº 11.343/06, não se presta para
justificar a segregação cautelar. 6. Ademais, a gravidade do delito e o
desassossego que a atividade delituosa em questão traz à sociedade
constituem motivos abstratos e insuficientes à configuração da ameaça à
ordem pública, exigindo-se para tanto a existência de fatos a
evidenciarem a periculosidade concreta dos agentes e a probabilidade
real de reiteração delituosa. (...)” (HC 128.609/MS, 6ª T., rel. Min. Og
Fernandes, j. 07/05/2009, DJe 25/05/09). No Supremo Tribunal Federal a
matéria vem tendo igual acolhida, o que se depreende da decisão
monocrática exarada pelo Ministro Celso de Mello (HC 100959 MC/TO, j.
08/10/09), que bem coloca a questão diante do muito que se expôs em
nosso texto principal: “(...) Vale mencionar, quanto à possível
inconstitucionalidade do art. 44 da Lei de Drogas, recentíssima decisão
proferida pelo eminente Ministro EROS GRAU, Relator do HC 100.872-
MC/MG: ‘A vedação da liberdade provisória ao preso em flagrante por
tráfico de entorpecentes, veiculada pelo art. 44 da Lei n. 11.343/06, é
expressiva de afronta aos princípios da presunção de inocência, do
devido processo legal e da dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III, e
5º, LIV e LVII, da Constituição do Brasil). (...). A inconstitucionalidade do
preceito legal me parece inquestionável.’ (grifei). (...) Daí a advertência
de que a interdição legal ‘in abstracto’, vedatória da concessão de
liberdade provisória, como na hipótese prevista no art. 44 da Lei nº
11.343/2006, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo
Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento,
considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por
semelhante regra legal, eis que o legislador não pode substituir-se ao
juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da
necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de
tutela cautelar penal. O Supremo Tribunal Federal, de outro lado, tem
advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância
apta a justificar, só por si, a privação cautelar do ‘status libertatis’
daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Essa
orientação vem sendo observada em sucessivos julgamentos proferidos
no âmbito desta Corte, mesmo que se trate de réu processado por
suposta prática de crimes hediondos ou de delitos a estes equiparados
(HC 80.064/SP, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – HC
92.299/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - HC 93.427/PB, Rel. Min.
EROS GRAU - RHC 71.954/PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE -
RHC 79.200/BA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.): ‘A gravidade
do crime imputado, um dos malsinados ‘crimes hediondos’ (Lei
8.072/90), não basta à justificação da prisão preventiva, que tem
natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento e do resultado do
processo, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não
serve a prisão preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso
fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime
imputado, do qual, entretanto, ‘ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória’ (CF, art. 5º, LVII).’
(RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - grifei) ‘A
ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A
PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU. - A prerrogativa
jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI
e LXV) - não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público,
mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime
hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória
Na linha argumentativa até agora expendida, não se vê como tais efeitos
conformadores à Constituição não possam ser estendidos também à Lei de Lavagem de
Capitais (Lei 9.613/98, art. 44) e à Lei Crime Organizado (Lei 9.034/95, art. 7º). Ambas,
por não apresentarem proporcionalidade e justificação constitucional já no plano
abstrato da lei, seja por violarem a presunção de inocência, seja por desrespeitarem os já
citados direitos fundamentais a ela coligados (direito à liberdade como regra, devido
processo legal e reserva de jurisdição), não podem continuar a ter aplicação por parte do
Judiciário.
Em breve síntese, pode-se concluir que os três dispositivos comentados no presente
item, assim como qualquer outro que possua a mesma construção normativa, não
apresentam justificação constitucional porquanto o legislador ordinário foi além do
permissivo constitucional e valorou como de maior peso a restrição à liberdade do
cidadão, em comparação com uma plêiade de direitos fundamentais que lhe estão em
contraposição. Falhou, ainda, no tocante à proporcionalidade, na medida em que retirou
do Judiciário a possibilidade de examinar a oportunidade da concessão de liberdade em
cada caso concreto, criando hipótese de “prisão obrigatória” ou “ex lege”.

5.4.2.1.2. -(segue): inclusão do nome do condenado provisório no rol dos


culpados

O inciso II do art. 393 do Código de Processo Penal prevê que o condenado


provisório terá seu nome “lançado no rol dos culpados”. Evidente ranço legislativo
nazifascista que bem demonstra, por mais esse ponto, a não aceitação da presunção de
inocência por essa legislação infraconstitucional.

irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a


culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que
lhe tenha sido imputada” (RTJ 187/933, Rel. Min. CELSO DE MELLO).
Tenho por inadequada, desse modo, por tratar-se de fundamento
insuficiente à manutenção da prisão cautelar do ora paciente, a mera
invocação do art. 44 da Lei nº 11.343/2006 ou do art. 2º, inciso II, da Lei
nº 8.072/90, especialmente depois de editada a Lei nº 11.464/2007, que
excluiu, da vedação legal de concessão de liberdade provisória, todos os
crimes hediondos e os delitos a eles equiparados, como o tráfico ilícito
de entorpecentes e drogas afins. Em suma: a análise dos fundamentos
invocados pela parte ora impetrante leva-me a entender que a decisão
judicial de primeira instância não observou os critérios que a
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou em tema de prisão
cautelar’ ”.
O citado “rol dos culpados” é um livro existente nos ofícios criminais brasileiros e
em cujo interior se inserem os nomes e demais dados de todos os condenados
provisoriamente pelo juízo.1285 Tal livro é denominado: “Registro do Rol dos Culpados”.
Importante destacar que, antes da reforma de 1984, permitia-se, com base em certidão
extraída do citado livro, iniciar a execução provisória da condenação, ainda pendente de
recurso.1286
Não obstante ser de pouca incidência prática, uma vez que de baixa utilização pelos
magistrados, resta evidente que a inclusão do nome do imputado ainda não condenado
definitivamente no rol dos culpados constitui violação à presunção de inocência já no
plano normativo abstrato.1287
Perdeu-se ótima oportunidade de se eliminar do plano normativo abstrato essa
violação constitucional quando, em 1995, portanto já após a entrada em vigor da atual
Constituição, houve a edição da Lei 9.033. Referida lei eliminou dispositivo semelhante
do então vigente parágrafo primeiro do artigo 408 da mesma legislação processual. Esse
dispositivo revogado preceituava: “na sentença de pronúncia o juiz declarará o
dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, mandará lançar-lhe o nome no rol
dos culpados, recomenda-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens
necessárias para a sua captura”. Após a edição daquela lei de 1995, exatamente a
expressão em destaque foi suprimida.
Essa postura de eliminar o lançamento do nome pronunciado no rol dos culpados
foi mantida com a reforma processual penal de 2008, pois a Lei 11.689, que alterou de
modo significativo o procedimento do Júri, não reinseriu aquela determinação originária
do Código de Processo Penal de 1940.

1285 No Estado de São Paulo está prevista a existência desse livro nas
Normas de Serviços dos Ofícios Judiciais, Tomo I, Capítulo V, Seção I
“Dos Livros do Ofício de Justiça Criminal”, art. 1.b.
1286 Com a atual Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), está vedada a

execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da decisão


condenatória definitiva, conforme preceitua o seu art. 105, nos seguintes
termos: “Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa
de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a
expedição de guia de recolhimento para a execução”.
1287 No sentido de que o inciso II do art. 393 do Código de Processo Penal

deveria ter sido revogado por força da presunção de inocência, v.


Guilherme de Souza NUCCI, Código cit., p. 685; Julio Fabbrini
MIRABETE, Processo cit., p. 465; Fernando da Costa TOURINHO
FILHO, Processo penal, 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, vol. 4, pp.
287/288; Antônio Alberto MACHADO, Curso cit., p. 157; Paulo RANGEL,
Direito cit., pp. 652/653. Em sentido contrário, o de que a Constituição
não revogou o citado dispositivo, v. Damásio E. de JESUS, Código cit.,
p. 310.
Dessa forma, não obstante o legislador infraconstitucional tenha perdido uma ótima
oportunidade de eliminar a mesma inconstitucionalidade do lançamento do nome do
condenado provisório no rol dos culpados (inciso II, do art. 393, CPP), não há por que
continuar a considerar tal dispositivo como vigente em nosso sistema, devendo-se tê-lo
como tacitamente revogado tanto por força da legislação infraconstitucional referida,
quanto – e com muito mais razão – por força da vigência da norma constitucional da
presunção de inocência.1288

5.4.2.1.3. -(segue): prisão provisória decorrente de decisão judicial


recorrível

Após a reforma legislativa empreendida em 2008 há, no Código de Processo Penal,


três dispositivos que prevêem a prisão provisória decorrente de decisão judicial: o art.
393, inciso I1289 e o parágrafo único do art. 387,1290 referentes às sentenças condenatórias
recorríveis; e § 3º do art. 4131291 que trata da prisão decorrente de decisão de pronúncia.

1288 A jurisprudência tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Superior


Tribunal de Justiça, após a entrada em vigor da atual Constituição,
notadamente com base no princípio da presunção de inocência, afirma
de modo unânime a revogação do referido inciso II do art. 393. Nesse
sentido, v., por todos, o seguinte julgado do Pleno do Supremo Tribunal
Federal e que, antes mesmo da reforma legal de 1995, já eliminava a
referida parte do § 1º do art. 408 do Código de Processo Penal: “O
lançamento do nome do acusado no rol dos culpados viola o princípio
constitucional que, proclamado pelo art. 5º, inciso LVII, da Carta Política,
consagra, em nosso sistema jurídico, a presunção ‘juris tantum’ de não-
culpabilidade daqueles que figurem como réus nos processos penais
condenatórios. A norma inscrita no art. 408, § 1º, do CPP - que autoriza
o juiz, quando da prolação da sentença de pronúncia, a ordenar o
lançamento do nome do réu no rol dos culpados - está derrogada em
face da superveniência de preceito constitucional com ela materialmente
incompatível (CF, art. 5º, LVII). A expressão legal ‘rol dos culpados’ não
tem sentido polissêmico. Há, pois, de ser entendida como locução
designativa da relação de pessoas já definitivamente condenadas” (STF
– TP – HC 69.696 – rel. Celso de Mello – j. 18.12.1992 – DJU
01.10.1993). Esse entendimento pode e deve, sem ressalvas, ser
aplicado ao citado inciso II.
1289 “Art. 393. São efeitos da sentença condenatória recorrível: I - ser o réu

preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como


nas afiançáveis enquanto não prestar fiança”.
1290 Com o advento da Lei 11.719, publicada em 23.06.2008, esse

dispositivo passou a ter a seguinte redação: “Art. 387. O juiz, ao proferir


sentença condenatória: (...) Parágrafo único. O juiz decidirá,
fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição
Nossa legislação especial, por herança da cultura forjada por aquele Código, traz
outros dispositivos que tratam de prisão provisória decorrente de sentença condenatória
recorrível: a) o § 3º do art. 2º da lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos);1292 b) o art. 3º,
segunda parte, da Lei 9.613/98 (Lei de Lavagem de Capitais);1293 e c) art. 59 da Lei
11.343/061294 (destinada à repressão ao tráfico ilícito de drogas e que institui o Sistema
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas).1295

de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do


conhecimento da apelação que vier a ser interposta”.
1291 Após a edição da Lei 11.689, publicada em 10.06.2008, esse dispositivo

tem a seguinte redação: “Art. 413. O juiz, fundamentadamente,


pronunciará o acusado, se convencido da materialidade do fato e da
existência de indícios suficientes de autoria e participação. (...) § 3º O
juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou
substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente
decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da
decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas
no Título IX do Livro I deste Código”.
1292 “Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente

se o réu poderá apelar em liberdade”.


1293 “Os crimes disciplinados nesta Lei são insuscetíveis de fiança e

liberdade provisória e, em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá


fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade”.
1294 “Nos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei, o

réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, salvo se for primário e
de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória”.
1295 Entre os dispositivos de leis especiais não se inclui, propositalmente, o

art. 9º da Lei 9.034/95 (denominada Lei do Crime Organizado), pois


determina que “o réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes
previstos nesta Lei”. Contudo, não há nenhum crime previsto na referida
lei, uma vez que, quando de sua sanção presidencial, foi vetado o seu
art. 1º, cuja redação original definia o único tipo penal previsto naquela
lei. Com o veto àquele dispositivo, sem que qualquer outro da mesma
natureza fosse inserido por lei posterior, não há crime ao qual se aplique
aquela violação constitucional consistente em se determinar a prisão
provisória decorrente de decisão condenatória recorrível.
No mesmo diapasão da legislação processual de 1941, e pouco mais de ano e meio da
vigência de nossa atual Constituição, foi editada a Lei 8.038/90, que trata das “normas
procedimentais para os processos que especifica, perante o Superior Tribunal de Justiça e
o Supremo Tribunal Federal”, cujo § 2º de seu art. 27 preceitua que “os recursos
extraordinário e especial serão recebidos no efeito devolutivo”. Desse dispositivo extrai-
se, por interpretação a contrario sensu, que por esses recursos carecerem do dito “efeito
suspensivo”, a decisão condenatória por eles ainda impugnável produz efeitos imediatos.
Assim, caso seja condenatória e a pena implique prisão do condenado, poderá ser
executada sem que para isso se aguarde o julgamento final da causa pelos citados
Tribunais Superiores.
Todos os dispositivos acima citados têm em comum o fato de regularem prisões
provisórias decorrentes de decisão judicial ainda passível de recurso, porém, também
guardam discrepâncias em seus textos normativos. Essas diferenças, por sua vez, geram
distinções em seus conteúdos, suas extensões, sua formas de aplicação e, em
conseqüência, nas críticas e nas ressalvas que a eles podem ser opostas.
Assim, importante organizá-los de forma a orientar a compreensão dos argumentos
que parte da doutrina e da jurisprudência se utilizam para justificá-los e, em
contrapartida, as ressalvas a serem feitas a essas linhas argumentativas.
A leitura isolada do citado inciso I do art. 393 do Código de Processo Penal levaria o
intérprete à compreensão de que nosso atual sistema jurídico prevê a prisão provisória
obrigatória para recorrer, exceção feita aos crimes afiançáveis. Isso porque esse
dispositivo é o último ranço legislativo da prisão provisória obrigatória diretamente
instituída pelo legislador processual de 1941. Por tudo que já se disse sobre a prisão
obrigatória e o quanto isso é frontalmente contrário à presunção de inocência,1296 deve-se
ter tal dispositivo como tacitamente revogado,1297 notadamente após a nova redação
conferida, pelo legislador reformista de 2008, para o parágrafo único do art. 387 e o § 3º
do art. 413, já referidos e adiante analisados.

1296 Sobre prisão provisória obrigatória como dado revelador das bases
autoritárias empreendidas pelo legislador de 1941 no nosso sistema
processual penal e as suas conseqüências até nossos dias, v. item
2.5.2.2 supra. Sobre a excepcionalidade da prisão provisória, v. item
5.4.1.2.1.1 e sobre a liberdade no curso da ação penal ser a regra
estabelecida pela atual Constituição, enquanto a prisão é a exceção, v.
item 5.3.2.2 supra.
1297 Sobre a revogação tácita desse inciso, último remanescente originário

daquela já superada visão fascista do sistema processual, v. José


Barcelos de SOUZA, CNJ avança sinal e atropela a Lei, in jornal O sino
do Samuel, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas
Gerais, nº 90, set./out. 2006, p. 6.
Toda a legislação especial acima citada foi elaborada sob a vigência dos ora
revogados art. 5941298 e art. 408 e seu parágrafo 2º,1299 cuja literalidade dos textos
normativos estampava o inverso do determinado na Constituição de 1988. Daqueles
dispositivos, sob o influxo da mentalidade autoritária do lei processual, extraia-se que
toda pessoa condenada em sentença recorrível ou pronunciada deveria ser, em regra,
recolhida à prisão para recorrer ou para ser submetida ao Tribunal do Júri, a menos que
fosse reconhecida judicialmente primária e de bons antecedentes. Prova que essa
inconstitucional redação da lei processual e a cultura jurídica por ela formada foram a
fonte de algumas legislações especiais é a redação do art. 27, § 2º, da Lei 8.038/90 e do
art. 59, da Lei 11.343 de 2006 (Lei de Drogas). Nesse último artigo, tal qual seus
precursores codificados, está estabelecido que para os condenados provisoriamente pelos
crimes nele previstos, a regra é a prisão, salvo se reconhecidos pelo juiz como primários e
de bons antecedentes.
Como já tivemos a oportunidade de explicitar,1300 viola a presunção de inocência a
aplicação desse dispositivo da Lei de Drogas pela jurisprudência que, além de aplicar
dispositivo inconstitucional, porquanto elaborado sem justificação constitucional e sem
proporcionalidade, ainda lhe aumenta o caráter violador ao negar, mesmo a primários e
sem antecedentes criminais, o direito de permanecer solto após a sentença condenatória
recorrível.

1298 Assim estava redigido o art. 594, antes de sua revogação: “O réu não
poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for
primário e de bons antecedente, assim reconhecido em sentença
condenatória, ou condenado por crime de que se livra solto”. Necessário
esclarecer que essa redação de referido artigo, não obstante bastante
dura e violadora em face da Constituição de 1988, já foi fruto de uma
mitigação legislativa em seu texto original por força da Lei 5.941/1973.
Antes dessa alteração, sua redação original mostrava toda sua afinidade
com o sistema de prisão provisória obrigatória do Código de 1941 e com
o já citado inciso I, do art. 393. Assim era a redação original do art. 594:
“O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança,
salvo se condenado por crime que se livra solto”. Como se vê, a
alteração de 1973 arrefeceu o dispositivo, sem contudo torná-lo
compatível com a presunção de inocência após a vigência da
Constituição da República de 1988.
1299 Sucedeu com o art. 408, que tratava da pronúncia e da prisão dela

decorrente, algo similar ao ocorrido com o art. 594. O legislador de 1941,


inicialmente, fixou a necessidade de prisão obrigatória de todo o
pronunciado, mas, a partir de 1973, por força da mesma Lei 5.941, foi-
lhe inserido um parágrafo 2º, com a seguinte redação: “Se o réu for
primário e de bons antecedentes, poderá o juiz deixar de decretar-lhe a
prisão ou revogá-la, caso já se encontre preso”.
1300 Sobre esse ponto, v. item 4.4.3 supra, em especial nota 89.
Já o § 2º do art. 27 da Lei 8.038/90, referente à não previsão de efeito suspensivo às
decisões condenatórias passíveis de recurso extraordinário ou de recurso especial, afronta
à presunção de inocência por outra perspectiva: o legislador ordinário desconsiderou
“cláusula restritiva expressa” (“até o trânsito em julgado”) estabelecida pelo Constituinte
para a presunção de inocência.1301
Ao tratar, na mesma lei, de recuso extraordinário e de recurso especial tanto para a
área penal quanto para a área não-penal o legislador ordinário errou ao aceitar que a
decisão recorrível, a despeito de ter sido expedida por Tribunal, equivaleria à certeza
exigida constitucionalmente e apenas atingível, por força de texto constitucional
expresso, após o trânsito em julgado da decisão condenatória. Por mais certeza que o
Tribunal prolator daquela decisão possua quanto à materialidade e autoria da infração,
essa certeza ainda não é a última palavra do Judiciário, ou seja, o devido processo legal
não a tem como firme o suficiente para atender à cláusula jusfundamental.
Do mesmo modo que a certeza da autoridade policial pode não ser suficiente
segundo o critério do Ministério Público e, nessa esteira, a certeza externada por este
órgão acusador, na sua peça de denúncia, será diversa da convicção judicial que a rejeite,
assim também a convicção do juízo a quo pode não ser confirmada pelo Tribunal ad
quem e a deste, por sua vez, não ser aquela definida, ao final, pelo Supremo Tribunal
Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça. O constituinte, cônscio de todo esse iter
procedimental para a definição firme do julgado penal, definiu de modo claro e expresso
que apenas ao final de todo esse trâmite cessa a presunção de inocência como norma de
tratamento e a pena (definitiva) poderá ser imposta.
A questão, portanto, neste ponto, não é de “alta probabilidade”, ou até mesmo
“certeza” que o órgão a quo (Tribunal estadual ou regional) possa ter atingido. O que
importa é perceber que essa decisão recorrível é apenas uma fase, conforme as regras do
devido processo legal. Ainda não é a decisão suficiente ou eficaz para pôr termo à
persecução penal.
Nesses termos, a presunção de inocência é violada na medida em que se desrespeita
a cláusula restritiva que o constituinte expressamente estabeleceu (“até o trânsito em
julgado da sentença penal condenatória”). Essa cláusula nasceu da intersecção entre a
presunção de inocência, o devido processo legal e a dignidade da pessoa humana. Por ela
se define o trânsito em julgado da decisão condenatória como marco constitucional que
separa o até então inocente do doravante condenado. Necessário compreender, portanto,
que os citados § 2º do art. 27 da Lei 8.038/90 e o art. 59 da Lei 11.343/09 preceituam real
e indisfarçável antecipação de pena, desrespeitando, simultaneamente, a justificação
constitucional daqueles três direitos contida na referida “cláusula restritiva” (“até o
trânsito em julgado”).

1301Sobre serem as cláusulas restritivas formas de limitação das normas-


princípios desde que respeitadas as balizas constitucionais, v. item
4.4.3.1.2 supra.
Os já citados dispositivos legais da Lei de Crimes Hediondos (art. 2º, § 3º) e da Lei de
Lavagem de Capitais (art. 3º, segunda parte), por sua vez, foram redigidos com outro viés.
Não prescrevendo uma prisão provisória como regra, excepcionada apenas em uma gama
pequena de hipóteses, determinam que caberá ao julgador, fundamentadamente, em face
de cada caso concreto, decidir se o condenado provisório deverá permanecer no cárcere
ou ser preso, se, neste último caso, até então respondia solto à ação penal. Essas previsões
legais, diferentemente daquela ainda constante na Lei de Drogas, não sofrem de
inconstitucionalidade por violação à norma constitucional de “reserva de jurisdição”. Isto
porque, sua redação não veda ao juiz da causa decidir segundo as condições fáticas e
jurídicas do caso concreto, obrigando-o a ponderar valores e a justificar suas escolhas de
modo claro para cada causa penal e em face de cada imputado.
Esses dispositivos também não violam a presunção de inocência, ao menos no plano
abstrato da norma, uma vez que sua redação não indica que a prisão provisória deva ser a
regra e a liberdade individual a exceção. Se os dispositivos são interpretados assim por
alguns julgadores isso se deve a uma mentalidade autoritária por eles adquirida
(consciente ou inconscientemente) da cultura juspolítica forjada desde 1941 por nosso
ainda vigente Código de Processo Penal. Contudo, esse equívoco jurisprudencial e
doutrinário, cujas argumentações serão analisadas no próximo subitem, nada tem a ver
com o texto normativo desses dois dispositivos redigidos pelo legislador.
Assim, quanto a esses dois últimos dispositivos citados, poderá haver
inconstitucionalidade por afronta à presunção de inocência no instante da aplicação
casuística da norma pelo julgador se, não atento ao âmbito de proteção daquele princípio
constitucional, aplicá-los sem justificação constitucional e sem proporcionalidade em
face das condições fáticas e jurídicas do caso concreto.
A reforma do Código de Processo Penal levada a cabo em meados de 2008 fez com
que surgisse um novo alento no tema jurídico das prisões derivadas de decisões judiciais
recorríveis. O legislador reformista deixou claro, ao redigir o parágrafo único do art. 387
(referente ás prisões em decorrência de sentença condenatória impugnável) e o § 3º do
art. 413 (sobre prisão provisória derivada de pronúncia), que essas prisões deverão ter
como critério legitimador os pressupostos, os requisitos e a finalidade estipulados para a
prisão preventiva (art. 312, CPP).1302

1302Após a reforma processual penal de 2008 a doutrina que já se debruçou


sobre o tema tem reconhecido a inegável guinada legislativa em favor da
finalidade cautelar dessa espécie de prisão provisória. Mesmo autores
antes adeptos de argumentos e justificações de natureza material para a
sua determinação têm alterado esse posicionamento, não sem algumas
ressalvas, é necessário se observar. A mudança de referencial
empreendida pela reforma de 2008 foi tão significativa que Gustavo
Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Direito intertemporal, in Maria Thereza
Rocha de Assis MOURA (coord.), As reformas no processo penal: as
novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 44, chega a afirmar que a prisão decorrente de
decisão judicial recorrível terminou, remanescendo apenas a prisão por
A nova redação desses dispositivos, após quase 20 anos da edição da atual
Constituição, aponta, enfim, para o melhor caminho de compatibilização entre
presunção de inocência e prisão provisória, qual seja, que esta não seja a regra, mas a
exceção, e que sua determinação casuística e fundamentada tenha como base empírica as
condições fáticas da causa penal e do imputado a ela submetido.1303 Nesses termos, a nova

razões eminentemente cautelares e cujo referencial é a prisão


preventiva, prevista no art. 312, CPP. Reconhecendo que a prisão
decorrente de sentença condenatória recorrível agora se rege pelos
critérios e dispositivo da prisão preventiva, v.: Leandro Galluzi dos
SANTOS, Procedimentos – Lei 11.719, de 20.06.2008, in Maria Thereza
Rocha de Assis MOURA (coord.), As reformas no processo penal: as
novas Leis de 2008 e os Projetos de Reforma, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2008, p. 316; Marcellus Polastri LIMA, A prisão decorrente da
condenação recorrível, a Constituição de 1988 e a reforma do processo
penal, in Marcellus Polastri LIMA e Nestor Eduardo Araruna SANTIAGO
(coords.), A renovação processual penal após a Constituição ode 1988 –
Estudos em homenagem ao Professor José Barcelos de Souza, Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. 188/191; Aury LOPES JR., Direito cit.,
vol. II, pp. 127/132; Guilherme de Souza NUCCI, Código de processo
penal comentado, 9ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, pp.
701/702; Antonio SCARANCE FERNANDES, A prisão e a liberdade em
20 anos de Constituição, in Fernando Dias Menezes de ALMEIDA, 20
anos de Constituição, Revista do Advogado, São Paulo: Associação dos
Advogados de São Paulo, ano XXVIII, nº 99, set./08, p. 24; e Vicente
GRECO FILHO, Manual de processo penal, 7ª ed., São Paulo: Saraiva,
2009, p. 265. Reconhecendo que a prisão provisória derivada de
pronúncia agora também se rege pelos critérios da prisão preventiva, v.:
Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Tribunal cit., pp. 82/83;
Marcellus Polastri LIMA, A prisão cit., pp. 192/193; Aury LOPES JR.,
Direito cit., vol. II, pp. 132/133; Guilherme de Souza NUCCI, Código cit.,
9ª ed., p. 758; idem, Tribunal cit., pp. 77/78; Antonio SCARANCE
FERNANDES, A prisão e a liberdade cit., p. 24; Vicente GRECO FILHO,
Manual cit., 7ª ed., pp. 264/265; Aramis NASSIF, O novo júri brasileiro,
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 61; Fernando da Costa
TOURINHO FILHO, Código de processo penal comentado, 12ª ed.
revista e atualizada, São Paulo: Saraiva, 2009, vol. 2, pp. 65/67; Fauzi
Hassan CHOUKR, Júri cit., pp. 105/106; e Antônio Alberto MACHADO,
Curso cit., pp. 195/196.
1303 Nesse exato sentido vem o Anteprojeto de Reforma do Código de

Processo Penal. Para a prisão decorrente de sentença condenatória


recorrível, assim prevê o Anteprojeto: “Art. 412. O juiz, ao proferir a
sentença condenatória: (...) Parágrafo único. O juiz decidirá,
fundamentadamente, sobre a manutenção ou, se for o caso, imposição
de prisão preventiva ou de outra medida cautelar, sem prejuízo do
conhecimento da apelação que vier a ser interposta”. Para a prisão
determinação legal aponta para uma finalidade primordialmente cautelar/processual da
prisão provisória decorrente de decisão recorrível e, apenas residualmente e em casos
excepcionais, possível haver justificação material para sua determinação. Mas, como já
foi desenvolvido neste trabalho, tal incidência residual carece de uma nova
regulamentação limitadora e de uma nova mentalidade interpretativa da ainda hoje mal
compreendida e aplicada expressão “garantia da ordem pública”.1304
Como se pode perceber a regulamentação da prisão provisória decorrente de
sentença condenatória recorrível e de decisão de pronúncia vem sofrendo evoluções e
involuções desde sua inserção pelo Código Processual Penal de 1941 até nossos dias.
Contudo, percebe-se um novo alento constitucional após a reforma de 2008 e que deve
marcar doravante as novas interpretações e aplicações de todos os dispositivos legais
(codificados e de legislação especial).1305

5.4.2.1.3.1. -(segue): linhas argumentativas violadoras da presunção de


inocência

Não obstante a nova diretriz constitucional implementada pela reforma processual


penal de 2008, para que não haja uma manutenção de velhos hábitos inconstitucionais e
a perpetuação da cultura do comodismo intelectual, é necessário refutar-se cada
argumentação desenvolvida até essa alteração legal a fim de expungir as bases teóricas
que ainda justificam violadoras aplicações cotidianas de dispositivos legais em desacordo
com a presunção de inocência no tema de prisão provisória decorrente de decisão
recorrível.

decorrente de pronúncia, assim prevê o Anteprojeto: “Art. 315. (...) § 2º.


O juiz decidirá, motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou
substituição da prisão preventiva ou de quaisquer outras medidas
cautelares anteriormente decretadas, e, tratando-se de acusado solto,
sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer
das medidas previstas no Título II, do Livro IIII”.
1304 A prisão preventiva, espécie do gênero “medidas coativas”, já foi por

nós analisada em face da presunção de inocência no item 5.4.1.2 e seus


subitens supra. Nesse item e seus subitens não apenas criticou-se o
sistema vigente, como também fixou-se critérios e formas de se construir
um novo sistema de medidas coativas afeito aos ditames constitucionais
e, principalmente, compatível com o princípio da presunção de inocência.
1305 Sugerindo a extensão do entendimento cautelar instituído pela reforma

de 2008 para as decisões condenatórias dos Tribunais sujeitas a recurso


extraordinário ou a recurso especial, evitando-se com isso a malsinada
“execução provisória da pena”, v. José Barcelos de SOUZA, A prática do
princípio da não-culpabilidade, Caderno “Direito e Justiça”, jornal Estado
de Minas, 27 de outubro de 2008.
A violação consiste em que, por linhas argumentativas diversas e desenvolvidas
antes da reforma de 2008, ainda hoje ocorre verdadeira e inarredável antecipação de
pena para antes do “trânsito em julgado” da decisão condenatória.1306 Ocorre, porém, que
sem qualquer justificação constitucional,1307 conforme adiante se verá, descumprem o
texto expresso da norma fundamental, a qual, de modo claro, fixou o “trânsito em
julgado” como limite fático-temporal a partir do qual, e somente a partir do qual,
eventual pena de prisão pode ser aplicada.1308

1306 Não cabe aqui aceder a eventuais eufemismos, dizendo-se que o preso
provisório tem tratamento diverso do preso definitivo. Isto porque, diante
do sistema carcerário nacional, não há qualquer distinção material
quanto à forma de tratamento e ao respeito daqueles dois “tipos” de
presos. Além do que, a prisão (a título provisório ou a título definitivo),
conforme já destacado em vários pontos do trabalho (por todos, v. item
5.3.2 supra), permite a restrição de uma plêiade de outros direitos
fundamentais que também são atingidos de forma total ou parcial. No
sentido de que a prisão do condenado provisório, em decorrência do já
lembrado (e em bom tempo revogado) art. 594 do Código de Processo
Penal, “não significa considerá-lo culpado antes do trânsito em julgado
da sentença condenatória”, v. Julio Fabbrini MIRABETE, Processo cit., p.
649. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., p. 436, posicionando-se conforme o
trabalho, assevera, em vernáculo: “A presunção de inocência não admite
que as pessoas embora não condenadas por sentença definitiva sejam
encarceradas, pois – qualquer que seja o discurso com que se pretenda
justificar esse encarceramento anterior à sentença ou o nome que se lhe
dê – ele supõe tratá-las como culpadas, já que a prisão preventiva
sempre tem um conteúdo nitidamente punitivo”. Concluindo mais
adiante: “Embora ordenada por um juiz, ‘em razão de seus pressupostos,
de suas modalidades e das dimensões que adquiriu, ela se converteu no
signo mais visível da crise da jurisdicionalidade, da administrativização
tendencial do processo penal e, sobretudo, de sua degeneração em
mecanismo diretamente punitivo’, é dizer, em ‘uma pena antecipada e/ou
preventiva no curso do processo”.
1307 Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 449/450, informa que também os

Tribunais Constitucionais espanhol e alemão entendem incompatível


com a presunção de inocência qualquer forma de execução provisória da
pena, antecipando-se punição sem decisão ainda definitiva. Com relação
à necessidade de justificação constitucional a toda intervenção estatal,
para que possa ser considerada legítima tanto no plano legislativo
(abstrato da norma), quanto no judicial (concretização da norma), v. item
4.5.1.1 supra.
1308 Nesse sentido, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO,

Processo cit., pp. 157/160, entende que todas as espécies de prisões


analisadas neste item são inconstitucionais, uma vez que sua natureza
jurídica nada tem de relação com cautelaridade processual, sendo
verdadeiras antecipações de pena ou execuções provisórias. Rogério
Como parte significativa e respeitável da doutrina e da jurisprudência defendia a
constitucionalidade da prisão provisória decorrente de decisão judicial recorrível nos
termos em que ela existia antes da reforma de 2008, é necessário analisar de modo
individualizado cada um dos argumentos até então existentes para, refutando a todos,
não se dizer que entre mudanças e diferenças tudo ficou como dantes.1309
Os argumentos eram diversos, mas podem ser reunidos em quatro grupos. O
primeiro baseava suas idéias na possibilidade de execução provisória de decisão penal
condenatória recorrível.1310 O segundo grupo entendia que a persecução penal precisa ter
seu resultado garantido e, portanto, a partir da prolação de uma decisão de mérito
(condenatória), mesmo que ainda recorrível, já se tem legitimidade suficiente para se
assegurar a punição. O terceiro grupo, por sua vez, quase uma decorrência do anterior,
afirma que uma decisão de mérito (condenatória) já confere um alto grau de
probabilidade da culpa do imputado, quase uma certeza de sua culpabilidade, justificando
nisso a possibilidade de aplicação antecipada de uma (muito provável) pena.1311 Por fim, o
quarto grupo, muito próximo aos dois anteriores, defendia a prisão provisória baseado no
argumento de que uma pessoa condenada, notadamente com pena alta, teria mais
propensão a fugir e, com isso, traria riscos para a sociedade e à proficuidade do
processo.1312

Lauria TUCCI, Direitos cit., pp. 382/385, bem diferencia no gênero


“prisão provisória” duas espécies: “prisões tipicamente cautelares” e
“prisões vinculadas a ato processual”. Fazem parte deste último grupo as
prisões tratadas neste item, nas quais se entende haver
inconstitucionalidade por violação da presunção de inocência (op. cit.,
itens 17.2 e 17.3). Nesse sentido, v. Luiz Flávio GOMES, Direito de
apelar em liberdade, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, pp. 36/41.
Defendem a compatibilidade de referidos dispositivos com a presunção
de inocência apenas e tão-somente se houver justificativa cautelar para
a determinação da prisão e desde que não seja impeditiva do livre
exercício ao recurso: Antonio SCARANCE FERNANDES, Processo cit.,
pp. 342/346; Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio MAGALHÃES GOMES
FILHO, Antonio SCARANCE FERNANDES, Recursos no processo
penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie, ações de
impugnação, reclamação aos tribunais, 4ª ed., São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005, item 88; e Alberto Silva FRANCO, Crimes cit., pp.
495/499.
1309 Assim, necessário se ressalvar com ênfase que todos os
argumentos, as obras e os julgados doravante citados neste item têm
como realidade legal o período pré-reformista de 2008.
1310 Essa linha de argumentação é defendida por Afrânio Silva JARDIM,
Direito processual penal, 11ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2005, cap. 17
notadamente itens 2, 4 e 5. Na esteira desse autor, com pequenas
variações argumentativas, v. Paulo RANGEL, Direito cit., item 9.5. Em
sentido contrário à possibilidade de execução provisória da pena, após a
entrada em vigor da atual Lei de Execução penal (Lei 7.210/84) e da
Nenhum dos argumentos expostos acima parecem aptos a reverter a clareza do
dispositivo constitucional, que determina o trânsito em julgado como marco impositivo
para impedir a antecipação dos efeitos da “condenação provisória”. Todavia, devem se
acrescentar algumas pontuações necessárias para se evidenciar a falta de justificação
constitucional de cada linha argumentativa acima indicada.
O primeiro grupo, que defende a execução provisória da sentença condenatória
recorrível, carece de fundamento legal, tanto em nível ordinário quanto em nível
constitucional. Isto porque, após a edição da Lei 7.210/84 (atual Lei de Execução Penal),
está vedada qualquer forma de execução provisória da pena, uma vez que, no art. 105
dessa legislação, estabeleceu-se que a pena privativa de liberdade somente será aplicada
“transitando em julgado a sentença”, expedindo-se então “guia de recolhimento para a
execução”.1313

inscrição constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inciso LVII),


v. Fernando da Costa TOURINHO FILHO, Processo penal, 25ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2003, v. 4, pp. 287/288.
1311 Fábio Ramazzini BECHARA, Prisão cit., p. 150/151, defende uma

posição que combina a segunda e a terceira correntes citadas. Partindo


da idéia de “verossimilhança do direito”, reconhecida na decisão
condenatória, busca garantir a efetividade da persecução penal e, por
isso, entende que essa prisão tem perfil cautelar. Busca dar finalidade
também cautelar à prisão decorrente de decisão de pronúncia, sob o
argumento de que assegura “a presença do réu no julgamento em
plenário”.
1312 Nesse sentido, vinham Guilherme de Souza NUCCI, Código cit., 5ª ed.,

p. 954, para a prisão por sentença condenatória recorrível (art. 594,


CPP), e op.cit., p. 716, para a prisão provisória decorrente de decisão de
pronúncia (art. 408, § 1º, CPP). Damásio E. de JESUS, Código cit., 21ª
ed., p. 335, defendia a prisão provisória para a decisão de pronúncia
com base na gravidade dos crimes de competência do Tribunal do Júri,
não entendendo revogado pela presunção de inocência o § 1º do art.
408 do Código de Processo Penal.
1313 Nesse sentido, aplicando o acima disposto ao tema da ausência de

efeito suspensivo nos recursos extraordinário e especial, v. Ada


Pellegrini GRINOVER, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio
SCARANCE FERNANDES, Recursos cit., item 199.
A argumentação favorável à “execução provisória da pena”, baseada no inciso I do
artigo 393 (tacitamente revogado) e no então vigente artigo 594, ambos do Código de
Processo Penal, justificava-se apenas enquanto ainda vigia o inciso I do artigo 669 do
mesmo diploma legal, uma vez que permitia essa forma precária de execução da pena.
Contudo, com a revogação deste último dispositivo pela atual Lei de Execução Penal, a
tese da execução provisória não encontra mais amparo em lei ordinária e se coloca
frontalmente contrária aos expressos termos da norma constitucional da presunção de
inocência.1314

1314Quanto à revogação do art. 637 do Código de Processo Penal, que trata


da inexistência de efeito suspensivo para o recurso extraordinário, o
Supremo Tribunal Federal já se manifestou no sentido de que o
dispositivo foi revogado pela atual Lei de Execução Penal (7.120/84).
Como decorrência dessa constatação e por influxo constitucional do
princípio da presunção de inocência, na linha do exposto no texto
principal, está revogada qualquer forma de execução provisória da pena
em nosso ordenamento jurídico. Nesses termos, vem expressa a
manifestação do Ministro Eros Grau em seu voto lançado no HC
84.078/MG, nos seguintes termos: “(...) 5. O artigo 637 do Código de
Processo Penal - decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1.941
estabelece que ‘(o) recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e
uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais
baixarão à primeira instância para a execução da sentença’. 6. A Lei de
Execução Penal - Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1.984 condicionou a
execução da pena privativa de liberdade ao trânsito em julgado da
sentença condenatória (artigo 105), ocorrendo o mesmo com a execução
da pena restritiva de direitos (artigo 147). Dispõe ainda, em seu artigo
164, que a certidão da sentença condenatória com trânsito em julgado
valerá como título executivo judicial. 7. A Constituição do Brasil de 1988
definiu, em seu artigo 5º, inciso LVII, que ‘ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória’. 8.
Daí a conclusão de que os preceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84,
além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se,
temporal e materialmente, ao disposto no artigo 637 do CPP (...)”.
Afirmando mais adiante: “(...) 16. O modelo de execução penal
consagrado na reforma penal de 1.984 confere concreção ao chamado
princípio da presunção de inocência, admitindo o cumprimento da pena
apenas após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A
Constituição de 1.988 dispõe regra expressa sobre esta matéria. Aqui,
como observou o Ministro Cezar Peluso em voto na Reclamação 2.311,
não é relevante indagarmos se a Constituição consagra, ou não,
presunção de inocência. O que conta, diz ainda o Ministro Cezar Peluso,
é o ‘enunciado normativo de garantia contra a possibilidade de a lei ou
decisão judicial impor ao réu, antes do trânsito em julgado de sentença
penal condenatória, qualquer sanção ou conseqüência jurídica gravosa
que dependa dessa condição constitucional, ou seja, do trânsito em
O argumento da execução provisória também não prospera, ao utilizar como base as
súmulas 716 e 717 do Supremo Tribunal Federal.1315 Nenhuma dessas súmulas trata de
“execução provisória de pena”, seja em sua literalidade, seja em seu conteúdo. Quanto à
literalidade, o tema não exige maiores explicações, uma vez que não poderia ser utilizado
instituto jurídico vedado em lei ordinária e na Constituição; o texto é claro e não usa o
termo “execução provisória”.1316 Quanto ao conteúdo de referidas súmulas, é de se notar

julgado da sentença condenatória’ (...)”. No sentido da


inconstitucionalidade da execução provisória, foi categórico o Ministro
Cezar PELUSO, Garantias cit., in verbis: “Mas o mais grave é que o
princípio constitucional não admite a execução provisória da pena nem a
chamada tutela ou antecipação de pena, que, na verdade, é um modo de
transpor para o processo penal, em termos de qualificação, aquilo que se
conhece no processo civil como tutela antecipada”.
1315 Súmula 716 do STF: “Admite-se a progressão de regime de

cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo


nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença
condenatória”. Súmula 717 do STF: “Não impede a progressão de
regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em
julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial”.
1316 O Supremo Tribunal Federal já de há muito assentou a impossibilidade

de execução provisória de decisão condenatória a pena restritiva de


direito. Nesse sentido, veja-se outro trecho do voto do Min. Eros Grau já
oferecido no HC 84.078/MG:: “(...) 9. No que concerne à pena restritiva
de direitos, ambas as Turmas desta Corte vêm interpretando o artigo 147
da Lei de Execução Penal à luz do texto constitucional, com o que
afastam a possibilidade de execução da sentença sem que se dê o seu
trânsito em julgado. Vejam-se as seguintes ementas: ‘Ação Penal.
Sentença condenatória. Pena privativa de liberdade. Substituição por
pena restritiva de direito. Decisão impugnada mediante agravo de
instrumento, pendente de julgamento. Execução provisória.
Inadmissibilidade. Ilegalidade caracterizada. Ofensa ao art. 5º, LVII, da
CF e ao art. 147 da LEP. HC deferido. Precedentes. Pena restritiva de
direitos só pode ser executada após o trânsito em julgado da sentença
que a impôs’ (HC n. 88.413, 1ª Turma, Cezar Peluso, DJ de 9/6/2006).
(...) ‘Ementa habeas corpus - Penas restritivas de direitos -
Impossibilidade de sua execução definitiva antes do trânsito em julgado
da sentença penal condenatória - Pedido indeferido. - As penas
privativas de direitos somente podem sofrer execução definitiva, não se
legitimando, quanto a elas, a possibilidade de execução provisória, eis
que tais sanções penais alternativas dependem, para efeito de sua
efetivação, do trânsito em julgado da sentença que as aplicou. Lei de
Execução Penal (art. 147). Precedente’ (HC n. 84.859, 2ª Turma, Celso
de Mello, DJ de 14/12/2004). No mesmo sentido, os HHCC 84.587, 1ª
Turma, Marco Aurélio, DJ de 19/11/2004; 84.677, 1ª Turma, Eros Grau,
Rel. p/ o acórdão Cezar Peluso, DJ de 8/4/2005; 84.741, 1ª Turma,
que ambas atendem à exigência constitucional da proporcionalidade aplicada à prisão
provisória, ou seja, encontrando-se o imputado preso de modo provisório, não se pode
negar-lhe a revisão constante dessa medida coativa, devendo conceder-lhe a
possibilidade de mudar de regime ou progredir para estágios menos severos de
encarceramento em face da pena atribuída na decisão condenatória recorrível ou da pena
prevista em abstrato.1317

Sepúlveda Pertence, DJ de 18/2/2005; 85.289, 1ª Turma, Sepúlveda


Pertence, DJ de 11/3/2005 e o 88.741, 2ª Turma, Eros Grau, DJ de
4/8/2006 (...)”. Dessa forma, não pode ser diferente o entendimento
quando se tratar de execução provisória da pena privativa de liberdade,
sob pena da infringência do princípio da igualdade, como bem apontado
pelo Ministro Eros Grau em outro trecho do mesmo voto: “(...) 11. Ora, se
é vedada a execução da pena restritiva de direito antes do trânsito em
julgado da sentença, com maior razão há de ser coibida a execução da
pena privativa de liberdade - indubitavelmente mais grave - enquanto
não sobrevier título condenatório definitivo. Entendimento diverso
importaria franca afronta ao disposto no artigo 5º, inciso LVII da
Constituição, além de implicar a aplicação de tratamento desigual a
situações iguais, o que acarreta violação do princípio da isonomia. Note-
se bem que é à isonomia na aplicação do direito, a expressão originária
da isonomia, que me refiro. É inadmissível que esta Corte aplique o
direito de modo desigual a situações paralelas (...)”. Na linha desse
julgado ainda se pode ver, rejeitando-se expressamente a “execução
provisória da pena”, a decisão paradigmática do HC 91.676-7/RJ, rel.
Ministro Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. 12.02.2009. Na mesma
esteira: HC 96.186-0/AC, 1ª Turma, por unanimidade, rel. Ministro Marco
Aurélio, j. 31.03.2009; e, de relatoria do Ministro Eros Grau, o HC
94.408-6/MG, 2ª Turma, também por unanimidade, j. 10.02.2009.
1317 Nesse sentido, criticando com agudeza e pertinência a Resolução 19 do

Conselho Nacional de Justiça, v. José Barcelos de SOUZA, CNJ avança


sinal cit., pp. 6/7; e idem, Execução provisória de pena privativa de
liberdade, Revista Magister de Direito e Processo Penal, Porto Alegre, nº
19, item 11.
As súmulas não tratam ou autorizam a possibilidade de prisão por sentença
condenatória recorrível, tratam de prisão provisória em geral, decretada no curso do
processo e para a qual seria inconstitucional negar-se a incidência da proporcionalidade.
Não importando se a prisão é em flagrante delito ou preventiva, determina-se, pelos
preceitos sumulares, que a medida restritiva vá sendo adaptada conforme se transcorra o
tempo e tendo como parâmetro tanto a pena atribuída em abstrato no preceito
secundário do tipo penal quanto em eventual decisão condenatória recorrível já
proferida. Sempre que uma pessoa estiver presa provisoriamente, durante o tempo de sua
prisão é necessário verificar periodicamente a proporcionalidade da medida.1318
Tendo em vista a pena e o regime de cumprimento previstos em abstrato no tipo
penal, ou já atribuídos em decisão condenatória recorrível, o imputado terá o direito de
progredir de regime por aplicação da proporcionalidade, e não porque haja execução
provisória de pena ainda não definitiva. Não se trata de eufemismo ou opção semântica.
A presunção de inocência impede a punição antecipada e a execução provisória, mas não
impede a prisão provisória em caráter excepcional, proporcional e provisório. Assim, não
se poderá aplicar medida restritiva provisória que seja pior que a eventual medida
definitiva prevista em lei ou já estabelecida pelo Judiciário em decisão ainda não
definitiva. Em linguagem figurada, a proporcionalidade garante que o remédio não seja
pior que a doença.
A proporcionalidade impede que a medida restritiva provisória seja pior que a
medida eventualmente definitiva, não apenas no instante da sua determinação, mas
também no curso de seu cumprimento. Se uma medida inicialmente proporcional se
torna, com o decurso do tempo, desproporcional, precisa ser revista e adaptada pelo
Judiciário sob pena de tornar-se ilegal no curso de seu cumprimento.1319 É isso que ambas
as súmulas citadas garantem. Nunca poderiam legitimar situação de execução provisória
como forma de antecipação de pena, vedada pela norma constitucional da presunção de
inocência.

1318 Já se alertou para essa necessidade no item 5.4.1.2.1.5 supra. Nesse


sentido está o Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal,
notadamente na combinação de seus artigos 515 e 550.
1319 Nesse sentido é que se coloca o escólio de Ada Pellegrini GRINOVER,

Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio SCARANCE


FERNANDES, Recursos cit., p. 147: “Não se admite execução provisória
de sentença condenatória porque ninguém pode ser considerado
culpado antes de ela transitar em julgado (CF, art. 5.º, LVII). Nem por
isso, contudo, há de se impedir ao réu, em recurso exclusivo da defesa,
progredir de regime ou ser posto desde logo no regime mais favorável
fixado na sentença de vez que a Lei de Execução Penal se aplica ao
preso provisório (art. 2.º, parágrafo único, LEP). Entendimento contrário
levaria a que fosse o princípio da presunção de inocência utilizado contra
o acusado quando, pela sua própria essência, é norma de proteção
individual ”.
A segunda linha supra indicada apóia-se no argumento da demora no julgamento
dos recursos, o que leva à impunidade em alguns casos, p.ex., pela ocorrência da
prescrição. Duas observações devem ser feitas a partir desse argumento: a primeira é a
inegável demora no julgamento dos recursos e possível impunidade que disso pode advir;
a segunda é que a ineficiência do sistema não é culpa do cidadão recorrente ou da
Constituição.1320

1320 Aramis NASSIF, Sentença cit., p. 21, comentando a


inconstitucionalidade das execuções provisórias de pena por meio de
prisão antecipada, indica que o argumento “ad terrorem” de que a
demora do recurso pode gerar a impunidade não pode ser aceito uma
vez que o “indivíduo não pode ser punido pela ineficácia oficial”. Quanto
à supressão de garantias constitucionais em busca de uma “eficiência
processual”, com a qual se justifica a conveniência de executar
antecipadamente a pena, a posição do Ministro Eros Grau no HC
84.078/MG é contundente: “(...) 21. A antecipação da execução penal,
ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia
ser justificada em nome da conveniência dos magistrados - não do
processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os
tribunais (leia-se STJ e STF) serão inundados por recursos especiais e
recursos extraordinários, e subseqüentes embargos e agravos, além do
que ‘ninguém mais será preso’. Eis aí o que poderia ser apontado como
incitação à ‘jurisprudência defensiva’, que, no extremo, reduz a amplitude
ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor
operacionalidade de funcionamento desta Corte não pode ser lograda a
esse preço. 22. Uma observação ainda em relação ao argumento nos
termos do qual não se pode generalizar o entendimento de que só após
o trânsito em julgado se pode executar a pena. Isso - diz o argumento -
porque há casos específicos em que o réu recorre, em grau de recurso
especial ou extraordinário, sem qualquer base legal, em questão de há
muito preclusa, levantando nulidades inexistentes, sem indicar qualquer
prejuízo. Vale dizer, pleiteia uma nulidade inventada, apenas para
retardar o andamento da execução e alcançar a prescrição. Não há nada
que justifique o RE, mas ele consegue evitar a execução. Situações
como estas consubstanciariam um acinte e desrespeito ao Poder
Judiciário. Ademais, a prevalecer o entendimento que só se pode
executar a pena após o trânsito em julgado das decisões do RE e do
Resp, consagrar-se-á, em definitivo, a impunidade. Isso - eis o fecho de
ouro do argumento - porque os advogados usam e abusam de recursos
e de reiterados habeas corpus, ora pedindo a liberdade, ora a nulidade
da ação penal. Ora - digo eu agora - a prevalecerem essas razões contra
o texto da Constituição melhor será abandonarmos o recinto e sairmos
por aí, cada qual com o seu porrete, arrebentando a espinha e a cabeça
de quem nos contrariar. Cada qual com o seu porrete! Não recuso
significação ao argumento, mas ele não será relevante, no plano
normativo, anteriormente a uma possível reforma processual,
A partir dessas duas constatações, percebe-se uma grave falha técnica na utilização
dessa espécie de argumentação para se buscar a “eficiência do processo”.1321 Quando o
juiz decide buscar tal eficiência, reduzindo as garantias constitucionais – no caso, a
presunção de inocência – deixa de apontar as falhas do Legislativo e do Executivo em
cumprirem seu “dever estatal de proteção” e seu dever de “organização e procedimento”
para a efetivação dos direitos fundamentais.1322 Por outro lado, também erra perante o
sistema processual pois, ao invés de apontar suas falhas e os impositivos constitucionais
que impõem a sua mudança, preferem perpetuar um Código de Processo Penal
desatualizado, ineficiente, despreparado para as necessidades do mundo atual e,

evidentemente adequada ao que dispuser a Constituição. Antes disso,


se prevalecer, melhor recuperarmos nossos porretes... 23. Nas
democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem
essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais. São
pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmação
constitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social,
sem que sejam consideradas, em quaisquer circunstâncias, as
singularidades de cada infração penal, o que somente se pode apurar
plenamente quando transitada em julgado a condenação de cada qual
(...)”.
1321 Luigi KALB, La “ricostruzione” cit., pp. 165/172, expõe que, ao se

invocar o “mito” da eficiência do sistema processual penal, sempre se


contrapõem garantias processuais penais e consecução de um resultado
mais rápido. Destaca que na busca daquela eficiência não se costuma
considerar a quantidade de recursos materiais utilizados em relação aos
resultados conseguidos: “o juízo de eficácia representa a resultante da
relação intercorrente entre as finalidades programadas e os resultados
conseguidos, que, por sua vez, são verificados em relação aos recursos
disponíveis” (op. cit., p. 168). A proposta do autor, que está de acordo
com o presente trabalho, é que a eficácia de um sistema também
depende do nível de meios materiais nele inseridos para obtenção de
resultado. Tendo em vista as várias crises estruturais de falta de meios
nos vários níveis da Justiça brasileira, percebe-se que a supressão de
garantias não só está errada pela perspectiva constitucional, como
também é equivocada pela perspectiva funcional. Retirar garantias não
melhora o sistema em qualidade, tampouco diminui a demanda e o
trabalho, apenas permite que a atual legislação processual penal, pela
inerente formação político-repressiva, continue tendencialmente
condenatória.
1322 Sobre um estudo dos citados deveres como decorrências da

perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, v itens 3.8.2.2.2 e


3.8.2.2.3 supra. Sobre os interesses justificadores da presunção de
inocência serem coletivos e públicos, o que inclusive explica sua
inclusão dentre os princípios constitucionais, v. item 3.8.1.1 supra.
principalmente, desconforme à presunção de inocência e a vários outros preceitos
constitucionais.1323
A terceira linha de argumento antes apontada, que defende a prisão provisória
decorrente de decisão recorrível, afirma que ao se atingir essa decisão já se possui um alto
grau de probabilidade quanto à materialidade e autoria da infração, advindo do exame
judicial sobre todo o material probatório produzido até aquele instante. Sem ser expressa,
pugna por uma visão “gradualista” desse direito fundamental, como se, no decorrer da
instrução, ele progressivamente perdesse eficácia na medida em que o processo caminha
para a decisão final.1324
Essa visão “gradualista” da presunção de inocência não deixa de esconder um ranço
técnico-positivista da “presunção da culpa”, pois sob seu argumento está uma “certeza”
de que, ao final, a decisão de mérito será condenatória. Desconsiderando a importância
da cognição dos tribunais, “crê” que a análise do juízo a quo pela condenação prevalecerá
e, portanto, “enquanto se aguarda por um desfecho já esperado”, mantém-se a pessoa
presa “provisoriamente”. Quem assim pensa, notadamente no direito brasileiro,
desconsidera que no processo penal não há possibilidade de “julgamento antecipado da
lide” contra reum. Iniciada a ação penal, ela terá que chegar inexoravelmente ao seu final
para se condenar a alguém, o que se dá apenas após esgotada eventual fase recursal.
Assim, acreditar que ao se avançar na persecução (mesmo ao se atingir uma decisão
condenatória em primeiro grau) está-se mais próximo de uma condenação significa
trabalhar com a “presunção de culpa”, e não com a de inocência. Esse raciocínio era
empreendido pelos positivistas e pelos técnico-juristas do nazifascismo, com a diferença
que eles antecipavam essa “lógica gradualista” para o início da ação penal. Afirmavam, ao
tempo de um outro Estado de Direito: se ao final da fase de investigação já se tem
elementos suficientes para demonstrar a materialidade e a autoria da infração, a prisão no
início da fase judicial deverá ser obrigatória.1325 Na esteira desses influxos juspolíticos
elaborou-se a redação original do já revogado art. 312 do Código de Processo Penal
brasileiro, que instituía a prisão obrigatória.1326

1323 Sobre os direitos fundamentais pertencerem a todos e não servirem


como óbices ao processo penal em um Estado Democrático de Direito,
contra o qual muitos dos dispositivos do atual Código de Processo Penal
se põem, v. item 3.5.1.1 supra. Sobre a dignidade da pessoa humana ser
princípio fundamental da atual Constituição e, por isso, em alguns
aspectos, ser limitadora de um obstinado “eficientismo processual penal”,
v. item 3.5.2 supra. Sobre o “eficientismo” ser usado como argumento da
linha criminológica da “Lei e Ordem”, v. nota 373 infra.
1324 Conforme exposto por Eduardo Maia COSTA, A presunção cit., pp.

75/76, o Tribunal Constitucional português, em decisão AC. nº 1166/96,


analisando a prisão preventiva e a presunção de inocência rejeitou uma
visão “gradualista” desse direito fundamental.
1325 Para a crítica e decomposição desse raciocínio positivista, v. item 2.3 e

seus subitens supra. Para a exposição desse pensamento da Escola


Técnico-Jurídica, v. itens 2.4.3 e 2.4.4 supra. Para a desconstrução
Defender a visão “gradualista” da presunção de inocência para a fase da decisão
condenatória recorrível é repristinar esse pensamento fascista que rejeitava
expressamente a presunção de inocência. Em termos simples: é trabalhar fora do âmbito
constitucional, mas afinado com o perfil ideológico do Código Processual Penal de 1941.
É violar a presunção de inocência por falta de justificação constitucional.
Essa visão gradualista ainda sofre de uma outra falha técnica, qual seja, confundir os
pressupostos do “fumus delicti commissi” com os requisitos do “periculum libertatis”. É
dizer: ao se chegar a uma decisão condenatória, de primeiro ou segundo graus, o julgador
revela sua convicção sobre a materialidade e a autoria do crime julgado, ambos
correspondentes aos pressupostos do “fumus delicti commissi” definidos na última parte
do art. 312, CPP. Com o julgamento do mérito da ação penal não se decide nada quanto à
necessidade cautelar da prisão e que corresponde ao “periculum libertatis” e vem
representado pelos requisitos inseridos na primeira parte do citado artigo: garantia da
ordem pública, garantia da ordem economia, assegurar a aplicação da lei penal e por
conveniência da instrução criminal.
A visão gradualista lança todo o peso e fundamenta sua pseudo legitimidade
argumentativa no mérito da causa penal julgado pelo juízo, mas esquece que a matéria ali
examinada não atende ao “periculum libertatis” essencial para garantir
constitucionalidade à prisão provisória; máxime após a reforma processual de 2008.
Por fim, a quarta linha argumentativa favorável à antecipação de pena por meio de
prisão provisória justifica sua posição pelo aumento do risco de fuga da pessoa que já se
sabe condenada e que, portanto, coloca em perigo a sociedade e o resultado do processo.
O argumento da garantia do resultado do processo é utilizado na tentativa de oferecer
um matiz “processual/cautelar” para essa hipótese de prisão provisória.
Todavia, esta parece ser a tese mais fraca, pois nega não apenas a clara justificação
constitucional da presunção de inocência, como também vai de encontro com todo o
ocorrido até então na persecução, ou seja, o comparecimento do imputado a todos os atos
e a cada instante que sua presença foi solicitada. Isto porque, ou o condenado respondeu
solto a toda a persecução penal e, portanto, nunca demonstrou qualquer intenção de fuga
(por isso esteve solto por todo tempo), ou está preso no momento da decisão
condenatória e o prolator da decisão deverá justificar, notadamente após a reforma do
parágrafo único do art. 387, CPP, porque deverá continuar preso. Não há qualquer base
fática à suposição de que todo o condenado tenha a intenção de fugir. Pensar e decidir
assim é julgar frontal e claramente contra a presunção de inocência.

desses fundamentos técnico-jurídicos, v. item 2.4.7 e seus subitens


supra.
1326 Sobre o tema, v. específicas considerações nos itens 2.5.2.2 e 5.4.2.1

supra.
A “crença” de que com a decisão condenatória haveria a fuga (o que se pretende
evitar com a prisão) já vem desmentida ex ante, por todo o comportamento processual do
imputado que esteve solto no curso persecutório. Eventual periculum libertatis, nesses
casos, já se encontra afastado, ab initio, pelas reiteradas demonstrações de
comparecimento do imputado e, portanto, que não se furtou à persecução penal e nada
pode advir da decisão recorrível que afaste essa realidade. Haveria meras conjecturas
(para prender) em confronto a efetivas provas da sua submissão aos ditames legais e
processuais. A essa linha argumentativa falta justificação constitucional na medida em
que há presunção (de fuga) contrária ao “estado de inocência”. Esse “estado” impõe que a
prisão provisória seja excepcional, e para isso o “periculum libertatis” deve estar
devidamente comprovado, o que não ocorre uma vez que o argumento está fundado em
conjecturas.1327
Como se percebe, todas as quatro teses acima expostas e refutadas são favoráveis à
prisão provisória decorrente ato judicial recorrível por razões materiais e têm uma
inegável finalidade de antecipação de pena.
Não bastasse isso, o fato mais revelador de sua falta de justificação constitucional,
para servir sequer como restrição (intervenção estatal legítima) à presunção de inocência,
é que nenhuma delas se baseia em um ato efetivamente praticado pelo imputado
(condenado provisório ou pronunciado). Nascem da tão-só prolação de decisão judicial
recorrível. Sua finalidade em simplesmente antecipar a pena fica evidente quando se
percebe que a prisão decorre do indefectível encerramento de uma fase persecutória, não
guardando qualquer relação com o comportamento do imputado, seja em relação à
sociedade seja em relação à ação penal a que responde. Ele nada fez para merecer a prisão
nessa fase processual; ela advém pelo só fato de inevitavelmente se encerrar uma fase de
julgamento.
Como já se afirmou acima, não se nega a necessidade de que se tenha no sistema
processual penal a possibilidade de prender provisoriamente alguém.1328 Porém, a prisão
somente poderá ser decretada como uma decorrência direta do comportamento do
imputado no caso concreto. Não poderá advir de fatores estranhos aos fatos submetidos à
persecução, nem tampouco ter, como fundamento, a indefectível finalização de uma fase
processual.1329

1327 Sobre a importância do “periculum libertatis” na comprovação da


excepcionalidade necessária para a determinação de prisão provisória,
v. item 5.4.1.2.1.1 supra.
1328 Nesse sentido, v. item 5.4.1.2.1 e seus subitens supra.
1329 Conforme os requisitos indicados e que devem ser verificados de modo

cumulativo para legitimar a prisão provisória, faltaria, no caso, o requisito


temporal. Sobre o tema, v. item 5.4.1.2.1.4 supra.
Os quatro grupos de argumentos refutados representam a corporificação de uma
mentalidade juspolítica que precisa definitivamente ser superada, notadamente após as
reformas processuais penais de 2008 e da entrega do Anteprojeto de Reforma do Código
de Processo Penal pelo Senado Federal em 2009. Guardavam perfeita consonância com a
determinação de prisão preventiva obrigatória1330 e com o inciso I do art. 669. Contudo,
tendo em vista que aquele dispositivo da prisão preventiva conta com nova redação
desde 1967 e que este último artigo referente à execução provisória foi tacitamente
revogado pela atual Lei de Execução Penal desde 1984, não há mais sequer coerência
sistêmica para se manterem sem lastro legal infraconstitucional, que dirá quanto
confrontados com a norma constitucional da presunção de inocência.
Suas permanências no sistema jurídico brasileiro têm sido as matrizes culturais,
doutrinárias e jurisprudenciais para a edição de dispositivos semelhantes em legislação
especial. Se o sistema recursal está ultrapassado (e está), se os tribunais estão
sobrecarregados (e estão), se a demora nos julgamentos gera em certas situações a
impunidade (e gera), não há que se fazer concessões constitucionais, pois elas não
mudam o sistema, apenas o perpetuam. A mudança (se é que se quer empreender uma
mudança verdadeira) está em se parar com intervenções estatais ilegítimas. É necessário
se reconhecer que um novo sistema processual penal precisa ser elaborado conforme a
Constituição e às necessidades do mundo atual; não o contrário, ou seja, mudar-se a
Constituição e continuar com um sistema processual ultrapassado e em desconformidade
com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.1331
A solução do específico ponto tratado neste item parece passar pela reforma do
capítulo das medidas coativas, já antes exposto.1332 A prisão provisória deve ser a última
medida coativa possível em um sistema processual constitucionalmente conforme.
Portanto, para que haja justificação constitucional em sua decretação, ela jamais poderá
ter como fundamento um ato que não tenha sido praticado pelo imputado. Para que
tenha proporcionalidade, na hipótese do ato gerador da prisão ter sido diretamente
provocado por ele, deverá haver um rol de medidas menos invasivas que possam atender
às necessidades do caso concreto e, também, que ela seja passível de revisões constantes
para ser adaptada no decurso do tempo.

1330 Para comentários sobre a prisão obrigatória e toda a mentalidade


juspolítica que a influenciou, v. 2.5.2.2 supra, e as ressalvas iniciais com
que se abriu o item 5.4.1.2 supra, no qual se inserem os presentes
comentários.
1331 Sobre esse ponto dos compromissos brasileiros com a comunidade

internacional, v. item 3.3.2 supra.


1332 Sobre a proposta apresentada no presente trabalho, v. item 5.4.1.2.1 e

seus subitens supra.


Apenas para exemplificar, limitando-nos à tese acima exposta quanto ao temor da
fuga pela condenação, nada impede que o juízo fixe o comparecimento periódico do
condenado provisório na vara ou, ainda, que haja órgão público específico que faça, sem
aviso prévio, a verificação de sua permanência nos locais por ele declinados. A prisão
provisória seria, na maior parte das vezes, evitada.
Nessa linha vem acertado o entendimento pela impossibilidade de decretação de
prisão provisória apenas como decorrência da edição de uma decisão judicial recorrível.
Se há necessidade de se prender, ou ela já se manifestou (e a prisão ocorreu) ou deve ser
decretada em decorrência de ato praticado pelo imputado no curso da persecução, e não
porque tenha se findado uma fase inevitável de seu julgamento.
No contexto de todo o expendido veio, em feliz instante, a Súmula nº 347 do
Superior Tribunal de Justiça: “O conhecimento de recurso de apelação do réu independe
de sua prisão”. Como se extrai da própria justificativa para a sua edição: “a nova súmula
consolida o entendimento já adotado pelas Quinta e Sexta Turmas, que compõem a
Terceira Seção: o de que o réu que teve negado o direito de apelar em liberdade tenha de
ser recolhido à prisão para ter seu recurso de apelação processado e julgado”. Desse
modo, esvazia-se muito do que até então se afirmava da Súmula nº 9 desse mesmo
Tribunal1333 e que conferia uma natureza anômala a essa espécie de prisão provisória: ser
em verdade um impeditivo ao exercício do direito ao recurso.1334
Para se compreender tal esvaziamento é necessário notar que, pelo fato da Súmula
347 dirigir-se ao artigo 595 do Código de Processo Penal,1335 assentando posicionamento
já firme tanto desse Tribunal Superior quanto do Supremo Tribunal Federal,1336 tornou
inconstitucional se considerar a fuga do preso que apelou fato extintivo de seu direito de
recorrer.1337 Retirou-se, portanto, o efeito extintivo da fuga do preso após ter interposto
apelação. Assim, se a fuga deixou de ser fato extintivo, com muito mais razão o
recolhimento à prisão para recorrer não poderá mais ser tido como fato impeditivo desse
direito. Logo, a Súmula nº 9 perde seu conteúdo referente a uma implícita exigência do
recolhimento à prisão para processamento e admissão de seu recurso.1338

1333 Súmula 9 do STJ: “A exigência da prisão provisória, para apelar, não


ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”.
1334 Nesse sentido, v. Antônio SCARANCE FERNANDES, Funções cit., pp.

242/245.
1335 “Art. 595. Se o réu condenado fugir depois de haver apelado, será

declarada deserta a apelação”.


1336 Sobre essa identidade de posturas constitucionais de ambos Tribunais,

é expresso o Superior Tribunal de Justiça em sua justificação para a


referida Súmula 347: “Segundo o artigo 595 do Código de Processo
Penal, se o réu fugir depois de apelar da condenação, será declarada a
desistência da apelação. Para recorrer, ele precisaria estar preso. Mas o
Supremo Tribunal Federal decidiu que esse artigo viola as garantias
constitucionais da ampla defesa. O entendimento do STF vem sendo
adotado em diversos julgamentos no STJ. No habeas-corpus nº 78490,
por exemplo, a Quinta Turma decidiu, por unanimidade, pela
Nesse novo e atual contexto justifica-se ainda menos a prisão provisória derivada,
ipso facto, de decisão recorrível. A referida Súmula nº 9, portanto, deve ser interpretada
no sentido de que a prisão provisória poderá ser decretada em qualquer instante da
persecução penal (inclusive na prolação de decisão recorrível) desde que haja exame de
proporcionalidade e a demonstração objetiva de razões que a autorizem. Ela não é
medida restritiva automática e não poderá mais ser tida como fato impeditivo para
recorrer.

impossibilidade de se exigir o recolhimento do réu à prisão como


requisito de admissibilidade do seu recurso de apelação”.
1337 Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO,

Antonio SCARANCE FERNANDES, Recursos cit., p. 138, após


ressaltarem que o já tratado art. 594, CPP, viola a presunção de
inocência, indicam outros dispositivos constitucionais violados pelo
citado artigo e também pelo art. 595 do mesmo diploma: “As mesmas
críticas podem ser endereçadas ao art. 595, que determina seja
declarada deserta a apelação, caso o réu condenado, após ter recorrido,
venha a fugir. Aqui também, além de não se justificar a paralisação do
recurso no plano da cautelaridade processual, vislumbram-se idênticas
violações aos princípios constitucionais da igualdade processual, da
ampla defesa e do duplo grau de jurisdição”.
1338 Para esse entendimento, atualmente mitigado pelo advento da referida

Súmula nº 347, v. Julio Fabbrini MIRABETE, Processo cit., p. 649, in


verbis: “(...) A ordem de recolher-se o réu à prisão para possibilitar o
processamento do recurso não significa considerá-lo culpado antes do
trânsito em julgado da sentença condenatória. (...) É na lei processual
que se verifica quais as hipóteses em que a liberdade provisória pode
ser admitida, nada impedindo que se obrigue o condenado, na ausência
dos requisitos legais, a ser recolhido à prisão para aguardar o julgamento
de apelo, como uma das hipóteses de prisão provisória, semelhante à
prisão em flagrante, à prisão temporária e à prisão preventiva. A Carta
Magna permite a custódia por ordem da autoridade judiciária competente
e o artigo 594 não contempla interpretação extrema e nem aplicação
limitada quando prevê o recolhimento do réu condenado à prisão: é regra
procedimental condicionante do processamento da apelação, não foi
derrogada pelo artigo 5º, LVII, da CF de 1988, está fundamentada pela
sentença condenatória e não ofende a garantia constitucional de ampla
defesa. Dispõe, aliás, a Súmula nº 9 do Superior Tribunal de Justiça: ‘A
exigência da prisão provisória, para apelar, não ofende a garantia
constitucional da presunção de inocência’”.
As razões legitimadoras para prender provisoriamente, contudo, devem emergir de
atos ou comportamentos pelos quais o imputado demonstre efetivamente sua
insubordinação por ato praticado no curso da persecução, não devendo serem extraídas
do natural e esperado desenvolvimento processual. A leitura que se espera constitucional
da referida Súmula nº 9 é a seguinte: se no instante de proferir a decisão recorrível o juiz
demonstrar, com base em provas objetivas e constantes dos autos, a existência do
“periculum libertatis”, poderá determinar a prisão para recorrer, sem que isso seja tido
como violador da presunção de inocência.
Contudo, reafirme-se, como síntese de tudo o quanto se disse: o fato de o imputado
estar submetido a uma persecução penal não deve gerar, ipso facto, a necessidade da
prisão provisória. Prendê-lo sem que tenha dado motivo para tal e apenas porque se
atingiu certo estágio persecutório é o mesmo que repristinar a prisão obrigatória. A
prisão provisória não pode advir de atos processuais inevitáveis ou ser justificada com
base na gravidade do ato imputado inicialmente, pelo qual o acusado respondia solto.
Somente será legítima se decretada com base em novos atos praticados pelo imputado no
curso persecutório e desde que, pelo exame judicial da proporcionalidade, aquela medida
extrema se mostre justificada constitucionalmente no caso concreto.

5.4.2.2. Presunção de inocência como “norma probatória”

A doutrina espanhola, a partir de várias manifestações de seu Tribunal Supremo e


de seu Tribunal Constitucional, tem apontado que a presunção de inocência como
“norma probatória”, constitui-se na “pedra angular dos novos enfoques que se sucedem
nessa matéria”.1339
Aqueles tribunais, quando chamados a decidir sobre a admissibilidade de recurso de
cassação ou de recurso de amparo fundado no desrespeito ao preceito do “in dubio pro
reo”, foram forçados a se manifestar quanto ao tema da inter-relação entre esse preceito
tradicional e a presunção de inocência.1340 Desse debate jurisprudencial emergiram
decisões que a doutrina daquele país analisou com profundidade, identificando um
conteúdo específico e autônomo capaz de integrar este aspecto da presunção de
inocência (“norma probatória”) e que difere e independe do “in dubio pro reo” e, por
conseguinte, de sua manifestação como “norma de juízo”.

1339 Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 139. Nesse sentido, v.


Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución cit., p. 135.
1340 Sobre o tema da inter-relação entre o “in dubio pro reo” e a presunção

de inocência, v. item 5.4.1.3 supra.


A presunção de inocência como “norma probatória” já era aceita pela doutrina
italiana, porém nessa abordagem peninsular mais tradicional não lhe era dada uma
necessária autonomia, apta a permitir o início do seu exame de modo individualizado. As
diferenças entre “norma de juízo” e “norma probatória” eram sentidas, mas o estudo não
independente facilitava uma equivocada sinonímia entre presunção de inocência como
“norma de juízo”, “norma probatória” e “in dubio pro reo”.1341

1341Essa proximidade entre “norma probatória” e “norma de juízo” pode ser


vista em Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., pp. 91/93. Nessa
passagem, o autor inicia o item 6 do cap. III de sua obra, afirmando que
“a regra de juízo, em substância, indica qual seja o interesse material ao
qual se deve dar prevalência, predispondo-se dos critérios de máxima
para a solução de todo possível problema de acertamento. É natural que,
dadas essas características, a sua relevância seja verificada
principalmente em relação às decisões sobre fato incerto, quando na
conclusão das questões probatórias o juiz fique na dúvida sobre qual
reconstrução acreditar” – traduzimos. Este é o sentido que se
empreende no presente trabalho à “norma de juízo”. Porém, ao
desenvolver a idéia da presunção de inocência como “norma de juízo”,
esse autor italiano a aproxima da presunção de inocência como “norma
probatória” ao afirmar que como “norma de juízo” ela também determina
como se deve “modelar” a seleção dos “temi di prova” e os “interrogativi
da risolvere”, concluindo que “influisce sulla configurazione del metodo
probatorio”. Após expor essas influências da presunção de inocência
como “norma de juízo” no campo probatório não deixa de tentar separar
aqueles dois sentidos, em tradução livre: “Não por outra razão o
postulado de que partimos é que a presunção de inocência age tanto
sobre o plano da decisão (como regra de juízo) quanto sobre aquele da
produção de provas (como regra probatória). Trata-se, dizíamos, de duas
faces da mesma moeda: a partir do momento que o imputado é
presumido inocente, a condenação só poderá ter lugar após um
completo acertamento da responsabilidade; de modo que o
procedimento probatório deverá ser estruturado de maneira tal a
assegurar que efetivamente seja superada toda eventual dúvida” (op.
cit., p. 93). Porém, esse esboço inicial de separação não atinge a
consciência necessária porquanto o autor não desenvolve cada um dos
aspectos para individualizar-lhes os conteúdos e ressaltar suas
diferenças. Nesse sentido, também não distinguindo de maneira clara e
desenvolvida, v. Mario CHIAVARIO, La convenzione europea dei diritti
dell1uomo nel sistema delle fonti normative in materia penale, Milano:
Giuffrè, 1969, pp. 375/376. Como se verificará, essa distinção produz
efeitos práticos ao se analisar a presunção de inocência, dentre outros
pontos, na revisão criminal; sobre o tema, v. item 5.4.3.2.2 infra.
De fato, ambos esses significados relacionam a presunção de inocência com o tema
da prova no processo penal e nisso se aproximam. Contudo, o benefício trazido pelo
estudo mais particularizado de cada uma dessas manifestações permite identificar suas
especificidades de conteúdo e efeitos e, portanto, a autonomia entre eles.
A presunção de inocência como “norma probatória” abrange campo específico
daquela norma constitucional e voltado à determinação: de quem deve provar; por meio
de que tipo de prova; e, por fim, o que deve ser provado.1342 A presunção de inocência
como “norma de juízo”, ao contrário, dirige-se à análise do material probatório já
produzido, seja identificando a sua suficiência para afastar a presunção de inocência e,
portanto, condenar o imputado, seja para escolher a norma jurídica mais apropriada à
situação concreta.1343
O primeiro aspecto apontado da presunção de inocência como “norma probatória”
(quem deve provar) refere-se ao ônus probatório no processo penal. A matéria é por
demais extensa e já conta com significativo consenso doutrinário em todos os países nos
quais o princípio está inserido em nível constitucional. Para todos eles, o ônus de provar
no processo penal é da acusação, uma vez que, partindo o órgão acusador do pressuposto
juspolítico do “estado de inocência” do cidadão, é a ele que caberá demonstrar a sua tese
pela culpa do indivíduo e, portanto, caberá a ele o ônus de demonstrar essa tese não
pressuposta pela Constituição.1344

1342 Não relacionando os três pontos indicados no texto diretamente com o


sentido de “norma probatória”, mas apenas com a presunção de
inocência, v. Teresa ARMENTA DEU, Principios cit., pp. 76/77.
1343 Para um início de diferenciação de conteúdos entre a presunção de

inocência como “norma de juízo” e como “norma probatória”, v.


Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., p. 142, e Manuel MIRANDA
ESTRAMPES, La mínima cit., pp. 569/571. Sobre a presunção de
inocência como “norma de juízo”, v. item 5.4.2.3 infra.
1344 Em estudo específico sobre o tema, Gustavo Henrique Righi Ivahy

BADARÓ, Ônus cit., pp. 239/240, conclui que “o ônus da prova subjetivo
no processo penal será, sempre, um ônus imperfeito ou relativo, tendo
em vista que, além da atividade da própria parte onerada, também é
possível a produção de prova por iniciativa judicial, bem como a
utilização das provas produzidas pela parte contrária, ante a regra da
aquisição das provas. Concebido o Ministério Público como uma parte
interessada na persecução penal, desejando ver provada a tese
acusatória, é perfeitamente possível afirmar que ao Ministério Público
incumbe o ônus da prova dos fatos necessários para a condenação
penal (...). Já com relação ao acusado, que também possui interesse
individualizável na persecução penal, seria possível admitir que, se ele
não se desincumbisse da produção da prova dos fatos que lhe são
favoráveis, haveria um prejuízo. Estaria aí configurado o ônus subjetivo
do acusado. Contudo, diante do ‘in dubio pro reo’, que é a regra de
julgamento que vigora no campo penal, o acusado jamais poderá ser
prejudicado pela dúvida sobre um fato relevante para a decisão do
O segundo ponto da presunção de inocência como “norma probatória” (por meio de
que tipo de prova) fixa que a prova a ser produzida nos autos pelo órgão acusador não
pode ser qualquer prova, mas deve ser uma prova lícita, ou seja, uma prova buscada,
produzida, analisada e considerada pelo juiz dentro dos padrões definidos pela
Constituição1345 e pelas leis.1346 Nesse ponto ocorre a complementaridade entre os direitos
fundamentais da presunção de inocência e da inadmissibilidade processual das provas
ilícitas.1347

processo, ao menos nos casos de ação penal condenatória. Embora seja


admissível que a atividade do acusado seja regida por um ônus
probatório, no processo penal em que vigora a presunção de inocência,
tal encargo é atribuído, com exclusividade, ao acusador”. No sentido do
ônus probatório integrar a presunção de inocência em seu sentido de
“norma probatória” e derivar do reconhecimento constitucional do estado
juspolítico de inocência, v. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit.,
pp. 145/146; Francisco RAMOS MÉNDEZ, El proceso penal: tercera
lectura constitucional, Barcelona: Bosch Editor, 1993, p. 16, nota 11;
Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La mínima cit., pp. 569/571; e Ana
María OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 138/139.
1345 No sentido de que a prova produzida pela acusação deve ser

constitucionalmente lícita, isto é, produzida de modo a respeitar todos os


direitos constitucionais com ela referentes (p.ex., contraditório, ampla
defesa, publicidade, juiz natural etc.), v.: Ernesto PEDRAZ PENALVA,
Derecho cit., pp. 334/339; Mario CHIAVARIO, La convenzione cit., pp.
375/376; Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit., item IV; Teresa
ARMENTA DEU, Principios cit., p. 77; Francisco RAMOS MÉNDEZ, El
proceso cit., p. 15; e Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución cit.,
pp. 136 e 142/151.
1346 Após a reforma processual penal de 2008, o art. 157, caput, por força da

Lei 11.690, passou a ter a seguinte redação: “São inadmissíveis,


devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim
entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.
Dessa forma, para além da clássica divisão das provas ilegais em provas
ilícitas (violadoras de normas constitucionais ou de direito material) e
provas ilegítimas (violadoras de normas processuais), o legislador
aceitou o conceito amplo de prova ilícita, determinando que qualquer
violação a norma constitucional ou legal (material ou processual) gera a
ilicitude da prova e, por força constitucional, a sua inadmissibilidade (art.
5º, inciso LVI, CR) e, caso inserida nos autos, seja desentranhada.
1347 Assim dispõe o inciso LVI do art. 5º da Constituição da República: “são

inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”.


Se a esta relação de complementaridade unirmos outro direito fundamental, mais
abrangente, representado pelo devido processo legal, chega-se à compreensão de que ao
órgão acusador caberá provar sua tese incriminatória, tanto para a demonstração da
materialidade do fato quanto da autoria, segundo as imposições constitucionais do juiz
natural, da ampla defesa, do contraditório, da publicidade, do respeito à intimidade, à
integridade física, moral e psicológica, e demais direitos individuais que tutelam o
cidadão contra intervenções estatais abusivas.1348
Sem se desconsiderar ou se ter como de menor importância qualquer meio
probatório (p.ex., os indícios), o que importa para a presunção de inocência neste seu
aspecto de “norma probatória” é o fato de que a prova seja lícita. Sua suficiência ou
aptidão a influir no convencimento judicial é algo a ser analisado quando do exame
daquele direito fundamental como “norma de juízo”.
Definido que incumbe à acusação o ônus de provar e que esta sua atividade somente
pode ser aceita enquanto constitucional e legalmente lícita, cabe ressaltar que, pela
presunção de inocência como “regra probatória”, a prova deverá ser “incriminadora”.1349
Por prova incriminadora deve se entender a apta a demonstrar, em uma linguagem
técnico-processual,1350 a materialidade do crime com todas as suas circunstâncias e a sua
autoria.1351 Isto significa que a prova a ser produzida pelo Ministério Público de modo
lícito somente afastará a presunção de inocência e, com isso gerará a condenação, se tiver
a aptidão de demonstrar a materialidade e a autoria da infração. Isso significa que a prova
lícita a ser produzida pelo acusador (público ou privado) será adequada e eficaz para
afastar a presunção de inocência, se tiver conteúdo incriminador.
A diferenciação entre a presunção de inocência como “norma probatória” e como
“norma de juízo” tem a vantagem de permitir que se perceba o caráter objetivo que
reveste a análise do presente aspecto do princípio constitucional.

1348 Sobre a relação entre presunção de inocência e devido processo legal,


porquanto vede a utilização de prova ilícita, v. especificamente Ernesto
PEDRAZ PENALVA, Derecho cit., pp. 335/337.
1349 Nesse sentido, v. Ana Maria OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp.

317/319.
1350 Por ser o presente trabalho voltado ao âmbito do direito processual

penal, entendeu-se melhor tratar todos os aspectos relativos ao crime e


à sua responsabilização penal sob os termos da “materialidade” e da
“autoria”, evitando-se, propositalmente, a multiplicidade de indagações
que um minudente estudo de direito penal sobre cada ponto poderia
trazer.
1351 Uma tentativa de se definir o que os tribunais espanhóis vêm

entendendo por “prueba de cargo” (traduzida por nós como “prova


incriminadora”) é desenvolvida por Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La
mínima cit., pp. 176/182.
A separação entre esses dois âmbitos expõe com nitidez que primeiro é necessário
que haja uma atividade probatória lícita, incriminadora e atribuída ao órgão da acusação,
esses são aspectos objetivos que nada se relacionam com a subjetividade inerente às
noções de suficiência, probabilidade, dúvida, entre outras, peculiares ao âmbito da
presunção de inocência como “norma de juízo”.
Dessa forma, não importa que o juiz da causa esteja, por qualquer razão, convicto da
culpa do acusado; tal “certeza” não legitima eventual condenação se ele não conseguir
indicar as provas lícitas e incriminadoras constantes dos autos, nas quais tenha baseado
sua convicção.1352 A natureza objetiva da presunção de inocência como “norma
probatória”, portanto, oferece mais um instante de garantia ao cidadão e que está
representado pela necessidade de “haver prova”, antes mesmo de se questionar sobre sua
suficiência ou eficácia para convencer.
Com isso, meras suspeitas, opiniões dos meios de comunicação, “convicções”
extraídas pelo juízo de objetos não constantes dos autos ou de pessoas neles não ouvidas,
elementos informativos produzidos na fase policial e que não foram confirmados em
juízo, assim como provas incriminadoras ilícitas, não podem ser usados pelo juiz no
instante de motivar sua decisão sob pena de violação da presunção de inocência como
“norma probatória”.1353
Da compreensão desse instante da presunção de inocência não deflui apenas o
benefício doutrinário de melhor expor o presente significado desse direito fundamental.
Há dois benefícios práticos e diretos ao reforço da tutela à presunção de inocência
proporcionados pela melhor percepção de seu sentido como “norma probatória”. O
primeiro consiste em impedir que seja considerado, como apto a influir na decisão
judicial, “qualquer” elemento de convicção (prova ou elemento informativo): a
presunção de inocência somente poderá ser afastada por meio de prova constante dos
autos judiciais, obtida e produzida de forma lícita e com conteúdo incriminador. O
segundo benefício consiste em uma atribuição de espaço normativo-constitucional
específico para a presunção de inocência e que vem sendo ocupado, de modo indireto e
não plenamente suficiente, por outros três direitos fundamentais, quais sejam: a
inadmissibilidade processual da prova ilícita, a necessidade de motivar a decisão judicial
e o duplo grau de jurisdição na área penal.

1352Nesse sentido, v. Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 164/165.


1353 Nesse sentido, v.: Ernesto PEDRAZ PENALVA, Derecho cit., pp.
333/334; Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 140/142; e
Pedro CARBALLO ARMAS, La presunción de inocencia en la
jurisprudencia del Tribunal Constitucional, Madrid: Ministerio de Justicia,
2004, p. 22.
O direito constitucional à inadmissibilidade processual das provas ilícitas, em breve
síntese, impõe que nenhum elemento de prova obtido de modo ilícito seja introduzido
no âmbito processual. Se o for, deverá ser expungido a fim de que não influencie a
decisão judicial. O direito à motivação dos atos judiciais, por sua vez, exige que o juiz
deva fundamentar todas as suas decisões, notadamente (mas não só) as que julgam o
mérito da causa. O duplo grau de jurisdição penal garante a possibilidade de que toda
decisão seja revista em grau superior; logo, assegura a existência de dois julgamentos, um
em grau inferior e outro em grau superior, sobre a mesma questão.
Vejamos um exemplo para o qual, sem utilizarmos a presunção de inocência como
“norma probatória”, precisaremos da combinação daqueles três direitos para remediar
constitucionalmente um erro judicial.
Imagine-se que uma prova incriminadora obtida ilicitamente ingressa no âmbito
processual e com base nela o juiz, em consistente e racional fundamentação, condena o
imputado. Não houve violação direta da motivação, uma vez que ela existiu, necessitando
de toda uma discussão sobre até que ponto uma motivação baseada em prova ilícita pode
ser aceita ou não como válida. Porém, somente esse direito (direito à motivação) não
bastaria para, de modo direto e eficaz, reverter aquela ilegalidade. Seria necessário
trazer-se à colação o direito à inadmissibilidade da prova ilícita para retirá-la dos autos
sob pena de voltar a influir nos novos julgamentos. Como se isso não bastasse, após a
retirada da prova e a desconstituição da decisão condenatória, ainda se abriria nova
discussão sobre se seria o caso do tribunal ad quem prosseguir no julgamento e decidir o
mérito ou, de modo diverso, se o julgamento do órgão superior cessaria com o
reconhecimento da ilicitude da prova e desconstituição da decisão condenatória. Nessa
segunda hipótese, os autos deveriam ser enviados ao juízo a quo para ele realizar novo
julgamento. Dessa forma, entraria em questão eventual (des)respeito ao duplo grau de
jurisdição. Como se percebe, somente com a junção de três outros direitos fundamentais
e com uma discussão que em alguns pontos estenderia, por demais, seus conteúdos,
poderia se buscar uma solução eficaz para a referida ilegalidade.
Com a percepção do conteúdo do âmbito de proteção da presunção de inocência
como “norma probatória” a solução pode ser buscada de modo direto e com a incidência
apenas desse direito fundamental. A decisão acima exemplificada, mesmo motivada,
porquanto baseada em prova ilícita será sempre nula por violação direta à presunção de
inocência. Não se abrirá mais discussões em grau de recurso sobre se o “conjunto
probatório” remanescente autoriza ou não a manutenção da decisão recorrida uma vez
que, com ou sem esse contexto, a decisão se baseou em prova ilícita e, portanto, violou
aquele direito fundamental em seu aspecto de “norma probatória”. A solução será muito
mais fácil e direta.
Ao se constatar essa violação fica evidente a necessidade de se anular a decisão
condenatória, retirar-se a prova ilícita dos autos e, ainda, que nova decisão seja proferida
pelo juízo a quo. O exame das causas do erro judicial e a conseqüência imposta
constitucionalmente ganham em praticidade. A decisão recorrida foi nula por violação
da presunção de inocência e, por isso, deverá ser refeita pelo juízo que a proferiu. Os
autos deverão ser enviados ao juízo a quo para proferir nova decisão cuja motivação
deverá demonstrar, de plano e como primeiro instante justificador, se restou (após a
exclusão da prova ilícita) algum material probatório lícito e incriminador, única base
sobre a qual o juízo a quo poderá lastrear sua nova decisão. Deverá demonstrar o
atendimento à presunção de inocência como “norma probatória”, antes de ingressar no
exame da suficiência, eficácia e adequação desse material.
Não se nega que a doutrina e a jurisprudência vêm decidindo situações equivalentes
à exemplificada utilizando-se dos direitos constitucionais da motivação, da
inadmissibilidade da prova ilícita e do duplo grau de jurisdição penal, os quais têm
atendido a uma gama de situações. O que se pretende demonstrar neste ponto do
trabalho é o proveito prático que a análise individualizada desse aspecto da presunção de
inocência pode trazer para melhor tutela do cidadão e, também, garantir a esse direito
constitucional um devido e próprio espaço normativo. Esse é o objetivo maior do
presente estudo, atribuir à presunção de inocência um espaço normativo dentro do qual
possa ganhar efetividade forense e, assim, tornar-se uma realidade ao cidadão.
Além dessas melhoras para a efetividade da presunção de inocência e para o
indivíduo, a compreensão de seus efeitos como “norma probatória” garantirá uma
melhoria aos demais direitos fundamentais com os quais ela se relaciona. Isto porque, por
meio da tutela daquele desdobramento da presunção de inocência, não se admitirá mais,
p.ex., a discussão sobre se o desentranhamento da prova ilícita é ou não pertinente em
face do “conjunto probatório remanescente”. Antes de se analisar esse “conjunto”, o que
ocorrerá apenas em instante posterior e quando se adentrar ao campo da “norma de
juízo” (análise subjetiva quanto à suficiência do material probatória reunido), necessário
se constatar que já houve violação a um direito fundamental (presunção de inocência em
seu aspecto objetivo de “norma probatória”) e que isso já implica nulidade da decisão.
Para se manter hígida a Constituição, no ponto referente à presunção de inocência, a
prova deverá ser expungida e nova decisão proferida.1354

1354 Como exemplo de decisão que, não obstante tenha reconhecido a


ilicitude de prova utilizada para condenar, não a retirou dos autos por
entender que pelo “conjunto probatório” a decisão deveria ser mantida, v.
o seguinte julgado do Supremo Tribunal Federal: “Habeas corpus.
Constitucional. Penal e processual penal. Sentença condenatória
fundada em provas ilícitas. Inocorrência da aplicação da teoria dos
‘frutos da árvore envenenada’. Provas autônomas. Desnecessidade de
desentranhamento da prova ilícita. (...) Habeas corpus indeferido.
Liminar cassada. 1. A prova tida como ilícita não contaminou os demais
elementos do acervo probatório, que são autônomos, não havendo
motivo para a anulação da sentença. 2. Desnecessário o
Cabe ressaltar, ainda, que tal aspecto objetivo, imposto pela presunção de inocência
entendida como “norma probatória”, não tem incidência apenas no instante da decisão
de mérito, mas também deve ser verificado em todas as demais decisões restritivas de
direitos do imputado, no curso persecutório. Assim, também haverá violação da
presunção de inocência nesse aspecto, se o juiz se basear em prova ilícita para
determinar, p.ex., a prisão provisória do imputado ou alguma outra medida, mesmo que
menos invasiva (p.ex. apreensão de passaporte), limitadora de sua liberdade.
A presunção de inocência como “norma probatória” é, conforme demonstra a
doutrina internacional, um aspecto que precisa tornar-se objeto de debates específicos na
doutrina e jurisprudência nacionais, sob pena de se caminhar não para a necessária
expansão do direito fundamental à presunção de inocência, mas, ao contrário, para sua
desconsideração prática e, com isso, sua efetiva compressão.

5.4.2.3. Presunção de inocência como “norma de juízo”

A presunção de inocência como “norma de juízo” incide em toda decisão, no


instante de se analisar o material probatório já produzido para a formação da convicção
judicial. Ela se manifesta tanto nas decisões de mérito, quanto nas demais decisões
proferidas no curso persecutório, sejam referentes à progressão das fases da persecução,
sejam destinadas a reduzir a liberdade do imputado, tratando-o, por qualquer modo,
nesse último caso, como culpado antes de decisão final eventualmente condenatória.

desentranhamento dos autos da prova declarada ilícita, diante da


ausência de qualquer resultado prático em tal providência, considerado,
ademais que a ação penal transitou em julgado” (STF – 1ª T. – HC
89.032 – rel. Menezes Direito – j. 09.10.2007 – DJU 23.11.2007). Como
se vê, pela proposta do presente trabalho, a decisão deveria ser outra.
Ao se tutelar a presunção de inocência como “norma probatória”, a
conseqüência seria a nulidade da decisão condenatória por violação
desse direito fundamental. Uma vez reconhecido que o iter racional da
decisão judicial já apresentou vício antes da análise do conjunto
probatório (como “norma de juízo”), não caberá ao Tribunal ad quem
ingressar na apreciação da suficiência do material probatório restante.
Não há que se discutir se com o restante do material a condenação seria
mantida. O fato é que houve uma condenação com base em prova ilícita
e, por isso, a presunção de inocência foi violada de forma direta e
objetiva e, portanto, deverá haver nova decisão do órgão judiciário que,
de modo inicial, baseou sua decisão (condenatória) nesse tipo
inconstitucional de prova.
A presunção de inocência como “norma de juízo” difere de seu aspecto como
“norma probatória” uma vez que somente poderá ocorrer sobre um material probatório
já produzido. Assim, por questões lógicas, primeiro deve se analisar a presunção de
inocência como “norma probatória” para, somente depois desse aspecto ter sido
integralmente atendido, ingressar-se no exame da presunção de inocência como “norma
de juízo”.
Ainda quanto às diferenças entre esses dois desdobramentos da presunção de
inocência, é necessário ressaltar que o último aspecto citado tem conotação subjetiva,
porquanto repousa em essência na determinação da “suficiência” da atividade probatória,
para reverter o “estado de inocência” constitucional e conferido ao cidadão antes e
durante a persecução penal. Como “norma probatória” a constatação é objetiva: se a
acusação produziu prova incriminadora e lícita, pouco importando se ela é ou não
suficiente.
Esse é o punctum saliens que difere a presunção de inocência como “norma de
juízo” e como “norma probatória”: a noção de suficiência. Para se examinar esse direito
constitucional como “norma de juízo”, é preciso já se ter como certo que o órgão
acusador cumpriu seu ônus probatório e que a prova por ele produzida é lícita e
incriminadora. Avaliá-la como “suficiente” é a resposta a que se chegará ao final do
exame da presunção de inocência como “norma de juízo”.

5.4.2.3.1. Mínima atividade probatória: “in dubio pro reo” e “favor rei”

A presunção de inocência guarda uma relação estreita e bidirecional com cada um


de seus sentidos ou significados. Em uma direção, a presunção de inocência precisa de
seus sentidos ou significados para se manifestar de modo pleno nos vários âmbitos do
processo penal. Em sentido direcional oposto, ela influencia e determina o perfil
juspolítico, fixando valores constitucionais a serem empreendidos em cada um daqueles
sentidos ou significados. A presunção de inocência depende desses sentidos, mas eles só
ganham orientação axiológica porquanto derivados dela.
Isso ficou evidente para os dois sentidos anteriormente analisados (“norma de
tratamento” e “norma probatória”), uma vez que para sua orientação e aplicação foi
necessário se ter como parâmetro juspolítico definido pelo constituinte o “estado de
inocência”. Assim, a presunção de inocência como “norma de tratamento” tem seu
desenvolvimento, seus estudos e seus efeitos parametrizados a partir daquela escolha
constitucional do “estado de inocência”. Tanto isso é mais verdade que, ao se alterar os
influxos político-constitucionais da presunção de inocência por aqueles utilizados pelo
regime fascista para a construção do conceito de “presunção de não culpabilidade”, ter-
se-á como resultante uma outra forma de tratamento do cidadão submetido à persecução
penal. Como “norma probatória” ocorre da mesma forma, ela somente terá como
conteúdo a necessidade do órgão acusatório produzir prova lícita e incriminadora
quando se parte de uma matriz constitucional em que a presunção de inocência possui
relação de complementaridade e interdependência com outros valores constitucionais
(p.ex., devido processo penal e todos os seus consectários, inadmissibilidade processual
de prova ilícita, respeito à dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade) como
finalidades primazes do ordenamento jurídico.
A mesma relação bidirecional é encontrada na presunção de inocência como
“norma de juízo”. Ela informa o seu sentido de “norma de juízo” na medida em que traz
para o nível judicial de concretização da lei o “favor rei” e o “in dubio pro reo”, já
expostos anteriormente de modo individualizado. Esses dois preceitos tradicionais da
cultura jurídica, vinculados a valores humanitários de igualdade, respeito à dignidade da
pessoa humana e liberdade, devem ser os critérios axiológicos orientadores de toda e
qualquer decisão judicial no âmbito criminal. A presunção de inocência, portanto,
orienta as interpretações legislativas e a forma de resolução das dúvidas fáticas do juiz
por meio daqueles dois preceitos que também a integram e com ela mantêm identidade
de valores constitucionais.1355

1355 Sobre o “favor rei” como “regra de juízo”, v. Gilberto LOZZI, “Favor rei”
cit., cap. I. No mesmo sentido, relacionando agora o “in dubio pro reo”
com o que no texto denominamos “norma de juízo”, v. Geórgia Bajer
Fernandes de Freitas PORFÍRIO, A tutela da liberdade no processo
penal, São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 79/80. Sobre a relação do “favor
rei” e do “in dubio pro reo” como aspectos da presunção de inocência, v.
itens 5.4.1, 5.4.1.1 e 5.4.1.3 supra.
A partir dessa orientação axiológica de natureza constitucional, o juiz deverá decidir
a cada instante em que for chamado para apreciar os direitos do cidadão. Isso faz com
que a incidência do “in dubio pro reo” e do “favor rei” não se dê apenas no instante do
julgamento do mérito de uma causa, mas ocorra durante todo curso da persecução, seja
para decidir medidas restritivas aos direitos fundamentais do cidadão ou seja para decidir
sobre a legitimidade da progressão persecutória em suas várias fases e procedimentos.
Como se verá adiante, a presunção de inocência como “norma de juízo” atinge até
mesmo a fase revisional, porquanto nela incidem aqueles valores constitucionais que
sempre devem estar presentes em qualquer decisão judicial que julgue controvérsias
penais e, portanto, envolva direitos fundamentais do cidadão.1356
Exposto como e por que a presunção de inocência como “norma de juízo” é
orientada pelo “in dubio pro reo” e pelo “favor rei”, cabe analisar em que consiste esse
seu específico sentido.
Esse crucial instante (“norma de juízo”) pode ser sintetizado em uma única idéia:
suficiência. Suficiência do material probatório incriminador para se decidir de modo
desfavorável ao imputado.
Não há consenso ou um critério seguro na doutrina e jurisprudência estrangeiras
sobre o que seja “mínima atividade probatória” ou “atividade probatória suficiente” para
se afastar a presunção de inocência. Há um consenso de que ela deve ser identificada em
cada caso, não podendo se buscar apenas critérios quantitativos (número mínimo de
provas) ou qualitativos (meio mais eficaz de prova).
Percebe-se, contudo, certo consenso em se fixar um dever argumentativo maior
para o juiz em casos de provas contraditórias (p.ex., testemunhos conflitantes), de
credibilidade contestada (p.ex., depoimento da vítima, de crianças ou de pessoas
interessadas na causa), ou de relação indireta com o thema probandum (p.ex., prova por
indício). Não obstante essa dificuldade, pode-se extrair certa tendência de se analisar o
material probatório de maneira global e conjunta e, ainda, de que a dúvida gerará a
declaração de inocência sempre que houver falha ou insuficiência probatória em
qualquer ponto necessário para se demonstrar a materialidade ou a autoria.1357

1356 Sobre a incidência da presunção de inocência como “norma de juízo” na


revisão criminal, v. estudo mais detalhado no item 5.4.3.2.2. infra.
1357 Sobre a necessidade de suficiência de provas que levem o julgador para

além da dúvida razoável, v.: Francisco tomas y valiente, “In dubio pro
reo” cit., p. 28; Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción cit., p. 362; idem,
La presunción cit., pp. 25 e 39/41; Pedro CARBALLO ARMAS, La
presunción cit., pp. 22/23; Ernesto PEDRAZ PENALVA, Derecho cit., p.
333; Francisco CAAMAÑO, La garantia cit., pp. 229/230 e 242/243;
Mario CHIAVARIO, La convenzione cit., pp. 376/378; idem, Processo cit.,
pp. 122/124; Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., pp. 164/173;
Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp. 199/204; e Ana María
OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 136/138.
Não há como analisar, nos limites do presente trabalho, todos os relevantes aspectos
relacionados com o tema, porquanto isso passaria, necessariamente, pelo exame dos
vários meios e fontes de prova e sua eficácia para influir no convencimento judicial em
face dos vários tipos penais e seus diversos componentes, assim como em relação a
eventuais causas excludentes de antijuridicidade ou culpabilidade.
Nesse contexto, o que releva destacar sobre a presunção de inocência como “norma
de juízo” é a orientação axiológica empreendida pelo “in dubio pro reo” e pelo “favor
rei”, e a necessidade de o julgador demonstrar o mínimo probatório necessário para
afastar aquele direito constitucional em todas as decisões penais que for chamado a
proferir.1358
Na decretação da prisão provisória, em qualquer de suas modalidades, há que haver
mais que suspeitas, versão da vítima ou elementos de uma investigação incipiente; são
necessários robustos elementos incriminadores para que a convicção judicial possa ser
formada em bases seguras.1359 O mesmo pode ser referido ao instante do julgamento do
mérito da causa.1360 Em ambos os tipos de decisões é necessário mais que suspeitas, é
necessária a certeza da materialidade e um alto grau de probabilidade de autoria. É isso
que se deve entender pela expressão legal “indícios suficientes”, prevista para a prisão
preventiva (art. 312, CPP) e que baliza não apenas todas as espécies de prisão
provisória,1361 mas também é utilizado para regrar o nível cognitivo judicial, ao decidir
pelo recebimento da peça acusatória inicial1362 ou para pronunciar o imputado.1363

1358 Sobre as absolvições sumárias (art. 397 e 415, CPP) serem restrições
(limitações legitimas) à incidência do “in dubio pro reo”, v. itens
5.4.1.3.2.1 e 5.4.1.3.2.2 supra.
1359 Quanto à necessidade de se chegar à suficiência para, no tema da

prisão provisória, superar-se o “favor libertatis” e o “in dubio pro


libertate”, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 485/490.
1360 Nesse sentido, v. Eduardo M. JAUCHEN, Derechos cit., pp. 108/109.
1361 Nesse sentido, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 469/473, ao tratar

da expressão “motivos bastantes” do direito espanhol. A proximidade das


expressões “bastantes” e “suficientes” permite que o escólio daquele
autor seja tomado, nesse ponto, sem reservas.
1362 Quanto à necessidade de fundamentação da decisão de recebimento

de denúncia ou de queixa-crime com a verificação da existência de


materialidade e autoria por meio dos elementos acostados aos autos, v.
José Antônio Paganella BOSCHI, Ação penal, 2ª ed., Rio de Janeiro:
Aide, 1997, p. 209, quando assevera: “Outrossim, não havendo lastro
probatório mínimo e idôneo a denotar a existência do ‘fumus boni iuris’
ou não concorrendo condições da ação – art. 43, parágrafo único, do
CPP -, a denúncia deverá ser ‘rejeitada’”. Para nossos comentários
sobre a inadmissibilidade do recebimento da denúncia com base no “in
dubio pro societate”, v. item 5.4.1.3.2.1 supra.
1363 Sobre a necessidade desse juízo de certeza quanto à materialidade e

de suficiência quanto à autoria na decisão de pronúncia, afastando-se o


“in dubio pro societate”, v. item 5.4.1.3.2.2 supra.
A presunção de inocência somente poderá ser afastada se e quando o julgador
demonstrar em sua motivação que, baseado em prova incriminadora lícita, atingiu o
estado subjetivo de certeza necessário para decidir em desfavor do imputado, seja
decretando sua prisão provisória, seja autorizando o início da ação penal, seja
determinando qualquer medida restritiva de seus direitos, seja condenando-o.
Na análise do material probatório constante dos autos, o juiz pode chegar a três
conclusões possíveis: a primeira é que tem certeza que deve decidir em desfavor do
imputado; a segunda é que tem certeza que deve decidir em favor do imputado; e a
terceira é que não atingiu o estado subjetivo de certeza, permaneceu em dúvida. Nas duas
primeiras hipóteses, em que o juiz atinge a certeza, deverá decidir no sentido em que ela
apontar, favorecendo ou desfavorecendo o cidadão. Contudo, se permanecer em dúvida,
sempre deverá decidir em favor do cidadão.1364
Dentro das possibilidades de solução de uma causa penal, pode haver certa
“tendência” na dúvida: ou porque se tem mais elementos para favorecer ou porque há
mais elementos para desfavorecer o imputado, mas em qualquer caso não há uma
preponderância que leve à certeza, ou seja, afaste de modo seguro a “dúvida”. Assim,
p.ex., pelo exame do material probatório o juiz pode ter dúvida, não obstante haja provas
menos consistentes quanto à inocência se comparadas com as que indicam a culpa. Neste
exemplo, tendo que decidir entre a culpa ou a inocência, há mais ou melhor material
probatório pela culpa, não obstante também haja bom material pela inocência. Portanto,
nessa hipótese, não há certeza, apenas uma “tendência” ao reconhecimento da culpa.
Nesses casos o órgão acusador cumpriu seu ônus probatório, uma vez que há provas
incriminadoras. Contudo, elas não foram suficientes para eliminar a dúvida racional do
juízo e, nessas condições, o resultado deve ser favorável ao imputado, seja inocentando-o,
seja condenando-o em circunstâncias mais favoráveis em relação à imputação inicial
(p.ex., absolvendo-o de uma qualificadora ou de um crime imputado em concurso), seja,
por fim, não determinando qualquer medida coativa no curso da persecução ou
determinando uma medida menos restritiva em face da requerida.
Também pode ocorrer que a dúvida, diversamente da hipótese anterior, tenda para
o favorecimento do imputado. Assim, p.ex., as provas que indicam a inocência do
acusado são mais consistentes que aquelas apresentadas como incriminadoras. Nessa
segunda hipótese o órgão acusador também cumpriu o seu ônus probatório, porém, mais
uma vez, as provas restaram insuficientes para levar o juízo ao convencimento de sua
tese. Nessa situação, como há dúvida judicial, a decisão deverá continuar sendo favorável
ao acusado.

1364As exceções de incidência do “in dubio pro reo” quanto às absolvições


sumárias dos arts. 397 e 415 do Código de Processo Penal, v. itens
5.4.1.3.2.1 e 5.4.1.3.2.2 supra.
O mesmo raciocínio (favorecimento da posição do imputado) deverá ser
empreendido se não houver qualquer prova em benefício do imputado. Nesse caso o
julgador também deverá verificar se as provas incriminadoras são suficientes para
eliminar qualquer dúvida razoável sobre o cometimento do crime e a sua autoria. Na
hipótese ora tratada, não há prova que favoreça o acusado, porém isso não significa a sua
automática condenação, uma vez que é necessário ao juiz verificar se as provas
incriminadoras atingiram um mínimo necessário para afastar a presunção de inocência.
A dúvida judicial existirá porque a prova incriminadora não foi suficiente para eliminar a
razoabilidade de que os fatos podem não ter ocorrido como afirmado na peça acusatória,
não afastou a barreira necessária (razoabilidade) para se aceitar como provada a
imputação.
É por essa linha racional que a doutrina anglo-saxã não analisa a dúvida no processo
penal pela “preponderância” das provas apresentadas pelas partes – critério por ela
utilizado apenas no processo civil1365 –, mas pela necessidade de que a dúvida impeditiva
do afastamento da presunção de inocência não seja qualquer dúvida (a mera possibilidade
de ocorrência do fato afirmado na imputação), mas seja uma dúvida fundada na razão
(“reasonable doubt”), haja ou não prova defensiva para desconstituir a prova
incriminadora.1366

1365 Indicando as diferenças entre a dúvida sobre a “probabilidade


prevalente”, para o âmbito processual civil, e a “dúvida além do
razoável”, para o processo penal, v. Nelson BASSATT TORRES, La
duda razonable en la prueba penal, Bilbao: Universidad del País Vasco,
1990, pp. 81/84. No mesmo sentido, v. Cristina Líbano MONTEIRO,
Perigosidade cit., pp. 50/51.
1366 Sobre a relação entre a presunção de inocência e a noção anglo-saxã

de “beyond reasonable doubt”, com análise e referência a julgados da


Suprema Corte dos Estados Unidos da América do Norte, inclusive do
leading case sobre o tema de 1895, v. Federico STELLA, La protezione
dell´innocente: la regola dell´ “oltre il ragionevole dubbio”, in Federico
STELLA, Giustizia e modernità: la protezione dell´innocente e la tutela
delle vittime, 3ª ed., Milano: Giuffrè, 2003, pp. 160/164.
Um exemplo pode esclarecer o expendido nos últimos parágrafos. Busca se
identificar o responsável pela destruição de parte de um patrimônio cultural, p.ex., uma
biblioteca pública (art. 62, inciso II, da Lei 9.605/98).1367 Há prova de que várias pessoas
invadiram a biblioteca durante uma manifestação pública, sendo que o acusado é uma
dessas pessoas filmadas entrando na biblioteca. Ocorre, porém, que não há nenhuma
prova de que teria praticado algum ato de destruição, inutilização ou deteriorização de
qualquer bem integrante daquela biblioteca, além do que não foi encontrado com ele
qualquer objeto utilizável para aquelas condutas. Há somente o registro das imagens de
seu ingresso e sua saída do imóvel; ato que não é negado pelo acusado, mas que ele
justificou pela necessidade de fugir do tumulto instalado na via pública. Há, portanto,
uma razoável dúvida quanto ao acusado ter ou não praticado os atos previstos no tipo
penal (destruir, inutilizar ou deteriorar), não havendo como se descartar a hipótese de
não tê-los feito. Há uma dúvida insuperável porquanto são insuficientes as provas
incriminadoras quanto a terem sido praticados atos típicos pelo imputado no interior da
biblioteca, não obstante ele não tenha apresentado qualquer prova de sua conduta no
interior do prédio público, isto é, não ter feito prova defensiva. Apesar de existirem
apenas provas incriminadoras, elas não atingem o mínimo probatório necessário para
afastar uma dúvida insuperável pela razão. Portanto, pela incidência do “in dubio pro
reo”, não são suficientes para afastar a presunção de inocência.
Todas as hipóteses de “dúvida judicial” acima apontadas revelam dois pontos
comuns: o primeiro é que em tais situações o órgão acusador cumpriu seu ônus
probatório, uma vez que carreou aos autos provas lícitas e incriminadoras; o segundo é
que, sempre que houver dúvida sobre os fatos, ela deve ser decidida de modo mais
favorável ao imputado.
Contudo, a dúvida impeditiva da decisão desfavorável não poderá ser qualquer
dúvida, ou seja, a dúvida advinda da mera possibilidade de os fatos terem ocorrido de
forma diversa. Deverá ser uma dúvida baseada na racionalidade (dúvida razoável) e que
somente poderá ser afastada se as provas incriminadoras apresentarem um alto grau de
probabilidade fática (e não mera possibilidade) para todos os aspectos que se relacionem
com a conduta do indivíduo e sua criminalização.
Da certeza (juspolítica) do “estado de inocência” somente poderá se atingir a certeza
oposta (culpabilidade) se as provas incriminadoras forem eficazes e adequadas o
suficiente para retirar da mente judicial qualquer dúvida racionalmente justificável sobre
qualquer ponto indispensável para a condenação.

1367Como a pena prevista para o referido crime vai de um a três anos, para
utilização do exemplo descarta-se a possibilidade de aceitação da
proposta de suspensão condicional do processo, prevista no art. 89 da
Lei 9.099/95.
Qualquer aspecto que não contenha prova incriminadora dirigida para demonstrar
sua ocorrência somente poderá ser racionalmente suplantado pelo julgador se ele indicar,
com um dever argumentativo maior, com que base racional e por meio de quais escolhas
interpretativas ou axiológicas superou aquele ponto. É o que ocorre, p.ex., quando se
utiliza da prova indiciária para colmatar eventual aspecto carente de prova
incriminadora direta.
O julgador precisará convencer, por meio de uma racionalidade a ser integralmente
exposta, como foi possível superar aquela dúvida inerente àquele ponto sem prova
incriminadora direta. Tornando a dúvida superável por argumentos racionais, estará
colocando sua decisão além de qualquer dúvida razoável (“beyond reasonable doubt”), ou
seja, ela estará limitada à dúvida teórica, sempre possível em qualquer caso. Somente
após dar cabo a essa tarefa argumentativa, poderá decidir desfavoravelmente ao
imputado.
5.4.2.3.2. Motivação da decisão penal: verificação das razões de decidir

Se o juiz verifica a “verdade” das partes por meio das provas, as partes verificam a
“verdade” do juiz por meio da motivação.
Não obstante as várias imprecisões técnicas que podem ser apontadas na frase
anterior, ela tem a qualidade de marcar que as partes influem no convencimento judicial
por meio das provas apresentadas no curso da persecução, e o juiz, por sua vez,
convencerá as partes de suas razões pela forma como justificar suas decisões. Se para o
juiz se convencer das teses apresentadas na causa penal o único meio utilizado deve ser o
exame do material probatório dos autos, a única maneira para que as partes
compreendam as razões de decidir é examinar a motivação judicial.
Dado que o tema da motivação das decisões judiciais tem extensa e profunda
complexidade, ao presente trabalho importa ressaltar que ela é o meio objetivamente
mais seguro para se verificar até que ponto o juiz traz, para o instante decisório,
influências externas aos autos, estranhas à causa e, por essa razão, inconstitucionais.1368
Se por um lado não se pode desconsiderar todos os avanços que a filosofia, a
psicologia e a psicanálise apresentam no sentido de demonstrar que não há interpretação
fática ou legal neutra e isenta de influxos e carga pessoal do intérprete (juiz), também
não se pode negar que o exame das razões expostas na motivação é a forma mais direta de
se fazer um controle do ingresso desses influxos pessoais e/ou extra-autos nas escolhas
judiciais ao decidir.1369

1368 Sobre a importância da motivação judicial para se analisar se o


conteúdo essencial da presunção de inocência foi restringido ou violado,
v. item 4.6 supra.
1369 Nesse sentido, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit.,

pp. 110/111, informa que, não obstante os inexoráveis dados


psicológicos e ideológicos do juiz ao “decidir” por meio de escolhas entre
diversas alternativas, é pela “comunicação” do caminho escolhido que se
poderá exercer o “controle” e se estabelecer a discussão sobre os dados
Integram esses influxos fatores das mais diversas naturezas, indo desde razões
culturais, educacionais e religiosas, mais próximas aos influxos pessoais, até pressões
políticas, econômicas, institucionais, profissionais ou originárias dos meios de
comunicação1370 – esse segundo grupo mais relacionado aos influxos extra-autos. Eles
constituem formas ilegítimas de eliminar a presunção de inocência, uma vez que são
estranhos à causa penal a ser decidida. É sobremaneira difícil o controle de seu ingresso
na decisão, pois, como cabe ao juiz escolher (para somente depois justificar) qual prova é
mais eficaz e adequada na formação de seu convencimento, pode esconder sob uma
escolha aparentemente técnica as referidas razões inconstitucionais.1371
Tal escolha, que deveria sempre estar baseada em uma racionalidade constitucional,
é orientada por pré-compreensões do julgador como “ser humano” que não apenas
apreende o sentido das provas, mas lhes acrescenta sentido. Isto porque cada pessoa traz
sua própria historicidade na interpretação/escolha dos fatos e, portanto, não apenas
“chega ao conhecimento do objeto”, mas já traz uma “antecipação de sentido”, uma “pré-
compreensão” desse objeto, que vem determinada “pela sua experiência, pela sua ‘praxis’,
e, por outro lado, pelo primeiro contato que teve com o mesmo objeto”.1372
É impossível negar que a decisão judicial seja uma resultante de forças que podem
advir de três diferentes fontes: os autos processuais, os influxos extra-autos e as opções
íntimas do julgador. Em um sistema ideal, os únicos fatores a influírem em uma decisão
judicial deveriam ser os advindos dos autos processuais e sua subsunção à legislação
vigente. Todavia, esse sistema ideal é de impossível realização humana. Sendo assim, o
trabalho da doutrina e da jurisprudência é construir parâmetros mais racionais e nos
quais o inevitável subjetivismo decisório possa ser reduzido e controlado pela
necessidade do julgador não apenas demonstrar as balizas fático-legais pelas quais
construiu sua decisão, mas também convencer que elas são as mais apropriadas à situação
concreta e aos valores constitucionais.1373

objetivos (fatos e direito) selecionados como relevantes para sua


decisão.
1370 Sobre a influência da mídia na presunção de inocência como “norma de

juízo”, v. maiores considerações no item 5.5.1.1 infra.


1371 Nesse sentido, v. Mercedes FERNÁNDEZ LÓPEZ, Prueba cit., pp.

163/164. Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., pp.


112/113, com apoio em Paolo Comanducci, afirma que muitas vezes o
juiz decide com base em razões inconfessáveis e que foram
determinantes para ele “encontrar” a solução para o caso trazido, tarefa
à qual considera matéria de fato e de direito mas, não raro, também
“valores extrajurídicos (morais, políticos, ideológicos etc.)”.
1372 Rui PATRÍCIO, O princípio cit., pp. 41/42.
1373 No sentido de que ao juiz não cabe apenas expor, mas deverá

convencer de suas razões justificando-as, v. Jaime VEGAS TORRES,


Presunción cit., pp. 171/172, e Cristina Líbano MONTEIRO, Perigosidade
cit., p. 52.
Nesse sentido, o subjetivismo judicial não seria impedido, mas orientado a se tornar
modo de criação jurídica por exercício jurisdicional; reassumiria sua função de “juris-
prudência”. Todavia, para que essa criação seja legítima, antes de impedi-la ou se discutir
sobre sua “criatividade ou não-criatividade”, deve-se empreender um debate sobre o
“grau” dessa criatividade, a sua “forma” de elaboração, suas fontes (legítimas ou
ilegítimas) e os seus “limites”. Não deixará de haver subjetividade, apenas ela deverá ser
dirigida para eliminação do “decisionismo”, entendido como “subjetivismo patológico” e
como “acaso” determinado pelos influxos momentâneos.1374
Assim, devem ser considerados como violadores do atual modelo constitucional e,
portanto, da presunção de inocência como “norma de juízo”, argumentos baseados em
linhas criminológicas justificadoras, p.ex., do direito penal (e processual penal) do autor,
do direito penal (e processual penal) do inimigo,1375 de teorias “eficientistas” com as quais
se busca a eliminação de diversos aspectos das garantias constitucionais do devido
processo penal,1376 assim como de uma política criminal de emergência punitiva1377 e do
direito penal (e processual penal) de “Lei e Ordem” (Law and Order).1378

1374 Nesse sentido leciona A. Laborinho LÚCIO, Subjectividade e motivação


no novo processo penal português, Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, Coimbra, ano I, fascículo 2, abr./jun., 1991, pp. 208/210, com
base em Mauro Cappelletti e Mireille Delmas-Marty. No sentido de que
não é possível retirar da decisão judicial todo seu atributo de “criação”,
mas que o objetivo é controlar a sua intensidade pelas partes e pela
sociedade, v. Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., p.
122.
1375 Para uma incidência desses pensamentos criminológicos
inconstitucionais na exclusão da presunção de inocência para “certas”
pessoas, v. item 5.4.3.1 infra.
1376 Sobre a incidência dessa postura “eficientista” na determinação de

prisão provisória em decorrência de decisão judicial (condenatória)


recorrível, v. item 5.4.2.1.3 supra.
1377 Essa concepção de “emergência”, nesse contexto punitivo exposto no

texto e que vem assumindo, paulatinamente, topos de “normalidade”,


assim preceitua Fauzi Hassan CHOUKR, Processo penal de
emergência, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 131, nota 1: “Para fins
de uma correta delimitação do caminho que se abre, emergência vai
significar aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo
sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos
cânones culturais empregados na normalidade. Tal declinação da cultura
normal não se dá pela inserção tópica das regras fora de extratificação
codificada pois, se assim fosse, toda lei extravagante deveria ser
rigorosamente considerada como emergencial ou de exceção. A
caracterização da presença do subsistema se dá com a mitigação, direta
ou indireta, de garantias fundamentais estabelecidas no pacto de
civilidade, nesta devendo ser entendida não apenas o texto interno
constitucional mas, igualmente, os texto (sic) supranacionais que versem
sobre esta matéria”. Esse pensamento punitivo baseado em um
argumento (“ad terrorem”) de emergência punitiva para reprimir a
“crescente” criminalidade não é um mal apenas brasileiro, mas mundial.
Para estudos dirigidos à Itália dos anos oitenta e noventa, v.,
respectivamente, Mario CHIAVARIO, Problemi cit., notadamente pp.
48/56, e Sergio MOCCIA, La perenne emergenza – tendenze autoritarie
dell sistema penale, 2ª ed., Roma: Edizioni Scientifiche Italiane, 2000,
notadamente pp. 29/37. Para o direito processual pena espanhol,
notadamente para o tema da prisão preventiva, v., sobre a legislação de
emergência, Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 437/438. Necessário
destacar, nesse instante, que a “criminalidade crescente” ou a
“criminalidade violenta” sempre são argumentos utilizados no curso da
história para se recrudescer os sistemas criminais; não é novidade e,
infelizmente, voltará a acontecer porque a razão de fundo que anima e
promove esses discursos não é resolver a dita “criminalidade”, mas
implementar desígnios ou conquistar espaços de poder político por meio
de argumentos de medo junto à população. Conforme já se destacou
nesse trabalho, assim foi no recrudescimento do período imperial
romano (v. itens 1.2.3 e 1.2.3.1 e seus subitens supra), no surgimento da
Inquisição (v. item 1.4 supra), no retrocesso representado pela ascensão
napoleônica (v. item 2.2 e seus subitens supra), na instalação do regime
nazifascista na Europa Continental (v. itens 2.4., 2.4.1, 2.4.2 e 2.4.4
supra) e do Estado Novo getulista no Brasil (v. itens 2.5.1 e 2.5.2 e seus
subitens supra). Como se vê, todo o esforço deste trabalho é para
demonstrar que nada é novo e, se não houver uma mudança racional e
funcional de utilização do sistema criminal para uma maior eficiência
constitucional e de proteção social, tudo tende a se repetir por infindáveis
vezes, e a humanidade permanecerá em um movimento pendular de
avanço e retrocesso quanto aos direitos fundamentais.
1378 A política criminal baseada no pensamento da “Lei e Ordem” propõe,

em grande parte, uma utilização do sistema criminal (direito penal e


processual penal) como forma de manutenção da “ordem”. Na sua
lógica, precisa-se de um sistema extremamente repressivo para manter
a “ordem”; a lei penal lato sensu (penal, processual penal e normas
constitucionais autorizadoras de criminalização) tem na prevenção geral
a sua maior função; acredita-se que o receio que a comunidade tem do
sistema criminal fará com que ela cumpra a “ordem” definida como a
correta. Como se percebe, o sistema criminal é utilizado para se prevenir
crimes, e não, como deveria ser, apenas atuar na apuração e julgamento
de eventuais crimes. Para essa lógica, a referida lei penal passa a
desempenhar um papel simbólico, desconsiderando a sua natureza
subsidiária (ultima ratio). No âmbito processual penal, essa corrente
criminológica transforma o processo em “pena”. Para isso, utiliza todos
os meios de antecipação de pena, eliminando ou flexibilizando todos os
requisitos e pressupostos exigidos para determinação de medidas
Todas essas formas e influências representam, em maior ou menor grau, um
contrafluxo aos direitos fundamentais, sem que com isso apresentem em contrapartida
soluções satisfatórias e aceitáveis no desenvolvimento do sistema criminal (penal e
processual penal). Desconsiderando que o processo penal é apenas o meio pelo qual se
resolve uma controvérsia sobre a materialidade e autoria de um eventual crime já
ocorrido, querem transformá-lo em uma “pena” ou, pior, em um meio de solução para
problemas sociais, econômicos e culturais, para os quais ele não foi concebido. Punir
mais não significa punir melhor, punir antes do devido não significa eficiência, nem se
garante justiça.

restritivas, sejam elas de caráter coativo, sejam elas de caráter


investigativo. A persecução penal, no pensamento da “Lei e Ordem”, não
encontra limites (constitucionais ou infraconstitucionais). O problema
dessa forma funcionalista de compreender o sistema criminal é que a
cada novo instante de crise (social, política, econômica) ele precisa de
novos recrudescimentos, em uma espiral sem fim que, em pouco tempo,
elimina todo o capítulo de direitos fundamentais voltados às garantias
penais e processuais penais. Necessário destacar, ainda, que muitas
das “crises” são provocadas exatamente por esse simbolismo e pelo fato
dele gerar uma crescente criminalização de novas condutas, o que não é
acompanhado por um proporcional aumento na estrutura persecutória ou
judiciária. A criminalização desnecessária é o maior fator de aumento da
ineficiência punitiva. Ocorre, porém, que é exatamente nesta
“ineficiência” que a “Lei e Ordem” vai buscar novos argumentos para
voltar a propor mais recrudescimento e menos garantias. Consciente ou
inconscientemente, é com base nessa lógica que se justificam prisões
provisórias como forma de execução antecipada da pena. Sobre o
pensamento criminológico da “Lei e Ordem” e do direito penal (e
processual penal) simbólico, v. Alberto Silva FRANCO, Crimes cit., pp.
80/89, e Gabriel IGNACIO ANITUA, Historias de los pensamientos
criminológicos, Buenos Aires: Del Puerto, 2005, pp. 498/502.
A motivação judicial não elimina as “pré-compreensões” ou os “pré-juízos”
inerentes a todos os seres humanos – e, portanto, também aos juízes –, porque ela
somente ocorre após a relação “juiz  fato” já se ter estabelecido.1379 A motivação não
pode evitar algo que a precede. O juiz não motiva sua sentença para (re)conhecer os
fatos, motiva para convencer as partes (diretamente), os órgãos judiciários superiores e a
sociedade (de modo indireto) da racionalidade e das escolhas axiológicas por ele
empreendidas para decidir.1380 A motivação, portanto, não elimina “pré-juízos” mas,
como o julgador sabe que ao final deverá motivar sua decisão e, portanto, irá se expor, ela
funciona (ou deveria funcionar) como impeditivo à utilização de razões de decidir
ilegítimas.1381
Não se olvida, com isso, a possibilidade do julgador omitir razões inconstitucionais
(e inconfessáveis) de decidir e, para esconder aquela ilegítima racionalidade, conferir
mais peso ou prevalência a uma prova em detrimento de outras ou, ainda, usar o mesmo
método sub-reptício na escolha da interpretação jurídica da lei. Nessa hipótese, caberá ao
juiz justificar essa escolha de “maior peso” com uma carga argumentativa também maior
para explicitar e convencer de seu “acerto” racional e axiológico.
A motivação também não impede que o julgador, no curso da produção probatória
realizada sob seus auspícios, implemente seus “pré-juízos” na medida em que a prova vai
sendo produzida, inserindo em seus conteúdos “tendências” para uma ou outra tese
(acusatória ou absolutória). Para evitar isso é imprescindível a existência de efetiva
participação em contraditório das partes, de modo que o julgador, justificando seu
comportamento naquela atividade probatória, não a torne prova ilícita por vício em sua
realização e, portanto, seja necessária a sua eliminação a fim de não ser usada como base
para decidir e, com isso, violar a presunção de inocência como “norma probatória”.1382

1379 Nesse sentido, v. Rui PATRÍCIO, O princípio cit., pp. 54/55.


1380 Sobre a necessidade de “justificação interna” e “justificação externa”
que a decisão judicial deve conter, v. Antonio MAGALHÃES GOMES
FILHO, A motivação cit., pp. 124/127.
1381 Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, A motivação cit., pp. 113/115,

afirma que “é a exigência de apresentar uma argumentação racional


para justificar a decisão que obriga o juiz a decidir seguindo certos
parâmetros de racionalidade”.
1382 Nesse sentido, v. Giulio ILLUMINATI, La presunzione cit., p. 181.

Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Direito à prova cit., pp. 55/57,


quando, ao tratar da verdade processual como a única forma de controle
constitucional da busca e valoração da prova penal, assim afirma: “No
Estado democrático de direito, em que a liberdade individual é
reconhecida como premissa fundamental para a justa organização da
sociedade, é evidente que as decisões penais, que incidem exatamente
sobre o ‘status libertatis’ do cidadão, só podem ser legitimadas por um
saber resultante de procedimentos que permitam esclarecer os fatos sob
a dupla ótica da sociedade e do indivíduo: é preciso que as hipóteses
acusatórias sejam verificadas, pois sem a existência de provas
O desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial de direitos fundamentais, tais
como a presunção de inocência, o dever de motivar as decisões judiciais, a
inadmissibilidade processual de provas ilícitas e demais garantias inerentes ao devido
processo legal são a única forma segura de, mantendo a atual Constituição, se ter um
ponto inicial legítimo para se construir um sistema processual penal moderno e mais
equilibrado.
A presunção de inocência, em todos os seus sentidos, orienta as escolhas e conforma
os procedimentos para que no desenvolvimento persecutório se impeça, na maior medida
possível, o ingresso de fatores e influxos externos aos autos, e violadores da Constituição.
Porém, é no instante da motivação que se encontra o melhor momento para aferição do
respeito judicial àquele princípio constitucional, o que somente será possível se o ato de
fundamentar for mais que uma exposição de escolhas fático-jurídicas. Deverá
“convencer” que as escolhas feitas são as melhores para o caso concreto, sempre de
acordo com a Constituição e, portanto, com a presunção de inocência em seus aspectos
do “favor rei” e do “in dubio pro reo”.

5.4.3. Extensão objetiva e subjetiva da “presunção de inocência”

Com a terceira indagação antes formulada (Qual a extensão subjetiva e objetiva da


presunção de inocência no âmbito processual penal?)1383 pretende-se analisar esse direito
fundamental em dois âmbitos distintos: um, subjetivo, dirigido a quais são as pessoas por
ele atingidas (sujeito ativo e sujeito passivo); e o outro, objetivo, no qual se procura
definir de que ponto e até que ponto do iter processual penal ele incide.

5.4.3.1. (segue): extensão subjetiva

concludentes não se poderá superar a ‘presunção de inocência’ do


acusado; mas é igualmente necessário que essas mesmas provas sejam
produzidas com a participação e o controle da defesa e, ainda, que
possa haver ‘contraprova’” (op. cit., p. 55).
1383 Sobre a importância dessas indagações para identificação do conteúdo

do direito fundamental à presunção de inocência, v. item 5.4 supra, in


fine.
A questão das relações da presunção de inocência com os participantes da
persecução penal parece, à primeira vista, tema trivial. A questão se resolveria, desse
modo simples, compreendendo-se que o titular do “estado de inocência” é toda pessoa
submetida à persecução penal; logo, quem sofre os atos persecutórios estatais. Já os
responsáveis por respeitar esse direito fundamental são os agentes públicos (policial,
promotor de justiça, juiz e auxiliares da justiça1384) que participam da persecução penal.
Não obstante não esteja errada a compreensão nesses termos, ela não exaure todos os
aspectos do tema.
Iniciando-se pela perspectiva de quem tem o dever de respeitar e cumprir o preceito
constitucional, não se pode limitar esse dever apenas aos agentes públicos. Claro que
esses são os primeiros a ter o dever funcional de zelar pela presunção de inocência, mas
também os agentes privados que atuem na causa ou com ela guardem uma relação
profissional (p.ex., jornalistas, agentes de segurança) ou pessoal (p.ex., familiares da
vítima) devem-na respeito. Como já se demonstrou, as normas constitucionais
fundamentais vinculam a todos os cidadãos, devendo todos, em suas funções, atividades,
poderes e deveres, cumpri-las. Se os poderes públicos têm o dever de proteção, e de
“organização e procedimento” para tornarem efetivos os direitos fundamentais,1385 até
mesmo aqueles denominados direitos de primeira geração, como é o caso da presunção
de inocência, os agentes privados também recebem influxos constitucionais e devem, em
seus âmbitos de atuação, respeitá-la.1386
Assim, tanto os agentes públicos não podem se exceder em seus atos e palavras de
modo a reduzir a proteção da presunção de inocência conferida pela Constituição ao
imputado, quanto os agentes privados não podem descumprir determinação
constitucional que a todos vincula, mesmo a pretexto de cumprirem atividade
profissional ou por razões pessoais.1387

1384 Por auxiliares da justiça deve-se entender não apenas o funcionário da


justiça (art. 274, CPP) e os peritos e intérpretes (arts. 275 a 281, CPP),
mas todas as pessoas físicas ou jurídicas, públicas ou privadas,
chamadas a colaborar com o juízo na instrução da causa penal.
1385 Conforme já se demonstrou, respectivamente, nos itens 3.8.2.2.2 e

3.8.2.2.3 supra.
1386 Sobre os efeitos irradiantes e horizontais como efeitos dos direitos

fundamentais vinculadores dos agentes privados, v. item 3.8.2.2.1 supra.


1387 Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 457/458, com base em decisão do

Tribunal Europeu de Direitos Humanos (caso Allenet de Ribemont, de 10


de fevereiro de 1995, parágrafos 6 e 37) e comentários de Louis-Edmond
Paviot Pettiti, afirma que referido Tribunal aceitou que as declarações de
autoridades policiais e até do Ministro do Interior quanto à
responsabilidade do imputado sobre determinado crime violaram a
presunção de inocência por influir no convencimento dos juízes do caso.
Concluindo, em tradução livre: “Há violação da presunção de inocência
se uma declaração oficial relacionada ao acusado transparece o
sentimento de que ele é culpado, quando sua culpabilidade não tenha
Se é compreensível algum pronunciamento mais emocionado dos familiares de uma
vítima, notadamente no calor dos fatos, o mesmo não se pode tolerar quando a conduta
se protrai no tempo, vindo a se tornar meio de exposição à mídia.
A mesma tolerância inicial, contudo, não pode ser emprestada a integrantes da
mídia em seu desempenho profissional.1388 Se o direito à informação não deve sofrer
intervenções da presunção de inocência para impedir a notícia de um fato, também essa
última garantia constitucional não pode ser afastada de modo peremptório pela forma de
tratamento que é dado ao imputado pelos meios de comunicação ou pela forma como
querem “pautar” a persecução penal e o julgamento final. Porém, como essa matéria está
mais inserida no campo do abuso no exercício do direito à informação do que
propriamente na violação da presunção de inocência por sua própria existência, ela será
tratada a seguir quando se cuida das restrições à presunção de inocência e seus excessos
violadores.1389
O importante, neste ponto do exame do âmbito de proteção, é deixar marcado que a
presunção de inocência, no processo penal, também vincula os eventuais agentes
privados que com ele se relacionem por qualquer razão. Todos devem cumprimento aos
direitos fundamentais.
Feitas considerações quanto a quem tem o dever (funcional ou não) de respeitar a
presunção de inocência, alguns pontos também precisam ser ressaltados quanto ao titular
desse princípio constitucional.
Para manter-se a coerência com as teorias constitucionais desenvolvidas e aceitas no
presente trabalho para o “suporte fático amplo” e sua decorrência para o “âmbito de
proteção” da norma fundamental, o aspecto subjetivo referente à titularidade do direito à
presunção de inocência também deverá ser amplo o suficiente para abraçar todos os
sujeitos imputáveis em uma persecução penal.1390

sido previamente estabelecida. (…) Em resumo, para o Tribunal de


Estrasburgo, se a presunção de inocência não chega a proibir a prisão
provisória ou a suspeita de que alguém cometeu um delito, impede a
toda autoridade pública um pré-juízo que signifique uma ‘declaração de
culpabilidade’”.
1388 No sentido de vincular a todos agentes (públicos e privados) à

presunção de inocência no processo penal, notadamente quanto à


atuação da imprensa, v. Eduardo M. JAUCHEN, Derechos cit., p. 103.
1389 Sobre o tema, v. maiores considerações no item 5.5.1.1 infra.
1390 Sobre os fundamentos técnico-analíticos do suporte fático amplo, v. item

4.4.1 supra. Para a análise do aspecto subjetivo do “âmbito de proteção”


da norma fundamental da presunção de inocência, v. item 4.4.2 supra.
Essa compreensão está consentânea com nossa atual Constituição na medida em
que, ao escolher o advérbio “ninguém”, o constituinte determinou que nem mesmo o
estrangeiro não residente no país pode ser privado da presunção de inocência no curso de
uma persecução penal. Não há contradição constitucional entre o caput do artigo 5º e o
seu inciso LVII. Como decorrência da característica da universalidade dos direitos
fundamentais,1391 toda e qualquer pessoa que esteja submetida à persecução penal,
segundo as leis brasileiras, terá direito a ser considerada e tratada como inocente até
decisão condenatória definitiva.1392
O ponto mais relevante quanto à titularidade do direito à presunção de inocência
surge quando se indaga se todos têm aquela proteção constitucional na mesma
intensidade, ou se poderá haver gradação (maior ou menor) daquela tutela a depender da
pessoa imputada. Tendo sempre em mente que a presunção de inocência tem como um
de seus princípios formadores a “igualdade”, a pergunta poderia ser a seguinte: alguém
pode ser mais “presumido inocente” que outrem?
A resposta à questão anterior poderia facilmente apontar para um “não”; porém, se a
pergunta fosse feita de outro modo, talvez a resposta não emergiria tão fácil: alguém pode
ser considerado “menos inocente” em decorrência de seus atos pretéritos? Em termos
mais diretos: os antecedentes criminais ou reincidência criminal de uma pessoa podem
diminuir o seu “estado de inocência”?
Para essas duas últimas perguntas a resposta DEVE ser a mesma àquela dada
anteriormente para a primeira pergunta: “NÃO”.1393 O dever que se impõe é
constitucional e, portanto, seu descumprimento gera ato (público ou particular) ou
decisão judicial violadores da presunção de inocência, e a conseqüência jurídica para isso
é ser o ato ilegal e a decisão judicial nula por vício de constitucionalidade. Do ato ilegal
poderá advir indenização ao lesado, a decisão judicial, por sua vez, deverá ser anulada e,
conforme o caso, também poderá ser causa de indenização.1394

1391 Para maiores considerações e conseqüências da característica da


universalidade dos direitos fundamentais para os direitos de primeira
geração, v. item 3.6.1 supra. Sobre a titularidade ampla do direito à
presunção de inocência, v., ainda, Juan Alberto belloch julbe, Enrique
Torres y López de lacalle, José guerra san martin, El derecho cit., pp.
1186/1187.
1392 No mesmo sentido, tratando do direito espanhol, Ana María OVEJERO

PUENTE, Constitución cit., p. 112, assim assevera, por nossa tradução:


“O que define o titular do direito à presunção de inocência é a defesa da
pessoa frente ao exercício do ‘ius puniendi’ do Estado. Portanto, os
titulares são todos os sujeitos passivos de uma possível ação impositiva
do ‘ius puniendi’ de que é titular o Estado”.
1393 Nesse sentido, v. Adauto SUANNES, Os fundamentos cit., cap. 11, e

Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 188/189. Mario CHIAVARIO,


Processo cit., pp. 131/132, comentando decisões da Corte Européia e da
Comissão Européia, indica a aceitação de que os antecedentes criminais
do imputado sejam considerados na decisão de mérito para efeitos de
Feitas essas ponderações, pode-se compreender por que as correntes criminológicas
que defendem o direito criminal do autor (penal ou processual penal),1395 ou o direito
criminal do inimigo (penal ou processual penal),1396 são inconstitucionais.1397 Porque,

cálculo de pena, não para servirem de pressupostos para a fixação da


autoria no caso concreto. Nesse último sentido (influenciar a convicção
judicial na formação de seu convencimento quanto à autoria), a
consideração dos antecedentes viola a presunção de inocência como
“norma de juízo”.
1394 Sobre o erro judiciário na decretação da prisão provisória ou de

qualquer outra medida coativa como gerador do direito à indenização, v.


item 5.4.1.2.1.5 supra. Sobre a indenização por erro judiciário na
condenação, v., notadamente, art. 5º, inc. LXXV, CR, e art. 630, CPP.
1395 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, Nilo BATISTA, Alejandro ALAGIA,

Alejandro SLOKAR, Direito penal brasileiro – teoria geral do direito penal,


Rio de Janeiro: Revan, 2003, v. 1, pp. 131/143, traçam as várias formas
de se explicar a pena e, em última análise, o direito penal. Apontam que
a diferença entre o “Direito Penal do Autor” e o “Direito Penal do Ato”
reside em que ponto se assente o “desvalor”, se na “conduta”, para esse
último, ou se no “autor”, para o primeiro. O “desvalor” entendido como
inerente (característica) do autor explica várias teorias (variantes daquele
direito penal) que colocam sobre esse personagem a fonte e destino da
preocupação repressiva estatal. Lecionam que todas as teorias que
podem ser agrupadas sob a corrente do “direito penal do autor” supõem
“que o delito seja sintoma de ‘um estado do autor’, sempre inferior ao
das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns
de ‘natureza moral’ e, por conseguinte, trata-se de ‘uma versão
secularizada de um estado de pecado jurídico’; para outros, de natureza
mecânica e, portanto, trata-se de um ‘estado perigoso’. Os primeiros
assumem, expressa ou tacitamente, a ‘função de divindade pessoal’ e,
os segundos, a de ‘divindade impessoal e mecânica’”. Para uma análise
sobre a visão criminológica das raízes históricas e ideológicas do direito
penal do autor e sua proximidade, em muitos pontos, com o direito penal
do inimigo, sua versão mais famosa a partir de Günther Jakobs e,
principalmente, após a queda das “Torres Gêmeas” por ataques
terroristas, v. Víctor GÓMEZ MARTÍN, El derecho penal de autor,
Valencia: Tirant lo Blanch, 2007, notadamente cap. 3 e 4.
1396 André Luis CALLEGARI e Nereu José GIACOMOLLI afirmam que “o

denominado ‘Direito penal do inimigo’ abriga dois fenômenos criminais: o


simbolismo do Direito penal e o punitivismo expansionista, capaz de
agregar, num mesmo ninho, o conservadorismo e o liberalismo penal. Os
paradigmas preconizados pelo ‘Direito penal do inimigo’ mostram aos
seus ‘inimigos’, toda a incompetência Estatal, ao reagir com
irracionalidade, ao diferenciar o cidadão ‘normal’ do ‘outro’. A
excepcionalidade há de ser negada com o Direito penal e processo penal
constitucionalmente previstos, na medida em que a reação extraordinária
uma vez que defendem um tratamento diferenciado para uma ou outra pessoa, conforme
a entendam diferente dos demais cidadãos, por qualquer razão que seja, partem do
pressuposto da “desigualdade” entre as pessoas, desconstituindo, assim, um dos mais
relevantes esteios da presunção de inocência: o princípio da igualdade entre os
homens.1398

afirma e fomenta a irracionalidade” (prólogo III da obra Direito penal do


inimigo: noções e críticas, de Günther JAKOBS e Manuel CANCIO
MELIÁ, organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José
Giacomolli, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 17/18). Na
mesma obra, sobre o tema do Direito Penal do Cidadão e Direito Penal
do Inimigo, encontram-se as traduções de dois textos, já considerados
clássicos, de Günther Jakobs e de Manuel Cancio Meliá.
1397 Para nós, no presente trabalho, mais que a diferença entre as teorias, o

que importa na indicação do Direito Penal do Autor e do Direito Penal do


Inimigo é o que têm em comum. Nesse viés, o que toca diretamente com
a presunção de inocência é o fato de trabalharem com o pressuposto da
“desigualdade humana” ao marginalizar ou tratar como marginais certas
“categorias” humanas escolhidas mediante critérios que podem ter como
marca distintiva (para o bem ou para o mal, já que dependem do
discrímen dos ocupantes momentâneos do poder): a religião, a opção
política, moral, sexual, ou, ainda, a condição econômica, social, etc.
1398 Luis GRACIA MARTÍN, O horizonte do finalismo e o direito penal do

inimigo, tradução de Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho, São


Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 81, ao comentar a posição de
Günther Jakobs, criador do Direito Penal do Inimigo, afirma que para
esse autor há uma diferença entre os indivíduos “tachados como
inimigos” e os outros tratados como “cidadãos”. Com base em farta
doutrina alemã, ainda destaca as características que aquela espécie de
“direito” do inimigo projeta na área processual penal: “Um sinal
especialmente significativo na identificação do Direito Penal do inimigo, e
ao mesmo tempo profundamente sensível, é a considerável restrição de
garantias e direitos ‘processuais’ dos imputados. Assim, questiona-se até
mesmo a presunção de inocência, por ser contrária à exigência de
veracidade no procedimento; são reduzidas consideravelmente as
exigências de licitude e admissibilidade da prova; são introduzidas
medidas amplas de intervenção nas comunicações, de investigação
secreta ou clandestina, de incomunicabilidade, e se prescinde do – ou se
reinterpreta restritivamente o – princípio ‘nemo tenetur se ipsum
accusare’; ou ainda, para citar apenas mais um exemplo, são ampliados
os prazos de detenção policial para o cumprimento de ‘fins
investigatórios’, bem como de prisão preventiva; e, no plano teórico e
doutrinário, defende-se inclusive a licitude da tortura” (op. cit, pp. 89/90).
A presunção de inocência, portanto, na já citada relação de complementaridade e
interdependência com o direito fundamental à igualdade,1399 estará violada de forma
direta sempre que para uma pessoa for emprestado tratamento (antecipado) de culpado
em decorrência do que ela foi ou fez no passado, do que ela representa política, social ou
economicamente, ou – pior ainda – por sua cultura, por seu meio social, por seus
parentescos ou amizades, pela religião ou seita que professe.1400 Enfim: a presunção de
inocência sempre será violada se a sua compressão for motivada pelo que a pessoa é ou
foi no passado, e não devido ao ato a ela imputado, com suas circunstâncias. A presunção
de inocência somente poderá existir em sistemas jurídicos baseados no direito penal (e
processual) do fato.1401

1399 Sobre o tema, v., notadamente, itens 1.5.4.3 e 5.3.1 supra.


1400 Nesse sentido, v. Mario PISANI, Introduzione cit., pp. 46/47.
1401 Sobre o princípio do fato, como um dos pilares do Direito Penal

moderno e inserido em um Estado Democrático e Social de Direito, v


Alberto SILVA FRANCO, Crimes cit., pp. 64/65. Com base em Antônio
Garcia Pablos de Molina, Nilo Batista e Jorge de Figueiredo Dias, assim
leciona aquele autor: “Por outro lado, não guardaria pertinência
enquadrar tipologicamente uma pessoa por sua forma de existir ou por
suas atitudes pessoais que não se refletissem em fatos concretos. Fica,
assim, à mostra a impossibilidade da criminalização de ‘uma atitude
interna’, ‘de uma conduta que não exceda ao âmbito do próprio autor’,
‘de simples estados ou condições existenciais’, de ‘condutas desviadas
que não afetem qualquer bem jurídico’. Uma pessoa só pode responder,
penalmente, pelo que fez, não pelo que é. O mecanismo controlador, em
nível penal, interessa-se tão-somente pelas condutas que se
exteriorizem em fatos, perceptíveis sensorialmente; nunca, pelas atitudes
internas, pelos pensamentos ou pelos desejos que habitam o universo
íntimo de cada um. O princípio do fato evidencia que ‘somente o
cometimento de um fato, como pressuposto da intervenção penal, traz a
esta a base sólida, inequívoca, certa e verificável que a segurança
jurídica reclama. Se a resposta penal pudesse prescindir de uma tal
conexão objetiva e externa (da conduta, do fato), seu pressuposto
careceria da mais elementar determinação e a prova ou constância deste
não ofereceria garantia alguma’. ‘O princípio do fato expressa o
pressuposto mínimo exigível à intervenção penal do Estado, já que esta
não se legitima sem a lesividade e a danosidade que, ao menos, o fato
cometido representa’. (...) O princípio contrário, o princípio oposto, o
princípio que conflita aberta e integralmente com o princípio do fato é
exatamente o princípio do autor, que se fundamenta no pressuposto de
que o interesse punitivo deve estar dirigido não ao fato cometido, mas
sim a seu autor. Mais do que a pessoa fez, interessa ao mecanismo
punitivo o que a pessoa é. Cria-se não uma tipologia de fatos, mas sim
uma tipologia de determinados autores, porque o que deve ser levado
em linha de conta é quem praticou o fato, sua personalidade e suas
características pessoais. É óbvio que o princípio do autor é um caminho
A retirada do “reincidente” ou da pessoa com “maus antecedentes” do âmbito de
proteção daquele direito fundamental, por meio da redução de sua proteção como
“norma de tratamento”, como “norma probatória” ou como “norma de juízo”, implica
aceitar que as pessoas, tal qual animais, uma vez marcadas de forma indelével e definitiva
por um ato, estão predestinadas à condenação (antecipada ou definitiva) em toda e
qualquer futura investigação e ação penais.1402 É tomar seus registros policiais ou judiciais

aberto a todo tipo de totalitarismo, e o Direito Penal acolhedor desse


princípio não encontra forma de acomodação à idéia de um Estado de
Direito”.
1402 Adauto SUANNES, Os fundamentos cit., pp. 298/300, bem aponta a

inconstitucionalidade da consideração dos antecedentes criminais como


violadores da presunção de inocência, com as seguintes ponderações:
“Em verdade há dois tipos de ‘antecedentes’ a serem considerados pelo
julgador na chamada dosimetria da pena: um compreende a conduta
social; outro compreende os antecedentes (criminais?). Se os
antecedentes se caracterizam por aquilo que justificara a instauração de
inquérito policial ou mesmo o oferecimento de denúncia, teremos
obrigatoriamente uma de suas direções: ou bem o indiciado veio a ser
denunciado e condenado definitivamente, ou não. Se foi condenado,
aqueles fatos já tiveram seu enquadramento legal, sendo certo que a
pena aplicada por força disso quedou-se imutável, tanto a teor do
princípio albergado no inciso XL do art. 5º da Constituição Federal, como
daquele que justifica a existência do contido no capítulo VII do Código de
Processo Penal (que, desenganadamente, só se aplica ao condenado),
bem como o contido no art. 626 e parágrafo único do Código de
Processo Penal. Se, ao reverso, foi ele absolvido, ‘tollitur quaestio’, pois
nosso Direito Positivo, como é sabido e ressabido, não admite a revisão,
ainda que de forma direta, da sentença absolutória, já que não alberga a
revisão ‘pro societate’”. E conclui: “Se o réu era inocente (ou ‘não-
culpado’, como preferem alguns treslendo a norma, com o claro escopo
de dar importância menor ao salutar princípio) e não foi condenado,
segue-se que ele ‘continua’ sendo inocente, pois tal situação somente se
alteraria com uma sentença condenatória trânsita em julgado, que
inocorreu. Logo, os fatos que o envolveram não podem ser trazidos em
seu desfavor, pois o Estado, tendo tido a oportunidade de apreciar os
fatos e condenar o autor, se penalmente relevantes, deixou de fazê-lo,
qualquer que seja o motivo disso”. Também destacam como violadora da
presunção de inocência a consideração dos antecedentes criminais para
determinação de restrição processual de qualquer natureza: Fauzi
Hassan CHOUKR, Garantias constitucionais na investigação criminal, 2ª
ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 38/41, e Nestor TÁVORA e
Alex SAMPAIO, Princípio da presunção de inocência, in Ricardo Augusto
SCHMITT (org.), Princípios penais constitucionais: direito e processo
penal à luz da Constituição Federal, Bahia: Edições JusPodivm, 2007, p.
184.
como uma marca tão incriminadora e irrevogável que se poria a perder todas as teorias e
trabalhos de recuperação social que fundamentam toda a atual Lei de Execução Penal.
De certo modo, é uma retomada da tese de Enrico Ferri, já exposta e refutada neste
trabalho,1403 de que as pessoas com registros anteriores, por ele denominadas “criminosos
habituais”, perdem o direito de que se lhes presuma a inocência, mesmo em fase
investigativa.1404 O mal do crime já estaria irremediavelmente inserido na pessoa que, por
isso, teria contra ela a “presunção de culpa”. Pressuposto juspolítico totalmente
incompatível com as escolhas constitucionais já destacadas e que resultaram e se
combinam com a presunção de inocência.1405

1403 Para uma análise do pensamento da Escola Positiva nos termos


expostos no texto principal e com base no qual rejeitava a presunção de
inocência e o “in dubio pro reo”, v. item 2.3.2.
1404 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., pp. 110/111, percebe uma

particular diferença entre as correntes positivistas e as novas linhas do


direito penal do inimigo na América Latina. Destaca que o alto grau de
encarceramento cautelar na região demonstra um reflexo processual da
idéia de periculosidade construída pelo Positivismo, porém, essa
“periculosidade, própria do sistema penal cautelar, não se enquadra na
velha classificação positivista, posto que não é pré-delitual (porque
suspeita-se da comissão de um delito) nem pós-delitual (porque a
periculosidade não pode ser avaliada até que o delito tenha sido
comprovado), configurando-se antes como uma terceira categoria alheia
às duas tradicionais do positivismo, que é a periculosidade da suspeita”.
Não obstante essa importante diferenciação, não deixa de tecer
extensos paralelos entre o direito penal do inimigo e toda tradição
positivista e nazifascista já expostas no presente trabalho. Sobre nossa
exposição e respectiva refutação dessas Escolas jurídicas e
criminológicas, v., respectivamente, itens 2.3 e seus subitens e 2.4.7 e
seus subitens supra.
1405 Sobre o direito penal do “hostis” carecer sempre de um Estado Absoluto

para vicejar, v. Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., item IV.6.


Sobre o tema da correlação para a formação e para a realização da
presunção de inocência, v., de modo especial e específico, os itens 5.3.1
e 5.3.2 e seus subitens supra.
Por esse “novo” viés criminológico, fundado na necessidade de se recrudescer o
tratamento punitivo da pessoa pelo que ela é, não pelo que eventualmente tenha feito,
“reabre-se” a porta para a prisão provisória obrigatória. O raciocínio se daria nos
seguintes moldes: se o suspeito é um reincidente ou possui maus antecedentes ele deve
ser, de início, preso preventivamente, pois, pelo que se sabe de sua vida ante acta, é o
“provável” criminoso; afinal, quem já delinqüiu certamente tem mais propensão
(biopsíquica ou social) de voltar a delinqüir. Essa é a base da construção da idéia de
“periculosidade”, fundamento muito utilizado para justificar prisões preventivas e pelas
quais se busca evitar o cometimento de “novos” crimes.1406
Para os direitos penal e processual penal do ato (actum)1407 a pessoa é julgada pelo
que possa ter feito, não pelo que fez antes daquele instante (ante ‘actum’). Por isso o
perfil marginalizante daquelas correntes antes citadas: fixa-se um modelo de criminoso,
neste “nicho humano” busca-se o agente da infração (esperado ou já marcado) para tratá-
lo com mais rigor e de forma antecipada. Afinal, propugnam aquelas linhas, em essência,
tal qual antes ocorria: por ser o que é (e não pelo que eventualmente fez) merece ser
tratado (direito processual) e ser punido (direito penal) com mais rigor (como inimigo,
marginal, herege, etc.).

1406 Nilo BATISTA, Introdução crítica ao direito penal brasileiro, 4ª ed., Rio
de Janeiro: Revan, 1999, pp. 93/94, com apoio no princípio da lesividade
rechaça a concepção da “periculosidade”, e seus consectários (p.ex.,
medida de segurança), por demonstrá-la um subproduto do “direito penal
do autor”, cujo primado básico para a punição (definitiva ou antecipada)
reside no “simples estado ou condição” do homem. Sobre a construção
da noção de periculosidade na Escola Positiva e sua incidência no tema
da presunção de inocência, v. itens 2.3.1 e 2.3.2 supra.
1407 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, Nilo BATISTA, Alejandro ALAGIA e

Alejandro SLOKAR, Direito cit., pp. 133/134, afirmam que não há sistema
penal puro, ou seja, que opte apenas pelo Direito Penal do Autor ou pelo
Direito Penal do Ato, mas que esse, por suas características intrínsecas,
empresta maior racionalidade ao sistema punitivo. Sobre o Direito Penal
do Ato, esclarecem que “em suas mais puras versões, o direito penal do
ato concebe o delito como um conflito que produz uma lesão jurídica,
provocado por um ato humano como decisão autônoma de um ente
responsável (pessoa) que pode ser censurado e, por conseguinte, a
quem pode ser retribuído o mal na medida de sua culpabilidade (ou seja,
da autonomia da vontade com que atuou)”.
A presunção de inocência sempre existirá para o cidadão em todas as persecuções
penais a que for submetido. Não se esvai em eventual nova persecução penal se já houve
uma condenação (definitiva ou provisória) anterior. Renova-se a cada imputação e,
mesmo que eventualmente existam registros criminais anteriores ou mesmo que tenha
sido condenado definitivamente em feito passado, não se pode negar tal direito
fundamental ao indivíduo na ação penal a que esteja submetido. Assim como também
não se pode negar-lhe o direito à ampla defesa, ao contraditório, à publicidade dos atos,
ao duplo grau de jurisdição, etc., em cada novo feito criminal que vier a responder. Com
a presunção de inocência não seria diferente. A condenação penal não é cicatriz nem
marca social ou jurídica que impeça, técnica ou constitucionalmente, a plena aplicação
da presunção de inocência. Negá-la é fruto de preconceito e de um atuar
inconstitucional.
Esses influxos criminológicos inconstitucionais não estão dispostos em nossa
legislação, por isso não podem ser citados e analisados no espaço do âmbito de proteção
da norma constitucional da presunção de inocência.1408 Porém, são utilizados como
razões (expressas ou implícitas) de decidir com freqüência maior do que se desejaria e
devem ser detectados quando do exame da motivação judicial pelas partes. Constituem
razões inconstitucionais de decidir e, portanto, se identificados, permitem a reforma da
decisão (de mérito ou de qualquer outra natureza restritiva a direito fundamental).
A exposição dessas linhas criminológicas, neste instante do trabalho, sem a
pretensão de desenvolvê-las, tem como finalidade demonstrar a qual ponto da estrutura
normativa da presunção de inocência elas tocam e ferem e, por conseqüência, que
também pela perspectiva desse direito fundamental elas são inconstitucionais.
Aspecto ainda relevante a se discutir quanto ao titular da presunção de inocência
diz respeito com as hipóteses em que a pessoa jurídica pode figurar como autora de crime
ambiental, conforme previsto na Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais).1409 A questão
relevante se coloca nos seguintes termos: há presunção de inocência para a pessoa
jurídica? Entendemos que a resposta deva ser: SIM.

1408 Eugenio RAÚL ZAFFARONI, O inimigo cit., pp. 189/190, tratando do


“suspeito” para o sistema latino-americano criminal, conclui por afirmar
que ele já é, desde o início, tratado como “inimigo”, apesar da existência
de um sistema processual penal. Afirma: “em geral, a categoria do
‘inimigo’ não é expressamente introduzida ou não são feitas referências
claras a ela no direito ordinário, visto que ao menos intui-se sua
incompatibilidade com o princípio do Estado de direito. Porém, com má
consciência, legitima-se ou ignora-se o tratamento que, naquelas
condições, é atribuído a um número enorme de pessoas”.
1409 Assim preceitua o art. 3º da referida lei: “As pessoas jurídicas serão

responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto


nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu
representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no
interesse ou benefício da sua entidade”.
Como já se destacou em momentos anteriores, a presunção de inocência, nos seus
vários desdobramentos,1410 vem sendo aplicada para além do campo processual penal,
notadamente na esfera administrativa sancionadora.1411 Dessa forma, como a persecução
penal é atividade com claro potencial sancionador, não se vê razão para mitigar a
presunção de inocência quando o imputado for pessoa jurídica.
A afirmação poderia parecer sem sentido se a presunção de inocência fosse reduzida
apenas ao seu aspecto de “norma de tratamento”. Contudo, como já se demonstrou, ela
também apresenta outros aspectos como “norma probatória” e “norma de juízo”, pontos
absolutamente inalterados se a pessoa submetida à persecução penal for física ou jurídica.
A bem se veja, nem mesmo o seu aspecto de “norma de tratamento” deverá sofrer
ressalvas ao se tratar com pessoa jurídica, isso ao se pensar que em um sistema futuro
podem ser estabelecidas medidas coativas também para esse perfil de imputado.
Obedecendo a excepcionalidade e proporcionalidade na aplicação dessas medidas, pode-
se imaginar, p.ex., a necessidade de o juiz decretar medida de intervenção na direção da
empresa, porquanto ela não pode ter suas atividades suspensas (p.ex., uma empresa de
produção de energia elétrica), mas deva exercê-las de modo mais diretamente fiscalizado.
Para finalizar esse aspecto da presunção de inocência para a pessoa jurídica, cabe
recordar que esse direito fundamental existe devido a uma opção constitucional de
“como” deve ser concebido e aplicado um sistema criminal (penal e processual penal) a
qualquer pessoa (física ou jurídica) a ele submetido. É, portanto, uma decorrência do
Estado Democrático de Direito, fixado como primado de nossa atual Constituição. Não se
trata, dessa forma, de se indagar se a pessoa é ou não física, mas qual o tipo de devido
processo penal que se espera ver projetado e aplicado no Brasil.

5.4.3.2. (segue): extensão objetiva

1410 Sobre a incidência do tema da presunção de inocência em outras áreas


do direito e, notadamente, no âmbito do direito processual que, de
qualquer modo, tenha conotação sancionadora, já indicamos extenso rol
de autores e obras na primeira nota do item 5.3.3 supra. Também quanto
ao “in dubio pro reo”, já nos manifestamos no sentido de que ele deverá
incidir em qualquer área processual destinada à reconstrução fática, cfr.
última nota do item 5.4.1.1 supra.
1411 Ana María OVEJERO PUENTE, Constitución cit., pp. 113/115, destaca

e comenta várias decisões dos Tribunais Constitucionais espanhol e


alemão no sentido de reconhecer a presunção de inocência a pessoas
jurídicas envolvidas em processos administrativos sancionadores.
Comentando outras decisões do Tribunal Constitucional espanhol, ainda
se pode consultar Esteban ROMERO ARIAS, La presunción cit., pp.
68/73. Para outros autores que aplicam a presunção de inocência no
campo administrativo sancionador, v. nota 47 supra.
No presente item a preocupação é demonstrar onde se inicia a incidência da
presunção de inocência na área processual penal e até onde ela se estende.1412 De uma
forma breve e objetiva, limitada ao âmbito do presente trabalho, deve-se compreender
que haverá presunção de inocência em todos os espaços jurídicos alcançados pelo direito
processual penal.
Para facilidade expositiva, divide-se, neste instante do trabalho, a “persecução
penal” em quatro fases: a fase investigativa; a fase instrutório-judicial; a fase recursal; e a
fase revisional. Em todas tem-se a aplicação da presunção de inocência, não há espaço
normativo processual penal ao qual ela não projete efeitos.
Para a fase denominada “instrutório-judicial”, iniciada com o oferecimento da
acusação formal (denúncia ou queixa-crime) até decisão judicial de mérito em primeira
instância, não há maiores indagações sobre a incidência da presunção de inocência: todos
os doutrinadores e legislações a aceitam nessa fase. Conforme já exposto, a doutrina, com
ou sem mitigação, também aceita a incidência da presunção de inocência na fase
recursal. Mesmo aqueles que a restringem na fase recursal como “norma de tratamento”,
porquanto defendem a possibilidade de execução provisória do julgado condenatório não
deixam de aplicá-la de modo integral como “norma de juízo”.1413
Releva analisar, contudo, como se dá a sua incidência nas denominadas “fase
investigativa” e “fase revisional”.

5.4.3.2.1. (segue): na investigação preliminar

Algumas perguntas podem servir de norte para a compreensão quanto à incidência


integral da presunção de inocência na fase investigativa: nessa fase o cidadão pode sofrer
algum ato de constrição em seus direitos de liberdade, dignidade ou igualdade? Nessa fase
há algum juízo de valor quanto a eventual conduta do cidadão? Desse eventual juízo de
valor pode advir alguma restrição em sua esfera jurídica?
Responde-se a todas as indagações anteriores de modo único e positivo ao se
constatar que já nessa fase há verdadeira imputação penal em face do cidadão.

1412 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO, Processo cit., p.


160, chama esse intervalo de “duração temporal da presunção de
inocência”. No mesmo sentido, v. Juan Alberto belloch julbe, Enrique
Torres y López de lacalle, José guerra san martin, El derecho cit., p.
1190.
1413 Sobre parte respeitável da doutrina que reduz a presunção de inocência

como “norma de tratamento” na fase recursal, v. item 5.4.2.1.3 supra,


quando se trata da inconstitucionalidade da prisão provisória para
recorrer.
Muito se discutiu se a imputação consiste em um “ato” ou em um “juízo”, ficando
assentado que a imputação é um juízo de valor que o ato revela. A imputação é
entendida, portanto, como um juízo de atribuição de algo a alguém e cuja percepção de
existência se faz pela constatação da prática de um ato. A imputação é juízo, pelo ato
apenas ocorre a sua revelação.1414
Assim, a imputação pode existir como juízo, antes que se revele como ato, porém,
no âmbito processual penal, somente se pode afirmar que há uma imputação penal a
partir do instante que algum ato estatal praticado revela aquele juízo de valor.1415 Um ato
estatal, mesmo o mais tênue, pode revelar a existência de uma imputação penal, mesmo
antes dela ser formalmente oficializada. Por exemplo, pela forma de tratamento
dispensada ao cidadão intimado para depor ou exposto à mídia, mesmo que não haja
inscrição formal de seu nome no rol dos suspeitos, pode se extrair claro juízo de
atribuição de uma conduta tida como crime a ele.

1414 Nesse sentido, Antonio SCARANCE FERNANDES, Reação defensiva à


imputação, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pp. 101/102.
1415 Antonio SCARANCE FERNANDES, Reação cit., p. 105, esclarece que

melhor seria que a imputação fosse formalizada por um ato a ser


determinado por lei, porém, como isso nem sempre ocorre, ela se revela
por ato de autoridade pública (p.ex., autoridade policial, promotor de
justiça, magistrado) com poder de atribuir a alguém uma infração penal.
Nessa compreensão ampla de imputação penal, ela se inicia a partir da existência de
qualquer ato (investigativo ou judicial) do qual se depreenda um juízo de atribuição de
um crime a uma pessoa determinada.1416 O juízo de atribuição de uma infração a alguém
é o primeiro passo da persecução penal1417 e, de ordinário, vem representado por alguma
forma de investigação preliminar (p.ex., inquérito policial e comissão parlamentar de
inquérito).1418
Nesses primeiros instantes investigativos da imputação penal, o cidadão deve ter a
seu favor toda proteção constitucional a fim de se evitarem abusos e excessos estatais.1419
Nesse contexto maior de proteção constitucional ampla insere-se a presunção de
inocência em todos os seus instantes.1420

1416 Antonio SCARANCE FERNANDES, Reação cit., p. 104, expõe que o


conceito amplo de imputação penal traz muito mais benefícios que a sua
concepção apenas restrita. Isto porque, “antes da acusação formal, pode
haver juízo idêntico, atribuindo-se a pessoa determinada a
responsabilidade pelo fato apurado e sujeitando-a a restrições, às vezes
graves como a prisão. Não há sentido em limitar-se a imputação à fase
processual, sendo de máxima importância, em um Estado democrático,
assegurar à pessoa considerada a provável autora da infração penal
meios de atuar em sua defesa. Por isso, é essencial que se trabalhe com
conceito ampliado de imputação e se admitia haver imputado (indiciado,
investigado), com direitos e deveres, desde a fase de investigação”.
Imputado, portanto, nessa visão ampla, é toda pessoa submetida a
alguma forma de atribuição/responsabilização penal, seja por ato formal
(p.ex., indiciamento, oferecimento de denúncia ou queixa-crime,
condenação recorrível ou pronúncia), seja por ato estatal ainda não
formalizado segundo as regras da legalidade (processual, administrativa
ou legislativa).
1417 Francesco CARNELUTTI, Observaciones cit., p. 139.
1418 Joaquim Canuto Mendes de ALMEIDA, Princípios fundamentais do

processo penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, pp. 61/62, já
lecionava, mesmo antes da atual Constituição, que toda investigação
deve ser livre para descobrir a verdade, mas seus atos devem encontrar
como limite a vedação ao “arbítrio” e à “injusta lesão a direitos individuais
e suas garantias. Por isso, cerceia-se, mui justamente, a liberdade de
investigação, quando, por exemplo, envolva invasões domiciliares,
buscas e apreensões forçadas, detenções prolongadas, medidas essas
cujo caráter jurisdicional não pode ser posto em dúvida”. No mesmo
sentido de garantir direitos fundamentais já na fase de investigação
preliminar, v. Antonio SCARANCE FERNANDES, Reação cit., itens 3.4 a
3.8.
1419 Na exata dimensão de todo o exposto neste item, tem se manifestado o

Supremo Tribunal Federal em várias oportunidades. Nessa linha, vale


citar trechos da decisão paradigmática do HC 79.589-7/DF (Tribunal
Pleno – rel. Octavio Gallotti – j. 05.04.200 – DJU 06.10.2000), no qual se
reconhece a necessária aplicação das garantias constitucionais,
Como “norma de tratamento”, aspecto mais significativo nessa fase investigativa, a
presunção de inocência garante ao imputado que ele não poderá ser tratado como
culpado durante toda essa fase. Isto implica que nos momentos de contato direto entre

inclusive e principalmente a presunção de inocência, na fase de inquérito


policial: “‘Com efeito’, esta Suprema Corte já se pronunciou sobre a
questão do ‘necessário’ respeito estatal aos direitos de qualquer pessoa
contra quem é instaurado procedimento de caráter investigatório (‘cuide-
se’ de investigação policial ou trate-se de inquérito parlamentar),
firmando entendimento que não permite reconhecer, ‘fora das hipóteses
previstas na Constituição’, a validade de medidas que possam gerar
restrições jurídicas à esfera de autonomia individual do indiciado, ou,
excepcionalmente, da própria testemunha. (...) Não constitui demasia
enfatizar que o princípio constitucional da não-culpabilidade, ‘além’ de
incidir, precipuamente, no domínio da prova (‘impondo’, ao órgão estatal,
o ‘ônus’ de provar a culpa daquele a quem se atribuiu a prática de um
crime), ‘também’ consagra, em nosso sistema jurídico, uma ‘regra de
tratamento’ que ‘impede’ o Poder Público ‘de agir e de se comportar’, em
relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado e ao réu, ‘como se
estes’ já houvessem sido condenados ‘definitivamente’ por sentença do
Poder Judiciário. ‘Cabe advertir’, neste ponto, como já proclamou a
‘jurisprudência’ do Supremo Tribunal Federal, sob a égide da ‘vigente’
Constituição, ‘a propósito do inquérito policial’ (que ‘também’ é conduzido
de maneira unilateral, ‘sem’ observância da garantia do contraditório, ‘tal
como ocorre com a investigação parlamentar’), que a ‘unilateralidade’
desse procedimento investigatório ‘não confere’ ao Estado o poder de
agir ‘arbitrariamente’ em relação ao indiciado ‘e’ às testemunhas,
‘negando-lhes’, abusivamente, determinados direitos e certas garantias –
‘como a prerrogativa contra a auto-incriminação’ – que derivam do texto
constitucional ‘ou’ de preceitos inscritos em diplomas legais (...). ‘Mesmo
o indiciado’, portanto, quando submetido a procedimento inquisitivo, de
caráter unilateral, em cujo âmbito ‘não’ incide a regra do contraditório (é
o caso do inquérito parlamentar e do inquérito policial), ‘não’ se despoja
de sua condição de ‘sujeito’ de determinados direitos e de senhor de
garantias indispensáveis, cujo desrespeito põe em evidência a
censurável ‘face arbitrária’ do Estado cujos poderes ‘devem’
necessariamente ‘conformar-se’ ao que ‘impõe’ o ordenamento positivo
da República”.
1420 Defendem a necessidade do respeito à presunção de inocência já na

fase de inquérito policial: Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO,


Significados cit., p. 317; idem, Presunção cit., pp. 45/46; André Luiz
NICOLITT, As subversões cit., p. 89; Fauzi Hassan CHOUKR, Garantias
cit., pp. 38/41; Aury LOPES JUNIOR, Sistemas cit., pp. 18/20; Alexandra
VILELA, Considerações cit., pp. 78/79; Eduardo Maia COSTA, A
presunção cit., pp. 71/72; José Maria LUZÓN CUESTA, La presunción
cit., p. 13; e Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 432/433.
ele e a autoridade pública, o que ocorre de modo mais intenso, p.ex., no instante do
interrogatório, não sofra constrangimentos ou abusos que o coloquem como “objeto de
prova” e não como sujeito de direito.1421 Para se evitar tais condutas violadoras da
presunção de inocência é fundamental não apenas que esses atos, ou outros a ele
assemelhados, tenham a presença de defensor, mas também que não se utilize da prisão
provisória (p.ex., a prisão temporária) como meio de constranger o imputado a depor ou,
de qualquer modo, produzir prova em seu desfavor.1422
Pelo exposto se percebe como há uma perfeita inter-relação entre a presunção de
inocência e a ampla defesa nessas hipóteses citadas. A defesa técnica garante que o
imputado não seja tratado como culpado, ou como objeto em atos de investigação de
profunda tensão entre ele e a autoridade pública. Em outro sentido, a presunção de
inocência garante a autodefesa, uma vez que impede que se decretem prisões provisórias
com escopo de constranger o investigado a abrir mão de seu silêncio ou de não produzir
prova contra si mesmo. Ambos aspectos da autodefesa.1423

1421 Nesse sentido, Eduardo Maia COSTA, A presunção cit., pp. 71/72. No
Estado de São Paulo, a Delegacia Geral de Polícia editou a Portaria
DGP 18/98, dirigida a todos agentes públicos integrantes daquela
instituição, pela qual está determinado que o “indiciado será interrogado
e o ofendido será perguntado, com a observância das garantias
constitucionais” (art. 8º). Na mesma determinação administrativa ainda
consta que todos os servidores zelarão pela imagem, privacidade, nome
e intimidade das pessoas submetidas à investigação policial, detidas ou
à disposição na condição de vítimas, sendo que todas devem ser
orientadas de seus direitos constitucionais (art. 11). Sobre o dever das
autoridades públicas preservarem a imagem do imputado de abusos por
parte dos meios de comunicação, v. item 5.5.1.1 infra.
1422 No sentido de que a prisão provisória para esse fim viola a presunção

de inocência já na fase investigativa, comentando decisão do Tribunal


Constitucional espanhol, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 448/449.
1423 Nesse sentido, v. Maria Elizabeth QUEIJO, O direito de não produzir

prova contra si mesmo, São Paulo: Saraiva, 2003, p. 78.


Conquanto não se trate propriamente de “prova” nessa fase judicial, porquanto não
há contraditório e imediação judicial, a presunção de inocência como “norma probatória”
também tem ocorrência nessa fase. Isto porque é necessária a existência de elementos
informativos incriminadores, obtidos e produzidos de forma lícita, a fim de dar lastro a
qualquer requerimento dos órgãos públicos persecutórios, tais como a prisão provisória
ou outras medidas coativas ou de qualquer forma redutora dos direitos fundamentais do
cidadão (p.ex., a busca, a apreensão e a interceptação telefônica).1424 Elementos também
imprescindíveis para que a persecução penal evolua de forma legítima, se for o caso, para
a fase instrutório-judicial.1425 Sem esses elementos incriminadores prévios e lícitos,
qualquer medida restritiva decretada pelo juízo ou o recebimento da acusação formal
serão atos violadores desse aspecto da presunção de inocência.
A presunção de inocência como “norma de juízo” também tem ocorrência na fase
investigativa. Como já exposto, esse seu aspecto incide pois é necessário se avaliar a
suficiência daqueles elementos incriminadores, prévios e lícitos, a fim do juiz formar sua
convicção sobre a legitimidade em se determinar aquelas medidas coativas, restritivas ou,
ainda, para ter a denúncia ou a queixa-crime como imputações legítimas e aptas a iniciar
nova fase persecutória. Em todos esses instantes decisórios, deverá o órgão judiciário
competente ter presente que qualquer dúvida fática ou a escolha normativa mais
apropriada deverão ser orientadas, respectivamente, pelo “in dubio pro reo” e pelo “favor
rei”.1426
Dessa forma, desde os primeiros instantes da fase de investigação preliminar, se
houver um juízo de atribuição de fato criminoso a alguém, a presunção de inocência
tutelará o imputado com toda a extensão que a Constituição exige, seja protegendo como
“norma de tratamento”, como “norma probatória” ou como “norma de juízo”.

5.4.3.2.2. (segue): na revisão criminal

Uma visão parcial da presunção de inocência, apenas como “norma de tratamento”,


significado que deflui mais diretamente da literalidade de nosso atual texto normativo
constitucional, induz a se afirmar que ela não exista na revisão criminal. Por essa visão,
levada ao extremo, chega-se a afirmar que nessa fase revisional impera o “in dubio pro
societate” ou o “in dubio contra reum”.1427

1424 No sentido de ser necessário um “mínimo probatório” para a decretação


de prisão provisória nessa fase investigativa sob pena de violação da
presunção de inocência, v. Odone SANGUINÉ, Prisión cit., pp. 460/461.
1425 Conforme já exposto no item 5.4.1.3.2 e seus subitens supra, ao se

tratar da justa causa para recebimento da denúncia e impossibilidade de


aplicação do “in dubio pro societate”.
1426 Sobre o tema, v. maiores e específicas considerações no item 5.4.2.3.1

supra.
1427 Nesse sentido, v. Vicente GRECO FILHO, Manual cit., p. 457, e

Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus cit., p. 404. Na


jurisprudência, essa rejeição do “in dubio pro reo” também se verifica,
A exposição da autonomia entre os três significados da presunção de inocência
(“norma de tratamento”, “norma probatória” e “norma de juízo”), assim como da
incidência do “in dubio pro reo” e do “favor rei” na sua manifestação como “norma de
juízo”, bem demonstra que esse direito fundamental atinge e projeta efeitos nessa fase
revisional.1428
É cediço que a fase revisional se inicia com uma decisão condenatória transitada em
julgado. Logo, já houve o encerramento de uma ação penal com uma decisão
condenatória, sobre a qual não cabe mais recurso. Com isso, para aquele fato julgado de
forma definitiva (e somente para ele), não há mais para o condenado um “estado de
inocência”.
Ao passar à condição de condenado definitivo, ele não possui mais, para o fato já
julgado, a tutela da presunção de inocência como “norma de tratamento”, devendo,
portanto, cumprir a pena que lhe foi definitivamente atribuída. Essa conclusão vem
diretamente do texto constitucional do qual se extrai a seguinte “cláusula restritiva
expressa”: “até o trânsito em julgado da sentença condenatória definitiva”.1429 Este é o
marco divisório entre o inocente e o condenado, com seu advento se põe fim à presunção
de inocência como “norma de tratamento” naquela ação penal. Após esse ponto, deverá o
condenado cumprir a pena a ele atribuída. Não se trata mais de se indagar se é ou não
devido antecipar efeitos penais da decisão, deve-se apenas aplicar a pena, a qual deverá
ser cumprida conforme estabelecido em lei e definido na decisão transitada em julgado.

p.ex.: “Em ação revisional não tem lugar o princípio do ‘in dubio pro reo’.
No reduto desta cabe ao requerente demonstrar de maneira inequívoca
e convincente o erro da decisão condenatória hostilizada. (...) Em revisão
criminal indaga-se somente se os autos verdadeiramente espelham uma
realidade diante da qual a condenação não possa subsistir, ou por
desgarrada de todos os elementos probatórios, ou por contrariar o texto
da lei, ou ainda se estiver estribada em prova falsa. Ausente o erro
judiciário, a revisão deve ser indeferida. Unânime” (RJTJRGS 159/79).
No sentido oposto, de reafirmar o “in dubio pro reo” e o “favor rei”
também na revisão criminal, v.: Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio SCARANCE FERNANDES,
Recursos cit., item 222; Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp.
156/157; e Adauto SUANNES, Os fundamentos cit., p. 299.
1428 Sobre a autonomia entre essas manifestações da presunção de

inocência, v. item 5.4.2 supra. Sobre a incidência do “in dubio pro reo” e
do “favor rei” na presunção de inocência como “norma de juízo”, v. itens
5.4.2.3.1 supra. Sobre a inter-relação entre esses três conceitos, v. itens
5.4.1.1 supra.
1429 Sobre a cláusula restritiva constitucional expressa ser modo legítimo de

restrição a direito fundamental, v. item 4.4.3.1.2 supra.


Como do texto constitucional é possível extrair vários significados, aspectos,
manifestações, interpretações ou sentidos, isto é, como de um mesmo texto normativo
são possíveis várias “normas”,1430 feito o exame apenas do sentido colhido da literalidade
direta do texto constitucional referente à presunção de inocência, o que se deve indagar é
se esta, como “norma probatória” e como “norma de juízo”, pode incidir na revisão
criminal.
A formação do título judicial condenatório definitivo, válido e eficaz também limita
a presunção de inocência em seu aspecto de “norma probatória”. Isto porque, em sede
revisional e diante da coisa julgada, o pressuposto constitucional nesta fase do devido
processo penal se inverte. Se até o trânsito em julgado o pressuposto constitucional
imposto ao Estado-Jurisdição era o “estado de inocência” do imputado, após o trânsito em
julgado de sua condenação o pressuposto, também constitucional, passa a ser a coisa
julgada condenatória. Logo, cabe ao condenado reverter esse novo pressuposto surgido
após o desenvolvimento de um devido processo penal e, para tanto, terá o ônus
probatório de demonstrar a existência de uma das hipóteses autorizadoras da revisão
criminal.1431 Não cabe ao condenado apenas alegar aquelas hipóteses, deverá carrear um
quid probatório e/ou argumentativo apto a demonstrar um daqueles permissivos legais.
Nesse sentido, percebe-se que a presunção de inocência como “norma probatória”
também não incide nessa fase revisional em benefício do condenado.
Há que se examinar, por fim, se a presunção de inocência como “norma de juízo”
incide nessa fase prevista em nosso sistema jurídico. Nosso entendimento é que sim, a
presunção de inocência como “norma de juízo” ainda se faz presente na tutela do
condenado em sede de revisão criminal.1432

1430 Sobre a distinção entre norma e texto normativo v. itens 3.7.1 supra.
1431 Como leciona Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão cit., p. 156, em “cinco
hipóteses a sentença condenatória com trânsito em julgado pode ser
revista: 1ª – violação ao texto expresso de lei penal; 2ª – contrariedade à
evidência dos autos; 3ª – sentença fundada em depoimentos, exames ou
documentos comprovadamente falsos; 4ª – descoberta de novas provas
de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou
autorize diminuição da pena; 5ª – configuração de nulidade do processo.
As quatro primeiras hipóteses estão expressamente indicadas no art.
621 do Código de Processo Penal. Do texto do art. 626 foi extraído o
último caso de revisão, conforme entendimento doutrinário e
jurisprudencial”.
1432 José I. CAFFERATA NORES, Proceso cit., p. 83, sem fazer qualquer

distinção sobre os vários significados da presunção de inocência,


conforme se realiza no presente trabalho, não deixa de reconhecer uma
“eficacia ultra-activa” à presunção de inocência para que a dúvida
sempre favoreça o condenado nas revisões criminais.
Não há incoerência em se afirmar que a presunção de inocência em alguns de seus
aspectos não incida, nem se aplique a essa fase, pois como há autonomia entre os seus
desdobramentos, nada impede que se aceite que ela não incida nessa fase como “norma
de tratamento” (porque já condenado definitivamente) ou como “norma probatória”
(porque já há coisa julgada como pressuposto probatório a ser revertido), mas que ainda
projete sua tutela constitucional como “norma de juízo”.
A presunção de inocência não é um bloco monolítico que ou se aplica como um
todo ou não se aplica em nada. Como já se demonstrou, ela é norma constitucional com
estrutura de princípio e, como princípio, tem natureza prima facie, ou seja, é aplicável na
maior medida possível, segundo as condições fático-jurídicas do caso. A presunção de
inocência não tem natureza de “norma-regra” constitucional, logo, não deve ser aplicada
do modo “tudo ou nada”, mas na maior medida possível.1433 Assim, a presunção de
inocência não é um todo indivisível e que sempre deva ser aplicada de forma total e
integral em todos os seus aspectos. Sua estrutura normativa constitucional permite
aplicação diversa a cada um de seus desdobramentos ou manifestações, até porque,
relembre-se, são porções autônomas de seu âmbito de proteção.
Demonstrada a total coerência entre o desenvolvido nos itens anteriores do trabalho
e a aplicação parcial (em apenas um de seus sentidos) da presunção de inocência na
revisão criminal, devem se expor as razões por que ela se aplica como “norma de juízo”
nessa fase revisional.

1433Sobre a natureza de “princípio” da presunção de inocência, segundo a


teoria dos princípios, e as conseqüências disso para a aplicação da
norma jusfundamental, v. item 4.3.1 supra.
Examinando-se a revisão criminal desde a Constituição, verifica-se que ela, exceção
feita à Constituição de 1937, conhecida como Constituição Polaca,1434 sempre foi um
direito reconhecido em nível constitucional.1435 Embora na atual Constituição não haja
seu reconhecimento expresso, não se pode deixar de reconhecer-lhe fundamento
político-constitucional.1436 Sua feição de garantia constitucional se revela ao se observar
que ela é meio para se desconstituir a coisa julgada, direito reconhecido expressamente
na Constituição.1437
Como decorrência desse aspecto, e este é o ponto mais relevante no presente item, a
revisão criminal é meio de se eliminar pro reo o erro judiciário, isto é, mesmo em escolha
feita pelo legislador processual penal de 1940, com todo seu intuito repressivo e
antidemocrático já apontado, fixou-se em nossa legislação que ela somente poderá ser
utilizada em favor do condenado.1438
Ao se examinar as duas primeiras hipóteses previstas no inciso I do art. 621 do
Código de Processo Penal (“sentença condenatória for contrária a texto expresso da lei
penal” ou “à evidência dos autos”), verifica-se que a mens legis formadora da revisão
criminal teve como lastro os preceitos do “favor rei” e do “in dubio pro reo”.1439 Aliás,
todas as hipóteses autorizadoras da revisão criminal estão fundadas na concepção de
“erro judiciário” em favor do condenado e, portanto, baseadas nas finalidades
constitucionais de “justiça”, “liberdade” e “respeito à dignidade da pessoa humana”,
também todas inspiradoras daqueles dois princípios humanitários.1440

1434 Para comentários sobre os influxos políticos que propiciaram essa


Constituição, em cuja vigência se criaram as condições necessárias para
a edição do atual Código de Processo Penal com feições juspolíticas
fascistas, já tantas vezes destacadas no presente trabalho, v. item 3.4.1
supra.
1435 Para a reconstrução histórica dessas previsões constitucionais

anteriores, v. Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp. 247/248.


1436 Sobre o fundamento político da revisão criminal e seu reconhecimento

normativo no art. 8.4 da Convenção Americana de Direitos Humanos (“o


acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser
submetido a novo processo pelos mesmos fatos”), v. Ada Pellegrini
GRINOVER, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio
SCARANCE FERNANDES, Recursos cit., item 202.
1437 No sentido da revisão ser garantia constitucional, v. Sérgio de Oliveira

MÉDICI, Revisão cit., item 9.2 e seus subitens, e Guilherme de Souza


NUCCI, Código cit., pp. 986/987.
1438 Atualmente essa opção juspolítica apenas e exclusivamente “pro reo”

está garantida e se tornou irreversível após a incorporação, no


ordenamento brasileiro, do já referido art. 8.4 da Convenção Americada
sobre Direitos Humanos. Para estudos dos sistemas que entendem ser
possível a revisão criminal pro societate, v. Sérgio de Oliveira MÉDICI,
Revisão cit., item 8.3
1439 Sobre a relação entre revisão criminal e “favor rei”, v.: Ada Pellegrini

GRINOVER, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio


Nesse contexto, seja pela perspectiva constitucional de garantia individual, seja pela
ratio legis infraconstitucional há perfeita identidade entre os direitos fundamentais
determinadores tanto da finalidade da revisão criminal, quanto da presunção de
inocência como “norma de juízo”: o julgador sempre deverá analisar os fatos e interpretar
as normas pela incidência do “favor rei” (para matéria legal) e do “in dubio pro reo” (para
dúvida em matéria fática).
Não há qualquer incompatibilidade constitucional ou infraconstitucional para que a
presunção de inocência como “norma de juízo” tenha inteira aplicabilidade na revisão
criminal. De fato, tanto a estrutura normativa daquele direito fundamental, quanto a da
revisão criminal se compatibilizam, e devem interagir para melhor efetivação.

SCARANCE FERNANDES, Recursos cit., p. 311. Sobre a necessidade


de que o “favor rei” seja o critério interpretativo da melhor adequação dos
fatos às hipóteses legais autorizadoras da revisão criminal, v. Sérgio de
Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp. 156/157. Deve-se recordar, por
oportuno e mais uma vez, que não obstante o legislador processual
penal de 1940 rejeitasse a presunção de inocência, reconhecia ao
menos o seu aspecto do “in dubio pro reo”, tanto que assim se
manifestou na Exposição de Motivos do referido Código. Dessa forma, é
a revisão criminal um dos institutos criados e inseridos no nosso (ainda)
atual Código por influxo desse preceito que desde a atual Constituição
integra um dos sentidos da presunção de inocência.
1440 Também por essa similitude de fundamentos justifica-se a revisão

criminal como garantia constitucional; nesse sentido, v. Sérgio de


Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp. 156/157. O estudo já empreendido
nesse trabalho sobre as origens romanas dessas duas concepções
mostra-se de todo oportuno nesse instante. Percebe-se que elas não
foram criadas ou eram aplicadas apenas para aquele que ocupasse a
posição de “réu”, ou seja, estivesse em eventual pólo passivo da ação,
mas os preceitos foram concebidos como forma de mitigar a situação
jurídica dos que estivessem em condição inferior – estivessem eles no
pólo ativo ou passivo, fosse o feito criminal ou não-criminal – por isso
aplicados (notadamente em sua versão “favor libertatis”) nas ações (não-
penais) em que o escravo romano pleiteava (como autor) sua liberdade.
Com o avançar da história, mesmo na fase obscura da Inquisição,
sempre foram utilizados para o imputado, ou seja, para aquele
submetido à persecução penal e para quem um crime fosse irrogado.
Sobre essas características originárias desses dois preceitos, v. itens
1.2.1.1 (nota 11), 1.2.2 (nota 48) e 1.2.3.3.1 (notas 95 e 96 supra).
Não obstante os argumentos até agora expendidos, resta destacar um outro que
também demonstra a procedência da aplicação da presunção de inocência como “norma
de juízo” na revisão criminal: as pacíficas posições doutrinária e jurisprudencial de que o
empate no julgamento da revisão criminal favorece o condenado; por força da aplicação
analógica do § 1º do art. 615 do Código de Processo Penal.1441 Nesse sentido, estando a
turma julgadora composta em número par de integrantes para a análise do caso concreto,
caso haja empate entre os julgadores que têm certeza da procedência da revisão criminal

1441 Assim preceitua o dispositivo citado: “Havendo empate de votos no


julgamento de recursos, se o presidente do tribunal, câmara ou turma,
não tiver tomado parte na votação, proferirá o voto de desempate; no
caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao réu”. Não
obstante o artigo ressaltado se aplique especificamente para o
julgamento colegiado de apelação e recurso em sentido estrito, vem
sendo aplicado por analogia aos casos de empate na decisão de revisão
criminal. Nesse sentido, v. Julio Fabbrini MIRABETE, Processo cit., p.
685, e Damásio E. de JESUS, Código cit., p. 491. O Supremo Tribunal
Federal adota essa posição já desde muito antes da atual Constituição,
como se depreende dos seguintes julgados: “Revisão criminal. Empate
na votação, com o voto do presidente do grupo de câmaras. Caso em
que se aplica a parte final do pra. (sic) do art. 615 CPP, vedada a
convocação de juiz para proferir voto de desempate. Precedentes do
STF. Recurso extraordinário não conhecido, por ausência de seus
pressupostos legais, concedendo-se, porém, de oficio, ordem de habeas
corpus (CPP. art. 654, par. 2, e regimento do STF, art, 188, II)” (STF – 1ª
T. – RE 86.033 – rel. Bilac Pinto – j. 27.10.1977 – DJU 12.12.1977).
“Processual penal. Revisão criminal. Empate na votação, com o voto do
presidente do grupo de câmaras. Prevalência da solução favorável ao
requerente. Precedentes do Supremo Tribunal Federal” (STF – 2ª T. –
HC 59.863 – rel. Decio Miranda – j. 22.06.1982). Diversos Tribunais vêm
decidindo dessa maneira, como, p.ex., o Tribunal Regional Federal da 4ª
Região, cujo próprio Regimento Interno prevê, no parágrafo único de seu
art. 141, que “nos feitos de natureza penal, prevalecerá a decisão mais
favorável ao réu (CPP, art. 615, § 1º)”. Veja-se a aplicação desse
dispositivo nas seguintes decisões de revisões criminais deste Tribunal
Regional: “Prosseguindo o julgamento, face à ocorrência de empate, a
quarta seção, nos termos do art. 141, parágrafo único, do RI, fez
prevalecer os votos pela procedência da ação revisional (...)” (TRF 4ª R.
– 4ª Seção – Rev. Crim. 200304010306299 – rel. Tadaaqui Hirose – j.
31.03.2005 – DJU 04.05.2005). “A seção, decidindo em favor do
requerente, em face do empate na votação, julgou procedente a revisão
criminal (...)” (TRF 4ª R. – 2ª Seção – Rev. Crim. 200604000117756 –
rel. Élcio Pinheiro de Castro – j. 20.07.2006 – DJU 02.08.2006).
e os que a entendem improcedente, prevalece a decisão mais favorável ao autor da
revisão, em clara aplicação do “in dubio pro reo” nas decisões colegiadas.1442
Ao transportarmos a dúvida colegiada para o íntimo de cada julgador que participa
da revisão criminal o resultado não pode ser diverso. Se um julgador está dividido entre
as provas que indicam a improcedência da revisão criminal e outras provas pelas quais ela
é procedente, também deverá aplicar (agora em seu íntimo) o “in dubio pro reo”, como
manifestação da presunção de inocência em seu instante de “norma de juízo”, ao tomar
sua decisão pessoal. Portanto, a decisão individual daquele julgador, que em seu íntimo
chegou à dúvida fática, deve-se orientar pela procedência da impugnação. Se o empate na
votação conduz à aplicação (colegiada) do “in dubio pro reo”, a dúvida fática íntima
também deverá provocar o mesmo efeito, qual seja, orientar o julgador, em sua decisão
pessoal, a aplicar o “in dubio pro reo”.
Entendida a possibilidade e compatibilidade de aplicação da presunção de inocência
como “norma de juízo” no âmbito da revisão criminal, deve-se analisar como isso deve
ocorrer.
A presunção de inocência como “norma de juízo” aplica-se à revisão criminal desde
o seu primeiro instante. Já citado o “in dubio pro reo” como dúvida fática quando se
tratou do empate na votação, deve-se analisar como o “favor rei” tem ocorrência nessa
fase revisional.
A incidência do “favor rei”, integrante deste aspecto da presunção de inocência, já
se manifesta na interpretação das hipóteses legais permissivas da revisão criminal. Assim,
p.ex., do texto normativo do inciso I, que prevê a possibilidade de impugnação quando a
decisão condenatória for contrária ao texto expresso de “lei penal”, deve-se depreender
não apenas a lei penal em sentido estrito, mas toda e qualquer disposição legal que
projete efeitos na área penal. Nesse contexto, deve-se alargar a compreensão daquele
preceito normativo para que por “lei penal” se tenha não só a lei material penal, mas
também a lei processual e a norma constitucional com esse cariz.1443

1442 Aplicação interessante do “in dubio pro reo” quanto ao tema dos
julgamentos colegiados é trazida por Carlos Augusto BONCHRISTIANO,
A aplicação do princípio in dubio pro reo nos tribunais, Revista de
Julgados do Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, São
Paulo, v. 29, jan./mar. 1996, pp. 21/24. Para ele, os recursos de
apelação e em sentido estrito deveriam ser julgados por apenas dois
desembargadores e, no caso de divergência entre eles, a decisão
deveria ser a mais favorável ao imputado pela incidência do “in dubio pro
reo”.
1443 No sentido de entender por “lei penal” tanto a lei penal material, como a

lei processual penal, v.: Fernando da Costa TOURINHO FILHO,


Processo cit., p. 613; Sérgio de Oliveira MÉDICI, Revisão cit., pp.
158/159; Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio MAGALHÃES GOMES
FILHO, Antonio SCARANCE FERNANDES, Recursos cit., p. 321;
Guilherme de Souza NUCCI, Código cit., pp. 988/989; e Paulo RANGEL,
Até mesmo porque seria um contra-senso que a condenação de uma pessoa
derivasse do não cumprimento (ou contrariedade) de um dispositivo constitucional, que
é a fonte mais elevada de todas as normas de nosso ordenamento, e não se pudesse inserir
esse mesmo dispositivo para atender uma das hipóteses permissivas do pedido de revisão
criminal. Assim, por exemplo, a violação do direito de defesa, porquanto o profissional
não tivesse habilitação profissional para exercer a defesa técnica do condenado, gera uma
nulidade que em nada se relaciona com o direito penal debatido na causa. É violação de
direito constitucional (art. 5º, LV, CR) e de dispositivo processual (art. 261, CPP) e, para
isso, claramente o legislador infraconstitucional permite a interpretação extensiva do
texto normativo, inclusive porque a nulidade processual advinda daquela violação está
prevista como um dos possíveis resultados a que pode chegar a revisão criminal (art. 626,
caput, última parte, CPP).
Outro aspecto da presunção de inocência como norma de juízo aplicável à revisão
criminal refere-se ao exame da noção de “suficiência” do conjunto probatório acostado
aos autos criminais dos quais emergiu a decisão condenatória definitiva impugnada.
Assim, p.ex., todas as vezes em que a revisão se fundar na alegação de “prova nova”,1444
deverá o Tribunal ad quem reexaminar se com essa prova o juízo de suficiência anterior,
que levou à condenação definitiva, restará mantido. Esse instante cognitivo realizado
pelo Tribunal também é manifestação da presunção de inocência como norma de juízo.
Resumindo, a presunção de inocência como “norma de juízo” tem incidência plena
na revisão criminal, seja reexaminando o material probatório constante da ação penal a
ser revista em face da prova nova (acrescida ou não apreciada anteriormente), seja
emprestando critério axiológico de interpretação legal (“favor rei”), seja, ainda, como
forma de dirimir dúvida fática (“in dubio pro reo”).

Direito cit., p. 886. No sentido de entender por “lei penal” também a


norma constitucional, v. Vicente GRECO FILHO, Manual cit., p. 457.
1444 Sobre o conceito de “prova nova”, Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio

MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio SCARANCE FERNANDES,


Recursos cit., p. 324, lecionam: “Em matéria de prova nova, a
interpretação da lei processual penal é mais abrangente do que a do
Código de Processo Civil (art. 485, VII, CPC): neste, entende-se que a
nova prova, descoberta após a sentença, deve referir-se a fato já
alegado no curso do processo que culminou na sentença rescindenda.
No processo penal, presta-se à revisão qualquer prova nova, atinente ou
não a fato alegado no processo, incluindo a relativa a fato novo, não
suscitado no primeiro processo, fato que pode até ter sido descoberto
depois. Uma interpretação ainda mais aberta do texto processual penal
pode levar ao entendimento de que a prova, conhecida e apresentada no
primeiro processo, e que chegou a ser apreciada pelo juiz, pode ser
reexaminada como prova nova, com argumentação diversa da
desenvolvida pela sentença: é o que pode ocorrer, por exemplo, com a
reapreciação da prova em virtude de novos conhecimentos científicos”.
5.5. Restrições da “presunção de inocência”

Conforme já exposto, tanto a restrição quanto a violação são formas de intervenção


estatal no âmbito de proteção do direito fundamental. A diferença entre elas, ao menos
na linha desenvolvida no presente estudo, é que a primeira constitui “legítima”
intervenção estatal no âmbito de proteção da norma de direito fundamental, enquanto a
segunda espécie (violação) apresenta-se como “ilegítima” redução daquele direito.1445
Como no item anterior foram analisadas a extensão do âmbito de proteção da
presunção de inocência e as principais violações existentes em nível legislativo, cabe
examinar neste item apenas suas formas de restrição.1446 Assim, não há mais que se
discutir, ao menos em nível legislativo-abstrato de elaboração da norma processual penal,
se a intervenção está justificada constitucionalmente e se foi elaborada em termos
proporcionais. As principais normas processuais penais vigentes e que não atendem tais
exigências legitimadoras já foram objeto de comentários anteriores.
A análise do presente item terá como referência as normas processuais penais cuja
elaboração não fere, ao menos em tese, a presunção de inocência, mas que poderão violá-
la se a sua aplicação/interpretação for abusiva. Isso significa dizer que uma norma
legítima no plano abstrato pode se tornar ilegítima pelo modo como é aplicada ao caso
concreto, tornando-se violadora a sua aplicação.
Como a finalidade do presente estudo não é analisar todas as normas processuais
penais que possam, direta ou indiretamente, representar uma restrição à presunção de
inocência, mas apenas demonstrar como elas devem se integrar na estrutura normativa
daquele direito fundamental, o exame dessas restrições terá como escopo demonstrar que
aquele direito fundamental não é absoluto em suas principais manifestações.
Para tanto, escolheram-se alguns institutos processuais que representam, se não
forem usados de forma desproporcional ou desviados da justificação constitucional para a
qual foram concebidos, legítimas mitigações à presunção de inocência em seus sentidos
de “norma de tratamento”, “norma probatória” e “norma de juízo”.1447

5.5.1. (segue): como “norma de tratamento”

1445 Sobre nossa distinção conceitual entre restrição e violação, v. item 4.4.3
supra.
1446 A única exceção a essa escolha expositiva ocorreu ao se analisar a

inaplicabilidade do “in dubio pro reo” nas absolvições sumárias, no item


5.4.1.3.2 supra. Isto porque entendeu-se haver uma maior ganho
narrativo tratar aquela restrição à presunção de inocência juntamente
com sua violação correlata e representada pelo dito “in dubio pro
societate”.
1447 Sobre os conceitos de “norma de tratamento”, “norma probatória” e

“norma de juízo”, v., respectivamente, os itens 5.4.2.1, 5.4.2.2 e 5.4.2.3


supra.
Como já se destacou acima, a presunção em seu sentido de “norma de tratamento”
garante ao imputado que, no curso persecutório, não poderá ser tratado como culpado.
Em outros termos, isso significa dizer que a ele não poderão ser impostas quaisquer
restrições que configurem forma de antecipação de pena.
Com base nesse significado da presunção de inocência, as persecuções penais não
podem implicar, de ordinário, restrição à liberdade ou ao patrimônio do imputado,
porém, há casos em que tais restrições são inevitáveis. Por isso não ser inconstitucional a
previsão legal de espécies de prisões provisórias ou de outras medidas constritivas de sua
liberdade, de seu patrimônio ou do exercício de alguns outros direitos.
Logo, as normas que não forem, já no plano abstrato-legislativo, violadoras daquele
princípio, somente poderão ser aplicadas se obedecerem à justificação constitucional e à
proporcionalidade, indispensáveis a toda medida restritiva, para ser considerada
legítima.1448
Conforme já exposto anteriormente, a Constituição exige a elaboração de um novo
sistema de medidas coativas, porém, analisando o que existe de legítimo no vigente
ordenamento, é imprescindível que a presunção de inocência oriente a sua interpretação
e aplicação. Nesse sentido, qualquer medida coativa deve ser determinada apenas em
situações excepcionais e para as quais a proporcionalidade deve vir justificada em cada
um de seus elementos integrantes (adequação, necessidade e ponderação –
proporcionalidade em sentido estrito). Deve guardar tendência transitória e ter
verificada periodicamente a conveniência de sua manutenção. Ainda dentro de uma
abordagem ampla, somente poderá ser determinada se houver previsão legal e for
devidamente justificada em decisão judicial.1449
Com esses cuidados e ressalvas devem ser interpretados e aplicados os preceitos do
parágrafo 1º do art. 56 da Lei 11.343/2006 (Lei de Tóxicos)1450 e do art. 294 da Lei
9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro).1451 Para que tais medidas não se transformem
em antecipações de pena, o julgador deverá tê-las como excepcionais e cuja aplicação
deve vir precedida de decisão fundamentada, pela qual se demonstre uma escolha
proporcional em atenção à justificação teleológica das normas.

1448 Sobre as várias disposições violadoras da presunção de inocência já no


plano abstrato, v. os vários dispositivos comentados no item 5.4 supra.
1449 Para o melhor desenvolvimento desses aspectos nas medidas coativas,

v. item 5.4.1.2.1 e seus subitens supra.


1450 “Art. 56. Recebida a denúncia, o juiz designará dia e hora para a
audiência de instrução e julgamento, ordenará a citação pessoal do
acusado, a intimação do Ministério Público, do assistente, se for o caso,
e requisitará os laudos periciais. § 1º Tratando-se de condutas tipificadas
como infração do disposto nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 a 37 desta Lei,
o juiz, ao receber a denúncia, poderá decretar o afastamento cautelar do
denunciado de suas atividades, se for funcionário público, comunicando
ao órgão respectivo”.
1451 “Art. 294. Em qualquer fase da investigação ou da ação penal, havendo

necessidade para a garantia da ordem pública, poderá o juiz, como


No primeiro caso citado, referente à Lei de Tóxicos, o afastamento da função pública
somente poderá ocorrer desde que, como prius, haja demonstração do “fumus delicti
commissi” (materialidade certa e indícios suficientes de autoria). Após essa constatação
pelo juízo, faz-se necessário indicar o “periculum” de se manter o imputado em sua
função e a razão de se entender tal medida como a mais indicada.
Caso não haja demonstração de perfeita correlação entre o mal que se quer evitar
(“periculum”) e a referida medida restritiva, a decisão carecerá de proporcionalidade
(adequação, necessidade e ponderação) e, portanto, sendo abusiva, caracterizar-se-á
como violação à presunção de inocência como “norma de tratamento”, devendo ser
reformada.
Não poderá haver, também, em nenhuma hipótese, a determinação da medida como
forma de constranger profissional ou socialmente o imputado, antecipando efeitos
somente admissíveis com a decisão definitiva, se eventualmente vier a ser condenatória.
Caso isso ocorra, haverá violação por descumprimento da justificação constitucional da
norma e, portanto, também por esse viés, deverá ser anulada a decisão a fim de se evitar a
ilegítima redução do direito fundamental da presunção de inocência.
Mutatis mutandis, o mesmo raciocínio deve ser empregado para o referido
dispositivo do Código de Trânsito Brasileiro. A suspensão da permissão ou da habilitação
para dirigir somente poderá ocorrer em situações excepcionais, notadamente se a
profissão do imputado depende do livre exercício desse direito. Somente após comprovar
com base em dados objetivos e existentes nos autos o “fumus delicti commissi” e expor,
ainda tendo como base dados objetivos e constantes dos autos, qual é o perigo que o
exercício do direito de dirigir representa no caso, poderá o juiz determinar a suspensão.
Caso não haja elementos incriminadores ou reveladores daquele perigo, a decisão
violou a presunção de inocência como “norma probatória”. Caso a medida se mostre
desproporcional em face do perigo indicado como ao ser evitado ou, ainda, tenha como
finalidade apenas antecipar efeitos de eventual de futura decisão condenatória, sem
guardar qualquer relação com a justificação constitucional da norma, haverá violação da
presunção de inocência como “norma de tratamento”. Em todas essas hipóteses ela
deverá ser anulada e a medida será desconstituída por violação ao direito fundamental da
presunção de inocência.
Essas duas medidas cautelares estão previstas em legislação especial mas devem ser
consideradas regulamentadas de modo insatisfatório em seus requisitos, seus
pressupostos, seus limites e sua revisibilidade. Se atendem a legalidade exigida para que o
julgador possa aplicar qualquer medida restritiva ao cidadão, carecem, ainda, de melhor
estruturação.

medida cautelar, de ofício, ou a requerimento do Ministério Público ou


ainda mediante representação da autoridade policial, decretar, em
decisão motivada, a suspensão da permissão ou da habilitação para
dirigir veículo automotor, ou a proibição de sua obtenção”.
A falta de previsão de um rol amplo de medidas coativas no atual ordenamento
jurídico é um ponto crítico a ser examinado. Atualmente, não obstante inexistir essa
previsão, o Poder Judiciário não pode utilizar-se de um poder geral de cautela para criar
medidas não tipificadas na legislação processual penal, porquanto tal comportamento
traz dois prejuízos ao sistema.1452
O primeiro é romper com a segurança inerente à exigência da legalidade processual,
conquanto isso muitas vezes se faça em (alegado) benefício do imputado. A legalidade
traria consigo uma necessária fixação de critérios e valores constitucionais para guiar a
interpretação/aplicação das medidas pelo julgador; logo, na sua ausência, o julgador tem
apenas como referencial sua avaliação do que deva ou não ser mais relevante na
determinação da medida. Nesse amplo espaço causado pelo vazio legislativo é que se
inserem medidas coativas diversas da prisão provisória – e esta é a razão para se alegar
que elas são “benéficas” ao imputado –, sem que haja critério em sua determinação.
Passa-se a acreditar que tudo que não for prisão provisória está correto, é proporcional e
está justificado constitucionalmente.
O segundo prejuízo trazido ao sistema pelo Poder Judiciário quando age sem
previsão legal é o fato de encobrir uma situação de evidente vazio legislativo e, com isso,
esconder a inércia legislativa violadora de vários direitos fundamentais, dentre os quais a
presunção de inocência. É necessário que o Judiciário reconheça a inconstitucionalidade
do atual sistema e a sua impossibilidade de atuar fora da legalidade processual como
forma mais efetiva de expor a crise sistêmica que já dura mais de vinte anos.

1452Sobre a impossibilidade do juiz penal ter o denominado “poder geral de


cautela” para aplicação de medidas coativas não previstas em lei
(inominadas), mesmo que a pretexto de serem medidas menos invasivas
se comparadas com a prisão provisória, v. Aury LOPES JÚNIOR, Direito
cit., vol. II, pp. 51/52. Reconhecendo a impossibilidade de se empregar o
denominado “poder geral de cautela” pelo juiz penal, o Anteprojeto de
Reforma do Código de Processo Penal, de iniciativa do Senado Federal,
prevê, no seu artigo 514, que o juiz somente poderá aplicar medidas
cautelares previstas em lei, logo, a proposta de novo Código rejeita,
expressamente, o poder geral de cautela do juízo penal para medidas
inominadas.
Dessa forma, ocorre violação da presunção de inocência tanto se as normas
existentes são aplicadas de forma abusiva e sem a justificação constitucional esperada1453
quanto se são “criadas” opções judiciais para suprir a ausência de lei, pois, desta última
forma, “legitima-se” uma indevida tolerância com a falta de legalidade processual. O
Poder Judiciário pode interpretar e aplicar as normas existentes em conformidade com a
Constituição, porém não poderá fazer as vezes do Poder Legislativo na tarefa de
conformar os direitos fundamentais por meio de normas infraconstitucionais. O Poder
Judiciário deve aplicar as leis e, também, examinar a sua constitucionalidade, mas não
pode criá-las. Isso é uma função, uma atividade, um poder e um dever exclusivos do
Poder Legislativo.
Fica evidente, portanto, que a inércia legislativa – que conforme já exposto constitui
em si uma violação à presunção de inocência1454 – exige do julgador uma atenção
redobrada para não ceder aos influxos juspolíticos advindos do sistema previsto no
Código de Processo Penal e do texto literal de outras normas infraconstitucionais de
mesma natureza e inseridas em legislação especial ou extravagante. Há, com isso, uma
sobrecarga da tarefa judiciária para utilizar o atual aparato processual penal sem violar a
presunção de inocência. Contudo, determinar a medida coativa de forma legítima não é o
único cuidado que o julgador deve ter em relação à presunção de inocência como “norma
de tratamento”, ainda deverá zelar para que não haja abusos e excessos na forma de
cumprimento daquelas medidas coativas por parte dos agentes estatais.
Isso significa dizer, em síntese, que a inércia legislativa exige redobrada atenção do
juiz tanto no sentido de bem interpretar/aplicar as poucas normas processuais existentes
e que tratam de medidas coativas quanto no sentido de que deve cuidar para que sua
execução não gere, de per si, outra forma de violação à presunção de inocência.
Essa violação da presunção de inocência como “norma de tratamento”, consistente
na indevida e abusiva execução da medida, pode gerar prejuízos diretos à pessoa do
imputado, p.ex., quando é empregada violência física ou outra providência
desproporcional para a execução da ordem judicial, como também, e principalmente,
quando essa forma abusiva é transmitida pelos meios de comunicação. A indevida
transmissão pelos meios de comunicação, portanto, tanto pode agravar uma violência
perpetrada (no caso de transmissão do abuso a um número indeterminado de pessoas),
quanto pode representar uma outra violação (pela exposição do imputado como culpado).
Como os abusos consistentes na divulgação de imagens pelos meios de comunicação
serão tratados no próximo item, cabe terminar o presente tópico com considerações
sobre abusivos meios de execução de medidas coativas por parte da autoridade pública
em relação ao imputado.

1453 Sobre a aplicação abusiva como violação de restrição em tese


permitida, v. nossas considerações sobre a prisão temporária no item
4.5.1.1 supra.
1454 Sobre o tema, v. itens 3.8.2 e seus subitens e 5.2 supra.
Embora não seja o único, nesses casos desponta o problema com o uso indevido de
algemas.1455 O uso desse instrumento de contenção do imputado não é, de per si,
violador, uma vez que pode ser importante no controle do preso que, insurgindo-se
contra a ordem da autoridade pública, pode oferecer resistência de modo violento ou,
ainda, colocar em risco sua integridade física ou a de outras pessoas. A violação deriva,
portanto, do excesso em seu uso, pois o modo excessivo de empregá-las atenta “à
incolumidade do preso, custodiado e do transportado o agente público que, por excesso
ou desvio do poder discricionário, abusando o põe em algemas”.1456 Isso fica mais
evidente quando o preso, visivelmente disposto a colaborar com a ato da autoridade, é
posto em algemas apenas como forma de lhe atingir o moral e a imagem que possui
perante as demais pessoas presentes ou que, de qualquer modo, assistem (ou virão a
assistir por meios televisivos) ao ato.1457
O vazio legislativo,1458 quanto à forma de execução das medidas coativas de uso de
algema em cotejo com várias ocorrências humilhantes e violadoras da dignidade de
dezenas de presos provisórios, fizeram com que o Supremo Tribunal Federal editasse
uma Súmula Vinculante a respeito da matéria, nos seguintes termos: “Súmula Vinculante
nº 11. Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou
de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros,
justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil
e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se
refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.1459

1455 Nesse sentido, bem se colocam as palavras de Antônio SCARANCE


FERNANDES, Funções e limites da prisão processual, in Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 15, nº 64, jan./fev.,
2007, p. 244: “Também muito grave, hoje em dia, é o uso da prisão como
espetáculo público, evocando as exibições públicas dos cristãos nos
circos romanos. Sempre que alguém é preso, principalmente se tiver
alguma projeção no país, é exposto pela mídia para satisfação e alegria
do povo. E, nessa exposição, para haver um belo espetáculo, o preso
tem que estar algemado. Sem a colocação de algemas, a cena da prisão
apresentada pela mídia fica enfraquecida e perde o espetáculo”.
1456 Sérgio Marcos de Moraes PITOMBO, Emprego de algemas: notas em

prol de sua regulamentação, Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 74, n.


592, fev., 1985, p. 285.
1457 Fernando da Costa TOURINHO NETO e Joel Dias FIGUEIRA JÚNIOR,

Juizados especiais cíveis e criminais: comentários à Lei 9.099/1995, 4ª


ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 521/522, informam que
a “algema é o símbolo maior de humilhação” e que seu uso excessivo e
indevido pode configurar crime de abuso de autoridade, “nos termos do
art. 3º, i e 4º, b, da Lei 4.898, de 09.12.1965 (Lei de Abuso de
Autoridade), da época da ditadura”.
1458 Fernando da Costa TOURINHO NETO e Joel Dias FIGUEIRA JÚNIOR,

Juizados cit., p. 521, indicam que o art. 199 da Lei 7.210/84 (Lei de
Execução Penal), que prevê, há quase vinte e cinco anos, que o uso de
algemas seria regulado por decreto federal, espera normatização. No
parágrafo primeiro do art. 234 do Código de Processo Penal Militar (“O
emprego de algemas deve ser evitado, desde que não haja perigo de
fuga ou de agressão da parte do preso, e de modo algum será permitido,
nos presos a que se refere o art. 242”) há uma incipiente
regulamentação que não atende e não é observada em muitas
ocorrências cotidianas. Após a edição da Súmula Vinculante nº 11, pelo
Supremo Tribunal Federal em sessão de 13/08/08 e publicada em
21/08/08, o Congresso Nacional teve iniciativas de regulamentar a
matéria. Na Câmara dos Deputados surgiu o PL nº 3.887/2008, que não
teve movimentação desde que foi proposto, em agosto de 2008. No
Senado Federal, um projeto de lei de 2004 sobre a matéria (PLS nº
185/2004), teve parecer da Comissão de Constituição e Justiça, em 20
de agosto de 2008, e não foi novamente apreciado desde então. Como
se vê, há uma forte tendência do Congresso Nacional em somente
atender aos reclamos quando as matérias ganham os noticiários,
voltando tudo ao esquecimento após um curto período.
1459 O Supremo Tribunal já se manifestava sobre a necessidade de se coibir

os abusos nos usos de algemas em prisões provisórias que se tornavam


espetáculos midiáticos. Em acórdão relatado pela Ministra Cármem
Lúcia, após reconhecer que o Código de Processo Penal não trata do
tema de forma específica, a relatora expôs que o seu uso não pode se
distanciar de balizas constitucionais e deve ser inferido “a partir da
interpretação dos princípios até mesmo das regras vigentes”. Isto para
que seja utilizada na exata medida do necessário e sem desnaturar-se
em medida violadora do Estado Democrático de Direito e da dignidade
da pessoa do imputado. Mesmo sem ser expresso no tocante à
“presunção de inocência”, o acórdão não deixa de destacar que a
humilhação provocada pelo uso indevido da algema é forma de “punição
sem lei”, in verbis: “De outra parte, é inegável que as algemas tronaram-
se símbolo da ação policial, de um lado, e da submissão do preso àquele
que cumpre a ordem de prisão. E é com essa figuração que pode se
tornar uma fonte de abusos e de ação espetaculosa, que promove a
prisão como forma de humilhação do preso e não de garantia da
segurança das providências adotadas. Como se deu em relação aos
ferros – a prisão em ferros e aos braceletes (quando se imaginava que
seria necessário imobilizar o preso qualquer que fosse a sua situação) –
as algemas são mais uma forma de impedir reações violentas ou
indevidas dos presos, quer quanto a fuga, quer quanto a reações que
ponham em risco a vida dos próprios presos, dos policiais ou de
terceiros. O que não se admite, no Estado Democrático, é que elas
passem a ser símbolo do poder arbitrário de um sobre outro ser humano,
que ela (sic) sejam forma de humilhação pública, que elas se tornem
instrumento de submissão juridicamente indevida de alguém sobre o seu
semelhante. Nem ao menos, então, seria uma pena, mas uma forma de
Todavia, o uso indevido de algemas pode não ser apenas como meio de degradação
da imagem do imputado e, portanto, violador da presunção de inocência tão-só como
“norma de tratamento”. Seu uso abusivo também pode representar forma de a autoridade
pública influir no julgamento da causa, o que ocorre notadamente em crimes de
competência do Tribunal do Júri, uma vez que o juiz leigo está muito mais propenso a
essas influências externas e inconstitucionais.
Nesse último sentido a violação à presunção de inocência se projeta em seu
significado de “norma de juízo”, porquanto por meio daquela forma ilegal de tratamento
se busca projetar na convicção dos jurados a imagem do imputado como a de um
condenado e, portanto, apresentar-lhes uma situação já consumada para que possam
apenas confirmá-la.1460
Do mesmo modo violador à presunção de inocência agem as autoridades policiais
quando tratam, expõem o imputado (preso ou conduzido ao distrito policial), ou a ele se
referem aos meios de comunicação, como culpado.1461

punição sem lei que a fundamente e, o que é mais e pior, sem causa
específica e sem reparação moral possível para os danos que a imagem
do preso teria arcado” (STF – 1ª T. – HC 89.429 – j. 22.08.2006 – DJU
02.02.2007).
1460 Nesse sentido, comentando acórdão do Tribunal de Justiça de São

Paulo que anulou julgamento pelo fato do acusado permanecer


algemado na sala de audiência durante toda a sessão de julgamento
perante o Tribunal do Júri sob a alegação dele ser “perigoso”, v. Antonio
MAGALHÃES GOMES FILHO, Sobre o uso de algemas no julgamento
pelo júri, Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, número
especial de lançamento, dez., 1992, pp. 114/115. Sobre o tema, v.,
ainda, Ana Lúcia Menezes VIEIRA, Processo penal e mídia, São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003, pp. 172/173.
1461 Quanto ao uso indevido e abusivo uso de algema, sua exposição à

mídia como forma de punição antecipada e, portanto, a violação à


presunção de inocência, destaca-se, ainda do acórdão supra citado (HC
89.429), a seguinte passagem do voto da Ministra Cármen Lúcia:
“Vivemos, nos tempos atuais, o Estado espetáculo. Porque muito
velozes e passáveis, as imagens têm de ser fortes. A prisão tornou-se,
nesta nossa sociedade doente, de mídias e formas sem conteúdo, um
ato deste grande teatro que se põe como se fosse bastante a
apresentação dos criminosos e não a apuração e a punição dos crimes
na forma da lei. Mata-se e esquece-se. Extinguiu-se a pena de morte
física. Mas instituiu-se a pena de morte social. (...) As algemas, em
prisões que provocam grande estardalhaço e comoção pública,
cumprem, hoje, exatamente o papel da infâmia social. E esta é uma
pena que se impõe antes mesmo de se finalizar a apuração e o processo
penal devido para que se fixe a punição necessária para que a
sociedade imponha o direito a que deve submeter o criminoso. Se a
prisão é uma situação pública - e é certo que a sociedade tem o direito
5.5.1.1. (segue): violação pelo abuso na exposição midiática

Sem se ingressar em tema tão conflituoso e que tem reclamado especial atenção da
doutrina, afirme-se que a atividade dos meios de comunicação não pode ser tida, em tese,
como violadora da presunção de inocência ou de qualquer outro direito fundamental,
p.ex., os direitos à intimidade, à honra ou à vida privada do cidadão. A violação advém
apenas do abuso e do excesso no exercício dessa atividade profissional.
Limitando o tema à presunção de inocência no processo penal, pode-se verificar que
o desenvolvimento de seu estudo deve ser realizado a fim de orientar comportamentos
dentro de parâmetros constitucionais.1462 Para isso, é necessário se ter claro que a relação
entre presunção de inocência e mídia envolve um duplo sentido: no primeiro, importa
analisar a exposição (abusiva) do imputado; e, em um segundo sentido, releva os efeitos
que a mídia projeta na persecução penal, notadamente na decisão judicial.
No primeiro sentido, a presunção de inocência, como “norma de tratamento”,
garante ao imputado a proteção da imagem, honra, vida privada e intimidade no curso da
persecução.1463 No segundo sentido, atua em seu significado de “norma de juízo” e, como
tal, impede que os influxos provocados pelos meios de comunicação ingressem na ação
como fatores incriminadores. A análise que segue, portanto, será orientada por essas duas
perspectivas.

de saber quem a ele se submete – é de se acolher como válida


juridicamente que se o preso se oferece às providências policiais sem
qualquer reação que coloque em risco a sua segurança, a de terceiros e
a ordem pública não há necessidade de uso superior ou desnecessário
de força ou constrangimento. Nesse caso, as providências para coagir
não são uso, mas abuso de medidas e instrumentos. E abuso, qualquer
que seja ele e contra quem quer que seja, é indevido no Estado
democrático”.
1462 Ana Lúcia Menezes VIEIRA, Processo cit., p. 168, em estudo

especificamente voltado para a relação entre processo penal e mídia, é


enfática e contundente ao afirmar que “a presunção de inocência é um
dos princípios mais violados pela mídia”. Por todo item 4.7 de sua obra a
autora trata da relação entre presunção de inocência e mídia.
1463 Nesse sentido, v. Alexandra VILELA, Considerações cit., pp. 12/13,

notas 4 e 5, e Gerardo BARBOSA CASTILLO, Presunción de inocencia,


derecho al honor y libertad de prensa, Derecho penal y criminología:
revista del instituto de ciencias penales y criminologicas de la universidad
externado de Colombia, Bogotá, v. 14, n. 47-48, mayo/dic., 1992, item 3.
Como “norma de tratamento”, a presunção de inocência impõe a todos que atuem
na persecução penal (juiz, promotor de justiça, delegado de Polícia, auxiliares da Justiça,
agentes policiais em geral, defensor, testemunha, entre outros) que preservem todos
aqueles direitos acima referidos e cujo titular é o imputado.1464 Não se pode expô-lo à
mídia em condições que o aproximem à situação de culpado, esse é um dever de todos
aqueles agentes persecutórios, pois a presunção de inocência a todos vincula.1465 Aos
meios de comunicação caberia evitar a divulgação de imagens, fotografias ou expressões,
notadamente enquanto não houvesse acusação formal em face de uma pessoa (denúncia
ou queixa-crime), ou seja, deveriam limitar-se a informar o fato ocorrido, sem qualquer
identificação da pessoa.1466

1464 Nesse sentido, v. Eduardo M. JAUCHEN, Derechos cit., p. 103. No


Estado de São Paulo, a Delegacia Geral de Polícia, ao editar a Portaria
DGP 18-1998, determinou em seu art. 11 que as “autoridades policiais e
demais servidores zelarão pela preservação dos direitos à imagem, ao
nome, à privacidade e à intimidade das pessoas submetidas à
investigação policial, detidas em razão da prática de infração penal ou a
sua disposição na condição de vítimas, em especial enquanto se
encontrarem no recinto de repartições policiais, a fim de que a elas e a
seus familiares não sejam causados prejuízos irreparáveis, decorrentes
da exposição de imagem ou de divulgação liminar de circunstância
objeto de apuração”. O parágrafo único do citado artigo exige que o
consentimento seja expresso e por escrito para que as pessoas citadas
sejam expostas à mídia.
1465 Flávia RAHAL, Publicidade no processo penal: a mídia e o processo,

Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 12, n. 47,


mar./abr., 2004, pp. 272/275, expõe que o princípio da publicidade vive
em momento de crise no processo penal. Ao mesmo tempo em que
representa uma conquista da humanidade, porquanto eliminou os
julgamentos secretos aos quais o imputado não tinha acesso, está sendo
deturpado pelos meios de comunicação que o invocam contra qualquer
argumento que vise proteger a intimidade do imputado e garantir a
preservação de sua honra e sua imagem perante a sociedade. No
mesmo sentido, v. Adauto SUANNES, Os fundamentos cit., cap. 7, ao
tratar da “indevida publicidade dos atos investigatórios”, e Aury LOPES
JÚNIOR, Introdução cit., pp. 191/198.
1466 Nesse sentido, v. Ana Lúcia Menezes VIEIRA, Processo cit., p. 175.

Sobre o necessário respeito dos meios de comunicação pela presunção


de inocência derivar da perspectiva objetiva desse direito fundamental e,
portanto, ser obrigação dos órgãos estatais tutelá-lo e regular a atividade
da mídia, v. item 3.8.2.1.1 supra. Sobre o respeito que os agentes
privados (e não apenas os órgãos públicos) devem ter pelos direitos
fundamentais, respeitando-os em suas atividades, assim como todo
corpo social, v. item 3.5.1.1 supra.
Nada impede que os órgãos de comunicação assumam a responsabilidade social e
constitucional de produzirem auto-regulamentações a fim de exercer seu importante
papel de informação e, ao mesmo tempo, respeitar às normas constitucionais.1467 Assim,
por exemplo, conforme se sabe da experiência de outros países, melhor seria que: antes
de existir acusação formal, as notícias omitissem o nome dos envolvidos na investigação
ou suspeitos;1468 ou, ainda, se vedasse a exposição da imagem pejorativa de pessoas
algemadas, carregadas e expostas de forma a representarem um troféu da autoridade
pública que efetuou a prisão, ou, pior, para diminuí-las em sua auto-estima e
respeitabilidade social.1469 Essas sugestões parecem ser um válido ponto de partida para a

1467 Luis Gustavo Grandinetti Castanho de CARVALHO, Processo cit., pp.


284/285, ao analisar o tema da proteção da intimidade, mídia e sistema
criminal, sugere uma regulamentação não-penal para a tutela da
intimidade, preservando-se o perfil de ultima ratio do direito penal.
1468 Nesse sentido, v. o estudo de Ana Lúcia Menezes VIEIRA, Processo

cit., p. 111, sobre o sistema inglês, no qual essa é a forma de conduta da


mídia.
1469 O Supremo Tribunal Federal, ao ser chamado a impedir a arbitrariedade

e a exposição pública dos presos em condições análogas à de culpado,


violando sua dignidade e à presunção de inocência como norma de
tratamento, assim se manifestou no voto já referido da Ministra Cármen
Lúcia no HC 89.429: “A Constituição da República, em seu art. 5º, inc. III,
em sua parte final, assegura que ninguém será submetido a tratamento
degradante, e, no inciso X daquele mesmo dispositivo, protege o direito à
intimidade, à imagem e à honra das pessoas. De todas as pessoas, seja
realçado. Não há, para o direito, pessoas de categorias variadas. O ser
humano é um e a ele deve ser garantido o conjunto dos direitos
fundamentais. As penas haverão de ser impostas e cumpridas,
igualmente por todos os que se encontrem em igual condição, na forma
da lei. (...) A prisão há de ser pública, mas não há de se constituir em
espetáculo. Menos ainda, espetáculo difamante ou degradante para o
preso, seja ele quem for. Menos, ainda, se haverá de admitir que a
mostra de algemas, como símbolo público e emocional de humilhação de
alguém, possa ser transformado em circo de horrores numa sociedade
que quer sangue, porque cansada de se ver sangrar. Não é com mais
violência que se cura a violência. Não é com mais degradação que se
chegará à honorabilidade social. Qualquer conduta que se mostre
voltada à demonstração pública de constrangimento demasiado ou
insustentado contra alguém, que ainda é processado nesta fase do
processo penal, não pode ser tida como juridicamente fundamentada.
Aliás, espetáculos não atendem os fins da pena; não garantem a eficácia
da punição devida aos que devem ser apenados; não asseguram o
respeito aos órgãos e às instituições incumbidos de garantir a eficácia do
sistema punitivo do Estado. O que valoriza, social e juridicamente, a
ação policial e judicial é a eficácia que se impõe às providências
tomadas e a garantia de que as penas fixadas sejam cumpridas por
discussão, uma vez que neutralizariam a maior razão para os abusos dos meios de
comunicação consistentes em “agarrar o telespectador a todo custo pelo sensacionalismo,
numa pauta altamente conservadora, ideologicamente conservadora”.1470

quem quer que seja. É contra a impunidade que se volta a sociedade,


não é a favor de punições sem base legal. A ação necessária e eficiente
das polícias não está presa ao uso de algemas a escandalizar e
proclamar feitos para uma sociedade que não vê o direito ser cumprido
com o rigor e a presteza que seriam de se exigir. Mas não é o
desrespeito aos direitos que assegura a punição devida a quem deve ser
punido para que a sociedade tenha certeza de que o direito submete
todos à sua incidência. (...) Beccaria morreu. Há de haver uma nova
formulação para os delitos e as penas. O que não se há é de se pensar
que com penas infamantes, degradantes ou desnecessárias alguém
estará seguro ou o direito cumprido ou a Justiça realizada. A ser assim
todos estaremos sem segurança, sem direito e sem justiça. O que a um
é feito hoje sem base em lei, amanhã poderá sê-lo contra qualquer um
de nós. A Justiça não se alimenta de imagens, não se realiza em formas,
não se aperfeiçoa como força. A sede de Justiça não se sacia pela
vingança, nem mesmo a social. A impunidade não se resolve pelos
abusos na aplicação da lei. O que se há de buscar é a virtude do
equilíbrio na aplicação das providências necessárias segundo os
elementos trazidos em cada caso, não pelo deslumbramento de
estardalhaços, que mais ensombreiam o que há de ser feito por todos
para que a segurança ética, jurídica e política se estabeleça” – grifo no
original. Sobre o uso de algemas e a Súmula Vinculante nº 11, do
Supremo Tribunal Federal, v. nossos comentários no item 5.5.1 supra.
1470 Carolina STANISCI, A TV que não informa – entrevista com Laurindo

Leal Filho, professor da pós-graduação da Escola de Comunicações e


Artes (ECA) da Universidade de São Paulo, Revista do Movimento do
Ministério Público Democrático, São Paulo, ano V, n. 17, mar., 2008, p.
11. Na mesma matéria, o entrevistado ainda informa que, convidado
para presenciar uma reunião de pauta de uma emissora de televisão,
ouviu o apresentador equiparar a capacidade de compreensão dos
telespectadores brasileiros à do personagem “Homer Simpson” e,
portanto, selecionar por essa equiparação o nível das matérias a serem
levadas ao ar. Pela revelação contida, vale a transcrição de um trecho da
reportagem, na qual a fala da entrevistadora vem entre aspas e grifada:
“‘Uma coisa que me incomoda nos telejornais é o tempo curto das
matérias’. Isso é uma questão da forma, que é ruim, obedece à mesma
lógica de toda a programação, que é pegar o telespectador pela emoção.
Um ritmo frenético, curto, para que as pessoas não tenham o direito de
refletir. Elas têm a obrigação de não piscar. ‘O sr. poderia contar como
foi quando presenciou o apresentador William Bonner se referir ao
telespectador do Jornal Nacional como Homer Simpson?’ A Rede Globo
fez um convênio com o departamento de jornalismo da ECA, da USP,
A não identificação ou exposição das pessoas ainda sem acusação formada são as
principais formas de se evitar a violação da presunção de inocência como “norma de
tratamento” sem que, com isso, impeça-se o órgão de comunicação de noticiar o fato para
conhecimento público.
É necessário se reconhecer que a mídia e os participantes da persecução penal, ao se
“associarem” para vulnerar a imagem do imputado na busca de autopromoção (indevida)
ou vantagem econômica, estão violando a presunção de inocência como “norma de
tratamento”. Violam a Constituição por interesses próprios, privados, econômicos e/ou
vaidades pessoais; para eles a Constituição vale menos que isso. Mais apropriadamente, a
Constituição só vale quando defende esses interesses, não podendo a eles ser oposta, sob
pena de – alegam – violar a “liberdade de imprensa” e se “voltar à ditadura militar”.
Esquecem que qualquer poder ou atividade, sem controle constitucional e legal, tornam-
se absolutos e, atualmente, os interesses econômicos têm nos imposto esses desvios dos
meios de comunicação como verdadeira “ditadura da mídia”. Necessário se reconhecer
que dessa promiscuidade entre agentes públicos e mídia nasce a maior fonte de descrença
popular na presunção de inocência.
Para tal conluio, deve haver uma necessária responsabilização penal e civil de ambas
as partes (pública e privada). Não se pode mais tolerar que não se indague, ache-se
normal e, pior, parte de uma sociedade democrática, que autos criminais “sigilosos” sejam
conhecidos primeiro pela mídia e pela população do que pelas partes processuais e até
mesmo pelo juiz da causa.1471

para ministrar curso de extensão profissional na Globo. Foram


convidados vários professores, e eu fui um dos convidados para visitar a
Globo. Assistimos a uma reunião de pauta. Eu e alguns companheiros
ficamos perplexos. ‘Com o William Bonner?’ Primeiro, achei a atitude
dele de muita arrogância com relação aos editores das outras praças.
Cansou bastante o fato de ele se referir a toda hora ao Homer Simpson
como o telespectador médio brasileiro. ‘Ele dizia isso: O Homer não vai
entender?’ Exatamente. Essa frase ele pronunciou umas 20 vezes. Mas
isso não é o mais importante. A forma como são selecionadas as
matérias. O objetivo é agarrar o telespectador a todo custo pelo
sensacionalismo, numa pauta altamente conservadora, ideologicamente
conservadora. O jornal é construído a partir de duas vertentes, uma
política conservadora e [outra] das idiossincrasias pessoais do editor”.
1471 O atual Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar

Ferreira Mendes, na já citada entrevista a Alexandre OLTRAMARI,


repórter da Revista Veja, tratando da banalização dos grampos
telefônicos, assim se manifestou: “(...) Outra questão delicada é a
divulgação desse conteúdo por agentes policiais antes mesmo de o juiz
ser informado sobre ele. Não temos hoje mecanismos para coibir isso. É
notória a participação dos agentes policiais na divulgação, às vezes até
em consórcio com órgãos de imprensa. Acostumamo-nos a isso de
maneira equivocada. O Judiciário, que autoriza as escutas, tem
responsabilidade por isso”. Cezar PELUSO, Garantias cit., atual Vice-
Esses necessários cuidados para se evitar a indevida exposição da imagem do
imputado à mídia se explicam porque os meios de comunicação não refletem os fatos,
mas os influenciam e os moldam, muitas vezes, ao feitio dos responsáveis pelas
programações ou pelas pautas tendo em vista a melhor obtenção de dividendos com a
notícia. A “causa criminal” passa a ser uma “mercancia” por meio da qual as notícias se
auto-alimentam em uma sucessão de versões dentro das quais o “fato original” perde a
importância e “elas” passam a ser o “fato”.1472
Há uma promíscua interação entre agentes da persecução e mídia, da qual somente
o imputado perde em direitos e interesses. “A inocência nunca é notícia”.1473 Os
“especialistas” consultados e levados à mídia para comentarem aspectos jurídicos
trabalham apenas com a versão da culpa, sempre a mais interessante.1474 As imagens e as
versões formam, progressivamente, “convicções” que passam a ser debatidas nos meios
sociais; a “inocência” passa a não ser mais admissível e, mesmo se ocorrente em decisão
final de órgão judicial colegiado, creditam-na ao já lugar comum das “ineficiência
legislativa”, da “demora do sistema” ou, ainda, das “ilegalidades” perpetradas ou anuídas
pelos agentes (públicos ou privados) da persecução penal. A verdade perde espaço para a
versão criada;1475 a prova constante dos autos perde espaço para a imagem construída ao
feitio de uma capa de jornal ou de revista periódica.
O círculo vicioso começa com a violação da presunção de inocência como “norma
de tratamento”, pois há desautorizada e indevida exposição do imputado à mídia.
Desenvolve-se pela máquina de notícias que se auto-alimenta apartada de um controle
(jurídico ou legislativo).1476 Termina com a projeção das “convicções criadas” sobre os
agentes que atuam na persecução e, principalmente, sobre o juiz da causa.1477

Presidente do mesmo Tribunal Constitucional, foi enfático em sua


palestra ao afirmar que “A mídia não tem direito de despender um juízo
definitivo de culpabilidade sobre fatos que estão sendo apurados. Isso
pode gerar, nas últimas conseqüências, do princípio, responsabilidade
civil. E há jurisprudência sobre isso, inclusive em matéria de literatura
estrangeira (...)”.
1472 Nesse sentido, v. Sergio Salomão SHECAIRA, Mídia e crime, in Sergio

Salomão SHECAIRA (coord.), Estudos criminais em homenagem a


Evandro Lins e Silva (Criminalista do Século), São Paulo: Método, 2001,
pp. 358/360.
1473 Flávia RAHAL, Publicidade cit., p. 273.
1474 Nilo BATISTA, Mídia e sistema penal no capitalismo tardio, Revista

Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 11, n. 42, jan./mar.,


2003, pp. 250/251.
1475 Aurélia María ROMERO COLOMA, Libertad cit., pp. 91/95, informa que

não há necessário vínculo entre as notícias e a realidade dos fatos, a


qual muitas vezes é deturpada por comentários emotivos e não técnicos.
1476 Marino BARBERO SANTOS, Medios de comunicación y proceso penal,

in Marino BARBERO SANTOS e Maria Rosário DIEGO DÍAZ-SANTOS


(coord.), Criminalidad, medios de comunicación y proceso penal,
Pelo exame deste círculo vicioso, chega-se ao segundo sentido acima indicado, qual
seja, a violação (pela mídia) da presunção de inocência como “norma de juízo”.

Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2000, pp. 136/138,


expõe as várias tentativas (todas ainda incipientes e não efetivas) da
comunidade européia em regulamentar a atividade dos meios de
comunicação em sua relação com o sistema criminal.
1477 Sobre “mass media”, sua relação com a presunção de inocência, “juízos

paralelos” e sua inevitável influência sobre o juiz da causa, v.: Mario


CHIAVARIO, Processo cit., pp. 19/20; Ana María OVEJERO PUENTE,
Constitución cit., pp. 362/368; e Manuel JAÉN VALLEJO, La presunción
cit., item VIII. Aury LOPES JÚNIOR, Introdução cit., pp. 193/194, assim
expõe esse ponto: “A publicidade abusiva, comprovadamente, causa
distorção no comportamento dos sujeitos processuais (promotores,
advogados e juízes), aumentando ainda mais o estigma do imputado.
Uma das conseqüências negativas está no que IBÁÑEZ define como
‘hiperpenalização’ através da ‘espetacularização’ do julgamento. A
verdadeira garantia está exatamente no oposto, pois a presunção de
inocência exige que o imputado seja protegido de tais fenômenos. Ela
altera substancialmente a forma de atuar dos envolvidos no processo
penal. Interessa-nos, especialmente, a posição do julgador. Não há
dúvidas de que a exposição massiva dos fatos e atos processuais, os
juízos paralelos e o filtro do cronista afetam o (in)consciente do juiz, além
de acarretarem intranqüilidade e apreensão. O ‘livre’ convencimento
passa a ser utópico diante do contaminado estado de ânimo do juiz.
Como explicamos anteriormente, o ‘tempo do direito’ é diverso do ‘tempo
da notícia/informação’ e os juízos paralelos são muito mais acelerados.
Como conseqüência, a atividade probatória, antes dirigida a formar
convicção racional, também tem que derrubar uma esfera emotiva (pré-
constituída) e também o pré-julgamento (forjado pela imprensa e seus
juízos paralelos). É um imenso prejuízo pelo pré-juízo gerado pela
intermediação midiática, com patente comprometimento da
imparcialidade e da independência do julgador”.
Como já se expôs em outro instante do trabalho, o juiz é passível de sofrer vários
tipos de influência no instante de decidir, não sendo de se desconsiderar a força que os
meios de comunicação produzem e projetam nesse momento.1478 Criam uma expectativa
e alimentam uma ansiedade incompatíveis com a necessária calma e limitação fático-
jurídica da causa que o magistrado deve ter e respeitar ao decidir. A dúvida deixa de ser
decidida em favor do imputado (“in dubio pro reo”) e passa a ser decidida da maneira
“como se espera”, como os “especialistas” disseram que deveria ser.1479 Essa influência
ganha maior importância quando se está diante de julgamento, cuja competência é do
Tribunal do Júri, pois, além dos juízes serem leigos e, portanto, não possuírem o
necessário preparo técnico para neutralizarem pressões externas, não fundamentam suas
decisões, dificultando às partes o controle de sua racionalidade jurídica.
Como se percebe, também no tema da presunção de inocência e sua relação com os
meios de comunicação deve-se buscar um regramento apto a permitir a constitucional
convivência de ambos. Porém, enquanto essa outra inércia legislativa não é suprida, a
tarefa do julgador deve ser zelar pela presunção de inocência tanto como “norma de
tratamento” (impedindo a exposição do imputado em situação ofensiva à sua dignidade),
quanto como “norma de juízo” (impedindo o ingresso e a influência de fatores exteriores
à causa penal).

1478 V. item 5.4.2.3 e seus subitens supra, notadamente seu subitem


5.4.2.3.2.
1479 Ana Lúcia Menezes VIEIRA, Processo cit., item 3.1, sobre esse ponto,

traz ao contexto o instituto do “contempt of court”, do direito inglês, e pelo


qual se considera ofensa à Corte e, portanto, pode se chegar a ser
considerado crime, os “juízos paralelos” instigados pelos meios de
comunicação e que causam prejuízo ou impedem o regular julgamento
da causa. Cita a autora que a “doutrina elaborou algumas diretrizes para
considerar que incorrem em ‘contempt of court’: as publicações que
façam comentários sobre o caráter do acusado; as publicações que
revelem os antecedentes penais do acusado; a publicação de
informações sobre a confissão do acusado; a realização de juízos
paralelos na imprensa é uma das publicações mais graves do ‘contempt
of court’; a publicação de uma investigação privada sobre assuntos que
estão ‘sub iudice’; críticas que possam influir, de qualquer modo, na
independência do juiz; a publicação de fotografias do acusado quando a
identificação seja objeto de debate processual; a publicação de
comentários sobre as declarações de testemunhas, depreciando-as ou
valorizando-as” (op. cit., p. 114). Nesse sentido, v. Odone Sanguiné,
Prisión cit., pp. 458/459, ao comentar decisão do Tribunal Europeu de
Direitos Humanos que considerou violador à presunção de inocência o
fato de autoridades policiais terem influenciado os juízes por meio de
entrevistas dadas por aqueles aos meios de comunicação, nas quais
tratavam o imputado como culpado. Comentando decisão da Corte
Interamericana de Direitos Humanos sobre o tema, v. Eduardo M.
JAUCHEN, Derechos cit., pp. 113/114.
5.5.2. (segue): como “norma probatória”

Como já se teve a oportunidade de desenvolver, a presunção de inocência como


“norma probatória” implica que o órgão acusador tem o ônus de produzir prova
incriminadora e lícita.1480
Em nossa legislação processual penal existem situações em que há uma mitigação
desses componentes da presunção de inocência como “norma probatória”, notadamente
com relação à concepção de “prova lícita”,1481 porquanto há hipóteses em que não é
possível se cumprir todas as exigências constitucionais do que seja, em uma perspectiva
ideal, uma prova obtida e/ou produzida de forma lícita.

5.5.2.1. (segue): restrições à prova constitucionalmente lícita

O presente tema parte de um ponto seguro: aceitar como possíveis algumas


restrições aos direitos constitucionais indispensáveis à consideração de uma prova como
lícita, é bem diferente de dizer que se aceita a prova incriminadora ilícita.
No primeiro caso, por razões fáticas intransponíveis, não foi possível produzir a
prova com respeito integral a todos os requisitos constitucionais exigíveis, p.ex., o
contraditório. No segundo caso, era possível exercer o contraditório e, por violação a esse
direito fundamental, a prova foi produzida sem respeitá-lo. Neste último caso a prova é
ilícita e não deve ser admitida processualmente como apta a influir no convencimento
judicial; logo, não pode integrar o material incriminador exigido para se respeitar a
presunção de inocência como “norma probatória”.
O legislador processual, na reforma empreendida em 2008, aceitou o conceito amplo
de prova ilícita. Na atual redação do art. 157 do Código de Processo Penal, são
inadmissíveis nos autos, devendo ser deles desentranhadas, as provas ilícitas, assim
consideradas “as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Assim, para
uma prova ser considerada lícita é necessário, entre outros aspectos, que seja produzida
em contraditório efetivo das partes e sob os auspícios do juiz natural da causa.1482 Ocorre,
porém, que há situações em que não é possível observar esses dois preceitos
constitucionais já nos instantes de obtenção, preservação ou produção de uma “prova”.

1480 Sobre o tema, v. item 5.4.2.2.


1481 Não se trata no trabalho da dita “prova ilícita pro reo”, uma vez que ela
não guarda relação direta com a presunção de inocência como regra
probatória. Isto porque, independente de ser ou não aceita como “prova
ilícita” ou como elemento lídimo para integrar os autos, o fato é que ela
não integra o “mínimo probatório” necessário para afastar a presunção
de inocência; seria, a bem da verdade, elemento produzido pela
atividade defensiva, para infirmar a prova incriminadora.
1482 Como no presente item os exemplos citados dirão respeito a esses dois

direitos fundamentais no exame da prova pericial e da prova


testemunhal, v., sobre o tema, Antonio MAGALHÃES GOMES FILHO,
Direito à prova cit., pp. 151/156. Sobre o contraditório como direito
Isso acontece, por exemplo, com os elementos informativos produzidos em fase
investigatória e considerados irrepetíveis, tais como a perícia do local dos fatos, do
material sangüíneo, dos vestígios ou dos rastros deixados pelo agente da infração. Não
realizar tão fundamentais perícias é deixar perecer relevantes informações para o
julgamento da causa. Também é inviável se exigir o contraditório pleno e efetivo das
partes no instante da colheita desse material e em seu exame pericial, porquanto não é
raro que nesse instante inicial ainda não haja suspeito e, em algumas situações, ainda não
se sabe sequer se os fatos podem ser tidos como ato criminoso (p.ex., quando se está
diante de um fato que pode ser um homicídio ou um possível suicídio).

constitucional indispensável para legitimação da prova, v. Ada Pellegrini


GRINOVER, Antonio SCARANCE FERNANDES, Antonio MAGALHÃES
GOMES FILHO, As nulidades cit., pp. 137/138.
Em casos como esses, embora a atual redação do art. 155 do Código de Processo
Penal1483 tenha destacado que na fase de inquérito policial se colhem apenas “elementos
de informação”, pois “prova”, na acepção técnica e estrita do termo, carece de
“contraditório judicial” (atuação das partes e imediação do juiz natural da causa),1484 e ter
ressalvado, ainda, que nessa fase investigativa podem surgir apenas “provas
cautelares”,1485 o fato é que haverá situações em que o possível agente ainda é
desconhecido e sua ausência impossibilitará a participação direta na colheita e produção
da “prova”, única forma de se garantir o contraditório pleno e efetivo preceituado pela
Constituição.1486 Nesses casos, há justificadas e proporcionais restrições à prova
constitucionalmente lícita.

1483 Preceitua o atual art. 155: “O juiz formará sua convicção pela livre
apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo
fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não
repetíveis e antecipadas”.
1484 Quando tratamos do tema da presunção de inocência como “norma

probatória” (item 5.4.2.2. supra), indicamos bibliografia estrangeira que


apontava a necessidade da prova incriminadora ser lícita para se afastar
legitimamente a presunção de inocência. A doutrina espanhola ali citada
sempre traz a necessidade de se respeitar o princípio da imediação na
produção da prova, impondo que a prova, para atender à presunção de
inocência como “norma probatória”, deva ser a produzida em “juicio oral”.
Nesse sentido, por serem trabalhos específicos sobre o tema, vale a
referência às obras de Jaime VEGAS TORRES, Presunción cit., em cuja
parte segunda analisa o valor probatório dos atos de investigação e
instrução anteriores ao juízo oral, e Manuel MIRANDA ESTRAMPES, La
mínima cit., segunda parte, cap. III, no qual trata das exceções ao
“princípio da prática da prova em juízo oral”.
1485 Quando deverá ser aplicado, por analogia, no procedimento de sua

produção, os arts. 846 a 851, do Código de Processo Civil, que regula a


produção antecipada de provas.
1486 Sobre o contraditório diferido como forma de mitigar a prova pericial

produzida em fase de investigação preliminar, manifestavam-se antes da


reforma processual de 2008: Antonio SCARANCE FERNANDES,
Processo cit., pp. 89/90; Guilherme de Souza NUCCI, O valor da
confissão como meio de prova no processo penal, 2ª ed., São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1999, pp. 193/194; e Ada Pellegrini GRINOVER,
Antonio SCARANCE FERNANDES, Antonio MAGALHÃES GOMES
FILHO, As nulidades cit., pp. 172/173. Aury LOPES JÚNIOR, Sistemas
cit., pp. 140/141, sugeria, antes da reforma processual ocorrida em 2008,
um “procedimento jurisdicionalizado” na fase da investigação preliminar
para os “incidentes de produção antecipada de prova”. Em nosso
entendimento, como já ressalvado em nota anterior, a sugestão deste
último autor citado (existência de “procedimento jurisdicionalizado’), já
pode ser atendida em face da redação do atual caput do art. 155. Nesse
Contudo, deixa-se o campo das restrições e se ingressa no das violações quando as
exigências constitucionais para considerar uma prova lícita não são cumpridas por
motivos de conveniência ou de alegada celeridade processual. Isto é, quando os
impedimentos não são materiais e intransponíveis, mas atendem a critérios subjetivos de
viabilidade (p.ex., altos custos), ou oportunidade (p.ex., celeridade processual) que não se
justificam constitucionalmente e, também, não são proporcionais.
Como exemplo para se diferenciar entre as situações de restrição e violação, tenha-
se o tema da “prova emprestada” e, de modo especial, do “testemunho” prestado em uma
persecução penal e levado para outra por meio de documento (cópia).
“Entende-se por prova emprestada aquela que é produzida num processo para nele
gerar efeitos, sendo depois transportada documentalmente para outro, visando a gerar
efeitos em processo distinto”.1487 A doutrina já assentou que para que tal prova
(emprestada) possa ser usada em outro feito (autos de destino), diverso daquele em que
foi produzida (autos de origem), é necessário que em ambos figurem as mesmas partes, o
mesmo juiz natural e, ainda, que os themata probanda sejam afins. Caso não haja essa
tripla identificação, não haverá legitimidade para a prova emprestada ser validamente
considerada pelo juízo do segundo feito (autos de destino).1488
Assim, haverá violação se, não obstante o depoente dos autos originários possa ser
ouvido nos demais feitos (p.ex., não tenha morrido e seja localizável), não for convocado
pelo juízo da ação penal para a qual o seu depoimento é tido como relevante, aceitando-
se tão-só seu “depoimento” por meio de cópia extraída dos autos de origem e nos quais já
depusera. Nesses casos, ao se “transformar” a própria natureza da prova (ela passa de
testemunhal, nos autos de origem, a documental, nos autos de destino), impede-se um
contraditório efetivo, pois as partes dos autos de destino, no qual a “prova documental”
foi inserida, não poderão questionar o depoente sobre aspectos peculiares e relevantes à
causa em que se junta o “documento”.1489

caso, como “procedimento jurisdicionalizado” utilizar-se-á, por analogia,


o previsto no Código de Processo Civil (arts. 846 a 851).
1487 Ada Pellegrini GRINOVER, Prova emprestada, in Ada Pellegrini

GRINOVER, O processo em evolução, Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 1996, p. 62. No mesmo sentido, Ada Pellegrini
GRINOVER, Antonio SCARANCE FERNANDES, Antonio MAGALHÃES
GOMES FILHO, As nulidades cit., pp. 140/142.
1488 Nesse sentido, v. Ada Pellegrini GRINOVER, Prova emprestada cit., pp.

62/63.
1489 Em artigo específico sobre o tema, Gustavo Henrique Righi Ivahy

BADARÓ, Provas atípicas e provas anômalas: inadmissibilidade da


substituição da prova testemunhal pela juntada de declarações escritas
de quem poderia ser testemunha, in Flávio Luiz YARSHELL e Maurício
Zanoide de MORAES (coord.), Estudos em homenagem à Professora
Ada Pellegrini Grinover, São Paulo: DPJ Editora, 2005, p. 351, conclui
que as declarações assim inseridas “significam uma prova anômala, isto
é, um desvirtuamento do procedimento probatório estabelecido para a
Tudo poderia ser evitado, inclusive qualquer restrição ao tema da prova
constitucionalmente lícita e, portanto, da presunção de inocência como “norma
probatória”, se a pessoa que prestou depoimento tido como útil nos demais feitos for
ouvida perante o juiz natural e se submeter ao contraditório efetivo e direto das partes
nos autos de destino.
Como se percebe o punctum saliens que, no tema, diferencia a restrição da violação,
está na impossibilidade material e instransponível da prova poder ser produzida diante
das partes e do juiz natural desde o seu primeiro instante. Caso seja materialmente
possível, o não atendimento àqueles direitos fundamentais gerará violação do imposto
constitucionalmente e ela não poderá ser tida como lícita e, portanto, apta a integrar o
material probatório incriminador exigido pela presunção de inocência como “norma
probatória”. Caso seja impossível a obtenção e produção da prova diante das partes e do
juiz natural, desde o seu primeiro instante, haverá justificada restrição a esses direitos e,
portanto, não obstante com menor eficácia para o convencimento judicial, poderá ser
aceita como prova apta a integrar referido material incriminador.

5.5.2.2. -(segue): da inexistência de inversão do “ônus probatório” no atual


sistema processual penal brasileiro

O princípio constitucional da presunção de inocência veda a inversão do ônus


probatório no âmbito processual penal brasileiro.
Parte da doutrina, contudo, afirma que em nosso sistema legal há hipóteses de
inversão do ônus da prova nos dispositivos legais do art. 4º, § 2º, da Lei 9.613/98 1490 (Lei
de Lavagem de Capitais) e do § 2º do art. 60 da Lei 11.343/20061491 (Lei de Tóxicos).1492
Não nos parece essa a melhor compreensão dos dispositivos.1493

produção de prova testemunhal, suprimindo-se o contraditório entre as


partes, além de desrespeitar o princípio da imediação, por não permitir
um contato direto do juiz com a prova produzida”.
1490 “Art. 4º. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público, ou

representação da autoridade policial, ouvido o Ministério Público em


vinte e quatro horas, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no
curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão ou o seqüestro de
bens, direitos ou valores do acusado, ou existentes em seu nome, objeto
dos crimes previstos nesta Lei, procedendo-se na forma dos arts. 125 a
144 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 Código de
Processo Penal. § 1º As medidas assecuratórias previstas neste artigo
serão levantadas se a ação penal não for iniciada no prazo de cento e
vinte dias, contados da data em que ficar concluída a diligência. § 2º O
juiz determinará a liberação dos bens, direitos e valores apreendidos ou
seqüestrados quando comprovada a licitude de sua origem. § 3º
Nenhum pedido de restituição será conhecido sem o comparecimento
pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos
necessários à conservação de bens, direitos ou valores, nos casos do
art. 366 do Código de Processo Penal”.
1491 “Art. 60. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou
mediante representação da autoridade de polícia judiciária, ouvido o
Ministério Público, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no
curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão e outras medidas
assecuratórias relacionadas aos bens móveis e imóveis ou valores
consistentes em produtos dos crimes previstos nesta Lei, ou que
constituam proveito auferido com sua prática, procedendo-se na forma
dos arts. 125 a 144 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941
Código de Processo Penal. § 1º Decretadas quaisquer das medidas
previstas neste artigo, o juiz facultará ao acusado que, no prazo de 5
(cinco) dias, apresente ou requeira a produção de provas acerca da
origem lícita do produto, bem ou valor objeto da decisão. § 2º Provada a
origem lícita do produto, bem ou valor, o juiz decidirá pela sua liberação.
§ 3º Nenhum pedido de restituição será conhecido sem o
comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a
prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores. §
4º A ordem de apreensão ou seqüestro de bens, direitos ou valores
poderá ser suspensa pelo juiz, ouvido o Ministério Público, quando a sua
execução imediata possa comprometer as investigações”.
1492 Nesse sentido, para a Lei 9.613/98, v., por todos: Luiz Flávio GOMES,

Willian Terra de OLIVEIRA, Raúl CERVINI, Lei de lavagem de capitais,


São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, pp. 365/366; Rodolfo Tigre
MAIA, Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime) –
Anotações às disposições criminais da Lei nº 9.613/98, São Paulo:
Malheiros, 1999, p. 131; e Ada Pellegrini GRINOVER, A legislação
brasileira em face do crime organizado, Revista Brasileira de Ciências
Criminais, ano 5, n. 20, out./dez., 1997, p. 64. Para a Lei 11.343/06, v.,
por todos, Vicente GRECO FILHO e João Daniel RASSI, Lei de drogas
anotada: Lei 11.343/2006, São Paulo: Saraiva, 2007, p. 189.
1493 Não entendem haver inversão do ônus probatório no que concerne ao

disposto na Lei 9.613/98: Gustavo Henrique Righi Ivahy BADARÓ, Ônus


cit., pp. 369/371, e Marta SAAD, As medidas assecuratórias do código
de processo penal como forma de tutela cautelar destinada a reparação
do dano causado pelo delito, 2007, 234 f., tese (doutorado) – Faculdade
de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, item 9.1.1.1.2.
Embora esses dois autores citados tenham escrito seus trabalhos antes
do advento da Lei 11.343/06, pode-se aplicar tudo o que ali afirmaram ao
preceito equivalente e inserido no art. 60 desta última lei citada.
Comentando especificamente a Lei 11.343/06, e contrário à
compreensão de que se trate de inversão do ônus da prova, v. Luciano
Anderson de SOUZA, Artigos 60 a 64, in Marcello Ovídio Lopes
GUIMARÃES (coord.), Nova Lei Antidrogas comentada, São Paulo:
Quartier Latin, 2007, p. 320.
Da leitura de ambos os preceitos destacados percebe-se, em comum, que para a
decretação da medida de apreensão, ou outra medida constritiva patrimonial congênere,
é necessário que os órgãos persecutórios apresentem “indícios suficientes” de que os bens
ou valores, a serem constritos, pertençam ao tido autor do crime e sejam produto ou
proveito da infração. Assim, cabe àquelas autoridades demonstrarem, por meio de
“indícios suficientes”, que: a) há um crime que comporte aquela medida restritiva; b) os
bens a serem constritos são produtos ou proveitos do crime; c) pertencem ou estão
relacionados com o imputado.
Sem se entrar na “suficiência” desses indícios, o que importa destacar é que há, para
os órgãos de persecução, imposição legal de que produzam material lícito e incriminador
que demonstre a ocorrência de materialidade e autoria da infração e a necessidade
justificadora (periculum in mora) para a constrição dos bens relacionados com o
imputado e a infração. Logo, o que ocorre nessas circunstâncias é o mesmo que sempre
ocorreu para as medidas assecuratórias em geral. Os órgãos persecutórios precisam
convencer o juiz da existência do fumus boni iuris da medida (aqui indicada pela
expressão “indícios suficientes”) e, também, do risco que a demora (“periculum in mora”)
na asseguração poderá trazer para a instrução processual, para futura restituição de
prejuízos a eventuais vítimas ou, ainda, para a recuperação do produto ou proveito da
infração. De nada disso foi dispensado o órgão acusador e tudo deve ser criteriosamente
verificado pelo julgador ao determinar a medida solicitada.
No caso, há válida e possível restrição a direito patrimonial do imputado no curso
persecutório, cuja observância da proporcionalidade da medida, da existência de
demonstração da materialidade e autoria da infração, e do periculum in mora justificam
constitucionalmente a medida. Até aqui, como se disse, nada há de diferente quanto às
medidas assecuratórias em geral, e que sempre foram aceitas sem ressalvas.
A dúvida emerge, e talvez por essa razão haja a afirmação de que há inversão do
ônus probatório, porque pela redação de ambos os dispositivos é possível se interpretar
que, enquanto para determinar a apreensão dos bens “bastam” “indícios suficientes”, para
liberá-los são necessárias “provas”, uma vez que as expressões usadas, para que o juiz
libere os bens constritos, são: “provada a origem lícita” (§ 2º do art. 60 da Lei 11.343/06) e
“comprovada a licitude de sua origem” (§ 2º do art. 4º da Lei 9.613/98). Haveria, segundo
essa compreensão, diversidade de exigências entre os órgãos persecutórios e a defesa,
para aqueles a “exigência probatória” seria menor (apenas indícios suficientes), enquanto
para o imputado ela seria em grau maior (precisaria ser provada). Para a acusação
bastariam “indícios”, para a defesa seriam necessárias “provas”.
Parece-nos que essa forma de interpretar referidos dispositivos, emprestando-lhes
graus de exigibilidade diversos, é que gera a compreensão de sua inconstitucionalidade.
Ela não pode ocorrer nesses moldes e essa forma de interpretação está vedada aos juízes.
Eles devem interpretar os dispositivos conforme a Constituição e, para isso, não é
possível emprestar nível probatório mais rigoroso para o imputado em face dos órgãos
persecutórios. Interpretar assim os dispositivos é trabalhar contra o “in dubio pro reo”
que, como já se demonstrou, também está presente nas decisões sobre medidas coativas
em geral (pessoais ou patrimoniais).1494
Os dispositivos não são inconstitucionais em si, ou seja, no plano legislativo-abstrato
da norma, apenas podem tornar-se inconstitucionais se a interpretação/aplicação ocorrer
nos moldes antes referidos (maior carga probatória para a defesa em comparação com a
acusação).
A pergunta, portanto, deve ser: é possível interpretar esses dispositivos de modo
compatível com a presunção de inocência? A resposta deve ser: SIM.
Como de ordinário as medidas constritivas tratadas são determinadas em fase de
investigação e sem ciência do imputado e contraditório prévio, os órgãos persecutórios
poderão apresentar apenas indícios e demais elementos de informação naturais a essa fase
da persecução. Determinada a medida, e isso fica claro na Lei 11.343/2006 – que
inclusive prevê um procedimento em contraditório e perante o juiz da causa para se
discutir a liberação dos bens – os elementos trazidos pelo imputado se reunirão com os
“indícios” iniciais apresentados pela acusação para decisão sobre eventual restituição dos
bens constritos. Logo, a expressão “provada” ou “comprovada” refere-se ao resultado
desse exame do julgador após o contraditório sobre todo o material requerido ou
apresentado pelas partes. Saber se foi “provada” ou “comprovada” não é, portanto,
atividade que caiba a uma parte (acusadora ou defensiva), mas configura o resultado final
da cognição judicial sobre o tema e após contraditório das partes. Isto é, ponderados os
argumentos e elementos trazidos pelas partes o juiz decidirá se a licitude dos bens está ou
não “provada”. “Provada” tanto pela acusação quanto pela defesa.
Na formação dessa convicção, portanto, não cabe entender que os elementos
carreados pelos órgãos persecutórios têm mais peso do que aqueles juntados pelo
imputado. Terão pesos iguais e, como a presunção de inocência vige nesse instante
persecutório, se o julgador ficar em dúvida deverá decidir em favor do imputado, isto é,
deverá liberar os bens.
Conclui-se, portanto, que os citados dispositivos não representam inversão do ônus
da prova. São hipóteses de restrição patrimonial admissíveis no ordenamento e para as
quais a decisão judicial, tanto para determinar a constrição quanto para conceder a
posterior liberação, deverá ser orientada pelo “in dubio pro reo” e pelo “favor rei”,
integrantes da presunção de inocência.

1494Sobre o tema do “in dubio pro reo” aplicar-se, como aspecto da


presunção de inocência, para medidas coativas em geral, v. itens 5.4.1.3
e 5.4.2.3.1 supra.
5.5.3. (segue): como “norma de juízo”

Como ocorrido com os outros significados de presunção de inocência, também em


seu sentido de “norma de juízo” aquele princípio constitucional admite restrições.
A análise da estrutura da norma de direito fundamental da presunção de inocência
permitiu individualizar cada um de seus sentidos e, com isso, sua análise ganha em
clareza e especificidade.
Diferente do que se pode imaginar, a presunção de inocência, tal qual o direito à
ampla defesa, tem uma parte disponível em seu conteúdo. Assim como para a ampla
defesa a doutrina já está pacificada quanto a seus aspectos de “defesa técnica” e de
“autodefesa”, sendo este último disponível, também para a presunção de inocência há
possibilidade de sua disposição como “norma de juízo”, especificamente no instante da
decisão sobre a dúvida fática, representado pelo “in dubio pro reo”.
A renúncia ocorre em pelo menos duas situações em nosso ordenamento jurídico:
na confissão e na aceitação da proposta de transação penal.

5.5.3.1. (segue): confissão

Na confissão o imputado reconhece os fatos, sua autoria e demais aspectos


relevantes para a causa penal.1495
A partir dessa ocorrência a atenção do juiz deve se voltar não apenas a eventuais
outros aspectos da causa (p.ex., existência de co-autores ou outros crimes), mas também à
verificação de aspectos relacionados com o próprio ato de confissão e seu conteúdo.
Deverá certificar-se da veracidade dos fatos narrados, de sua espontaneidade e, por fim,
da certeza de que o ato foi precedido da devida orientação técnica de defensor. Somente
após a constatação desses três aspectos poderá o juiz ter a confissão como válida e eficaz
renúncia do imputado à presunção de inocência como “norma de juízo”, especificamente
em seu momento de “in dubio pro reo”.
Quanto à verificação da veracidade do objeto da confissão (fatos e autoria), a tarefa
do magistrado se amplia, se comparada àquela que possuía inicialmente, uma vez que,
além de todos os aspectos que a causa já trazia, também terá que certificar se a confissão
não esconde, p.ex., eventuais outros crimes; conseqüências mais gravosas, ainda
desconhecidas, e que o confesso pretende encobrir por meio de seu ato; co-autores ou
partícipes até então ignorados; ou, ainda, eventual mentira para acobertar o verdadeiro
autor do fato.

1495 Nesse sentido, v. Guilherme de Souza NUCCI, O valor cit., pp. 87/88.
É nesse sentido que a doutrina desde há muito abandonou a confissão como a
“rainha das provas” (“probatio probatissima”) e exige que seja feito um cotejamento com
as outras provas processuais.1496 Nossa própria legislação processual penal tem
determinação no sentido de que ela terá sua apreciação judicial confrontada “com as
demais provas do processo, verificando se entre ela e estas existe compatibilidade e
concordância”.1497 A confissão isolada, inverossímil ou em contradição com as demais
provas, não só perde a sua eficácia de convencer como deve despertar no magistrado a
atenção para se certificar se ela não foi movida por razões ilegítimas e que tiram a
validade da disposição, pelo imputado, de seu direito à presunção de inocência.
Antes de se tomar a confissão como renúncia de a dúvida fática ser decidida em
favor do imputado (“in dubio pro reo”), ainda é necessário ao juiz verificar a
espontaneidade do ato e que ele foi precedido de orientação de profissional técnico
(defensor habilitado).
A confissão pode ser um ato de vontade do confesso ou pode ter sido provocada por
algum tipo de ameaça ou violência que tenha sofrido. No primeiro caso, se faltar-lhe
veracidade, o imputado poderá ser processado pelo crime de auto-acusação falsa.1498 Já na
segunda hipótese, tratando-se de confissão provocada por terceira pessoa, ele poderá
estar na condição de vítima de eventual crime de tortura.1499
Como se vê, muito diferente do que se podia imaginar na fase da Inquisição, a
confissão não é meio de abreviar a instrução probatória, mas implica aumento de
cuidados por parte do juiz.1500 Até mesmo porque, como é cediço, a confissão não é ato
natural do imputado e sua ocorrência somente será legítima se espontânea e precedida de
orientação técnica.1501

1496 Nesse sentido, v., por todos, Aury LOPES JÚNIOR, Direito cit., p. 610, e
Guilherme de Souza NUCCI, O valor cit., pp. 181/182.
1497 Assim está disposto no Código de Processo Penal: “Art. 197. O valor da

confissão se aferirá pelos critérios adotados para os outros elementos de


prova, e para a sua apreciação o juiz deverá confrontá-la com as demais
provas do processo, verificando se entre ela e estas existe
compatibilidade ou concordância”.
1498 Assim está disposto no Código Penal: “Art. 341. Acusar-se, perante a

autoridade, de crime inexistente ou praticado por outrem. Pena -


detenção, de três meses a dois anos, ou multa”.
1499 Assim dispõe o tipo penal do delito de tortura, previsto na Lei 9.455/97:

“Art. 1º Constitui crime de tortura: I - constranger alguém com emprego


de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou
de terceira pessoa; (...) Pena - reclusão, de dois a oito anos”.
1500 Sobre o tema, v. item 1.4.1.2 supra.
1501 Sobre a confissão como ato antinatural e que deve ser revestida de

todos os cuidados antes de ser aceita, não se podendo imaginá-la, a


exemplo do passado, como “legitimação” do imputado a sua própria
condenação, v. Guilherme de Souza NUCCI, O valor cit., pp. 182/184.
O magistrado deve certificar-se que a confissão na fase pré-processual foi precedida
de orientação técnica por parte do defensor do confesso.1502 Isto porque, ocorrendo no
interrogatório em juízo, por força do atual § 2º do art. 185 do Código de Processo
Penal,1503 o juiz já devia ter garantido, com antecedência suficiente, a efetiva interação
entre a defesa técnica e a autodefesa. Além do que, por força do caput do citado artigo, a
confissão somente poderá ocorrer na presença do defensor. Não obstante todas essas
garantias se apliquem e devam ser observadas pela autoridade policial1504 ou outra
autoridade responsável pela investigação preliminar (p.ex., o presidente da comissão
parlamentar de inquérito), deverá o juiz se certificar se isso de fato ocorreu e, em caso de
dúvida, não poderá tê-la como válida, a menos que ela se repita conforme os ditames
legais.1505

1502 De se ressaltar as posições de lege ferenda de Aury LOPES JÚNIOR,


Direito cit., vol. I, p. 610, e Fauzi Hassan CHOUKR, Código de processo
penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2005, p. 368, para quem somente se poderá aceitar a
confissão que tenha sido produzida com todas as garantias
constitucionais, inclusive ter sido realizada diante do juiz natural, logo,
não aceitam as confissões feitas em fase extrajudicial.
1503 “Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no

curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de


seu defensor, constituído ou nomeado. (...) § 2º Antes da realização do
interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do
acusado com seu defensor”.
1504 Conforme já tivemos a oportunidade de nos manifestar em outra

oportunidade “Perplexidade de Jano: quando o passado é mais presente


do que o futuro (nova regulamentação do interrogatório e sua
aplicabilidade na fase pré-processual)”, in Flávio Luiz YARSHELL e
Maurício Zanoide de MORAES (coord.), Estudos em homenagem à
Professora Ada Pellegrini Grinover, São Paulo: DPJ Editora, 2005 itens
6.2 e 7 –, após a mudança empreendida pela Lei 10.792/2003, no
capítulo do interrogatório, passou a ser obrigatória a presença de
defensor para orientação prévia do interrogado na fase policial da
persecução penal.
1505 Em decorrência dessa reforma legal no capítulo do interrogatório

evidenciou-se, agora em nível infraconstitucional, a inconstitucionalidade


em se utilizar o silêncio do imputado como “prova de sua culpa”. Tal
posição, cada vez mais minoritária, fere não apenas o direito
constitucional à autodefesa, mas, também, viola a presunção de
inocência, uma vez que considera uma omissão (um não agir) do
imputado – inclusive permitida constitucionalmente – em seu desfavor,
como se ela “certifica-se” uma “culpa” que ele possui e não quer negar.
Essa interpretação/aplicação do direito ao silêncio é fruto da mentalidade
da presunção da culpa, já expungida de nosso sistema constitucional
desde 1988. Nesse sentido, v. Antônio Carlos Mathias COLTRO, O
silêncio, a presunção de inocência e sua valoração, in Jaques de
Na medida em que se compreenda que a presunção de inocência, assim como a
ampla defesa, possui parcela disponível e parcela indisponível de seu conteúdo e, ainda,
que essa disponibilidade somente pode partir do titular do direito fundamental,
compreende-se o equívoco da proposta da Escola Positiva italiana no sentido de que
havendo a confissão seria desnecessário o processo e a pena deveria ser aplicada de
imediato.1506 Não é esta a proposta do presente item.
Para os adeptos dessa Escola criminológica a presunção de inocência estaria
totalmente afastada por completo se ocorrente a confissão do imputado. Na verdade,
bastaria a confissão para que toda a instrução probatória cessasse, porquanto ela era a
prova a ser obtida por primazia, fosse ou não mediante tortura.
No presente item de modo algum se está a defender um retorno à prevalência da
confissão ou de que deva ser o meio de prova primaz a ser buscado; não deverá ser
objetivo ou finalidade de qualquer autoridade pública. O que se demonstra com o
presente estudo é que ela representa uma renúncia à presunção de inocência em sua
parte disponível; nada mais. Na presente proposta compreende-se que, em havendo uma
confissão verdadeira, espontânea e orientada previamente por defensor, a vontade do
confesso representa a renúncia da presunção de inocência apenas no tocante à dúvida
fática do magistrado, ou seja, quanto ao último instante da presunção de inocência como
“norma de juízo”: o “in dubio pro reo”.
No mais, quanto a todos os outros aspectos e significados; a presunção de inocência
se mantém íntegra. Inclusive quanto ao “favor rei”, outro instante da presunção de
inocência como “norma de juízo” e destinado a servir de critério na escolha da
interpretação da lei. Como o confesso é, em regra, pessoa leiga juridicamente, pode ser
que de sua confissão se extraia conseqüência (p.ex., legítima defesa) que retira do ato por
ele assumido qualquer conotação criminal.

Camargo PENTEADO (coord.), Justiça penal – 6: críticas e sugestões,


São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 304.
1506 Sobre a inexistência de presunção de inocência para a “Scuola Positiva”

em caso de confissão ou prisão em flagrante, v. nossos comentários no


item 2.3.2 supra. Sobre as raízes dessa inexistência em caso de
confissão no direito romano das “quaestiones perpetuae”, v. item 1.2.2
supra. Sobre a aplicação de pena pelo Ministério Público, em
procedimento sumário, em caso de confissão, v. item 2.4.3 supra,
quando se trata do Código de Processo Penal italiano de 1913, o qual já
foi concebido com base na rejeição da presunção de inocência.
A confissão não retira do órgão acusador o ônus probatório de apresentar prova
incriminadora e lícita quanto à materialidade e autoria da infração.1507 Em outras
palavras, continua em plena vigência a presunção de inocência como “norma
probatória”. Assim também, continua em plena efetividade a presunção de inocência
como “norma de tratamento”. Isso significa dizer que da confissão não decorre,
necessariamente, a prisão provisória do imputado como forma de cumprimento
antecipado de uma pena ou qualquer outra medida coativa. Permanecerá o juiz com o
dever de motivar qualquer ato constritivo ao imputado no curso persecutório tanto com
base em justificação constitucional, quanto na proporcionalidade da medida, sob pena do
ato se consubstanciar ilegal.
Como se percebe, o que de importante se quis demonstrar neste item é que a
presunção de inocência, assim como a ampla defesa, possui uma parte disponível de seu
conteúdo. Porém, tal disponibilidade somente poderá produzir efeitos válidos se for
exercida pelo imputado de modo veraz, espontâneo e previamente orientado por seu
defensor.
Tudo o que até o presente instante se disse sobre a confissão pode ser aplicado, sem
ressalvas, ao instituto da assim denominada “delação premiada”,1508 uma vez que, ao que
importa ao presente tema, ela contém em sua estrutura uma parte idêntica à da confissão.
Não obstante envolva outras pessoas e diferentes conseqüências jurídicas, não deixa de
ser o reconhecimento do fato, sua autoria e demais circunstâncias relevantes para o
julgamento da causa penal, e cuja veracidade, espontaneidade e prévia orientação técnica
também devem ser certificadas pelo juiz natural da causa.

5.5.3.2. (segue): transação penal

Quando do advento da Lei 9.099 de 1995, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis
e Criminais, muito se debateu se o instituto da transação penal representaria violação à
presunção de inocência e a outras garantias constitucionais. Limitando-nos às críticas à
presunção de inocência, foi afirmado que este direito fundamental restaria violado
porquanto, ao haver a aceitação da proposta da transação penal, ocorreria uma assunção
de culpa, sem o necessário “devido processo legal” e sem a necessária produção de provas
lícitas, indispensáveis para afastar aquele princípio fundamental.1509

1507 Nesse sentido, v. José Maria LUZÓN CUESTA, La presunción cit., p.


49.
1508 Como exemplos de dispositivos legais que prevêem a delação, podem-

se citar: art. 159, § 4º, do Código Penal; art. 25, § 2º, da Lei 7.492/86;
art. 8º, par. único, da Lei 8.072/90; art. 16, par. único, da Lei 8.137/90;
art. 6º da Lei 9.034/95; art. 1º, § 5º, da Lei 9.613/98; arts. 13 a 15 da Lei
9.807/99; e art. 41 da Lei 11.343/06.
1509 Nesse sentido, v., por todos, Miguel REALE JÚNIOR, Pena sem

processo, in Antônio Sérgio Altieri de Moraes PITOMBO, Juizados


especiais criminais: interpretação e crítica, São Paulo: Malheiros, 1997,
A resposta de parte da doutrina a essa crítica, especificamente para presunção de
inocência, veio no sentido de que com a aceitação da proposta, conquanto implicasse
imposição imediata de pena, não haveria assunção de culpabilidade.1510
Limitando-se ao exame da transação penal pela perspectiva da presunção de
inocência; não é possível deixar de ver na aceitação da proposta de transação uma forma
de manifestação de vontade do tido autor do fato. Vontade essa que, como qualquer
outra, deverá ser livre e orientada por profissional técnico que lhe esclareça quais as
conseqüências jurídicas em aceitar a transação que lhe é oferecida (p.ex., perder o direito
de fazer nova transação pelos próximos cinco anos – art. 76, § 2º, inciso II, da Lei
9.099/951511). Não se pode deixar de reconhecer, não obstante ressalvas possam ser feitas
quanto à aplicação do instituto na prática forense – e elas são muitas e corretas1512 –, que
aquela aceitação é uma manifestação de vontade.
Parcela da doutrina já indicava que por ser uma opção do autor do fato, se
devidamente orientada e livre, deve ser aceita e produzir efeitos jurídicos sem que disso
se depreenda violação ao direito fundamental da presunção de inocência. 1513

p. 27, e Geraldo PRADO, Transação penal, 2ª ed., Rio de Janeiro:


Lumen Juris, 2006, item 5.3.
1510 Nesse sentido, v., por todos, Ada Pellegrini GRINOVER, Antonio

MAGALHÃES GOMES FILHO, Antonio SCARANCE FERNANDES, Luiz


Flávio GOMES, Juizados especiais criminais – comentários à Lei 9.099,
de 26.09.1995, 5ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 45, e
Fernando da Costa TOURINHO NETO e Joel Dias FIGUEIRA JÚNIOR,
Juizados cit., p. 520.
1511 “Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal

pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério


Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos
ou multas, a ser especificada na proposta. (...) § 2º Não se admitirá a
proposta se ficar comprovado: (...) II - ter sido o agente beneficiado
anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva
ou multa, nos termos deste artigo”.
1512 Quanto às críticas sobre uma “enganosa” autonomia e igualdade entre

as “partes” no instante da negociação, v., por todos, Maria Lúcia


KARAM, Juizados especiais criminais: a concretização antecipada do
poder de punir, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, item 1.6, e
Geraldo PRADO, Transação cit., item 5.2.
1513 Nesse sentido, v. Cezar Roberto BITENCOURT, Algumas questões

controvertidas sobre o juizado especial criminal, Revista Brasileira de


Ciências Criminais, São Paulo, ano 5, n. 20, out./dez., 1997, pp. 87/88, e
Humberto Dalla B. de PINHO, A introdução do instituto da transação
penal no direito brasileiro e as questões daí decorrentes, Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 1998, pp. 37/43.
Ressalvando-se mais uma vez que a aceitação da transação penal deve ser
manifestação de vontade livre e orientada por defensor técnico, a essa última observação
doutrinária feita no parágrafo anterior acrescenta-se que essa aceitação implica renúncia
à presunção de inocência apenas como “norma de juízo”. Da mesma forma como tratado
no item anterior relativo à confissão, disso não decorre renúncia ou redução, de qualquer
modo, dos demais significados da presunção de inocência (como “norma de tratamento”,
como “norma probatória” ou sequer como “norma de juízo”, em seu aspecto do “favor
rei”).
Assim como ocorrido para a confissão, também nesta hipótese o juiz deverá ter
alguns cuidados antes de ter como válida essa manifestação de vontade por parte do autor
do fato.
Como ato jurídico ocorrido no curso da persecução penal e do qual decorre restrição
a direitos do cidadão (aplicação de pena), deverá ser revestido de justa causa, que, no
caso, significa a existência de elementos de informação suficientes para demonstrar a
materialidade dos fatos e ao menos indícios suficientes de autoria. 1514 Continua, portanto,
sendo ônus do órgão acusador provar a existência de elementos incriminadores aptos a,
em tese, legitimar um oferecimento de imputação formal (denúncia ou queixa-crime),
sob pena do juiz indeferir sua proposta por falta de justa causa. Portanto, a presunção de
inocência como “norma probatória”, apesar da necessária adaptação às peculiaridades do
instituto da transação penal, não deixa de existir para a acusação (pública ou privada) e
deve ser verificada pelo juiz da causa.
Quanto ao respeito à presunção de inocência como “norma de tratamento” não é
diferente; ela existe e deve ser respeitada tanto pelo proponente quanto pelo juiz da
causa.
Como no âmbito da transação penal a pena a ser aplicada não será privativa de
liberdade, é necessário que a multa e/ou a pena restritiva de direitos constante da
proposta não seja de tal monta que equivalha à pena fixada em abstrato para a infração
penal que se está deixando de julgar. Isto significa dizer que a proposta, para respeitar a
presunção de inocência como “norma de tratamento”, deverá guardar proporcionalidade
com a pena prevista para o tipo penal referido na causa, porquanto fixar uma “proposta
de transação penal” igual ou muito próxima da pena que seria cumprida pelo autor do
fato se viesse a ser condenado, em eventual ação penal futura, é o mesmo que tratá-lo
como culpado.

1514Sobre a necessidade e as peculiaridades de existir justa causa para o


oferecimento de transação penal, v. Cezar Roberto BITENCOURT,
Algumas questões cit., pp. 85/87. Entendendo o oferecimento como
peculiar exercício de ação penal, do que deflui a necessidade do ato se
mostrar legítimo e apresentar justa causa, v. Afrânio Silva JARDIM,
Direito processual cit., pp. 337/338.
Nessas hipóteses, caberá ao juiz zelar pela proporcionalidade da proposta a fim de
que haja um tratamento ao autor do fato não de culpado, mas de quem, anuindo em
renunciar a alguns de seus direitos fundamentais, dentre os quais a uma parcela da
presunção de inocência, dispõe-se a aceitar uma sanção em um espaço de consenso penal.
A transação penal, portanto, assim como a confissão e a dita “delação premiada”
antes referidas, têm em comum o fato de representarem uma renúncia, por parte do
imputado, de parte disponível da presunção de inocência referente ao seu sentido de
“norma de juízo” e no tocante à eventual existência de dúvida judicial sobre os fatos
imputados (“in dubio pro reo”). Contudo, esses institutos não afastam a parte
indisponível da presunção de inocência e que é representada pelos seus significados de
“norma de tratamento”, de “norma probatória” e de seus demais aspectos como “norma
de juízo” (p.ex., o “favor rei”).

Conclusão

Entendemos que uma conclusão deve conter aquilo que resta de útil e de inovador
após o término de um trabalho, ao se deixar de lado a pena. Neste último instante, não se
fará uma síntese formal do que se expôs, mas se demonstrará as principais diretrizes
empreendidas e aceitas no caminho trilhado.
No tema da presunção de inocência o estudo tanto dos fragmentos históricos mais
antigos quanto da história recente do século passado assume relevante papel. É da
consistência nessa reconstrução que se vai revelando ao estudioso aspectos importantes
para a compreensão das razões pelas quais a presunção de inocência nunca existiu, ao
menos nos moldes de um Estado Democrático de Direito, até o Iluminismo. Revelam-se
os motivos de sua refutação desde o início do século XIX até meados do século XX e,
ainda, por que ela emergiu revivificada após as duas Grandes Guerras desse último
século. A história também nos ensina como alguns argumentos tidos na atualidade como
“modernos” ou “inovadores” (p.ex., o direito penal e processual do inimigo) nada mais
são do que envergonhados remendos de antigos pensamentos violadores do ser humano e
pelos quais a humanidade sempre foi conduzida a guerras.
Com a reconstrução histórica se demonstrou que pouco importa se o sistema
processual penal é de modelo inquisitivo ou acusatório, não é esse perfil que mais
diretamente garante a presunção de inocência. Claro que no modelo inquisitivo ela
jamais poderá existir, para isso foi de grande valia os estudos do direito romano, em cada
uma de suas fases, e da Inquisição. Se o modelo acusatório lhe é mais afeito, também não
é suficiente, por si só, para garantir a presunção de inocência, porquanto tivemos
sistemas acusatórios tanto em pequenos momentos da civilização romana, assim como na
Alta Idade Média, sem que neles se pudesse identificá-la.
O que o Iluminismo teve de diferente desses sistemas que o antecederam, foi que
nele eliminou-se a figura do “hostis”, do inimigo, do herege, do opositor político, etc.
Enfim, foi ao final do século XVIII, após vários séculos de sistemas processuais
repressivos e punitivos, que emergiu como primado juspolítico a igualdade entre os
homens. Aliando esse ponto à liberdade, à legalidade e ao respeito à dignidade do outro
(fraternidade), teve-se a base necessária para a inscrição da presunção de inocência.
A história ainda demonstrou por que foi na própria França que, no período pós-
revolucionário, Napoleão Bonaparte eliminou a presunção de inocência como dispositivo
constitucional e criou o sistema processual penal misto francês, em hábil reconstrução de
um sistema de essência inquisitiva, conquanto apresentasse uma segunda fase
formalmente acusatória.
Após o estudo histórico ter demonstrado que um modelo acusatório de processo
penal não é suficiente para se garantir a presunção de inocência, também se verificou que
um apuro técnico-científico das instituições jurídico-criminais não implica,
necessariamente, respeito a esse direito constitucional, nem sequer a um processo mais
justo. Garante apenas uma melhoria técnica, que se colocará a serviço dos desígnios do
ocupante do poder, sejam eles quais forem.
Nesse contexto foi crucial o estudo histórico, agora com maior ressalto das linhas
criminológicas empreendidas pela Scuola Positiva e pela Escola Técnico-Jurídica
italianas. Essa última corrente criminológica foi a grande artífice da elaboração do
Código de Processo Penal italiano de 1930, em pleno vigor do regime fascista de Benito
Mussolini. Foi ela quem, com apurada técnica jurídica, concebeu um sistema criminal ao
feitio dessa ideologia. Nesse espaço político não havia como se respeitar a presunção de
inocência, porque não havia como se respeitar a igualdade a todos os indivíduos, voltou-
se, portanto, à figura do “hostis”, prova disso é que a presunção de inocência foi
alcunhada de “assurdità teorica” pelos técnico-positivistas.
Nessa fase do final do século XIX e início do século XX surgiram as construções
teóricas de “periculosidade” e de “defesa social”, citadas e pugnadas pelo legislador de
1940, quando da elaboração de nosso (ainda) vigente Código de Processo Penal. O
surgimento dessa legislação nacional, portanto, trouxe em seu âmago todas essas linhas
teóricas e criminológicas inconciliáveis com a presunção de inocência.
Ao final da exposição e crítica dos fundamentos dessas correntes criminológicas
européias, foi inevitável traçar um paralelo delas com nosso ainda atual Código de
Processo Penal. Para tanto foi primordial ressaltar o instante político vivido pelo Brasil
no Estado Novo getulista. Feito isso, pôde se compreender que foi total o ingresso desses
pensamentos criminológicos em nossa legislação, notadamente ao se ressaltar o texto
original do código em pontos como: a fase investigativa preliminar (inquérito policial); a
prisão obrigatória; o interrogatório; a confissão; os amplos poderes instrutórios judiciais
em cotejo com o sistema da livre apreciação da prova; e, por fim, a sentença absolutória
por insuficiência de prova para a condenação. Muitos desses pontos, inclusive, foram
repristinações de institutos já conhecidos e usados desde o período romano e
“atualizados” na Inquisição.
Essa desanimadora constatação de que, em alguns institutos processuais penais,
ainda vige no Brasil do século XXI o pensamento e o ideário da Inquisição,
“modernizados” pelo nazifascismo do início do século XX, somente é afastada pelo
advento da atual Constituição, de 1988. Ela passa a ser, portanto, o único esteio legítimo
para deixarmos no passado, de modo definitivo e para sempre, essa cultura jurídica
geradora de desagregações e marginalizações entre os cidadãos.
Por essa razão, o trabalho assume um embasamento constitucional voltado à análise
dos direitos fundamentais. Expostas as construções político-legislativas do pós-guerra a
partir de meados do século XX, o Brasil se insere definitivamente na comunidade
internacional, assumindo o compromisso de cumprir um rol de direitos humanos. Como
demonstração dessa postura internacionalmente alinhada, promulga uma nova
Constituição (1988) e incorpora em seu texto a presunção de inocência, dentre outros
direitos fundamentais. Declara-se um Estado Democrático de Direito e fixa como um de
seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, garantindo a todos os
cidadãos a igualdade e o devido processo legal. Bases juspolíticas sem as quais não há
espaço racional ou legal para a inserção da presunção de inocência.
Contudo, se isso é suficiente para a sua inscrição e concepção, não é o bastante para
sua efetivação na vida cotidiana dos cidadãos e na vida forense. Se o Brasil já atingiu
aquele estágio (inscrição constitucional), a dificuldade na efetivação plena daquele
direito fundamental já dura mais de 20 anos.
Trazendo ao estudo os desenvolvimentos das teorias constitucionais dirigidas aos
direitos fundamentais, ressaltou-se que é insuficiente, improdutiva e ultrapassada a visão
de que esses direitos voltados ao processo penal estão sempre fundados em interesses
individuais, em contraposição com o interesse (sempre público) de punir e garantir a
“defesa social”.
Várias teorias constitucionais estão conformes em reconhecer um aspecto subjetivo
e outro objetivo ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais, dentre os quais se
inserem os processuais penais. Mercê dessa dúplice perspectiva, mostra-se, a um só
tempo, que a presunção de inocência tem em sua justificação interesses públicos e
coletivos, tanto que inserida dentre os direitos constitucionais mais relevantes para a
coletividade, e, outrossim, possui um conteúdo objetivo que impõe ao Estado os deveres
de tutelá-la e efetivá-la e, aos agentes privados, a obrigação de respeitá-la. A presunção
de inocência não é, portanto, apenas um dever do Poder Judiciário. Seu reconhecimento,
como direito fundamental, fixa deveres para todos os Poderes da Nação e, também,
compromissos para os agentes privados.
Com isso se demonstrou que a maior violação à presunção de inocência é a inércia
legislativa em conformar uma nova legislação infraconstitucional ao seu feitio, assim
como aos demais direitos fundamentais. Seguramente, como se demonstrou em muitos
pontos do trabalho, esse não cumprimento do “dever de legislar” está à base da maioria
das violações àquele princípio constitucional.
Continuando na análise da presunção de inocência pela perspectiva das teorias
constitucionais dos direitos fundamentais, optou-se pela “teoria dos princípios”. Linha
teórico-analítica pela qual se entende que se pode garantir, no maior espectro possível e
do modo mais coerente, a defesa racional não apenas da presunção de inocência, mas
também dos demais direitos constitucionais voltados ao processo penal.
Nessa esteira argumentativa, foi fundamental diferenciar as estruturas normativas
entre “regra” e “princípio”, incluindo nessa segunda categoria a presunção de inocência.
Isso implica reconhecê-la como um direito prima facie, o que significa que deverá ser
protegido e garantido na maior medida possível, segundo as condições fático-jurídicas do
caso concreto. Essa via teórico-racional da presunção de inocência não determina que ela
seja sempre garantida de forma absoluta e total, mas que deverá ser assegurada ao
máximo, sendo que em hipóteses excepcionais, como se demonstrou no último capítulo
do trabalho, alguns de seus significados poderão ser suprimidos. Por exemplo, como
“norma de tratamento”, em situações em que se legitima a prisão provisória.
Na análise da estrutura normativa da presunção de inocência o suporte fático amplo
desempenha papel crucial, pois ele é composto tanto pelo âmbito de proteção da norma
como por suas intervenções estatais. O suporte fático abstrato, nessa concepção ampla,
compreende todos os fatos, atos e situações da vida, enfim, os bens jurídicos protegidos
pelo enunciado de uma norma fundamental e de cuja realização ou violação decorre uma
conseqüência jurídica; é a previsão legal e suas decorrências jurídicas. Pela perspectiva
concreta, é a ocorrência, de acordo com as condições fático-jurídicas, do previsto no
texto normativo.
O âmbito de proteção, também examinado em moldes amplos para se manter a
coerência com nossa aceitação de suporte fático amplo, está composto pelas realidades da
vida consideradas “bens” ou “domínios existenciais”, tais como vida, domicílio, religião,
educação, criação artística, liberdade, etc. É o ponto crucial para a dogmática dos direitos
fundamentais e sobre o qual incidem as intervenções estatais.
Sobre as intervenções estatais, foi relevante demonstrar que elas se subdividem em
restrição (intervenções estatais legítimas) e violações (intervenções/inércias estatais
ilegítimas). Estas últimas não integram, conforme linha teórica aceita no presente
trabalho, o suporte fático amplo e, portanto, se ocorrentes, deverão sobre elas incidir as
conseqüências jurídicas previstas na norma. Mercê daquela perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais, antes expendida, constata-se, mesmo para os direitos de primeira
geração, dentre os quais se inclui a presunção de inocência, que a “inércia estatal” integra
o conceito amplo de intervenção. Daí ter-se afirmado que a inércia legislativa em se
conformar um novo sistema processual penal que garanta a presunção de inocência é
uma violação a esse direito.
Pela teoria constitucional adotada o suporte fático não é absoluto, isso significa
dizer que nem o âmbito de proteção previsto abstratamente será sempre verificado em
cada caso, nem tampouco as restrições ficarão sem limites. Em matéria de direito
fundamental, qualquer forma de redução em seu conteúdo essencial, da mais tênue até a
mais invasiva, deve ser considerada intervenção estatal. Das intervenções estatais,
justificam-se constitucionalmente apenas as restrições, e, mesmo para elas, deve haver
limites.
Isto significa dizer que, para um direito fundamental, com estrutura de norma-
princípio, ser tendencialmente expansível, suas restrições (quaisquer que sejam,
pequenas ou grandes) devem ser tendencialmente reduzidas. Nesse contexto, torna-se
relevante o papel desempenhado pelo exame da proporcionalidade das restrições.
Esse exame foi por nós adaptado ao feitio do processo penal, logo, antes do exame de
seus tradicionais elementos identificados como “adequação”, “necessidade” e
“proporcionalidade estrito senso” (ponderação ou sopesamento), inserimos a necessária
verificação do que a doutrina processual penal já denominou de pressupostos e requisitos
extrínsecos da proporcionalidade. Nesse contexto, a “legalidade” e a “justificação”,
constitucional ou teleológica – uma vez que demonstramos guardarem sinonímia para as
finalidades do presente estudo –, são os pressupostos; já a “judicialidade” e a “motivação”
compõem os requisitos extrínsecos.
A proporcionalidade das restrições deve ser analisada tanto em nível legislativo,
quando assume pertinência como sopesamento (ou ponderação), quanto no plano
judicial, quando poderá ser utilizada seja para a verificação da constitucionalidade das
leis processuais penais, seja para a constatação da legitimidade em sua
interpretação/aplicação.
Ao se aplicar toda a base teórica até aqui desenvolvida na utilização prática de
alguns institutos processuais, o exame da proporcionalidade em nível judicial
desempenha papel relevantíssimo e se aplica em dois momentos. Pelo viés do exame
judicial da constitucionalidade da lei, a verificação do (in)correto sopesamento legislativo
para a elaboração da lei pode levar à conclusão de sua (in)constitucionalidade. Se o
dispositivo legal violar o sistema constitucional será expungido do ordenamento, por
força de decisão judicial.
Em outro momento do exame judicial, que parte do pressuposto de que o texto
normativo é uma intervenção legítima, ao menos no plano teórico (não é abstratamente
inconstitucional), a proporcionalidade deve ser observada quando da
interpretação/aplicação da norma ao caso concreto, pois, se for feita de forma abusiva ou
excessiva, tornar-se-á desproporcional. Era uma restrição (intervenção legítima) no
plano abstrato da lei, mas se tornou violação, por excesso ou abuso em sua
interpretação/aplicação, no plano judicial da concreção da norma.
A percepção dessa estrutura normativa para a presunção de inocência não
permite apenas melhor compreender como todos os seus significados interagem de forma
harmônica e completiva, mas também lhe confere maior abrangência e coerente
incidência a todo o sistema processual penal.
Como não é possível, em um único trabalho, o exame da incidência de tudo o
quanto se tratou até este instante em todos os institutos processuais penais, optou-se por
analisar apenas os pontos mais críticos da intersecção entre presunção de inocência e
processo penal. Se a tese se evidenciar coerente e plena para esses momentos mais
delicados, para os demais não haverá maiores dificuldades em sua aplicação.
O exame da presunção de inocência segundo sua estrutura normativa e em face de
alguns institutos processuais foi desenvolvido com um duplo direcionamento:
demonstrar as insuficiências e violações do atual Código de Processo Penal e, por
conseguinte, a imperiosa necessidade de se romper a inércia do legislador
infraconstitucional; e, em segundo lugar, orientar o julgador no instante de decidir.
Sempre houve, durante todo o trabalho, a preocupação de não se legitimar uma “leitura
salvacionista” dos dispositivos legais do Código. Contudo, esclareça-se que, ao se fornecer
subsídios ao julgador, sempre se tentou ser claro quando ele deve dizer: “basta”; “não há
ordenamento legal conformador”; “não há lei proporcional e justificada
constitucionalmente, logo, para não violar a Constituição, não posso cumprir a legislação
existente”.
Para isso foi de fundamental importância expor a finalidade político-ideológica do
suporte fático da presunção de inocência e sua função de eixo central pré-estabelecido
constitucionalmente para o sistema processual. Expostas a finalidade e a função, assenta-
se a inviabilidade em se manter o atual código. Deve-se fazer uma opção por um sistema
jurídico harmônico: ou se muda a Constituição, e o Brasil assume que não cumprirá seus
compromissos perante a comunidade internacional, ou, em outro sentido, elabora-se
nova legislação processual penal infraconstitucional.
Para se demonstrar a viabilidade de uma elaboração legislativa conforme a
presunção de inocência e os demais direitos fundamentais que orientaram sua formação e
com ela interagem para melhor efetivação, indicou-se as bases de um sistema de medidas
coativas processuais penais. Demonstrou-se a possibilidade de se conceber um sistema ao
mesmo tempo eficiente e garantista, admitindo-se como legítima a prisão provisória com
base em argumentos materiais, p.ex., a “ordem pública”.
Porém, isso somente será possível em um novo sistema a ser elaborado e no qual se
estabeleçam: valores constitucionais claros e imperativos para a determinação das
medidas coativas; um rol extenso de medidas de vários graus de redução dos direitos
fundamentais; e, por fim, em casos excepcionais, a necessidade de o julgador, com maior
carga argumentativa, demonstrar com base em elementos objetivos e constantes nos
autos a existência de requisitos cumulativos para que a prisão provisória seja legítima em
sua aplicação casuística.
Com esses cuidados, elimina-se a necessidade de se expungir do sistema processual a
expressão “ordem pública”, ou a sua congênere “ordem econômica”, porém, limita-se seu
espaço normativo por meio de margens legais de contenção. Torna-se desnecessário o
inconveniente ingresso no conteúdo do conceito de ordem pública para tentar limitá-lo
por uma perspectiva interna (de dentro). Sua contenção se dá por meio de limites
externos e legais, retirando dessa expressão sua atual capacidade expansiva e sem
nenhum controle.
Assenta-se, outrossim, e agora para outros âmbitos, as diferenças entre “in dubio pro
reo”, “favor rei” e presunção de inocência e, mais, estabelece-se qual a sua necessária
inter-relação. Os primeiros são aspectos, manifestações da presunção de inocência que,
no plano judicial, ocorrem em seu instante de “norma de juízo”.
Com isso, demonstra-se por que a absolvição fundada na insuficiência de prova para
a condenação e o critério decisório lastreado no “in dubio pro societate” são violações à
presunção de inocência. Ambos os aspectos referidos são frontalmente contrários ao “in
dubio pro reo” e, como este preceito agora integra um direito fundamental, na medida
em que se o viole, também se estará intervindo ilegitimamente no direito constitucional
com o qual se ligue, no caso, a presunção de inocência.
A decomposição da presunção de inocência, conforme a estrutura normativa
proposta, permitiu, ainda, a compreensão das diferenças entre os seus sentidos de “norma
de tratamento”, “norma probatória” e “norma de juízo”, assim como sua
complementaridade e inter-relação. Individualizados cada um desses sentidos, foi
possível se perceber, sempre por meio de uma rígida verificação de sua justificação
constitucional e proporcionalidade, o que é violação e o que é restrição para esses três
significados referidos.
A vedação à concessão de liberdade provisória, a inclusão do nome do imputado no
rol dos culpados se a decisão ainda não é definitiva e a determinação de prisão provisória
por decorrência exclusiva da prolação de decisão judicial recorrível (condenatória ou de
pronúncia) constituem violações da presunção de inocência como norma de tratamento.
Na mesma linha, vêm as medidas coativas que, se em tese são legítimas intervenções,
tornam-se ilegítimas pelo excesso ou abuso na sua aplicação ou na sua execução. Nesse
diapasão, colocam-se, p.ex., o uso desnecessário de algemas e a exposição do imputado à
mídia como se fosse culpado.
A presunção de inocência como “norma probatória” exige que o material probatório
necessário para afastá-la seja produzido pelo órgão acusador de modo lícito e tenha
conteúdo incriminador. No cumprimento de seu ônus probatório a acusação deverá se
utilizar apenas de provas lícitas e voltadas a demonstrar a culpa do imputado e a
materialidade da infração, em todos os seus aspectos. Esse significado da presunção de
inocência é objetivo e antecede, por motivos lógicos, o seu significado de “norma de
juízo”.
A presunção de inocência como “norma probatória” não admite a inversão do ônus
da prova, o que representaria uma violação de seu conteúdo. Bem observados os
dispositivos que determinam medidas cautelares patrimoniais nas denominadas Lei de
Tóxico (§ 2º do art. 60) e Lei de Lavagem de Capitais (§2º de seu art. 4º), percebe-se que
não podem ser tidos em tese como inversão do ônus probatório. Porém, se o julgador, ao
interpretá-los, entender que impõem um maior grau de exigência probatória para o
imputado em relação aos órgãos da persecução, restará violadora a sua
interpretação/aplicação, não o dispositivo como previsto no plano abstrato da lei.
A presunção de inocência como “norma de juízo”, por sua vez, impõe ao julgador,
para todas as decisões penais que impliquem restrição a direitos do imputado, um dever
de motivar de modo convincente suas escolhas. Analisando os elementos informativos
que lhe são apresentados na fase de investigação preliminar ou as provas, em fase
processual, deverá sempre decidir orientando suas escolhas de interpretação legislativa
pelo “favor rei” e resolvendo suas dúvidas fáticas com base no “in dubio pro reo”.
Para demonstrar a suficiência do material incriminador depurado e preparado no
instante da presunção de inocência como “norma probatória”, não poderá se utilizar de
qualquer fator extraprocessual interno (p.ex., convicções pessoais, influxos culturais,
religiosos ou pré-conceitos sociais, econômicos ou políticos), ou externo (p.ex., pressão
institucional ou midiática). No instante de fundamentar sua convicção não basta expor
suas escolhas, mas deverá convencer que elas e os critérios utilizados foram os mais
constitucionalmente afins àquele princípio fundamental.
Assim como os demais significados da presunção de inocência, também a “norma de
juízo” comporta restrições, e dentre elas destacou-se a confissão e a transação penal. Não
obstante esses institutos aumentem a tarefa judicial de verificar sua veracidade, sua
legitimidade, sua espontaneidade e a prévia orientação técnica, não deixam de produzir
efeitos restritivos no instante da presunção de inocência como “in dubio pro reo”, última
fase desse direito como “norma de juízo”.
A estrutura normativa da presunção de inocência contribui, ainda, para se
compreender porque ela incide por toda a persecução penal, da fase investigativa à
revisão criminal. A autonomia e inter-relação entre esses três citados significados
(“norma de tratamento”, “norma probatória” e “norma de juízo”) explica por que na
revisão criminal a presunção de inocência se manifesta apenas como “norma de juízo”,
não incidindo nos outros sentidos.
Essa mesma amplitude objetiva pode ser constatada em seu aspecto subjetivo. É
titular do direito fundamental da presunção de inocência toda e qualquer pessoa
submetida à persecução penal, seja ou não reincidente, tenha ou não bons antecedentes.
A cada nova imputação, pouco importando a vida ante acta do imputado, ele deverá ser
tido em pleno “estado de inocência”, estado juspolítico conferido a todos, de modo
cogente, pela Constituição. O passado do imputado somente terá relevância no instante
da dosimetria da pena, momento lógico posterior à conclusão judicial de sua culpa. Não
deve intervir no instante anterior para formação da convicção judicial da culpa, ou seja,
não serve para “provar” que o imputado praticou o ato; sua vida passada, seja ela qual for,
não prova o fato que lhe é imputado.
Decidir com base nesses aspectos pessoais e estranhos à causa é julgar a pessoa pelo
que ela foi ou é, não é analisar os fatos, mas os pré-compreender a partir da visão
preconceituosa e inconstitucional do “hostis”. É aplicar o direito penal e processual penal
do autor e do inimigo, é, portanto, eliminar toda a base constitucional necessária para a
inscrição e efetivação da presunção de inocência.
A análise da estrutura normativa desse direito fundamental, portanto, não ajuda
apenas a compreendê-lo em todo o seu amplo e possível espaço normativo, mas permite,
principalmente, perceber em que pontos e instantes ocorrem as violações, tanto em nível
legislativo quanto judicial, e quando se está diante de restrições.
O presente estudo seguramente não é breve, mas, acreditamos, oferece um estudo
mais exauriente da presunção de inocência e fixa novas e mais claras perspectivas para
seus futuros e sempre necessários reexames.

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