Vous êtes sur la page 1sur 356

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Ciências Sociais


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas

Thompson Lemos da Silva Neto

A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas

Rio de Janeiro
2015
ii

Thompson Lemos da Silva Neto

A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração:
Filosofia Moderna e Contemporânea.

Orientadora: Profª Drª Karla de Almeida Chediak

Rio de Janeiro
2015
iii

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A

D348a Silva Neto, Thompson Lemos da


A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências
cognitivas \ Thompson Lemos da Silva Neto – 2015.
348 f.

Orientadora: Karla de Almeida Chediak.


Tese (Doutorado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Bibliografia.

1. 2. 3. – Sec. XX – Teses. I. Chediak, Karla de Almeida. II.


Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas. III. Título.

CDU 1(44) “19”

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese.

_____________________________________ ___________________________
Thompson Lemos da Silva Neto Data
iv

Thompson Lemos da Silva Neto

A cognição corpórea como continuidade crítica das ciências cognitivas

Tese apresentada, como requisito parcial


para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação do Instituto
de Filosofia e Ciências Sociais, da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de Concentração: Filosofia
moderna e Contemporânea.

Aprovada em 06 de janeiro de 2015.


Orientadora:
__________________________________________
Karla de Almeida Chediak (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

Banca Examinadora:
__________________________________________
Antonio Augusto Passos Videira
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ

__________________________________________
Elika Takimoto
Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso Suckow da Fonseca”

__________________________________________
Osvaldo Pessoa Jr.
Universidade de São Paulo

__________________________________________
Fernando Fragozo
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro

2015
v

DEDICATÓRIA

Ao Flávio, meu filho muito amado,


que é minha principal motivação para tudo
– e em especial para o (acon)tecer deste trabalho.
vi

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, Professora Karla Chediak, pela dedicação,
sabedoria e estímulo com que me apoiou neste empreendimento, dando luz à minha
caminhada. Sou também extremamente grato aos outros membros da banca pela contribuição
inestimável à confecção desta tese. Ao Professor Antonio Augusto Passos Videira, em
especial, por me ajudar, com tanta generosidade, a compreender questões da Filosofia da
Ciência fundamentais para este trabalho. À Professora Elika Takimoto expresso minha
enorme gratidão por me oferecer questionamentos importantíssimos para que esta tese
pudesse se concretizar, e pela disposição permanente em exigir de mim o melhor, dando
sugestões que me foram essenciais. Ao Professor Fernando Fragozo devo em grande parte o
enfoque escolhido para o presente trabalho, em especial no que se refere às questões
decorrentes da relação entre cognição e tecnologia – pelo que sou imensamente grato. Sou
também muitíssimo agradecido ao Professor Osvaldo Pessoa pela extrema paciência e
dedicação com que me apresentou inúmeros questionamentos valiosos para este trabalho.
Manifesto meu agradecimento a todos meus queridos companheiros do Grupo de Estudos
Sociais e Conceituais de Ciência, Tecnologia e Sociedade, assim como a muitos amigos que
me fizeram perseverar nesta jornada. E declaro imensa gratidão à minha família – em especial
à Katia –, por todo o apoio e carinho que me deu ao longo desse caminho, que não tem fim.
vii

RESUMO

SILVA NETO, Thompson Lemos da. A cognição corpórea como continuidade crítica das
ciências cognitivas, 2014. 200 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2014.

Esta pesquisa se dedica a investigara orientação das ciências cognitivas denominada


cognição corpórea, em sua tentativa de criar uma alternativa ao modelo lógico-proposicional,
computacional, da cognição humana, através da valorização de experiências corpóreas
individuais na explicação desta última. Defende-se no presente trabalho que a cognição
corpórea tem buscado manter a unidade das ciências cognitivas mediante esforços ao mesmo
tempo científicos e políticos, e que, assim, tem apresentado questões que afetam não apenas o
campo multidisciplinar que estuda a cognição, mas também a filosofia, a cultura, as terapias, a
educação e outras atividades sociais. Também se postula nesta tese que a cognição corpórea
constitui um todo coeso graças à articulação de três principais frentes de pesquisa: a corpóreo-
enativista, a corpóreo-conceitual e a corpóreo-afetiva, e que, embora ainda seja uma corrente
nova, suas teses são fortes o suficiente para gerarem consequências nas ciências da cognição e
em suas aplicações.

Palavras-chave: Cognição. Corpórea. Inteligência. Enação. Experiência.


viii

ABSTRACT

This research is dedicated to investigate the orientation of cognitive science called


embodied cognition, in its attempt to create an alternative to propositional logic,
computational, model of human cognition through the enhancement of individual body
experiences in explaining the latter. It is argued in this thesis that the embodied cognition has
sought to maintain the unity of the cognitive sciences through efforts at the same time
scientific and political, and thus has presented issues that affect not only the multidisciplinary
field that studies cognition, but also Philosophy, Culture, therapies, education, and other
social activities. Also this thesis postulates that the embodied cognition constitutes a cohesive
whole through the articulation of three main research fronts: enactivist, conceptual and
affective and, and that, although it is still a new approach, their theses are strong enough to
generate consequences in cognitive science and their applications.

Key words: Cognition. Embodied. Intelligence. Enaction. Experience.


ix

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 ...........................................................................................................................................73
Figura 2……………………………………………………………………………………………92
Figura 3……………………………………………………………………………………………93
Figura 4……………………………………………………………………………………………93
Figura 5……………………………………………………………………………………………94
Figura 6…………………………………………………………………………………………..259
x

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01
1. A GÊNESE DAS CIÊNCIAS COGNITIVAS E DO MODELO LÓGICO-
PROPOSICIONAL...............................................................................................
22
1.1 A formação histórica das ciências cognitivas através da criação de um
modelo unificador da cognição............................................................................
22
1.1.1. A noção de modelo científico tal como aplicado à cognição humana.................... 25
1.1.2. Antecedentes históricos das ciências cognitivas..................................................... 38
1.1.3. Estabelecimento institucional das ciências cognitivas como programa unificado. 51
1.1.4. O caráter analógico do modelo lógico-proposicional................................. 76
1.2. Descrição do modelo lógico-proposicional e suas principais utilizações nas
diversas disciplinas das ciências cognitivas........................................................ 82
1.2.1 O modelo lógico-proposicional na inteligência artificial...................................... 82
1.2.2. O modelo lógico-proposicional na psicologia cognitiva: o caso do processamento
de informações............................................................................... 91
1.2.3. Características gerais do modelo lógico-proposicional e sua aplicação nas demais
disciplinas das ciências
cognitivas.......................................................................................................... 103
1.2.3.1. A linguística gerativa........................................................................................ 103
1.2.3.2. Marr e os três níveis cognitivos........................................................................ 110
1.2.4. A questão da representação mental nas ciências cognitivas clássicas: a busca de
uma teoria da cognição a partir do modelo lógico-
proposicional........................................................................................................... 113
2. A COGNIÇÃO CORPÓREA............................................................................. 129
2.1. Antecedentes histórico-conceituais...................................................................... 129
2.1.2. A evolução das características da noção de sistema............................................... 138
2.1.3. A Teoria Geral dos Sistemas e a noção de auto-organização................................. 152
2.1.4. A noção de emergência........................................................................................... 170
2.1.5. A noção de complexidade....................................................................................... 176
2.1.6. Autopoiese e autonomia......................................................................................... 187
2.1.7. A fenomenologia da percepção.............................................................................. 198
2.1.8. Linguística e psicologia.......................................................................................... 204
2.2. A orientação corpórea como conjunto integrado de abordagens da cognição 211
2.2.1. Características gerais da cognição corpórea............................................................. 211
2.2.2. A ontologia crítica da cognição corpórea................................................................ 223
xi

2.2.2.1. A crítica corpórea ao objetivismo............................................................................. 223


2.2.2.2. A crítica corpórea ao realismo estrutural.................................................................. 231
2.2.2.3. Observações finais sobre a ontologia da cognição corpórea como crítica à
ontologia do cognitivismo........................................................................................ 243
2.3. A abordagem corpóreo-enativista....................................................................... 246
2.3.1. O enativismo inicial................................................................................................ 246
2.3.2. Breves considerações sobre o enativismo contemporâneo..................................... 263
2.4. A abordagem corpóreo-conceitual...................................................................... 266
2.4.1. A linguística e a gramática corpóreas..................................................................... 267
2.4.2. A questão da fundamentação dos conceitos........................................................... 279
2.5. A abordagem corpóreo-afetiva............................................................................ 286
2.5.1. Afetividade, evolução e cognição........................................................................... 286
2.5.2. Sentimentos, emoções e a hipótese do marcador somático.................................... 291
3. A ORIENTAÇÃO CORPÓREA COMO PROJETO UNIFICADOR............ 298
3.1. A articulação conceitual-enativa......................................................................... 302
3.2. A articulação enativo-afetiva............................................................................... 309
3.3. A articulação conceitual-afetiva......................................................................... 311
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 313
REFERÊNCIAS.................................................................................................... 323
1

INTRODUÇÃO

Este trabalho investiga um conjunto de atividades científicas que tem se proposto a


desafiar a tradição não apenas de parte da própria ciência, mas também da filosofia, e de
atividades humanas por estas influenciadas. Ao desenvolver pesquisas empíricas e apresentar
teorias sobre a cognição humana com forte ênfase em questões ontológicas e metafísicas, a
corrente das ciências cognitivas chamada de cognição corpórea1contesta a hegemonia do
ponto de vista epistemológico na abordagem dos processos de percepção, pensamento,
conhecimento e ação.
Uma atitude como esta pode parecer paradoxal. Afinal, a epistemologia é, em sentido
lato, o estudo filosófico do conhecimento – ou do conhecer. Como se poderia admitir um
estudo do conhecimento, ou da cognição, que fugisse de sua própria definição? A resposta a
esta questão – ao menos como se pretende seja explorada na presente investigação – exige que
se pense a epistemologia, ou os estudos sobre o conhecimento, não com base em sua definição
corrente, apenas, mas considerando sua prática. Isto quer dizer, de fato, que a cognição
corpórea se opõe aos modos como os estudos sobre o conhecimento e a cognição têm se dado
no último século – criticando, mais especificamente, os estudos que consideram o
conhecimento humano como essencialmente proposicional e representacional.
Embora a cognição corpórea se dedique, preferencialmente, a promover um
sistemático questionamento das ciências cognitivas tradicionais, ultrapassa frequentemente
este objetivo central – o que é proposital e necessário, como será argumentado. Ao fazê-lo,
abarca em suas objeções o racionalismo e as tendências filosóficas que valorizam os aspectos
formais da linguagem. Entretanto, tal oposição atinge também os realismos de feição
objetivista – e sua vinculação com as posturas representacionistas –, o que começa a explicar
o porquê de a cognição corpórea consistir em uma crítica fundamentalmente ontológica,
metafísica e materialista às tradições da epistemologia do século 20. Deste modo, percebe-se
o radicalismo desta corrente das ciências cognitivas, que excede seu objetivo mais imediato,
para melhor alcançá-lo.

1
Em inglês tem sido usada a expressão embodied cognition para designar a abordagem das ciências cognitivas
que valoriza o papel do corpo na cognição. Dentre as traduções de embodied já feitas para o português, encontra-
se – para o caso da cognição –, além de “corpórea”, “incorporada” e “corporificada". Neste trabalho optou-se
por não adotar o adjetivo “incorporada”, por este induzir à ideia de que a cognição possa ser pensada como algo
que passa a integrar o corpo – se incorpora --, a partir de um certo momento, mas que antes poderia ser
concebida como separada do corpo. Já a qualificação “corporificada” não foi escolhida por denotar algo que não
constituía um corpo, mas passou a constituir a partir de um dado instante. A expressão cognição corpórea foi
eleita nesta tese por ser mais capaz de traduzir, em português, a ideia da cognição como desde sempre sendo
realizada com o corpo, sendo dele sempre inseparável.
2

Se, de um lado, a cognição corpórea se dedica a contestar a imagem computacional da


cognição humana – de matriz eminentemente tecnológica –, de uma série de outros deixa
patente que esta imagem tem raízes também na filosofia e produz efeitos no modo de pensar
da sociedade. Por isso seu empreendimento se revela tão rico e intrigante, quando se consegue
divisar trajetos de sua atividade não evidentes a uma apreciação mais desavisada.
Indicada a questão ontológica suscitada pela cognição corpórea, não se pode deixar de
tentar, ainda que no momento com brevidade, esclarecer o que seria a dimensão metafísica
desta corrente científica. Como haverá ocasião de se aprofundar adiante, o que aqui se
caracteriza como sendo de ordem metafísica são as posições assumidas pelos autores da
cognição corpórea, em um nítido desafio ao mandamento antimetafísico do Positivismo
Lógico. Mas, neste caso, tal desafio se bifurca. Se, de um ponto de vista, os cientistas de
orientação corpórea admitem que seu esforço não se limita aos argumentos exclusivamente
científicos – compreendidos como estritamente obedientes ao método que a tradição
positivista prescreve –, de outro se rendem à sua própria tese de que nenhuma forma de
conhecimento é passível de ser contida em um esquema lógico-proposicional. De certo modo,
invertem a hierarquia em que o conhecimento científico seria modelo da racionalidade
desejável e, assim, buscam derrubar as paredes que tão somente ocultariam, sem impedi-lo,
que o conhecimento humano comum não difira em natureza do saber classificado como
merecedor do status de ciência. Em outros termos, os cientistas da cognição corpórea
assumem suas inclinações subjetivas como inevitáveis – o que confere, ao metafísico, teor já
mesmo político. Isto porque preferem explicitar suas intenções de transformação das práticas
sociais, às quais atribuem terem acolhido influências das ciências cognitivas em sua vertente
original e, assim, renunciar a qualquer sonho de neutralidade.
Feitas estas advertências preliminares, já cabe mais adequadamente afirmar, em suma,
que o objetivo primordial desta tese é contribuir para a compreensão da construção teórica
que uma determinada orientação das ciências cognitivas – aqui denominada cognição
corpórea – vem realizando.
Visando às intenções do presente trabalho, a cognição corpórea deve ser definida, face
à sua participação no contexto das ciências cognitivas, como o conjunto de abordagens
críticas aos pressupostos, conceitos e modelos da orientação cognitivista – corrente também
chamada de cognitivismo ou computacionismo. A cognição corpórea expressa sua
discordância do cognitivismo ao afirmar que a cognição não se reduz à mera operação de uma
sequência ordenada de símbolos discretos, mas, em vez disso, consiste em um processo
complexo de transformação dos seres humanos e de seu mundo, no qual são elementos
3

centrais a experiência e o corpo individuais. Esta é uma definição que se baseia na atitude dos
autores da cognição corpórea no ambiente atual das ciências cognitivas.
Porém, ao considerar o conteúdo particular de suas teses, a cognição corpórea se
caracteriza:
1) Pela intenção em discutir qual a origem dos significados que as experiências
humanas utilizam e produzem;
2) Por advogar que tais significados dependem de experiências passadas e das
estruturas dos organismos individuais, julgando que estas estruturas também se
modificam ao longo do tempo através da ocorrência de novas experiências que
produzem novos significados – e assim por diante.
Sendo desta forma, sua divergência em relação à orientação cognitivista decorre,
principalmente, do fato de que, para esta última, os significados cognitivos são objetivos,
literais e impessoais, e não podem, assim, depender das estruturas dos organismos que os
utilizam e produzem, e tampouco de experiências individuais.
No contexto desta tese, chama-se de construção teórica da cognição corpórea à
articulação de conceitos, modelos, métodos de investigação e noções gerais que a constituem,
entendidos na forma de uma rede de ideias que se reforçam mutuamente. Isto quer dizer que,
embora cada um dos conceitos, modelos e outros elementos teóricos da cognição corpórea
possa ser estudado em sua particularidade – e este tipo de estudo particular será um dos
propósitos do presente trabalho –, aqui também frequentemente se necessitará invocar as
relações entre tais elementos para que haja uma compreensão de seu papel e sentido geral. Tal
estudo relacional e global, por outro lado, deverá contribuir também para a compreensão
particular dos diversos elementos teóricos.
Com a finalidade de se realizar a investigação que aqui se propõe, adota-se como
ponto de partida a hipótese de que as ciências cognitivas nasceram na forma de um campo
multidisciplinar graças à formulação de um modelo geral dominante – denominado nesta tese
de modelo lógico-proposicional –, que permitiu a unificação dos estudos sobre a cognição
mediante a colaboração de disciplinas diferentes, sob liderança da inteligência artificial e com
a predominância da ideia de transformação lógica de símbolos. Tal unificação, todavia, não
deve ser entendida como a constituição de uma unidade acabada, seja de objeto, seja de
programa de pesquisa. Trata-se, antes, de um contínuo processo de unificação que não chega a
constituir uma ciência dotada de fronteiras claras ou voltada para um objeto de estudos – no
caso, a cognição humana – conclusivamente demarcado. Por outro lado, este processo de
unificação deve ser avaliado através do grau de sua penetração e disseminação na sociedade.
4

Sendo assim, ao postular que as ciências cognitivas tradicionais se unificaram em torno de um


dado modelo o que se deseja afirmar, mais propriamente, é que elas se fortaleceram em seu
processo de unificação mediante a disseminação de seu modelo no contexto social – o que,
em parte, corresponde ao seu reconhecimento pela sociedade. Através de outra perspectiva,
uma das formas de evidenciar este processo unificador em torno de um modelo dominante
para a cognição é justamente atentar para o modo como tem sido combatido. Vale dizer, ao
recusar tal modelo em si, a orientação corpórea acaba por rechaçar teorias de diversas
disciplinas, sem que necessite se referir direta e separadamente a cada uma delas. Neste curso,
o que se toma como processo de unificação deve ser compreendido, sobretudo, como a
influência que alguns compromissos comuns exercem em diversas atividades científicas
diferentes, ou como um esforço permanente de coesão que exige atitudes colaborativas de
cientistas e envolve uma relevante sustentação institucional.
Porém, do embate entre o modelo unificador cognitivista e a orientação corpórea
surgem algumas questões a serem enfrentadas. Aceita a suposição inicial deste trabalho, de
que as ciências cognitivas tradicionais devem sua coesão ao uso de um determinado modelo
geral da cognição, a primeira questão a ser examinada no confronto entre as orientações
corpórea e cognitivista – por ser logicamente mais básica – é: a crítica corpórea ao
cognitivismo poderia ter como consequência o enfraquecimento da coesão das ciências
cognitivas, com o abalo de seu modelo fundador? Ocorre que esta questão exige a resposta a
outra anterior: a cognição corpórea de fato abala o modelo dominante no cognitivismo? Caso
as teses corpóreas não sejam capazes de contestar a utilização do modelo cognitivista,
evidentemente deixa de ter sentido qualquer consideração acerca de seu papel no
enfraquecimento das ciências cognitivas como todo coeso. Ou a crítica não é forte o suficiente
para ameaçar o processo unificador anterior? Ou, ainda: independentemente da eficácia da
crítica corpórea, no sentido de enfraquecer o paradigma cognitivista, que proposta de
unificação apresentam os autores da cognição corpórea para o que consideram serem as
ciências cognitivas? Mas destas decorrem ainda outras questões. A crítica realizada pela
cognição corpórea ao cognitivismo viria acompanhada, implícita ou explicitamente, de novos
instrumentos de unificação multidisciplinar deste campo de estudos? Estes supostos
instrumentos novos tomariam ainda a forma de um modelo dominante? A crítica e as
argumentações da orientação corpórea ainda se fariam a partir do interior de um campo
científico coeso, que assim pretende se manter? Ou, por fim: são as próprias ciências
cognitivas que buscam se renovar, para prosseguir seu projeto multidisciplinar, ou o alegado
5

enfraquecimento de seu modelo principal seria parte de um processo de dissolução de tal


projeto, provocado quer interior ou exteriormente?
Ainda que não possa apresentar respostas claras e definitivas a estas indagações, haja
vista que a orientação corpórea é uma tendência não suficientemente sedimentada e
investigada, sugere-se aqui que já podem ser identificadas algumas tendências, que apontam
para uma nova forma de unificação das ciências cognitivas em sua guinada corpórea.
Reiterando a advertência de que a unificação das ciências cognitivas consistiria antes num
processo do que na formação de uma totalidade acabada, advoga-se que, malgrado numerosas
divergências entre si e a falta de um direcionamento unívoco, os cientistas cognitivos e
filósofos de orientação corpórea ainda procuram uma atuação unitária, sobretudo através de
suas posturas ontológico-políticas. Embora não se possa afirmar se esta busca terá sucesso, ela
já se mostra suficientemente intensa, difundida e estabelecida para justificar uma investigação
que acompanhe seus passos – independentemente de seu destino futuro. Em resumo: a
hipótese que, neste trabalho, busca responder a todas estas questões é a de que a cognição
corpórea já constitui hoje uma continuidade crítica das ciências cognitivas, com um
distinguível caráter de unificação. Além disso, mesmo que não chegue a constituir um novo
paradigma, e ainda que não se possa prognosticar qual será sua importância no futuro, a
cognição corpórea já se estabelece como uma forte vertente das ciências cognitivas,
produzindo efeitos também no ambiente social.
Para favorecer tanto a suposição fundamental sobre a coesão inicial das ciências
cognitivas, quanto à hipótese de resposta às questões acima formuladas, se fará uma análise
do desenvolvimento histórico da construção teórica das ciências cognitivas, procedendo-se a
um exame das principais questões e problemas filosóficos envolvidos. Contudo, dado seu
caráter de apreciação geral da orientação corpórea como um movimento crítico, esta tese se
debruçará sobre as questões conceituais desta corrente de forma menos aprofundada, sem se
deter, por exemplo, em controvérsias mais detalhadas. Alternativamente, aquelas discussões
cujo valor para a investigação aqui desenvolvida for detectado serão ao menos indicadas.
Ademais, se precisarão avaliar também as controvérsias quanto ao seu poder de enfraquecer
as hipóteses que aqui serão adotadas.
Retomando-se agora o sentido da crítica que elabora, ressalte-se que a perspectiva
corpórea afirma que conceber a cognição através do modelo computacional – ou, como aqui
será preferencialmente denominado, modelo lógico-proposicional – conduz a limitações. Para
a cognição corpórea, deve ser dada importância primordial aos elementos que o cognitivismo
teria insistido em eliminar da cognição, tendo como parâmetro sua imagem lógico-
6

proposicional. Este entendimento se origina de pesquisas sucedidas especialmente a partir da


década de 1970. Os cientistas de orientação corpórea das ciências cognitivas sustentam ter
descoberto que, diferentemente do que preconiza o modelo lógico-proposicional:
a) Os seres vivos não funcionam como máquinas – que têm por característica não
serem capazes de se transformarem a si mesmas –; mas, ao contrário se autoproduzem e
autotransformam continuamente para se adaptarem ao ambiente, sendo o processo cognitivo
parte desta atividade vital e, portanto, também uma atividade de transformação material,
corpórea, e não apenas simbólica ou mecânica;
b) Os corpos, os ambientes e os contextos sociais produzem na cognição significados
inexatos, flexíveis, implícitos e não conscientes, que não cabem completamente em
formalizações abstratas, lógicas ou matemáticas; e
c) Os conceitos são produzidos também com as emoções e os sentimentos, as
diferenças individuais dos corpos e as experiências fundamentais na geração dos significados
imanentes, o que se opõe a qualquer imagem padronizadora e transcendente da cognição e a
toda concepção de mente e corpo como sendo substâncias distintas ou separadas.
Estas alegações decorreram de resultados de pesquisas empíricas como as
exemplificadas a seguir:
1) O conceito de autopoiese, criado por Humberto Maturana e Francisco Varela
(MATURANA & VARELA, 1974) para responder a indagações sobre a natureza dos
processos vitais, desafiou profundamente o modelo lógico-proposicional da cognição,
ao defender que os seres vivos são sistemas que se auto modificam e autoproduzem
continuamente, para garantir sua sobrevivência, diferenciando-se e promovendo
continuamente trocas de substâncias e energia em acoplamento com o ambiente. Nesta
abordagem anti-mecanicista, sistemas cognitivos não são simples processos mecânicos
passivos, baseados nas relações fixas entre informações (input) e comportamento
(output), mas sistemas operacionalmente fechados, em que dos processos vitais se
exige que sejam capazes de transformar a si mesmos -- ao contrário do que ocorre com
as máquinas, que serviram de imagem capital para o modelo lógico-proposicional.
Com isso, recusa-se a noção ortodoxa da cognição controlada por mecanismos
externos, que corresponde ao princípio de heteronomia presente nas ciências
cognitivas tradicionais. Caracterizada pela ideia de autonomia, a cognição passa a ser
compreendida como parte dos processos internos de auto-organização e autoprodução
dos seres vivos. Reforçando a ideia de autonomia, a cognição corpórea acrescenta a
noção de homeostasia que, a partir das pesquisas de Claude Bernard (BERNARD,
7

1879) e Walter Cannon (CANNON, 1932), defende que os seres vivos mantêm seus
processos vitais de acordo com parâmetros de sobrevivência. Isto, segundo António
Damásio (DAMÁSIO, 2011 [2009]), inclui o próprio raciocínio e a consciência
humanos, como processos essencialmente orgânicos e vinculados à sobrevivência
individual e da espécie.
2) Descobertas científicas têm reforçado a noção de percepção corpórea, que concebe as
imagens que dão significado à cognição não como representações do mundo na forma
de ideias simbólicas abstratas – como defende o modelo lógico-proposicional – e sim
como processos complexos nos quais os sentidos não são isolados entre si e nem da
ação sensório-motora. Um caso característico é o do experimento de Paul Bach y Rita
(BACH Y RITA et al, 1969), de “substituição tátil da visão”, no qual imagens de uma
câmara de vídeo geraram estímulos na pele de cegos, e os padrões produzidos somente
foram identificados como “visuais” pelos indivíduos a partir de movimentos
realizados por eles, direcionando a câmara com a cabeça, as mãos e o corpo. Assim, os
significados nasceriam da percepção, por parte do sujeito, daquilo que ocorre no seu
corpo, de modo global e interativo, e não de inputs proporcionados por informações já
de antemão presentes e prontas no mundo. Dito alternativamente, as informações a
serem conhecidas seriam produzidas também com intervenção das características do
organismo como um todo, e graças à qualidade da experiência corpórea;
3) Outra importante hipótese empírica na cognição corpórea é a do marcador somático,
apresentada por António Damásio (DAMÁSIO, 2004 [1994]; 1996). Segundo ele e
sua equipe os marcadores-somáticos decorrem de sentimentos gerados a partir de
emoções. Essas emoções e sentimentos são continuamente vinculados, pela
aprendizagem, à previsão de resultados futuros de decisões, com base na marca afetiva
que experiências passadas deixaram em nossos corpos. Assim, ao invés de as decisões
humanas serem produzidas pela avaliação computacional de opções de ação,
supostamente disponibilizadas em nossa memória como se fossem informações
abstratas formalizadas simbolicamente, elas decorrem de marcas emocionais, cenários
corpóreos já vividos e redisponibilizados organicamente, que são comparados, no
momento de decidir, com os cenários novos com que os organismos se depara.
4) O também neurocientista Gerald Edelman advertiu, com base em suas pesquisas, sobre
dois pontos, que alertam para graves limitações do modelo lógico-proposicional: o
desenvolvimento do cérebro na história do indivíduo é acompanhado de grande
variabilidade, o que dificulta sua comparação com o hardware de um computador; e
8

os sinais que o mundo oferece à cognição não são inequívocos como devem ser os
sinais de entrada de um computador, cujos softwares exigem definições exatas
(GRECO, 2001, p. 75). Isto é, a variabilidade do cérebro e a imprecisão dos
significados seriam características inevitáveis da cognição humana, o que reduz
seriamente as aplicações do modelo computacional da cognição.
Quanto ao método de investigação empregado neste trabalho, é preciso destacar duas
características.
A primeira diz respeito ao fato de compreender as orientações cognitivista e corpórea
como partes de um contexto e, além disso, inseparáveis uma da outra. Isto significa que não se
ambiciona aqui definir uma imagem das ciências cognitivas clássicas, ou do modelo lógico-
proposicional, isolada do contexto de suas diferenças para com a orientação corpórea,
desprezando o fato de que vêm sendo alvo de críticas. O presente intuito, em vez disso, é
identificar que características das ciências cognitivas tradicionais, em conjunto, constituem o
foco principal das objeções a elas apresentadas pela orientação corpórea, de tal modo que se
possa compreender o que justifica estas objeções serem extensivas a cada uma das disciplinas
que integram aquele conjunto. Dito de maneira alternativa: assim como a orientação corpórea,
em grande parte, deve ser compreendida como uma reação ao cognitivismo presente em
diversas disciplinas, este será aqui definido prioritariamente em função desta reação. No
mesmo sentido, o que se chama aqui de modelo lógico-proposicional não deve ser
compreendido como uma suposta formulação pura do cognitivismo, mas como uma imagem
que emerge da crítica que é feita a este último pela cognição corpórea.
A segunda característica concerne às partes internas da orientação corpórea, às quais
se atribui complementaridade mútua. Quanto a este ponto, o propósito da tese é demonstrar
que a unidade da orientação corpórea é constituída pela articulação de três principais
abordagens identificáveis, que recebem contribuições de diversas disciplinas, e que são
consideravelmente profundas e radicais na valorização e reconceituação do corpo na
cognição, sendo por este motivo mais cabalmente adversárias do cognitivismo:
• Corpóreo-enativista: voltada especialmente à inseparabilidade de percepção e
ação, sujeito e objeto, vida e cognição, através da ideia de enação – com ênfase em
processos evolutivos;
• Corpóreo-conceitual: que se dedica predominantemente ao caráter corpóreo-
experiencial da formação dos conceitos – com ênfase em processos linguísticos;
9

• Corpóreo-afetiva: que se volta prioritariamente ao papel das emoções e dos


sentimentos como atividades corpóreo-experienciais da cognição – com ênfase na
integração fisiológica entre cérebro e corpo.
Para defender a unidade teórica da cognição corpórea, serão propostas, também na
qualidade de hipóteses, articulações que estas três abordagens principais possuem entre si,
assim como pressupostos e motivações de ordem ontológica e política que elas demonstram
compartilhar. As construções teóricas que cada uma das abordagens realiza se fortalecem
quando compreendidas em associação com as desenvolvidas pelas outras, o que deve ser
avaliado em consonância com o fato de que elas possuem propósitos ontológico-políticos
convergentes.
Por meio da associação das três principais abordagens acima reportadas, bem como de
conexões e confluências que se aventa ocorrerem entre elas, se defende neste trabalho que a
orientação corpórea das ciências cognitivas tem se distinguido por evidenciar três dimensões
basilares para a cognição, que designariam mais rigorosamente esta última como corpórea:
a) A dimensão ontológica, baseada na noção da cognição como codeterminação entre
indivíduo e mundo;
b) A dimensão vital e evolutiva, apoiada na hipótese de que a cognição consiste em um
processo de biorregulação do ser humano, fundamental para a sua sobrevivência;
c) A dimensão temporal, proveniente da suposição de que a cognição articula, ao longo
do tempo, as experiências individuais do corpo, que advêm da estrutura deste, mas
também contribuem para sua transformação.
Com base no que acima foi exposto, torna-se mais clara a objeção da cognição
corpórea ao modelo lógico-proposicional, a partir do qual o conjunto das características
individuais próprias de cada ser humano é afastado dos processos cognitivos pelas ciências
cognitivas tradicionais – mas não se deixaria efetivamente eliminar. Todavia, além de
formular tais críticas, a cognição corpórea se propõe a apresentar uma imagem da cognição e
do ser humano que respeita a sua capacidade de autotransformação e as diferenças inevitáveis
entre os indivíduos. Para tal, lança mão de instrumentos e conceitos como de emergência,
complexidade e sistemas dinâmicos não lineares.
Por outro lado, é ao argumentar por uma imagem de ser humano anti-mecanicista que
na cognição corpórea se evidencia uma posição mais claramente política. Mas é preciso
salientar que esta posição na maior parte dos casos se faz apoiar em teorias científicas. Melhor
dizendo, quando os autores da cognição corpórea defendem uma nova imagem do ser
humano, do pensamento, da cognição, da razão – e mesmo da realidade, inclusive a social –, o
10

fazem alegando que esta imagem decorre de achados empíricos do que chamam de “segunda
geração das ciências cognitivas” 2.
Porém, esta dimensão política da cognição corpórea somente se caracteriza mais
nitidamente quando se evidencia sua atitude de utilizar a ciência como instrumento de
transformação social. Tal fato se dá na medida em que alguns dos principais pesquisadores de
orientação corpórea pretendem, por intermédio de suas afirmações de natureza empírica,
mudar crenças, conceitos, modos de pensar – e, por conseguinte, comportamentos – sociais.
Mais: isto é frequentemente acompanhado, na orientação corpórea, da manifesta intenção de
que uma nova concepção científica – ou um paradigma – deva ser utilizada para promover
novos modos de se viver coletivamente. Tomemos três exemplos, escolhidos dentre
afirmações das principais lideranças da cognição corpórea, de tal posicionamento político
alegadamente ancorado em achados empíricos e voltado contra o que é então chamado de
cartesianismo:

1) A atitude de Francisco Varela, expressa no artigo The early days of autopoiesis: Heinz
and Chile3, de 1996, de defender o que chama de guinada ontológica como sendo uma

mutação progressiva do pensamento que termina uma longa dominação do espaço


social do cartesianismo e que se abre para a consciência nítida de que a humanidade
e a vida são as condições para a possibilidade de significado e para os mundos em
que vivemos. Que conhecer, fazer e viver não são coisas separadas e que a realidade
e a nossa identidade transitória são parceiros em uma dança construtiva (VARELA,
1996, p. 415 – grifo meu).

Porém, no contexto deste posicionamento de Varela, a guinada ontológica não seria


apenas uma tendência espontânea de transformação do pensamento. Mas,
especialmente no caso da teoria da autopoiese (desenvolvida no início dos anos 1970,
no Chile), seria o resultado de pesquisas científicas realizadas senão com o intuito
declarado, ao menos com a inspiração de mudar os paradigmas sobre a vida e a
cognição. Este entendimento se justifica nas palavras de Varela sobre o período
referido:

Eram tempos de pesquisa e discussão com foco no que parecia uma insatisfação,
uma anomalia. A insatisfação básica era a noção de informação como a chave para a
compreensão do cérebro e cognição; a ideia não parecia desempenhar um papel
explícito no processo biológico (Ibid., p. 410).

Contudo, a postura política do autor se revela mais propriamente no artigo


mencionado acima. Porque nele Varela demonstra a intenção de defender uma atitude
2
LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 77.
3
Será feita uma análise mais aprofundada deste artigo na seção 2.1.
11

transformadora da ciência sobre comportamentos sociais – e sobre a própria ciência e


a filosofia. Ademais, o autor revela, ao escrever e publicar o texto em exame, uma
ação afirmativa de suas conclusões empíricas que lança mão de argumentos políticos.
Com isso, não se limita à defesa das teorias científicas em si – mas se expressa a partir
delas e procura advogar seu papel transformador, para favorecer sua aceitação em
virtude deste atributo.
2) A forte objeção à tradição racionalista, que se encontra na obra de George Lakoff e
Mark Johnson, deve ser abordada, inicialmente, pela afirmação deste último de que
uma crise no pensamento ocidental tem exigido novas respostas.

Na última década, uma crise surgiu. O ponto de vista objetivista do significado e da


racionalidade tem sido seriamente questionado, tanto por motivos lógicos, quanto
por uma ampla gama de estudos empíricos. A expressão mais notavelmente
contundente do argumento lógico foi dada por Hilary Putnam4. (...) A evidência
empírica vem de estudos em muitas disciplinas diferentes, todos compartilhando um
interesse comum, ou seja, eles se concentram em fenômenos onde a compreensão
humana é necessária para uma explicação do significado e da razão (...). A chave
para uma resposta adequada a esta crise é concentrar-se em algo que tem sido
ignorado e subvalorizado nas explicações objetivistas do significado e da
racionalidade – o corpo humano e, especialmente, aquelas estruturas da imaginação
e da compreensão que emergem de nossa experiência corpórea. O corpo foi ignorado
pelo objetivismo porque se julgou que introduziria elementos subjetivos
alegadamente irrelevantes para a natureza objetiva do significado. O corpo foi
ignorado porque a razão tem sido considerada abstrata e transcendente, isto é,
desvinculada de qualquer aspecto corpóreo da compreensão humana. O corpo foi
ignorado porque ele parece não ter papel no nosso raciocínio sobre assuntos
abstratos (JOHNSON, 1987, p. xi-xiv).

De maneira semelhante a Varela, Johnson sugere uma alternativa ao que chama de


crise, adotando um raciocínio que apresenta ecos da teoria de Thomas Kuhn sobre a
dinâmica histórica da ciência – mas, do mesmo modo que Varela, aparentemente
pretendendo combater conscientemente o que seria o esgotamento do paradigma
anterior.
Ele e Lakoff acrescentam – também, como Varela, lançando mão de questões
ontológicas – que as ciências cognitivas têm um papel transformador do modo de
pensar identificado como cartesiano:

4
As referências de Lakoff e Johnson ao anti-objetivismo lógico de Putnam serão aprofundadas adiante –
especialmente nas seções 2.2 e 2.4.
12

A corporeidade da razão, como revelada pelas ciências cognitivas, proporciona uma


nova compreensão do ajuste entre a mente e a realidade, uma visão que chamaremos
de realismo corpóreo. Ele é mais parecido com o realismo direto dos gregos do que
com o realismo representacional desencarnado da filosofia cartesiana e analítica, que
é fundamentalmente separada do mundo. O realismo corpóreo, rejeitando a
separação cartesiana, é, sim, um realismo baseada na nossa capacidade de funcionar
com sucesso em nossos ambientes físicos. É, portanto, um realismo baseado na
evolução. A evolução nos deu corpos e cérebros adaptados que permitem nossa
acomodação ao ambiente, e até mesmo transformá-lo (LAKOFF & JOHNSON,
1999, p. 95).

Mas é desde o início de seu principal livro em parceria Philosophy in the flesh (do qual
foi também retirado o trecho acima) que estes autores se posicionam de maneira
claramente política com base na ciência, isto é, buscando defender uma mudança geral
de modo de pensar e da cultura que reputam dominantes, a partir do que consideram
serem resultados empíricos da cognição corpórea:

A mente é inerentemente corpórea.


O pensamento é principalmente inconsciente.
Conceitos abstratos são em grande parte metafóricos.
Estas são três grandes descobertas das ciências cognitivas. Mais de dois milênios de
especulação filosófica a priori sobre estes aspectos da razão estão superados. Devido
a estas descobertas, a filosofia nunca mais será a mesma.
Quando tomados em conjunto e considerados em detalhe, estes três resultados da
ciência da mente são inconsistentes com aspectos centrais da filosofia ocidental.
Eles exigem que sejam profundamente repensadas duas das abordagens atuais mais
populares, a filosofia analítica anglo-americana e a filosofia pós-modernista.
Este livro pergunta: O que aconteceria se nós tomássemos essas descobertas
empíricas sobre a natureza da mente e construíssemos a filosofia de novo? A
resposta é que uma filosofia empiricamente responsável exigiria que nossa cultura
abandonasse algumas das suas mais profundas suposições filosóficas. Este livro é
um extenso estudo do que muitas dessas mudanças seriam em detalhe.

A atitude de Lakoff e Johnson é nitidamente radical, e aparentemente mais


contundente em seus propósitos do que a de Varela, porque designa como seus alvos
de transformação – com apoio em resultados empíricos – a cultura ocidental e as
tradições filosóficas que entendem ser predominantes.

3) O posicionamento político de António Damásio é voltado mais especificamente para o


que ele considera serem consequências terapêuticas, negativas sobre os seres
humanos, do cartesianismo. Ele denuncia uma medicina que ignora o que chama de
“dimensão humana” (DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 287), e que se limitaria a considerar
a fisiologia e a patologia do corpo. Apontando a origem desta deficiência no próprio
ensino da medicina, critica o fato de o cérebro e o sistema nervoso serem tratados
apenas na qualidade de órgãos, o que revela grande negligência da dimensão
emocional dos seres humanos. Para ele, esta limitação decorre da “visão cartesiana da
condição humana”, com a qual se reforça “uma amputação do conceito de natureza
13

humana com que a medicina trabalha” (Ibid.) e se ignoram largamente as


consequências do corpo sobre a cognição na solução de problemas tanto psíquicos
quanto fisiológicos. Deste modo, os problemas identificados como apenas psíquicos
ou orgânicos são tratados em separado e, ao menos em parte, solucionados – no
sentido de se reduzirem sofrimentos urgentes, mas criando-se, com isso, novos
problemas. Assim, também segundo Damásio se identifica uma crise no modo
ocidental de conceituar o ser humano:

Uma imagem distorcida do organismo humano, juntamente com o crescimento


assoberbador do conhecimento e com a necessidade de sub especialização, torna a
medicina cada vez mais inadequada. A medicina bem poderia dispensar o acréscimo
de problemas que sua dimensão industrial agora lhe traz, mas também esses não
param de se avolumar e agravam, por certo, o seu desempenho (Ibid., p. 288-289).

O que seria o efeito do abismo cartesiano entre corpo e mente sobre a medicina exige,
segundo o autor, solução para os novos problemas que impõe. Em sua opinião,

O êxito de algumas formas da chamada medicina “alternativa”, em especial aquelas


que estão ligadas à tradição não ocidental, constitui uma reação compensatória a
esse problema. Há algo a admirar e aprender com essas formas de medicina
alternativa, mas, infelizmente, e independente de sua adequação em termos
humanos, o que oferecem não chega para tratar eficazmente as doenças. Com toda a
justiça, devemos admitir que até mesmo a medíocre medicina ocidental resolve um
número extraordinário de problemas. No entanto, as formas de medicina alternativa
vêm colocar em destaque o ponto fraco da tradição ocidental, que deveria ser
cientificamente corrigido dentro da própria medicina. Se, como julgo, o êxito atual
dos tratamentos alternativos é um indício da insatisfação do público em relação à
incapacidade da medicina tradicional de considerar o ser humano como um todo, é
de prever que essa insatisfação irá aumentar nos próximos anos, à medida quase
aprofundar a crise espiritual da sociedade ocidental (Ibid., p. 289 – grifo meu).

Na seção 2.1 será explorada a questão do holismo – isto é, o ponto de vista que
valoriza o todo, em vez das partes, para explicar os organismos vivos – e sua
importância para a cognição corpórea. Mas desde já se percebe que a crítica de
Damásio à prática médica – o que inclui tanto a concepção dos médicos sobre os seres
humanos, quanto a destes sobre si mesmos – é inseparável da sua recusa à imagem do
ser humano como mera soma de partes, e ao cartesianismo, e que esta postura, por sua
vez, se vincula a uma posição de questionamento à imagem tradicional, racionalista e
mecanicista5, da cognição.
Mas sua atitude se reforça em seu sentido político quando ele afirma, sobre o
seu livro que está em exame:

5
O sentido de “mecanicista” aqui empregado não se limita àquele tradicionalmente associado à obra de
Descartes, mas, como ficará mais claro adiante, corresponde propriamente à imagem de sistemas físicos ou
cognitivos como sequências determinísticas mais simples e previsíveis.
14

A voz do cientista pode ser mais do que o mero registro da vida tal como ela é; o
conhecimento científico pode constituir um pilar que ajude os seres humanos a
resistir e a vingar. Escrevi este livro convicto de que o conhecimento em geral e o
conhecimento neurobiológico em particular têm uma função importante a
desempenhar no destino humano (Ibid., p. 285).

Esta passagem parece revelar, ao mesmo tempo, a intenção do autor em colocar


determinados resultados empíricos a serviço de transformações sociais, e a sua crença de que
a ciência, assim, pode cumprir melhor seu papel na evolução humana. Se esta interpretação
estiver correta, mais um aspecto importante se reforça na atitude da liderança da cognição
corpórea: sua convicção – de certo modo já presente nas passagens de Varela citadas acima –
de que o próprio conhecimento científico sobre o ser humano tem um papel a desempenhar na
evolução da humanidade e que, por este motivo, é inevitavelmente político.
Não está claro o que cada um dos autores mencionados considera ser o cartesianismo.
Veremos ao longo deste trabalho que, em sua crítica predominantemente dirigida ao
cognitivismo, há também objeções ao que a cognição corpórea trata como herança cartesiana
no pensamento ocidental. Estas objeções ficarão mais claras conforme forem examinadas em
particular.
Quanto à dimensão política da cognição corpórea devem ser assinalados ainda alguns
pontos. O primeiro é que – como se pode notar nos exemplos acima – se manifesta nas
lideranças da cognição corpórea uma atitude nitidamente militante, de recusa ao que seria
uma imagem limitada de ser humano, e de seu modo de pensar, perceber e agir; contudo, tal
atitude vai mais além: trata, também, de defender veementemente o uso da ciência para que
não apenas tal imagem seja modificada, como para que o próprio ser humano se modifique. O
segundo ponto consiste no fato de que esta atitude se possibilita porque a ciência na qual estes
autores se baseiam, para defender suas posições quanto ao ser humano, não é uma ciência
qualquer: é uma ciência que, graças ao seu próprio objeto, propõe ao ser humano que ele pode
ter, com apoio em pesquisas empíricas, uma imagem radicalmente nova sobre si mesmo. E há
ainda um terceiro ponto: criam-se, por meio desta atitude dos líderes da cognição corpórea,
condições para que esta corrente possa buscar sua unificação justamente em decorrência de
sua projeção para além dos argumentos internos, “exclusivamente” científicos, e alcançá-la
através da aplicação social de suas conclusões. Se isto será possível, como se verá, ainda está
em aberto.
Ao longo do presente trabalho serão examinados os argumentos propriamente
científicos das ciências cognitivas em geral – e os da cognição corpórea em particular –, de tal
modo que se possa compreender e avaliar se a pretensão de unificação política da cognição
15

corpórea é viável – já que se sustenta nestes argumentos. Porém, como não haverá espaço
para uma análise muito detalhada de cada argumento, eles serão discutidos, na maior parte das
vezes, quanto ao sentido mais essencial de suas formulações. Ainda que não se chegue a uma
resposta conclusiva, tal investigação se impõe e justifica dadas a importância e a ambição do
projeto da orientação corpórea das ciências cognitivas.
As objeções que a cognição corpórea faz às consequências da imagem mecanicista da
cognição também permitem considerações sobre o modo como esta imagem afeta a sociedade,
e como estas – a imagem e a própria sociedade – poderiam ser transformadas graças a tais
objeções. Pelo que se poderá constatar, embora alguns autores da cognição corpórea ressaltem
a importância da intersubjetividade para a cognição, esta dependeria basicamente, segundo a
corrente que aqui se examina, das características individuais dos seres humanos. Assim, os
efeitos sociais da aplicação da imagem tradicional da cognição devem ser presumidos como
dependendo de como afetam os indivíduos. Conforme se pode extrair dos argumentos de
Varela, Lakoff, Johnson e Damásio acima descritos, é bastante sugestivo que alguns
problemas, decorrentes das influências que concepções da cognição análogas à do
cognitivismo, estejam afetando a sociedade, por exemplo, através do ensino e das terapias,
médicas ou psíquicas. Isto é, cabe a conjectura de que os pressupostos da cognição como
processo lógico, simbólico, abstrato e quantificável tenham chegado à educação e aos
métodos terapêuticos, e que isto esteja se fazendo acompanhar de um determinado conceito de
ser humano e de pensamento, que estaria sendo reforçado nos estudantes e nos pacientes --
mas, antes, nos professores e nos médicos, psicólogos e outros profissionais da educação e da
saúde. Deste modo, as limitações do modelo lógico-proposicional apontadas pela cognição
corpórea teriam alcançado a sociedade por meio da aplicação e disseminação de seus
princípios formais e funcionais em práticas que envolvem a constituição das crenças e hábitos
cognitivos individuais.
Admitir que o modelo lógico-proposicional tenha traços muito semelhantes às
concepções de pensamento e aprendizagem aplicados no ensino e nas terapias atuais requer o
reconhecimento de que a imagem simbólica e computacional da cognição seja capaz de
explicar esta última em muitos aspectos, além de conseguir prever eficazmente o
comportamento humano quando submetido a certas condições, ou desprezadas algumas
variáveis -- especialmente aquelas que dizem respeito às diferenças individuais. Sendo assim,
a previsão do comportamento se confundiria com a prescrição deste: por se basear em uma
imagem abstrata e padronizada das condutas racionais, a previsibilidade comportamental se
16

efetivaria desde que os indivíduos incorporassem as regras de pensamento e ação esperadas e


estimuladas pelo modelo.
Em apoio a esta ideia, ressalte-se que a orientação corpórea das ciências cognitivas
não nega que processos abstratos e racionais ocorram na cognição humana. Ao contrário,
sobretudo por serem decorrentes de práticas sociais e da necessidade de comunicação de
conhecimento através da linguagem, são amplamente difundidos. De acordo com Mark
Johnson, por exemplo, assim como os significados cognitivos são fundados em experiências
corpóreas e relações viscerais com o mundo, a razão não é uma coisa “pura”, abstrata ou
concreta em si, mas também produto destas interações (JOHNSON, 2007, p. 13, 31, 36, 109,
102, 121). No mesmo sentido, um modo de pensar (e agir) à semelhança do modelo mecânico
da cognição pode ser produzido e incentivado. Isto nos leva a considerar, de um lado, que ele
não seja natural e inevitável, e, de outro, que possa ser encontrado largamente na sociedade.
As suposições sobre os efeitos do modelo lógico-proposicional da cognição na
sociedade ainda carecem muito de estudos mais aprofundados que, de todo modo, fogem às
intenções deste trabalho. Considerá-las aqui, contudo, é fundamental para ilustrar que tipo de
problemas a cognição corpórea busca solucionar. Seriam problemas decorrentes – como
haverá ensejo de se explorar mais à frente – de se conceber a cognição como um mero
processo simbólico e cerebral de resolução de problemas. E as soluções propostas pela
cognição corpórea para os problemas que levanta fazem convergir ciência, política e
ontologia, desde que estas sejam concebidas como caminhos para se compreender e
transformar a realidade.
Em suma, o presente trabalho tem como objetivos: investigar a cognição corpórea em
sua tentativa de criticar o modelo lógico proposicional da cognição e algumas de suas
inspirações e aplicações; e estudar o esforço desta corrente – além de empírico, também
político, metafísico, ontológico – para manter as ciências cognitivas unificadas, justamente
por parecer acreditar que somente assim seu intuito crítico pode ser alcançado. A cognição
corpórea poderia ser considerada, deste modo, um empirismo radical.
Com a finalidade de alcançar tal intuito, esta tese está organizada da seguinte forma.
No primeiro capítulo, será estudada a gênese das ciências cognitivas, e do modelo
lógico-proposicional, com o propósito de se compreender dois pontos principais: a hipótese
que aqui se adota de que as ciências cognitivas se unificaram, em sua fase inicial, em torno
deste modelo; e quais são as características do modelo que recebem as críticas da cognição
corpórea. Assim, a seção 1.1, denominada “A formação histórica das ciências cognitivas
através da criação de um modelo unificador da cognição” se inicia com a explicitação da
17

concepção, adotada na tese, sobre o papel dos modelos na atividade científica, uma vez que a
clareza quanto ao sentido de modelo empregado será determinante para a argumentação
desenvolvida. Tal explicitação se justifica por três motivos principais. O primeiro deles é a
necessidade de se deixar clara que acepção da palavra “modelo” se está usando nesta tese,
dada a polissemia do termo nos textos filosóficos e científicos do último século, ao menos. O
segundo motivo diz respeito à importância central que parte substancial dos historiadores das
ciências cognitivas, das ciências da computação e da psicologia atribui ao fato de ter sido
utilizado um determinado modelo dominante, descritivo e explicativo do processo cognitivo,
na nova concepção da cognição humana produzida em meados do século 20. E o terceiro
motivo é que uma das principais hipóteses a ser defendida nesta tese é de que foi exatamente a
criação de tal modelo que permitiu a constituição das ciências cognitivas, ao proporcionar que
se aglutinassem diversas disciplinas em torno de uma imagem unificada da cognição. Em
suma, somente uma determinada acepção de modelo científico atende aos propósitos dos
segundo e terceiro motivos, o que exige sua explicitação. Em seguida, será apresentada uma
breve história dos antecedentes das ciências cognitivas, na qual se pretende demonstrar que:
a) as ciências cognitivas nasceram como efeito imediato de um debate em que, de um
lado, estava a psicologia behaviorista – desinteressada dos processos internos da
cognição – e, de outro, uma proposta de aplicação aos processos cerebrais de uma
concepção lógico-computacional, com ambições preditivas e prescritivas mais fortes;
b) mais remotamente, pesquisas em computação artificial, como as de Charles
Babbage, e discussões sobre os fundamentos lógicos das linguagens simbólicas, como
as provocadas pelas obras de George Boole, Gotlobb Frege, Bertrand Russell, Alfred
Whitehead e Rudolf Carnap, criaram condições para que surgisse um novo conjunto
de ciências, com propósito de atuação interdisciplinar, e capaz de compatibilizar o
projeto behaviorista, de compreender o comportamento humano, com o de um estudo
interno da cognição, ao pretender identificar e descrever os processos cerebrais que
produzem comportamentos;
c) tiveram importância fundamental na constituição teórica das ciências cognitivas: os
trabalhos de Alan Turing chamado de “máquina de Turing”, e de Claude Shannon criando a
noção de binary digit, ou bit; a aplicação das ideias oriundas desses trabalhos ao cérebro, feita
por Warren McCulloch e Walter Pitts; a analogia entre o comportamento humano e o de
máquinas, proposta pelos autores pioneiros da cibernética Arturo Rosenblueth, Norbert
Wiener e Julian Bigelow; e a separação entre o nível lógico e o físico na computação
18

eletrônica originado da intervenção de John Von Neumann na construção do computador


ENIAC.
Na subseção que vem a seguir, se defenderá que as ciências cognitivas nasceram de
um projeto deliberado de cooperação interdisciplinar nos EUA, com a liderança da
inteligência artificial, iniciado com as Conferências Macy (1946-1958), culminado com o
programa de financiamento da Fundação Sloan (anos 1970), passando pelo apoio da RAND
Corporation a Herbert Simon e Allen Newell na inteligência artificial, e que esse projeto só
foi possível porque sustentado em uma concepção unificadora da cognição como processo
lógico-proposicional. Em outras palavras, esta subseção pretende mostrar que a criação do
modelo lógico-proposicional foi a solução metodológica conscientemente adotada com vistas
ao estabelecimento de um estudo da cognição compartilhado por várias disciplinas
anteriormente autônomas. Isto implica dizer, entre outras coisas, que os vínculos
multidisciplinares das ciências cognitivas mais importantes para esta tese consistem mais no
compartilhamento de uma noção comum de cognição do que em atividades de colaboração
interdisciplinares propriamente ditas. Nesta subseção também se almejará deixar clara a ideia
de que, embora esta não seja uma tarefa em todos os casos trivial, factível ou mesmo
necessária, considerar adequadamente uma atividade científica como sendo integrante do
programa de pesquisas chamado de ciências cognitivas exige que esta atividade esteja
minimamente alinhada com os compromissos metodológicos mais gerais destas ciências,
como a multidisciplinaridade e a utilização de certos modelos dominantes ou orientações
ontológicas no estudo da cognição.
Na sequência, será explicitada a ideia de que os cientistas de uma determinada
comunidade compartilham compromissos teóricos e práticos, que unificam suas atividades e
produções, a partir de concepções da dinâmica científica como a de Thomas Kuhn, tal como
aplicadas às ciências cognitivas por autores como William Bechtel e George Mandler.
Também será examinado como o modelo lógico-proposicional foi criado, e como ele pôde
servir como referencial comum unificador das ciências cognitivas. Será estudado seu sentido
de nível intermediário, sintático e estrutural, que serve de ligação entre os níveis físico e
semântico da computação artificial e, segundo o cognitivismo, também da cognição humana.
O principal objetivo da seção é descrever a formação analógica e metafórica do modelo, com
a apresentação de uma interpretação de como se estabeleceu a analogia entre o programa de
computador e a cognição humana, tendo como noção e etapa intermediária a linguagem
simbólica comum a ambos.
19

Logo após, no início da seção 1.2, denominada “Descrição do modelo lógico-


proposicional e suas principais utilizações nas diversas disciplinas das ciências
cognitivas”, será descrito o modelo lógico-proposicional tal como concebido inicialmente na
inteligência artificial. Será apresentada a noção de algoritmo e sua utilização nos primeiros
computadores eletrônicos. Será descrita sobretudo a noção de solucionador geral de
problemas, de Herbert Simon e Allen Newell. Ato contínuo, se mostrará como se configurou,
na psicologia cognitiva, o modelo lógico-proposicional, a partir da noção de processamento
de informações proposta por autores como Donald Broadbent e George Miller. Será feita uma
comparação histórica do processamento de informações com o behaviorismo, e analisados
outros aspectos do modelo em psicologia, como a já citada analogia com a produção industrial
e a questão das acepções de informação utilizadas pelos autores. Em seguida, na próxima
subseção será analisado o conceito de representação mental tal como surgiu nas ciências
cognitivas tradicionais, constituindo a orientação cognitivista. Será discutida a Teoria
Computacional da Mente, de Jerry Fodor e Zenon Pylyshyn como originária das primeiras
formulações do modelo lógico-proposicional e responsável por seu desenvolvimento. Nesta
subseção se correlacionará a noção de representação mental com a de processamento de
informações, como modos de compreender a cognição na qualidade de transformação
simbólica, o que remeterá ao conteúdo do próximo segmento da tese, que se dedicará a
apresentar, com brevidade, outras aplicações do modelo lógico-proposicional nas ciências
cognitivas, como na linguística, onde será analisada sua influência na linguística gerativa, de
Noam Chomsky. Também será feito um balanço de como o modelo lógico-proposicional pode
ser reconhecido nas ciências cognitivas em geral, e que características compõem sua feição na
neurociência – neste caso, examinando a teoria de Marr do triplo nível explicativo da
cognição.
O segundo capítulo cuidará da cognição corpórea, iniciando-se com uma seção mais
longa em que serão estudados os fatos e as ideias que contribuíram para a formação da
orientação corpórea – inclusive ideias de algum modo latentes nas discussões que
constituíram ciências cognitivas iniciais. A partir de uma investigação histórica da noção de
sistema, se demonstrará como desdobramentos da própria cibernética, sobretudo a partir dos
trabalhos de Heinz Von Foerster, W. Ross Ashby, entre outros, fomentaram as críticas
internas às ciências cognitivas tradicionais. Como reforço a esta ideia na formação da
cognição corpórea, será vista a importância de pioneiros como Kurt Goldstein, Ludwig Von
Bertalanffy, G. Spencer-Brown e Paul Weiss na adoção de um ponto de vista holístico,
sistêmico, adaptativo e dinâmico da cognição. As noções de auto-organização, emergência e
20

complexidade merecerão atenção especial na seção, uma vez que são cruciais para o
estabelecimento do naturalismo antirreducionista que é traço fundamental da cognição
corpórea. Será abordada a aplicação dos sistemas dinâmicos não lineares ao cérebro, de algum
modo vinculada ao conexionismo e ao processamento distribuído e paralelo (PDP). Na mesma
seção será abordada a importância, para a formação da orientação corpórea, dos trabalhos de
Eleanor Rosch sobre categorização. Guardando semelhanças com a concepção de
categorização de Rosch, os trabalhos de Leonard Talmy e Ronald Langacker na identificação
de esquemas sensório-motores comuns em diferentes culturas e idiomas serão destacados.
Será feita referência às matrizes filosóficas que contribuíram para as críticas ontológicas ao
cognitivismo, como a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. A segunda seção do
capítulo, 2.2, com o título de “A orientação corpórea como conjunto integrado de
abordagens da cognição”, será dedicada a apresentar, em linhas gerais, uma das hipóteses
centrais de trabalho da tese: a de que a orientação corpórea deve ser compreendida como
unificável, e mais capaz de perpetrar sua crítica ao cognitivismo, ao ser caracterizada pela
articulação de três abordagens ou frentes de pesquisas preponderantes: a) Corpóreo-enativa;
b) Corpóreo-conceitual; e c) Corpóreo-afetiva. Estas três abordagens caracterizam-se
individualmente, sobretudo, pelos diferentes pontos de partida investigativos, e pelas maneiras
próprias como criticam a orientação cognitivista. Suas afinidades residem em quatro aspectos
essenciais: a) no fato – aparentemente mais óbvio – de criticarem o cognitivismo6; b) no fato
de proporem uma nova imagem da cognição humana; c) no fato de investigarem
profundamente o papel do corpo e da experiência tanto nas críticas quanto nas propostas que
apresentam; e d) na complementaridade que oferecem para a efetivação da crítica e para a
constituição da nova imagem acima consideradas. O primeiro passo da seção será explicar o
porquê da delimitação e eleição de três determinadas abordagens como sendo as principais da
orientação corpórea, o que levará em conta, principalmente, o caráter mais profundo e
completo das críticas que dirigem ao cognitivismo, assim como seus esforços em apresentar
um modo alternativo de compreender o papel do corpo no fornecimento de significado para as
ações dos seres humanos. Por fim, será empreendida uma análise da crítica da cognição
corpórea à representação mental e ao realismo objetivista.

6
Na verdade, não é tão óbvio que as três abordagens compartilhem a crítica ao cognitivismo. Ao menos não no
caso da abordagem corpóreo-afetiva. Esta, além de ser a mais recente das três, tem se mostrado menos explícita
na crítica às teses cognitivistas, o que, embora aparentemente tenha ocasionado o fato de ser pouco mencionada
como fazendo parte do campo da cognição corpórea, a meu ver não reduz a força de sua contribuição, quer
crítica ou propositiva, tendo em vista esta abordagem vir demonstrando quão essencial, para o conjunto das teses
corpóreas, é a consideração do papel das emoções e dos sentimentos na cognição humana.
21

As seções seguintes (2.3 a 2.5) farão exames das três abordagens da cognição corpórea
aqui consideradas, levantando os principais aspectos de suas contribuições particulares à
corrente que constituem – concluindo o capítulo 2.
No capítulo 3 serão discutidas as articulações entres as três frentes de pesquisa,
defendendo-se, com isso, a hipótese de que a cognição corpórea se unifica, também, graças à
complementaridade entre elas – no que se evidenciam as três dimensões da orientação
corpóreo-experiencial: ontológica, vital e temporal.
22

1. A GÊNESE DAS CIÊNCIAS COGNITIVAS E DO MODELO LÓGICO-


PROPOSICIONAL

1.1. A formação histórica das ciências cognitivas através da criação de um modelo


unificador da cognição

Neste trabalho se defenderá ideia de que as ciências cognitivas criam modelos. Ou


seja, elas têm criado modelos da cognição para atender à necessidade de compreendê-la.
Segundo esta perspectiva, é de se esperar que a cognição seja definida de tantas maneiras
quantos os modelos utilizados pelas ciências que dela se ocupam. Podemos, assim,
evidentemente, identificar um pluralismo de modelos nas ciências cognitivas. Isto não quer
dizer, contudo, que haja equivalência ou indiferenciação entre estes modelos, ou ainda que
eles não possam ser compreendidos e classificados segundo afinidades. Para propor sua
diferenciação – e classificação – cabe adotar não unicamente critérios formais, lógicos, mas
também dois outros: os objetivos que os modelos encarnam e o conjunto de relações sociais
em que são desenvolvidos. O motivo de considerar estes critérios é, justamente, o de entender
que necessidades os formuladores dos modelos têm enfrentado ao construí-los. Dito de outra
forma: a análise dos modelos criados para explicar a cognição tem como intuito compreender
que problemas buscam solucionar. Neste sentido, as diferenças entre os modelos deverão ser
definidas à luz dos diferentes problemas que enfrentam e, mais do que isto, considerando
como uns modelos se dedicam a responder à insatisfação que outros despertam.
Com a finalidade de mais propriamente delimitar o alcance deste trabalho, é
importante esclarecer que se entende aqui como cognição não apenas funções
tradicionalmente associadas ao pensamento lógico racional, mas todos os desenvolvimentos
de conhecimento e ação inteligente, inclusive aqueles que envolvem os corpos individuais,
processos orgânicos e não conscientes, emoções e sentimentos. Entretanto – porque isto seria
paradoxal apenas aparentemente, diante de uma concepção que inclua os corpos e a
afetividade na cognição –, não se pode deixar de considerar cognitivos os fenômenos que se
observam em dispositivos artificiais, como aqueles que são o objeto da inteligência artificial.
Tais dispositivos seriam cognitivos, primeiramente, tendo em vista se tratar de artefatos
construídos para funcionarem acoplados à cognição humana, na qualidade de seus virtuais
complementos e, assim, não poderem ser, ainda que em última instância, considerados à
margem desta. Mas não somente por isso: como será discutido com bastante ênfase mais
adiante, a inteligência artificial tem papel histórico decisivo na constituição das ciências
23

cognitivas, e mesmo a orientação corpórea a leva em conta. Isto é, incluir no campo da


cognição, além dos corpos e emoções, as questões referentes ao funcionamento de artefatos de
pensar é, assim, um movimento de ampliação deste campo e não de sua restrição, já que não
se trata de, neste caso, limitar toda cognição à metáfora computacional, mas de admitir um
âmbito cognitivo complexo formado pelos seres humanos, as máquinas de inteligência por
eles fabricadas e utilizadas, e a interação entre ambos no contexto social. Por outro lado,
tendo em vista focalizar neste trabalho polêmicas que envolvem os aspectos propriamente
humanos da atividade cognitiva, exclui-se do presente campo de análise – a não ser de
maneira acessória – a cognição dos demais seres vivos.
Em respeito à perspectiva histórica aqui empregada, propõe-se que a classificação dos
modelos da cognição seja realizada considerando o que é aqui chamado de orientações.
Utiliza-se na presente investigação o conceito de orientação científica não simplesmente para
designar a tendência a certos esquemas formais, porém, e sobretudo, para nomear a inclinação
da ação científica de perseguir alguns compromissos ou modos de solucionar problemas.
Sendo assim, considera-se neste trabalho que os modelos da cognição podem ser agrupados
conforme as seguintes orientações7:
a) Orientação cognitivista, que comporta o modelo lógico-proposicional;
b) Orientação corpórea, que comporta os modelos corpóreo-experienciais.
Não é casual o uso do singular no primeiro caso e do plural no segundo. Uma das
hipóteses defendidas nesta tese é de que a orientação cognitivista se constituiu em torno de
um modelo fundamental, e que este foi o principal meio pelo qual as ciências cognitivas se
viabilizaram como campo de estudos multidisciplinar. Sendo assim, investigar a orientação
cognitivista significa basicamente investigar este modelo unificador, aqui denominado lógico-
proposicional.
Por outro lado, é defendido também nesta tese que a orientação corpórea não apenas
dispensa o emprego de um modelo fundamental para sua unificação – já que neste trabalho se

7
Para alguns, as abordagens que propuseram as redes neurais e o conexionismo podem ser consideradas uma
orientação à parte das ciências cognitivas. No livro The embodied mind, de Francisco Varela, Evan Thompson e
Eleanor Rosch, (VARELA et al, 1991), por exemplo, o conexionismo é tratado como uma corrente das ciências
cognitivas independente das acima citadas. Porém, neste trabalho o conexionismo e a abordagem das redes
neurais não serão tratadas como uma corrente à parte por três motivos principais: a) Não possuem alcance tão
difundido nas diversas disciplinas das ciências cognitivas, sendo uma abordagem voltada sobretudo para a
neurociência e, em menor escala, para a inteligência artificial; b) São vertentes de estudos que se concentram na
investigação do funcionamento do cérebro, dando menor atenção a funções cognitivas que dependem de outros
órgãos, como os dos sentidos e os utilizados na ação – em suma, não seriam abordagens abrangentes da cognição
como um todo; b) São em muitos aspectos compatíveis com as orientações cognitivista e corpórea, o que se
corrobora com o fato de serem modos de conceber o funcionamento cerebral adotado por cientistas de ambas as
orientação entendidas neste trabalho como principais e antagônicas – o que enfraquece também sua condição de
antagonista de qualquer uma das duas.
24

advoga um outro meio para esta unificação, como já referido na Introdução –, como que uma
das suas principais características é exatamente dispor de uma pluralidade de modelos
complementares da cognição, que envolvem concepções biológicas, fisiológicas, linguísticas,
matemáticas, etológicas e fenomenológicas desenvolvidas para compreendê-la.
Neste capítulo, entretanto, o objetivo principal será apresentar e defender a hipótese de
que as ciências cognitivas nasceram, em sua versão cognitivista, mediante a construção e o
compartilhamento de um modelo geral para a cognição. Isto porque a finalidade da parte
inicial deste trabalho é apresentar o quadro que foi alvo das críticas que ensejaram o
nascimento da cognição corpórea. Este quadro possuía, segundo a suposição aqui adotada,
três características principais:
1) As ciências cognitivas se distinguiram desde o início por seu caráter multidisciplinar;
2) Tal multidisciplinaridade se fez possível graças ao desenvolvimento de uma imagem
da cognição que pudesse ser compartilhada por todas as disciplinas envolvidas;
3) Essa imagem da cognição teve origem na inteligência artificial, disciplina que, assim,
liderou as demais na constituição da corrente inicial das ciências cognitivas.
Todas estas características são importantes para a constituição da cognição corpórea.
A primeira, porque essa nova corrente assume e mantém o feitio multidisciplinar das ciências
cognitivas. A segunda, porque a imagem da cognição que a orientação corpórea adota não se
baseia mais em um modelo fundamental. E a terceira, porque o principal foco da crítica
proferida pelos autores da cognição corpórea é justamente o modelo da cognição de origem
computacional. Deste modo, é preciso esclarecer como a crítica da orientação corpórea se
dirige à imagem da cognição oriunda da inteligência artificial, como ela dispensa um modelo
geral para a cognição e como, mesmo assim, pretende manter as ciências cognitivas como um
campo multidisciplinar unificado.
Para que a cognição corpórea seja mais bem compreendida em relação à sua formação
crítica, é necessário que se trace aqui um panorama do desenvolvimento histórico do quadro
clássico das ciências cognitivas. Isto se deve a duas razões. Primeiramente, porque, como já
foi dito, a primeira configuração das ciências cognitivas coincide com o cognitivismo, que
assume o modelo lógico-proposicional. E, sendo assim, compreender o nascimento das
ciências cognitivas exige compreender também como e por que elas se constituíram nesta
feição cognitivista, que provocou as objeções que deram origem à cognição corpórea, o que é
importante para compreender estas objeções. Em segundo lugar, porque é preciso explicitar a
maneira como as diversas disciplinas que constituíram as ciências cognitivas compartilharam,
de início, compromissos investigativos e teóricos, para que se entenda o novo modo que a
25

cognição corpórea propõe para este campo investigativo se unificar e se relacionar com a
sociedade.
Nas próximas seções, será discutida a gênese concomitante das ciências cognitivas, do
cognitivismo e do modelo lógico-proposicional. Porém, como introdução, serão feitas breves
considerações sobre a noção de modelo científico empregada no presente trabalho, tal como
referida à imagem cognitivista da cognição.

1.1.1. A noção de modelo científico tal como aplicado à cognição humana

Não se buscará, para sustentar as argumentações deste trabalho quanto ao uso de


modelos nas ciências cognitivas, uma definição a priori e acabada de modelo científico. Tanto
o sentido mais geral, quanto a acepção mais precisa de modelo que aqui se emprega, ficarão
patentes ao longo do próprio desenvolvimento da argumentação. Em outras palavras: através
das considerações que serão feitas sobre como foram desenvolvidos os modelos nas ciências
cognitivas, quais as funções que estes modelos teriam desempenhado, e qual seu estatuto na
formação da imagem científica da cognição humana, se evidenciará uma noção de modelo
característica das ciências cognitivas, de acordo com a perspectiva adotada na presente
pesquisa.
Além disso, é preciso reiterar que neste trabalho se considera que os modelos
desenvolvidos nas ciências cognitivas possuem diferenças consideráveis entre si, conforme a
orientação adotada pelos cientistas, e de acordo com os problemas que procuram solucionar.
Essas diferenças, contudo, não são apenas formais. São também diferenças de função dos
modelos com respeito às relações sociais entre cientistas ou, mais precisamente, no processo
de unificação das ciências cognitivas como campo interdisciplinar. Como será explorado na
seção 1.1.4, neste trabalho é defendida a ideia de que um determinado modelo da cognição
humana, aqui denominado modelo lógico-proposicional, não apenas serviu para representar o
processo cognitivo e, assim, contribuir para a elaboração das teorias respectivas, mas
favoreceu a coesão das diversas disciplinas das ciências cognitivas em torno de uma imagem
essencial da cognição. Todavia, como já foi dito, não se pode dizer que o mesmo esteja se
dando na cognição corpórea. Nesta orientação não se observa o predomínio de um modelo
principal, como veremos no capítulo 2. Seria mais correto afirmar que os modelos corpóreo-
experienciais – como já se anuncia no plural empregado – são múltiplos, o que se coaduna
com as características das ciências cognitivas de orientação corpórea, tal como será explanado
26

adiante. E isto significa, igualmente, que, na cognição corpórea, os modelos não exercem
mais o papel de unificação disciplinar.
Contudo, embora não se empregue neste trabalho uma definição rígida de modelo,
alguns marcos teóricos e pressupostos sobre a criação científica são aqui utilizados, e sua
explicitação é necessária para que se compreenda adequadamente a hipótese de que o modelo
lógico-proposicional teve papel unificador nas ciências cognitivas. Afinal, por que se fala aqui
em modelo? E o que permite afirmar que um modelo científico possa ter sido compartilhado
por diversos cientistas, originários de diferentes disciplinas? Antes de mencionar os
pressupostos teóricos da noção de modelo aqui utilizada, porém, deve-se salientar que discuti-
los já envolve algumas concepções sobre a cognição. Isto revela um certo sentido circular
destas considerações: aquele que se depreende do fato de que as ciências cognitivas são, elas
mesmas, atividades cognitivas. Sendo assim, não é plausível que se investiguem as ciências
cognitivas sem a adoção de algum pressuposto, implícito ou explícito, sobre a natureza da
cognição. Entretanto, seria também inviável uma explanação extensa sobre que pressupostos
sobre a cognição orientam a concepção de ciência que aqui se emprega. A ser longa tal
explanação, poderia se chegar à situação despropositada de se ter uma tese – ou quase –
dentro da outra, só para explicar uma parte desta última. Para evitar este contrassenso, mas
não deixar de registrar alguns aspectos cognitivos relevantes das próprias ciências cognitivas,
seguem breves observações sobre o sentido de modelo, na presente investigação, quando
aplicado à cognição humana.
Para iniciarmos a abordagem da noção de modelo, consideremos a definição que se
segue:

A palavra "modelo" tem raízes no latim "modulus"; seu significado original era
cópia, padrão e parâmetro. Agora sua conotação tem sido mais aberta e tem
comumente dois tipos de uso. Em primeiro lugar, modelo significa duplicação ou
cópia de um determinado objeto. Este é o tipo de modelo que é obtido através de
eliminação ou idealização, de acordo com algumas características de propriedades,
configurações e funções típicas. Alguns modelos são utilizados como um análogo ao
original, como o modelo de navio, de construção etc. A noção também é aplicada,
em estudos experimentais como um substituto para o original, como o modelo de
avião no laboratório de túnel de vento, e o de leito do rio no laboratório líquido.
Além disso, objetos manufaturados, que são criados para simular as propriedades,
configurações, funções ou leis biológicas são às vezes chamados de modelos, como
o localizador sonar, concebido em conformidade com a audição do morcego de
frequências ultrassônicas e o robô, que simula ações parciais, habilidades ou
inteligência dos seres humanos.
Em segundo lugar, também pode significar um modelo analógico mental de
propriedades, configurações, funções ou leis do referente: este é o modelo mental
que estamos discutindo. Estes modelos são criados através da utilização de
mecanismos de percepção na cognição. Além disso, o modelo mental reflete apenas
algumas características do original: os relacionados com determinados objetivos
cognitivos. Outros são eliminados. (YU, 2002, p. 275).
27

A primeira acepção de modelo, na passagem acima, corresponde à imitação física de


objetos. Nesse caso, é evidente que se trata da construção de objetos concretos semelhantes,
quase sempre em escala muito menor, de outros objetos cujas características se deseja estudar,
e que devem ser mantidas de algum modo. A similitude é então literalmente visível. No
segundo caso, que interessa mais diretamente à presente pesquisa, a analogia e a semelhança
não são sempre evidentes, uma vez que os modelos são abstrações cognitivas, representações,
imagens, nas quais o processo de analogia que teria dado origem a elas não se exibe
claramente em todas as situações.
Para melhor compreender a diferença entre os modelos concretos e os abstratos,
recuaremos ao início das preocupações filosóficas mais recentes sobre o tema; mais
precisamente, invocaremos a reflexão sobre a física teórica realizada por Ludwig Boltzmann.
Boltzmann, um dos principais físicos do final do século 19, foi bastante influente ao
longo do século seguinte em razão de seu trabalho na termodinâmica estatística. Nasceu em
Viena, em 1844, e trabalhou como professor de física nas universidades de sua cidade natal,
de Graz, Munique e Leipzig. Como pesquisador e professor, dedicou-se com especial atenção
à física teórica, às relações desta com a física experimental e aos vários problemas daí
decorrentes, vindo a morrer em 1906. Porém, o que é de interesse para esta seção é mais
propriamente a sua produção filosófica. Para tal, examinemos, a partir do verbete “Modelo”,
escrito por Boltzmann para a Enciclopédia Britânica e publicado em 1902, suas concepções
sobre a criação do conhecimento científico. O verbete começa com a afirmação de que um
“modelo é uma representação tangível” (BOLTZMANN, 1902, p. 1) de um objeto real ou
ideal. Em seguida, após ilustrar sua concepção com casos em que o modelo serve para gerar
objetos (como na fundição de peças metálicas a partir de modelos de outro material) ou ideias
(como no ensino da anatomia), Boltzmann argumenta a favor da necessidade de modelos para
a produção científica, afirmando que a “essência do processo é a associação de um conceito
que tem um conteúdo definido a cada coisa, mas sem implicar uma similaridade completa
entre a coisa e o pensamento” (Ibid.). E acrescenta que
Naturalmente só podemos saber pouco da semelhança de nossos pensamentos com
as coisas às quais os associamos. A semelhança que há encontra-se sobretudo na
natureza da conexão, sendo a correlação análoga à que se obtém entre pensamento e
linguagem, linguagem e escrita, as notas na pauta e os sons musicais etc. (Ibid.) 8

Até aqui devemos destacar dois aspectos do verbete, que se relacionam mais intimamente
com os propósitos desta tese: o primeiro é o fato de que o uso do modelo responde a uma
necessidade – seja fabril, didática ou de representação científica –; o segundo é que

8
Todas as traduções de citações em línguas que não o português foram realizadas por mim.
28

Boltzmann não atribui ao modelo coincidência total com o que busca representar, admitindo
que haja apenas similaridade incompleta entre ambos, de tal modo que o modelo possa ser
pensado em parte como um símbolo (isto é, em parte um como signo arbitrário) do que
representa. Sendo assim, o modelo surge como algo que, mesmo sem reproduzir exatamente
aquilo a que se refere, serve a propósitos para os quais parece ser imprescindível.
Mais à frente, Boltzmann situa historicamente a questão do modelo, trazendo à tona os
problemas próprios da ciência de seu tempo, fazendo referência particularmente ao
esgotamento do modelo mecanicista newtoniano na compreensão de fenômenos como o calor
e as forças eletromagnéticas. Em relação a este ponto (Ibid., p. 3 e 4), Boltzmann chama a
atenção para a necessidade da adoção de hipóteses “um tanto artificiais e improváveis”, com
as quais James Clerk Maxwell enfrentou a dificuldade de explicar fenômenos para os quais os
modelos mecânicos não eram mais adequados, tendo que, assim, se contentar em manter
apenas certa similitude entre os modelos e os fenômenos. Isto, por sua vez, revela, para
Boltzmann, que “quando a questão deixa de ser a verificação da estrutura interna real da
matéria, muitas analogias mecânicas ou ilustrações dinâmicas tornam-se disponíveis, com
diferentes vantagens” (Ibid., p. 4). Ele parece até mesmo acreditar que o realismo dos
modelos seja uma crença historicamente ultrapassada ao dizer que

Embora antigamente se acreditasse que era tolerável assumir com um grande indício
de probabilidade a existência real de tais mecanismos na natureza, atualmente os
filósofos postulam que não há nada além de uma semelhança parcial entre o
fenômeno visível em tais mecanismos e aqueles que aparecem na natureza. Aqui de
novo fica perfeitamente claro que esses modelos de madeira, metal e papelão são
realmente uma continuação e integração de nosso processo de pensamento. De
acordo com a perspectiva em questão, a teoria física é meramente uma construção
mental de modelos mecânicos, cujo funcionamento nós mesmos planejamos por
meio da analogia com mecanismos que seguramos em nossas mãos, e que, por
terem tanto em comum com os fenômenos naturais, podem nos ajudar a
compreendê-los (Ibid., p. 8 – grifo meu).

Mas não é apenas no verbete referido que Boltzmann faz afirmações sobre o sentido
das representações na teoria que nos interessam para os propósitos deste trabalho. Em um
discurso feito na Universidade de Graz, em 1890, ele afirmou:

Sou de opinião de que a tarefa da teoria consiste na construção de uma imagem, em


nós existente, do mundo externo, devendo ela nos servir de guia em todos os nossos
pensamentos e experimentos. Ou seja, de certa maneira completando o processo
mental à medida que executa globalmente aquilo que é executado em pequena
escala quando formamos uma representação qualquer.
É um instinto próprio ao espírito humano constituir para si uma tal imagem e ajustá-
la continuamente ao mundo externo (BOLTZMANN, 2005 [1905], p. 52, grifo
meu).
29

Este fragmento demonstra que, para Boltzmann, além de as teorias científicas serem
construídas a partir de imagens, ou representações, que servem de guia para pensamentos e
ações, o mesmo ocorre na cognição em geral, naquilo que Boltzmann chamou de “pequena
escala” de qualquer representação. Essa ideia também já se encontra no verbete “Modelo”:
“Nessa perspectiva, os pensamentos representam coisas na mesma relação que os modelos
representam objetos”.
Tendo como base, portanto, estas três últimas citações, os aspectos mais relevantes da
concepção de Boltzmann sobre os modelos podem ser sintetizados da seguinte forma:
1) Os modelos científicos, embora necessários, podem guardar apenas
semelhança com seus objetos;
2) Em grande medida, os modelos são construções dos cientistas a partir de
analogias com outros fenômenos;
3) A verificação da realidade, isto é, da “estrutura interna real da matéria”, não
pode ser o objetivo da ciência;
4) Resta à ciência compreender os fenômenos mediante representações
construídas a partir de analogias e metáforas gerando, assim, uma imagem da
natureza;
5) O conhecimento científico não é de natureza diferente do conhecimento
humano em geral: modelos do mundo são utilizados no conhecimento comum
e no conhecimento científico.
Esta concepção cognitiva da ciência possui dois aspectos complementares que devem
ser destacados, com vistas ao modelo lógico-proposicional da cognição. O primeiro é, como
já foi mencionado antes, o caráter de analogia e similitude do modelo, isto é, o fato de ele ser
ao mesmo tempo uma construção com base em analogias com os objetos, e – por este motivo
mesmo – também não coincidir completamente com estes. Assim, a analogia e a similitude
não seriam características apenas dos modelos concretos, mas também dos abstratos, sendo
que estes não exibem os traços analógicos de modo evidente, dado que a analogia pode ser
mais complexa – como no caso de Maxwell, destacado por Boltzmann.
O segundo é a suposição ontológica de que os modelos não são representações fiéis da
natureza, porque estas não são possíveis. Os modelos portanto seriam imagens da natureza,
produzidas pelo ser humano, para servir à compreensão daquela. Sendo assim, não caberia
uma separação entre a cognição em geral e a cognição científica. Ao compartilharem a mesma
natureza, ambas se baseariam em analogias e metáforas e, além disso, seriam incapazes de
atingir uma suposta estrutura interna da realidade.
30

É bastante ampla a discussão sobre os modelos na filosofia da ciência nos últimos cem
anos. Como já foi advertido, não se busca aqui uma definição prévia de modelo tanto quanto
uma compreensão do modelo tal como ocorreu, de maneira bastante particular, nas ciências
cognitivas. Mas, para isso, é necessário estabelecer ao menos que concepções de modelo são
mais adequadas para o emprego que aqui estudamos. Antes de falarmos mais diretamente no
uso de modelos nas ciências cognitivas, cabem ainda mais algumas considerações sobre
abordagens filosóficas pertinentes, que se encontram em alguns trabalhos de repercussão, e
que devemos registrar com o intuito de tornar mais nítidos os contornos do conceito de
modelo para os fins deste trabalho.
Uma questão importante a ser considerada é aquela que envolve a distinção entre os
modelos formalizados – matemáticos – e os modelos adotados por similitude, tais como os
destacados por Boltzmann. Alguns autores têm abordado essa diferença, e examiná-la é
importante para a presente investigação. Mary Hesse, por exemplo, discorreu sobre este
ponto, com relação à física. Embora nesta tese não se trate de fenômenos físicos, para as suas
finalidades é ilustrativo utilizar a análise de Hesse, uma vez que o modelo lógico-
proposicional da cognição seria, segundo a hipótese aqui adotada, antes de tudo uma imagem
da cognição – embora corresponda a uma formalização simbólica. Isto é, a imagem que o
constitui seria justamente a de uma formalização. Vejamos como o que Hesse diz a respeito
dos modelos na física pode ser útil para este trabalho. Ela afirma que os modelos fazem parte
do método hipotético-dedutivo. Neste, as hipóteses são produtos da “imaginação criativa”,
mas também decorrentes da observação de padrões encontrados nos experimentos (HESSE,
1953, p. 198). Os modelos seriam representações das hipóteses, e ferramentas para testá-las
com utilização dos dados experimentais. Deste modo, ela entende que modelos matemáticos
podem expressar essas hipóteses, mas não são imagináveis – como os modelos mecânicos,
entre os quais ela considera o uso de bolas de bilhar para representar moléculas de gases. Dito
de outra forma, as construções matemáticas, embora possam expressar analogia entre as
grandezas verificadas nos fenômenos – e mesmo permitir, assim, analogias entre fenômenos
diversos que possuam estruturas internas similares –, não têm a característica de se
assemelharem aos fenômenos, por não serem, a princípio, imagináveis (Ibid., p. 200). Alain
Badiou também faz esta distinção, sem deixar de reconhecer – citando Lévi-Strauss – que os
modelos têm como característica permitir sua manipulação, em vez da manipulação do real,
mas com os mesmos efeitos para o conhecimento. Eles teriam aplicações preditivas, de tal
modo que se pode saber como o conjunto do modelo reage ao se alterar um de seus elementos
(BADIOU, 1972, p.15), o que seria aplicável ao objeto representado. Porém, Badiou adota
31

uma classificação um pouco diversa daquela de Hesse – embora devamos reconhecer que tem
essencialmente o mesmo efeito. Ele afirma que os modelos podem ser “abstratos” ou
“montagens materiais” (Ibid.), sendo os primeiros basicamente “escriturais” ou matemáticos,
e os segundos visuais. Ele chega a lembrar que gráficos podem ser construídos a partir de
dados quantitativos para gerar imagens analógicas dos fenômenos que as quantificações
expressam – como no caso das estatísticas ilustradas por figuras.
A menção a esta distinção tem por objetivo ressaltar que o modelo lógico-
proposicional da cognição, embora tenha uma estrutura expressa simbolicamente – e, assim,
possa ser considerado “abstrato” –, esta mesma estrutura é adotada de maneira propriamente
analógica para representar a cognição humana. Não teria, portanto, a opacidade própria dos
modelos matemáticos, incluindo aqueles utilizados para descrever, por exemplo, o
funcionamento de neurônios, circuitos eletrônicos, redes neurais e outros objetos de estudo
particulares das ciências cognitivas. Isto quer dizer que, embora as diversas disciplinas das
ciências cognitivas tradicionais tenham empregado uma série de modelos matemáticos para
investigar aspectos da cognição, a imagem mais geral desta última seria essencialmente
formada por analogia – como se buscará justificar adiante. Em outras palavras, o modelo
lógico-proposicional seria, embora num certo sentido abstrato, um esquema imaginável –
“mecânico”, para citar Hesse, ou uma “montagem”, para utilizar o termo empregado por
Badiou – destinado a representar o processo cognitivo com um todo. Tal questão ficará mais
clara a seguir, e nas seções subsequentes em que a estrutura deste modelo for analisada –
sobretudo quando levarmos em consideração a máquina de Turing como um conceito
matemático, mas ao mesmo tempo imagético e mecânico.
Porém, antes de tomarmos como foco principal o modelo lógico-proposicional, há
ainda duas características dos modelos que devem ser assinaladas, além do papel heurístico já
referido – porque são fundamentais no caso das ciências cognitivas clássicas. Ambas
decorrem da abordagem de Thomas Kuhn (KUHN, 1978 [1962]), do modo como destacado
por Daniela Bailer-Jones (BAILER-JONES, 1999, p. 37). Trata-se das funções pedagógica e
de compartilhamento das ideias científicas que os modelos desempenham. Kuhn desenvolveu
no livro mencionado uma explicação da dinâmica científica em que confere papel
fundamental para os manuais utilizados na educação de cientistas, no sentido em que
contribuem para estabelecer um padrão paradigmático de solução de problemas e, assim, fixar
o que ele chama de “ciência normal”, própria de uma comunidade científica e de uma
conjuntura histórica. Em linhas muito gerais, podemos caracterizar a abordagem kuhniana
como tendo significado uma ruptura com a interpretação tradicional do desenvolvimento
32

científico no sentido de acúmulo de conhecimento. Ao invés de conceber a ciência como um


processo contínuo, Kuhn propôs que as ciências evoluem através de estágios conflitantes. O
primeiro deles seria a “ciência normal”, que se caracteriza por um período em que se observa
um conjunto de crenças, compromissos e práticas de uma comunidade de cientistas, capaz de
conferir à sua atividade, neste período, uma situação de relativa estabilidade, coesão e
firmeza. Estas qualidades são fornecidas pelo que Kuhn chama de “paradigma”, que pode ser
conceituado como a adoção de um modelo básico ou uma teoria geral que caracteriza a
ciência normal. Tal formulação, obviamente, leva à mútua definição circular dos dois termos.
Mas Kuhn não afasta o caráter parcialmente reflexivo desta relação ao dizer que “um
paradigma é aquilo que os membros de uma comunidade científica partilham, e,
inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que compartilham um
paradigma” (KUHN, 1978 [1962], p. 219). Porém, o autor não nos reserva apenas esta
definição circular, uma vez que no prefácio à referida obra afirma que “paradigmas são as
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem
problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência” (Ibid.,
p. 13). Esta passagem é especialmente importante para a presente argumentação, em razão de
alguns pontos. O primeiro deles diz respeito à característica de recognoscibilidade universal
dos paradigmas. Isto nos leva a atentar para o fato de que se exige da realização científica
uma forma reconhecível capaz de garantir sua disseminação. O segundo é aquele que assinala
a recorrência de problemas e soluções típicos dessa realização científica. E o terceiro refere-se
ao fato de que esta tipicidade de problemas e soluções é modelar. Os três pontos convergem
exatamente no que Bailer-Jones chama de papel pedagógico ou cognitivo dos modelos. A
autora classifica o papel realizado pelos modelos no contexto da abordagem de Kuhn como
cognitivo – na medida em que eles servem para estabelecer padrões gerais, “orientar o
pensamento científico e determinar a direção do raciocínio científico e da investigação em
uma mesma época” (BAILER-JONES, 1999, p. 37). O sentido pedagógico dos modelos já
havia sido visto brevemente aqui na referência a Boltzmann, quanto ao ensino de anatomia.
Mas o que se torna especialmente relevante para a hipótese aqui defendida sobre o papel
unificador do modelo lógico-proposicional é seu caráter de padrão de pensamento
compartilhado – sobre o pensamento. E este padrão dependeria, evidentemente, de sua
propagação através da educação científica. A partir das colocações de Bailer-Jones, surge uma
questão já anunciada anteriormente: de que quando se fala de modelo nas ciências cognitivas
está se abordando um aspecto cognitivo das próprias ciências cognitivas. Está se discutindo
como os cientistas cognitivos desenvolvem seu conhecimento, o que suscita problemas
33

relativos à própria ciência que fazem. Esta questão, no entanto, não deve gerar maiores
dificuldades de análise, desde que deixemos claros os limites em que cabe estendê-la na
presente investigação – o que será visto a seguir.
Para tal, tomemos agora as considerações de Jean-Pierre Dupuy a respeito de modelo–
em um contexto em que ele tem como tema o modelo da cognição desenvolvido pela
ortodoxia das ciências cognitivas. Isto porque Dupuy não apenas adota a suposição de que o
cognitivismo criou um modelo para explicar a cognição, como se dedica a valiosas
considerações sobre o conceito mesmo de modelo, e o sentido de sua utilização pelas ciências
cognitivas. Invocando Vico, e sua citação “Vero et factum convertutum”, Dupuy afirma que
“só podemos conhecer racionalmente aquilo de que somos causa, o que fabricamos”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 21). Com isto ele quer dizer que o modelo é uma imitação, uma
reprodução, uma fabricação, com vistas ao conhecimento – no que converge com Boltzmann,
Hesse e Badiou. Defende ele, citando Jean Ullmo, que o modelo seria uma

idealidade (“...) formalizada e matematizada, que sintetiza um sistema de relações


entre” elementos cuja identidade e até a natureza é, ate certo ponto, indiferente, e
que podem, por conseguinte, ser trocados, substituídos por outros elementos
análogos ou diferentes, sem que (o modelo) seja alterado” (Ibid., p. 23).

Embora Dupuy se refira aos modelos como formalizações matematizadas, este aspecto
seria relevante sobretudo na medida em que eles serviriam como instrumentos de controle
explicativo e preditivo – como já foi visto nas referências a Hesse e Badiou. Mas é muito
importante notar que ele caracteriza o modelo na passagem acima como sistema de relações
de certo modo independente da natureza de seus elementos, no qual estes são intercambiáveis
sem que se perca a essência da estrutura de relações. Neste sentido, seu caráter formal
corresponderia mais ao fato de ser uma estrutura relacional, do que a ser expresso em
linguagem matemática9. Uma outra razão ajuda a reforçar este entendimento. Trata-se da
utilização de analogias na construção dos modelos (Ibid., p. 24). O modelo seria uma estrutura
à qual se atribui uma forma análoga à do objeto estudado – o que também acabamos de
encontrar nas considerações de Yu, Boltzmann e Hesse. Outro modo de compreender a
estrutura do modelo é dizer que ele

abstrai da realidade fenomênica o sistema de relações funcionais consideradas por


ele as únicas pertinentes, pondo, por assim dizer, entre parênteses tudo o que não
depende desse sistema, em particular, como vimos, o número, a identidade, e a
natureza dos elementos que estão em relação (Ibid.)

9
Esta, digamos, essência estrutural que Dupuy atribui aos modelos em geral seria, contudo, considerada pelo
cognitivismo uma característica do próprio objeto (no caso, a cognição), segundo a crítica da cognição corpórea
ao modelo lógico-proposicional – o que será examinado mais à frente, especialmente na seção 2.2.
34

Neste sentido, o modelo seria uma estrutura abstraída dos fenômenos através de um
procedimento de analogia formal, relacional. Dito isso alternativamente, o que Dupuy está
afirmando – da mesma forma como os autores aqui citados anteriormente – é que o modelo
seria um instrumento capaz de substituir o objeto em si, uma vez que os cientistas que dele se
utilizam acreditam que ele reúne as características essenciais do objeto e, portanto, é
suficiente para as finalidades da investigação científica. Mas nas palavras de Dupuy, “o
modelo é tão mais puro, tão melhor controlável do que o mundo dos fenômenos: existe o risco
de que ele se torne objeto exclusivo da atenção dos cientistas” (Ibid., p. 25).
Mais à frente será discutido em que medida, no caso do cognitivismo, o modelo
lógico-proposicional teria substituído a própria cognição. Por ora, façamos algumas outras
considerações sobre a noção de modelo tal como aplicada à cognição, a partir de Dupuy.
Devemos reforçar a ideia de que quando se fala em modelo da cognição está se
considerando uma imagem da cognição como um processo integral. O modelo lógico-
proposicional seria, assim, uma representação do esquema geral da cognição, de caráter
funcional e de forma semelhante à daqueles utilizados nas noções de processo digestivo,
respiratório e urinário – entre outros semelhantes – em animais, em que uma dada função é
descrita de maneira consideravelmente independente de sua realização física nos organismos
particulares, e na qual se supõe o resultado esperado do processo necessário de transformação
a partir não somente da captação inicial de determinados insumos, como do respeito à
operação de certas etapas temporais e sequenciais. Como veremos – o que se coaduna com
essa imagem produtiva dos processos orgânicos animais –, uma das principais metáforas do
modelo funcional da cognição é o processo produtivo fabril.
Neste sentido, fica mais claro que, embora a cognição possa ser estudada
cientificamente a partir de uma multiplicidade modelos, o que se afirma neste trabalho como
sendo o modelo geral da cognição possui características invariáveis e, sobretudo, está
vinculado ao caráter multidisciplinar das ciências cognitivas clássicas, que o utilizam em
conjunto. Tem como função não apenas representar a cognição, mas representá-la de modo
compartilhado por todas as disciplinas que constituem esse campo científico – daí a
necessidade de possuir certa estrutura fixa, capaz de ser reconhecida mesmo com as variações
exigidas pelas especificidades de cada disciplina. Este reconhecimento exige, por outro lado,
que os pesquisadores envolvidos estejam continuamente dispostos a reiterar o que seriam as
características invariáveis do modelo. Neste sentido, o modelo não é algo que está fixo em
algum lugar de uma vez por todas. Ao contrário, sua estabilidade e permanência dependem a
35

ação continuada de diversos cientistas, que a cada momento buscarão verificar se o modelo
com que lidam guarda a estrutura essencial com que concordam trabalhar. Sendo assim, o
modelo só é aparentemente uma forma estática. Por esta perspectiva, trata-se do resultado de
uma atividade múltipla e dinâmica que, mesmo assim, se mantém, disciplinar e
disciplinadamente, de acordo com algumas crenças e apostas formais. Este sentido dinâmico
do modelo se coaduna também com o que Bailer-Jones chamou de seu papel pedagógico. É
apenas graças à transmissão de certa invariância formal e da convicção de que tal forma é
adequada para representar o objeto de estudo – seja em aulas, seja em atividades de pesquisa,
considerando que tanto em umas quanto em outras sempre há aprendizado e controle –, que o
modelo se mantém. Trata-se portanto de uma atividade social.
Acabamos de observar que Dupuy reitera algumas das características do modelo
científico também encontradas nas teses de autores que abordamos nos parágrafos anteriores.
Mas é fundamental que sublinhemos o fato de que o faz assumindo que estas são
características que se encontram no modelo tradicional da cognição – o qual, contudo, possui
ainda outras particularidades que devem ser examinadas a fim de alcançarmos o objetivo
desta seção.
A primeira afirmação importante de Dupuy sobre o modelo clássico das ciências
cognitivas é que ele revelaria a crença de que o processo cognitivo em geral é, ele mesmo,
produto de modelização. Isto porque “conhecer é produzir um modelo do fenômeno e efetuar
sobre ele manipulações ordenadas. Todo conhecimento é reprodução, representação,
repetição, simulação” (DUPUY, 1996 [1994], p. 27). Mas é na seguinte citação que esta ideia
se desdobra em outras, cruciais para a definição do modelo lógico-proposicional:

Seja um sistema cognitivo material: cientista, homem, animal, organismo, órgão,


máquina. O que faz que esse sistema conheça por modelos e representações deve ele
próprio ser modelizado, abstraindo-se do substrato material, diferente a cada vez, o
sistema de relações funcionais responsável pela faculdade de conhecer. O
funcionalismo da ciência da cognição situa-se, pois. em (pelo menos) dois níveis
logicamente encaixados um no outro: o da representação elementar e o da
representação da faculdade de representação. E neste segundo nível que uma ciência
da cognição pode ao mesmo tempo declarar-se materialista ou fisicalista e
reivindicar a sua autonomia em relação ás ciências da natureza (e da vida). A mente,
entendida como o modelo da faculdade de modelizar, reencontrou seu lugar no
universo material. (...). As faculdades da mente são sempre apenas propriedades de
sistemas de processamento de informação (Ibid.)

Percebe-se que, embora não o justifique, Dupuy defende que os cientistas cognitivos
compreendem a cognição em geral como modelização. A falta de justificação não nos permite
concluir se ele atribui aos cientistas cognitivos tradicionais, por exemplo, uma concepção não
objetivista da cognição, segundo a qual a cognição não seria capaz de atingir a realidade
36

mesma – o que decorreria de uma ideia de conhecimento por modelização como a de


Boltzmann, e mesmo aquela que ele, Dupuy, parece defender nas menções feitas à noção de
modelo, algumas linhas acima. A questão sobre se o cognitivismo é objetivista ou não será
alvo de exame mais à frente (seção 2.2), uma vez que é uma discussão importante proposta
pela cognição corpórea. Contudo, se Dupuy advoga o não objetivismo dos cientistas
cognitivos tradicionais não vem ao caso em relação às suas colocações subsequentes neste
trecho. A primeira delas, bastante importante, é sobre o funcionalismo do modelo cognitivista,
que decorre de se abstrair dos corpos e equipamentos materiais uma forma da faculdade de
representar. A segunda é também muito relevante para os fins desta pesquisa: trata-se do fato
de que, dado este caráter funcionalista, o modelo cognitivista deixa de ser reducionista em
relação às ciências da vida. Podemos então concluir que é um modelo de “processamento de
informações” que não se explica pelas leis dos substratos em que se realiza, mas possui leis
próprias.
Entretanto, o ponto talvez mais significativo das reflexões de Dupuy sobre o modelo
cognitivista seja o que se expressa no seguinte trecho:

Conhecer é efetuar, sobre representações, manipulações ordenadas. Esta proposição


é fiel ao espírito do paradigma dominante nas ciências cognitivas e, no entanto,
falta-lhe o essencial. O essencial é a natureza lógica das manipulações e das regras
em questão. O modelo científico, como dissemos, assume no mais das vezes uma
forma matemática -- e, ainda mais precisamente, ele se reduz a um sistema de
equações diferenciais que ligam grandezas. A época que antecede imediatamente a
história que vamos contar produziu modelos matemáticos tanto do sistema nervoso
quanto dos circuitos elétricos. No entanto, foi preciso o gênio de McCulloch e o de
Pitts, por um lado, e o de Shannon, por outro, para compreender que a modelização
pertinente era, na realidade, de tipo lógico – portanto, que se podia descrever em
termos lógicos o funcionamento de certos sistemas materiais, mas que,
inversamente, esses sistemas materiais podiam ser representados como realizando,
ou até encarnando a lógica, essa forma superior do pensamento (Ibid., p. 27-28).

Com o que foi dito neste fragmento, chegamos à principal característica do modelo da
cognição construído pelas ciências cognitivas tradicionais: o fato de ele ter uma estrutura
lógica. Traduz-se desta afirmação de Dupuy que, embora em período anterior modelos
matemáticos tenham sido usados para estudar o sistema nervoso e circuitos eletrônicos, foi
apenas com o nascimento das ciências cognitivas que estes objetos passaram a constituir um
outro objeto, a cognição, que por sua vez mereceu um novo tipo de modelo: o modelo lógico.
Como já foi assinalado acima, trata-se de um modelo ao mesmo tempo analógico e lógico,
imagético e abstrato. Isto se explica pelo fato de que sua analogia principal é com a lógica
simbólica, que ele abstrai da cognição humana na forma de uma imagem racional desta
37

última. O que Dupuy chamou de “forma superior do pensamento” passa a ser o paradigma, a
imagem, o modelo – inclusive no sentido prescritivo – da cognição.
Pelo que foi mencionado a respeito de algumas abordagens sobre modelos, percebe-se
que eles em geral não coincidem com as teorias científicas. Porém, são importantes para elas
sobretudo na construção de seus objetos e suas hipóteses. Assim, na qualidade de
representações da realidade, podem até mesmo se antecipar a teorias, ou servirem de base
para diversas delas. O que se tem no caso do modelo lógico-proposicional da cognição é que
ele serviu como representação geral da cognição para as ciências cognitivas tradicionais.
Deste modo, desde o início teve importância central para este campo de estudo, constituindo a
imagem da cognição com que trabalharam as disciplinas envolvidas e, portanto, dando
suporte às teorias que estas produziram.
Antecipando alguns pontos das próximas seções, e tendo em vista o que foi dito, para
que o conceito de modelo possa ser aplicado à hipótese aqui defendida – de que ele não
apenas foi criado para representar a cognição, mas também serviu como traço de união entre
as diversas disciplinas das ciências cognitivas –,ele precisa possuir as seguintes
características:
1) Consistir em um sistema de relações formais independentes de seus elementos
significativos, quais sejam, os valores semânticos dos símbolos componentes da
cadeia lógico-proposicional sintática;
2) Ser uma estrutura lógico-formal que independa também das suas realizações materiais;
3) Constituir-se de um arcabouço básico que comporte variações conforme as
necessidades específicas de cada disciplina que o utiliza sem, contudo, deixar de
manter invariantes as relações formais internas que garantam as duas caraterísticas
anteriores.
Conclui-se desta explanação que, como já foi comentado, embora o modelo lógico-
proposicional corresponda a uma noção usual de modelo em outras ciências, tem
particularidades que desafiam a própria ideia de modelo. Isto ficará mais claro nas próximas
seções.
Antes de se dar por concluída esta seção, é necessário, no entanto, fazer uma
advertência – já de certo modo esboçada acima. O fato de ter se dado ênfase, até aqui, ao
modelo lógico-proposicional da cognição não quer dizer que outros modelos não sejam
utilizados por outras correntes das ciências cognitivas, ou mesmo pelo cognitivismo, como já
assinalado. Importante sublinhar que, como será explorado nos capítulos 2 e 3, a cognição
corpórea também se utiliza de diversos modelos da cognição – de vários tipos. Emprega, por
38

exemplo, modelos matemáticos, como os referentes aos sistemas dinâmicos não lineares, e
igualmente imagens, como a de emergência – e muitas de natureza biológica e
fenomenológica, entre outras. Veremos brevemente, também, a importância dos modelos
conexionistas para a transição do cognitivismo para a abordagem corpórea da cognição.
Porém, mais importante ainda é deixar patente que na cognição corpórea não se tem um
modelo geral unificador. Uma das principais diferenças entre o cognitivismo e a cognição
corpórea está justamente na recusa que esta última faz do modelo lógico-proposicional,
inclusive de seu aspecto generalizador da cognição, como processo desencarnado; e um dos
mais relevantes objetivos desta tese é exatamente discutir como a orientação corpórea ainda
pretende manter a coesão das ciências cognitivas não só recusando o modelo lógico-
proposicional, como renunciando a qualquer modelo formal unificador.

1.1.2. Antecedentes históricos das ciências cognitivas

Além da pluralidade de modelos da cognição, mencionada na seção anterior – se


levarmos em conta não apenas o cognitivismo, mas também a cognição corpórea –, há outra
mais fundamental a ser considerada neste trabalho: a multiplicidade disciplinar das ciências
cognitivas. Este traço é importante porque impõe um sentido bastante específico à unidade
subjacente à variedade de modelos cognitivos. Vincula-se, seguindo o ponto de vista aqui
assumido, ao caráter histórico desta unidade.
As ciências cognitivas se caracterizam por constituírem um conjunto de disciplinas –
umas mais antigas (como a psicologia), outras recentes (como neurofisiologia e a inteligência
artificial) – que já possuíam suas práticas e teorias, e que se uniram através de esforços
comuns de cientistas que nelas atuavam, com vistas à criação de uma nova ciência – mas que
mantiveram suas individualidades mesmo depois de constituído o campo multidisciplinar. É
importante evidenciar que tanto sua multidisciplinaridade, como sua unidade em torno das
concepções da inteligência artificial, são inseparáveis da adoção do modelo lógico-
proposicional como seu ponto de partida. Serão utilizados como principais fontes desta
pesquisa histórica alguns textos dentre os poucos dedicados à história das ciências cognitivas:
os livros The mind’s new science, de Howard Gardner, publicado em 1985,Aux origines de
sciences cognitives10, de Jean-Pierre Dupuy, em 1994, Mind as machine: a history of
cognitive science, de Margaret Boden, publicado em 2006 e Cognitive science: an

10
Este é aqui utilizado em sua tradução brasileira, citada nas referências bibliográficas.
39

introduction to the science of the mind, de José Luis Bermúdez, publicado em 2010, além do
capítulo “The life of cognitive science”, de William Bechtel, Adele Abrahamsen e George
Graham, do livro A companion to cognitive science, de organizado por Bechtel e Graham em
1998.Todas estas obras dão destaque, de uma forma ou de outra, ao papel das instituições de
pesquisa no nascimento interdisciplinar das ciências cognitivas. Elas também demonstram que
as ciências cognitivas nasceram moldadas pela predominância do modelo lógico-
proposicional da cognição e pela liderança da inteligência artificial. Quanto a estes dois
últimos aspectos, a maioria dos autores citados acima assinala como importante ponto de
partida, para a constituição do primeiro modelo de cognição, a construção teórica conhecida
como máquina de Turing. Trata-se de um determinado modelo de máquina de computar
apresentado como formalização abstrata, matemática, por Alan Turing em seu artigo “On
computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem”, de 1936. Neste
trabalho, Turing se propôs a apresentar sua contribuição a uma discussão que remonta aos
trabalhos de George Boole, para expressar leis básicas do pensamento em princípios lógicos
(GARDNER, 1985, p. 143), e ao projeto logicista e ao cálculo proposicional de Gotlobb
Frege. Tal discussão, tendo passado pelas objeções de Bertrand Russell e Henri Poincaré
quanto às limitações do projeto de Frege e dado origem ao positivismo lógico (BECHTEL,
1988b; THAGARD,1988, p. 11; CARNAP 2000 e 2003), se prolongou, de certa maneira, até
o formalismo de David Hilbert e o Teorema da Incompletude, de Kurt Gödel, proposto em
1931 (SHAPIRO, 1997). Seria excessivo para o escopo deste trabalho detalhar os problemas
debatidos ao longo desta série de intervenções – extremamente importantes para a formação
do pensamento ocidental no século 20 –, mas é necessário ao menos apontar que, no momento
do artigo de Turing, as discussões versavam sobre uma questão central (DUPUY, 1996
[1994], p. 31), derivada, remotamente, da tentativa fregueana de expressar a aritmética através
da lógica e, imediatamente, da tentativa de Gödel de expressar lógica através da aritmética: a
computabilidade efetiva de uma função. Segundo, Dupuy, o ano de 1936 foi decisivo na busca
de solução para este problema. Primeiramente, através de um artigo de Alonso Church
chamado “An unsolvable problem of elementary number theory" e, em seguida, pelo artigo de
Turing. Contudo, importa para a presente investigação principalmente a estruturada máquina
de Turing que, segundo Dupuy,
40

Compreende três órgãos: a máquina stricto sensu, suscetível a qualquer momento (o


tempo é discretizado) de se achar num estado, chamado “estado interno”,
pertencente a uma lista finita; uma fita ilimitada nos dois sentidos, que representa a
memória da máquina: essa fita é dividida em casas, cada uma delas comportando ou
não certa marca; e, por fim, uma cabeça de ler-escrever-apagar capaz de realizar as
seguintes operações: colocada diante de uma das casas, ela lê se esta contém a marca
ou não; pode apagar a marca, se ela existir, ou escrevê-la, no caso contrário; pode
deslocar-se de uma casa para a direita ou para a esquerda (DUPUY, 1996 [1994])p.
32)

Ao par desta descrição, seu caráter mecânico é adequadamente explicado do seguinte


modo:

Turing chamou seu construto de máquina porque uma vez que seu operador tenha
recebido as instruções, prossegue mecanicamente, sem intervenções inteligentes
posteriores. É claro que, quando as únicas máquinas de computação físicas
existentes eram calculadoras que realizaram operações aritméticas simples com
engrenagens e alavancas, a concepção de Turing de uma máquina que podia realizar
qualquer cálculo algorítmico foi um passo crucial no desenvolvimento dos
computadores modernos digitais na década de 1940 (HINMAN, 2005, p. 436-437).

O que é relevante na concepção da máquina de Turing é o fato de se tratar de uma


máquina lógica não efetivamente construída, mas imaginada e formalizada matematicamente.
De certa maneira, faz lembrar as máquinas idealizadas por Charles Babbage (COLLIER &
MACLACHLAN, 1998). Vejamos, por exemplo, a máquina analítica de Babbage, pensada
em meados do século 19 e que, tal como descrita por Douglas Hofstadter em seu livro Gödel,
Escher, Bach,

Iria possuir um “armazém” (memória) e um “moinho” (unidade encarregada de


tomar decisões). Era feita de milhares de complicados cilindros dentados,
articulados entre si mediante engrenagens com formas incrivelmente complexas.
Babbage teve uma visão de números entrando e saindo aos enxames do moinho sob
o controle de um programa contido em cartões perfurados. A inspiração para esta
ideia surgiu a partir do tear Jacquard, maquinaria controlada por cartões perfurados,
e capaz de tecer padrões de desenho assombrosamente complicados
(HOFSTADTER, 1979, p. 33).

Assim, duas das mais famosas ocorrências históricas de um dispositivo com instruções
mecânicas estão no tear de Joseph-Marie Jacquard (1805), que utilizava cartões perfurados
removíveis para definir os padrões a serem tecidos, e na máquina analítica de Babbage.
Considerando que a computação é baseada na “ideia de um conjunto de instruções que podem
ser aplicadas mecanicamente” (BECHTEL et al, 1998, p. 8), não podemos deixar de nos
recordar de que as instruções de Jacquard e Babbage – sendo que estas últimas apenas de
maneira idealizada – eram fornecidas literalmente de modo mecânico. É preciso sublinhar que
a máquina analítica apresenta uma grande diferença em relação à máquina de Turing, embora
fosse, de fato, tão imaginária quanto esta última: não se tratava de uma máquina apenas
41

lógica, ou ideal, como a de Turing, mas de um projeto, ainda que rudimentar e visionário, que
se colocava na esteira da evolução técnica das calculadoras artificiais – aquela que levaria à
construção efetiva do computador digital eletrônico nos anos de 1950. Vemos que a máquina
analítica de Babbage, mais claramente do que a de Turing, se baseia em uma metáfora
mecânica e fabril do pensamento. Porém, a máquina de Babbage, embora também nunca
construída (mesmo tendo sido pensada para tal, ao contrário da de Turing), tinha outra
característica especialmente notável: através da concepção dos cartões perfurados como meios
de controle, instaurava a separação entre o nível lógico e o nível físico na computação
artificial – já que inspirada no tear de Jacquard. Embora seus cartões não pudessem ser
chamados propriamente de programas, eram veículos de instruções eminentemente lógicas,
que poderiam ser modificadas sem que fosse alterado o mecanismo físico do artefato
(COLLIER & MACLACHLAN,1998p. 81 a 89). Isto é, possuíam uma autonomia ideal, que
somente se consubstanciará na inteligência artificial mais tarde, conforme será aqui abordado.
Por outro lado, Margaret Boden dá destaque especial a uma obra que teria contribuído,
segundo ela, para uma concepção mais adequada de uma máquina de pensar do que aquela
proposta por Babbage. Trata-se daquela concebida por Alfred Smee em seu livro Process of
thought adapted to words and language (1851), chamada de “máquina relacional”, por seu
autor. Seu artefato de raciocínio seria baseado em princípios naturais, processando ideias do
mesmo modo que o sistema nervoso humano, baseado no que Smee chamou de “eletro-
biologia” e nas ideias de Boole (as quais serão referidas abaixo). Segundo Boden, o projeto de
Smee previa
uma grande placa de metal dividida em duas partes, sucessivamente, por (uma
hierarquia de) dobradiças. Sua posição, aberta ou fechada, representaria a presença
ou ausência das propriedades relevantes. Então, disse ele, duas máquinas relacionais
podem ser combinadas para fazer uma “máquina diferencial”, cuja tarefa seria a de
comparar duas ideias diferentes (BODEN, 2006, p. 121).

Para a historiadora, a importância dessa proposta, em comparação com a de Babbage,


seria procurar pensar da “mesma maneira que as pessoas fazem” – em oposição a um modo
estritamente lógico, como o da máquina de Babbage (Ibid., p. 122). Contudo, o próprio Smee
teria reconhecido as limitações de seu projeto, uma vez que o tamanho de seu engenho –
mecânico, como é óbvio para a época –, para se adequar aos fins propostos deveria cobrir uma
área maior do que toda a cidade de Londres (Ibid., p. 121) e ser operacionalmente inviável.
Deste modo, ainda que supostamente inspirada no que seria um modo humano de raciocinar,
ela não seria viável a não ser com outra tecnologia, indisponível então.
42

Ao examinarmos a concepção das máquinas de Babbage e de Turing (e de Smee), nos


preparamos para tratar da comparação entre os modelos lógicos e os modelos corpóreos da
cognição, no interior de uma dinâmica histórica em que se alternam tendências de
incorporação e desincorporação da cognição – mas com vantagem preliminar desta última. Os
modelos lógicos aparentemente obtiveram uma vitória inicial, ao se tornarem o padrão no
advento das ciências cognitivas, e resultaram do encontro – mas que manteve a segregação
entre o nível lógico e o físico – entre o desenvolvimento das calculadoras físicas e o das
máquinas lógicas, cuja forma essencial foi estabelecida não apenas por Turing, mas também
por Claude Shannon. Este último abriu caminho para futuro descolamento do nível lógico da
sua base física, paradoxalmente propondo uma coincidência entre ambos, a partir de seu
artigo “A symbolic analysis of relay and switching circuits”, de 1938. Este trabalho teria sido,
segundo Gardner, também influenciado pelo cientista da computação e posterior líder político
da institucionalização da ciência no período imediatamente anterior à eclosão das ciências
cognitivas, Vannevar Bush (GARDNER, 1985, p. 144). Nele, a princípio em busca de
solucionar problemas oriundos da engenharia de comunicação, Shannon propôs a
correspondência entre as alternativas verdadeiro/falso da lógica formal e as posições de
ligado/desligado de circuitos eletrônicos, no que veio a constituir o princípio fundador da
computação digital, mediante o conceito de binary digit, ou “bit” e à possibilidade de
associação dos algarismos 0 e 1 a cada uns dos termos dos pares sim/não e ligado/desligado.
A proposta de Shannon era essencialmente a de reunir a máquina lógica – a partir lógica
booleana – à máquina física, incorporando a primeira à última, ou nela “corporificando
mecanismos fundamentais de pensamento” (GARDNER, 1985, p. 21 e 159). Deste modo,
Shannon possibilitou um acoplamento entre a camada de cálculo lógico e a camada de
realização física deste cálculo. De fato, a se manter este acoplamento, a corporeidade da
inteligência artificial estaria fixada. Mas não foi o que ocorreu. Como veremos adiante, graças
também à analogia explicitada por Shannon, o encaixe entre lógica e circuitos físicos seria
tornado móvel, reversível, com a autonomização do nível lógico poucos anos depois, quando
da construção de um dos primeiro computadores eletrônicos. Essa autonomização é
indissociável da concepção dos modelos lógicos, mas também irá ter correlação com
pressupostos ontológicos de existência do nível lógico independentemente de substratos
físicos.
A solução de Shannon também teve impacto prático considerável, na viabilidade da
construção de máquinas de computar eletrônicas, o que, posteriormente, possibilitou a
inteligência artificial. Quanto a esse aspecto, Bechtel, Abrahamsen e Graham chamam
43

atenção para um fato que leva em consideração Babbage, Turing e Shannon (BECHTEL et al,
1998, p. 8-9). Eles argumentam que Babbage não teria conseguido construir a máquina
analítica devido a limitações técnicas da época (o que se aplicaria, como vimos, também a
Smee), que foram superadas apenas no século seguinte graças ao achado de Shannon. Este,
por sua vez, possibilitou o surgimento de equipamentos eletrônicos de computar cuja
fabricação contou com a participação de Turing, na Inglaterra, durante a Segunda Guerra
Mundial. Tais equipamentos eram destinados a decifrar mensagens criptografadas pelos
militares alemães, que utilizavam um equipamento mecânico para ocultar o sentido das
mensagens. O uso de máquinas eletrônicas valvuladas, por Turing e sua equipe, possibilitou a
rapidez de processamento necessária para decifrar o que havia sido criptografado
mecanicamente. Este foi um dos impulsos na inteligência artificial propiciado pelas pesquisas
militares durante a Segunda Guerra Mundial.
Segundo o que se defende neste trabalho, o desenvolvimento da crença –originada em
trabalhos na filosofia e na matemática – de que a lógica pode ser identificada à estrutura do
pensamento foi um processo fundamental para o nascimento da inteligência artificial, do
modelo lógico-proposicional e, juntamente com estes, das ciências cognitivas. Este processo
teria correspondido à autonomização da lógica em relação a outras formas de pensamento,
culminando com sua desincorporação – o que decorre da concepção de que independe das
características, corpos e experiências dos sujeitos particulares que raciocinam e a faz ser
entendida como estrutura transcendente e anterior ao pensamento. Ao se referirem à evolução
histórica da representação do pensamento humano em termos lógico-numéricos, Bechtel et al,
por exemplo, apontam em Gottfried Leibniz uma das origens do que podemos chamar de
movimento de autonomização do formalismo lógico, ao afirmarem que o filósofo do século
17 “propôs que números poderiam ser atribuídos aos conceitos, e que as regras formais
utilizadas para manipular esses números serviriam também para manipular os conceitos aos
quais os números foram atribuídos” (Ibid., p. 9). Os mesmos autores destacam a importância
de George Boole neste processo histórico – embora sua preocupação com isso seja identificar
as origens da inteligência artificial, e não do modelo lógico-proposicional, uma vez que este
não é um objetivo destes autores. De qualquer modo, segundo eles Boole, em seu livro de
1854 The laws of thought defendeu a utilização dos operadores lógicos “e”, “ou” e “não” para
expressar proposições, e que as leis das operações lógicas assim realizadas poderiam ser
consideradas leis do pensamento. No entanto, entendem que a proposta de Boole se limitava a
“operações sobre proposições completas (por exemplo: ‘A mulher é uma advogada’) e não
podia lidar com a estrutura interna à proposição (por exemplo, o fato de que o predicado ‘é
44

um advogado’ está sendo relacionado com ‘a mulher’)” (Ibid.). De acordo com Bechtel e
coautores, foi somente Gottlob Frege quem obteve sucesso em traduzir logicamente as
proposições, com seu cálculo proposicional:

Frege, porém, expandiu o sistema em 1879 para lidar com tais predicações
(permitindo representações de argumentos a partir de premissas como "Todos os
advogados passaram no exame da Ordem” e “Esta mulher é uma advogada" até
"Esta mulher passou no exame da Ordem"); o sistema resultante do cálculo de
predicados proporcionou uma maneira de formalizar inferências que tem sido
extremamente influente. A ideia de representar formalmente informação em notação
simbólica e usar operações formais para transformar esta informação forneceu um
meio crucial para a utilização de computadores a fim de simular raciocínio (Ibid., p.
10).

Entretanto, a argumentação destes autores se dirige, como foi assinalado, ao papel da


representação formal da lógica no nascimento da inteligência artificial. Nesta tese, por outro
lado, há a intenção de se investigar, ainda que com brevidade, o que deve ser chamado mais
propriamente de autonomização da lógica – o que teria contribuído não somente para a
eclosão da inteligência artificial, mas também para a elaboração do modelo lógico-
proposicional da cognição. Em outras palavras, trata-se aqui também de defender a hipótese
de que o desenvolvimento de uma imagem lógica do pensamento humano foi crucial para a
constituição do modelo lógico-proposicional, o que teria possibilitado a adoção da metáfora
computacional da cognição – mas através da identificação da cognição à própria lógica
simbólica que nela se faz presente, ou que ela também produz, como será examinado adiante.
Assim, neste processo histórico o papel do cálculo proposicional fregueano deve ser
reconhecido, mas também teria sido fundamental sua defesa da axiomatização de uma lógica
abstrata e universal independente dos indivíduos que a operam11(FREGE, 1974 [1884];
MANNO, DUMMETT, LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 440; SHAPIRO, 2000, p. 96 e 108
a 115). Margaret Boden sintetiza da seguinte forma a importância de Frege neste processo de
recusa à psicologicização da lógica:

11
O papel de Frege na formação da orientação cognitivista será analisado, na seção 2.2., também quando à
hipótese de sua influência mais propriamente filosófica sobre os cientistas e filósofos que a desenvolveram,
quando estivermos abordando aspectos ontológicos desta orientação.
45

Em sua crítica do psicologismo, Frege introduziu novos padrões de rigor lógico e


contribuiu com uma série de novas ideias em lógica e filosofia da linguagem.
Por exemplo:
• Ele definiu a noção de um “valor de verdade”;
• Ele foi pioneiro no cálculo proposicional de verdade funcional;
• Ele forneceu um formalismo, o cálculo de predicados, que poderia representar a
estrutura interna das proposições, e trabalhar com quantificadores como “todos”
e “alguns”.
• Ele definiu funções de ordem superior, ou funções compostas de funções (uma
ideia
que mais tarde iria alimentar a linguagem LISP).
• E ele fez distinções importantes entre os vários significados de “significado” –
como sentido e referência. As frases "a estrela da manhã" e "estrela da noite"
têm sentidos diferentes, de modo que seriam traduzidas de forma diferente; mas,
como os astrônomos descobriram, elas têm a mesma referência: ou seja, o
planeta Vênus.
Como resultado do trabalho de Frege, que se tornou amplamente influente com a
publicação dos Principia mathematica, por Bertrand Russell e Alfred North
Whitehead, em 1910, a lógica e a psicologia foram deslocados para mais distante
ainda uma da outra. As pessoas só veriam máquinas lógicas como tendo relevância
psicológica em meados do século XX,. Ironicamente, elas o fizeram, em grande parte,
por causa de Frege – através de Russell (1872-1970) do aluno de Russell Rudolf
Carnap (1891-1970) (BODEN, 2006, p. 123).

O tema do antipsicologismo de Frege, assim como a aparentemente paradoxal


“psicologização” da lógica promovida pelo cognitivismo, será alvo de observações no âmbito
da crítica da cognição corpórea na seção 2.2. Contudo, por ora devemos apontar para a lógica
de matriz booleana e fregueana como extremamente influente na criação do modelo lógico-
proposicional da cognição; e assim é que, num ambiente tecnológico, cultural e intelectual em
que a lógica ao mesmo tempo se autonomizava em relação à sua efetiva corporeidade nos
cérebros humanos e era oferecida à incorporação em artefatos de computar, um último
elemento vem se juntar para possibilitar, em termos de formulações teóricas, a gênese das
ciências cognitivas: a neurofisiologia. E a chegada deste elemento veio com uma proposta de
reincorporação da lógica ao cérebro – que, como veremos, não significou exatamente isto.
Trata-se do artigo “A logical calculus of ideas immanent in nervous activity”, de Warren
McCulloch e Walter Pitts, publicado em 1943, que aponta a lógica como base conceitual
adequada para compreender a cognição do ponto de vista do funcionamento cerebral, uma vez
que os componentes elementares do cérebro, os neurônios, teriam seu comportamento não
apenas individual, mas também coletivo na forma de redes neurais, conduzido por princípios
lógicos, comparáveis aos dos modelos de Alan Turing e Claude Shannon. Dupuy afirma que o
artigo de McCulloch e Pitts “demonstra [no cérebro], em princípio, a existência de uma
máquina lógica equivalente à de Turing” (DUPUY, 1996 [1994], p. 59). Mas essa máquina
não obedece a uma lógica qualquer: trata-se de uma máquina de lógica proposicional. É o que
diz o próprio artigo:
46

A lei de tudo ou nada das atividades do sistema nervoso é suficiente para assegurar
que a atividade de qualquer neurónio possa ser representada como uma proposição.
As relações fisiológicas existentes entre as atividades nervosos correspondem,
evidentemente, às relações entre as proposições; e a utilidade da representação
depende da identidade destas relações com as da lógica das proposições. Para cada
reação de qualquer neurônio há uma asserção correspondente a uma proposição
simples (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 117).

Gardner reforça esta concepção, salientando certo aspecto da proposta de McCulloch e


Pitts: “a propriedade de tudo ou nada dos impulsos (ou não impulsos) nervosos poderia ser
comparada à operação do cálculo proposicional (onde uma operação ou é verdadeira ou é
falsa)” (GARDNER, 1985, p. 18 – grifo meu). Com esta constatação de correspondência
entre o funcionamento binário de um dispositivo (no caso, o neuronal) e a dicotomia do
cálculo proposicional – entre as alternativas “verdadeiro” ou “falso”, que não admitem a
contradição que qualquer terceira opção geraria –, estamos diante de um mecanismo análogo
ao proposto por Shannon, o que pode ser entendido já como uma metáfora computacional.
Assim, embora McCulloch insista que seu trabalho significou a corporificação da mente no
cérebro – sua coletânea de artigos de 1965, em que consta o artigo citado, chama-se
Embodiments of mind12, fato que demonstra essa convicção–, o que encontramos em sua
formulação com Pitts ainda é basicamente um modelo que pode ser chamado de lógico-
proposicional, mesmo que aplicado ao cérebro. Isto porque, se os substratos físicos podem
variar entre os modelos de Shannon e de McCulloch-Pitts, mas o processo cognitivo se
mantém constante em ambos graças à presença de um esquema lógico-proposicional a eles
comum, constata-se que o essencial no modelo é este esquema, e não o substrato – como já foi
dito na seção anterior. Além disso, no caso do modelo de McCulloch-Pitts, o corpo, restrito
então ao cérebro, não tem nenhum papel insubstituível na cognição, não gera nenhum efeito
que somente ele possa gerar.
Numa avaliação que tende a corroborar esta compreensão, Boden identifica no modelo
de McCulloch-Pitts influências do atomismo lógico de Bertrand Russell e Ludwig
Wittgenstein, através de uma noção proposta por McCulloch anteriormente (BODEN, 2006,
p. 187). Trata-se da ideia de psychon, o ato psíquico mais simples, concebida por ele duas
décadas antes de seu trabalho mais conhecido com Pitts. Em sua narrativa autobiográfica,
McCulloch afirma:

12
Proponho a tradução deste título como “Corporeidades da mente”.
47

Em 1923 eu desisti de tentar escrever uma lógica dos verbos transitivos, e comecei a
ver o que eu poderia fazer em relação à lógica das proposições. Meu objetivo, como
um psicólogo, era inventar um tipo de evento psíquico mínimo, ou “'psychon”, que
teria as seguintes propriedades: primeiro, deveria ser um evento tão simples a ponto
de acontecer ou não acontecer; em segundo lugar, era para acontecer somente apenas
ocorrida sua causa estreita... ou seja, ele deveria implicar seu antecedente temporal;
em terceiro lugar, o mesmo deve ser proposto para psychons subsequentes; e em
quarto lugar, os psychons deveriam ser compostos para produzir os equivalentes a
proposições mais complexas, relativas aos seus antecedentes (MCCULLOCH, 1988,
p. 5).

Reforçando a questão temporal, Boden sublinha que o psychon deveria ser o equivalente para
a psicologia ao átomo para a química e o gene para a genética,

mas, ao contrário do átomo e do gene, o psychon seria um evento, com um lugar no


tempo e uma história temporal. Como uma unidade psíquica, tinha que ser
intrinsecamente capaz de conectar conhecimento e ação (ou percepção e movimento,
ou mesmo crença e inferência) assim como um gene, como uma unidade hereditária,
é intrinsecamente capaz de conectar as gerações. Ele tinha que ter uma semiótica, ou
aspecto significativo; isto é, tinha que corresponder a uma proposição. E, para
McCulloch, tinha que possuir algum equivalente no cérebro (BODEN, 2006, p.
188).

A partir desta descrição, percebe-se que a qualidade de “partícula elementar” do


psychon – ainda que este conceito não tenha sido mantido posteriormente nas formulações das
ciências cognitivas – auxilia na compreensão do modelo lógico-proposicional da cognição, ao
ser associado a algumas das características deste último, uma vez que permite clarificar a
contribuição pioneira de McCulloch e Pitts às ciências cognitivas. O primeiro ponto a ser
ressaltado neste sentido é o fato de o psychon ser uma unidade proposicional. Este aspecto
ajuda a esclarecer a concepção do modelo cognitivista como uma sequência lógica formada
por elementos proposicionais discretos. O segundo é o seu caráter temporal. Isto ajuda a
destacar a condição de que os elementos do modelo lógico-proposicional se articulam num de
maneira causal numa sucessão de eventos, em que a ocorrência de um elemento somente pode
se dar após a ocorrência de seu antecedente, sob pena de que não apenas se comprometa a
transformação simbólica esperada em cada um de seus passos, mas também a produção do
output do sistema. Por fim, a característica do psychon de elemento cognitivo discreto,
associada à de evento sequencial, favorece que se pensem os “átomos” proposicionais
apresentados no artigo recém-mencionado de McCulloch e Pitts como articulados aos eventos
e elementos discretos neuronais. Assim, embora o psychon não tenha recebido uma descrição
precisa – nem mesmo no artigo mais conhecido de McCulloch com Pitts, onde é mencionado
apenas de passagem (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 131) –, é uma imagem útil para se
compreender o caráter binário e proposicional da cognição tal como concebida nos
antecedentes do cognitivismo – e que nele perduraria.
48

Mas, segundo Dupuy, não seria o artigo de McCulloch-Pitts bastante para desencadear
o que é aqui chamado de liderança da inteligência artificial na gênese das ciências cognitivas,
da orientação cognitivista e do modelo lógico-proposicional. Afinal, ele nem mesmo versava
sobre inteligência artificial. Um fato tecnológico teria sido o grande divisor de águas neste
processo histórico, devendo seu acontecimento às pesquisas militares norte-americanas
durante a Segunda Guerra Mundial, no chamado Projeto Manhattan – o que vem a ser o
segundo fato militar anunciado acima. Trata-se da participação de John Von Neumann na
concepção dos primeiros computadores eletrônicos de grande porte construídos, e cuja
concretização se iniciou em 1943. O primeiro deles, batizado de ENIAC (Electronic
Numerical Integrator e Calculator), foi desenvolvido para calcular tabelas de artilharia de
modo a se atingirem alvos em uma diversidade de terrenos. Sua construção se iniciou na
Universidade da Pensilvânia, por J. Presper Eckert e John Mauchly, mas permaneceu
incompleta até 1946, quando John Von Neumann projetou sua arquitetura básica – a chamada
"arquitetura Von Neumann". Foi somente no sucessor do ENIAC, o EDVAC (Electronic
Discrete Variable Computer), que esta arquitetura se implementou. Segundo Bechtel,
Abrahamsen e Graham,

O coração da arquitetura Von Neumann é uma distinção entre a memória de um


computador e sua unidade de processamento central (CPU). Uma das inovações de
Von Neumann foi reconhecer que as instruções que constituem um programa podem
ser armazenadas na memória do mesmo modo que os dados a serem operados. As
operações do computador são executadas em ciclos na CPU; em cada ciclo os dados
e as instruções são lidos na memória pela CPU, que executa as instruções e retorna
os resultados para a memória (BECHTEL et al, 1998, p. 9).

O contexto destas pesquisas deve ajudar a esclarecer, também, importantes aspectos


relacionados à necessidade de colaboração interdisciplinar nos antecedentes das ciências
cognitivas, que teriam se mantido presentes em sua prática. Para lançar luz sobre este tema,
será mencionado brevemente, na próxima seção, o episódio da reunião de pesquisadores de
diversas origens no Projeto Manhattan, destinado à confecção das bombas atômicas nos EUA
durante a Segunda Guerra, no âmbito do qual se inseriu as pesquisas que geraram o ENIAC e
o EDVAC. Mas, ainda sobre o ENIAC, acrescenta Dupuy,
49

Esse dinossauro informático foi realizado sem que se dispusesse da ideia de que a
concepção lógica de uma máquina de calcular é separável da concepção de seus
circuitos, (...) ou, para dizê-lo em termos atuais, sem que fosse feita a distinção entre
o “equipamento” (o hardware) e o “programa” (o software). Essa ideia foi
formulada por John von Neumann, quando, chamado para consulta pelos
construtores do ENIAC, já elaborou os conceitos da nova geração de computadores.
Ora, de onde ele a tirou senão da leitura do artigo de McCulloch-Pitts? Ante
esse recém-chegado no mundo material que é o computador, von Neumann adota
exatamente a mesma atitude que estes últimos ante o cérebro biológico: dele abstrai
uma máquina lógica – e, o que é mais, a mesma máquina lógica (DUPUY, 1996
[1994], p. 77 –grifo em negrito meu).

O que Dupuy chama de máquina lógica abstrata é o que, de acordo com o que aqui se
defende, constitui a essência do modelo lógico-proposicional, que será desenvolvido a partir
de eventos institucionais que serão destacados adiante, com a adoção das noções de
processamento de informações e de representação mental (como manipulação incorpórea e
autônoma de símbolos). É fundamental assinalar que o que aqui está sendo considerado como
germe do modelo lógico-proposicional é o advento da separação entre equipamento e
programa, nos computadores. Para Dupuy, teria sido necessário que o programa se
autonomizasse nos computadores para que a ideia de máquina lógica abstrata surgisse e
inspirasse sua aplicação à cognição.
A influência de McCulloch e Pitts sobre a “arquitetura Von Neumann” é corroborada
por Boden (2006, p. 160) e por Gardner:

Os inventores das novas máquinas computacionais ficaram intrigados comas ideias


apresentadas por McCulloch e Pitts. Graças à sua demonstração, a noção de uma
máquina de Turing apontava agora cm duas direções - para um sistema nervoso,
composto de inúmeros neurônios tudo-ou-nada; e para um computador capaz de
realizar qualquer processo que possa ser descrito de forma inequívoca (GARDNER,
1985, p. 18-19).

Mas esta teria sido, segundo a interpretação aqui adotada, a opção de entendimento do artigo
de McCulloch-Pitts efetivada pelas condições históricas. Porque, de fato, o artigo possuía o
germe não apenas do modelo lógico, mas também do modelo conexionista e dos modelos
corpóreos. A ideia das redes neurais, que será a base para a orientação conexionista, estava
presente no artigo. Já a orientação corpórea parte da contestação à separabilidade entre a
cognição, o corpo e o ambiente em que ela ocorre. O que esta orientação diz é que a cognição
não é destacável dos neurônios, e tampouco é adequado, para a compreensão destes, idealizá-
los como células cujo funcionamento seja independente do restante do corpo humano
(entendido como organismo) e do ambiente. Assim, contando também com a influência do
desenvolvimento das neurociências nos anos posteriores, os modelos corpóreos rejeitam a
operação de desincorporação imposta pela inteligência artificial ao modelo de McCulloch-
Pitts. Isto é, consideram que a neurofisiologia, como foi dito, veio ao encontro da gênese das
50

ciências cognitivas, mas foi então subutilizada, sendo de imediato reduzida a uma disciplina
dedicada a um subalterno suporte neural para as operações simbólicas. Sob o ponto de vista
cognitivista, as características importantes dos neurônios são exclusivamente a de eles serem
bons veículos para manipulações lógicas de símbolos. O que a orientação corpórea pretende é
chamar de volta a neurofisiologia, a fim que agora faça diferença mais efetiva, ao ajudar a
compreender a cognição como essencialmente encarnada.
Todavia, o artigo de McCulloch-Pitts foi apenas um precursor bastante nítido de um
programa interdisciplinar de pesquisa. Autores, como Michael Arbib, afirmam não se
sustentar a ideia de que o funcionamento do neurônio individual podia ser admitido como
ocorrendo em tempo discreto:

A teoria moderna do cérebro não usa mais o modelo binário do neurônio, e sim
modelos de tempo contínuo que representam a variação na taxa média de disparo do
neurônio, ou realmente capturam a evolução temporal do potencial da membrana. É
somente através de tais correlações de atividade cerebral mensurável que os modelos
do cérebro podem realmente fornecer realimentação para experimentos biológicos
(ARBIB et al, 2002, p. 8).

Além disso, há considerações que rejeitam que o cérebro, por ser um órgão finito13,
possa ser equiparado à máquina de Turing – por definição dotada de uma memória infinita
(DUPUY, 1996 [1994], p. 65). Contudo, não se trata aqui de defender a hipótese de que a
neurociência se manteve fiel à teoria do neurônio de McCulloch-Pitts, de tal maneira que esta
disciplina somente poderia se integrar às ciências cognitivas caso adotasse esse pressuposto.
Como já foi dito, o neurônio de McCulloch-Pitts serviu muito mais para inspirar um modelo
desincorporado de cognição a ser proposto pela inteligência artificial às demais ciências
cognitivas, do que para promover uma imagem dos processos cognitivos em que
necessariamente a tese da manipulação de símbolos deveria se encarnar intimamente nas
unidades e redes neuronais. Veremos na seção 1.2 como a neurociência pôde dispensar esta
incorporação e, assim, não depender da aceitação do neurônio de McCulloch-Pitts para se
integrar às ciências cognitivas.
Estes foram, em linhas gerais, os fatos científicos, tecnológicos e filosóficos que
antecederam e criaram as condições para a eclosão das ciências cognitivas. Não significaram
ainda ações conscientes e organizadas de diversos cientistas com um objetivo comum.
Porém, para deixar mais claro o processo de consolidação do modelo lógico-
proposicional, levemos em conta, na próxima seção, alguns acontecimentos institucionais que

13
Para discussões a respeito do que seria um “autômato finito”, no sentido de um dispositivo computacional
constituído por redes neurais, v. KLEENE, 1956; ARBIB, 1961 e SIEGELMANN, 1999.
51

ocorreram nos EUA e definiram, como projeto consciente e declarado, a liderança da


inteligência artificial nas ciências cognitivas, bem como o caráter interdisciplinar e a unidade
destas.

1.1.3. Estabelecimento institucional das ciências cognitivas como programa unificado

Os eventos a seguir descritos tiveram influência decisiva na formação das ciências


cognitivas e de seu modelo preferencial. O primeiro conjunto de encontros foi o das
Conferências Macy, que ocorreram de 1946 a 1953, patrocinadas pela Fundação Josiah Macy
Jr. Trataram, a partir de certa altura, de cibernética mas, por contarem com a participação dos
principais nomes das futuras ciências cognitivas, serviram como importante impulso para a
formação do novo campo científico, desde já afirmando sua feição interdisciplinar e
unificadora. Dupuy ilustra esta preocupação explícita, através das palavras de Frank Fremont-
Smith, administrador da fundação:

A especialização, a profissionalização e o isolamento crescentes das disciplinas


científicas constituem atualmente um dos principais obstáculos ao progresso do
conhecimento. Daí a palavra de ordem: derrubar as divisórias artificiais, pôr as
diversas especialidades numa relação de comunicação, para permitir uma
reunificação da ciência (DUPUY, 1996 [1994], p. 100).

A Fundação Josiah Macy Jr. foi criada em 1930 para se dedicar aos “aspectos
fundamentais da saúde, da doença e de métodos para o alívio do sofrimento", com ênfase na
integração de “funções nas ciências médicas e da educação médica " (TUDICO, 2012, p. 5).
Segundo Christopher Tudico, em seu livro The history of the Josiah Macy Jr. Foundation, a
fundação foi criada por Kate Macy Ladd, filha e herdeira do magnata do petróleo Josiah Macy
Jr., por inspiração de ao menos três fatores principais: sua formação Quaker, sua vida marcada
por doenças, e as tendências filantrópicas comuns a diversos milionários norte-americanos da
mesma época (Ibid., p. 5-10). Quanto a este último aspecto, no prefácio do citado livro
George E. Thibault arrola empreendimentos semelhantes, iniciados pelas seguintes famílias
muito abastadas e influentes:

Carnegie (Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, 1905, and


Carnegie Corporation, 1912); Rockefeller (Rockefeller Foundation, 1913); Harkness
(Commonwealth Fund, 1918); Kellogg (W.K. Kellogg Child Welfare Foundation,
1930); Sloan (Alfred Sloan Foundation, 1934); and Ford (Ford Foundation, 1936)
(Ibid., p. 5).

A última fundação da lista esteve presente no apoio à RAND Corporation, que


impulsionou a inteligência artificial nos anos 1950 e 1960, e a penúltima no maior
52

financiamento expressamente dedicado às ciências cognitivas, nos anos 1970 – conforme


veremos adiante.
Dezesseis anos após sua criação – intervalo que coincide em parte com o período da
Segunda Guerra Mundial, no qual, como vimos, alguns dos importantes antecedentes das
ciências cognitivas haviam ocorrido –, a Fundação Macy se envolveu no apoio às iniciativas
de um conjunto de cientistas interessados em atividades interdisciplinares, cujos líderes eram
Warren McCulloch, John Von Neumann, Norbert Wiener e Gregory Bateson (DUPUY, 1996
[1994], p. 86-87). Assim, patrocinou em 1946 a primeira das chamadas Conferências Macy.
Mas é importante notar que isto se deu no seguinte contexto, de acordo com Tudico:

Quando os Estados Unidos entraram na Segunda Guerra Mundial, a necessidade de


suporte privado a conferências sobre temas relacionados com a medicina tornou-se
cada vez mais urgente. Muitos cientistas que trabalham com problemas relacionados
ou em diferentes aspectos do mesmo problema estavam isoladas pelas condições da
guerra e necessitavam de oportunidades para compartilhar ideias, pesquisas e dados.
A Fundação Macy preencheu essa necessidade através da organização de várias
conferências, estabelecendo uma abordagem única que se mostrou particularmente
relevante. Dada a eclosão da guerra, os temas de ossos e cicatrização de feridas e
lesões hepáticas desde que os temas para as primeiras conferências de Macy. (...)
Conferências em tempo de guerra sobre choques e neuroses traumáticas de guerra,
por exemplo, também foram altamente produtivas (TUDICO, 2012, p. 35)

Foi no mesmo esforço de promover a interdisciplinaridade científica em prol da saúde,


como já assinalado nas citações anteriores – mas visivelmente ampliando as fronteiras iniciais
desta intenção –, que a Fundação Macy apoiou os esforços pioneiros dos pesquisadores que já
haviam percebido a necessidade de que uma nova ciência deveria surgir da convergência de
várias iniciativas localizadas, uma vez que todas tinham como preocupação comum explorar
uma nova imagem de ser humano, e de saúde mental. Isto é reforçado na seguinte passagem
de Dupuy:

A América dos anos do pós-guerra está traumatizada com as loucuras coletivas que
acabam tragicamente de dilacerar o mundo. Um conceito ganha importância e se
torna a chave que permitirá, segundo creem, abrir a porta de uma nova ordem
mundial enfim entregue á paz: a “saúde mental” (DUPUY, 1996 [1994], p. 101).

Assim,
A Fundação Macy também patrocinou conferências sobre temas como o nascente
campo da cibernética. (...) As Conferências Macy sobre cibernética refletiram bem a
convicção da Fundação de organizar conferências interdisciplinares como
plataforma para o avanço do conhecimento. Além disso, as Conferências Macy
sobre Cibernética demonstraram a capacidade da Fundação para moldar novas áreas
provocativas de pesquisa. Os participantes das Conferências Macy sobre Cibernética
inicialmente se uniram devido ao seu interesse comum nos "mecanismos fisiológicos
subjacentes aos fenômenos de reflexos condicionados e hipnose tais como
relacionados ao problema da inibição cerebral”. A cibernética acabou evoluindo nos
mais diversos grupos de conferência da Fundação Macy; neles participaram
53

representantes das áreas de engenharia elétrica, matemática, sociologia,


antropologia, psicologia, psiquiatria, fisiologia, biologia, anatomia e zoologia (Ibid.)

Embora seja comum afirmar que as Conferências Macy versaram sobre cibernética, é
importante assinalar que o termo só foi incorporado a seu título em 1949, e que, ao final da
série, elas já se dedicavam, em grande parte, como veremos, ao que receberia o nome de
ciências cognitivas. Desta forma, as Conferências Macy se ocuparam propriamente de
cibernética sobretudo em seu período médio. Abaixo, a relação das conferências, com seus
anos e títulos originais, de acordo com o livro de Dupuy:

Conferência Ano Título

1ª 1946 “Teleological Mechanisms in Society”

2ª 1946 “Teleological Mechanisms and Circular Causal Systems”

3ª 1947 “Teleological Mechanisms and Circular Causal Systems”

4ª 1948 “Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”

5ª 1948 “Circular Causal and Feedback in Biological and Social Systems”

6ª 1949 “Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and


Social Systems”

7ª 1950 “Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and


Social Systems”

8ª 1951 “Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and


Social Systems”

9ª 1952 “Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and


Social Systems”

10ª 1953 “Cybernetics - Circular Causal and Feedback in Biological and


Social Systems”

Fonte: (DUPUY, 1996 [1994]).


54

Ainda de acordo com Dupuy, os registros disponíveis da Conferência Macy consistem,


primeiramente, das atas dos cinco últimos encontros. Mas,

quanto ás cinco primeiras conferências, não resta nenhum registro delas. No entanto,
dispomos de uma carta que McCulloch endereçou previamente a todos os
participantes da quarta conferência “sobre os mecanismos teleológicos" (1947), que
se apresenta como um minucioso relatório das três primeiras. As atas da décima
conferência também contêm um resumo das nove primeiras. estabelecido por
McCulloch. As atas da oitava e da nona conferências são precedidas de uma “A
Note by the Editors” que fornece indicações úteis sobre a história do ciclo.
Encontram-se na introdução de Wiener a Cybernetics (1948) alguns dados sobre as
primeiras conferências (DUPUY, 1996 [1994], p. 89).

Mesmo com estas limitações, e também graças ao trabalho de Steve Heims que, com
seu livro The cibernetic group (1991) analisou sobretudo o núcleo principal da cibernética, as
Conferências Macy foram suficientemente documentadas e conhecidas, o que permite avaliar
sua importância para o nascimento das ciências cognitivas. De acordo com Boden, “a
cibernética é relevante para as ciências cognitivas porque foi um projeto conscientemente
interdisciplinar que estudou organismos, bem como artefatos, e fez com que a ideia do
‘homem como máquina’ abranges senão apenas a mente, mas também o corpo” (BODEN,
2006, p. 200). Nesta afirmação encontram-se dois pontos cruciais para o presente trabalho: a)
de que a cibernética já tinha como característica o que transmitiu às ciências cognitivas: o fato
de ser um projeto conscientemente interdisciplinar; e b) a cibernética foi precursora das
ciências cognitivas no uso da metáfora mecanicista da mente, além ter aplicado a mesma
analogia ao corpo humano. Por sua vez, Dupuy destaca que, na cibernética “tratava-se, antes,
de alcançar, no domínio das ciências da mente, o mesmo grau de objetividade que na física”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 98).
Estas ideias, agregadas àquelas já destacadas acima, de se promover a saúde mental da
humanidade, fornecem a base para que, da cibernética, se consubstanciem as ciências
cognitivas como um empreendimento mais viável, porque suportado pela metáfora
computacional – ou, como diz Boden, pela metáfora de mente como máquina. Retomemos,
neste momento, a questão da saúde mental social. Segundo Dupuy, falando a respeito dos
primeiros cibernéticos, é
55

a fé no poder curativo, libertador e pacificador das ciências do homem que anima


nossos pioneiros. Mas temos de ser mais precisos. A ciência do homem que recebe
seus favores é a psiquiatria, entendida como ciência social. Diversas correntes ou
escolas de pensamento contribuem para delimitar um novo campo de investigações,
conhecido sob o nome de “personalidade e cultura”. (...)A noção-chave que se
depreende desses diversos trabalhos é a de uma causalidade circular entre
personalidade e cultura: a personalidade dos indivíduos ê moldada pelo meio social
e cultural em que eles vivem, mas inversamente, esse meio é o reflexo da
personalidade de base dos que o habitam. Deveria, pois, ser possível agir sobre a
psicologia dos indivíduos afim de induzir as mudanças desejadas na sociedade
global, com a condição de levar em conta os efeitos retroativos que uma tal
intervenção não pode deixar de produzir (Ibid., p. 100).

A convergência entre este espírito e as motivações da Fundação Macy talvez


expliquem não apenas a longa duração das Conferências Macy, mas também a arregimentação
de tantos cientistas de diversas áreas em torno de um mesmo projeto. Devemos procurar
compreender, contudo, como estes propósitos se transformaram em um programa, como o das
ciências cognitivas, que partiu da imagem mecânica da mente, defendida pela cibernética até
chegar ao modelo lógico-proposicional da cognição. Levemos em conta, ainda, a seguinte fala
de Lawrence Frank, um dos líderes das Conferências Macy, na primeira conferência, a partir
da ideia de mecanismo teleológico, tal como citada por Dupuy:

Podemos ver no conceito de mecanismos teleológicos uma tentativa de escapar às


formulações mecanicistas antigas, que agora se mostram inadequadas, e de fornecer
concepções novas e mais frutíferas, bem como metodologias mais eficazes, para
estudar os processos autorregulados, os sistemas e organismos auto-orientados e as
personalidades autodirigidas... É legitimo considerar esta conferência como uma
etapa importante, e talvez até capital, na progressão para esse novo clima de opinião
que esta surgindo agora nas atividades cientificas, filosóficas e ate artísticas. Não
somos meras testemunhas: por estes encontros e discussões, somos os artesãos
ativos desse novo clima de opinião... A maneira como vejo as coisas é que estamos
comprometidos, hoje, numa dessas transições ou reviravoltas maiores da história das
ideias... Quando as ciências sociais aceitarem as condições novas... e aprenderem a
pensar em termos de processos circulares, então, provavelmente, farão avanços
espetaculares... O novo método já foi aprovado na área psicocultural, na qual
começa a esclarecer o fato de que as regularidades socioculturais e os traços
específicos da personalidade são aspectos duais de uma mesma realidade (Ibid., p.
103).

Veremos na seção 2.1 que a ideia de autorregulação foi obscurecida pela de auto-
organização na Segunda Cibernética, mas devemos examinar como a própria noção de
mecanismos teleológicos se esvaziou diante das novas teses apresentadas pelas ciências
cognitivas. Frank propunha que as ciências sociais aceitassem novas condições de
fundamentação nas ciências do indivíduo. Ele falava em processos circulares, mas não
explicava como poderia se dar a articulação entre ciências sociais e psicologia através destes
processos, típicos da primeira cibernética. Dupuy discutiu este problema, destacando que
havia uma preocupação declarada em evitar as guerras a partir da suposição de que elas
56

nascem “nas mentes dos homens” e, nestas, deve se eliminar as raízes do belicismo (Ibid, p.
104) Mas ele acrescente que havia nas primeiras das conferências Macy, sobretudo por parte
da direção da fundação, a intenção de promover, através da colaboração entre física e
psicanálise, para que “os princípios da lógica fossem colocados a serviço” (Ibid.) de se
encontrar solução para os problemas de comportamento social e em defesa da paz – o que
Dupuy chama de programa “personalidade e cultura”. Porém, segundo este autor, a intenção
dos cientistas presentes nas conferências – ou dos cibernéticos – seria a de conquistar o
terreno da psicologia. Neste sentido, seu propósito seria, mais propriamente, o de “destruir” o
obstáculo que a psicanálise poderia significar, no sentido de fazer prevalecerem a matemática
e a física. Mas o que teria prevalecido não teria sido a física, e sim a lógica. No mesmo
sentido já examinado na seção anterior, o que se deu após as Conferências Macy, de acordo
com Dupuy, foi o predomínio do logicismo, que levaria, por sua vez, ao cognitivismo. Deste
modo, as preocupações manifestadas pela liderança da Fundação Macy, de cura dos males
sociais pela fundamentação das ciências sociais na psicologia, acabaram sendo deslocada sem
decorrência da substituição da psicologia tradicional por uma crença na objetividade da lógica
em si mesma. Isso se constata na seguinte passagem de Dupuy – na qual ele se refere, a
princípio, à filosofia da mente, mas com termos que se aplicam ao cognitivismo. Em outras
palavras, Dupuy parece atribuir um importante papel à filosofia analítica na constituição do
que aqui está sendo chamado de modelo lógico-proposicional (o que será abordado em maior
profundidade na seção 2.2).

Tenha-se em mente o formalismo de Hilbert ou o logicismo de Frege, de Russell e


de Carnap, para o qual é essencial cortar os laços entre a lógica e a psicologia,
devendo a objetividade da primeira fundamentar-se em algo diferente da
contingência ou da facticidade da segunda; o positivismo lógico do Círculo de
Viena, que concebe a filosofia como uma atividade de depuração da linguagem da
ciência, para expulsar dela toda “metafísica”; Wittgenstein e a filosofia da
linguagem comum da Escola de Oxford, para a qual não há “linguagem privada” e,
portanto, o único acesso aos pensamentos passa pela análise da linguagem como
uma atividade pública submetida a normas reconhecidas por uma comunidade
intersubjetiva: em todos os casos há ao mesmo tempo recusa determinada de fundar
a filosofia na psicologia e prioridade concedida ao estudo da linguagem. A filosofia
analítica é, por sua origem, uma filosofia da linguagem. Ao linguistic tum do
começo do século teria, porém, sucedido um cognitive turn (Ibid., p. 115).

Mas como esta influência teria se dado nas Conferências Macy, de tal modo a até
mesmo substituir, aparentemente, as intenções reducionistas dos gestores da fundação? A
hipótese adotada neste trabalho acompanha uma constatação de Dupuy. O que parece mais
plausível é que os principais líderes da cibernética convergiram, em direção à autonomização
da lógica, também em função de sua formação. Ainda segundo Dupuy:
57

A formação filosófica dos cibernéticos reduzia-se essencialmente à lógica filosófica.


Wiener fora aluno de Russell em Cambridge; Von Neumann, discípulo de Hilbert
em Göttingen; Pitts estudara a lógica simbólica com Carnap em Chicago, em1938.
McCulloch era grande leitor de Russell, de G. E. Moore de Peirce e do Wittgensteín
do Tractatus (Ibid., p. 136).

O tema da influência do logicismo e da filosofia analítica sobre os líderes e


precursores diretos das ciências cognitivas será retomado na seção 2.2. Mas, como já foi visto
na seção anterior, pesquisas científicas provocadas pela necessidade de solução de problemas
técnicos – em engenharia de comunicação, na matemática, na indústria bélica, na computação
eletrônica – também foram essenciais na constituição das ciências cognitivas, de seu modelo
geral inicial e de seu caráter interdisciplinar. Na presente investigação é defendida a suposição
de que ambos os fatores – tanto as formações filosóficas e inclinações metafísicas dos autores,
de um lado, quanto as demandas técnicas e econômicas predominantes na sociedade, de outro
– foram importantes na constituição das ciências cognitivas em sua feição original. Mais do
que isto, entende-se aqui que os dois fatores se reforçaram mutuamente, no âmbito mais
estrito da solução de problemas. Predomina neste trabalho a noção de que na solução de
problemas científicos há influência de modos de pensar e crenças das pessoas dedicadas à sua
solução, mas também das demandas de natureza tecnológica que se impõem
institucionalmente. Dito de outro modo, na presente investigação os conceitos científicos não
são pensados de maneira independente dos fatos históricos que envolvem sua produção, mas o
que se procura é elucidar os próprios conceitos e sua dinâmica de transformação, sem o que
discutir os fatos históricos subjacentes aos conceitos seria inadequado. Utilizando um outro
vocabulário, que, embora usual, não revela muita precisão, neste trabalho se evita uma
investigação predominantemente “externalista” ou “internalista”, pelas razões que a própria
argumentação nele vai aos poucos demonstrando, e que se impõem graças à natureza do tema.
Assim, o que se pode observar no desenvolvimento das ciências cognitivas é uma
convergência, e mesmo uma interdependência, entre as questões tecnológicas e as ideias
filosóficas predominantes no quadro da época. E fica bastante claro, em alguns momentos – a
Máquina de Turing sendo um bom exemplo –, que soluções técnicas acabam reforçando
modos de pensar, com base no sucesso social das soluções. Assim como modos de pensar
parecem não apenas propiciar, mas acolher com maior favorecimento, algumas soluções
técnicas, na direção de sua disseminação.
A questão da interdisciplinaridade no contexto da gênese das ciências cognitivas
também exige maiores esclarecimentos. Para explorar especificamente o tema da relação entre
soluções tecnocientíficas e interdisciplinaridade nos antecedentes das ciências cognitivas,
58

devemos promover um recuo temporal, para examinar brevemente um caso que deve auxiliar
a elucidar as necessidades e possibilidades de colaboração multidisciplinar naquele dado
momento histórico. Em outros termos, tal episódio demonstra ter muitas semelhanças com a
motivação e com a dinâmica interdisciplinar da cibernética e das ciências cognitivas. Trata-se
de investigações decorrentes do Projeto Manhattan, que havia sido destinado à confecção das
bombas atômicas estadunidenses na Segunda Guerra, já mencionado na seção anterior. Estas
investigações tinham como objetivo prosseguir as pesquisas nucleares, e já utilizavam um
computador eletrônico – no caso, o ENIAC (METROPOLIS & ULAM, 1949; ANDERSON,
1986; METROPOLIS, 1987; ECKHARDT, 1987). Mais precisamente, corresponderam à
criação do Método Monte Carlo, uma simulação computacional que visava a estudar o
comportamento de partículas atômicas. Não cabe promover aqui um exame profundo do
episódio. Trata-se sobretudo de destacar que:
a) As mencionadas investigações exigiram a participação de pesquisadores de diversas
origens disciplinares e locais – o que supunha métodos, formações e linguagens
diferentes –, mas que deveriam ser colocados em colaboração visando a determinados
resultados (GALISON, 1996);
b) Para que esta colaboração pudesse ser frutífera, duas condições principais deveriam
ser atendidas:
i. Haver o patrocínio, o planejamento e a gestão do projeto realizados pela
instituição à qual foi confiado o alcance dos resultados dos esforços comuns
(ANDERSON, 1986; METROPOLIS, 1987; ECKHARDT, 1987); e
ii. Ser estabelecida uma linguagem de interseção ou convergência, capaz de
unificar os esforços e eliminar até um nível adequado as diferenças iniciais
entre os pesquisadores (GALISON, 1996).
Estas condições foram satisfeitas, em primeiro lugar, mediante a coordenação do
governo e, em segundo lugar, graças à adoção de uma linguagem ou um modelo comum, que
serviu de área de convergência para os diversos pesquisadores envolvidos.
Quanto à coordenação, foi realizada, no local específico do Los Alamos National
Laboratory, nos EUA, através do exército daquele país. Este laboratório, onde se desenvolveu
secretamente a maior parte das pesquisas do Projeto Manhattan, perdurou na chamada Guerra
Fria, isto é, o período de conflito não conflagrado entre EUA e URSS após a Segunda Guerra,
mantendo o perfil interdisciplinar de investigação.
59

A área de convergência consistiu, basicamente, no Método Monte Carlo, desenvolvido


por cientistas como John Von Neumann, Nicholas Metropolis e Stanislaw Ulam. Sobre ele,
fala Peter Galison:

Em Los Alamos, durante a guerra, os físicos logo reconheceram que o problema


central era entender o processo pelo qual os nêutrons fissionam, se dispersam, e se
juntam aos núcleos de urânio, profundamente, no centro físsil de uma arma nuclear.
Experimentos não poderiam investigar a massa crítica com detalhe suficiente; a
teoria levou rapidamente a equações integro-diferenciais insolúveis. Com esses
problemas, a realidade artificial do [Método] Monte Carlo foi a única solução – o
método de amostragem pôde "recriar" tais processos modelando uma sequência de
dispersão aleatória em um computador. Simulações aprimoraram o desenho (mais
especificamente, o refinamento) de armas de fissão, mas se mantiveram de certo
modo auxiliares para os teóricos da bomba atômica. Quando, no final da guerra, o
trabalho com armas nucleares dirigiu-se para a bomba termonuclear, o [Método]
Monte Carlo tornou-se essencial (GALISON, 1996, p. 120)

E, referindo-se a Los Alamos e ao Método Monte Carlo, Galison exemplifica o que


seria uma “zona de troca”: “Pois foi lá, na busca por armas nucleares aprimoradas, que um
novo modo de atividades de coordenação foi construído, em que os cientistas de diferentes
disciplinas (diferentes práticas e grupos de linguagens) puderam formar uma zona de troca”
(Ibid., p. 153)
Assim, vemos que a noção de zona de troca, em Galison, sugere uma solução para
dificuldades de interação, ou mesmo comensurabilidade, entre pesquisadores de origens
disciplinares diversas.
Collins, Evans e Gorman, com base na noção de Galison, procuram caracterizá-la da
seguinte maneira:

Um modelo mais geral de zonas de troca pode ser desenvolvido considerando duas
dimensões ao longo das quais elas podem variar. Uma dimensão é aquela em que o
poder é usado para reforçar a troca –tal é o eixo coerção-colaboração. A outra
dimensão é aquela em que a troca conduz a uma nova cultura homogénea –tal é o
eixo homogeneidade- heterogeneidade (COLLINS et al, 2007, p. 658).

Mesmo sem nos comprometermos integralmente com o sistema de ideias proposto por
Collins et al, esta classificação geral que os autores propõem é sugestiva para a dinâmica de
colaboração disciplinar das ciências cognitivas. Ela nos auxilia a esclarecer de que maneira se
deu a coesão das disciplinas envolvidas neste novo campo científico, em cuja gênese deverá
ficar bastante caracterizado que não houve poder coercitivo unificador, e sim uma certa
homogeneização a partir de heterogeneidades iniciais. Assim, como veremos, a liderança da
inteligência artificial se deu pela adesão voluntária das demais disciplinas, e as instituições de
fomento puderam contar com este tipo de acordo para tentar alcançar os objetivos que
guiaram suas iniciativas.
60

Ademais, a utilidade da menção às características do Projeto Manhattan e do Método


Monte Carlo para a compreensão do nascimento das ciências cognitivas deve-se menos à
relação direta entre estas últimas e aqueles fatos, dada a influência das pesquisas utilizando
computadores eletrônicos – como o ENIAC, realizadas no âmbito daqueles projetos –, e mais
à semelhança entre ambas as condições citadas (patrocínio e convergência disciplinar) e suas
respectivas soluções.
Embora esta semelhança possua limitações, serve para ilustrar como soluções análogas
ocorreram em programas que se deram no mesmo local e em um momento histórico bastante
próximo, sugerindo que a possibilidade da eclosão das ciências cognitivas como atividade
multidisciplinar seja compreendida à luz de um fato como o Projeto Manhattan e seu
desdobramento mediante o Método Monte Carlo. Evidentemente, não se pode deixar de
considerar a importância do ambiente e dos conflitos geopolíticos da época para esta série de
pesquisas e iniciativas, considerando sua origem, ao menos em parte, governamental, e seu
caráter multidisciplinar14.
Da comparação entre os dois eventos históricos, devemos destacar as seguintes, como
diferenças principais, quanto às duas condições acima destacadas:
a) Enquanto no Projeto Manhattan e no nascimento do Método Monte Carlo o patrocínio
e a gestão couberam ao governo norte-americano, através das forças armadas – dada a
natureza dos objetivos –, nas ciências cognitivas a iniciativa coube a fundações e
instituições de ensino; ou seja, no caso das ciências cognitivas não houve um esforço
governamental central responsável pelo sucesso do empreendimento científico –
embora no caso da participação da RAND Corporation na criação da inteligência
artificial, o papel da Força Aérea estadunidense tenha sido importante, como será
abordado a seguir;
b) Enquanto o Método Monte Carlo, como zona de troca, correspondeu a um programa
de computador específico, destinado a promover a simulação do comportamento
nuclear, nas nascentes ciências cognitivas o programa de computador em si, como
forma ideal, foi o que possibilitou a compreensão comum da cognição, como
possuindo determinadas características, pelas diversas disciplinas engajadas.

14
Embora não caiba nos limites da presente investigação, um estudo sobre as relações da Guerra Fria com o
impulso dado à ciência no período, com o nascimento daquilo que passou a ser chamado de Pesquisa e
Desenvolvimento, com novas formas de racionalidade daí emergentes, e com a interconexão dada a tudo isso
pelas então novas tecnologias de produção, seria provavelmente muito proveitoso para a compreensão das
ciências cognitivas. Obras como How the Cold War transformed philosophy of science: to the icy slopes of logic
(REISCH, 2005) e How reason almost lost its mind: the strange career of Cold War rationality (ERICKSON et
al, 2013) seriam fontes inicialmente indicadas para tal estudo.
61

Por fim, podemos extrair da comparação entre semelhanças e diferenças observadas


nos dois programas – Método Monte Carlo e ciências cognitivas – as seguintes conclusões:
1) Processos artificiais, quer na forma de simulação computacional, ou na de um modelo
geral, podem ter utilidade para a ciência não apenas como a representação do real para
uma dada investigação disciplinar, mas também para permitir a convergência, ou
“troca”, entre diversas disciplinas;
2) Não devem ser desprezadas as relações mais diretas entre o Método Monte Carlo e o
modelo lógico-proposicional das ciências cognitivas – dado que este último nasceu,
também, das investigações com utilização de computadores no pós-guerra –, mas
devemos perquirir como um papel unificador entre disciplinas pôde ser desempenhado
por um programa “ideal” de computador, como no caso das ciências cognitivas,
diferentemente de por um programa “real”, como no caso de Monte Carlo; é o que
será feito nas próximas seções.
Gardner (GARDNER, 1985, p.10), Dupuy, Bechtel et al e Boden destacam três outros
eventos, além das Conferências Macy, na gênese das ciências cognitivas:
1) O primeiro teria sido o congresso “Mecanismos Cerebrais do Comportamento”,
conhecido também como First Hixon Symposium, ocorrido no California Institute
of Technology (Caltech), Pasadena, em setembro de 1948, e financiado pelo
Hixon Fund. Segundo Gardner, este congresso deve sua importância a ter sido a
primeira oportunidade de combate ao behaviorismo, corrente da psicologia
experimental que até então dominava as pesquisas, enfatizando apenas os aspectos
comportamentais resultantes da atividade cerebral – e deixando de atentar para
esta atividade em si. Contudo, mais relevante ainda teria sido o fato de promover
este combate não de forma restrita apenas a psicólogos (embora Gardner e Boden
assinalem a importante participação no congresso do psicólogo Karl Lashley, em
sua argumentação questionadora do modelo behaviorista – v., além de
GARDNER, BODEN, 2006, p. 266-267), mas já com a marca interdisciplinar que
se consolidaria nas ciências cognitivas a partir daí. Gardner destaca no encontro a
presença de precursores da inteligência artificial como John Von Neumann e
Warren McCulloch. Von Neumann teria feito a abertura do congresso propondo a
analogia entre o computador eletrônico e o cérebro, conforme Bechtel et al
destacam abaixo. E McCulloch teria proferido a conferência seguinte trazendo
algo que se torna ainda mais notável para a investigação empreendida no presente
trabalho: a primeira proposta do uso do modelo de processamento de informações
62

para o funcionamento do cérebro15. Bechtel et al assim descrevem as


participações no Hixon Symposium, de acordo com as origens disciplinares e de
orientação dos seus participantes:

Dentre os oradores [no evento] estavam neurofisiologistas, como Warren McCulloch


e Rafael Lorente de No; psicólogos biologicamente orientados, como Ward
Halstead, Heinrich Klüver, e Karl Lashley; um psicólogo da Gestalt, como
Wolfgang Kohler; e um cientista da computação como John Von Neumann. Os
trabalhos abrangeram uma vasta gama de tópicos, incluindo a análise da semelhança
de computadores com o cérebro, feita por Von Neumann, o estudo de Kohler dos
potenciais evocados durante a percepção padrão, a comparação de Klüver entre
contribuições funcionais do occipital e dos lobos temporais, e a tentativa de Halstead
de relacionar a inteligência com o cérebro (BECHTEL et al, 1998, p. 24).

Contudo, é fundamental assinalarmos, neste conjunto de debates


interdisciplinares, o conflito que Dupuy identificou no evento – além daquele
entre behaviorismo e o futuro cognitivismo –, e que teria sido vencido pelos
adeptos do modelo lógico-proposicional16, considerados os desdobramentos do
simpósio:

Durante esse simpósio Hixon, Von Neumann e McCulloch confrontam-se com a


critica dos maiores nomes da neurofisiologia (Karl Lashley, Ralph Gerard), da
psicologia (Wolfgang Köhler) e da embriologia (Paul Weiss) da época, de uma
maneira muito mais viva, ou até tempestuosa, do que nas Conferências Macy, sobre
as quais McCulloch exerce a sua influência e o seu controle (DUPUY, 1996 [1994],
p. 88).

Esta observação de Dupuy serve para ressaltar, também, o papel de liderança de


McCulloch no nascimento das ciências cognitivas, para além de seu artigo
seminal, com Pitts. O fato de ele ser um neurofisiologista que aderiu à imagem
lógica da cognição – e não um pesquisador de computação, como Von Neumann,
que teria motivos mais imediatamente óbvios para fazê-lo – revela o modo como
alguns neurocientistas contribuíram, desde muito cedo, para a concepção do
cérebro como um dispositivo onde se encarna apenas funcionalmente o
processamento de informações.
2) O segundo evento destacado pelos autores citados foi a Dartmouth Summer
Research Conference on Artificial Intelligence, no Dartmouth College, em julho e
agosto de 1956, na cidade de New Hampshire. Contou com alguns dos principais
fundadores da inteligência artificial, como John McCarthy, Marvin Minsky, Allen

15
Vide menção, anterior, ao artigo “A logical calculus of ideas immanent in nervous activity”, de Warren
McCullogh e Walter Pitts.
16
Esta divergência, e seu “desfecho”, serão retomados na seção 2.1.
63

Newell e Herbert Simon. Este encontro teria servido para preparar uma nova
geração:
A reunião em Dartmouth não cumpriu as expectativas de todos: havia mais
concorrência e menos livre troca entre os estudiosos do que os planejadores tinham
desejado. No entanto, o encontro de verão é considerado crucial na história das
ciências cognitivas, em geral, e no campo da inteligência artificial, em particular. A
razão é, penso eu, principalmente simbólica. A década anterior tinha visto as idéias
brilhantes de uma geração mais velha -- Norbert Wiener, John Von Neumann,
Warren McCulloch, Alan Turing --, todos apontando para o desenvolvimento de
computadores eletrônicos que poderiam realizar funções normalmente associadas
com o cérebro humano. Este grupo sênior tinha antecipado desenvolvimentos, mas
não tinha certeza se eles próprios teriam a oportunidade de explorar a terra
prometida. Em Dartmouth, membros de uma geração mais jovem, que
cresceram em um ambiente semeado com essas idéias, agora estavam prontos (e
em alguns casos, além da prontidão simples) para elaborar as máquinas e
escrever os programas que poderiam fazer o que Von Neumann e Wiener
haviam especulado. (GARDNER, 1985, p. 139 – grifo meu)

Em outras palavras, esta conferência teria sido significativa no aspecto de


consolidar a colaboração entre os pesquisadores mais jovens no novo campo da
inteligência artificial, permitindo um passo no sentido de aplicar a teoria,
desenvolvida pela geração anterior, na prática de construir artefatos. No mesmo
sentido, Boden confere bastante destaque à participação daqueles que seriam os
maiores líderes da inteligência artificial, mas também das próprias ciências
cognitivas:

O encontro de meados do século entre Newell (1927-1992) e Simon (1916-2001)


levou à parceria mais frutífera das ciências cognitivas. Eles causaram sensação no
Dartmouth College (New Hampshire) em 1956, onde relataram o praticamente
primeiro programa funcional de inteligência artificial psicológica (...). Na verdade,
foi em grande parte graças à sua contribuição que a reunião de Dartmouth foi um
dos eventos de formação das ciências cognitivas (...).
Após a sua explosão em Dartmouth, eles passaram o resto de suas vidas
desenvolvendo uma cada vez mais poderosa artilharia intelectual, e suas armas
silenciaram apenas comsuas mortes. Mas as reverberações ainda persistem – na
inteligência artificial, em certas áreas da vida artificial, na psicologia e na filosofia.
Em suma, seus ecos estão por toda parte (BODEN, 2006, p. 317).

3) E o terceiro evento ocorreu um mês após o final da conferência em Dartmouth: o


“Simpósio sobre Teoria da Informação” no Massachusetts Institute of Technology
(M.I.T.). Ao Simpósio no M.I.T., mais nitidamente interdisciplinar, acorreram
além de Newell, Simon (que então apresentaram, segundo Gardner, o artigo
“Logic Theory Machine”) e outros estudiosos na nova geração da inteligência
artificial, o linguista Noam Chomsky e o psicólogo cognitivo George Miller, que lá
apresentou seu artigo “The magical number seven, plus or minus two: some limits
on our capacity for processing information", a primeira utilização nos EUA da
64

noção de processamento de informações na psicologia. Segundo Gardner


(GARDNER, 1985, p. 28), Miller atribui a este encontro a fundação das ciências
cognitivas. Mas devemos assinalar que isto quer dizer, em outras palavras, a
adesão da psicologia à proposta da inteligência artificial, verificada em Dartmouth.
De acordo com Boden,

Para a psicologia, no entanto, o Simpósio MIT foi ainda mais frutífero do que
Dartmouth. Lá Miller apresentou seu artigo “Magical number seven” (...). E ele teve
uma epifania intelectual que o levou da matemática para psicologia computacional.
Ele logo deu início a uma declaração de intenções em relação ao que é agora
chamado de ciências cognitivas (...).
Em uma fala autobiográfica apresentada mais de vinte anos depois, ele chamou o
segundo dia da reunião MIT como o momento em que – para ele – as coisas de
repente fizeram sentido. Naquele dia, foram ministradas palestras sobre o
[programa] Logic Theorist por Newell e Simon e sobre gramáticas formais por
Chomsky. O primeiro, apresentado em Dartmouth, pouco tempo antes, mostrou que
um computador pode provar teoremas em lógica. O segundo mostrou que a
linguagem – considerada como frases estruturadas, não apenas sequências de
palavras– pode ser formalmente descrita (BODEN, 2006, p. 334).

Tais encontros permitiram que a inteligência artificial estabelecesse sua liderança nas
ciências cognitivas nascentes, o que foi reforçado pela criação daquilo que Boden chamou
acima de “psicologia computacional”. E esta liderança se expressa na iniciativa que alguns
pensadores da inteligência artificial tomaram de considerar a possibilidade de até mesmo
substituir os psicólogos, como descreve Hubert Dreyfus:

Em 1957 Simon previu que dentro de dez anos as teorias psicológicas assumiriam a
forma de programas de computadores, e começou a cumprir essa predição
escrevendo uma série de programas que tinham por finalidade simular as fases
conscientes e inconscientes pelas quais passa uma pessoa até chegar a um
desempenho cognitivo específico. (DREYFUS, 1975 [1972], p. 129).

A esta altura – uma vez identificado o momento em que as ciências cognitivas


passaram a ser assim chamadas –, é necessário justamente examinar a contribuição de Simon
e Newell ao seu nascimento, e o papel que a RAND Corporation teve no fomento às pesquisas
destes dois cientistas. Uma análise dos trabalhos de ambos será feita na seção 1.2.1. Porém é
preciso neste momento promover uma visão geral de como se consolidou sua liderança,
através de forte apoio institucional.
A RAND (acrônimo de “Research and National Development” segundo Simon, em
SIMON, 1996) Corporation nasceu do Project RAND, criado, em 1945, na cidade se Santa
Mônica, California, pela Força Aérea dos EUA, com apoio financeiro inicial da Douglas
Aircraft Company, uma indústria de aeronaves, da qual se desligou em 1948 (ABELLA,
2008; WARE, 2008; JARDINI, 2013). Posteriormente à saída da Douglas Aircraft Company
65

do empreendimento, este foi declarado como uma organização sem fins lucrativos, já com o
nome de RAND Corporation, e apoiado pela Ford Foundation, por empresas como aCarnegie
Corporation of New York e a Westinghouse Electric Corporation, e por instituições de ensino
e pesquisa como o Caltech, o MIT e as universidades de Princeton e Illinois (WARE, 2008, p.
8 e 9). E, assim como as motivações das iniciativas por trás do Método Monte Carlo, a razão
de existir da RAND também se ligavam à chamada Guerra Fria, entre EUA e URSS:

As prioridades dos EUA sempre definiram a agenda de pesquisa da RAND. Com


raízes na competição da Guerra Fria com a União Soviética, a agenda inicial em
matéria de defesa evoluiu – em conjunto com a atenção dos EUA – para abranger
áreas diversas como assuntos de conquista do espaço, econômicos, sociais e
políticos no exterior, assim como o papel direto do governo na de resolução de
problemas domésticos nas áreas social e econômica (WARE, 2008, p. 10).

E foi com este perfil estatal e militar de arregimentação – muito diferente, por
exemplo, do que se observou na sustentação dada pela Fundação Macy ao início da
cibernética, e muito mais semelhante ao do Projeto Manhattan – que a RAND apoiou o
nascimento da inteligência artificial e das ciências cognitivas.
Antes, porém, de enfocarmos o trabalho de Simon e Newell na RAND, é preciso
assinalar a importância da Comissão Cowles sobretudo na trajetória do primeiro – o que teve
repercussão nos destinos das ciências cognitivas. A Comissão Cowles – atualmente Cowles
Foundation –, criada em 1932 pelo empresário e economista Alfred Cowles na cidade de
Colorado Springs17, foi frequentada por Simon quando, nos anos 1950, já funcionava na
Universidade de Chicago. Ela reuniu basicamente economistas matemáticos que realizavam
seminários regulares sobre econometria, programação linear e dinâmica, e teoria da decisão.
Dentre os economistas que chegaram a participar do grupo estavam Kenneth Arrow, Roy
Radner, Paul Samuelson, Franco Modigliani, Jacob Marshak, Tjalling Koopmans e Gerard
Debreu. Como Simon chegou a dizer em sua autobiografia, sua atividade na Comissão
Cowles fez dele “quase um economista tempo integral” (AUGIER & MARCH, 2004, p. 12).
E é Simon quem também afirma que “O maior impacto da [Comissão] Cowles em mim foi
me incentivar a tentar matematizar minha pesquisa anterior, em teoria da organização e
tomada de decisão – especialmente a teoria desenvolvida em Administrative Behavior18”
(citado por AUGIER & MARCH, ibid.).
A pesquisa anterior de Simon era sobre o comportamento de pessoas no ambiente da
administração pública. Este foi o tema de sua tese de doutorado, defendida na Universidade

17
V. http://cowles.econ.yale.edu/, Data de acesso 10/08/2014.
18
Trata-se da tese de doutoramento de Simon.
66

de Chicago, em 1943. De um lado, devemos destacar a influência de Rudolf Carnap sobre este
trabalho – o que tende a confirmar o que já foi dito acima sobre o impacto do Positivismo
Lógico no nascimento do modelo lógico-proposicional; de outro, sublinhar que as ciências
cognitivas devem muito à confluência de interesses que se manifestou em Simon: o estudo do
comportamento humano explicado e descrito de maneira racional, lógica, quantificada. O
próprio Simon afirma, a respeito de sua tese de doutorado, da influência de Carnap e do que
seria a “lógica das ciências sociais”:

Carnap foi particularmente importante para mim, pois eu tinha um forte interesse na
lógica das ciências sociais. Meu projeto de tese (mais tarde publicada como
Administrative Behavior) começou como um estudo dos fundamentos lógicos da
ciência administrativa. Meus arquivos renderam vários esboços iniciais e prospectos
de tal obra, que comecei a planejar em 1937. Teria sido bom se alguém tivesse me
mandado sentar e me forçado a acompanhar um curso formal em lógica simbólica,
mas eu segui o meu caminho habitual de autoinstrução, com os resultados mistos
habituais. Eu não era totalmente ignorante em lógica, no entanto. Um estudo
cuidadoso de The logical syntax of language, de Carnap, me convenceu de que sua
definição de “analítico”, um termo central em seu sistema, não levava aonde deveria
(SIMON, 1996, p. 54).

Simon prossegue afirmando que, por carta, questionou Carnap sobre a imprecisão que
atribuía ao uso do conceito de analítico em The logical syntax of language, e que esta atitude
teria provocado a correção que Carnap teria promovido no livro Introduction to semantics, de
1942, após os dois terem conversado pessoalmente a respeito.
Este episódio é útil para demonstrar que Simon não apenas teve uma relação direta de
aprendizado com Carnap, mas também desde cedo demonstrou clara intenção em intervir em
discussões centrais, o que o levou à convergência da lógica (ou, se considerarmos as posições
e principais interesses de Carnap, ao menos em parte do Positivismo Lógico) com as ciências
do comportamento humano.
Como foi aludido, o ponto de partida de Simon – representado por sua tese de
doutorado – era tentar explicar o comportamento social, e o papel que a razão nele
desempenha. A rigor, ele não se afastou deste interesse ao se tornar um dos pais da
inteligência artificial, das ciências cognitivas e do cognitivismo, como veremos a seguir.
Para melhor compreendermos tal suposição, primeiramente tenhamos em conta a
seguinte afirmação de Simon:

Minha área original é organização e gestão. Eu abordei organização e gestão do


ponto de vista da tomada de decisão. Eu tive formação em economia e entendi o
modelo do economista de tomada de decisão. Mas isso me pareceu muito longe do
que estava acontecendo nas organizações. Então, eu tentei desenvolver teorias
alternativas. (BAUMGARTNER & PAYR, 1995, p. 231).
67

Com o intuito de melhor caracterizar a trajetória de Simon no desenvolvimento de


teorias alternativas – associadas à “teoria da racionalidade limitada”19, que o levou a ganhar o
Prêmio Nobel de Economia (Ibid.), devemos considerar os seguintes pontos ressaltados por
Boden (BODEN, 2006, p. 319). Segundo ela, Simon:
• Como estudante de pós-graduação, participou com afinco especial das aulas de Rudolf
Carnap “sobre a lógica ea filosofia da ciência axiomática”, conferindo a elas particular
importância;
• Foi coautor, no final dos anos 1930, de cerca de vinte artigos sobre como medir o
sucesso na administração urbana;
• Teve grande interesse na teoria dos jogos, mesmo antes do livro-chave (de Von
Neumann e Morgenstern) ter sido publicado em 1944, e dedicou o Natal do mesmo
ano a lê-lo dia e noite, de modo a escrever o primeiro comentário sobre a obra, para o
American Journal of Sociology. Afirmou que, ao deparar com o título do livro,
“Teoria dos jogos e o comportamento econômico”, em um anúncio de revista, chegou
a ter um sentimento de inveja, por não tê-lo escrito, que durou décadas;
• Descreveu os trabalhadores nas organizações como “máquinas de fazer lógica”,
acreditando que a eles se pode aplicar a expectativa de que, uma vez dado a eles um
tal conjunto de premissas e objetivos, tomariam determinadas decisões. Esta noção
mais tarde evoluiria, em sua obra, para a ideia de que a mente humana é como um
computador;
• Ao lecionar para engenheiros na década de 1940, esboçou decisões da Suprema Corte
na forma de diagramas de circuitos elétricos, com interruptores representando as
alternativas sim ou não das escolhas do tribunal – com nítida inspiração em Shannon,
e de maneira análoga ao modelo neuronal de McCulloch-Pitts.
Simon conheceu Newell, quando, em 1952, chegou à RAND para trabalhar como
consultor em economia. Newell já havia sido admitido ali como empregado em 1950, um ano

19
A respeito da Teoria da Racionalidade Limitada, Bechtel et al afirmam que Simon desafiou “um dos princípios
da economia moderna, a suposição de que os agentes são perfeitamente racionais nas escolhas que fazem.
Simon, ao contrário, enfatizou que a racionalidade é limitada e que, em vez de examinar todas as possibilidades
que enfrentam e, em seguida, escolher uma, os seres humanos geralmente aceitam a primeira opção que atende a
um padrão pré-determinado. (...). Ele também extraiu de seu trabalho em organizações humanas o
reconhecimento de que os seres humanos muitas vezes dependem de receitas de ações, ou heurísticas, em vez de
buscar solução ideal de procedimentos que garantam respostas corretas” (BECHTEL et al, 1998, p. 11). Ou, em
outras palavras, desta vez de Erickson et al: “Simon não estava assumindo que os tomadores de decisão fossem
irracionais; em vez disso, ele argumentou que os limites de sua capacidade de coleta e processamento das
informações necessárias para tomar as melhores decisões para atingir suas metas forçou um novo foco sobre o
processo de raciocínio e resolução de problemas” (ERICKSON et al, 2013, p. 75).
68

após terminar a graduação em Física na Universidade de Stanford. Quando ambos se


encontraram, Newell fazia pesquisas sobre processos em aviação. Segundo Simon:

Em minha primeira visita a RAND no início de 1952, eu conheci Allen Newell. Eu


não o conhecia antes, mas estava familiarizado com alguns documentos matemáticos
que ele havia escrito, em que tentou formalizar a teoria da organização. Eu
estava apenas ligeiramente impressionado com a [sua] matemática, que parecia
conter mais definições do que teoremas (sempre um mau sinal para as teorias
formais), mas eu estava bem disposto para qualquer um que tivesse disposição e
habilidade para aplicar matemática a esses tipos de questões.
Em nossos primeiros cinco minutos de conversa, Al e eu descobrimos nossa
afinidade ideológica. Entramos de uma vez em uma animada discussão,
reconhecendo que, embora nossos vocabulários fossem diferentes, ambos víamos a
mente humana como um sistema simbólico de manipulação (expressão utilizada
por mim) ou de processamento de informações (termo utilizado por Newell)
(SIMON, 1996, p. 168 – grifos meus).

Os destaques conferidos ao fragmento acima procuram chamar a atenção para três


pontos que neste trabalho são considerados importantes no nascimento das ciências
cognitivas:
1) A crença dos seus líderes na importância da formalização quantificadora do
comportamento humano;
2) A afinidade ideológica e filosófica de seus criadores;
3) A imagem da cognição como sistema de manipulação de símbolos ou – o que é
equivalente – como sistema de processamento de informações.
Aqui se defende que teria sido graças a estes elementos que as ciências cognitivas
avançaram. Mais precisamente, quanto à colaboração entre Newell e Simon, caberia ainda
ressaltar que ambos foram atraídos pela noção de solução de problemas através de heurísticas,
e que isto os levou a desenvolver os primeiros programas de computador eficazes na
simulação de parte da inteligência humana. Isto teria sido fundamental para que eles
sustentassem a ideia de que a cognição humana seria, na essência, manipulação de símbolos
ou processamento de informações, tendo como objetivo a solução de problemas. Sobre os
primeiros resultados em programação de Simon e Newell, afirmam Bechtel et al:

Quando programado em 1956, o chamado Logic Theorist provou 38 teoremas do


Principia Mathematica de Russell e Whitehead, de maneira mais elegante do que os
próprios autores do livro. A implementação efetiva do Logic Theorist representou
mais do que o primeira aparente sucesso de um programa de computador na
execução de uma tarefa que exige inteligência; ela também trouxe o
desenvolvimento de uma linguagem de processamento de lista, a IPL (Information
Processing Language). Os símbolos de uma lista poderiam ser armazenados na
memória de endereços arbitrários no computador, e ligações poderiam ser
adicionados entre um produto e outro simplesmente especificando no primeiro local
o endereço do item relacionado (BECHTEL el al, 1998, p. 13).
69

Na seção 1.2.1 voltaremos a tratar das criações de Simon e Newell na inteligência


artificial, mais precisamente investigando o papel de sua noção de sistema de símbolos físicos
para a consolidação das ciências cognitivas. Por ora, foi importante termos identificado a
convergência dos dois pesquisadores garantida por suas crenças, preferências, habilidades,
formações, produções e, sobretudo, pelo patrocínio da RAND, que deu sustento para que estas
últimas não somente fossem possíveis, mas se propagassem.
Por fim, deve ser destacada a talvez mais importante iniciativa para as considerações
deste trabalho: o programa de pesquisas interdisciplinares financiado pela a Fundação Alfred.
P. Sloan, nos EUA, em meados dos anos de 1970, que consolidou a formação das ciências
cognitivas e seu projeto declarado. A Fundação Sloan foi criada em 1934 pelo executivo da
General Motors Alfred Pritchard Sloan, que, em 1959 fez a seguinte declaração sobre seus
propósitos:

Exorto a Fundação a empregar seus recursos em ciência e pesquisa econômica nas


diversas disciplinas. Gostaria de enfatizar a necessidade de apoiar todos os projetos
construtivos em pesquisa básica sobre a qual todo o progresso científico e de
pesquisa avançada depende (...). Eu também gostaria de ver a Fundação explorar
todas as formas possíveis de expansão da educação, já que esta é a base de todo o
progresso. (SLOAN FOUDATION, 2009, p. 2).

No livro Alfred P. Sloan Foundation - A grantmaking History 1934-2009(SLOAN


FOUDATION, 2009), volume comemorativo dos 75 anos da fundação, a história da Iniciativa
Sloan é contada brevemente em suas etapas principais, e em aspectos importantes para o
presente trabalho. Segundo o livro (Ibid., p. 25-28):
1) Antes do programa, os cientistas cognitivos trabalhavam em diversas
universidades, na maior parte sem o “adequado” contato com colegas de outras
disciplinas e outras instituições;
2) Em 1977, a partir de discussões com “consultores especializados” a fundação
iniciou um programa multianual de apoio ao campo emergente das ciências
cognitivas;
3) Inicialmente foram convocados cientistas de diferentes disciplinas para que se
avaliasse em que ponto estavam as investigações e explorar as possibilidades de
colaboração;
4) Os recursos foram direcionados para workshops, seminários e conferências, assim
como para a promoção de visitas de uns cientistas às universidades de seus
colegas;
5) As subvenções foram então destinadas às seguintes universidades:
70

• Universidade da Califórnia, San Diego


• Universidade do Texas em Austin
• MIT
• Universidade de Yale
• Universidade de Brown
• Universidade de Stanford
• Universidade da Califórnia, Irvine
• Universidade de Chicago
• Faculdade de Medicina da Universidade de Cornell
• Universidade de Massachusetts, Amherst
6) Em torno de 1979, um número crescente de universidades desenvolviam
significativos projetos de pesquisa e estavam em condições de iniciar programas
de treinamento para pós-doutores e cientistas mais jovens preparados para dominar
duas ou mais disciplinas envolvidas nas ciências cognitivas;
7) Neste segundo biênio as principais bolsas da fundação foram para:
• Universidade da Califórnia, San Diego
• MIT
• Universidade Carnegie Mellon
• Universidade da Pensilvânia
• Universidade do Texas, Austin
• Universidade de Yale
• Universidade de Chicago
• Universidade de Michigan
• Universidade de Stanford
• Universidade de Brown
• Universidade de Massachusetts, Amherst
• Universidade de Cornell
• Universidade da Califórnia, Irvine
8) A fase final do programa concentrou-se no desenvolvimento institucional. Foi
dado apoio para o desenvolvimento de um centro, instituto, departamento ou outra
entidade administrativa autossustentável, a fim de ser realizar um programa
contínuo de investigação e formação em ciências cognitivas;
9) Em 1981, concurso realizado pela fundação atraiu 22 propostas;
71

10) O MIT recebeu US$ 1,5 milhão para desenvolvimento do seu Centro de Ciências
Cognitivas. Oito instituições receberam doações de US$ 500.000 para fortalecer,
unificar e institucionalizar programas de investigação e formação em ciências
cognitivas:
• Universidade da Califórnia, Berkeley
• Universidade de Rochester
• Universidade Carnegie Mellon
• Instituto de Neurociência Cognitiva
• Universidade da Pensilvânia
• Universidade do Texas, Austin
• Universidade de Stanford
• Universidade da Califórnia, Irvine
11) Em 1986, os principais centros de pesquisa em ciências cognitivas da Universidade
da Califórnia, Berkeley, Universidade da Pensilvânia, Stanford, MIT, e Carnegie
Mellon já haviam recebido um forte apoio da fundação, e estavam engajados em
investigação e colaboração interdisciplinar, tanto em pós-graduação quanto em
pós-doutorado, com programas para formar a próxima geração de cientistas
cognitivos;
12) A pesquisa beneficiou avanços na tecnologia dos computadores, especialmente em
instituições que utilizavam técnicas de inteligência artificial, simulação
computacional, e modelagem de computador para estudar as funções cognitivas
complexas, tais como resolução de problemas e tomada de decisão;
13) Em 1987, uma década após a o início do programa, a fundação já havia investido
um total de quase US$ 25 milhões, US$ 60 milhões nos preços de 2009;
14) Laços foram estabelecidos entre as diversas disciplinas envolvidas nas ciências
cognitivas e oportunidades de estudo no campo cresceram nas principais
faculdades e universidades.
Percebe-se por esta concisa narrativa o alcance e a determinação do programa. Nela
fica patente o esforço de liderança da fundação em relação à consolidação das ciências
cognitivas. Ele aparece também no relatório apresentado no primeiro ano da iniciativa. Além
de relacionar “oficialmente” as disciplinas constituintes das ciências cognitivas – filosofia,
psicologia, inteligência artificial, linguística, antropologia e neurociência –, o relatório (“State
of the art report”, – SLOAN FOUNDATION, 1978), preparado por um grupo de cientistas
72

engajados no programa para prestar contas à fundação, afirmava claramente uma plataforma
política de ação conjunta:

[Neste relatório] descrevemos brevemente alguns dos pontos de vista teóricos e


estratégias de investigação compartilhados que unem os cientistas cognitivos. (...)
Em nossa opinião, a comunicação crescente entre os cientistas cognitivos que
trabalham em uma variedade de contextos disciplinares é direcionada para a
caracterização formal de determinadas faculdades mentais e sua realização no
cérebro. (SLOAN FOUNDATION, p. iii e iv).

Gardner descreve brevemente o papel da Fundação Sloan20 na formação das ciências


cognitivas. É necessário que nos ocupemos com alguns aspectos do relatório mencionado, por
serem extremamente ilustrativos de muitos dos pontos que aqui investigamos. O primeiro
aspecto consiste no que seria o compromisso comum, determinado pelo programa. Segundo o
relatório, as disciplinas componentes das ciências cognitivas

Compartilharam, de fato, trazendo o campo à existência, um objetivo comum de


pesquisa: descobrir as capacidades representacionais e computacionais da
mente e sua representação estrutural e funcional no cérebro. [Os pesquisadores
das ciências cognitivas] aceitaram o desafio de especificar descrições teóricas
adequadas dos sistemas cognitivos e testar empiricamente as predições dessas
teorias. A investigação que se segue apresenta alguns dos exemplos de colaboração
em pesquisas voltadas para aquele objetivo, e fornece uma ampla demonstração da
necessidade prática de um ataque científico coordenado. As questões a serem agora
apresentadas nas disciplinas21 das ciências cognitivas estão fundamentalmente
ligadas; além disso, o aparato teórico e metodológico de uma disciplina está sendo
cada vez mais aplicado, e, por vezes, aprimorado, para responder às questões
(SLOAN FOUNDATION, p. 6 – grifo meu).

Vemos que este compromisso envolvia não apenas uma imagem comum implícita da
cognição, como computacional, mas a disposição de colaboração interdisciplinar em torno
desta imagem.
O segundo aspecto corresponde, exatamente, à lista de disciplinas mencionada por
Gardner e que se tornou uma referência extremamente influente nos livros sobre ciências
cognitivas. Esta lista não aparece na forma de um rol trivial, mas no diagrama abaixo
reproduzido, extraído diretamente como fac-símile, com seus termos em inglês, da capa do
relatório referido:

20
A fim de ressaltar importância do papel da Fundação Sloan para a consolidação das ciências cognitivas, é
preciso registrar que o próprio livro de Gardner foi realizado com financiamento desta instituição (GARDNER,
1985, p. xiii; BODEN, 2006, p. 522).
21
Originalmente subfields.
73

Figura 01
Embora este mesmo hexágono (chamado por Gardner de “hexágono cognitivo” –
GARDNER, 1985, p. 36) apareça em alguns livros sobre as ciências cognitivas (é
reproduzido, por exemplo, em GARDNER, 1985; VON ECKARDT,1995; BODEN, 2006 e
BERMÚDEZ, 2010) – isto é, embora ele tenha se tornado uma espécie de emblema –, pouco
tem sido explorado sobre a importância histórica da Fundação Sloan para as ciências
cognitivas, a não ser em breves passagens dos livros citados de Boden e Bermúdez22. Gardner,
que chama o financiamento dado por este órgão de fomento às ciências cognitivas de
“iniciativa Sloan”, esclarece que o “hexágono cognitivo” indica em suas linhas internas cheias
as conexões interdisciplinares já existentes em meados dos anos 1970, e as linhas tracejadas
como sendo as conexões desejáveis. Mesmo que sejam bastante discutíveis as suposições que
essas linhas revelam – tanto na forma de “constatação” quanto na de “recomendação” –, é
interessante assinalar que houvesse a preocupação de avaliar e planejar as ações das ciências
cognitivas, o que evidencia uma abordagem estratégica. Se esta estratégia teve resultados,
quais seus resultados hipotéticos, bem como qual seu alcance e duração, são questões que
estão a merecer maiores investigações por parte de quem tenha interesse de compreender as
implicações sociais das ciências cognitivas.

22
Bermudez faz uma comparação das teses de unificação das ciências cognitivas, simbolizadas pelo hexágono,
com os processos de unificação destas ciências que identifica no momento atual (BERMUDEZ, 2010, p. 96).
74

O segundo aspecto é que a iniciativa Sloan tratava, possivelmente pela primeira vez,
as ciências cognitivas como um todo unificável, uma vez que lhe destinou financiamento em
conjunto, e não particularizadamente, como já havia feito com a neurociência, alguns anos
antes (GARDNER, 1985, p. 50).
Outro aspecto do relatório, relevante para os propósitos deste trabalho, é que, ainda
segundo Gardner,

A comunidade de forma geral teve uma visão claramente negativa do relatório. Na


realidade, tantos leitores manifestaram uma oposição tão virulenta que,
contrariamente aos planos iniciais, o documento nunca foi publicado. Penso que esta
reação negativa resultou do fato de cada leitor ter enfocado o documento sob o
prisma de sua própria disciplina e programa de pesquisa. Esforçando-se para ser
razoavelmente ecumênicos, os autores simplesmente asseguraram que a maioria dos
leitores consideraria o seu trabalho desprezado. (GARDNER, 1985, p. 37).

O autor não diz como obteve as informações sobre a repercussão a que se refere, nem
quem seriam os “leitores” que menciona – o que nos impede de dimensionar, exclusivamente
pela leitura do livro, o impacto que o relatório obteve, e exigiria maiores pesquisas a respeito.
O relatório foi elaborado por uma comissão de treze cientistas cognitivos e filósofos, alguns
de destaque, como Zenon Pylyshyn, Donald Norman e George Miller – sendo que três deles
foram os responsáveis por sua redação final. Além disso, o grupo contava com especialistas
de todas as seis disciplinas emblemáticas. Por esta razão, pode ser lido não como um
documento burocrático, ou em um sentido político menor, mas sim como um texto de
pesquisadores e pensadores engajados no projeto das ciências cognitivas, que defendem suas
ideias – inclusive as ideias estratégicas, mesmo que estas não tenham sido seguidas
integralmente. O fato de provocar polêmica pode ser entendido como um sinal de que
apresentou questões relevantes, que contudo careciam (ou carecem ainda) de consenso. O fato
de ser uma espécie de justificação para recursos financeiros empregados não deve obscurecer
alguns pontos importantes de seu conteúdo. Com efeito, ao nos dedicarmos a lê-lo,
encontramos sinais de esforços para que fossem constituídos compromissos a serem seguidos
por uma determinada comunidade científica, ainda que formada por pesquisadores que
vinham de outras áreas e não houvessem previsto esta etapa multidisciplinar em suas
carreiras. Contém relatos de todas as seis disciplinas do hexágono. Assinalam-se ainda como
relevantes para este trabalho os seguintes pontos – sendo os dois primeiros testemunhos de
uma atividade de defesa social das ciências cognitivas, e o terceiro de que a unidade deve ser
obtida através da ação interdisciplinar:
75

a) O relatório traz um tom nitidamente entusiástico, bastante confiante na criação de uma


nova ciência, como se pode observar na seguinte passagem do seu prefácio:

Há um sentido em que a comissão de redação sente que houve admiravelmente. As


páginas deste relatório são prova irrefutável da vivacidade e atividade energéticas
que hoje caracterizam o campo da ciência cognitiva. Muitas pessoas estão a
trabalhar nele. A maioria delas acredita apaixonadamente no que está fazendo. Sua
paixão é correspondida por sua criatividade, e ao mesmo tempo em que é impossível
todos [os pesquisadores] serem destinados a tocar o manto da verdade, é certamente
verdade que o compromisso que eles têm tido para com a ciência cognitiva como
uma disciplina unificada e unificadora irá acelerar o dia em que um documento mais
claro e muito mais satisfatório do que o presente poderá ser escrito.(SLOAN
FOUNDATION, 1978, p. ii)

b) Ele defende com veemência a constituição de uma ciência “unificada e unificadora”,


como se lê no excerto acima;
c) Nota-se a seguinte exortação ao trabalho interdisciplinar:

O Comitê do Estado da Arte, que preparouestadeclaração, refleteo caráter


fundamentalmenteinterdisciplinar dotrabalho em ciênciascognitivas,e o relatório
contémas contribuições diretasdos membros do comitêque representam as
disciplinasda psicologia, linguística, ciência da computação, antropologia, filosofia e
neurociência. (Id., ibid.).

Além de ter fixado as disciplinas das ciências cognitivas e promovido um esforço mais
claramente propagandístico do novo campo científico, o relatório trouxe extenso
detalhamento das atividades realizadas pelas seis disciplinas nos anos anteriores. Algumas
passagens teriam importância epistemológica mais expressiva, dignas de serem analisadas em
um trabalho de maior fôlego – como, por exemplo, o fato de ser justamente no capitulo
dedicado à psicologia que há um item voltado ao “processamento humano de informações”.
Esta questão – de a psicologia ter sido a principal portadora da nova noção de processamento
de informações, dentre as demais disciplinas, além da inteligência artificial – será retomada
em seguida.
Não se esgota, certamente, no conteúdo desta seção, a história institucional das
ciências cognitivas. Seu propósito principal foi, tão somente, demonstrar como, no processo
de consolidação institucional das ciências cognitivas, isto se deu graças a dois elementos
principais:
1) O esforço de cooperação multidisciplinar;
2) Um modelo unificador da cognição.
Embora neste trabalho se admita a importância das iniciativas de congregação dos
cientistas cognitivos para a realização de programas de cooperação, a hipótese que aqui se
defende com maior ênfase para explicar a unificação das ciências cognitivas é a do
76

compartilhamento, entre as diversas disciplinas nelas envolvidas, de uma determinada


imagem da cognição humana.
Teria sido por meio desta imagem compartilhada que diversos pesquisadores, de
diferentes disciplinas e locais, mesmo trabalhando em projetos não propriamente
interdisciplinares, puderam ser considerados cientistas cognitivos. Isto pode ser interpretado
também através da noção de que as ciências cognitivas seriam antes multidisciplinares do que
interdisciplinares. A próxima seção se dedicará a investigar, ainda que brevemente, essa
hipótese. As seções subsequentes aprofundarão esta investigação.

1.1.4. O caráter analógico do modelo lógico-proposicional

A série de acontecimentos que vai das Conferências Macy à iniciativa Sloan torna o
surgimento das ciências cognitivas, da orientação cognitivista e dos modelos lógicos
inseparáveis entre si, assim como de um contexto social e histórico marcado pelo advento das
tecnologias da cognição. Michael Arbib, um dos redatores do relatório à Fundação Sloan,
ajuda a confirmar, cerca de vinte e cinco anos depois, que o modelo lógico da cognição –
também chamado de cognitivista – foi o predominante por bastante tempo, caracterizando-se,
até mesmo na psicologia cognitiva, pela liderança da inteligência artificial e por negligenciar
a importância das estruturas biológicas do corpo humano na explicação de comportamentos:

A psicologia cognitiva tenta explicar a mente em termos de "processamento de


informações" (uma noção em contínua transformação). Ela, portanto, ocupa uma
posição intermediária entre a teoria do cérebro e a inteligência artificial, em que o
modelo deve explicar dados psicológicos (por exemplo, que tarefas que são difíceis
para os seres humanos, a capacidade de memorização das pessoas, o
desenvolvimento da criança, os padrões de erros humanos, etc.), mas na qual as
unidades do modelo não precisam corresponder a estruturas cerebrais reais.
Nos anos de 1960 e 1970, a maioria dos psicólogos cognitivos formulou suas teorias
em termos de teoria da informação e/ou manipulação de símbolos, enquanto que as
teorias de organização biológica foram ignorados (ARBIB et al, p. 12 – grifo meu).

Nesta seção será examinado mais detalhadamente o papel do modelo lógico-


proposicional na unificação das ciências cognitivas. A hipótese a partir da qual será feita a
presente investigação é a de que a característica multidisciplinar das ciências cognitivas não
dependeu, basicamente, de lideranças explícitas e coordenações de trabalhos
interdisciplinares, como vimos ter ocorrido na Iniciativa Sloan, por exemplo. Ao contrário, o
que aqui se defende é que a inteligência artificial liderou a constituição das ciências
cognitivas mediante a adesão voluntária dos pesquisadores das demais disciplinas à imagem
da cognição como computação. Uma vez adotada esta imagem por cada uma das disciplinas,
77

sua atuação não foi predominantemente propiciada por iniciativas exógenas de cooperação
direta entre pesquisadores de origens disciplinares diferentes. Dito de outra maneira, a adoção
de uma imagem comum da cognição por cientistas de diversas disciplinas tem sido suficiente
para que se possa falar nas ciências cognitivas como um campo coeso de pesquisas. A coesão
não teria decorrido, portanto, de forças exteriores, conduzindo interações interdisciplinares do
tipo tradicional – como na Inciativa Sloan; e sim da formação voluntária, em cada uma das
disciplinas, de um compromisso com uma certa imagem geral da cognição, a funcionar como
centro de referência. Deste modo, podemos pensar na coesão das ciências cognitivas, em
grande parte, como resultado dos efeitos atrativos do modelo, como se este exercesse força
centrípeta de aproximação.
É interessante constatar que a denominação “ciências cognitivas” se dá no plural na
língua portuguesa, assim como no francês (“sciences cognitives”) e no espanhol (“ciências
cognitivas”), enquanto que no inglês predomina o emprego do singular “cognitive science”.
Esta não uniformidade linguística pode sugerir a falta de consenso quanto à
multidisciplinaridade das ciências cognitivas. Porém, tudo parece indicar que a forma singular
em língua inglesa demonstra mais uma expectativa futura de unicidade do que a convicção
quanto a esta realidade já ter sido alcançada. Isto porque, mesmo em obras escritas na língua
inglesa, não se manifestam dúvidas quanto a este campo de conhecimento ser (ainda)
multidisciplinar. Em um raro texto em que o termo é empregado no plural (até mesmo em seu
título), na língua inglesa, encontramos a seguinte reflexão:

Não é muito claro se uma única ciência vai emergir das atuais efervescência e
agitação que envolvem as ciências cognitivas. O que está claro é que os últimos
anos têm visto o surgimento de um grupo identificável de ciências cognitivas. Entre
os praticantes dessas ciências pode-se, com certeza, encontrar muitos que são
apropriadamente chamados de cientistas cognitivos, conjuntamente com o rótulo
mais tradicional de linguista, cientista da computação, psicólogo, antropólogo e
assim por diante. Como resultado, eu tendo a ver a ciência cognitiva mais como um
guarda-chuva do que como um chapéu. (MANDLER, 1984, p. 305, grifos em
negrito meus)23

O autor começa o trecho acima reproduzido falando em ciências cognitivas, no plural,


mas, após apontar para a condição de cientistas cognitivos daqueles que, embora sendo
originários de outras disciplinas, atuam no campo das ciências cognitivas, emprega a forma
singular “ciência cognitiva” na última frase. Esta passagem transparece a suposição de que, ao
menos nos anos 1980, estava aumentado o número de cientistas de diferentes disciplinas que

23
Embora este artigo seja de 1984, somos levados a julgar que a situação descrita no trecho citado não tenha
mudado muito nos últimos trinta anos, consultando os livros mais recentes sobre a história das ciências
cognitivas (especialmente BODEN, 2006; BERMUDEZ, 2010).
78

eram, também, cientistas cognitivos. Isto porque quando realizavam suas pesquisas e
elaboravam suas teorias, embora partissem de domínios científicos diversos, estariam
conscientes de que produziam um conhecimento voltado para objetivos não restritos à sua
prática disciplinar. É importante salientar esta suposição, uma vez que ela indica um caminho
que reúne, ao mesmo tempo, os aspectos que possam caracterizar epistemologicamente
diferentes domínios com aqueles que suscitam novas práticas científicas, por ser, de fato, o
caminho de cientistas situados historicamente. E esta situação histórica inclui a adoção de um
modelo comum.
Mas, vistos seus antecedentes institucionais, como se configurou o modelo lógico das
ciências cognitivas após aquele período inicial examinado na seção anterior? Propõe-se aqui
que ele tenha se formado através da adoção de uma determinada metáfora: a metáfora lógica
para o pensamento e a cognição. Embora seja comum se falar em metáfora computacional
(SLOMAN, 1978; GARDNER, 1985, p. 82) como base para o desenvolvimento dos modelos
de orientação cognitivista, é importante advertir que esta denominação termine por encobrir a
principal característica destes modelos (sua estrutura lógico-proposicional), ao induzir ao
equívoco de que a analogia principal utilizada em sua construção tenha sido a do cérebro
humano com o computador eletrônico, como máquina física. Diferentemente disto, entende-se
na presente investigação que o foco da comparação do computador com a cognição se dá nos
níveis lógicos de ambos, e não nos seus níveis físicos. Para sustentar esta noção,
consideremos o que já foi visto anteriormente na comparação entre os modelos de
McCullogh-Pitts e de Shannon, e outros testemunhos, como o de Allen Newell, J. C. Shaw e
Herbert Simon, citados por Gardner:

Não acreditamos que esta equivalência funcional entre cérebros e computadores


implique qualquer equivalência estrutural em um nível anatômico mais minucioso
(por exemplo, equivalência de neurônios com circuitos). Descobrir que mecanismos
neurais realizam estas funções de processamento de informações no cérebro é uma
tarefa para um outro nível de construção teórica. Nossa teoria é uma teoria dos
processos de informação envolvidos na solução de problemas, e não uma teoria de
mecanismos neurais ou eletrônicos para o processamento de informações
(GARDNER, 1985, p. 148 – grifos meus).

Como se pode perceber, estes cientistas demonstram valer-se de uma analogia apenas
funcional entre a cognição e o computador, para chegar a propor um modelo comum para
ambos. Esta noção está relacionada com a tese do funcionalismo, desenvolvida posteriormente
a partir dos trabalhos de Hilary Putnam, Jerry Fodor e Zenon Pylyshyn (BECHTEL, 1988a, p.
112 a 140. Newell e seus colegas também mostram, neste fragmento, que adotaram para a
equivalência funcional entre computador e cognição a metáfora do processamento de
79

informações. Outro modo de adotar a mesma analogia essencial se utiliza do conceito de


representação mental, que é amplamente aplicado pelas ciências cognitivas tradicionais. É o
que afirma, por exemplo, Paul Thagard:

A maioria dos trabalhos em ciências cognitivas assume que a mente contém representações
mentais análogas às estruturas de dados de computadores e procedimentos computacionais
semelhantes a algoritmos computacionais. Teóricos cognitivos têm proposto que a mente
contém representações mentais tais como proposições lógicas, regras, conceitos, imagens
e analogias, e que ela usa procedimentos mentais, como dedução, buscas, correspondências,
rotação e recuperação (THAGARD, 2010 – grifos meus).

Estas atitudes podem, por fim, ser resumidas no que assinalam Gerard Casey e Aidan Moran:
“A metáfora pode ser expressa assim: a mente é governada por programas ou conjuntos de
regras análogos àqueles que governam computadores” (CASEY & MORAN,1989, p. 4). A
analogia entre a cognição humana e o computador eletrônico seria, portanto, possível somente
se ambos tiverem a compreensão de seu funcionamento atribuída a um conjunto de regras
lógicas. Isto seria necessário para a construção de um modelo lógico que sirva para
computadores e para a cognição estritamente humana. É trivial considerar os programas de
computadores clássicos como conjuntos de regras lógicas – ou algoritmos. Mas e quanto à
cognição humana? Como ela, como um todo, foi tornada equivalente a um de seus alegados
aspectos, que é o raciocínio lógico sequencial, para que fosse equiparada ao funcionamento do
computador artificial? Lakoff e Johnson afirmam que “a primeira geração das ciências
cognitivas (...) aceitou sem questionamentos a visão prevalente de que a razão era incorpórea
e literal – como a lógica formal ou a manipulação de um sistema de signos” (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 75 – grifo meu). Mas como a cognição humana pode ser entendida na
forma deste mero processo lógico de manipulação de signos? Como teria se desenvolvido, nas
ciências cognitivas, tal imagem da cognição, que se propõe a traduzir o processo cognitivo em
linhas de códigos formadas por símbolos discretos conectados segundo regras rígidas? Tal
imagem não teria sido resultado de algum processo analógico e metafórico particular? Esta é a
opção aqui defendida, mesmo quanto a um tema que carece de maiores investigações. Com
vistas a contribuir para elas, postula-se neste trabalho mais de uma forma de interpretar esta
elaboração teórica. Uma das hipóteses que então se apresenta supõe que ela tenha se dado
através de duas etapas de analogias: primeiramente a cognição humana teria sido equiparada a
uma linguagem sentencial para, em segundo lugar, tal linguagem ser expressa na forma de
linhas formais de códigos simbólicos. A primeira etapa, isto é, a constituição da metáfora do
pensamento como linguagem, pode ser descrita como tal como o fazem Lakoff e Johnson.
Para eles, a metáfora do “pensamento como linguagem” consiste em considerar que pensar
seja uma atividade linguística; deste modo, “ideias simples são palavras” e “ideias complexas
80

são sentenças” (Ibid., p. 244). E prosseguem: “o que esta metáfora faz é conceituar o
pensamento em termos de símbolos, como se o pensamento fosse uma sequência de letras
escritas” (Ibid., p. 245). A segunda etapa metafórica, após a identificação de toda cognição a
uma linguagem escrita em palavras, seria equiparar esta linguagem a um conjunto racional de
regras lógicas. Outro autor, que também adota a compreensão das ciências cognitivas
clássicas como um exercício de modelagem por processos metafóricos, sugere que a segunda
etapa da transformação seja a seguinte:

A maneira convencional de modelar a compreensão da linguagem é vê-la como uma


forma de dedução lógica. Sentenças em linguagem são mapeadas (usando gramática)
como proposições na lógica matemática, e então as regras da lógica são usadas para
fazer inferências (FELDMAN, 2006, p. 217).

Em resumo, de acordo com este entendimento, a fim de que a cognição pudesse ter sua
operação essencial equiparada ao funcionamento de regras lógicas, teriam se dado dois
passos: o primeiro teria consistido em descrevê-la basicamente como linguagem proposicional
vocabular, e o segundo em traduzir tal linguagem como uma sequência de proposições da
lógica matemática. Haveria algumas outras abordagens possíveis deste processo de teorização
clássica sobre a cognição. Uma delas, proposta pela orientação cognitivista e provavelmente a
mais difundida nas ciências cognitivas clássicas, lança mão do conceito, desenvolvido por
Jerry Fodor, de “linguagem do pensamento”24 que, conforme será explorado mais adiante,
busca fundar o modelo lógico-proposicional numa linguagem básica, comum e inata nos seres
humanos, subjacente a toda cognição. Mas também se sugere aqui, sucintamente, uma terceira
hipótese de compreender a cognição na forma de sequência lógica. Esta abordagem inverte a
ideia de uma “linguagem do pensamento” subjacente a toda atividade cognitiva, ao propor
que o modelo lógico-proposicional seja uma simplificação abstrata da cognição, e não a
descrição de um processo constituinte de sua estrutura essencial. Ela supõe que os modelos
lógicos da cognição tenham sido criados a partir de uma analogia entre a cognição como um
todo e um de seus aspectos, que é o raciocínio lógico formal – o que poderia classificar esta
comparação como uma forma de metonímia, ou mais especificamente de sinédoque25. Isto é,
pelo fato de uma das capacidades cognitivas dos seres humanos ser o raciocínio lógico, esta
capacidade teria sido valorizada a ponto de ser tomada como sendo a cognição em si.

24
Language of Thought, ou “LoT”, na forma original, em inglês. Cf. FODOR 1975, 1981, 2008, e também
discutido, entre outros, GARDNER 1985, p. 83-86; BECHTEL 1988a. p. 54-57; THAGARD, 1988, p. 74 e
AYDEDE, 2010.
25
Tipo de metonímia em que se toma a parte pelo todo.
81

Dito isto, retoma-se agora a equiparação entre cognição humana o processamento


computacional em máquinas. Além das duas analogias, a do computador com as regras
lógicas, e a da cognição humana com estas mesmas regras, haveria ainda uma outra, a reforçar
as duas primeiras, utilizada na compreensão conjunta da cognição humana e dos
computadores: é aquela entre o conjunto de regras lógicas e um processo fabril produtivo26, na
qual um objeto inicial (premissas, estímulos, informações ou inputs) se transforma em um
objeto final (conclusões, respostas, comportamentos ou outputs). É o que afirma Gardner,
ainda sobre os trabalhos de Simon e Newell, mostrando a analogia entre programas (processos
de operação de regras lógicas, algoritmos) e processos produtivos, e que se relaciona também
com o que vimos eles chamarem de processamento de informações:

Uma noção fundamental do esquema de Newell-Simon é o sistema de produção, no


qual uma operação será executada se uma certa condição específica for satisfeita. Os
programas consistem em longas sequências de tais sistemas de produção,
operando sobre um banco de dados. Conforme descrição dos teóricos, o sistema de
produção é uma espécie de ligação estímulo-resposta computacional; se os estímulos
(ou condições) forem apropriados, a resposta (ou produção) será executada.
(GARDNER, 1985, p. 150 - grifo meu).

Esta terceira analogia, do processo produtivo com os conjuntos de regras lógicas, se combina
com a segunda analogia que foi apontada, entre a cognição e estas tais regras, e deste modo
permite pensar que a cognição tenha importância pelos resultados que possa produzir, dados
alguns insumos, mediante o uso de regras lógicas. Esta série de analogias pode ser expressa da
seguinte forma transitiva:
Primeira analogia: O funcionamento do computador é como a operação de regras
lógicas.
Segunda analogia: A cognição é como a operação de regras lógicas.
Terceira analogia: A operação de regras lógicas é como um processo produtivo.
Quarta analogia: O funcionamento do computador e a cognição são como processos
produtivos.
Conforme a quarta analogia, acima, – e de acordo com a orientação cognitivista – o
fato de a cognição ser análoga a um processo produtivo reforça os motivos para que ela possa
ser compreendida unicamente em seu aspecto lógico-racional objetivável. Isto porque este
último aspecto, ao ser, por sua vez, análogo a um processo produtivo, seria assim propício a
ser pensado como capaz de produzir os resultados esperados da cognição: decisões e ações
racionais obtidas segundo regras adequadas. Em outras palavras: seria em nome de um

26
Este ponto será retomado na seção 1.2.2, quando tratarmos do modelo lógico-proposicional na forma de
processamento de informações.
82

determinado conceito de produção que a cognição teria sido representada por um modelo
lógico-proposicional, e seria pelo mesmo motivo que, para compreendê-la, este modelo
dispensaria fatores como emoções, imaginação, relações com o ambiente, e o próprio corpo
humano (GARDNER, 1985, p. 6).

1.2. Descrição do modelo lógico-proposicional e suas principais utilizações nas diversas


disciplinas das ciências cognitivas

1.2.1 O modelo lógico-proposicional na inteligência artificial

Nesta seção será apresentado o modelo lógico-proposicional na forma com que


concebido pela inteligência artificial cognitiva. Será abordada a noção de algoritmo, bem
como sua aplicação em programas de computadores, assim como serão descritas as pesquisas
iniciais de Herbert Simon e Allen Newell e seu efeito conceitual nas ciências cognitivas. O
objetivo deste segmento é esclarecer, ainda que sucintamente, como se deu a liderança da
inteligência artificial nas ciências cognitivas, investigando o papel da noção de sistema de
símbolos físicos neste processo.
Como já foi dito na seção 1.1.3, Herbert Simon e Allen Newell foram os principais
responsáveis pela instituição da inteligência artificial como disciplina líder das ciências
cognitivas. Por este motivo, é fundamental identificar que características apresentaram os
principais conceitos, elementos teóricos, e até mesmo produtos de engenharia computacional,
elaborados por Simon e Newell, de modo que fossem compatíveis com a criação do modelo
lógico-proposicional como referência do campo científico cujo nascimento proporcionou.
Para esta finalidade, um dos principais conceitos a exigirem maior esclarecimento é o
de algoritmo. Embora já tenhamos visto sua definição mais geral na seção 1.1.4, é preciso
fixar algumas de suas peculiaridades. Utilizemos para tal a seguinte definição de Hartley
Rogers, a partir da noção de algoritmo como computação:
83

1. Um algoritmo é dado como um conjunto de instruções de tamanho finito.


(Qualquer algoritmo matemático clássico, por exemplo, pode ser descrito em um
finito número de palavras em inglês.)
2. Há um agente de computação, geralmente humano, que pode reagir com as
instruções e realizar os cálculos.
3. Há condições para preparar, armazenar e recuperar passos em uma computação.
4. Seja P um conjunto de instruções como em 1 e L um agente de informática como
em2. Em seguida, L reage a P, de tal maneira que, para qualquer dado de entrada, o
cálculo é realizado de forma passo a passo discreta, sem utilização de meios
contínuos ou dispositivos analógicos.
5. L reage a P, de tal maneira que um cálculo é levado adiante deterministicamente,
sem recorrer a métodos aleatórios ou dispositivos, como, por exemplo, dados de
jogar (ROGERS, 1967, p. 2)

Assim podemos dizer que um algoritmo, para o caso em exame, é o conjunto finito de
regras bem determinadas27que governa a execução de procedimentos formais de manipulação
de símbolos, através do qual a transformação simbólica possa ser efetivada. Sendo assim, é
uma relação de instruções cuja obediência é considerada como necessária para que seja
executada uma operação com símbolos28. Portanto, o algoritmo não corresponde, para os
propósitos da presente investigação, a uma sequência abstrata de símbolos, ou a qualquer
processo de cálculo29, tão somente; mas, em vez disso, deve ser entendido como um conjunto
de regras a serem obedecidas por processos reais – como visto na definição de Rogers –, sem
as quais estes processos não produzem o que deles se espera. Mas devemos também levar em
consideração a seguinte definição: “Um algoritmo é um conjunto finito de regras que são
inequívocas e que podem ser aplicadas de forma sistemática a um objeto ou conjunto de
objetos para transformá-los de maneira definida e circunscrita.” (BERMÚDEZ, 2010, p. 14).
Isto é, as regras devem ser inequívocas de tal modo a permitirem transformações, já que
precisam ser seguidas para que tais transformações se efetivem. Assim, as regras algorítmicas
podem ser caracterizadas como uma forma transcendente e anterior aos processos materiais,
que os conforma à sua semelhança, e torna equivalentes, para seus propósitos, todos os
processos que a ela se submetem. Claro é que o algoritmo entendido como qualquer processo
de cálculo guarda alguma identidade com o que aqui se considera como sendo processos
materiais: por exemplo, um procedimento de cálculo deve obedecer a regras sem as quais os
valores atribuídos às variáveis – configurando assim um dado estado geral do sistema num
certo momento – não podem ser transformados nos resultados esperados. Se um procedimento
de cálculo é, por princípio, abstrato, isto é, não pressupõe suas aplicações a sistemas reais, por

27
A alusão à obediência a “regras bem determinadas” na definição de algoritmo é importante, e se encontra, por
exemplo, no verbete respectivo no Dicionário de lógica, de Leonidas Hegenberg (HEGENBERG, 1995, p. 4).
28
Uma abordagem mais completa desse caráter de efetividade será feita na seção 1.2.4, quando da exposição da
teoria de Marr sobre os três níveis de percepção e cognição.
29
A definição de algoritmo como de “qualquer processo de cálculo” é a que encontramos, por exemplo, no
Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 25).
84

outro lado, quando os algoritmos são utilizados na concepção do modelo lógico-proposicional


da cognição humana, isto ocorre – ainda que muitas vezes de maneira tácita – tendo como
objetivo a explicação de processos reais de percepção, pensamento, memória e ação. Dito
alternativamente, a cognição, ainda que pensada na forma de algoritmo, é algo que se
implementa fisicamente. Ademais, considerar os algoritmos como de algum modo
relacionados com processos materiais de cognição é essencial, como será visto no capítulo 2,
para que seja compreendida a crítica corpórea às ciências cognitivas tradicionais.
Uma maneira análoga – e igualmente analógica – de se caracterizarem os algoritmos é
compreendê-los como processos mecânicos, no sentido de se assemelharem ao funcionamento
de máquinas30. Este sentido ainda será mais explorado na seção 2.2, quando serão enfocadas
as críticas que o mecanicismo recebeu ao longo do século 20, pelos autores que influenciaram
algumas das posições da cognição corpórea. Mas, desde já, devemos fixar alguns aspectos
essenciais da imagem maquínica31 do algoritmo. Sua operação deve:
a) Dar-se passo a passo, na forma de uma série de interações entre termos bem definidos
– assim como nas máquinas deve ocorrer quanto ao ajuste e ao funcionamento das
diversas peças que a compõem;
b) Ocorrer a partir de uma lista finita de instruções, do mesmo modo como em uma
máquina deve haver um número finito de partes, tanto para ser construída de maneira
conclusiva, quanto para que dela se espere um resultado operacional em um dado
tempo;
c) Interligar os valores de entrada e de saída com o mesmo grau de certeza e
determinação que vincula os insumos e os produtos de máquinas físicas;
d) Conferir confiabilidade e previsibilidade ao funcionamento do todo em decorrência da
forma das partes e de sua interação, de tal modo que não seja necessária a intervenção
de quem quer que seja a cada um dos passos da operação – conferindo, assim, ao
algoritmo, um caráter de independência interna semelhante ao se espera de uma
máquina.
De qualquer modo, não se exige aqui uma definição mais extensa ou tecnicamente
comprometida de algoritmo. Em vez disso, os sentidos de algoritmo aqui considerados devem
servir, precipuamente, para a compreensão do modelo lógico-proposicional tal como

30
Não se trata, neste caso, de fazer considerações sobre aspectos técnicos da relação entre algoritmo e a imagem
de máquina usada por Alan Turing expressa em seu já mencionado artigo de 1936.
31
Este adjetivo é usado para definir mais propriamente o que seria “mecânico” como referente às máquinas e não
a qualquer processo de interação de corpos.
85

produzido pela inteligência artificial em seus primórdios, o que será útil, sobretudo, para
explicar a crítica corpórea.
Sendo assim, devemos buscar a compreensão de como o algoritmo computacional, do
modo como presente na inteligência artificial capitaneada por Simon e Newell, se configurou
na forma do modelo lógico-proposicional da cognição.
Como já foi mencionado, Gardner afirma que Simon e Newell levaram ao Simpósio
do MIT, de 1956, seu artigo “Logic theoretical machine” (GARDNER. 1985, p. 25). Mas
devemos observar que na conferência de Dartmouth, semanas antes, uma declaração (citada
em GARDNER, 1985, p. 138 e MCORDUCK, 2004, p. 183-184) de John McCarthy, Marvin
Minsky,Nathaniel Rochester e Claude Shannon, e apresentada como pedido de bolsa à
Fundação Rockefeller, definia o propósito que inspirava a nascente disciplina hoje
denominada inteligência artificial – inspiração que, como será confirmado à frente, também
norteava Simon e Newell:

Propomos um estudo sobre inteligência artificial a ser realizado durante dois meses,
por dez homens, durante o verão de 1956 no Dartmouth College, em Hanover, New
Hampshire. O estudo será conduzido com base na conjectura de que cada aspecto do
aprendizado ou qualquer outro recurso da inteligência pode, em princípio, ser
descrito com tanta precisão que uma máquina pode ser feita para simulá-lo (tal como
citado em MCCORDUCK, 2004, p. 183-184).

Podem-se constatar nesta proposta indícios de que, desde seu início, a inteligência
artificial:
a) Não era uma busca apenas de criar uma inteligência que funcionasse nas máquinas,
mas que fosse semelhante à inteligência humana; e, assim
b) Baseava-se na hipótese de que a inteligência humana podia ser descrita com precisão.
Tais suposições são muito importantes para sugerir que a inteligência artificial já trazia em
sua gênese a concepção do modelo lógico-proposicional da cognição humana. Isto porque, se
a inteligência humana podia ser descrita com precisão suficiente para ser simulada
logicamente, a imagem que dela se fazia pressupunha sua redutibilidade à linguagem lógica.
Ou, dito de outra maneira, sua redutibilidade lógico-proposicional implicava a crença de que a
cognição seria essencialmente compreensível com este tipo de formalização, não podendo
haver nada fundamental em sua descrição que não coubesse na sua expressão simbólica.
Gardner relativiza esta crença, ao dizer que “alguns praticantes [da inteligência artificial]
querem simular os processos de pensamento humano, enquanto outros se contentam com
qualquer programa que leve a consequências inteligentes” (GARDNER, 1985, p. 140). Esta
diferença tem certa semelhança com uma classificação dicotômica proposta por John Searle,
86

entre inteligência artificial “fraca” e “forte” (SEARLE, 1980). Ambas são importantes porque,
de certo modo, selecionam o que seria o compromisso que, partindo da inteligência artificial,
constitui o modelo lógico-proposicional da cognição para as ciências cognitivas em geral.
Levemos em consideração a crítica que Searle faz à imagem computacional da cognição
humana:

De acordo com a inteligência artificial fraca, o valor principal do computador no


estudo da mente é que ele nos fornece uma ferramenta muito poderosa. Por exemplo,
ele nos permite formular e testar hipóteses de uma maneira mais rigorosa e precisa.
Mas de acordo com a inteligência artificial forte, o computador não é meramente
uma ferramenta no estudo da mente; em vez disso, o computador apropriadamente
programado realmente é uma mente, no sentido de que os computadores, dados os
programas adequados, podem literalmente compreender e apresentar outros estados
cognitivos. Na inteligência artificial forte, porque o computador programado tem
estados cognitivos, os programas não são meras ferramentas que nos permitem testar
explicações psicológicas; em vez disso, os programas são, eles próprios, as
explicações.
Eu não tenho nenhuma objeção às afirmações da inteligência artificial fraca (...).
Minha discussão aqui será voltada para as alegações que defini como sendo da
inteligência artificial forte, especificamente a alegação de que o computador
adequadamente programado tem, literalmente, estados cognitivos e que os
programas, assim, explicam a cognição humana (Ibid., p. 417).

Se a crítica que Searle faz contra a inteligência artificial é dirigida àquela que defende a
imagem da cognição como se fosse equivalente a um programa de computador, o que se
constata é que sua objeção é apresentada justamente à corrente da inteligência artificial que
não apenas integrou, como, segundo a suposição aqui adotada, liderou as ciências cognitivas
tradicionais. Sendo assim, o que ele denomina de “inteligência artificial fraca” não
corresponde à ideia de inteligência artificial que se examina neste trabalho. Por outro lado, o
que Searle batiza de “inteligência artificial forte” é exatamente o movimento tecnocientífico
estudado nesta seção. Os adjetivos “forte” ou “fraco” aplicados à inteligência artificial são
inadequados e nada esclarecem quando se tem o propósito de compreender o papel desta
disciplina na constituição das ciências cognitivas. Isto porque aquela atividade que Searle
chama de inteligência artificial fraca não pode ser adequadamente considerada como uma
disciplina das ciências cognitivas. Ela é, talvez mais apropriadamente, um recurso técnico
coadjuvante das pesquisas científicas em todos os campos. Em outras palavras, não se trata de
uma questão de grau, ou de força, da inteligência artificial, mas de atividades qualitativamente
diferentes. De todo modo, a nomenclatura empregada por Searle contribui para que se
esclareça o sentido da inteligência artificial para as ciências cognitivas. Ao permitir que
façamos diferenciação entre uma disciplina propriamente científica e algo que se aproxima
mais de uma técnica instrumental, favorece a caracterização da inteligência artificial científica
como ciência cognitiva. Contudo, como nem todas as pesquisas científicas em inteligência
87

artificial assumiram ou assumem pressupostos relacionados à cognição humana, é importante


demarcar neste trabalho que a inteligência artificial que aqui se discute é aquela desenvolvida
por Simon, Newell, McCarthy e Minsky, entre outros, e que adotava os compromissos que
Searle atribuiu ao que denominou de “inteligência artificial forte”. Em suma, para os
propósitos da presente investigação tal disciplina deve ser mais precisamente designada como
inteligência artificial cognitiva.
E o primeiro trabalho a ser examinado, com vistas ase compreender a gênese da
inteligência artificial cognitiva, não consiste em texto teórico, mas em um artefato que foi
construído com o intuito de que assumisse uma função teórica humana: trata-se do programa
Logic Theorist, desenvolvido por Simon e Newell (e Cliff Shaw – GARDNER. 1985, p. 146)
na RAND Corporation e apresentado em 1956. O propósito do programa – rodado no
computador “Johniac”, na RAND, batizado em homenagem a John Von Neumann – era
demonstrar que o computador poderia realizar um pensamento do tipo humano, e isso foi
buscado através da descoberta de provas para teoremas de lógica simbólica originalmente
apresentados no livro Principia Mathematica, de Alfred North Whitehead e Bertrand Russell.
Segundo os historiadores das ciências cognitivas, (GARDNER, 1985; MCCORDUCK, 2004
e BODEN, 2006), de fato o programa conseguiu provar trinta e oito teoremas dos Principia.
Segundo McCorduck, Edward Feigenbaum, aluno de Simon, afirmou que seu professor teria
dito à sua turma de modelação matemática: “Após o Natal Allen Newell e eu inventamos uma
máquina pensante” (MCCORDUCK, 2004, p. 222). Gardner acrescenta, a respeito:

Afinal de contas, o Logic Theorist (LT) poderia cm princípio ter funcionado por
força bruta (como o famoso macaco à máquina de escrever); mas nesse caso, teria
levado centenas ou mesmo milhares de anos para executar o que na realidade fizera
em poucos minutos. Ao invés disto, porém, o LT funcionava por procedimentos que,
de acordo com a equipe de Newell, eram análogos aos empregados por
solucionadores de problemas humanos, Entre os métodos usados pelo LT
encontram-se: substituição de um tipo de expressão por outro; um método de
destacamento (detachment), onde o programa trabalha de trás para a frente, de algo
que já foi provado para algo que precisa ser provado; e uma forma silogística de
raciocínio, onde se “ a implica 6” é verdadeiro, e “ b implica c” c verdadeiro, então
“implica c” é também verdadeiro.
Em um esforço adicional para sublinhar os paralelos entre a solução de problemas
pelos humanos e pela máquina, Newell e Simon realizaram vários experimentos com
seu programa Mostraram que se retirassem o registro de teoremas anteriores (com
base nos quais as soluções para novos teoremas eram construídas), o Logic Theorist
não conseguia solucionar problemas que resolvera anteriormente cm dez segundos.
Esta foi talvez a primeira tentativa de fazer um experimento com um computador
para ver se ele “responde” da mesma forma
que os seres humanos (GARDNER, 1985, p. 147).

Assim, se percebe claramente a determinação de Simon e Newell de desenvolverem


um programa que não somente fosse capaz de “pensar como um ser humano”, mas de
88

demonstrar que este tipo de funcionamento pudesse refletir a essência do pensamento


humano. Foi exatamente neste sentido que a inteligência artificial nascente se colocou como
líder das ciências cognitivas: por se apresentar como portadora de um modelo adequado da
cognição humana. Ou seja, a inteligência artificial cognitiva jamais foi “apenas” inteligência
artificial. Foi a ciência cognitiva pioneira. Isto porque, nas palavras de Gardner:

Ao criar e processar o Logic Theorist, Newell e Simon mostraram que a IA era uma
possibilidade, senão uma realidade. Enquanto todas as afirmações anteriores tinham
sido, em um certo sentido, meros acenos, duas demonstrações fundamentais haviam
agora sido feitas: (1) os computadores podiam empenhar-se em um comportamento
que, se fosse exibido por humanos, seria inequivocamente considerado inteligente;
(2) as etapas pelas quais os programas passam no decurso da prova de teoremas
apresentam uma semelhança não trivial com as etapas observadas na solução de
problemas humanos (Ibid., p. 148).

Porém, há outros indícios desta condição da inteligência artificial de primeira das


ciências cognitivas. Um deles decorre da sequência das pesquisas de Simon e Newell e
consiste no General Problem Solver (NEWELL & SIMON, 1972), que procurava reproduzir
os processos utilizados pelos “seres humanos normais” (GARDNER, 1985, p. 148) para
solucionar problemas. Mas, ainda segundo Gardner:

Embora o General Problem Solver (GPS) tenha sido por fim abandonado porque sua
generalidade não era tão grande como os seus criadores haviam desejado, (...) o
programa pode ser considerado o primeiro a simular um espectro de comportamento
simbólico humano. O GPS também teve um papel importante no julgamento de
Simon e de Newell a respeito do empreendimento no qual eles estavam
engajados. Na sua concepção, toda inteligência envolve o uso e a manipulação
de vários sistemas simbólicos, tais como aqueles existentes na matemática ou na
lógica. No passado, tal manipulação havia sido feita apenas pelo ser humano dentro
dos limites de sua própria cabeça, ou com papel e lápis; mas, com o advento do
computador digital, a manipulação de símbolos tornou-se também domínio da
maquinaria eletrônica. (Ibid., p. 149-150 – grifo em negrito meu).

Percebe-se com a narrativa sobre a construção do Logic Theorist e do General


Problem Solver que ambos os artefatos tiveram o papel de experimentação científica, e não
apenas de confecção tecnológica. Como se depreende do trecho acima, o empreendimento de
Simon e Newell era científico, e não somente técnico, uma vez que se comprometia com
hipóteses mais gerais sobre a cognição e tinha como objetivo testá-las. Sua hipótese do
sistema simbólico físico é um exemplo. Segundo Gardner, “o conceito de sistema simbólico
físico é tido por Simon e Newell (...) como a doutrina principal da área da ciência da
computação”. E, de acordo com José Luis Bermúdez,
89

Um sistema de símbolos físicos dispõe dos meios necessários e suficientes para a


ação inteligente em geral. Há duas alegações aqui. A primeiro (a afirmação de
necessidade) é que nada pode ser capaz de ação inteligente a menos que seja um
sistema de símbolos físicos. Uma vez que os humanos são capazes de ação
inteligente, isto significa, é claro, que a mente humana tem de ser um sistema de
símbolos físicos. Neste sentido, então, a hipótese de sistema de símbolos físicos
surge como uma restrição sobre qualquer possível arquitetura mental. A segundo (a
afirmação de suficiência) é que não há qualquer obstáculo, em princípio, para a
construção de uma mente artificial, desde que se aborde o problema através da
construção de um sistema de símbolos físicos. A plausibilidade e relevância do
crédito depende do que um sistema de símbolos físicos é. (BERMÚDEZ, 2010, p.
142-143).

O mesmo autor resume a hipótese do sistema simbólico físico nos seguintes quatro
pontos:

1) Os símbolos são padrões físicos.


2) Estes símbolos podem ser combinados para formar estruturas complexas de
símbolos.
3) O sistema de símbolos físicos contém processos de manipulação de estruturas
complexas de símbolos.
4) Os processos de geração e transformação de estruturas complexas de símbolos
podem eles mesmos ser representados por símbolos e estruturas de símbolos dentro
do sistema (Ibid., p. 143).

É importante esclarecer qual o sentido do adjetivo “físico”, na expressão e na imagem


proposta por Newell e Simon. Isto porque ele pode sugerir que a hipótese por eles defendida
considere que os aspectos materiais da cognição têm papel essencial. Para Gardner, “na visão
de Newell e Simon, o computador é um sistema simbólico físico como o cérebro humano e
exibe muitas propriedades iguais às do ser humano cujo comportamento ele foi agora
programado para simular” (GARDNER, 1985, p. 150). Outra passagem que pode elucidar
esta questão está num texto do próprio Newell, em que ela afirma que os sistemas simbólicos
de que trata são físicos porque “realizáveis em nosso Universo” (NEWELL, 1980, p. 1).
Contudo, a passagem que permite o esclarecimento mais preciso deste ponto é aquela em que
Newell afirma:

No mundo físico, há limites – limites para a velocidade de componentes, para a


sensibilidade e energia espaciais, para o material disponível para a memória, para a
confiabilidade da operação, para citar apenas os mais óbvios. Ou, declarando uma
tautologia: nenhum sistema pode se comportar para além do seu limites físicos.
Assim, a universalidade de qualquer sistema deve ser tomada em relação a esses
limites de implementação física (Ibid., p. 17).

Assim, podemos dizer que os sistemas simbólicos de Simon e Newell são físicos porque se
implementam nos limites próprios do universo material concreto. Mais precisamente, eles
funcionam de acordo com as limitações impostas por dispositivos como o computador ou o
cérebro – sem o que não se poderia dizer que funcionam. Mas, como se pode perceber
90

claramente, se o dispositivo material tanto pode ser o hardware de um computador como um


cérebro, o que é invariante no sistema é a estrutura de símbolos – desde que possa operar em
algum suporte material adequado. Em outras palavras, o que determina as propriedades do
sistema é sua estrutura simbólica, e não a estrutura material em que se instancia32. Uma
afirmação de Margaret Boden, sobre a atividade de Simon e Newell, ajuda a esclarecer um
ponto crucial:

Seus programas de inteligência artificial especificaram sistemas computacionais


formais do tipo definido por Turing. Como psicólogos, no entanto, eles estavam
interessados em computações que são fundamentadas no mundo e capazes de dirigir
o comportamento nele (BODEN, 2008, p. 1419).

Decorrem desta passagem duas conclusões muito importantes:


1) Que Simon e Newell procuravam desenvolver sistemas para funcionar no mundo,
gerando comportamentos concretos em máquinas e, indiretamente, em seres humanos;
ou seja, não se ocupavam de problemas meramente abstratos ou matemáticos;
2) Que ambos atuavam, assim, também como “psicólogos”; ou seja, que estavam
preocupados em explicar, com suas pesquisas em inteligência artificial, a cognição e o
comportamento humanos, no que se colocavam como verdadeiros cientistas
cognitivos, e também líderes da ciência nascente, ao definirem os traços essenciais do
modelo lógico-proposicional da cognição.
Embora tenham ocorrido alguns trabalhos importantes na esteira das pesquisas de
Simon e Newell em inteligência artificial cognitiva, como as investigações, teorias e artefatos
de Marvin Minsky no MIT, de John McCarthy, também no MIT e depois na Universidade de
Stanford, e respectivas equipes, defende-se neste trabalho que as características essenciais do
nascimento do modelo lógico-proposicional são devidamente descritas através do exame da
contribuição dos dois autores aos quais se atribui o pioneirismo e a liderança de tal
empreendimento.
Nas próximas seções serão investigadas com maior profundidade outras
particularidades do modelo, através de suas aplicações em disciplinas além da inteligência
artificial cognitiva. Contudo, deverá ficar patente em todos os casos o que na presente seção
de procurou demonstrar: que as ciências cognitivas não teriam se constituído sem a
formalização do modelo lógico-proposicional da cognição por parte da inteligência artificial,
e que mesmo esta já teve seu início comprometido com a defesa de uma determinada imagem
da cognição humana. Esta imagem corresponde à função de representação e ao processamento
32
Este ponto será analisado na seção 1.2.5.
91

de informações mediante estruturas de símbolos, que possui características sintáticas


invariantes, cuja forma e cujo conteúdo são descritíveis com precisão mediante passos
algorítmicos, lógicos e capazes de constituir proposições claras, distintas e literais.

1.2.2. O modelo lógico-proposicional na psicologia cognitiva: o caso do processamento de


informações

Esta seção explorará a ideia de que o modelo lógico-proposicional tomou a forma


principal do processamento de informações, quando empregado pela psicologia. Dito de outra
maneira: segundo a concepção defendida neste trabalho, o modelo lógico-proposicional teria
assumido diversas feições, em conformidade com as diversas disciplinas integrantes das
ciências cognitivas e, no caso da psicologia, esta feição nasceria da concepção de que a
cognição funciona processando informações. Pelo fato de que a psicologia, dentre as ciências
cognitivas, é aquela que mais se dedica à compreensão da cognição humana individual, não é
difícil se inferir que, se o processamento de informações é o modelo principal da psicologia
cognitiva, ele seria, ao menos, um dos principais modos de representar a cognição humana nas
ciências cognitivas. Mas, além disso, o processamento de informações, como será visto mais
detalhadamente adiante, é uma noção presente em quase todas as disciplinas das ciências
cognitivas, constituindo, assim, uma das mais importantes configurações do modelo lógico-
proposicional. Contudo, o processamento de informações não é uma noção originária da
psicologia. Como já foi visto anteriormente, ela nasceu ainda na inteligência artificial. Por
outro lado, notaremos que, enquanto na inteligência artificial a noção de processamento de
informações é menos uma metáfora do que parte de uma técnica de produção, nas demais
disciplinas das ciências cognitivas ela influenciou a criação de modelos particulares a partir da
analogia de que a cognição humana funciona como se fosse um artefato artificial de produção
de conhecimento, como aqueles que a inteligência artificial efetivamente constrói.
Para que se compreenda melhor o sentido da aplicação da noção de processamento de
informações à cognição humana, é preciso proceder, todavia, a um recuo. É necessário que se
defina com maior clareza em que contexto se passou a buscar compreender o funcionamento
“interior” da cognição, e a partir de que debates. Além disso, é importante explorar também
que fatos favoreceram esta compreensão.
Como é corrente nas principais obras de história das ciências cognitivas, a psicologia
cognitiva nasceu como alternativa ao behaviorismo. Contudo, é preciso, antes de prosseguir,
fazermos uma observação. Embora tenhamos visto que Gardner destaca o combate ao
92

behaviorismo presente nos movimentos iniciais das ciências cognitivas, alguns autores
assinalam que a noção de processamento de informações seria, em parte, compatível com a
noção behaviorista de estímulo-resposta. Neste sentido, o que no modelo behaviorista seria
estímulo, nos modelos de processamento de informações seria assimilável pela ideia de input,
enquanto que a mesma correlação haveria entre resposta (no behaviorismo) e output (no
modelo de processamento de informações). É o que considera, por exemplo, D. W. Hamlyn:

Em termos behavioristas, a relação entre input e output é aquela entre estímulo e


resposta. De fato, colocar a questão em termos de input e output é realmente
construir o modelo teórico behaviorista em termos de um aparato teórico bem
diferente: o de processamento de informações; mas não há prejuízo em fazê-lo, na
medida em que tenhamos consciência do que está sendo feito. (HAMLYN, 1990, p.
3)

Esta concepção é reforçada por Jerome Bruner, um dos principais formuladores da psicologia
cognitiva experimental nascente nos anos 1950: “No lugar de estímulos e respostas, inputs e
outputs” (BRUNER, 1990, p. 7). Admita-se ou não ruptura mais radical entre o modelo
behaviorista e o modelo de processamento de informações da psicologia cognitiva, a mudança
de noção norteadora ocorrida mantém a ideia de que há na cognição uma sequência temporal
irreversível ligando causas ao comportamento humano, ainda que na nova abordagem haja a
preocupação em se descrever o que acontece entre ambos – e isto será muito importante,
adiante. A descrição do que se passa entre os inputs e os outputs é o propósito da imagem
básica do processamento de informações apresentado por Barber (BARBER, 1988, p. 30), que
será comentado a seguir:

Input ou Output ou
estímulo resposta

Figura 2

Observemos agora o primeiro modelo psicológico explicitamente baseado na noção de


processamento de informações e, segundo Gardner (GARDNER, 1985, p. 92), de inspiração
na engenharia. Trata-se do trabalho de Donald Broadbent, desenvolvido juntamente com
Colin Cherry no mesmo período das pesquisas semelhantes de George Miller e Jerome Bruner
nos EUA, e que se utilizou do seguinte esquema:
93

Figura 3 – Fonte: GARDNER, 1996 [1985], p. 107, a partir do livro Perception and
communication, de D. E. Broadbent (Elmsford, N.Y.: Pergamon Press, 1958)

Tal fluxograma foi aplicado por Broadbent à percepção, e tem a forma de uma
sequência temporal – uma rota – de transformação e produção, ao longo da qual as
informações são fornecidas pelos sentidos, passam por etapas de armazenamento e por etapas
de filtragem, até que possam ser utilizadas na execução de ações.

Figura 4 -- Fonte:NORMAN, 1980, p. 3


94

Um exemplo análogo mais complexo é reproduzido na figura 4, extraído do artigo “Twelve


issues for cognitive science”, publicado em 1980 (vinte e dois anos após a publicação do
diagrama anterior) por Donald Norman (um dos redatores do relatório para a Fundação Sloan,
então membro do Center for Human Information Processing, da Universidade da Califórnia,
San Diego). Ambos os fluxogramas podem ser entendidos como descrevendo típicas
atividades recorrentes, compostas de unidades múltiplas de processamento, como em certas
modalidades de fabricação industrial, ou de fluxos de trabalhos em escritórios. Isto é, não
correspondem à noção de processamento unitário, mas à de processamento múltiplo,
composto e sequenciado – ou de um macroprocesso. É o que assinala William Bechtel:

As partes do sistema são construídas como módulos operando de maneira quase


autônoma. Um dado módulo recebe seu input de outro e envia, por seu turno, seu
output aos seguintes, mas realiza sua própria operação, a partir do input recebido,
antes de passá-la adiante. (...) Uma analogia pode ser feita com um escritório ou
uma fábrica (1988a, p. 102 – grifo meu).

A analogia que Bechtel invoca pode ser ilustrada através de um formato básico de fabricação
industrial padronizada e em massa, conforme o descrito na figura abaixo:

Figura 4 – FONTE: KOREN, 2010, p. 6


Esta ilustração, retirada do livro The global manufacturing revolution, de Yoram Koren,
apresenta dois tipos de processos de produção, nos quais as setas iniciais, à esquerda, mostram
os inputs (matérias-primas ou insumos) e as setas finas, à direita, mostram os outputs (ou
produtos finais da fabricação). O esquema de cima corresponde a um processo linear simples,
e o de baixo a um processo paralelo. É o que explica o autor:
95

Sistemas de fabricação consistem tipicamente em múltiplas etapas, e cada etapa


contém uma máquina ou uma estação de montagem para executar um determinado
conjunto de operações, [como é ilustrada na Figura 4]. As máquinas estão
interligadas mediante um sistema material de transporte. Quando as operações de
uma etapa são completadas, o produto bruto é transferido para a etapa seguinte, e
assim por diante, até que todas as operações necessárias sejam completadas e o
produto seja acabado. Quando quantidades particularmente grandes são necessárias,
várias máquinas (ou estações de montagem) podem ser instaladas em paralelo para
executar as mesmas operações ao mesmo tempo em cada máquina [Figura 4, parte
inferior], o que aumenta o rendimento do sistema, mas faz o projeto e a operação do
sistema mais complexo. A maioria dos processos de fabricação é realizada em
múltiplas etapas, incluindo os sistemas de montagem, tais como os usados para
construir automóveis, cadeiras de escritório, ou computadores pessoais a partir de
peças dadas; ou podem ser sistemas com processos químicos, tais como aqueles em
que pastilhas semicondutoras são produzidas, ou eles podem ser sistemas para os
produtos que têm que ser usinados, tais como blocos de motor, motores, bombas e
compressores. Em sistemas de processamento [metalúrgico], os produtos começam
como peças fundidas brutas que têm de ser perfuradas, fresadas, perfiladas e polidas
(KOREN, 2010, p. 6 – grifos meus).

O objetivo de ilustrar a alusão de Bechtel é de detalhar um pouco mais a analogia que ele
propõe – com processos produtivos de bens e serviços –, no sentido de identificar algumas
semelhanças de tais processos com a imagem de processamento de informações adotada nas
ciências cognitivas e aplicada aos computadores digitais e ao funcionamento da cognição
humana. Embora não seja interesse deste trabalho buscar no modelo da fabricação industrial
em massa causas históricas para a adoção do modelo de processamento de informações nas
ciências cognitivas, constatamos que este paradigma (conforme o denomina Koren no livro
citado) possui características formais bastante coincidentes com aquelas que os cientistas
cognitivos pioneiros utilizaram para explicar a cognição. Podemos destacar no modelo as
seguintes propriedades:
a) Trata-se de um processo sequencial e normalmente irreversível, no tempo, de
transformação de elementos básicos (inputs) em elementos finais (outputs);
b) Pode ser classificado como um macroprocesso, por ser constituído de etapas ou
módulos que, como destaca Bechtel, têm eles mesmos seus próprios inputs e outputs
parciais;
c) Suas etapas podem consistir em subprocessos de naturezas diferentes, como de
transformação, transporte (ou transmissão), armazenamento etc.
d) Podem ser lineares ou paralelos, conforme as necessidades e particularidades da
produção;
e) As etapas ou módulos podem ser mais ou menos autônomos, ou “encapsulados”, no
sentido de serem em maior ou menor grau isoladas ou em relação ao processo como
um todo.
96

Todas estas propriedades são identificáveis na imagem de processamento de informações, de


acordo com os exemplos de sua aplicação apresentados acima. A possibilidade de o
processamento de informações ser concebido como tendo execução paralela na cognição
humana tem sido bastante discutida nos últimos trinta anos, a partir do desenvolvimento da
noção de processamento paralelo e distribuído (PDP, na sigla da expressão em inglês),
associada à corrente conexionista das ciências cognitivas. Os debates a respeito, travados, por
exemplo, em SMOLENSKY, 1987; CLEEREMANS, 1993; CLARK & TORIBIO, 1994;
VAN GELDER, 1998 e ROGERS & MCLLELAND, 2003 e 2004, questionam sobre até que
ponto a representação da cognição como PDP pode ser pensada como um conjunto de
processos do tipo input/output operando de maneira concomitante e/ou articulada, como o da
figura seguinte:

Figura 5 – FONTE: STILLINGS et al, 1985, p. 308

Neil Stillings e seus colaboradores apresentam o fluxograma acima como representando um


processamento paralelo de informações que tem como output (ou, no caso em tela, “resposta”)
a leitura de uma palavra por um indivíduo humano. Nele, identifica-se forte semelhança com
97

o exemplo dado por Koren (figura 4) de um processamento fabril em paralelo. Mas podem
surgir problemas para a utilização do modelo de processamento de informações paralelo na
cognição quando esta é compreendida de maneira menos simples. O que alguns autores
argumentam, como Francisco Varela e Evan Thompson (VARELA et al, p. 86 e 88,
THOMPSON & VARELA, 2001), é que o modelo conexionista, ainda que parta da noção de
PDP, torna de tal modo complexo o processamento cognitivo que este perde sua suposta
característica linear (linearidade esta ainda encontrada na figura 5), e que a cognição, assim,
seria melhor explicada mediante a aplicação de modelos que adotam a linguagem matemática
dos sistemas dinâmicos não-lineares33.
Outra questão relativa à aplicação da noção tradicional de processamento produtivo à
cognição diz respeito à autonomia seus módulos. Esta é discutida por Barber, fazendo
referência ao seu “modelo básico” representado na figura 2:

Uma das características mais marcantes da abordagem de processamento de


informações, que é claramente expressa pelo nosso "modelo básico", é a hipótese da
modularidade do sistema de processamento. Estágios de processamento são
componentes ou módulos que contribuem para o funcionamento do sistema como
um todo. Seria um erro supor que a hipótese de modularidade nos compromete com
a forte visão de que os módulos são ilhas inexpugnáveis de atividade de
processamento, que respondem apenas em relação aos seus inputs e são insensíveis
às operações de processamento ao seu redor. (...) É, afinal, perfeitamente possível
descrever uma organização empresarial como um conjunto de departamentos que
tem uma forma modular, sem fazer a suposição de que as suas operações não
exercem influências mútuas. A caracterização completa da organização consistirá
em esclarecer as funções dos departamentos, bem como a natureza das influências
mútuas. É certo, todavia, que existe pelo menos uma técnica metodológica de uso
comum na psicologia, que é voltada para a forte suposição de independência dos
estágios de processamento. É particularmente útil no início de uma investigação em
que o contorno da estrutura da sequência de processamento de informação está
sendo estabelecida. Também pode servir para testar o quão longe a suposição de
independência pode ser levada. (BARBER, 1988, p. 31).

Isto é, embora a imagem do processamento de informações, quando aplicada às ciências


cognitivas, mantenha seu traço modular, admite-se que tenha suas particularidades e, segundo
o autor, não seria questão claramente respondida se o encapsulamento das etapas cognitivas
seria uma boa suposição34, embora na origem da analogia organizacional ou fabril em muitos
casos os módulos sejam isoláveis.
Mas, além de ser análogo a um processamento de transformação sobre certa matéria
para se obter certo produto, que características essenciais a noção de processamento de
informações precisou ter para ser adotada pelas psicologia cognitiva? Que requisitos teve de

33
Este tema será retomado com maior minúcia nas sessões 2.1. e 2.3.
34
Uma extensa discussão a respeito do encapsulamento dos módulos e das informações é feita por Fodor
(FODOR, 1983).
98

cumprir? Para responder a estas questões, comecemos por analisar os seguintes comentários
de Jerome Bruner a respeito da utilização da noção de processamento de informações como
modelo para a cognição:

O processamento de informações armazena mensagens e as recupera em um


endereço na memória sob instruções de uma unidade de controle central, ou os
mantém em uma memória separadora temporária, e então as manipula de maneiras
prescritas: enumera, ordena, combina, compara as informações pré-codificadas (...).
De acordo com a teoria da informação clássica, uma mensagem é informativa se
reduz escolhas alternativas. Isto implica um código de escolhas possíveis pré-
estabelecidas. As categorias de possibilidade e as instâncias que compreendem são
processadas de acordo com a “sintaxe” do sistema, e seus possíveis movimentos. (...)
Mas o processamento de informações não pode lidar com qualquer coisa a não ser
entradas bem definidas e arbitrárias, estritamente regidas por um programa de
operações elementares. Tal sistema não pode lidar com a incerteza, com a
polissemia, com conexões metafóricas ou conotativas. (...) O processamento de
informações precisa de planejamento prévio e regras precisas. (BRUNER, 1990, p.
4).

Este trecho traz algumas indicações importantes sobre que condições formais o
processamento de informações precisa cumprir a fim de que seja aplicável à cognição. As
principais delas são35:
1) O processamento de informações é uma cadeia de etapas e tarefas – ou módulos, como
já vimos – a serem realizadas tendo como matéria as informações (“mensagens”):
armazenar, recuperar, manipular, enumerar, ordenar, combinar, comparar – como já
descrito a partir das figuras 02 e 03 e discutido acima;
2) As atividades destes módulos são realizadas a partir de “instruções de uma unidade de
controle central”;
3) As informações devem ser bem definidas, não admitindo incerteza e polissemia;
4) Para garantir o que foi descrito nos itens anteriores, o processo deve ser planejado e
contar com regras precisas.
Todas as condições se referem ao que é necessário para que o fluxo possa ser
considerado um processo de transformação. Isto é, todas elas são inerentes à noção de
processamento enquanto tal – não importando, a princípio, a natureza de suas entradas e
saídas (ou inputs e outputs). Contudo, as condições 3 e 4 (esta, com respeito à necessidade de
“regras precisas”) concernem ao conteúdo do processo, ou seja, são condições aplicadas às
informações processadas. Vejamos mais precisamente, então, em que consiste o conteúdo do
processamento de informações, isto é, o que são seus inputs, seus outputs e o que exatamente
– e como – ele processa.

35
Cf. com a definição de algoritmo na seção 1.2.1.
99

Destaquemos a afirmação de Bruner de que as informações devem ser bem definidas e


que não admitem incerteza ou polissemia. Esta convicção deve ser examinada com auxílio da
teoria da informação e de seu uso pelas ciências cognitivas. É preciso retomarmos alguns
aspectos históricos.
Segundo Gardner (GARDNER, 1985, p. 18), um passo primordial para o
desenvolvimento da noção de processamento de informações aplicada à cognição foi o artigo
de Claude Shannon tem sido considerado o criador da teoria da informação, a partir,
inicialmente, de seu trabalho “A symbolic analysis of relay and switching circuits”, de 1938,
onde surgiu a ideia de correlacionar as alternativas verdadeiro/falso da lógica formal às
posições de ligado/desligado de circuitos eletrônicos – e já abordado na seção 1.2.2. Como já
foi visto, nesta formulação, que é o princípio fundador da computação digital, está a origem
do conceito de binary digit, ou “bit”, como a medida unitária de informação – que
corresponde à posição alternativa ligado/desligado em circuitos. Este conceito permite, entre
outras aplicações, inaugurar a noção de processamento de informações, ao criar condições
para se medirem as quantidades de informações a serem processadas: transmitidas,
armazenadas, computadas. Tal foi a ideia foi desenvolvida por Shannon (1948), na forma de
uma teoria matemática da comunicação. Nela surge a importante noção de que a grandeza
informação é inversamente proporcional à de incerteza de um estado ou evento, o que permite
atender a uma das condições da aplicação do processamento de informações nas ciências
cognitivas, como assinalou Bruner: de que no processamento de informações as informações
devem ser bem definidas. O que Shannon afirma no artigo de 1948 é que quanto mais
improvável um estado (que ele chama também de “mensagem”, no sentido formal da
informação), mais informativo é. Sendo assim, um dos fatores que estimularia o uso da noção
de processamento de informações nas ciências cognitivas seria precisamente a possibilidade
de se medir a incerteza de sinais e, assim, se pretender estudar crenças, comportamentos e
outros objetos destas ciências com a máxima redução de incerteza formal. Mas em que
sentido a informação que se pode correlacionar a graus de incerteza é tão somente formal? O
que significa dizer que a própria incerteza está no nível formal? Scarantino e Piccinini
(PICCININI & SCARANTINO, 2010, p. 240) utilizam as noções de informação não
semântica e de informação semântica para delimitar que tipo de informação é – no caso, a
informação não semântica –, ao mesmo tempo, formal e passível de medição. Para eles,
“informação” no sentido utilizado por Shannon é informação não semântica, sem significado
– ou seja, é forma sem conteúdo, ou ainda, para usar as palavras de Shannon, “mensagem cujo
100

significado é irrelevante” (SHANNON, 1948, p. 379). Há outras formas de enfrentar este


problema, como a proposta pelo filósofo e cientista de inteligência artificial Aaron Sloman:

Às vezes é útilcontrastarinformação sintáticacominformação semântica, onde a


primeira diz respeito à forma ou estruturade algoque transmite informações,
enquanto que a informação semânticaseria sobre oconteúdo do queé dito
(SLOMAN, 2011, p. 5).

Isto deveria ajudar a resolver a questão que nasce da polissemia – e equivocidade – da própria
palavra “informação”, cujo uso por parte de Shannon, ironicamente, pretendia ajudar a reduzir
a equivocidade de todas as demais palavras, e sinais. É o que já apontava Sloman antes de
propor a solução acima assinalada:

O usoda palavra "informação" na teoria matemática [da informação] provou serto


talmente enganoso.Tal uso não concerne ao significado, ao conteúdo, ao sentido,
àconotação ou à denotação,mas àprobabilidade eredundância desinais (SLOMAN,
1978, p. 5).

Ora, se a partir da acepção de Shannon, a palavra “informação” é potencialmente polissêmica


e, por isso, potencialmente enganosa – inclusive para as ciências cognitivas –, seu uso com o
propósito de reduzir incertezas, tal como propugnado por este autor, se torna fragilizado. Por
exemplo, quando se fala em “processamento de informações” nas ciências cognitivas, que
sentido de “informação” se quer utilizar? Pelo que acabamos de ver, segundo as propostas de
Piccinini/Scarantino e de Sloman, a palavra “informação” deveria aparecer sempre adjetivada,
para que fosse eliminada a incerteza quanto ao seu uso? Porém, isto já não aconteceu na
literatura anterior às obras destes autores – o que manterá inexoravelmente a potencial
ambiguidade da palavra “informação” enquanto esta literatura for utilizada –, e ainda
precisaria haver um improvável compromisso a ser amplamente respeitado no futuro pelos
cientistas cognitivos de não mais utilizarem a palavra “informação” não adjetivada. Isto sem
considerar um agravante: se a palavra “informação” devesse ser sempre adotada adjetivada
em ciências cognitivas, qual significado seria atribuído ao substantivo puro? Mas as
dificuldades não cessam aí. Para tornar a questão ainda mais complexa, como aponta Luciano
Floridi, “não há ainda consenso sobre a definição de informação semântica” (FLORIDI, 2005,
p. 351). Isto levaria a um segundo campo de problemas que, como será mostrado à frente, não
parece afetar de modo sensível as atividades das ciências cognitivas, já que se pode lançar
mão de níveis de análise.
Por outro lado, quanto ao uso do substantivo “informação” em si, podemos nos
perguntar se alternativas mais simples do que a adjetivação já foram criadas, sobretudo em
razão de necessidades técnicas práticas. Um exemplo de possível resposta positiva a esta
101

indagação seria o fato de que há muito que correntemente se fala, na linguagem técnica, em
“processamento de dados”, aparentemente no lugar de “processamento de informações”
(embora a expressão “processamento de dados”, como ramo de atividades técnicas na
sociedade, esteja sendo amplamente substituída no uso comum por “tecnologia da
informação” – o que não esclarece, contudo, a diferença entre os termos). Mas esta utilização
iria além de um ambiente técnico? Seria já predominante ao menos no campo teórico da
inteligência artificial? Seria de se esperar que fosse adotada também pelas ciências cognitivas,
como a psicologia ou a neurociência? Este é mais um conjunto de questões cujo exame
exaustivo escapa às possibilidades deste trabalho. Porém, cabem aqui algumas considerações
a respeito. Aparentemente, tem sido corrente nos trabalhos teóricos e nos usos técnicos da
inteligência artificial o emprego de “dados” no sentido de “informação sintática” e de
“informação” no sentido de “informação semântica” – para usar as expressões adjetivadas
propostas recentemente por Sloman (2011). O próprio Floridi o faria propositalmente (1999,
2004, 2005), consciente da necessidade desta diferenciação para a atividade prática de “gestão
de dados”:

A estrutura conceitual fornecida pela tecnologia de banco de dados pode nos


ajudar a esclarecer o significado de "dados", "informação" e "conhecimento"
(DIC), ao esboçarmos um modelo “erotético” (lógica “erotética” é a lógica de
perguntas e respostas). O dado é algo que faz a diferença: uma luz no escuro, um
ponto preto em uma página branca, um 1 em vez de um 0, um som no silêncio.
Como tal, é um átomo de semântica: não pode haver menor extensão de significado,
porque um “não-dado” é um “dado-nada”, em que mesmo a presença de “nada” é
significante (...). Do ponto de vista do nosso modelo “erotético”, um dado pode
então ser definido como uma resposta sem uma pergunta: 12 é um sinal que faz a
diferença, mas ainda não informativo; por isso pode ser o número dos signos
astrológicos, o tamanho de um sapato, ou o nome de uma linha de ônibus em
Londres – não sabemos ainda o quê. Computadores certamente tratam e "entendem"
dados; é controverso se existe qualquer sentido razoável para que se possa
considerar que eles compreendam informações (FLORIDI, 1999, p. 106 – grifos
meus).

Tal seria um exemplo claro de influência da tecnologia para a teoria da inteligência artificial –
e, por extensão, das ciências cognitivas. Viria ao mesmo tempo da prática de gestão de bancos
de dados em computadores (de uso sobretudo coletivo), como salienta Floridi, mas também da
utilização de bancos de dados na área de administração chamada “gestão do conhecimento”,
calcada numa hierarquia conceitual em cuja base está o dado e em cujo topo está o
conhecimento, este entendido como o conjunto de crenças necessárias para fundamentar
decisões (ações) de gestores organizacionais. Segundo esta concepção, o conhecimento é
produto do processamento (ou da combinação) de informações que possuam conteúdo
semântico que, por seu turno, têm como estrutura formal os dados. Um exemplo de
102

conhecimento seria: “A inflação foi de 7% em 2011 no Brasil”. Nesta sentença, “informação”


no sentido de Floridi corresponderia ao significado de cada palavra ou símbolo (“inflação”,
“7”, “%”, “Brasil” etc.) e “dado” à forma de cada um dos sinais utilizados, tanto no aspecto
gráfico como em sua estrutura digital porventura presente em um computador – seja na
memória, na transmissão ou na unidade de processamento (computação) em si. Esta
abordagem teria a suposta vantagem de conceituar “informação” em função de seu uso prático
(voltado, em última instância, para a ação), o que tornaria mais claro o porquê das diferenças
de sentido do vocábulo, e delimitaria seus significados possíveis, contribuindo assim para
reduzir, ou mesmo eliminar – ainda que num certo contexto –, a polissemia de “informação”
destacada por alguns autores. Outro aspecto a ser investigado na mencionada hierarquia seria
em que medida o dado, como “átomo de semântica”, já possui um significado mesmo quando
entendido como “puro” símbolo, sem que lhe seja atribuído um conteúdo específico, como
sugere Floridi.
Mas ainda não podemos afirmar muito a partir da correspondência aqui sugerida.
Restaria sabermos com certeza se Floridi concordaria em substituir pela palavra “dado” a
palavra “informação” no sentido de Shannon e por “informação” a expressão “informação
semântica”, aqui empregada anteriormente. Mas, coerentemente com uma advertência feita
logo acima, explorar esta questão seria excessivo para este trabalho; tampouco nos cabe aqui
discutir se as ciências cognitivas já estariam dispostas a aceitar este suposto novo conjunto de
definições. O que está no âmbito deste trabalho é tão somente levantar algumas questões,
propostas aqui como relevantes, a partir do uso mais comum da noção de processamento de
informações nas ciências cognitivas, em geral, e na psicologia cognitiva, em particular. É
ainda possível delinear com alguma clareza tais questões, ainda que sem resolver o problema
potencial da equivocidade da palavra “informação”. Afinal, o próprio Shannon advertiu sobre
este problema:

À palavra informação foram dados significados diferentes por vários autores no


campo geral da teoria da informação. É provável que pelo menos uma parte destes
significados seja suficientemente útil em certas aplicações para merecer estudo
adicional e reconhecimento permanente, [mas] é difícil esperar que um conceito
único de informação explique satisfatoriamente as inúmeras aplicações possíveis [da
palavra informação] neste campo geral. (SHANNON, ‘‘The lattice theory of
information,”, 1950, citado por FLORIDI, 2004).
103

1.2.3. Características gerais do modelo lógico-proposicional e sua aplicação às demais


disciplinas das ciências cognitivas

1.2.3.1. A linguística gerativa

Na presente seção serão enfocados alguns desenvolvimentos disciplinares do modelo


lógico-proposicional da cognição que reforçaram sua consolidação, definindo com maior
clareza a orientação cognitivista – mais especificamente na linguística e na neurociência.
Inicialmente, levar-se-á em consideração a concepção do modelo lógico-
proposicional na linguística, o que é especialmente importante na presente pesquisa por três
razões principais: a) Porque a primeira linguística cognitiva, ou linguística gerativa, teve forte
influência nas ciências cognitivas, na disseminação social do modelo lógico-proposicional da
cognição – devido a variadas aplicações –, além de fazê-lo com uma proposta bastante
peculiar de autonomia disciplinar; b) Porque a dimensão da linguagem e da natureza dos
conceitos é uma das mais importantes na formação de uma imagem do pensamento humano
dominante no início das ciências cognitivas, sendo a cognição tratada pela linguística gerativa
sobretudo em sua dimensão sintática, aspecto fundamental na naturalização do modelo
lógico-proposicional; e c) Porque esta imagem foi um dos principais alvos de objeções da
cognição corpórea, especialmente por parte da abordagem corpóreo-conceitual, que contesta a
natureza essencialmente sintática, formal e abstrata dos conceitos, da linguagem e da
cognição em geral.
E, justamente, o exame do papel da linguística nas ciências cognitivas deve começar
pela seguinte indagação um tanto contrafactual de Margaret Boden:

A linguística teórica tem sido extremamente importante na história das ciências


cognitivas como um todo. Mas poderia não ter sido. Afinal, por que os psicólogos,
ou filósofos, ou antropólogos, ou neurofisiologistas, ou cientistas da computação
deveriam estar interessados em linguística? Se acontecesse de eles estarem
concentrados na linguagem, então talvez a linguística fosse relevante. Se não, por
que eles deveriam se preocupar com ela? (BODEN, 2008, p. 590).

Boden prossegue afirmando que a linguística se tornou especialmente importante para


as demais disciplinas das ciências cognitivas precisamente no período do nascimento deste
campo multidisciplinar. Isto é, ela teria tido um papel fundamental na constituição das
ciências cognitivas.
Este ponto deve ajudar a compreensão de como tem sido a multidisciplinaridade das
ciências cognitivas. Como já vem sendo defendido neste trabalho, esta multidisciplinaridade
104

não tem seguido um padrão único, como por exemplo o da colaboração interdisciplinar, tal
como planejado na Iniciativa Sloan. Ademais, aqui se advoga, como já foi reiteradamente
afirmado, que a coesão das ciências cognitivas ocorreu com base no compartilhamento de um
modelo geral da cognição, de tal modo que cada disciplina, na orientação cognitivista, atuou
com certa autonomia, mas mantendo ainda assim compromissos epistemológicos e
paradigmáticos com as demais. Além disso, ainda, tem sido argumentado aqui a favor da ideia
de que a inteligência artificial exerceu liderança na constituição das ciências cognitivas.
Porém, Boden está sugerindo um outro aspecto da interconexão disciplinar nas ciências
cognitivas: o papel de influência que a linguística teve sobre as demais disciplinas. Na
verdade, este aspecto não deve ser considerado isoladamente. Em vez disso, ele deve indicar
que cada uma das disciplinas das ciências cognitivas influenciou as demais – e o conjunto
delas –, em maior ou menor grau. Como vimos na seção 1.2.2, a psicologia cognitiva foi a
responsável por fixar a noção da cognição como geração de comportamento mediante a
operação de um processo produtivo determinista, e isto contribuiu para que outras disciplinas
adotassem o mesmo pressuposto. Nesta seção exploraremos, pois, qual foi a contribuição
singular que a linguística proporcionou às ciências cognitivas. Veremos também como e por
que se justifica examinar as teses de David Marr na mesma seção.
E Boden já nos adianta o principal quanto a ambos os aspectos:

Descobriu-se (...) que a linguística teórica – especificamente o estudo da sintaxe –


alimentou a chama acesa por outras disciplinas. (...) No início da década de 1960
ninguém envolvido nas ciências cognitivas, ou na filosofia da mente, pode ignorá-la.
O motivo, em apenas duas palavras: Noam Chomsky (1928). A linguística tornou-se
computacional com Chomsky. Ele tentou formular uma definição matemática da
linguagem como tal: uma explicação “computacional”, no sentido abstrato mais
tarde enfatizado por David Marr. Sua obra, incluindo um papel pioneiro sobre
linguagens de computador, encorajou outros a perseverar, ou a embarcar, na
modelagem computacional da linguagem. Mas ele próprio não se juntou àqueles. Ele
era muito cético sobre o que é normalmente chamado de linguística computacional,
ou processamento de linguagem natural (PNL). (...)
As primeiras publicações de Chomsky – até meados dos anos 1960s – tiveram um
enorme e duradouro efeito sobre as ciências cognitivas em geral. Isso não precisava
ter acontecido, mesmo que sua linguística fosse, como um discípulo, [Fodor], disse
mais tarde, “a prova de vida da possibilidade das ciências cognitivas''. Mas Chomsky
generalizou suas alegações filosóficas e metodológicas. Ele chegou a definir a
linguística como “parte da psicologia”', com foco em “um domínio cognitivo
específico e uma faculdade da mente”. (...) Com efeito, ele viu sua linguística como
uma teoria da mente. (...) Ele reviveu a doutrina então extremamente fora de moda
do nativismo. Esta é a visão de que a mente/cérebro do bebê recém-nascido já está
equipada com o conhecimento da linguagem, ou disposições no sentido dela. (...) A
influência de Chomsky sobre as ciências cognitivas foi benéfica em muitos aspectos.
Em particular, ele aprofundou o questionamento nascente ao behaviorismo, e
encorajou teorias “mentalistas” formuladas em termos de regras e/ou representações
internas (Ibid., p. 590-591).
105

Partindo de outra afirmação – “Como a psicologia, a linguística teve que passar por
uma transformação, a fim de dar sua contribuição para as ciências cognitivas. A figura central
nessa transformação foi Noam Chomsky” (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 33) – é preciso
então caracterizar que transformação teria a linguística sofrido para integrar as ciências
cognitivas, graças à intervenção de Chomsky.
Segundo os mesmos autores, e Gardner (GARDNER, 1985, p. 196-207) mudando
uma tradição em que a linguística, até então, era um estudo meramente histórico, europeus,
como Ferndinand de Sausssurre, e radicados nos EUA como Franz Boas, Edward Sapir,
Roman Jakobson e Leonard Bloomfield, adotaram, ao longo da primeira metade do século 20,
uma pesquisa estrutural e experimental das línguas, que implicava uma análise fonológica e
morfológica. Já na década de 1950 foram iniciados estudos linguísticos com ajuda de
computadores, que contribuíram para uma intensificação de investigações sintáticas, como as
realizadas pelo professor de Chomsky, Zelig Harris. De acordo com Bechtel e Graham,

Uma das principais influências de Chomsky da linguística bloomfieldiana foi ele


entender a gramática como um sistema gerativo – um conjunto de regras que geraria
todos e apenas os membros do conjunto infinito de frases gramaticalmente bem
formadas de uma língua. Chomsky assumiu a questão de que tipo de sistema
computacional (autômato) era necessário para realizar uma gramática gerativa de
linguagem natural (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 36).

Assim, Chomsky foi à busca do que poderíamos chamar de estruturas mais essenciais
de toda linguagem, como afirma Gardner (GARDNER, 1985, p. 182-196). Seu propósito,
expresso em seu livro de 1957, Syntactic structures, foi identificar as propriedades das
sentenças, como fatos objetivos. Contudo, seu intuito foi mais radical ainda: determinar as
regras da língua. Segundo, Gardner:
106

Chomsky alertou para as diferenças entre sentenças aparentemente semelhantes e


ofereceu às mesmas uma explicação convincente: John is easy to please [John é fácil
de agradar] (onde John é quem recebe o agrado) versus John is eager lo please [John
é ávido de agradar] (onde John é quem agrada). Ted persuaded John to learn [Ted
convenceu John a estudar] (onde John é quem deve estudar) versus Ted promised
Johnto learn [Ted prometeu a John estudar] (onde Ted é quem estuda), Chomsky
forneceu um grande número de sentenças onde o significado pode ser preservado
apesar de mudanças dos termos principais (The cat chased lhe mouse versus The
mouse iras chased by the cat) [O gato caçou o rato versus O rato foi caçado pelo
gato] cm oposição àqueles pares de sentenças onde simplesmente não se pode
reverter as orações (Many men read few books versus Few books are read by many
men) [Muitos homens lêem poucos livros versus Poucos livros são lidos por muitos
homens], Ele indicou e sugeriu mecanismos subjacentes à habilidade humana para
detectar e resolver as ambiguidades em sentenças como Flying planes can be
dangerous [Pilotar aviões pode ser perigoso ou Aviões voando podem ser
perigosos], The shooting of the hunters disturbed me [Os tiros dos caçadores me
perturbaram ou A morte a tiro dos caçadores me perturbou] I didn’t shoot John
because I like him [Eu não atirei em John porque gosto dele], E ele assinalou para
estudo sentenças que parecem aceitáveis: John seerned toeach of the men to like the
other [Parecia a cada um dos homens que John gostava do outro], em oposição
àquelas sentenças superficialmente semelhantes que violam algumas supostas regras
da língua: John seems to the men to like each other [Parece aos homens que John
gosta um do outro] (GARDNER, 1985, p. 183).

A questão, para Gardner, é que o objetivo de Chomsky de identificar tais regras


implicava também considerar que elas fossem utilizadas pelos indivíduos para gerar as
sentenças, e que eles lançam mão delas porque estão ao seu alcance de alguma maneira. Tal
objetivo mais completo quanto ao estudo das regras linguísticas envolvia, em Chomsky, um
propósito de estudo comportamental, “psicológico” ou, mais propriamente, cognitivo. Além
disso, estudar as regras linguísticas significava estudar a sintaxe, isto é, estudar aquilo que
Chomsky considerava serem as regularidades formais próprias da língua, numa abordagem
sistêmica. Nas palavras de Gardner:

Em vez de simplesmente observar os dados da língua, e tentar discernir


regularidades de expressões empiricamente observadas, como seus predecessores
haviam feito tipicamente, Chomsky insistia que os princípios nunca emergiriam de
um estudo das expressões em si. Ao contrário, era necessário trabalhar
dedutivamente. Deve-se tentar entender que tipo de sistema é a linguagem, assim
como se procura entender como é um ramo particular da matemática; e devem-se
expor as conclusões em termos de um sistema formal. Tal análise deveria levar à
postulação de regras que possam explicar a produção de qualquer sentença
gramatical concebível (e há, é claro, um número infinito de tais sentenças), mas ao
mesmo tempo as regras não deveriam “gerar” nenhuma sentença incorreta ou
agramatical. Uma vez que o sistema tenha sido estabelecido, dever-se-ia então
examinar expressões particulares para determinar se podem, de fato, ser
adequadamente geradas através da adesão às regras do sistema linguístico (Ibid., p.
184).

Para Gardner, Chomsky adotou dois pressupostos simplificadores em seu programa:


107

1) O estudo da sintaxe (ou gramática) linguística pode ser feito com autonomia em
relação a outros aspectos da língua (como a semântica e a pragmática) (CHOMSKY,
2002 [1957], p. 14-17);
2) A linguística pode operar com autonomia em relação às demais disciplinas das
ciências cognitivas.
Tais propostas de autonomia têm implicações importantes para a presente
investigação. A primeira é no sentido de que revela uma crença de Chomsky na suficiência da
sintaxe para explicar o que ele considerava essencial, no sentido cognitivo, na linguagem. A
segunda – que decorre da primeira – é que a linguística poderia se integrar às ciências
cognitivas sem cuidar de outros aspectos da cognição que não o linguístico. Isto corrobora a
ideia aqui defendida de que, dado que uma disciplina das ciências cognitivas se comprometa
com determinada imagem compartilhada da cognição, pode perfeitamente atuar com
autonomia e, ainda assim, ser parte constituinte legítima deste campo científico. E estudar a
linguagem privilegiando sua dimensão sintática, como Chomsky, corresponde justamente a se
adotar o modelo lógico-proposicional na linguística. Mas a defesa desta suposição ainda exige
alguma argumentação. Sobretudo para deixar mais claro que sentido tem a valorização da
sintaxe nas ciências cognitivas, por meio da breve investigação aqui realizada sobre a
linguística gerativa.
Como primeiro passo de seu empreendimento, Chomsky – segundo Gardner – teria
tido necessidade de demonstrar as limitações dos métodos até então utilizados para estudar a
sintaxe. Mais que isso, seu intuito era expor que tais métodos – o de estados finitos e o
estruturalista – não eram capazes de explicar as sentenças aceitáveis a partir de regras. Sua
proposta alternativa teve então as seguintes características.
Por influência de Zelig Harris, Chomsky adotou a análise gramatical
transformacional, sustentada na ideia de que regras governam as transformações entre as
representações abstratas de sentenças. A linguística gerativa opera mediante um sistema de
regras formais matemáticas utilizadas para gerar as sentenças gramaticais, no qual as
transformações são procedimentos algorítmicos. De acordo com Gardner, o sistema funciona
da seguinte forma:
108

Partindo de regras estruturalistas, geram-se apenas os âmagos das sentenças, ou


sentenças-núcleo, que são asserções declarativas ativas curtas. Estas são geradas
seguindo-se um conjunto de instruções para construir sequências: por exemplo, (1)
Sentença = Frase Nominal (Noun Phrase)+ Frase Verbal (Verb Phrase); (2) Frase
Nominal = A + N; (3) A - o, a, os, as (the); (4) N = homem, bola; (5) Frase Verbal -
Verbo + Frase Nominal; (6) Verbo= bater, pegar; e assim por diante, Partindo de um
único símbolo S, pode-se gerar, através de um conjunto de regras completamente
especificável, uma sentença-núcleo como “O homem pegou a bola”. A partir daí,
todas as outras sentenças gramaticais da língua podem ser geradas através da
transformação destas sentenças-núcleo (GARDNER, 1985, p. 187).

A adoção da linguística gerativa, ademais, exige que se acredite na existência


separada de um nível transformacional. Essa crença está relacionada com outra: de que a
linguagem possui um nível primário, sintático, que é básico em relação a outros como o
semântico e o fonético. A sintaxe seria, para Chomsky, uma estrutura profunda da linguagem
que pode ser manipulada sem que se leve em consideração os significados atribuídos às
palavras. Isto, para Gardner, revela um sentido “platônico” da concepção de Chomsky (Ibid.,
p. 191).
Para Chomsky, este nível primário sintático é essencial para promover a seleção entre
o que é gramatical ou agramatical:
Uma linguagem [é] um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma delas
finita em comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos.
Todas as línguas naturais em sua forma escrita ou falada são línguas nesse sentido,
uma vez que cada linguagem natural tem um número finito de fonemas (ou letras em
seu alfabeto) e cada sentença é representável como uma sequência finita desses
fonemas (ou letras), embora haja um número infinito de sentenças. Da mesma
forma, o conjunto de "sentenças" de algum sistema formal de matemática pode ser
considerado uma língua. O objetivo fundamental da análise linguística de uma
linguagem L é a de separar as sequências gramaticais, que são as sentenças de L, das
sequências não gramaticais, que não são sentenças de L, e estudar a estrutura das
sequências gramaticais. A gramática de L será, assim, um dispositivo que gera todas
as sequências gramaticais de L e nenhum das agramaticais. Uma maneira de testar a
adequação de uma gramática proposta para L é determinar se as sequências que gera
são realmente gramaticais, i. e., aceitáveis para um falante nativo, etc. (CHOMSKY,
2002 [1957], p. 13 – grifo meu).

O “dispositivo”, grifado acima, seria portanto um processo de julgamento de eficácia


cognitiva. Isto porque uma sentença agramatical não permite cognição, no sentido de
Chomsky. Este dispositivo de julgamento é considerado “computacional”, por Boden, no
mesmo sentido de máquina matemática pura que possui a Máquina de Turing (BODEN, 2008,
p. 629). E tal noção de “dispositivo” será usada por Chomsky para fundamentar outra
formulação fundamental de sua teoria linguística, importante para sua contribuição ao
cognitivismo: a do nativismo das regras gramaticais. Ainda segundo Boden,
109

Nem mesmo Chomsky, é claro, sugeriu que os bebês nascem sabendo francês, ou
talvez inglês (...). Mas os seus conhecimentos de gramática universal, disse ele,
agem como um quadro que os guia para atender a determinados recursos e
distinções, na língua falada em torno deles. Na sintaxe como em fonética, o valor
específico dessas características distintivas varia entre línguas naturais: daí a sua
diversidade aparente. Deste ponto de vista, a criança é, na verdade, como um
cientista. Em vez de recolher dados por pura indução (o que é impossível), o
cientista formula teorias e hipóteses que sugerem o que procurar e onde procurar.
Isto, essencialmente, é o que o bebê tem que fazer ao aprender a sua língua materna.
A visão do falante/ouvinte como um testador de hipóteses vinha sendo sempre
implicada com o trabalho de Chomsky, mas bastante independentemente do
nativismo. Ela estava implícita em Syntactic structures, em sua alegação de que o
falante/ouvinte deve atribuir uma estrutura gramatical de muitos níveis, não
observável, às declarações, a fim de entendê-las (...).O que o nativismo de Chomsky
acrescentou (em 1965) à ideia amplamente atual do teste de hipóteses foi a alegação
de que os bebês (...) podem produzir suas hipóteses linguísticas com base em um
poderoso esquema teórico – um “dispositivo de aquisição de linguagem” –já
presente em suas mentes (Ibid., p. 647).

Assim, o nativismo de Chomsky se apoia na noção de que um dispositivo inato de


aquisição de linguagem está disponível no aparelho cognitivo humano, independentemente de
experiências particulares e de organismos individuais. Isto reforça a crença cognitivista na
existência transcendente de um nível abstrato, sintático e computacional na cognição humana.
É tal dispositivo algorítmico que, no presente trabalho, se considera a forma do
modelo lógico-proposicional na linguística gerativa. Não caberá aqui discorrer sobre a riqueza
e a complexidade deste modelo na linguística de Chomsky. O que se impõe à presente
exposição é ressaltar os aspectos da contribuição da linguística gerativa ao cognitivismo,
ainda que sem aprofundar uma análise a respeito das conexões desta disciplina com as demais
das ciências cognitivas em sua feição tradicional. Destacar esses aspectos é necessário para
que se possa compreender a crítica feita pela cognição corpórea, especialmente pela
abordagem corpóreo-conceitual. Assim, resumem-se os principais traços do aporte teórico da
linguística gerativa às ciências cognitivas nas seguintes suposições nela identificadas:
1) A estrutura básica de toda linguagem é sintática e pode ser suficientemente
expressa, e de maneira precisa, por um esquema algorítmico, formal,
computacional, matematizado;
2) Tal estrutura consiste em um dispositivo de aquisição de linguagens que está
presente de maneira inata em todos os falantes/ouvintes das línguas;
3) Daí decorre que as essências da linguagem e da cognição correspondem, grosso
modo, a um dispositivo computacional, capaz de viabilizá-las e de permitir medir
sua eficácia;
110

4) Assim, é desta forma que a linguagem é compreendida como uma estrutura


transcendente, autônoma, anterior às experiências e independente dos corpos
individuais.
Outros aspectos da importância da linguística gerativa para a dinâmica das ciências
cognitivas serão examinados quando da crítica que lhe tem sido endereçada pela cognição
corpórea. A seguir, será discutida em linhas gerais a contribuição de Marr ao cognitivismo, a
partir da questão da percepção visual. Esta abordagem permite compreender em boa parte a
presença do modelo lógico-proposicional na neurociência.

1.2.3.2. Marr e os três níveis cognitivos

David Marr (1940-1980) foi um neurofisiologista britânico que se tornou um


pesquisador da inteligência artificial, e apresentou, já no MIT, uma teoria computacional da
cognição que sintetiza muito das contribuições das diversas disciplinas das ciências cognitivas
até agora examinadas neste trabalho.
Num curto mas profícuo período de pesquisa, produziu o livro Vision (postumamente
publicado em 1982), no qual apresentou suas conclusões principais – que também se
encontram em grande parte no artigo, escrito com Tomaso Poggio, "From understanding
computation to understanding neural circuitry" (1976). Segundo Gardner, nesta trajetória
encurtada pela morte por leucemia, Marr

Estabeleceu um programa de como abordar apercepção visual em particular e de


como estudar os sistemas de conhecimento em geral. A crença de que a visão é a
construção de descrições simbólicas eficientes das imagens encontradas no mundo
era fundamental para a sua perspectiva. Como de certa vez o expressou, as imagens
do mundo devem produzir uma descrição que seja útil para o observador e não
abarrotada de informações irrelevantes. Ao optar por uma descrição simbólica, Marr
rompeu definitivamente com aqueles pesquisadores que acreditavam na “percepção
direta”36 e entrou no campo da ciência cognitiva (GARDNER, 1985, p. 298).

Marr propôs, para explicar a cognição – a partir da percepção –, a existência de três


níveis de análise do sistema cognitivo: a) computacional; b) algorítmico ou representacional;
e c) de implementação física.
O nível computacional corresponde a se compreender o processo cognitivo a partir de
qual é sua tarefa, ou objetivo, de processamento de informações – ou daquilo que exigirá no
nível seguinte, um algoritmo Por exemplo, no caso do processamento visual, a etapa
computacional corresponde à necessidade de o cérebro identificar e interpretar uma imagem

36
Suas objeções se dirigiam sobretudo às teorias de J. J. Gibson (GIBSON, 1979; CHEMERO, 2009).
111

no mundo; numa calculadora, corresponde à operação que ela deverá realizar (adição,
subtração, etc.). O nível algorítmico identifica o conjunto de instruções formais de
manipulação de símbolos que permitem a realização da tarefa, ou da transformação. Na visão,
corresponderia ao mecanismo que estrutura, nos órgãos da visão e no cérebro, o
processamento da imagem como informação; na calculadora, seria o nível em que se
descrevem os passos necessários para que a operação se realize. O nível de implementação
explica como se dá a realização do algoritmo no sistema físico. No processo da visão, ou na
calculadora, o terceiro nível é aquele em que o algoritmo é instalado nos respectivos suportes
materiais. O importante nesta implementação é que ela é suposta como sendo possível em
aparatos diferentes, a partir do mesmo algoritmo, o que revela a adesão de Marr às teses do
funcionalismo e da realizabilidade múltipla.
No caso da teoria de Marr, podemos dizer que o modelo lógico-proposicional se
decompõe nos dois primeiros níveis. Tanto no nível computacional quanto no algorítmico
encontramos a estrutura formal com que o cognitivismo buscou explicar a cognição humana
como independente dos corpos individuais, e de acordo com um processamento simbólico e
abstrato de informações desencarnado. Assim Gardner contribui para reforçar esta
constatação, referindo-se às teorias neurocientíficas de Marr: “Para entender como os
neurônios do sistema visual realmente executam suas tarefas, deve-se recorrer a princípios
matemáticos envolvidos na interpretação de imagens” (Ibid., 1985, p. 300).
Mas qual seria o modo com que Marr interagiu com as demais ciências cognitivas, ou
como as influenciou? Qual teria sido sua contribuição à fixação do modelo lógico-
proposicional no campo da neurociência? Ou, ainda, como a fixação deste modelo em sua
disciplina contribuiu para as ciências cognitivas como um todo?
A seguinte passagem de Gardner pode elucidar essas questões, ao aproximá-lo de
Chomsky:

Assim como Chomsky queria examinar a sintaxe em sua forma primitiva (não
contaminada pela semântica ou pela pragmática), Marr queria isolar ao máximo sua
análise do processamento visual da interferência do conhecimento do “mundo real”.
Mas Marr também buscava coerência com oque se sabe a respeito do funcionamento
do cérebro. Em cada nível de processamento examinava as evidências relevantes
sobre o funcionamento cerebral: modificava continuamente os algoritmos na
esperança de torná-los coerentes com as evidências psicofísicas e neurofisiológicas –
seja no nível das células individuais seja no dos lobos corticais. Assim, com um olho
no cérebro e o outro na implementação de algoritmos em um computador, Marr era a
personificação da ciência cognitiva interdisciplinar (Ibid., p. 306).

Esta talvez seja a característica mais importante da aplicação do modelo lógico-


proposicional da cognição à neurociência. Como já foi comentado anteriormente, a respeito
112

do artigo de McCulloch e Pitts de 1943 – que, como podemos agora verificar, foi um pioneiro
até mesmo das formulações de Marr –, quando se trata de conceber um nível de
funcionamento computacional da cognição aplicado ao cérebro, é preciso se levar em
consideração como se realiza este funcionamento. Em outras palavras, no caso do modelo
lógico-proposicional empregado na neurociência, se exige desta disciplina também explicar
como o modelo, de algum modo, se encarna no cérebro humano. Na inteligência artificial
também ocorre esta necessidade, mas então se apresenta uma diferença crucial: os programas
de computador, assim como as máquinas físicas de computar, são obras de engenharia, são
construídos pelo ser humano. Deste modo, os programas podem ser construídos para se
adaptarem aos computadores, e vice-versa. Contudo, quando se emprega a hipótese
computacional da cognição ao cérebro humano, não há a possibilidade de se construírem nem
o “software” nem o “hardware”. Assim, se exige do cientista cognitivo que explique como a
imagem lógico-proposicional da cognição humana pode ser compreendida como operando em
uma estrutura física natural que não foi por ele projetada nem produzida, e cujas leis de
funcionamento ele não domina. Por este motivo, se requer neste caso uma atuação
interdisciplinar efetivamente colaborativa, em que os especialistas em neurofisiologia e
neurobiologia auxiliem na formulação de hipóteses por parte do cientista cognitivo que
advoga o modelo lógico-proposicional.
Contudo, não devemos nos esquecer de que a preocupação com as limitações
estabelecidas pela dimensão física ao modelo lógico-proposicional já haviam sido salientadas
por Newell, quando da sua defesa da hipótese do sistema simbólico físico. Consideremos a
seguinte afirmação de Bechtel e Graham:

Enquanto Marr às vezes é retratado como tendo proposto que nós trabalhamos
exclusivamente a partir do nível mais alto, ele claramente enfatizou, também, as
limitações que vêm de baixo para cima, e as considerou em sua tentativa de explicar
o processamento visual (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 70).

Isto sugere não apenas que a teoria de Marr se assemelha bastante a um sistema simbólico
físico, tal como o concebido por Simon e Newell, como também que o problema da
implementação não se apresentou, exclusivamente, para os cognitivistas estudiosos do
cérebro.
113

1.2.4. A questão da representação mental nas ciências cognitivas clássicas: a busca de uma
teoria da cognição a partir do modelo lógico-proposicional

Vários autores têm destacado o papel da noção de representação na história das


ciências cognitivas. O objetivo desta seção é não apenas investigar este papel, como discutir a
tentativa de se criar uma teoria geral da cognição – a Teoria Computacional da Mente – como
parte deste desenvolvimento. Uma providência necessária, contudo, será tentar esclarecer
algumas tendências de polissemia para “representação”, assim como se fez para
“informação”, na seção 1.2.2.
Assim, do mesmo modo como foi feito em relação à noção de processamento de
informações – de acordo com os objetivos deste estudo –, e para tentar reduzir as
possibilidades de engano quanto ao significado das noções aqui examinadas, é importante
realizar um retrospecto histórico para verificarmos onde, quando e com que feição a noção de
representação surgiu nas ciências cognitivas. Em primeiro lugar, constata-se que para os
principais historiadores das ciências cognitivas a noção de representação, assim como a de PI,
também é fundante nas ciências cognitivas. Segundo Gardner,

O maior êxito das ciências cognitivas foi a demonstração clara da validade da


postulação de um nível de representação mental: um conjunto de construtos que
podem ser invocados para a explicação de fenômenos cognitivos, indo da percepção
visual à compreensão de narrativas. Enquanto há quarenta anos, no auge da era
behaviorista, poucos cientistas ousavam falar em esquemas, imagens, regras,
transformações e outras estruturas e operações mentais, estes pressupostos e
conceitos representacionais são agora tomados como certos e permeiam as ciências
cognitivas (GARDNER, 1985, p. 383 – grifo meu).

Uma convicção semelhante encontra-se em Paul Thagard:

A maioria dos cientistas cognitivos concorda que o conhecimento cognitivo na


mente consiste em representações mentais. (...) Os cientistas cognitivos têm
proposto vários tipos de representação mental, incluindo regras, conceitos,
imagens e analogias. (...) A ciência cognitiva propõe que as pessoas têm
procedimentos mentais que operam nas representações mentais para produzir
pensamento e ação. Diferentes tipos de representações mentais tais como regras e
conceitos fomentam diferentes tipos de procedimentos mentais. (THAGARD,
2005, p. 4 e 5 – grifos em negrito meus)

Ainda podemos procurar auxílio na obra de referência The MIT encyclopedia of cognitive
sciences (WILSON & KEIL, org.). Ali não há, porém, o verbete “representation”;
significativamente para as investigações deste trabalho, onde ele deveria estar há uma
remissão a um verbete escrito por Barbara Von Eckardt, com o título de “mental
representation”, onde autora diz:
114

Se tomarmos um dos pressupostos fundamentais da ciência cognitiva de que a


mente/cérebro é um dispositivo computacional, os portadores da representação
mental serão estruturas ou estados computacionais (VON ECKARDT. p. 527 –
grifos meus)

A partir destas afirmações de historiadores das ciências cognitivas – e mesmo do fato em si de


a citada enciclopédia não possuir um verbete para “representação”, e sim um para
“representação mental” – podemos perceber que, além de a noção de representação ser
fundamental nas ciências cognitivas, é relevante que, nestas ciências, representação seja
qualificada como “mental”. Podemos nos perguntar em que medida fariam sentido nestas
ciências outras formas de conceituar a noção de representação ou, na direção inversa, por que
o conceito de representação mental tem sido importante. A proposta aqui apresentada é de
mais uma vez, investigar esta questão, ainda que brevemente, na própria história das ciências
cognitivas. Para orientar esse propósito, saliente-se nos trechos acima citados os seguintes
aspectos:
a) Na citação de Gardner, merece atenção especial a menção que ele faz ao uso do
conceito de representação mental, nas ciências cognitivas, para explicar fenômenos
cognitivos;
b) Na citação de Thagard, deve-se dar destaque à correlação que o autor faz entre
representação mental e procedimentos mentais ou computacionais;
c) Na citação de Von Eckardt, note-se a dimensão de estrutura física que a autora
correlaciona à representação mental.
Estes três aspectos são aqui propostos como guias para a compreensão do uso do conceito de
representação mental nas ciências cognitivas. São eles: o poder explicativo do conceito, a
relação entre o nível da representação e o nível de procedimentos na mente, e a relação entre o
nível da representação mental e o nível das estruturas físicas onde ela ocorreria. Ao chegar até
aqui, pode-se entender que já é possível definir por que nas ciências cognitivas se usa o
conceito de representação mental e não o de representação em geral: porque o que importa,
para estas ciências, é como a representação é feita pelo dispositivo cognitivo, que tem
recebido o nome de “mente”. Sendo assim, não haveria interesse, pelo menos inicial, em tratar
da representação em outros meios que não a cognição humana ou os computadores.
Considerando este entendimento sobre a representação mental, a suposição aqui defendida é
de que importa para as ciências cognitivas estimar em que medida a hipótese de que a
representação mental é produto de procedimentos fisicamente implementados, adotada por
este campo científico, seria capaz de explicar fenômenos cognitivos. Esta ideia seria também
uma importante chave para entender o papel da noção de representação no modelo lógico-
115

proposicional. Com esta orientação, prosseguindo a análise de cunho histórico, considere-se a


seguinte afirmação de Varela, Thompson e Rosch:

A ferramenta central e a metáfora orientadora do cognitivismo é o computador


digital. Um computador é um dispositivo construído de forma tal que um conjunto
particular de suas mudanças físicas pode ser interpretado como consistindo de
computações. Uma computação é uma operação desenvolvida ou implementada com
símbolos, ou seja, com elementos que representam o que eles querem dizer. Por
exemplo, o símbolo “7” representa o número 7. Simplificando por ora, podemos
dizer que o cognitivismo consiste na hipótese de que a cognição – inclusive a
humana – é a manipulação de símbolos como a dos computadores digitais. Em
outras palavras [para o cognitivismo] cognição é representação mental: acredita-se
que a mente opera manipulando símbolos que representam características do mundo,
ou representam o mundo como tendo uma determinada forma (VARELA et al, 1991,
p. 7 e 8 – grifos em negrito meus).

Desta passagem serão de grande importância para este trabalho os seguintes elementos:
a) A suposição de que uma determinada abordagem, o cognitivismo, seria a portadora
principal da noção de representação mental nas ciências cognitivas;
b) A representação mental, para este tipo de abordagem (para o cognitivismo), seria o
significado de símbolos manipulados (processados) através de dispositivos físicos
como computadores digitais;
c) Tal significado seria dado pela correspondência entre estes símbolos e o mundo.
O primeiro elemento deste rol situa historicamente a adoção da noção de representação na
dinâmica das ciências cognitivas: ele teria sido proposto pela abordagem chamada de
cognitivismo – como já foi verificado anteriormente quanto ao modelo lógico-proposicional.
Em seguida, deve-se estudar este ponto. Mas, antes, é preciso atentar para os aspectos
seguintes. O segundo elemento da afirmação de Varela e coautores corresponde ao que já
havia sido constatado das citações de Thagard e Von Eckardt sobre representação mental: a
representação se dá mediante procedimentos e manipulações em dispositivos físicos. Este
ponto também sugere que se comece a correlacionar informação no sentido de Shannon a
símbolos formais, e informação semântica a representação, no sentido cognitivista. Este seria
um caminho possível para explicar as relações entre processamento de informações e
representação nas ciências cognitivas. Veremos se é aceitável. O terceiro aspecto – o da
representação como correspondência entre símbolos e o mundo – será abordado mais à frente,
ainda nesta seção.
Para uma compreensão dos aspectos teóricos do cognitivismo, vejamos o que propõe
John Haugeland, filósofo das ciências cognitivas e, especialmente, da inteligência artificial:
116

Cognitivismoem psicologia efilosofiaé, em linhas gerais,a posição de que o


comportamento inteligentepode ser explicado(apenas)por apelo a"processos
cognitivos" internos, isto é, ao pensamento racionalem sentido amplo
(HAUGELAND, 1998, p. 9).

Mas quais seriam os cientistas que utilizariam esta orientação? Se um traço importante do
cognitivismo é o pressuposto da cognição como processo, poderíamos associar este traço à
defesa da noção de processamento de informações como modelo para a cognição?
Varela et al consideram que o artigo já citado de McCullogh e Pitts, “A logical
calculus of ideas immanent in nervous activity”, de 1943, teria sido constitutivo das ciências
cognitivas e uma fonte de ideias precursoras do cognitivismo. Com efeito, encontramos neste
artigo a seguinte concepção de representação:

Relações existentes entre as atividades fisiológicas nervosas correspondem,


evidentemente, às relações entre as proposições; e a utilidade da representação
depende da identidade destas relações [das atividades nervosas] com aquelas da
lógica proposicional (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 117).

Esta é uma forma, bastante sintética, de afirmar que o dispositivo físico neuronal humano,
através de seu funcionamento segundo um esquema racional e lógico proposicional, tem a
capacidade de realizar representações. Pode-se perceber já em 1943 uma preocupação em
considerar o caráter representacional da cognição como base para explicar esta última, a partir
do funcionamento de dispositivos cognitivos que possam ser entendidos como
computacionais – como seria o caso do cérebro humano. O que está em questão, ao menos em
parte, é a capacidade da orientação cognitivista de explicar a cognição com base na noção de
representação. Ou, em outras palavras, trata-se de identificar o sentido de representação no
modelo lógico-proposicional. O cognitivismo teria como pressuposto que, como foi dito
acima, um dispositivo físico, dotado de um modo de funcionar racional, proposicional, lógico
e simbólico, seja capaz de realizar adequadamente a representação do mundo. Sobre isto,
voltam a dizer Varela e seus colaboradores:
117

Uma computação é uma operação realizada com símbolos (com elementos que
representam o que eles significam). A noção-chave aqui é a de representação ou
“intencionalidade”, o termo filosófico para aboutness37. O argumento cognitivista é
de que o comportamento inteligente pressupõe a habilidade de representar o mundo
como sendo de determinadas formas. Consequentemente, não podemos explicar o
comportamento cognitivo a não ser se assumirmos que um agente age representando
características relevantes de sua situação. O comportamento do agente será bem
sucedido na medida em que sua representação de uma situação for precisa
(permanecendo todos os outros aspectos iguais).
Essa noção de representação, pelo menos desde a falência do behaviorismo, não tem
sido controversa. O que é controverso é o próximo passo, qual seja, a afirmação
cognitivista de que a única forma pela qual podemos explicar a inteligência e a
intencionalidade é por meio da hipótese de que a cognição consiste na ação baseada
em representações fisicamente realizadas sob a forma de um código simbólico no
cérebro eu em uma máquina (VARELA et al, 1991,p. 40)

Entende-se desta passagem que, para seus autores, a representação como intencionalidade –
quer dizer, a representação como relação da cognição com o mundo que se quer conhecer e
sobre o qual se quer agir –, é um pressuposto importante do cognitivismo. Voltaremos à
questão da intencionalidade mais à frente, assim como às controvérsias que o cognitivismo –
como orientação principal das ciências cognitivas clássicas – suscita. Antes, exploremos
brevemente outras características do conceito de representação na versão clássica das ciências
cognitivas. Comecemos por notar que trabalhos recentes propõem nomes alternativos para o
cognitivismo. Estas novas denominações salientam outros aspectos da representação. Paul
Thagard, por exemplo, prefere denominar a corrente tradicional da cognição de um modo que
dá destaque à sua característica computacional:

O estudo interdisciplinar da mente (ciências cognitivas) tem um núcleo: a


compreensão computacional-representacional da mente (CCRM38). [Para este
estudo] pensar é o resultado de representações mentais e processos computacionais
que operam nessas representações (THAGARD, 2005, p. 20 – grifo meu).

William Ramsay também propõe seu batismo para o que chama de paradigma das ciências
cognitivas tradicionais, cujo caráter computacional também assinala; mas ele sublinha
também o fato de as representações neste modelo serem internas e simbólicas:

Nas ciências cognitivas houve algo como um paradigma central que tem dominado
os trabalhos em psicologia, linguística, etologia cognitiva e filosofia da mente. Esse
paradigma é comumente conhecido como a teoria clássica computacional da
cognição, ou TCCC39. O centro do paradigma clássico é sua postulação explicativa
central - representações internas simbólicas (RAMSAY, 2007, p. 2 – grifos meus)

37
A palavra aboutness não foi aqui traduzida tendo em vista ter sido consagrada na forma inglesa pelas
traduções brasileiras de artigos e livros que contêm o termo na filosofia e nas ciências cognitivas.
38
No original, em inglês, “computational-representational understanding of mind” (CRUM).
39
No original, em inglês, “classical computational theory of cognition” (CCTC).
118

As abordagens retrospectivas das ciências cognitivas que, como acabamos de ver, sugerem
outros nomes para sua corrente inaugural, afirmam que esta considera a representação, além
de mental, interna, simbólica e computacional. Num passo seguinte, relacionar estas quatro
qualidades da representação em pares afins nos permite compreender melhor sua utilização
pelas ciências cognitivas tradicionais. O fato de a representação ser considerada mental e
interna diz respeito a onde ocorre; ser simbólica e computacional corresponde a seu modo de
operar, onde quer que opere. Esta caracterização traduz um arcabouço teórico específico,
baseado no modelo lógico-proposicional: a Teoria Computacional da Mente, desenvolvida e
defendida sobretudo por Jerry Fodor (FODEOR, 1981b). Trata-se da tentativa de se
estabelecer uma teoria geral da cognição humana. Tendo como tema central a representação,
Fodor a compreende como um processo simbólico e computacional que ocorre de modo
interno à mente. Segundo Bechtel (BECHTEL, 1988b, p. 55), a Teoria Computacional da
Mente se preocupa com a “estrutura formal de símbolos na mente e com a maneira pela qual
eles são manipulados”. Para compreendermos melhor o sentido deste princípio, levemos em
consideração as palavras de Fodor:

Associar as propriedades semânticas de estados mentais com as de símbolos mentais


é totalmente compatível com a metáfora do computador, porque é natural pensar no
computador como um mecanismo que manipula símbolos. A computação é uma
cadeia causal de estados computacionais e os elos da cadeia são operações sobre
fórmulas semanticamente interpretadas em um código de máquina. Pensar um
sistema (como o sistema nervoso), como um computador é levantar questões sobre a
natureza do código com que se calcula e as propriedades semânticas dos símbolos no
código. De fato, a analogia entre mentes e computadores implica realmente a
postulação de símbolos mentais. Não existe computação sem representação
(FODOR, 1981a, p. 7 – grifo meu).

Vemos que, para a Teoria Computacional da Mente, a representação se confunde com a


manipulação de símbolos. Sendo assim, computar é representar – e elaborar uma teoria da
cognição pressupõe compreendê-la a partir do modelo lógico-proposicional. Mas considerar o
modelo lógico-proposicional em relação à representação leva à questão: em que medida a
computação e os processos simbólicos que ocorrem na representação se relacionam com o que
é externo a ela? Retornamos ao problema da intencionalidade. Segundo Lakoff e Johnson,

O termo representação mental possuía dois diferentes significados [nas ciências


cognitivas tradicionais]. No primeiro, uma representação era vista como a
representação de um conceito que, por seu turno, era definido somente em termos de
seu relacionamento com outros conceitos dentro de um sistema formal. Logo, nesta
teoria, uma representação era uma expressão simbólica puramente interna a um dado
sistema formal. No segundo, uma representação era entendida como uma
representação simbólica de algo fora do sistema formal (LAKOFF & JOHNSON,
1999, p. 76).
119

Isto é, o problema da representação parece oscilar entre a importância da sintaxe e a


importância da semântica, esta compreendida, também, como o meio pelo qual o mundo
externo pode ser referido pelos processos computacionais40. Ou seja, num certo sentido, o
problema da intencionalidade – isto é, a discussão sobre se os estados mentais representam ou
não estados do mundo (v. BECHTEL, 1988b, p. 40-44) – interferiria na tese da representação
mental. Isto levaria, também, a uma possível polissemia da palavra “representação”, na
medida em que ela possa significar, de um lado, a relação entre os símbolos e o mundo ou, de
outro, a relação dos símbolos entre si. Porém, ter estas alternativas como excludentes pode ser
enganoso. Como vimos no texto do próprio Fodor, acima reproduzido, o importante para a
Teoria Computacional da Mente é que estados mentais sejam associados a símbolos mentais.
E estes somente operam obedecendo a uma cadeia causal. Esta cadeia é essencial ao modelo
computacional da representação. Se os valores semânticos atribuídos aos símbolos mentais
(pelos estados mentais) correspondem ou não a estados do mundo não é essencial para a
Teoria Computacional da Mente. Como afirma Pylyshyn a respeito: “Fodor sugere que uma
estratégia essencial metodológica da psicologia cognitiva é dispensar a questão da
intencionalidade e desenvolver modelos que estão preocupados principalmente com a
coerência” (PYLYSHYN, 1980, p. 128). Isto porque, para esta visão, o comportamento é
produzido graças a uma cadeia causal computacional, ainda que ao mesmo tempo dependa do
conteúdo dos símbolos desta cadeia. Este conteúdo pode corresponder a “estados” do mundo,
ou não. Isto quer dizer que a Teoria Computacional da Mente admite que o valor semântico da
representação possa espelhar estados do mundo, mas esta correspondência não é necessária no
modelo41. Sem a cadeia simbólica formal e causal, ao contrário, não há representação, seja
esta preenchida por valores semânticos adequados ao mundo ou não. A adequação que deve
haver é sobretudo formal. O comportamento é, como vimos no uso da noção de
processamento de informações pela psicologia cognitiva, um output – um produto – do
processo cognitivo implementado em um dispositivo físico. Os valores semânticos dados aos
símbolos sintaticamente encadeados são os inputs deste processo. Assim, por um lado, não
importa, para a Teoria Computacional da Mente, se estes inputs são verdadeiros no sentido de
correspondentes a estados do mundo. Por outro, a Teoria Computacional da Mente entende
que eles representam algo, que é causa do comportamento; e que para serem efetivos deverão
ser aplicados a uma cadeia simbólica capaz de gerar resultados neles originados. Desta

40
Esta questão será retomada com maior profundidade na seção 2.2, quando for abordada a objeção ontológica
da cognição corpórea ao cognitivismo.
41
Esta questão será examinada novamente na seção 2.2 quando se discutirá a noção de solipsismo metodológico,
de Fodor, no âmbito das críticas da cognição corpórea ao que ela chama de objetivismo no cognitivismo.
120

maneira, fica mais bem compreendida a citação de Fodor apresentada no final da seção 1.2.2,
de que a função dos mecanismos cognitivos é a transformação de representações. A cadeia
simbólica é, portanto, um processo de transformação – um processo produtivo. Tal
compreensão da cognição como processo produtivo computacional-simbólico, por parte da
Teoria Computacional da Mente, irá ajudar a se estabelecer, neste trabalho, a relação entre as
noções de representação e de processamento de informações nas ciências cognitivas clássicas
e, deste modo, precisar as características do modelo lógico-proposicional como núcleo
unificador.
No início deste trabalho, foi afirmado que as ciências cognitivas constituem uma
unidade multidisciplinar em virtude da admissão, por parte dos cientistas que as praticam, de
certos compromissos comuns. Segundo a perspectiva aqui defendida, a partir do trabalho de
alguns autores, este compromisso pode ser descrito como consistindo, sobretudo, na utilização
do modelo lógico-proposicional – oriundo da tecnologia e da inteligência artificial – para
explicar a cognição. Após se descreverem as linhas gerais da adoção deste modelo nas seções
1.1.4 e 1.2.1, foi defendido que uma outra noção, a de representação, é comumente
apresentada como essencial nas ciências cognitivas clássicas. Mas que papel esta noção
exerce no modelo lógico-proposicional? Por que uma teoria geral da cognição, baseada no
modelo lógico-proposicional, apelou para o conceito de representação? Por que alguns autores
enfatizam ora o processamento de informações, ora a representação, ao se utilizarem do
modelo lógico-proposicional? Deve-se assumir então a tarefa de melhor esclarecer o
significado de processamento de informações e representação mediante seu uso nas ciências
cognitivas, a partir da ideia de que ambas as noções são aspectos, compatíveis e
complementares entre si, de uma mesma orientação.
Um importante passo será entrelaçarmos as noções de processamento de informações
e representação observando aplicações mais específicas destas nas ciências cognitivas,
considerando a Teoria Computacional da Mente. Um emprego relevante destas noções na
cognição é a previsão de comportamentos. Isto é, a utilização delas na compreensão da
cognição permitiria que, uma vez que esta seja considerada como um processo formal de
produção, seus outputs possam ser predeterminados em função das variáveis (inputs)
aplicadas. Exatamente como em um programa de computador. É o que descrevem Terry
Winograd e Fernando Flores no trecho abaixo:
121

Nas últimas décadas, formas simples de psicologia cognitiva têm sido contestadas
pelos defensores da "psicologia de processamento de informações", que afirmam
que sistemas cognitivos podem ser mais bem compreendidos por analogia com
computadores programados. As premissas por trás dessa abordagem podem ser
resumidas como se segue:
1. Todos os sistemas cognitivos são sistemas de símbolos. Eles alcançam sua
inteligência simbolizando situações externas e internas, e eventos, e por meio da
manipulação destes símbolos;
2. Todos os sistemas cognitivos compartilham um conjunto básico subjacente de
processos de manipulação de símbolos;
3. A teoria da cognição pode ser expressa como um programa, respeitado um
apropriado formalismo simbólico, de tal forma que o programa, quando executado
no ambiente adequado, irá produzir o comportamento observado.
Esta abordagem não é incompatível com modelos não computacionais anteriores.
Em geral, as regras que – se postula – regem recorrências poderiam ser embutidas
em programas apropriados. Neste sentido, um programa é um sistema formal que
possui um certo número de variáveis, e que pode ser manipulado (pode funcionar)
para gerar previsões sobre o comportamento (outputs) de alguns sistemas naturais
aos quais se destina servir de modelo. Na medida em que o comportamento previsto
corresponde ao observado, a teoria é validada. (WINOGRAD & FLORES, 1986, p.
25 – grifo meu).

Anteriormente foi enfatizado que, para alguns autores, não teria havido ruptura radical entre
os propósitos do behaviorismo e do processamento de informações humano. É o que
reafirmam Winograd e Flores, na passagem acima reproduzida. Segundo esta concepção, a
intenção de prever o comportamento humano – e, talvez, prescrevê-lo – teria provocado a
adoção de um modelo descritivo e explicativo para o que, na abordagem behaviorista, estaria
oculto em uma insondável caixa preta. O texto de Winograd e Flores acima possui aspectos
importantes para a presente análise:
a) A psicologia de processamento de informações utiliza a analogia de computadores
programáveis;
b) Esta analogia se justifica porque todos os sistemas cognitivos são concebidos como
sistemas formais de manipulação de símbolos – isto é, sistemas computacionais;
c) Aplicadas variáveis ao sistema cognitivo formal de manipulação de símbolos, o
comportamento dele decorrente pode ser previsto.
O que os autores defendem é que o processamento de informações é uma variação do modelo
que tem como núcleo uma sequência formal de símbolos à qual são aplicáveis valores
mutáveis e que, graças a seu formalismo, permite que sejam obtidos comportamentos
previsíveis a partir destes valores. Se este entendimento estiver correto, eles acabam de
confirmar que o modelo lógico proposicional serviu para a elaboração da Teoria
Computacional da Mente – que se baseia na suposição da cognição como uma cadeia formal
simbólica e é um modelo de representação, segundo Fodor – e comporta o processamento de
informações. Além disso, algumas pistas deixadas por Winograd e Flores sugerem
122

articularmos o processamento de informações e a representação através das noções de


informação estudadas no início desta seção. Se, segundo a Teoria Computacional da Mente, a
representação ocorre mediante a atribuição de valores aos símbolos formalmente estruturados,
podemos pensar, como já se adiantou, na informação sintática como elemento central do nível
formal do processo representacional, e a informação semântica como conteúdo dos valores
atribuíveis às representações simbólicas. A seguinte passagem de Pylyshyn ajuda a sustentar
este entendimento, ao assim descrever a Teoria Computacional da Mente no mesmo artigo, já
citado, em que ele considera o “idioma do processamento de informações” um “compromisso
essencial entre os estudiosos da cognição”:

A ideia é que a forma adequada para caracterizar funcionalmente as atividades


mentais que determinam o comportamento de uma pessoa é proporcionar um
estado inicial de representação – interpretado como representando crenças,
conhecimento tácito, metas e desejos, e assim por diante – e uma sequência de
operações que transforma este estado inicial, por meio de uma série de estados
intermediários, em que os comandos são finalmente enviados para os transdutores de
saída. Todos os estados intermediários, sobre este ponto de vista, também são
representações que, no modelo, tomam a forma de expressões ou estruturas de
dados. Cada uma delas tem um significado psicológico: deve ser interpretado como
uma representação mental. Assim, todos os estados intermediários do modelo
constituem afirmações sobre o processo cognitivo. (PYLYSHYN, 1980,p.120 –
grifos meus).

A visão de Pylyshyn é coerente com a hipótese aqui defendida de que tanto o processamento
de informações como a Teoria Computacional da Mente são modos de compreender a
cognição como transformação de representações, mediante uma sequência formal de
operações – um processo –, a partir de estados iniciais, produzindo comportamento. Em
outras palavras, tanto a noção de processamento de informações, quanto a Teoria
Computacional da Mente decorrem da adoção de um modelo geral para a cognição: o modelo
lógico-proposicional. Além disso, Pylyshyn chama o aspecto formal do processo de “estrutura
de dados”, o que corroboraria nossa anterior suposição – seguindo Floridi – de que
“informação”, no sentido formal, sintático, pode ser adequadamente substituída por “dado”.
Mas talvez um resumo mais perfeito da associação entre processamento de informações e
representação esteja em Ramsay:

De fato, este é um dos sentidos legítimos em que os sistemas cognitivos podem


servistos como fazendo algo chamado “processamento de informações''. Enquanto
os motores de automóveis transformam combustível e oxigênio em um eixo de
acionamento girando, e cafeteiras convertem café em pó em café líquido, sistemas
cognitivos transformam estados representacionais em diferentes estados
representacionais (RAMSAY, 2007, p. 69).
123

De acordo com Winograd e Flores, Pylyshyn e Ramsay, o processamento de informações é,


ao se basear no modelo lógico-proposicional, um processo de transformação de
representações, de estados iniciais em comportamento. Ramsay enfatiza, como já havíamos
visto em seções anteriores, a metáfora mecânico-fabril. Mas, agora, fica explícito que o
processamento de informações transforma representações. Mas por que seria processamento
de informações? Em que sentido processar informações equivaleria a transformar
representações, ou a produzir comportamento, a partir de estados iniciais, de valores
semânticos atribuídos? Como já vimos, segundo Gardner foi George Miller o primeiro
psicólogo cognitivo a utilizar a expressão “processamento de informações” em um trabalho
sobre a cognição humana – em seu artigo “The magical number seven, plus or minus two:
some limits on our capacity for processing information", de 1956. Este foi um artigo baseado
no conceito de informação de Shannon. Ou seja, a preocupação de Miller era com a
informação no sentido formal, quantitativo – ou, se adotarmos outros termos, com a
informação sintática ou dado. Porém, observamos que, conforme demonstram Scarantino e
Piccinini, além de Aaron Sloman, nas obras citadas na seção 1.2.2, o sentido de informação
para as ciências cognitivas não se manteve unicamente no aspecto formal. Os próprios
modelos de processamento de informações descritos nas figuras 3 e 4, respectivamente por
Broadbent e Norman, supõem que a informação, a fim de ser utilizada para explicar a
cognição e a fim de produzir comportamento, precisa ter seu conteúdo considerado. De
qualquer modo, os principais modelos de processamento de informações na cognição
apareceram antes da formulação da Teoria Computacional da Mente, por Fodor, que passou a
aplicar amplamente a noção de representação mental para significar o processo de
transformação de estados cognitivos iniciais em comportamento – isto é, para tentar constituir
uma teoria geral a partir de um modelo principal, com variações locais em cada aplicação e
em cada disciplina. Embora, para Gardner, Fodor tenha adotado a noção de processamento de
informações, conforme afirma na seguinte passagem,

Fodor passa aadotar aabordagem geral de processamento de informação das ciências


cognitivas: é na manipulação de símbolo sou representações mentais que as
atividades cognitivas são realizadase, na verdade, constituídas (GARDNER, 1985,
p.82),

o próprio Fodor faz muito pouca referência explícita ao processamento de informações em


suas obras. De fato, foi a partir dos principais trabalhos de Fodor que, nas ciências cognitivas,
se passou a falar mais explicitamente na cognição como “manipulação de símbolos ou
representações mentais”, e nem tanto em processamento de informações. Isto sugere que o
124

núcleo do modelo lógico-proposicional se manteve nas formulações mais tardias do


cognitivismo, com maior nitidez do que a noção de processamento de informações. Porém,
como podemos concluir a partir do fragmento recém-citado de Gardner, a maior utilização da
noção de representação do que da noção de processamento de informaçõespor parte de Fodor
e de seus seguidores não elimina que se possa identificar uma correspondência entre ambas as
noções. Por outro lado, temos condições já de fazer uma importante distinção entre elas, que
diz respeito à extensão do processamento de informações. Como vimos nos esquemas
apresentados nas figuras 2 a 5, e na descrição de Bruner (BRUNER, 1990, p. 4), o
processamento de informações na cognição envolve diversas etapas, ou módulos. Trata-se de
módulos de percepção, armazenamento, recuperação, manipulação, enumeração, ordenação,
combinação, comparação, expressão, ação etc. Por seu turno, o modelo lógico-proposicional
adotado na Teoria Computacional da Mente está concentrado no que poderíamos chamar de
módulo computacional do processamento de informações. Para Fodor, o que é essencial no
processo cognitivo é a transformação das representações, como vimos. Sendo assim, em sua
concepção, a etapa que mais importa do processamento de informações é a computação,
aquela onde ocorrem as transformações significativas das representações.
Porém, embora a partir principalmente de Fodor, a ênfase dos textos em ciências
cognitivas clássicas tenha sido dada à representação entendida como computação simbólica,
outros cientistas cognitivos dedicaram bastante atenção a outros módulos e etapas do
processamento de informações, chegando mesmo a usar a palavra “representação” com
sentidos diversos de Fodor. Herbert Simon, por exemplo, se ocupa do armazenamento da
informação, o que ele chama – dando outra acepção ao termo e corroborando a advertência já
feita aqui sobre a polissemia da palavra, comum nas ciências cognitivas – de representação:

O cérebro humano codifica, modifica e armazena informações que são recebidas


através de seus diversos órgãos dos sentidos, transforma essas informações pelos
processos que são chamados de "pensar", e produz outputs motores e verbais de
vários tipos com base nas informações armazenadas. Esta descrição não é muito
controversa– somente o mais radical dos behavioristas radicais a questionaria. O que
é altamente controversa é a forma como a informação é armazenada no cérebro
ou, na terminologia de costume, como é “representada"– ou mesmo como
podemos descrever as representações, e o que queremos dizer quando dizemos que a
informação é representada de uma forma, em vez de outra (SIMON, 1978, p. 3 –
grifo meu).

Se para Simon uma das acepções para “representar” é armazenar informação, para outro
cientista cognitivo, como Sloman, representar pode ser carregar, ou expressar, informação.
Sua abordagem é, também, um exemplo de uma acepção mais ampla de processamento de
125

informações, não a resumindo à etapa de computação. Ele desdobra o processamento de


informações em diversos módulos ou, mais precisamente, processos integrantes:

Uma portadora de informações P (uma representação) pode expressar a informação I


para o usuário U no conxteto C. O usuário U pode tomar P para expressar
informação sobre algo remoto, passado, futuro, abstrato (como números), ou mesmo
inexistente como, por exemplo, uma situação evitada, ou um personagem de ficção.
A informação expressa pode ser envolvida em muitos processos, como por exemplo:
aquisição, transformação, decomposição, combinação com outras informações,
interpretação, derivação, armazenamento, inferência, solicitação, teste, uso como
premissa, controle de comportamento interno ou externo, e comunicação com outros
usuários de informações. Tais processos requerem geralmente que U implemente
mecanismos que tenham acesso a P, a partes de P, e a outros portadores de
informações (por exemplo, na memória de U ou no ambiente) (SLOMAN, 2007, p.
12).

Por outro lado, em vez de divergência, podemos apontar convergência entre as acepções de
“representação” usadas por Simon e Sloman, ao conceber que, para o modelo de
processamento de informações, “armazenar” não teria sentido diferente de “portar”, ou
“expressar”. Todos seriam casos em que a representação contém informação: pode recebê-la,
transportá-la, guardá-la e fornecê-la quando necessário ao processo. Mas a que sentido de
“informação” Simon e Sloman se refeririam? A seu sentido meramente formal, estrutural – o
“sentido de Shannon” –, ou a seu sentido signficativo, semântico? Busquemos a resposta nas
palavras dos autores. Simon diz que as informações são recebidas pelos órgãos dos sentidos e
permitem que sejam produzidos outputs motores e verbais a partir delas. Sloman afirma que
um usuário pode tomar uma representação (portadora de informação) para expressar algo
remoto. Numa primeira apreciação, somos tentados a afirmar que ambos se referem à
informação com conteúdo semântico. Afinal, Simon fala em produção de comportamento a
partir de percepções, e Sloman em uma ação de expressão, em que a informação se refere a
algo que não ela mesma. Estes efeitos são associados à informação dotada de conteúdo, como
vimos anteriormente. Porém, entendemos também que a informação com conteúdo deve
obedecer a algumas regras formais para que seja capaz de conduzir seu conteúdo. Com base
nisto, somos levados a concluir que ambos os aspectos da informação devem ser considerados
no processamento de informações, ao menos naquele descrito por Simon e Sloman. Dito de
outro modo, os aspectos formais da informação – tais como presentes nas preocupações de
Shannon e George Miller – seriam condições para que a informação seja tomada como
matéria de transformações no modelo de processamento de informações. Ou ainda, os
aspectos sintático e semântico seriam níveis de análise, como propõem Stillings et al:
126

A distinção entre estudar a competência ou o conhecimento de um sistema e estudar


os seus processos formais de informação pode ser pensada como a distinção entre
níveis de análise. A análise formal reside em um nível inferior, proporcionando
uma explicação dos processos de informação que estão na base do
conhecimento que é visível a um nível superior, comportamental. A análise do
mapeamento semântico que parta das representações formais para chegar ao seu
domínio pode ser pensada como uma ponte entre os níveis formal e de
conhecimento. Ela explicaria por que um sistema formal é uma implementação bem
sucedida de uma competência específica. Embora a análise formal possa ser pensada
como mais profunda do que uma análise de nível de conhecimento, não a substitui.
Cada nível de análise contribui com os seus próprios achados para o quadro geral.
Sem a análise do nível de conhecimento, incluindo a compreensão do mapeamento
de representação, não teríamos uma compreensão de que o algoritmo realiza, e não
seríamos capazes de capturar o fato de que dois algoritmos diferentes, com
diferentes representações, possam calcular a mesma função. Sem a análise
formal saberíamos o que um sistema faz, mas não como ele faz isso. Revendo o
exemplo de multiplicação decimal, a análise abstrata de competência (x · 0 = 0, etc)
nos diz qual a função do produto, enquanto análise de representação mostra que a
notação decimal sistematicamente representa números, e a análise formal especifica
totalmente a mecânica do algoritmo. Se ignorarmos um nível de análise, perdemos
uma parte importante da imagem. (STILLINGS et al, 1985, p. 7 – grifos meus)

Isto é, para estes autores, o nível formal do processamento de informações explicaria como se
produz a cognição, e o nível comportamental explicaria o que se produz através da cognição.
Ambos seriam níveis indispensáveis à compreensão do modelo de processamento de
informações aplicado à cognição. Além disso, segundo os mesmos autores, “a análise dos
sistemasao níveldo conhecimento eao nível formal, e o uso doconceito de representação
para unir estes níveis, distingue mas ciências cognitivas (incluindo ciência da computação)
de outras ciências (STILLINGS et al, 1985,p. 8 – grifo meu)”.42 Esta proposta de utilizar o
conceito de representação para unir os níveis formal e comportamental de análise vem ao
encontro da seguinte abordagem que Varela, Thompson e Rosch fazem do cognitivismo:

42
Os autores, no mesmo livro, ainda consideram outros níveis de análise da cognição, como o nível físico. Para
abordagens alternativas e mais extensas dos níveis de análise na cognição, v. NEWELL (1981), STICH (1983),
FODOR (1987) e MARR (1982).
127

Se desejamos afirmar que estados intencionais possuem propriedades causais, temos


de mostrar não apenas como estes estados são fisicamente possíveis, mas como eles
podem causar o comportamento. É aqui que surge a noção de computação
simbólica. Os símbolos são físicos e, além disso, também possuem valores
semânticos. As computações são operações com símbolos que respeitam aqueles
valores semânticos ou são restringidos pelos mesmos. Em outras palavras, uma
computação é fundamentalmente semântica ou representacional – não podemos
entender a ideia de computação (em oposição a alguma operação arbitrária ou
aleatória com símbolos) sem advertir para as relações semânticas entre as expressões
simbólicas (este é o significado da máxima “não existe computação sem
representação”). Um computador digital, entretanto, opera apenas com a forma física
dos símbolos que ele computa; ele não tem acesso aos valores semânticos dos
símbolos. Suas operações são, todavia, semanticamente restringidas porque toda
distinção semântica relevante para seu programa foi codificada na sintaxe de sua
linguagem simbólica pelos programadores. Ou seja, em um computador a sintaxe
espelha ou é paralela à semântica (atribuída). Então, a afirmação cognitivista é de
que este paralelismo nos mostra como inteligência e intencionalidade (semântica)
são física e mecanicamente possíveis. Logo, a hipótese é de que computadores
fornecem um modelo mecânico do pensamento ou, em outras palavras, que o
pensamento consiste em computações físicas, simbólicas (VARELA et al, 1991,
p.40 e 41).

O que eles afirmam é que a sintaxe, para o cognitivismo – o que pode ser aplicado à Teoria
Computacional da Mente –, é a forma de operar do pensamento, embora a representação tenha
como conteúdo valores semânticos. Este paralelismo próprio da representação seria uma
propriedade intrínseca a ela que a permitiria unir os níveis formal e comportamental da
análise da cognição como processamento de informações. Isto porque a face formal, ou
sintática, da representação articula-se com o nível formal da informação, enquanto a face
semântica da representação articula-se com o nível comportamental da informação. É por esta
razão que, como já foi dito mais de uma vez anteriormente, podemos pensar que o
processamento de informações seja um processo de transformação de representações. Ou, em
outras palavras, que o modelo lógico-proposicional possa absorver o conceito de
representação no interior da tentativa de se constituir uma teoria geral da cognição.
A esta altura, já se pode apresentar um resumo do que foi dito, propondo que alguns
aspectos da relação entre processamento de informações e representação em suas aplicações
nas ciências cognitivas clássicas sejam considerados. São eles:
1) Se há alguma unidade nas ciências cognitivas, esta é proporcionada pelo compromisso
de cientistas de diversas disciplinas afins em torno de compromissos, em torno do
modelo lógico proposicional da cognição – sendo que uma das variações deste é o
processamento de informações;
2) A noção de processamento de informações traz inspiração tecnológica, através da
inteligência artificial, e tem como principal característica consistir em um processo de
transformação de inputs em outputs cognitivos;
128

3) Este processo de transformação, quando adotado como modelo – por exemplo, na


psicologia cognitiva –, é constituído de módulos, etapas, ou subprocessos,
assemelhando-se à fabricação industrial em massa e a outros processos
organizacionais de transformação social de insumos em produtos finais;
4) O uso do modelo lógico-proposicional e da noção de processamento de informações
pelas ciências cognitivas clássicas tem, como uma de suas mais importantes
aplicações, a previsão de comportamentos a partir de dois elementos: a estrutura do
processo, e a natureza dos inputs;
5) A noção de representação aparece nas ciências cognitivas desde sua gênese, mas é
enfatizada, na forma de representação mental, através da Teoria Computacional da
Mente, que consiste na tentativa de se ampliar o entendimento da cognição como um
processo causal de transformação computacional e simbólica de representações, não
necessariamente referenciadas a objetos externos; a transformação de representações
teria mesmo o propósito do processamento de informações;
6) A noção de representação se articula com a noção de processamento de informações,
no modelo lógico-proposicional, de duas maneiras:
a. Na forma de um núcleo de computação e transformação de representações, que
compõe a etapa principal do processamento de informações;
b. Na forma de uma unidade simbólica dotada de uma face sintática e outra
semântica, capaz de articular o nível formal com o nível significativo das
informações.
129

2. A COGNIÇÃO CORPÓREA

2.1. Antecedentes histórico-conceituais

Será apresentado nesta seção um exame da formação e da articulação histórica dos


principais conceitos e noções utilizados pelas abordagens da orientação corpórea, mantendo-
se a preocupação de considerar suas diferenças em relação à orientação cognitivista, de
acordo com o sentido geral deste trabalho. Mais precisamente, esta seção se ocupará de
diversas formulações científicas e filosóficas desenvolvidas em sua maior parte no século 20,
das quais a orientação corpórea extraiu modos de conceituara cognição alternativos aosdo
cognitivismo. Mas, além de conceitos, aqui serão discutidos problemas e controvérsias que,
enfrentados por cientistas e filósofos de várias áreas, contribuíram para configuração
conceitual da cognição proposta pela orientação corpórea. Quanto a este ponto, é forçoso
acrescentar que a cognição corpórea decorre de algumas maneiras características de
solucionar tais problemas e controvérsias.
Haverá dois principais fios condutores de como serão a seguir considerados os
processos de construção da cognição corpórea. O primeiro concerne à transformação e à
criação vocabular neles envolvidas. Uma das principais atitudes adotadas pela orientação
corpórea tem sido propor novos significados para vocábulos usuais nas ciências cognitivas e
na filosofia, como é o caso de representação, percepção, experiência, categorização,
metáfora, imaginação, emoção, sentimento etc. – para chegar a ressignificar as principais das
palavras que utiliza: cognição e corpo. Porém, além desta modalidade crítica de alterações de
significado, a orientação corpórea vem se servindo de termos originários de outras iniciativas
teóricas e de pesquisa, a ponto de torná-los peculiares a seu âmbito. Deve-se admitir, mesmo,
que a orientação corpórea tem como uma de suas características mais proeminentes a
reelaboração e a recombinação destes termos. Trata-se de conceitos como, por exemplo, auto-
organização, autonomia, sistema, complexidade, conexionismo, homeostasia, emergência,
entre outros correlatos. Finalmente, em paralelo às citadas reconfigurações semânticas, há na
cognição corpórea, como seria de se esperar, a adoção de termos inéditos, conforme também
veremos mais à frente.
O segundo fio condutor de como os antecedentes históricos da cognição corpórea
serão aqui examinados decorre da necessidade de enfatizar dois âmbitos de sua influência:
aquele que contribui para melhor compreender a coesão geral da orientação corpórea,
mediante noções que perpassam ou sustentam as diversas frentes de pesquisa que a
130

constituem; e aquele voltado para assimilar o sentido de cada uma destas frentes em
particular. A ênfase do primeiro tipo é exigida, em especial, para a compreensão dos
processos através dos quais contextos sociais e conceituais teriam embasado, ou até mesmo
estimulado, a unificação da cognição corpórea. O segundo tipo de ênfase dirige-se, sobretudo,
às referências apresentadas nas argumentações dos próprios autores de cada uma das
abordagens – sendo, assim, voltado ao que é mais específico, e não necessariamente
comprometido com uma postura unificadora. Tal diferença será assinalada sempre que
necessário. Esta dupla perspectiva se coaduna com a hipótese defendida neste trabalho de que,
embora uma forma geral da orientação corpórea seja patente, sua compreensão mais completa
não prescinde da atenção a certas particularidades das frentes relativamente autônomas que a
compõem.
Em suma, esta seção se ocupará, orientada pelos dois fios condutores explicitados, de
questões como as seguintes: de que conceitos, controvérsias e linhas de pesquisa a cognição
corpórea partiu para contestar o cognitivismo? Como transformou as produções científico-
filosóficas nas quais que se baseou? Que particularidades – mas também que traços comuns,
ou de união – se podem perceber nas diferentes formas como as influências foram recebidas
pelas abordagens que constituem hoje a cognição corpórea?
Porém, outra forma de considerar as influências recebidas pela cognição corpórea deve
ser mencionada: trata-se de sugerir que os autores que adotaram esta orientação nas ciências
cognitivas vêm promovendo uma síntese de diversas ideias que se manifestaram em vários
campos do conhecimento, sobretudo, no século 20. São ideias que, por terem tido origem em
diversos domínios, não eram usualmente aproximadas e articuladas. Sendo assim, um modo
de compreender o surgimento da cognição corpórea é caracterizá-la como a reunião e
transformação destas ideias no contexto das ciências cognitivas. A partir desta perspectiva,
surge um duplo desafio: primeiramente, entender por que motivos e como essas ideias têm
sido introduzidas nas ciências cognitivas – com a característica suposta de contribuírem para
rejeitar as premissas do cognitivismo –; e, em segundo lugar, explicar de que modo a
heterogeneidade destas ideias não tem sido empecilho para que a cognição corpórea não
apenas as utilize de forma coerente, mas também o faça para manter o campo das ciências
cognitivas dotado de unidade na sua perspectiva.
Em favor do enfrentamento deste duplo desafio existe a possibilidade de que estas
ideias sejam ser classificadas conforme grandes grupos de atividades. Tal procedimento tem a
vantagem de reconhecer que as influências da cognição corpórea foram desenvolvidas em
contextos específicos, a partir de atividades intelectuais de naturezas diversas, o que permite
131

identificar com maior facilidade que diferenças de linguagem tiveram de ser superadas e,
assim, como afinidades puderam ser estabelecidas. Além disso, a identificação de um nível
mais geral de diferenças recomenda que os antecedentes históricos da cognição corpórea aqui
abordados sejam tipificados, principalmente, como de natureza filosófica e científica. Por
fim, no campo científico, os antecedentes deverão ser classificados em dois tipos, o que
resulta no seguinte agrupamento:
a) Biofisiológicos – que abarcam as diversas iniciativas científicas de explicar a origem
da vida, as diferenças entre seres vivos e não vivos, e as bases biológicas e
neurofisiológicas da cognição humana, além de perspectivas na neurociência
desafiadoras do cognitivismo, como o conexionismo;
b) Filosóficos – que correspondem sobretudo a posicionamentos críticos ao racionalismo,
ao logicismo e às correntes que disputam os desdobramentos do conceito brentaniano
de intencionalidade – mas também alcançam questões como o reducionismo, a relação
entre seres vivos e máquinas e mesmo a natureza da própria ciência, manifestando-se
de maneira particular na questão da percepção;
c) Psicolinguísticos – que reúnem estudos científicos sobre comportamento e linguagem
humanos, incluindo os culturais e multiculturais.
A cognição corpórea recebeu também influência de cientistas computacionais que
produziram críticas ao cognitivismo internas à própria inteligência artificial. Esta influência,
todavia, é mais recente que as demais, podendo ter sido já motivada pelos mesmos trabalhos
que anteciparam a cognição corpórea, e até por esta última – o que será esclarecido e
analisado ao final da seção.
Mas é preciso notar também que em muitas atividades precursoras da orientação
corpórea domínios como os acima relacionados se entrelaçaram. Alguns exemplos são
bastante notáveis. Sobretudo no caso dos antecedentes que envolvem questões biológicas,
encontram-se preocupações ontológicas e epistemológicas importantes – como veremos no
que diz respeito aos conceitos de auto-organização, complexidade e emergência. De fato, os
autores da cognição corpórea herdaram interesses filosóficos muito semelhantes aos que
moveram os criadores de tais conceitos. Ficará patente, também, como na abordagem
fenomenológica de Merleau-Ponty a respeito da percepção e do comportamento – e bastante
influente sobre certos autores da orientação corpórea – já se incorporavam temas provenientes
da biologia e da neurologia. Mas o que estes exemplos também confirmam é que os principais
problemas que resultaram na cognição corpórea foram enfrentados a partir de cada um dos
três enfoques aqui considerados, por autores que os tinham como atividade principal – o que
132

lhes confere suficiente particularidade. Por outro lado, os três enfoques não serão aqui
apresentados de forma estanque ou sucessiva. Tendo em vista as características da formação
da cognição corpórea, a exposição nesta seção necessitará mencionar os três tipos de
influência de maneira às vezes alternada, e frequentemente combinada.
Serão ainda mencionados antecedentes culturais da cognição corpórea, mas a atenção
a eles será breve, tendo em vista sua importância ser relativamente menor face aos problemas
discutidos nesta pesquisa. Por outro lado, esta influência cultural será rapidamente abordada
quando da menção a atividades institucionais que fomentaram a cognição corpórea – como,
por exemplo, a Lindisfarne Association43 e o Biological Computer Laboratory44. Aspectos
políticos respectivos serão tratados, também com brevidade, no interior das controvérsias
teóricas e das situações institucionais.
O exame realizado nesta seção não terá como ponto de partida, contudo, o mais
remoto dentre os antecedentes históricos da cognição corpórea a serem abordados. Inicia-se
“no meio do caminho”, tendo como referência um mesmo conjunto de atividades coletivas
que, segundo a premissa adotada neste trabalho, deu início ao processo que culminou com a
criação das ciências cognitivas: as Conferências Macy e o Simpósio Hixon. Iniciar o presente
exame por estes eventos se justifica porque neles se estabeleceu de maneira decisiva um
debate do período subsequente: aquele que, de um lado, defendeu, como já foi tratado no
primeiro capítulo, o processamento simbólico de informações como imagem mecanicista da
cognição humana e, de outro, buscou romper com esta imagem não só em sua forma lógico-
proposicional da cognição, mas também em sua modalidade reducionista dos processos
orgânicos em geral a leis físicas subjacentes, quer no cérebro ou no corpo. Já se abordou no
capítulo 1 deste trabalho a questão da redução da cognição a processos mecânicos, tanto os
simbólicos, como os físicos. Nesta seção será discutido como os precursores da cognição
corpórea colocaram em questão ambas as imagens mecanicistas da cognição.
Isto, evidentemente, equivale a dizer que a cibernética foi crucial para a formação da
orientação corpórea – e não apenas por ter contribuído para o nascimento das ciências
cognitivas, como foi visto nas seções 1.1.2 e 1.1.3. Mais precisamente, uma segunda geração
do movimento cibernético – doravante Segunda Cibernética – deu origem a conceitos e
debates que, ao longo de alguns anos, e mediante sua circulação em diversos meios
científicos, terminaram por produzir forte influência nos autores da orientação corpórea. Além

43
Associação fundada por William Thompson em 1972, no estado norte-americano de Nova York, que teve
papel direto na publicação de obras seminais da cognição corpórea, cuja importância será adiante detalhada.
44
Laboratório fundado por Heinz Von Foerster na Universidade de Illinois (1958-1975), cujas características e
influências sobre a cognição corpórea serão a seguir especificadas.
133

disso, a segunda fase da cibernética deve grande parte de suas diferenças em relação à
primeira fase a produções de autores anteriores que, graças também a esta intermediação, se
tornaram fundamentais para a formulação da cognição corpórea45. Além disso, começar o
presente estudo pela segunda fase da cibernética está em conformidade com a suposição de
que o mesmo conjunto de atividades científicas que deu origem às ciências cognitivas já
continha as sementes da cognição corpórea, e que isto é essencial para compreender mais
claramente esta última como oriunda da dinâmica interna do campo científico interdisciplinar
que integra.
De acordo com o relato de Francisco Varela,
A fase cibernética das ciências cognitivas produziu uma incrível variedade de
resultados concretos, além de sua longa (e muitas vezes subterrânea) influência.
Alguns deles são:
• a utilização da lógica matemática para compreender o funcionamento do
sistema nervoso;
• a invenção de máquinas de processamento de informação (como
computadores digitais), constituindo a base da inteligência artificial;
• o estabelecimento da metadisciplina da teoria dos sistemas, que deixou
marcas em muitos ramos da ciência, como a engenharia (análise de sistemas,
teoria do controle), biologia (fisiologia da regulação, ecologia), ciências
sociais (terapia de família, antropologia estrutural, gerenciamento, estudos
urbanos), e economia (da teoria dos jogos);
• a teoria da informação como uma teoria estatística do sinal e de canais de
comunicação;
• os primeiros exemplos de sistemas auto-organizados.
A lista é impressionante: temos a tendência de considerar muitas dessas noções e
ferramentas como uma parte integrante de nossas vidas. No entanto, nenhuma delas
existia antes desta década formativa, e foram todas produzidas por intenso
intercâmbio entre pessoas de origens amplamente diferentes: um esforço
interdisciplinar especialmente bem sucedido. (VARELA, 1992, p. 237)
.
O que Varela chamou de “fase cibernética das ciências cognitivas”, no texto acima,
ainda não é considerado, neste trabalho, como um período em que as ciências cognitivas já
estivessem constituídas. Estas, como já se argumentou no primeiro capítulo, tiveram início na
segunda metade da década de 1950. A fase referida por Varela é anterior – mas a menção a
ela é pertinente, desde que assumida, justamente, como aquela na qual se deram os fatos que
nesta pesquisa são tidos como cruciais na formação não só do cognitivismo, mas também da
cognição corpórea. Dentre os resultados da cibernética apontados acima por Varela, aqueles
correspondentes à utilização da lógica matemática na compreensão do sistema nervoso, à
engenharia e ao gerenciamento, assim como ao processamento e à teoria da informação, já
foram apontados neste trabalho como constitutivos do cognitivismo. Mas aqueles referentes à
teoria dos sistemas e suas aplicações quanto à vida e à ecologia, e à auto-organização,

45
Um destacado exemplo desta classe de mediação seria como se deu a transmissão da noção de sistema,
sobretudo a partir do trabalho de Ludwig Von Bertalanffy, da Segunda Cibernética para a cognição corpórea.
134

caracterizam a Segunda Cibernética e foram fundamentais para a origem da cognição


corpórea. Isto equivalente a destacar parte da Segunda Cibernética46 como movimento crítico
à imagem mecanicista dos seres vivos e da cognição, e justifica que nosso primeiro foco a
seguir consista, portanto, nos eventos sociais e conceituais47 que ganharam a denominação de
Segunda Cibernética. As demais influências, não relacionadas diretamente ao movimento
cibernético – mas não menos importantes, embora pertencentes a campos variados –, serão
comentadas na sequência.
Segunda Cibernética é a denominação48 que recebeu (PASK, 1969; VON FOERSTER,
1979; STENGERS, 1985; DUPUY, 1996 [1994]; PESSOA, 2001; HEYLIGHEN e JOSLYN,
2001;FROESE, 2010 e 2011) a corrente liderada por participantes das Conferências Macy
como Heinz Von Foerster, W. Ross Ashby, Gordon Pask e Gregory Bateson – mas que
somente se evidenciou e ganhou nome após aquela sequência de encontros49.
Como já foi exposto nas seções 1.1.2 e 1.1.3, as Conferências Macy tiveram como
título e subtítulo “Cybernetics - Circular causal and feedback mechanismsin biological and
social systems”50. O subtítulo já sugere que o conteúdo e o propósito das conferências devem
ser de interesse não apenas para as origens do cognitivismo, mas da cognição corpórea, até
porque, segundo Varela,

Alternativas à dominação imponente da lógica como a principal abordagem das


ciências cognitivas já haviam sido propostas e amplamente discutidas durante a
década de sua formação. Nas Conferências Macy, por exemplo, argumentou-se que
em cérebros reais não existem regras ou processador lógico central nem é a
informação armazenada em endereços precisos. Em vez disso, os cérebros parecem
operar na base de interconexões em massa, de uma forma distribuída, tal que sua
real conectividade muda como resultado da experiência (VARELA, 1992, p. 242).

Este conjunto de argumentos e pesquisas apontado por Varela como desafiadores dos
pressupostos do cognitivismo ainda não constituía a cognição corpórea, que somente se

46
Com a exceção de autores como Ashby.
47
Considera-se aqui “eventos conceituais” as publicações de teorias, e “eventos sociais” as atividades coletivas
promovidas com o propósito de debate filosófico e científico.
48
Para evitar equívocos, no texto deste trabalho não será usada a expressão “segunda geração da cibernética”,
como é feito por alguns autores (v., por exemplo, PICKERING, 2010) – a não ser em citações nas quais não haja
risco de que seja compreendida com relação à idade dos autores envolvidos. Em seu lugar, serão empregadas
expressões como Segunda Cibernética, segunda fase da cibernética, segunda etapa da cibernética ou cibernética
de segunda ordem.
49
Tem também relevância, para a cibernética como um todo, o grupo informal denominado “Ratio Club”, que
reuniu, de 1949 a 1958, entre outros cientistas britânicos, Ashby, Donald McKay e William Grey Walter – mas
também Alan Turing (DUPUY, 1996 [1994]; MCCORDUCK, 2004; HUSBANDS et al, 2008). Contudo, está
por ser explorada a influência do “Ratio Club” para as teses que inauguraram a Segunda Cibernética, o que se
justificaria, ao menos, pela a presença, no grupo, de Ashby e Grey Walter.
50
É importante acentuar que este título somente se estabeleceu após a 9ª conferência.
135

consubstanciaria três décadas depois. Parte deles corresponde justamente ao que se veio a
denominar Segunda Cibernética.
Em resumo – e com atenção à sua importância para a origem da cognição corpórea –,
podemos dizer que a Segunda Cibernética teve as seguintes características principais (VON
FOERSTER, 1979; DUPUY, 1966 [1994]; FROESE, 2010 e 2011):
1) Apresentou-se como uma cibernética de segunda ordem, na medida em que se aplica
ao conhecimento e ação humanos – inclusive à própria cibernética –, no que evidencia
um caráter de circularidade de observação e, sobretudo, o papel ativo do sistema
observador;
2) Dedicou-se, mais do que a “primeira” cibernética, às especificidades dos chamados
sistemas biológicos – e não só ao controle destes, mas ao crescimento e ao
aprendizado;
3) Aprofundou preocupações metafísicas da primeira cibernética, adotando postura
crítica antirreducionista ao rejeitar a imagem mecanicista dos seres vivos51.
Sobretudo da segunda característica – mas com interferência das outras – decorrem
dois fatos de especial importância para a identificação dos antecedentes da orientação
corpórea: em primeiro lugar, a participação da Segunda Cibernética nestes antecedentes deu-
se principalmente a partir de questões de natureza biofisiológica (para utilizar a classificação
dos três tipos de influência anteriormente proposta); em segundo lugar – o que decorre do
primeiro aspecto –, a influência da Segunda Cibernética se efetivou predominantemente sobre
a abordagem aqui denominada corpóreo-enativista, que é examinada na seção 2.3 (VARELA,
1996; BOURGINE & STEWART, 2004; FROESE & STEWART, 2010; FROESE, 2011).
Não vem de outra motivação o trecho acima reproduzido de Varela. A abordagem corpóreo-
enativa, além de ser considerada neste trabalho – conforme se buscará justificar mais adiante,
e especialmente na seção subsequente – como pioneira da orientação corpórea, distingue-se
das demais por ter nascido e se desenvolvido no âmbito de pesquisas dedicadas a explicar a
natureza dos organismos vivos, de sua autonomia e reprodutibilidade, e os processos
cognitivos como indissociáveis desta natureza. Sendo assim, podemos afirmar que a
orientação corpórea teve como primeiro impulso questionamentos de caráter biológico – ainda
que fortemente impregnados de determinadas preocupações filosóficas – ao cognitivismo.
Dito de outra forma, e como ficará mais evidente à frente: foi a partir de atividades de
pesquisa no campo da biologia, direcionadas já em grande parte ao tema da cognição, e

51
A pesquisa com redes neurais, que pode ser considerada parte da Segunda Cibernética, tem traços, contudo,
reducionistas.
136

ocorridas nos anos 1960 e 197052, que se gestaram os primeiros passos do que, nas duas
décadas seguintes, se afirmou como sendo a orientação corpórea das ciências cognitivas.
Contudo, e como já foi de outra forma advertido acima, o reconhecimento da
centralidade e da antecedência do campo biofisiológico nas bases da orientação corpórea não
deve sugerir, de modo algum, que ele tenha exercido sua influência isoladamente da filosofia
e da psicolinguística. É preciso assinalar que, entre outras interações, as ideias precursoras da
cognição corpórea no campo da biologia não se engendrariam sem fortes provocações
filosóficas, e que, além disso, as influências de origem psicolinguística foram intensamente
inspiradas por questionamentos ontológicos e epistemológicos, assim como por resultados de
pesquisas biológicas, fisiológicas e neurológicas. Estas interações antecipam um tema que
será examinado na próxima seção: o modo característico de como a multidisciplinaridade se
efetiva na orientação corpórea. Isto é, neste momento já se anuncia e a seguir aprofundaremos
como na orientação corpórea – e acabou de ser dito que isso já acontecia desde suas origens –
certas atividades e reflexões, tradicionalmente desenvolvidas por especialistas circunscritos a
disciplinas isoladas, tendem a conviver nos trabalhos dos mesmos cientistas. Mais
precisamente: enquanto nas ciências cognitivas tradicionais a multidisciplinaridade tinha
como característica desejada (vide, por exemplo, declarações citadas de Frank Fremont-Smith
no capítulo 1, além do Relatório Sloan), ou efetivada (vide sobretudo a iniciativa Sloan), a
interdisciplinaridade – isto é, a colaboração entre pesquisadores de diferentes disciplinas53 –,
na cognição corpórea práticas científicas e filosóficas diversas, normalmente circunscritas a
tradições disciplinares mais ou menos fechados, são frequentemente exercidas pelos mesmos
autores.
Feitas estas ressalvas, reconhecer que as origens mais imediatas da cognição corpórea
já se encontravam, ao menos em parte, na cibernética, envolve três constatações principais
sobre a dinâmica histórica correspondente:
1) A partir da cibernética, dois caminhos divergentes teriam se constituído (FROESE,
2010, 2011): um, mais imediatamente, com a formação concomitante das ciências
cognitivas e de sua corrente inaugural cognitivista; o outro, com a Segunda
Cibernética e seus desdobramentos na direção de alguns dos principais pressupostos
da cognição corpórea – o que nos leva a supor um conflito em parte latente, a ser mais
52
Aqui são referidas sobretudo as pesquisas desenvolvidas no Chile neste período por Humberto Maturana e
Francisco Varela.
53
Alguns polímatas importantes como Warren McCulloch, John Von Neumann e Norbert Wiener foram
propriamente precursores das ciências cognitivas, e não seus praticantes, enquanto um outro como Herbert
Simon contribuiu para este campo mais efetivamente nos limites da disciplina que ajudou a criar, a IA.
137

claramente explicitado nos anos seguintes, entre duas tendências já identificáveis no


primeiro momento cibernético;
2) Como as atividades científicas que se iniciaram com a cibernética tiveram o intuito
deliberado de que fosse criado um campo de pesquisas multidisciplinar – e, como já
foi observado acima, declaradamente interdisciplinar –, tanto o cognitivismo quanto a
cognição corpórea teriam se mantido, ainda que respeitando suas peculiaridades, na
qualidade de movimentos científicos que extrapolam fronteiras de disciplinas para
reuni-las segundo um ponto de vista comum;
3) No caso da cognição corpórea, a convergência multidisciplinar foi, em parte, guiada
pela herança de preocupações metafísicas de seus precursores da Segunda Cibernética,
como poderemos perceber sobretudo comparando afirmações de Von Foerster e
Ashby com outras de autores como Francisco Varela, George Lakoff, Mark Johnson e
António Damásio.
Para que se identifiquem mais claramente as controvérsias que deram origem à
Segunda Cibernética, e que estimularam o surgimento da orientação corpórea, deve-se dirigir
a atenção primordialmente a três conceitos, cruciais para ambas as correntes: os de auto-
organização, emergência e complexidade. Além disso, é fulcral, para a constituição destes
conceitos, a contestação, já assinalada, à imagem mecanicista dos seres vivos e da cognição.
Por sua vez, isto exige que nos debrucemos sobre os tratamentos dados, tanto pela a Segunda
Cibernética quanto pela cognição corpórea, a outro conceito, intimamente vinculado aos três
recém-mencionados e que, de certa forma, os articula: o de sistema – em torno do qual se deu
grande parte da controvérsia quanto aos princípios mecanicistas aqui aludidos. E, embora seja
comum que recentemente o conceito de sistema seja omitido quando se fala em organização,
emergência e complexidade na cognição corpórea, este fato pode ser caracterizado mais como
elipse do que como eliminação do conceito. Nas próximas linhas se defenderá, justamente, a
suposição de que as transformações ocorridas noção de sistema, desde a primeira cibernética
até as duas orientações das ciências cognitivas aqui estudadas – a cognitivista e a corpórea –
são um fio condutor adequado para compreender a formação do arcabouço conceitual da
orientação corpórea, tendo como passagem crucial o conjunto de mudanças produzidas pela
Segunda Cibernética. Esta mudança teria se dado, sobretudo, em decorrência da tentativa de
se dissociar dos sistemas a imagem mecanicista que tem sido vinculada a seu uso tradicional.
138

2.1.2. A evolução das características da noção de sistema

A primeira observação a ser feita a respeito das transformações das propriedades


atribuídas à noção de sistema a serem aqui examinadas é que, com respeito ao contexto da
cibernética em geral, o uso da palavra não deve ser confundido com outros mais antigos,
anteriores à segunda metade do século 20, e tampouco com demais usos contemporâneos.
Outra nota relevante é de que as duas etapas da cibernética e as ciências cognitivas têm se
valido de estudos sobre a noção de sistema em si mesma e, com frequência, contribuído para
eles. Por estes motivos, antes de avançarmos rumo à compreensão das questões relativas à
noção de sistema propostas, primeiramente, pela Segunda Cibernética e, posteriormente pela
orientação corpórea, devemos traçar um quadro dos usos da noção, até chegarmos às suas
características mais patentes na primeira fase da cibernética.
Para além do registro da ocorrência da palavra “sistema” já em autores como Platão e
Aristóteles (PESSOA, 2001, p. 35), é útil partir da seguinte apreciação retrospectiva de
Ludwig Von Bertalanffy, que informa sobre a intensificação do uso da palavra “sistema” a
partir do início do Renascimento:

Tal como acontece com toda ideia nova na ciência e em outras áreas, o conceito de
sistema tem uma longa história. Mesmo considerando os casos em que o termo
"sistema" em si não tenha sido enfatizado, a história deste conceito inclui muitos
nomes ilustres. Na "filosofia natural", podemos relacioná-lo com Leibniz, com
Nicolau de Cusa e sua coincidência de opostos, com a medicina mística de
Paracelso, com a visão da história de Vico e Ibn Khaldun como uma sequência de
entidades ou "sistemas" culturais, e com a dialética de Marx e Hegel, para citar
apenas alguns nomes de uma rica panóplia de pensadores (VON BERTALANFFY,
1968, p. 11).

Outros exemplos filosóficos e científicos do uso da palavra “sistema” devem ser


lembrados para ampliar a ilustração feita por Von Bertalanffy: desde seu emprego em
“sistema do mundo”, expressão comum nas cosmologias e mecânicas da era moderna em
diante, até o influente uso da noção de sistema capitalista no sentido marcadamente crítico na
doutrina revolucionária de Marx (isto é, não apenas na filosofia dialética marxista, como
apontado por Von Bertalanffy acima, mas na insistência de Marx na necessidade de
transformação revolucionária do sistema de funcionamento da sociedade), passando por
Condillac, e seu Tratado dos sistemas (CONDILLAC, 1798), por Kant e sua arquitetônica
dos sistemas e pelo “sistema da ciência” ou da “cientificidade” do idealismo alemão (REALE
& ANTISERI, 2007 [1997], vol. 05, p. 50 e segs.); isto, sem que deixemos de registrar as
formulações bastante difundidas, que já foram abordadas na seção 1.2 deste trabalho (por
terem sido fundamentais na constituição das ciências cognitivas), dos sistemas de
139

processamento de informações e dos sistemas de símbolos físicos, ambas explicitadas por


Allen Newell e Herbert Simon (respectivamente em NEWELL & SIMON, 1971 e 1972) no
desenvolvimento que promoveram da inteligência artificial. Mas como se chegou à noção de
sistemas na inteligência artificial ou, mais importante, àquelas que a cognição corpórea
construiu para contestar o uso de sistemas simbólicos como modelo para a cognição humana
por parte do cognitivismo? Além disso: em que difere a acepção de sistema tal como se dá na
inteligência artificial daquelas propostas pela cognição corpórea, geralmente aplicadas a
outras entidades que não sequências abstratas lineares de símbolos processadas por
dispositivos físicos? Como se trata de usos científicos do conceito, devemos buscar nas raízes
da ciência moderna suas origens, assim como verificar em que medida o próprio conceito tem
sido alvo de investigações – e o que estas investigações sugerem. Este último tópico sugere
um outro questionamento, ainda: por que os sistemas passaram, eles mesmos, a ser objeto de
investigação? Em que medida, por que motivos e através de que modos particulares ter
sistemas como objeto é característico das cibernéticas e das ciências cognitivas?
Galileu usou a noção de sistema como representação ou modelo do universo – mas
também como significando a própria realidade universal. Chamou os universos de Ptolomeu e
Copérnico de “sistemas do mundo” (GALILEI, 1970 [1632]), criou ele mesmo com sua
ciência um “novo sistema do mundo” (STENGERS, 2002 [1993], p. 90); entretanto, não se
deteve em considerações sobre que características intrínsecas um conjunto deveria ter para
receber a denominação de sistema. Exemplos posteriores e importantes do uso da expressão
“sistema do mundo” na “filosofia natural” – além daqueles que aparecem na citação de
Bertalanffy – são de Newton, que conferiu ao segundo livro de sua obra Philosophiae
naturalis principia mathematica o título de De mundi systemate (“O sistema do mundo”), e de
Laplace, cem anos depois, em mais de uma obra (LAPLACE, 1824, [1749] e 1951 [1812]).
Ambos adotaram a definição para “sistema do mundo” semelhante à de Galileu, que pode ser
descrita como o conjunto de entidades do universo explicado através das relações logicamente
coerentes destas entidades entre si e com o próprio conjunto, o que implica estas relações
serem expressas matematicamente. Contudo, resta claro nas citadas obras que ambos, além de
considerarem o “sistema do mundo” – ou seja, o universo –, também trataram de sistemas
particulares, isto é, de “sistemas de corpos” como partes do sistema do mundo matematizado,
embora ainda sem analisar a noção de sistema em si (NEWTON, 2009 [1686]; LAPLACE,
1824, [1749] e 1951 [1812]).Além disso, é importante ressaltar que o uso da palavra sistema
na mecânica clássica se aplicava a objetos nos quais se observava movimento, e
140

especialmente movimento interno. Esta peculiaridade é importante para as considerações


sobre o uso de sistema no século 20, que virão a seguir.
Já Condillac tratou de outro tipo de sistema: o sistema de ideias. Ele definiu sistema
como “A disposição das diferentes partes de uma arte ou uma ciência em uma ordem em que
as últimas se explicam pelas primeiras. Aquelas que fornecem razão às outras são chamadas
de princípios” (CONDILLAC, 2010 [1749], p. 8). Neste caso, a certas partes de um sistema
de ideias – os princípios, que poderiam, ou deveriam, preexistir ao sistema – seria conferido o
papel de explicar o sistema como um todo. A citada obra de Condillac – dedicada sobretudo à
crítica empirista e iluminista dos “sistemas metafísicos”, de autores como Descartes, Leibniz
e Spinoza, dirigindo suas objeções ao fato de estes sistemas serem, segundo ele, fundados
sobre princípios abstratos ou pressupostos – é importante, especialmente, por investigar
sistemas em si, assumi-los como conjuntos cujos elementos são partes interconectadas, e
estudar as relações que permitem compreender a unidade ordenada do conjunto como
decorrente do fato de este ser constituído de partes – o que antecipa, ainda que em linhas
gerais, a acepção de sistema que será corrente e precederá a da cibernética, ao longo do século
1954. Mas é útil considerar também o estudo sobre os sistemas de conhecimento que ocorreu
na obra de Kant, autor reconhecidamente influente na filosofia e na ciência do século 19 em
diante. No capítulo III da “Doutrina transcendental do método”, da Crítica da razão pura,
denominado “A arquitetônica da razão pura”, Kant avança na exigência de certas
características para que um conjunto de conhecimentos possa ser considerado um sistema:

Por um sistema (...) compreendo a unidade de conhecimentos múltiplos sob uma


ideia. Esta última é o conceito racional da forma de um todo na medida em que tanto
a extensão do múltiplo quanto as posições que as partes ocupam umas em relação às
outras são determinadas a priori por tal conceito (...). A unidade do fim ao qual se
referem todas as partes, e que na ideia deste fim também se relacionam umas às
outras faz com que se possa dar pela falta de cada uma das partes mediante o
conhecimento das demais, e que não ocorra uma adição ao acaso ou uma magnitude
indeterminada de completude que não possua os seus limites determinados a priori.
O todo é portanto articulado (articulatio) e não amontoado (conservatio)” (KANT,
1991 [1787], p. 235)

Pelo fato de, em seguida a esta passagem, no mesmo texto, Kant afirmar que a unidade
e a articulação que se empenha em caracterizar se aplicam a sistemas de conhecimento e não a
outros agregados – como, por exemplo, corpos de animais –, se poderia supor que sua
arquitetônica não teria implicações para o que esta seção busca explorar. Afinal, conforme
ficará cada vez mais evidente nas próximas linhas, o emprego que mais nos interessa da noção

54
Para maior aprofundamento na concepção de sistema em Condillac, v. HINE, 1979.
141

de sistema é exatamente quanto a organismos vivos, por ser primordial na cognição corpórea.
Contudo, percebe-se que a exigência de critérios unificadores, assim como a interdependência
entre as partes e destas com a totalidade, tais como destacadas em Condillac e Kant, são
traços que permaneceram presentes nas utilizações mais recentes da noção de sistema. E
embora o século 19 tenha presenciado a reafirmação do princípio unitário de um totalizador
“sistema da ciência”, especialmente por parte do romantismo alemão e de Hegel, como
destaca Nicola Abbagnano no verbete “Sistema” de seu Dicionário de Filosofia
(ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 908-910), ainda segundo este autor, o termo “sistema”

foi e é empregado também sem relação com este significado, para indicar qualquer
organismo dedutivo, mesmo que não tenha um princípio único corno fundamento. É
o caso dos sistemas científicos que hoje se fala em matemática e lógica. Os sistemas
hipotético-dedutivos, abstratos, axiomáticos, etc. não são sistemas por terem um
princípio único; aliás, os seus princípios, que são os axiomas, devem ser
independentes entre si, não devem poder ser deduzidos um do outro. São chamados
de sistemas unicamente por seu caráter dedutivo, e no mesmo sentido fala-se de
sistema numérico e, ás vezes, de “sistema de axiomas" para indicar um simples
conjunto não contraditório de proposições primitivas (...). Isso significa que o uso
dessa palavra perdeu o significado forte ou elogioso de discurso dedutivo (Ibid.)

Isto quer dizer que as transformações que afetaram a noção de sistema nos últimos
séculos, quanto esta foi aplicada a conjuntos coerentes de ideias, nela preservaram o caráter
de unidade dada por relações entre partes, mesmo renunciando à exigência de princípios
unificadores. Mas a dispensa a tais princípios virá ainda de outra origem, no caso dos sistemas
físicos. Vejamos como.
Abbagnano, no mesmo verbete, ainda se refere a dois outros tipos de sistemas que não
se restringem a um conjunto de ideias. O primeiro deles é “qualquer totalidade ou todo
organizado” (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 909). Embora, evidentemente, tal definição
possa abranger as totalidades em geral, inclusive as de ideias, a intenção do autor, evidenciada
pelos exemplos apresentados, é a de tratar dos sistemas naturais: “sistema solar, sistema
nervoso”. São sistemas componentes da natureza já referidos anteriormente, como os
“sistemas de corpos” em Newton e Laplace. Entretanto, ao abordar esta acepção o autor
identifica mais um aspecto muito importante para nossa investigação:

Desse ponto de vista, às vezes se faz a distinção entre o sistema como conjunto
contínuo de partes que têm inter-relações diversas e a estrutura ou a organização que
os componentes dele podem assumir em determinado momento (Ibid.).

Trata-se do aspecto temporal: ao se referir às diferenças entre as configurações que as


inter-relações das partes de um sistema podem assumir ao longo do tempo, Abbagnano
salienta que algumas delas se mantêm, enquanto outras se modificam. Neste ponto, chegamos
142

a caracterizar um aspecto fundamental dos sistemas: são conjuntos cujos elementos possuem
relações entre si e com o todo, nos quais algumas destas relações se modificam ao longo do
tempo, e outras permanecem inalteradas, de modo a garantir a unidade característica do todo
ao longo do tempo e sob transformações. Dito de outra forma, o modo particular como as
relações fixas e as variáveis ocorrem em um dado sistema serve para caracterizá-lo. Este
critério de definição dos sistemas será especialmente útil ao examinarmos as modificações do
uso da noção até suas acepções na cognição corpórea.
Constatado que a temporalidade é uma condição essencial para que se compreenda a
unidade dos sistemas, deve se prosseguir na investigação de como outras questões foram
colocadas historicamente quanto a ela. Abbagnano ainda apresenta uma terceira acepção de
sistema, que corresponde àquela aqui abordada em primeiro lugar: “Qualquer teoria científica
ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu caráter escassamente empírico. No
séc. XVIII falava-se de ‘sistema do mundo’ para indicar as teorias cosmológicas”. (Id., Ibid.,
p. 910). Neste sentido, sistema, como já aludido acima quanto a Galileu, designa não somente
a teoria, mas também seu objeto, não apenas a representação como igualmente o que se supõe
o mundo. Contudo, como podemos extrair do que foi mencionado sobre os sistemas de
Galileu, o mais importante nesta relação de representação é que o sistema de ideias destinado
a representar o sistema do mundo possa expressar matematicamente, de maneira adequada, as
relações internas que se considera estarem estabelecidas em seu objeto. Este é, também, o
pressuposto de Newton e Laplace (NEWTON, 2009 [1686]; LAPLACE, 1824, [1749] e 1951
[1812]; DIJKSTERHUIS, 1986; p. 478). Quanto a Newton, é importante considerar a seguinte
afirmação de Cassirer:

O newtonianismo não pressupõe (...) senão a ordem e a legalidade perfeita da


realidade empírica. Entretanto, essa legalidade significa que os fatos, como tais, não
são um material simples, uma incoerente massa de detalhes, mas que se pode
demonstrar, nos fatos e pelos fatos, a existência de uma forma que os penetra e os
une. Essa forma apresenta-se como matematicamente determinada, estruturada e
articulada segundo o número e a medida. Mas é justamente essa articulação que não
pode ser objeto de uma antecipação conceitual; ela deve ser encontrada e
demonstrada nos fatos. O encaminhamento do pensamento não vai, por conseguinte,
dos conceitos e dos axiomas para os fenômenos, mas o inverso (CASSIRER, 1992,
p. 26, citado em TAKIMOTO, 2013, p. 56).

Como se nota, Cassirer faz convergirem neste trecho duas características que
Abbagnano apontou na história da noção de sistema: de um lado, o fato de o sistema teórico
espelhar as relações constituintes do sistema como objeto de estudo; e, de outro, a
dispensabilidade de princípios que antecipem, na teoria, a articulação interna da forma do
objeto – já que esta última é encontrada e demonstrada na determinação empirista dos fatos.
143

Porém, o mais importante é que a convergência apontada por Cassirer revela a identidade das
duas características: é justamente a confiança na forma coerente das relações internas do
objeto que permite ao newtonianismo relativizar a necessidade da antecipação conceitual. A
partir desta configuração, os sistemas físicos se caracterizam por relações internas suficientes
para explicar sua unidade e sua estrutura. Estas relações internas são aquelas caracterizadas
como racionais. Neste sentido, os sistemas físicos e os sistemas teóricos que os explicam
possuem em comum uma estrutura racional (o que será retomado na próxima seção), condição
que garante a inteligibilidade dos primeiros com o emprego dos segundos. Esta noção de
razão como “poder primitivo” da verdade e da certeza, isto é, como correspondência entre os
sistemas do mundo e os sistemas de ideias – o que, de certo modo, diminuirá a importância
dos sistemas metafísicos criticados por Condillac –, se consolidará a partir do século 18,
conforme se extrai das palavras de Elika Takimoto:

A filosofia natural do século XVIII esteve de certa forma (...) vinculada ao


paradigma metodológico da física newtoniana e sua aplicação foi generalizada. A
grande ferramenta intelectual do conhecimento físico-matemático – a análise – foi
considerada como um instrumento indispensável de todo o pensamento em
geral. Diferentemente, por exemplo, de Descartes, Spinoza, Malebranche e Leibniz,
autores de grandes sistemas metafísicos, que consideraram a razão como a região
das “verdades eternas”, o século XVIII, de uma forma geral, confere à razão um
sentido aparentemente mais modesto. A razão passa a ser considerada como um
poder primitivo que nos leva a descobrir, a estabelecer e consolidar a verdade. E
essa operação de assegurar-se da verdade constitui a condição necessária de toda a
certeza verificável. Equivocam-se, porém, aqueles que acreditaram na falsa modéstia
conferida à razão. Caberá a ela a responsabilidade da estrutura de todo edifício
que compreende uma nova totalidade que ela mesma criará, ao levar as partes
que constituem o todo, segundo regras que ela mesma promulgou. Enfim, nessas
águas turbulentas – que correspondem ao novo método de filosofar – a “razão”
assume o leme e passa a nos guiar para metas bem definidas (TAKIMOTO, 2013, p.
57-58 – grifos meus).

Esta racionalidade, tal como generalizada no século 18, e que, segundo o texto acima, seria
característica de um determinado contexto histórico, é a principal característica dos sistemas
compreendidos através do que tem sido chamado nesta seção de imagem mecanicista, que é
expressa de forma exemplar pelo “sistema do mundo” de Laplace, proposto no início do
século seguinte, amplamente discutido nos dois últimos séculos e já mencionado acima:
144

Devemos então considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado
anterior e como a causa do que se seguirá. Dada por um instante uma inteligência
que pudesse compreender todas as forças pelas quais a natureza é animada e a
situação respectiva dos seres que a compõem – uma inteligência suficientemente
vasta para submeter esses dados à análise – ela poderia abarcar na mesma fórmula os
movimentos do maiores corpos do universo e os do átomo mais leve; para ela nada
seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria presente aos seus olhos. A
mente humana oferece, através da perfeição que ela tem sido capaz de dar à
astronomia, uma ideia fraca dessa inteligência. Suas descobertas em mecânica e
geometria, acrescentadas à da gravidade universal, lhe permitiram compreender
através das mesmas expressões analíticas os estados passados e futuros do
sistema do mundo. Aplicando o mesmo método a alguns outros objetos de seu
conhecimento, ela conseguiu relacionar leis gerais a fenômenos observados e prever
aqueles que, dadas as circunstâncias, deveriam ser produzidos (LAPLACE, 1951
[1812], p. 5 – grifo meu).

O modelo de sistema do mundo de Laplace, como se percebe, não só estabelece uma


ideia de universo matematicamente articulado em todos os seus aspectos e partes, mas
também define como deve operar uma inteligência capaz de conhecer as regras que o
articulam e determinam, de modo que se constitua em um objeto plenamente descritível e
previsível em seus movimentos temporais, por tal inteligência a ele externa. Esta imagem
racional de dupla determinação mecânica55 – do objeto “em si” e das características da
fórmula de conhecimento que dá sua inteligibilidade – será questionada, de diferentes formas,
pela Segunda Cibernética e pela cognição corpórea, tanto quanto dará origem, também de
diferentes formas, às noções de sistema da primeira cibernética e do cognitivismo. Dito de
outra maneira: aquilo que no modelo de Laplace se funde – as características mecânicas do
sistema do mundo e do pensamento que pode compreendê-lo – no contexto das controvérsias
que envolvem as duas cibernéticas e a duas orientações das ciências cognitivas terão
tratamentos diversos.
O próximo passo desta seção é esclarecer em que medida as características até aqui
apresentadas da noção de sistema são semelhantes ou diferentes daquelas próprias da
cibernética em diante. Isto exige também responder à questão: teria havido uma dupla e
paralela evolução da noção de sistema, em que, de um lado, se formaram as acepções
cibernéticas e derivadas, diferentes das tradicionais, e, de outro, estas últimas se mantiveram
basicamente inalteradas até o presente? Após a consulta ao Dicionário de Filosofia de
Abbagnano, que lançou luz sobre alguns relevantes aspectos históricos da noção de sistema,
cabe verificar as definições da palavra que constam de outros dicionários e enciclopédias na

55
Não se aplica, aqui, a ideia de “mecânico” apenas no sentido cartesiano, qual seja, de um conjunto de relações
causais entre corpos dadas exclusivamente por contato direto. O sentido da palavra neste trabalho é mais
propriamente o conferido por Laplace, ou de causalidade determinística linear. Isto quer dizer que se admite
numa cadeia causal deste tipo, por exemplo, forças gravitacionais ou eletromagnéticas que atuem sem que haja
contato direto entre os corpos, desde que o sistema se caracterize por ter suas relações causais plenamente
determináveis e previsíveis. O mesmo se pode dizer das relações matemáticas destinadas a representá-lo.
145

atualidade, considerando seu papel na fixação de significados correntes. Através destas


definições, espera-se ser possível identificar especialmente o emprego científico recenteda
noção de sistema, para confrontá-lo com as acepções empregadas a partir da cibernética. Do
Oxford Dictionary extrai-se a seguinte relação de definições para “sistema” (em resumo):

Sistema - um conjunto de coisas trabalhando juntas como partes de um mecanismo


ou uma rede interconectada; um todo complexo; um conjunto de órgãos do corpo
com uma estrutura comum ou função; o corpo humano ou animal, como um todo; a
computação em um grupo de unidades de hardware relacionados ou programas, ou
ambos, especialmente quando dedicado a uma única aplicação; um grupo de objetos
celestes conectados por suas forças de atração mútuas, especialmente se movendo
em órbitas em torno de um centro; um conjunto de princípios e procedimentos de
acordo com o qual algo deve ser feito; um esquema organizado ou método; um
conjunto de regras usadas na medição ou classificação, o planejamento ou o
comportamento organizado (...) (OXFORD DICTIONARY)

Deste verbete podem ser colhidos três sentidos principais para sistema, a partir de um
sentido técnico geral. O sentido geral é, como já foi aqui anotado a partir de outras fontes, o
de um conjunto de partes interconectadas; mas o verbete reparte este sentido de sistema em
três tipos: o físico, como um organismo ou um grupo de corpos celestes; o simbólico, como
um plano, um método ou um regulamento; e uma combinação de ambos os tipos, como um
computador ou uma rede de computadores, que possui um nível físico e um nível simbólico
articulados.
Por outro lado, a Encyclopaedia Britannica oferece uma definição de “sistema físico”
que demonstra ser bastante precisa e conveniente para a elucidação de seu emprego nas
ciências:
Um sistema é uma parte do universo selecionada para estudar as alterações que
ocorrem dentro dela em resposta a condições variáveis. Um sistema pode ser
complexo, tal como um planeta, ou relativamente simples, como o líquido dentro de
um copo. Aquelas porções de um sistema que são fisicamente distintas e
mecanicamente separáveis de outras partes do sistema são chamadas fases
(ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA).

Enquanto a definição do Dicionário Oxford enfatiza os aspectos técnicos e usuais de


sistema, a da Encyclopaedia Britannica caracteriza o conceito claramente como um objeto de
estudo, dando relevo a dois aspectos: o de poder ser mais ou menos complexo; e sua
mutabilidade – já assinalada acima – ser passível de ser produzida por condições provocadas
externamente.
A esta altura, deve-se ressaltar que é comum a todas as acepções de sistema
mencionadas acima o fato de corresponderem a um objeto de estudo. Ou seja, quando todos
os autores citados e as obras de referência pesquisadas utilizaram a palavra “sistema” se
146

referiam a um determinado objeto de investigação: fosse um objeto considerado como natural


(como os “sistemas de corpos”, para Newton), ou como o próprio pensamento (como os
“sistemas metafísicos”, para Condillac e o “sistema de conhecimentos” tratado por Kant na
arquitetônica citada). Mas não apenas isso: tratava-se de um determinado tipo de objeto ao
qual eram atribuídas características especialmente relevantes para sua observação, explicação
e, em alguns casos, produção. Será importante buscarmos reunir estas características para
verificarmos se, e em que medida, são reconhecíveis no emprego da noção de sistema nas
duas fases da cibernética e, mais importante, nas duas orientações das ciências cognitivas que
aqui estão em estudo: a cognitivista e a corpórea. A importância desta busca decorre da
possibilidade de estas características servirem de guia para se revelarem as semelhanças e
diferenças entre os modos como estas correntes científicas conceituam a cognição humana,
quer como um sistema em si, quer como um sistema composto por subsistemas – mas,
sobretudo, quanto à natureza de tais sistemas ser ou não assimilável ao que tem sido
denominado neste trabalho de imagem mecanicista.
Com este objetivo, é necessário, pois, fixar uma primeira definição do conceito de
sistema, tornada possível pelo que até o momento se expôs, correspondendo a um sentido que
podemos chamar de “pré-cibernético”:

Definição geral de sistema - Totalidade cujas partes são interdependentes, sujeita a


modificações ao longo do tempo tais que não destruam sua unidade, constituindo
objeto ideal ou físico, mais ou menos complexo, de estudo ou produção.56

A partir desta definição geral, na qual se destaca o caráter de preservação temporal da


unidade de uma multiplicidade, deve-se buscar elucidar em seguida como a questão da
unidade do sistema, no tempo e no espaço, se explicou nas cibernéticas, de modo a ter
influenciado a cognição corpórea. Além disso, é fundamental investigar se, e de que modo, a
noção de sistema teria sido afetada por esta divisão. Assim, cabe nos aproximarmos da
acepção de sistema própria da primeira cibernética para compreendermos que divergências
(não necessariamente na forma de discordâncias) quanto a seu emprego teriam proporcionado
construções como, de um lado, o sistema simbólico abstrato de Newell e Simon acima
referido – bastante característico do cognitivismo – e, de outro, a partir da Segunda

56
A partir desta definição, não é sistema um conjunto em que as relações entre os seus elementos não seja
fundamental para caracterizá-lo.
147

Cibernética, o sistema distinguido pelas noções de auto-organização, emergência e


complexidade.
Pamela McCorduck sintetiza no seguinte trecho que modalidade de sistema a primeira
cibernética estabeleceu, como inovação em relação à noção newtoniana de sistema acima
referida, e que proporcionou a concepção do sistema de processamento de informações
própria da primeira feição das ciências cognitivas:

A cibernética registrou a passagem de um modelo dominante, ou conjunto de


explicações para os fenômenos, para outro. Energia – a noção central para a
mecânica newtoniana – foi agora substituída por informação. As ideias da teoria da
informação, como codificação, armazenamento, ruído, e assim por diante,
forneceram uma melhor explicação para toda uma série de eventos, desde o
comportamento de circuitos eletrônicos até o comportamento de uma célula
replicante. Uma razão para isto é que a antiga mecânica newtoniana lidou com
sistemas conservativos e fechados, enquanto que o modelo da teoria da informação
pôde lidar com sistemas abertos, isto é, sistemas acoplados ao mundo exterior,
tanto para a recepção de impressões quanto para o desempenho de ações, e nos quais
a energia não é a questão central. (MCCORDUCK, 2004, p. 104-105 - grifo meu).

Esta passagem deixa claro que considerar os sistemas como abertos, tal como,
segundo a autora, procedeu a cibernética, foi necessário para o nascimento das ciências
cognitivas clássicas, já que os sistemas deveriam processar informações, o que implica troca
de informações com o exterior. Contudo, atribuir abertura aos sistemas, além de decorrer da
necessidade de se apresentarem soluções para problemas que os usos anteriores da noção não
enfrentaram, foi uma atitude adotada também – como veremos – pela Segunda Cibernética,
embora aos poucos o mero processamento de informações deixasse de ser a exigência da
abertura. Assim, sem contar a abertura, que características essenciais os sistemas tiveram na
primeira cibernética, suficientes para permitir perceber suas diferenças em relação à
concepção newtoniana de sistema, mas insuficientes para os propósitos da Segunda
Cibernética e de outras perspectivas afinadas com esta? E haveria outras características, como
a abertura, que embora também exigidas aos sistemas caracterizados pela Segunda
Cibernética, tivessem sentido diferente daquele empregado pela primeira cibernética?
Margaret Boden nos relembra a seguinte definição de cibernética, na qual uma
determinada característica dos sistemas é associada aos primeiros cibernéticos:

Cibernética é o estudo dos “sistemas causais circulares”. Estes são sistemas de


autorregulação, em que a informação sobre os resultados das ações do sistema é
alimentada de volta, de modo a cessar, adaptar, ou prolongar a atividade original.
Aos olhos dos primeiros cibernéticos, eles variaram de máquinas a vapor às
sociedades humanas (BODEN, 2006, p. 198- grifo meu).

Esta definição encontra forte respaldo no artigo de Arturo Rosenblueth, Norman


Wiener e Julian Bigelow, “Behavior, purpose and teleology”, de 1943, por ser considerado
148

como precursor da cibernética e das ciências cognitivas. A questão original apresentada neste
artigo era exatamente a da retroalimentação intencional (purposeful feedback), forma de
autocontrole observada no comportamento de algumas classes de objetos. O importante, neste
momento, é compreender que esta propriedade, em tal classe de objetos, pressupõe a condição
destes últimos de sistemas – mas começa a traçar o tipo de sistemas que já não corresponde
mais àquele usual até o final do século 19. Isto quer dizer que quando os autores usaram como
exemplo, no artigo mencionado, o caso do sistema nervoso, o emprego da palavra “sistema”
já trazia as qualidades específicas que aqui buscamos definir como intrínsecas ao pensamento
cibernético. Seriam sistemas em relação aos quais se questionou a condição de serem ou não
fechados – para atribuir-lhes a propriedade de abertos – e, principalmente, nos quais se
identificou que o fator de abertura deveria incluir que os sistemas também se “abrem” para
eles mesmos no tempo, de modo a que alguns outputs de seu comportamento se tornam inputs
de seus momentos futuros. Como demonstra o artigo de Rosenblueth et al, trata-se assim, por
um lado, de um processo cujo sentido temporal é essencial para corroborar a sua
intencionalidade – uma vez que o propósito de seu comportamento presente se traduz em
situação futura. Por outro lado, este processo somente pode ser teleológico, ter um propósito –
como o de autocontrole – voltado para si mesmo, se sua linearidade57ao longo do tempo
resultar numa circularidade, ao ter efeitos sobre a conservação e os propósitos teleológicos do
mesmo objeto: do mesmo sistema. O autocontrole e o feedback foram temas trazidos às
ciências e ao conceito de sistema como solução para problemas tecnológicos – o que é
evidenciado no artigo ora em foco. Isto serve para reiterar que o enfrentamento de problemas
teve papel crucial nas transformações conceituais que são aqui investigadas – ainda que nem
sempre estas soluções tenham tido efeito estritamente em relação aos problemas que as
suscitaram, frequentemente acontecendo de servirem a outras linhagens de problemas, como
se demonstrou no caso da máquina de Turing. E, evidentemente, as ideias de autocontrole –
ou de autorregulação – e circularidade antecipam a de auto-organização, mas explicar o
processo de organização exigiria mais do que agregar vários processos de controle, porque
novos problemas se colocam neste caso, de tal modo que uma agregação deste tipo – sem uma
organização geral – não seria solução para eles. Para constatarmos de que maneira esta
observação vai ao encontro de problemas e disputas efetivamente enfrentados no âmbito da
cibernética, devemos retornar ao período das Conferências Macy e do Simpósio Hixon.

57
Não se está empregando o termo “linearidade” para restringir a análise a sistemas lineares, dela excluindo
sistemas não-lineares. A linearidade, neste caso, aplica-se à linha do tempo no modo que se observa em sistemas
mais simples (WIENER, 1961 [1948]. p. 97-98).
149

Porém, antes, há dois breves passos a serem dados: primeiro, é preciso resumir uma
acepção específica de sistema, estabelecida pela primeira cibernética, com vistas a
compreender que qualidades no conceito foram então acrescentadas ou modificadas, e quais
ainda o seriam; e, também, como decorrência da acepção de sistema na cibernética, ressaltar
as implicações de, nela, ser peculiar a questão do fluxo de informações.
Quanto à acepção específica de sistema da primeira cibernética, propõe-se a seguinte:

Definição de sistema da primeira cibernética - Totalidade aberta, com suas partes


interdependentes, sujeita a modificações ao longo do tempo tais que não só não
destruam sua unidade, mas que também a preservem mediante autocontrole e
autorregulação, em parte mediante fluxo de informações, constituindo objeto ideal ou
físico, mais ou menos complexo, de estudo ou produção.

O passo decorrente sublinha um aspecto envolvido nas questões debatidas no período


das Conferências Macy e que derivaram na Segunda Cibernética. Trata-se do fato já
assinalado acima na citação de Pamela McCorduck, e reforçado, da seguinte forma, por
Margaret Boden: “O foco da cibernética foi dirigido ao fluxo de informações, e não ao de
matéria ou de energia envolvidas. E porque a informação é uma noção abstrata, pode ser
aplicada a muitos tipos diferentes de sistema – incluindo até mesmo as mentes” (Ibid.). Cada
uma destas frases faz uma afirmação de extrema importância para a presente pesquisa. A
primeira delas evidencia a circunstância de que, nos sistemas de autorregulação tais como
concebidos na primeira cibernética, o processo de feedback deve ser compreendido
essencialmente como fluxo de informação. A segunda afirmação aponta para outro tipo de
sistema, que decorrerá dos sistemas de autocontrole: os sistemas simbólicos abstratos, de
processamento exclusivamente de informações – que já foi objeto de análise e definição no
primeiro capítulo deste trabalho como modelos da cognição humana. A primeira questão que
estas observações de Boden suscitam é: a Segunda Cibernética fez alguma objeção à ênfase
dada pela primeira cibernética, nos sistemas que estudou, ao fluxo de informação, ou seja, ao
fluxo de um elemento abstrato? Mas outra indagação já se anuncia na esteira dessa: no sentido
em que a cognição corpórea se opõe à imagem da cognição como processamento de
informação, teria ela de algum modo retomado o sentido de sistema como fluxo de matéria e
de energia?
Formuladas estas interrogações, tem-se maior clareza investigativa para que sejam
examinados certos fatos ocorridos nas Conferências Macy, no Simpósio Hixon, ou a eles
150

contemporâneos, preponderantes na diferenciação da concepção de sistema entre a primeira e


a Segunda Cibernética, e que, como já se adiantou, dizem respeito à imagem mecanicista dos
seres vivos e da cognição. Trata-se de estudar como na Segunda Cibernética ocorreram as
seguintes influências principais – que também afetaram a cognição corpórea, por contestarem,
ao menos em parte, pressupostos que levaram ao cognitivismo: a Teoria Geral dos Sistemas,
apresentada contemporaneamente às Conferências Macy, por Ludwig Von Bertalanffy; as
posições de Paul Weiss, discutidas no Simpósio Hixon e em encontros posteriores (DUPUY,
1996 [1994]); e as já apontadas questões polêmicas levadas por W. Ross Ashby às
Conferências Macy.
A Teoria Geral dos Sistemas, diferentemente do que o nome possa sugerir, não
consistiu em um estudo sobre os sistemas, quaisquer que tivessem sido – ou viessem a ser –
na ciência e na filosofia até então. Não se propôs, por exemplo, a discutir os “sistemas do
mundo” ou os “sistemas de corpos” da tradição newtoniana, juntamente com outras aplicações
do conceito, como o sistema nervoso, os sistemas de equações ou os sistemas de ideias,
buscando descrever o que seria típico e comum a todas elas; em vez disso, apresentou-se
como uma contestação e uma alternativa ao padrão mecânico de a ciência unificar suas teorias
e à aplicação destes padrões aos sistemas vivos. Sendo assim, foi, também, uma nova
abordagem dos sistemas diante das formas como eram predominantemente tratados até então.
Sobre a Teoria Geral dos Sistemas, levemos em consideração, de início, a seguinte passagem:

Ao longo da década de 1950 os pensadores cibernéticos ligaram-se à escola da


Teoria Geral dos Sistemas (TGS), fundada aproximadamente no mesmo período por
Ludwig Von Bertalanffy como uma tentativa de construir uma ciência unificada,
mediante a descoberta dos princípios comuns que regem os sistemas abertos,
evolutivos. A TGS estuda sistemas em todos os níveis de generalidade, enquanto
cibernética se concentra mais especificamente em sistemas direcionados a objetivos,
funcionais, que exibam algum tipo de relação de controle. (HEYLIGHEN &
JOSLYN, 2001).

Embora este trecho afirme que a influência da Teoria Geral dos Sistemas sobre a
cibernética ocorreu na década de 1950, os trabalhos de Von Bertalanffy em biologia teórica
que tiveram importância no quadro da Segunda Cibernética se originaram pelos menos vinte
anos antes (VON BERTALANFFY, 1950, p. 7; STENGERS, 1985, p. 68; CAPRA, 1996).
Contudo, Von Bertalanffy somente anunciou uma teoria geral para os sistemas nos anos 1950.
É preciso assinalar que Von Bertalanffy não participou de eventos aqui considerados
decisivos para a cibernética e as ciências cognitivas como as Conferências Macy e o Simpósio
Hixon. A menção à Teoria Geral dos Sistemas no quadro da Segunda Cibernética, portanto, se
deve à influência de Von Bertalanffy e da Teoria Geral dos Sistemas nas controvérsias que
151

aqui são examinadas, caracterizada por fatos como: a militância de Von Bertalanffy em favor
de sua doutrina, representada, entre outros aspectos, pela criação da “Society for the
Advancement of General Systems Theory”58, em 1954, por ele juntamente com Ralph Gerard,
Kenneth Boulding e Anatol Rapoport no Stanford Center for Advanced Study in the
Behavioral Sciences; a participação de Ralph Gerard nas Conferências Macy, que será à
frente relatada brevemente (DUPUY, 1996 [1994]; ABRAHAM, 2002); a tendência posterior
de assimilação da Teoria Geral dos Sistemas ao pensamento sistêmico (CIRNE-LIMA, s/d;
CAPRA, 1996; ROSNAY, 2000); e, especialmente, as menções feitas por Jean-Pierre Dupuy
e Isabelle Stengers ao peso das ideias de Von Bertalanffy na concepção que, em consonância
com a Segunda Cibernética, pôs em questão a imagem mecanicista para explicar a dinâmica
dos seres vivos (DUPUY, 1996 [1994], p. 176-177; STENGERS, 1985). Para investigar o
papel da Teoria Geral dos Sistemas na constituição da cognição corpórea, através das
questões colocadas pela Segunda Cibernética, deve-se partir do artigo de Von Bertalanffy “An
outline of General System Theory”, de 1950 – e não do seu livro General System Theory:
Foundations, development, applications, de 1968, que, embora constitua uma obra mais
alentada e completa, foi publicado posteriormente ao surgimento das controvérsias iniciais
estudadas nesta seção. O artigo, que possui o tom de um manifesto, defendeu basicamente os
seguintes pontos:
1) Era inadequada a tendência mecanicista – laplaciana – de a ciência buscar explicar
os fenômenos através da sua redução a partes elementares, estudadas isoladamente,
isto redundando na aplicação de leis físicas às demais ciências;
2) Por outro lado, a opção de valorizar o todo, crítica ao reducionismo e recente à
época do artigo, carecia de precisão e rigor e tendia a ser vaga e mística;
3) Era então necessário que se produzisse uma mudança geral na atitude científica,
capaz de dar conta não apenas das partes de um sistema, mas também das relações
e interações entre elas, ao assumir a totalidade como organização dinâmica, e não
mero agregado – mas de forma rigorosa e lógico-matemática, comprometida com a
garantia de exatidão;
4) Para tal, a solução decorreria da criação de uma Teoria Geral dos Sistemas, que
produziria leis gerais dos sistemas que, por sua vez, refletiriam padrões
subjacentes, revelando a correspondência formal e a homologia lógica de vários

58
Atualmente, International Society for the Systems Sciences (ISSS), v. em http://isss.org/world/about-the-isss.
152

tipos de sistemas, desde os mais simples aos mais complexos, sem reduzir, porém,
os padrões destes últimos aos dos primeiros;
5) Por recusar o reducionismo da imagem mecanicista dos sistemas, a Teoria Geral
dos Sistemas também seria capaz de enfrentar novos problemas, que não
apareciam na física, mas eram sobretudo característicos dos sistemas vivos.
Sendo assim, a Teoria Geral dos Sistemas, ao mesmo tempo em que se propôs a ser
uma nova doutrina geral e uma nova metodologia hipotético-dedutiva para todas as ciências,
teve sua proposição provocada pela incapacidade, atribuída por Von Bertalanffy à imagem
mecanicista, para lidar com um tipo inédito de problema: aquele decorrente da necessidade de
explicar o comportamento típico dos sistemas vivos. Isto porque, segundo ele, os sistemas
vivos não se comportam como um agregado de sistemas físicos, nem mantêm o mesmo
padrão de transformações destes últimos ao longo do tempo, e a imagem mecanicista não
estava sendo capaz de explicar este comportamento. Nas palavras de Von Bertalanffy,

Um forte contraste entre a natureza inanimada e animada parece existir. De acordo


com a segunda lei [da termodinâmica], eventos físicos são direcionados para um
nivelamento, por baixo, das diferenças e para estados de desordem máxima. No
desenvolvimento orgânico e na evolução, uma transição para estados de ordem e
diferenciação mais elevados parece ocorrer. Muitas vezes tem sido assumido que,
por conseguinte, uma tendência para o aumento da complicação é uma característica
primária dos seres vivos, em contraste com a natureza inanimada. (...) Estes
problemas ganham novos aspectos se passamos de sistemas fechados, levados em
conta pela termodinâmica clássica, para sistemas abertos. A entropia pode diminuir
na evolução de tais sistemas; em outras palavras, estes sistemas podem desenvolver-
se espontaneamente para uma maior heterogeneidade e complexidade (VON
BERTALANFFY, 1950, p. 11).

Este “salto” – ou aparente descontinuidade – entre leis físicas e leis biológicas não foi,
contudo, tratado por Von Bertalanffy como misterioso ou inexplicável, nem usado como
justificativa para se renunciar a uma unificação racional da natureza. Para ele, esta suposta
desunidade da ciência denunciava um modo inadequado de se considerarem suas leis. Embora
ele deixe em aberto “a questão da ‘redução final’ das leis da biologia (e dos outros reinos não-
físicos) às da física”, (Ibid., p. 12), afirma:

A visão de mundo mecanicista encontrou seu ideal no espírito laplaceano, isto é, a


concepção de que todos os fenômenos são, em última instancia, agregados de ações
fortuitos de unidades físicas elementares. Teoricamente, esta concepção não
conduziu a ciências exatas fora do campo da física, ou seja, às leis dos níveis mais
elevados de realidade – biológicos, psicológicos e sociológicos. Na prática, suas
consequências foram fatais para nossa civilização (Ibid., p. 13).

Mas há outra questão enfrentada por Von Bertalanffy que é decisiva para a presente
pesquisa. Ele não apenas recusou o que chamou de misticismo das posições que, em geral,
153

combatiam a imagem mecanicista dos sistemas na biologia, mas contestou diretamente uma
teoria que tentara, décadas antes, explicar certos padrões dos seres vivos aparentemente não
adequados aos princípios da física, a partir de experimentos em embriologia. Trata-se do
vitalismo proposto por Hans Driesch, como princípio apriorístico da vida (DRIESCH, 1908).
Segundo Driesch e Von Bertalanffy, os estados finais dos sistemas vivos, ao contrário dos que
chama de inanimados, não são determinados pelos estados iniciais. Esta característica, por
ambos denominada “equifinalidade”, foi explicada por Driesch como uma propriedade dada
por um fator não sujeito à explicação científica, a ”enteléquia”59. Partindo do exemplo de um
sistema do tipo laplaceano, discute Von Bertalanffy:

Na maioria dos sistemas físicos o estado final é determinado pelas condições


iniciais. Tome-se, por exemplo, o movimento em um sistema planetário onde as
posições num tempo t são determinadas por aquelas em um tempo t0, ou um
equilíbrio químico em que as concentrações finais dependem dos valores iniciais. Se
as condições iniciais ou o processo são modificados, o estado final é alterado.
Fenômenos vitais mostram um comportamento diferente. Neles, em um sentido
amplo, o estado final pode ser alcançado a partir de condições iniciais diferentes e de
formas diferentes. Tal comportamento chamamos de equifinal. Assim, por exemplo,
o mesmo resultado final, ou seja, uma larva típica, é alcançado por um germe normal
completo do ouriço-do-mar, por meio germe após separação experimental das
células, por dois germes após a fusão ou depois de translocações das células. É bem
conhecido que apenas este experimento foi considerado, por Driesch, a prova
principal do vitalismo. De acordo com Driesch, tal comportamento é inexplicável
em termos físico-químicos. Um sistema físico-químico não teria o mesmo
desenvolvimento – neste caso, a produção de um organismo inteiro, uma vez
anteriormente dividido ou lesionado. Este comportamento extraordinário só pode ser
dar pela ação de um fator vitalista, a enteléquia, essencialmente diferente das forças
físico-químicas e que governa os processos de previsão da meta a ser alcançada. É,
portanto, uma questão de fundamental importância se a equifinalidade é uma prova
do vitalismo. A resposta é que não. (VON BERTALANFFY, 1950, p. 8).

Como foi visto anteriormente, para recusar a explicação vitalista do desenvolvimento


dos sistemas vivos, Von Bertalanffy advogou uma nova característica para eles: são sistemas
abertos que trocam matéria com o ambiente. E esta é uma condição de sua equifinalidade.
Sendo assim, o caráter de abertura dos sistemas vivos ganha um sentido significativamente
diferente não somente daquele dos sistemas newtonianos fechados – o que é mais óbvio –,
mas também dos sistemas abertos estudados pela primeira cibernética que, como foi
assinalado acima, se interessou pela abertura dos sistemas sobretudo com respeito ao fluxo de
informações, carregadas por energia, e não chegou a se aprofundar na investigação de fatos
aparentemente anômalos como a equifinalidade.

59
Este é um termo que, em Aristóteles, significa o ato final ou perfeito, a realização acabada da potência, também
associado à alma de um corpo orgânico. Para Driesch, a enteléquia é o princípio espiritual dos seres vivos,
irredutível a causas físico-químicas (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 334).
154

De um lado, Von Bertalanffy ressalta a qualidade dinâmica dos sistemas vivos, cujo
equilíbrio não é o equilíbrio térmico característico dos sistemas fechados, e sim o estado
“estacionário” que se mantém graças a ser também fluxo permanente de mudanças; isto é,
trata-se de um equilíbrio que depende justamente da contínua troca de matéria e energia do
sistema com o exterior e de incessantes transformações internas a ele. Além disso, trata-se de
uma autorregulação metabólica que não implica apenas um servomecanismo informacional,
como na imagem de sistema da primeira cibernética. Mas, de outro lado, uma notável
inovação de Von Bertalanffy reside na sua aposta – ainda que não muito segura – na hipótese
de uma termodinâmica própria dos sistemas abertos, baseada nas teorias de Ilya Prigogine
(VON BERTALANFFY, 1950, p. 12). Von Bertalanffy reportou-se, no artigo de 1950, ao
livro de Prigogine Étude thermodynamique des phénomènes irréversibles, de 1947, que trazia
seu teorema de produção mínima de entropia, aplicável aos estados estacionários de não
equilíbrio próximos ao equilíbrio. Embora demonstrasse confiança ainda reticente60 em
relação a este teorema, Von Bertalanffy chegou a afirmar que Prigogine demonstrou que os
estados estacionários dos sistemas vivos são definidos pela produção mínima de entropia. Isto
ao menos revela sua confiança de que a capacidade de sistemas vivos de se desenvolverem
espontaneamente para uma maior heterogeneidade, diferenciação e complexidade – ou seja, a
produção de ordem a partir da desordem – é explicável com base em leis científicas, e não um
contrassenso insondável pela ciência. Mas, também, permite que se chame a atenção para a
questão sobre até que ponto, hoje, já se considera devidamente explicada cientificamente a
produção de ordem a partir da desordem em seres vivos, ou mesmo se tal exigência de
explicação ainda se faz.

2.1.3. A Teoria Geral dos Sistemas e a noção de auto-organização

Nota-se que, a partir de sua crítica tanto à imagem mecanicista quanto ao vitalismo,
Von Bertalanffy não propôs tão somente uma nova forma de unificação da ciência e da
natureza, ou apenas uma abordagem inovadora dos sistemas. O que ele defendeu foi uma
terceira via para explicar o desenvolvimento, no tempo, dos sistemas vivos – ainda que não
tenha chegado a plenamente elaborá-la.

60
No artigo, Von Bertalanffy adverte que o fato de as pesquisas sobre sistemas abertos ser recente recomenda
que, sobre elas, caiba no texto a citação de “apenas alguns pontos de importância geral e filosófica” (VON
BERTALANFFY, 1950, p. 7). Ainda no livro de 1968, o teorema de produção mínima foi tratado por Von
Bertalanffy como aplicável somente a condições restritivas (VON BERTALANFFY, 1968, p. 151). De qualquer
modo, Prigogine somente apresentaria uma formulação matemática determinista da termodinâmica dos sistemas
abertos e das estruturas dissipativas mais tarde.
155

Esta tentativa de criar uma terceira via é o que acentua Isabelle Stengers, já
caracterizando a teoria de Von Bertalanffy como organicista – tal como identificada por ela
em obra do autor anterior à aqui examinada – e a localizando no quadro que esta seção busca
delinear:

Os teóricos da cibernética opõem usualmente a “causalidade circular” à “causalidade


linear” dos físicos. A história da embriologia desenvolveu, ao longo do século 20,
uma terceira noção de causalidade que muitos, seguindo Von Bertalanffy, (Kritische
Theorie der Formbildung, Berlin: Borntraeger, 1928) qualificarão de organicista.
O organicismo busca se distinguir de doutrinas a priori, de tipo “vitalista” ou
“holista”, apontando para problemas que os biólogos não previram nem desejaram,
mas que lhes foram impostos pelo estudo do desenvolvimento dos seres vivos
(STENGERS, 1985, p. 68).

Assim, verifica-se que os sistemas, para a parte da Segunda Cibernética afinada com
Von Bertalanffy (e Von Foerster), adquirem uma terceira característica central, além daquelas
dos sistemas mecanicistas (causalidade unidirecional) e dos sistemas da primeira cibernética
(causalidade circular): a causalidade organicista, que será uma ideia cara à cognição
corpórea, ainda que por ela transformada. Esta nova imagem apresenta duas descontinuidades
correlatas: uma, aquela identificada em seus objetos de estudo na natureza, e que se aplica à
dinâmica de desenvolvimento dos seres vivos em relação aos processos inanimados
subjacentes, recusando claramente o reducionismo fisicalista; outra, aquela apontada em seus
objetos de estudo que são as próprias teorias sobre a natureza, e que se aplica à dinâmica de
compreensão da natureza, significando uma guinada no estudo dos sistemas. Esta guinada, na
medida em que, nela, é crucial a ideia de equilíbrio estacionário dinâmico, anuncia duas das
qualidades dos sistemas que a presente investigação vem considerando como fundamentais
para a cognição corpórea: a auto-organização e a complexidade. Um dos efeitos das ideias de
Von Bertalanffy para as ciências cognitivas será, como se verá adiante, a adoção por parte da
cognição corpórea – em especial pela abordagem corpóreo-enativa – da noção de que a
cognição é um processo plenamente envolvido na dinâmica de manutenção da vida através de
formas de equilíbrio dependentes de permanente transformação. Esta imagem se contrapõe
diretamente à cognitivista, assim como ao reducionismo mecanicista que para alguns, como
Jean-Pierre Dupuy, ainda era forte na primeira cibernética. Porém, segundo este autor, outras
controvérsias se traduziram em embates mais frontais – o que se passará a expor.
A contribuição do embriologista experimental e biólogo teórico Paul Weiss à
constitituição da imagem não mecanicista dos sistemas biológicos se deu de forma direta no
Simpósio Hixon, em 1948. De acordo com Dupuy, o confronto
156

envolveu por um lado, Warren McCulloch, por outro, um conjunto de pesquisadores


composto pelos neurofisiologistas Karl Lashley e Ralph Gerard, pelos psicólogos
Wolfgang Köhler e Heinrich Klüver e, sobretudo, pelo embriologista Paul Weiss.
(...) A concepção apresentada por Weiss interessa-nos ao mais alto ponto, porque
anuncia, em certa medida, as teorias da autopoiese e da autonomia que serão
desenvolvidas pela Escola Chilena da auto-organização (Maturana e Varela)
(DUPUY, 1996 [1994], p. 172-173).

Neste trecho, Dupuy menciona dois pontos importantes, além de anunciar a relevância
das posições de Weiss. O primeiro é que McCulloch teria se tornado, então, o representante,
dentre os cibernéticos, da posição reducionista. O segundo é que Weiss teria contraposto a
McCulloch uma concepção precursora da autopoiese. Isto antecipa uma divergência de
McCulloch com Humberto Maturana (que colaborou diretamente com o primeiro) e Francisco
Varela, além daquela que opôs o modelo lógico-proposicional da cognição à noção biológica
de conhecimento destes dois autores: trata-se do modo como Maturana e Varela modificaram
a ideia inicial de epistemologia experimental de McCulloch (VARELA, 1996; FROESE, 2010
e 2011), e que será alvo de análise adiante. Mas o que mais conta neste momento é ressaltar
que, para Dupuy, primeiro Weiss “vai, ante a biologia molecular em ascensão, opor-se ao
reducionismo e ao determinismo da informação genética, bem como à conquista da biologia
pela cibernética” (DUPUY, 1996 [1994], p. 175); e, em segundo lugar – mas ainda mais
importante para este trabalho por se tratar de posição valiosa para a cognição corpórea –,
defenderá a noção de autonomia do sistema nervoso. Ainda de acordo com a narrativa de
Dupuy sobre o Simpósio Hixon, Weiss, em réplica a afirmação de McCulloch em uma
palestra sobre a percepção depender exclusivamente da veracidade ou falsidade de um
estímulo dado ao globo ocular, defende o papel constitutivo do organismo sobre o estímulo.
Nas palavras de Dupuy,

Duas concepções radicalmente diferentes contrapõem-se aqui, precisa ele [Weiss]:


aquela que faz do sistema nervoso central uma simples máquina de transformar
mensagens de entrada em mensagens de saída; e aquela que o considera um sistema
que tem sua coerência interna própria; cujas características não são o reflexo das
estimulações sensoriais. (...) O que importa é dar finalmente o “golpe de
misericórdia” na velha ideia da psicologia associacionista de que é a estrutura do
input que determina a estrutura do output. O que não quer dizer, obviamente, que o
sistema nervoso esteja isolado do mundo exterior. Simplesmente, o input só age
como gatilho ou detonador, que “escolhe” entre diversos modos de funcionamento
autônomo do sistema e eventualmente, os altera (DUPUY, 1996 [1994], p. 181).

Numa primeira análise, o que estava em jogo no Simpósio Hixon, de acordo com
Dupuy, era uma controvérsia fundamental para a presente pesquisa: aquela que opunha o
modelo lógico-proposicional, expresso pela imagem do cérebro como dispositivo processador
de informações mediante a operação de um nível simbólico-mecânico desencarnado, à
157

concepção do cérebro como um órgão corporal que interfere ativamente na cognição, e na


qual não há lugar para um nível simbólico apriorístico e desencarnado, a não ser como
abstração a posteriori. Evidentemente, McCulloch era apontado como defensor da primeira
posição, demonstrando com isso um reducionismo lógico da cognição. Porém, esta
divergência revela outra, a ela subjacente: a de que a redução da cognição ao nível lógico
supunha um funcionamento mecânico também do cérebro, tal como já foi visto anteriormente
ser a suposição básica de McCulloch e Pitts, expressa no artigo de 1943, bastante comentado
no primeiro capítulo deste trabalho, o que, de acordo com Dupuy, fazia parte da contestação
expressa por Weiss no Simpósio Hixon. Para Dupuy, esta é uma inferência que se reforça com
base em formulação posterior de Weiss. Na descrição de Dupuy, Weiss afirmou algo que se
aproximou das posições de Bertalanffy sobre a descontinuidade observada nos sistemas vivos,
embora expressa de outra forma. Dupuy faz menção à seguinte passagem de Weiss, em favor
de sua suposição:

Considerando-se a célula como uma população de partes de várias magnitudes, a


regra de ordem é objetivamente descrita pelo fato de que o comportamento
resultante da população como um todo é infinitamente menos variante de momento
a momento do que são as atividades momentâneas de suas partes. Apesar do fluxo
contínuo de componentes, tanto em relação à composição quanto à localização, o
sistema como um todo conserva o seu caráter. Pequenas moléculas entram e saem,
macromoléculas se partem e são substituídas, partículas de perdem e ganham
constituintes macromoleculares, se dividem e se fundem, e todas as peças se movem
em um momento ou outro, de forma imprevisível, de modo que é seguro afirmar que
em nenhum momento na história de uma determinada célula, e muito menos em
estágios comparáveis de células diferentes, jamais as mesmas constelações de partes
vão precisamente se repetir.
Por outro lado, no entanto, não se encontra esta singularidade, portanto
imprevisibilidade, no preciso estado e distribuição de componentes refletidos no
sistema resultante total, cujo padrão geral e comportamento (ou o que geralmente se
refere como "organização'') permanecem relativamente inalterados, portanto,
previsíveis. Isto nos força a concluir que, embora os membros individuais da
população molecular e partículas tenham um grande número de graus de liberdade
de comportamento em direções aleatórias, a população como um todo é um sistema
que restringe esses graus de liberdade, de tal maneira que o seu comportamento
conjunto converge para uma resultante não aleatória, mantendo o estado da
população, como um todo, relativamente invariante (WEISS, 1968, p. 6 – grifos do
autor)

Esta importante questão apresentada por Weiss recebe a seguinte complementação de


Isabelle Stengers, aplicável à discussão entre McCulloch e Weiss: “O verdadeiro problema é
saber como o comportamento do sistema nervoso pode ser estável, muito mais estável do que
as estruturas moleculares que o produzem” (STENGERS, 1985, p. 74). Pode-se notar que a
questão proposta por Weiss tem correspondência com aquelas levantadas por Bertalanffy, na
medida em que, mesmo diante de um comportamento mais variado e incerto de suas partes, o
158

sistema vivo estabelece um padrão mais estável para si mesmo, o que lhe permite se contrapor
à tendência de aumento de indiferenciação e entropia atribuída aos sistemas inanimados. Dito
de outra forma: embora as menores partes do sistema vivo – no caso em análise, o sistema
corresponde à célula, mas também aos agregados de células como o sistema nervoso – ainda
se comportem como seres inanimados, sua aglutinação orgânica adquire um padrão diverso,
de tal modo que “níveis de integração superiores não são redutíveis aos níveis inferiores”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 182). Na verdade, Dupuy afirmou algo que vai além: para ele,
Weiss enxerga nesta diferença de padrões uma causalidade mútua, em que o todo também
determina e restringe o comportamento das partes, estabilizando-o, e antecipando aquilo que
61
mais tarde será chamado de causalidade “top-down” , ou “descendente”. Dupuy chega a
chamar essa mútua causalidade de codeterminação e a identificá-la com o que Varela
denomina, segundo Dupuy, “princípios de autonomia biológica”. A autonomia viria do fato de
o todo não se subordinar às partes e nem ao exterior, contrariando a concepção “bottom-up”,
ou “ascendente”, “que consiste em partir de elementos completamente especificados, bem
como de suas conexões, e em deduzir daí as propriedades da totalidade que eles constituem”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 198).
É preciso assinalar que, neste momento, as divergências entre a primeira e a segunda
cibernética se tornam mais evidentes e radicais. Conforme a interpretação de Dupuy, a
primeira “cibernética falhou neste ponto, justamente quando colocava suas conferências
fundadoras sob o signo da ‘causalidade circular’” (DUPUY, 1996 [1994], p. 183)62. Neste
sentido, a causalidade circular da primeira cibernética constitui algo muito mais simples do
que a codeterminação que se configura com a Segunda Cibernética – se Weiss for
considerado, como tem sido feito aqui, uma autor afinado com esta abordagem. Além disso,
acrescentada às formulações de Von Bertalanffy, a proposição de Weiss sobre a relação entre
as partes e o todo de um sistema vivo contribui para que se compreendam melhor as
profundas diferenças entre as noções de sistema de matriz newtoniana, aquela comum à
primeira cibernética (e que foi influente no cognitivismo) e as que foram precursoras dos
sistemas auto-organizados, e dos dotados de emergência e complexidade. Numa análise que

61
Para um estudo sobre este tema, afinado com o conteúdo do presente trabalho, e que relaciona vasta
bibliografia a respeito, v. VARELA et al, 2001.
62
Quanto a este ponto, é preciso observar a sugestão de Dupuy de que McCulloch teria, de algum modo,
defendido a ideia de causalidade “top-down” (DUPUY, 1996 [1994], p. 198). Contudo, esta suposição não seria
capaz de contrariar a tese, em parte defendida pelo próprio Dupuy, de que tanto na primeira cibernética quanto
no cognitivismo teria sido predominante a noção de causalidade “bottom-up”.
159

reforça a questão da complexidade e do conexionismo afetado por esta, a imagem


mecanicista, para Dupuy, seria

Uma abordagem simples do real. Se a totalidade se deduz simplesmente dos


elementos, é porque estes já contêm a inteligência da totalidade. (...) Contrastando
com isso, podemos dizer que a concepção do organismo vivo como auto-
organização não é nem de tipo “descendente”, nem de tipo “ascendente”, já que
implica codeterminação do todo e dos elementos. O problema tal como Paul Weiss o
colocava, e tal como é hoje retomado pelos neoconexionistas, é o dos
comportamentos coletivos estáveis de que é capaz uma rede de elementos
interconectados que só definimos de maneira “aleatória". É essencial entender que
“aleatório” já não quer dizer aqui que o sistema não é determinista, mas sim que as
conexões foram obtidas ao acaso. Elas não são, pois, destinadas a priori a realizar
um projeto coletivo, é a totalidade particular que elas produzirão efetivamente nestas
ou naquelas circunstâncias que, a posteriori, lhes dará sentido (DUPUY, 1996
[1994], p. 198-199).

Assim, a questão da auto-organização, a partir da interpretação de Weiss por Dupuy,


ao ser pensada como uma maneira radical de se contestar a imagem mecanicista do ser vivo e
da cognição, traz a complexidade e a aleatoriedade para o âmbito do determinismo, o que
revela, juntamente com o da codeterminação, mais um tema filosófico e científico
aparentemente paradoxal a ser enfrentado pela cognição corpórea. Como será constatado um
pouco mais à frente, este aparente paradoxo se manifesta no tema da emergência. Veremos
que o debate em busca de uma alternativa ao mecanicismo e ao vitalismo mobilizou, por
exemplo, C. D. Broad, em seu livro The mind and its place in nature, de 1925 – no que se
percebe a dificuldade de se separar a questão da auto-organização da questão da emergência,
em sistemas vivos, embora, como teremos ocasião de notar, o desenvolvimento dos dois
conceitos tenha se dado de maneira consideravelmente independente.
Dupuy ainda salientou que a questão da circularidade causal tal como concebida por
Weiss esteve praticamente ausente das discussões das Conferências Macy. Mas outra
discussão ocorreu em uma das conferências finais desta série que pode ser considerada uma
ruptura entre a primeira e a segunda cibernéticas, e que também contribuiu para a redefinição
das propriedades da noção de sistema. Na opinião de Dupuy o debate revela uma limitação,
ou contradição, da primeira cibernética. Trata-se das controvérsias protagonizadas por W.
Ross Ashby a partir de sua construção hipotética chamada de homeostato.
Na nona e penúltima conferência Macy, em março de 1952, Ashby apresentou o seu
homeostato que, nas palavras de Dupuy, era um modelo matemático de autômato cibernético
representando “a interação de um organismo - o ‘cérebro’- e de seu meio ambiente”. Mas,
para Dupuy, segundo sustentou em sequência, o homeostato
160

Não serve a nenhum projeto, não é concebido para realizar nenhuma tarefa. É uma
“experiência de pensamento” destinada a ilustrar uma tese que Ashby gostaria que
fosse universal: longe de serem acidentes extremamente improváveis da evolução, a
vida e a inteligência desenvolvem-se necessariamente em todo sistema isolado. Estar
vivo é ter a capacidade de manter um pequeno número de variáveis “essenciais” no
interior de certos limites fisiológicos, e isso para uma gama muito ampla de
ambientes diferentes (DUPUY, 1996 [1994], p. 202).

Esta ousada formulação de Ashby supõe também que a estabilização seja uma forma
de seleção própria a toda máquina – sendo o cérebro apenas mais uma delas –, tal como
asseverou mais tarde (mas acompanhando o mesmo sentido), no seguinte trecho:
Ao ir de qualquer estado em direção a apenas um de equilíbrio, o sistema passa de
um maior para um menor número de estados. Desta forma, está realizando uma
seleção, no sentido puramente objetivo de que rejeita alguns estados, ao abandoná-
los, mas mantém algum outro estado, aderindo a ele. Assim, como todo sistema
determinado segue rumo ao equilíbrio, desta forma ele realiza uma escolha.
Ouvimos ad nauseam a afirmação que uma máquina não pode selecionar; mas a
verdade é exatamente o oposto: cada máquina, toda vez que segue rumo ao
equilíbrio, realiza o correspondente ato de seleção (ASHBY, 1962, p. 270).

Além dos pressupostos de que a inteligência seja um resultado necessário com o


tempo, e de que a estabilização de um sistema possa ser entendida como uma seleção por este
realizada, Ashby entendia a estabilização como uma forma de adaptação (ASHBY, 1962;
DUPUY, 1996 [1994], p. 202; PESSOA, 2001, p. 31; FROESE &STEWART, 2010). Mas há
uma ideia que completa este modelo que gerou maiores reações dentre os primeiros
cibernéticos, como Walter Pitts e Julian Bigelow, ainda de acordo com a narrativa de Dupuy.
Trata-se da afirmação de Ashby, feita na conferência Macy de 1952, de que as máquinas
encontram (ou, como já se sublinhou, “escolhem”) o equilíbrio por ação do acaso.
Diante dela, Bigelow questionou: “De que maneira o senhor pensa que a descoberta
aleatória de equilíbrio por esta máquina é comparável a um processo de aprendizado?” (VON
FOERSTER, 1952, p. 103). À estranheza de Bigelow quanto à máquina “aprender” por
movimentos aleatórios Ashby teria retrucado: “Eu penso que a palavra ‘aprender’, entendida
num sentido objetivo, sem considerar nada obtido introspectivamente, é baseada neste tipo de
coisas acontecendo” (Id. Ibid.). Na interpretação de Dupuy, este foi o grande embate,
causador do maior ferimento causado por Ashby à primeira cibernética: expor para os
primeiros cibernéticos que eles precisavam supor um nível intencional (mental, espiritual,
algorítmico, anímico) acima do nível mecânico físico para explicar as escolhas adaptativas
dos sistemas. Como já foi visto no primeiro capítulo deste trabalho, esta suposição de um
nível representacional, simbólico, não significou problema para o cognitivismo. Foi, ao
contrário, uma solução que impulsionou o florescimento das ciências cognitivas. Mas com
este desafio, Ashby denunciava a fragilidade do pressuposto unicamente mecanicista da
161

primeira cibernética, expondo sua dependência da metafísica – se esta última for entendida
como algo além do nível físico das máquinas materiais.
Enfatizando a premissa de Ashby de que o comportamento do homeostato é descritível
puramente através de uma função matemática, Isabelle Stengers reconhece o fado
determinista de que

a única definição racional possível de um comportamento possível de um sistema


deve ser em termos de uma função que, dado um estado do sistema e do ambiente,
determina o estado seguinte – a guilhotina pode cair. A auto-organização, entendida
como a modificação, a autodeterminação, pelo sistema desta função, é impossível,
ou então ela traduz somente o fato de que a função que parece se auto modificar foi
mal definida. A função é uma constante do sistema, que não pode ser alterada,
exceto por uma outra função que determine a mudança da primeira, e que deveria ser
incluída na definição. A auto-organização é, portanto, uma aparência (STENGERS,
1985, p. 46).

Deste raciocínio se infere que a auto-organização como criação e livre escolha, ao


menos no âmbito do próprio sistema, não tem lugar para Ashby. Seu autômato, assim, se
assemelha ao computador que não tem como decidir para além das instruções que recebe, e
cujo sistema simbólico abstrato é o único nível onde os significados que o fazem operar
podem estar presentes. Não se vê na teorização de Ashby a preocupação com a
descontinuidade no padrão de modificação no tempo entre os seres inanimados e os vivos –
como em Von Bertalanffy – ou ente as partes e o todo – como em Weiss. Sua concepção de
auto-organização, portanto, não se baseia – o que, consequentemente, não procura explicar –
num modo diferente de dinâmica entres seres vivos e não vivos. Neste aspecto, Ashby estava
mais próximo da primeira cibernética.
Esta concepção de Ashby, evidentemente, já anunciava uma divergência no meio da
Segunda Cibernética, entre ele e Von Foerster, por exemplo. Mas teria servido para
estabelecer com maior clareza os caminhos que divergiriam a partir daí, e que são aqueles que
a presente pesquisa tem em sua mira principal. O trabalho de Ashby posterior às suas
intervenções na 9ª Conferência Macy – incluindo publicações como o livro Design for a brain
(1952) e o importante artigo de 1962, além de sua participação no já citado Biological
Computer Laboratory – teve outros desdobramentos para a Segunda Cibernética, e mesmo
para a cognição corpórea. Isto revela um duplo papel de Ashby nas bases da cognição
corpórea: tanto sua influência na transição da cibernética para as ciências cognitivas, sem o
que não haveria o campo multidisciplinar em que a cognição corpórea atua, quanto no seu
papel direto na formação das teses desta última. Sobre este ponto, afirma Tom Froese:
162

No entanto, a desintegração do campo da [primeira] cibernética, que é


tradicionalmente associada com as Conferências Macy, também forneceu a
oportunidade para uma segunda geração de pesquisadores levarem os princípios da
cibernética a um território inexplorado. Mais importante, o próprio trabalho de
Ashby sobre adaptação e ultra-estabilidade (v. ASHBY 1956; 1960) preparou o
palco para a emergência da escola de Santiago de biologia cognitiva de Maturana e
de Varela (...). Além disso, a presença de Ashby no Biological Computer
Laboratory de Von Foerster foi certamente influente para o desenvolvimento
posterior da cibernética de segunda ordem (cf. FOERSTER, 1979) (FROESE, 2010,
p. 04).

Contudo, desta afirmação de Froese acerca da influência de Ashby sobre a Segunda


Cibernética e a Escola de Santiago suscita uma questão: como Ashby poderia ter contribuído
positivamente para estas correntes, se elas afirmaram formas de auto-organização e ele teria
demonstrado ser esta última impossível? Ainda segundo Froese, estas tradições
aceitaram o homeostato de Ashby como uma prova de conceito e adotaram seu
esquema dinâmico, mas então tiveram de encontrar maneiras de resolver algumas de
suas limitações fundamentais. Dois desafios derivados da obra de Ashby são
particularmente notáveis a este respeito (Id. ibid.).

Tais desafios seriam, de acordo com Froese: a) pode haver auto-organização?; e b)


qual o papel do observador?
Quanto ao primeiro ponto, Froese afirma que uma resposta positiva à possibilidade de
auto-organização, mesmo após as objeções de Ashby anteriormente referidas, decorreria de
uma ideia deste mesmo autor: a ocorrência de ruído externo ao sistema pode ser o elemento
crucial, a perturbação necessária para que as configurações um sistema não se limitem às suas
próprias determinações. Segundo Froese, o efeito do ruído externo para Ashby, além de ter
relação com a tese da “ordem pelo ruído”, de Von Foerster, pode ser formalizado
matematicamente como machine “breaking” e explicado pelo conceito de ultra-
estabilidade63. Por outro lado, Maturana teria respondido a este desafio fundando a auto-
referência na autoprodução material – o que será explorado mais à frente (FROESE, 2010, p.
5). O que desponta nesta interpretação de Froese – e que interessa sobremaneira a este
trabalho – é que a perturbação aventada remete à influência do ambiente no sistema. Isto é
importante quando se trata da cognição dos sistemas vivos, mas sobretudo tendo em vista a
relevância que a cognição corpórea dá ao ambiente no processo cognitivo. Ademais, uma
observação de Froese deve ser ressaltada: diz respeito ao fato de que tanto Von Foerster
quanto Maturana teriam avançado em relação às limitações de Ashby para a auto-organização,
ao levarem em conta a questão material, isto é, a constituição física e biológica dos sistemas –
o que não estaria no centro do modelo ashbyano (Id., ibid.). Evidentemente, a questão da

63
Para maior aprofundamento no conceito ashbyano de ultra-estabilidade, v. ASHBY, 1947, FROESE &
STEWART, 2010.
163

constituição material do sistema deve ser tratada como inseparável da sua relação com o
ambiente. Como já foi salientado anteriormente, os sistemas a partir da Segunda Cibernética
e, especialmente, para a cognição corpórea, são sistemas abertos de transformações e
intercâmbio de matéria e energia com o meio exterior. A influência de Ashby sobre estas
correntes teria sido impeli-las a romper a limitação imposta por ele mesmo, ao ter concebido
os sistemas auto-organizados como entidades basicamente abstratas, imaginárias, e não
dotadas de interação concreta com o mundo.
Em relação ao papel do observador, de certo modo a mesma questão se coloca, se for
seguida a argumentação de Froese, a partir do que ele chama de “guinada epistemológica”
(Id., ibid.). Isto porque o que se apresenta como questão epistemológica é, justamente, o
enfoque dado às relações entre o sistema observado e o sistema observador, nas quais, como
veremos à frente, a cognição corpórea identifica um sentido basicamente material ou, mais
precisamente, na forma de fluxo de matéria e energia. Mas, por ora, devemos nos concentrar
na afirmação de Froese de que Ashby, embora identifique na relação de observação
propriedades que não são intrínsecas à coisa observada, mas à relação em si, de certo modo
reage a esta constatação:

Curiosamente, o fato de que essa admissão é uma primeira indicação da natureza


fundamentalmente relacional de todo o conhecimento, na medida em que depende
do ponto de vista de nossas observações, não é reconhecido por Ashby. Pelo
contrário, ele lamenta que a abordagem sistêmica que está desenvolvendo tenha de
lidar com uma "peculiaridade não encontrada nas ciências mais objetivas de física e
química" (...). É possível que essa concepção bastante ingênua do trabalho das
"ciências duras" represente para ele a situação científica ideal, que ele busca imitar
em suas tentativas de desenvolver conceitos de fenômenos biológicos que são
"puramente objetivos" (Ibid.).

Neste sentido, a tendência de Ashby seria se manter nos limites da noção de sistema
mecanicista, como já foi tratado anteriormente – assim como no que Froese identifica como
uma postura representacionista. Ao contrário de Von Foerster, que teria operado a “guinada
epistemológica”, como será abordado a seguir, quando estiverem em foco acontecimentos já
posteriores às Conferências Macy.
Por ora, cabe um resumo da análise aqui feita da importância destas conferências na
formação das duas correntes das ciências cognitivas aqui estudadas. Nele, tem-se que a
imagem científica mecanicista do ser humano se viu abalada em decorrência dos estudos dos
sistemas de tal maneira que se pode questionar se isto contribuiu para o definhamento da
primeira cibernética. Este fato se explicaria, ao menos em parte, pelos ataques proferidos à
primeira cibernética, liderados por autores como Von Bertalanffy, Paul Weiss e W. Ross
164

Ashby – alguns deles no próprio “território” da primeira cibernética, como as Conferências


Macy e o Simpósio Hixon.
Entretanto, um dos acontecimentos mais significativos dentre os que acompanharam
as transformações no conceito de sistema, tais como aqui examinadas até o início dos anos
1950, corresponde não apenas à perda de adeptos que atingiu a primeira cibernética, mas
também ao fato de esta ter dado lugar, como campo de investigação interdisciplinar, às
ciências cognitivas. Como já foi assinalado na seção 1.1.2, a partir da conferência de 1956 no
Dartmouth College as ciências cognitivas começaram a se estabelecer nas universidades e
centros de pesquisa, sobretudo dos EUA. A disposição de intensa colaboração entre
pesquisadores de várias origens para estudar o ser humano e as máquinas em conjunto, que
teve nas Conferências Macy uma concretização exemplar, foi transferida para o novo espaço
de produção científica e tecnológica que as ciências cognitivas formaram. Mas,além disso,
motivada por investidas como as de Von Bertalanffy, Paul Weiss e Ashby, a cibernética,
ainda que muito transformada – e muitas vezes nem mesmo usando o antigo nome –,
sobreviveu na sua segunda fase, paralelamente às ciências cognitivas, trazendo novas questões
que, de acordo com a suposição adotada neste trabalho, seriam tomadas como pontos de
partida da cognição corpórea, reencontrando, assim, as ciências cognitivas mais à frente. É
preciso lembrar também que a imagem mecanicista do ser humano, atribuída por alguns
autores à primeira cibernética, teria sido herdada pelas ciências cognitivas – com seus
sistemas de processamento de informações –, mas continuou sendo combatida na Segunda
Cibernética e pela Teoria Geral dos Sistemas.
Desta maneira, encerrada a investigação do período das Conferências Macy com vistas
a compreender os antecedentes da cognição corpórea, veremos que passaram a conviver – em
disputa – nas décadas seguintes duas noções principais de sistemas abertos: a dos sistemas
simbólicos do cognitivismo, representando sobretudo o fluxo linear de informações abstratas,
e a da Teoria Geral dos Sistemas e da Segunda Cibernética, representando sobretudo o fluxo
complexo de energia e matéria – cenário de tensão em que surgiu, mais tarde, a cognição
corpórea, como um retorno dos temas da segunda fase da cibernética às ciências cognitivas.
Isto faz com que o próximo foco da presente investigação se dirija aos anos 1960 e 1970, para
prosseguir no exame dos temas da auto-organização, complexidade e emergência, que alguns
costumam resumir, ainda que com certa imprecisão, no primeiro dos termos. Este é o caso de
Dupuy, na seguinte asserção:
165

Nos anos 60 e 70, a cibernética, que se tomara “segunda cibernética” ou “cibernética


de segunda ordem”, sobreviveu a si própria e se mostrou capaz de desenvolver uma
corrente de pesquisas sobre os “sistemas de auto-organização". (DUPUY, 1996
[1994], p. 73 – grifo meu).

Pode-se retomar então que a noção de auto-organização foi engendrada, também, de


modo intrinsecamente articulado com a questão do papel do observador e de sua situação,
como se destacou na obra de Heinz Von Foerster, e se pontua no seguinte excerto:

Enquanto a primeira geração da cibernética culminou com a percepção de que o


conhecimento de um sistema é essencialmente dependente do observador, a segunda
geração da cibernética, que tentou desenvolver sistematicamente a visão sobre uma
teoria cibernética do observador, culminou com a consciência de que o observador é
essencialmente dependente da situação em que se encontra (FROESE, 2011, p. 8-9).

Esta é a particularidade que induz também a que se chame a Segunda Cibernética de


cibernética de segunda ordem, como feito por Dupuy na citação acima.
Porém, antes de abordar a condição do observador como dependente de uma situação,
é preciso retomar o que Froese chamou de “guinada epistemológica”, como atitude bastante
diferente daquela que, de certa maneira, teria sido compartilhada pela primeira cibernética e
pelo cognitivismo – e também por Ashby:

Contra a hipótese de uma epistemologia representacionista da primeira geração de


cibernéticos, que Ashby manteve, o passo decisivo que lançou a cibernética de
segunda ordem como uma abordagem diferente pode ser definido por uma guinada
epistemológica. Ela aceitou e incorporou o que a pesquisa anterior em cibernética já
começara a mostrar: que o conhecimento científico é um fenômeno relacional no
domínio das explicações que não representa, e nem pode representar, uma realidade
independente do observador. Em outras palavras, a relatividade das ideias sistêmicas
na perspectiva do observador, anteriormente conhecida apenas pela primeira geração
da cibernética em termos da arbitrariedade de escolhas envolvidas em distinguir um
sistema particular de interesse, foi agora explicitada e mais radicalizada ainda (Id.,
ibid. – grifo meu).

A epistemologia de que aqui se trata corresponde, portanto, a uma postura que tende a recusar
o caráter representacional da cognição, e clama por um papel ativo do observador. Contudo,
ela teria tido sua inspiração mais imediata nos trabalhos de um autor identificado não apenas
com a primeira cibernética, mas justamente com a imagem computacional e representacional
da cognição: Warren McCulloch. Já foi dito anteriormente que McCulloch acreditava estar
tratando a psicologia e a epistemologia de modo incorporado com suas pesquisas nos final da
primeira metade do século 20, embora já tenhamos visto os efeitos que suas formulações
produziram no sentido oposto. Um testemunho desta sua crença aparece na frase: “Fazer
psicologia em epistemologia experimental é tentar entender a corporeidade da mente”
(MCCULLOCH, 1988 [1965], p. 2). Acompanhando o entendimento de Tom Froese, é
166

preciso destacar dois aspectos do legado de McCulloch quanto a este ponto. De um lado,
trata-se de notar que autores como Von Foerster, Maturana e Varela prosseguiram no desafio
de realizar pesquisas experimentais, seja diretamente em seres vivos ou por simulações
computacionais, com interesse no papel ativo do observador na constituição dos objetos do
conhecimento (FROESE, 2010 e 2011). De outro lado, sobretudo Maturana e Varela
aprofundaram a epistemologia experimental a ponto de romper definitivamente com o modelo
representacional de McCulloch, em seus trabalhos a partir dos anos 1970 (VARELA,
MATURANA & URIBE, 1974; MATURANA & VARELA, 1998, 2010), fazendo com que a
cognição fosse compreendida de modo inseparável da vida e dos organismos. Isto é, se
McCulloch em algum momento expressou seu intuito de mais propriamente encarnar a
cognição no organismo, não foi ele mesmo quem alcançou este objetivo.
Porém, é preciso ainda examinar o papel de Von Foerster na ruptura com a primeira
cibernética, e sua importância para a constituição da cognição corpórea, tendo em vista sua
insistência no papel ativo do sistema observador. Esta foi uma mudança fundamental em
relação não apenas à primeira cibernética, mas também ao cognitivismo, ainda que, como
estamos prestes a verificar, possua ainda algumas limitações. Mesmo assim, por esta razão –
mas também por outras, principalmente as relacionadas à sua intervenção direta no ambiente
científico, que abordaremos adiante –, Von Foerster deve ser considerado o mais importante
autor, dentre os associados à Segunda Cibernética, na formação dos antecedentes da cognição
corpórea. Seu conceito de trivialidade ilustra bastante bem suas preocupações críticas do
modelo computacional da cognição, e revela teor ético e político de sua abordagem – já
antecipando a postura crítica e política da cognição corpórea. Vejamos como se dá esta
formulação:

Deixe-me apresentar dois conceitos, que são os de máquina "trivial" e "não trivial".
O termo "máquina" neste contexto refere-se a propriedades funcionais bem definidas
de uma entidade abstrata, e não a um conjunto de engrenagens, botões e alavancas,
embora tais mecanismos possam representar realizações físicas daquelas entidades
funcionais abstratas. Uma máquina trivial é caracterizada por uma relação um-para-
um entre o seu "input" (estímulo, causa) e seu "output" (resposta, efeito). Esta
relação invariável é "a máquina". Uma vez que esta relação seja determinada de uma
vez por todas, este é um sistema determinístico; e dado que um output uma vez
observado para a um determinado input será o mesmo para o mesmo input que se dê
mais tarde, este é também um sistema previsível. Máquinas não triviais, no entanto,
são criaturas bastante diferentes. Sua relação de input-output não é invariante, mas
determinada por um output anterior da máquina. Em outras palavras, os seus
próprios passos anteriores determinam as suas reações presentes. Embora estas
máquinas sejam ainda sistemas determinísticos, para todos os sentidos práticos elas
são imprevisíveis: um output, uma vez observado para um dado input,
provavelmente não será o mesmo para o mesmo input dado posteriormente. (VON
FOERSTER, 1972, p. 6).
167

Os sistemas não triviais são capazes de usar, como inputs alternativos, outputs
produzidos por eles mesmos – ou externos à sua configuração, e assim inesperados –, de tal
modo que não têm a mesma condição de previsibilidade dos sistemas triviais. Von Foerster,
no mesmo texto, dá o exemplo de estudantes que, diante de um teste de conhecimentos,
oferecem diferentes respostas. Os estudantes “triviais” dão respostas previsíveis, que podem
ser definidas como corretas ou erradas. Os estudantes “não triviais” oferecem respostas não
previsíveis e que, por isso, podem ser classificadas como erradas, embora possam estar
corretas segundo critérios alternativos. Com estas considerações, Von Foerster apresenta uma
critica ao sistema educacional preponderante em sua época que, em sua opinião, selecionava
os estudantes que se comportam como máquinas triviais. Esta concepção também adianta a
aplicação da complexidade aos sistemas cognitivos, e a medular noção de autotransformação
tão característica da cognição corpórea. Com a seguinte consideração ele define socialmente a
trivialização: “Um perfeito desempenho em um teste é indicativo de perfeita trivialização: o
estudante é completamente previsível e assim pode ser admitido na sociedade. Ele não
causará surpresas ou problemas” (Ibid.).
Contudo, Tom Froese alerta para a insuficiência da noção de máquina não trivial para
que se alcance a ideia de um papel efetivamente ativo – e autônomo – do observador. Em seu
entendimento, apenas uma perspectiva propriamente construtivista pode dar conta da
necessidade de superação da condição mecanicista das máquinas não triviais, que ainda as
condena a serem sistemas determinados (FROESE, 2010, p. 81). Não cabe nos propósitos
deste trabalho uma abordagem mais extensa da questão específica do construtivismo, sendo
preferível deixar para referi-lo através de menções feitas pelos próprios autores da cognição
corpórea. O que de mais importante deve resultar da discussão sobre a trivialidade tal como
posta por Von Foerster é exatamente a abertura que oferece para se romper com o
determinismo cognitivista e, além disso, ressaltar o sentido de autocriação da cognição,
desenvolvido sobretudo a partir da biologia cognitiva de Maturana e Varela. Dito de outra
maneira, o caráter mecânico presente na não trivialidade termina por estimular os críticos do
cognitivismo a fazerem com que a complexidade apenas insinuada na concepção de Von
Foerster seja radicalizada. Outro aspecto, passível de crítica pela cognição corpórea,
encontrado na noção de não trivialidade, é a não plenamente colocada questão da separação
entre sistemas observados e observadores. Neste sentido, devemos atentar para o fato de que
este problema será mais adequadamente enfrentado quando os autores da orientação corpórea,
através principalmente da iniciativa de Varela, buscarem embasamento filosófico na
fenomenologia, conforme será tratado adiante, e, assim, proporem, para além da guinada
168

epistemológica – tal como acima apresentada – uma guinada ontológica. A questão


ontológica, quando aplicada ao tema da relação entre sistema observador e sistema observado,
não se limita a discutir a realidade de cada um destes sistemas em separado, mas antes sua
inseparabilidade, ou, ainda, a relação entre ambos como de cocriação – como ficará mais claro
quando este trabalho se detiver no enativismo, adiante. Mas, para que se tenha uma ideia
antecipada e resumida da solução proposta, trata-se, no dizer de Froese, de lançar mão do
conceito de experiência vivida, sugerindo que:

(i) já participamos do mundo antes de nos isolamos através reflexão abstrata, e (ii)
não precisamos encontrar uma representação de nós mesmos como sujeitos
cognitivos em nossos "cérebros-computadores" porque nós já coincidimos com a
nossa própria experiência vivida (Ibid., p. 82).

O que aqui foi apontado como uma insuficiência da posição de Von Foerster
demonstra, de fato, que apenas com o surgimento da cognição corpórea a questão ontológica
da cognição seria mais radicalmente enfrentada. Considerado este fato de outro ponto de vista,
o que se conclui é que a Segunda Cibernética não avançou, do mesmo modo que a orientação
corpórea, na direção de uma ruptura ontológica tão radical com a primeira cibernética e, de
certo modo, com o cognitivismo.
Entretanto, antes de passarmos a tratar dos antecedentes filosóficos da cognição
corpórea e, assim, investigarmos mais de perto a que corresponde a aqui chamada guinada
ontológica, ainda há alguns pontos a explorar sobre a influência que esta sofreu da Segunda
Cibernética e, mais particularmente, de Von Foerster, Gordon Pask, e da noção de cibernética
de segunda ordem. Esta noção implica algo mais do que tão somente investigar o sistema
observado, ou mesmo o papel do observador. Com ela se apresenta uma ideia especialmente
nova nas considerações feitas até o momento sobre a transformação da noção de sistema,
sobretudo no que diz respeito à constituição da cognição corpórea. Vejamos por quê. Pask
diferencia, inicialmente entre um suposto objetivo independente que sistemas teriam, e o
objetivo que estes sistemas teriam para um utilizador:

A teoria cibernética de máquinas de somar não é apenas uma teoria de dispositivos


mecânicos que não têm nenhum objetivo. Refere-se diretamente ao processo de
adição e, indiretamente, ao utilizador da máquina de somar, isto é, o dispositivo
mecânico é necessariamente incorporado ao contexto que o torna significativo.
(PASK, 1969, p. 24).

Estabelecendo uma importante diferença desta posição para a concepção de Ashby, ele
prossegue:
169

A verdade da hipótese cibernética não pode ser decidida (em relação a um sistema
particular) no nível do tipo mais fundamental e simples de modelo: a "caixa preta"
de Ashby. Não importa quanto tempo um sistema identificado com tal modelo seja
observado, e não importa quantos experimentos sejam realizados através da variação
do input da "caixa preta": somente será possível dizer que o sistema se comporta
como se fosse (ou não) um sistema direcionado a um objetivo. (Id., ibid.)

Estas afirmações são de grande relevância. Elas defendem que o objetivo de um


sistema não se define em seu âmbito isolado, mas de acordo com a interpretação de um
observador. Este é que compreende o sistema como se tivesse um objetivo próprio. E realizar
esta interpretação é uma característica da relação. Dito de outro forma, é próprio da relação
entre observador e observado que o primeiro atribua objetivos ao primeiro. Sem a relação de
observação tal interpretação não ocorreria. Esta concepção expõe as limitações de se
considerar a existência e os objetivos de cada um dos sistemas, o observado e o observador,
isoladamente.
Von Foerster, dez anos depois destas colocações de Pask, concorda com elas, indo,
contudo, mais longe:

Sugiro que a cibernética dos sistemas observados possa ser considerada a cibernética
de primeira ordem, enquanto cibernética de segunda ordem é a cibernética de
sistemas de observação. Isto está de acordo com uma outra formulação que tem sido
dada por Gordon Pask. Ele também distingue duas ordens de análise. Àquela em que
o observador entra no sistema, estipulando a finalidade do sistema, podemos chamar
de "condição de primeira ordem". Em uma "condição de segunda ordem", o
observador entra no sistema, estipulando seu próprio propósito. A partir disso,
parece ficar claro que a cibernética social deve ser uma cibernética de segunda
ordem – a cibernética da cibernética –, a fim de que o observador que entra no
sistema seja autorizado a estipular seu próprio propósito: ele é autônomo (VON
FOERSTER, 1979)

Ao afirmar que a cibernética dos sistemas observados é a cibernética de primeira


ordem, enquanto que a cibernética dos sistemas observadores é a cibernética de segunda
ordem, Von Foerster identifica dois níveis de análise, mas que, como vemos, na cibernética
de segunda ordem estão imbricados. Dito de outra forma, o nível de análise de segunda ordem
implica o de primeira ordem – que, por sua vez, só faz sentido se há o segundo para
considerá-lo. Podemos exemplificar esta imbricação usando como exemplo exatamente o
homeostato de Ashby, tal como vimos que foi apresentado na 9ª Conferência Macy:
considere-se que, de acordo com a abordagem de Von Foerster, o homeostato seja um modelo
que não faria sentido fora de um estudo feito pelo próprio Ashby. Porém, embora o modelo de
Ashby considere a relação do sistema com o ambiente – e mesmo que esta relação seja
fundamental para a organização do sistema, dado que a organização ocorre em função da
170

adaptação do sistema ao mundo exterior –, a formulação do próprio Ashby não comporta dois
níveis de análise como os propostos por Von Foerster.
Entretanto, não é nesta diferenciação entre dois níveis interdependentes que Von
Foerster mais se aproxima da cognição corpórea. Sua formulação mais afim com esta
abordagem encontra-se explicitada em três postulações no final da citação acima: de que a
cibernética de segunda ordem é uma cibernética social, de que o observador tem o poder de
estabelecer seu próprio objetivo e – mais importante – que esta última característica define
sua autonomia.
A autonomia, para Von Foerster, tem um caráter eminentemente correlacional – entre
o sistema observador e os sistemas observadores – mas, evidentemente, seu polo principal é o
sistema observador, uma vez que é nele que a autonomia se expressa e se produz. Além disso,
a autonomia se caracteriza mais propriamente quando o sistema observador tem a si como
sistema observado e, nesta condição, estipula o propósito de si mesmo. E ela se destaca tendo
como fundo o ambiente – no caso da citação acima, o ambiente social. A autonomia, portanto,
é uma característica dos sistemas vivos, que se manifesta de modo especial nos seres humanos
– e, segundo a cognição corpórea, está intimamente ligada ao fato de que, nos humanos, a
auto-estipulação de propósito é ao mesmo tempo um traço cognitivo e de sobrevivência.
Assim os sistemas autônomos são a noção mais próxima, nas transformações que aqui
são estudadas na noção de sistema, daquela utilizada na cognição corpórea – e que mais
radicalmente rechaça a noção de sistema simbólico do cognitivismo e, de modo semelhante,
se afasta da ideia de sistema da primeira cibernética. Veremos nas próximas seções como a
noção de autonomia se faz presente nas abordagens que compõem a cognição corpórea. Mas
podemos desde já afirmar que é através da abordagem corpóreo-enativista que a autonomia
ganha maior relevância para as ciências cognitivas de orientação corpórea, ao demarcar a
importância do organismo individual em sua explicação da cognição. Isto fica patente na
seguinte afirmação de Evan Thompson: “Um ponto chave é que a abordagem enativa explica
a individualidade64 e a subjetividade desde o início levando em conta a autonomia própria de
seres vivos e cognitivos” (THOMPSON, 2007, p. 14). E a relação entre a noção de autonomia
e a crítica ao cognitivismo já havia sido explicitada no livro fundador do enativismo, lançando
mão da noção de clausura (ou fechamento) operacional:

64
No original selfhood.
171

Uma importante e ampla mudança está começando a ocorrer nas ciências cognitivas
em decorrência de sua própria pesquisa. Essa mudança exige que nos afastemos da
ideia do mundo independente e extrínseco em direção à ideia de um mundo
inseparável da estrutura desses processos de automodificação65. Essa mudança de
postura não expressa uma mera preferência filosófica; ela reflete a necessidade de
compreendermos os sistemas cognitivos não com base nas relações entre
informações (input) e comportamento (output), mas a partir de sua clausura
operacional. Em um sistema operacionalmente fechado, os resultados de seus
processos são os próprios processos. A noção de clausura operacional é uma forma
de especificar classes de processos que, na sua própria operação, voltam-se sobre si
mesmos para formar redes autônomas. Essas redes não se enquadram na classe de
sistemas definidos por mecanismos externos de controle (heteronomia), mas, ao
contrário, na classe de sistemas definidos por mecanismos internos de auto-
organização (autonomia). O ponto chave é que esses sistemas não operam por
66
representação. Em vez de representar um mundo independente, eles enatuam em
um mundo como um domínio de distinções inseparável da estrutura incorporada
pelo sistema cognitivo (VARELA et al, 1991, p. 139-140).

Com auxílio desta passagem, podemos compreender melhor como se concluiu a


transformação na noção de sistema, ao longo do período examinado nesta seção, de modo a se
configurar da maneira empregada na cognição corpórea. E do mesmo modo que a noção de
cognição corpórea só é mais bem compreendida através de seu oposto, o cognitivismo – e
vice-versa –, a ideia de autonomia fica mais clara quando contrastada com a de heteronomia.
Além disso, podemos perceber que a auto-organização, para a abordagem corpóreo-enativista,
se define mais propriamente pela noção de autonomia. Mais adiante, será analisada a evolução
da noção de autonomia na abordagem corpóreo-enativista, levando-se em consideração o
conceito de autopoiese, desenvolvido por Francisco Varela e Humberto Maturana nos anos
1970. E embora as outras abordagens da cognição corpórea de alguma forma compartilhem a
ideia de autonomia como característica dos sistemas vivos e cognitivos, foi a abordagem
corpóreo-enativista que mais se ocupou dela.
O que de mais essencial havia a ser considerado em relação aos sistemas auto-
organizados, nos antecedentes da cognição corpórea, foi feito nos últimos parágrafos. Porém,
com o intuito de concluir as observações sobre as influências recebidas pela cognição
corpórea no campo biofisiológico, é ainda necessário fazer alguma referência aos conceitos,
complementares ao de auto-organização: os de emergência e complexidade.

65
Aqui os autores se referem à noção de automodificação dos processos cognitivos defendida por Marvin
Minsky em The Society of mind (MINSKY, 1985).
66
Juntamente com o neologismo substantivo “enação” (enaction), o enativismo propõe também o verbo
“enatuar” (to enact) para designar sua compreensão da ação cognitiva.
172

2.1.4. A noção de emergência

O conceito de emergência tem relação com o que foi chamado, acima, de causalidade
organicista, ou seja, com as abordagens de Bertalanffy e Weiss. Isto é, busca dar conta de
descontinuidades observadas entre o comportamento individual de elementos de um sistema e
o comportamento global deste último. E, embora, na história da ciência, não se aplique apenas
ao desenvolvimento dos sistemas vivos, no que concerne à cognição corpórea seu sentido é,
basicamente, o de explicar processos orgânicos e mentais de modo não reducionista. Para
ficar mais claro seu emprego na cognição corpórea, levemos em conta o seguinte fragmento
de Varela, no qual é ressaltado o sentido ontológico da emergência:

A noção de emergência é difícil, pois embora essencial, tem sido geralmente mal
interpretada. Utilizo o termo emergência em um sentido mais técnico. Quando
observamos a forma como o cérebro funciona, ou melhor, o funcionamento do
processo de cognição, há cada vez mais evidências de que estamos lidando com
componentes muito individuais, neurônios ou grupos de neurônios, ou populações
de neurônios. O trabalho do neurocientista é investigar essas células e tratar de
compreender seu funcionamento, a impressionante riqueza do cérebro e a
complexidade extraordinária de milhões e milhões de conexões complexas.
Podemos nos referir a esses elementos locais em interação como regras locais; essas
regras locais e interações locais não são como a transferência de informações em um
computador – o envio de mensagens de um lado para outro de forma sintática ou
programática. Estas interações ocorrem em tempo real de forma muito rápida,
dinâmica e simultânea. O que disso se depreende é algo que ainda não parou de me
surpreender, e é que a partir deste elemento local surge um processo global, um
estado global ou nível global que não é independente dessas interações locais
nem redutíveis a elas. Trata-se da emergência de um nível global que surge a partir
das regras locais; e que tem um status ontológico diferente, porque traz consigo a
criação de um indivíduo, ou de uma unidade cognitiva. Então, quando veem um
animal em movimento, ou me veem dirigindo-lhes a palavra, eu me comporto
como uma unidade coesa, não como uma mera justaposição de movimento, voz,
olhar e postura. Eu sou uma unidade integrada, mais ou menos harmônica, o que eu
chamo de "eu mesmo" ou "minha" mente, e vocês interagem comigo nesse nível.
(...) Esta interação está ocorrendo no nível da individualidade, que é o global, o
emergente. Mas sabemos que o global é simultaneamente uma causa e consequência
das ações locais que acontecem o tempo todo no meu corpo (VARELA, 2000, p. 5 –
grifos em negrito meus)

O primeiro trecho grifado nesta passagem é importante por resumir a principal


característica do conceito de emergência, e demonstrar em que sentido ele se aplica à
cognição corpórea. Seu significado aparentemente paradoxal é expresso exatamente na ideia
de que efeitos globais não são independentes nem redutíveis aos elementos locais com os
quais estão correlacionados. Isto será mais explorado adiante. Porém é a segunda frase
assinalada que comporta o aspecto mais notável da absorção do conceito por Varela. O fato de
o enativismo considerar que o que emerge do processo cerebral é uma unidade cognitiva é
173

fundamental na compreensão da orientação corpórea. Primeiramente, porque postula a


irredutibilidade da unidade cognitiva a elementos e regras mais simples que a ela subjazem –
no que percebemos que a cognição corpórea também deixa de adotar o reducionismo
fisicalista. Em segundo lugar, porque aponta na emergência da unidade cognitiva o caráter,
propriamente ontológico, de constituição da individualidade que ao mesmo tempo é cognitiva
e vital – sendo que ambos os aspectos são essenciais e inseparáveis nesta constituição. E em
terceiro lugar porque atribui a esta unidade emergente a capacidade de causar,
reciprocamente, os elementos que a constituem – o que reforça o sentido ontológico de
causar, produzir, sustentar a si mesma no tempo. Como veremos, esta possibilidade de causar
suas próprias causas, e a si mesma, é o que distingue a individualidade cognitiva para a
cognição corpórea. Trata-se da aplicação ao conjunto formado pelo sistema global e suas
partes da ideia de codeterminação própria da ontologia enativista, que será mais detidamente
explorada na seção 2.3. De certa forma, esta mesma condição já foi apontada no conceito de
autonomia, tal como formulado por Von Foerster, ainda que não mediante o uso do conceito
de emergência. Com isso, percebemos como difere a cognição corpórea, diante de uma de
suas influências, através da combinação de autonomia e emergência. Esta é mais uma
indicação de como a cognição corpórea opera por síntese e transformação de conceitos e
princípios anteriormente produzidos em campos diversos.
Visto este breve exemplo da aplicação do conceito de emergência na cognição
corpórea, devemos agora promover um recuo para identificar, em linhas gerais, que
transformações ocorreram no conceito desde sua primeira formulação e que importam para a
presente investigação, no sentido também de clarificar o conceito.
Atribui-se o nascimento da noção de emergência a John Stuart Mill, Alexander Bain
and George Henry Lewes, ainda no século 19 (STEPHAN, 1992; PESSOA, 2001). E uma
definição pioneira e clara de emergência encontra-se neste fragmento de Lewes, citado por
Stephan:

Existem duas classes de efeitos marcadamente distintas: resultantes e emergentes.


Assim, apesar de cada efeito ser a resultante dos seus componentes, ou o produto de
seus fatores, nem sempre podemos rastrear os passos do processo, de modo a ver no
produto o modo de operação de cada um dos fatores. Neste último caso, proponho
chamar o efeito de emergente (LEWES, citado em STEPHAN, 1992, p. 27).

Contudo, antes de Lewes, Mill já havia apresentado uma classificação de relações


entre causas e efeitos que se aproxima desta. Ao se referir ao princípio, por ele formulado, de
“composição de causas”, no qual “o efeito conjunto de diversas causas é idêntico à soma de
seus efeitos separados”, Mil afirma:
174

Este princípio, no entanto, de modo algum prevalece em todos os departamentos do


campo da natureza. A combinação química de duas substâncias produz, como é bem
conhecido, uma terceira substância, com propriedades diferentes das de qualquer das
duas substâncias em separado, ou de ambas em conjunto. Nenhum traço das
propriedades do hidrogênio ou do oxigênio é observável nas de seu composto, a
água. O sabor do acetato de chumbo não é a soma dos gostos dos seus elementos
componentes, ácido acético e chumbo ou seu óxido; nem o é a cor azul do sulfato de
cobre uma mistura das cores do ácido sulfúrico e do cobre (STUART MILL, 2011
[1843], p. 355)

Além de descrever este oposto à combinação de causas, que chamou de princípio


heteropático, em reações químicas, Mill destacou como esta forma de causalidade ocorre nos
fenômenos da vida – inclinação teórica que tem sido recorrente desde o aparecimento do
conceito de emergência, e que se observa também na sua aplicação na cognição corpórea.
Porém, o conceito de “emergência” só foi mais profundamente explorado muitas décadas
depois, por C. Lloyd Morgan em seu livro Emergent evolution, de 1923 (PESSOA, 2001, p.
39). Este livro já trazia várias das questões que vieram a ser alvo de debate no século 20,
sobretudo envolvendo as limitações atribuídas ao reducionismo. Lloyd Morgan tratou da
emergência nos níveis que chamou de mente, vida e matéria (LLOYD MORGAN, 1923, p.
27), no que veio a ser uma abordagem bastante abrangente do alcance da noção. E, como
salienta Osvaldo Pessoa (PESSOA, 2001, p. 39-40), Stephan (STEPHAN, 1992, p. 27-39)
classifica a emergência em cinco casos, ainda com base em Mill e Lewes, mas também
lançando mão de autores mais recentes:
1) Emergência como não aditividade – na obra de Mill, é oriunda da diferença entre
causas homopáticas e heteropáticas; no primeiro caso, os efeitos de causas
complexas são explicados pela adição linear, algébrica ou vetorial, dos efeitos
parciais; no caso da emergência como não aditividade, não; já para Lewes, a não
aditividade diz respeito mais à impossibilidade de se identificar
retrospectivamente, dado o efeito complexo, quais foram os efeitos parciais que o
constituíram.
2) Emergência como novidade – é o sentido que mais se aproxima do caráter
ontológico da emergência; trata-se da eclosão de novas qualidades, de novas
existências, a partir de níveis de existência anteriores, que podem ser considerados
também, de certo modo, “inferiores”, ou mais simples; é justamente quando se
coloca a questão dos níveis mais baixos e mais altos de atividade, que têm sido
aplicados à cognição, e que foram referidos, também através de uma perspectiva
ontológica, na citação anterior de Varela; suscita igualmente o tema da
complexidade.
175

3) Emergência como imprevisibilidade –poderia ser confundida com a emergência


como novidade, mas Stepham adverte, recorrendo sobretudo aos autores mais
recentes que se dedicaram à emergência, que pode haver novidade previsível,
assim como imprevisibilidade de algo que não é classificável como novo – para o
que dá o exemplo de sistemas não determinísticos; já Pessoa correlaciona este tipo
de emergência com o caos determinístico.
4) Emergência como não dedutibilidade – ponto em relação ao qual Stepham recorre
a C. D. Broad, e a seu livro The mind and its place in nature, de 1925, já
mencionado rapidamente acima, para assinalar que Broad busca distinguir seres
vivos de não vivos, sem lançar mão de vitalismo, e sem aderir ao mecanicismo;
para tal, em primeiro lugar, Broad afirma que o comportamento de um sistema é
totalmente determinado pelo comportamento dos seus componentes, no que
entende rejeitar as teorias vitalistas; em segundo lugar, Broad defende que, de
acordo com uma teoria emergentista, as leis que descrevem o comportamento do
sistema a partir do comportamento dos seus componentes não podem ser
deduzidas a partir das leis destes últimos.
5) Emergência como causalidade descendente – trata de um tema brevemente já
referido nas páginas anteriores, que discute a possibilidade de propriedades
macroscópicas exercerem poder causal a elementos microscópicos do sistema.
Estas características das primeiras formulações do conceito de emergência apresentam
um quadro bastante completo dos modos como a noção influenciou a cognição corpórea. Mas,
com vistas a compreender esta influência, é preciso advertir sobre uma importante questão
ressaltada por Osvaldo Pessoa:

Uma concepção plausível e bastante popular entre físicos é que “ontologicamente”


uma propriedade macroscópica seja redutível a propriedades microscópicas, apesar
de, na prática, “epistemologicamente”, ser impossível deduzir a propriedade macro a
partir do micro, devido à complicação intratável dos cálculos matemáticos.
Se nos colocarmos do lado dos biólogos e dos psicólogos, porém, o reducionismo é
visto com maus olhos. Como é possível considerar que um sapo seja redutível a
meros mecanismos, e desprezar a presença de um código genético que incorpora
milhões de anos de evolução biológica? Como é possível reduzir a mente ao cérebro
físico, dado que nosso ponto de partida para conhecer o mundo físico é justamente a
nossa mente? Nesses campos, um bom número de pesquisadores salienta que há uma
diferença entre fisicalismo e reducionismo. O fisicalismo aceita que a base dos
fenômenos biológicos e mentais seja a física e a química, mas considera que não
pode haver uma redução entre níveis devido a presença de conteúdos
informacionais, significações, causalidade descendente, etc.
O estudo da auto-organização tende a nos comprometer com o fisicalismo (em
oposição a um vitalismo ou espiritismo), mas permanece em seu seio o debate entre
reducionistas e não reducionistas (PESSOA, 2001, p. 40).
176

Em primeiro lugar, Pessoa sublinha a tendência, entre os físicos, de acreditar que,


embora haja redutibilidade ontológica – isto é, no mundo objetivo – esta pode ser por vezes
inalcançável pelo conhecimento, vale dizer, seria epistemologicamente irrepresentável. Por
outro lado, ele reconhece nos biólogos e psicólogos dificuldade de aceitar o reducionismo,
mesmo aquele imaginado pelos físicos, como tendo caráter ontológico. Mas talvez a
observação mais importante desta passagem seja aquela que registra a rejeição ao vitalismo,
tanto da parte dos que creem, quanto das que não creem no reducionismo ou mecanicismo.
Deste modo, restaria ainda hoje, no meio científico, uma indefinição quanto ao reducionismo,
embora sem vestígios significativos de concepções vitalistas. Por isso mesmo, o fisicalismo,
entendido também como materialismo, predominaria. Naquilo que mais interessa ao presente
trabalho, é importante notar que a cognição corpórea recusa o reducionismo e o vitalismo,
sendo, a seu modo, uma corrente científica e filosófica fisicalista, materialista. Antes de se
fazer menção, de forma introdutória, a como os conceitos de emergência, auto-organização e
complexidade estão interligados numa perspectiva antirreducionista e materialista na cognição
corpórea, é preciso fazer uma observação, necessária à compreensão desta perspectiva. Trata-
se do fato, ressaltado por Stephan, de que, sobretudo a partir dos anos 1980 – ou seja,
aproximadamente no mesmo período de desenvolvimento da cognição corpórea –, o tema da
emergência ocupou mais intensamente filósofos da mente, de modo a enfatizar certas
questões. Segundo o autor, esta seria a quarta fase da história do conceito de emergência, na
qual autores como Roger W. Sperry (SPERRY, 1980 e 1988), que se dedicou especialmente à
questão da interação mente-cérebro e da tensão religião/ciência, J. J. Smart, que, a favor do
fisicalismo e dialogando com Sperry, propôs os sentidos “forte” e “fraco” para a emergência
(SMART, 1981), e, principalmente, Jaegwon Kim, investigaram o conceito de emergência
com relação a propriedades mentais. Dentre estes, o trabalho de Kim merece algumas
observações a mais. Sobretudo no volume Supervenience and mind (KIM, 1993) – que reúne
artigos do filósofo desde o início dos anos 1970 – Kim discute temas relacionados à
emergência das propriedades mentais a partir de propriedades físicas, defendendo a ideia de
causação mental como superveniência mental, e se opondo à noção de causação descendente
(“downward”, ou “top-down”). Não cabe no escopo deste trabalho um aprofundamento sobre
tais questões, que podem ser convenientemente compreendidas em consultas aos trabalhos de
Kim e de outros filósofos da mente contemporâneos67. O mais importante a se salientar
quanto a este ponto é o modo como o enativismo tratou a questão. Examinemos como um dos

67
Para um compreensivo panorama da emergência na filosofia da mente v. CRANE, 2001 e KIM, 2006.
177

principais formuladores do enativismo, Evan Thompson, se pronuncia sobre o tema da


emergência, inicialmente quanto aos fenômenos em geral:

A emergência está intimamente relacionada com a auto-organização e com a


causalidade circular, as quais envolvem a influência recíproca de processos de
"bottom-up" e "top-down". Por exemplo, um tornado emerge através da auto-
organização de partículas de ar e água em circulação; ele reciprocamente suga essas
partículas em uma configuração macroscópica particular, com efeito devastador para
qualquer coisa em seu caminho. (...) Eu esboço uma maneira de pensar sobre a
emergência que eu chamo de coemergência dinâmica. Coemergência dinâmica
significa que não só um todo surge a partir das suas partes, mas as partes também
surgem a partir do todo. Parte e todo coemergem e mutuamente especificam um ao
outro. Um todo não pode ser reduzido às suas partes, pois as partes não podem ser
caracterizadas independentemente do todo; inversamente, as partes não podem ser
reduzidas ao todo, pois o conjunto não pode ser caracterizado independentemente
das partes (THOMPSON, 2007, p. 38).

A ideia de coemergência dinâmica, defendida por Thompson, constitui uma


compreensão radical de emergência, que se diferencia bastante das concepções anteriores,
especialmente daquelas dedicadas à emergência de propriedades mentais. Quanto a esse
aspecto, é oportuno conhecer a objeção de Thompson à ideia de emergência de propriedades,
e a alternativa que apresenta68:

68
Para um maior aprofundamento sobre as divergências entre as posições correntes sobre a emergência de
propriedades mentais – especialmente de Jaegwon Kim – e as posições enativistas, v. o apêndice B de
THOMPSON, 2007, de onde se extrai o seguinte trecho: “O reducionismo parte/ todo anda de mãos dadas com
uma metafísica atomista de dados físicos básicos e suas configurações mereológicas, uma metafísica que Kim
subscreve aparentemente (1993, p. 77, 96-97, 337). Ao mesmo tempo, ele também, aparentemente, acredita que
nada na disputa filosófica sobre emergência depende de definições gerais precisas de "físico" (1993, p. 340).
Mas isso parece errado em ambas as explicações. No contexto da ciência contemporânea, como vimos,
"natureza" não consiste em elementos básicos, mas em campos e processos, e esta diferença entre o ponto de
vista do processo e uma partícula elementar da versão da metafísica de substâncias cartesianas faz diferença para
as questões filosóficas sobre a emergência (Campbell e Bickhard 2002; Hattiangadi 2005). No primeiro ponto de
vista, não há um nível inferior dos elementos básicos com propriedades intrínsecas que ascende determinando
todo o resto. Tudo é processo em todo o trajeto "para baixo" e "para cima”, e os processos são irredutivelmente
relacionais, eles existem apenas em padrões , redes, organizações, configurações ou camadas. Para a visão
reducionista parte/todo , "para baixo" e "para cima" descrevem níveis de realidade mais e menos fundamentais.
Níveis mais elevados são realizados e determinados por níveis mais baixos (o "modelo em camadas da
realidade"; ver Kim 1993 , p. 337-339). Do ponto de vista do processo, "para cima" e "para baixo" são termos de
contexto relativo usados para descrever fenômenos de vários escala e complexidade. Não existe um nível de base
de entidades elementares para servir como a última "base de emergência" na qual tudo se fundamenta.
Fenômenos em todas as escalas não são entidades ou substâncias , mas processos relativamente estáveis , e uma
vez que os processos alcançam a estabilidade em diferentes níveis de complexidade, ao mesmo tempo
interagindo com processos em outros níveis, todos são igualmente reais e nenhum tem primazia ontológica
absoluta.” (THOMPSON, 2007, p. 440-441).
178

Embora o termo propriedade emergente seja de uso generalizado, eu prefiro


processo emergente. Estritamente falando, não faz sentido dizer que uma
propriedade emerge, mas apenas que ela vem a ser realizada, instanciada, ou
exemplificada em um processo ou entidade que emerge no tempo. A emergência é
um processo temporal , mas propriedades (se consideradas como universais ou como
abstrações linguísticas) são atemporais. Por exemplo, a propriedade de estar vivo
não emergiu quando a vida se originou na Terra; em vez disso, passou a ser
instanciada como um resultado do processo emergente de autopoiese, que constitui
as células vivas. Este exemplo também aponta para a importância das características
causais de processos emergentes: a rede emergente de autopoiese constitui um
indivíduo biológico (a célula), que produz mudanças no ambiente externo. Também
cria um contexto estruturado no qual novos tipos de eventos podem acontecer, tais
como a síntese de proteínas e a replicação de RNA/DNA, que não podem ocorrer
para além ou fora do ambiente intracelular protegido (Ibid., p. 418-419).

Trata-se, mais uma vez, da ênfase ao sentido ontológico de emergência, para o


enativismo. A alusão, feita no texto acima, às transformações no ambiente externo produzidas
pelas células, serão mais adiante, neste trabalho, examinadas na forma das transformações
cognitivas. Veremos como a cognição corpórea compreende os processos cognitivos como
ontológicos, ao menos em dois sentidos: pelo fato de eles serem considerados como processos
materiais, e não meras propriedades, e por significarem a cocriação de um mundo, e não mera
representação.
Há outros trabalhos69 que têm discutido a questão da emergência ontológica. É o caso
do artigo “The search for ontological emergence”, de Michael Silberstein e John McGeever,
em que os autores afirmam:
Podemos distinguir a emergência epistemológica, que é apenas uma limitação do
aparelho descritivo, da emergência ontológica, que deverá envolver recursos causais
de um sistema como um todo, não redutíveis às propriedades de suas partes, o que
implica o fracasso do reducionismo do todo à parte e da superveniência mereológica
(SILBERSTEIN & MCGEEVER, 1999, p. 01).

Outras considerações sobre o conceito de emergência ainda serão feitas adiante, mas
no âmbito já das teorias corpóreas. Porém, há ainda necessidade de tratarmos de outro
aspecto, que complementa tecnicamente as características da noção de sistema que orienta os
modelos corpóreo-experienciais, e que vimos estar presente nas questões da auto-organização
e da emergência: a complexidade.

2.1.5. A noção de complexidade

O tema da complexidade talvez seja o que mais evidencie o caráter de modelo da


imagem corpóreo-experiencial da cognição. Embora a noção de modelo adotada neste

69
Ver, por exemplo, BITBOL, 2007, e DI PAOLO et al 2010, p. 40.
179

trabalho não se restrinja à de modelo matemático (vide seção 1.1.1), referências de vários
autores a sistemas complexos costumam incluir a menção a modelos matemáticos dinâmicos
como forma de explicar tais sistemas. É como diz Fritjof Capra, assimilando sistemas auto-
organizados à noção de complexidade:

A concepção dos sistemas vivos como redes auto-organizadoras cujos componentes


estão todos interligados e são interdependentes tem sido expressa repetidas vezes, de
uma maneira ou de outra, ao longo de toda a história da filosofia e da ciência. No
entanto, modelos detalhados de sistemas auto-organizadores só puderam ser
formulados muito recentemente, quando novas ferramentas matemáticas se tornaram
disponíveis, permitindo aos cientistas modelarem a interconexidade não-linear
característica das redes. A descoberta dessa nova "matemática da complexidade"
está sendo cada vez mais reconhecida como um dos acontecimentos mais
importantes da ciência do século XX (CAPRA, 2004 [1996], p. 88).

O que se depreende desta afirmação é que até mesmo para se conceber a ideia de
sistema complexo foi necessário o desenvolvimento de ferramentas matemáticas. É
conveniente, contudo, dar um passo atrás para examinar, antes dos sistemas complexos e dos
sistemas dinâmicos não-lineares, alguns aspectos gerais da ideia de sistema dinâmico.
Mencionando sua aplicação à cognição, Evan Thompson fornece a seguinte descrição da
noção de sistema dinâmico, assinalando a ambiguidade, que já foi mencionada anteriormente
neste trabalho, que envolve duas acepções de sistema – o objeto “real”, e a sua representação
teórica.
180

A ideia central da abordagem dinâmica é que a cognição (...) é um fenômeno


dinâmico e, portanto, precisa ser entendida a partir da perspectiva da ciência dos
sistemas dinâmicos. Essa perspectiva inclui teoria dos sistemas dinâmicos (um ramo
da matemática pura), modelagem de sistemas dinâmicos (modelagem matemática de
sistemas empíricos) e investigações experimentais de fenômenos biológicos e
psicológicos informados por essas ferramentas.
(...) Em termos simples, um sistema dinâmico é aquele que muda ao longo do
tempo. O termo sistema, contudo, é ambíguo, já que ele pode referir-se a um sistema
real no mundo, tal como o sistema solar, ou a um modelo matemático de um sistema
real. No caso do mundo real, o termo sistema não admite uma definição precisa. Em
geral, um sistema é um conjunto de entidades ou processos relacionados que se
destaca de um fundo como um todo, conforme algum observador vê e conceitua as
coisas. O exemplo clássico da história da ciência é o sistema solar. Seus
componentes são o sol, a lua e os planetas, e seus estados são suas possíveis
configurações. (...) O que muda ao longo do tempo é o estado do sistema. Um
sistema dinâmico, no sentido de um modelo, no entanto, é uma construção
matemática que tem como objetivo descrever e prever a forma como um sistema real
muda ao longo do tempo (as trajetórias dos planetas, e eventos como eclipses, no
caso do sistema solar). Para este fim, alguns aspectos do sistema real são apontados
como sendo especialmente importantes e são matematicamente representados por
variáveis quantitativas. Especificar os valores numéricos de todas as variáveis em
um dado momento indica o estado do sistema neste momento. Um sistema dinâmico
inclui um procedimento para a produção de tal descrição do estado do sistema e uma
regra para transformar a descrição do estado atual em outra descrição do estado em
um momento futuro. Um sistema dinâmico é, portanto, um modelo matemático do
modo como um sistema muda ou se comporta na medida em que o tempo passa.
(THOMPSON, 2007, p. 38-39)

Evan Thompson, além de reiterar a ideia, já apresentada anteriormente nesta seção, de


que um sistema é normalmente considerado quanto às suas mudanças ao longo do tempo,
reforça também a observação de que a descrição científica destas mudanças exige uma
formalização matemática – já feita anteriormente nesta seção, quando mencionada a
matematização do sistema mecânico newtoniano. Mas quando passamos dos sistemas
dinâmicos lineares para os sistemas dinâmicos não lineares, esta mudança se faz
acompanhada da eclosão da noção de complexidade. E esta exigência será feita, justamente,
na utilização dos sistemas dinâmicos para compreender a cognição, de acordo com a
orientação corpórea. Prossegue, a respeito da não linearidade, Evan Thompson:

[Nos sistemas dinâmicos lineares], dados os valores iniciais das variáveis (as
condições iniciais), todos os estados futuros do sistema podem ser conhecidos sem
se recalcular o estado do sistema para cada incremento de tempo. (...) Quando as
equações contêm termos não lineares – funções em que o valor de saída não é
diretamente proporcional à soma das entradas – então, tal solução é impossível.
Portanto, uma abordagem matemática diferente tem de ser adotada a fim de se
encontrar uma fórmula que possibilite a previsão de um estado futuro a partir de um
estado presente (Ibid., p. 39-40).

Este problema da não linearidade do comportamento e da inteligibilidade de certos


sistemas já havia sido levantado nesta seção, quando examinadas as questões da auto-
organização e da emergência. Este fato reforça como os temas da auto-organização, da
181

emergência e da complexidade estão articulados na noção de sistema que vem sendo


empregada pela cognição corpórea – constituindo diversos aspectos de uma mesma noção, em
si mesma complexa (HOOKER, 2011, p. 5). Resta compreendermos melhor as características
da complexidade tal como se desenvolveram ao longo do século 20, e como esta noção
chegou a ser absorvida pela orientação corpórea das ciências cognitivas. Para melhor
delimitarmos o conceito, retomemos a narrativa de Thompson.

O termo complexidade descreve um comportamento que não é nem aleatório nem


ordenado e previsível; ao contrário, refere-se a um comportamento que exibe
padrões cambiantes e instáveis. De particular importância no contexto das recentes
abordagens dos sistemas dinâmicos não lineares para o cérebro e o comportamento é
a noção de complexidade como instabilidade dinâmica ou metaestabilidade (...). A
ciência atual indica que complexidade deste tipo pode ser encontrada em inúmeras
escalas e níveis, desde os moleculares e organicistas, aos ecológicos e evolutivos,
bem como o neural e comportamental. Em todos os casos a mensagem parece ser
que a complexidade, e a instabilidade ou a metaestabilidade, são necessárias para a
auto-organização e o comportamento adaptativo (THOMPSON, 2007, p. 40).

Porém, esta já é uma acepção recente de complexidade. Em busca da origem do


conceito no século 20, levemos em consideração uma afirmação de Gaston Bachelard:

Na realidade, não há fenômenos simples; o fenômeno é uma trama de relações. Não


há natureza simples, substância simples; a substância é uma contextura de atributos.
Não há ideia simples, porque uma ideia simples, como viu muito bem Dupréel, deve
ser inserida, para ser compreendida, num sistema complexo de pensamentos e de
experiências. A aplicação é complicação. As ideias simples são hipóteses de
trabalho, conceitos de trabalho, que deverão ser revistos para receberem seu devido
valor epistemológico. As ideias simples não são a base definitiva do conhecimento;
aparecerão por conseguinte num outro aspecto quando as colocarem numa
perspectiva de simplificação a partir das ideias completas (BACHELARD, 1978
[1934], p. 164)

Embora estas palavras denotem o início da atenção ao tema, encontraremos apenas


mais tarde, num artigo “Science and complexity”, de Warren Weaver – como já foi dito no
capítulo 1, colaborador de Claude Shannon –, uma alusão direta à questão da complexidade,
ou, mais precisamente, da complexidade organizada:

Um vírus é um organismo vivo? O que é um gene, e como é que a constituição


genética original de um organismo vivo se expressa nas características
desenvolvidas do adulto? As moléculas de proteínas complexas "sabem” como
reduplicar seu padrão, e isto é uma pista essencial para o problema da reprodução de
seres vivos? Todos estes problemas são certamente complexos, mas eles não são
problemas de complexidade desorganizada, para que métodos estatísticos têm a
chave. Eles são todos problemas que envolvem lidar simultaneamente com um
número considerável de fatores que estão inter-relacionados em um todo orgânico.
Eles são todos, na linguagem aqui proposta, problemas de complexidade organizada
(WEAVER, 1947, p. 05)

Mencionando a mesma expressão como resultado do processo histórico da ciência –


“complexidade organizada” – Stuart Kauffman sintetiza à sua maneira, comparando as
182

combinações entre as noções de simplicidade/complexidade e organização/desorganização,


algumas das observações que foram feitas nesta seção sobre as transformações da noção de
sistema nos últimos séculos:

A ciência do século XVIII, após a revolução newtoniana, foi caracterizada pelo


desenvolvimento das ciências da simplicidade organizada, a ciência do século XIX,
via mecânica estatística, esteve focalizada na complexidade desorganizada, e a
ciência dos séculos XX e XXI tem enfrentado a complexidade organizada. Em lugar
nenhum este enfrentamento é tão gritante como na biologia. (KAUFFMAN, 1993, p.
173).

Embora não mencione auto-organização, mas apenas organização, este trecho (escrito,
como se vê, na última virada de século) enseja que se pense em um fato: a noção de
complexidade em seres vivos tem sido com tal frequência associada à de auto-organização,
que dificilmente se pode defini-la, nas ciências da vida recentes, de maneira isolada desta
inter-relação. Sobre este ponto, levemos em conta os dois textos abaixo, o primeiro de Henri
Atlan e o segundo de Jean-Pierre Dupuy e Paul Dumouchel, que fazem alusão à origem
cibernética70 não apenas de ambos os conceitos, mas também de sua vinculação mútua:

Que querem dizer essas noções de informação, código e programas, aplicadas, não a
máquinas artificiais, mas a sistemas físico-químicos naturais? O fato de qualificá-las
de psicológicas não basta, porque, embora a psicologia as utilize, elas não são
apenas psicológicas. São, na verdade, noções cibernéticas que se situam “no ponto
de articulação do pensamento e da matéria’’ (Costa de Beauregard), ou “entre a
física e a biologia” (S. Papert), e que fazem com que voltemos a nos interrogar sobre
a questão da realidade material ou ideal das noções físicas, até mesmo as mais
corriqueiras. Com efeito, se nos restringirmos à biologia, essas noções, pelas
respostas que sugerem para as antigas questões sobre a origem da vida e a evolução
das espécies, de fato provocam a emergência de indagações inteiramente novas e
fundamentais sobre a realidade física da organização, sobre a lógica da
complexidade e sobre a lógica dos sistemas auto-organizadores (ATLAN,
1992[1979], p. 20 – grifo meu).

É para esclarecer esta continuidade/descontinuidade entre cibernética das máquinas


artificiais e a cibernética das "máquinas naturais" que os pesquisadores retomaram
em anos recentes perguntas sobre a lógica das organizações complexas, que haviam
sido levantadas pelos pioneiros cibernéticos da auto-organização. Categorias de
conhecimento heterodoxo foram propostas de vários quadrantes, frequentemente
complementares, por vezes contraditórias: a causalidade circular de entre níveis de
uma organização hierárquica, hierarquia entrelaçada, emergência do radicalmente
novo, a instabilidade do caos e a capacidade organizadora dos mesmos, a extensão
aos sistemas não humanos de conceitos como eu, sujeito, significação, laços
recursivos e paradoxo sauto-referenciais, etc (DUPUY & DUMOUCHEL, 1984, p.
2)

70
Para uma discussão do tema da complexidade no âmbito da cibernética, considerando o conceito de
informação, na Nona Conferência Macy, v. o texto “Feedback mechanism in cellular biology”, de Henry
Quastler (VON FOERSTER, 1952, p. 167-181).
183

Embora seja um erro considerar o contrário, isto é, que a auto-organização somente


possa estar associada a sistemas complexos – um exemplo notório de auto-organização em um
sistema simples são as “tortoises” de Grey Walter (GREY WALTER, 1950), precursoras da
vida artificial, mas há outros semelhantes –, foi justamente na forma do amálgama com a
auto-organização, do qual também faz parte a noção de emergência, que a complexidade
biológica se fez presente, com uma feição própria, na constituição da cognição corpórea, e
sobretudo através da abordagem enativista (THOMPSON & VARELA, 2001; DI PAOLO et
al 2010). Contudo, há um campo em que a teoria dos sistemas dinâmicos não lineares e,
consequentemente, a noção de complexidade, têm sido aplicadas à cognição, de maneira
especialmente influente para a cognição corpórea. Trata-se do emprego dos sistemas
dinâmicos não lineares ao funcionamento do cérebro. Este ponto é muito importante porque
demonstra que a cognição corpórea envolve também uma compreensão alternativa dos
processos cerebrais, e, ao contrário do que se pode suspeitar, não recusa a relevância deste
órgão. Vejamos como esta abordagem se desenvolveu – a partir do conexionismo.
Varela, Thompson e Rosch assim descrevem este processo histórico de investigação e
desenvolvimento conceitual:

Em 1958, Frank Rosenblatt construiu o Perceptron – um aparelho simples dotado de


alguma capacidade de reconhecimento – puramente com base nas mudanças de
conectividade entre componentes semelhantes a neurônios. (...) A história nos
mostra que estes pontos de vista alternativos foram literalmente eliminados da cena
intelectual em favor das ideias computacionais (...). Foi somente no final da década
de 1970 que ocorreu a explosiva retomada dessas ideias. (...) Certamente, um dos
fatores que contribuiu para a renovação desse interesse foi a descoberta
paralela da auto-organização na física e na matemática não linear, bem como o
amplo acesso a computadores com maior velocidade de processamento (VARELA
el al, 1991, p. 85-86 – grifos meus).

Como já se observou anteriormente, as controvérsias sobre o modelo lógico-


proposicional da cognição começaram nas próprias Conferências Macy, mesmo que este
modelo tenha prevalecido no nascimento das ciências cognitivas. Mas, como vem sendo
discutido ao longo desta seção, muitas alternativas a ele se produziram durante o período
cibernético – ainda que fossem alternativas esparsas e dependentes do desenvolvimento de
novas ideias e ferramentas ainda pouco testadas. O uso do instrumental fornecido pelos
sistemas dinâmicos não lineares foi, como apontam Varela et al, uma das maneiras de se
explicarem processos cognitivos distribuídos e não redutíveis a uma imagem determinista
linear. Porém, em consonância com o que afirma o texto acima, apenas ao longo da década de
1970 o conexionismo se uniu ao emprego dos sistemas dinâmicos não lineares nas pesquisas
sobre o cérebro.
184

Varela e seus coautores, no mesmo livro, assinalam duas limitações do modelo lógico-
proposicional, que, segundo eles, teriam provocado o desenvolvimento da alternativa
conexionista. Ressalte-se que esta argumentação vem ao encontro da ideia defendida neste
trabalho de que não apenas a cognição corpórea, mas também muitas das formulações que a
influenciaram, decorreram de tentativas de solucionar problemas que o modelo lógico-
proposicional teria se mostrado incapaz de enfrentar:
1) O fato de o processamento simbólico de informações ser baseado em regras
sequenciais, aplicadas uma por vez, naquilo que os autores chamaram de “gargalo
de Von Neumann”. Tal limitação é crucial na medida em que não permite dar
conta de “um grande número de operações sequenciais, como a análise de imagens
ou a previsão do tempo.” Esta deficiência recomendaria supor um processamento
paralelo. (Ibid., p. 86);
2) O fato de o processamento simbólico de informações ser “localizado”, o que
implica que a “perda ou o mau funcionamento de qualquer parte dos símbolos ou
regras do sistema resulta em uma disfunção séria.” Esta limitação recomendaria
supor um processamento distribuído. (Ibid.).
Percebe-se que ambas as limitações se aplicam não apenas à cognição humana, ou ao
cérebro. Alcançam também o processamento de máquinas computacionais. Isso nos leva a
compreender que o modelo lógico-proposicional seria uma simplificação excessiva, mesmo
para as necessidades da inteligência artificial, o que é corroborado pela tentativa de se
desenvolverem computadores dotados de processamento distribuído e paralelo, por vezes
inspirados na própria arquitetura do cérebro – o que seria chamado de “brain-style modeling”
(RUMELHART& MCCLELLAND, 1986; PINKER & PRINCE, 1988).
Mas, Varela, Thompson e Rosch acrescentam ainda que uma importante mudança
proporcionada pelo conexionismo teria sido utilizar como padrão de cognição a criança, em
vez do especialista. Isto porque “ficou claro que o tipo mais profundo e fundamental de
inteligência é a do bebê capaz de adquirir a linguagem a partir de enunciados cotidianos
dispersos, e de formar objetos significativos a partir do que parece ser um mar de luzes”
(Ibid.). No mesmo texto, eles ainda ressaltam a característica de plasticidade do processo
cognitivo. Referem-se à “regra de Hebb”, proposta por Donald Hebb, em 1949: “se dois
neurônios tendem a ser ativados conjuntamente, sua conexão é fortalecida; caso contrário, ela
é enfraquecida. Consequentemente, a conectividade do sistema torna-se inseparável de sua
história de transformações” (Ibid., p.87). Estas duas concepções são de fundamental
importância para o que neste trabalho é considerado o cerne da ideia de cognição corpórea:
185

que os significados cognitivos são desenvolvidos, nos e pelos indivíduos, através de suas
experiências de interação e transformação sensório-motora com o mundo, e não obtidos
através do acesso a uma suposta estrutura transcendente de sentidos literais. Ao contrário, a
suposição de que os significados cognitivos são previamente estabelecidos, e alimentam um
processo algorítmico de manipulação de símbolos, toma como padrão o modo de raciocinar
“correto” científico ou filosófico, assumido como a forma mais plenamente desenvolvida de
cognição.
Curiosamente, as abordagens conexionista e dos sistemas dinâmicos não lineares,
embora aplicadas ao cérebro, significam uma preparação da valorização do corpo como um
todo na compreensão da cognição, própria da cognição corpórea. Em primeiro lugar, por
apontarem as limitações do modelo lógico-proposicional, que é a imagem da cognição
desencarnada por excelência. Em segundo lugar, por contribuírem para a concepção de uma
noção de cérebro como corpo, inclusive no seu caráter de autotransformação. E em terceiro
lugar – o que de certa forma é um corolário do fator anterior – por fortalecerem a admissão de
conexões orgânicas entre o cérebro e o resto do corpo.
Quanto às características específicas dos sistemas dinâmicos não lineares – aqui
considerados como os sistemas “em si”, e não no sentido da ferramenta matemática, por mais
problemática que seja essa suposição –, ressalte-se a seguinte afirmação de Raymond Gibbs:

Uma característica fundamental dos sistemas dinâmicos é que eles são auto-
organizados – eles chegam a novos estados simplesmente através de seu próprio
funcionamento, sem especificação do ambiente ou de determinação vinda de dentro.
Com a mudança contínua de um ou mais parâmetros de controle (de modo
semelhante, mas não equivalente a variáveis independentes), novos estados surgem
espontaneamente como uma função não linear de interações entre os componentes
dos sistemas. (GIBBS, 2005, p. 225).

Mais do que reafirmar o vínculo entre complexidade e auto-organização, este trecho


salienta a imprevisibilidade própria deste tipo de sistema, o que contrasta com a maior
previsibilidade característica do modelo lógico-proposicional. Esta observação é suficiente,
por ora, para os propósitos desta seção de caráter histórico. Muito ainda se poderia dizer sobre
a importância da história dos conceitos de complexidade e sistemas dinâmicos não lineares
para a formação da cognição corpórea. Porém, haverá ocasião, nas próximas seções, para
tratar de aplicações diretas destes conceitos nos trabalhos dos autores desta orientação, o que
dispensa que se prolonguem no momento maiores considerações sobre eles.
Façamos então uma espécie de balanço sobre a influência da história das
transformações da noção de sistemas para a cognição corpórea. Em relação ao legado da
186

Segunda Cibernética e da Teoria Geral dos Sistemas, e como já foi advertido anteriormente
neste trabalho, a cognição corpórea pode ser compreendida como uma síntese de diversas
noções produzidas por aquelas tradições. Por este prisma, o que a cognição corpórea tem feito
é promover uma convergência eminentemente científica – isto é, não apenas teórica mas
experimental e observacional – dos temas ligados à teoria dos sistemas dos anos 1960 e 1970.
O esforço que se nota é para dar um novo sentido a noções como auto-organização,
emergência e complexidade. Ou, melhor dizendo, o efeito da estratégia explícita da orientação
corpórea tem sido promover uma composição destas noções de tal maneira que elas
convergem e quase se fundem. Para melhor compreender este ponto, mais uma vez será
considerada uma formulação de Varela, Thompson e Rosch:

A estratégia (...) é construir um sistema cognitivo sem começar com símbolos e


regras, mas com componentes simples que se conectariam intensamente uns com os
outros de maneira dinâmica. Nessa abordagem, cada componente opera apenas em
seu ambiente local, de forma que não há um agente externo que, digamos,
redirecione o eixo do sistema. Entretanto devido à construção da rede do sistema,
uma cooperação global emerge espontaneamente quando os estados de todos os
“neurônios” participantes alcançam um estado mutuamente satisfatório. Em tal
sistema, não há necessidade de uma unidade de processamento central para
orientar toda a operação. Essa passagem das regras locais para a coerência global
é o cerne do que se costumava chamar de auto-organização nos anos da cibernética.
Hoje as pessoas preferem falar de propriedades emergentes ou globais, dinâmica
de rede, redes não-lineares, sistemas complexos ou mesmo sinergética (VARELA et
al, 1991, p. – grifos em negrito meus)

Foram grifados nesta passagem os termos que denotam exatamente as noções de auto-
organização, emergência e complexidade, mas sobretudo para demonstrar como elas se
aproximam umas das outras na cognição corpórea – ou, ao menos, no enativismo. E podemos
dizer também que a chave para compreensão desta aproximação, ou desta síntese, está na
frase grifada: “Em tal sistema, não há necessidade de uma unidade de processamento central
para orientar toda a operação”. Isto quer dizer que foi através, sobretudo, da recusa a um dos
pilares do cognitivismo – o processamento central – que se promoveu a síntese aqui
mencionada. Dito de outra forma: ambas as decorrências históricas da primeira cibernética,
quais sejam, as ciências cognitivas clássicas e a Segunda Cibernética, se encontram dessa
forma na gênese da cognição corpórea. As ciências cognitivas clássicas, como alvo de
rejeição em seus pressupostos cognitivistas mas, também, como padrão de
multidisciplinaridade no estudo da cognição; a Segunda Cibernética, como origem de noções
novas, mais ainda dispersas e pouco amadurecidas: ambas, contudo, proporcionaram
motivações para que, mediante a contestação do modelo-lógico-proposicional do
cognitivismo, as noções de auto-organização, emergência e complexidade adquirissem
187

coerência inédita. Desta maneira, a imprecisão apontada anteriormente, quando foi referido o
conceito de auto-organização tal como tratado por Dupuy, se reduz. Mas somente se reduz
porque há uma nova noção de sistema, para a cognição corpórea que, necessariamente, se
ergue da rejeição à noção de sistema do cognitivismo. Sendo assim, podemos considerar que
o trecho recém citado de Varela et al apresente, a seu modo, uma definição de sistema
bastante adequada para a cognição corpórea – sobretudo se assinalarmos que se trata de um
sistema ao mesmo tempo observado e observador e, em ambas as perspectivas, ativo.
Ademais, na passagem acima fica bem caracterizado aquilo que Isabelle Stengers chamou de
causalidade organicista, desde que se esteja falando de sistemas vivos. Isto porque na
concepção de sistema nela proposta não se apela para princípios holistas ou vitalistas para
tentar explicar como a coerência global nos seres vivos nasce de comportamentos que fogem
ao padrão mecanicista, ou para apresentar uma alternativa ao reducionismo. No trecho citado,
ao contrário, encontramos uma concepção materialista. Haverá ensejo nas próximas seções
para que se retome, sob outros prismas, a questão do materialismo da cognição corpórea. Mas,
com o que se acaba de discorrer, podemos dar por concluída a incursão sobre os antecedentes
da cognição corpórea relacionados ao conceito de sistema, e suas transformações ocorridas
nos últimos séculos, com ênfase naquelas que se deram no século 20. A seguir, serão
abordados dois outros temas importantes para a eclosão da cognição corpórea, ainda no
âmbito biofisiológico: o primeiro é o da autopoiese; o segundo virá indiretamente através da
fenomenologia, por meio das influências da Gestalt na biologia; Posteriormente, se tratará da
influência da psicologia, da linguística e de fatores culturais na cognição corpórea.

2.1.6. Autopoiese e autonomia

O primeiro dos dois temas retoma, de certa forma, o conceito de autonomia, e, embora
ainda relacionado às transformações do conceito de sistema e próxima às noções de auto-
organização, emergência e complexidade, trouxe algumas questões e características
destacadamente novas e de extrema relevância para a gestação da cognição corpórea: trata-se
do conceito de autopoiese. Para identificar as raízes deste conceito, retomemos o trabalho de
Heinz Von Foerster, porém agora como empreendedor científico, para analisar, ainda que com
brevidade, a importância do seu Biological Computer Laboratory para o nascimento da
cognição corpórea. O Biological Computer Laboratory foi fundado na Universidade de
Illinois, em 01/01/1958 – ou seja, quase cinco anos após a décima e última das Conferências
Macy, das quais Von Foerster foi relator. No período entre as Conferências Macy e a
188

fundação do Biological Computer Laboratory, Von Foerster realizou, entre outros, trabalhos
com Warren McCulloch no MIT e com Arturo Rosenblueth no México, com ênfase em
neurofisiologia e fisiologia muscular (MÜLLER, 2000, p. 283). Não cabe nos limites desta
pesquisa apresentar uma análise comparativa entre o Biological Computer Laboratory e
outras iniciativas que tiveram importância para as ciências cognitivas, como as próprias
Conferências Macy, o acolhimento às pesquisas de Herbert Simon e Allen Newell pela
RAND Corporation ou mesmo o financiamento Sloan – embora uma comparação deste tipo
possa ser bastante útil para a compreensão dos desafios colocados ao paradigma cognitivista
no período. Um ponto que merece maiores esclarecimentos é aquele das causas do fim do
laboratório por falta de recursos, em 1974. É suficiente, contudo, para atender aos propósitos
deste trabalho, registrar que participaram do Biological Computer Laboratory, de vários
modos, cientistas como os ingleses W. Ross Ashby, Stafford Beer e Gordon Pask; os alemães
Gotthard Günther e Ernst Von Glasersfeld; e os chilenos Humberto Maturana, Francisco
Varela e Ricardo Uribe, entre outros. Este caráter internacional diferencia a iniciativa em
relação às outras citadas, sem deixar de se vincular às inclinações heterodoxas do local.
Afinal, o Biological Computer Laboratory foi o centro de pesquisa mais importante da
Segunda Cibernética. Não apenas isto; a importância do Biological Computer Laboratory
para o conceito de autopoiese fica evidente na seguinte citação:

Hipóteses e programas de pesquisa "desviantes" tornaram-se cada vez mais


característicos do estilo BCL, ou do estilo de pesquisa de seus protagonistas.
Romper com a corrente principal de pesquisa não foi claramente o objetivo
pretendido, mas foi o resultado óbvio da próxima fase da história do laboratório,
cujo início pode ser datada de meados dos anos 1960. Naquela época, Heinz Von
Foerster visitou o cientista chileno Humberto Maturana, que conheceu em uma
conferência na Europa, em seu laboratório em Santiago, e, posteriormente,
convidou-o para o BCL. Maturana já tinha estado nos Estados Unidos, tendo
trabalhado durante algum tempo no MIT, onde ele não tinha se encaixado tão bem
devido às suas opiniões "teimosas". Naquela época (em 1959), ele já tinha um difícil
relacionamento com o laboratório de Marvin Minsky, o "mentor" posterior das
pesquisas em de inteligência artificial. Então Maturana chegou ao BCL, onde
trabalhou, entre outras coisas, em um artigo importante que conduz em direção à sua
já famosa teoria da autopoiese. Mesmo a mais antiga formulação da teoria da
autopoiese, como mais tarde foi articulada, apareceu pela primeira vez como uma
publicação interna no BCL. Alunos e colegas de trabalho de Maturana também
desenvolveram vínculos com o BCL, e importantes primeiras publicações – por
exemplo, de Francisco Varela – foram feitas como reports do BCL. (...) Foi
provavelmente o desafio fornecido pelo ímpeto do grupo chileno que permitiu a
Heinz Von Foerster avançar no desenvolvimento de sua versão radical de uma
"cibernética de segunda ordem". Isto não significa que os conceitos de Foerster
poderiam ser derivados dos de Maturana, ou vice-versa. (...) A contribuição de
Foerster pode ser lida como uma resposta direta à de Maturana e vice versa. O
principal paralelo entre Foerster e Maturana parece consistir na guinada da auto-
tematização que, por sua vez, foi dirigida ao mainstream científico nos anos 1960 e
no início dos 1970. Dois leitmotifs podem ser vistos aqui – o de "fechamento" e o do
"observador". (MÜLLER, 2000, p. 288)
189

O que Müller afirma, na verdade, é que os trabalhos de Maturana e Varela também


influenciaram Von Foerster. Mais do que isto: para os propósitos da presente investigação é
especialmente relevante que o convite de Von Foerster a Maturana tenha se dado numa visita
do primeiro a Santiago – visto que naquele período era muito mais frequente o fluxo de
pesquisadores no sentido da América Latina para a América do Norte.
Isto remete ao fato de que a relação de Von Foerster com Maturana e Varela é
fundamental para que compreendamos o sentido político – e ontológico – da cognição
corpórea. Voltaremos a este ponto adiante, ao tratarmos do papel de Von Foerster na difusão
do conceito de autopoiese. Mas esta constatação contribui também para que se reforce a
convicção de que o ambiente precursor da cognição corpórea envolvia forte intercâmbio de
ideias e o enfrentamento coletivo de controvérsias. É o que atesta, também, Isabelle Stengers,
advertindo, no entanto, para os problemas na articulação entre auto-organização e autopoiese:

Von Foerster integrou sem qualquer problema a autopoiese de Maturana e Varela às


teses do BCL. Ela se uniu profundamente à vocação primeira do laboratório: pensar
a diferença entre os computadores e autômatos de que dispomos e o que seria um
autômato semelhante ao vivo. Mas a noção de auto-organização tornou-se, no
momento do contato entre Maturana, Varela e Von Foerster, muito estranha a esta
vocação para que o encontro tivesse lugar em torno deste tema (STENGERS, 1985
p. 56)

Para que se esclareça a relação entre a ideia de autômato e a de ser vivo neste
contexto, as diferenças entre auto-organização e autopoiese, e a importância disto para a
cognição corpórea, alguma incursão precisa agora ser feita aos antecedentes chilenos do
conceito de autopoiese, sobretudo à obra de Maturana.
Um aspecto relevante da contribuição de Maturana está na noção de que os seres vivos
se caracterizam pelos processos através dos quais se conservam. Segundo seu próprio
depoimento (MATURANA & VARELA, 1998 [1974]; MATURANA, 2012), ele chegou a
esta ideia a partir das perguntas equivalentes: "O que começou quando os seres vivos
começaram a existir na Terra e foi conservado desde então?”, ou "Que tipo de sistema é um
sistema vivo?". A segunda forma da questão já foi brevemente discutida nas páginas
anteriores, sobretudo quando foram examinados os trabalhos de Von Bertalanffy e Weiss.
Contudo, a resposta que Maturana propôs – e que está na origem da noção de autopoiese – se
diferencia daquelas que levaram ao conceito de auto-organização de seres vivos, tal como
investigado neste trabalho até o momento. Ela se notabiliza por estar centrada na ideia de
individualidade:
190

Eu pensei que o que era fundamental para explicar e compreender os sistemas vivos
era atentar para a sua condição de seres discretos, entidades autônomas que vivem a
sua vida como unidades independentes. Na verdade, eu pensei (como eu ainda faço)
que a coisa mais importante sobre a biologia como uma ciência é o fato de que o
biólogo lida com entidades discretas e autônomos que, em sua operação individual,
geram fenômenos gerais que são válidos para todos os membros da classe de seres
vivos: o que é central na biologia é o que acontece na vida dos seres vivos como
individualidades. Ao mesmo tempo, eu acho que a coisa mais importante na física
como uma ciência é que o físico lida com leis gerais e não com as particularidades
das entidades que, estando subordinados a elas, tornam o funcionamento dessas leis
aparentes através de suas relações e interações: o que é central na física são as leis
gerais que definem o que é possível e o que não é possível nas relações e interações
de entidades em geral, sem se importar com a sua possível individualidade
(MATURANA & VARELA, 1998 [1974], p. 11 – grifo meu).

O destaque para a noção de “operação” é importante na medida em que antecipa a


ideia de clausura operacional, essencial na noção de autopoiese. A característica de clausura,
ou fechamento, do ser vivo, já se percebe no pensamento de Maturana ao examinarmos a
seguinte passagem retrospectiva, na qual ele se refere a suas ideias nos anos 1960:
Eu não tinha o conceito de circularidade ou autoprodução ainda; que veio um pouco
mais tarde. Eu vi então que tudo no sistema vivo mantém um conjunto de relações
moleculares circulares de uma forma que se constitui espontaneamente um sistema
vivo como uma entidade discreta autônoma. De fato, eu tinha chegado a
compreender que os sistemas vivos são entidades moleculares dinâmicas discretas
que existem como redes circulares fechadas de produções moleculares que, através
de suas interações, produzem a mesma rede molecular fechada que as produziu, e
em que tudo podem mudar, desde que a sua estreita dinâmica molecular circular
permaneça invariável (MATURANA, 2012, p. 159)

Nota-se que, diferentemente do que vimos nos diversos aspectos do conceito de auto-
organização, o que mais importa na clausura operacional é a independência do sistema em
relação ao ambiente, no que diz respeito à sua capacidade de se manter. Este seria o caráter de
sua autonomia, que não chega a revelar incompatibilidade entre auto-organização e
autopoiese. Digamos que o primeiro conceito é mais geral do que o segundo, uma vez que
este se refere a sistemas que se autocriam, autoproduzem, no todo e em suas partes, e não
apenas organizam, por si mesmos, partes pré-existentes. Disto decorre uma importante
implicação para a cognição corpórea: os sistemas autopoiéticos, ou autônomos, dependem
essencialmente de sua estrutura interna para se manterem e se autoproduzirem. Isto, acrescido
do fato de que a cognição é entendida como um processo vital pela orientação corpórea,
confere papel fundamental para as dinâmicas e estruturas dos seres individuais na geração dos
significados cognitivos. Tal é a compreensão que se explicita quando Maturana afirma que os
indivíduos que chama de “unidades compostas são sistemas determinados por suas estruturas”
(MATURANA, 1988, p. 7), se reforça no comentário de Varela de que Maturana realizou a
conexão entre a circularidade dos processos neuronais e dos processos orgânicos (VARELA,
191

1996, p.412), e se complementa numa obra central do enativismo, como verificamos na


seguinte passagem de Evan Thompson:

Um sistema autônomo, como uma célula ou organismo multicelular, não é


meramente um sistema que se auto-mantém, como uma chama de vela; estes são
sistemas também autoproduzidos, pois produzem seus próprios processos de auto-
manutenção, incluindo uma fronteira topológica ativa que demarca o dentro do fora
e ativamente regula a interação com o meio ambiente. Numa única célula, forma
autopoiética de autonomia, uma rede metabólica delimitada por uma membrana
produz metabólitos que constituem tanto a própria rede em si, quanto a membrana
que permite a dinâmica limitada da rede. Outros sistemas autônomos têm diferentes
tipos de processos de autoconstrução e topologias de rede. Seja o sistema uma
célula, uma rede imunológica, um sistema nervoso, uma colônia de insetos ou uma
sociedade animal, o que emerge é uma unidade com sua própria identidade, domínio
de interações ou meio auto-produtivos, seja o sistema celular (autopoiese), somático
(redes imunes), sensório-motor e cognitivo (sistema nervoso) ou social (sociedades
animais) (THOMPSON, 2007, p. 65).

Alguns pontos deste trecho exigem destaque, uma vez que trazem algumas
informações valiosas sobre como a noção de sistema tem sido tratada na cognição corpórea. O
primeiro deles, contudo, diz respeito a como o conceito de autopoiese é associado por
Thompson apenas à autonomia celular. Dito de outra forma, o autor restringe a noção de
autopoiese ao caso da célula. Mas, em outra passagem do mesmo livro, Thompson esclarece a
importância da noção de autopoiese para a compreensão das de autonomia e autoprodução:

A autopoiese é o caso paradigmático de autonomia biológica, por duas razões. É o


caso mais bem compreendido empiricamente, e fornece o núcleo "biológico" de toda
a vida na Terra. Para se qualificar como autônomo, no entanto, um sistema não tem
que ser autopoiético, no sentido estrito (um sistema molecular autoproduzido
delimitado por uma membrana). Um sistema autopoiético produz dinamicamente
seu próprio limite material ou membrana, mas um sistema pode ser autônomo sem
ter esse tipo de limite material. Os membros de uma colônia de insetos, por exemplo,
formam uma rede social autônoma, mas a fronteira é social e territorial, e não
material (Ibid., p. 44).

Isto é, a autopoiese, embora seja um conceito originariamente circunscrito ao caso da


célula, na qual a membrana tem crucial importância como ao mesmo tempo limite e meio de
comunicação com o exterior, uma versão ampliada do conceito pode ser aplicada a outros
sistemas autônomos, se o que se quer é destacar sua qualidade de sistema que se autoproduz.
Mas outro ponto da primeira citação de Thompson, acima, merece especial atenção:
aquele que associa a produção de identidade à autoprodução do sistema vivo. Se recordarmos
que a cognição, para o enativismo, é um processo vital, e se acrescentarmos a esta ideia o que
acabamos de constatar sobre as noções de autonomia e autopoiese significarem autoprodução
dinâmica, concluiremos que a cognição é também um processo de transformação do ser vivo,
192

no qual ele se produz ao realizar processos cognitivos e, além disso, realiza estes processos de
modo dependente de sua estrutura individual, de seu organismo, de seu corpo.
O intuito de se analisar aqui o conceito de autopoiese não é de avaliá-lo em todos os
seus aspectos e limites. Isto fugiria ao escopo deste trabalho. Por esta razão, basta que seja
indicada a relevância deste conceito para as teses da cognição corpórea. E esta relevância não
é pequena, ainda que a noção de autopoiese não venha sendo mencionada com muita
frequência nos textos mais influentes da cognição corpórea71 – como, por exemplo, The
embodied mind, Philosophy in the flesh, ou nos livros de Mark Johnson e António Damásio.
A autopoiese (como “explicação” da noção de autonomia – VARELA, 1981) serve como
meio de compreensão do que, como já vimos em citação anterior de Varela et al (1991),
significa autonomia em oposição a heteronomia ou alonomia (VARELA, 1981), que
corresponderiam a um controle externo. No caso da cognição, a heteronomia se associa ao
modelo lógico-proposicional, na medida em que o controle externo do organismo se dá
mediante um sistema simbólico abstrato e a ele transcendente, no qual os significados são
produzidos predominantemente através de estímulos, ou inputs, exógenos.
Este aspecto não pode, contudo, ser plenamente compreendido fora do contexto
político e do questionamento ontológico que o precederam.
É necessário fazer uma incursão aos acontecimentos que antecederam a disseminação
do conceito de autopoiese, inseparáveis de seu próprio sentido para a cognição. Cabe então
mostrar que Von Foerster teve papel central na aceitação internacional do conceito,
considerando o contexto da vinculação da sua produção a seu local de nascimento e às
dificuldades de sua penetração no meio científico dominante norte-americano, conforme
importante narrativa de Varela (VARELA, 1996)72. O seguinte trecho revela com propriedade
a consciência que Varela tinha sobre as relações entre o conceito, sua origem, sua influência e
seu sentido ontológico-político:

71
Uma importante exceção é o livro Mind in life, de Evan Thompson, no qual há um capítulo, de cerca de 35
páginas, inteiramente dedicado ao conceito. Para discussões mais pormenorizadas a respeito do conceito de
autopoiese, no interesse da cognição corpórea, v. BOURGINE & STEWART, 2004 e FROESE & STEWART,
2010.
72
Este artigo – contendo uma atitude política de Varela quanto à ciência – já foi referido na introdução deste
trabalho.
193

Se a autopoiese tem sido influente é porque ela foi capaz de alinhar-se com um outro
projeto que se concentra na capacidade interpretativa do ser vivo e concebe o ser
humano como um agente que não descobre o mundo, mas sim o constitui. É o que
poderíamos chamar de guinada ontológica da modernidade que, no final do século
XX, está tomando forma como um novo espaço de interação social e de pensamento,
e que, sem dúvida, está progressivamente mudando a face da ciência. Em outras
palavras, a autopoiese é parte de um quadro muito maior do que a biologia, no qual
hoje detém uma posição privilegiada. É essa sintonia com uma tendência histórica,
intuída mais do que conhecida, que é o núcleo das primeiras ideias sobre a
autopoiese (VARELA, 1996, p. 407-408 – grifo em negrito meu).

Independentemente de se as expectativas otimistas de Varela, quanto ao que chama de


guinada ontológica na ciência, estão se concretizando ou não, é muito importante constatar
quais eram seus propósitos com o conceito de autopoiese. Vemos que não se tratava apenas de
uma teoria para a natureza da vida, mas englobava uma determinada compreensão da natureza
da ciência e da vida social e política, ao defender que o ser humano constitui o mundo ao se
autoproduzir. Este posicionamento antecipa a investigação que este trabalho se propõe a fazer
das motivações pelas quais a cognição corpórea, ao mesmo tempo em que faz sua crítica ao
modelo lógico-proposicional da cognição, advoga uma nova continuidade e um novo processo
unificador para as ciências cognitivas. Este processo implica basicamente, como será mais
explorado adiante, uma concepção ontológica e política da cognição e, por extensão, da
própria ciência (e das ciências cognitivas). De qualquer modo, podemos afirmar que, se
estiver havendo algum sucesso do prognóstico de Varela, parte dele estará se dando
justamente através da penetração da cognição corpórea no ambiente científico
contemporâneo. Observaremos que, assim como Varela, outros autores da cognição corpórea,
como George Lakoff, Mark Johnson e António Damásio, têm se empenhado em propor uma
nova imagem de ser humano, de natureza e de ciência ao mesmo tempo em que defendem
suas teorias sobre a cognição. E é necessário destacar que o conceito de autopoiese, em sua
dimensão ontológico-política explicitada por Varela acima, se coaduna com estes
posicionamentos, ainda que não seja mencionado com frequência nas argumentações destes
autores e de outros da mesma linha.
Contudo, o mais importante no artigo que está sendo comentado é a narrativa que não
apenas expõe a dificuldade – abrandada pela ação de Von Foerster –, com que a noção de
autopoiese passou a circular no ambiente científico, mas revela as motivações filosóficas e
políticas que já estavam presentes desde antes da sua proposição, e a acompanharam a
disseminação do conceito. Dito de outra forma, fica patente no artigo que o conceito foi
criado com a consciência, por parte de seus autores, que sua defesa envolveria algum tipo de
embate, e que suas características se vinculam ao local e ao momento de seu nascimento – o
194

Chile do início dos anos 1970. Ademais, não deve ser negligenciado o fato de que o próprio
artigo, ainda que retrospectivo, possa ser compreendido como um texto motivado
politicamente, justamente no sentido de não deixar que seja esquecido, em nenhum momento,
o sentido ontológico-político da autopoiese.
Varela destaca, dentre as principais influências que teve no período anterior à
elaboração do conceito, seu aprendizado como orientando de Maturana, suas leituras
filosóficas e a cibernética.
Quanto à filosofia, Varela aponta a importância da fenomenologia de Husserl,
Heidegger e Merleau-Ponty em sua formação. Como é bem conhecido – e como veremos
adiante –, especialmente a filosofia de Merleau-Ponty foi essencial para a elaboração da
concepção ontológica da cognição corpórea, e isso se deve sobretudo à leitura que Varela fez
deste filósofo desde sua juventude.
Entretanto, neste artigo Varela revela uma influência menos conhecida: aquela de
filósofos da ciência como Thomas Kuhn, que defenderam a natureza histórico-social da
dinâmica científica. Varela afirma que as noções kuhnianas de revolução científica, anomalia
e paradigma foram conscientemente utilizadas por ele ao defender a autopoiese como uma
nova concepção para o fenômeno da vida – isto é, como um novo paradigma biológico. Em
outras palavras, Varela adotou os conceitos de Kuhn – especialmente aqueles desenvolvidos
em A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1978 [1962]) – não como forma de
explicar a posteriori as transformações no cenário da ciência, mas como tentativas de
provocar estas transformações, o que não deixa de ser incomum. Foi com este raciocínio que
ele identificou como anomalia da então biologia normal (para fazer alusão ao conceito e
ciência normal, de Kuhn), a insatisfação dele e de Maturana com a noção de informação como
chave para a compreensão da cognição. Esta posição teria levado ele e Maturana a buscar
reformular a ideia de epistemologia experimental, originalmente proposta por McCulloch,
com quem Maturana trabalhara no MIT.
De 1968 a 1970, Varela teve outra experiência importante para sua formação como
cientista, e que também aguçou sua percepção das diferenças entre as concepções então
tradicionais e o que chamou de sua heterodoxia: foi quando fez seu Doutorado em Biologia na
Universidade de Harvard. Lá, estudou, além dos temas ligados ao seu objeto principal,
antropologia, teoria dos sistemas dinâmicos não lineares, filosofia e linguística, e se deu conta
de que, diferentemente do que experimentara em Santiago, não havia recepção favorável às
questões epistemológicas que o interessavam mais vivamente. Sua maior referência nos EUA
era, então, exatamente Von Foerster, a quem visitou muitas vezes no Biological Computer
195

Laboratory, tendo então participado do encontro “Cognition: a multiple view”, promovido por
Von Foerster, no qual Maturana apresentou o trabalho “Neurophysiology of cognition” – que
viria a ser embrião da sua obra “Biology of cognition”. Mas, além disso, seu contato com a
política estudantil em Harvard, animada pela onda de maio de 1968 em Paris, foi crucial,
segundo sua própria narrativa, para que ele adotasse uma posição política voltada para a
transformação das condições de vida na América Latina. Coincidentemente, retornou a seu
país dois dias antes da eleição do socialista Salvador Allende para presidente da República do
Chile.
É se referindo ao período de Allende que Varela afirma, descrevendo os meses de
gestação do conceito de autopoiese:

Foram meses de trabalho e discussão quase constantes. Algumas das ideias eu testei
com os meus alunos no curso de biologia celular, outros com colegas no Chile.
Ficou claro para nós que estávamos embarcando em uma viagem que era
conscientemente revolucionária e anti-ortodoxa, e que esse valor tinha tudo a ver
com o clima no Chile, onde as possibilidades foram se desdobrando em uma
criatividade coletiva. Os meses que levaram ao desenvolvimento de autopoiese são
inseparáveis do Chile na época (VARELA, 1996, p. 412).

Assim, se nota que o conceito de autopoiese, em vez de ser estudado como um mero
conjunto abstrato de formulações teóricas, deve sê-lo, de acordo com sua importância para a
cognição corpórea, em função de sua íntima vinculação com o contexto em que foi elaborado
e, além disso, em função do modo como foi levado ao encontro do ambiente científico fora de
seu local de nascimento.
Varela reporta no artigo em análise que o primeiro texto em inglês contendo o
conceito de autopoiese – “Autopoiesis: the organization of the living systems”, de 1971, seu e
de Maturana – foi recusado por pelo menos cinco publicações internacionais às quais fora
enviado. A mesma indiferença teria ocorrido diante de sua palestra chamada “Cells as
autopoietic machines”, proferida na Universidade do Colorado, nos EUA, em 1972.
Por outro lado, Varela dá conta de alguns focos de boa receptividade para o conceito,
como as de Von Foerster, Ivan Illich, Erich Fromm e Stafford Beer, que escreveria o prefácio
de uma das edições dedicadas a ele, após trabalhar no Chile a convite do então ministro de
Allende, e futuro pesquisador da inteligência artificial, Fernando Flores.
Mesmo com a boa aceitação do conceito no Chile, apenas em 1973 foi publicada a
versão em espanhol do livro De máquinas y seres vivos: uma teoria de la organización
biológica. Porém, a tradução para o inglês do livro somente seria publicada em 1980.
196

A participação mais significativa de Von Foerster, segundo Varela, decorreu da visita


já mencionada anteriormente do primeiro ao Chile. Nesta ocasião, Von Foerster contribuiu
para a redação final do texto “Autopoiesis: the organization of living systems, its
characterization and a model”, de Varela, Maturana e Ricardo Uribe (outro pesquisador
chileno que, como já vimos, esteve no Biological Computer Laboratory). Segundo Varela,
com a contribuição de Von Foerster o texto foi publicado na revista Biosystems, em 1974.
Contudo, neste ano Varela já tinha sido obrigado a se exilar do Chile, devido ao golpe militar
que derrubou e assassinou Allende em 1973.
Foi no contexto histórico aqui apresentado que se deu o que Varela chamou de
guinada ontológica, representada não apenas pelo conceito de autopoiese, como também pelas
implicações políticas que são vinculadas a ele. Nas palavras do autor,

Esta tendência que designo como guinada ontológica não é um modo filosófico, mas
sim um reflexo da vida de todas as coisas. Estamos entrando em um novo período de
fluidez e flexibilidade que arrasta consigo a necessidade de refletir sobre a maneira
pela qual os seres humanos fazem o mundo em que vivem, e não já o encontram
feito como uma referência permanente (Ibid., p. 415).

Esta densa passagem apresenta três pontos extremamente importantes para a presente
pesquisa e suas hipóteses sobre a cognição corpórea:
1) A ideia de que o momento histórico de então exigiu uma reflexão nova sobre a
construção humana do mundo, que articularia de modo inseparável as dimensões
biológica, cognitiva e politica;
2) A acepção ontológica da cognição como produção de um mundo, que se
consubstanciaria posteriormente no conceito de enação, oposta à perspectiva
representacional de sentido meramente epistemológico73, afinada com o
cognitivismo então ainda dominante nas ciências cognitivas;
3) Uma nítida posição filosófica – metafísica – do autor, que não se limita a uma
suposta neutralidade científica, e orienta seu posicionamento diante da sua
atividade de cientista no mundo, que ele, como vimos, compreende como algo que
é permanentemente produzido, e não apenas representado.
Cabe ainda uma suposição sobre este fragmento, coerente com o que foi exposto
anteriormente: de que, para Varela, a própria ontologia não seja apenas um ramo da filosofia,

73
Entenda-se como “meramente epistemológico” o sentido dos estudos sobre a cognição que considere
separadamente os sujeito e o objeto, como entidades independentes – tal como caracterizado pela crítica da
cognição corpórea.
197

mas uma expressão da própria vida humana se autoproduzindo – concepção que envolveria,
por certo, a filosofia mesma.
Ao examinarmos o conceito de autopoiese ficou bastante evidente o peso da reflexão
filosófica na sua elaboração. Através deste caminho, ocorreu, nesta seção, uma particular
transição de questões originalmente biológicas na direção de questões filosóficas. Estas
questões filosóficas passam a exigir elucidação, o que nos leva à segunda parte da seção, que
se dedicará prioritariamente às influências filosóficas da cognição corpórea. Prosseguiremos a
partir da ideia de guinada ontológica, ou da importância que tem a questão da produção de um
mundo para a cognição corpórea, sobretudo através da abordagem corpóreo-enativa. Porém,
há três observações a fazer a respeito. A primeira é que um aprofundamento da questão
ontológica, para a cognição corpórea, virá com a investigação das abordagens corpóreo-
enativa e corpóreo-conceitual, nas seções 2.3 e 2.4 – além de algumas considerações gerais
importantes na próxima seção. Sendo assim, ao contrário do que foi feito com o estudo dos
antecedentes biológicos da cognição corpórea – os quais não merecerão maiores
considerações nas seções seguintes –, não nos estenderemos muito nesta seção no que tange à
sua base ontológica, apresentando apenas as principais referências que posteriormente serão
detalhadas. A segunda observação é de que a questão ontológica que será tratada nas
próximas seções tem forte conexão com a importância da noção de experiência humana para a
cognição corpórea. Sendo assim, devemos investigar, agora, como nasceu a dimensão
experiencial da orientação corpórea. Veremos que ela se deve predominantemente à
abordagem corpóreo-enativa, e à influência da fenomenologia sobre ela. Mas a terceira
observação sugere que a filosofia que mais influenciou o enativismo, a fenomenologia do
comportamento e da percepção de Maurice Merleau-Ponty, já possuía, ela mesma, influências
de um modo de pensar os organismos vivos que antecipou em muitos aspectos a cognição
corpórea.
Tom Froese cunhou o termo guinada experiencial para designar – parafraseando
Varela – a atenção deste para com a fenomenologia como meio de compreender a experiência
humana, o que contribuiu para que propusesse o enativismo. Paralelamente à necessidade de
compreender a experiência humana, vem a necessidade de compreender o fenômeno da
vida74, a ela associado, que foi enfrentado por Varela sobretudo com a noção de autopoiese.
Froese afirma que “uma apropriada compreensão do fenômeno da vida deve levar em conta o
corpo concreto vivo, incluindo o suas propriedades materiais e termodinâmicas, e o corpo

74
A noção de fenômeno da vida, na maior parte dos trabalhos de Varela e Thompson, tem como origem a obra
de Hans Jonas (JONAS, 1966).
198

concreto vivido, incluindo suas propriedades fenomenológicas ou experienciais em primeira


pessoa” (FROESE, 2011, p. 3) – fazendo referência à proposta apresentada por Evan
Thompson e Robert Hanna para articular a noção biológica de corpo, vinculada à biologia da
cognição, com a noção husserliana de corpo vivido (HANNA & THOMPSON, 2003). Já o
adjetivo concreto Froese extraiu do artigo de Varela “The reenchantment of the concrete”
(VARELA, 1995). O sentido de “concreto”, neste artigo de Varela, é empregado em oposição
a “racionalista, cartesiano, objetivista” – princípios cognitivistas, segundo a cognição
corpórea – e, assim, afinado com as ideias de corpóreo, encarnado, vivido.

2.1.7. A fenomenologia da percepção

Tratou-se da biologia do conhecimento nas páginas anteriores, e devem ser agora


exploradas as origens da noção de experiência humana no enativismo, para que possamos
compreender mais plenamente como nasceu a ideia de cognição corpóreo-experiencial na
confluência de biologia cognitiva com fenomenologia. A noção de experiência, tal como
adotada na cognição corpórea, será objeto das seções que tratarão das abordagens que a
compõem – e portanto, não será alvo desta seção –, mas algumas de suas características
principais se encontram sobretudo na apropriação feita pelo enativismo da fenomenologia de
Merleau-Ponty, e isto será brevemente explorado nas próximas linhas.
No livro The embodied mind Varela, Thompson e Rosch destacam a importância de
Merleau-Ponty para a compreensão da cognição como processo no qual percepção e ação, e
organismo e ambiente, são elementos inseparáveis, e assim constituem a experiência. Mais do
que isso, eles chegam a declarar que seu livro seria uma “continuação moderna” do
“programa de pesquisa” de Merleau-Ponty (VARELA et al, 1991, p. xv). É merecedora de
nota esta dupla afirmação. Em primeiro lugar, em razão da segunda expressão usada. Afirmar
que Merleau-Ponty tenha realizado um programa de pesquisa é uma caracterização pouco
usual para a atividade de um filósofo, mas, tendo em vista sobretudo o fato – que será
examinado a seguir – de que ele tenha utilizado teorias de fisiologistas para embasar suas
ideias, esta formulação torna-se mais compreensível. Em segundo lugar, talvez Varela,
Thompson e Rosch estejam se colocando um lugar que parecem considerar ser aquele adotado
por Merleau-Ponty: um inevitável “caminho do meio” entre filosofia e ciência.
Uma as referências de Varela, Thompson e Rosch é o livro de Merleau-Ponty A
estrutura do comportamento (MERLEAU-PONTY, 2006 [1942]), no qual destacam
199

(VARELA et al, 1991, p. 173-175) a passagem inicial em que o autor afirma, baseando-se nas
teorias dos fisiologistas alemães Viktor Von Weizsäcker e Kurt Goldstein, que:
1) A concepção da cognição, com utilização da analogia de que o organismo animal seria
um teclado passivo, no qual os estímulos do mundo exterior seriam “tocados”, é
inadequada. Isto porque, segundo Merleau-Ponty – apoiado em Weizsäcker – o
organismo ao perceber não é passivo como um teclado, mas ativo. Dito de outra
forma: para que os estímulos sejam recebidos, o ser vivo que percebe tem que se
movimentar e a seus órgãos dos sentidos, de maneira ativa, para que a percepção, e
posterior ação, ocorram. Sendo assim, não se pode dizer, propriamente, que os
estímulos sejam apenas “recebidos”. Eles, de certa forma, são colhidos, buscados,
produzidos, pelo próprio animal. Deste modo, segundo Weizsäcker, citado por
Merleau-Ponty, “as propriedades do objeto e as intenções do sujeito (...) não apenas se
misturam, mas ainda constituem um todo novo” (MERLEAU-PONTY, 2006 [1942],
p.);
2) O mundo, portanto, não é algo independente das características do organismo que o
“conhece” – ou dele extrai elementos para sua sobrevivência. Ao contrário, conforme
a citação de Goldstein feita por Merleau-Ponty, “o meio (Umwelt) se recorta no
mundo segundo o ser do organismo – sendo claro que este só pode existir se encontrar
no mundo um ambiente adequado” (Ibid,. p. 15).
Tem-se a partir destas afirmações que na experiência perceptiva – que não é apenas de
percepção, mas precedida e seguida de ação – o mundo que importa não é o mundo
supostamente objetivo nem subjetivo, entendidos como separados, mas uma nova realidade
provocada pelo encontro das duas dimensões: aquela proporcionada pelo mundo exterior, e
aquela proporcionada pelo organismo. Nas palavras de Varela et al, “como Merleau-Ponty
observa, o organismo tanto inicia o ambiente, quanto é moldado por ele” e “devemos ver o
organismo e o ambiente como reunidos em especificação e seleção recíprocas” (VARELA et
al, 1991, p. 174).
É importante observar que Merleau-Ponty, ao desenvolver uma filosofia do
comportamento, da percepção e da ação, não se baseou unicamente em obras filosóficas.
Como já foi assinalado acima, a influência filosófica que, através da fenomenologia da
percepção, ajudou a produzir a noção de enação, decorre ela mesma de trabalhos científicos.
Isto deve provocar reflexões importantes sobre os limites que supostamente garantiriam a
pureza dos discursos filosófico e científico, e cujo questionamento é de fundamental
importância na cognição corpórea. Como já foi dito, este trabalho defende a ideia de que os
200

autores da cognição corpórea, em vez de basearem suas conclusões exclusivamente em


argumentos expressos em teorias científicas, adotam posições metafísicas e políticas em seu
discurso. Mas podemos dizer o mesmo de Goldstein e Weizsäcker. O segundo, que
desenvolveu estudos sobretudo a respeito da medicina psicossomática, expôs ideias filosóficas
relacionadas à sua produção científica em livros como Der Gestaltkreis, Theorie der Einheit
von Wahrnehmen und Bewegen, de 1940, em que apresentou o conceito de Gestaltkreis, isto
é, Gestalt circular, e Pathosophie (1956). Seu conceito de Gestaltkreis já antecipava
importantes afirmações da cognição corpórea, como a de que a experiência atual sempre
depende da maneira como experiências anteriores moldaram o organismo que a vive (HAHN,
1991).
Já Kurt Godstein tem uma obra mais reconhecida e influente. É notória, por exemplo,
sua importância em Georges Canguilhem (O normal e o patológico) e na obra primeira de
Michel Foucault Doença mental e psicologia, de onde se extrai o seguinte trecho, no qual o
autor ressalta a importância, para Goldstein, da noção de que o organismo se relaciona com o
meio na medida em que constitui, ele mesmo, um todo:

Estudando, nas fronteiras da medicina mental e orgânica, uma síndrome neurológica


como a afasia, [Goldstein] recusa tanto as explicações orgânicas por uma lesão local,
quanto as interpretações psicológicas por um déficit global da inteligência. Mostra
que uma lesão cortical pós-traumática pode modificar o estilo das respostas do
indivíduo a seu meio; um dano funcional limita as possibilidades de adaptação do
organismo e suprime do comportamento a eventualidade de certas atitudes. Quando
um afásico não pode nomear um objeto que lhe é mostrado, apesar de poder
reclamá-lo, se dele necessita, não é por causa de um déficit (supressão orgânica ou
psicológica), que se poderia descrever como uma realidade em si; é que ele não é
mais capaz de uma certa atitude face ao mundo, de uma perspectiva de denominação
que, ao invés de aproximar-se do objeto para pegá-lo (greifen), distancia-se para
mostrá-lo e indicá-lo (zeigen).
Quer suas designações primeiras sejam psicológicas ou orgânicas, a doença
concerniria de qualquer modo a situação global do indivíduo no mundo; em vez de
ser uma essência fisiológica ou psicológica, é uma reação geral do indivíduo tomado
na sua totalidade psicológica e fisiológica. Em todas estas formas recentes de análise
médica, pode-se, então, ler uma significação única: quanto mais se encara como um
todo a unidade do ser humano, mais se dissipa a realidade de uma doença que seria
unidade especifica; e também mais se impõe, para substituir a análise das formas
naturais da doença, a descrição do indivíduo reagindo a sua situação de modo
patológico (FOUCAULT, 1975 [1954], p. 11-12)

Pode-se dizer que, além desta concepção holística do ser humano, Goldstein se
aproxima da cognição corpórea por suas posições já assinaladas na obra de Merleau-Ponty.
Suas inclinações filosóficas se encontram presentes na sua concepção de biologia tal como
expressa no livro The organism, e de onde se extrai o seguinte fragmento:
.
201

O que se entende por mente sempre vai depender do que se entende por vida e
natureza. Parece-nos que, em geral, a concepção de espírito é (e para Scheler
também) determinada por uma noção incorreta do fenômeno da vida, porque ela foi
arrancada, "isolada", do todo a que pertence. Desta forma, a vida se tornou imbuída
de características realmente não atribuíveis a ela, um mero artefato de descrição
isolada. (GOLDSTEIN, 1995 [1934], p. 354).

Goldstein explicita neste texto sua consciência de que, por trás de um discurso
científico, há posições metafísicas sobre o significado dos conceitos utilizados, que não
deixam de influir nas conclusões teóricas75. Além disso, expõe sua própria concepção crítica
sobre conceitos como “vida” e “natureza” que, por sua vez, estarão presentes nas influências
que provocou em filósofos como Merleau-Ponty, Foucault e Canguilhem – e, ainda que em
sua maior parte indiretamente, sobre os autores da cognição corpórea.
A menção a Weizsäcker e Goldstein recupera alguns dos temas discutidos
anteriormente, quando nesta seção se tratou da importância do trabalho de alguns cientistas,
como sobretudo Weiss, no desenvolvimento de uma nova noção de sistema vivo – uma noção
marcada pelas ideias de holismo e auto-organização, mas buscando evitar apelar para uma
interpretação vitalista do fenômeno da vida. Contudo, deve-se ressaltar neste momento que a
influência de Weizsäcker e Goldstein se notabiliza não somente pelo sentido de propor novas
explicações para a natureza da vida, mas sobretudo por nascer de trabalhos já comprometidos
com novas concepções de ser humano, de saúde e da relação entre cognição e organismo.
Sendo assim, estes autores se aproximam de uma importante dimensão da cognição corpórea:
sua preocupação com as consequências práticas dos conceitos científicos. Ou ainda: que os
conceitos científicos podem nascer já comprometidos, de algum modo, com a destinação que
terão. Veremos mais à frente, em detalhe, como se manifesta este aspecto da cognição
corpórea – embora ele já venha sendo anunciado como sendo o sentido ontológico-político da
atuação dos autores dessa nova vertente das ciências cognitivas.
Quanto à influência de Merleau-Ponty sobre a cognição corpórea, contudo, não deve
pairar a desconfiança de que tenha sido tão somente uma transmissão direta das ideias de
cientistas como Weizsäcker e Goldstein. É preciso deixar patente que alguns conceitos de
Merleau-Ponty foram fundamentais, em si mesmos, para o desenvolvimento da noção da
cognição como acontecimento corpóreo-experiencial. Para explicitar esta convicção, deve ser
referido o sentido mais especificamente filosófico da concepção enativista. Para tanto,
levemos em consideração o início do livro The embodied mind:

75
Sobre as implicações da importância da metafísica na constituição da ciência moderna e contemporânea v.
VIDEIRA, 2011 e TAKIMOTO, 2013.
202

Um cientista cognitivo de inclinação fenomenológica, refletindo sobre as origens da


cognição, pode pensar assim: as mentes despertam em um mundo. Não projetamos
nosso mundo. Nós simplesmente nos descobrimos com ele; nós despertamos tanto
para nós mesmos quanto para o mundo que habitamos. Vimos a refletir sobre este
mundo à medida que crescemos e vivemos. Nós refletimos sobre o mundo que não é
feito, mas encontrado, e é também nossa estrutura que nos possibilita refletir sobre
este mundo. Então, ao refletirmos, nós nos encontramos em um círculo: estamos em
um mundo que parece que já existia antes de a reflexão ter-se iniciado, mas esse
mundo não é separado de nós.
Para o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, a identificação deste círculo abriu
espaço entre o self e o mundo, entre o interno e o externo. Este espaço não era um
abismo ou divisor: ele englobava a distinção entre o self e o mundo e, ainda, provia
a continuidade entre eles. Sua abertura revelou um caminho de meio, um entre-deux
(VARELA et al, 1991, p. 03).

Pode-se dizer que o que é afirmado acima já foi dito com apoio de Weizsäcker e
Goldstein. Porém, a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty apresenta outras questões
além daquelas já apresentadas com apoio destes dois cientistas. Vejamos a citação abaixo,
unindo as questões da reflexão e da percepção, reproduzida, em parte no livro acima
mencionado:

Eu comecei a refletir, minha reflexão é reflexão sobre um irrefletido, ela não pode
ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma
verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe-lhe
reconhecer, para aquém de suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito,
porque o sujeito é dado a si mesmo. O real deve ser descrito, não construído ou
constituído. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção a sínteses que são
da ordem do juízo, dos atos e da predicação. A cada momento, meu campo
perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que
não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo
imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada
instante também eu fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou pessoas cuja
presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao
mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade da minha representação só estivesse
fundada na coerência intrínseca das “representações”, ela deveria ser sempre
hesitante, e abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada
momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que
primeiramente eu teria excluído dele (MERLEAU-PONTY, 2006 [1945], p. 06)

Este trecho bastante denso apresenta algumas questões que, embora não tenham sido
explicitamente exploradas pelos autores da cognição corpórea, parecem figurar como pano de
fundo de suas críticas à representação como processo intelectual, abstrato. A primeira delas é
a da reflexão como algo que já se dirige a um sujeito que não é separado do mundo. A
segunda, a da diferenciação entre os estímulos provenientes do mundo com aqueles
provocados internamente no sujeito, o que exige que se considere o mundo como realidade, e
o papel do sujeito como produtor de imaginação e fonte da distinção entre realidade e
imaginação. A terceira diz respeito à implausibilidade da percepção como análise e síntese
abstrata.
203

De fato, não se pode afirmar que as teses merleau-pontianas tenham sido suficientes
para se estabelecer a noção de enação, ou para fundar a concepção da cognição corpórea para
a inseparabilidade entre sujeito e objeto e entre percepção e ação. Como veremos nas seções
subsequentes, as influências da fenomenologia, seja originada em Husserl, William James,
Heidegger, Merleau-Ponty ou mesmo Hans Jonas, não foram a única fonte do enativismo.
Alguns resultados de pesquisas científicas tiveram grande peso na constituição da ideia de
enação, como será examinado em maiores detalhes adiante76. Assim, não se justifica neste
trabalho um aprofundamento da investigação sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, para
além do que expressamente é referido na literatura da cognição corpórea. Todavia, uma
citação de Merleau-Ponty feita por Varela e seus coautores merece ainda ser examinada: “O
mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que só é projeto do mundo, e o sujeito é
inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta” (VARELA et al, 1991, p.
4). Coerentemente com o método que vem sendo adotado neste trabalho, não cabe uma
interpretação desta passagem à luz da obra merleau-pontiana em si, mas de acordo com a
apropriação que a abordagem corpóreo-enativa fez do autor. Neste sentido, embora não se
possam fazer afirmações com maior certeza a respeito – até porque os próprios autores não
deixam claro exatamente os critérios de sua apropriação –, esta citação parece demonstrar que
a unidade entre percepção e ação e aquela entre sujeito e mundo não são diferentes em
essência, ou decorrem de uma mesma condição. Isto é, a ideia de projeto vincula percepção e
ação, assim como sujeito e mundo, a partir da noção de que a ação do sujeito, embora
dependa do mundo e de sua própria estrutura, engloba a percepção que, sem a íntima
articulação com a ação, poderia ser apenas representação abstrata e desincorporada. Ou seja, a
experiência, para o enativismo, é essencialmente atividade corpórea que, por sua vez, se dá na
forma da experiência. Para corroborar esta ideia, devemos reproduzir as palavras dos
criadores do enativismo sobre Merleau-Ponty, naquilo que pode ser lido como um resumo de
sua posição sobre o autor:

76
As principais delas foram as pesquisas de Held e Hein com a percepção de gatos (VARELA et al, 1991,
p.174), de Bach y Rita com a “visão” tátil, e o trabalho sobre cores de De Valois (LAKOFF, 2003) e dos
próprios Varela e Thompson,
204

Afirmamos, com Merleau-Ponty, que a cultura científica ocidental requer que


vejamos nossos corpos tanto como estruturas físicas quanto como estruturas
experienciais vividas – em resumo, como algo que é tanto “externo” quanto
“interno”, tanto biológico quanto fenomenológico. Esses dois lados da corporeidade
obviamente não são opostos. Ao contrário, transitamos para diante e para trás entre
eles continuamente. Merleau-Ponty reconheceu que não podemos compreender esse
movimento sem uma investigação do seu eixo fundamental, a saber, a corporeidade
do conhecimento, da cognição e da experiência. Para Merleau-Ponty, assim como
para nós, a corporeidade tem esse sentido duplo: inclui o corpo tanto quanto uma
estrutura experiencial vivida como o contexto ou meio dos mecanismos cognitivos
(VARELA et al, 1991, p. xv-xvi).

Mais uma vez se evidencia a determinação de autores da cognição corpórea em


responder à cultura científica ocidental com nova perspectiva – e, para isso, invocam as
teorias de Merleau-Ponty. Neste fragmento eles reafirmam que esta nova perspectiva tem
como marca essencial a recusa às dicotomias que consideram tradicionais. Assim,
demonstram que, filosoficamente, a cognição corpórea consiste na busca por eliminar
diversos tipos de separação: entre corpo e experiência, entre sujeito e objeto, entre percepção
e ação, entre cognição e vida. Como alternativa, defendem o que chamam de “entre-dois”, ou
“caminho do meio”. Trata-se, evidentemente, de uma asserção bastante desafiadora, que exige
de seus proponentes uma argumentação inovadora. Porque não somente propõe a ruptura com
a noção de “terceiro excluído” da lógica formal – e, de resto, presente na maior parte da
tradição racionalista ocidental, conforme também advogam autores da cognição corpórea
(sobretudo em LAKOFF & JOHNSON, 1999) –, mas também porque defendem um
pensamento dinâmico, em movimento, no sentido do “trânsito” contínuo para adiante e para
trás referido no texto acima reproduzido. Disto decorre que na orientação filosófica da
cognição corpórea, caracterizada pela influência, dentre outras, de Merleau-Ponty, surge então
combatida outra separação, que será mais explorada adiante: entre epistemologia e ontologia.

2.1.8. Psicologia, linguística e cultura

Já ficou bastante evidente a proeminência das teorias biofisiológicas no nascimento da


cognição corpórea. Mesmo a importância de Merleau-Ponty para esta corrente, como
acabamos de ver, não pode ser plenamente separada das influências que este filósofo recebeu
de fisiologistas do início do século 20. Porém, há uma linha de antecedentes crucial para a
cognição corpórea que ainda deve ser mencionada nesta seção. É aquela originada em
pesquisas psicológicas e linguísticas.
Na psicologia merecem destaque nos antecedentes da cognição corpórea os trabalhos
de J. J. Gibson e seus seguidores (GIBSON, 1979) – aquilo que Anthony Chemero e Michael
205

Turvey chamam de “abordagem ecológica de percepção e ação” (CHEMERO & TURVEY,


2007, p. 473). A psicologia ecológica de Gibson concentra seus estudos nos animais (porque
são os seres vivos aos quais se pode atribuir comportamento – dentre eles o homem) e propõe
dois conceitos principais, no livro The ecological approach to visual perception (GIBSON,
1979)
O primeiro deles é o de affordances77: trata-se do que o ambiente oferece, provê ou
fornece ao animal, de bom ou ruim (Ibid., p. 127), como, por exemplo, o suporte ou abrigo
dado por uma superfície, o alimento que uma presa possibilita ao predador, ou o perigo que
um predador oferece para a presa.
O segundo conceito é o de percepção direta: trata-se da atividade de se obter
informações da disposição de luz do ambiente (Ibid., p. 147). Segundo Gibson, a iluminação
ambiental caracteriza-se por invariâncias, de uma parte, e variações, de outro, que
proporcionam a geração de informações que são coletadas pelo animal de forma direta, sem
intermediação do intelecto, ou de qualquer tipo de cálculo. Além disso, tais informações não
são recebidas passivamente pelo nervo óptico: resultam de uma ação exploratória realizada
pelo animal. Assim, quem percebe não é o cérebro, mas o animal inteiro inserido (embedded)
e incorporado ao entorno, o que supõe também a possibilidade ou efetivação de movimento
relativo (do animal em relação ao entorno e vice-versa) – e que também proporciona
variações informativas – e as affordances. Como ressaltam Chemero e Turvey, na teoria da
ecologia ambiental de Gibson percepção-ação e animal-ambiente são “pares inseparáveis”
(CHEMERO & TURVEY, 2007. p. 473).
Para Gibson, perceber seria mais do que meramente representar imagens fixas, uma
vez que o ambiente ofereceria um ilimitado conjunto de informações a serem potencialmente
utilizadas em um processo de percepção direta. Mas, além disso, colhe-se em Gibson um
posicionamento mais explícito de recusa à representação enquanto mediação: “quando afirmo
que a percepção do ambiente é direta, eu quero dizer que ela não é mediada por imagens da
retina, imagens neurais ou imagens mentais” (GIBSON, 1979, p. 147). Gibson chega a
afirmar que as affordances não devem ser pensadas apenas como fatos do ambiente, e sim ao
mesmo tempo do ambiente e do comportamento (Ibid.). Com isso, ele acredita suprimir a
dicotomia sujeito-objeto. Por outro lado, quanto a este ponto a teoria gibsoniana parece estar
prejudicada por algumas limitações. Elas correspondem a uma posição ainda objetivista, e são
apontadas por Varela et al. De acordo com eles, é instrutivo explorar a diferença entre sua

77
Esta palavra não foi traduzida, uma vez que se trata de neologismo de Gibson que não consta dos dicionários da língua
inglesa.
206

ênfase ao “caminho do meio” e à co-determinação do animal e do ambiente, e a


abordagem de Gibson (...). A teoria de Gibson tem essencialmente duas
características distintas. A primeira é compatível com nossa abordagem da ação
perceptivamente orientada. Ele afirma que no estudo da percepção o mundo deve ser
descrito de forma a mostrar como ele constitui ambientes para animais que
percebem. Na visão de Gibson, certas propriedades são encontradas no ambiente
(...). As propriedades mais significativas consistem [nas] affordances. (...)
A segunda é que Gibson oferece uma incomparável teoria da percepção para
explicar como o ambiente é percebido (...). Sua hipótese mais fundamental é de que
existem invariâncias na topologia da luz ambiental que especificam diretamente
propriedades do ambiente, incluindo as affordances.
Este segundo elemento – que na realidade define o programa de pesquisa de Gibson
– não é compatível com nossa abordagem da ação perceptivamente orientada. (...).
Na visão de Gibson (...) a ação perceptivamente orientada consiste em “selecionar”
ou “prestar atenção a” invariâncias na luz ambiental que especificam diretamente
sua origem ambiental. Para Gibson, estas invariâncias ópticas, bem como as
propriedades ambientais que elas especificam, não dependem de nenhuma forma de
atividade perceptivamente orientada do animal. (...)
Resumidamente, então, enquanto Gibson afirma que o ambiente é independente ,
dizemos que ele é enatuado por histórias de acoplamento. Enquanto Gibson afirma
que percepção é detecção direta, afirmamos que é enação sensório-motora
(VAREAL et al, 1991, p. 203-204).

Além de levarmos em conta a pertinência na crítica de Varela, Thompson e Rosch ao


confuso antirrepresentacionismo – claramente objetivista – de Gibson, as teorias das
affordances e da percepção direta, formuladas por este autor, não podem ainda ser
consideradas teses da cognição corpórea por consistirem em abordagens da percepção visual
que não atribuem papel suficientemente importante ao corpo como um todo – e nem
esmiúçam o papel deste último em geral – no processo cognitivo, como as frentes de pesquisa
aqui estudadas. A reforçar esta posição, entende-se no presente trabalho que a crítica de
Gibson ao cognitivismo não possui a contundência nem a profundidade que se encontram nas
abordagens aqui examinadas. Uma evidência desta limitação é a de que Gibson defende uma
noção de informação que não confronta fundamentalmente aquela adotada no modelo lógico-
proposicional. Embora em sua obra ele critique o uso, na compreensão da percepção, da
noção de informação quantificada proposta por Shannon (GIBSON, 1979, p. 242-243), o fato
de ele considerar que as informações estão disponíveis no ambiente de maneira independente
dos organismos que as percebem é ao menos compatível com a estrutura do modelo
cognitivista. Os significados cognitivos obtidos através da percepção, para Gibson e para
grande parte dos psicólogos cognitivistas, provêm do ambiente, dos objetos compreendidos
como transcendentes, dados pelo mundo e anteriores à percepção. Em outras palavras, ao
desprezar o papel da experiência e do corpo na constituição dos significados cognitivos,
Gibson apresentaria uma teoria da percepção visual insuficientemente crítica ao modelo
lógico-proposicional, o que estimularia a necessidade de propostas mais radicalmente
207

comprometidas em valorizar o papel do organismo na geração de tais significados, como


aquelas desenvolvidas pelas três abordagens investigadas na presente tese.
Trataremos a seguir de pesquisas psicolinguísticas que influenciaram, sobretudo, a
abordagem corpóreo-conceitual – e nas quais deve ser destacado o papel pioneiro para toda a
cognição corpórea de Eleanor Rosch, que trata, diferentemente de Gibson, de como as
experiências corpóreas influenciam a geração de significados cognitivos. Quem testemunha
desta vez o valor desta influência é George Lakoff:

Em torno de 1975, um grande número de coisas chamou minha atenção (...). Uma
delas foi o trabalho de Charles Fillmore na semântica de enquadramentos78, no qual
ele mostrou que não se pode fornecer uma explicação do significado condicionada à
verdade, mas ainda assim explicar corretamente a distribuição de itens lexicais. O
trabalho de Eleanor Rosch na teoria de protótipos atraiu minha atenção em 1972, e
em 1975 eu tomei conhecimento da obra dela e de Brent Berlin na categorização de
nível básico (BAUMGARTNER & PAYR, 1995, p. 119).

A necessidade de destacar esta vertente de influências é basicamente a de apontar o


momento de seu aparecimento histórico. Enquanto as influências biofisiológicas, tal como foi
aqui explanado, tiveram sua origem no início do século 20, e os trabalhos de Merleau-Ponty
que foram considerados pioneiros para a cognição corpórea vieram à luz na década de 1940,
os antecedentes da cognição corpórea de natureza psicolinguística ocorreram sobretudo nos
anos 1970, sendo o ano de 1975 especialmente marcante neste quadro.
Por outro lado, esta constatação nos leva a justificar por que razão elas ocuparão
menos espaço nesta seção: o fato de serem quase que parte integrante da abordagem corpóreo-
conceitual, o que nos motivará a estudá-las mais profundamente na seção 2.4. Contudo, será
aqui apresentado um breve panorama do que elas significaram.
Vemos nas palavras de Fillmore que a semântica de enquadramentos já nasceu
articulada com a teoria dos protótipos:

A ideia de protótipo é mais ou menos esta. Em vez de o significado de uma forma linguística
ser representada em termos de uma lista de condições que têm de ser satisfeitas para que a
forma seja utilizada de maneira apropriada ou verdadeira, afirma-se que a compreensão do
significado requer, pelo menos em um grande número casos, um apelo a um exemplar ou
protótipo – este protótipo sendo possivelmente algo que é disponível de maneira inata para a
mente humana, possivelmente algo que, em vez de ser analisado, precisa ser apresentado,
demonstrado ou manipulado. A ideia de quadro é esta. Há certos esquemas ou estruturas de
conceitos ou termos que se articulam como um sistema, que impõem estrutura ou coerência
em algum aspecto da experiência humana, e que podem conter elementos que são,
simultaneamente, partes de outras tais estruturas (FILLMORE, 1975, p. 123).

Segundo Lakoff e Johnson, a semântica de enquadramentos de Fillmore permite que


se supere uma abordagem representacional do significado, propondo a concepção de que os
78
Esta foi a tradução provisória para frame semantics que se decidiu utilizar no presente trabalho.
208

significados são constituídos através da formação de campos de conceitos que se misturam,


combinam e geram o sentido dos termos que são aprendidos. Para eles, a semântica de
enquadramentos fornece uma maneira de explicar a formação de significados de maneira não
consciente:
Uma estrutura conceitual geral que define as relações semânticas entre "campos"
inteiros de conceitos relacionados e as palavras que os exprimem. Nosso quadro
“restaurante”, que caracteriza o nosso conhecimento geral de restaurantes, não só é
intencional e representacional, mas também proposicional. O quadro caracteriza o
conhecimento de background estruturado em relação ao qual conceitos como
restaurantes, garçons, maitres, menus e contas fazem sentido. Ele contém
informações proposicionais: um garçom lhe traz um menu, anota seu pedido, traz-
lhe sua comida, e assim por diante. A informação proposicional é intencional: Trata-
se de garçons, menus, comida e assim por diante. O quadro representa a estrutura da
experiência de restaurantes.
Adicionalmente, os quadros conceituais que habitam nosso inconsciente cognitive
contribuem semanticamente para os significados de palavras e sentenças. Assim,
uma palavra como garçom é definida relativamente ao quadro “restaurante”
(LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 116).

Contudo, a ideia de categorização prototípica, de Eleanor Rosch, já é mais


propriamente corpórea do que a semântica de enquadramentos de Fillmore. Levemos em
consideração, mais uma vez, a narrativa de Lakoff:

[Em] 1975, eu ouvi Eleanor Rosch dar uma de suas primeiras palestras sobre
categorias de nível básico, que são as categorias de nível intermediário, como
cadeira, ao contrário da superordinada móvel e da subordinada cadeira de balanço -
ou de automóvel ao invés de veículo ou automóvel esporte. Rosch demonstrou que
as categorias de nível básico têm diferentes propriedades cognitivas das categorias
hierarquicamente superiores. Elas são definidos por nossas capacidades de
percepção gestáltica, movimento motor e imagens mentais. Compare cadeira e
móvel. É possível obter uma imagem mental de uma cadeira, mas não de uma peça
de mobiliário em geral (ao contrário de uma cadeira, cama, mesa ou sofá). Há
esquemas motores para interagir com cadeiras, mas nenhum para interagir com
peças de mobiliário em geral. Em suma, o nível básico é o mais alto nível em que as
imagens mentais, esquemas motores e percepção gestáltica caracterizam toda a
categoria e o nível básico é o nível ideal em que as pessoas interagem com os
objetos (LAKOFF, 2003, p. 57).

Voltaremos a tratar de categorização prototípica na seção 2.4. Mas é importante


registrar que tipo de pesquisa científica levou a esta noção. De acordo ainda com Lakoff,
Brent Berlin, ao estudar culturas selvagens, concluiu que “nível básico [de categorias] parece
ser o nível em que nós evoluímos para funcionar em condições ótimas no ambiente físico
dados nossos sistemas sensório-motores”. (Ibid.) Ele acrescenta, ainda, que, segundo Berlin, o
nível básico é o que se caracteriza pelo melhor aprendizado, por ser corpóreo e interacional.
Trataremos, na próxima seção, da influência da teoria de categorização de cores de Berlin e
Paul Kay sobre a abordagem corpóreo-enativista.
209

Com a menção às influências psicolinguísticas sobre a abordagem corpóreo-


conceitual, chega-se ao final da investigação sobre os antecedentes da cognição corpórea. Há
outras influências que serão mencionadas diretamente nas próximas seções, por serem mais
intimamente articuladas com as abordagens nelas explanadas. É o caso, por exemplo, da
importância da noção de homeostasia, criada por Walter Cannon (CANNON, 1915) no início
do século 20, para a abordagem corpóreo-afetiva ou, mais especificamente, para a obra de
António Damásio. Assim como, para este, o foram as pesquisas ligadas às cirurgias
psiquiátricas dos médicos portugueses Egas Moniz e Almeida Lima e as teoria pioneiras que
relacionaram emoções ao corpo, como aquelas desenvolvidas por William James e Carl
Lange.
Há um antecedente cultural-institucional da cognição corpórea cuja importância deve
também ser mencionada: a Lindisfarne Association. Fundada por William Thompson em
1972, estabeleceu-se em 1976 no prédio onde funcionara uma igreja, na cidade de Nova York.
Sua atividade foi voltada para discutir e estudar filosofia, ciência, artes e religiões,
especialmente as orientais. Francisco Varela e Evan Thompson tiveram participação intensa
na associação, sendo o último filho de seu fundador. Várias obras importantes para a cognição
corpórea tiveram origem nas conferências e debates acontecidos em Lindisfarne, com
destaque para Mind and nature, de Gregory Bateson e “Principles of biological autonomy”, de
Francisco Varela (THOMPSON, s/d). Bateson teve destacada liderança na associação, e sua
influência sobre a cognição corpórea é reconhecida, especialmente quando referida a
importância da etologia, ciência fundada por ele, Konrad Lorenz e Jakob Von Uexküll, para o
enativismo (THOMPSON, 2005, p. 57 a 59). De 1985 a 1988, a Lindisfarne realizou um
programa em biologia, cognição e ética, que originou os livros The embodied mind e Mind in
life. Tendo sido uma crucial referência da contracultura nos antecedentes da cognição
corpórea, a Lindisfarne Association encerrou suas atividades em 2009.
Torna-se bastante claro que Francisco Varela não apenas fundou a abordagem
enativista da cognição corpórea, como foi o principal responsável pela radicalização de
algumas teses da Segunda Cibernética a ponto de extrapolar esta última e inaugurar uma nova
frente de pesquisas já muito diferente. O fato de ter fundado, juntamente com Evan Thompson
e Eleanor Rosch, a abordagem corpóreo-enativista, significou, também, algo muito relevante:
um redirecionamento do caminho inaugurado pela Segunda Cibernética de volta às ciências
cognitivas. Isto porque, como vimos, embora a Segunda Cibernética tivesse uma forte
preocupação com a cognição, seus autores, como Von Foerster, Pask, Bateson ou Maturana,
210

não trabalharam e não se apresentaram como cientistas cognitivos. Por outro lado, Varela –
sobretudo a partir do livro The embodied mind (VARELA et al, 1991)–, afirmou-se como um
cientista cognitivo, desde o início propondo que as ciências cognitivas seguissem um rumo
divergente daquele empreendido pelo cognitivismo. Sendo assim, ele realizou algo que
poderíamos considerar como que um recuo hipotético para o momento em que, da primeira
cibernética, nasceram as ciências cognitivas, o cognitivismo e a Segunda Cibernética, a fim de
propor que a partir daquela bifurcação de posicionamentos se desenhasse um outro rumo para
as ciências cognitivas – ainda que anos depois. Em outras palavras: sua proposta pode ser
interpretada como a afirmação de que as ciências cognitivas têm como prosseguir em
consonância com as intuições da Segunda Cibernética ou, inversamente, de que as
divergências da Segunda Cibernética em relação à primeira não precisariam abdicar das
ciências cognitivas – e que estas últimas, por tal motivo, podem se tornar radicalmente
diferentes de sua primeira feição mas, ainda assim, continuarem a ser chamadas pelo mesmo
nome.
Outra característica importante da contribuição de Varela foi, como se demonstrou
acima, ter enfatizado o caráter experiencial da cognição. Como vimos, no âmbito das ciências
cognitivas foi Varela que promoveu aquilo que Tom Froese chama de guinada experiencial
(FROESE, 2011) ao incorporar a suas pesquisas uma vertente filosófica de peso: a
fenomenologia – de Husserl, sobretudo, mas também de William James, Martin Heidegger e
Merleau-Ponty. Como teremos ocasião de examinar com maior minúcia mais à frente, a
abordagem enativista é aquela que, dentre as principais da cognição corpórea, tem sido
responsável por manter o enfoque experiencialista e fenomenológico com maior empenho.
Além disso, não se percebe nos autores das abordagens corpóreo-conceitual e corpóreo-
afetiva o mesmo envolvimento com a fenomenologia – embora, como veremos, todos se
preocupem em enfatizar o caráter experiencial da cognição, de uma forma ou de outra.
Considerando estes pontos, podemos afirmar que se deve predominantemente ao enativismo o
fato de que a cognição corpórea seja chamada adequadamente de cognição corpóreo-
experiencial.
Estas considerações reforçam duas hipóteses que vêm sendo defendidas neste trabalho:
de que o enativismo pode ser compreendido como a abordagem pioneira da cognição corpórea
e que, levando-se em conta especialmente a já mencionada guinada ontológica proposta por
Varela e sua atuação política, este pioneirismo (que se transformou em liderança, ao menos
durante o período inicial) comportou desde o princípio a proposta de continuidade das
211

ciências cognitivas – agora sobre outras bases, não mais em torno de um modelo dominante
da cognição, como no cognitivismo, e sim a partir de motivações ontológicas e políticas.
Por outro lado, deve ser destacado papel fundamental que o filósofo Mark Johnson
tem desempenhado na articulação das diversas abordagens da cognição corpórea, sobretudo
em seu livro The meaning of the body, de 2007. Neste livro, como veremos nas próximas
seções, Johnson realiza uma síntese filosófica das três abordagens que se destacam no
presente trabalho. Ele incorpora à sua própria abordagem os trabalhos de António Damásio e
Joseph LeDoux sobre os aspectos afetivos da cognição, e chega a adotar para si o termo
enação. Como base de suas afirmações, lança mão das influências tanto do anti-objetivismo
de Hilary Putnam e Richard Rorty, quanto do pragmatismo deste último, de John Dewey e
William James, entre outros – as quais serão amplamente exploradas nas seção 2.4 e, por esta
razão, deixaram de ser tratadas neste momento. E, como veremos, Johnson realiza uma síntese
mantendo a firme orientação ao mesmo tempo política e ontológica já encontrada em Varela.
Este novo caráter de unidade das ciências cognitivas, de acordo com a orientação
corpórea, será o principal objeto da próxima seção.

2.2. A orientação corpórea como conjunto integrado de abordagens da cognição

2.2.1. Características gerais da cognição corpórea

Esta seção apresenta a hipótese principal deste trabalho: de que, mesmo tendo
rejeitado o modelo lógico-proposicional da cognição, próprio do cognitivismo e unificador
das ciências cognitivas desde seu surgimento, a cognição corpórea demonstra que ainda
pretende manter coeso este campo de estudos. De início, esta intenção se evidencia no simples
fato de que a cognição corpórea se apresenta como uma corrente das ciências cognitivas, e
não como uma rejeição a este campo multidisciplinar. Todavia, o que se busca investigar aqui
é o modo como este engajamento ocorre. Quando neste trabalho se fala em cognição corpórea
está sendo referida a orientação corpórea das ciências cognitivas, como já foi assinalado, e
esta orientação se dá na forma da atividade de pesquisa, no posicionamento teórico e na
atuação pública de diversos autores. Porém, não se pode afirmar que todos os autores que têm
contribuído para as teses da cognição corpórea assumam os dois compromissos: criar e manter
uma corrente em especial, e defender a unidade das ciências cognitivas. De fato, grande parte
dos cientistas e filósofos que neste trabalho são compreendidos como envolvidos na
construção das teses da cognição corpórea não atuam explicitamente em favor das ciências
212

cognitivas, ou mesmo da cognição corpórea. Por outro lado, o que aqui se considera que
caracteriza um pesquisador como participante da orientação corpórea são dois critérios
principais: defender teorias que ao mesmo tempo enfraqueçam o modelo lógico-proposicional
da cognição, e buscar, ainda que não explicitamente, a unificação desta orientação ou de suas
teses essenciais. Assim, é preciso compreender o que significa dizer que a cognição corpórea
pretende manter a unidade das ciências cognitivas. Com esta ideia não se supõe, por certo,
que a cognição corpórea seja um sujeito com pretensões próprias, acima de seus praticantes. A
suposição é de que há duas atitudes: i) o esforço declarado e constante de alguns autores de,
adotando uma postura de liderança, advogarem as deficiências do cognitivismo e de seus
pressupostos, assim como as vantagens da abordagem corpórea para compreender a cognição
humana (este tem sido o caso – só para apresentar os exemplos mais notórios – de Francisco
Varela, Evan Thompson, Alva Noë, Shaun Gallagher, Raymond Gibbs Jr., George Lakoff,
Mark Johnson e António Damásio); ii) a pressuposição mais ou menos tácita que muitos
autores demonstram assumir das principais teses da cognição corpórea, mesmo que se
dediquem primordialmente a defender suas teorias específicas e não uma nova concepção
geral da cognição79. Desta maneira, o que é aqui chamado de cognição corpórea é um
conjunto de noções que se pode abstrair da atividade concreta, seja experimental ou teórica,
de um conjunto de pesquisadores, difundidos em diversos locais de pesquisa no mundo,
exercida basicamente desde os anos 1980. E é, portanto, através da identificação de atitudes,
explícitas ou não, dos referidos pesquisadores, que a presente pesquisa defende que há um
esforço coletivo de ao mesmo tempo modificar os compromissos teóricos das ciências
cognitivas e manter a coesão destas.
Há também dois pontos a destacar, quanto à atitude aqui definida como defesa da
unidade das ciências cognitivas sobre novas bases: em primeiro lugar, salvo raras exceções80,
não se encontra nos trabalhos dos diversos pesquisadores da orientação corpórea um empenho
em traçar articulações entre suas diferentes abordagens de tal modo que se constate uma
totalidade coerente de ideias; em segundo lugar, os pesquisadores que se destacam na
liderança da orientação corpórea têm procurado defender sua concepção da cognição lançando
mão de argumentos ontológicos – que ao mesmo tempo criticam pressupostos sobre a noção
de realidade que identificam no cognitivismo e apresentam novas teses a respeito da questão –
e argumentos políticos – que se dirigem, com frequência, às aplicações das ciências cognitivas

79
Para ter notícia de um grande número destes autores, v. os diversos exemplos de pesquisas apresentados em
GIBBS JR., 2005.
80
Um caso notável é o de JOHNSON, 2007, conforme será explorado adiante e já foi mencionado ao final da
seção anterior.
213

e suas consequências para os seres humanos.


No presente trabalho, três movimentos serão realizados quanto a estes pontos:
1) Analisar-se-á a série de argumentos ontológicos e políticos apresentados pelos autores
da orientação corpórea, nos quais se evidencia um esforço de unificação das ciências
cognitivas, com forte preocupação com suas aplicações e repercussões na vida social;
2) Propor-se-á a articulação entre as diversas frentes de pesquisa da orientação corpórea,
de modo a demonstrar que cada uma das frentes se complementa através das demais, o
que permite identificar uma totalidade coerente de ideias que as abrange;
3) Defender-se-á que as preocupações ontológicas e políticas analisadas no item 1 se
compõem com a articulação proposta no item 2, de tal modo que esta composição
reforça o quadro da unidade das ciências cognitivas sob o prisma da orientação
corpórea.
Contudo, a fim de realizar este empreendimento, é necessário estabelecer que
concepção de cognição corpórea norteia este trabalho. A seguinte definição fornece
adequadamente uma primeira aproximação das características principais da cognição corpórea
aqui consideradas:

Dizer que a cognição é corpórea significa que ela surge a partir de interações
corpóreas com o mundo. Sob este ponto de vista, a cognição depende dos tipos de
experiências que se originam do fato de se ter um corpo com determinadas
capacidades motoras e perceptivas – que são indissociáveis –, e que em conjunto
formam a matriz dentro da qual raciocínio, memória, emoção, linguagem, e todos os
outros aspectos da vida mental são articulados. A noção contemporânea de uma
cognição corpórea contrasta com a postura predominante cognitivista, que considera
a mente como um dispositivo de manipular símbolos e, assim, preocupa-se com as
regras formais e processos pelos quais os símbolos apropriadamente representam o
mundo real (THELEN et al, 2001, p. 1).

A partir desta descrição, propõe-se o entendimento da orientação corpórea como


aquela que considera ser a experiência individual o meio através do qual o corpo do indivíduo
não apenas condiciona as suas crenças, conceitos, pensamentos e ações, como vai sendo
modificado ao longo de interações cognitivas em um mundo natural e social. Isto será feito
através da articulação de três perspectivas de compreensão da cognição como corpóreo-
experiencial, que aqui se defende serem as mais completas na crítica à orientação cognitivista
e na elaboração de teses a ela alternativas, para as quais são adotadas as seguintes
denominações:
1) Abordagem corpóreo-enativista – que se ocupa sobretudo da dimensão biológica e
evolutiva da cognição, vinculada à concepção da experiência como codeterminação
entre o ser humano individual e o mundo natural e social, fruto dos trabalhos de
214

Francisco Varela, Evan Thompson e Eleanor Rosch, assim como de contribuições de


Tom Froese, Ezequiel Di Paolo, John Stewart, Olivier Gapenne, Hanne de Jaegher,
Giovanna Colombetti, Edwin Hutchins, Antoine Lutz, entre outros;
2) Abordagem corpóreo-conceitual – que se dedica a estudar a origem corpórea dos
conceitos e da linguagem, através da concepção de uma articulação temporal das
experiências, desenvolvida sobretudo nas obras de George Lakoff e Mark Johnson, e
para a qual têm contribuído também autores como Leonard Talmy, Rafael Núñez,
Mark Turner, Gilles Fauconnier, Ronald Langacker, Vittorio Gallese, Teennie Matlock,
Eve Sweester, Raymond Gibbs, Jr, Srini Narayanan, Lawrence Barsalou e Arthur
Glenberg; e
3) Abordagem corpóreo-afetiva – que tem como principal foco o modo como a cognição
resulta de processos fisiológicos que integram corpo e cérebro, com a mediação de
emoções e sentimentos entendidos como processos orgânicos, cujo principal
formulador é António Damásio, e que vem recebendo também subsídios de
pesquisadores como Jaak Panksepp, Walter Freeman, Gerald Edelman, Joseph
LeDoux, Luiz Pessoa, V. S. Ramachandran, Richard Davidson, Antoine Bechara,
Giovanna Colombetti, Eugene Gendlin e Vittorio Gallese.
Além disso, aqui se pretende evidenciar que a orientação corpórea das ciências
cognitivas tem se caracterizado por apresentar, mediante a participação das três principais
abordagens mencionadas, três dimensões principais para a cognição, que definiriam mais
precisamente esta última como corpórea:
a) A dimensão ontológica, decorrente da ideia de que a cognição consiste na
codeterminação entre sujeito e objeto;
b) A dimensão vital e evolutiva, decorrente da ideia de que a cognição consiste em um
processo organicamente integrado às atividades biorreguladoras do ser humano, sendo
essencial para a sobrevivência do indivíduo e da espécie;
c) A dimensão temporal, decorrente da ideia de que a cognição consiste na articulação,
no tempo, de experiências individuais do corpo – do qual são entendidos como partes
o cérebro e o sistema nervoso –, que dependem da estrutura deste, mas também
contribuem para transformá-la.
Como já foi dito de forma semelhante anteriormente, uma das características
fundamentais da cognição corpórea tem sido promover a redefinição dos conceitos de
cognição, corpo e experiência, uns em relação aos outros. As três frentes acima são as que têm
proporcionado – mesmo em separado, porém mais ainda quando articuladas entre si – estas
215

redefinições de maneira mais profunda e ampla. Estas redefinições envolvem a compreensão


do corpo como organismo que dinamicamente produz significados para ações e pensamentos
– para a cognição – e também é modificado por meio de ações e pensamentos. Os
acontecimentos em fluxo por meio dos quais os corpos orgânicos produzem e adquirem
significados são chamados de experiências. E as três abordagens se caracterizam por
compartilhar esta compreensão de processo cognitivo, o sentido do corpo neste processo e a
acepção de experiência que ele considera. Contudo, cada uma delas enfatiza um aspecto desta
compreensão. Por isso são diferentes, mas pelo mesmo motivo são complementares.
Uma outra maneira de compreender estas frentes é como diferentes conjuntos de
programas de pesquisa, cuja afinidade de enfoque recomenda seu agrupamento. Isto não quer
dizer que todos os pesquisadores classificados neste trabalho como afinados com cada uma
das abordagens realizem seus trabalhos de modo programático, se reconhecendo como
membros de uma coletividade de pesquisadores com os mesmos compromissos teóricos e
experimentais.
A seguir, são apresentadas caracterizações resumidas das três frentes acima referidas.
Como já foi tratado na seção anterior, os autores da abordagem corpóreo-enativista se
baseiam nas teorias sobre o acoplamento entre organismo e ambiente, oriundas do trabalho de
Francisco Varela e Humberto Maturana, das etologias de Jakob Von Uexküll e Gregory
Bateson, além da fenomenologia tal como surge das obras de autores como Edmund Husserl,
William James, Martin Heidegger, Hans Jonas e Maurice Merleau-Ponty, e postulam a
inseparabilidade entre sujeito e objeto, e entre percepção e ação. O corpo, nesta perspectiva, é
um organismo em permanente processo de codeterminação com o ambiente – a enação –, e
essencialmente um elemento criador de sentido, num “domínio relacional” (THOMPSON,
2007, p. 13). O modelo lógico-proposicional é tido pelos autores enativistas como estreito,
sobretudo na medida em que se limitaria a servir à representação de um mundo dado a um
sujeito dado, ambos assumidos como discerníveis, fixos e independentes. Ao contrário disso,
a cognição, para o enativismo, é um processo de transformação complexa em que corpo e
mundo se criam reciprocamente, essencial à viabilização da vida. A mútua transformação é
entre corpo (organismo) e mundo (ambiente natural e social), com a ênfase na relação.
Deste modo, se por um lado é uma abordagem que recorre mais intensamente à
biologia, por outro recusa o naturalismo objetivista, no sentido do que nos mostra a seguinte
definição:
216

Em linhas gerais, o enativismo pode ser interpretado como uma espécie de


naturalismo não reducionista e não funcionalista. Ele vê as propriedades da vida e da
mente como parte de um contínuo e, consequentemente, defende um programa
científico que explora várias fases desta dimensão (DI PAOLO et al, 2010, p. 36).

A formulação central da abordagem corpóreo-conceitual é mais bem situada na obra


de Lakoff e Johnson, e pode ser descrita a partir do seu conceito de metáfora conceitual
(LAKOFF & JOHNSON, 1980, p. 136-139, 154; 1999, 45-49). Esta ideia defende que as
metáforas são os processos analógicos mediante os quais, a partir de experiências sensório-
motoras de indivíduos no mundo e com outros indivíduos, os conceitos se constituem e
compartilham, com base na concepção expressa na seguinte passagem:
A metáfora é, para a maioria das pessoas, um dispositivo da imaginação poética e de
floreio retórico – uma questão mais da linguagem extraordinária do que da ordinária.
Além disso, a metáfora é normalmente vista como característica da linguagem por si
só, uma questão de palavras, e não de pensamento ou ação. Por esta razão, a maioria
das pessoas pensa que pode viver perfeitamente bem sem metáforas. Descobrimos,
ao contrário, que a metáfora é onipresente na vida cotidiana, não apenas na
linguagem, mas no pensamento e na ação. Nosso sistema conceitual comum, em
termos do qual tanto pensamos como agimos, é metafórico por natureza. Os
conceitos que governam nosso pensamento não são apenas questões de intelecto.
Eles também regem o modo como funcionamos cotidianamente, até nos detalhes
mais mundanos. Nossos conceitos estruturam o que percebemos, como vamos de um
lugar a outro no mundo e como nos relacionamos com as outras pessoas. Nosso
sistema conceitual, portanto, desempenha um papel central na definição de nossa
realidade cotidiana. Se estamos certos em sugerir que nosso sistema conceitual é em
grande parte metafórico, então o modo como pensamos, o que sentimos e o que
fazemos todos os dias é muito mais uma questão de metáfora (LAKOFF &
JOHNSON, 1980, p. 4).

Se, para Lakoff e Johnson, as metáforas na cognição são elementos geradores dos
conceitos, é necessário deixar patente qual a importância, o papel e a natureza dos conceitos
em sua abordagem, conforme as duas passagens seguintes de suas obras:
O importante não é apenas que tenhamos um corpo e que o pensamento seja, de
algum modo, corpóreo. O importante é que a natureza peculiar dos nossos corpos
molda nossas próprias possibilidades de conceituação e categorização (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 19)

Nossa capacidade comum de pensamento metafórico se origina das projeções


neurais que vão das partes sensoriais e motoras do nosso cérebro às regiões corticais
mais altas, responsáveis pelo pensamento abstrato. Os universais surgem das
metáforas porque a nossa experiência no mundo faz com que, regularmente, certos
domínios conceituais ajam conjuntamente em nossos cérebros, permitindo o
estabelecimento de conexões entre eles. (...) Não há um domínio fregueano abstrato
de sentidos desencarnados e não há relações místicas entre esses supostos sentidos e
objetos e categorias em um suposto mundo independente da mente. Nossos cérebros
e mentes não operam usando símbolos formais abstratos cujo sentido seria dado por
correlações com um mundo supostamente independente da mente, que viria com
categorias e essências embutidas. É do corpo e do cérebro que surgem os
significados, através de nossas interações com o meio ambiente e as outras pessoas.
(...) Metáforas são produtos do corpo, do cérebro, da mente e da experiência (...).
Elas só podem obter o seu significado através da experiência encarnada (Ibidem, p.
463).
217

Para explicar a cognição, Lakoff e Johnson dão ainda especial valor à imaginação
como elemento constitutivo da razão (JOHNSON, 1987, 139-172; LAKOFF & JOHNSON,
1999, p. 395-412). Mark Johnson dá destaque ao papel da imaginação na constituição de uma
cognição de natureza corpórea, já anunciando seu caráter social, como se constata no trecho a
seguir:
A imaginação é central para a racionalidade e significação humanas pelo simples
motivo de que aquilo que podemos experimentar e conhecer como tendo sentido, e
também a forma como podemos raciocinar sobre isto, são dependentes de estrutura
de imaginação que tornam nossa experiência o que é. Segundo esta visão, o sentido
não se encontra apenas nas proposições; ao contrário, ele permeia nossa
compreensão corpórea, espacial, temporal, culturalmente formada e carregada de
valores. As estruturas de imaginação são parte do que é compartilhado quando
compreendemos uns aos outros e quando somos capazes de nos comunicar dentro de
uma comunidade (JOHNSON, 1987, p. 172).

e ao fato de considerarem a maioria dos processos cognitivos não conscientes (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 9-15). Segundo tal perspectiva, as experiências sensório-motoras
passadas de um indivíduo transformam seu corpo, ficando nele inscritas. Por meio desta
inscrição, são valoradas de maneira a dar sentido às experiências individuais futuras. Sendo
assim, encontramos na abordagem corpóreo-conceitual uma primeira versão da ideia que
atribuo ao conjunto das propostas aqui apresentadas da cognição corpórea, de que o corpo é
transformado no processo cognitivo, mas também o transforma. Estes autores fundamentam,
assim, os conceitos em experiências corpóreas, recusando os modelos lógico-proposicionais
da cognição por compreenderem a cognição a partir de vivências irredutíveis a proposições:
as proposições e o sentido de seus termos é que se originariam de vivências corpóreas. A
mútua transformação é entre corpo e conceitos, com a ênfase em como os conceitos se
transformam.
A abordagem corpóreo-afetiva defende a participação central de emoções e
sentimentos na constituição corporal do processo cognitivo – com maior ênfase às decisões
racionais. Seu principal argumento, de António Damásio, é de que o corpo interfere na
cognição através do papel nela desempenhado pelas emoções e pelos sentimentos, estes
entendidos como processos de transformação do corpo – sendo o cérebro concebido como
parte do corpo, ainda que com funções centrais para a cognição. Em tais processos, as
experiências são vividas inseparavelmente das emoções e sentimentos que provocam, sendo
assim marcadas somaticamente (isto é, no corpo), e recuperadas, em parte inconscientemente,
quando o indivíduo vive experiências identificadas como semelhantes, com vistas a decisões e
ações (DAMÁSIO, 2004 [1994]; DAMÁSIO, 1996).
Damásio fornece também uma hipótese sobre como a memória se constitui
218

corporeamente, a partir das marcas deixadas pela experiência sensório-motora vivida pelo
organismo individual na interação com uma entidade – que será devidamente explorada na
seção 2.5.2. Deste modo, corpo e cérebro são modificados conforme as experiências se dão,
de modo significativo para as próximas experiências. Este processo cognitivo-afetivo é inter-
relacionado com um processo mais amplo, envolvido na promoção da homeostasia, ou
equilíbrio bioquímico essencial à manutenção da vida. Na abordagem corpóreo-afetiva, a
principal atenção é dada à mútua transformação entre conceitos e corpo, com ênfase em como
o corpo se transforma afetivamente. Damásio caracteriza o corpo e o cérebro como integrando
inseparavelmente o organismo – o que é fundamental para que se compreenda o processo
cognitivo como um processo orgânico e, assim, vital.
Para ilustrar e reforçar esta ideia, utilizemos, por exemplo, a seguinte afirmação de
Gerald Edelman sobre como o cérebro opera na geração de conceitos corpóreos, executando
desta forma um processo importante para a sobrevivência do organismo (característica que é
essencial também na abordagem enativista, como veremos nas próximas linhas):

As memórias conceituais são afetadas por valores – uma característica importante no


aperfeiçoamento da sobrevivência. Com essa noção de conceito, em que o cérebro categoriza
suas próprias atividades (particularmente suas categorizações perceptivas) torna-se possível
ver como as categorias e imagens generalizadas podem ser incorporadas. (...) Não há
necessidade de qualquer ordem lógica inerente, categorização clássica, ou programação
explícita a priori. (EDELMAN, 1992, p. 110).

Descritas resumidamente estas três abordagens principais, seguem breves notas sobre
as articulações entre elas, destinadas a reforçarem a relevância de cada uma e apontarem para
a unidade das ciências cognitivas que se opõem à orientação cognitivista. Deixando de
comentar, dados os limites deste trabalho, as numerosas referências recíprocas entre os
autores das três abordagens, ressaltam-se as seguintes confluências entre suas obras:
1) A abordagem corpóreo-conceitual compartilha com a corpóreo-enativa, sobretudo,
uma compreensão da cognição como um processo em que tanto percepção e ação,
quanto sujeito e objeto, são inseparáveis – o que envolve uma ontologia realista,
porém manifestamente não objetivista e não subjetivista;
2) As abordagens corpóreo-conceitual e corpóreo-afetiva compartilham principalmente a
compreensão da cognição como um processo de formação analógica de conceitos e
crenças, nos corpos individuais, realizados através das marcas – necessariamente
afetivas, e em grande parte não conscientes – neles deixadas e recuperadas pelas
experiências vividas;
3) As abordagens corpóreo-enativa e corpóreo-afetiva compartilham, de forma bastante
nítida, a compreensão da cognição como continuidade do processo de constituição e
219

sustentação da vida, baseada na necessidade de equilíbrio e conservação do


organismo.
Mas, além destas conexões, que apontam para uma integração da orientação corpórea
mediante compartilhamentos bilaterais de compreensões da cognição, e destas três dimensões,
identifica-se nas três abordagens um princípio comum: a concepção da cognição como
processo de transformação mútua entre corpo, conceitos e mundo.
Neste sentido, a recusa da cognição corpórea ao modelo lógico-proposicional – e ao
fato de que, neste modelo, se supõe como suficiente e adequada a compreensão da cognição
apenas como transformação de conceitos e representações, independentemente do corpo ou do
dispositivo físico adstrito – implicaria a extensão da ideia de transformação para os elementos
que, na abordagem cognitivista, foram supostos constantes. Além disso, para os autores que
contribuem para a cognição corpórea, os significados da cognição humana não são
inequívocos nem fixos, como supõe o modelo lógico-proposicional. A aquisição de sentido a
partir das experiências, para os seres humanos, é marcada pela variação e impossibilidade de
tomar como exatos os valores semânticos envolvidos no processo cognitivo. Nas palavras de
Gerald Edelman,

Em primeiro lugar, não há dois cérebros iguais. E no desenvolvimento do cérebro há


uma enorme quantidade de variabilidade. Ele não é determinado somente pelos
genes do indivíduo, mas pela história do desenvolvimento do indivíduo, e isso o
segue pelo resto da vida. Essa variabilidade é muito difícil de ser explicada em
qualquer modelo do cérebro. Em segundo, o mundo não é como uma fita de
computador. Os sinais vindos do mundo não são inequívocos como devem ser os
sinais colocados em um computador. Eles (os computadores) precisam receber
definições exatas em seu programa, enquanto com o cérebro os modos como o
mundo pode apresentar seus sinais são enormes e variados (GRECO, 2001, p. 75).

A dinâmica do desenvolvimento orgânico individual e a variabilidade de significados com que


cada ser humano lida em sua vida cognitiva estariam, segundo Edelman, intrinsecamente
entrelaçadas. A cognição consistiria, assim, na autotransformação contínua dos corpos nela
envolvidos, de crenças e conceitos através de tais corpos, e também transformação do mundo
mediante a atividade cognitiva.
Evidentemente, a ampliação do alcance da ideia de transformação, aumentando o
número de variáveis do processo cognitivo, exige novos modelos e perspectivas que permitam
representar a cognição de modo alternativo ao modelo mais simples adotado pela orientação
cognitivista. Isto poderia explicar por que a orientação corpórea precisou lançar mão de
noções como de auto-organização, emergência e complexidade, e ferramentas como os
sistemas dinâmicos não lineares – além de sua inclinação pela fenomenologia, como visto
220

anteriormente.
Por outro lado, como foi ressaltado na seção anterior, algumas pesquisas recentes em
neurociências, biologia, linguística e inteligência artificial81 criaram condições para a eclosão
de novos modos de pensar a cognição.
Mas em que medida estes modelos teriam deixado de depender de uma explicação
reducionista da cognição a processos cerebrais – assim como ocorreu na orientação
cognitivista? Além disso, em que sentido se pode dizer que a orientação corpórea não
apresenta uma compreensão trivial da fundação da cognição em processos neurofisiológicos?
Ambas as perguntas podem ser respondidas a partir da seguinte afirmação de António
Damásio, em que ele, de início, identifica um pressuposto dualista na apropriação das ideias
de Descartes pelas ciências cognitivas tradicionais, no processo de superação do reducionismo
fisicalista:

Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo que esteve na
origem, na metade do século 20, da metáfora da mente como programa de software.
De fato, se a mente pudesse ser separada do corpo, talvez fosse possível
compreendê-la sem recorrer à neurobiologia, sem nenhuma necessidade de saber
neuroanatomia, neurofisiologia e neuroquímica. É interessante e paradoxal que
muitos investigadores em ciências cognitivas, que se julgam capazes de investigar a
mente sem nenhum recurso à neurobiologia, não se considerem dualistas
(DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 281)

A partir deste trecho poderíamos ser levados a supor que a orientação corpórea – ao menos
aquela adotada por Damásio – se fundamentaria em um naturalismo restrito ao cérebro ou, no
máximo, ao sistema nervoso. Mas o próprio Damásio repele esta suposição, ao prosseguir:

A separação cartesiana pode estar também subjacente ao modo de pensar de


neurocientistas que insistem em que a mente pode ser perfeitamente explicada em
termos de fenômenos cerebrais, deixando de lado o resto do organismo e o meio
ambiente físico e social – e, por conseguinte, excluindo o fato de parte do próprio
meio ambiente ser também um produto das ações anteriores do organismo. Protesto
contra essa restrição, não porque a mente não esteja diretamente relacionada com a
atividade cerebral, pois obviamente está, mas porque esta formulação restritiva é
forçosamente incompleta e insatisfatória em termos humanos. (...) Não só a mente
tem de passar de um cogitum não físico para o domínio do tecido biológico, como
deve ser também relacionada com todo o organismo que possui cérebro e corpo
integrados e que se encontra plenamente interativo com um ambiente físico e social
(Ibid., p. 281-285)

O que fica claro nesta posição de Damásio é que a orientação corpórea não apenas
assume o desafio de combater o reducionismo neurobiológico mais trivial – como aquele que
Damásio critica acima –, mas o faz a partir da firme disposição em suplantar a solução dada
pelo modelo lógico-proposicional, no qual Damásio identifica uma feição incorpórea de

81
Para abordagens corpóreas da inteligência artificial, ver PFEIFER & BONGARD, 2007.
221

inspiração dualista. E isto passa pela concepção de novos modelos que exigem uma inovadora
perspectiva ontológica que, como acabamos de ver, corresponde à recusa das separações entre
mente e corpo, sujeito e objeto e percepção e ação.
Antes de se passar mais detalhadamente à questão ontológica tal como apresentada
pela cognição corpórea, é preciso apontar ainda três dimensões que se destacam na
compreensão da cognição como transformação – e autotransformação. Na primeira, se
evidencia uma forte crítica à noção de cognição como transformação simbólica (tal como
afirma a citação de Jerry Fodor no final da seção 1.2.2), apenas. E esta crítica pode ser
exemplificada até mesmo na obra de um autor que se notabilizou como um dos pioneiros da
inteligência artificial, como Marvin Minsky. Nela, Minsky aponta para um fato extremamente
importante que considera ocorrer na cognição humana, e que tem o poder de contestar
profundamente orientação cognitivista da cognição:

Por que processos são tão difíceis declassificar? Em épocas anteriores, usualmente
podíamos julgar máquinas e processos pela forma com que transformam matérias-
primas em produtos acabados. Mas não faz sentido falar de cérebros como se
fabricássemos pensamentos da mesma maneira como fábricas fazem carros. A
diferença é que os cérebros usam processos que mudam a si mesmos, e isso significa
que não podemos separar tais processos dos produtos que eles produzem. Em
particular, os cérebros produzem memórias, que mudam as formas com que vamos
pensar subsequentemente. As principais atividades do cérebro consistem em fazer
mudanças em si mesmo. Porquea idéia de automodificação dos processos é nova
para a nossa experiência, ainda não podemos confiar em nosso julgamento comum
sobre tais questões (MINSKY, 1985, p. 288).

Como podemos observar, os argumentos de Minsky apresentam bons motivos para que os
cientistas cognitivos passem a desconfiar do modelo fabril de transformação de inputs em
outputs, ou mesmo renunciar a seu poder preditivo, já que o cérebro, ao contrário das fábricas,
não modificaria constantemente apenas suas matérias primas, mas suas próprias linhas de
produção, o que aumenta enormemente a complexidade de seu objeto – a cognição – e
enfraquece o modelo lógico-proposicional.
Na segunda dimensão, de acordo com o que se extrai do que foi dito até aqui, a
cognição não se resume ao que ocorre apenas do cérebro – ainda que, nem mesmo ao cérebro,
como mostrou Minsky, se possa aplicar o modelo que se baseia unicamente nas
transformações simbólicas. Para a orientação corpórea, a cognição se dá no corpo, que é
pensado antes como um conjunto de processos autotransformadores, em grande parte não
conscientes, imanentes a todos os acontecimentos de percepção, pensamento e ação, do que
como um objeto destacável, ou substrato físico pré-determinado, da dimensão cognitiva dos
seres humanos. Isto implica reconhecer, também, a presença nas crenças e decisões humanas
222

de pressupostos não apenas tácitos, mas que tendem a se manter em parte inapreensíveis, ou
intraduzíveis na forma de sentenças proposicionais, às tentativas de sua observação ou captura
conceitual.
Na terceira, e de acordo com alguns dos trechos de obras acima citados, os corpos dos
indivíduos são entendidos em sua necessária condição de produtos e produtores de relações
sociais e políticas. Os autores da orientação corpórea apontam insistentemente para o fato de
que compartilharmos: a) certas configurações de corpos, que permitem (ou determinam) o
compartilhamento de conceitos, crenças e ações – com todas as limitações decorrentes das
diferenças individuais; e b) a condição de que nossos corpos são continuadamente alterados e
moldados pelas relações cognitivas com outros corpos. Dedicados a este sentido social da
cognição corpórea há trabalhos relevantes como os de Shaun Gallagher, Ezequiel Di Paolo,
Hanne de Jaegher, Thomas Csordas e Edwin Hutchins. Esta dimensão supra-individual da
cognição corpórea é especialmente importante quando se trata de almejar, e empreender, a
construção de conhecimento socialmente partilhado – inclusive o conhecimento científico (e a
objetividade possível a ele associada), como o que os próprios autores da orientação corpórea
buscam estabelecer. Contudo, como o objetivo central do presente trabalho é delinear os
contornos principais da cognição corpórea, através de sua crítica ao cognitivismo, do
entrelaçamento entre as suas três abordagens mais importantes e de sua busca política por
unificação, para tal é suficiente a concentração de nossa atenção à cognição do organismo
individual. Por esta razão, e considerando que esta tese necessita respeitar, ao máximo
possível, limites que a permitam dedicar-se de modo satisfatório aos seus propósitos
principais, não será feito aqui um estudo específico da dimensão social da cognição corpórea.
Pelos mesmos motivos, não se fará nesta tese uma investigação dedicada à robótica
corpórea – correspondente principalmente à construção de robôs autônomos móveis –, tal
como documentada nas obras de Rodney Brooks (BROOKS, 2010), Randall Beer (BERR,
1995), Mark Tilden (HASSLACHER & TILDEN, 1995), Valentino Braitenberg
(BRAITENBERG, 1986) e Maja Mataric (MATARIC, 2007), nem ao conceito de mente
estendida, tal como presente nas obras de Andy Clark e David Chalmers (CLARK e
CHALMERS, 1998). Ambos os temas podem ser encontrados no livro Embodied cognition,
de Larry Shapiro (SHAPIRO, 2011), cujo enfoque sobretudo crítico da cognição corpórea
difere significativamente do adotado na presente tese.
223

2.2.2. A ontologia crítica da cognição corpórea

Como se pode extrair do exame das três dimensões da cognição como transformação,
o modelo lógico-proposicional, com elas, se vê profundamente questionado. Mas isso também
ocorre com a noção de representação, defendida sobretudo na Teoria Computacional da
Mente – mas, de resto, em todo o cognitivismo. Outro sentido que se pode dar às três
dimensões da cognição como transformação é seu caráter de criação, e não apenas de
conhecimento, da realidade: não apenas porque elas implicam a autocriação dos processos
cognitivos, mas também porque, na esteira desta ideia, são incompatíveis com a concepção de
representação como espelho do mundo.82
Assim, dentre as três dimensões aqui apontadas a ontológica sobressai. Isto porque, ao
se penetrar mais diretamente nos aspectos ontológicos da cognição corpórea, mais uma vez
deve ser evidenciado o teor das críticas que a orientação corpórea faz ao cognitivismo, dado
que, como já afirmado anteriormente, não se deve considerar a concepção ontológica da
orientação corpórea independente das críticas que faz a outras concepções. Em outras
palavras, trata-se de uma ontologia essencialmente crítica.

2.2.2.1. A crítica corpórea ao objetivismo

O primeiro ponto a ser considerado nesta crítica é a rejeição ao que a cognição


corpórea tem chamado de “objetivismo”. Em vários trechos de seus textos os teóricos da
orientação corpórea estendem suas contestações à noção de representação no cognitivismo,
como conjunto de regras lógico-proposicionais, à suposta função da representação de se
referir adequadamente aos objetos do mundo. Como apontam Lakoff e Johnson, isto leva a
um duplo sentido de representação mental:

O termo representação mental possuía dois diferentes significados [nas ciências


cognitivas tradicionais]. No primeiro, uma representação era vista como a
representação de um conceito que, por seu turno, era definido somente em termos de
seu relacionamento com outros conceitos dentro de um sistema formal. Logo, nesta
teoria, uma representação era uma expressão simbólica puramente interna a um dado
sistema formal. No segundo, uma representação era entendida como uma
representação simbólica de algo fora do sistema formal (LAKOFF & JOHNSON,
1999, p. 76).

82
A alusão ao livro Filosofia e o espelho da natureza, de Richard Rorty, nesse caso, não é casual. Veremos esta
correspondência na próxima seção.
224

Mas estes dois sentidos de representação não seriam independentes entre si, segundo as
objeções da orientação corpórea. Ao contrário, a noção de representação mental, constitutiva
dos modelos lógicos, estaria fundada em pressupostos ontológicos. Isto equivale a dizer que a
representação é intrinsecamente associada ao objetivismo (e também, como será discutido à
frente, a outra face que lhe é atribuída, o “subjetivismo”). Mas o que seria o objetivismo para
os autores da orientação corpórea? Seria o mesmo que realismo? A crítica ontológica à noção
de representação mental corresponderia a um antirrealismo? Mas, se corresponder, como a
orientação corpórea defenderia o corpo, o ambiente, a experiência como conceitos adequados
para compreender a percepção? Estes conceitos se refeririam a algo irreal? Para tentar
responder a estas questões, vejamos em primeiro lugar como Lakoff demarca a diferença
entre realismo em geral e objetivismo:

O realismo básico apenas assume que existe uma realidade de algum tipo. (...) Na
visão objetivista, a realidade vem como uma única, correta e completa estrutura de
entidades, propriedades e relações. Esta estrutura existe independente de qualquer
compreensão humana (LAKOFF, 1987, p. 159).

Assim, como aparecerá em outros argumentos da orientação corpórea, começamos a


responder as questões anteriores com a ideia de que ela não recusa que haja um mundo real.
Discorda, contudo, que este mundo seja assumido como um conjunto dado de coisas e
relações, anterior à cognição, e que esta se limite a ser apenas um espelho deste conjunto.
Mark Johnson acrescenta a esta ideia outros aspectos, afirmando, sobre a forma básica de
objetivismo, que:

A orientação objetivista é profundamente enraizada na tradição filosófica e cultural


do Ocidente, e recentemente foi elaborada de maneira altamente sofisticada por
filósofos, linguistas, psicólogos e cientistas computacionais em geral. (...) Em sua
manifestação não sofisticada, (...) ela toma a seguinte forma geral: (...) o mundo é
como é, não importando o que qualquer pessoa acredite sobre ele, e há um correto
"ponto de vista de Deus" sobre o que o mundo realmente é. Em outras palavras, há
uma estrutura racional da realidade, independente das crenças de pessoas em
particular, e uma razão correta espelha essa estrutura racional.
Para descrever uma realidade objetiva desse tipo, precisamos de uma linguagem que
expresse conceitos que possam mapear objetos, propriedades e relações de modo
literal, unívoco e independente de contexto. Raciocinar para obter conhecimento de
nosso mundo exigiria a ligação de tais conceitos a proposições que descrevem
aspectos da realidade. A razão é, portanto, uma pura capacidade formal para
conectar-se, fazendo inferências, a esses conceitos literais de acordo com as regras
da lógica. As palavras são símbolos arbitrários que, embora sem significado em si
mesmos, obtêm o seu sentido em virtude de sua capacidade de corresponderem-se
diretamente com as coisas do mundo. E o pensamento racional pode ser visto como
uma manipulação algorítmica de tais símbolos (JOHNSON, 1987, p. x).
225

Johnson descreve o objetivismo que basearia a orientação cognitivista como a crença em uma
realidade de coisas, existentes de modo independente da cognição, cuja transcendência ele
expressa de duas maneiras:
a) É assegurada por uma imparcial e suposta visão divina, isto é, como algo que
apresenta naturalmente a propriedade de dissipar prováveis divergências decorrentes
de variados pontos de vistas humanos sobre si mesma; e
b) Possui uma estrutura racional em seu âmago.
A estas descrições da transcendência dos objetos ele acrescenta mais duas observações sobre
o objetivismo que o relacionam diretamente à representação:
c) À estrutura racional do mundo corresponde uma homóloga razão humana;
d) A correspondência entre a racionalidade do mundo objetivo e a do pensamento é uma
condição para que uma linguagem do pensamento simbólica e racional descreva
adequadamente o mundo objetivo.
Porém, ao que parece, esta condição de homologia não é suficiente: a correspondência das
sequências lógico-proposicionais com o mundo dos objetos somente pode ser garantida se
regras corretas forem obedecidas pelo pensamento. E após uma série de elaborações teóricas a
partir desta suposição –ou desta exigência –, as ciências cognitivas clássicas teriam se
considerado capazes de estabelecer a manipulação algorítmica de símbolos como a forma
adequada de representar mentalmente o mundo objetivo. Isto é, elas teriam estabelecido para
este fim exatamente aquilo que foi descrito na seção 1.2 deste trabalho como sendo o modelo
lógico-proposicional.
O enativismo faz uma crítica semelhante ao objetivismo, mas acrescenta um outro
polo à crítica do que seria a abordagem incorpórea da cognição:

[A alternativa que defendemos] questiona a centralidade da ideia de que a cognição


é fundamentalmente representação. Por trás dessa ideia encontram-se três
pressupostos fundamentais. O primeiro é o de que habitamos um mundo com
propriedades particulares, como extensão, cor, movimento, som, etc. O segundo é o
de que selecionamos ou recuperamos essas propriedades representando-as
internamente. O terceiro é o de que existe um “nós” subjetivo separado que realiza
essas tarefas. Esses três pressupostos, juntos, constituem um compromisso forte,
frequentemente tácito e inquestionável, com o realismo ou o
objetivismo/subjetivismo sobre a forma como é o mundo, sobre o que somos e como
chegamos a conhecer o mundo.
Entretanto, mesmo o biólogo mais intransigente teria que admitir que o mundo é de
muitas formas – que efetivamente há muitos mundos diferentes da experiência –
dependendo da estrutura do ser envolvido e dos tipos de distinções que é capaz de
fazer. (...). A abordagem enativista assume então, seriamente, a crítica filosófica da
ideia de que a mente é um espelho da natureza, e vai além dela ao abordar a questão
do interior do domínio central da ciência (VARELA et al, 1991, p. 9).
226

Assim, o outro polo é o que Varela e outros autores chamam de subjetivismo. Mas, neste
caso, a crítica não é ao subjetivismo do idealismo solipsista83, em que se supõe todas as
experiências estarem limitadas a invenções da mente do sujeito (e que pode ser associado a
um relativismo absoluto), mas à contrapartida do objetivismo que é a crença na existência de
um sujeito separado e preexistente, assim como as coisas que lhe são dadas conhecer. Desta
sorte, o enativismo se opõe a um realismo que classifica de objetivista/subjetivista, incluindo
em sua crítica o que chama de subjetivismo, um elemento que Lakoff e Johnson endossam,
citando a abordagem de Varela et al e atribuindo as raízes desta ideia a Maurice Merleau-
Ponty (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 25, 97) – tal como já foi sublinhado na seção
anterior. Para continuar a responder às questões acima formuladas sobre a perspectiva
ontológica da orientação corpórea, é importante que se caracterize também por que ela inclui
em seus questionamentos a suposta existência fixa do sujeito. Porém, isto será mais bem
enfocado quando da descrição que será feita da concepção de realismo corpóreo, ou enação,
na seção 2.3.1.
Antes, é necessário aprofundar a investigação da crítica de autores da orientação
corpórea às convicções ontológicas atribuídas por eles à orientação cognitivista. E esta crítica
se apresenta de duas formas. Primeiramente, dirigida à crença na existência transcendente de
objetos, cuja representação na cognição geraria os significados com os quais os sujeitos –
também existentes “objetivamente” – lidam. Em segundo lugar, ela é voltada para o
pressuposto tácito de que há a realidade transcendente não apenas dos objetos e dos sujeitos,
mas da própria estrutura racional do mundo e dos sujeitos cognoscentes. Tratemos,
inicialmente, da primeira crítica. A segunda será o tema da próxima seção.
A primeira crítica é formulada de diversas maneiras nas obras dos autores de
orientação corpórea. Mas, neste trabalho, se dará ênfase aos argumentos de George Lakoff e
Mark Johnson, tendo em vista que nas obras destes autores esta crítica se faz de modo mais
extenso e estreitamente vinculado à sua concepção corpóreo-experiencial da cognição
humana.
No livro Philosophy in the flesh, Lakoff e Johnson fazem esta crítica como uma
objeção à “teoria da verdade por correspondência”. Um dos problemas que estes autores
identificam nos pressupostos realistas das ciências cognitivas ortodoxas reside na questão do
que chamam de “lacunas”, formadas não apenas entre as proposições e o mundo, mas também

83
A crítica ao idealismo solipsista será retomada na seção 2.3.1., quando for abordada a concepção ontológico-
epistemológica do enativismo e, mais especificamente, aquilo que Varela, Thompson e Rosch chamam de
“posição do ovo”.
227

na própria relação das línguas com as proposições. Esta crítica é aqui ressaltada porque se
dirige a uma suposta neutralidade das proposições, que se atribui, também, ao modelo lógico-
proposicional. Para eles, está equivocado o pressuposto de que a verdade decorre da
correspondência entre símbolos e um mundo independente da mente, do cérebro e do corpo.
Mas o exemplo que utilizam diz respeito à relação entre uma suposta estrutura neutra das
proposições e as falas reais humanas. Isto é, eles identificam nos pressupostos do
cognitivismo (embora se refiram explicitamente à filosofia analítica, à qual atribuem, por sua
vez influência à abordagem tradicional das ciências cognitivas) um tipo de problema que não
se limita à correspondência entre o mundo e as estruturas cognitivas. Segundo Lakoff e
Johnson, o problema provém de um realismo “técnico” em que a

constatação de que afirmações, com as quais as sentenças são ou faladas ou escritas,


expressam proposições. As proposições, por sua vez, são estruturas compostas por
símbolos, e são estas estruturas simbólico-proposicionais que são tomadas como
correspondendo, ou deixando de corresponder, à realidade. A estrutura interna das
proposições é vista, de diversas maneiras, como tendo uma das várias estruturas:
estrutura sujeito-predicado, estrutura predicado-argumento, e assim por diante. A
alegação é de que, em virtude dessa estruturação dos símbolos, a proposição pode
ser elaborada para corresponder à estrutura do mundo e, assim, fazer afirmações
verdadeiras sobre o mundo.
As proposições são introduzidas para neutralizar as diferenças entre as linguagens.
Os exemplos típicos são bastante simples: "A neve é branca" e "Schnee ist weiss"
devem nomear a mesma proposição, ou seja, a afirmação de que os conceitos para o
que chamamos de neve e o que chamamos de ser branco andam juntos de uma forma
que corresponde à forma com que a brancura e a neve andam juntas no mundo.
A introdução de proposições, assim, transforma a lacuna entre as palavras e o mundo
em duas lacunas:
Lacuna 1: Aquela entre as sentenças das línguas naturais e as proposições, que são
estruturas de linguagem neutras compostas de símbolos abstratos;
Lacuna 2: Aquela entre as estruturas de símbolos e o mundo. (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 99-100).

Deste trecho extraímos a objeção da cognição corpórea não apenas de que os


significados cognitivos não nascem diretamente dos objetos do mundo, mas também de que
tais significados não dependem de uma estrutura proposicional neutra e abstrata, subjacente às
linguagens efetivamente utilizadas por seres humanos concretos. Este problema remete ao que
será abordado a seguir, a respeito da rejeição da cognição corpórea à existência de uma
suposta estrutura transcendente do pensamento e uma possível correspondência desta
estrutura a uma estrutura do mundo. Contudo, neste momento é fundamental tratar-se aqui do
polo da crítica corpórea à posição tradicional que vincularia os objetos do mundo às
proposições – isto é, à segunda lacuna acima descrita.
Mark Johnson lança mão de críticas ao Positivismo Lógico para fundamentar sua
crítica ao objetivismo – e à teoria da verdade por correspondência – nas ciências cognitivas.
228

Tal procedimento é coerente com a hipótese assumida no presente trabalho de que o


Positivismo Lógico teve papel basal na constituição do cognitivismo. A ideia subjacente a
esta hipótese, e à crítica proferida por Johnson, decorre da suposição de que, através do
Positivismo Lógico, os autores que gestaram o cognitivismo teriam aplicado à cognição
humana, em geral, princípios que os positivistas lógicos adotaram em relação à constituição
do conhecimento científico.
De acordo com Mark Johnson, o Positivismo Lógico (chamado por ele de “Empirismo
Lógico”), a partir de uma investigação da racionalidade científica, supunha que a ciência,
graças ao rigor lógico e à fundamentação empírica próprios a ela, constituiria a mais elevada
forma de investigação racional. Em suas palavras, para o Positivismo Lógico

A ciência tinha uma parte formal (a estrutura lógica das teorias) e uma parte
empírica (seu fundamento em dados objetivos). O Empirismo Lógico estava, desta
forma, diante de duas tarefas necessárias para a defesa da objetividade científica. (i)
Tinha de mostrar que a racionalidade da ciência poderia ser analisada em termos da
lógica matemática, uma vez que a lógica era considerada como a essência da
racionalidade. (ii) Tinha de mostrar que as teorias científicas eram baseadas em
dados empíricos independentes da teoria, e testáveis em relação a estes. Em outras
palavras, os pressupostos objetivistas poderiam ser defendidos mostrando-se que a
ciência estava firmemente enraizada no solo da evidência empírica e que suas teorias
e leis foram conectadas a esse fundamento empírico via relações logicamente
corretas (JOHNSON, 1987, p. 198-199).

Porém, para Johnson o Positivismo Lógico deixou de realizar ambas as tarefas.


Sustenta esta convicção nos trabalhos de autores como Thomas Kuhn, Frederick Suppe,
Harold Brown, Richard Rorty, Paul Feyerabend e Hilary Putnam (Ibid., p. 226 nota 6),
acrescentando que, segundo Hempel, “a teoria verificacionista do significado falhou em
vincular os significados empíricos a dados observacionalmente independentes” (Ibid., p. 199).
Tal afirmação se complementa com a ideia de que o Positivismo Lógico teria sido mal
sucedido, também, ao se basear no pressuposto de que há dados empíricos neutros. Para
Johnson, os inputs perceptivos somente são compreensíveis a partir de julgamentos
proposicionais carregados de teoria – no que reconhece a influência de Norwood Hanson, e
também de Paul Feyerabend (Ibid., p. 266, nota 10).
A partir das considerações de Lakoff e Johnson, identifica-se um quadro em que
determinados problemas são apontados na concepção de ciência do Positivismo Lógico e que
teriam se propagado no cognitivismo. Segundo Johnson, as dificuldades do Positivismo
Lógico se encontram em “uma inadequada visão objetivista do significado e da racionalidade”
(Ibid., p. 199). Neste sentido,
229

A visão empirista lógica do significado tentou fundamentar termos ou frases à


realidade objetiva independente e neutra em relação a teorias, de uma forma
unívoca. Na "reconstrução racional das teorias" nenhum papel foi permitido às
estruturas imaginativas de compreensão que venho examinando. Além disso, a visão
objetivista da racionalidade também excluiu a compreensão deste tipo, através da
busca por uma estrutura lógica "pura", algoritmicamente governada. Em suma, foi
uma teoria objetivista insatisfatória do significado, da compreensão e da
racionalidade que minou todo o projeto (Ibid.).

Após criticar, também, o que chama de “relativismo vicioso” – que seria um oposto
“anárquico” do objetivismo –, Johnson (Ibid.) conclui que os filósofos da ciência vêm
reconhecendo que a racionalidade científica se distingue não por manifestar um quadro
decorrente de um “ponto de vista de Deus”, ou da neutralidade em relação a valores, mas, ao
contrário, pela natureza crítica de suas investigações, que envolvem valores e são
direcionadas a objetivos. Esta nova imagem da ciência serve, segundo Johnson, para
desenvolver as críticas, também, ao objetivismo adotado pelas ciências cognitivas ortodoxas.
Nesta argumentação, Johnson lança mão, sobretudo, das refutações ao objetivismo efetuadas
por Hilary Putnam e Richard Rorty.
Como na menção feita acima à sua posição, juntamente com Lakoff, em Philosophy in
the flesh, ele alude ao que seria um “realismo técnico”, ou um “novo objetivismo”, baseado
em uma “nova teoria da referência”. O termo “realismo técnico”, utilizado por Johnson,
provém do pragmatismo de Richard Rorty, que atribui a criação de uma “nova teoria da
referência” verificacionista a Quine e Wittgenstein – ainda que originada em Saul Kripke, e a
uma supostamente equivocada leitura de Frege –, como podemos constatar na seguinte
passagem de Rorty, aqui ampliando uma citação de Johnson:

Com base da "nova teoria da referência" originada em Saul Kripke, dizem [Quine e
Wittgenstein], podemos agora construir uma imagem melhor, não-fregeana, das
relações entre palavra e mundo. (...) Kripke vê o mundo como já dividido não só em
particulares, mas em tipos naturais de particulares, e mesmo nas características
essenciais e acidentais desses particulares e tipos. A pergunta "É verdade que 'X é
<p'?" deve ser, portanto, respondida ao se descobrir a que – como uma questão de
fato físico, e não das intenções de ninguém – 'X' se refere e, assim, descobrir se esse
particular ou tipo é <p. Só por uma tal teoria "fisicalista" de referência, dizem os
realistas técnicos, pode a noção de "verdade como correspondência com a realidade"
ser preservada (RORTY, 1982, p. xxiii).

Para Johnson, o que Rorty chama de “realismo técnico” assume que a verdade é uma
questão de quais palavras mapeiam as coisas particulares, enquanto que, para o pragmatismo
rortiano, não há referência que não esteja “entrelaçada com alguma rede semântica particular
ou algum sistema de descrição” (Ibid.). No mesmo sentido – de acordo com Johnson – iria
Putnam, ao recusar que a conexão das palavras com as coisas independam do observador.
230

Mas isto não faria de Putnam, ou mesmo Rorty, idealistas. Deixar isso claro é uma forte
preocupação de Johnson:

Putnam não é um idealista, ou um antirrealista, para quem não há nada "fora de


nós." (...) Putnam (e mesmo Rorty) admitem, é claro, que vivemos, nos movemos e
temos o nosso ser dentro de um ambiente preenchido com coisas físicas que podem
se colocar contra nós, resistir a nós, e às vezes até nos destruir. Então, o problema
conhecido como realismo não reside na questão sobre se há ou não algo no mundo
físico além de seres humanos, "mentes", "esquemas conceituais" ou "linguagens",
isto é de concordância quase geral. A questão, na verdade, diz respeito ao que
significa para que haja um "objeto" e o que é necessário para que sejamos capazes
de nos referirmos a "objetos".
Putnam está correto sobre esta questão – as coisas só são "objetos" significativos
para nós quando podemos compreendê-los dentro de um esquema, uma rede ou
sistema de estruturas de significado. As palavras não se referem simplesmente a
objetivos estados de coisas independentes dos seres humanos. As pessoas usam
palavras para se referir a objetos, e elas devem empregar estruturas intencionais de
significado para fazê-lo. Como dividimos o nosso mundo depende tanto do que está
"lá fora”, independentemente de nós, e igualmente do esquema referencial que
fazemos valer, dados os nossos propósitos, interesses e objetivos. Na visão de
Putnam, estamos em contato com o nosso mundo, mas sempre de forma mediada.
Assim, não há uma única maneira, de um “ponto de vista de Deus” de
desmembramento do mundo, mas não se segue daí que podemos dividi-lo de
qualquer forma que desejemos. (Ibid., p. 202)

Estas afirmações não apenas expõem de forma clara as discordâncias da cognição


corpórea com o realismo objetivista subjacente à teoria da verdade por correspondência – que,
por sua vez, sustentaria a crença cognitivista na atribuição de significado às proposições
mediante um espelhamento dos objetos sobre a cognição –, mas também já adiantam grande
parte das convicções realistas da metafísica – isto é, da ontologia – corpóreo-experiencial (o
que será tratado adiante sob a denominação de realismo corpóreo).
É do seguinte modo que Johnson resume sua abordagem ontológica quanto a objetos
(Ibid., p. 206-209):

1) Ela seria uma visão sobre conhecimento humano e não sobre um conhecimento
absoluto e divino que só poderia ser acessível a partir de um ponto de vista de Deus.
Tal conhecimento requer estrutura e categorização;
2) Todo o conhecimento é mediado pela compreensão. Conhecer é compreender de uma
certa maneira, uma forma que pode ser compartilhada por outras pessoas, numa
comunidade de compreensão;
3) A compreensão compartilhada não é apenas uma questão de compartilhamento de
conceitos e proposições. É também uma questão de estruturas corpóreas de
compreensão, tais como os esquemas de imagem – que serão abordados na seção 2.4 –
231

, e que constituem padrões recorrentes de interação entre um organismo e seu


ambiente;
4) É um erro pensar em um organismo e seu meio ambiente como duas entidades
completamente independentes e não relacionados; o organismo não existe como algo
que está além do seu ambiente, assim como o ambiente como um todo é tanto uma
parte da identidade do organismo, como também algo "interno" a este; é por esta razão
que tanto idealismo quanto objetivismo estão errados.
5) Somos organismos que nos adaptamos aos nossos ambientes e o transformamos no
curso de nossa evolução. Nós evoluímos formas de funcionamento que são mais ou
menos bem sucedidas, dados os nossos propósitos e necessidades, tanto para a nossa
sobrevivência quanto para a melhoria da qualidade da nossa experiência;
6) Assim, o nosso sistema conceitual é ligado às experiências em dois níveis: a) O nível
básico, no qual distinguimos elefantes de girafas e tigres, e em que podemos distinguir
andar de correr, e ficar em pé de sentar; este é o nível de compreensão que temos
evoluído para nos permitir funcionar bem em nosso ambiente; b) O nível de esquemas
de imagens, que fornece a forma geral para a nossa compreensão em termos de
estruturas, e nos permite conferir sentido às relações entre as diversas experiências;
7) Embora as estruturas de nível básico e de esquemas de imagens sejam significativas
para nós da forma mais imediata e automática, isto não esgota nossa compreensão.
Precisamos de muito mais do que conceitos nestes níveis para funcionar com sucesso
com vistas aos nossos propósitos. Para dar sentido à nossa experiência, precisamos de
categorias que são hierarquicamente superiores e outras que são subordinados às
categorias de nível básico. Precisamos também de maneiras de compreender um
domínio de experiência em termos de estruturas de um domínio de um diferente tipo –
ou seja, precisamos de metáfora. E, muitas vezes, precisamos compreender um aspecto
de um único domínio em termos de outro aspecto desse domínio – ou seja, precisamos
de metonímia, como quando precisamos entender um todo em termos de uma parte
desse todo, ou em termos de algum atributo relacionado.

2.2.2.2. A crítica corpórea ao realismo estrutural

Visto o questionamento ao realismo objetivista, importa agora verificar como se dá a


objeção a um realismo estrutural, e qual a sua relevância no conjunto das formulações críticas
232

corpóreas. Isto levará a um exame especialmente interessado na importância de fatores


filosóficos para a formação da orientação cognitivista.
Sobre isto, Mark Johnson afirma que:

A estrutura da racionalidade é considerada como transcendente às estruturas das


experiências corpóreas. E os significados são considerados objetivos, porque
consistem apenas na relação entre símbolos abstratos e coisas (com suas
propriedades e relações) do mundo. (...) Esta visão da natureza objetiva do
significado e da racionalidade tem sido mantida há séculos pelos filósofos da
tradição ocidental e, nas últimas décadas, passou a definir o programa de pesquisa
dominante em várias disciplinas relacionadas (JOHNSON, 1987, p. x e xi).

Isto iria ao encontro da ideia de alguns autores da cognição corpórea84 de que uma
racionalidade transcendente é pressuposto do programa de pesquisas cognitivista. Contudo, na
passagem acima Johnson ainda não expressa tão claramente que o objetivismo e a orientação
cognitivista tomariam a racionalidade como algo que tem existência universal, real e objetiva.
Isto fica mais claro na seguinte descrição de Lakoff e Johnson de dois aspectos da razão
desincorporada:
(...)
• Razão universal: há uma razão universal que caracteriza a estrutura racional do
mundo. Ela utiliza conceitos universais que caracterizam as categorias objetivas
do mundo. Tanto os conceitos como a razão são independentes das mentes,
corpos e cérebros dos seres humanos.
• Razão humana desincorporada: A razão humana é a capacidade da mente
humana de usar uma parte da razão universal. O raciocínio pode ser efetuado
pelo cérebro humano, mas sua estrutura é definida pela razão universal,
independentemente de corpos e cérebros humanos. A razão humana é portanto
desincorporada (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 553 – grifo meu).

A razão humana na concepção objetivista seria, de acordo com essa afirmação, parte da razão
universal transcendente, e a ela – como já sugerido anteriormente – homóloga. Isto daria uma
justificativa para que um tipo de estrutura que possua características racionais essenciais
possa ter sido adotado como modelo para a cognição, na orientação cognitivista. Mas tal
hipótese nos levaria mais longe: nos conduziria a supor que, ao contrário da concepção
sugerida na seção 1.1.1 para o procedimento de representação científica em geral, os
cognitivistas não considerariam seu modelo tão somente um modelo, isto é, uma imagem
metafórica com capacidade de descrever e explicar seu objeto, assim como de guiar ações no
mundo, mas o considerariam a descrição de um objeto real. Dito de outra forma, assim como
os cientistas naturais (físicos, químicos, biólogos, geólogos) de orientação objetivista
suporiam estar descrevendo a realidade mesma de seus objetos com suas teorias, os cientistas
cognitivos tradicionais, ao abraçarem a crença objetivista, tratariam seu objeto – a cognição –

84
Neste caso, a referência é, em especial, à obra de Mark Johnson, George Lakoff e Rafael Núñez.
233

igualmente com uma descrição realista. Ou ainda, dizendo o mesmo de forma mais ousada:
eles teriam descoberto a estrutura essencial e imutável do pensamento racional. Tal afirmação
não ficou claramente explicitada até aqui nos textos citados dos autores da orientação
corpórea. Mas tomemos inicialmente a definição de Lakoff e Rafael Núñez em seu livro
dedicado a explicar corporeamente a matemática. Eles atribuem a compreensão tradicional da
matemática e da razão ao que chamam de “mitologia” ou “romance” da matemática, que
descrevem da seguinte maneira:

• A matemática é abstrata e desincorporada – mas real


• A matemática tem uma existência objetiva, fornecendo estrutura para seu
universo e qualquer possível universo, independente e transcendente à existência
de seres humanos e outros quaisquer
• A matemática humana é apenas uma parte da matemática abstrata e
transcendente
• Portanto, provas matemáticas nos permitem descobrir verdades transcendentes
sobre o universo
• A matemática é uma parte do universo físico e lhe fornece estrutura racional. Há
sequências de Fibonacci em flores, espirais logarítmicas em caracóis, fractais em
cordilheiras, parábolas em trajetórias de bolas de beisebol e π no formato
esférico de estrelas e planetas e bolhas
• A matemática caracteriza até mesmo a lógica, e portanto estrutura a própria
razão, e qualquer forma de raciocínio realizada por qualquer possível ser
• Aprender matemática é portanto aprender a linguagem da natureza, um
modo de pensar que teria de ser compartilhado por quaisquer seres de
inteligência mais desenvolvida em qualquer lugar do universo
• Porque a matemática é desincorporada e a razão é uma forma de lógica
matemática, a razão é ela mesma desincorporada. Portanto, máquinas, em
princípio, pensam.( LAKOFF & NÚÑEZ, 2000, p. xv – grifo meu).

Estas são afirmações bastante radicais que, embora inicialmente não sejam sobre a razão em
si, assumem que esta tem sido compreendida filosoficamente por um determinado tipo de
orientação como tendo a mesma estrutura lógica da matemática. Na crítica de Lakoff e Núñez
se torna bastante preciso o argumento que se identifica menos claramente nas considerações
anteriormente apresentadas de Johnson e Lakoff, e que sugere a crença do objetivismo na
existência transcendente de um mundo de coisas, mas também de uma estrutura racional que o
organiza e permite compreender. O que fica claro na apresentação de Lakoff e Núñez do
“romance da matemática” é que haveria uma crença filosófica e, particularmente, ontológica
tradicional de que a matemática, a lógica e a razão teriam existência própria, transcendente às
experiências humanas, e independente da forma como se dê a cognição. Mas a ideia é mais
forte ainda: eles identificam no “mito” tradicional o que chamam, como na frase acima
grifada, uma “linguagem da natureza” que seria também uma linguagem do pensamento. Não
é o caso de avaliar esta convicção, porém de explicitar seus termos e seu sentido, para
seguirmos no propósito de compreender a orientação corpórea em seu projeto crítico. E o que
234

aqui se pretende sugerir, como já afirmado, é que uma forte objeção dos autores da orientação
corpórea citados se dirige ao que seria a crença da orientação cognitivista de que seu modelo
seria a descoberta de uma realidade mais fundamental ainda do que as próprias coisas ou a
própria experiência cognitiva. Ou seja, descrever adequadamente a cognição e o pensamento
humano, assim como a cognição e o pensamento atribuídos a artefatos de computar, seria
descrevê-los com base em uma estrutura subjacente que os condicionaria. Se explicar a
cognição e o pensamento seria encontrar as regras que os determinam, isto não levaria a supor
que estas regras corresponderiam a uma forma transcendente da razão? Lakoff e Johnson não
chegam a apresentar uma argumentação que diretamente conduza a esta conclusão. Porém, a
fim de investigar esta hipótese, ainda que sugestiva e sumariamente, fazem-se a seguir
associações entre certas convicções de Lakoff e Johnson e a oportunidade propiciada pela
argumentação de Lakoff e Núñez sobre a realidade transcendente da racionalidade
matemática. A argumentação de Lakoff e Núñez vincula uma concepção transcendente da
matemática a uma concepção transcendente da estrutura racional do pensamento e, assim,
vem ao encontro de três afirmações de Lakoff e Johnson que indiretamente permitem traçar
uma influência histórica de Frege sobre as ciências cognitivas tradicionais, a partir de sua
logicização da matemática – mas agora ressaltando aspectos eminentemente filosóficos nesta
influência, e não aqueles ligados à solução de problemas predominantemente técnicos, como
os enfrentados por Turing, Church e Shannon, já mencionados na seção 1.1.4, e diretamente
associados à eclosão da inteligência artificial. As referidas afirmações de Lakoff e Johnson
são as seguintes:
1) O projeto logicista de Frege promoveu uma dessubjetivação da matemática e da
lógica;
2) Este trabalho de Frege teve influência decisiva na constituição da filosofia analítica,
especialmente sobre sua corrente formalista;
3) A filosofia analítica formalista teve influência filosófica, e particularmente ontológica,
sobre os autores da orientação cognitivista.
Meu intuito será, a partir destas afirmações e com o recurso a outros autores, verificar
de que modo o movimento logicista pode ter tido algum tipo de influência sobre os
pressupostos ontológicos de transcendência da razão – e de seu próprio modelo –,
alegadamente presentes na orientação cognitivista.
A primeira das três afirmações acima diz respeito a um fato já me mencionado na
seção 1.1.2, quando da apresentação de teorias e acontecimentos que podem ser considerados
como precursores das ciências cognitivas: o processo de logicização da matemática
235

promovido inicialmente por Frege, no final do século 19, e que teve como pressuposto
explícito que a matemática fosse universal, independente da subjetividade humana particular,
e assim invariável frente às particularidades dos sujeitos. Vejamos que, nas palavras de Lakoff
e Johnson,

Como matemático e lógico, Gottlob Frege estava excessivamente preocupado em


justificar a matemática como universal e absoluta, transcendendo todos os tempos,
lugares e culturas. Seu ataque ao “psicologismo” – a visão de que a matemática é um
resultado da estrutura da mente humana, ao invés de uma realidade independente da
mente – o levou a adotar uma visão de que todo significado e pensamento são
desincorporados e formais (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 440).

De fato, são encontradas nas obras do próprio Frege afirmações que se coadunam com tal
ideia de Lakoff e Johnson, como a seguinte, sobre a possibilidade de, através da
conceitografia fregueana, expressar relações de pensamento que possuiriam independência de
seus objetos: “Já que me limitei, aqui, a expressar relações que independem das propriedades
particulares das coisas, poderia também empregar a expressão ‘linguagem formular do
pensamento puro’”85 (FREGE, 2009 [1879], p. 45); ou esta outra, em que ele reafirma sua
crença em um fundamento racional para a objetividade: “O fundamento da objetividade não
pode de fato estar na impressão sensível, que, enquanto afecção de nossa alma, é totalmente
subjetiva, mas, tanto quanto posso perceber, apenas na razão” (FREGE, 1974, p. 231).
Podemos ainda obter de um destacado estudioso de Frege, como Michael Dummett, uma
interpretação – apresentada após o amadurecimento de um século de debates filosóficos sobre
o tema – da oposição fregueana ao que é comumente chamado de “psicologismo”:

[Para Frege], se algo é comum ou acessível a todos, deve ser independente de todos;
inversamente, algo cuja existência depende da consciência de qualquer pessoa deve
ser lhe privativa, e não comunicável a outros. Esta é a fonte primária de sua oposição
ao psicologismo, que é a tentativa de explicar os significados dos operadores lógicos
ou de proposições matemáticas, ou mesmo o significado de um modo geral, em
termos de operações mentais internas. Se o significado de uma proposição envolveu
essencialmente alguma coisa interior à consciência, então, de acordo com Frege, não
pode ser transmitida, pelo menos na totalidade ou com certeza: não deveríamos ter
nenhuma maneira de saber se o que foi despertado na mente daquele a quem a
tentativa de comunicação foi feita era, ou não, o mesmo que o original na mente da
pessoa que tentou se comunicar. E ainda que tal proposição pudesse ser comunicada,
não poderia haver nenhuma base comum para determinar a sua verdade ou falsidade:
se ela pareceu verdadeira para um e falsa para outro, ambos poderiam apenas
reconhecer esta diferença, mas não resolvê-la. Por essa razão, a psicologia deve ser
banida da lógica e da matemática: o único resultado de sua intrusão seria a
dissolução, numa inextricável subjetividade, daquilo que deve ser objetivo e igual
para todos (DUMMETT, 1991, p.78).

85
A frase entre aspas é também o subtítulo do livro Conceitografia, de Frege. Aqui optou-se por utilizar a versão
da frase proposta por Paulo Alcoforado, tradutor da edição brasileira em que este trabalho se baseia, que escolhe
o adjetivo “formular”, uma vez que, para o tradutor, o adjetivo utilizado por Frege (“Formelsprache”) qualifica a
linguagem como sendo expressa mediante fórmulas.
236

Todavia, nada do que se encontra diretamente expresso na obra de Frege teria importância
para o argumento de Lakoff e Johnson se não se houvesse disseminado e ganho valor na
constituição da filosofia dominante no século 20. E é o que consideram Lakoff e Johnson, e
que assim explicitam a segunda afirmação deles acima destacada:

Sob a influência de Frege, a filosofia analítica – a filosofia cujo foco central é a


linguagem – definiu a si mesma como a análise lógica e formal de sentidos
(significados), proposições e funções alegadamente universais e desincorporados.
(...) Mas a filosofia analítica é um enorme empreendimento. (...) Podemos conferir
um pouco mais de sentido a este empreendimento ao fazermos algumas distinções.
(...) Precisamos distinguir entre duas formas de filosofia analítica: a formalista
(baseada na lógica matemática) e a filosofia da linguagem comum (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 441).

É noção disseminada entre muitos autores a influência de Frege sobre a filosofia analítica,
ideia que alcança alguns filósofos desta tradição, como Dummett, que a reafirma nos
seguintes trechos:

A reputação de Frege como filósofo da lógica, da linguagem e do pensamento


cresceu firmemente desde cerca de 1950 em diante; ele é geralmente percebido
como o fundador da filosofia analítica (DUMMET, 1991, p. xi).

A filosofia analítica nasceu quando a "guinada linguística" se deu. Esta não foi,
naturalmente, assumida uniformemente por todos os grupos de filósofos em todos os
momentos, mas o primeiro exemplo claro conhecido para mim ocorre com Frege em
Die Grundlagen der Arithmetik, de 1884 (DUMMET, 1992, p. 5).

Por fim, vejamos como Lakoff e Johnson expressam em sua obra a terceira afirmação acima
resumida, sobre a força com que a filosofia analítica formalista – que eles abarcam mediante a
denominação mais ampla de “filosofia anglo-americana” – influenciou as ciências cognitivas
clássicas:
Muitos cientistas cognitivos cresceram na tradição da filosofia analítica. (...) A
primeira geração das ciências cognitivas evoluiu nos anos 1950 e 1960, centrada nas
ideias da computação simbólica. Ela aceitou sem questionar a visão prevalente que a
razão é desincorporada e literal – como na lógica formal ou a manipulação de um
sistema de signos. Naqueles anos, a filosofia anglo-americana se ajustava muito bem
com certos paradigmas dominantes daquela era: a inteligência artificial inicial, a
psicologia de processamento de informações, a lógica formal, a linguística gerativa e
a antropologia cognitiva inicial. Isto não se deu por acidente. Muitos praticantes
destes paradigmas foram treinados utilizando as suposições da filosofia anglo-
americana (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 74 e 75).

Mas, ao contrário das outras duas afirmações anteriores, esta terceira não tem tido muita
ressonância no meio dos estudiosos e dos praticantes das ciências cognitivas. Isto pode ser
atribuído à ideia de que muitos deles se pronunciariam a partir de seus próprios pressupostos
afinados com a filosofia analítica formalista, condição que, no mínimo, dificultaria um
distanciamento crítico de sua parte. Contudo, esta hipótese assumiria como suposição o que
237

pretende confirmar, o que não recomenda seja levada em consideração aqui. Para não dizer
que todos os que historiaram as ciências cognitivas silenciam a respeito, Jean-Pierre Dupuy –
um autor francês que, de todo modo, tem menor influência da filosofia formalista – reconhece
o papel da filosofia analítica na formação dos pressupostos cognitivistas, embora o faça para
expressar sua estranheza com o fato de que a valorização de aspectos psicológicos da
cognição, recusado desde Frege, teria sido de algum modo reassumido pela tradição lógico-
linguística ao se constituírem as ciências cognitivas sob sua influência (DUPUY, 1996 [1994],
p. 114-116). Evidentemente, podemos constatar, em passagens que acabamos de registrar, que
Lakoff e Johnson discordariam desta ideia, uma vez que associam a recusa fregueana ao
“psicologismo” à dispensa cognitivista da corporeidade cognitiva.
Contudo, embora não tenhamos corroboração de mais estudiosos das ciências
cognitivas à terceira tese de Lakoff e Johnson acima referida, uma forma de verificá-la seria
através do exame direto dos próprios autores das ciências cognitivas clássicas, nos quais se
poderia buscar reconhecer uma educação na filosofia analítica de cunho formalista. É o caso
de Jerry Fodor, chamado por Gardner de “o cognitivista completo” (GARDNER, 1985, p. 81).
Não é o propósito deste trabalho “provar” que Fodor tenha tido formação marcada pelos
preceitos formalistas da filosofia analítica. Nem há aqui espaço para um acompanhamento da
terceira afirmação de Lakoff e Johnson mediante uma análise pari passu da filiação dos
argumentos cognitivistas à filosofia analítica, apesar de esta ser uma empresa, em princípio,
factível. Além disso, esta não é uma premissa inevitável na argumentação principal deste
trabalho. É bastante que deixemos esta ideia à mercê de possíveis estudos mais aprofundados,
mas a tratemos como uma hipótese plausível e aceitável.
Um empreendimento mais modesto, e aqui cabível, seria tentar identificar nos textos
dos autores das ciências cognitivas clássicas o que se possa considerar reverberações da
matriz fregueana e analítica, para então questionar diretamente a hipótese de sua crença
ontológica quanto à objetividade estrutural dos modelos lógicos. Fodor acabou de ser
mencionado não apenas por sua suposta herança lógico-linguística, mas por outras duas
razões, uma relacionada às suas atividades e outra ao conteúdo de suas teses: a primeira razão
é seu papel de destaque como líder do desenvolvimento teórico do modelo lógico-
proposicional, através d Teoria Computacional da Mente, e a segunda é a importância, nesta
liderança, de seu conceito de “linguagem do pensamento”, já discutido na seção 1.2.4, para a
reflexão aqui proposta. Neste conceito podem ser encontrados aspectos que reforçam a
suspeita de haver um vínculo de crença ontológica, propiciado pela metáfora do pensamento
238

como estrutura formal invariável, entre o logicismo e o cognitivismo. Levemos em conta o


que diz Gardner a respeito do conceito:

Em poucas palavras, Fodor acredita que deve existir uma linguagem do pensamento.
Se os sistemas cognitivos envolvem representações, se as operações cognitivas
envolvem a manipulação de representações do tipo símbolo, então estas
representações devem existir em algum lugar e ser manipuladas de alguma maneira
(GARDNER, 1985, p. 83).

Além de assumir a noção de que as representações existiriam “em algum lugar”, Fodor as
conceberia como uma estrutura inata – isto é, elas seriam próprias da natureza, ou ao menos
de algo compreendido como natureza humana:

Na verdade, se os processos mentais são computacionais, deve haver representações


sobre as quais os cômputos possam ser realizados. Além disso, ele expõe sua
opinião radical de que esta linguagem do pensamento é inata: de que as pessoas
nascem com um conjunto completo de representações, sobre as quais elas podem
mapear qualquer forma nova de informação que venha a emergir de suas
experiências no mundo (GARDNER, 1985, p. 83).

Ainda segundo Gardner, embora o inatismo da linguagem do pensamento possa ser pensado
tão somente como uma hipótese de trabalho, ou seja, sem ser tratada como um compromisso
ontológico forte, seria no embate com outros teóricos da cognição que o viés ontológico se
reforçaria:

A afirmação de Fodor de que os indivíduos nascem com conhecimento de uma


linguagem – uma linguagem inata semelhante à linguagem natural – é
surpreendente, e não está claro até que ponto ele deseja que ela seja levada a sério.
Mas, seus desafios às explicações rivais são implacavelmente sérios. Considere, por
exemplo, sua crítica à aquisição de conceitos de Jean Piaget, segundo a qual a
criança passa a possuir conceitos novos e mais poderosos em cada estágio
subsequente do desenvolvimento. Fodor exibe sua dificuldade de compreender como
alguém pode aprender um novo conceito a não ser que já tenha a capacidade de
hipotetizar este conceito – e, neste caso, ele já o possui (GARDNER, 1985, p. 83).

Outro indício desta suposição ontológica não viria do inatismo da linguagem do pensamento,
mas da noção de estrutura a ela vinculada pelo próprio Fodor: “Uma teoria da estrutura da
racionalidade é o melhor que podemos esperar com as ferramentas que temos em mão; o
melhor, talvez, que qualquer psicologia não redutivista poderia esperar” (FODOR, 1975, p.
203). Esta frase não apenas explicita que a linguagem do pensamento possa ser tomada como
uma estrutura da racionalidade – a respeito da qual afirmar que seja invariável às suas
manifestações em seres humanos particulares seria redundante –, como demonstra que
constituiu uma saída para o problema do reducionismo fisicalista. Embora uma investigação
da linguagem do pensamento como uma forma de racionalidade transcendente, com o
propósito de examinar a aplicação do pressuposto realista da razão transcendente a toda
239

cognição, ainda esteja por ser feita, a ideia de estrutura da racionalidade, como a que surge em
Fodor, exige ainda algumas observações antes de que se concluam aqui as reflexões sobre a
hipótese da crença ontológica subjacente à construção dos modelos lógico-proposicionais.
Para tal, deve ser invocado outro desdobramento do logicismo de Frege que teria ocorrido
paralelamente ao desenvolvimento das ciências cognitivas, e que permite enfatizar o tipo de
suposição ontológica que, sugere-se, o logicismo tenha tido a propensão de desencadear.
Como foi dito, o esforço de Frege para livrar a matemática das subjetividades e do empirismo
ganha importância na presente investigação na medida em que teria tido força para influenciar
a adoção, no meio científico e filosófico predominante, de uma noção transcendente da
matemática ou, mais propriamente, de uma noção transcendente de certas formas da lógica e
mesmo da razão – na linha do que afirmam Lakoff e Núñez na citação apresentada
anteriormente. E para deixar mais clara essa questão, com respeito ao que aqui interessa, é
importante assinalar que nas discussões filosóficas sobre a matemática referidas neste trabalho
deve ser feita uma diferenciação entre a crença na existência objetiva dos números e a crença
na existência objetiva dos padrões estruturais que os relacionam e organizam. Esta segunda
hipótese ontológica é a que teria maior relevância para a discussão quanto à suposta realidade
dos modelos lógicos das ciências cognitivas. Isto não despreza a importância na crença em
objetos transcendentes (mesmo nos números) para certas correntes de cientistas e filósofos,
mas focaliza a crença em estruturas racionais subjacentes. O desdobramento do logicismo
referido acima, como paralelo ao nascimento das ciências cognitivas, é, na filosofia da
matemática, o que Stewart Shapiro chama de estruturalismo ante rem:

Para um estruturalista, um número natural é um lugar em um determinado padrão


infinito, na estrutura dos números naturais. Este padrão pode ser exemplificado por
muitos sistemas diferentes, mas é o mesmo padrão em cada caso. O estruturalista
ante rem considera este padrão como existente independentemente de qualquer
sistema que o exemplifique. (SHAPIRO, 2000, p. 263).

A concepção do padrão estrutural como mais relevante do que objetos que os povoam está
também presente nos trabalhos de outro filósofo da matemática, Michael Resnik, que nos diz:

A ideia filosófica subjacente aqui é que na matemática o tema principal não são os
objetos matemáticos individuais, mas, ao invés disso, as estruturas em que se
encontram dispostos. Os objetos de matemática, ou seja, as entidades que nossas
constantes e nossos quantificadores matemáticos denotam, são eles próprios átomos,
pontos sem estrutura, ou posições em estruturas. E, como tal, não têm identidade ou
distinção características fora de uma estrutura (RESNIK, 1997, p. 202).
240

Para compreendermos como o estruturalismo de Shapiro e Resnik seria uma crença realista na
existência de padrões e estruturas independentes dos objetos que as povoam, vejamos o que
diz a respeito Mark Balaguer:

A versão mais tradicional do platonismo – aquela defendida por, por exemplo, Frege
e Gödel – é uma versão do platonismo objetal. O platonismo objetal é a visão de que
o reino da matemática é um sistema de objetos matemáticos abstratos, como
números e conjuntos, e que nossas teorias matemáticas, como a teoria dos números e
a teoria dos conjuntos, descrevem estes objetos. Assim, nesta perspectiva, a sentença
“o 3 é um número primo” diz que o objeto abstrato que é o número 3 tem a
propriedade de ser primo. Mas há uma alternativa muito popular ao platonismo
objetal, que é o estruturalismo. De acordo com este ponto de vista, nossas teorias
matemáticas não são descrições de sistemas específicos de objetos abstratos, e sim
descrições de estruturas abstratas, onde uma estrutura é algo como um padrão, ou
um "modelo sem objeto" – isto é, um sistema de posições que podem ser
"preenchidas" por qualquer sistema de objetos que exibam esta dada estrutura. Uma
das motivações centrais do estruturalismo é que as "propriedades internas" dos
objetos matemáticos parecem ser matematicamente sem importância. O que é
importante matematicamente é a estrutura – isto é, as relações entre os objetos que
possuem matemáticas. (...) (A razão pela qual este ponto de vista ainda é uma versão
do platonismo é que as estruturas e as posições estão sendo tomadas aqui como
reais, objetivas e, mais importante, abstratas). (BALAGUER, 1998, p.8).

Através das afirmações de Balaguer é interessante notar como as mencionadas estruturas


possam ser tomadas como objetos abstratos, mas ainda assim reais. A abstração, desta
maneira, não seria um processo de imaginação, ou de seleção e síntese de propriedades
comuns a diversos fenômenos particulares, mas de percepção de uma realidade objetiva. As
caracterizações acima não revelam qual teria sido o caminho teórico percorrido desde o
logicismo até o estruturalismo matemático, e nem que questionamentos o complexificam nas
obras de Shapiro, Resnik e outros autores – o que uma consulta a seus escritos pode revelar.
Mas, mesmo em sua brevidade, permitem identificar que tipo de formulação pode ter
proporcionado também a ideia de uma estrutura racional subjacente à cognição, capaz de
sustentar a crença de que o modelo lógico-proposicional seria o resultado de sua descoberta
como algo inato, invariável e independente – isto é, passível de um exame objetivo. Dada esta
analogia, consideremos que, aplicado o mesmo raciocínio do estruturalismo matemático ao
modelo lógico-proposicional, os objetos a serem deslocados do primeiro plano de análise
neste modelo, em favor da estrutura mesma do pensamento, seriam os conteúdos semânticos
das representações. Isto já foi abordado de outro modo na seção 1.1.4. Mas é preciso lembrar
que outra qualidade da estrutura de pensamento, para o cognitivismo, igualmente já foi
mencionada: além de o padrão estrutural independer de que objetos envolve, ele independe
em amplo sentido do meio físico em que esteja operando. Tal é a suposição mais geral que
orienta o funcionalismo e a ideia de realizabilidade múltipla.
241

Como já foi visto com brevidade, e será mais aprofundado adiante, este pressuposto é
o principal alvo da crítica da orientação corpórea aos modelos lógico-proposicionais: a
autonomia do aspecto algorítmico e lógico da cognição em relação ao modo como se encarna
ou, antes, é produzido experiencial e corporeamente. Esta autonomia da dimensão lógico-
proposicional do pensamento (e da ação) é também a principal objeção de Lakoff e Johnson à
matriz filosófica formalista à qual atribuem influência sobre o cognitivismo, e que através
deste se teria sustentado e aprofundado, ao adquirir caráter científico. Afinal, recorde-se de
que é reclamando a importância do corpo na cognição que Johnson explicita sua suposição de
que o objetivismo tem como pressuposto que haja uma razão transcendente:

O corpo tem sido ignorado pelo objetivismo porque a ele se atribui a introdução de
elementos subjetivos alegadamente irrelevantes para a natureza objetiva do
significado. O corpo tem sido ignorado porque a razão tem sido considerada
abstrata e transcendente, isto é, desvinculada de quaisquer aspectos da
compreensão humana (JOHNSON, 1987, p. xiv – grifo meu).

Assim, considerando o que foi dito nos últimos parágrafos, a dimensão lógico-
proposicional do pensamento e da ação seria, ao mesmo tempo, independente do meio físico
no qual opera e dos conteúdos que manipula – como no estruturalismo matemático. Porém,
esta segunda característica cria dificuldades para a associação que a orientação corpórea faz
entre cognitivismo e objetivismo. Isto porque, a princípio, se a dimensão lógico-proposicional
– e, por extensão, o modelo lógico-proposicional – é independente de seu conteúdo, como
poderia estar comprometida com o que representa, isto é, com um mundo objetivo
transcendente? Como poderia ser vinculada a um mundo exterior se não através de seus
conteúdos semânticos, referidos a objetos do mundo? Ocorre que esta vinculação tem sido
relativizada sobretudo por Fodor, através de seu aproveitamento do conceito de solipsismo
metodológico, originado em Carnap (GARDNER, 1985, p. 84; CARNAP, 2003 [1928], p.
102). Referindo-se ao modelo “computacional da mente”, Fodor afirma:
242

Na medida em que nós pensarmos nos processos mentais como sendo


computacionais (portanto, como operações formais definidas em representações),
será natural considerar a mente como sendo, inter alia, uma espécie de computador.
Isto é, nós pensaremos na mente como a realização de quaisquer manipulações de
símbolos que sejam constitutivas dos processos computacionais hipotetizados.
Numa primeira aproximação, pode-se, assim, interpretar operações mentais como
diretamente análogas às de uma máquina de Turing. Existem nela, por exemplo, uma
memória de trabalho (correspondente a uma fita) e a capacidade de fazer varreduras
na memória e de alterar seu conteúdos (o que corresponde às operações de leitura e
da escrita na fita). Se queremos ampliar a metáfora a computacional, fornecendo
acesso a informações sobre o ambiente, podemos pensar no computador como tendo
acesso a “oráculos", que servem, em uma tal ocasião, para inserir as informações na
memória. Na interpretação pretendida para este modelo, esses oráculos são análogos
aos os sentidos. Em particular, eles são assumidos como sendo transdutores, sendo
que o que eles escrevem na fita é determinado unicamente pelas energias ambientais
que incidem sobre eles. (...) Não estou endossando esse modelo, mas simplesmente o
apresentando como uma extensão natural da imagem computacional da mente. O
interesse que atualmente ele desperta é que podemos usá-lo para ver como a
condição de formalidade se conecta com a reivindicação cartesiana de que o caráter
dos processos mentais é algo independente de suas causas e efeitos ambientais. O
ponto é que, enquanto estamos pensando em processos mentais como puramente
computacionais, a carga de informações ambientais em tais processos é exaurida
pelo caráter formal de tudo o que os oráculos escrevem na fita. Em particular, não
importa para tais processos se o que os oráculos escrevem é verdade, se, por
exemplo, eles realmente são transdutores que espelham fielmente o estado do
ambiente, ou meramente o resultado da operação de uma máquina de escrever
manipulada por um gênio do mal cartesiano empenhado em enganar a máquina. Eu
estou dizendo, com efeito, que a condição de formalidade, vista nesse contexto,
equivale a uma espécie de solipsismo metodológico (FODOR, 1981, p. 231).

Segundo Fodor, portanto, o modelo lógico deve ser avaliado apenas quanto à sua capacidade
transformadora, isto é, quanto à sua capacidade de manipular formalmente as informações
recebidas e fornecer produtos cognitivos como resultado. Se não importa para avaliar o
processo se as informações de entrada são verdadeiras ou não – e o mesmo valendo para os
produtos de saída –, Fodor interpreta esta condição como uma espécie de solipsismo
hipotético – metodológico – do modelo, na medida em que ele não depende da realidade
exterior para ser concebido ou utilizado, bastando para explicá-lo e avaliá-lo a consideração
de sua estrutura formal interna. Como já se destacou na seção 1.2.4, embora o nome dado ao
processo seja “representação”, este nome não se referiria à capacidade de a sequência lógica
que o constitui representar corretamente a realidade objetiva, mas à sua capacidade de
representar simbolicamente qualquer que seja o conteúdo semântico que lhe seja fornecido –
inclusive aquilo que for tido como significando a “realidade objetiva”.
De todo modo, deve ser avaliada como bastante sustentável a hipótese de que o
logicismo de Frege tenha tido como um de seus efeitos o pressuposto ontológico da estrutura
transcendente do pensamento, e que este pressuposto possa ter sido fundamental para a
constituição do modelo lógico.
243

2.2.2.3. Observações finais sobre a ontologia da cognição corpórea como crítica à ontologia
do cognitivismo

Considerando o que foi dito, podemos resumir a crítica da orientação corpórea à


orientação cognitivista, quanto aos compromissos ontológicos desta última, nos seguintes
pontos – o que, em certa medida, nos leva de volta à dupla definição de representação dada
por Lakoff: representação como relação com o mundo e como relação interna entre símbolos.
Assim, para a orientação corpórea, o cognitivismo se compromete ontologicamente com:
1) Uma concepção objetivista/subjetivista da cognição, em que o mundo do sujeito e o
mundo dos objetos são realidades exteriores e transcendentes uma à outra;
2) A existência de estruturas transcendentes que constituem a forma essencial do mundo
e do pensamento, o que permite considerar a cognição como correspondência da
linguagem do pensamento com a racionalidade estrutural da natureza.
Quanto ao segundo ponto, foi evidenciado que ele não se desenvolve tão diretamente
nos textos dos autores da cognição corpórea. Somente se identifica esta afirmação de maneira
indireta. Além do mais, como já assinalado, não se encontra tampouco nos autores
cognitivistas a crença na estrutura racional do mundo e do pensamento defendida claramente
como compromisso ontológico. Contudo, o que justifica tê-lo apresentado, anteriormente,
como elemento central da crítica corpórea ao cognitivismo – e nele se continuar insistindo –, é
que ele pode contribuir para compreender como uma sequência lógica de relações sintáticas
pode ter sido tomada como o modelo adequado do funcionamento da cognição pelas ciências
cognitivas clássicas, sendo que autores como Lakoff, Johnson e Núñez dão nítidas pistas para
esta compreensão. Trata-se de uma hipótese que aponta para uma certa naturalização do
modelo lógico, com base numa concepção da natureza como estrutura lógica, ao sugerir uma
ideia bastante relevante na avaliação do cognitivismo: a de que seus postulantes não tratariam
seus modelos como meras formas de compreensão da realidade, mas como seu fiel retrato.
Neste sentido, os autores da orientação cognitivista tomariam aquilo que aqui está sendo
chamado de modelo como a própria realidade essencial e objetiva da cognição. E o fariam
também como maneira de dispensar a necessidade de aplicar à cognição um reducionismo do
tipo neurobiológico, sendo a explicação da cognição como estrutura lógico-proposicional já
uma forma suficiente de naturalização. Por estas razões, tal hipótese é consideravelmente
importante para ser até aqui trazida e para merecer posteriores investigações mais
aprofundadas.
244

Já quanto ao primeiro ponto, o que se nota com bastante evidência é que, embora os
autores da orientação corpórea identifiquem no cognitivismo uma crença forte na realidade
objetiva, e atribuam ao modelo lógico-proposicional a pretensão de se ajustar ao mundo
exterior como representação adequada, um segmento influente de seus autores, a começar por
Fodor, recusa em parte estas conclusões.
Para prosseguir no exame destes pontos e das respectivas polêmicas serão a seguir
registradas mais três observações sobre as críticas da orientação corpórea ao que seriam os
pressupostos ontológicos cognitivistas.
A primeira é que os dois pontos acima sugeridos sobre os compromissos ontológicos
da orientação cognitivista se interligam. A hipótese para tal síntese – ainda que não
suficientemente explorada –, é de que os cientistas cognitivistas, na medida em que tomem o
mundo como constituído de objetos transcendentes, também compreendam seu objeto de
estudo – a cognição – como tendo uma existência real, objetiva e transcendente. Dito de outra
forma: assim como a cognição em geral seria um processo de representação objetiva, a ciência
e, particularmente, as ciências cognitivas clássicas também o seriam, tendo na cognição um
objeto transcendentemente estruturado. É necessário ressaltar que este pressuposto de dupla
face não estaria presente explicita ou implicitamente em todos os cientistas cognitivistas, mas
não obstante seria uma tendência predominante nesta orientação – ressalva que será
devidamente complementada na terceira observação, adiante. E é oportuno acrescentar que
esta hipótese ainda admite uma variação, coerente com algumas afirmações que vimos, de
Lakoff, Johnson e Núñez: assim como as ciências cognitivas clássicas compreenderiam seu
objeto como uma estrutura formal racional e invariável, exprimível na sua essência através de
uma sequência lógico-proposicional, mediante o mesmo tipo de estrutura essencial seriam
exprimíveis todos os objetos do mundo.
A segunda observação é que uma suposta capacidade explicativa dos modelos lógico-
proposicionais não pode ser totalmente compreendida sem se recorrer à sua relação com o
mundo exterior e/ou com uma estrutura simbólica a ele subjacente. Ainda que um destacado
autor como Fodor defenda o solipsismo metodológico no seio do cognitivismo, é importante
salientar interpretações do modelo através de sua capacidade preditiva – ou mesmo prescritiva
– como indicadoras de sua vinculação com os objetos que representa, mediante seus
resultados esperados. Vejamos, por exemplo, a análise de Terry Winograd e Fernando Flores
a seguir. Para eles, uma vez que o modelo lógico-proposicional possa ser tomado como um
processo formal de produção, seus outputs podem ser predeterminados em função das
variáveis (inputs) introduzidas. Isto é, mesmo que se considere que o que está em jogo sejam
245

as transformações internas que ocorrem no modelo lógico e representacional tal como


defendido por Fodor, estas transformações seriam importantes na medida em que aplicáveis
ao mundo das ações humanas. É o que argumentam Winograd e Flores em passagem
reproduzida, anteriormente, na p. 40 (vide). O que os autores demonstraram no fragmento
citado é que não há modo de se pensar o modelo lógico como independente do mundo. Em
algum momento, o modelo será avaliado quanto a suas capacidades preditivas. Isto pode não
provar um compromisso ontológico inequívoco do cognitivismo, mas indiretamente
correlaciona um mundo exterior de objetos (na forma de inputs) com comportamentos
adequados (na forma de outputs ou resultados esperados da relação entre homens e
computadores). Além disso, o faz lançando mão da crença em processos subjacentes
estruturados formalmente.
E a terceira observação a ser feita também leva em conta o mundo das ações humanas,
mas de outro modo: pensando as ações dos próprios pesquisadores, mais do que suas palavras
(ou suas palavras como forma de ação). Trata-se da ideia de que a atribuição de uma ontologia
estrutural e de um objetivismo/subjetivismo à orientação cognitivista, por parte da orientação
corpórea, possui um traço distintivo fundamental: os autores da orientação corpórea não se
baseiam apenas em afirmações explícitas dos autores clássicos, para formarem sua
argumentação crítica. Isto equivale a dizer que eles não se limitam a responder a alegações
formalmente apresentadas pela orientação cognitivista, e muito menos a realizar um debate
sobre a consistência lógica das teorias que criticam; pode-se supor que chamar a atenção para
elementos ontológicos muitas vezes implícitos nas teorias cognitivistas faça parte de sua
abordagem caracteristicamente corpórea e histórica, de seu modo de compreender corpórea,
contextual e experiencialmente não apenas a cognição, mas inclusive a ciência, como
atividade coletiva e situada de cientistas concretos – tema que será retomado na conclusão
deste trabalho. Ou seja, seu método da orientação corpórea inclui um posicionamento
ontológico explícito, a partir do qual seus autores proferem suas críticas. Tais críticas
consideram haver no cognitivismo compromissos ontológicos, ao menos em parte implícitos,
fundamentais para compreender seu sucesso e sua aplicação, mas também suas limitações.
Como já afirmado no capítulo 1, teria sido graças à concepção da cognição como uma
estrutura lógica transcendente, associada à criação dos modelos lógico-proposicionais, que as
ciências cognitivas teriam podido se constituir como campo interdisciplinar – e, assim, ter
unificado seu objeto, sem precisar aguardar que esta unificação decorresse de uma suposta
futura redução da cognição, em última instância, à biologia ou ainda à física. Este fato,
portanto, seria ao mesmo tempo prático – para viabilizar um empreendimento científico
246

coletivo sobre a cognição – e ontológico – por envolver uma concepção de mundo associada à
prática científica. Evidentemente, tal constatação sugere que a ontologia tem um porquê
prático. Pelos mesmos e outros motivos, a perspectiva ontológica da orientação corpórea, que
é inseparável da crítica que formula – como, em parte, já foi examinada acima –, deve ser
apreciada com o devido destaque e será mais precisamente caracterizada a seguir, conforme
forem examinadas as diversas abordagens que a constituem.
Corroborando esta afirmação, para compreender adequadamente a perspectiva
ontológica da cognição corpórea será necessário investigar mais profundamente o conceito de
enação. Isto será feito na próxima seção.
De todo modo, nas seções seguintes deste capítulo será ampliada e aguçada a análise
da crítica da cognição corpórea à representação mental e ao realismo objetivista e estrutural,
de modo inseparável daquilo que as três abordagens apresentam como resultados de suas
investigações científicas.
Contudo, não se deve perder de vista que este trabalho busca demonstrar que as três
vertentes da cognição corpórea se complementam em suas críticas ao modelo lógico-
proposicional, e que este é um dos principais aspectos de sua unidade. Assim, serão a seguir
apresentados argumentos de que elas demonstram postular a manutenção da unidade das
ciências cognitivas, ao sustentarem a importância da ampliação e do aprofundamento de
pesquisas científicas como forma de promover o desenvolvimento de uma nova concepção de
cognição humana – mas sempre com motivações de natureza ontológica e política.

2.3. A abordagem corpóreo-enativista

2.3.1. O enativismo inicial

Neste trabalho se assume que o enativismo nasceu com a publicação do livro The
embodied mind: cognitive science and human experience, em 1991, por Francisco Varela,
Evan Thompson e Eleanor Rosch, em grande parte como resultado de pesquisas realizadas no
CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), em Paris, França. Embora não se possa
afirmar que os conceitos de enação e enativismo tenham aparecido pela primeira vez neste
livro – a rigor, eles surgiram três anos antes, na obra precursora de Varela Cognitive Science:
a cartography of current ideas (VARELA,1988) –, é nele que tais conceitos foram
desenvolvidos mais plenamente.
Na seção 2.1 já foram abordados alguns pontos importantes do enativismo, assim
247

como a importância de Varela na criação da orientação corpórea das ciências cognitivas.


Desde aquela seção introdutória, se deixou claro que o pioneirismo de Varela se deve,
especialmente, ao modo como sintetizou diversas tendências críticas do mecanicismo que se
manifestaram ao longo do século 20. Estas tendências, em geral, nasceram de autores que se
dedicaram ao fenômeno da vida. E foi com foco principal na relação entre vida e cognição,
que surgiu a abordagem corpóreo-enativista, enfatizando fortemente a noção de experiência
como codeterminação entre o ser humano individual e o mundo natural e social.
Já foi afirmado aqui, também, que o enativismo compreende a cognição como um
processo vital, que se inscreve na mesma dinâmica de acoplamento entre o ser individual e o
ambiente que a vida e, portanto, é um processo de autotransformação, de autodeterminação.
Evidentemente, deste modo a cognição não pode ser vista como se resumindo à
transformação meramente simbólica, efetivada abstratamente no interior de processos
computacionais, e muito menos como algo independente ou transcendente aos sistemas
autônomos individuais. A que tipo de transformação a cognição corresponde, para o
enativismo, se tentará esclarecer nas próximas linhas.
Podemos dizer que uma das principais características da abordagem corpóreo-
enativista está naquilo que se chama de entre-deux, no livro The embodied mind. Como já foi
ressaltado anteriormente, trata-se de um “caminho do meio” entre vários elementos
dicotômicos da tradição cognitivista e mecanicista de compreensão do ser humano: entre
percepção e ação, entre sujeito e objeto, entre cognição e vida. Sendo assim, devemos
salientar que o enativismo tem a proposta ontológica mais radical e elaborada dentre as três
abordagens da cognição corpórea aqui investigadas. É o que se verá a seguir, com ênfase nas
bases científicas das afirmações de Varela, Thompson e Rosch.
A análise desta seção parte da definição que os autores do livro citado dão da sua
abordagem, na forma das seguintes perguntas e respostas:

Pergunta 1: O que é a cognição?


Resposta: Enação: uma história de acoplamento estrutural que produz um mundo.
Pergunta 2: Como funciona?
Resposta: Por meio de uma rede consistindo de níveis múltiplos de sub-redes
sensório-motoras interconectadas.
Pergunta 3: Como sei quando um sistema cognitivo está funcionando
adequadamente?
Resposta: Quando ele passa a ser parte de um mundo continuado existente (como os
jovens de todas as espécies fazem) ou molda um novo mundo (como acontece na
história da evolução) (VARELA et al, 1991, p. 206).

Estas mesmas perguntas são feitas no livro – escrito, em parte, na forma de uma
história das ciências cognitivas – para definir o cognitivismo (p. 42) e o conexionismo (p. 99).
248

Mas é apenas no caso do enativismo que a definição de cognição recebe um outro nome:
enação. Antes de dirigirmos nossa atenção este fato, contudo, é preciso observar que os
autores consideraram apropriado repetir as mesmas perguntas para as três correntes que
examinaram e que, mesmo no caso do enativismo, acharam cabível considerar que a cognição
pode ser descrita como um sistema, e que ela, assim, pode ser avaliada quanto ao seu
adequado funcionamento. O primeiro ponto não é de difícil compreensão. Como já foi visto, a
cognição é entendida no enativismo como parte de um sistema autônomo. Assim, seria um
subsistema de mesma natureza – como teremos ocasião de explorar – que a do sistema vivo
de que ela faz parte. Porém, em que sentido caberia perguntar se a enação funciona
adequadamente? A hipótese que se defende neste trabalho, considerando este aspecto, é a de
que o enativismo acredita que o fato de a cognição ser compreendida como enação, permite
uma explicação mais adequada do processo cognitivo como acoplamento do indivíduo a um
mundo a ele vinculado. Quanto ao novo nome que a cognição recebe no enativismo, isto se
justifica pela caracterização – inclusive ontológica – radicalmente diferente que ela merece
nesta abordagem. O que fica implícito neste batismo é a ideia de que a cognição, para o
enativismo, é algo profundamente diverso daquilo que é para o cognitivismo.
Para compreendermos como se dá esta diferença, partiremos da análise que Varela et
al fazem da cognição como solução de problemas. Como foi visto, a caracterização da
cognição como solução de problemas foi marcante no cognitivismo, principalmente devido à
contribuição de Simon e Newell – isto é, graças ao fato de ser identificada ao funcionamento
de computadores eletrônicos. Mas devemos, exatamente, esclarecer a que tipo de problemas –
e soluções – nos referimos. Ou, antes, em como o mundo e o ser humano devem ser
imaginados quando para que se considera a cognição como solução de problemas. O que o
livro que estudamos salienta é que
249

A suposição tácita por detrás dos diferentes tipos de realismo cognitivo


(cognitivismo, emergência e sociedades da mente86) é que o mundo pode ser
dividido em regiões discretas de elementos e tarefas87. A cognição consiste na
resolução de problemas que deve, para ser bem sucedida, respeitar os elementos, as
propriedades e as relações dessas regiões predeterminadas.
Essa abordagem da cognição como resolução de problemas funciona, até certo
ponto, para domínios de tarefa nos quais é relativamente fácil especificar todos os
estados possíveis. Considere, por exemplo, o jogo de xadrez. É relativamente fácil
definir os constituintes do “espaço do xadrez”: existem posições no tabuleiro, regras
para movimentos, alternância de jogadores, e assim por diante. Os limites desse
espaço são claramente definidos – de fato, é um mundo quase cristalino. Não é
surpreendente então, que o jogo de xadrez por computador seja uma arte bem-
desenvolvida (VARELA et al, 1991, p. 147).

Desta forma, apenas domínios constituídos de elementos com quantidade e qualidade


previsíveis e determinadas se prestam a ser tratados como objetos de um processo cognitivo
que não realiza nada mais do que resolução de problemas. Mas se podem conceber objetos de
cognição cujas partes não sejam predetermináveis? Ou, ainda: caso seja impossível tal
predeterminação, ela pode ser circunscrita apenas ao objeto, ou haveria outros aspectos da
cognição afetados por ela?
Para o enativismo original, a abordagem de resolução de problemas tem sido menos
produtiva para domínios não divisíveis discretamente. Varela e coautores dão como exemplo
de um caso no qual a cognição não pode ser tratada como mera solução de problemas – em
função de não se aplicar a um domínio plenamente determinável a priori –, aquele em que um
robô seja encarregado de dirigir um automóvel em uma cidade. Para eles, mesmo que alguns
elementos envolvidos nessa tarefa possam ser quantificados e qualificados de antemão –
como “rodas e janelas, luzes vermelhas e outros carros” (Ibid., p. ) –, alertam para o fato de
que, no caso imaginado de cognição artificial:

86
Os autores aqui se referem a outras abordagens da cognição. Além do cognitivismo, mencionam a emergência,
como sendo característica do conexionismo, e as sociedades da mente, que é uma abordagem de Marvin Minsky.
87
O tema da divisão precisa do mundo foi abordado na seção anterior, quando se tratou da crítica a esta
suposição, feita por Mark Johnson.
250

O robô deve prestar atenção aos pedestres ou não? Ele deve levar em consideração
as condições do tempo? Ou deve levar em consideração o país no qual a cidade está
localizada e seus hábitos particulares de direção? Esta lista de perguntas e ilimitada.
O mundo da direção não termina em determinado ponto; ele tem a estrutura de
níveis regressivos de detalhamento que se misturam a um background não
específico. De fato, movimentos direcionados bem sucedidos, tais como dirigir,
dependem de habilidades motoras adquiridas e do continuo uso do senso comum o
conhecimento de background.
Esse conhecimento de senso comum é difícil, senão impossível, de ser
transformado em um conhecimento proposicional explícito – “saber que”, no
jargão dos filósofos –, considerando-se que ele é amplamente uma questão de
prontidão para agir – ou ‘saber como’ – baseado no acúmulo de experiência a partir
de um grande número de casos. (...) Além disso, quando ampliamos os domínios de
tarefas de micromundos artificiais para o mundo como um todo, não fica claro se
podemos sequer especificar o que deve contar como objeto independente do
tipo de ação que está sendo realizada. A individuação de objetos, propriedades e
eventos pode variar de acordo com a tarefa envolvida (Ibid., p. 147-148 – grifos
em negrito meus).

As frases grifadas neste trecho chamam a atenção para dois problemas – que
decorrem justamente de se considerar a cognição mera resolução de problemas. O primeiro
deles diz respeito à irredutibilidade da realidade cognitiva a conhecimento proposicional – tal
como aquele que se supunha possível quando da constituição do modelo lógico-proposicional
da cognição. Ou seja, o que Varela et al ressaltam é que há situações e significados que
escapam à formalização proposicional necessária à sua representação puramente simbólica. O
segundo problema é mais claramente ontológico: não só se apresenta a dificuldade de redução
da realidade a uma estrutura lógico-proposicional, tal como se dá no primeiro problema, como
a individuação em si mesma – na forma da predefinição de objetos constantes e previamente
independentes das experiências concretas – é problemática, se a cognição é considerada como
“saber como”. Deve ser assinalado que a segunda limitação seria suficiente para impedir
aquilo que se torna inviável quando se observa a primeira: se não for possível definir objetos
finitos e constantes para a cognição, também não é possível traduzi-los na forma de
conhecimento proposicional, já que este exige qualificações precisas do que representa. Por
este motivo a crítica ontológica do enativismo ao cognitivismo é tão importante, o que
corrobora seu papel na continuidade crítica que a orientação corpórea propõe para as ciências
cognitivas. Dito de outro modo: para que as ciências cognitivas, a partir da orientação
corpórea, possam ainda se manter coesas, deverão enfrentar, juntas, o problema ontológico
que inviabiliza a mais plena aplicação do modelo lógico-proposicional – modelo científico
que havia, de acordo com a hipótese defendida por este trabalho, assegurado a convergência e
a unidade das ciências cognitivas em seu estágio inicial. O enfrentamento deste problema
ontológico se dá pela definição do que pode ser o realismo cognitivo – segundo o livro de
Varela e seus colaboradores que está em exame nesta seção. O realismo cognitivo pode ser
251

aquele que postula a redutibilidade dos objetos do conhecimento a uma sequência de


transformações simbólicas, ou, por outro lado, aquele que aponta as limitações desta
concepção, como é o caso da cognição corpórea. E o enativismo de Varela estabelece sua
rejeição ao modelo lógico-proposicional da cognição humana tanto ao apontar dificuldades
decorrentes do uso do programa de computador como imagem que fundamentou a proposta
cognitivista, como ao discutir a inviabilidade do espelhamento fiel de uma suposta realidade
objetiva por meio desta imagem abstrata e formal. Porém, além de promover a crítica à crença
na redutibilidade proposicional do conhecimento, e à tese da cognição como solução de
problemas ao estilo de Simon e Newell, o enativismo defende, com o conceito de enação, uma
nova concepção de realismo cognitivo. A noção de enação corresponde, também, ao que os
autores aqui enfocados chamam de cognição criativa, ao ir além da crítica à tentativa
representacionista:

Se o nosso mundo vivido não tem fronteiras predefinidas, então parece irreal
esperarmos captar a compreensão do senso comum sob a forma de uma
representação – sendo a representação compreendida, em seu sentido forte, como a
re-presentação de um mundo previamente dado. (...) Devemos inverter a atitude
representacionista e tratar o conhecimento dependente do contexto não como um
artefato residual que pode ser progressivamente eliminado pela descoberta de regras
mais sofisticadas, mas como, na verdade, a própria essência da cognição criativa
(Ibid., p. 148).

É fundamental enfatizar esta noção de cognição criativa, porque ela supõe o realismo
cognitivo não como a crença na possibilidade de registro de um mundo dado de antemão, mas
como criação de uma realidade na qual são inseparáveis sujeito e objeto, indivíduo e
ambiente, ação e percepção. Realidade, para a orientação corpórea – e especialmente para a
abordagem corpóreo-enativista –, não é algo exterior ao sujeito, mas aquilo que emerge da sua
interação com o mundo.
Varela, Thompson e Rosch acolhem os argumentos de Mark Johnson em The body in
the mind, de 1987 – que, em parte, já foram examinados na seção anterior – de que o realismo
cognitivo tradicional compartilha pressupostos com a filosofia analítica. O fazem, entre outros
motivos, para defender que esta corrente filosófica se opõe à inspiração hermenêutica e
fenomenológica que – como vimos também na seção 2.2 – influenciou o nascimento da
cognição corpórea. E esta oposição teria seu centro no fato de que a filosofia analítica, ao
contrário da hermenêutica de autores como Heidegger e Gadamer, procura eliminar a
psicologia popular e o senso comum do realismo cognitivo. Neste sentido, a filosofia analítica
seria uma das forças intelectuais que resistem à ideia de cognição como compreensão
corpórea e como criação. Referindo-se à recusa que Mark Johnson, inspirado na
252

fenomenologia e na hermenêutica, faz do objetivismo, afirmam Varela et al:

O insight central desta orientação não-objetivista é a ideia de que o conhecimento é


resultado de uma interpretação contínua que emerge de nossas capacidades de
compreensão. Essas capacidades estão enraizadas nas estruturas de nossa
corporeidade biológica, mas são vividas e experienciadas em um domínio de ação
consensual e histórica. Elas nos possibilitam compreender nosso mundo – ou, em
uma linguagem mais fenomenológica –, elas são as estruturas por meio das quais
existimos, no sentido de “termos um mundo” (Ibid., p. 149-150).

Mas como o enativismo sustenta cientificamente esta argumentação ontológica?


Examinaremos alguns exemplos de resultados de investigação científica que, segundo o
primeiro enativismo, corroboram sua crítica ao objetivismo e reforçam a noção de cognição
criativa. A alusão a tais resultados se torna mais compreensível a partir da seguinte afirmação
dos autores do enativismo:

O desafio colocado para as ciências cognitivas é questionar uma das pressuposições


mais enraizadas de nossa herança científica, que é a noção de que o mundo é
independente daquele que conhece. Se somos forçados a admitir que a cognição não
pode ser adequadamente compreendida sem o senso comum, e que este não é senão
nossa história corpórea e social, então a inevitável conclusão é de que aquela que
conhece e aquilo que é conhecido (...) se relacionam através da mútua especificação
ou corrigem dependente (Ibid., p. 150).

Percebe-se nesta passagem que os autores reconhecem a importância, para as afirmações


científicas, de pressupostos metafísicos dos cientistas sobre a realidade. E, como vem sendo
afirmado neste trabalho, esta convicção – sobre a inevitabilidade de posições metafísicas
assumidas por cientistas, incluindo eles mesmos – é uma das principais características dos
autores de orientação corpórea.
O primeiro dos exemplos de teorias científicas apresentadas por Varela, Thompson e
Rosch de que trataremos é aquele sobre a natureza ontológica das cores88. Consiste em um
caso no qual é explorado o caráter ontológico da percepção. Neste sentido, contribui para
reforçar a ideia de que, para a orientação corpórea, aquilo que durante muito tempo na ciência
e na filosofia ocidentais foi tratado como um tema epistemológico por excelência possui,
pincipalmente, um sentido ontológico. Segundo os autores:

Discutiremos primeiro como as próprias cores aparecem – o que poderia ser


chamado de estrutura da aparência das cores. Discutiremos depois as cores como
atributos percebidos das coisas no mundo. Finalmente, iremos considerar as cores
como uma categoria experiencial. Gostaríamos de enfatizar que esses estágios não
são encontrados separadamente na experiência; ela é moldada simultaneamente
pelos três. Entretanto, as teorias sobre as cores tendem a ter como ponto de partida
um ou outro desses três aspectos. Assim, nossos estágios, embora expositivos, não
são arbitrários (Ibid., p. 157).

88
Para aprofundamentos desta abordagem, v. THOMPSON, E. “Colour vision: a study in cognitive science and
the philosophy of perception”, 1995. Londres: Routledge.
253

A respeito da aparência das cores, Varela et al afirmam, em primeiro lugar, que todas
elas podem ser descritas a partir da combinação de seis cores básicas: vermelho, verde,
amarelo, azul, preto e branco, e que elas possuem três dimensões: matiz, saturação e brilho. O
matiz corresponde ao grau de vermelho, verde, amarelo ou azul de uma cor. A saturação
decorre da força do matiz. E o brilho consiste na visibilidade da cor. Mas eles acrescentam,
em segundo lugar, que estes não são atributos das cores “em si”. Em vez disso, defendem que
essas qualidades estão vinculadas à fisiologia da percepção das cores, ou como elas são
geradas no nosso corpo, mediante o que chamam de teoria do processo oponente, como um
processo de formação da percepção cromática constituído por diferenças de sinais de tecidos
receptores:

Na retina existem três mosaicos diferentes, mas entremesclados, de células cone,


cujas curvas de absorção de fotopigmentos sobrepostos têm seu pico em torno de
560, 530 e 440 nanômetros, respectivamente. Esses três mosaicos de cones
constituem os chamados receptores de onda longa (L), onda média (M) e onda curta
(C). Os processos excitatórios e inibitórios nas células pós-receptoras possibilitam
que os sinais desses receptores sejam comparados por acréscimo e/ou subtração. No
modelo do processo oponente, a adição dos sinais dos três receptores gera o canal
acromático (brilho). A diferença entre os sinais dos receptores L e M gera o canal
vermelho-verde, e a diferença entre a soma dos sinais de receptores L e M e os sinais
de receptores C gera o canal amarelo-azul. Esses dois canais cromáticos são
oponentes: um aumento no vermelho é sempre obtido às custas do verde e vice-
versa; um aumento no amarelo é sempre obtido às custas do azul e vice-versa (Ibid.,
p. 159).

De acordo com esta teoria, a geração da aparência das cores depende de como se combinam
as diferenças entre os receptores da retina. Ou seja, os atributos das cores teriam uma
dimensão fisiológica fundamental. Mas para compreendermos a implicação deste aspecto para
as teses do enativismo devemos prosseguir acompanhando sua argumentação.
O próximo ponto abordado no livro corresponde à importância das características dos
próprios objetos para a percepção das cores. Varela e coautores afirmam (Ibid., p. ) que,
embora seja corrente a teoria de que as cores decorrem da reflexão de determinadas faixas de
frequência de luz na superfície de objetos dotados de estruturas físico-químicas específicas,
não há uma relação direta entre os comprimentos de ondas luminosas e a percepção
cromática. Isto porque esta suposição somente se sustentaria se – de acordo com os autores –
as áreas que refletem determinadas frequências pudessem ser vistas isoladamente. Em vez
disso, dizem eles, há interferência – ou “indução cromática” – entre as diversas áreas
refletoras, de tal modo que uma cena complexa não mantém a independência da percepção
singular de cada área. Isto se dá porque há “comparação cooperativa entre os múltiplos
conjuntos de neurônios do cérebro, que atribuem cores a objetos de acordo com os estado
254

globais e emergentes que eles alcançam dada uma imagem retiniana” (Ibid., p.). Para ilustrar
esta afirmação, Varela et al descrevem o seguinte experimento:

Colocamos dois projetores de slides idênticos com os focos superpostos sobre uma
tela comum, e em cada um deles inserimos cópias idênticas de um slide contendo
um tabuleiro de damas em cinza, branco e preto. Os dois slides devem ter suas
projeções superpostas, estando perfeitamente alinhadas. Em um dos projetores
colocamos também um filtro vermelho, de forma que o padrão é o resultado de uma
variada gama de cor-de-rosa de diferentes saturações. Vamos agora gerar um dos
slides em 90 graus. O resultado é uma imagem inteiramente multicolorida, contendo
pequenos quadrados amarelos, azuis e verdes, bem como vermelhos e rosas.
O efeito desse experimento é bastante dramático: surge uma imagem multicolorida
onde a física nos levaria a esperar somente diversas sombras de rosa. Esse efeito
cromático pode ser descrito pelas proporções branco a branco e vermelho a
vermelho através dos lados dos pequenos quadrados efetuadas pela rotação de um
dos slides. Como isso acontece? (Ibid., p. ).

Os autores prosseguem então articulando as duas dimensões da formação das cores na


percepção até agora discutidas: a fisiológica (“subjetiva”) e a física (“objetiva”). Para tal,
explicam que os receptores C, M e L, anteriormente referidos, não são iguais entre si nem
homogêneos em suas superfícies. E que esta condição gera desvios na recepção combinada
dos sinais que se tornam “a diferença que faz diferença”, sendo também que nos limites de
tais desvios “uma cor uniforme é percebida” (Ibid., p.). Além disso, Varela et al ressaltam que
as cores são percebidas juntamente com outros atributos dos objetos, como forma, tamanho e
movimento, e não escapam tanto das relações intermodais – da visão com a audição, por
exemplo – quanto do impacto das memórias cognitivas. Isto porque “percepção e ação,
sensório e motor, estão ligados como padrões sucessivamente emergentes e mutuamente
seletivos” (Ibid.). Em outras palavras,

A cor, como um atributo, está intimamente envolvida com outros atributos de nosso
mundo percebido. Nossa análise tem mostrado que não conseguiremos explicar a cor
se buscamos localizá-la em um mundo independente de nossas capacidades
perceptivas. Em vez disso, devemos localizar as cores no mundo percebido ou
experiencial, que é produto de nossa história ou acoplamento estrutural (Ibid., p. ).

Mas o que seria tal “mundo experiencial”? Para buscar esclarecer este ponto, devemos levar
em consideração que, em seguida, Varela, Thompson e Rosch ainda abordam duas questões
para melhor esclarecer sua compreensão enativa das cores: primeiramente, enfrentam uma
objeção possível à sua teoria até aqui defendida; em segundo lugar, tratam da cor como
categoria experiencial e cultural.
A objeção a que se referem consiste numa abordagem das cores típica do modelo de
processamento de informações. Segundo essa abordagem, a função dos processos neuronais
na percepção cromática seria compensar as mudanças de iluminação e estabilizar as
255

características dos objetos. Por exemplo, a proporção de cada comprimento de onda de luz
refletida pela superfície de um objeto redundaria numa propriedade estável do objeto, graças à
resolução do problema de processamento de informações por parte dos órgãos da visão e do
cérebro. A resolução proporcionaria a estabilização necessária. Dizem os autores:

Assim, pareceria que tudo o que o sistema visual tem a fazer é uma amostragem da
cena com seus três canais de cores, e desse modo reconstruir os reflexos de
superfície da atividade desses canais. Com base nesses modelos, diversos cientistas
da visão, bem como alguns filósofos, argumentaram não só que a função da visão de
cores é a recuperação do reflexo de superfície, mas também que a própria cor é
exatamente uma propriedade do reflexo de superfície (Ibid., p.).

Contudo, eles afirmam que esta hipótese suscita outros problemas – decorrentes, mais uma
vez, de se propor a conceber a cognição, como já vimos anteriormente, como um mero
processo resolução de problemas. São eles:
1) Ainda que a cor tenha como origem parcial um reflexo da superfície, não se pode
reduzi-la às propriedades decorrentes unicamente dos reflexos dado que as cores –
como foi proposto no modelo do processo oponente – mantêm relações entre si a partir
das dimensões matiz, saturação e brilho, produzidas nos órgãos da visão. Em outras
palavras, “as propriedades que especificam o que são as cores simplesmente não têm
contrapartidas físicas, não experienciais” (Ibid., p.). Dito ainda de outra maneira, as
cores não podem ser consideradas como resultados das propriedades dos objetos,
apenas, nem como efeitos dos órgãos da visão, exclusivamente. Ao contrário, o
aparecimento de cores depende de uma dinâmica complexa que não pode ser
explicada satisfatoriamente pelo modelo de processamento de informações, já que este
supõe o input de informações inequívocas já disponíveis no ambiente, para que seja
gerado o output da sensação de cor graças à operação de um sistema cognitivo linear;
2) A cor não é apenas atributo das superfícies, mas também de volumes, como o céu –
que não pode ser considerado uma mera superfície refletora, mas também provoca a
sensação cromática;
3) Ademais, as cores se manifestam também em sonhos e lembranças dos seres humanos,
ocasiões em que, evidentemente, não emanam de superfícies objetivas;
4) A teoria representacional das cores se inspira na “tentativa da engenharia de projetar
um sistema capaz de detectar objetos descontando a variação da iluminação e
recuperando os reflexos invariáveis em cena” (Ibid., p.). Para Varela et al, mesmo
considerando a importância desta pesquisa tecnológica para a compreensão dos
princípios abstratos da visão, ela não apresenta elementos suficientes para ser um bom
256

modelo para a visão cromática humana e para seus propósitos biológicos e ecológicos,
já que, para estes últimos, é de grande importância a variação proporcionada pela
iluminação, as condições climáticas e a hora do dia, tanto quanto as propriedades que
seriam supostamente constantes, como o reflexo das superfícies;
5) Mas talvez o principal problema – e, também segundo os autores, “oculto e mais
profundo” (Ibid.) – da teoria objetivista das cores seja a dificuldade de se
especificarem os limites, textura, orientação, de uma superfície, de maneira
independente de um observador. Mesmo que o reflexo, num ponto da cena, possa ser
definido em termos de variáveis físicas, o que conta como superfície depende da
referência a algum observador. Citando Gouras e Zrenner, os autores ressaltam que
não é possível separar o que é objeto percebido daquilo que é sua cor, já que o próprio
contraste de cor forma o objeto (Ibid., p. ). Isto, evidentemente, revelaria uma petição
de princípio na tentativa de se definir a cor a partir do objeto. Segundo eles, também:

O sistema visual nunca é simplesmente presenteado com objetos predeterminados.


Ao contrário, a predeterminação do que é e onde está um objeto, bem como de seus
limites de superfície, sua textura e sua orientação relativa no espaço – e,
consequentemente, o contexto geral da cor como um atributo percebido – é um
processo complexo que o sistema visual deve continuamente alcançar. Dar conta
desse processo, como vimos em nossa discussão da arquitetura em mosaico da visão,
resulta de uma cooperação complexa envolvendo o diálogo ativo entre todas as
modalidades visuais. De fato, a visão de cores está efetivamente envolvida num
processo cooperativo, pelo qual as cenas visuais tornam-se segmentadas em um
conjunto de superfícies (Ibid.)

Por fim, Varela, Thompson e Rosch ainda se dedicam à questão da cor como
categoria, também com base em pesquisas científicas. Este seria o aspecto mais propriamente
cognitivo das cores, uma vez que não se limita ao âmbito da percepção, avançando sobre os
significados das cores para a ação humana – e sobre como as cores são um produto da
cognição criativa.
As pesquisas a que os autores se referem têm como ponto de partida aquela que foi
realizada por Brent Berlin e Paul Kay, e publicada em 1969 no livro Basic colour terms: Their
universality and evolution (BERLIN & KAY, 1969) – brevemente mencionada na seção
anterior, a partir de uma citação de George Lakoff. O que há de mais relevante nesta primeira
pesquisa sobre cores citada no livro que criou o enativismo é que ela, ao investigar noventa
línguas, concluiu que há, nelas, um máximo de 11 categorias básicas de cores: vermelho,
verde, azul, amarelo, preto, branco, cinza, laranja, roxo, marrom e rosa. Mas o que significa o
fato de essas categorias básicas existirem? Essa ideia não contrariaria a cognição corpórea ao
supor categorias a priori? Segundo os autores do livro, ao contrário: as categorias são o
257

resultado da convergência de fatores linguísticos, corpóreos e fisiológicos, e o que as


pesquisas por eles referidas concluem é que os aspectos cognitivos e os linguísticos da
categorização “estão relacionados a fatores subjacentes (provavelmente fisiológicos). Assim,
as categorias de cores parecem ser universais, humanas e próprias da espécie” (Ibid., p. 180).
Mas, além disso, os estudos apresentados

mostram que a categorização das cores como um todo depende de uma hierarquia
imbricada de processos perceptivos e cognitivos, alguns específicos da espécie,
outros da cultura. Eles também servem para ilustrar o fato de que as categorias de
cores não devem ser encontradas em algum mundo predeterminado, independente
de nossas capacidades perceptivas e cognitivas. [As categorias das cores] são
experienciais, consensuais e corpóreas: elas dependem de nossa história biológica e
cultural de acoplamento estrutural (Ibid., p. 185- grifo meu)

As cores são, conforme a concepção enativista, um fenômeno experiencial, já que não


existem fora das experiências concretas. Na verdade, a abordagem da aparição das cores por
Varela, Thompson e Rosch serviu principalmente para salientar uma característica que eles
atribuem aos fenômenos em geral: todos são experienciais, corpóreos e dependentes da
história biológica e cultural dos indivíduos, que é compreendida como uma história de
acoplamento estrutural entre estes e mundo. Esta noção vai se tornando mais clara à medida
que, no livro em exame, os autores vão avançando na definição da cognição como enação, e
na definição desta como ação perceptivamente orientada – a qual, segundo eles, é
possibilitada por estruturas cognitivas que emergem dos padrões sensório-motores
recorrentes.
Para caracterizar a enação, eles partem da crítica aos dois extremos epistemológicos
que, como foi visto na seção 2.2, são alvos constantes das objeções da cognição corpórea:

1) O objetivismo, que Varela et al chamam de “posição da galinha”, apontada por eles


como sendo mais “razoável” para o senso comum: “ O mundo externo tem
propriedades predeterminadas. Elas são anteriores à imagem moldada no sistema
cognitivo, cuja tarefa é recuperá-las adequadamente – seja por meio de símbolos ou
estados subsimbólicos globais” (Ibid., p. 186);
2) O idealismo, que os autores denominam de “posição do ovo”: “O sistema cognitivo
projeta seu próprio mundo, e a realidade aparente desse mundo é meramente o reflexo
das leis internas do sistema” (Ibid.).
Em seguida, eles argumentam que sua abordagem das cores sugere um “caminho do meio”
entre estes dois extremos. Consideram que os estudos científicos por eles comentados
demonstram que as cores não estão “lá fora”, nem tampouco “aqui dentro”: “as cores, como
258

um estudo de caso, possibilitam-nos observar o fato óbvio de que a galinha e o ovo, o mundo
e a pessoa que o percebe, especificam-se mutuamente” (Ibid.). E prosseguem afirmando que
ambos os extremos – o objetivismo e o idealismo – têm a representação, que eles procuram
evitar, como noção central: “no primeiro caso, ela é utilizada para recuperar o que é externo;
no segundo, para projetar o que é interno. Nossa intenção é desviar inteiramente dessa
geografia lógica do interno versus externo, abordando a cognição não como recuperação ou
projeção, mas como ação corpórea” (Ibid., p. 190 – grifo meu).
A esta altura encontramos aquele que talvez seja o conceito mais importante para que
se compreenda a ideia de enação, como crítica à representação em geral e ao cognitivismo: o
de ação corpórea. A cognição, para a orientação corpórea é, antes de tudo, uma forma de
ação, uma atividade – propriamente uma ação criativa em que o indivíduo se transforma, isto
é, se autoproduz, transformando e produzindo também o seu mundo. Neste sentido, trata-se de
uma atividade ligada à sobrevivência dos organismos que a realizam, e consiste também em
uma característica dos seres vivos que com eles evolui.
Assim, a percepção também é entendida pelo enativismo como ação, já que é parte da
ação cognitiva. Porém, nesta abordagem a percepção não é tratada como limitada a uma etapa
cognitiva, ou como uma função de captação de informações no ambiente – que são maneiras
de entendê-la próprias da tradição cognitivista. Como já foi mencionado na seção 2.1, quando
da referência à influência direta de Merleau-Ponty – e indireta de Kurt Goldstein e Viktor Von
Weizsäcker –, a percepção para o enativismo orienta a ação e é por ela influenciada, o que
corresponde a ser uma forma de ação. De acordo com Varela, Thompson e Rosch,

O ponto de partida da abordagem enativista é o estudo de como o observador pode


orientar suas ações em sua situação local. Considerando-se que essas situações
locais mudam constantemente como resultado da atividade do observador, o ponto
de referência da percepção não é mais um mundo predeterminado independente do
observador, mas sua estrutura sensório-motora (a forma pela qual o sistema nervoso
une as superfícies sensorial e motora). Essa estrutura (...) não especifica nenhum
mundo predeterminado, mas o modo como o observador pode agir e ser modulado
por eventos ambientais. Assim, a preocupação geral de uma abordagem enativista da
percepção não é determinar como um mundo independente do observador pode ser
recuperado; é, em vez disso, determinar os princípios comuns ou ligações regradas
entre os sistemas sensorial e motor que explicam como a ação pode ser
perceptivamente orientada em um mundo dependente do observador (Ibid., p. )

Os autores dão alguns exemplos de resultados de pesquisas científicas que sugerem


ser a percepção em animais uma forma de orientação da ação – ou, antes, uma atividade que,
em última instância é inseparável desta. Um deles já foi apresentado na introdução deste
trabalho – o experimento de Bach y Rita de projeção de imagens na pele de pessoas cegas,
que indica a importância dos movimentos orientados de todo o corpo, para a formação da
259

percepção útil. Os outros exemplos são:


1) O experimento de Richard Held e Alan Hein (HELD & HEIN, 1963), em que vinte
filhotes de gatos foram submetidos, desde o nascimento, às seguintes condições
(Figura 6): aos pares foram atrelados uns aos outros de modo que um gatinho (A) se
movimentava por seu próprio esforço, e puxava o outro (P), que era movido dentro de
um carrinho sem nenhuma intervenção de seu sistema motor; ambos eram submetidos
aos mesmos estímulos visuais; após semanas, quando soltos, os filhotes que se
moveram por si tiveram comportamento normal, enquanto que os por eles foram
movimentados se comportaram como se não enxergassem. Varela et al interpretam
este resultado como sustentando a ideia de que a visão não resulta da mera extração de
aspectos dos objetos externos, mas depende da orientação decorrente da ação sensório-
motora.

Figura 6. Fonte: HELD & HEIN, 1963.

2) A pesquisa de Walter Freeman sobre o olfato de coelhos (FREEMAN, 1975), na qual


Freeman e colegas aplicaram perspectiva dinâmica para explicar o processo olfativo
dos animais, através de medições de eletroencefalograma (EEG). A conclusão de
Freeman é de que os padrões encontrados nas medições, quando das diferentes
260

percepções olfativas concretas, não são representações de odores como elementos


exteriores fixos, mas exclusivos para a história de cada animal, produzidos em função
de suas experiências passadas89.

Varela et al ainda mencionam, para defender a cognição como enação, as pesquisas


de Rosch que levaram à noção de categorização prototípica – já referida numa citação de
Lakoff na seção 2.1. Eleanor Rosch, propôs, juntamente com outros cientistas, que as
categorias e os conceitos dependem de nossas experiências corpóreas e de nossa imaginação
e, portanto, não são obtidas graças a uma suposta estrutura conceitual abstrata, como
advogaria o modelo lógico da cognição. Para Rosch, há um nível básico de categorias que
nasce de nossas interações sensório-motoras com os objetos. Assim, uma categoria como
“cadeira” é prototípica por denominar uma classe de objetos em relação à qual temos ações
motoras semelhantes, o que permite a imaginação de sua forma. De uma categoria formada
por imaginação corpórea, como a de “cadeira”, decorrem outras mais gerais, como “móveis”,
ou mais particulares, como “cadeira de balanço”. Deste modo, todas as categorias nascem, de
maneira direta ou indireta, de experiências motoras.
Segundo os autores do enativismo, George Lakoff também contribuiu para a
influência que tiveram da noção de categorização corpórea, através de seu livro Women, fire,
and dangerous things, de 1987 – que será novamente mencionado na seção 2.4.1. Além disso,
eles também apontam a importância para o enativismo da noção de esquema de imagem,
desenvolvida na obra de Lakoff e Mark Johnson, e que será um dos objetos de investigação da
mesma seção acima referida.
Um dos desdobramentos do primeiro enativismo é o trabalho do próprio Varela que
ele chamou de neurofenomenologia – que ilustra os desafios que podem enfrentar as ciências
cognitivas quando se propõem a ultrapassar os limites do objetivismo. A neurofenomenologia
busca para a cognição, como forma de superar as insuficiências que Varela atribui à
abordagem em terceira pessoa dos cientistas cognitivos tradicionais (fundamentalmente
psicólogos e neurocientistas), um enfoque da experiência em que seja levada em conta, de
uma forma inédita, a perspectiva de quem a vive. Juntamente com Antoine Lutz, Thompson
assim explica a neurofenomenologia como nova abordagem:

89
Para maiores informações a respeito desta pesquisa, v. seu desdobramento em FREEMAN & SKARDA, 1985,
e em GIBBS, 2005.
261

Em um nível metodológico, a abordagem geral consiste em (i) obter dados mais


ricos em primeira pessoa através de disciplinadas explorações fenomenológicas da
experiência, e (ii) utilizar esses dados originados da primeira pessoa para descobrir
novos dados em terceira pessoa sobre processos fisiológicos cruciais para a
consciência. Assim, um objetivo central da neurofenomenologia é gerar novos
dados, através da incorporação refinada e rigorosa de explorações fenomenológicas
da experiência a protocolos experimentais de pesquisa neurocientífica cognitiva
sobre a consciência (LUTZ & THOMPSON, 2003, p. 32).

Além deste argumento, que busca justificar tecnicamente a neurofenomenologia


através de sua maior capacidade de incorporar à experiência científica construída em
laboratório, a experiência vivida da primeira pessoa que participa da experiência científica, há
outro que Varela já havia apontado, e que importa especialmente em razão de suas
implicações para a filosofia das ciências:

A usual oposição entre abordagens em primeira pessoa e em terceira pessoa é


enganosa. Isto nos induz a esquecer de que as assim chamadas abordagens objetivas
em terceira pessoa são feitas por uma comunidade de pessoas concretas que estão
incorporadas em seu mundo social e natural, assim como no caso das abordagens em
primeira pessoa (VARELA, 1996, p. 340).

Isto é, afora a incorporação da experiência da primeira pessoa, a qual esteja sendo


foco do experimento cognitivo, conforme o proposto por Lutz e Thompson, Varela ressalta a
necessidade de que sejam também consideradas no contexto da pesquisa a história e a
corporeidade de experiências vividas pelos próprios cientistas, que delas não de desfazem ao
ingressar no laboratório ou ao redigir e divulgar suas teorias. Esta afirmação, além de buscar
ampliar o conceito de experiência, o faz numa direção em que se mostra a proximidade entre a
orientação corpórea aqui apresentada e a corrente da filosofia das ciências que, sobretudo a
partir da obra de Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1962), tem
ressaltado o caráter histórico e social da sustentação e do desenvolvimento do conhecimento
científico.
Além disso, é fundamental para a compreensão da abordagem corpóreo-enativista o
livro de Evan Thompson Mind in life – que será discutido a seguir –, devido ao panorama
bastante amplo que traçou, cerca de 15 anos após a publicação obra que propôs o conceito de
enação.
Como foi visto, sob a forte influência das teorias de auto-organização, emergência e
complexidade – assim como da fenomenologia, das pesquisas do próprio Varela com
Maturana em biologia celular, e dos estudos sobre categorização corpórea da própria Eleanor
Rosch –, Varela, Thompson e Rosch elaboraram o que está sendo aqui denominado de
abordagem corpóreo-enativista. Para as finalidades deste trabalho, devem ser destacados os
seguintes aspectos desta abordagem – tal como se extraem do livro seminal que examinamos:
262

1) Nasceu de investigações biológicas, que de um lado contrariaram a tendência


mecanicista à redução dos fenômenos da vida à física, e, de outro, passaram a
considerar os sistemas vivos como autônomos, autoproduzidos e autotransformadores;
2) No sentido destas duas faces de sua origem, propôs que a cognição seja compreendida
não como um processo heterônomo, exogenamente determinado, independente dos
organismos individuais, e redutível a uma “alma” ou “mente” de estrutura lógico-
proposicional comum a todos os indivíduos, mas como parte do processo vital e, por
isso, guardando a mesma característica de contínua transformação material da vida, o
que implica sua inseparabilidade da história experiencial de cada organismo;
3) Ao desafiar a imagem do sistema cognitivo como processo lógico-proposicional
transcendente, também rejeita a noção de que ele se limite a registrar e manipular
epistemicamente as informações objetivas do mundo – ou, num outro extremo
epistemológico, seja mera projeção de suas próprias leis internas;
4) E, deste modo, propõe que a cognição seja compreendida como enação, o que
significa atribuir a ela um sentido ontológico, de coespecificação de sujeito e objeto, e
justifica tanto a ideia de cognição criativa quanto a proposta de que as ciências
cognitivas devem consistir em pesquisas sobre a natureza da realidade e não somente
sobre como a realidade é representada;
5) Considerando a cognição como atividade criativa, também a conceitua como ação
perceptivamente orientada, o que exige uma compreensão da percepção como
dependente da ação realizada pelo organismo como um todo, e da ação como
intervenção no mundo também determinado pela percepção;
Tendo em vista que o presente trabalho considera a cognição corpórea como unidade
que nasce da articulação de diversas abordagens, e levando-se em conta as características da
abordagem corpóreo-enativa acima descritas, devem ser destacadas as seguintes contribuições
principais oferecidas por esta abordagem à orientação corpórea como um todo:
1) Estabelece o sentido vital da cognição e investiga suas bases biológicas, enfatizando
que o processo cognitivo é não somente parte da história de acoplamento do
organismo com o ambiente como, por isso mesmo, depende intimamente das
características do ambiente, do organismo e dos efeitos das experiências vividas;
2) Define a cognição como codeterminação de sujeito e objeto, do organismo e do seu
mundo, de tal maneira que se afirma como a abordagem corpórea mais dedicada a
promover o que Varela chamou de guinada ontológica nas ciências cognitivas;
3) Ao articular o enfoque biológico com o ontológico através do conceito de enação, abre
263

caminho para que, nas ciências cognitivas corpóreas, o sentido político da crítica ao
cognitivismo ultrapasse a dimensão epistemológica e seja intimamente vinculado à
noção de cognição como transformação da realidade – inclusive da realidade social.
Sendo assim, a contribuição científica e metafísica da abordagem corpóreo-enativista
à cognição corpórea reforça o sentido político da unidade desta corrente das ciências
cognitivas, de forma intrinsecamente combinada com a sua recusa ao modelo unificador do
cognitivismo.

2.3.2. Breves considerações sobre o enativismo contemporâneo

Conforme afirmado anteriormente, o enativismo mais recente não apenas desenvolveu


novas pesquisas inspiradas nas ideias iniciais de Varela, Thompson e Rosch, como pode ser
visto, em parte, como uma tentativa de sistematizar suas ideias. Quanto a este último ponto, é
fundamental o trabalho de Evan Thompson em seu livro Mind in life, um dos mais recentes e
relevantes da orientação corpórea; deste livro extrai-se a seguinte síntese da abordagem
enativista em cinco ideias-chaves sobre a cognição:

A primeira ideia é a de que os seres vivos são agentes autônomos que ativamente
geram e mantêm a si mesmos e, assim, também enatuam ou produzem seus próprios
domínios cognitivos. A segunda ideia é que o sistema nervoso é um sistema
autônomo dinâmico: gera e mantém ativamente seus próprios padrões coerentes e
significativos da atividade, de acordo com a sua operação como uma rede circular e
reentrante de neurônios interagentes. O sistema nervoso não processa informação,
em uma acepção computacionalista, mas cria sentido. A terceira ideia é que a
cognição é o exercício do conhecimento hábil em ação situada e corpórea. Estruturas
cognitivas e processos emergem de padrões sensório-motores recorrentes de
percepção e ação. Acoplamentos sensório-motores entre o organismo e o ambiente
modulam, mas não determinam, a formação de padrões endógenos e dinâmicos de
atividade neural, que por sua vez informam o acoplamento sensório-motor. A
quarta ideia é de que o mundo de um ser cognitivo não é um domínio externo pré-
definido, representado internamente pelo seu cérebro, mas um domínio relacional
produzido por enação pelo agenciamento autônomo que é o modo de acoplamento
daquele ser com o meio ambiente. A quinta ideia é de que a experiência não é um
problema epifenomênico, mas central para qualquer compreensão da mente, e
precisa ser investigada de uma maneira fenomenológica cuidadosa. Por esta razão, a
abordagem enativa sustenta que a ciência da mente e as investigações
fenomenológicas da experiência humana devem prosseguir informando-se mútua e
complementarmente (THOMPSON, 2005, p. 13 – grifos em negrito meus)

Neste trecho, o principal argumento de Thompson a favor da continuidade entre vida e


cognição produz-se a partir das duas primeiras ideias que ele expõe, de que tanto os seres
vivos quanto seus sistemas nervosos são dotados de autonomia, isto é, eles se autoengendram.
Esta síntese de Thompson repete algumas de suas posições sobre o conceito de coemergência,
referido na seção 2.1.4. O importante a assinalar é que as noções apresentadas não parecem
264

muito sólidas, embora autores como ele e Varela busquem estabelecer um sentido ontológico
para uma ideia como a de emergência. Uma impressão que um texto como este pode passar é
a dificuldade de vocabulário para expressar noções novas, que escapam às concepções
ontológicas e epistemológicas mais tradicionais.
Seja como for, segundo Thompson a cognição seria proporcionada pela geração,
internamente à autonomia do ser vivo, do sistema nervoso, outro sistema também dotado de
autonomia. Dito de outra forma, ela seria a criação de sentido por parte de tal sistema
autônomo. Criar sentido no interior da vida seria a característica da cognição, que receberia
também o nome de enação. E a respeito da dinâmica antirreducionista da nova
interdisciplinaridade, vejamos o que afirmam Shaun Gallagher e Francisco Varela:

Se alguém começa por pensar nas ciências cognitivas (...) em termos de análise
computacional e processamento informações tem dificuldade em ver como a
fenomenologia poderia participar da “revolução cognitiva”. Nesta formulação, o
estudo científico da cognição é um estudo de como uma mente subpessoal, não
fenomenológica, manipula símbolos discretos de acordo com conjunto de
procedimentos sintáticos, e como isso pode ser expresso em termos neurológicos.
Esta, contudo, não é mais a visão corrente das ciências cognitivas. Confrontada com
uma variedade de problemas implícitos nesta visão, a revolução cognitiva tomou um
rumo diferente no final dos anos 1980. Este corresponde a uma nova ênfase na
neurociência e no conexionismo, que desafiou a ortodoxia computacional
prevalente, introduzindo uma abordagem baseada em sistemas dinâmicos não
lineares. Com esta formulação houve uma mudança de ênfase do reducionismo para
noções de emergência e auto-organização. A questão passou a ser: como níveis mais
altos de estruturas pessoais emergem de níveis de mais baixos de processos
subpessoias auto-organizados (GALLAGHER & VARELA, 2001, p. 18).

Devemos ainda considerar alguns importantes entendimentos que estão na base do


enativismo, e que nos permitirão compreender com maior clareza como ele sustenta a ideia de
unificação da cognição individual a partir da experiência, assim como sua dimensão coletiva,
que possibilita pensar na unificação da cognição em geral. De início, invocamos a menção
que Evan Thompson faz a duas passagens da fenomenologia husserliana, que são bastante
elucidativas de como o enativismo pode conceber a constituição não somente do indivíduo a
partir das suas experiências, mas também do caráter necessariamente social desta constituição.
A primeira referência de Thompson é ao que ele chama de “fenomenologia genética”, que
pressupõe a ideia de acumulação de experiências:

O "eu" ou "ego" não é um mero "polo vazio" da individualidade na experiência, mas


um sujeito concreto com hábitos, interesses, convicções e capacidades como
resultado da experiência acumulada. Em outras palavras, o sujeito tem que ser visto
como tendo uma "vida" em todos os ricos sentidos desta palavra – como formado
por sua história individual, tal como sujeito vivo e corpóreo da experiência (Leib), e
como pertencente a um intersubjetivo "mundo da vida" (Lebenswelt) (THOMPSON,
2005, p. 29).
265

E ele prossegue, desenvolvendo a ideia da “intersubjetividade”, mediante o conceito de


“fenomenologia gerativa”:

A “fenomenologia gerativa” diz respeito ao devir histórico, social e cultural da


experiência humana. Se a fenomenologia estática é restrita em seu escopo em
relação à fenomenologia genética, então a fenomenologia genética é restrita em
âmbito no que diz respeito à fenomenologia gerativa: o tema da fenomenologia
generativa é o devir histórico e intersubjetivo da experiência humana, ao passo que a
fenomenologia genética concentra-se no desenvolvimento individual, sem análise
explícita de sua inserção geracional e histórica (Ibidem, p. 33).

De todo modo, o enativismo tem tentado se fortalecer como programa de pesquisa


coeso, mesmo sem estender pontes para as demais abordagens da cognição corpórea com
frequência.
Um esforço no sentido desta coesão é o livro Enaction, organizado por John Stewart,
Olivier Gapenne e Ezequiel Di Paolo, em 2010.
No livro, que é uma coletânea de artigos, não se encontra por acaso o subtítulo
“Toward a new paradigm for Cognitive Science”. No texto introdutório, assinado pelos
organizadores, há a seguinte afirmação:

Na verdade, há uma crescente percepção e aceitação nas ciências cognitivas de que a


percepção não é apenas um módulo subsidiário, e que a ação corpórea está na raiz da
cognição como um todo. No entanto, perdura uma persistente impressão na
comunidade de que isso pode funcionar muito bem para a cognição de “nível baixo”,
mas que, quando se trata de cognição de “nível alto” – pensamento, raciocínio,
planejamento, resolução de problemas (aquilo sobre o que, afinal, é o que versa a
“verdadeira cognição”) – então o cognitivismo computacional continua a ser a única
opção viável. Um importante objetivo deste livro é mostrar que essa impressão é
bastante falsa, e fundamentar a alegação, não apenas em princípio abstrato, mas em
termos de investigação propriamente dita, de que o paradigma da enação tem a sua
própria e altamente distintiva abordagem da cognição de alto nível. (STEWART et
al, 2010, p. viii).

Esta posição acompanha, de certo modo, a intenção manifestada por Varela no artigo
“The early days of autopoiesis: Heinz and Chile”, já citado anteriormente, de buscar uma
revolução científica com o enativismo. Mas também demonstra que a corrente procura
desenvolver suas teses de modo independente das demais abordagens da cognição corpórea. A
maioria dos artigos do livro, por exemplo, não usa a expressão “cognição corpórea”.
Uma das características do livro é a ênfase na intersubjetividade – o que vem a ser um
traço distintivo do enativismo contemporâneo. A adesão de Edwin Hutchins – um dos
pioneiros da cognição corpórea com seu livro Cognition in the wild, de 1995 – ao enativismo
e o trabalho de Véronique Havelange sobre a questão da tecnologia são exemplos importantes
dessa tendência.
266

2.4. A abordagem corpóreo-conceitual

A abordagem corpóreo-conceitual das ciências cognitivas é aquela que se dedica a


criticar a orientação cognitivista e a adoção do modelo lógico-proposicional da cognição com
foco na linguagem e nos conceitos cognitivos. Com isso, uma de suas principais preocupações
é em discutir como surgem os significados na cognição, e qual sua natureza. Isto é, propõe
uma semântica corpórea. Assim, esta frente de pesquisa se caracteriza por desenvolver uma
nova imagem da cognição que possui duas diferenças principais em relação à do
cognitivismo:
a) O processo cognitivo não possui uma estrutura lógico-proposicional algorítmica,
semelhante ao processo de produção de bens, como, em geral, entendeu o
cognitivismo;
b) Os significados utilizados e produzidos ao longo do processo cognitivo não podem ser
entendidos como literais e formalizáveis, não se admitindo, assim, serem tratados
como inputs ou outputs informacionais/representacionais fixos e quantificáveis, nem
mesmo em relação a etapas ou módulos parciais do processo.
Desta forma, percebe-se que a objeção desta frente de pesquisa ao modelo lógico-
proposicional recusa os dois principais pressupostos que sustentam a imagem da cognição
como processo produtivo: a estrutura mecânica da cadeia de transformação, como forma, e a
definição precisa da qualidade e da quantidade dos insumos e produtos, como conteúdo ou
matéria.
Para que seja explorada esta crítica mais ampla e profundamente, tal abordagem será
aqui examinada em três de suas vertentes: a pesquisa filosófico-linguística liderada por Lakoff
e Johnson que tem sido chamada por eles de “linguística cognitiva”; a pesquisa sobre a
formação de conceitos de Turner, Fauconnier e Sweester, que tem sido batizada de
“integração conceitual” (“conceptual blending”); e a pesquisa, com fortes componentes
neurocientíficos e psicológicos, de Barsalou e Glenberg, entre outros, que busca definir uma
percepção corpórea através da noção de “ancoragem conceitual” (“conceptual grounding”).
Todas estas vertentes se dedicam a investigações que tendem a reforçar as críticas da
abordagem à formação de conceitos na cognição tal como entendida no cognitivismo, no que
se configura como uma nova teoria – corpórea – dos conceitos e da linguagem.
267

2.4.1. A linguística e a gramática corpóreas

Uma das principais características da vertente que aqui será denominada de


linguística corpórea90 é extrapolar o terreno das ciências cognitivas, em sua crítica,
alcançando a filosofia, as ciências humanas e mesmo a cultura dominante no ocidente. Esta
atitude, adotada sobretudo por George Lakoff e Mark Johnson, se justifica em sua obra pelo
fato de que eles enxergam uma forte conexão, além de influências mútuas, entre o
cognitivismo, o cartesianismo, o Positivismo Lógico, a filosofia analítica e outras correntes
científicas e filosóficas ocidentais. Sendo assim, suas objeções se dirigem a um modo de
pensar tradicional que eles entendem ter se disseminado na cultura moderna, e que se
manifestaria de diversas formas – sendo uma delas aquela que assume nas ciências cognitivas
com o modelo lógico-proposicional. Além disso, eles identificam uma série de pressupostos
que, segundo sua visão, se articulam para produzir a ideia de realidade, ciência, ser humano,
pensamento e cognição que rechaçam.
Neste sentido, sua principal obra em conjunto, Philosophy in the flesh, de 1999, é um
manifesto contra estes pressupostos e a favor de um novo conceito de ser humano. Portanto,
não se trata, apenas, de um trabalho restrito ao âmbito das ciências cognitivas. Haja vista o
subtítulo do livro: “A mente corpórea e seu desafio à tradição do pensamento ocidental”. E se
Lakoff e Johnson não deixam de apresentar argumentos que nascem de pesquisas científicas
da cognição corpórea, também lançam mão de posições de natureza filosófica – suas e de
autores como John Dewey, William James, Hilary Putnam e Richard Rorty – para defender
seus pontos de vista.
Deve-se ressaltar que uma de suas principais formulações é a de realismo corpóreo,
que será retomada na seção 3.2, quando do exame da articulação desta abordagem com o
enativismo. Mas é importante sublinhá-la neste momento porque revela que o
empreendimento da linguística corpórea é ontológico (ou ôntico) em dois sentidos: no de
promover um enfoque crítico das posições tradicionais sobre o real –propondo alternativas –,
mas também no de argumentar que o ser humano pode ser o produtor de um determinado tipo
de realidade, no que a atividade científica e a filosófica também estão envolvidas.
Comecemos o exame da linguística corpórea por uma série de considerações de

90
Esta vertente tem sido amplamente batizada de “linguística cognitiva”. Contudo, sabe-se que, a rigor, a
linguística tem sido “cognitiva” ao menos desde Chomsky, sendo este um dos principais alvos de crítica nas
obras de Lakoff, Johnson e seus colaboradores. Por este motivo, e para evitar confusões desnecessárias, neste
trabalho a linha de pesquisa liderada por Lakoff e Johnson será chamada de linguística corpórea. No entanto, a
denominação “linguística cognitiva” será mantida nas traduções de citações feitas por mim, e quando for
utilizada fora de citações o será entre aspas.
268

natureza filosófica que seus autores realizam, sobre as relações entre ciências cognitivas
corpóreas e filosofia. Segundo eles, o livro-manifesto Philosophy in the flesh

é centralmente preocupado com a relação entre ciência e filosofia. Afirma que os


resultados científicos empíricos, especialmente quando fazem convergirem
resultados sobre a mente e a linguagem, aos quais que se chegou com a utilização de
múltiplos métodos, têm precedência sobre teorias filosóficas a priori. Na verdade,
estamos afirmando que a segunda geração das ciências cognitivas requer uma nova
abordagem para a filosofia, uma filosofia corpórea que será coerente com as suas
conclusões sobre a forma de realização da mente, o inconsciente cognitivo, e o
pensamento metafórico (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 495).

De um lado, eles afirmam que os resultados científicos da cognição corpórea têm


precedência sobre a filosofia. E, de outro, alegam que uma nova filosofia passa a ser exigida a
partir desses resultados. Ou seja, eles propõem que a filosofia seja transformada pela cognição
corpórea – embora, como veremos em seguida, eles também supõe a filosofia como anterior a
qualquer empreendimento humano. Mas antes de tentarmos identificar que filosofia seria
aquela modificada pela cognição corpórea, façamos um levantamento de uma série de
aspectos do que seriam os resultados empíricos que teriam causado a exigência de uma nova
filosofia. Os autores apresentam uma lista exemplificadora destes resultados, correspondentes
às linhas de pesquisa abaixo (Ibid., p. 496-508)91:

Semântica cognitiva – Estuda os sistemas conceituais, os significados, em suma, a razão


humana. Seus resultados:
• Os conceitos nascem e são compreendidos a partir do corpo, do cérebro e das
experiências no mundo; eles adquirem significado por meio da corporeidade que
corresponde, sobretudo, às capacidades motoras e perceptivas; conceitos diretamente
corpóreos envolvem: conceitos de nível básico, conceitos de relações espaciais,
conceitos de ações corporais etc.
• Os conceitos usam aspectos imaginativos da cognição: esquemas, metáforas,
metonímias, protótipos, categorias radiais, espaços mentais e integração conceitual; os
conceitos abstratos surgem através de projeções metafóricas a partir de conceitos mais
diretamente corpóreos (por exemplo, conceitos perceptivos e motores); o sistema
metafórico não é arbitrário, mas fundado na experiência.

Gramática cognitiva – A partir dela, não se concebe uma sintaxe autônoma (como em

91
Os itens que dizem respeito à contestação específica das noções de Chomsky (no original, “Colorless green
ideias”, “The language capacity and linguistic universals” e “Innateness”), serão apresentados com destaque
mais à frente.
269

Chomsky), uma vez que não pode haver módulos livres de input no cérebro; ao se estudarem
generalizações sobre distribuições de elementos sintáticos, foi descoberto empiricamente que
estas generalizações, em centenas de casos apenas no inglês, requerem referências a funções
semânticas, pragmáticas e de discurso; pesquisas de autores como Langacker, Lakoff e
Fauconnier levaram à conclusão de que em vez de haver sintática autônoma, os símbolos são
unidades indissolúveis entre seu significado e sua expressão (fonética, por exemplo); de uma
perspectiva neural, a simbolização é uma forma de tratar da conectividade neural: “a
gramática de uma língua consiste em conexões neurais altamente estruturadas ligando os
aspectos conceituais e expressivos (fonológicos) do cérebro”; a gramática liga esquemas
ancorados corporeamente, e, assim, os termos input e output são enganosos, já que a
conectividade flui em ambas as direções nestes sistemas, que são ancorados no corpo de
maneira independente.

O léxico – Os itens léxicos, nos casos mais simples, são pares de formas fonéticas com
conceitos individuais; mas são exceções, e a polissemia é a norma, tendo a maioria das
palavras numerosos significados sistematicamente relacionados.

Categorias semânticas e sintáticas – Nas escolas se aprende que um substantivo é o nome de


uma pessoa, um lugar, uma coisa – isto é, uma de entidade física limitada; mas é preciso
esclarecer o que significa “ser nome de”; a relação de nome-de é a relação entre algo
conceitual e algo fonético, sendo que em termos neurais trata-se de uma relação de ativação,
de tal modo que ao se ouvir um som, este ativa um conceito; assim, o substantivo designa o
polo fonético de um par de nomeação; a categorização é um processo que funciona por
ampliação radial, a partir de categorias perceptivo-motoras que podem corresponder ao que
Langacker chama de “categorias conceituais de Coisas”; explicações semelhantes podem ser
dadas a verbos, a adjetivos e preposições; uma estrutura hierárquica contendo proposições
localizadas no tempo induz a estruturas sintáticas hierárquicas correspondentes.

Construções gramaticais (mais que a soma das partes) – Na “linguística cognitiva” uma
construção gramatical consiste em um par de estruturas conceituais complexas; cada estrutura
gramatical indica: como os significados das partes da construção se relacionam com o
significado do todo, como a combinação conceitual é expressa na forma linguística e que
significados ou função cognitiva são expressos em virtude dos dois itens anteriores.
270

Polissemia construcional – Dado que as palavras podem ser polissêmicas, as construções


gramaticais também podem sê-lo.
A corporeidade das construções gramaticais – Construções gramaticais não são maneiras
arbitrárias de colocar formas assignificantes juntas; em vez disso, são meios de exprimir
experiências corpóreas humanas.

Composicionalidade de construções – Construções gramaticais compõem conjuntos de


construções pela articulação entre si, uma vez que haja condições de união baseadas em
estruturas corpóreas.

Apresentados estes exemplos, vejamos como Lakoff e Johnson explicitam algumas de


suas posições filosóficas – o que não fazem por acaso. Elas são inseparáveis não apenas de
suas atividades e formulações científicas, mas também – evidentemente – de suas posições
teóricas mais gerais. Suas afirmações são cruciais no sentido de podermos vislumbrar, com
elas, como eles identificam a relação entre filosofia – ou metafísica, em alguns aspectos – e
pesquisas empíricas sobre o processo de geração de conhecimento e ação, do que decorre
também a ressignificação de noções como de conceito e linguagem. Ao apresentarem o que
chamam de implicações filosóficas da “linguística cognitiva”, declaram que esta:

• Não se baseia numa visão filosófica a priori do mundo, embora adote alguns
pressupostos metodológicos;
• Ao utilizar contribuições da cognição corpórea para a compreensão de noções como
conceito, razão e linguagem, tal procedimento produz implicações filosóficas;
• Com isso, fornece uma base para a crítica das perspectivas filosóficas tradicionais, e
leva ao que eles denominam de “filosofia experiencialista”.

São, portanto, implicações filosóficas da linguística corpórea92:

Filosofia experiencialista – Lakoff e Johnson afirmam que cada um dos mecanismos


cognitivos neurais ocultos apresentados acima contribui para a constituição dos sistemas
conceituais e da experiência dos seres humanos. Sendo assim,

92
Os itens a seguir são em parte resumidos com base no texto do livro, em parte inteiramente citados. Quando se
trata de citação literal isto se encontra no formato definido pela norma apropriada.
271

• Nós experimentamos os objetos como coloridos em si mesmos, embora seja


sabido que eles não são. O sistema neural responsável pela estrutura interna das
nossas categorias de cor também cria para nós a experiência de cor.
• Nós experimentamos o espaço estruturado através de esquemas de imagens
(como tendo regiões, caminhos, centros e periferias delimitados, objetos com frentes
e costas, regiões acima, abaixo e ao lado de coisas). No entanto, agora sabemos que
o espaço em si não tem essa estrutura. Os mapas topográficos do campo visual, as
células sensíveis à orientação, e outros sistemas neurais altamente estruturados em
nossos cérebros não só criam conceitos por esquemas de imagens para nós, mas
também criam a experiência do espaço como estruturado de acordo com esses
esquemas de imagem.
• Nós experimentamos o tempo em termos de movimento e como sendo um
recurso, apesar de estes elementos não serem inerentes ao próprio tempo. Nossas
metáforas para conceituar o tempo em termos de movimento não só criam uma
maneira de compreender e raciocinar sobre o tempo em termos de movimento, mas
também nos levam a experimentar tempo como fluindo, ou nós mesmos como nos
movendo em relação ao tempo.
• Nós experimentamos o desequilíbrio como um mal não corrigido. No
entanto, a noção de justiça como equilíbrio não é parte de um universo objetivo. A
metáfora da explicação moral não só nos fornece uma maneira de conceituar justiça
em termos de equilíbrio, mas nos permite experimentar um mal não corrigido como
desequilíbrio e do o conserto do mal como a recuperação do equilíbrio (Ibid., p. 508-
509)

Quando Lakoff e Johnson afirmam que há mecanismos ocultos, estão se referindo ao


que chamam de inconsciente cognitivo. Este é um conceito fundamental em sua teoria. Ele
permite compreender ao mesmo tempo duas questões fundamentais: em que sentido uma
parte da cognição, ao ser corpórea – ou orgânica –, escapa à nossa consciência; e por que não
se pode insistir em significados plenamente explícitos, inclusive na filosofia.

Senso comum – Para Lakoff e Johnson, a evolução humana tem sido de tal maneira que
mecanismos ocultos de significado produzem uma experiência global que nos permite
funcionar bem no mundo. Para eles, a preponderância que temos de experiências básicas
comuns nos conduz à teoria do senso comum do significado e da verdade, de que o mundo
real e objetivamente é como nós o experimentamos e conceituamos. Esta teoria funciona bem
em situações simples justamente devido à natureza de nossa corporeidade e nossas
capacidades imaginativas, mas não naquelas em que há conflitos de conceituação e de visões
de mundo, e estas são bastante comuns. Dado que os mecanismos de conceituação estão
ocultos de nossa consciência, não se incluem na nossa compreensão comum da verdade. Mas
esta, para um usuário da língua, é relativa aos nossos mecanismos de compreensão corpórea.

Verdade corpórea – “Uma pessoa toma uma sentença como ‘verdadeira’ em relação a uma
situação se o que ela compreende da expressão da sentença está de acordo com o que ela
compreende ser a situação”. Lakoff e Johnson afirmam que a teoria clássica da verdade por
272

correspondência deixa de perceber o papel que os seres humanos têm tido de produzir a noção
de verdade. Segundo eles, a verdade não existe sem seres com mentes que conceituam
situações, e sem uma linguagem convencionalmente utilizada por esses seres para expressar a
conceituação das situações. Sendo que as conceituações necessárias para produzir a própria
noção de verdade nascem de mecanismos cognitivos ocultos. Um dos principais
empreendimentos da cognição corpórea é compreender a verdade para um usuário da
linguagem tornando visíveis os mecanismos de conceituação.

Visão de mundo – Os autores consideram que uma visão de mundo é “uma constelação
consistente de conceitos, em especial conceitos metafóricos”. Ela pode ser filosófica, moral e
política, e rege a maneira como a pessoa compreende o mundo e portanto influencia
profundamente seus atos. Culturas se diferenciam por visões de mundo, que também podem
mudar ao longo da vida de um indivíduo. Para Lakoff e Johnson, a visão de mundo
caracteriza nossa metafísica ordinária, ou aquilo que acreditamos que existe, e a metafísica
cotidiana não é algo fantasioso. Ela nos conduz, efetivamente, através de nossa vida diária, e é
constituída por metáforas e outras estruturas conceituais.
Visto aquilo que os autores chamam de “implicações filosóficas” de sua linha de
pesquisa, devemos examinar mais amiúde algumas de suas teses científicas, que teriam
ocasionado tais implicações. A primeira delas é justamente aquela referida acima – e que
perpassou os exemplos, acima apresentados, de resultados empíricos que mostram
“mecanismos cognitivos ocultos”: o inconsciente cognitivo.
Mas deve-se começar investigando a noção de inconsciente cognitivo exatamente com
referência ao último ponto acima destacado: a visão de mundo ou metafísica individual. Para
Lakoff e Johnson:

Viver uma vida humana é um empreendimento filosófico. Todos os pensamentos que


temos, cada decisão que tomamos, e cada ato que realizamos é baseado em
suposições filosóficas tão numerosas que dificilmente poderíamos listá-las. Nós
saímos por aí armados com uma série de pressupostos sobre o que é real, o que conta
como conhecimento, como a mente funciona, quem somos, e como devemos agir.
Tais questões, que resultam de nossas preocupações diárias, formam o objeto mais
básico da filosofia: metafísica, epistemologia, filosofia da mente, ética, e assim por
diante.
A metafísica, por exemplo, é um nome de fantasia para a nossa preocupação com o
que é real. A metafísica tradicional faz perguntas que soam esotéricas: O que é
essência? O que é causalidade? O que é o tempo? O que é o eu? Mas, em termos
diários não há nada de esotérico sobre tais questões (Ibid., p. 9).

Eles prosseguem afirmando que no dia a dia os seres humanos adotam pressupostos sobre, por
exemplo, a natureza da moral e da causalidade que guiam suas ações e decisões sociais:
273

“Sempre que nós atribuímos responsabilidade moral ou social, estamos implicitamente


assumindo a possibilidade de causalidade, bem como noções muito específicos do que é uma
causa” (Ibid.). O mesmo eles afirmam sobre crenças como o eu, o autocontrole, um eu oculto
protetor ou perigoso – o que revela crenças tácitas sobre o inconsciente e sobre a necessidade
de processos introspectivos vitais. E argumentam que, embora sejamos apenas às vezes
conscientes desse fato, somos todos metafísicos, “não em um sentido de torre de marfim, mas
como parte de nossa capacidade diuturna de para dar sentido à nossa experiência” (Ibid., p.
10).
Suas afirmações sobre o inconsciente cognitivo também se baseiam em pesquisas
empíricas que revelam o sentido vital e necessário de processos não conscientes na cognição
humana. Neste sentido, deve-se comentar uma hipótese muito importante apresentada por
Mark Johnson a respeito da relação entre os processos cognitivos inconscientes e automáticos
e a própria crença no dualismo alma(mente)/corpo. Segundo ele, “ironicamente é a natureza
dos nossos corpos e cérebros que dá origem à experiência de um eu dividido (mental e
físico)”. Sua argumentação se utiliza das teorias de Drew Leder (em seu livro The absent
body, de 1990) e Michael Polanyi para afirmar que os processos corpóreos, para terem
sucesso, precisam ser ocultos:

Leder, seguindo o trabalho inovador de Maurice Merleau-Ponty, catalogou as muitas


maneiras em que o funcionamento bem sucedido do nosso corpo requer que os
nossos órgãos e operações corporais se ocultem em nossos atos de experimentar
coisas no mundo. Uma das principais formas de o corpo se esconder de nossa
percepção consciente é um resultado do que Michael Polanyi chamou de caráter "de-
para" da percepção. Todos os nossos atos de percepção são direcionados para ou a
algo que é experienciado e se distanciam do corpo que percebe. Isso é o que os
fenomenologistas chamam de intencionalidade da mente. Nas palavras de Polanyi,
“(...) Cada vez que fazemos sentido do mundo, contamos com o nosso conhecimento
tácito dos impactos produzidos pelo mundo em nosso corpo, e das respostas
complexas do nosso corpo em relação a esses impactos” (JOHNSON, 2007, p. 4).

Por este motivo, segundo Johnson, percebemos menos nosso corpo do que nossa
“mente” no processo cognitivo e chegamos a ter a impressão – e crença tácita, metafísica – de
que existem duas substâncias diferentes, o corpo e a alma. Voltaremos à questão do dualismo.
Contudo, por ora, é necessário prosseguir com mais algumas observações sobre o
inconsciente cognitivo e a ideia de “corpo ausente”. Diz Johnson:
274

Os nossos atos de ver são direcionados para aquilo que vemos. Nossa
intencionalidade parece ser dirigida para o mundo "lá fora". Os mecanismos de
nossa visão não são, e não podem ser, o foco da nossa consciência e atenção,
estamos cientes do que vemos, mas não de nossa visão. Os processos corporais se
escondem, a fim de tornar possível a nossa fluida e automática experiência do
mundo. (...)
Leder denomina este ocultamento perceptivo do corpo como “desaparecimento
focal” dos órgãos corporais e atividades específicas da percepção. Além do
desaparecimento focal dos nossos órgãos de percepção, há também um necessário
“desaparecimento de background”, que afeta outros processos e atividades que
tornam a percepção possível, processos dos quais raramente ou nunca somos cientes
(Ibid., p. 5).

Assim, nota-se que a noção de inconsciente desenvolvida por Lakoff e Johnson é


corpórea em dois sentidos: em primeiro lugar, porque diz respeito ao funcionamento
naturalmente automático de órgãos do corpo; em segundo, porque possui uma característica
fundamental para que a cognição seja considerada corpórea, isto é, a necessária ocultação de
muitos processos orgânicos que, embora sejam essenciais para a cognição, não podem ser
percebidos eles mesmos, em condições normais, sob a pena de eliminar-se a eficácia e
eficiência cognitivas e, às vezes, vitais. Desde modo, conclui-se que o inconsciente cognitivo
não é algo que assoma à consciência e retorna à ocultação, ao sabor das experiências, por
escolha da consciência ou “dele próprio”. Ele é algo cuja função é ser sempre inconsciente
para que as experiências sejam possíveis.
Outro aspecto crucial do inconsciente cognitivo é o fato de que não diz respeito
apenas ao funcionamento de órgãos. Ele também envolve processos como os esquemas de
imagens e a metáfora cognitiva, que são exemplos de hipóteses da linguística corpórea para a
explicação da formação de conceitos e da linguagem, e não podem ser reduzidos ao mero
funcionamento orgânico. Estes processos são em grande parte globais, do corpo como um
todo e, assim, não devem ser compreendidos apenas como o desempenho de funções
fisiológicas.
No entanto, como já foi mencionado, crenças metafísicas e pressupostos filosóficos
também são inconsciente na maior parte do tempo, na vida cotidiana das pessoas. Em que
medida estas crenças são semelhantes a processos orgânicos ocultos? Para a linguística
corpórea, as crenças tácitas precisam também ser ocultas para que as experiências sejam
possíveis, com vimos acima. Porém, que relação elas têm com o corpo? Essa característica de
serem necessariamente tácitas que elas compartilham com os processos orgânicos decorre de
alguma relação direta entre crenças e corpo? Para a linguística corpórea sim, e isto se explica,
em parte, pelos conceitos de metáfora conceitual e de esquemas de imagens – os mais
relevantes da linguística corpórea. É o que se passará a comentar.
275

Já se mencionou neste trabalho o conceito de metáfora conceitual, na seção 2.2.1. Foi


quando se expôs uma característica central da abordagem corpóreo-conceitual. Este conceito
talvez seja um dos mais antigos de Lakoff e Johnson, tendo nascido em seu livro Metaphors
we live by, de 1980. Nesta obra pioneira da cognição corpórea, eles já afirmavam,
criticamente:

Vemos a metáfora como essencial para a compreensão humana e como um


mecanismo para a criação de novos significados e novas realidades em nossas vidas.
Isto nos coloca em desacordo com a maioria da tradição filosófica ocidental, que
tem visto a metáfora como um agente do subjetivismo e, portanto, como subversiva
da busca da verdade absoluta. Além disso, os nossos pontos de vista sobre metáfora
convencional – que permeia o nosso sistema conceitual e é um mecanismo básico
para a compreensão – coloca-nos em desacordo com as opiniões contemporâneas
sobre linguagem, significado, verdade e compreensão que dominam a recente
filosofia analítica anglo-americana e seguem sem questionamento em grande parte
da linguística moderna e outras disciplinas. O que se segue é uma lista representativa
dessas hipóteses sobre a linguagem, significado, verdade e compreensão. Nem todos
os filósofos objetivistas e linguistas aceitam todas elas, mas as figuras mais
influentes parecem aceitar maioria deles.
• A verdade é uma questão de as palavras se ajustarem ao mundo.
• A teoria do significado da linguagem natural é baseada em uma teoria da
verdade, independente da forma como as pessoas compreendem e utilizam a
linguagem.
• O significado é objetivo e incorpóreo, independente da compreensão humana.
• Sentenças são objetos abstratos com estruturas inerentes.
• O significado de uma sentença pode ser obtido a partir dos significados de suas
partes e da estrutura da frase.
• A comunicação é uma questão de um falante transmitir uma mensagem com
um significado fixo a um ouvinte.
• Como uma pessoa compreende uma frase, eo que ela significa para ela, é uma
função do significado objetivo da sentença e do que a pessoa acredita sobre o
mundo e sobre o contexto em que a sentença é proferida (LAKOFF &
JOHNSON, 1980, p.195-197).

Para eles, em vez disso, o significado de uma sentença provém de estruturas conceituais, que
são metafóricas por natureza, e também baseadas na experiência física e cultural. A verdade,
em sua perspectiva, é sempre oriunda de um sistema conceitual e das metáforas que o
estruturam. Neste sentido, a verdade jamais é absoluta ou objetiva, mas baseada na
compreensão. As sentenças, portanto, não possuem significados inerentes, objetivamente
dados, e a comunicação não pode ser apenas a transmissão de tais significados. Mas como as
metáforas funcionam corporeamente? Por que elas podem fundamentar uma tese de cognição
corpórea? Como podem elas ser pensadas como materiais e não ideais?
No livro que foi acima citado, Lakoff e Johnson já sustentavam nas experiências
sensório-motoras a base dos conceitos, mediante um processo de analogias que nasce de
sensações físicas e se torna mais abstrato. Ali, eles dão um exemplo envolvendo a ideia de
para cima (up).
276

A maior parte de nosso sistema conceitual normal é metaforicamente estruturada; ou


seja, a maioria dos conceitos é parcialmente entendida em termos de outros
conceitos. Isto levanta uma questão importante sobre a fundamentação do nosso
sistema conceitual. Existem conceitos que são entendidos diretamente, sem
metáfora? Se não, como podemos entender alguma coisa? Os principais candidatos
de conceitos que seriam entendidos diretamente são os conceitos espaciais simples,
como “para cima” (Ibid., p. 56).

Eles aduzem que nosso conceito espacial de “para cima” nasce de nossa experiência
espacial, uma vez que temos corpos e ficamos de pé: “Nossa atividade física constante no
mundo, mesmo quando dormimos, promove uma orientação do tipo em cima-embaixo não
relevante apenas para a nossa atividade física, mas centralmente relevante” (Ibid.).
No entanto, a teoria não se sustentaria se apenas se baseasse em conceitos espaciais.
Ela exige outras hipóteses, como as que são apresentadas pela teoria da metáfora primária, de
Joseph Grady (GRADY, 2005), que será examinada na próxima seção.
Outro conceito básico da abordagem de Lakoff e Johnson é o de esquema de imagens
– que também se relaciona com o de metáfora conceitual. Johnson apresenta uma explicação
do conceito em que destaca sua condição de dimensão não proposicional dos significados
cognitivos. Porém, para examinar mais adequadamente sua argumentação, devemos partir de
uma definição que ele oferece:

Os esquemas de imagem operam em um nível de organização mental entre


estruturas proposicionais abstratas, por um lado, e imagens concretas particulares, de
outro. O ponto de vista que estou propondo é o seguinte: para podermos obter
experiências significativas e conectadas em relação às quais possamos compreender
e raciocinar, deve haver padrão e ordem para nossas ações, percepções e
concepções. Um esquema é um padrão recorrente, forma e regularidade, dessas
atividades de ordenação em curso. Estes padrões emergem para nós como estruturas
significativas, principalmente ao nível dos nossos movimentos corpóreos, no espaço,
na nossa manipulação de objetos, e em nossas interações perceptivas. É importante
reconhecer o caráter dinâmico dos esquemas de imagem. Eu os concebo como
estruturas organizadoras da nossa experiência e compreensão (JOHNSON, 1987, p.
29).

Portanto, a ligação que indagamos existir, na teoria da abordagem corpóreo-


conceitual, entre os conceitos abstratos e nossas atividades corpóreas, começa a se delinear
com estas afirmações de Johnson. Entretanto, é necessário elucidar em que sentido os
esquemas de imagens são não proposicionais. Johnson principia suas considerações definindo
o que seria “proposicional”. Para ele, proposição é:
277

1. Algo proposto – uma afirmação. Este é o sentido mais geral, e talvez o mais
antigo. Ele é interpretado por filósofos como envolvendo a noção de valores de
verdade, ou seja, a proposição deve afirmar algo e, assim, ser o tipo de entidade que
pode ser verdadeira ou falsa.
2. Uma representação usando símbolos predicativos finitários (funções) e um certo
número de símbolos de argumento. Tipicamente, os símbolos de argumento se
referem a entidades e os símbolos de predicados representam as propriedades e
relações dessas entidades.
3. Um estado de coisas no mundo, geralmente estabelecido entre uma entidade e seu
predicado (por exemplo, propriedades) ou entre entidades.
4. Da teoria do modelo: a) uma função de mundos possíveis para valores de verdade;
(b) uma função de possíveis situações de fato (onde a "verdade" é uma propriedade
ou relação pareada com as entidades respectivas).
5. Uma representação finitária usando elementos e ligações relacionais entre esses
elementos. Esta formulação é oferecida por Pylyshyn no seu argumento de que as
imagens podem ser representadas proposicionalmente. Ele sugere que qualquer
imagem pode ser fracionada em elementos ou segmentos cujas relações podem ser
completamente descritas de uma forma proposicional.
Estas primeiras cinco definições insistem, todas, no caráter finitário das proposições.
Agora, admito que as representações proposicionais deste tipo irão capturar algumas
das características estruturais importantes de qualquer da do esquema de imagem.
Mas tais representações finitárias não irão capturar sua natureza analógica e o papel
crucial que desempenham nas transformações imago-esquemáticas. Por
"transformação" eu denomino operações cognitivas tais como digitalizar uma
imagem, traçar a trajetória provável de um vetor de força, sobrepor um esquema em
outro, e tomar um múltiplo agrupamento de entidades e contraí-lo em uma massa
homogênea. Em outras palavras, as proposições definidas nos sentidos acima não
irão representar as operações cognitivas naturais de esquemas de imagem. No
entanto, há um outro sentido que podemos dar a "proposição" que se aplica
adequadamente a esquemas de imagem, e faz sentido no seu papel crucial no
significado e no raciocínio, ou seja,
6. Uma proposição existe como um padrão contínuo e analógico de experiência ou
conhecimento, com estrutura interna suficiente para permitir inferências (Ibid., p. 3-
4).

A definição de proposição que, para Johnson, se aplica aos esquemas de imagens, é a


única, dentre as seis por ele apresentadas, que corresponde à caracterização do processo
cognitivo para a linguística corpórea: analógico às experiências, e contínuo, não
correspondendo a representações abstratas e finitárias, formalizáveis por valores de entrada
precisos. Mas esta abordagem admite a descrição da estrutura cognitiva através da qual as
inferências são feitas. E, ainda segundo Johnson, embora possamos descrever características
da cognição “proposicionalmente, usando representações finitárias, nós assim perdemos nossa
habilidade de explicar suas operações naturais e transformações” (Ibid., p. 23). Neste sentido,
os esquemas de imagem seriam uma forma de lidar com o mundo, mas não proposicional no
sentido finitário ou discreto, e não representacional por não conterem símbolos que
substituem objetos referidos externamente. Por outro lado, esquemas de imagens não são
imagens mentais. O que seriam então? Raymond Gibbs apresenta a seguinte definição
bastante completa, embora concisa, do conceito:
278

Esquemas de imagem geralmente podem ser definidos como representações


analógicas dinâmicas de relações espaciais e movimentos no espaço. Embora os
esquemas de imagem sejam derivados de processos perceptivos e motores, eles não
são, eles próprios, processos sensório-motores. (...). Desta forma, os esquemas de
imagem são diferentes da noção de esquemas tradicionalmente usada nas ciências
cognitivas, que é a de estruturas de evento abstratas, conceituais e proposicionais.
Em contrapartida, os esquemas de imagem são estruturas não proposicionais
imaginativas que organizam experiências ao nível da percepção corporal e
movimento. Esquemas de imagem existem em todas as modalidades de percepção,
sendo algo que deve estar presente para que haja uma coordenação sensório-motora
em nossa experiência. Como tais, os esquemas de imagem são, de uma só vez,
visuais, auditivos, sinestésicos e táteis. Ao mesmo tempo, os esquemas de imagem
são mais abstratos do que imagens mentais visuais comuns e consistem em padrões
espaciais dinâmicos que sustentam as relações espaciais e movimentos encontrados
em imagens concretas reais (GIBBS JR, 2005, p. 90-91).

Após estas definições, é necessário para a melhor compreensão do conceito que sejam
dados alguns exemplos de esquemas de imagens. Gibbs continua:

Os estudos em linguística cognitiva sugerem que pelo menos duas dúzias de


diferentes esquemas de imagem e várias transformações de esquemas imagem
aparecem regularmente em no pensamento, raciocínio e imaginação das pessoas
cotidianamente. Entre eles estão as estruturas esquemáticas de RECIPIENTE,
EQUILÍBRIO, ORIGEM-CAMINHO-META, CAMINHO, CICLO, ATRAÇÃO,
CENTRO-PERIFERIA e VÍNCULO. Esses esquemas de imagens cobrem uma vasta
gama de estruturas experienciais que se difundem na experiência, têm estrutura
interna, sustentem significados literais, e podem ser metaforicamente elaborados
para permitir nossa compreensão dos mais abstratos domínios conceituais (Ibid., p.
91).

Utilizemos o mesmo exemplo de esquema de imagem que Gibbs, para melhor


esclarecer a utilização do conceito na abordagem corpóreo-conceitual: o de ORIGEM-
CAMINHO-META (SOURCE-PATH-GOAL). De acordo com o autor, este esquema se
desenvolve ao passo em que aprendemos a seguir objetos com os olhos em nosso campo
visual, e a identificar padrões recorrentes de sua trajetória de um ponto a outro. Em seguida,
as experiências do tipo ORIGEM-CAMINHO-META começam a ficar mais fortes, conforme
passamos a nos mover para alcançar objetos ou nos deslocarmos no espaço. Gibbs prossegue,
fazendo a ligação que foi acima anunciada entre esquemas de imagem e metáforas
conceituais:

Embora experiências do tipo ORIGEM-CAMINHO-META possam variar


consideravelmente (por exemplo, muitos objetos, formas, tipos de caminhos
percorridos), a emergente estrutura imago-esquemática ORIGEM-CAMINHO-
META sustenta significados literais, como visto em "Ele atravessou a sala em
direção à porta", e pode ser metaforicamente e projetada em domínios mais abstratos
de compreensão e raciocínio. Esse mapeamento metafórico preserva as
características estruturais ou a topologia cognitiva do domínio primário. Assim, o
esquema ORIGEM-CAMINHO-META proporciona metáforas conceituais, como
“propósitos são destinos”, que preservam a principais características estruturais do
domínio inicial (ou seja, ORIGEM-CAMINHO-META) (Ibid.)
279

Um raciocínio semelhante pode ser utilizado para compreender outros esquemas de


imagem, assim como sua transformação em metáforas conceituais. Contudo, não é adequada
ao intuito deste trabalho uma investigação mais longa deste tópico. Basta para a devida
caracterização da abordagem corpóreo-conceitual que a noção de esquema de imagem seja
descrita em seus aspectos principais.

2.4.2. A questão da fundamentação dos conceitos

Uma das principais questões na cognição corpórea é a origem dos significados, ou em


quê os conceitos se ancoram, se fundamentam. Em outras palavras, o problema que se coloca
é o de explicar como as experiências corpóreas geram os conceitos e seus significados. Para
caracterizar essa questão, Gibbs apresenta o que chama de “premissa da corporeidade”
(embodiment premise):

As experiências subjetivas, sentidas, que as pessoas têm com seus corpos em ação
fornece parte da ancoragem fundamental para a linguagem e o pensamento.
Cognição é o que ocorre quando o corpo envolve o mundo cultural e físico e deve
ser estudada em termos de interações dinâmicas entre as pessoas e o meio ambiente.
A linguagem humana e o pensamento emergem de padrões de atividade corpórea
que condicionam o comportamento. Não devemos supor que a cognição seja
puramente interna, simbólica, computacional e desencarnada, mas buscar as formas
mais gerais e mais detalhadas em que linguagem e o pensamento são
inextrincavelmente moldados pela ação corpórea (Ibid., p. 9).

Mas se a cognição não é computacional e desencarnada, como se explica a formação


de significados? Com base em que argumentos se pode sustentar que a linguagem e o
pensamento sejam moldados pela ação corpórea? Ou, em outros termos, como a ação
corpórea passada se transforma em significado para ações futuras?
Uma das hipóteses adotadas na linguística corpórea utiliza o conceito de metáfora
primária. Lakoff e Johnson propõem uma teoria geral93 da metáfora primária, que decorre das
seguintes linhas de pesquisa (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 46):
1) A teoria da fusão de Christopher Johnson, que é uma teoria da aprendizagem. Para o
autor, as crianças pequenas não diferenciam entre experiências e julgamentos
subjetivos, de um lado, e experiências sensório-motoras, de outro. Esses dois tipos de
experiências seriam, de início, fundidos, indiferenciados. Eles apresentam como
exemplo o fato de que, para o bebê, a experiência subjetiva de afeição é correlata à
sensação de calor ao ser abraçado. E, embora mais tarde se dê uma diferenciação entre

93
No que demonstram uma atitude de síntese coerente com sua postura de liderança na abordagem.
280

estes domínios, as associações que os atravessam persistem.


2) A teoria da metáfora primária, apresentada, como já dito antes, por Joseph Grady.
Segundo este cientista, as metáforas complexas são compostas de outras
“moleculares”, “atômicas”, cuja estrutura mínima nasce naturalmente,
automaticamente e inconscientemente da experiência cotidiana, através da fusão
mencionada no item anterior. As metáforas complexas são formadas através do
processo de combinação conceitual. Nas palavras de Lakoff e Johnson, “experiências
universais primitivas levam a fusões universais, que então se desenvolvem em
metáforas conceituais convencionais e universais”.
3) A teoria neural da metáfora, de Srini Narayanan, segundo a qual as associações
realizadas pelo bebê no período de fusão se dão neuralmente em ativações simultâneas
que se tornam conexões neurais permanentes através das redes neurais que definem os
domínios conceituais. Tais conexões formam a base anatômica das ativações que
constituem as metáforas.
4) Por fim, a teoria da combinação conceitual, de Gilles Fauconnier e Mark Turner.
Estes autores defendem que domínios conceituais distintos podem ser ativados
conjuntamente, e gerar também conexões entre si, conduzindo a novas inferências. As
combinações conceituais podem tanto ser convencionais ou completamente originais,
novas. Nos termos de Lakoff e Johnson, “Grady sugere que essas combinações
convencionais são os mecanismos através dos quais duas ou mais metáforas primárias,
podem ser unidas para formar metáforas maiores”.
É de se notar que a teoria geral da metáfora primária se utiliza da teoria original de
Grady para propor uma explicação para a formação de conceitos complexos, derivados da
combinação de domínios conceituais que, por sua vez, decorrem da fusão neural de metáforas
primárias e complexas. Assim, consiste propriamente em uma teoria da formação de conceitos
a partir das chamadas metáforas primárias.
Para se compreender melhor o que seriam metáforas primárias e qual o processo no
qual elas são consideradas como elementares, é necessário levar-se em consideração algum
exemplo. Primeiramente, vejamos uma relação de metáforas primárias extraída do livro de
Gibbs:
281

INTIMIDADE É PROXIMIDADE (por exemplo, "Nós temos uma relação estreita")


DIFICULDADES SÃO FARDOS (por exemplo, "Ela está sob o peso de
responsabilidades")
AFEIÇÃO É CALOR (por exemplo, "Ele me cumprimentou calorosamente")
IMPORTANTE É GRANDE (por exemplo, "Amanhã é um grande dia")
MAIS ESTÁ ACIMA (por exemplo, "Os preços são altos")
SIMILARIDADE É PROXIMIDADE (por exemplo, "Essas cores não são iguais,
mas estão próximas")
ORGANIZAÇÃO É ESTRUTURA FÍSICA (por exemplo, "Como é que essas
teorias se encaixam?")
AJUDA ÉSUPORTE (por exemplo, "Apoie as pessoas necessitadas")
TEMPO É MOVIMENTO (por exemplo, "O tempo voa")
ESTADOS SÃO LUGARES (por exemplo, "Eu estou perto de entrar em uma
depressão")
MUDANÇA É MOVIMENTO (por exemplo, "Minha saúde tem ido de mal a pior")
PROPÓSITOS SÃO DESTINOS ((por exemplo, "Ele vai ser bem sucedido, mas não
chegou lá ainda")
CAUSAS SÃO FORÇAS FÍSICAS (por exemplo, "Eles pressionaram o projeto de
lei no Congresso")
COMPREENDER É VER (por exemplo, "Eu vejo o que você quer dizer")
ENTENDER É ALCANÇAR(por exemplo, "Eu nunca fui capaz de alcançar
matemática complexa") (GIBBS JR., 2005, p. 117).

E examinemos um exemplo de formação de conceito a partir de metáforas primárias,


presente no livro de Lakoff e Johnson (LAKOF & JOHNSON, 1999, p. 60-62), tendo como
tema a metáfora complexa “Uma vida com propósito é uma viagem”. Partindo-se da crença
cultural “As pessoas devem ter propósitos na vida, e elas devem agir de modo a alcançar esses
propósitos.”, encontram-se as seguintes metáforas primárias:

Propósitos são destinos


Ações são movimentos

Transformando-se isso em uma versão metafórica da crença cultural, temos que:

As pessoas devem ter destinos na vida, e elas devem se mover de forma a chegar a
esses destinos.

Estes são, então, combinados com um fato simples, isto é,

Um longo passeio para uma série de destinos é uma viagem.

Quando estas frases são tomadas em conjunto, elas implicam um mapeamento metafórico
complexo:
282

Uma vida com propósito é uma viagem.


Uma pessoa vivendo uma vida é um viajante.
Objetivos da vida são destinos.
Um plano de vida é um itinerário.

Nas palavras dos autores,

Esse mapeamento define uma metáfora complexa composta por quatro sub-
metáforas. É uma consequência de (a) a crença cultural de que todos deveriam ter
um propósito na vida, (b) as metáforas primárias “Fins são destinos” e “Ação é o
movimento”, e (c) o fato de que um longo passeio para uma série de destinos é uma
viagem.
A importação completa dessa metáfora para nossas vidas surge através de seus
vínculos. Esses vínculos são consequências de nosso conhecimento cultural comum
sobre as viagens, especialmente:

Uma viagem requer planejamento de uma rota para os seus destinos.


Viagens podem ter obstáculos, e você deve tentar antecipá-los.
Você deve providenciar o que você precisa para sua viagem.
Como um viajante prudente você deve ter um itinerário indicando onde você
deve estar a que horas e para onde ir você deve ir a seguir.

Os três submapeamentos da metáfora “Uma vida com propósito é uma viagem”


transformam este conhecimento sobre viagens em orientações para a vida:

Uma vida com propósito requer planejamento como meio para alcançar seus
propósitos.
Vidas com propósitos podem enfrentar dificuldades, e você deve tentar
antecipá-las.
Você deve provera si mesmo com o que você precisa para seguir uma vida
com propósito.
Como uma pessoa prudente com objetivos de vida, você deve ter um plano de
vida global, indicando quais os objetivos necessários deverá atingir em que
momentos e quais os objetivos preparam o alcance dos seguintes. Você deve
sempre saber o que foi feito até agora e oque você vai fazer a seguir (Ibid., p.
62).

Com estes exemplos Lakoff e Johnson conseguem descrever satisfatoriamente sua


teoria geral das metáforas primárias e o processo pelo qual, a partir delas, se formam
conceitos – ou, ao menos, metáforas complexas.
Contudo identifica-se um problema nesta argumentação. Não fica claro na teoria,
mesmo com os exemplos – incluindo os de Gibbs –, de que modo as metáforas primárias
podem ser consideradas origens corpóreas dos conceitos. Dito de outro modo, não se
estabelece inequivocamente na argumentação dos autores que o ponto de partida da formação
de conceitos seja constituído por experiências corpóreas – a não ser no caso da teoria da
fusão. Mas mesmo assim, não parece que esta teoria explique todos os casos de associação
entre experiências sensório-motoras e “subjetivas”, ou mesmo grande quantidade deles.
283

Ademais, mesmo as experiências “subjetivas” deveriam se originar de processos corpóreos,


para que a teoria pudesse alcançar um número significativo de casos reais. Pode-se dizer que
esta é uma deficiência da teoria? Aparentemente, a se confiar apenas nos argumentos
apresentados nas passagens citadas, talvez seja o caso de se sugerir que, de fato, a teoria não
responde a esta questão. Porém, há uma outra vertente de pesquisas que, postula-se no
presente trabalho, pode responder satisfatoriamente a tal questionamento. Trata-se daquela
que se dedica a encontrar a fundamentação dos conceitos, e significados cognitivos em geral,
na percepção corpórea. Quanto a esta complementaridade entre teorias, cabe ressaltar que,
sendo a cognição corpórea uma frente de pesquisas recente e ainda em desenvolvimento, é
plausível que algumas das suas abordagens apresentem hipóteses limitadas ou mesmo
deficientes, o que justifica e mesmo exige que se considere a articulação complementar entre
as teorias como uma forma de gerar coerência na orientação como um todo. Seria essa uma
exigência, talvez, da complexidade do objeto, podendo-se mesmo admitir que, caso esta
suposta falha seja suprida por outras iniciativas investigativas, a riqueza da argumentação da
linguística corpórea seria plenamente aproveitada. Veremos que a abordagem corpóreo-afetiva
permite solucionar alguns dos problemas vislumbrados nas teses da linguística corpórea – até
porque, como possivelmente já tenha ficado patente, esta frente não se dedica intensivamente
a pesquisas biofisiológicas. O que não é o caso, entretanto, da investigação que levou à
hipótese dos símbolos perceptivos, e que será enfocada a seguir.
Esta linha de pesquisa, liderada principalmente por Lawrence Barsalou e Arthur
Glenberg, se dedica a explorar em que medida a percepção não deve ser considerada um
resultado apenas dos órgãos dos sentidos, e nem de cada um deles isoladamente. Em vez
disso, ela seria uma função desempenhada pelo corpo como um todo, em que a interocepção,
a propriocepção e a sinestesia teriam papeis fundamentais.
Para esta linha, os “símbolos de nível alto estão representados na memória em termos
das suas propriedades perceptivas” (GIBBS, JR, 2005, p. 165). Gibbs ainda expõe, com base
em Barsalou, que

Um significativo objetivo novo nas ciências cognitivas é estabelecer como processos


perceptivos orientam a construção de conceitos concretos e abstratos. O melhor
exemplo deste trabalho é o desenvolvimento da teoria de sistemas de símbolos
perceptivos. Símbolos perceptivos são derivados das representações geradas a partir
de sistemas de input perceptivos, mas são adquiridos através da realização de
operações sobre as representações perceptivas e são semelhantes a essas operações.
Assim, os símbolos perceptivos são esquemáticos, ainda que mantenham alguma da
estrutura das representações perceptivas da qual foram derivados. Ao contrário de
conceitos amodais, símbolos perceptivos são não arbitrários, dada a sua semelhança
com os objetos que representam (Ibid., p. 86).
284

Assim, o que está sendo chamado de símbolo perceptivo corresponde a resíduos de


experiências perceptivas passadas. Além disso, algo bastante importante é afirmado por
Gibbs: que os símbolos perceptivos são analógicos, por serem semelhantes às experiências
que “representam”. Neste sentido, este conceito tem características semelhantes às da noção
de esquema de imagem, tal como apresentada por Mark Johnson, tendo em vista que este
autor destacou e sentido não abstrato, não arbitrário e não proposicional (considerando as
definições tradicionais de proposição) desta noção. Porém, os símbolos perceptivos consistem
em uma noção mais completa, no sentido de ligar as experiências aos conceitos. Isto porque
se assume que, justamente, são símbolos. Sendo assim, possuem significado desde que
ocorrem – já que guardam o sentido das experiências que os geraram –, e carregam seu
significado até que sejam evocados em novas experiências. Deste modo, servem para dotar as
novas experiências de significados, e também para conferir sentido aos conceitos que
decorrem da série de experiências.
Uma das formas de relacionar os símbolos perceptivos com os conceitos é descrita
por Gibbs da seguinte maneira:

Outra implicação da teoria dos símbolos perceptivos é que, se uma conceituação


tenta simular uma experiência perceptiva, então ela deve tipicamente simular uma
situação, porque as situações são partes intrínsecas de uma experiência perceptiva.
Por exemplo, imaginar uma cadeira em uma sala de estar evoca uma cadeira de
maneira muito diferente do que imaginar uma cadeira em um avião (Ibid., p. 88-89).

Neste caso, o conceito de cadeira depende da simulação baseada em símbolos


perceptivos gerados em experiências anteriores. Esta hipótese se parece com a de
categorização prototípica, o que reforça a ideia de que a formulação de Eleanor Rosch e
outros autores – já referida anteriormente – seja fundamental para explicar como interações
sensório-motoras produzem conceitos. Como já foi dito, na hipótese da categorização
prototípica, e utilizando um exemplo semelhante, o conceito de cadeira corresponde ao nível
básico de categorização, uma vez que decorre de interações diretas dos seres humanos – de
sentar, construir, mover – com o tipo de objeto, as quais têm como efeito a imaginação
corpórea da categoria, o que não ocorre com conceitos de nível mais abstrato, como móvel,
que dependeriam da extração e posterior fusão, por parte do pensamento, das qualidades
comuns a cadeiras, mesas, armários, camas e outras ideias de nível básico.
George Lakoff aprofundou a hipótese de Rosch em seu livro de 1987, Women, fire,
and the dangerous things. Segundo Gibbs, Lakoff detalha da seguinte maneira a importância
das experiências corpóreas para a formação de conceitos:
285

Conceitos não são reflexos diretos de coisas na natureza, ao contrário da visão


tradicional. Conceitos não preservam diretamente aspectos externos dos objetos a
que se referem (...). Por exemplo, certas categorias cognitivas em meio de
hierarquias taxonômicas (isto é, categorias de nível básico) podem ser explicadas em
termos de certas propriedades não objetivas. A pesquisa empírica tem demonstrado
que o nível básico é especial pelas seguintes razões:
(1) É o mais alto nível em que os membros da categoria são percebidos de modo
semelhante em suas formas gerais. Por exemplo, você pode reconhecer uma cadeira
por sua forma geral. Mas não existe uma forma geral que você pode atribuir a uma
peça de mobiliário em geral de tal maneira que você possa reconhecer a categoria
pela forma.
(2) É o nível mais alto em que uma única imagem mental pode representar toda a
categoria. Você pode formar uma imagem mental de uma cadeira. Você pode obter
imagens mentais de outras categorias deste nível, como mesas e camas. Mas você
não pode obter uma imagem mental de uma peça geral de mobiliário que não seja
uma determinada peça, como uma mesa ou uma cama.
(3) É o nível mais alto em que uma pessoa usa ações motoras semelhantes na
interação com os membros da categoria. As pessoas têm programas motores para
interagir com objetos no nível básico – interagindo com cadeiras, mesas e camas.
Não há programas motores para interagir com peças de mobiliário em geral.
(4) É o nível em que a maioria do nosso conhecimento é organizado. Pense em tudo
o que você sabe sobre carros em face de tudo o que você sabe sobre os veículos.
Você sabe um punhado de coisas sobre os veículos, mas um número enorme de
coisas sobre carros. É no nível básico que a maioria das nossas informações úteis e
do conhecimento é organizada. (Ibid., p. 82).

Talvez a mais importante questão suscitada pela abordagem corpóreo-conceitual seja


a de se os símbolos perceptivos podem ser considerados como corpóreos. E se defende neste
trabalho uma resposta positiva a tal questionamento. Por um lado, ela ficará mais clara
quando for discutida a abordagem corpóreo-afetiva. Contudo já se pode apresentar um esboço
da ideia de como a percepção é corpórea – que vai ao encontro da hipótese das categorias
prototípicas, e rejeita a teoria cognitivista da percepção de Marr discutida na seção 1.2.3.2.:

A percepção não é um tipo de processamento de informação que colhe amostras,


seleciona aspectos ou aponta características de um mundo de objetos independente.
As pessoas não percebem primeiro, para depois criar um modelo interno em grande
escala do mundo, que é então usado para gerar a ação apropriada. Em vez disso, a
percepção envolve movimentos corporais de vários tipos e a antecipação de ações
para se adaptarem às situações ambientais. Deste modo, a percepção estabelece uma
recíproca relação da coordenação física do organismo com o ambiente. Este tipo de
acoplamento estrutural corpo-mundo é fundamentalmente baseado no movimento.
Uma abordagem corpórea da percepção e da ação vê estas como dinamicamente
interligadas, de tal modo que as propriedades físicas do mundo real não são
entidades a serem estaticamente percebidas, mas são oportunidades para a ação
(Ibid., p. 77).

Com estas observações conclui-se esta seção. Pelo que nela foi exposto, fica patente
que a abordagem corpóreo-conceitual é importante ao propor um processo temporal de
formação de conceitos nos seres humanos individuais, com base em suas experiências
corpóreas subjetivas, e ao reunir hipóteses de como este processo se dá. Além disso,
demonstra com clareza as preocupações metafísicas e políticas da cognição corpórea – que, de
286

certo modo, vão ao encontro do reconhecimento de que a cognição é também um processo


social, o que um estudo sobre a linguagem e os conceitos, como o feito pela abordagem
corpóreo-conceitual, deixa manifesto – uma vez que a linguagem e o significado das palavras
nela utilizadas se vinculam à dimensão intersubjetiva da vida humana. Também vimos como
especialmente Lakoff e Johnson se empenham em promover sínteses de estudos empíricos
para corroborar suas formulações mais gerais, confirmando a importância que atitudes de
liderança e sistematização, como as deles e de Varela, têm sido típicas e fundamentais para a
cognição corpórea. Porém, como se afirma desde o início deste trabalho, nenhuma das
abordagens da cognição corpórea parece ser suficiente, por si só, para constituir uma crítica
contundente ao cognitivismo, ao modelo lógico-proposicional e a suas aplicações sociais.
Aqui se defende que, sobretudo na questão da formação de conceitos e de ação a partir de
experiências passadas, a abordagem corpóreo-afetiva tem papel fundamental. Ao examiná-la,
na próxima seção, teremos ocasião de perceber como suas pesquisas empíricas contribuem
fundamentalmente para as suposições da cognição corpórea.

2.5. A abordagem corpóreo-afetiva

As pesquisas empíricas e hipóteses teóricas produzidas pela abordagem corpóreo-


afetiva são fundamentais para a cognição corpórea por três motivos principais, que serão
explorados nas próximas seções:
1) Ao enfatizar a função essencial das emoções e dos sentimentos na cognição – na
tomada de decisões, na formação das ideias e conceitos, e no processo de pensamento;
2) Ao fazê-lo ressaltando que emoções e sentimentos são acontecimentos essencialmente
corpóreos, porque se dão através de transformações nos corpos e numa interação
constante entre corpo e cérebro, de tal modo que fica patente a condição deste último
como parte do corpo, ainda que com funções cognitivas especiais;
3) Ao promover, assim, uma crítica ao modelo lógico-proposicional fortemente ancorada
em experimentos e observações neurológicas e fisiológicas, e voltada para os
pressupostos cognitivistas de que a cognição é essencialmente um processo
desencarnado, lógico, simbólico e livre de processos afetivos.

2.5.1. Afetividade, evolução e cognição

Algumas das principais questões enfrentadas pela abordagem corpóreo-afetiva podem


287

ser primeiramente tratadas a partir do seguinte diálogo entre o neurocientista Jean-Pierre


Changeux e o matemático Alain Connes, publicado na forma do livro Matière à pensée
(Matéria e pensamento, na edição em português aqui utilizada – CHANGEUX & CONNES,
1995 [1989]), na parte em que estes cientistas debatem as diferenças entre as possibilidades
cognitivas do ser humano e do computador.

CHANGEUX: Tratemos agora (...) da diferença entre o cérebro humano e as


“máquinas de pensar” atuais. Os computadores de que dispomos têm uma
performance muito boa para certas operações. Por exemplo, eles calculam com
extrema rapidez, fazem multiplicações de dez dígitos em alguns segundos, ou
mesmo em frações de segundo, mas são evidentemente limitados em outros
domínios (...). Aponta-se com frequência também que as máquinas são desprovidas
de “afetividade”, de “corpo”! Mas, principalmente, que são incapazes de
antecipação, de intencionalidade, que não podem construir o seu programa sem
“mestre” exterior. As suas faculdades de auto-organização são bem reduzidas, ou
mesmo inexistentes. Eu gostaria de saber o que você pensa a respeito, você que
pratica xadrez tendo por adversário uma máquina que sabe jogar, se não melhor do
que o homem, tão bem quanto. (...)
CONNES: Examinemos em primeiro lugar o caso das máquinas que jogam xadrez.
A intencionalidade é bem simples nesse caso: ganhar a partida. É uma coisa
extremamente simples de definir. Definir uma função de avaliação que considera a
que ponto se está próximo da intenção perseguida durante o jogo é relativamente
fácil. Pode-se construir uma máquina que utilize uma função de avaliação
determinada por essa intencionalidade bem definida. No caso do cérebro, pelo
contrário, a intencionalidade muda conforme os problemas que se apresentam. O
cérebro deve, desse modo, criar ele mesmo a função de avaliação adequada a uma
dada a intencionalidade. De modo mais preciso, ele deve poder apreciar essa função
de avaliação se adapta à intencionalidade dada. Ele deve, por conseguinte, possuir
uma função de avaliação de funções de avaliação! (CHANGEUX & CONNES, 1995
[1989], p. 185-186).

Esta passagem apresenta o que seria a limitação principal do computador, diante das
possibilidades cognitivas humanas, no entender dos autores. Para eles, esta limitação
corresponde à impossibilidade de o computador realizar avaliações mais complexas de seus
propósitos, o que acarretaria deficiências sérias na busca de alcançá-los.
A seguir, os autores discutem esta limitação introduzindo o tema da afetividade como
função ao mesmo tempo cognitiva e evolutiva, levando em conta a necessidade de o passado
ser considerado numa cognição propriamente humana.
288

CHANGEUX: Os computadores atuais não são mesmo capazes de ter intenções.


CONNES: Não, já que não se encontram em interação evolutiva com o mundo
físico. Apesar de sua memória, não têm outro passado além daquele que nós lhes
impomos. São não evolutivos. É certo que a afetividade intervém nesse fenômeno.
Quando nos atribuímos um objetivo, é para termos prazer, a menos que sejamos
masoquistas!
CHANGEUX: Essa capacidade de ter prazer é ela mesma determinada por nosso
passado evolutivo. Se nos autodestruíssemos com prazer, é certo que não estaríamos
aqui!
CONNES: Sem dúvida. Mas penso que o mecanismo que permite considerar se a
função de avaliação é apropriada ao objetivo supõe a afetividade. Esta, com efeito, é
necessária para que possamos apreciar o que se passou. A adaptação da função de
avaliação ao objetivo proposto só pode se medir pelo prazer ou desprazer por ela
provocado. Imaginemos, por exemplo, um jogador de xadrez que, ainda que seja
capaz de calcular como um computador, escolha uma má função de avaliação. É
evidente que ele ficará extremamente frustrado quando constatar que perde todas as
partidas que disputa. A escolha de uma má função de avaliação só lhe terá trazido
desprazer. Este, porém, só surgirá no final das partidas, e não antes. A sua função de
avaliação inadaptada o impedirá de compreender, durante o jogo, que a sua posição
é ruim, e que ele está em vias de perder. Contudo, em vista do resultado final, ele
compreenderá a inadequação de sua função de avaliação (Ibid., p. 187-188).

Há nestas passagens uma série de elementos fundamentais no questionamento da


importância dos afetos na cognição. Vejamos quais são:
1) Os seres humanos teriam superioridade cognitiva em relação aos computadores
em razão de limitações intrínsecas à constituição destes últimos;
2) A principal destas limitações seria quanto à capacidade de avaliar o alcance dos
propósitos cognitivos, e, assim, haver sucesso maior quanto a estes nos humanos;
3) Esta capacidade de avaliar dependeria de as experiências vividas no passado
poderem deixar marcas afetivas a serem utilizadas diante de situações futuras
semelhantes;
4) Esta capacidade afetiva da cognição teria implicações evolutivas importantes, na
medida em que permitiria ao indivíduo – e, por extensão, à espécie – superar com
maior eficiência e eficácia situações de sobrevivência, sendo que a afetividade
seria uma propriedade dinâmica, distribuída ao longo da sequência temporal dos
acontecimentos mediante marcas deixadas na memória corpórea do ser individual.
Supondo que estas questões sejam pertinentes, delas derivam outras, contudo. Por
exemplo, Changeux e Connes falam em intencionalidade como propriedade do cérebro, mas
também em afetividade como um processo capaz de aprimorar a intencionalidade. Mas seria a
afetividade uma capacidade (unicamente) cerebral? Ou envolveria atividades corpóreas? Se
envolver, como o cérebro e o corpo se relacionariam de modo a que as emoções possam
intervir no processo cognitivo?
Para buscar responder a tais questões, precisaremos examinar como um dos principais
289

autores da abordagem corpóreo-afetiva, António Damásio, explica a relação entre o cérebro o


corpo – uma vez que, como veremos, este cientista adota hipóteses que têm bastante a ver
com o discutido por Changeux e Connes nos diálogos acima reproduzidos, e, para tal,
necessita dar conta de como ocorre a relação entre corpo e cérebro nos seres humanos atuais.
Damásio afirma que o cérebro produz “mapas” do corpo, mas que esta “percepção”
cerebral tem características muito singulares.
Para ele,

nosso cérebro complexo produz naturalmente, com mais ou menos detalhes, mapas
explícitos das estruturas que compõem o corpo. Por força, também mapeia de modo
natural os estados funcionais que estes componentes do corpo assumem. Uma vez
que (...) os mapas cerebrais são a base das imagens mentais, o cérebro criador de
mapas tem o poder de literalmente introduzir o corpo como conteúdo do processo
mental. Graças ao cérebro, o corpo torna-se um tema natural da mente. (DAMÁSIO,
2009 [2011], p. 118).

Atribuir ao cérebro a capacidade de “perceber”, ou mesmo registrar, o corpo e suas


transformações é uma hipótese fundamental na cognição corpórea, uma vez que nesta
orientação não se poderia admitir uma cisão entre corpo e cérebro, sobretudo porque nela é
forçoso se supor que tanto um quanto o outro têm funções cognitivas. Porém, Damásio vai
mais longe – como seria necessário. Ele ressalta que corpo e cérebro não se influenciam
mutuamente de maneira esporádica. É da natureza de sua vinculação eles estarem em contínua
influência de mão dupla.

Mas esse mapeamento do corpo pelo cérebro tem um aspecto singular e


sistematicamente menosprezado: embora o corpo seja a coisa mapeada, ele nunca
perde o contato com a entidade mapeadora, o cérebro. Em circunstâncias normais, os
dois estão ligados do nascimento à morte. Igualmente é importante o fato de que as
imagens mapeadas do corpo têm um modo de influenciar permanentemente o
próprio corpo de que se originam. É uma situação sem igual. Não tem paralelo nas
imagens mapeadas de objetos e fenômenos externos ao corpo, que nunca podem
exercer influência direta sobre esses objetos e fenômenos. Acredito que qualquer
teoria da consciência que não leve em conta esses fatos está fadada ao fracasso
(Ibid., p. 119).

Deste modo, começa a se delinear uma compreensão da relação entre corpo e cérebro
desprezada pelo cognitivismo, já que atribuía ao cérebro unicamente a função de hospedar o
processo cognitivo de natureza lógico-proposicional e sem relação essencial com os
acontecimentos do corpo. Na teoria de Damásio, o corpo não apenas tem função essencial na
cognição – como será visto à frente – como precisa se relacionar de maneira orgânica e
permanente com aquela sua parte que se chama cérebro. E, indo ao encontro da abordagem
corpóreo-enativa, Damásio também atribui a esta correlação uma função vital. Em sua
perspectiva,
290

a tarefa de gerir a vida consiste em gerir um corpo, e essa gestão torna-se ainda mais
precisa e eficiente graças à presença de um cérebro (...). O tema dos neurônios é a
vida, e a gestão da vida em outras células do corpo, e que essa dedicação requer uma
sinalização de mão dupla. Os neurônios atuam sobre outras células do corpo via
mensagens químicas ou excitação de músculos, mas para cumprir sua missão
precisam de inspiração, digamos assim, fornecida pelo próprio corpo que eles devem
impelir. (Ibid.).

Sendo assim, o corpo e o cérebro são inseparáveis em seu funcionamento conjunto –


na qualidade de organismo –, o que tem implicações ao mesmo tempo cognitivas e vitais.
Com isso, se reforça a tese do enativismo de que a cognição é um processo essencial à vida,
orgânico, e envolvido na autoprodução do indivíduo.
A partir destas considerações se torna mais inteligível a tese de que a percepção dos
“objetos” do mundo depende de experiências corpóreas – tal como foi discutido no final da
seção 2.4.2. A contribuição de Damásio a essa questão será mencionada, a seguir, como uma
maneira de se articular a percepção do corpo com a percepção do mundo realizada com
participação do corpo.
Damásio afirma que

O organismo (o corpo e seu cérebro) interage com objetos, e o cérebro reage a esta
interação. Em vez de fazer um registro da estrutura de uma entidade, o cérebro
registra as várias consequências das interações do organismo com a entidade. O
que memorizamos de nosso encontro com determinado objeto não é só sua estrutura
visual mapeada nas imagens ópticas da retina. Os aspectos a seguir também são
necessários: primeiro, os padrões sensitivo-motores associados à visão do objeto
(como os movimentos dos olhos e pescoço ou o movimento do corpo inteiro, quando
for o caso); segundo, o padrão sensitivo-motor associado a tocar e manipular o
objeto (se for o caso); terceiro, o padrão sensitivo-motor resultante da evocação de
memórias previamente adquiridas relacionadas ao objeto; quarto, os padrões
sensitivo-motores relacionados ao desencadeamento de emoções e sentimentos
associados ao objeto (DAMÁSIO, 2011 [2009], p. 169 – grifo meu).

Com isso, apresenta uma hipótese fundamental para a cognição corpórea: de que a
percepção é essencialmente percepção do próprio corpo, ou das transformações que ocorrem
neste em sua interação com o mundo. Esta talvez seja uma das suposições mais importantes
da orientação que se estuda neste trabalho. E contribui, também, para a compreensão da
cognição como enação, ou seja, como codeterminação entre sujeito e objeto.
A frase grifada acima, contudo, desencadeia novamente a questão da cognição
afetiva, propriamente dita. Ela será o tema das próximas seções.
Todavia, antes de se dar por concluída a presente seção, é necessário caracterizar mais
claramente o sentido de memória, para Damásio. Isto porque, mais uma vez no âmbito da
cognição corpórea, encontra-se um conceito – o de memória – com um sentido bastante
diferente daquele usual no cognitivismo. E também porque, para se entender a importância
291

dos sentimentos e das emoções na cognição, é preciso se definir memória em função de


acontecimentos corpóreos.

O que normalmente denominamos memória de um objeto é a memória composta


das atividades sensitivas e motoras relacionadas à interação entre o organismo e o
objeto durante dado tempo. O conjunto das atividades sensório-motoras varia
conforme as circunstâncias e o valor do objeto, e o mesmo se dá com a retenção de
tais atividades. Nossas memórias de certos objetos são governadas por nosso
conhecimento prévio de objetos comparáveis ou de situações semelhantes. Nossas
memórias são preconceituadas, no sentido estrito do termo, pela nossa história e
crenças prévias. A memória perfeitamente fiel é um mito, aplicável tão somente a
objetos triviais. A ideia de que o cérebro retém alguma coisa parecida com uma
“memória do objeto” isolada parece insustentável (Ibid.).

A memória, assim como a percepção, jamais seria neutra não apenas no sentido de
não registrar os objetos como puros inputs, mas também no sentido de serem influenciadas
por novas retenções.

2.5.2. Sentimentos, emoções e a hipótese do marcador somático

Uma das mais relevantes contribuições para a cognição corpórea vincula


estreitamente emoções, sentimentos e cognição. Ela vem sendo desenvolvida por António
Damásio, com a colaboração de outros pesquisadores, e acrescenta dois pontos em geral
negligenciados – ao menos em termos de pesquisas empíricas – pelas outras abordagens da
orientação corpórea: o valor essencial das emoções e dos sentimentos na cognição, e o fato de
que este valor nasce da condição de os afetos serem acontecimentos fundamentalmente
corporais. Numa avaliação apressada, Damásio talvez nem seja considerado um cientista das
ciências cognitivas, ou da cognição corpórea. Contudo, seu trabalho deve ser avaliado pelos
efeitos profundos que produz no enfraquecimento do modelo lógico-proposicional e pela
condição de abordagem claramente complementar às demais da cognição corpórea. Talvez
uma primeira impressão de que Damásio não deveria ser incluído no rol dos cientistas
cognitivos se deva ao fato de ele raramente utilizar a palavra cognição em suas obras. Por
outro lado, a seguinte passagem torna inequívoca sua intenção de integrar esta orientação:

É muito provável que a mente não seja concebível sem algum tipo de corporeidade,
uma noção que tem lugar de destaque nas propostas teóricas de George Lakoff,
Mark Johnson, Eleanor Rosch, Francisco Varela e Gerald Edelman, e,
evidentemente, nas nossas próprias (DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 265).

Sendo assim, sua contribuição deve ser estudada nos aspectos em que se torna
fundamental para compor o todo da cognição corpórea, através de suas hipóteses sobre a
importância orgânica do corpo e dos afetos no processo cognitivo.
292

Uma primeira questão a ser esclarecida, com este objetivo, é a definição que Damásio
apresenta para sentimento e emoção – que, para ele, não são sinônimos.
As emoções, para Damásio, têm uma função vital. Assim, servem tanto para
comunicar significados a terceiros, como para o que ele chama de “orientação cognitiva”
(Ibid., p. 159). Ele fornece a seguinte definição de emoção:

Vejo a essência da emoção como a coleção de mudanças no estado do corpo que são
induzidas numa infinidade de órgãos por meio das terminações das células nervosas
sob o controle de um sistema cerebral dedicado, o qual responde ao conteúdo dos
pensamentos relativos a uma determinada entidade ou acontecimento. Muitas das
alterações do estado do corpo — na cor da pele, postura corporal e expressão facial,
por exemplo — são efetivamente perceptíveis para um observador externo. (Com
efeito, a etimologia da palavra sugere corretamente uma direção externa a partir do
corpo: emoção significa literalmente “movimento para fora”). Existem outras
alterações do estado do corpo que só são perceptíveis pelo dono desse corpo. (...)
Em conclusão, a emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples
ou complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas
ao corpo propriamente dito, resultando num estado emocionai do corpo, mas
também dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco
cerebral), resultando em alterações mentais adicionais. (Ibid., p. 168-169).

Ou seja, Damásio compreende emoções como transformações corpóreas percebidas


pelo cérebro, derivadas de percepções. E ele classifica as emoções entre primárias e
secundárias, no que reforça seu sentido de sobrevivência e evolutivo. As primeiras seriam
inatas, e comuns a certos animais – incluindo os seres humanos, estando presentes nos bebês.
Teriam uma função claramente de defesa do organismo diante de ameaças externas, sem que
seja necessária a consciência racional. Ele dá exemplos como o das reações a perigos como

o tamanho (animais de grande porte); uma grande envergadura (águias em voo); o


tipo de movimento (como o dos répteis); determinados sons (como os rugidos);
certas configurações do estado do corpo (a dor sentida durante um ataque cardíaco).
Essas características, individualmente ou em conjunto, seriam processadas e depois
detectadas por um componente do sistema límbico do cérebro, digamos, a amígdala;
seus núcleos neuronais possuem uma representação dispositiva que desencadeia a
ativação de um estado do corpo, característico da emoção de medo, e que altera o
processamento cognitivo de modo a corresponder a esse estado de medo (Ibid., p.
160).

Já as emoções secundárias são analisadas no processo de pensamento, a partir das emoções


primárias. Para compreender como elas nascem, é preciso que se leve em consideração o
conceito damasiano de “representação dispositiva” ou “disposição”, que requer o seguinte
exemplo por ele apresentado:
293

Se você possui uma representação dispositiva para o rosto de tia Maria, essa
representação não contém o rosto dela como tal, mas os padrões de disparo que
desencadeiam a reconstrução momentânea de uma representação aproximada desse
rosto nos córtices visuais iniciais. As várias representações dispositivas que
necessitariam disparar de modo mais ou menos sincronizado, para que o rosto de tia
Maria aparecesse no campo de sua mente, estão localizadas em vários córtices
visuais de associação de alto nível (...). A mesma arquitetura aplicar-se-ia no nível
do domínio auditivo. Existem representações dispositivas para a voz de tia Maria
nos córtices de associação auditivos, as quais podem disparar para os córtices
auditivos iniciais e gerar momentaneamente a representação aproximada da voz (...)
O que estou chamando de uma representação dispositiva é uma potencialidade de
disparo dormente que ganha vida quando os neurônios se acionam com um
determinado padrão, a um determinado ritmo, num determinado intervalo de tempo
e em direção a um alvo particular, que é outro conjunto de neurônios. (Ibid., p. 130-
131).

Além disso, as representações dispositivas são consideradas como constituintes do que


ele chama de “conhecimento”. Os conhecimentos podem ser inatos ou adquiridos. Como
Damásio julga haver uma continuidade de natureza entre processos cognitivos e vitais – do
mesmo modo como o enativismo –, chama de conhecimentos inatos aqueles que nosso
organismo “possui” automaticamente para se manter vivo.

As representações dispositivas constituem o nosso depósito integral de saber e


incluem tanto o conhecimento inato como o adquirido por meio da experiência. O
conhecimento inato baseia-se em representações dispositivas existentes no
hipotálamo, no tronco cerebral e no sistema límbico. Podemos concebê-lo como
comandos da regulação biológica necessários para a sobrevivência (isto é, o controle
do metabolismo, impulsos e instintos). Eles controlam muitos processos, mas, de um
modo geral, não se transformam em imagens na mente. (...) O conhecimento
adquirido baseia-se em representações dispositivas existentes tanto nos córtices de
alto nível como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo do
nível do córtex. Algumas dessas representações dispositivas contêm registros sobre o
conhecimento imagético que podemos evocar e que é utilizado para o movimento, o
raciocínio, o planejamento e a criatividade; e outras contêm registros de regras e de
estratégias com as quais manipulamos essas imagens. A aquisição de conhecimento
novo é conseguida pela modificação continua dessas representações dispositivas
(Ibid., p. 132-133).

Assim, as emoções secundárias são provenientes de representações dispositivas


adquiridas pela experiência e, portanto, são individuais, correspondentes a uma única história
de vida. Isto fica mais claro quando se considera que o processo emotivo inerente à cognição
não se limita a alterações corporais. Para Damásio, o ciclo prossegue nos seres humanos e
inclui a sensação da emoção em relação ao objeto envolvido, o que ele chama de percepção da
relação entre o objeto e a transformação emocional. É neste ponto que a consciência intervém,
segundo ele. Isto porque, se as emoções primárias têm função de proteção do indivíduo,
294

a consciência proporciona uma estratégia de proteção ampliada. Pense no seguinte:


se vier a saber que o animal ou a situação X causa medo, você tem duas formas de se
comportar em relação a X. A primeira é inata, você não a controla; além disso, não é
específica de X: pode ser causada por um grande número de seres, objetos e
circunstâncias. A segunda forma baseia-se na própria experiência e é específica de
X.O conhecimento de X permite-lhe pensar com antecipação e prever a
probabilidade de sua presença num dado meio ambiente, de modo a conseguir evitar
X antecipadamente, em vez de ter de reagir a sua presença numa emergência.
Mas há outras vantagens de “sentir” as próprias reações emocionais. Você pode
generalizar o conhecimento acerca delas e decidir, por exemplo, acautelar-se em
relação a algo que se assemelha a X. (Claro que, se generalizar em excesso e se
comportar deforma extremamente cautelosa, poderá cair na fobia — o que não é tão
bom.) Além do mais, você pode ter descoberto, durante o encontro com X, algo de
peculiar e potencialmente vulnerável no comportamento dele. Pode querer explorar
essa vulnerabilidade no próximo encontro, e esse é mais um motivo por que você
precisa conhecer a emoção. Em síntese, sentir os estados emocionais, o que equivale
a afirmar que se tem consciência das emoções, oferece-nos flexibilidade de resposta
com base na história específica dessas interações com o meio- ambiente (Ibid., p.
161).

Desta passagem se extrai o sentido damasiano de sentimento. Os sentimentos são,


exatamente – para o que se pretende explorar aqui – os sentimentos de emoções. Consistem na
percepção cerebral das alterações corpóreas que ele chama de emoções. Os sentimentos
resultam do acompanhamento contínuo do que se passa no corpo enquanto pensamentos
acontecem. Assim,

Se uma emoção é um conjunto das alterações no estado do corpo associadas a certas


imagens mentais que ativaram um sistema cerebral específico, a essência do sentir
uma emoção é a experiência dessas alterações em justaposição com as imagens
mentais que geraram o ciclo (Ibid., p. 175).

Esta ideia é congruente com a de que corpo e cérebro são, para Damásio,
indissociáveis no processo cognitivo, como já foi visto na subseção anterior.
Examinadas brevemente estas noções, a esta altura já se pode avançar na direção de
uma hipótese mais complexa sobre o papel das emoções na cognição. Trata-se da hipótese do
marcador somático – que se aproxima das questões mencionadas por Changeux e Connes, e
que se vincula à questão da função de avaliação por eles mencionada. Segundo Damásio,

Em suma, os marcadores-somáticos são um caso especial do uso de sentimentos


gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e sentimentos foram
ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos de determinados
cenários. Quando um marcador-somático negativo é justaposto a um determinado
resultado futuro, a combinação funciona como uma campainha de alarme. Quando,
ao contrário, é justaposto um marcador-somático positivo, o resultado é um
incentivo. (...) A simbiose entre os chamados processos cognitivos e os processos
geralmente designados por “emocionais” torna-se evidente (Ibid., p. 206-207).

Esta hipótese decorre de duas necessidades enfrentadas por Damásio: a primeira é a


de explicar por que algumas pessoas, com lesões no lobo pré-frontal, apresentaram
295

comportamento aparentemente irracional (Ibid., p 23-76); a segunda é a de avaliar a


conjectura de que os seres humanos não tomam decisões após promoverem uma análise
plenamente racional e lógica de todas as possibilidades e consequências destas, mas lançam
mão de disposições emocionais passadas como “atalhos” (Ibid., p. 226-227).
A hipótese do marcador-somático, no primeiro caso, se aplica porque Damásio e seus
colaboradores suscitaram a consideração de que a lesão no lobo pré-frontal danificaria
justamente a parte do cérebro responsável pelo processamento das emoções. Assim, os
pacientes acometidos desta deficiência teriam prejuízos em sua conduta racional precisamente
por terem perdido a função cognitiva das emoções. No segundo caso, a ideia é conjecturar
algo bastante mais amplo: que os seres humanos “normais” não podem prescindir de sua
capacidade de usar as emoções para tomar decisões, uma vez que a razão lógica – ou algo
como o modelo lógico-proposicional da cognição94 – não seria tão eficaz ou eficiente.
Fazendo convergirem as considerações de Changeux e Connes com as de Damásio, a hipótese
do marcado-somático constitui uma suposição que enfraquece profundamente a imagem
computacional da cognição humana. Levemos em consideração algumas observações de
Damásio que reforçam essa ideia.

Imagine agora que antes de aplicar qualquer análise de custos/benefícios às


premissas, e antes de raciocinar com vista à solução do problema, sucede algo
importante. Quando lhe surge um mau resultado associado a uma dada opção de
resposta, por mais fugaz que seja, você sente uma sensação visceral desagradável.
Como a sensação é corporal, atribuí ao fenômeno o termo técnico de estado
somático (em grego, soma quer dizer corpo); e, porque o estado “marca” uma
imagem, chamo-lhe marcador. Repare mais uma vez que uso somático na acepção
mais genérica (aquilo que pertence ao corpo) e incluo tanto as sensações viscerais
como as não viscerais quando me refiro aos marcadores-somáticos. Qual a função do
marcador-somático? Ele faz convergir a atenção para o resultado negativo a que a
ação pode conduzir e atua como um sinal de alarme automático que diz: atenção ao
perigo decorrente de escolher a ação que terá esse resultado. O sinal pode fazer com
que você rejeite imediatamente o rumo de ação negativo, levando-o a escolher outras
alternativas. O sinal automático protege-o de prejuízos futuros, sem mais hesitações,
e permite-lhe depois escolher entre um número menor de alternativas. A análise
custos/benefícios e a capacidade dedutiva adequada ainda têm seu lugar, mas só
depois de esse processo automático reduzir drasticamente o número de opções. Os
marcadores-somáticos podem não ser suficientes para a tomada de decisão humana
normal, dado que, em muitos casos, mas não em todos, é necessário um processo
subsequente de raciocínio e de seleção final. Mas os marcadores-somáticos
aumentam provavelmente a precisão e a eficiência do processo de decisão. Sua
ausência as reduz (Ibid., p. 205).

Extrai-se deste trecho uma consequência importante. Embora não se possa dizer que

94
Um dos pais deste modelo, Herbert Simon, também propôs, como já mencionado, a teoria da racionalidade
limitada, em que postula modos de decisão não plenamente analíticos. Mas ainda assim, são modos em que as
emoções não têm lugar central e decisivo, como na hipótese de Damásio. Para conjecturas semelhantes às de
Damásio, na questão das escolhas econômicas, cf. TVERSKY & KAHNEMAN, 1974; KAHNEMAN, 2011.
296

seja impossível um processo decisório ou cognitivo sem a participação intrínseca das emoções
– e, portanto, de processos eminentemente corpóreos –, o que decorre desta hipótese é que os
processos mais propensos a proporcionar a sobrevivência do indivíduo e da espécie são
aqueles em que prepondera a presença funcional e cognitiva de emoções. Isto quer dizer
também que nos processos que tendem a manter a vida de modo mais econômico, a análise
lógica de custo/benefício não é o padrão dominante. Outra maneira de tratar desta questão
envolve lançar mão do conceito de homeostasia, tão caro a Damásio. Concebida por Walter
Cannon, a ideia de homeostasia significa a capacidade de os seres vivos manterem a
constância de certas variáveis orgânicas ao longo do tempo e, assim, sustentarem as condições
necessárias à manutenção da vida (CANNON, 1932). Como o conceito de autopoiese, a
homeostasia pode ser considerada um processo de autodeterminação e autoprodução, uma vez
que é promovido pelo próprio indivíduo. Ele envolve a regulação interna da temperatura do
corpo, a concentração de vários nutrientes e hormônios, assim como a salinidade, o pH e
outras variáveis vitais. Damásio inclui dentre os fatores relacionados com a homeostasia o
papel das emoções na tomada de decisões. Dando o exemplo do que se pode passar na
percepção de uma paisagem predileta, Damásio, afirma que o organismo seleciona ativamente
uma série de elementos deste processo. O cristalino e a íris graduam a entrada de luz e variam
suas próprias dimensões, o globo ocular é dirigido automaticamente por diversos músculos
para melhor captar a cena, o mesmo acontecendo com a musculatura do pescoço e da cabeça.
Segundo ele, “todos esses ajustamentos dependem de sinais vindos do cérebro para o corpo e
de sinais correspondentes do corpo para o cérebro” (Ibid., p. 255). Mas o ciclo não se
interrompe, porque quando a cena chega ao cérebro, “a partir de representações dispositivas
em diversas áreas, o resto do corpo também participa do processo” (Ibid.). E ele completa,
numa série de considerações típicas das posições sobre percepção da orientação corpórea:

Ter percepção do meio ambiente não é, portanto, apenas uma questão de fazer
com que o cérebro receba sinais diretos de um determinado estímulo, muito
menos imagens fotográficas diretas. O organismo altera-se ativamente de modo
a obter a melhor interface possível. O corpo não é passivo. Cabe notar também um
outro aspecto talvez não menos importante: a razão pela qual têm lugar a maioria
das interações com o meio ambiente deve-se ao fato de o organismo necessitar que
elas ocorram a fim de manter a homeostasia, ou seja, um estado de equilíbrio
funcional. O organismo atua constantemente sobre o meio ambiente (no princípio
foram as ações), de modo a poder propiciar as interações necessárias à
sobrevivência. Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente alimento, sexo
e abrigo, é necessário sentir o meio ambiente (cheirar, saborear, tocar, ouvir, ver)
para que se possam formular respostas adequadas ao que foi sentido. A percepção é
tanto atuar sobre o meio ambiente como dele receber sinais (Ibid., 256 – grifo em
negrito meu).

E como as emoções e os sentimentos se integram ao processo homeostático de


297

sobrevivência? Primeiramente, Damásio descreve as alterações emocionais como sendo de


mesma natureza que outras alterações, que tendem a se estabilizar em padrões de
sobrevivência. Analisando situações em que deparamos com fatos que nos provocam
alterações emocionais – como encontrar um velho amigo, ou ficar sabendo da morte de outro
– ele assim descreve o que se passa:

Em qualquer dos casos, registram-se mudanças numa série de parâmetros relativos


ao funcionamento das vísceras (coração, pulmões, intestinos, pele), musculatura
esquelética (a que está ligada aos ossos) e glândulas endócrinas (como a pituitária e
as suprarrenais). O cérebro libera moduladores peptídeos para a corrente sanguínea.
O sistema imunológico também se altera rapidamente. O ritmo de atividade dos
músculos lisos nas paredes das artérias pode aumentar e originara contração e o
estreitamento dos vasos sanguíneos (o resultado é a palidez); ou diminuir, caso em
que os músculos lisos relaxam e os vasos sanguíneos se dilatam (o resultado é o
rubor). De um modo geral, o conjunto de alterações estabelece um perfil de desvios
reativamente a uma gama de estados médios que correspondem ao equilíbrio
funcional, ou homeostase, de acordo com o qual a economia do organismo funciona
provavelmente no seu nível ótimo, dispendendo menos energia e procedendo a
ajustamentos mais simples e rápidos. Esse equilíbrio funcional não deve ser visto
como algo estático; elo é uma sucessão continua de alterações de perfil, as quais
apresentam limites superiores e inferiores que se encontram em constante
deslocamento. Poderia ser comparado a uma cama de água quando alguém caminha
sobre ela em várias direções: algumas zonas descem enquanto outras sobem;
formam-se ondulações; toda a cama se altera, mas as mudanças ocorrem dentro de
uma gama de valores especificada pelos limites físicos da unidade: um espaço
delimitado que contém uma determinada quantidade de liquido.
Nessa hipotética experiência de emoção, muitas partes do corpo são levadas a um
novo estado em que são introduzidas mudanças significativas (Ibid., p. 164-165).

Já a respeito dos sentimentos, Damásio afirma que estes “exercem uma forte
influência sobre a razão, que os sistemas cerebrais necessários aos primeiros se encontram
enredados nos sistemas necessários à segunda e que esses sistemas específicos estão
interligados com os que regulam o corpo” (Ibid., p. 276). Esta asserção de Damásio recoloca a
questão do marcador-somático e a integra ao tema da homeostasia. Isto quer dizer que a
tomada de decisões nos seres humanos depende das emoções e dos sentimentos, e que este é
um padrão que contribui para a sobrevivência racional e para um melhor acoplamento com o
ambiente tipicamente humano – social, por essência.
As principais considerações sobre a importância da obra de Damásio para a cognição
corpórea foram feitas. Os pontos principais de sua contribuição correspondem à importância
das emoções e dos sentimentos para uma compreensão corpórea da cognição.
298

3. A ORIENTAÇÃO CORPÓREA COMO PROJETO UNIFICADOR

Neste trabalho é defendida a hipótese de que a orientação corpórea das ciências


cognitivas não promove uma crítica apenas epistemológica à tradição cognitivista e a seu
modelo lógico-proposicional da cognição. Segundo a perspectiva aqui adotada, esta crítica é
sobretudo ontológica, metafísica e política.
Ontológica, porque compreende a cognição não apenas em seus aspectos de relação
com a realidade, mas como criação continuada de realidades. Neste sentido, a criação se dá na
e pela experiência, como processo vital que não admite a separação entre sujeito e objeto
como polos transcendentes e plenamente discerníveis. Criação, assim, se opõe a
representação, ao caráter passivo do sujeito como espelho do mundo, à noção de cognição
como operação de uma sequência lógica de símbolos que independem das atividades de
sobrevivência dos organismos particulares.
Metafísica, porque admite que as ciências cognitivas – assim como todas as ciências
– não escapam das crenças metafísicas de seus autores, e que não há como estabelecer perene
objetividade ou pura neutralidade no fazer científico. Evidentemente, tal convicção não
decorre, apenas, das obras de filósofos da ciência como Kuhn, Polanyi, Hanson e Feyerabend
– para citar apenas alguns dos mais influentes na crítica aos pressupostos do Positivismo
Lógico. Afinal, os próprios autores da cognição corpórea radicalizaram as teses destes
filósofos em relação a toda cognição – e não apenas à cognição científica –, de modo
semelhante àquele com que os cognitivistas tenderam a aplicar a toda a cognição os princípios
defendidos para a ciência pelo Positivismo Lógico (como já foi visto no capítulo 1). É
coerente com as teses da cognição corpórea, portanto, atribuir aos próprios cientistas –
inclusive aos cognitivos, certamente – a dependência dos significados que produzem à história
de suas experiências corpóreas e de sua integração singular com seus mundos. Devemos,
entretanto, afastar destas considerações as acepções de metafísica que estendem este conceito
às crenças religiosas e aos misticismos. Não é preciso ir tão longe no que escapa à precisão ou
ao controle lógico. Basta que se permaneça no terreno daquilo que há de mais mundano, e que
se compreenda o conceito de metafísica, no caso das presentes observações, como
correspondendo basicamente ao conjunto dos significados de tudo o que não é capturável
pelas quantificações, pelas formalizações – pela objetividade matematizável. Sendo assim, a
crítica da cognição corpórea é metafísica porque não se coloca de antemão como um
conhecimento objetivo e neutro, e porque aponta no cognitivismo justamente as limitações
decorrentes da crença na objetividade dos significados cognitivos.
299

Política, porque atribui ao cognitivismo uma imagem de ser humano limitada e


limitadora, em que todo pensamento é restrito à formalização lógica e à heteronomia do
representacionismo, e em que uma forma geral da razão sempre se impõe às experiências
individuais. Com isso, admite de antemão que na ciência possam se instaurar conflitos
decorrentes de diferentes modos de conceber a realidade, ou de conferir sentido social à
própria ciência – o que corresponde à descrença na possibilidade de neutralidade científica.
Corroborando esta posição, a orientação corpórea afirma suas teses não somente como
resultados de investigações científicas mas, também, como modos mais adequados de o ser
humano compreender a si mesmo, através de imagens, noções e modelos aos quais se atribui
maior poder libertador. Não se deve deixar de assinalar, também, que o posicionamento
político dos principais autores da cognição corpórea não se restringe ao campo das teorias
científicas sobre a cognição. Ele pressupõe as consequências sociais da aplicação destas
teorias, na forma da disseminação de uma imagem – descritiva, mas também muitas vezes
prescritiva – mecânica de ser humano, que se pode encontrar nas práticas de ensino, terapia,
gestão de pessoas, organização social, entre outras.
É importante reiterar que, como a orientação corpórea não se unifica em torno de um
modelo geral da cognição – como foi o caso das ciências cognitivas ortodoxas –, e como, por
este motivo, ela não poderia pretender manter as ciências cognitivas coesas com base em uma
imagem formal de seu objeto, sua unidade passa a ser uma busca permanente, dependente da
tarefa coletiva de propor uma nova imagem de ser humano e de realidade (inclusive social) –
a partir, justamente, de posicionamentos ontológicos, metafísicos e políticos de suas
lideranças científicas. E é dinâmica, múltipla e complexa, como a imagem mais geral de ser
humano que a cognição corpórea busca adotar, sua contínua tentativa de unificação. Mas
nesta tentativa permanente podemos identificar alguns traços de união mais estáveis. Um
deles é exatamente a postura ontológica. É compartilhada explicitamente pelas abordagens
corpóreo-enativista e corpóreo-conceitual – embora possa ser encontrada de forma não
diretamente assumida na abordagem corpóreo-afetiva, como já tivemos ocasião de notar. Já
foi examinada anteriormente a crítica ontológica da cognição corpórea ao cognitivismo, em
várias partes deste trabalho. E, como foi dito, esta crítica é inseparável de uma concepção de
realidade, compartilhada por grande parte dos autores da cognição corpórea: aquela que
compreende a cognição como cocriação imanente de sujeito e mundo, por recusar a ideia da
existência transcendente dos sujeitos, dos objetos e da própria estrutura lógico-racional do
pensamento.
Também se encontra no posicionamento metafísico comum mais um traço de união
300

da orientação corpórea. E este posicionamento não se resume às considerações ontológicas já


examinadas anteriormente. Ele também se manifesta nas atitudes dos principais autores da
cognição corpórea, que não hesitam em apontar posturas metafísicas no cognitivismo, nas
tradições filosóficas que o influenciaram e nas aplicações técnicas de sua imagem de cognição
– mas também assumem suas próprias inclinações e pressupostos metafísicos, que são
assumidos como transbordando tentativas de formalização racional suficiente.
Assim como já foi sublinhado, o posicionamento político, em busca da adoção social
de uma nova imagem de ser humano e do processo cognitivo, também é uma atitude comum
aos autores da cognição corpórea. Talvez seja a atitude comum mais geralmente explícita nos
principais textos desta corrente.
Como se deve perceber, estes três posicionamentos – ontológico, metafísico e político
– não são facilmente separáveis. Eles se misturam, ao constituírem um quadro de práticas e
afirmações que perpassam o conjunto da orientação corpórea – embora a proposta deste
trabalho exija seu discernimento em algum grau. Contudo, nenhum destes posicionamentos é
suficiente para sustentar a cognição corpórea. Ao contrário, este trabalho tem buscado
demonstrar como os resultados das pesquisas científicas das diversas abordagens da cognição
corpórea constituem a efetiva substância de sua contribuição. Esta concepção é coerente com
o método adotado na presente pesquisa, que não confere predominância nem aos aspectos
conceituais, nem aos aspectos históricos da dinâmica das ciências cognitivas. O que se tenta
fazer aqui é um exame de como, ao longo da história das ciências cognitivas, fatos, eventos e
atitudes dos principais pesquisadores, foram importantes na formação das teorias e dos
conceitos por eles elaborados – sem deixar de dedicar grande atenção às estruturas internas
destas teorias e destes conceitos, assim como às argumentações que procuram defendê-los.
Neste sentido, também se considera na presente investigação a extrema importância
das articulações teóricas entre as diversas frentes de pesquisa da cognição corpórea para sua
unificação. Uma hipótese central aqui defendida é de que uma estrutura geral da cognição
corpórea é identificável não apenas a partir de posicionamentos ontológicos, metafísicos e
políticos de seus autores mas, talvez sobretudo, a partir de conexões teórico-conceituais entre
as abordagens – o que se buscará explicitar nas próximas seções. Para nortear estas conexões,
são explicitadas aqui as seguintes dimensões da orientação corpórea, já referidas
anteriormente:
• A dimensão ontológica, que corresponde à concepção da cognição como cocriação de
sujeito e objeto;
301

• A dimensão vital e evolutiva, que corresponde à concepção da cognição como


processo organicamente integrado às atividades biorreguladoras do ser humano;
• A dimensão temporal, que corresponde à concepção da cognição como articulação, no
tempo, de experiências individuais do organismo, que dependem da estrutura deste,
mas também contribuem para transformá-la.
Para que fique mais clara a hipótese de unificação teórico-conceitual da cognição
corpórea defendida neste trabalho, as articulações deste tipo serão examinadas – muito
brevemente – aos pares, vale dizer, entre duas das frentes de pesquisa de cada vez, em função
das dimensões acima propostas.
Em linhas gerais, as articulações aqui propostas são as seguintes:
a) Articulação conceitual-enativa: baseada sobretudo no compartilhamento da crítica e
das propostas ontológicas para a cognição pelas abordagens corpóreo-enativista e
corpóreo-conceitual; ou seja, corresponde ao que aqui foi chamado de dimensão
ontológica;
b) Articulação enativo-afetiva: baseada sobretudo no compartilhamento da crítica e das
propostas vitais e evolutivas para a cognição pelas abordagens corpóreo-enativista e
corpóreo-afetiva; ou seja, corresponde ao que aqui foi chamado de dimensão vital e
evolutiva;
c) Articulação conceitual-afetiva: baseada sobretudo no compartilhamento da crítica e
das propostas temporais para a cognição pelas abordagens corpóreo-conceitual e
corpóreo-afetiva; ou seja, corresponde ao que aqui foi chamado de dimensão temporal.
Mas, além disso, se constata que estas abordagens se influenciaram reciprocamente
nas suas origens, e têm mantido ligações através de mútuas referências. São abundantes estas
referências, dentre as quais se destacam: as da abordagem corpóreo-conceitual sobre os
autores do enativismo (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 78, 97; JOHNSON, 2007, p. 67,
118, 136) e sobre a abordagem corpóreo-afetiva (JOHNSON, 2007, p. 54-68); as da
abordagem corpóreo-enativa sobre Lakoff e Johnson (VARELA et al, p. 157-158, 167, 181) e
sobre a autores da abordagem corpóreo-afetiva (THOMPSON & VARELA, 2001,
THOMPSON, 2007, p. 161, 224, 235, 456n; COLOMBETTI & THOMPSON, 2008;
COLEMBETTI, 2014); e as da abordagem corpóreo-afetiva sobre Lakoff e Johnson
(DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 254, 265, 318-319; 2011 [2009], p. 395n, 396n; DAMÁSIO,
2003, p. 204) e sobre os autores do enativismo (DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 265, 314).
E, como foi acima aludido, já se encontra hoje, no livro The meaning of the body, de
Mark Johnson, uma abrangente síntese daquilo que aqui é identificado na forma de três
302

abordagens da cognição corpórea. Johnson, nesta obra, já se utiliza do termo enação,


incorporado à sua própria argumentação, e desenvolve numerosas considerações nas quais
integra plenamente o trabalho de António Damásio e Joseph LeDoux à cognição corpórea.

3.1. A articulação conceitual-enativa

Como foi dito, esta articulação corresponde, principalmente, ao que foi anteriormente
chamado de dimensão ontológica da cognição corpórea. Porém, esta dimensão não deve ser
confundida com um posicionamento filosófico mais geral dos principais autores desta
corrente. Em vez disso, ela é aqui investigada com foco no interior das teorias científicas
apresentadas pelos pesquisadores da orientação corpórea. Portanto, constitui uma dimensão
propriamente científica suficientemente caracterizável, embora não possamos afirmar que seja
separável de maneira absoluta das concepções metafísicas dos cientistas que a têm elaborado.
O fato de não serem muito frequentes – embora numerosas – as referências mútuas
entre os autores das abordagens corpóreo-enativista e corpóreo-conceitual não obscurece o
que já foi visto anteriormente: os vínculos entre elas são bastante fortes. E o principal vínculo
está na crítica que ambas fazem ao objetivismo que supõem embasar o representacionismo
das ciências cognitivas tradicionais. Porém, as críticas e propostas que partem das duas frentes
de pesquisa diferem um pouco em dois aspectos: tanto na origem filosófica, quanto nas
formulações que apresentam.
Como já foi aqui reiteradamente afirmado, a frente de pesquisa corpóreo-enativista se
destaca por sua abordagem biológica. Foi a partir do conceito de autopoiese que o enativismo
desenvolveu sua noção singular de autonomia dos organismos vivos, o que permitiu que
produzisse a ideia de cognição como processo essencial para a vida. Seu enfoque ontológico
da cognição, portanto, não se limita a uma compreensão estática da relação entre o ser
humano e a realidade, mas se dedica a estudar como a realidade se cria, materialmente, no
acoplamento entre o organismo individual e o mundo. Assim, cognição, para a frente de
pesquisa corpóreo-enativista, é um processo de transformação material, que faz parte da
atividade de autoprodução dos organismos. Implica também a transformação do mundo do
organismo, dado que conhecer é uma atividade, uma intervenção, uma criação de sentido
concreto (VARELA, 1995). Como já foi visto, esta perspectiva biológica do enativismo se
articula com a fenomenologia de Merleau-Ponty.
Por outro lado, a abordagem corpóreo-conceitual, por se dedicar sobretudo às
questões linguísticas da cognição, faz sua crítica e sua formulação ontológicas de maneira um
303

tanto diferente daquelas feitas pela abordagem corpóreo-enativista. Sua rejeição ao


objetivismo, como já foi abordado anteriormente, se baseia especialmente nos argumentos de
Hilary Putnam e Richard Rorty, e tem conteúdo eminentemente lógico.
No entanto, o que se propõe neste trabalho é que estas diferenças, ao contrário de
criarem incompatibilidades entre as posições ontológicas de ambas as abordagens,
proporcionam um reforço mútuo e sua complementaridade. Dito de outra forma, entende-se
aqui que a dimensão ontológica da cognição corpórea se robustece mediante a
complementação entre ambas as abordagens.
Enquanto a abordagem corpóreo-enativista enraíza a sua posição ontológica no
aspecto biológico e material da cognição, a abordagem corpóreo-conceitual o faz através da
atenção que dá ao modo como os significados surgem na cognição, mediante o papel das
interações corpóreas na linguagem e no pensamento. Em outras palavras, embora a
abordagem corpóreo-enativista também recuse a representação dos objetos predeterminados
como fonte de significados para a cognição, a abordagem corpóreo-conceitual se dedica a
aprofundar o exame desta questão, justamente por eleger como foco de sua investigação o
processo de formação de conceitos e os aspectos corpóreos da linguagem humana. Além
disso, enquanto a frente corpóreo-enativista dá especial atenção à percepção, a frente
corpóreo-conceitual privilegia o estudo do pensamento e da relação entre as palavras e as
experiências. Enquanto uma abordagem se preocupa com a relação mais direta entre
percepção e ação – por isso mesmo se apoiando também em pesquisas com animais não
humanos –, a outra investiga preferencialmente os processos que se instauram entre a
percepção e a ação, especialmente nos seres humanos.
Encontramos testemunhos desta articulação complementar entre ambas as abordagens
nos seus próprios textos. Isto é, as próprias frentes de pesquisa já se desenvolveram com base
nesta complementaridade, ao menos em parte. Por exemplo, quando o enativismo deseja
clarificar o que seriam as estruturas cognitivas que possibilitam a ação perceptivamente
orientada, recorre diretamente ao trabalho de Mark Johnson e George Lakoff (VARELA et al,
p. 150, 162, 177, 178) – mais especificamente ao conceito de esquemas de imagens. E,
quando a abordagem corpóreo-conceitual procura apontar as raízes biológicas de suas
formulações, lança mão dos trabalhos de Varela e Maturana e do enativismo (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 97; JOHNSON, 2007, p. 67, 118, 124-127, 136, 148, 149, 274). Outro
exemplo em que a abordagem corpóreo-conceitual menciona diretamente o enativismo está na
utilização que faz do estudo das cores de Varela, Thompson e Rosch (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 26). Estas referências convergem justamente para a caracterização do
304

que a abordagem corpóreo-conceitual chama de realismo corpóreo (Ibid., p. 94-99). Neste


sentido, podemos afirmar que o realismo corpóreo é o tema fundamental da cognição
corpórea compartilhado, por excelência, pelas duas frentes de pesquisa que estão sendo
examinadas, em conjunto, nesta seção. Como já foi tratado na seção 2.1, as bases deste
realismo estão em autores como John Dewey e Maurice Merleau-Ponty. Dewey tem sido uma
influência mais forte sobre a abordagem corpóreo-conceitual, enquanto que Merleau-Ponty foi
fundamental para o enativismo, como já foi várias vezes assinalado neste trabalho. Nas
palavras de Lakoff e Johnson,

O realismo corpóreo que estamos desenvolvendo aqui não foi criado a partir do
nada. Foi antecipado por dois dos nossos maiores filósofos da mente corpórea, John
Dewey e Maurice Merleau-Ponty. Apesar de suas grandes diferenças de
temperamento e estilo, tanto Dewey quanto Merleau-Ponty acreditavam que a
filosofia deve ser informada pelo melhor conhecimento científico disponível, e cada
um deles fez uso extensivo da psicologia empírica, da neurociência e da fisiologia de
sua época. Ambos argumentaram que a mente eo corpo não são entidades
metafísicas separadas, que a experiência é corpórea, não etéreo, e que quando
usamos as palavras mente e corpo estamos impondo estruturas conceituais
delimitadas artificialmente ao processo integrado contínuo que constitui a nossa
experiência.
Dewey enfocou todo o circuito complexo de interações entre organismo e ambiente
que compõe a nossa experiência, e mostrou como a experiência é ao mesmo tempo
corporal, social, intelectual e emocional. Merleau-Ponty argumentou que "sujeitos" e
"objetos" não são entidades independentes, mas surgem de um background, ou
"horizonte", de experiência fluida e integrada à qual impomos os conceitos
"subjetivo" e "objetivo" (Ibid., p. 97).

A partir destas afirmações, vemos que o realismo corpóreo não é uma concepção
sobre a forma ou a natureza do real, mas sobre como o real se cria e transforma, seja na
qualidade de “mundo” ou de “sujeito”. Dito de outra forma, o realismo corpóreo propõe que a
realidade existe, mas não é independente da cognição. E que a própria cognição é um
processo de criação de realidade – embora não se trate de uma criação ilusória, e sim material.
Contra as interpretações radicalmente construtivistas, ou relativistas, Lakoff e Johnson, por
exemplo, recusam o que chamam de pós-estruturalismo. Sobre isso, dizem:

Não há a pessoa pós-estruturalista – um sujeito completamente descentrado para


quem todo significado é arbitrário, totalmente relativo, e puramente historicamente
contingente, sem restrições dadas pelo corpo e cérebro. A mente não é apenas
corpórea, mas corpórea de tal maneira que os nossos sistemas conceituais elaboram
em grande parte os pontos comuns entre nossos corpos e os ambientes em que
vivemos. O resultado é que grande parte do sistema conceitual de uma pessoa é
universal e generalizada em todos os idiomas e culturas. Os nossos sistemas
conceituais não são totalmente relativos e não são apenas uma questão de
contingência histórica, apesar de um certo grau de relatividade conceitual existir e,
apesar de contingência histórica não importar muito. A fundação dos nossos sistemas
conceituais na forma de corporeidade compartilhada e de experiência corpórea cria
um eu em grande parte centrado, mas não um eu monolítico (Ibid., p. 5-6).
305

A crítica de Lakoff e Johnson às posições relativistas tem ressonância com sua


confiança na ciência como fonte de conhecimentos estáveis – o que justifica sua aposta nas
ciências cognitivas corpóreas como fonte de críticas à filosofia e à cultura. Concordando com
Kuhn, apostam no realismo científico da seguinte maneira:

A ciência é uma prática social, cultural e histórica, o conhecimento é sempre situado,


e que conta como conhecimento pode depender de questões de poder e influência.
Assim, rejeitamos as ideias simplórias de que toda ciência é puramente objetiva, que
as questões de poder e política nunca entram na ciência, que a ciência progride
linearmente, e que pode ser sempre confiável. Além disso, nós rejeitamos
veementemente os mitos de que a ciência oferece os últimos meios de compreender
tudo e que o conhecimento humanístico não tem legitimidade em relação a qualquer
coisa que se chame de ciência.
Mas isso não significa que não há ciência confiável ou estável para todos, e que não
pode haver resultados científicos duradouros. Agora que temos fotografias da Terra
da Lua, quaisquer dúvidas de que a Terra é redonda foram removidas. Não é
provável se descobrir que não existem coisas tais como células, ou DNA não tem
uma estrutura de dupla hélice. Muitos resultados científicos são estáveis. (...)
Isso também é verdade para a ciência da mente. Não é provável que se descubra que
não há neurônios ou neurotransmissores. Também não estamos propensos a
descobrir que não há distinção entre memória de curto prazo e de longo prazo.
Sabemos pela neurociência que nossos cérebros contêm mapas topográficos e que
nossos sistemas visuais contêm células sensíveis à orientação. (..).
Acreditamos que os três resultados de pesquisa de ciência cognitiva em que este
livro se baseia também são estáveis. Temos como certo que eles merecem ser
chamado de "resultados" por causa de todas as provas convergentes a apoiá-los. A
existência de tantas formas de evidência convergente demonstra que o que tomamos
como resultados específicos não são apenas as consequências de suposições
subjacentes a um determinado método de investigação (Ibid., p. 89).

Esta citação revela uma concepção de ciência com claro excesso de otimismo e
ingenuidade – ao aparentar confiar na “convergência de provas”, sem discutir por que se deve
acreditar no poder que tal convergência teria na “eliminação” de dúvidas sobre o que a
natureza é. Isto demonstra, neste texto específico, pouco esforço de Lakoff e Johnson no
sentido de discutir mais profundamente o sentido do conhecimento científico, justamente
aproveitando contribuições de autores como Kuhn e Feyerabend, que costumam citar.
Contudo, demonstra a confiança na “probabilidade” de que o conhecimento científico seja
confiável, e que, assim exista alguma realidade. Obviamente, sua aparentemente excessiva
confiança na veracidade e estabilidade do conhecimento científico se defronta com suas
próprias teses contra o objetivismo e, assim, recomenda que seus leitores suavizem suas
afirmações acima com base em seu anti-objetivismo. Assim, pode-se continuar afirmando na
existência de alguma realidade, sem no entanto se firmar compromisso na existência de uma
realidade objetiva transcendente – risco que se corre ao se seguir as palavras exultantes acima
de maneira acrítica. O realismo corpóreo pode, desta maneira, confiar no conhecimento
científico – que serve, inclusive, de embasamento para ele mesmo – sem necessitar apostar na
306

crença de que este conhecimento espelha uma realidade fixa e com contornos plenamente
definidos. O conhecimento científico que se harmoniza com o realismo corpóreo seria, ao
contrário do que parece sugerir a passagem acima transcrita, aquele que se sabe provisório e
permanentemente incompleto – mas mesmo assim utilizável por ser necessário à vida
humana. Ser realista, assim, é um modo de acreditar que se pode viver no mundo.
Porém, vale notar que se encontra na obra de Lakoff e Johnson, assim como no
enativismo, considerações muito mais ricas sobre o conhecimento científico – o que absolve
os dois primeiros da superficialidade patente na passagem acima transcrita e demonstra que o
realismo corpóreo tem melhores questões a endereçar ao conhecimento científico.
Já vimos que, para a orientação corpórea, toda forma de cognição é a criação de
sentido, seja por pensamento ou ação, a partir de experiências individuais, que se articulam
através de imaginação, analogias e metáforas vividas de maneira intrinsecamente corpórea,
sensório-motora e situada – inclusive social e historicamente. Então, a questão quanto à
ciência em si, para a orientação corpórea, passa por duas outras: a primeira é se a cognição
corpórea se aplica à cognição científica; a segunda é se, mesmo que se aplique, haveria
alguma característica da cognição científica que, ainda assim, significaria uma ruptura de
natureza com a cognição em geral. Levemos em conta a seguinte afirmação de Lakoff

Os conceitos teóricos centrais da ciência não são literais, incorpóreos nem objetivos.
(...) Compreender a natureza metafórica corpórea dos conceitos científicos é dar uma
nova dimensão à teorização científica, para melhor compreender a ciência. Realismo
científico ingênuo não funciona mais. Mas um realismo científico corpóreo
podefuncionar (...). As leis científicas não estão no mundo, nem nele se encaixam
objetivamente. Mas isto não faz a ciência nem um pouco menos válida quando
compreendemos o realismo corpóre. Compreender a natureza metafórica e corpórea
dos conceitos científicos é dar uma nova dimensão à teorização científica, para
compreender melhor a ciência e compreender o mundo de forma mais realista.
(LAKOFF, 2003, p. 53)

Por meio desta citação, já se pode dizer que a resposta à primeira questão é positiva: a
orientação corpórea (ao menos na vertente de Lakoff e Johnson) afima que a ciência (ou a
teorização científica) também é uma produção de conhecimento efetuada de forma situada e
corpórea. Mas é quando se referem ao processo metafórico de construção do conhecimento,
que os dois autores demonstram crer que o conhecimento científico seja apenas uma forma de
conhecimento em geral, porque produzido intrinsecamente pelo mesmo processo do
conhecimento comum: “Toda teoria científica é construído por cientistas – seres humanos que
necessariamente usam as ferramentas da mente humana. Uma dessas ferramentas é a metáfora
conceitual.” (LAKOFF & JOHNSON, 1987, p. 252). E, ainda: “Os chamados conceitos
puramente intelectuais, como por exemplo, os conceitos de uma teoria científica, são muitas
307

vezes – possivelmente sempre – baseados em metáforas que têm uma base física e/ou
cultural.” (Ibidem, p. 18 e 19). Ao que Lakoff acrescenta, ao falar do papel da categorização e
da taxonomia corpóreas nas ciências e no conhecimento comum:

Uma vez que as teorias científicas se desenvolvem a partir de teorias populares,


não é de todo surpreendente descobrir que os critérios populares para a aplicação de
modelos taxonômicos encontram caminho na ciência (LAKOFF, 1987, p. 119 – grifo
meu).

Deve ser ainda mencionada, com vistas a explorar esta questão, o conceito de
comunidade de compreensão, proposto por Mark Johnson:

O conhecimento humano requer estruturas e categorias de compreensão em relação


às quais os seres humanos possam produzir sentido, em termos de sua própria
experiência mediada, e que possam ser usadas para seus propósitos humanos. Todo
conhecimento é mediado por compreensão. Saber é compreender, de uma certa
maneira, uma maneira que possa ser compartilhada por outros que se juntam a nós
para formar uma comunidade de compreensão (JOHNSON, 1987, P. 206).

Neste sentido, uma comunidade científica constituiria formas de compreensão


compartilhadas, a partir de seus modos característicos de produzir sentido e viver
experiências, e esta compreensão compartilhada produziria assim modos característicos de
conhecimento, como o científico. Desta maneira, embora possa ser identificado um
conhecimento científico com traços próprios, mediado por experiências e compartilhado por
uma comunidade científica de compreensão, esta forma de conhecimento diferiria das demais
apenas em função das suas experiências e comunidades características. Todas as formas de
conhecimento, assim, teriam em comum serem corpóreas, experienciais e produzidas a partir
de compreensão compartilhada socialmente. Isto não levaria a concluir que a ciência poderia
então ser uma forma de conhecimento de natureza diversa das demais: ela tão somente teria,
como toda cognição, seus modos particulares, em função de mediações de compreensão
situadas. E o fato de compartilharmos a condição de seres humanos e sociais nos permitiria
compartilhar, em algum nível ao menos, formas de conhecimento produzidas de maneiras
diferentes.
É importante também verificarmos como o enativismo se pronuncia a respeito desta
questão. Consideremos a seguinte afirmação de Evan Thompson, em que ele salienta a relação
circular entre ciência e experiência humana comum:
308

As proposições, modelos, construções lógicas e técnicas experimentais das ciências


são claramente experienciáveis em outro sentido: são realizações humanas que têm
validade experiencial para os membros da comunidade científica, e seus efeitos
fluem para o mundo todos os dias e se tornam tangivelmente experimentados na
forma de tecnologia e prática social. Nosso mundo da vida engloba a ciência, além
de outras esferas da experiência, como a arte, a filosofia e a religião. Portanto, há
uma necessária "circularidade" entre a experiência cotidiana e a experiência
científica. (...) Por um lado, a experiência cotidiana fornece os conteúdos sensíveis e
materiais a partir dos quais e com os quais a ciência deve funcionar. Por outro lado,
as análises científicas construídas a partir destes conteúdos contribuem para a
formação do nosso mundo da vida e fornecem importantes pistas que levam para
análises fenomenológicas de como nossa experiência do mundo é genética e
gerativamente constituído (THOMPSON, 2005, p. 34).

Neste fragmento, Thompson evidencia mais claramente a influência filosófica que o


enativismo tem da fenomenologia, não apenas por utilizar um conceito como “mundo da
vida”, de matriz husserliana, mas também – ou sobretudo – por demonstrar que considera a
primazia da experiência em relação às formas de conhecimento. Isto é, considera a
experiência como o que constitui o conhecimento – como já vimos. Esta é uma perspectiva
complexa demais para ser amplamente analisada neste trabalho, mas devemos ressaltar que
ela tem uma forma peculiar de responder à questão do conhecimento científico: através do
conceito de circularidade, em que não apenas o conhecimento científico é compreendido
como fruto da experiência humana em geral – na medida em que a experiência científica não
difere fundamentalmente da experiência comum –, como ele é considerado como
contribuindo para formar o mundo em que essas experiências podem ser vividas95. É então a
partir do uso do conceito de circularidade, e do primado da experiência, que o enativismo
afirma que a experiência científica é uma forma de experiência humana em geral e que,
portanto, ambas constituem cognição e conhecimento que não apenas são da mesma natureza,
como se alimentam mutuamente. Contudo, entende-se aqui que esta concepção não diz
exatamente, ou tão somente, que há continuidade epistemológica entre conhecimento comum
e conhecimento científico: haveria nesta perspectiva algo mais, na medida em que o
enativismo propõe que o conhecimento não seja uma linha contínua, mas um processo
complexo em que diversas formas de experiência contribuem para a constituição do mundo e
do corpo, e por eles são constituídas. Dito de outra maneira, para essa corrente o
conhecimento em geral não seria propriamente contínuo, no sentido de linear, mas por outro
lado também não seria hierarquizado ou compartimentado em modos incomunicáveis,

95
Há outras acepções do conceito de circularidade, mesmo no enativismo, e uma delas é especificamente
aplicada às ciências cognitivas: trata-se do reconhecimento que os cientistas cognitivos devem considerar sua
própria produção científica como objeto das ciências que praticam (VARELA, THOMPSON & ROSCH, 1991,
p. 09-12).
309

incomensuráveis ou de naturezas distintas. Justamente seu caráter complexo e dinâmico


alcançaria e articularia, potencialmente, todas as formas de conhecimento.
Após estas considerações, podemos concluir que, para a orientação corpórea, a ciência
é não apenas corpórea, mas corpóreo-experiencial – como aqui já foi dito. Isto significa que a
ciência é uma relação de produção de sentido, do indivíduo com o mundo e entre seres
humanos situados num mundo, mas que também produz este mundo. Mais: produz e
transforma o próprio corpo dos cientistas, nele incluídos seus cérebros, seus valores e crenças
incorporados. Por conseguinte, não há nada na ciência que exija uma teoria especial das
ciências cognitivas corpóreas a ela dedicada, já que para esta corrente ela não se produz a
partir de nenhum tipo de ruptura com a cognição em geral. Para os autores da orientação
corpórea, a ciência apenas se inclui na circularidade interrelacional da cognição, que a rigor
alcança outras formas de conhecimento. Assim, a ciência e o conhecimento humano se
equiparam na qualidade de serem criação de mundo e de sentido, e não apenas descrições ou
explicações de um mundo ou de sentidos previamente constituídos.
Um outro aspecto que deve ser ressaltado na combinação entre estas duas abordagens
é que o enativismo não explora tanto a questão temporal da cognição quanto a abordagem
corpóreo-conceitual. O aspecto temporal é importante não no sentido de descrever
transformações simbólicas, como no cognitivismo, mas para explicar como os conceitos se
produzem, como as novas experiências recebem influência das experiências anteriores, e
como, enfim, se pode pensar na cognição como processo dinâmico de criação de sentido e de
transformação material. A dimensão temporal é aquela que vincula as abordagens conceitual e
afetiva, como veremos na seção 3.3.

3.2. A articulação enativo-afetiva

A principal interseção entre as abordagens corpóreo-enativista e corpóreo-afetiva se


encontra no fato de que ambas examinam aspectos da cognição como processo vital e
evolutivo. Ambas compreendem a cognição como parte integrante dos processos necessários
para a sobrevivência do indivíduo e da espécie, sempre tendo como pano de fundo a
adaptação, o acoplamento do organismo ao ambiente. Contudo, a preocupação com as
questões relacionadas à origem da vida e à noção de autonomia está muito mais presente na
abordagem corpóreo-enativa do que na afetiva. Damásio, por exemplo, adota o conceito de
homeostasia, e não discute a questão da auto-organização. É como se apenas a consideração
ao sistema de regulação fosse suficiente para sustentar suas hipóteses sobre o papel das
310

emoções na cognição. E não se pode negar que sua abordagem se mostra suficiente para seus
propósitos. Ele não está interessado, por exemplo, em discutir questões ontológicas como o
enativismo e a linguística corpórea – até porque seu tema central não é a cognição e nem a
crítica ao cognitivismo como tal. Sendo assim, sua pesquisa é, como já vimos, a menos
declaradamente comprometida com um projeto de alternativa ao modelo lógico-proposicional.
Por outro lado, os seus resultados empíricos têm um impacto profundo sobre este modelo.
Ademais, como foi observado, sua contribuição à discussão do papel do corpo na
percepção é fundamental, o que não deixa de ter relação com o modo como ele integra as
emoções e os sentimentos ao processo cognitivo. Para explicar a dependência que a cognição
tem das emoções e dos sentimentos, ele precisou definir qual seria a relação entre mundo,
cérebro e corpo. E esta relação expressa, em sua teoria, as condições em que as emoções,
como transformações no corpo decorrentes de percepções e pensamentos, são inseparáveis
destes últimos.
Isto revela, de certa forma, uma convergência com as concepções ontológicas do
enativismo, mesmo que Damásio não promova esta discussão. Outro aspecto dessa questão é
que o conceito de enação se fortalece com a contribuição de Damásio, uma vez que a
afetividade deve ser a ele integrada.
Em um livro recente, The feeling body, Giovanna Colombetti destaca a importância
de uma abordagem enativa das emoções considerar a função de avaliação desempenhada
pelos afetos como essencialmente orgânica, mas ainda assim cognitiva (COLOMBETTI,
2014, p. 110). Dadas as limitações do escopo deste trabalho, não cabe uma discussão mais
extensa das argumentações deste livro, que se coloca desde o princípio como uma obra escrita
a partir do enativismo, sem mesmo considerar que haveria uma orientação das ciências
cognitivas chamada cognição corpórea96. As críticas que a autora faz a Damásio neste livro
tendem a ser, em geral, por não encontrar neste autor um compromisso com as teses
enativistas. Contudo, esta característica não deveria ser tratada como um defeito, uma vez que
o próprio enativismo somente agora, com as pesquisas da própria Colombetti, passa a se
dedicar mais intensamente à questão afetiva. Por outro lado, muitas das preocupações de
Damásio provavelmente não surgiriam da matriz do enativismo. Assim, a confluência entre as
abordagens corpóreo-enativa e corpóreo-afetiva devem ser avaliadas, também, a partir da
valorização do pluralismo de enfoques, modelos, hipóteses e métodos em se compreender a
cognição.

96
Na verdade, no livro não há nenhuma ocorrência da expressão “embodied cognition”.
311

3.3. A articulação conceitual-afetiva

Há duas conexões fundamentais entre as abordagens corpóreo-conceitual e corpóreo-


efetiva da cognição. A primeira delas diz respeito ao sentido temporal da formação de
conceito – ou uma espécie de “flecha do tempo” cognitiva. Isto é, ambas as abordagens
apresentam explicações de como experiências corpóreas anteriores permitem a atribuição de
significado às novas experiências, uma vez que as primeiras tenham sido marcadas no corpo.
A segunda – que contribui para a compreensão da primeira – corresponde ao fato de que
grande parte do processo cognitivo é necessariamente não consciente, justamente porque se
trata de acontecimentos orgânicos que não podem e não precisam ser alcançados pela
consciência.
A linguística corpórea, liderada por Lakoff e Johnson, não se dedicou a estudar o
papel das emoções na cognição corpórea. Contudo, está longe de recusá-lo. Talvez sua
acolhida às contribuições de Damásio seja um dos mais fortes exemplos de conexão pluralista
que aqui se defende, como maneira de compreender o fortalecimento da ciência em geral, e
das ciências cognitivas corpóreas, em especial.
Encontra-se na obra mais recente de Johnson um testemunho explícito desta acolhida.
Nas suas palavras,
Damásio trouxe nova atenção para o papel das emoções e sentimentos para a
consciência, julgamento e raciocínio. O trabalho de Damásio é fundamentado em
observações clínicas de seus pacientes com lesões cerebrais e em experiências que
ele e seus colegas realizaram tanto com esses pacientes quanto com indivíduos
normais. Sou atraído pela a obra de Damásio, em parte por causa de sua
preocupação humana para com seus pacientes, mesmo quando ele executa
experiências e usa a maioria das tecnologias de neuroimagem atuais, como Imagem
de Ressonância Magnética (...). Ele sente as implicações sociais, morais e
existenciais das disfunções dos pacientes, incluindo a forma como isso afeta a sua
capacidade de compreender o significado das coisas. Mas além de sua humanidade,
eu sou atraído por sua guinada filosófica da mente, como ele lida com problemas de
como emoção e sentimento moldando a natureza da mente, do pensamento, da
consciência e da comunicação. É raro para um neurocientista ser filosoficamente
sofisticado, assim como é raro os filósofos entenderem os meandros da neurociência
cognitiva – e muito menos fazerem ciência. Damásio se destaca por seu engajamento
filosófico com sua ciência e com as implicações de sua pesquisa para a existência
humana (JOHNSON, 2007, p. 55).

Manifestando-se obre a função de avaliação afetiva, Johnson absorve a contribuição


de Damásio, percebendo claramente sua importância, inclusive como complemento da
abordagem corpóreo-conceitual, uma vez que aponta a relevância das emoções na
constituição dos significados cognitivos:
312

Esta dimensão avaliativa é absolutamente crucial, e suas implicações são


monumentais. As respostas emocionais não são meramente corporais, após o fato,
reações sentimento. Em vez disso, elas são processos corporais (com componentes
neurais e químicos) que resultam da nossa apreciação do sentido e significado da
nossa situação e consequentes mudanças em nosso estado do corpo, muitas vezes
iniciando ações voltadas para a nosso fluido funcionamento dentro do nosso
ambiente (Ibid., p. 60-61).
313

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta tese se dedicou a investigar a orientação corpórea das ciências cognitivas em seu
esforço para constituir uma alternativa crítica ao modelo lógico-proposicional da cognição.
Como já foi dito, as diversas iniciativas de pesquisa que constituem a cognição corpórea,
embora não se comportem em bloco, como um programa de pesquisa único, podem e devem
ser compreendidas como formando um todo, ainda que não fechado. O que caracteriza sua
coesão são dois fatores: primeiramente, serem complementares entre si na crítica e na
proposta de alternativa ao cognitivismo; e, em segundo lugar, o manifesto esforço de suas
lideranças na direção de defender suas formulações de maneira essencialmente política.
Mas o que poderia constituir uma postura política de uma corrente científica como a
cognição corpórea? Evidentemente, ela não buscaria, por exemplo, transformar a sociedade
defendendo algum tipo de governo, algum regime político ou algum sistema econômico. Sua
atitude vai bastante além disso: chega a ressignificar até mesmo o conceito de ação política.
Porque tem a ousadia de propor um novo conceito de ser humano.
Cabe nos perguntarmos o porquê de uma vertente científica voltada para as
capacidades cognitivas chegar a propor algo tão ambicioso. Mas talvez a resposta esteja
justamente na origem da cognição corpórea.
Não se pode afirmar que o fato de as ciências cognitivas terem nascido – juntamente
como seu modelo unificador, lógico-proposicional – de inciativas militares e financiadas pelo
capital industrial confira a elas uma feição adequada aos interesses de seus financiadores.
Quais seriam estes interesses, em primeiro lugar? Eles seriam capazes de, por exemplo, guiar
a constituição de uma abordagem da cognição adequada aos seus fins? E quais seriam estes
fins?
Esta tese não procurou desvendar estes supostos mistérios. Pelo que se pode extrair
dos fatos explanados no primeiro capítulo deste trabalho, o que se constata é uma confluência
de formulações teóricas prestigiadas no meio acadêmico – como a máquina de Turing ou o
neurônio de McCulloch-Pitts – e soluções tecnocientíficas – como os primeiros computadores
eletrônicos construídos ao longo da Segunda Guerra Mundial, sendo suficientes para
desencadear a eclosão das ciências cognitivas. Não se encontram indícios de que estes eventos
tenham sido aproveitados de alguma forma deliberada para criar uma certa imagem do
pensamento humano, e muito menos que tenha sido proposital que isso fosse feito por meio
de uma nova ciência sobre a cognição.
Todavia – se reitera a questão –, por que os principais líderes da cognição corpórea,
314

como Francisco Varela, George Lakoff, Mark Johnson e António Damásio, têm adotado uma
atitude de tão veemente rejeição das teses e consequências do cognitivismo, a ponto de
clamarem por novas formas de se compreender a vida e a cognição humanas? Não bastaria
que eles recusassem os argumentos científicos das ciências cognitivas tradicionais? Não
deveriam eles tão somente se fixar no embate teórico? Se eles têm extravasado os limites
epistêmicos com tanta determinação, não haveria um inimigo oculto a ser guerreado, postado
de fora da ciência com intenções e poderes também extra científicos?
Mais uma vez, diga-se: não está ao alcance nem nada exige do presente trabalho
promover este tipo de ilação. Basta que se mantenham as investigações no âmbito das
próprias ciências cognitivas, com atenção aos seus argumentos e formulações.
Porém, de um lado, seria justificável limitar as ciências cognitivas a suas práticas
investigativas e teóricas? Ou seu universo se estenderia em direção às influências que
propagou na sociedade?
De outro lado, com que argumentos se pode apontar quais as influências as ciências
cognitivas produziram? Seriam científicos estes argumentos? Estariam circunscritos ao
âmbito das próprias investigações das ciências cognitivas?
Pelo que foi examinado neste trabalho, os principais autores da cognição corpórea
não esperam as respostas a tais perguntas para se posicionarem contra pressupostos que,
tenham surgido por inspiração do cognitivismo, ou os tenham inspirado, são considerados
como presentes no ambiente em que se produziu o modelo lógico-proposicional da cognição.
Quando Varela rejeita o que chama de heteronomia em favor da autonomia, defendendo uma
guinada ontológica; quando Lakoff e Johnson apontam hiatos instransponíveis no objetivismo
que enxergam associado às teses representacionistas da cognição; e quando Damásio se
insurge contra uma medicina “cartesiana”, eles não demonstram preocupação em comprovar
até a última instância seus próprios pressupostos. Contudo, afirmam que as ciências – e não
apenas as cognitivas – têm proporcionado as bases para suas suposições críticas. E então se
mantêm em suas atitudes em defesa explícita de um novo paradigma.
Visto isso, retomam-se as duas questões: estaria na origem da cognição corpórea sua
ambição de conteúdo político? E isto teria a ver com as origens das ciências cognitivas?
A resposta que a presente tese pretende esboçar a estas duas indagações é, em parte,
positiva – embora não seja simples. Estaria sim na origem da cognição corpórea sua atitude
política. Mas não como uma reação às origens institucionais e/ou ideológicas das ciências
cognitivas e do cognitivismo. O motivo pelo qual estaria na própria gênese da cognição
corpórea sua feição política se deveria ao fato de que ela propõe que os seres humanos devem
315

mudar seu conceito sobre si mesmos. E este fato decorre de outro: seu objeto de estudos é
exatamente o conceito que os seres humanos mantêm sobre a natureza de sua forma de pensar,
agir, perceber. A consequência política disto é quase imediata: se os seres humanos hoje
sustentam um conceito (avaliado por alguns como) equivocado sobre si mesmos, devem
alterá-lo sob pena de viverem coletivamente de maneira correspondente ao conceito. Esta
ideia se sustenta em outra ainda: para a cognição corpórea, é característico da cognição
depender do contexto, inclusive social; sendo assim, o que a cognição de cada ser humano
produz atualmente depende das estruturas sociais nas quais vive, e que moldam seu modo de
pensar. Mas se, por outro lado, estas estruturas também são mantidas pela cognição individual
e pelos modos de pensar individuais, qualquer transformação em ambos – estruturas e modos
de pensar – precisa acontecer, em algum momento, no nível individual. Assim, considerando
todos estes aspectos, a dimensão política da cognição corpórea seria ao mesmo tempo
intrínseca às suas teses críticas, e indutora de uma mudança no significado mesmo de política.
Quanto a esse fato ter ou não relação com as origens das próprias ciências cognitivas,
o que se percebe pelo que foi examinado no presente trabalho é que isto tem importância, mas
limitada. Isto porque as críticas que a cognição corpórea faz se dirigem à imagem de cognição
e de ser humano que estes possuem de si mesmos no contexto social atual – desde que se
considere como influente o poder prático do modelo lógico-proposicional da cognição na
sociedade global de hoje. Deste modo, a crítica pode se dirigir àquilo que seja entendido como
esta imagem, sem necessariamente se investigar por que esta imagem surgiu socialmente. Ou,
melhor dizendo, uma nova imagem – a da cognição corpórea – pode ser criada
conscientemente sem que a imagem rejeitada – a do modelo lógico-proposicional – tenha sido
conscientemente produzida. Disto decorreria uma característica crucial da cognição corpórea:
ela buscaria aumentar a consciência dos seres humanos sobre sua própria imagem, revelando
assim que um de seus pressupostos – ou uma das qualidades da nova imagem possível – é que
a consciência é algo que pode ser, de certo modo, ampliado. Isto implicaria, então, que para o
sucesso da orientação corpórea das ciências cognitivas, sua atuação deverá ser mais
consciente de sua constituição do que teria sido o cognitivismo. Sendo assim, não é preciso de
modo algum se identificar no cognitivismo uma ação organizada, orquestrada,
conscientemente estabelecida nas instituições – e com o intuito explícito de se disseminar uma
determinada imagem do ser humano sobre si mesmo –, para que uma reação a esta imagem
seja empreendida de maneira consciente e buscando alcançar o máximo de consciências
individuais.
Esta tese começou com a defesa de uma hipótese: de que as ciências cognitivas
316

tradicionais obtiveram sua unidade inicial graças ao compartilhamento de um modelo da


cognição. Isto não corresponde, como foi argumentado, apenas à noção kuhniana de
paradigma, por dois motivos: primeiramente, porque quando se fala aqui em modelo, o que
está suposta é a própria imagem do objeto de estudo, e não apenas um conjunto de crenças de
como este objeto deve ser estudado; e, em segundo lugar, porque esta compreensão de como é
este objeto de estudo teria servido para reunir cientistas de diversas origens disciplinares – e
não apenas da mesma disciplina, como em geral se costuma utilizar o conceito de paradigma.
Entretanto, para que esta hipótese pudesse ser apresentada, foi necessário que aqui se
definisse o sentido de modelo com que se trabalhou. Sendo assim, houve a tentativa de deixar
claro que o modelo da cognição adotado pelas ciências cognitivas tradicionais correspondeu a
características gerais do objeto de estudo, essenciais para que ele próprio pudesse ser
estudado. Neste sentido, o modelo da cognição é, sim, uma construção, uma representação da
cognição, com a qual um grupo de cientistas concordou em trabalhar. Certamente, esta
imagem reúne apenas alguns traços pressupostos: aqueles que podem servir como o ponto de
partida para a sua investigação científica. Em outros termos, teria sido necessário supor a
cognição “como se” fosse um programa de computador para que ela se tornasse um objeto de
estudo. Esta constatação leva a outra: que apenas enquanto a cognição fosse suposta pelas
diversas disciplinas das ciências cognitivas como se fosse um programa de computador,
poderia se manter como objeto de estudo comum por parte de todas elas.
Outra suposição adotada nesta tese foi a de que as ciências cognitivas iniciais
sustentaram sua unidade graças ao fato de compartilharem um modelo de cognição. Isto quer
dizer que a característica multidisciplinar das ciências cognitivas seria anterior a qualquer
atividade interdisciplinar: para que pudesse haver colaboração entre disciplinas, antes estas
deveriam estar de acordo com uma imagem geral da cognição, com determinadas
características compatíveis com seus modos de investigação. Mas também quer dizer outra
coisa: que as diversas disciplinas das ciências cognitivas tradicionais poderiam realizar
investigações em seus próprios âmbitos, sem necessidade de colaboração interdisciplinar, e
ainda assim se manterem unidas, em virtude do compromisso de compreender a cognição
como se fosse de determinada forma geral.
Em seguida foram examinados os antecedentes históricos das ciências cognitivas,
com o objetivo principal de compreender como se formou o modelo unificador, denominado
de modelo lógico-proposicional, da cognição. E foi justamente esta investigação histórica que
inspirou tal denominação, ao se identificarem nos trabalhos de cientistas como Alan Turing,
Claude Shannon, Warren McCulloch, Walter Pitts, Norbert Wiener e John Von Neumann – os
317

precursores da inteligência artificial e das ciências cognitivas – os conceitos básicos que


permitiram, mais tarde, que a cognição fosse entendida em linhas gerais como um processo
eminentemente lógico e proposicional. Estes antecedentes também foram estudados em seu
aspecto institucional, para que se pudesse verificar de que modo as ciências cognitivas
encontraram ambiente para se estabelecerem socialmente. Também se procurou correlacionar
este modo de institucionalização com os conceitos centrais defendidos pelas ciências
cognitivas. E a ideia principal por trás desta correlação foi de que a inteligência artificial se
destacou como liderança não apenas na confecção do modelo dominante da cognição, como
na definição dos primeiros programas de pesquisa do novo campo científico. Em outras
palavras, embora outras disciplinas, como a psicologia e a linguística, tenham participado da
gestação das ciências cognitivas, a inteligência artificial, sobretudo sob a influência de
Herbert Simon e Allen Newell, se adiantou às demais no delineamento do que seriam as
características do modelo lógico-proposicional. E, como foi visto, estas características não
foram apenas teóricas: se consubstanciaram na forma dos primeiros programas de computador
eletrônico desenvolvidos pelos seres humanos. Deste modo, as ciências cognitivas nasceram
praticamente ao mesmo tempo e no mesmo ambiente científico da inteligência artificial – com
o notável reforço de que de imediato se consubstanciou na construção e penetração social de
técnicas bastante bem sucedidas em seus propósitos utilitários.
Por este motivo, as primeiras características estudadas do modelo lógico-
proposicional da cognição foram aquelas estabelecidas na inteligência artificial.
Porém, foi dada importância central nesta tese à contribuição específica da psicologia
cognitiva ao modelo lógico-proposicional da cognição, na forma de processamento de
informações. Sendo assim, esta contribuição foi investigada em seus aspectos principais.
A forma do modelo lógico-proposicional na linguística e na neurociência foi
exemplificada nos trabalhos de Chomsky e Marr. O primeiro contribuiu com a tentativa de
reduzir a cognição a seu aspecto sintático, assumido também como inato e universal; o
segundo propôs a cognição como descritível em três níveis de análise, sendo que o principal
deles seria o algorítmico.
Concluindo o primeiro capítulo da tese, foi também enfocada a Teoria Computacional
da Mente, juntamente com o conceito de representação mental, para que se observasse uma
tentativa de se conferir um estatuto teórico para o cognitivismo, no que pudemos identificar,
senão uma teoria unificada, ao menos uma caracterização mais rica do modelo lógico-
proposicional – o que revela também uma tentativa de sustentar filosoficamente sua aceitação.
Em seguida foram discutidos os antecedentes da cognição corpórea. Foi defendida
318

então a hipótese de que no seio da cibernética nasceram ao mesmo tempo o cognitivismo, e as


ideias embrionárias que, na forma de parte do que foi chamado de Segunda Cibernética,
permitiram a constituição da cognição corpórea. Naquela seção foram investigados os
conceitos de auto-organização, emergência, complexidade e autopoiese, assim como as
origens fenomenológicas, psicológicas e linguísticas da orientação corpórea das ciências
cognitivas.
Na sequência, passou-se a tratar diretamente da cognição corpórea como projeto
unificado, com base na suposição de que três abordagens – a corpóreo-enativa, a corpóreo-
conceitual e a corpóreo-afetiva – constituem um todo, ao se articularem conceitualmente.
Por fim, foram examinadas estas abordagens individualmente, e suas conexões. O
exame das abordagens não incluiu uma descrição ou uma avaliação pormenorizada das
diversas hipóteses e resultados científicos. Não foi intenção desta tese julgar se as hipóteses
da cognição corpórea estão corretas, nem mesmo estimar sua aceitação. Em vez disso, o
propósito aqui foi delinear os problemas enfrentados pela cognição corpórea, em geral, e
apontar suas principais respostas e encaminhamentos, para que se possa vislumbrar o quadro
geral que tanto os problemas quanto as respostas compõem.
Quanto às conexões acima referidas, elas são muito mais resultado de uma apreciação
externa, a posteriori, dos pontos de ligação entre as abordagens, do que descrição de
colaborações efetivas. As conexões fazem parte do delineamento dos problemas, e envolve a
sugestão de que algumas soluções exigem que se recorra a mais de uma resposta específica,
para que certos problemas pareçam mais consistentemente enfrentados.
Um dos problemas mais importantes que a cognição corpórea se dedica a formular –
sobretudo em suas abordagens enativista e conceitual – é o da realidade. A partir de uma forte
crítica ao realismo objetivista, mas também ao solipsismo e ao relativismo, a cognição
corpórea parece estar em busca de uma noção de realidade que não corresponda à suposição
da existência de objetos prontos e acabados, com propriedades independentes da experiência
individual, porém – numa aposta aparentemente paradoxal – afirma o real como algo mais
abundante do que nossa capacidade de descrevê-lo e explicá-lo de maneira definitiva, mas ao
mesmo tempo capaz de impor limites à nossa ação e de nos exigir pensar.
No entanto, não apenas em direção ao realismo objetivista/subjetivista, atribuído ao
cognitivismo e à tradição racionalista, são apontadas as objeções ontológicas da cognição
corpórea. Como foi explorado na seção 2.2.2.2, a cognição corpórea – ao menos em sua
vertente corpóreo-conceitual – rejeita o realismo estrutural. Vale dizer, rechaça não apenas a
existência objetiva de entes individuais – que seriam termos de relações –, mas a existência
319

objetiva das próprias relações e de uma suposta estrutura que formariam, independentemente
dos sujeitos que as podem conceber e conhecer. A abordagem corpóreo-conceitual o faz para
contestar uma suposta racionalidade que estaria na base das crenças que sustentam o modelo
lógico-proposicional. Tal crítica aventa que a compreensão mecanicista do mundo e da
cognição crê que esta racionalidade possui duas faces homólogas: a razão humana seria parte
da razão universal transcendente, e a própria forma do pensamento. Segundo a abordagem
corpóreo-conceitual, para a tradição racionalista a linguagem do pensamento seria, assim,
uma forma lógica, sintática e abstrata do mesmo modo como a linguagem da natureza – mas
ambas seriam linguagens sobretudo na medida em que comunicariam uma à outra sua
essência estrutural desincorporada e anterior a toda experiência. Para os autores da cognição
corpórea, a imagem do pensamento e da natureza como realidades estruturalmente lógicas
procura universalizar uma determinada concepção da razão como a única possível e, portanto,
inevitável. Esta racionalidade lógico-matemática inevitável seria, no pensamento, a maneira
de este conhecer a natureza por afinidade estrutural e, na natureza, o modo como esta se
mostraria ao pensamento a ela semelhante. Embora tal conjectura crítica seja acompanhada de
argumentação insuficiente, sugere desdobramentos promissores.
Na trilha do que acaba de ser dito, uma das questões que a leitura desta tese pode
suscitar é se o modelo lógico-proposicional é ou não compatível com a cognição corpórea, e
de que maneira tal compatibilidade seria possível. O que se coloca então é que tipos de
problemas que se busca solucionar em cada um dos casos. Embora se deva reconhecer que o
modelo lógico-proposicional permitiu solucionar diversos problemas, devemos considerar
outros problemas que não solucionou, ou ainda outros que ajudou a criar. Das teses da
cognição corpórea surgem alguns destes últimos. Por exemplo: se os seres vivos se
autotransformam continuamente, e seu controle não é originado externamente, como manter a
imagem da máquina lógica para representar a cognição, já que tal imagem sugere que os
processos que opera sejam fixos, e tenham controle dependente de regras definidas
externamente? Com o uso do modelo lógico-proposicional, não se corre o risco de que os
seres humanos sejam induzidos a se acreditarem incapazes de autotransformação? Se os
significados que o corpo fornece para a cognição são variáveis ao longo do tempo e são
imprecisos, como manter a suposição de que, dados certos inputs, certamente determinados
outputs vão ser produzidos? Com o modelo lógico-proposicional, corre-se o risco de
considerar apenas parte dos significados que importam na cognição e na experiência humana,
desprezando-se todos aqueles que não cabem em formalizações quantificadas. Além disso: se
os corpos interferem diretamente, através de suas características próprias e de sua ação, na
320

cognição, como manter a suposição de que o processo cognitivo é independente dos corpos
em que se dá? Se o modelo lógico-proposicional ajudou a disseminar na sociedade uma
imagem do ser humano como máquina e como processador lógico e abstrato, e se essa
imagem é limitada, como enfrentar no ensino, na saúde, na tecnologia, na administração e em
diversas atividades humanas, essa autoimagem? Diante de tais questões, a convivência do
modelo lógico-proposicional da cognição com as teses da cognição corpórea vê-se limitada
pelos seus respectivos alcances. Desde que se considere que se dedicam a esferas diferentes
de problemas, sua coexistência se torna menos problemática.
Evidentemente, o emprego de formalizações é fundamental para a evolução da técnica;
mais propriamente, deve-se considerar se não foi graças a elas que a tecnologia se
desenvolveu desde a chamada “revolução científica”. Mas a imagem da natureza, do
pensamento e dos seres humanos como máquinas – físicas ou abstratas – possui uma
implicação nada desprezível: é comum ser associada às máquinas a impossibilidade de
autotransformação e a necessidade de padronização e redução das diferenças individuais.
Assim, uma compreensão rigidamente mecanicista é não raro acompanhada de uma
concepção limitada da ação do ser humano sobre si mesmo e dos modos de pensar e ser que
não sejam adequados aos padrões vigentes. Os seres humanos, ao serem convencidos de que
são (como) máquinas, podem vir a se comportar como tais: sem acreditar que possam se
autotransformar e que devem renunciar às suas características que fogem às padronizações.
As interações entre seres humanos e máquinas ou, mais precisamente, o emprego de
técnicas de produção, oferecem um terreno de investigação fértil no âmbito da crítica
corpórea – o que deve evidenciar e reforçar seu sentido materialista. De um lado, podemos
conjecturar se a adoção do modelo lógico-proposicional da cognição humana não foi
estimulada pela necessidade de que seres humanos, ao trabalharem diretamente com
computadores e equipamentos semelhantes, adequassem seu modo de pensar ao
funcionamento padrão destes últimos – de modo a ser criada uma máquina híbrida e complexa
formada por seres humanos e máquinas, em cujo interior conviveriam em forçada indistinção
processos orgânicos, maquinais e técnicos, articulados por instruções formais que, embora
tenham um aspecto abstrato, se imiscuiriam materialmente no âmago e nas extremidades de
contato de seus participantes. Esta é uma especulação que está a cobrar maior atenção das
ciências e da filosofia. De outro lado, deve-se considerar que mesmo esta interação é corpórea
– tal como investigado no livro Where the action is: The foundations of embodied
interactions, de Paul Dourish (DOURISH, 2004). Em outros termos: seria através da
permanente transformação dos seus corpos, incluindo sua dimensão afetiva, que os seres
321

humanos seriam programados – através da pedagogia dominante, mas sempre mediante a


instauração nos organismos de hábitos em grande medida não conscientes e automatizados97 –
para funcionar de acordo com as exigências operacionais de um mundo produtivo e
autorreprodutivo em que nenhuma de suas partes deve escapar de determinada feição lógico-
proposicional – mas, ainda assim, instaurada materialmente. E embora um estudo desta
natureza extrapole em muito o escopo desta tese, sua importância demanda fortemente que, ao
menos, um alerta quanto à sua extrema necessidade aqui seja dado. Nesta mesma linha, uma
investigação ampliada da cognição corpórea exige também uma atenção crescente ao seu
sentido coletivo e social – tal como explorado por autores como Edwin Hutchins, Shaun
Gallagher, Dan Zahavi e Thomas Csordas –, que, por sua necessária magnitude, também não
caberia adequadamente nos limites propostos para o presente trabalho.
É extremamente cedo para se fazer qualquer prognóstico sobre o futuro da cognição
corpórea. Algumas de suas propostas – como o realismo corpóreo, as noções de
autoprodução, autotransformação e codeterminação, e o papel da cognição nesses processos
entendidos como vitais – não são de clareza cristalina nem apresentados de maneira que não
suscite dúvidas. Seu holismo materialista nos deixa a desejar o bloqueio de todas as portas e
reentrâncias por onde possa penetrar algum tipo de princípio anímico e místico,
sorrateiramente auto convidado sempre que uma sentinela do porte do reducionismo fisicalista
não feche as questões e as frestas. A combinação do realismo corpóreo com o holismo
materialista, por sua vez, suscita uma questão irrecusável: quando seus autores defendem que
um ser possui características emergentes, por exemplo, as atribui ao objeto em estudo ou à
relação cognitiva que o envolve e também ao sujeito? No mesmo sentido: a complexidade e a
emergência são efeitos do objeto independentemente da sua observação (isto é, são
propriedades objetivas, o que contrariaria a tese do realismo corpóreo) ou surgem da ação de
observação em si, sendo portanto uma propriedade da cognição? Mas é então a cognição um
objeto independente do cientista que a estuda? Além (ou aquém) disso: o cognitivismo é um
objeto de crítica inequivocamente determinável? Quando os autores da cognição corpórea
examinam a cognição – para explicá-la – e o cognitivismo – para criticá-lo –, acreditam que
poderão afirmar alguma verdade correspondente ao que examinam? Se não, com que noção
de verdade trabalham? A partir destes questionamentos, percebe-se que o empirismo imanente
e radical da cognição corpórea talvez ainda careça de argumentos mais claros para defender
aquilo que chama de “caminho do meio” entre percepção e ação, sujeito e objeto, cognição e

97
Não apenas por homofonia, tais hábitos podem ser pensados de maneira sugestiva em convergência com o
conceito de habitus, tal como desenvolvido por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 2007).
322

vida. Em outros termos, sua onto-epistemologia, que se baseia na ideia de codeterminação


entre indivíduo e mundo, ainda precisaria esclarecer como estes dois polos produzem um ao
outro sem jamais existirem de forma completa. Esta lacuna explicativa também compromete
sua crença nos achados empíricos em que parece confiar. Afinal, como pode uma ontologia
anti-objetivista, por exemplo, se amparar em algum tipo de conhecimento objetivo sobre os
corpos humanos? Como os cientistas cognitivos corpóreos tratam, enfim, a natureza de seu
próprio conhecimento sobre a cognição? Embora encontremos em Varela alguma pista do que
seria uma circularidade criativa (VARELA, 1984), portanto se recusando a ser viciosa e
viciada, alguma aporia deixa seu sabor, de modo persistente, na apreciação e na absorção da
cognição corpórea.
Por outro lado, a cognição corpórea parece ter necessidade de não dispensar dúvidas e
alguma imprecisão, em seu empreendimento questionador. Aliás, talvez uma de suas
principais previsões seja a de que o imprevisível pode e deve ocorrer no comportamento
humano – ao contrário da fé descritiva e prescritiva do modelo lógico-proposicional. No final
(ou no início) das contas, se pretendesse apresentar significados inequívocos, literais, fixos,
estaria contradizendo suas próprias afirmações sobre a natureza do conhecimento. Contudo,
uma limitação que se reconheça intrínseca ao saber científico não deve fazê-lo leniente. Por
este motivo, na medida em que seja possível avançar na compreensão compartilhada dos
conceitos isto deve ser tentado, com o máximo rigor, numa aventura coletiva que não se pode
afirmar onde vai chegar. Este trabalho pretende ser uma contribuição neste sentido.
323

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ABELLA, Alex. Soldiers of reason: The RAND Corporation and the rise of the American
Empire. Orlando: Harcourt, 2008.

ABRAHAM, Ralph H. “The genesis of complexity”. Disponível em: <http://www.ralph-


abraham.org/articles/MS%23108.Complex/complex.pdf>. Data de acesso: 16/04/2013.

ANDERSON, Herbert L. “Metropolis, Monte Carlo, and The MANIAC”. In: Los Alamos
Science, Fall, 1986.

ANDLER, Daniel. “Philosophy of cognitive science”. Disponível em


<http://andler.dec.ens.fr/wp-content/uploads/2012/01/Andler102prefinal-copie.pdf>.
Data de acesso: 10/04/2012.

ANDLER, Daniel. “Philosophy of cognitive science”. Disponível em


<http://andler.dec.ens.fr/wp-content/uploads/2012/01/Andler102prefinal-copie.pdf>.
Data de acesso: 10/04/2012.

ARBIB, Michael. “Turing machines, finite automata and neural nets” In: Journal of the
Association for Computing Machinery, vol. 8, p. 467–475, 1961.

ARBIB, Michael et al. The handbook of brain theory and neural networks. Cambridge: The
MIT Press, 2002.

ASARO, Peter. (2007). "Heinz von Foerster and the bio-computing movements of the 1960s,"
In: MÜLLER, Albert e MÜLLER, Karl H. (org.) An unfinished revolution? Heinz
Von Foerster and the Biological Computer Laboratory - BCL 1958-1976. Viena:
Echoraum, 2007.

ASHBY, W. R. (1962). “Principles of the self-organizing system,” In: Principles of Self-


Organization: Transactions of the University of Illinois Symposium, VON
FOERSTER, H. e ZOPF, G. W., Jr. (org). Londres: Pergamon Press, 1962.

ASPRAY, William. John von Neumann and the origins of modern computing. Cambridge:
The MIT Press, 1990.

ATLAN, Henri. Entre o cristal e a fumaça: ensaio sobre a organização do ser vivo. Trad.
RIBEIRO, V. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

AUGIER, Mie e MARCH, James G. (org.) Models of a man: Essays in memory of Herbert A.
Simon. Cambridge: The MIT Press, 2004.

AYDEDE, Murat, "The Language of Thought hypothesis". In: The Stanford Encyclopedia of
Philosophy (edição “Outono de 2010”), ZALTA, Edward N. (org.). Disponível em:
<http://plato.stanford.edu/archives/fall2010/entries/language-thought/>. Data de
acesso: 10/02/2013.
324

BAARS, Bernard J. The cognitive revolution in psychology. Nova York: The Guilford Press,
1986.

BACH-Y-RITA, P. et al. “Vision substitution by tactile image projection.” In: Nature 221,
963–964, 1969.

BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Trad. KUHNEN, R. F. Coleção Os


Pensadores. São Paulo: Abril. 1978.

BADIOU, Alain. Le concept de modèle: introduction a une epistemologie materialiste des


mathematiques. Paris: François Maspéro, 1972.

BAILER-JONES, Daniela. “Tracing the development of models in the Philosophy of


Science”, In: MAGNANI, L. et al (org.). Model-Based Reasoning in Scientific
Discovery. Nova York: Springer, 1999.

BALAGUER, Mark. Platonism and Anti-Platonism in Mathematics. Nova York: Oxford


University Press, 1998.

BARBER, Paul J. Applied cognitive psychology: an information processing approach. Nova


York: Methuen & Co., 1988.

BARRETT, Louise. Beyond the brain: how body and environment shape animal and human
minds. Princeton: Princeton University Press, 2011.

BARSALOU, Lawrence. “Perceptual symbol systems”. In: Behavioral and brain sciences, nº
22, p. 577–660, 1999.

____________________. “Abstraction as dynamic interpretation in perceptual symbol


systems”. In GERSHKOFF-STOWE, L. e RAKISON, D. (org.), Building object
categories. Nova Jersey: Erlbaum, 2005.

____________________. “Grounded cognition”. In: Annual Review of Psychology, nº 59, p.


617–45, 2007.

BARSALOU, Lawrence et al. “Grounding conceptual knowledge in modality-specific


systems”. In: Trends in Cognitive Sciences, vol.7, nº 2, fevereiro de 2003.

BATESON, Gregory. Mind and nature: a necessary unity. Nova York: E. P. Dutton, 1979.

BAUMGARTNER, Peter e PAYR, Sabine (org.).Speaking minds: interviews with twenty


eminent cognitive scientists. New Jersey: Princeton University Press, 1995.

BECHARA, Antoine. “The role of emotion in decision-making: Evidence from neurological


patients with orbitofrontal damage”. In: Brain and Cognition, nº 55, p. 30-40, 2004.

BECHTEL, William. Philosophy of mind: an overview for cognitive science. Hillsdale:


Lawrence Erlbaum, 1988.

_________________. Philosophy of science: an overview for cognitive science. Hillsdale:


Lawrence Erlbaum, 1988.
325

________________. Mental mechanisms - philosophical perspectives on cognitive


neuroscience. New York: Routledge, 2008.

BECHTEL, William e GRAHAM, George (org.). A companion to cognitive science. Malden:


Blackwell, 1998.

BEER, Randall. “Computational and dynamical languages for autonomous agents”. In: Mind
as motion: Explorations in the dynamics of cognition. PORT, Robert F. e GELDER,
Tim van (org.). Cambridge: The MIT Press, 1995.

BERMÚDEZ, José Luis. Cognitive science: an introduction to the science of the mind.
Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

BERNARD, Claude. Leçons sur les phénomènes de la vie communs aux animaux et aux
végétaux. Paris: J.-B. Baillière et Fils, 1879.

BERLIN, Brent e KAY, Paul. Basic colour terms: Their universality and evolution. Berkeley:
University of California Press, 1969.

BICKLE, John, "Multiple Realizability", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring


2013 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em:
<http://plato.stanford.edu/archives/spr2013/entries/multiple-realizability/>. Data de
acesso: 11/04/2013.

BITBOL Michel. “Ontology, matter and emergence”. In: Phenomenology and the Cognitive
Science, nº 6, p. 293-307, 2007.

BODEN, Margaret A. Mind as machine: a history of cognitive science. Dois volumes. Nova
York: Oxford University Press, 2006.

BOLTZMANN, Ludwig. Verbete “Model”. In: EncylopediaBrittanica (1902).

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. MICELI, Sergio (org.), vários
tradutores. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BOURGINE, Paul & STEWART, John. “Autopoiesis and cognition”. In: Artifical Life, nº 10,
p. 327–345, 2004.

BRAITENBERG, Valentino. Vehicles: Experiments in synthetic psychology. Cambridge:


The MIT Press, 1986.

BRENTANO, Franz. Psychology from an empirical standpoint. Nova York: Routledge, 1995.

BROAD, C. D. The mind and its place in nature. Londres: Kegan, 1925.

BROADBENT, Donald. Perception and communication. Oxford: Pergamon Press, 1958.

BROOK, Andrew & MANDIK, Peter. “The philosophy and neuroscience movement”. In:
Analyse & Kritik, nº 26, p. 382-397, 2004.
326

BROOKS, Rodney. “A robust layered control system for a mobile robot”. In: Massachusetts
Institute of Technology - Artificial Intelligence Laboratory, A. I. Memo nº 864, 1985.

________________. “Intelligence without representation”. In: Artificial Intelligence, nº 47, p.


139-159, 1991.

BROWN, Harold I. Conceptual systems. Oxon: Routledge, 2007.

BRUNER, Jerome. Acts of meaning. Cambridge: Harvard University Press,1990.

CANNON, Walter B. Bodily changes in pain, hunger, fear and rage. Nova York: D.
Appleton and Company, 1915

CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Trad.
bras.: EICHEMBERG, N. R. São Paulo: Editora CULTRIX, 2004.

CARNAP, Rudolf. “The elimination of metaphysics through logical analysis”,


1932.Disponível em: <http://www.calstatela.edu/dept/phil/pdf/res/Carnap-
Elimination-of-Metaphysics.pdf.> Data de acesso: 01/09/2013.

_______________.“Logical foundations of the unity of science”. In: NEURATH, Otto et al


(org.) International Encyclopedia of Unified Science: volume I,
Chicago: University of Chicago Press, 1955.

_______________. Logical syntax of language. London: Routledge, 2000.

_______________. The logical structure of the world. Chicago: Open Court, 2003.

CASEY, Gerard e MORAN, Aidan. “The computational metaphor and cognitive


psychology”, 1989.Disponível em:
<http://www.ucd.ie/philosophy/staff/gerardcasey/casey/CompMeta.pdf>. Data de
acesso: 10/01/2013.

CHANGEUX, Jean-Pierre. L’homme neuronal. Paris: Hachette Pluriel, 1994.

CHEDIAK, Karla de A. Filosofia da biologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

CHEMERO, Anthony. “What we perceive when we perceive affordances”. Disponível em:


<https://edisk.fandm.edu/tony.chemero/papers/michaels.pdf>. Data de acesso:
08/09/2011.

__________________. Radical embodied cognitive science. Cambridge: The MIT Press,


2009.

CHEMERO, Anthony e TURVEY, Michael. “Gibsonian affordances for roboticists”. In:


Adaptive behavior, vol. 15, nº 4, p. 473-480, 2007.

CHOMSKY, Noam. Aspects of the theory of syntax. Cambridge: The MIT Press, 1965.

________________. Syntactic structures. Berlim: Mouton de Gruyter, 2002.


CHURCH, Alonso. “An unsolvable problem of elementary number theory ". In: American
Journal of Mathematics, nº 58, p. 345-363, 1936.
327

CHURCHLAND, Paul. “Eliminative materialism and the propositional attitudes”. In: The
journal of philosophy, nº 2, vol. LXXVIII, 1981

___________________. Matéria e consciência.Trad. CESCATO, M. C. São Paulo: UNESP,


1998.

CHURCHLAND, Patricia. Neurophilosophy - toward a unified science of the mind-brain.


Cambridge: The MIT Press, 1985.
_____________________. “Language, thought, and information processing”. In: Noûs, nº 14,
p. 147-170, 1980.

CHEMERO, Anthony e TURVEY, Michael. “Gibsonian affordances for roboticists”. In:


Adaptive behavior, vol. 15, nº 4, p. 473-480, 2007.

CICOUREL, Aaron V. Cognitive sociology: language and meaning in social interaction.


Nova York: Free Press, 1974.

CIRNE-LIMA, Carlos. “Causalidade e auto-organização”, s/d. Disponível em:


<http://www.cirnelima.org/beyond hegel-cirne-lima-causalidade.htm>. Data de acesso:
10/12/2013.

CLARK, Andy. Being there: putting brain, body and world together again. Cambridge:The
MIT Press, 1998

CLARK, Andy e TORIBIO, Josefa. “Doing without representing?”. In: Synthese, nº 101,
p. 401-431, 1994.

CLARK, Andy e CHALMERS, David. "The extended mind" In: Analysis, nº 58, vol. 1, p.7-
19, 1998.

CLEEREMANS, Axel. Mechanisms of implicit learning: connectionist models of


sequence processing, Cambridge: The MIT Press/Bradford Books, 1993

COLLIER, Bruce e MACLACHLAN, James. Charles Babbage and the engines of perfection.
Nova York: Oxford University Press, 1998.

COLLINS, Harry, EVANS Robert e GORMAN, Mike “Trading zones and interactional
expertise”. In: Studies in History and Philosophy of Science, nº 38, p.657-666, 2007.

COLOMBETTI, Giovanna. “Appraising valence”. In: Journal of Consciousness Studies, vol.


12, nº 8–10, p. 103–126, 2005

_____________________. “Enactive appraisal”. In: Phenomenology and the Cognitive


Sciences, vol. 6, p. 527-546, 2007.

_____________________. The feeling body: affective science meets the enactive mind.
Cambridge: The MIT Press, 2014.
328

COLOMBETTI, Giovanna e THOMPSON, Evan. “The feeling body - toward an enactive


approach to emotion” In: Developmental perspectives on embodiment and
consciousness. OVERTON, W. et al (org.). Nova York: Lawrence Erlbaum, 2008.

CONDILLAC, Étienne. Traité des systèmes. Paris: Houel, 1749.

COWART, Monica. “Embodied cognition”. In: Internet Encyclopedia of Philosophy.


Disponível em <http://www.iep.utm.edu/embodcog>. Data de acesso: 23/10/2012.

CREATH, Richard. “The unity of science: Carnap, Neurath, and beyond”. In: GALISON,
Peter & STUMP, David J. The disunity of science. Stanford: Stanford University
Press, 1996.

CRANE, Tim. “The significance of emergence”. In: LOEWER, Barry e GILLETT, Grant
(org.) Physicalism and its discontents. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

___________.The mechanical mind. London: Routledge, 2003.

____________. “Intentionalism”, 2007. Disponível em: <http://sas-


space.sas.ac.uk/588/1/T_Crane_Intentionalism.pdf>. Data de acesso: 08/10/2011.

CSORDAS, Thomas. “Embodiment as a paradigm for anthropology”. In: Ethos, vol. 18, nº 1.
p. 5-47, março de 1990.

_________________.“Intersubjectivity and intercorporeality”. In: Subjectivity, nº 22, p.110–


121, 2008.

D'ANDRADE, Roy. The development of cognitive anthropology. Cambridge: Cambridge


University Press, 2003.

DALE, Rick. “The possibility of a pluralist cognitive science”. In: Journal of Experimental &
Theoretical Artificial Intelligence, vol. 20, nº 3, p. 155-179, 2008.

DALE, Rick et al. “Explanatory pluralism in cognitive science”. In: Cognitive Science, 1-4,
2009.

DAMÁSIO, António. Descartes’ error. Nova York: Avon Books, 1994.

_________________. “The somatic marker hypothesis and the possible functions of the
prefrontal cortex”. In: Philosophical Transactions of the Royal Society B: Biological
Sciences, nº 351, p. 1413-1420, 1996

________________. “Emotion in the perspective of an integrated nervous system”. In: Brain


Research Reviews, nº 26, p. 83-86, 1998

________________. The feeling of what happens - body and emotion in the making of
consciousness. Nova York: The Harvest Press, 1999.

________________. Looking for Spinoza - joy, sorrow, and the feeling brain. Londres:
William Heinemann, 2003.
329

________________. Self comes to mind: constructing the conscious brain. Nova York:
Pantheon Books, 2010.

DAMÁSIO, António e MEYER, Kaspar. “Behind the looking-glass”. In: Nature, nº 10,
p. 167-168, 2008.

DARDEN, Lindley e MAULL, Nancy, “Interfield theories”. In: Philosophy of Science, nº 44,
p. 43-64, 1977.

DAVIDSON, Richard J. “Affective neuroscience and psychophysiology: toward a synthesis”.


In: Psychophysiology, nº 40, p. 655–665, 2003

DIJKSTERHUIS, E.J., The mechanization of the world picture: Pythagoras to Newton. New
Jersey: Princeton University Press, 1986.

DI PAOLO, Ezequiel A. et al. “Horizons for the enactive mind: values, social interaction, and
play”. In: Enaction. STEWART, John et al (org.). Cambridge: The MIT Press, 2010.

DODIG-CRNKOVIC, Gordana. History of computer science. Disponível em:


<http://www.idt.mdh.se/kurser/ct3620/ht01/history_cs.pdf>. Data de acesso:
19/09/2013.

DOURISH, Paul. Where the action is: the foundations of embodied interaction. Cambridge:
The MIT Press, 2004.

DREYFUS, Hubert. O que os computadores não podem fazer. Rio de Janeiro: Eldorado.
1975.

DRIESCH, Hans. The science and philosophy of the organism. Londres: Adam & Charles
Black, 1908.

DUMMETT. Michael. Frege Philosophy of Mathematics. Londres: Duckworth, 1991.

_________________. Origins of Analytical Philosophy. Cambridge: Harvard University


Press, 1996.

DUNN, Barnaby D. et al. “The somatic marker hypothesis: a critical evaluation”. In:
Neuroscience and Biobehavioral Reviews, nº 30, p. 239-271, 2006.

DUPUY, Jean-Pierre. Nas origens das ciências cognitivas. Trad. FERREIRA, R. L. São
Paulo: UNESP, 1996.

DUPUY, Jean-Pierre e DUMOUCHEL, Paul. "L'auto-organisation du social au vivant et du


vivant au social". In : Cahier S.T.S., nº 5, p. 48-73. Paris: Editions du CNRS, 1984.

ECKHARDT, Roger. “Stan Ulam, John Von Neumann, and The Monte Carlo Method”. In:
Los Alamos Science Special Issue, 1987

EDELMAN, Gerald. Bright air, brilliant fire. Nova York: Basic Books, 1992.

ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Disponível em: http://www.britannica.com/


330

ERICKSON, Paul et al. How reason almost lost its mind: The strange career of cold war
rationality. Chicago: The University of Chicago Press, 2013.

FAUCONNIER, Gilles e TURNER, Mark. The literary mind. Nova York : Oxford
University Press, 1996.

___________________________________. The way we think: conceptual blending and the


mind's hidden complexities. Nova York: Basic Books, 2002.

FELDMAN, Jerome A. From molecule to metaphor: a neural theory of language. Cambridge:


The MIT Press, 2006.

FILLMORE, Charles J. “An alternative to checklist theories of meaning”. In: Proceedings of


the First Annual Meeting of the Berkeley Linguistics Society, p. 123-131, 1975.

FINE, Arthur. “Ficionalism”. In: Midwest studies in philosophy, nº 18, 1993.

FODOR, Jerry. “Special sciences (or The disunity of science as a working hypothesis)”,
In: Synthese, vol. 28, nº 2, p. 97-115, 1974.

____________. The language of thought. Nova York: Thomas Y. Crowell, 1975.

____________. ‘The mind-body problem’, In: Scientific American, nº 244, janeiro de 1981,
reimpresso em HEIL, J. (org.). Philosophy of mind: A guide and anthology, Oxford:
Oxford University Press, 2004, p. 168-182.

____________. Representations: philosophical essays on the foundations of cognitive


science. Nova York: The Harvester Press, 1981.

____________. The modularity of mind. Cambridge: The MIT Press, 1983.

____________. Psychosemantics: the problem of meaning in the philosophy of mind.


Cambridge: The MIT Press, 1987.

____________. ‘The mind-body problem’, In: Scientific American, nº 244, jan. 1981,
reimpresso em HEIL, J. (org.). Philosophy of mind: A guide and anthology, Oxford:
Oxford University Press, 2004, p. 168-182.

____________. LOT 2: The language of thought revisited. Oxford: Clarendon-Press, 2008.

FLORIDI, Luciano. Philosophy and computing: an introduction. Nova York: Routledge,


1999.

________________. “Open problems in the philosophy of information”. In: Metaphilosophy,


nº 4, vol. 35, julho de 2004.

_______________. “Is semantic information meaningful data?”. In: Philosophy and


Phenomenological Research, nº 2, vol. LXX, março de 2005.

FOUCAULT, Michel. Doença mental e psicologia. Trad. SHALDERS, L. R. São Paulo:


Tempo Brasileiro, 1975.
331

FREEMAN, Walter. Mass action in the nervous system. Nova York: Academic Press, 1975.

________________. How brains make up their minds. Nova York: Columbia University
Press, 2000.
_______________. “Emotion is essential to all intentional behaviors” In: LEWIS, M. D. e
GRANIC, I (org.). Emotion, development, and self-organization dynamic systems
approaches to emotional development. Cambridge: Cambridge University Press. 2000.

FREEMAN, Walter e SKARDA, Christine. “Spatial EEG patterns, non–linear dynamics and
perception: the Neo–sherringtonian view”. In: Brain Research Reviews, nº 10, p.147-
175, 1985.

FREGE, Gotlobb. “Sense and reference”. In: The Philosophical Review, vol. 57, nº 3, p. 209-
230, maio de 1948.

______________. “The thought: a logical inquiry”. In: Mind, New Series, vol. 65, nº 259, p.
289-311, julho de 1956.

______________. Os fundamentos da aritmética. Trad. SANTOS, L. H. Coleção Os


Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.

______________. Sobre a justificação científica de uma conceitografia. Trad. SANTOS, L.


H. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1974.

______________. Lógica e filosofia da linguagem. Trad. ALCOFORADO, P. São Paulo:


Edusp, 2009.

FROESE, Tom. “From cybernetics to second-order cybernetics: a comparative analysis of


their central ideas”. In: Constructivist Foundations, vol. 5, nº 2, p. 75-85, março de
2010.
FROESE, Tom. “From second-order cybernetics to enactive cognitive science: Varela’s turn
from epistemology to phenomenology”. In: Systems Research and Behavioral
Science Syst. Res (2011). Publicada na internet em Wiley Online Library
(wileyonlinelibrary.com).DOI: 10.1002/sres.1116, 2011.

FROESE, Tom e STEWART, John.“ Life after Ashby: ultrastability and the autopoietic
foundations of biological individuality. In: Cybernetics and Human Knowing, vol. 17,
nº 04, p. 7-50, 2010.

GALILEI, Galileo. Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo tolemaico e copernicano.
Turim: Einaudi, 1970.

GALISON, Peter. “Computer simulations and the trading zone”. In: GALISON, Peter &
STUMP, David J. The disunity of science. Stanford: Stanford University Press, 1996.

GALLAGHER, Shaun e VARELA, Francisco. “Redrawing the map and resetting the time -
Phenomenology and the cognitive sciences”. In: CROWELL, Steven et al (org.). In:
The reach of reflection: issues for phenomenology's second century.
http://www.electronpress.com: Electron Press, 2001.
332

GARDNER, Howard. The mind’s new science: a history of the Cognitive Revolution. Nova
York: Basic Books, 1985.
_________________. A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva. Trad.
brasileira de CAON, C. M. São Paulo: EDUSP, 1996.

GEROVITCH, Slava. From newspeak to cyberspeak - a history of soviet cybernetics.


Cambridge: The MIT Press, 2002.

GIBBS JR., Raymond. Embodiment and cognitive science. Nova York: Cambridge
University Press, 2005.

GIBBS JR., Raymond (org.).The Cambridge handbook of metaphor and thought. Cambridge:
Cambridge University Press, 2008.

GIBBS JR., Raymond e WILSON, Nicole. “Bodily action and metaphorical meaning”.
Disponível em:
<http://www.thefreelibrary.com/Bodily+action+and+metaphorical+meaning.-
a094775629>. Data de acesso: 05/06/2013.

GIBSON, James J. The ecological approach to visual perception. Nova York: Psychology
Press, 1979.

GIERE, Ronald N. “How models are used to represent reality”. In: Philosophy of
Science, nº 71, p. 742–752, dezembro de 2004.

GLENBERG, Arthur. “What memory is for”. In: Behavioral and brain sciences, nº 20, p.1-
55, 1997

GLENBERG, Arthur e ROBERTSON, David A. “Symbol grounding and meaning: a


comparison of high-dimensional and embodied theories of meaning”. In: Journal of
Memory and Language, nº 43, p. 379–401, 2000.

GOLDSTEIN, Kurt. The organism: a holistic approach to biology derived from pathological
data in man. Nova York: Zone Books,1995.

GOLDSTINE, Herman. The computer from Pascal to von Neumann. New Jersey: Princeton
University Press, 1993.

GRECO, Alessandro. Homens de ciência. São Paulo: Conrad, 2001.

GREENWOOD, John D. A conceptual History of Psychology. Nova York. McGraw-Hill,


2009.

GREY WALTER, W., “An imitation of life”, In: Scientific American, nº 182(5), p. 42-45,
1950.

HACKING, Ian. Representar e intervir. Trad. OLIVEIRA, P. R. Rio de Janeiro: Eduerj, 2012.

HAHN, Peter. “The medical anthropology of Viktor von Weizsäcker in the present clinical
context in Heidelberg”. In: Anthropologies of Medicine, Special Issue, 7/25, p. 23-35,
1991.
333

HAMLYN, D. W. In & out of the black box: on the philosophy of cognition. Cambridge:
Basil Blackwell, 1990.

HANNA, Robert e THOMPSON, Evan. “The mind-body-body problem”. In: Theoria et


Historia Scientiarum: International Journal for Interdisciplinary Studies, nº 1, vol. 7,
p. 23-42, 2003.

HASSLACHER, Brosl e TILDEN, Mark W. “Living machines”, In: STEELS, L.


(org.), Robotics and autonomous systems: The biology and technology of
intelligent autonomous agents. Amsterdam: Elsevier, 1995.

HAUGELAND, John. Artificial Intelligence: the very idea. Cambridge: The MIT Press,
1985.

_________________Having thought: essays in the metaphysics of mind. Cambridge:


Harvard University Press, 1998.

HEBB, Donald O. The organization of behavior: a neuropsychological theory. Mahwah,


Lawrence Erlbaum, 2002.

HELD, Richard e HEIN. Alan. “Movement-produced stimulation in the development of


visually guided behavior”. In: Journal of Comparative and Physiological
Psychology, nº 5, vol. 56, p. 872-876, 1963.

HEGENBERG, Leonidas. Dicionário de Lógica. São Paulo: EPU, 1995.

HESSE, Mary. “Models in Physics”. In: British Journal for the Philosophy of Science, nº 15,
vol. 4, p. 198-214, 1953.

HEYLIGHEN, Francis. Representation and change: a metarepresentational framework for


the foundations of physical and cognitive science, 1999. Disponível em: <http://
pcp.vub.ac.be/books/Rep&Change.pdf>. Data de acesso: 03/11/2013.

HEYLIGHEN, Francis e JOSLYN, Cliff. “Cybernetics and Second-Order Cybernetics”. In:


MEYERS, R.A. (org.), Encyclopedia of Physical Science & Technology. Nova York:
Academic Press, 2001.

HINE, Ellen McNiven. A critical study of Condillac’s “Traité des Systèmes’”. Haia: M.
Nijhoff, 1979.

HINMAN, Peter. Fundamentals of mathematical logic. Wellesley: A K Peters, 2005.

HOOKER, Cliff. “Introduction to philosophy of complex systems”. In: HOOKER, C. (org.).


Handbook of the Philosophy of Science, vol. 10: Philosophy of complex systems.
Amsterdam: Elsevier, 2011.

HODGES, Andrew. Turing: um filósofo natural. Trad. de OLIVEIRA, M. B. São Paulo:


Editora UNESP, 1999.

HOFSTADTER, Douglas. Gödel, Escher, Bach. Nova York: Basic Books, 1979.
334

HUSBANDS, Philip et al. The mechanical mind in History. Cambridge: The MIT Press,
2008.

HUTCHINS, Edwin. Cognition in the wild. Cambridge: The MIT Press, 1995.

IIDA, Fumiya et al (org.) Embodied artificial intelligence. Berlim: Springer, 2004.

JARDINI, David. Thinking through the Cold War: RAND, national security and domestic
policy, 1945-1975. Meadows Land: David Jardini, 2013.

JOHNSON, Mark. The body in the mind. Chicago: The University of Chicago Press, 1987.

______________. The meaning of the body. Chicago: The University of Chicago Press, 2007.

JOHNSON, Mark & LAKOFF, George. “Experientialist philosophy: philosophy in the age of
cognitive science”. 1992. Disponível em:
<http://georgelakoff.files.wordpress.com/2011/04/experientialist-philosophy-lakoff-
and-johnson-1992.pdf>. Data de acesso: 18/07/2013.

JONAS, Hans. The phenomenon of life: toward a philosophical biology. Nova York: Harper
& Row, 1966.

KAHNEMAN, Daniel. Thinking, fast and slow. Nova York: Farrar, Straus e Giroux, 2011.

KAUFFMAN, Stuart A. The origins of order: self-organization and selection in evolution.


Nova York: Oxford University Press, 1993.

KELSO J. A. Scott. Dynamic Patterns - the self-organization of brain and behavior.


Cambridge: The MIT Press, 1995.

KLEENE, S.C. “Representation of events in nerve nets and finite automata”. In: U.S. Air
Force Project RAND Research Memorandum RM 704, Santa Monica: RAND, 1951.

KIM, Jaegwon. Supervenience and mind. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.

____________. Philosophy of Mind. Boulder: Westview, 2006.

KOREN, Yoram. The global manufacturing revolution. Hoboken: Wiley, 2010.

KOSSLYN, Stephen e KOENIG, Olivier. Wet mind: The new cognitive neuroscience. Nova
York: The Free Press, 1992.

KROIS, John Michael et al (org.) Embodiment in cognition and culture Amsterdam: John
Benjamin, 2007.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978.

LAKOFF, George. Women, fire, and the dangerous things. Chicago: The University of
Chicago Press, 1987
335

_______________. “How the body shapes thought - thinking with an all-too-human brain”.
In: The nature and limits of human understanding. SANDFORD, Anthony J. (org.).
Londres: Bloomsbury, 2003.

LAKOFF, George e JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: University of


Chicago Press, 1980.

_______________________________. Philosophy in the flesh: the embodied mind and


its challenge to western thought. Nova York: Basic Books, 1999.

LAKOFF, George e NÚÑEZ, Rafael E. Where Mathematics comes from: How the embodied
mind brings Mathematics into being. Nova York: Basic Books, 2000.

LANGACKER, Ronald. Cognitive grammar: a basic introduction. Nova York: Oxford


University Press, 2008.

____________________. Investigations in cognitive grammar. Berlim: Mouton de Gruyter.


2009.

LAPLACE, Pierre-Simon de. Exposition du système du monde. 50ª edição. Paris : Bachelier,
1824.

LETTVIN, Jerome et al. “What the frog's eye tells the frog's brain” In: CORNING,W. e
BALABAN, M. (org.). The mind: biological approaches to its functions. Nova York:
Interscience Publishers, 1968.

LIBET, Benjamin et al. "Time of conscious intention to act in relation to onset of


cerebral activity (readiness-potential) - The unconscious initiation of a freely
voluntary act". In: Brain nº 106, p. 623–642, 1983.

LIVET, Pierre. “Cybernétique, auto-organisation et néo-connectionisme”. In: Cahiers du


CREA, nº 8, p. 105-153, 1985.

LLOYD MORGAN, C. Emergent evolution. Londres: Williams & Norgate, 1927.

LUTZ, Antoine e THOMPSON, Evan. “Neurophenomenology - integrating subjective


experience and brain dynamics in the neuroscience of consciousness” In: Journal of
Consciousness Studies, nº 9-10,vol. 10, p. 31–52, 2003.

MANDLER, George. “Cohabitation in the cognitive sciences”. In: Methods and tactics in
cognitive science. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Ass., 1984.

_________________. A history of modern experimental psychology. Cambridge: The MIT


Press, 2007.

MANNO, A. G. (s.d.). A filosofia da matemática (Trad. Armindo J. Rodrigues). Lisboa:


Edições 70.

MARR, David. Vision. Cambridge: The MIT Press, 2002.

MATARIC, Maja. The robotics primer. Cambridge: The MIT Press, 2007.
336

MATURANA, Humberto. “Ontology of observing: the biological foundations of self-


consciousness and of the physical domain of existence”, 1988.Disponível em: <
http://ada.evergreen.edu/~arunc/texts/cybernetics/oo/old/oo.pdf>. Data de acessso:
12/08/2013.

____________________. “Reflections on my collaboration with Francisco Varela”, In:


Constructivist Foundations, n°3, vol. 7, 2012.

MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. De máquinas y seres vivos - autopoiesis, la


organización de lo vivo. Santiago: Editorial Universitaria, 1998.

_______________________________________. A árvore do conhecimento – as bases


biológicas da compreensão humana. Trad. MARRIOTTI, H. e DISKIN, L. São Paulo:
Palas Athena, 2010.

MCCULLOCH, Warren S. Embodiments of mind. Cambridge: The MIT Press, 1988.

MCCULLOCH, Warren S. e PITTS, Walter.“A logical calculus of the ideas immanent in


nervous activity”. Disponível em: < http://www.grappa.univ-
lille3.fr/~ppreux/ensg/aeac/papiers/mculloch-pitts.pdf>. Data de acesso: 10/09/2011.

MCCORDUCK, Pamela. Machines who think.Natick: A. K. Peters, 2004.

MERLEAU-PONTY, Maurice. A estrutura do comportamento. Trad. AGUIAR, M. V. M.


São Paulo: Martins Fontes, 2006.

________________________. A fenomenologia da percepção. Trad. MOURA, C. A. R. São


Paulo: Martins Fontes, 2006.

METROPOLIS, Nicholas. “The beginning of the Monte Carlo Method”. In: Los Alamos
Science Special Issue, p. 125-130, 1987.

METROPOLIS, Nicholas e ULAM, Stanislaw. “The Monte Carlo Method”. In: Journal of
The American Statistical Association, nº 247, vol. 44, p. 335-341, 1949.

MILLER, George. “The cognitive revolution - a historical perspective”. In: Trends of


Cognitive Science, vol. 7, nº 3, p. 141-144, 2003

_______________. “The magical number seven, plus or minus two: some limits on our
capacity for processing information". In: The psychological review, vol. 63, p. 81-97,
1956.

MINSKY, Marvin. “Matter, mind and models”. In: Semantic information processing"
Cambridge: The MIT Press, 1968

________________. The society of mind. Nova York: Simon & Schuster, 1985.

MORRIS, Richard e TARASSENKO, Lionel. Cognitive systems – information processing


meets brain science. Amsterdam: Elsevier, 2006.
337

MÜLLER, Albert. “A brief history of the BCL. Heinz von Foerster and the Biological
Computer Laboratory”. Disponível em
<http://bcl.ece.illinois.edu/revolution/BriefHistBCL.pdf>, 2000. Data de acesso:
10/01/2014.

MUMFORD, Lewis.Technics and civilization.Londres: Routlegde, 1934.

NERSESSIAN, Nancy. Creating scientific concepts. Cambridge: The MIT Press, 2008.

___________________. “Model-based reasoning in conceptual change”. In: Model-based


reasoning in scientific discovery, MAGNANI, L. et al. Nova York: Kluwer
Academic/Plenum Publishers, 1999.

NEWELL, Allen. “The knowledge level”. In: Artificial Intelligence Magazine, vol. 2, nº 2,
1981.

NEWELL, Allen e SIMON, Herbert A. “Human problem solving - the state of the theory in
1970”, 1971. Disponível em:
< http://www.cog.brown.edu/courses/cg195/pdf_files/fall07/Simon and Newell
(1971).pdf>.Data de acesso: 01/10/2012.

_______________________________. “Computer science as empirical inquiry”, 1976.


Disponível em:
<http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.104.2482&rep=rep1
&type=pdf>. Data de acesso: 10/09/2011.

NEWTON, Isaac. Philosophiae naturalis principia mathematica. Londres: S. Pepis, 1686.


Digitalizado por “The Project Gutenberg”, 2009.

NOË, Alva. “Direct perception”. In: Encyclopedia of Cognitive Science. Disponível em


< http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/0470018860.s00170/full>. Data de
acesso: 12/09/2011.

NOË, Alva e THOMPSON, Evan (org.).Vision and mind: selected readings in the
Philosophy of Perception. Cambridge: The MIT Press, 2002.

NORMAN, Donald. “Twelve issues for cognitive science”. In: Cognitive Science, nº 4, p. 1-
32, 1980.

OXFORD DICTIONARIES. Disponível em: <http://www.oxforddictionaries.com/us/>.

PASK, Gordon. “The meaning of cybernetics in the behavioural sciences (The cybernetics of
behaviour and cognition; extending the meaning of ‘goal’)”, In: ROSE, J. (org.)
Progress of cybernetics, vol 1. Londres: Gordon and Breach, 1969.

PANKSEPP, Jaak. Affective neuroscience: the foundations of human and animal emotions.
Oxford: Oxford University Press, 1998.

PECHER, Diane e ZWAAN, Rolf.(org.).Grounding cognition: the role of perception and


action in memory, language, and thinking. Cambridge: Cambridge University Press,
2005.
338

PESSOA, Luiz. “On the relationship between emotion and cognition”. In: Nature Reviews –
Neuroscience, vol. 9, nº 2, p. 148–158, 2008.

____________.“Emotion and cognition and the amygdala: from ‘what is it?’ to


‘what’s to be done?’”. In: Neuropsychologia, nº 48, vol. 12, p. 3416–3429, outubro de
2010.

PESSOA, Luiz e ADOLPHS, Ralph. “Emotion processing and the amygdala: from a ‘low
road’ to ‘many roads’ of evaluating biological significance”. In: Nature Reviews.
Neuroscience, 11(11), 773–783. 2010.

PESSOA JR., Osvaldo. “Auto-organização e complexidade: uma introdução histórica e


crítica”, 2001. Disponível em <http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/AO&C-tex.pdf>.
Data de acesso: 10/11/2013.

PFEIFER, Rolf e SCHEIER, Christian. Understanding intelligence. Cambridge: The MIT


Press, 1999.

PFEIFER, Rolf e BONGARD, Josh. How the body shapes the way we think: A new view of
intelligence. Cambridge: The MIT Press, 2007.

PICCININI, Gualtiero. “The first computational theory of mind and brain: A close look at
McCulloch and Pitts’s ‘Logical calculus of ideas immanent in nervous activity’”. In:
Synthese, nº 141, p. 175–215, 2004.

PICCININI, Gualtiero e SCARANTINO, Andrea. “Computation vs. information processing:


why their difference matters to cognitive science”. In: Studies in History and
Philosophy of Science, nº 41, p. 237–246, 2010.

PICKERING, Andrew. The cybernetic brain. Chicago: The University of Chicago Press,
2010.

PINKER, Steven e PRINCE, Alan. “On language and connectionism: analysis of a parallel
distributed processing model of language acquisition”. In: Cognition, nº 28, p.73-193,
1988.

POLANYI, Michael. Personal knowledge. Londres: Routledge, 1962.

PRINZ, Jesse. Gut reactions: a perceptual theory of emotion. Oxford: Oxford University
Press, 2004.

PUTNAM, Hilary. “Minds and machines”. In: HOOK, S. (org.), Dimensions of mind. Nova
York: New York University Press, 1960.

PYLYSHYN, Zenon. “Computation and cognition: issues in the foundations of cognitive


science”. In: The Behavioral and Brain Sciences, nº 3, p. 111-169, 1980.

RAMSAY, William M. Representation reconsidered. Cambridge: Cambridge University


Press, 2007.
339

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia. Volumes 01 a 05. Trad.


STORNIOLO, I. São Paulo: Paulus, 2007.

REISCH, George A. How the Cold War transformed philosophy of science: to the icy slopes
of logic. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

RESNIK, Michael D. Mathematics as a science of patterns. Oxford: Clarendon Press, 1997.

ROGERS, JR , Hartley. Theory of recursive functions and effective computability. Nova


York: McGraw-Hill, 1967.

ROGERS, T. & MCCLELLAND, J. Semantic cognition: a parallel distributed


processing approach. Cambridge: The MIT Press, 2004.

_____________________________. “The parallel distributed processing approach to


semantic cognition.”, 2003. Disponível em:
<http://psych.stanford.edu/~jlm/papers/McCRogers03.pdf>>. Data de acesso:
10/09/2011.

RORTY, Richard. A filosofia e o espelho da natureza. Trad. TRÂNSITO, A. Rio de Janeiro:


Relume Dumará, 1995.

_______________. Consequences of Pragmatism (Essays: 1972-1980). Minneapolis:


University of Minnesota Press, 1982.

ROSCH, Eleanor. “Principles of categorization”. In: ROSCH, E. e LLOYD, B. B. Cognition


and categorization. Hillsdale: Lawrence Erlbaum, 1978.

ROSENBLUETH, Arturo e WIENER, Norbert. “The role of models in science”. In:


Philosophy of Science, nº 4, vol. 12, p. 316-321, outubro de 1945.

ROSENBLUETH, Arturo et al. “Behavior, purpose and teleology”. In: Philosophy of Science,
nº 1, vol. 10, p. 18-24, 1943.

ROSNAY, J. de. “History of cybernetics and systems science”. Disponível em: <
http://pespmc1.vub.ac.be/CYBSHIST.html>. Data de acesso: 04/08/2014,

RUMMELHART, David e MCCLELLAND, James. Parallel distributed processing.


Cambridge: The MIT Press,1986.

RUSSELL, Bertrand. The basic writings of Bertrand Russell. Londres: Routledge Classics,
2009.

SEARLE, John. Minds, brains, and programs. In: The Behavioral and Brain Sciences, nº 3, p.
417-457, 1980.

____________. Intencionalidade. Trad. brasileira de FISCHER, J. e BUENO, T. R. São


Paulo: Martins Fontes, 2002.

SEMIN, Gün R. e SMITH, Eliot R. Embodied grounding social, cognitive, affective, and
neuroscientific approaches. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
340

SHANNON, C. E. “A symbolic analysis of relay and switching circuits”. In: Transactions of


the American Institute of Electrical Engineers, nº 57, p. 1-11, 1938.

_______________. “A mathematical theory of communication”. In: The Bell System


Technical Journal, nº 3, p. 379-423, 1948.

SHANNON, C. E. e WEAVER, W. The mathematical theory of communication.


Chicago: University of Illinois Press, 1949.

SHAPIRO, Larry. Embodied cognition. Nova York: Routledge, 2011.

SHAPIRO, Stewart. Thinking about mathematics. Nova York: Oxford University Press, 2000.

SIEGELMANN, Hava T. Neural networks and analog computation beyond the Turing limit.
Nova York: Springer, 1999.

SIBILIA, Paula. O homem pós-orgânico: corpo, subjetividade e tecnologias digitais. Rio de


Janeiro: Relume Dumará, 2002.

SILBERSTEIN, Michael e MCGEEVER, John. “The search for ontological emergence”. In:
The Philosophical Quarterly, nº 195, vol. 49, p. 182-2200, abril de 1999.

SIMON, Herbert. “On the forms on mental representations”. In: SAVAGE, C.W. (org.).
Minnesota studies in the philosophy of science. Vol. IX: Perception and cognition:
issues in the foundations of psychology. Minneapolis: University of Minnesota Press,
1978.

______________. Models of my life. Cambridge: The MIT Press, 1996.

SLOAN FOUNDATION. “Cognitive science 1978”. Report of the State of the Art
Committee. Nova York: Sloan Foundation, 1978.

_____________________. Alfred P. Sloan Foundation - A grantmaking History 1934-2009.


Nova York: Sloan Foundation, 2009.

SLOMAN, Aaron. The computer revolution in philosophy: philosophy science and


models of mind. Nova York: The Harvester Press, 1978.

_______________, “What's information, for an organism or intelligent machine? How can a


machine or organism mean?”, 2011. Disponível em:
<http://www.cs.bham.ac.uk/research/projects/cogaff/misc/whats-information.pdf>.
Data de acesso: 10/10/2012.

SMART, J.J.C. “Physicalism and emergence”. In: Neuroscience, vol. 6, p. 109-113, 1981.

SMOLENSKY, Paul.“On the proper treatment of connectionism”.1987.


Disponível em: < http://commonsenseatheism.com/wp-
content/uploads/2011/04/Smolensky-on-the-proper-treatment-of-connectionism.pdf>.
Data de acesso: 8/11/2011.
341

SPERRY, R. W. “Mind-brain interaction: mentalism, yes; dualism, no”. In: Neuroscience,vol.


5. p. 195-206, 1980.

_____________. “Psychology’s mentalist paradigm and the religion/science tension”. In :


American Psychologist, nº 08, vol. 43, p. 607-613, 1988.

STENGERS, Isabelle. “Les généalogies de l’auto-organisation”. In: Cahiers du CREA, nº 8,


p. 7-104, 1985.

_________________. A invenção das ciências modernas. Trad. ALTMAN, M. São Paulo:


Ed. 34, 2002.

STEPHAN, Achim “Emergence: a systematic view on its historical facets”. In: Emergence
or reduction - essays on the prospects of nonreductive physicalism, BECKERMANN,
Ansgaret al (org.). NovaYork : De Gruyter, 1992

STEPP, Nigel et al. “Philosophy of the Rest of Cognitive Science”. In: Topics in Cognitive
Science, nº 3, p. 425-437, 2011.

STERELNY, Kim. The representational theory of mind. Oxford: Blackwell, 1990.

STEWART, John et al. Enaction: toward a new paradigm for cognitive science. Cambridge:
The MIT Press, 2010.

STILLINGS, Neil et al. Cognitive Science: An introduction. Cambridge: The MIT Press,
1985.

STICH, Stephen. From folk psychology to cognitive science: the case against belief.
Cambridge: The MIT Press, 1983.
STUART MILL, John. A system of logic. Disponível em:
<http://ebooks.adelaide.edu.au/m/mill/john_stuart/system_of_logic/>, 2011. Data de
acesso: 12/05/2014.

SUÁREZ, Mauricio e CARTWRIGHT, Nancy. “Theories: tools versus models”. In: Studies
in History and Philosophy of Modern Physics, nº 39, p. 62–81, 2008.

SWEETSER, Eve. “Blended spaces and performativity”. Disponível em: <


http://www.cogsci.ucsd.edu/~faucon/BEIJING/sweetser.pdf>. Data de acesso:
02/010/2013.

TAKIMOTO, Elika. “O que há de metafísica na Mecânica do Século XVIII?”, Tese de


doutorado em Filosofia, 258 p., Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

THAGARD, Paul. Computational philosophy of science. Cambridge: The MIT Press, 1988.

_______________. Mind: introduction to cognitive science. Cambridge: MIT Press, 2005.


342

______________. “Cognitive science”. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2010.


Disponível em: < http://plato.stanford.edu/entries/cognitive-science/ >. Data de
acesso: 10/11/2012.

THELEN, Esther et al. “The dynamics of embodiment: A field theory of infant perseverative
reaching”. In: Behavioral and Brain Sciences, nº 24, p.1-86, 2001.

THOMPSON, Evan. Mind in life: biology, phenomenology, and the sciences of mind.
Cambridge: The Harvard University Press, 2007.

THOMPSON, William Irwin. “History of the Lindisfarne Association: 1972-2009”.


Disponível em: < http://www.williamirwinthompson.org/lindisfarne/history.html>.
Data de acesso: 26/09/2014.

TORRANCE, Steve. “In search of the enactive - introduction to special issue on enactive
experience”

TUDICO, Christopher. The History of the Josiah Macy Jr. Foundation. Nova York: Sloan,
2012.

TURING, Alan. “On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem”.


In: Proceedings of the London Mathematical Society, séries 2 e 42, p. 230-65,
setembro de 1936.
TURNER, Mark. “The embodied mind and the origins of human culture”. In: Cognition and
culture: an interdisciplinary dialogue, ABRANTES, A. M. e HANENBERG, P.
Frankfurt: Peter Lang, 2011.

TURVEY, Michael. “Affordances and prospective control: An outline of the ontology”. In:
Ecological Psychology, nº 4, p. 173-187, 1992.

TVERSKY, Amos e KAHNEMAN, Daniel. “Judgment under uncertainty: Heuristics and


biases. In: Science, New Series, nº 4157, vol. 185, p. 1124-1131, 1974.

VAN GELDER, Tim.“The dynamical hypothesis in cognitive science”. In: Behavioral and
brain sciences, nº 21, p. 615–665, 1998.

VARELA, Francisco. “The creative circle: sketches on the natural history of circularity”. In:
WATZLAVICK, Paul (org). The invented reality. Nova York: Norton Publishing,
1984.

_________________“Whence perceptual meaning? A cartography of current ideas”. In:


VARELA, F. e DUPUY, J.-P. (org.), Understanding origins: contemporary views on
the origin of life, mind and society. Dordrecht: Kluwer, 1992.

_________________. “The reenchantment of the concrete”. In: STEELS, Luc e BROOKS,


Rodney. The artificial life route to artificial intelligence: building embodied, situated
agents. Hillsdale: L. Erlbaum, 1995.

_________________. “The early days of autopoiesis: Heinz and Chile”. In: Systems
Research, vol. 13, nº 3, p. 407-416, 1996.
343

_________________. “El fenómenos de la vida: Cuatro pautas para el futuro de las ciencias
cognitivas”. In: WIENS, B. (org.). Envissioning knowledge, Colônia: Dumont, 2000.

_________________. Conocer - Las ciencias cognitivas: tendencias y perspectivas.


Cartografía de las ideas actuales. Trad.: GIARDINI, C. Barcelona: Gedisa, 2005.

VARELA, Francisco, MATURANA, Humberto e URIBE, R. “Autopoiesis: The organization


of living systems, its characterization and a model”. In: Biosystems, nº 5, p. 187-196,
1974.

VARELA, Francisco; THOMPSON, Evan e ROSCH, Eleanor.The embodied mind:


cognitive science and the human experience. Cambridge:The MIT Press, 1991.

VARELA, Francisco et al. “The brainweb: phase synchronization and large-scale


integration”. In: Nature Reviews – Neuroscience, vol. 2, p. 229-239, abril de 2001.

VIDEIRA, Antonio A. P. “Transdisciplinaridade, interdisciplinaridade e disciplinaridade na


história da ciência”. In: Scientiæ Ztudia, São Paulo, v. 2, nº 2, p. 279-93, 2004.

____________________.“A filosofia da ciência sob o signo dos Science Studies”. In:


Abstracta, nº 2, vol. 1,p. 70 – 83, 2005

____________________. “Metafísica, físicos, valores: Um ensaio sobre a crise dos


fundamentos das ciências naturais na passagem do século XIX para o século XX” In:
Ensaios Filosóficos, Volume IV – outubro de 2011.

VON BERTALANFFY, Ludwig. “The theory of open systems in physics and biology”. In:
Science, vol. 111, 1950.

__________________________. “An outline of general system theory”. In: The British


Journal for the Philosophy of Science, nº 2, vol. 1, p. 134-165, 1950.

VON ECKARDT, Barbara. What is Cognitive Science? Cambridge: The MIT Press, 1995.

_____________________. “Multidisciplinarity and cognitive science”. In: Cognitive Science,


nº 25, p. 453-470, 2001.

VON ECKARDT, Barbara e POLAND, Jeffrey S. “Mechanism and explanation in cognitive


neuroscience”. Disponível em:
<http://www.academia.edu/237145/Mechanism_and_Explanation_in_Cognitive_Neur
oscience> Data de acesso: 09/05/2012.

VON FOERSTER, Heinz. Cybernetics: circular causal and feedback mechanisms, biological
and social systems. New Jersey: The Josiah Macy Foundation, 1952.

____________________. “Perception of the future and the future of perception”, 1971.


Disponível em:
<http://ada.evergreen.edu/~arunc/texts/cybernetics/heinz/perception.pdf>. Data de
acesso: 10/07/2013.
344

____________________. “On constructing a reality”, 1973. Disponível em:


<http://cleamc11.vub.ac.be/Books/Foerster-constructingreality.pdf>. Data de acesso:
02/02/2013.

____________________. Understanding understanding: essays on cybernetic and cognition.


New York: Springer-Verlag, 2003

VON NEUMANN, John. The computer and the brain. New Haven: Yale University Press,
1958.

WAEVER, Warren. "Science and complexity", In: American Scientist, nº 36, vol. 536, 1948.

WARE, Willis H. RAND and the information evolution: A history in essays and vignettes.
Santa Monica: RAND, 2008.

WEBB, Barbara e CONSI, Thomas R. Biorobotics: methods and applications. Menlo Park:
AAAI Press/The MIT Press, 2001.

WECKOWICZ, Thaddus E. “Ludwig von Bertalanffy (1901-1972): a pioneer of General


Systems Theory”. Disponível em: < http://www.richardjung.cz/bert1.pdf>. Data de
acesso: 01/09/2013.

WEISS, Paul A. Dynamics of development: experiments and inferences. Nova York:


Academic Press, 1968.

WHITEHEAD, Alfred N. e RUSSELL, Bertrand. Principia mathematica. Cambridge:


Cambridge University Press, 1997.

WIENER, Norbert. Cybernetics: Or control and communication in the animal and the
machine. Cambridge: The MIT Press, 1961.

WILLIAMS, Mary-Anne. “Representation = grounded information”, 2008.


Disponível em:
<http://research.it.uts.edu.au/magic/MaryAnne/MyPapers/Representation=GroundedIn
formation.pdf >. Data de acesso: 8/11/2011.

WILSON, Robert A. e KEIL, Frank C. (org.).The MIT encyclopedia of cognitive sciences.


Cambridge: The MIT Press, 1999.

WILSON, Robert A. e FOGLIA, Lucia, "Embodied Cognition", The Stanford Encyclopedia


of Philosophy (Fall 2011 Edition), Edward N. Zalta (ed.), Disponível em
<http://plato.stanford.edu/archives/fall2011/entries/embodied-cognition/>. Data de
acesso: 22/02/2014.

WINOGRAD, Terry e FLORES, Fernando. Understanding computers and cognition,


Reading: Addison-Wesley, 1986.

YU, Qiming. “Model-Based Reasoning and Similarity in the World”. In: MAGNANI, L. et al
(org.). Model-Based Reasoning: Science, Technology, Values. Nova York: Springer,
2002.
345

ZIEMKE, Tom. “Are robots embodied?”. Disponível em


<http://www.lucs.lu.se/LUCS/085/Ziemke.pdf>. Data de acesso: 27/03/2013.

____________. “What’s that thing called embodiment?” Disponível em


<http://csjarchive.cogsci.rpi.edu/proceedings/2003/pdfs/244.pdf> Data de acesso:
27/03/2013.

Vous aimerez peut-être aussi