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Rio de Janeiro
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Rio de Janeiro
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese.
_____________________________________ ___________________________
Thompson Lemos da Silva Neto Data
iv
Banca Examinadora:
__________________________________________
Antonio Augusto Passos Videira
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas - UERJ
__________________________________________
Elika Takimoto
Centro Federal de Educação Tecnológica “Celso Suckow da Fonseca”
__________________________________________
Osvaldo Pessoa Jr.
Universidade de São Paulo
__________________________________________
Fernando Fragozo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
2015
v
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
Agradeço, em primeiro lugar, à minha orientadora, Professora Karla Chediak, pela dedicação,
sabedoria e estímulo com que me apoiou neste empreendimento, dando luz à minha
caminhada. Sou também extremamente grato aos outros membros da banca pela contribuição
inestimável à confecção desta tese. Ao Professor Antonio Augusto Passos Videira, em
especial, por me ajudar, com tanta generosidade, a compreender questões da Filosofia da
Ciência fundamentais para este trabalho. À Professora Elika Takimoto expresso minha
enorme gratidão por me oferecer questionamentos importantíssimos para que esta tese
pudesse se concretizar, e pela disposição permanente em exigir de mim o melhor, dando
sugestões que me foram essenciais. Ao Professor Fernando Fragozo devo em grande parte o
enfoque escolhido para o presente trabalho, em especial no que se refere às questões
decorrentes da relação entre cognição e tecnologia – pelo que sou imensamente grato. Sou
também muitíssimo agradecido ao Professor Osvaldo Pessoa pela extrema paciência e
dedicação com que me apresentou inúmeros questionamentos valiosos para este trabalho.
Manifesto meu agradecimento a todos meus queridos companheiros do Grupo de Estudos
Sociais e Conceituais de Ciência, Tecnologia e Sociedade, assim como a muitos amigos que
me fizeram perseverar nesta jornada. E declaro imensa gratidão à minha família – em especial
à Katia –, por todo o apoio e carinho que me deu ao longo desse caminho, que não tem fim.
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RESUMO
SILVA NETO, Thompson Lemos da. A cognição corpórea como continuidade crítica das
ciências cognitivas, 2014. 200 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,2014.
ABSTRACT
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 ...........................................................................................................................................73
Figura 2……………………………………………………………………………………………92
Figura 3……………………………………………………………………………………………93
Figura 4……………………………………………………………………………………………93
Figura 5……………………………………………………………………………………………94
Figura 6…………………………………………………………………………………………..259
x
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 01
1. A GÊNESE DAS CIÊNCIAS COGNITIVAS E DO MODELO LÓGICO-
PROPOSICIONAL...............................................................................................
22
1.1 A formação histórica das ciências cognitivas através da criação de um
modelo unificador da cognição............................................................................
22
1.1.1. A noção de modelo científico tal como aplicado à cognição humana.................... 25
1.1.2. Antecedentes históricos das ciências cognitivas..................................................... 38
1.1.3. Estabelecimento institucional das ciências cognitivas como programa unificado. 51
1.1.4. O caráter analógico do modelo lógico-proposicional................................. 76
1.2. Descrição do modelo lógico-proposicional e suas principais utilizações nas
diversas disciplinas das ciências cognitivas........................................................ 82
1.2.1 O modelo lógico-proposicional na inteligência artificial...................................... 82
1.2.2. O modelo lógico-proposicional na psicologia cognitiva: o caso do processamento
de informações............................................................................... 91
1.2.3. Características gerais do modelo lógico-proposicional e sua aplicação nas demais
disciplinas das ciências
cognitivas.......................................................................................................... 103
1.2.3.1. A linguística gerativa........................................................................................ 103
1.2.3.2. Marr e os três níveis cognitivos........................................................................ 110
1.2.4. A questão da representação mental nas ciências cognitivas clássicas: a busca de
uma teoria da cognição a partir do modelo lógico-
proposicional........................................................................................................... 113
2. A COGNIÇÃO CORPÓREA............................................................................. 129
2.1. Antecedentes histórico-conceituais...................................................................... 129
2.1.2. A evolução das características da noção de sistema............................................... 138
2.1.3. A Teoria Geral dos Sistemas e a noção de auto-organização................................. 152
2.1.4. A noção de emergência........................................................................................... 170
2.1.5. A noção de complexidade....................................................................................... 176
2.1.6. Autopoiese e autonomia......................................................................................... 187
2.1.7. A fenomenologia da percepção.............................................................................. 198
2.1.8. Linguística e psicologia.......................................................................................... 204
2.2. A orientação corpórea como conjunto integrado de abordagens da cognição 211
2.2.1. Características gerais da cognição corpórea............................................................. 211
2.2.2. A ontologia crítica da cognição corpórea................................................................ 223
xi
INTRODUÇÃO
1
Em inglês tem sido usada a expressão embodied cognition para designar a abordagem das ciências cognitivas
que valoriza o papel do corpo na cognição. Dentre as traduções de embodied já feitas para o português, encontra-
se – para o caso da cognição –, além de “corpórea”, “incorporada” e “corporificada". Neste trabalho optou-se
por não adotar o adjetivo “incorporada”, por este induzir à ideia de que a cognição possa ser pensada como algo
que passa a integrar o corpo – se incorpora --, a partir de um certo momento, mas que antes poderia ser
concebida como separada do corpo. Já a qualificação “corporificada” não foi escolhida por denotar algo que não
constituía um corpo, mas passou a constituir a partir de um dado instante. A expressão cognição corpórea foi
eleita nesta tese por ser mais capaz de traduzir, em português, a ideia da cognição como desde sempre sendo
realizada com o corpo, sendo dele sempre inseparável.
2
centrais a experiência e o corpo individuais. Esta é uma definição que se baseia na atitude dos
autores da cognição corpórea no ambiente atual das ciências cognitivas.
Porém, ao considerar o conteúdo particular de suas teses, a cognição corpórea se
caracteriza:
1) Pela intenção em discutir qual a origem dos significados que as experiências
humanas utilizam e produzem;
2) Por advogar que tais significados dependem de experiências passadas e das
estruturas dos organismos individuais, julgando que estas estruturas também se
modificam ao longo do tempo através da ocorrência de novas experiências que
produzem novos significados – e assim por diante.
Sendo desta forma, sua divergência em relação à orientação cognitivista decorre,
principalmente, do fato de que, para esta última, os significados cognitivos são objetivos,
literais e impessoais, e não podem, assim, depender das estruturas dos organismos que os
utilizam e produzem, e tampouco de experiências individuais.
No contexto desta tese, chama-se de construção teórica da cognição corpórea à
articulação de conceitos, modelos, métodos de investigação e noções gerais que a constituem,
entendidos na forma de uma rede de ideias que se reforçam mutuamente. Isto quer dizer que,
embora cada um dos conceitos, modelos e outros elementos teóricos da cognição corpórea
possa ser estudado em sua particularidade – e este tipo de estudo particular será um dos
propósitos do presente trabalho –, aqui também frequentemente se necessitará invocar as
relações entre tais elementos para que haja uma compreensão de seu papel e sentido geral. Tal
estudo relacional e global, por outro lado, deverá contribuir também para a compreensão
particular dos diversos elementos teóricos.
Com a finalidade de se realizar a investigação que aqui se propõe, adota-se como
ponto de partida a hipótese de que as ciências cognitivas nasceram na forma de um campo
multidisciplinar graças à formulação de um modelo geral dominante – denominado nesta tese
de modelo lógico-proposicional –, que permitiu a unificação dos estudos sobre a cognição
mediante a colaboração de disciplinas diferentes, sob liderança da inteligência artificial e com
a predominância da ideia de transformação lógica de símbolos. Tal unificação, todavia, não
deve ser entendida como a constituição de uma unidade acabada, seja de objeto, seja de
programa de pesquisa. Trata-se, antes, de um contínuo processo de unificação que não chega a
constituir uma ciência dotada de fronteiras claras ou voltada para um objeto de estudos – no
caso, a cognição humana – conclusivamente demarcado. Por outro lado, este processo de
unificação deve ser avaliado através do grau de sua penetração e disseminação na sociedade.
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1879) e Walter Cannon (CANNON, 1932), defende que os seres vivos mantêm seus
processos vitais de acordo com parâmetros de sobrevivência. Isto, segundo António
Damásio (DAMÁSIO, 2011 [2009]), inclui o próprio raciocínio e a consciência
humanos, como processos essencialmente orgânicos e vinculados à sobrevivência
individual e da espécie.
2) Descobertas científicas têm reforçado a noção de percepção corpórea, que concebe as
imagens que dão significado à cognição não como representações do mundo na forma
de ideias simbólicas abstratas – como defende o modelo lógico-proposicional – e sim
como processos complexos nos quais os sentidos não são isolados entre si e nem da
ação sensório-motora. Um caso característico é o do experimento de Paul Bach y Rita
(BACH Y RITA et al, 1969), de “substituição tátil da visão”, no qual imagens de uma
câmara de vídeo geraram estímulos na pele de cegos, e os padrões produzidos somente
foram identificados como “visuais” pelos indivíduos a partir de movimentos
realizados por eles, direcionando a câmara com a cabeça, as mãos e o corpo. Assim, os
significados nasceriam da percepção, por parte do sujeito, daquilo que ocorre no seu
corpo, de modo global e interativo, e não de inputs proporcionados por informações já
de antemão presentes e prontas no mundo. Dito alternativamente, as informações a
serem conhecidas seriam produzidas também com intervenção das características do
organismo como um todo, e graças à qualidade da experiência corpórea;
3) Outra importante hipótese empírica na cognição corpórea é a do marcador somático,
apresentada por António Damásio (DAMÁSIO, 2004 [1994]; 1996). Segundo ele e
sua equipe os marcadores-somáticos decorrem de sentimentos gerados a partir de
emoções. Essas emoções e sentimentos são continuamente vinculados, pela
aprendizagem, à previsão de resultados futuros de decisões, com base na marca afetiva
que experiências passadas deixaram em nossos corpos. Assim, ao invés de as decisões
humanas serem produzidas pela avaliação computacional de opções de ação,
supostamente disponibilizadas em nossa memória como se fossem informações
abstratas formalizadas simbolicamente, elas decorrem de marcas emocionais, cenários
corpóreos já vividos e redisponibilizados organicamente, que são comparados, no
momento de decidir, com os cenários novos com que os organismos se depara.
4) O também neurocientista Gerald Edelman advertiu, com base em suas pesquisas, sobre
dois pontos, que alertam para graves limitações do modelo lógico-proposicional: o
desenvolvimento do cérebro na história do indivíduo é acompanhado de grande
variabilidade, o que dificulta sua comparação com o hardware de um computador; e
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os sinais que o mundo oferece à cognição não são inequívocos como devem ser os
sinais de entrada de um computador, cujos softwares exigem definições exatas
(GRECO, 2001, p. 75). Isto é, a variabilidade do cérebro e a imprecisão dos
significados seriam características inevitáveis da cognição humana, o que reduz
seriamente as aplicações do modelo computacional da cognição.
Quanto ao método de investigação empregado neste trabalho, é preciso destacar duas
características.
A primeira diz respeito ao fato de compreender as orientações cognitivista e corpórea
como partes de um contexto e, além disso, inseparáveis uma da outra. Isto significa que não se
ambiciona aqui definir uma imagem das ciências cognitivas clássicas, ou do modelo lógico-
proposicional, isolada do contexto de suas diferenças para com a orientação corpórea,
desprezando o fato de que vêm sendo alvo de críticas. O presente intuito, em vez disso, é
identificar que características das ciências cognitivas tradicionais, em conjunto, constituem o
foco principal das objeções a elas apresentadas pela orientação corpórea, de tal modo que se
possa compreender o que justifica estas objeções serem extensivas a cada uma das disciplinas
que integram aquele conjunto. Dito de maneira alternativa: assim como a orientação corpórea,
em grande parte, deve ser compreendida como uma reação ao cognitivismo presente em
diversas disciplinas, este será aqui definido prioritariamente em função desta reação. No
mesmo sentido, o que se chama aqui de modelo lógico-proposicional não deve ser
compreendido como uma suposta formulação pura do cognitivismo, mas como uma imagem
que emerge da crítica que é feita a este último pela cognição corpórea.
A segunda característica concerne às partes internas da orientação corpórea, às quais
se atribui complementaridade mútua. Quanto a este ponto, o propósito da tese é demonstrar
que a unidade da orientação corpórea é constituída pela articulação de três principais
abordagens identificáveis, que recebem contribuições de diversas disciplinas, e que são
consideravelmente profundas e radicais na valorização e reconceituação do corpo na
cognição, sendo por este motivo mais cabalmente adversárias do cognitivismo:
• Corpóreo-enativista: voltada especialmente à inseparabilidade de percepção e
ação, sujeito e objeto, vida e cognição, através da ideia de enação – com ênfase em
processos evolutivos;
• Corpóreo-conceitual: que se dedica predominantemente ao caráter corpóreo-
experiencial da formação dos conceitos – com ênfase em processos linguísticos;
9
fazem alegando que esta imagem decorre de achados empíricos do que chamam de “segunda
geração das ciências cognitivas” 2.
Porém, esta dimensão política da cognição corpórea somente se caracteriza mais
nitidamente quando se evidencia sua atitude de utilizar a ciência como instrumento de
transformação social. Tal fato se dá na medida em que alguns dos principais pesquisadores de
orientação corpórea pretendem, por intermédio de suas afirmações de natureza empírica,
mudar crenças, conceitos, modos de pensar – e, por conseguinte, comportamentos – sociais.
Mais: isto é frequentemente acompanhado, na orientação corpórea, da manifesta intenção de
que uma nova concepção científica – ou um paradigma – deva ser utilizada para promover
novos modos de se viver coletivamente. Tomemos três exemplos, escolhidos dentre
afirmações das principais lideranças da cognição corpórea, de tal posicionamento político
alegadamente ancorado em achados empíricos e voltado contra o que é então chamado de
cartesianismo:
1) A atitude de Francisco Varela, expressa no artigo The early days of autopoiesis: Heinz
and Chile3, de 1996, de defender o que chama de guinada ontológica como sendo uma
Eram tempos de pesquisa e discussão com foco no que parecia uma insatisfação,
uma anomalia. A insatisfação básica era a noção de informação como a chave para a
compreensão do cérebro e cognição; a ideia não parecia desempenhar um papel
explícito no processo biológico (Ibid., p. 410).
4
As referências de Lakoff e Johnson ao anti-objetivismo lógico de Putnam serão aprofundadas adiante –
especialmente nas seções 2.2 e 2.4.
12
Mas é desde o início de seu principal livro em parceria Philosophy in the flesh (do qual
foi também retirado o trecho acima) que estes autores se posicionam de maneira
claramente política com base na ciência, isto é, buscando defender uma mudança geral
de modo de pensar e da cultura que reputam dominantes, a partir do que consideram
serem resultados empíricos da cognição corpórea:
O que seria o efeito do abismo cartesiano entre corpo e mente sobre a medicina exige,
segundo o autor, solução para os novos problemas que impõe. Em sua opinião,
Na seção 2.1 será explorada a questão do holismo – isto é, o ponto de vista que
valoriza o todo, em vez das partes, para explicar os organismos vivos – e sua
importância para a cognição corpórea. Mas desde já se percebe que a crítica de
Damásio à prática médica – o que inclui tanto a concepção dos médicos sobre os seres
humanos, quanto a destes sobre si mesmos – é inseparável da sua recusa à imagem do
ser humano como mera soma de partes, e ao cartesianismo, e que esta postura, por sua
vez, se vincula a uma posição de questionamento à imagem tradicional, racionalista e
mecanicista5, da cognição.
Mas sua atitude se reforça em seu sentido político quando ele afirma, sobre o
seu livro que está em exame:
5
O sentido de “mecanicista” aqui empregado não se limita àquele tradicionalmente associado à obra de
Descartes, mas, como ficará mais claro adiante, corresponde propriamente à imagem de sistemas físicos ou
cognitivos como sequências determinísticas mais simples e previsíveis.
14
A voz do cientista pode ser mais do que o mero registro da vida tal como ela é; o
conhecimento científico pode constituir um pilar que ajude os seres humanos a
resistir e a vingar. Escrevi este livro convicto de que o conhecimento em geral e o
conhecimento neurobiológico em particular têm uma função importante a
desempenhar no destino humano (Ibid., p. 285).
corpórea é viável – já que se sustenta nestes argumentos. Porém, como não haverá espaço
para uma análise muito detalhada de cada argumento, eles serão discutidos, na maior parte das
vezes, quanto ao sentido mais essencial de suas formulações. Ainda que não se chegue a uma
resposta conclusiva, tal investigação se impõe e justifica dadas a importância e a ambição do
projeto da orientação corpórea das ciências cognitivas.
As objeções que a cognição corpórea faz às consequências da imagem mecanicista da
cognição também permitem considerações sobre o modo como esta imagem afeta a sociedade,
e como estas – a imagem e a própria sociedade – poderiam ser transformadas graças a tais
objeções. Pelo que se poderá constatar, embora alguns autores da cognição corpórea ressaltem
a importância da intersubjetividade para a cognição, esta dependeria basicamente, segundo a
corrente que aqui se examina, das características individuais dos seres humanos. Assim, os
efeitos sociais da aplicação da imagem tradicional da cognição devem ser presumidos como
dependendo de como afetam os indivíduos. Conforme se pode extrair dos argumentos de
Varela, Lakoff, Johnson e Damásio acima descritos, é bastante sugestivo que alguns
problemas, decorrentes das influências que concepções da cognição análogas à do
cognitivismo, estejam afetando a sociedade, por exemplo, através do ensino e das terapias,
médicas ou psíquicas. Isto é, cabe a conjectura de que os pressupostos da cognição como
processo lógico, simbólico, abstrato e quantificável tenham chegado à educação e aos
métodos terapêuticos, e que isto esteja se fazendo acompanhar de um determinado conceito de
ser humano e de pensamento, que estaria sendo reforçado nos estudantes e nos pacientes --
mas, antes, nos professores e nos médicos, psicólogos e outros profissionais da educação e da
saúde. Deste modo, as limitações do modelo lógico-proposicional apontadas pela cognição
corpórea teriam alcançado a sociedade por meio da aplicação e disseminação de seus
princípios formais e funcionais em práticas que envolvem a constituição das crenças e hábitos
cognitivos individuais.
Admitir que o modelo lógico-proposicional tenha traços muito semelhantes às
concepções de pensamento e aprendizagem aplicados no ensino e nas terapias atuais requer o
reconhecimento de que a imagem simbólica e computacional da cognição seja capaz de
explicar esta última em muitos aspectos, além de conseguir prever eficazmente o
comportamento humano quando submetido a certas condições, ou desprezadas algumas
variáveis -- especialmente aquelas que dizem respeito às diferenças individuais. Sendo assim,
a previsão do comportamento se confundiria com a prescrição deste: por se basear em uma
imagem abstrata e padronizada das condutas racionais, a previsibilidade comportamental se
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concepção, adotada na tese, sobre o papel dos modelos na atividade científica, uma vez que a
clareza quanto ao sentido de modelo empregado será determinante para a argumentação
desenvolvida. Tal explicitação se justifica por três motivos principais. O primeiro deles é a
necessidade de se deixar clara que acepção da palavra “modelo” se está usando nesta tese,
dada a polissemia do termo nos textos filosóficos e científicos do último século, ao menos. O
segundo motivo diz respeito à importância central que parte substancial dos historiadores das
ciências cognitivas, das ciências da computação e da psicologia atribui ao fato de ter sido
utilizado um determinado modelo dominante, descritivo e explicativo do processo cognitivo,
na nova concepção da cognição humana produzida em meados do século 20. E o terceiro
motivo é que uma das principais hipóteses a ser defendida nesta tese é de que foi exatamente a
criação de tal modelo que permitiu a constituição das ciências cognitivas, ao proporcionar que
se aglutinassem diversas disciplinas em torno de uma imagem unificada da cognição. Em
suma, somente uma determinada acepção de modelo científico atende aos propósitos dos
segundo e terceiro motivos, o que exige sua explicitação. Em seguida, será apresentada uma
breve história dos antecedentes das ciências cognitivas, na qual se pretende demonstrar que:
a) as ciências cognitivas nasceram como efeito imediato de um debate em que, de um
lado, estava a psicologia behaviorista – desinteressada dos processos internos da
cognição – e, de outro, uma proposta de aplicação aos processos cerebrais de uma
concepção lógico-computacional, com ambições preditivas e prescritivas mais fortes;
b) mais remotamente, pesquisas em computação artificial, como as de Charles
Babbage, e discussões sobre os fundamentos lógicos das linguagens simbólicas, como
as provocadas pelas obras de George Boole, Gotlobb Frege, Bertrand Russell, Alfred
Whitehead e Rudolf Carnap, criaram condições para que surgisse um novo conjunto
de ciências, com propósito de atuação interdisciplinar, e capaz de compatibilizar o
projeto behaviorista, de compreender o comportamento humano, com o de um estudo
interno da cognição, ao pretender identificar e descrever os processos cerebrais que
produzem comportamentos;
c) tiveram importância fundamental na constituição teórica das ciências cognitivas: os
trabalhos de Alan Turing chamado de “máquina de Turing”, e de Claude Shannon criando a
noção de binary digit, ou bit; a aplicação das ideias oriundas desses trabalhos ao cérebro, feita
por Warren McCulloch e Walter Pitts; a analogia entre o comportamento humano e o de
máquinas, proposta pelos autores pioneiros da cibernética Arturo Rosenblueth, Norbert
Wiener e Julian Bigelow; e a separação entre o nível lógico e o físico na computação
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complexidade merecerão atenção especial na seção, uma vez que são cruciais para o
estabelecimento do naturalismo antirreducionista que é traço fundamental da cognição
corpórea. Será abordada a aplicação dos sistemas dinâmicos não lineares ao cérebro, de algum
modo vinculada ao conexionismo e ao processamento distribuído e paralelo (PDP). Na mesma
seção será abordada a importância, para a formação da orientação corpórea, dos trabalhos de
Eleanor Rosch sobre categorização. Guardando semelhanças com a concepção de
categorização de Rosch, os trabalhos de Leonard Talmy e Ronald Langacker na identificação
de esquemas sensório-motores comuns em diferentes culturas e idiomas serão destacados.
Será feita referência às matrizes filosóficas que contribuíram para as críticas ontológicas ao
cognitivismo, como a fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty. A segunda seção do
capítulo, 2.2, com o título de “A orientação corpórea como conjunto integrado de
abordagens da cognição”, será dedicada a apresentar, em linhas gerais, uma das hipóteses
centrais de trabalho da tese: a de que a orientação corpórea deve ser compreendida como
unificável, e mais capaz de perpetrar sua crítica ao cognitivismo, ao ser caracterizada pela
articulação de três abordagens ou frentes de pesquisas preponderantes: a) Corpóreo-enativa;
b) Corpóreo-conceitual; e c) Corpóreo-afetiva. Estas três abordagens caracterizam-se
individualmente, sobretudo, pelos diferentes pontos de partida investigativos, e pelas maneiras
próprias como criticam a orientação cognitivista. Suas afinidades residem em quatro aspectos
essenciais: a) no fato – aparentemente mais óbvio – de criticarem o cognitivismo6; b) no fato
de proporem uma nova imagem da cognição humana; c) no fato de investigarem
profundamente o papel do corpo e da experiência tanto nas críticas quanto nas propostas que
apresentam; e d) na complementaridade que oferecem para a efetivação da crítica e para a
constituição da nova imagem acima consideradas. O primeiro passo da seção será explicar o
porquê da delimitação e eleição de três determinadas abordagens como sendo as principais da
orientação corpórea, o que levará em conta, principalmente, o caráter mais profundo e
completo das críticas que dirigem ao cognitivismo, assim como seus esforços em apresentar
um modo alternativo de compreender o papel do corpo no fornecimento de significado para as
ações dos seres humanos. Por fim, será empreendida uma análise da crítica da cognição
corpórea à representação mental e ao realismo objetivista.
6
Na verdade, não é tão óbvio que as três abordagens compartilhem a crítica ao cognitivismo. Ao menos não no
caso da abordagem corpóreo-afetiva. Esta, além de ser a mais recente das três, tem se mostrado menos explícita
na crítica às teses cognitivistas, o que, embora aparentemente tenha ocasionado o fato de ser pouco mencionada
como fazendo parte do campo da cognição corpórea, a meu ver não reduz a força de sua contribuição, quer
crítica ou propositiva, tendo em vista esta abordagem vir demonstrando quão essencial, para o conjunto das teses
corpóreas, é a consideração do papel das emoções e dos sentimentos na cognição humana.
21
As seções seguintes (2.3 a 2.5) farão exames das três abordagens da cognição corpórea
aqui consideradas, levantando os principais aspectos de suas contribuições particulares à
corrente que constituem – concluindo o capítulo 2.
No capítulo 3 serão discutidas as articulações entres as três frentes de pesquisa,
defendendo-se, com isso, a hipótese de que a cognição corpórea se unifica, também, graças à
complementaridade entre elas – no que se evidenciam as três dimensões da orientação
corpóreo-experiencial: ontológica, vital e temporal.
22
7
Para alguns, as abordagens que propuseram as redes neurais e o conexionismo podem ser consideradas uma
orientação à parte das ciências cognitivas. No livro The embodied mind, de Francisco Varela, Evan Thompson e
Eleanor Rosch, (VARELA et al, 1991), por exemplo, o conexionismo é tratado como uma corrente das ciências
cognitivas independente das acima citadas. Porém, neste trabalho o conexionismo e a abordagem das redes
neurais não serão tratadas como uma corrente à parte por três motivos principais: a) Não possuem alcance tão
difundido nas diversas disciplinas das ciências cognitivas, sendo uma abordagem voltada sobretudo para a
neurociência e, em menor escala, para a inteligência artificial; b) São vertentes de estudos que se concentram na
investigação do funcionamento do cérebro, dando menor atenção a funções cognitivas que dependem de outros
órgãos, como os dos sentidos e os utilizados na ação – em suma, não seriam abordagens abrangentes da cognição
como um todo; b) São em muitos aspectos compatíveis com as orientações cognitivista e corpórea, o que se
corrobora com o fato de serem modos de conceber o funcionamento cerebral adotado por cientistas de ambas as
orientação entendidas neste trabalho como principais e antagônicas – o que enfraquece também sua condição de
antagonista de qualquer uma das duas.
24
advoga um outro meio para esta unificação, como já referido na Introdução –, como que uma
das suas principais características é exatamente dispor de uma pluralidade de modelos
complementares da cognição, que envolvem concepções biológicas, fisiológicas, linguísticas,
matemáticas, etológicas e fenomenológicas desenvolvidas para compreendê-la.
Neste capítulo, entretanto, o objetivo principal será apresentar e defender a hipótese de
que as ciências cognitivas nasceram, em sua versão cognitivista, mediante a construção e o
compartilhamento de um modelo geral para a cognição. Isto porque a finalidade da parte
inicial deste trabalho é apresentar o quadro que foi alvo das críticas que ensejaram o
nascimento da cognição corpórea. Este quadro possuía, segundo a suposição aqui adotada,
três características principais:
1) As ciências cognitivas se distinguiram desde o início por seu caráter multidisciplinar;
2) Tal multidisciplinaridade se fez possível graças ao desenvolvimento de uma imagem
da cognição que pudesse ser compartilhada por todas as disciplinas envolvidas;
3) Essa imagem da cognição teve origem na inteligência artificial, disciplina que, assim,
liderou as demais na constituição da corrente inicial das ciências cognitivas.
Todas estas características são importantes para a constituição da cognição corpórea.
A primeira, porque essa nova corrente assume e mantém o feitio multidisciplinar das ciências
cognitivas. A segunda, porque a imagem da cognição que a orientação corpórea adota não se
baseia mais em um modelo fundamental. E a terceira, porque o principal foco da crítica
proferida pelos autores da cognição corpórea é justamente o modelo da cognição de origem
computacional. Deste modo, é preciso esclarecer como a crítica da orientação corpórea se
dirige à imagem da cognição oriunda da inteligência artificial, como ela dispensa um modelo
geral para a cognição e como, mesmo assim, pretende manter as ciências cognitivas como um
campo multidisciplinar unificado.
Para que a cognição corpórea seja mais bem compreendida em relação à sua formação
crítica, é necessário que se trace aqui um panorama do desenvolvimento histórico do quadro
clássico das ciências cognitivas. Isto se deve a duas razões. Primeiramente, porque, como já
foi dito, a primeira configuração das ciências cognitivas coincide com o cognitivismo, que
assume o modelo lógico-proposicional. E, sendo assim, compreender o nascimento das
ciências cognitivas exige compreender também como e por que elas se constituíram nesta
feição cognitivista, que provocou as objeções que deram origem à cognição corpórea, o que é
importante para compreender estas objeções. Em segundo lugar, porque é preciso explicitar a
maneira como as diversas disciplinas que constituíram as ciências cognitivas compartilharam,
de início, compromissos investigativos e teóricos, para que se entenda o novo modo que a
25
cognição corpórea propõe para este campo investigativo se unificar e se relacionar com a
sociedade.
Nas próximas seções, será discutida a gênese concomitante das ciências cognitivas, do
cognitivismo e do modelo lógico-proposicional. Porém, como introdução, serão feitas breves
considerações sobre a noção de modelo científico empregada no presente trabalho, tal como
referida à imagem cognitivista da cognição.
adiante. E isto significa, igualmente, que, na cognição corpórea, os modelos não exercem
mais o papel de unificação disciplinar.
Contudo, embora não se empregue neste trabalho uma definição rígida de modelo,
alguns marcos teóricos e pressupostos sobre a criação científica são aqui utilizados, e sua
explicitação é necessária para que se compreenda adequadamente a hipótese de que o modelo
lógico-proposicional teve papel unificador nas ciências cognitivas. Afinal, por que se fala aqui
em modelo? E o que permite afirmar que um modelo científico possa ter sido compartilhado
por diversos cientistas, originários de diferentes disciplinas? Antes de mencionar os
pressupostos teóricos da noção de modelo aqui utilizada, porém, deve-se salientar que discuti-
los já envolve algumas concepções sobre a cognição. Isto revela um certo sentido circular
destas considerações: aquele que se depreende do fato de que as ciências cognitivas são, elas
mesmas, atividades cognitivas. Sendo assim, não é plausível que se investiguem as ciências
cognitivas sem a adoção de algum pressuposto, implícito ou explícito, sobre a natureza da
cognição. Entretanto, seria também inviável uma explanação extensa sobre que pressupostos
sobre a cognição orientam a concepção de ciência que aqui se emprega. A ser longa tal
explanação, poderia se chegar à situação despropositada de se ter uma tese – ou quase –
dentro da outra, só para explicar uma parte desta última. Para evitar este contrassenso, mas
não deixar de registrar alguns aspectos cognitivos relevantes das próprias ciências cognitivas,
seguem breves observações sobre o sentido de modelo, na presente investigação, quando
aplicado à cognição humana.
Para iniciarmos a abordagem da noção de modelo, consideremos a definição que se
segue:
A palavra "modelo" tem raízes no latim "modulus"; seu significado original era
cópia, padrão e parâmetro. Agora sua conotação tem sido mais aberta e tem
comumente dois tipos de uso. Em primeiro lugar, modelo significa duplicação ou
cópia de um determinado objeto. Este é o tipo de modelo que é obtido através de
eliminação ou idealização, de acordo com algumas características de propriedades,
configurações e funções típicas. Alguns modelos são utilizados como um análogo ao
original, como o modelo de navio, de construção etc. A noção também é aplicada,
em estudos experimentais como um substituto para o original, como o modelo de
avião no laboratório de túnel de vento, e o de leito do rio no laboratório líquido.
Além disso, objetos manufaturados, que são criados para simular as propriedades,
configurações, funções ou leis biológicas são às vezes chamados de modelos, como
o localizador sonar, concebido em conformidade com a audição do morcego de
frequências ultrassônicas e o robô, que simula ações parciais, habilidades ou
inteligência dos seres humanos.
Em segundo lugar, também pode significar um modelo analógico mental de
propriedades, configurações, funções ou leis do referente: este é o modelo mental
que estamos discutindo. Estes modelos são criados através da utilização de
mecanismos de percepção na cognição. Além disso, o modelo mental reflete apenas
algumas características do original: os relacionados com determinados objetivos
cognitivos. Outros são eliminados. (YU, 2002, p. 275).
27
Até aqui devemos destacar dois aspectos do verbete, que se relacionam mais intimamente
com os propósitos desta tese: o primeiro é o fato de que o uso do modelo responde a uma
necessidade – seja fabril, didática ou de representação científica –; o segundo é que
8
Todas as traduções de citações em línguas que não o português foram realizadas por mim.
28
Boltzmann não atribui ao modelo coincidência total com o que busca representar, admitindo
que haja apenas similaridade incompleta entre ambos, de tal modo que o modelo possa ser
pensado em parte como um símbolo (isto é, em parte um como signo arbitrário) do que
representa. Sendo assim, o modelo surge como algo que, mesmo sem reproduzir exatamente
aquilo a que se refere, serve a propósitos para os quais parece ser imprescindível.
Mais à frente, Boltzmann situa historicamente a questão do modelo, trazendo à tona os
problemas próprios da ciência de seu tempo, fazendo referência particularmente ao
esgotamento do modelo mecanicista newtoniano na compreensão de fenômenos como o calor
e as forças eletromagnéticas. Em relação a este ponto (Ibid., p. 3 e 4), Boltzmann chama a
atenção para a necessidade da adoção de hipóteses “um tanto artificiais e improváveis”, com
as quais James Clerk Maxwell enfrentou a dificuldade de explicar fenômenos para os quais os
modelos mecânicos não eram mais adequados, tendo que, assim, se contentar em manter
apenas certa similitude entre os modelos e os fenômenos. Isto, por sua vez, revela, para
Boltzmann, que “quando a questão deixa de ser a verificação da estrutura interna real da
matéria, muitas analogias mecânicas ou ilustrações dinâmicas tornam-se disponíveis, com
diferentes vantagens” (Ibid., p. 4). Ele parece até mesmo acreditar que o realismo dos
modelos seja uma crença historicamente ultrapassada ao dizer que
Embora antigamente se acreditasse que era tolerável assumir com um grande indício
de probabilidade a existência real de tais mecanismos na natureza, atualmente os
filósofos postulam que não há nada além de uma semelhança parcial entre o
fenômeno visível em tais mecanismos e aqueles que aparecem na natureza. Aqui de
novo fica perfeitamente claro que esses modelos de madeira, metal e papelão são
realmente uma continuação e integração de nosso processo de pensamento. De
acordo com a perspectiva em questão, a teoria física é meramente uma construção
mental de modelos mecânicos, cujo funcionamento nós mesmos planejamos por
meio da analogia com mecanismos que seguramos em nossas mãos, e que, por
terem tanto em comum com os fenômenos naturais, podem nos ajudar a
compreendê-los (Ibid., p. 8 – grifo meu).
Mas não é apenas no verbete referido que Boltzmann faz afirmações sobre o sentido
das representações na teoria que nos interessam para os propósitos deste trabalho. Em um
discurso feito na Universidade de Graz, em 1890, ele afirmou:
Este fragmento demonstra que, para Boltzmann, além de as teorias científicas serem
construídas a partir de imagens, ou representações, que servem de guia para pensamentos e
ações, o mesmo ocorre na cognição em geral, naquilo que Boltzmann chamou de “pequena
escala” de qualquer representação. Essa ideia também já se encontra no verbete “Modelo”:
“Nessa perspectiva, os pensamentos representam coisas na mesma relação que os modelos
representam objetos”.
Tendo como base, portanto, estas três últimas citações, os aspectos mais relevantes da
concepção de Boltzmann sobre os modelos podem ser sintetizados da seguinte forma:
1) Os modelos científicos, embora necessários, podem guardar apenas
semelhança com seus objetos;
2) Em grande medida, os modelos são construções dos cientistas a partir de
analogias com outros fenômenos;
3) A verificação da realidade, isto é, da “estrutura interna real da matéria”, não
pode ser o objetivo da ciência;
4) Resta à ciência compreender os fenômenos mediante representações
construídas a partir de analogias e metáforas gerando, assim, uma imagem da
natureza;
5) O conhecimento científico não é de natureza diferente do conhecimento
humano em geral: modelos do mundo são utilizados no conhecimento comum
e no conhecimento científico.
Esta concepção cognitiva da ciência possui dois aspectos complementares que devem
ser destacados, com vistas ao modelo lógico-proposicional da cognição. O primeiro é, como
já foi mencionado antes, o caráter de analogia e similitude do modelo, isto é, o fato de ele ser
ao mesmo tempo uma construção com base em analogias com os objetos, e – por este motivo
mesmo – também não coincidir completamente com estes. Assim, a analogia e a similitude
não seriam características apenas dos modelos concretos, mas também dos abstratos, sendo
que estes não exibem os traços analógicos de modo evidente, dado que a analogia pode ser
mais complexa – como no caso de Maxwell, destacado por Boltzmann.
O segundo é a suposição ontológica de que os modelos não são representações fiéis da
natureza, porque estas não são possíveis. Os modelos portanto seriam imagens da natureza,
produzidas pelo ser humano, para servir à compreensão daquela. Sendo assim, não caberia
uma separação entre a cognição em geral e a cognição científica. Ao compartilharem a mesma
natureza, ambas se baseariam em analogias e metáforas e, além disso, seriam incapazes de
atingir uma suposta estrutura interna da realidade.
30
É bastante ampla a discussão sobre os modelos na filosofia da ciência nos últimos cem
anos. Como já foi advertido, não se busca aqui uma definição prévia de modelo tanto quanto
uma compreensão do modelo tal como ocorreu, de maneira bastante particular, nas ciências
cognitivas. Mas, para isso, é necessário estabelecer ao menos que concepções de modelo são
mais adequadas para o emprego que aqui estudamos. Antes de falarmos mais diretamente no
uso de modelos nas ciências cognitivas, cabem ainda mais algumas considerações sobre
abordagens filosóficas pertinentes, que se encontram em alguns trabalhos de repercussão, e
que devemos registrar com o intuito de tornar mais nítidos os contornos do conceito de
modelo para os fins deste trabalho.
Uma questão importante a ser considerada é aquela que envolve a distinção entre os
modelos formalizados – matemáticos – e os modelos adotados por similitude, tais como os
destacados por Boltzmann. Alguns autores têm abordado essa diferença, e examiná-la é
importante para a presente investigação. Mary Hesse, por exemplo, discorreu sobre este
ponto, com relação à física. Embora nesta tese não se trate de fenômenos físicos, para as suas
finalidades é ilustrativo utilizar a análise de Hesse, uma vez que o modelo lógico-
proposicional da cognição seria, segundo a hipótese aqui adotada, antes de tudo uma imagem
da cognição – embora corresponda a uma formalização simbólica. Isto é, a imagem que o
constitui seria justamente a de uma formalização. Vejamos como o que Hesse diz a respeito
dos modelos na física pode ser útil para este trabalho. Ela afirma que os modelos fazem parte
do método hipotético-dedutivo. Neste, as hipóteses são produtos da “imaginação criativa”,
mas também decorrentes da observação de padrões encontrados nos experimentos (HESSE,
1953, p. 198). Os modelos seriam representações das hipóteses, e ferramentas para testá-las
com utilização dos dados experimentais. Deste modo, ela entende que modelos matemáticos
podem expressar essas hipóteses, mas não são imagináveis – como os modelos mecânicos,
entre os quais ela considera o uso de bolas de bilhar para representar moléculas de gases. Dito
de outra forma, as construções matemáticas, embora possam expressar analogia entre as
grandezas verificadas nos fenômenos – e mesmo permitir, assim, analogias entre fenômenos
diversos que possuam estruturas internas similares –, não têm a característica de se
assemelharem aos fenômenos, por não serem, a princípio, imagináveis (Ibid., p. 200). Alain
Badiou também faz esta distinção, sem deixar de reconhecer – citando Lévi-Strauss – que os
modelos têm como característica permitir sua manipulação, em vez da manipulação do real,
mas com os mesmos efeitos para o conhecimento. Eles teriam aplicações preditivas, de tal
modo que se pode saber como o conjunto do modelo reage ao se alterar um de seus elementos
(BADIOU, 1972, p.15), o que seria aplicável ao objeto representado. Porém, Badiou adota
31
uma classificação um pouco diversa daquela de Hesse – embora devamos reconhecer que tem
essencialmente o mesmo efeito. Ele afirma que os modelos podem ser “abstratos” ou
“montagens materiais” (Ibid.), sendo os primeiros basicamente “escriturais” ou matemáticos,
e os segundos visuais. Ele chega a lembrar que gráficos podem ser construídos a partir de
dados quantitativos para gerar imagens analógicas dos fenômenos que as quantificações
expressam – como no caso das estatísticas ilustradas por figuras.
A menção a esta distinção tem por objetivo ressaltar que o modelo lógico-
proposicional da cognição, embora tenha uma estrutura expressa simbolicamente – e, assim,
possa ser considerado “abstrato” –, esta mesma estrutura é adotada de maneira propriamente
analógica para representar a cognição humana. Não teria, portanto, a opacidade própria dos
modelos matemáticos, incluindo aqueles utilizados para descrever, por exemplo, o
funcionamento de neurônios, circuitos eletrônicos, redes neurais e outros objetos de estudo
particulares das ciências cognitivas. Isto quer dizer que, embora as diversas disciplinas das
ciências cognitivas tradicionais tenham empregado uma série de modelos matemáticos para
investigar aspectos da cognição, a imagem mais geral desta última seria essencialmente
formada por analogia – como se buscará justificar adiante. Em outras palavras, o modelo
lógico-proposicional seria, embora num certo sentido abstrato, um esquema imaginável –
“mecânico”, para citar Hesse, ou uma “montagem”, para utilizar o termo empregado por
Badiou – destinado a representar o processo cognitivo com um todo. Tal questão ficará mais
clara a seguir, e nas seções subsequentes em que a estrutura deste modelo for analisada –
sobretudo quando levarmos em consideração a máquina de Turing como um conceito
matemático, mas ao mesmo tempo imagético e mecânico.
Porém, antes de tomarmos como foco principal o modelo lógico-proposicional, há
ainda duas características dos modelos que devem ser assinaladas, além do papel heurístico já
referido – porque são fundamentais no caso das ciências cognitivas clássicas. Ambas
decorrem da abordagem de Thomas Kuhn (KUHN, 1978 [1962]), do modo como destacado
por Daniela Bailer-Jones (BAILER-JONES, 1999, p. 37). Trata-se das funções pedagógica e
de compartilhamento das ideias científicas que os modelos desempenham. Kuhn desenvolveu
no livro mencionado uma explicação da dinâmica científica em que confere papel
fundamental para os manuais utilizados na educação de cientistas, no sentido em que
contribuem para estabelecer um padrão paradigmático de solução de problemas e, assim, fixar
o que ele chama de “ciência normal”, própria de uma comunidade científica e de uma
conjuntura histórica. Em linhas muito gerais, podemos caracterizar a abordagem kuhniana
como tendo significado uma ruptura com a interpretação tradicional do desenvolvimento
32
relativos à própria ciência que fazem. Esta questão, no entanto, não deve gerar maiores
dificuldades de análise, desde que deixemos claros os limites em que cabe estendê-la na
presente investigação – o que será visto a seguir.
Para tal, tomemos agora as considerações de Jean-Pierre Dupuy a respeito de modelo–
em um contexto em que ele tem como tema o modelo da cognição desenvolvido pela
ortodoxia das ciências cognitivas. Isto porque Dupuy não apenas adota a suposição de que o
cognitivismo criou um modelo para explicar a cognição, como se dedica a valiosas
considerações sobre o conceito mesmo de modelo, e o sentido de sua utilização pelas ciências
cognitivas. Invocando Vico, e sua citação “Vero et factum convertutum”, Dupuy afirma que
“só podemos conhecer racionalmente aquilo de que somos causa, o que fabricamos”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 21). Com isto ele quer dizer que o modelo é uma imitação, uma
reprodução, uma fabricação, com vistas ao conhecimento – no que converge com Boltzmann,
Hesse e Badiou. Defende ele, citando Jean Ullmo, que o modelo seria uma
Embora Dupuy se refira aos modelos como formalizações matematizadas, este aspecto
seria relevante sobretudo na medida em que eles serviriam como instrumentos de controle
explicativo e preditivo – como já foi visto nas referências a Hesse e Badiou. Mas é muito
importante notar que ele caracteriza o modelo na passagem acima como sistema de relações
de certo modo independente da natureza de seus elementos, no qual estes são intercambiáveis
sem que se perca a essência da estrutura de relações. Neste sentido, seu caráter formal
corresponderia mais ao fato de ser uma estrutura relacional, do que a ser expresso em
linguagem matemática9. Uma outra razão ajuda a reforçar este entendimento. Trata-se da
utilização de analogias na construção dos modelos (Ibid., p. 24). O modelo seria uma estrutura
à qual se atribui uma forma análoga à do objeto estudado – o que também acabamos de
encontrar nas considerações de Yu, Boltzmann e Hesse. Outro modo de compreender a
estrutura do modelo é dizer que ele
9
Esta, digamos, essência estrutural que Dupuy atribui aos modelos em geral seria, contudo, considerada pelo
cognitivismo uma característica do próprio objeto (no caso, a cognição), segundo a crítica da cognição corpórea
ao modelo lógico-proposicional – o que será examinado mais à frente, especialmente na seção 2.2.
34
Neste sentido, o modelo seria uma estrutura abstraída dos fenômenos através de um
procedimento de analogia formal, relacional. Dito isso alternativamente, o que Dupuy está
afirmando – da mesma forma como os autores aqui citados anteriormente – é que o modelo
seria um instrumento capaz de substituir o objeto em si, uma vez que os cientistas que dele se
utilizam acreditam que ele reúne as características essenciais do objeto e, portanto, é
suficiente para as finalidades da investigação científica. Mas nas palavras de Dupuy, “o
modelo é tão mais puro, tão melhor controlável do que o mundo dos fenômenos: existe o risco
de que ele se torne objeto exclusivo da atenção dos cientistas” (Ibid., p. 25).
Mais à frente será discutido em que medida, no caso do cognitivismo, o modelo
lógico-proposicional teria substituído a própria cognição. Por ora, façamos algumas outras
considerações sobre a noção de modelo tal como aplicada à cognição, a partir de Dupuy.
Devemos reforçar a ideia de que quando se fala em modelo da cognição está se
considerando uma imagem da cognição como um processo integral. O modelo lógico-
proposicional seria, assim, uma representação do esquema geral da cognição, de caráter
funcional e de forma semelhante à daqueles utilizados nas noções de processo digestivo,
respiratório e urinário – entre outros semelhantes – em animais, em que uma dada função é
descrita de maneira consideravelmente independente de sua realização física nos organismos
particulares, e na qual se supõe o resultado esperado do processo necessário de transformação
a partir não somente da captação inicial de determinados insumos, como do respeito à
operação de certas etapas temporais e sequenciais. Como veremos – o que se coaduna com
essa imagem produtiva dos processos orgânicos animais –, uma das principais metáforas do
modelo funcional da cognição é o processo produtivo fabril.
Neste sentido, fica mais claro que, embora a cognição possa ser estudada
cientificamente a partir de uma multiplicidade modelos, o que se afirma neste trabalho como
sendo o modelo geral da cognição possui características invariáveis e, sobretudo, está
vinculado ao caráter multidisciplinar das ciências cognitivas clássicas, que o utilizam em
conjunto. Tem como função não apenas representar a cognição, mas representá-la de modo
compartilhado por todas as disciplinas que constituem esse campo científico – daí a
necessidade de possuir certa estrutura fixa, capaz de ser reconhecida mesmo com as variações
exigidas pelas especificidades de cada disciplina. Este reconhecimento exige, por outro lado,
que os pesquisadores envolvidos estejam continuamente dispostos a reiterar o que seriam as
características invariáveis do modelo. Neste sentido, o modelo não é algo que está fixo em
algum lugar de uma vez por todas. Ao contrário, sua estabilidade e permanência dependem a
35
ação continuada de diversos cientistas, que a cada momento buscarão verificar se o modelo
com que lidam guarda a estrutura essencial com que concordam trabalhar. Sendo assim, o
modelo só é aparentemente uma forma estática. Por esta perspectiva, trata-se do resultado de
uma atividade múltipla e dinâmica que, mesmo assim, se mantém, disciplinar e
disciplinadamente, de acordo com algumas crenças e apostas formais. Este sentido dinâmico
do modelo se coaduna também com o que Bailer-Jones chamou de seu papel pedagógico. É
apenas graças à transmissão de certa invariância formal e da convicção de que tal forma é
adequada para representar o objeto de estudo – seja em aulas, seja em atividades de pesquisa,
considerando que tanto em umas quanto em outras sempre há aprendizado e controle –, que o
modelo se mantém. Trata-se portanto de uma atividade social.
Acabamos de observar que Dupuy reitera algumas das características do modelo
científico também encontradas nas teses de autores que abordamos nos parágrafos anteriores.
Mas é fundamental que sublinhemos o fato de que o faz assumindo que estas são
características que se encontram no modelo tradicional da cognição – o qual, contudo, possui
ainda outras particularidades que devem ser examinadas a fim de alcançarmos o objetivo
desta seção.
A primeira afirmação importante de Dupuy sobre o modelo clássico das ciências
cognitivas é que ele revelaria a crença de que o processo cognitivo em geral é, ele mesmo,
produto de modelização. Isto porque “conhecer é produzir um modelo do fenômeno e efetuar
sobre ele manipulações ordenadas. Todo conhecimento é reprodução, representação,
repetição, simulação” (DUPUY, 1996 [1994], p. 27). Mas é na seguinte citação que esta ideia
se desdobra em outras, cruciais para a definição do modelo lógico-proposicional:
Percebe-se que, embora não o justifique, Dupuy defende que os cientistas cognitivos
compreendem a cognição em geral como modelização. A falta de justificação não nos permite
concluir se ele atribui aos cientistas cognitivos tradicionais, por exemplo, uma concepção não
objetivista da cognição, segundo a qual a cognição não seria capaz de atingir a realidade
36
Com o que foi dito neste fragmento, chegamos à principal característica do modelo da
cognição construído pelas ciências cognitivas tradicionais: o fato de ele ter uma estrutura
lógica. Traduz-se desta afirmação de Dupuy que, embora em período anterior modelos
matemáticos tenham sido usados para estudar o sistema nervoso e circuitos eletrônicos, foi
apenas com o nascimento das ciências cognitivas que estes objetos passaram a constituir um
outro objeto, a cognição, que por sua vez mereceu um novo tipo de modelo: o modelo lógico.
Como já foi assinalado acima, trata-se de um modelo ao mesmo tempo analógico e lógico,
imagético e abstrato. Isto se explica pelo fato de que sua analogia principal é com a lógica
simbólica, que ele abstrai da cognição humana na forma de uma imagem racional desta
37
última. O que Dupuy chamou de “forma superior do pensamento” passa a ser o paradigma, a
imagem, o modelo – inclusive no sentido prescritivo – da cognição.
Pelo que foi mencionado a respeito de algumas abordagens sobre modelos, percebe-se
que eles em geral não coincidem com as teorias científicas. Porém, são importantes para elas
sobretudo na construção de seus objetos e suas hipóteses. Assim, na qualidade de
representações da realidade, podem até mesmo se antecipar a teorias, ou servirem de base
para diversas delas. O que se tem no caso do modelo lógico-proposicional da cognição é que
ele serviu como representação geral da cognição para as ciências cognitivas tradicionais.
Deste modo, desde o início teve importância central para este campo de estudo, constituindo a
imagem da cognição com que trabalharam as disciplinas envolvidas e, portanto, dando
suporte às teorias que estas produziram.
Antecipando alguns pontos das próximas seções, e tendo em vista o que foi dito, para
que o conceito de modelo possa ser aplicado à hipótese aqui defendida – de que ele não
apenas foi criado para representar a cognição, mas também serviu como traço de união entre
as diversas disciplinas das ciências cognitivas –,ele precisa possuir as seguintes
características:
1) Consistir em um sistema de relações formais independentes de seus elementos
significativos, quais sejam, os valores semânticos dos símbolos componentes da
cadeia lógico-proposicional sintática;
2) Ser uma estrutura lógico-formal que independa também das suas realizações materiais;
3) Constituir-se de um arcabouço básico que comporte variações conforme as
necessidades específicas de cada disciplina que o utiliza sem, contudo, deixar de
manter invariantes as relações formais internas que garantam as duas caraterísticas
anteriores.
Conclui-se desta explanação que, como já foi comentado, embora o modelo lógico-
proposicional corresponda a uma noção usual de modelo em outras ciências, tem
particularidades que desafiam a própria ideia de modelo. Isto ficará mais claro nas próximas
seções.
Antes de se dar por concluída esta seção, é necessário, no entanto, fazer uma
advertência – já de certo modo esboçada acima. O fato de ter se dado ênfase, até aqui, ao
modelo lógico-proposicional da cognição não quer dizer que outros modelos não sejam
utilizados por outras correntes das ciências cognitivas, ou mesmo pelo cognitivismo, como já
assinalado. Importante sublinhar que, como será explorado nos capítulos 2 e 3, a cognição
corpórea também se utiliza de diversos modelos da cognição – de vários tipos. Emprega, por
38
exemplo, modelos matemáticos, como os referentes aos sistemas dinâmicos não lineares, e
igualmente imagens, como a de emergência – e muitas de natureza biológica e
fenomenológica, entre outras. Veremos brevemente, também, a importância dos modelos
conexionistas para a transição do cognitivismo para a abordagem corpórea da cognição.
Porém, mais importante ainda é deixar patente que na cognição corpórea não se tem um
modelo geral unificador. Uma das principais diferenças entre o cognitivismo e a cognição
corpórea está justamente na recusa que esta última faz do modelo lógico-proposicional,
inclusive de seu aspecto generalizador da cognição, como processo desencarnado; e um dos
mais relevantes objetivos desta tese é exatamente discutir como a orientação corpórea ainda
pretende manter a coesão das ciências cognitivas não só recusando o modelo lógico-
proposicional, como renunciando a qualquer modelo formal unificador.
10
Este é aqui utilizado em sua tradução brasileira, citada nas referências bibliográficas.
39
introduction to the science of the mind, de José Luis Bermúdez, publicado em 2010, além do
capítulo “The life of cognitive science”, de William Bechtel, Adele Abrahamsen e George
Graham, do livro A companion to cognitive science, de organizado por Bechtel e Graham em
1998.Todas estas obras dão destaque, de uma forma ou de outra, ao papel das instituições de
pesquisa no nascimento interdisciplinar das ciências cognitivas. Elas também demonstram que
as ciências cognitivas nasceram moldadas pela predominância do modelo lógico-
proposicional da cognição e pela liderança da inteligência artificial. Quanto a estes dois
últimos aspectos, a maioria dos autores citados acima assinala como importante ponto de
partida, para a constituição do primeiro modelo de cognição, a construção teórica conhecida
como máquina de Turing. Trata-se de um determinado modelo de máquina de computar
apresentado como formalização abstrata, matemática, por Alan Turing em seu artigo “On
computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem”, de 1936. Neste
trabalho, Turing se propôs a apresentar sua contribuição a uma discussão que remonta aos
trabalhos de George Boole, para expressar leis básicas do pensamento em princípios lógicos
(GARDNER, 1985, p. 143), e ao projeto logicista e ao cálculo proposicional de Gotlobb
Frege. Tal discussão, tendo passado pelas objeções de Bertrand Russell e Henri Poincaré
quanto às limitações do projeto de Frege e dado origem ao positivismo lógico (BECHTEL,
1988b; THAGARD,1988, p. 11; CARNAP 2000 e 2003), se prolongou, de certa maneira, até
o formalismo de David Hilbert e o Teorema da Incompletude, de Kurt Gödel, proposto em
1931 (SHAPIRO, 1997). Seria excessivo para o escopo deste trabalho detalhar os problemas
debatidos ao longo desta série de intervenções – extremamente importantes para a formação
do pensamento ocidental no século 20 –, mas é necessário ao menos apontar que, no momento
do artigo de Turing, as discussões versavam sobre uma questão central (DUPUY, 1996
[1994], p. 31), derivada, remotamente, da tentativa fregueana de expressar a aritmética através
da lógica e, imediatamente, da tentativa de Gödel de expressar lógica através da aritmética: a
computabilidade efetiva de uma função. Segundo, Dupuy, o ano de 1936 foi decisivo na busca
de solução para este problema. Primeiramente, através de um artigo de Alonso Church
chamado “An unsolvable problem of elementary number theory" e, em seguida, pelo artigo de
Turing. Contudo, importa para a presente investigação principalmente a estruturada máquina
de Turing que, segundo Dupuy,
40
Turing chamou seu construto de máquina porque uma vez que seu operador tenha
recebido as instruções, prossegue mecanicamente, sem intervenções inteligentes
posteriores. É claro que, quando as únicas máquinas de computação físicas
existentes eram calculadoras que realizaram operações aritméticas simples com
engrenagens e alavancas, a concepção de Turing de uma máquina que podia realizar
qualquer cálculo algorítmico foi um passo crucial no desenvolvimento dos
computadores modernos digitais na década de 1940 (HINMAN, 2005, p. 436-437).
Assim, duas das mais famosas ocorrências históricas de um dispositivo com instruções
mecânicas estão no tear de Joseph-Marie Jacquard (1805), que utilizava cartões perfurados
removíveis para definir os padrões a serem tecidos, e na máquina analítica de Babbage.
Considerando que a computação é baseada na “ideia de um conjunto de instruções que podem
ser aplicadas mecanicamente” (BECHTEL et al, 1998, p. 8), não podemos deixar de nos
recordar de que as instruções de Jacquard e Babbage – sendo que estas últimas apenas de
maneira idealizada – eram fornecidas literalmente de modo mecânico. É preciso sublinhar que
a máquina analítica apresenta uma grande diferença em relação à máquina de Turing, embora
fosse, de fato, tão imaginária quanto esta última: não se tratava de uma máquina apenas
41
lógica, ou ideal, como a de Turing, mas de um projeto, ainda que rudimentar e visionário, que
se colocava na esteira da evolução técnica das calculadoras artificiais – aquela que levaria à
construção efetiva do computador digital eletrônico nos anos de 1950. Vemos que a máquina
analítica de Babbage, mais claramente do que a de Turing, se baseia em uma metáfora
mecânica e fabril do pensamento. Porém, a máquina de Babbage, embora também nunca
construída (mesmo tendo sido pensada para tal, ao contrário da de Turing), tinha outra
característica especialmente notável: através da concepção dos cartões perfurados como meios
de controle, instaurava a separação entre o nível lógico e o nível físico na computação
artificial – já que inspirada no tear de Jacquard. Embora seus cartões não pudessem ser
chamados propriamente de programas, eram veículos de instruções eminentemente lógicas,
que poderiam ser modificadas sem que fosse alterado o mecanismo físico do artefato
(COLLIER & MACLACHLAN,1998p. 81 a 89). Isto é, possuíam uma autonomia ideal, que
somente se consubstanciará na inteligência artificial mais tarde, conforme será aqui abordado.
Por outro lado, Margaret Boden dá destaque especial a uma obra que teria contribuído,
segundo ela, para uma concepção mais adequada de uma máquina de pensar do que aquela
proposta por Babbage. Trata-se daquela concebida por Alfred Smee em seu livro Process of
thought adapted to words and language (1851), chamada de “máquina relacional”, por seu
autor. Seu artefato de raciocínio seria baseado em princípios naturais, processando ideias do
mesmo modo que o sistema nervoso humano, baseado no que Smee chamou de “eletro-
biologia” e nas ideias de Boole (as quais serão referidas abaixo). Segundo Boden, o projeto de
Smee previa
uma grande placa de metal dividida em duas partes, sucessivamente, por (uma
hierarquia de) dobradiças. Sua posição, aberta ou fechada, representaria a presença
ou ausência das propriedades relevantes. Então, disse ele, duas máquinas relacionais
podem ser combinadas para fazer uma “máquina diferencial”, cuja tarefa seria a de
comparar duas ideias diferentes (BODEN, 2006, p. 121).
atenção para um fato que leva em consideração Babbage, Turing e Shannon (BECHTEL et al,
1998, p. 8-9). Eles argumentam que Babbage não teria conseguido construir a máquina
analítica devido a limitações técnicas da época (o que se aplicaria, como vimos, também a
Smee), que foram superadas apenas no século seguinte graças ao achado de Shannon. Este,
por sua vez, possibilitou o surgimento de equipamentos eletrônicos de computar cuja
fabricação contou com a participação de Turing, na Inglaterra, durante a Segunda Guerra
Mundial. Tais equipamentos eram destinados a decifrar mensagens criptografadas pelos
militares alemães, que utilizavam um equipamento mecânico para ocultar o sentido das
mensagens. O uso de máquinas eletrônicas valvuladas, por Turing e sua equipe, possibilitou a
rapidez de processamento necessária para decifrar o que havia sido criptografado
mecanicamente. Este foi um dos impulsos na inteligência artificial propiciado pelas pesquisas
militares durante a Segunda Guerra Mundial.
Segundo o que se defende neste trabalho, o desenvolvimento da crença –originada em
trabalhos na filosofia e na matemática – de que a lógica pode ser identificada à estrutura do
pensamento foi um processo fundamental para o nascimento da inteligência artificial, do
modelo lógico-proposicional e, juntamente com estes, das ciências cognitivas. Este processo
teria correspondido à autonomização da lógica em relação a outras formas de pensamento,
culminando com sua desincorporação – o que decorre da concepção de que independe das
características, corpos e experiências dos sujeitos particulares que raciocinam e a faz ser
entendida como estrutura transcendente e anterior ao pensamento. Ao se referirem à evolução
histórica da representação do pensamento humano em termos lógico-numéricos, Bechtel et al,
por exemplo, apontam em Gottfried Leibniz uma das origens do que podemos chamar de
movimento de autonomização do formalismo lógico, ao afirmarem que o filósofo do século
17 “propôs que números poderiam ser atribuídos aos conceitos, e que as regras formais
utilizadas para manipular esses números serviriam também para manipular os conceitos aos
quais os números foram atribuídos” (Ibid., p. 9). Os mesmos autores destacam a importância
de George Boole neste processo histórico – embora sua preocupação com isso seja identificar
as origens da inteligência artificial, e não do modelo lógico-proposicional, uma vez que este
não é um objetivo destes autores. De qualquer modo, segundo eles Boole, em seu livro de
1854 The laws of thought defendeu a utilização dos operadores lógicos “e”, “ou” e “não” para
expressar proposições, e que as leis das operações lógicas assim realizadas poderiam ser
consideradas leis do pensamento. No entanto, entendem que a proposta de Boole se limitava a
“operações sobre proposições completas (por exemplo: ‘A mulher é uma advogada’) e não
podia lidar com a estrutura interna à proposição (por exemplo, o fato de que o predicado ‘é
44
um advogado’ está sendo relacionado com ‘a mulher’)” (Ibid.). De acordo com Bechtel e
coautores, foi somente Gottlob Frege quem obteve sucesso em traduzir logicamente as
proposições, com seu cálculo proposicional:
Frege, porém, expandiu o sistema em 1879 para lidar com tais predicações
(permitindo representações de argumentos a partir de premissas como "Todos os
advogados passaram no exame da Ordem” e “Esta mulher é uma advogada" até
"Esta mulher passou no exame da Ordem"); o sistema resultante do cálculo de
predicados proporcionou uma maneira de formalizar inferências que tem sido
extremamente influente. A ideia de representar formalmente informação em notação
simbólica e usar operações formais para transformar esta informação forneceu um
meio crucial para a utilização de computadores a fim de simular raciocínio (Ibid., p.
10).
11
O papel de Frege na formação da orientação cognitivista será analisado, na seção 2.2., também quando à
hipótese de sua influência mais propriamente filosófica sobre os cientistas e filósofos que a desenvolveram,
quando estivermos abordando aspectos ontológicos desta orientação.
45
A lei de tudo ou nada das atividades do sistema nervoso é suficiente para assegurar
que a atividade de qualquer neurónio possa ser representada como uma proposição.
As relações fisiológicas existentes entre as atividades nervosos correspondem,
evidentemente, às relações entre as proposições; e a utilidade da representação
depende da identidade destas relações com as da lógica das proposições. Para cada
reação de qualquer neurônio há uma asserção correspondente a uma proposição
simples (MCCULLOCH & PITTS, 1943, p. 117).
12
Proponho a tradução deste título como “Corporeidades da mente”.
47
Em 1923 eu desisti de tentar escrever uma lógica dos verbos transitivos, e comecei a
ver o que eu poderia fazer em relação à lógica das proposições. Meu objetivo, como
um psicólogo, era inventar um tipo de evento psíquico mínimo, ou “'psychon”, que
teria as seguintes propriedades: primeiro, deveria ser um evento tão simples a ponto
de acontecer ou não acontecer; em segundo lugar, era para acontecer somente apenas
ocorrida sua causa estreita... ou seja, ele deveria implicar seu antecedente temporal;
em terceiro lugar, o mesmo deve ser proposto para psychons subsequentes; e em
quarto lugar, os psychons deveriam ser compostos para produzir os equivalentes a
proposições mais complexas, relativas aos seus antecedentes (MCCULLOCH, 1988,
p. 5).
Reforçando a questão temporal, Boden sublinha que o psychon deveria ser o equivalente para
a psicologia ao átomo para a química e o gene para a genética,
Mas, segundo Dupuy, não seria o artigo de McCulloch-Pitts bastante para desencadear
o que é aqui chamado de liderança da inteligência artificial na gênese das ciências cognitivas,
da orientação cognitivista e do modelo lógico-proposicional. Afinal, ele nem mesmo versava
sobre inteligência artificial. Um fato tecnológico teria sido o grande divisor de águas neste
processo histórico, devendo seu acontecimento às pesquisas militares norte-americanas
durante a Segunda Guerra Mundial, no chamado Projeto Manhattan – o que vem a ser o
segundo fato militar anunciado acima. Trata-se da participação de John Von Neumann na
concepção dos primeiros computadores eletrônicos de grande porte construídos, e cuja
concretização se iniciou em 1943. O primeiro deles, batizado de ENIAC (Electronic
Numerical Integrator e Calculator), foi desenvolvido para calcular tabelas de artilharia de
modo a se atingirem alvos em uma diversidade de terrenos. Sua construção se iniciou na
Universidade da Pensilvânia, por J. Presper Eckert e John Mauchly, mas permaneceu
incompleta até 1946, quando John Von Neumann projetou sua arquitetura básica – a chamada
"arquitetura Von Neumann". Foi somente no sucessor do ENIAC, o EDVAC (Electronic
Discrete Variable Computer), que esta arquitetura se implementou. Segundo Bechtel,
Abrahamsen e Graham,
Esse dinossauro informático foi realizado sem que se dispusesse da ideia de que a
concepção lógica de uma máquina de calcular é separável da concepção de seus
circuitos, (...) ou, para dizê-lo em termos atuais, sem que fosse feita a distinção entre
o “equipamento” (o hardware) e o “programa” (o software). Essa ideia foi
formulada por John von Neumann, quando, chamado para consulta pelos
construtores do ENIAC, já elaborou os conceitos da nova geração de computadores.
Ora, de onde ele a tirou senão da leitura do artigo de McCulloch-Pitts? Ante
esse recém-chegado no mundo material que é o computador, von Neumann adota
exatamente a mesma atitude que estes últimos ante o cérebro biológico: dele abstrai
uma máquina lógica – e, o que é mais, a mesma máquina lógica (DUPUY, 1996
[1994], p. 77 –grifo em negrito meu).
O que Dupuy chama de máquina lógica abstrata é o que, de acordo com o que aqui se
defende, constitui a essência do modelo lógico-proposicional, que será desenvolvido a partir
de eventos institucionais que serão destacados adiante, com a adoção das noções de
processamento de informações e de representação mental (como manipulação incorpórea e
autônoma de símbolos). É fundamental assinalar que o que aqui está sendo considerado como
germe do modelo lógico-proposicional é o advento da separação entre equipamento e
programa, nos computadores. Para Dupuy, teria sido necessário que o programa se
autonomizasse nos computadores para que a ideia de máquina lógica abstrata surgisse e
inspirasse sua aplicação à cognição.
A influência de McCulloch e Pitts sobre a “arquitetura Von Neumann” é corroborada
por Boden (2006, p. 160) e por Gardner:
Mas esta teria sido, segundo a interpretação aqui adotada, a opção de entendimento do artigo
de McCulloch-Pitts efetivada pelas condições históricas. Porque, de fato, o artigo possuía o
germe não apenas do modelo lógico, mas também do modelo conexionista e dos modelos
corpóreos. A ideia das redes neurais, que será a base para a orientação conexionista, estava
presente no artigo. Já a orientação corpórea parte da contestação à separabilidade entre a
cognição, o corpo e o ambiente em que ela ocorre. O que esta orientação diz é que a cognição
não é destacável dos neurônios, e tampouco é adequado, para a compreensão destes, idealizá-
los como células cujo funcionamento seja independente do restante do corpo humano
(entendido como organismo) e do ambiente. Assim, contando também com a influência do
desenvolvimento das neurociências nos anos posteriores, os modelos corpóreos rejeitam a
operação de desincorporação imposta pela inteligência artificial ao modelo de McCulloch-
Pitts. Isto é, consideram que a neurofisiologia, como foi dito, veio ao encontro da gênese das
50
ciências cognitivas, mas foi então subutilizada, sendo de imediato reduzida a uma disciplina
dedicada a um subalterno suporte neural para as operações simbólicas. Sob o ponto de vista
cognitivista, as características importantes dos neurônios são exclusivamente a de eles serem
bons veículos para manipulações lógicas de símbolos. O que a orientação corpórea pretende é
chamar de volta a neurofisiologia, a fim que agora faça diferença mais efetiva, ao ajudar a
compreender a cognição como essencialmente encarnada.
Todavia, o artigo de McCulloch-Pitts foi apenas um precursor bastante nítido de um
programa interdisciplinar de pesquisa. Autores, como Michael Arbib, afirmam não se
sustentar a ideia de que o funcionamento do neurônio individual podia ser admitido como
ocorrendo em tempo discreto:
A teoria moderna do cérebro não usa mais o modelo binário do neurônio, e sim
modelos de tempo contínuo que representam a variação na taxa média de disparo do
neurônio, ou realmente capturam a evolução temporal do potencial da membrana. É
somente através de tais correlações de atividade cerebral mensurável que os modelos
do cérebro podem realmente fornecer realimentação para experimentos biológicos
(ARBIB et al, 2002, p. 8).
Além disso, há considerações que rejeitam que o cérebro, por ser um órgão finito13,
possa ser equiparado à máquina de Turing – por definição dotada de uma memória infinita
(DUPUY, 1996 [1994], p. 65). Contudo, não se trata aqui de defender a hipótese de que a
neurociência se manteve fiel à teoria do neurônio de McCulloch-Pitts, de tal maneira que esta
disciplina somente poderia se integrar às ciências cognitivas caso adotasse esse pressuposto.
Como já foi dito, o neurônio de McCulloch-Pitts serviu muito mais para inspirar um modelo
desincorporado de cognição a ser proposto pela inteligência artificial às demais ciências
cognitivas, do que para promover uma imagem dos processos cognitivos em que
necessariamente a tese da manipulação de símbolos deveria se encarnar intimamente nas
unidades e redes neuronais. Veremos na seção 1.2 como a neurociência pôde dispensar esta
incorporação e, assim, não depender da aceitação do neurônio de McCulloch-Pitts para se
integrar às ciências cognitivas.
Estes foram, em linhas gerais, os fatos científicos, tecnológicos e filosóficos que
antecederam e criaram as condições para a eclosão das ciências cognitivas. Não significaram
ainda ações conscientes e organizadas de diversos cientistas com um objetivo comum.
Porém, para deixar mais claro o processo de consolidação do modelo lógico-
proposicional, levemos em conta, na próxima seção, alguns acontecimentos institucionais que
13
Para discussões a respeito do que seria um “autômato finito”, no sentido de um dispositivo computacional
constituído por redes neurais, v. KLEENE, 1956; ARBIB, 1961 e SIEGELMANN, 1999.
51
A Fundação Josiah Macy Jr. foi criada em 1930 para se dedicar aos “aspectos
fundamentais da saúde, da doença e de métodos para o alívio do sofrimento", com ênfase na
integração de “funções nas ciências médicas e da educação médica " (TUDICO, 2012, p. 5).
Segundo Christopher Tudico, em seu livro The history of the Josiah Macy Jr. Foundation, a
fundação foi criada por Kate Macy Ladd, filha e herdeira do magnata do petróleo Josiah Macy
Jr., por inspiração de ao menos três fatores principais: sua formação Quaker, sua vida marcada
por doenças, e as tendências filantrópicas comuns a diversos milionários norte-americanos da
mesma época (Ibid., p. 5-10). Quanto a este último aspecto, no prefácio do citado livro
George E. Thibault arrola empreendimentos semelhantes, iniciados pelas seguintes famílias
muito abastadas e influentes:
A América dos anos do pós-guerra está traumatizada com as loucuras coletivas que
acabam tragicamente de dilacerar o mundo. Um conceito ganha importância e se
torna a chave que permitirá, segundo creem, abrir a porta de uma nova ordem
mundial enfim entregue á paz: a “saúde mental” (DUPUY, 1996 [1994], p. 101).
Assim,
A Fundação Macy também patrocinou conferências sobre temas como o nascente
campo da cibernética. (...) As Conferências Macy sobre cibernética refletiram bem a
convicção da Fundação de organizar conferências interdisciplinares como
plataforma para o avanço do conhecimento. Além disso, as Conferências Macy
sobre Cibernética demonstraram a capacidade da Fundação para moldar novas áreas
provocativas de pesquisa. Os participantes das Conferências Macy sobre Cibernética
inicialmente se uniram devido ao seu interesse comum nos "mecanismos fisiológicos
subjacentes aos fenômenos de reflexos condicionados e hipnose tais como
relacionados ao problema da inibição cerebral”. A cibernética acabou evoluindo nos
mais diversos grupos de conferência da Fundação Macy; neles participaram
53
Embora seja comum afirmar que as Conferências Macy versaram sobre cibernética, é
importante assinalar que o termo só foi incorporado a seu título em 1949, e que, ao final da
série, elas já se dedicavam, em grande parte, como veremos, ao que receberia o nome de
ciências cognitivas. Desta forma, as Conferências Macy se ocuparam propriamente de
cibernética sobretudo em seu período médio. Abaixo, a relação das conferências, com seus
anos e títulos originais, de acordo com o livro de Dupuy:
quanto ás cinco primeiras conferências, não resta nenhum registro delas. No entanto,
dispomos de uma carta que McCulloch endereçou previamente a todos os
participantes da quarta conferência “sobre os mecanismos teleológicos" (1947), que
se apresenta como um minucioso relatório das três primeiras. As atas da décima
conferência também contêm um resumo das nove primeiras. estabelecido por
McCulloch. As atas da oitava e da nona conferências são precedidas de uma “A
Note by the Editors” que fornece indicações úteis sobre a história do ciclo.
Encontram-se na introdução de Wiener a Cybernetics (1948) alguns dados sobre as
primeiras conferências (DUPUY, 1996 [1994], p. 89).
Mesmo com estas limitações, e também graças ao trabalho de Steve Heims que, com
seu livro The cibernetic group (1991) analisou sobretudo o núcleo principal da cibernética, as
Conferências Macy foram suficientemente documentadas e conhecidas, o que permite avaliar
sua importância para o nascimento das ciências cognitivas. De acordo com Boden, “a
cibernética é relevante para as ciências cognitivas porque foi um projeto conscientemente
interdisciplinar que estudou organismos, bem como artefatos, e fez com que a ideia do
‘homem como máquina’ abranges senão apenas a mente, mas também o corpo” (BODEN,
2006, p. 200). Nesta afirmação encontram-se dois pontos cruciais para o presente trabalho: a)
de que a cibernética já tinha como característica o que transmitiu às ciências cognitivas: o fato
de ser um projeto conscientemente interdisciplinar; e b) a cibernética foi precursora das
ciências cognitivas no uso da metáfora mecanicista da mente, além ter aplicado a mesma
analogia ao corpo humano. Por sua vez, Dupuy destaca que, na cibernética “tratava-se, antes,
de alcançar, no domínio das ciências da mente, o mesmo grau de objetividade que na física”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 98).
Estas ideias, agregadas àquelas já destacadas acima, de se promover a saúde mental da
humanidade, fornecem a base para que, da cibernética, se consubstanciem as ciências
cognitivas como um empreendimento mais viável, porque suportado pela metáfora
computacional – ou, como diz Boden, pela metáfora de mente como máquina. Retomemos,
neste momento, a questão da saúde mental social. Segundo Dupuy, falando a respeito dos
primeiros cibernéticos, é
55
Veremos na seção 2.1 que a ideia de autorregulação foi obscurecida pela de auto-
organização na Segunda Cibernética, mas devemos examinar como a própria noção de
mecanismos teleológicos se esvaziou diante das novas teses apresentadas pelas ciências
cognitivas. Frank propunha que as ciências sociais aceitassem novas condições de
fundamentação nas ciências do indivíduo. Ele falava em processos circulares, mas não
explicava como poderia se dar a articulação entre ciências sociais e psicologia através destes
processos, típicos da primeira cibernética. Dupuy discutiu este problema, destacando que
havia uma preocupação declarada em evitar as guerras a partir da suposição de que elas
56
nascem “nas mentes dos homens” e, nestas, deve se eliminar as raízes do belicismo (Ibid, p.
104) Mas ele acrescente que havia nas primeiras das conferências Macy, sobretudo por parte
da direção da fundação, a intenção de promover, através da colaboração entre física e
psicanálise, para que “os princípios da lógica fossem colocados a serviço” (Ibid.) de se
encontrar solução para os problemas de comportamento social e em defesa da paz – o que
Dupuy chama de programa “personalidade e cultura”. Porém, segundo este autor, a intenção
dos cientistas presentes nas conferências – ou dos cibernéticos – seria a de conquistar o
terreno da psicologia. Neste sentido, seu propósito seria, mais propriamente, o de “destruir” o
obstáculo que a psicanálise poderia significar, no sentido de fazer prevalecerem a matemática
e a física. Mas o que teria prevalecido não teria sido a física, e sim a lógica. No mesmo
sentido já examinado na seção anterior, o que se deu após as Conferências Macy, de acordo
com Dupuy, foi o predomínio do logicismo, que levaria, por sua vez, ao cognitivismo. Deste
modo, as preocupações manifestadas pela liderança da Fundação Macy, de cura dos males
sociais pela fundamentação das ciências sociais na psicologia, acabaram sendo deslocada sem
decorrência da substituição da psicologia tradicional por uma crença na objetividade da lógica
em si mesma. Isso se constata na seguinte passagem de Dupuy – na qual ele se refere, a
princípio, à filosofia da mente, mas com termos que se aplicam ao cognitivismo. Em outras
palavras, Dupuy parece atribuir um importante papel à filosofia analítica na constituição do
que aqui está sendo chamado de modelo lógico-proposicional (o que será abordado em maior
profundidade na seção 2.2).
Mas como esta influência teria se dado nas Conferências Macy, de tal modo a até
mesmo substituir, aparentemente, as intenções reducionistas dos gestores da fundação? A
hipótese adotada neste trabalho acompanha uma constatação de Dupuy. O que parece mais
plausível é que os principais líderes da cibernética convergiram, em direção à autonomização
da lógica, também em função de sua formação. Ainda segundo Dupuy:
57
devemos promover um recuo temporal, para examinar brevemente um caso que deve auxiliar
a elucidar as necessidades e possibilidades de colaboração multidisciplinar naquele dado
momento histórico. Em outros termos, tal episódio demonstra ter muitas semelhanças com a
motivação e com a dinâmica interdisciplinar da cibernética e das ciências cognitivas. Trata-se
de investigações decorrentes do Projeto Manhattan, que havia sido destinado à confecção das
bombas atômicas estadunidenses na Segunda Guerra, já mencionado na seção anterior. Estas
investigações tinham como objetivo prosseguir as pesquisas nucleares, e já utilizavam um
computador eletrônico – no caso, o ENIAC (METROPOLIS & ULAM, 1949; ANDERSON,
1986; METROPOLIS, 1987; ECKHARDT, 1987). Mais precisamente, corresponderam à
criação do Método Monte Carlo, uma simulação computacional que visava a estudar o
comportamento de partículas atômicas. Não cabe promover aqui um exame profundo do
episódio. Trata-se sobretudo de destacar que:
a) As mencionadas investigações exigiram a participação de pesquisadores de diversas
origens disciplinares e locais – o que supunha métodos, formações e linguagens
diferentes –, mas que deveriam ser colocados em colaboração visando a determinados
resultados (GALISON, 1996);
b) Para que esta colaboração pudesse ser frutífera, duas condições principais deveriam
ser atendidas:
i. Haver o patrocínio, o planejamento e a gestão do projeto realizados pela
instituição à qual foi confiado o alcance dos resultados dos esforços comuns
(ANDERSON, 1986; METROPOLIS, 1987; ECKHARDT, 1987); e
ii. Ser estabelecida uma linguagem de interseção ou convergência, capaz de
unificar os esforços e eliminar até um nível adequado as diferenças iniciais
entre os pesquisadores (GALISON, 1996).
Estas condições foram satisfeitas, em primeiro lugar, mediante a coordenação do
governo e, em segundo lugar, graças à adoção de uma linguagem ou um modelo comum, que
serviu de área de convergência para os diversos pesquisadores envolvidos.
Quanto à coordenação, foi realizada, no local específico do Los Alamos National
Laboratory, nos EUA, através do exército daquele país. Este laboratório, onde se desenvolveu
secretamente a maior parte das pesquisas do Projeto Manhattan, perdurou na chamada Guerra
Fria, isto é, o período de conflito não conflagrado entre EUA e URSS após a Segunda Guerra,
mantendo o perfil interdisciplinar de investigação.
59
Um modelo mais geral de zonas de troca pode ser desenvolvido considerando duas
dimensões ao longo das quais elas podem variar. Uma dimensão é aquela em que o
poder é usado para reforçar a troca –tal é o eixo coerção-colaboração. A outra
dimensão é aquela em que a troca conduz a uma nova cultura homogénea –tal é o
eixo homogeneidade- heterogeneidade (COLLINS et al, 2007, p. 658).
Mesmo sem nos comprometermos integralmente com o sistema de ideias proposto por
Collins et al, esta classificação geral que os autores propõem é sugestiva para a dinâmica de
colaboração disciplinar das ciências cognitivas. Ela nos auxilia a esclarecer de que maneira se
deu a coesão das disciplinas envolvidas neste novo campo científico, em cuja gênese deverá
ficar bastante caracterizado que não houve poder coercitivo unificador, e sim uma certa
homogeneização a partir de heterogeneidades iniciais. Assim, como veremos, a liderança da
inteligência artificial se deu pela adesão voluntária das demais disciplinas, e as instituições de
fomento puderam contar com este tipo de acordo para tentar alcançar os objetivos que
guiaram suas iniciativas.
60
14
Embora não caiba nos limites da presente investigação, um estudo sobre as relações da Guerra Fria com o
impulso dado à ciência no período, com o nascimento daquilo que passou a ser chamado de Pesquisa e
Desenvolvimento, com novas formas de racionalidade daí emergentes, e com a interconexão dada a tudo isso
pelas então novas tecnologias de produção, seria provavelmente muito proveitoso para a compreensão das
ciências cognitivas. Obras como How the Cold War transformed philosophy of science: to the icy slopes of logic
(REISCH, 2005) e How reason almost lost its mind: the strange career of Cold War rationality (ERICKSON et
al, 2013) seriam fontes inicialmente indicadas para tal estudo.
61
15
Vide menção, anterior, ao artigo “A logical calculus of ideas immanent in nervous activity”, de Warren
McCullogh e Walter Pitts.
16
Esta divergência, e seu “desfecho”, serão retomados na seção 2.1.
63
Newell e Herbert Simon. Este encontro teria servido para preparar uma nova
geração:
A reunião em Dartmouth não cumpriu as expectativas de todos: havia mais
concorrência e menos livre troca entre os estudiosos do que os planejadores tinham
desejado. No entanto, o encontro de verão é considerado crucial na história das
ciências cognitivas, em geral, e no campo da inteligência artificial, em particular. A
razão é, penso eu, principalmente simbólica. A década anterior tinha visto as idéias
brilhantes de uma geração mais velha -- Norbert Wiener, John Von Neumann,
Warren McCulloch, Alan Turing --, todos apontando para o desenvolvimento de
computadores eletrônicos que poderiam realizar funções normalmente associadas
com o cérebro humano. Este grupo sênior tinha antecipado desenvolvimentos, mas
não tinha certeza se eles próprios teriam a oportunidade de explorar a terra
prometida. Em Dartmouth, membros de uma geração mais jovem, que
cresceram em um ambiente semeado com essas idéias, agora estavam prontos (e
em alguns casos, além da prontidão simples) para elaborar as máquinas e
escrever os programas que poderiam fazer o que Von Neumann e Wiener
haviam especulado. (GARDNER, 1985, p. 139 – grifo meu)
Para a psicologia, no entanto, o Simpósio MIT foi ainda mais frutífero do que
Dartmouth. Lá Miller apresentou seu artigo “Magical number seven” (...). E ele teve
uma epifania intelectual que o levou da matemática para psicologia computacional.
Ele logo deu início a uma declaração de intenções em relação ao que é agora
chamado de ciências cognitivas (...).
Em uma fala autobiográfica apresentada mais de vinte anos depois, ele chamou o
segundo dia da reunião MIT como o momento em que – para ele – as coisas de
repente fizeram sentido. Naquele dia, foram ministradas palestras sobre o
[programa] Logic Theorist por Newell e Simon e sobre gramáticas formais por
Chomsky. O primeiro, apresentado em Dartmouth, pouco tempo antes, mostrou que
um computador pode provar teoremas em lógica. O segundo mostrou que a
linguagem – considerada como frases estruturadas, não apenas sequências de
palavras– pode ser formalmente descrita (BODEN, 2006, p. 334).
Tais encontros permitiram que a inteligência artificial estabelecesse sua liderança nas
ciências cognitivas nascentes, o que foi reforçado pela criação daquilo que Boden chamou
acima de “psicologia computacional”. E esta liderança se expressa na iniciativa que alguns
pensadores da inteligência artificial tomaram de considerar a possibilidade de até mesmo
substituir os psicólogos, como descreve Hubert Dreyfus:
Em 1957 Simon previu que dentro de dez anos as teorias psicológicas assumiriam a
forma de programas de computadores, e começou a cumprir essa predição
escrevendo uma série de programas que tinham por finalidade simular as fases
conscientes e inconscientes pelas quais passa uma pessoa até chegar a um
desempenho cognitivo específico. (DREYFUS, 1975 [1972], p. 129).
do empreendimento, este foi declarado como uma organização sem fins lucrativos, já com o
nome de RAND Corporation, e apoiado pela Ford Foundation, por empresas como aCarnegie
Corporation of New York e a Westinghouse Electric Corporation, e por instituições de ensino
e pesquisa como o Caltech, o MIT e as universidades de Princeton e Illinois (WARE, 2008, p.
8 e 9). E, assim como as motivações das iniciativas por trás do Método Monte Carlo, a razão
de existir da RAND também se ligavam à chamada Guerra Fria, entre EUA e URSS:
E foi com este perfil estatal e militar de arregimentação – muito diferente, por
exemplo, do que se observou na sustentação dada pela Fundação Macy ao início da
cibernética, e muito mais semelhante ao do Projeto Manhattan – que a RAND apoiou o
nascimento da inteligência artificial e das ciências cognitivas.
Antes, porém, de enfocarmos o trabalho de Simon e Newell na RAND, é preciso
assinalar a importância da Comissão Cowles sobretudo na trajetória do primeiro – o que teve
repercussão nos destinos das ciências cognitivas. A Comissão Cowles – atualmente Cowles
Foundation –, criada em 1932 pelo empresário e economista Alfred Cowles na cidade de
Colorado Springs17, foi frequentada por Simon quando, nos anos 1950, já funcionava na
Universidade de Chicago. Ela reuniu basicamente economistas matemáticos que realizavam
seminários regulares sobre econometria, programação linear e dinâmica, e teoria da decisão.
Dentre os economistas que chegaram a participar do grupo estavam Kenneth Arrow, Roy
Radner, Paul Samuelson, Franco Modigliani, Jacob Marshak, Tjalling Koopmans e Gerard
Debreu. Como Simon chegou a dizer em sua autobiografia, sua atividade na Comissão
Cowles fez dele “quase um economista tempo integral” (AUGIER & MARCH, 2004, p. 12).
E é Simon quem também afirma que “O maior impacto da [Comissão] Cowles em mim foi
me incentivar a tentar matematizar minha pesquisa anterior, em teoria da organização e
tomada de decisão – especialmente a teoria desenvolvida em Administrative Behavior18”
(citado por AUGIER & MARCH, ibid.).
A pesquisa anterior de Simon era sobre o comportamento de pessoas no ambiente da
administração pública. Este foi o tema de sua tese de doutorado, defendida na Universidade
17
V. http://cowles.econ.yale.edu/, Data de acesso 10/08/2014.
18
Trata-se da tese de doutoramento de Simon.
66
de Chicago, em 1943. De um lado, devemos destacar a influência de Rudolf Carnap sobre este
trabalho – o que tende a confirmar o que já foi dito acima sobre o impacto do Positivismo
Lógico no nascimento do modelo lógico-proposicional; de outro, sublinhar que as ciências
cognitivas devem muito à confluência de interesses que se manifestou em Simon: o estudo do
comportamento humano explicado e descrito de maneira racional, lógica, quantificada. O
próprio Simon afirma, a respeito de sua tese de doutorado, da influência de Carnap e do que
seria a “lógica das ciências sociais”:
Carnap foi particularmente importante para mim, pois eu tinha um forte interesse na
lógica das ciências sociais. Meu projeto de tese (mais tarde publicada como
Administrative Behavior) começou como um estudo dos fundamentos lógicos da
ciência administrativa. Meus arquivos renderam vários esboços iniciais e prospectos
de tal obra, que comecei a planejar em 1937. Teria sido bom se alguém tivesse me
mandado sentar e me forçado a acompanhar um curso formal em lógica simbólica,
mas eu segui o meu caminho habitual de autoinstrução, com os resultados mistos
habituais. Eu não era totalmente ignorante em lógica, no entanto. Um estudo
cuidadoso de The logical syntax of language, de Carnap, me convenceu de que sua
definição de “analítico”, um termo central em seu sistema, não levava aonde deveria
(SIMON, 1996, p. 54).
Simon prossegue afirmando que, por carta, questionou Carnap sobre a imprecisão que
atribuía ao uso do conceito de analítico em The logical syntax of language, e que esta atitude
teria provocado a correção que Carnap teria promovido no livro Introduction to semantics, de
1942, após os dois terem conversado pessoalmente a respeito.
Este episódio é útil para demonstrar que Simon não apenas teve uma relação direta de
aprendizado com Carnap, mas também desde cedo demonstrou clara intenção em intervir em
discussões centrais, o que o levou à convergência da lógica (ou, se considerarmos as posições
e principais interesses de Carnap, ao menos em parte do Positivismo Lógico) com as ciências
do comportamento humano.
Como foi aludido, o ponto de partida de Simon – representado por sua tese de
doutorado – era tentar explicar o comportamento social, e o papel que a razão nele
desempenha. A rigor, ele não se afastou deste interesse ao se tornar um dos pais da
inteligência artificial, das ciências cognitivas e do cognitivismo, como veremos a seguir.
Para melhor compreendermos tal suposição, primeiramente tenhamos em conta a
seguinte afirmação de Simon:
19
A respeito da Teoria da Racionalidade Limitada, Bechtel et al afirmam que Simon desafiou “um dos princípios
da economia moderna, a suposição de que os agentes são perfeitamente racionais nas escolhas que fazem.
Simon, ao contrário, enfatizou que a racionalidade é limitada e que, em vez de examinar todas as possibilidades
que enfrentam e, em seguida, escolher uma, os seres humanos geralmente aceitam a primeira opção que atende a
um padrão pré-determinado. (...). Ele também extraiu de seu trabalho em organizações humanas o
reconhecimento de que os seres humanos muitas vezes dependem de receitas de ações, ou heurísticas, em vez de
buscar solução ideal de procedimentos que garantam respostas corretas” (BECHTEL et al, 1998, p. 11). Ou, em
outras palavras, desta vez de Erickson et al: “Simon não estava assumindo que os tomadores de decisão fossem
irracionais; em vez disso, ele argumentou que os limites de sua capacidade de coleta e processamento das
informações necessárias para tomar as melhores decisões para atingir suas metas forçou um novo foco sobre o
processo de raciocínio e resolução de problemas” (ERICKSON et al, 2013, p. 75).
68
10) O MIT recebeu US$ 1,5 milhão para desenvolvimento do seu Centro de Ciências
Cognitivas. Oito instituições receberam doações de US$ 500.000 para fortalecer,
unificar e institucionalizar programas de investigação e formação em ciências
cognitivas:
• Universidade da Califórnia, Berkeley
• Universidade de Rochester
• Universidade Carnegie Mellon
• Instituto de Neurociência Cognitiva
• Universidade da Pensilvânia
• Universidade do Texas, Austin
• Universidade de Stanford
• Universidade da Califórnia, Irvine
11) Em 1986, os principais centros de pesquisa em ciências cognitivas da Universidade
da Califórnia, Berkeley, Universidade da Pensilvânia, Stanford, MIT, e Carnegie
Mellon já haviam recebido um forte apoio da fundação, e estavam engajados em
investigação e colaboração interdisciplinar, tanto em pós-graduação quanto em
pós-doutorado, com programas para formar a próxima geração de cientistas
cognitivos;
12) A pesquisa beneficiou avanços na tecnologia dos computadores, especialmente em
instituições que utilizavam técnicas de inteligência artificial, simulação
computacional, e modelagem de computador para estudar as funções cognitivas
complexas, tais como resolução de problemas e tomada de decisão;
13) Em 1987, uma década após a o início do programa, a fundação já havia investido
um total de quase US$ 25 milhões, US$ 60 milhões nos preços de 2009;
14) Laços foram estabelecidos entre as diversas disciplinas envolvidas nas ciências
cognitivas e oportunidades de estudo no campo cresceram nas principais
faculdades e universidades.
Percebe-se por esta concisa narrativa o alcance e a determinação do programa. Nela
fica patente o esforço de liderança da fundação em relação à consolidação das ciências
cognitivas. Ele aparece também no relatório apresentado no primeiro ano da iniciativa. Além
de relacionar “oficialmente” as disciplinas constituintes das ciências cognitivas – filosofia,
psicologia, inteligência artificial, linguística, antropologia e neurociência –, o relatório (“State
of the art report”, – SLOAN FOUNDATION, 1978), preparado por um grupo de cientistas
72
engajados no programa para prestar contas à fundação, afirmava claramente uma plataforma
política de ação conjunta:
Vemos que este compromisso envolvia não apenas uma imagem comum implícita da
cognição, como computacional, mas a disposição de colaboração interdisciplinar em torno
desta imagem.
O segundo aspecto corresponde, exatamente, à lista de disciplinas mencionada por
Gardner e que se tornou uma referência extremamente influente nos livros sobre ciências
cognitivas. Esta lista não aparece na forma de um rol trivial, mas no diagrama abaixo
reproduzido, extraído diretamente como fac-símile, com seus termos em inglês, da capa do
relatório referido:
20
A fim de ressaltar importância do papel da Fundação Sloan para a consolidação das ciências cognitivas, é
preciso registrar que o próprio livro de Gardner foi realizado com financiamento desta instituição (GARDNER,
1985, p. xiii; BODEN, 2006, p. 522).
21
Originalmente subfields.
73
Figura 01
Embora este mesmo hexágono (chamado por Gardner de “hexágono cognitivo” –
GARDNER, 1985, p. 36) apareça em alguns livros sobre as ciências cognitivas (é
reproduzido, por exemplo, em GARDNER, 1985; VON ECKARDT,1995; BODEN, 2006 e
BERMÚDEZ, 2010) – isto é, embora ele tenha se tornado uma espécie de emblema –, pouco
tem sido explorado sobre a importância histórica da Fundação Sloan para as ciências
cognitivas, a não ser em breves passagens dos livros citados de Boden e Bermúdez22. Gardner,
que chama o financiamento dado por este órgão de fomento às ciências cognitivas de
“iniciativa Sloan”, esclarece que o “hexágono cognitivo” indica em suas linhas internas cheias
as conexões interdisciplinares já existentes em meados dos anos 1970, e as linhas tracejadas
como sendo as conexões desejáveis. Mesmo que sejam bastante discutíveis as suposições que
essas linhas revelam – tanto na forma de “constatação” quanto na de “recomendação” –, é
interessante assinalar que houvesse a preocupação de avaliar e planejar as ações das ciências
cognitivas, o que evidencia uma abordagem estratégica. Se esta estratégia teve resultados,
quais seus resultados hipotéticos, bem como qual seu alcance e duração, são questões que
estão a merecer maiores investigações por parte de quem tenha interesse de compreender as
implicações sociais das ciências cognitivas.
22
Bermudez faz uma comparação das teses de unificação das ciências cognitivas, simbolizadas pelo hexágono,
com os processos de unificação destas ciências que identifica no momento atual (BERMUDEZ, 2010, p. 96).
74
O segundo aspecto é que a iniciativa Sloan tratava, possivelmente pela primeira vez,
as ciências cognitivas como um todo unificável, uma vez que lhe destinou financiamento em
conjunto, e não particularizadamente, como já havia feito com a neurociência, alguns anos
antes (GARDNER, 1985, p. 50).
Outro aspecto do relatório, relevante para os propósitos deste trabalho, é que, ainda
segundo Gardner,
O autor não diz como obteve as informações sobre a repercussão a que se refere, nem
quem seriam os “leitores” que menciona – o que nos impede de dimensionar, exclusivamente
pela leitura do livro, o impacto que o relatório obteve, e exigiria maiores pesquisas a respeito.
O relatório foi elaborado por uma comissão de treze cientistas cognitivos e filósofos, alguns
de destaque, como Zenon Pylyshyn, Donald Norman e George Miller – sendo que três deles
foram os responsáveis por sua redação final. Além disso, o grupo contava com especialistas
de todas as seis disciplinas emblemáticas. Por esta razão, pode ser lido não como um
documento burocrático, ou em um sentido político menor, mas sim como um texto de
pesquisadores e pensadores engajados no projeto das ciências cognitivas, que defendem suas
ideias – inclusive as ideias estratégicas, mesmo que estas não tenham sido seguidas
integralmente. O fato de provocar polêmica pode ser entendido como um sinal de que
apresentou questões relevantes, que contudo careciam (ou carecem ainda) de consenso. O fato
de ser uma espécie de justificação para recursos financeiros empregados não deve obscurecer
alguns pontos importantes de seu conteúdo. Com efeito, ao nos dedicarmos a lê-lo,
encontramos sinais de esforços para que fossem constituídos compromissos a serem seguidos
por uma determinada comunidade científica, ainda que formada por pesquisadores que
vinham de outras áreas e não houvessem previsto esta etapa multidisciplinar em suas
carreiras. Contém relatos de todas as seis disciplinas do hexágono. Assinalam-se ainda como
relevantes para este trabalho os seguintes pontos – sendo os dois primeiros testemunhos de
uma atividade de defesa social das ciências cognitivas, e o terceiro de que a unidade deve ser
obtida através da ação interdisciplinar:
75
Além de ter fixado as disciplinas das ciências cognitivas e promovido um esforço mais
claramente propagandístico do novo campo científico, o relatório trouxe extenso
detalhamento das atividades realizadas pelas seis disciplinas nos anos anteriores. Algumas
passagens teriam importância epistemológica mais expressiva, dignas de serem analisadas em
um trabalho de maior fôlego – como, por exemplo, o fato de ser justamente no capitulo
dedicado à psicologia que há um item voltado ao “processamento humano de informações”.
Esta questão – de a psicologia ter sido a principal portadora da nova noção de processamento
de informações, dentre as demais disciplinas, além da inteligência artificial – será retomada
em seguida.
Não se esgota, certamente, no conteúdo desta seção, a história institucional das
ciências cognitivas. Seu propósito principal foi, tão somente, demonstrar como, no processo
de consolidação institucional das ciências cognitivas, isto se deu graças a dois elementos
principais:
1) O esforço de cooperação multidisciplinar;
2) Um modelo unificador da cognição.
Embora neste trabalho se admita a importância das iniciativas de congregação dos
cientistas cognitivos para a realização de programas de cooperação, a hipótese que aqui se
defende com maior ênfase para explicar a unificação das ciências cognitivas é a do
76
A série de acontecimentos que vai das Conferências Macy à iniciativa Sloan torna o
surgimento das ciências cognitivas, da orientação cognitivista e dos modelos lógicos
inseparáveis entre si, assim como de um contexto social e histórico marcado pelo advento das
tecnologias da cognição. Michael Arbib, um dos redatores do relatório à Fundação Sloan,
ajuda a confirmar, cerca de vinte e cinco anos depois, que o modelo lógico da cognição –
também chamado de cognitivista – foi o predominante por bastante tempo, caracterizando-se,
até mesmo na psicologia cognitiva, pela liderança da inteligência artificial e por negligenciar
a importância das estruturas biológicas do corpo humano na explicação de comportamentos:
sua atuação não foi predominantemente propiciada por iniciativas exógenas de cooperação
direta entre pesquisadores de origens disciplinares diferentes. Dito de outra maneira, a adoção
de uma imagem comum da cognição por cientistas de diversas disciplinas tem sido suficiente
para que se possa falar nas ciências cognitivas como um campo coeso de pesquisas. A coesão
não teria decorrido, portanto, de forças exteriores, conduzindo interações interdisciplinares do
tipo tradicional – como na Inciativa Sloan; e sim da formação voluntária, em cada uma das
disciplinas, de um compromisso com uma certa imagem geral da cognição, a funcionar como
centro de referência. Deste modo, podemos pensar na coesão das ciências cognitivas, em
grande parte, como resultado dos efeitos atrativos do modelo, como se este exercesse força
centrípeta de aproximação.
É interessante constatar que a denominação “ciências cognitivas” se dá no plural na
língua portuguesa, assim como no francês (“sciences cognitives”) e no espanhol (“ciências
cognitivas”), enquanto que no inglês predomina o emprego do singular “cognitive science”.
Esta não uniformidade linguística pode sugerir a falta de consenso quanto à
multidisciplinaridade das ciências cognitivas. Porém, tudo parece indicar que a forma singular
em língua inglesa demonstra mais uma expectativa futura de unicidade do que a convicção
quanto a esta realidade já ter sido alcançada. Isto porque, mesmo em obras escritas na língua
inglesa, não se manifestam dúvidas quanto a este campo de conhecimento ser (ainda)
multidisciplinar. Em um raro texto em que o termo é empregado no plural (até mesmo em seu
título), na língua inglesa, encontramos a seguinte reflexão:
Não é muito claro se uma única ciência vai emergir das atuais efervescência e
agitação que envolvem as ciências cognitivas. O que está claro é que os últimos
anos têm visto o surgimento de um grupo identificável de ciências cognitivas. Entre
os praticantes dessas ciências pode-se, com certeza, encontrar muitos que são
apropriadamente chamados de cientistas cognitivos, conjuntamente com o rótulo
mais tradicional de linguista, cientista da computação, psicólogo, antropólogo e
assim por diante. Como resultado, eu tendo a ver a ciência cognitiva mais como um
guarda-chuva do que como um chapéu. (MANDLER, 1984, p. 305, grifos em
negrito meus)23
23
Embora este artigo seja de 1984, somos levados a julgar que a situação descrita no trecho citado não tenha
mudado muito nos últimos trinta anos, consultando os livros mais recentes sobre a história das ciências
cognitivas (especialmente BODEN, 2006; BERMUDEZ, 2010).
78
eram, também, cientistas cognitivos. Isto porque quando realizavam suas pesquisas e
elaboravam suas teorias, embora partissem de domínios científicos diversos, estariam
conscientes de que produziam um conhecimento voltado para objetivos não restritos à sua
prática disciplinar. É importante salientar esta suposição, uma vez que ela indica um caminho
que reúne, ao mesmo tempo, os aspectos que possam caracterizar epistemologicamente
diferentes domínios com aqueles que suscitam novas práticas científicas, por ser, de fato, o
caminho de cientistas situados historicamente. E esta situação histórica inclui a adoção de um
modelo comum.
Mas, vistos seus antecedentes institucionais, como se configurou o modelo lógico das
ciências cognitivas após aquele período inicial examinado na seção anterior? Propõe-se aqui
que ele tenha se formado através da adoção de uma determinada metáfora: a metáfora lógica
para o pensamento e a cognição. Embora seja comum se falar em metáfora computacional
(SLOMAN, 1978; GARDNER, 1985, p. 82) como base para o desenvolvimento dos modelos
de orientação cognitivista, é importante advertir que esta denominação termine por encobrir a
principal característica destes modelos (sua estrutura lógico-proposicional), ao induzir ao
equívoco de que a analogia principal utilizada em sua construção tenha sido a do cérebro
humano com o computador eletrônico, como máquina física. Diferentemente disto, entende-se
na presente investigação que o foco da comparação do computador com a cognição se dá nos
níveis lógicos de ambos, e não nos seus níveis físicos. Para sustentar esta noção,
consideremos o que já foi visto anteriormente na comparação entre os modelos de
McCullogh-Pitts e de Shannon, e outros testemunhos, como o de Allen Newell, J. C. Shaw e
Herbert Simon, citados por Gardner:
Como se pode perceber, estes cientistas demonstram valer-se de uma analogia apenas
funcional entre a cognição e o computador, para chegar a propor um modelo comum para
ambos. Esta noção está relacionada com a tese do funcionalismo, desenvolvida posteriormente
a partir dos trabalhos de Hilary Putnam, Jerry Fodor e Zenon Pylyshyn (BECHTEL, 1988a, p.
112 a 140. Newell e seus colegas também mostram, neste fragmento, que adotaram para a
equivalência funcional entre computador e cognição a metáfora do processamento de
79
A maioria dos trabalhos em ciências cognitivas assume que a mente contém representações
mentais análogas às estruturas de dados de computadores e procedimentos computacionais
semelhantes a algoritmos computacionais. Teóricos cognitivos têm proposto que a mente
contém representações mentais tais como proposições lógicas, regras, conceitos, imagens
e analogias, e que ela usa procedimentos mentais, como dedução, buscas, correspondências,
rotação e recuperação (THAGARD, 2010 – grifos meus).
Estas atitudes podem, por fim, ser resumidas no que assinalam Gerard Casey e Aidan Moran:
“A metáfora pode ser expressa assim: a mente é governada por programas ou conjuntos de
regras análogos àqueles que governam computadores” (CASEY & MORAN,1989, p. 4). A
analogia entre a cognição humana e o computador eletrônico seria, portanto, possível somente
se ambos tiverem a compreensão de seu funcionamento atribuída a um conjunto de regras
lógicas. Isto seria necessário para a construção de um modelo lógico que sirva para
computadores e para a cognição estritamente humana. É trivial considerar os programas de
computadores clássicos como conjuntos de regras lógicas – ou algoritmos. Mas e quanto à
cognição humana? Como ela, como um todo, foi tornada equivalente a um de seus alegados
aspectos, que é o raciocínio lógico sequencial, para que fosse equiparada ao funcionamento do
computador artificial? Lakoff e Johnson afirmam que “a primeira geração das ciências
cognitivas (...) aceitou sem questionamentos a visão prevalente de que a razão era incorpórea
e literal – como a lógica formal ou a manipulação de um sistema de signos” (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 75 – grifo meu). Mas como a cognição humana pode ser entendida na
forma deste mero processo lógico de manipulação de signos? Como teria se desenvolvido, nas
ciências cognitivas, tal imagem da cognição, que se propõe a traduzir o processo cognitivo em
linhas de códigos formadas por símbolos discretos conectados segundo regras rígidas? Tal
imagem não teria sido resultado de algum processo analógico e metafórico particular? Esta é a
opção aqui defendida, mesmo quanto a um tema que carece de maiores investigações. Com
vistas a contribuir para elas, postula-se neste trabalho mais de uma forma de interpretar esta
elaboração teórica. Uma das hipóteses que então se apresenta supõe que ela tenha se dado
através de duas etapas de analogias: primeiramente a cognição humana teria sido equiparada a
uma linguagem sentencial para, em segundo lugar, tal linguagem ser expressa na forma de
linhas formais de códigos simbólicos. A primeira etapa, isto é, a constituição da metáfora do
pensamento como linguagem, pode ser descrita como tal como o fazem Lakoff e Johnson.
Para eles, a metáfora do “pensamento como linguagem” consiste em considerar que pensar
seja uma atividade linguística; deste modo, “ideias simples são palavras” e “ideias complexas
80
são sentenças” (Ibid., p. 244). E prosseguem: “o que esta metáfora faz é conceituar o
pensamento em termos de símbolos, como se o pensamento fosse uma sequência de letras
escritas” (Ibid., p. 245). A segunda etapa metafórica, após a identificação de toda cognição a
uma linguagem escrita em palavras, seria equiparar esta linguagem a um conjunto racional de
regras lógicas. Outro autor, que também adota a compreensão das ciências cognitivas
clássicas como um exercício de modelagem por processos metafóricos, sugere que a segunda
etapa da transformação seja a seguinte:
Em resumo, de acordo com este entendimento, a fim de que a cognição pudesse ter sua
operação essencial equiparada ao funcionamento de regras lógicas, teriam se dado dois
passos: o primeiro teria consistido em descrevê-la basicamente como linguagem proposicional
vocabular, e o segundo em traduzir tal linguagem como uma sequência de proposições da
lógica matemática. Haveria algumas outras abordagens possíveis deste processo de teorização
clássica sobre a cognição. Uma delas, proposta pela orientação cognitivista e provavelmente a
mais difundida nas ciências cognitivas clássicas, lança mão do conceito, desenvolvido por
Jerry Fodor, de “linguagem do pensamento”24 que, conforme será explorado mais adiante,
busca fundar o modelo lógico-proposicional numa linguagem básica, comum e inata nos seres
humanos, subjacente a toda cognição. Mas também se sugere aqui, sucintamente, uma terceira
hipótese de compreender a cognição na forma de sequência lógica. Esta abordagem inverte a
ideia de uma “linguagem do pensamento” subjacente a toda atividade cognitiva, ao propor
que o modelo lógico-proposicional seja uma simplificação abstrata da cognição, e não a
descrição de um processo constituinte de sua estrutura essencial. Ela supõe que os modelos
lógicos da cognição tenham sido criados a partir de uma analogia entre a cognição como um
todo e um de seus aspectos, que é o raciocínio lógico formal – o que poderia classificar esta
comparação como uma forma de metonímia, ou mais especificamente de sinédoque25. Isto é,
pelo fato de uma das capacidades cognitivas dos seres humanos ser o raciocínio lógico, esta
capacidade teria sido valorizada a ponto de ser tomada como sendo a cognição em si.
24
Language of Thought, ou “LoT”, na forma original, em inglês. Cf. FODOR 1975, 1981, 2008, e também
discutido, entre outros, GARDNER 1985, p. 83-86; BECHTEL 1988a. p. 54-57; THAGARD, 1988, p. 74 e
AYDEDE, 2010.
25
Tipo de metonímia em que se toma a parte pelo todo.
81
Esta terceira analogia, do processo produtivo com os conjuntos de regras lógicas, se combina
com a segunda analogia que foi apontada, entre a cognição e estas tais regras, e deste modo
permite pensar que a cognição tenha importância pelos resultados que possa produzir, dados
alguns insumos, mediante o uso de regras lógicas. Esta série de analogias pode ser expressa da
seguinte forma transitiva:
Primeira analogia: O funcionamento do computador é como a operação de regras
lógicas.
Segunda analogia: A cognição é como a operação de regras lógicas.
Terceira analogia: A operação de regras lógicas é como um processo produtivo.
Quarta analogia: O funcionamento do computador e a cognição são como processos
produtivos.
Conforme a quarta analogia, acima, – e de acordo com a orientação cognitivista – o
fato de a cognição ser análoga a um processo produtivo reforça os motivos para que ela possa
ser compreendida unicamente em seu aspecto lógico-racional objetivável. Isto porque este
último aspecto, ao ser, por sua vez, análogo a um processo produtivo, seria assim propício a
ser pensado como capaz de produzir os resultados esperados da cognição: decisões e ações
racionais obtidas segundo regras adequadas. Em outras palavras: seria em nome de um
26
Este ponto será retomado na seção 1.2.2, quando tratarmos do modelo lógico-proposicional na forma de
processamento de informações.
82
determinado conceito de produção que a cognição teria sido representada por um modelo
lógico-proposicional, e seria pelo mesmo motivo que, para compreendê-la, este modelo
dispensaria fatores como emoções, imaginação, relações com o ambiente, e o próprio corpo
humano (GARDNER, 1985, p. 6).
Assim podemos dizer que um algoritmo, para o caso em exame, é o conjunto finito de
regras bem determinadas27que governa a execução de procedimentos formais de manipulação
de símbolos, através do qual a transformação simbólica possa ser efetivada. Sendo assim, é
uma relação de instruções cuja obediência é considerada como necessária para que seja
executada uma operação com símbolos28. Portanto, o algoritmo não corresponde, para os
propósitos da presente investigação, a uma sequência abstrata de símbolos, ou a qualquer
processo de cálculo29, tão somente; mas, em vez disso, deve ser entendido como um conjunto
de regras a serem obedecidas por processos reais – como visto na definição de Rogers –, sem
as quais estes processos não produzem o que deles se espera. Mas devemos também levar em
consideração a seguinte definição: “Um algoritmo é um conjunto finito de regras que são
inequívocas e que podem ser aplicadas de forma sistemática a um objeto ou conjunto de
objetos para transformá-los de maneira definida e circunscrita.” (BERMÚDEZ, 2010, p. 14).
Isto é, as regras devem ser inequívocas de tal modo a permitirem transformações, já que
precisam ser seguidas para que tais transformações se efetivem. Assim, as regras algorítmicas
podem ser caracterizadas como uma forma transcendente e anterior aos processos materiais,
que os conforma à sua semelhança, e torna equivalentes, para seus propósitos, todos os
processos que a ela se submetem. Claro é que o algoritmo entendido como qualquer processo
de cálculo guarda alguma identidade com o que aqui se considera como sendo processos
materiais: por exemplo, um procedimento de cálculo deve obedecer a regras sem as quais os
valores atribuídos às variáveis – configurando assim um dado estado geral do sistema num
certo momento – não podem ser transformados nos resultados esperados. Se um procedimento
de cálculo é, por princípio, abstrato, isto é, não pressupõe suas aplicações a sistemas reais, por
27
A alusão à obediência a “regras bem determinadas” na definição de algoritmo é importante, e se encontra, por
exemplo, no verbete respectivo no Dicionário de lógica, de Leonidas Hegenberg (HEGENBERG, 1995, p. 4).
28
Uma abordagem mais completa desse caráter de efetividade será feita na seção 1.2.4, quando da exposição da
teoria de Marr sobre os três níveis de percepção e cognição.
29
A definição de algoritmo como de “qualquer processo de cálculo” é a que encontramos, por exemplo, no
Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 25).
84
30
Não se trata, neste caso, de fazer considerações sobre aspectos técnicos da relação entre algoritmo e a imagem
de máquina usada por Alan Turing expressa em seu já mencionado artigo de 1936.
31
Este adjetivo é usado para definir mais propriamente o que seria “mecânico” como referente às máquinas e não
a qualquer processo de interação de corpos.
85
produzido pela inteligência artificial em seus primórdios, o que será útil, sobretudo, para
explicar a crítica corpórea.
Sendo assim, devemos buscar a compreensão de como o algoritmo computacional, do
modo como presente na inteligência artificial capitaneada por Simon e Newell, se configurou
na forma do modelo lógico-proposicional da cognição.
Como já foi mencionado, Gardner afirma que Simon e Newell levaram ao Simpósio
do MIT, de 1956, seu artigo “Logic theoretical machine” (GARDNER. 1985, p. 25). Mas
devemos observar que na conferência de Dartmouth, semanas antes, uma declaração (citada
em GARDNER, 1985, p. 138 e MCORDUCK, 2004, p. 183-184) de John McCarthy, Marvin
Minsky,Nathaniel Rochester e Claude Shannon, e apresentada como pedido de bolsa à
Fundação Rockefeller, definia o propósito que inspirava a nascente disciplina hoje
denominada inteligência artificial – inspiração que, como será confirmado à frente, também
norteava Simon e Newell:
Propomos um estudo sobre inteligência artificial a ser realizado durante dois meses,
por dez homens, durante o verão de 1956 no Dartmouth College, em Hanover, New
Hampshire. O estudo será conduzido com base na conjectura de que cada aspecto do
aprendizado ou qualquer outro recurso da inteligência pode, em princípio, ser
descrito com tanta precisão que uma máquina pode ser feita para simulá-lo (tal como
citado em MCCORDUCK, 2004, p. 183-184).
Podem-se constatar nesta proposta indícios de que, desde seu início, a inteligência
artificial:
a) Não era uma busca apenas de criar uma inteligência que funcionasse nas máquinas,
mas que fosse semelhante à inteligência humana; e, assim
b) Baseava-se na hipótese de que a inteligência humana podia ser descrita com precisão.
Tais suposições são muito importantes para sugerir que a inteligência artificial já trazia em
sua gênese a concepção do modelo lógico-proposicional da cognição humana. Isto porque, se
a inteligência humana podia ser descrita com precisão suficiente para ser simulada
logicamente, a imagem que dela se fazia pressupunha sua redutibilidade à linguagem lógica.
Ou, dito de outra maneira, sua redutibilidade lógico-proposicional implicava a crença de que a
cognição seria essencialmente compreensível com este tipo de formalização, não podendo
haver nada fundamental em sua descrição que não coubesse na sua expressão simbólica.
Gardner relativiza esta crença, ao dizer que “alguns praticantes [da inteligência artificial]
querem simular os processos de pensamento humano, enquanto outros se contentam com
qualquer programa que leve a consequências inteligentes” (GARDNER, 1985, p. 140). Esta
diferença tem certa semelhança com uma classificação dicotômica proposta por John Searle,
86
entre inteligência artificial “fraca” e “forte” (SEARLE, 1980). Ambas são importantes porque,
de certo modo, selecionam o que seria o compromisso que, partindo da inteligência artificial,
constitui o modelo lógico-proposicional da cognição para as ciências cognitivas em geral.
Levemos em consideração a crítica que Searle faz à imagem computacional da cognição
humana:
Se a crítica que Searle faz contra a inteligência artificial é dirigida àquela que defende a
imagem da cognição como se fosse equivalente a um programa de computador, o que se
constata é que sua objeção é apresentada justamente à corrente da inteligência artificial que
não apenas integrou, como, segundo a suposição aqui adotada, liderou as ciências cognitivas
tradicionais. Sendo assim, o que ele denomina de “inteligência artificial fraca” não
corresponde à ideia de inteligência artificial que se examina neste trabalho. Por outro lado, o
que Searle batiza de “inteligência artificial forte” é exatamente o movimento tecnocientífico
estudado nesta seção. Os adjetivos “forte” ou “fraco” aplicados à inteligência artificial são
inadequados e nada esclarecem quando se tem o propósito de compreender o papel desta
disciplina na constituição das ciências cognitivas. Isto porque aquela atividade que Searle
chama de inteligência artificial fraca não pode ser adequadamente considerada como uma
disciplina das ciências cognitivas. Ela é, talvez mais apropriadamente, um recurso técnico
coadjuvante das pesquisas científicas em todos os campos. Em outras palavras, não se trata de
uma questão de grau, ou de força, da inteligência artificial, mas de atividades qualitativamente
diferentes. De todo modo, a nomenclatura empregada por Searle contribui para que se
esclareça o sentido da inteligência artificial para as ciências cognitivas. Ao permitir que
façamos diferenciação entre uma disciplina propriamente científica e algo que se aproxima
mais de uma técnica instrumental, favorece a caracterização da inteligência artificial científica
como ciência cognitiva. Contudo, como nem todas as pesquisas científicas em inteligência
87
Afinal de contas, o Logic Theorist (LT) poderia cm princípio ter funcionado por
força bruta (como o famoso macaco à máquina de escrever); mas nesse caso, teria
levado centenas ou mesmo milhares de anos para executar o que na realidade fizera
em poucos minutos. Ao invés disto, porém, o LT funcionava por procedimentos que,
de acordo com a equipe de Newell, eram análogos aos empregados por
solucionadores de problemas humanos, Entre os métodos usados pelo LT
encontram-se: substituição de um tipo de expressão por outro; um método de
destacamento (detachment), onde o programa trabalha de trás para a frente, de algo
que já foi provado para algo que precisa ser provado; e uma forma silogística de
raciocínio, onde se “ a implica 6” é verdadeiro, e “ b implica c” c verdadeiro, então
“implica c” é também verdadeiro.
Em um esforço adicional para sublinhar os paralelos entre a solução de problemas
pelos humanos e pela máquina, Newell e Simon realizaram vários experimentos com
seu programa Mostraram que se retirassem o registro de teoremas anteriores (com
base nos quais as soluções para novos teoremas eram construídas), o Logic Theorist
não conseguia solucionar problemas que resolvera anteriormente cm dez segundos.
Esta foi talvez a primeira tentativa de fazer um experimento com um computador
para ver se ele “responde” da mesma forma
que os seres humanos (GARDNER, 1985, p. 147).
Ao criar e processar o Logic Theorist, Newell e Simon mostraram que a IA era uma
possibilidade, senão uma realidade. Enquanto todas as afirmações anteriores tinham
sido, em um certo sentido, meros acenos, duas demonstrações fundamentais haviam
agora sido feitas: (1) os computadores podiam empenhar-se em um comportamento
que, se fosse exibido por humanos, seria inequivocamente considerado inteligente;
(2) as etapas pelas quais os programas passam no decurso da prova de teoremas
apresentam uma semelhança não trivial com as etapas observadas na solução de
problemas humanos (Ibid., p. 148).
Embora o General Problem Solver (GPS) tenha sido por fim abandonado porque sua
generalidade não era tão grande como os seus criadores haviam desejado, (...) o
programa pode ser considerado o primeiro a simular um espectro de comportamento
simbólico humano. O GPS também teve um papel importante no julgamento de
Simon e de Newell a respeito do empreendimento no qual eles estavam
engajados. Na sua concepção, toda inteligência envolve o uso e a manipulação
de vários sistemas simbólicos, tais como aqueles existentes na matemática ou na
lógica. No passado, tal manipulação havia sido feita apenas pelo ser humano dentro
dos limites de sua própria cabeça, ou com papel e lápis; mas, com o advento do
computador digital, a manipulação de símbolos tornou-se também domínio da
maquinaria eletrônica. (Ibid., p. 149-150 – grifo em negrito meu).
O mesmo autor resume a hipótese do sistema simbólico físico nos seguintes quatro
pontos:
Assim, podemos dizer que os sistemas simbólicos de Simon e Newell são físicos porque se
implementam nos limites próprios do universo material concreto. Mais precisamente, eles
funcionam de acordo com as limitações impostas por dispositivos como o computador ou o
cérebro – sem o que não se poderia dizer que funcionam. Mas, como se pode perceber
90
behaviorismo presente nos movimentos iniciais das ciências cognitivas, alguns autores
assinalam que a noção de processamento de informações seria, em parte, compatível com a
noção behaviorista de estímulo-resposta. Neste sentido, o que no modelo behaviorista seria
estímulo, nos modelos de processamento de informações seria assimilável pela ideia de input,
enquanto que a mesma correlação haveria entre resposta (no behaviorismo) e output (no
modelo de processamento de informações). É o que considera, por exemplo, D. W. Hamlyn:
Esta concepção é reforçada por Jerome Bruner, um dos principais formuladores da psicologia
cognitiva experimental nascente nos anos 1950: “No lugar de estímulos e respostas, inputs e
outputs” (BRUNER, 1990, p. 7). Admita-se ou não ruptura mais radical entre o modelo
behaviorista e o modelo de processamento de informações da psicologia cognitiva, a mudança
de noção norteadora ocorrida mantém a ideia de que há na cognição uma sequência temporal
irreversível ligando causas ao comportamento humano, ainda que na nova abordagem haja a
preocupação em se descrever o que acontece entre ambos – e isto será muito importante,
adiante. A descrição do que se passa entre os inputs e os outputs é o propósito da imagem
básica do processamento de informações apresentado por Barber (BARBER, 1988, p. 30), que
será comentado a seguir:
Input ou Output ou
estímulo resposta
Figura 2
Figura 3 – Fonte: GARDNER, 1996 [1985], p. 107, a partir do livro Perception and
communication, de D. E. Broadbent (Elmsford, N.Y.: Pergamon Press, 1958)
Tal fluxograma foi aplicado por Broadbent à percepção, e tem a forma de uma
sequência temporal – uma rota – de transformação e produção, ao longo da qual as
informações são fornecidas pelos sentidos, passam por etapas de armazenamento e por etapas
de filtragem, até que possam ser utilizadas na execução de ações.
A analogia que Bechtel invoca pode ser ilustrada através de um formato básico de fabricação
industrial padronizada e em massa, conforme o descrito na figura abaixo:
O objetivo de ilustrar a alusão de Bechtel é de detalhar um pouco mais a analogia que ele
propõe – com processos produtivos de bens e serviços –, no sentido de identificar algumas
semelhanças de tais processos com a imagem de processamento de informações adotada nas
ciências cognitivas e aplicada aos computadores digitais e ao funcionamento da cognição
humana. Embora não seja interesse deste trabalho buscar no modelo da fabricação industrial
em massa causas históricas para a adoção do modelo de processamento de informações nas
ciências cognitivas, constatamos que este paradigma (conforme o denomina Koren no livro
citado) possui características formais bastante coincidentes com aquelas que os cientistas
cognitivos pioneiros utilizaram para explicar a cognição. Podemos destacar no modelo as
seguintes propriedades:
a) Trata-se de um processo sequencial e normalmente irreversível, no tempo, de
transformação de elementos básicos (inputs) em elementos finais (outputs);
b) Pode ser classificado como um macroprocesso, por ser constituído de etapas ou
módulos que, como destaca Bechtel, têm eles mesmos seus próprios inputs e outputs
parciais;
c) Suas etapas podem consistir em subprocessos de naturezas diferentes, como de
transformação, transporte (ou transmissão), armazenamento etc.
d) Podem ser lineares ou paralelos, conforme as necessidades e particularidades da
produção;
e) As etapas ou módulos podem ser mais ou menos autônomos, ou “encapsulados”, no
sentido de serem em maior ou menor grau isoladas ou em relação ao processo como
um todo.
96
o exemplo dado por Koren (figura 4) de um processamento fabril em paralelo. Mas podem
surgir problemas para a utilização do modelo de processamento de informações paralelo na
cognição quando esta é compreendida de maneira menos simples. O que alguns autores
argumentam, como Francisco Varela e Evan Thompson (VARELA et al, p. 86 e 88,
THOMPSON & VARELA, 2001), é que o modelo conexionista, ainda que parta da noção de
PDP, torna de tal modo complexo o processamento cognitivo que este perde sua suposta
característica linear (linearidade esta ainda encontrada na figura 5), e que a cognição, assim,
seria melhor explicada mediante a aplicação de modelos que adotam a linguagem matemática
dos sistemas dinâmicos não-lineares33.
Outra questão relativa à aplicação da noção tradicional de processamento produtivo à
cognição diz respeito à autonomia seus módulos. Esta é discutida por Barber, fazendo
referência ao seu “modelo básico” representado na figura 2:
33
Este tema será retomado com maior minúcia nas sessões 2.1. e 2.3.
34
Uma extensa discussão a respeito do encapsulamento dos módulos e das informações é feita por Fodor
(FODOR, 1983).
98
cumprir? Para responder a estas questões, comecemos por analisar os seguintes comentários
de Jerome Bruner a respeito da utilização da noção de processamento de informações como
modelo para a cognição:
Este trecho traz algumas indicações importantes sobre que condições formais o
processamento de informações precisa cumprir a fim de que seja aplicável à cognição. As
principais delas são35:
1) O processamento de informações é uma cadeia de etapas e tarefas – ou módulos, como
já vimos – a serem realizadas tendo como matéria as informações (“mensagens”):
armazenar, recuperar, manipular, enumerar, ordenar, combinar, comparar – como já
descrito a partir das figuras 02 e 03 e discutido acima;
2) As atividades destes módulos são realizadas a partir de “instruções de uma unidade de
controle central”;
3) As informações devem ser bem definidas, não admitindo incerteza e polissemia;
4) Para garantir o que foi descrito nos itens anteriores, o processo deve ser planejado e
contar com regras precisas.
Todas as condições se referem ao que é necessário para que o fluxo possa ser
considerado um processo de transformação. Isto é, todas elas são inerentes à noção de
processamento enquanto tal – não importando, a princípio, a natureza de suas entradas e
saídas (ou inputs e outputs). Contudo, as condições 3 e 4 (esta, com respeito à necessidade de
“regras precisas”) concernem ao conteúdo do processo, ou seja, são condições aplicadas às
informações processadas. Vejamos mais precisamente, então, em que consiste o conteúdo do
processamento de informações, isto é, o que são seus inputs, seus outputs e o que exatamente
– e como – ele processa.
35
Cf. com a definição de algoritmo na seção 1.2.1.
99
Isto deveria ajudar a resolver a questão que nasce da polissemia – e equivocidade – da própria
palavra “informação”, cujo uso por parte de Shannon, ironicamente, pretendia ajudar a reduzir
a equivocidade de todas as demais palavras, e sinais. É o que já apontava Sloman antes de
propor a solução acima assinalada:
indagação seria o fato de que há muito que correntemente se fala, na linguagem técnica, em
“processamento de dados”, aparentemente no lugar de “processamento de informações”
(embora a expressão “processamento de dados”, como ramo de atividades técnicas na
sociedade, esteja sendo amplamente substituída no uso comum por “tecnologia da
informação” – o que não esclarece, contudo, a diferença entre os termos). Mas esta utilização
iria além de um ambiente técnico? Seria já predominante ao menos no campo teórico da
inteligência artificial? Seria de se esperar que fosse adotada também pelas ciências cognitivas,
como a psicologia ou a neurociência? Este é mais um conjunto de questões cujo exame
exaustivo escapa às possibilidades deste trabalho. Porém, cabem aqui algumas considerações
a respeito. Aparentemente, tem sido corrente nos trabalhos teóricos e nos usos técnicos da
inteligência artificial o emprego de “dados” no sentido de “informação sintática” e de
“informação” no sentido de “informação semântica” – para usar as expressões adjetivadas
propostas recentemente por Sloman (2011). O próprio Floridi o faria propositalmente (1999,
2004, 2005), consciente da necessidade desta diferenciação para a atividade prática de “gestão
de dados”:
Tal seria um exemplo claro de influência da tecnologia para a teoria da inteligência artificial –
e, por extensão, das ciências cognitivas. Viria ao mesmo tempo da prática de gestão de bancos
de dados em computadores (de uso sobretudo coletivo), como salienta Floridi, mas também da
utilização de bancos de dados na área de administração chamada “gestão do conhecimento”,
calcada numa hierarquia conceitual em cuja base está o dado e em cujo topo está o
conhecimento, este entendido como o conjunto de crenças necessárias para fundamentar
decisões (ações) de gestores organizacionais. Segundo esta concepção, o conhecimento é
produto do processamento (ou da combinação) de informações que possuam conteúdo
semântico que, por seu turno, têm como estrutura formal os dados. Um exemplo de
102
não tem seguido um padrão único, como por exemplo o da colaboração interdisciplinar, tal
como planejado na Iniciativa Sloan. Ademais, aqui se advoga, como já foi reiteradamente
afirmado, que a coesão das ciências cognitivas ocorreu com base no compartilhamento de um
modelo geral da cognição, de tal modo que cada disciplina, na orientação cognitivista, atuou
com certa autonomia, mas mantendo ainda assim compromissos epistemológicos e
paradigmáticos com as demais. Além disso, ainda, tem sido argumentado aqui a favor da ideia
de que a inteligência artificial exerceu liderança na constituição das ciências cognitivas.
Porém, Boden está sugerindo um outro aspecto da interconexão disciplinar nas ciências
cognitivas: o papel de influência que a linguística teve sobre as demais disciplinas. Na
verdade, este aspecto não deve ser considerado isoladamente. Em vez disso, ele deve indicar
que cada uma das disciplinas das ciências cognitivas influenciou as demais – e o conjunto
delas –, em maior ou menor grau. Como vimos na seção 1.2.2, a psicologia cognitiva foi a
responsável por fixar a noção da cognição como geração de comportamento mediante a
operação de um processo produtivo determinista, e isto contribuiu para que outras disciplinas
adotassem o mesmo pressuposto. Nesta seção exploraremos, pois, qual foi a contribuição
singular que a linguística proporcionou às ciências cognitivas. Veremos também como e por
que se justifica examinar as teses de David Marr na mesma seção.
E Boden já nos adianta o principal quanto a ambos os aspectos:
Partindo de outra afirmação – “Como a psicologia, a linguística teve que passar por
uma transformação, a fim de dar sua contribuição para as ciências cognitivas. A figura central
nessa transformação foi Noam Chomsky” (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 33) – é preciso
então caracterizar que transformação teria a linguística sofrido para integrar as ciências
cognitivas, graças à intervenção de Chomsky.
Segundo os mesmos autores, e Gardner (GARDNER, 1985, p. 196-207) mudando
uma tradição em que a linguística, até então, era um estudo meramente histórico, europeus,
como Ferndinand de Sausssurre, e radicados nos EUA como Franz Boas, Edward Sapir,
Roman Jakobson e Leonard Bloomfield, adotaram, ao longo da primeira metade do século 20,
uma pesquisa estrutural e experimental das línguas, que implicava uma análise fonológica e
morfológica. Já na década de 1950 foram iniciados estudos linguísticos com ajuda de
computadores, que contribuíram para uma intensificação de investigações sintáticas, como as
realizadas pelo professor de Chomsky, Zelig Harris. De acordo com Bechtel e Graham,
Assim, Chomsky foi à busca do que poderíamos chamar de estruturas mais essenciais
de toda linguagem, como afirma Gardner (GARDNER, 1985, p. 182-196). Seu propósito,
expresso em seu livro de 1957, Syntactic structures, foi identificar as propriedades das
sentenças, como fatos objetivos. Contudo, seu intuito foi mais radical ainda: determinar as
regras da língua. Segundo, Gardner:
106
1) O estudo da sintaxe (ou gramática) linguística pode ser feito com autonomia em
relação a outros aspectos da língua (como a semântica e a pragmática) (CHOMSKY,
2002 [1957], p. 14-17);
2) A linguística pode operar com autonomia em relação às demais disciplinas das
ciências cognitivas.
Tais propostas de autonomia têm implicações importantes para a presente
investigação. A primeira é no sentido de que revela uma crença de Chomsky na suficiência da
sintaxe para explicar o que ele considerava essencial, no sentido cognitivo, na linguagem. A
segunda – que decorre da primeira – é que a linguística poderia se integrar às ciências
cognitivas sem cuidar de outros aspectos da cognição que não o linguístico. Isto corrobora a
ideia aqui defendida de que, dado que uma disciplina das ciências cognitivas se comprometa
com determinada imagem compartilhada da cognição, pode perfeitamente atuar com
autonomia e, ainda assim, ser parte constituinte legítima deste campo científico. E estudar a
linguagem privilegiando sua dimensão sintática, como Chomsky, corresponde justamente a se
adotar o modelo lógico-proposicional na linguística. Mas a defesa desta suposição ainda exige
alguma argumentação. Sobretudo para deixar mais claro que sentido tem a valorização da
sintaxe nas ciências cognitivas, por meio da breve investigação aqui realizada sobre a
linguística gerativa.
Como primeiro passo de seu empreendimento, Chomsky – segundo Gardner – teria
tido necessidade de demonstrar as limitações dos métodos até então utilizados para estudar a
sintaxe. Mais que isso, seu intuito era expor que tais métodos – o de estados finitos e o
estruturalista – não eram capazes de explicar as sentenças aceitáveis a partir de regras. Sua
proposta alternativa teve então as seguintes características.
Por influência de Zelig Harris, Chomsky adotou a análise gramatical
transformacional, sustentada na ideia de que regras governam as transformações entre as
representações abstratas de sentenças. A linguística gerativa opera mediante um sistema de
regras formais matemáticas utilizadas para gerar as sentenças gramaticais, no qual as
transformações são procedimentos algorítmicos. De acordo com Gardner, o sistema funciona
da seguinte forma:
108
Nem mesmo Chomsky, é claro, sugeriu que os bebês nascem sabendo francês, ou
talvez inglês (...). Mas os seus conhecimentos de gramática universal, disse ele,
agem como um quadro que os guia para atender a determinados recursos e
distinções, na língua falada em torno deles. Na sintaxe como em fonética, o valor
específico dessas características distintivas varia entre línguas naturais: daí a sua
diversidade aparente. Deste ponto de vista, a criança é, na verdade, como um
cientista. Em vez de recolher dados por pura indução (o que é impossível), o
cientista formula teorias e hipóteses que sugerem o que procurar e onde procurar.
Isto, essencialmente, é o que o bebê tem que fazer ao aprender a sua língua materna.
A visão do falante/ouvinte como um testador de hipóteses vinha sendo sempre
implicada com o trabalho de Chomsky, mas bastante independentemente do
nativismo. Ela estava implícita em Syntactic structures, em sua alegação de que o
falante/ouvinte deve atribuir uma estrutura gramatical de muitos níveis, não
observável, às declarações, a fim de entendê-las (...).O que o nativismo de Chomsky
acrescentou (em 1965) à ideia amplamente atual do teste de hipóteses foi a alegação
de que os bebês (...) podem produzir suas hipóteses linguísticas com base em um
poderoso esquema teórico – um “dispositivo de aquisição de linguagem” –já
presente em suas mentes (Ibid., p. 647).
36
Suas objeções se dirigiam sobretudo às teorias de J. J. Gibson (GIBSON, 1979; CHEMERO, 2009).
111
no mundo; numa calculadora, corresponde à operação que ela deverá realizar (adição,
subtração, etc.). O nível algorítmico identifica o conjunto de instruções formais de
manipulação de símbolos que permitem a realização da tarefa, ou da transformação. Na visão,
corresponderia ao mecanismo que estrutura, nos órgãos da visão e no cérebro, o
processamento da imagem como informação; na calculadora, seria o nível em que se
descrevem os passos necessários para que a operação se realize. O nível de implementação
explica como se dá a realização do algoritmo no sistema físico. No processo da visão, ou na
calculadora, o terceiro nível é aquele em que o algoritmo é instalado nos respectivos suportes
materiais. O importante nesta implementação é que ela é suposta como sendo possível em
aparatos diferentes, a partir do mesmo algoritmo, o que revela a adesão de Marr às teses do
funcionalismo e da realizabilidade múltipla.
No caso da teoria de Marr, podemos dizer que o modelo lógico-proposicional se
decompõe nos dois primeiros níveis. Tanto no nível computacional quanto no algorítmico
encontramos a estrutura formal com que o cognitivismo buscou explicar a cognição humana
como independente dos corpos individuais, e de acordo com um processamento simbólico e
abstrato de informações desencarnado. Assim Gardner contribui para reforçar esta
constatação, referindo-se às teorias neurocientíficas de Marr: “Para entender como os
neurônios do sistema visual realmente executam suas tarefas, deve-se recorrer a princípios
matemáticos envolvidos na interpretação de imagens” (Ibid., 1985, p. 300).
Mas qual seria o modo com que Marr interagiu com as demais ciências cognitivas, ou
como as influenciou? Qual teria sido sua contribuição à fixação do modelo lógico-
proposicional no campo da neurociência? Ou, ainda, como a fixação deste modelo em sua
disciplina contribuiu para as ciências cognitivas como um todo?
A seguinte passagem de Gardner pode elucidar essas questões, ao aproximá-lo de
Chomsky:
Assim como Chomsky queria examinar a sintaxe em sua forma primitiva (não
contaminada pela semântica ou pela pragmática), Marr queria isolar ao máximo sua
análise do processamento visual da interferência do conhecimento do “mundo real”.
Mas Marr também buscava coerência com oque se sabe a respeito do funcionamento
do cérebro. Em cada nível de processamento examinava as evidências relevantes
sobre o funcionamento cerebral: modificava continuamente os algoritmos na
esperança de torná-los coerentes com as evidências psicofísicas e neurofisiológicas –
seja no nível das células individuais seja no dos lobos corticais. Assim, com um olho
no cérebro e o outro na implementação de algoritmos em um computador, Marr era a
personificação da ciência cognitiva interdisciplinar (Ibid., p. 306).
do artigo de McCulloch e Pitts de 1943 – que, como podemos agora verificar, foi um pioneiro
até mesmo das formulações de Marr –, quando se trata de conceber um nível de
funcionamento computacional da cognição aplicado ao cérebro, é preciso se levar em
consideração como se realiza este funcionamento. Em outras palavras, no caso do modelo
lógico-proposicional empregado na neurociência, se exige desta disciplina também explicar
como o modelo, de algum modo, se encarna no cérebro humano. Na inteligência artificial
também ocorre esta necessidade, mas então se apresenta uma diferença crucial: os programas
de computador, assim como as máquinas físicas de computar, são obras de engenharia, são
construídos pelo ser humano. Deste modo, os programas podem ser construídos para se
adaptarem aos computadores, e vice-versa. Contudo, quando se emprega a hipótese
computacional da cognição ao cérebro humano, não há a possibilidade de se construírem nem
o “software” nem o “hardware”. Assim, se exige do cientista cognitivo que explique como a
imagem lógico-proposicional da cognição humana pode ser compreendida como operando em
uma estrutura física natural que não foi por ele projetada nem produzida, e cujas leis de
funcionamento ele não domina. Por este motivo, se requer neste caso uma atuação
interdisciplinar efetivamente colaborativa, em que os especialistas em neurofisiologia e
neurobiologia auxiliem na formulação de hipóteses por parte do cientista cognitivo que
advoga o modelo lógico-proposicional.
Contudo, não devemos nos esquecer de que a preocupação com as limitações
estabelecidas pela dimensão física ao modelo lógico-proposicional já haviam sido salientadas
por Newell, quando da sua defesa da hipótese do sistema simbólico físico. Consideremos a
seguinte afirmação de Bechtel e Graham:
Enquanto Marr às vezes é retratado como tendo proposto que nós trabalhamos
exclusivamente a partir do nível mais alto, ele claramente enfatizou, também, as
limitações que vêm de baixo para cima, e as considerou em sua tentativa de explicar
o processamento visual (BECHTEL & GRAHAM, 1998, p. 70).
Isto sugere não apenas que a teoria de Marr se assemelha bastante a um sistema simbólico
físico, tal como o concebido por Simon e Newell, como também que o problema da
implementação não se apresentou, exclusivamente, para os cognitivistas estudiosos do
cérebro.
113
1.2.4. A questão da representação mental nas ciências cognitivas clássicas: a busca de uma
teoria da cognição a partir do modelo lógico-proposicional
Ainda podemos procurar auxílio na obra de referência The MIT encyclopedia of cognitive
sciences (WILSON & KEIL, org.). Ali não há, porém, o verbete “representation”;
significativamente para as investigações deste trabalho, onde ele deveria estar há uma
remissão a um verbete escrito por Barbara Von Eckardt, com o título de “mental
representation”, onde autora diz:
114
Desta passagem serão de grande importância para este trabalho os seguintes elementos:
a) A suposição de que uma determinada abordagem, o cognitivismo, seria a portadora
principal da noção de representação mental nas ciências cognitivas;
b) A representação mental, para este tipo de abordagem (para o cognitivismo), seria o
significado de símbolos manipulados (processados) através de dispositivos físicos
como computadores digitais;
c) Tal significado seria dado pela correspondência entre estes símbolos e o mundo.
O primeiro elemento deste rol situa historicamente a adoção da noção de representação na
dinâmica das ciências cognitivas: ele teria sido proposto pela abordagem chamada de
cognitivismo – como já foi verificado anteriormente quanto ao modelo lógico-proposicional.
Em seguida, deve-se estudar este ponto. Mas, antes, é preciso atentar para os aspectos
seguintes. O segundo elemento da afirmação de Varela e coautores corresponde ao que já
havia sido constatado das citações de Thagard e Von Eckardt sobre representação mental: a
representação se dá mediante procedimentos e manipulações em dispositivos físicos. Este
ponto também sugere que se comece a correlacionar informação no sentido de Shannon a
símbolos formais, e informação semântica a representação, no sentido cognitivista. Este seria
um caminho possível para explicar as relações entre processamento de informações e
representação nas ciências cognitivas. Veremos se é aceitável. O terceiro aspecto – o da
representação como correspondência entre símbolos e o mundo – será abordado mais à frente,
ainda nesta seção.
Para uma compreensão dos aspectos teóricos do cognitivismo, vejamos o que propõe
John Haugeland, filósofo das ciências cognitivas e, especialmente, da inteligência artificial:
116
Mas quais seriam os cientistas que utilizariam esta orientação? Se um traço importante do
cognitivismo é o pressuposto da cognição como processo, poderíamos associar este traço à
defesa da noção de processamento de informações como modelo para a cognição?
Varela et al consideram que o artigo já citado de McCullogh e Pitts, “A logical
calculus of ideas immanent in nervous activity”, de 1943, teria sido constitutivo das ciências
cognitivas e uma fonte de ideias precursoras do cognitivismo. Com efeito, encontramos neste
artigo a seguinte concepção de representação:
Esta é uma forma, bastante sintética, de afirmar que o dispositivo físico neuronal humano,
através de seu funcionamento segundo um esquema racional e lógico proposicional, tem a
capacidade de realizar representações. Pode-se perceber já em 1943 uma preocupação em
considerar o caráter representacional da cognição como base para explicar esta última, a partir
do funcionamento de dispositivos cognitivos que possam ser entendidos como
computacionais – como seria o caso do cérebro humano. O que está em questão, ao menos em
parte, é a capacidade da orientação cognitivista de explicar a cognição com base na noção de
representação. Ou, em outras palavras, trata-se de identificar o sentido de representação no
modelo lógico-proposicional. O cognitivismo teria como pressuposto que, como foi dito
acima, um dispositivo físico, dotado de um modo de funcionar racional, proposicional, lógico
e simbólico, seja capaz de realizar adequadamente a representação do mundo. Sobre isto,
voltam a dizer Varela e seus colaboradores:
117
Uma computação é uma operação realizada com símbolos (com elementos que
representam o que eles significam). A noção-chave aqui é a de representação ou
“intencionalidade”, o termo filosófico para aboutness37. O argumento cognitivista é
de que o comportamento inteligente pressupõe a habilidade de representar o mundo
como sendo de determinadas formas. Consequentemente, não podemos explicar o
comportamento cognitivo a não ser se assumirmos que um agente age representando
características relevantes de sua situação. O comportamento do agente será bem
sucedido na medida em que sua representação de uma situação for precisa
(permanecendo todos os outros aspectos iguais).
Essa noção de representação, pelo menos desde a falência do behaviorismo, não tem
sido controversa. O que é controverso é o próximo passo, qual seja, a afirmação
cognitivista de que a única forma pela qual podemos explicar a inteligência e a
intencionalidade é por meio da hipótese de que a cognição consiste na ação baseada
em representações fisicamente realizadas sob a forma de um código simbólico no
cérebro eu em uma máquina (VARELA et al, 1991,p. 40)
Entende-se desta passagem que, para seus autores, a representação como intencionalidade –
quer dizer, a representação como relação da cognição com o mundo que se quer conhecer e
sobre o qual se quer agir –, é um pressuposto importante do cognitivismo. Voltaremos à
questão da intencionalidade mais à frente, assim como às controvérsias que o cognitivismo –
como orientação principal das ciências cognitivas clássicas – suscita. Antes, exploremos
brevemente outras características do conceito de representação na versão clássica das ciências
cognitivas. Comecemos por notar que trabalhos recentes propõem nomes alternativos para o
cognitivismo. Estas novas denominações salientam outros aspectos da representação. Paul
Thagard, por exemplo, prefere denominar a corrente tradicional da cognição de um modo que
dá destaque à sua característica computacional:
William Ramsay também propõe seu batismo para o que chama de paradigma das ciências
cognitivas tradicionais, cujo caráter computacional também assinala; mas ele sublinha
também o fato de as representações neste modelo serem internas e simbólicas:
Nas ciências cognitivas houve algo como um paradigma central que tem dominado
os trabalhos em psicologia, linguística, etologia cognitiva e filosofia da mente. Esse
paradigma é comumente conhecido como a teoria clássica computacional da
cognição, ou TCCC39. O centro do paradigma clássico é sua postulação explicativa
central - representações internas simbólicas (RAMSAY, 2007, p. 2 – grifos meus)
37
A palavra aboutness não foi aqui traduzida tendo em vista ter sido consagrada na forma inglesa pelas
traduções brasileiras de artigos e livros que contêm o termo na filosofia e nas ciências cognitivas.
38
No original, em inglês, “computational-representational understanding of mind” (CRUM).
39
No original, em inglês, “classical computational theory of cognition” (CCTC).
118
As abordagens retrospectivas das ciências cognitivas que, como acabamos de ver, sugerem
outros nomes para sua corrente inaugural, afirmam que esta considera a representação, além
de mental, interna, simbólica e computacional. Num passo seguinte, relacionar estas quatro
qualidades da representação em pares afins nos permite compreender melhor sua utilização
pelas ciências cognitivas tradicionais. O fato de a representação ser considerada mental e
interna diz respeito a onde ocorre; ser simbólica e computacional corresponde a seu modo de
operar, onde quer que opere. Esta caracterização traduz um arcabouço teórico específico,
baseado no modelo lógico-proposicional: a Teoria Computacional da Mente, desenvolvida e
defendida sobretudo por Jerry Fodor (FODEOR, 1981b). Trata-se da tentativa de se
estabelecer uma teoria geral da cognição humana. Tendo como tema central a representação,
Fodor a compreende como um processo simbólico e computacional que ocorre de modo
interno à mente. Segundo Bechtel (BECHTEL, 1988b, p. 55), a Teoria Computacional da
Mente se preocupa com a “estrutura formal de símbolos na mente e com a maneira pela qual
eles são manipulados”. Para compreendermos melhor o sentido deste princípio, levemos em
consideração as palavras de Fodor:
40
Esta questão será retomada com maior profundidade na seção 2.2, quando for abordada a objeção ontológica
da cognição corpórea ao cognitivismo.
41
Esta questão será examinada novamente na seção 2.2 quando se discutirá a noção de solipsismo metodológico,
de Fodor, no âmbito das críticas da cognição corpórea ao que ela chama de objetivismo no cognitivismo.
120
maneira, fica mais bem compreendida a citação de Fodor apresentada no final da seção 1.2.2,
de que a função dos mecanismos cognitivos é a transformação de representações. A cadeia
simbólica é, portanto, um processo de transformação – um processo produtivo. Tal
compreensão da cognição como processo produtivo computacional-simbólico, por parte da
Teoria Computacional da Mente, irá ajudar a se estabelecer, neste trabalho, a relação entre as
noções de representação e de processamento de informações nas ciências cognitivas clássicas
e, deste modo, precisar as características do modelo lógico-proposicional como núcleo
unificador.
No início deste trabalho, foi afirmado que as ciências cognitivas constituem uma
unidade multidisciplinar em virtude da admissão, por parte dos cientistas que as praticam, de
certos compromissos comuns. Segundo a perspectiva aqui defendida, a partir do trabalho de
alguns autores, este compromisso pode ser descrito como consistindo, sobretudo, na utilização
do modelo lógico-proposicional – oriundo da tecnologia e da inteligência artificial – para
explicar a cognição. Após se descreverem as linhas gerais da adoção deste modelo nas seções
1.1.4 e 1.2.1, foi defendido que uma outra noção, a de representação, é comumente
apresentada como essencial nas ciências cognitivas clássicas. Mas que papel esta noção
exerce no modelo lógico-proposicional? Por que uma teoria geral da cognição, baseada no
modelo lógico-proposicional, apelou para o conceito de representação? Por que alguns autores
enfatizam ora o processamento de informações, ora a representação, ao se utilizarem do
modelo lógico-proposicional? Deve-se assumir então a tarefa de melhor esclarecer o
significado de processamento de informações e representação mediante seu uso nas ciências
cognitivas, a partir da ideia de que ambas as noções são aspectos, compatíveis e
complementares entre si, de uma mesma orientação.
Um importante passo será entrelaçarmos as noções de processamento de informações
e representação observando aplicações mais específicas destas nas ciências cognitivas,
considerando a Teoria Computacional da Mente. Um emprego relevante destas noções na
cognição é a previsão de comportamentos. Isto é, a utilização delas na compreensão da
cognição permitiria que, uma vez que esta seja considerada como um processo formal de
produção, seus outputs possam ser predeterminados em função das variáveis (inputs)
aplicadas. Exatamente como em um programa de computador. É o que descrevem Terry
Winograd e Fernando Flores no trecho abaixo:
121
Nas últimas décadas, formas simples de psicologia cognitiva têm sido contestadas
pelos defensores da "psicologia de processamento de informações", que afirmam
que sistemas cognitivos podem ser mais bem compreendidos por analogia com
computadores programados. As premissas por trás dessa abordagem podem ser
resumidas como se segue:
1. Todos os sistemas cognitivos são sistemas de símbolos. Eles alcançam sua
inteligência simbolizando situações externas e internas, e eventos, e por meio da
manipulação destes símbolos;
2. Todos os sistemas cognitivos compartilham um conjunto básico subjacente de
processos de manipulação de símbolos;
3. A teoria da cognição pode ser expressa como um programa, respeitado um
apropriado formalismo simbólico, de tal forma que o programa, quando executado
no ambiente adequado, irá produzir o comportamento observado.
Esta abordagem não é incompatível com modelos não computacionais anteriores.
Em geral, as regras que – se postula – regem recorrências poderiam ser embutidas
em programas apropriados. Neste sentido, um programa é um sistema formal que
possui um certo número de variáveis, e que pode ser manipulado (pode funcionar)
para gerar previsões sobre o comportamento (outputs) de alguns sistemas naturais
aos quais se destina servir de modelo. Na medida em que o comportamento previsto
corresponde ao observado, a teoria é validada. (WINOGRAD & FLORES, 1986, p.
25 – grifo meu).
Anteriormente foi enfatizado que, para alguns autores, não teria havido ruptura radical entre
os propósitos do behaviorismo e do processamento de informações humano. É o que
reafirmam Winograd e Flores, na passagem acima reproduzida. Segundo esta concepção, a
intenção de prever o comportamento humano – e, talvez, prescrevê-lo – teria provocado a
adoção de um modelo descritivo e explicativo para o que, na abordagem behaviorista, estaria
oculto em uma insondável caixa preta. O texto de Winograd e Flores acima possui aspectos
importantes para a presente análise:
a) A psicologia de processamento de informações utiliza a analogia de computadores
programáveis;
b) Esta analogia se justifica porque todos os sistemas cognitivos são concebidos como
sistemas formais de manipulação de símbolos – isto é, sistemas computacionais;
c) Aplicadas variáveis ao sistema cognitivo formal de manipulação de símbolos, o
comportamento dele decorrente pode ser previsto.
O que os autores defendem é que o processamento de informações é uma variação do modelo
que tem como núcleo uma sequência formal de símbolos à qual são aplicáveis valores
mutáveis e que, graças a seu formalismo, permite que sejam obtidos comportamentos
previsíveis a partir destes valores. Se este entendimento estiver correto, eles acabam de
confirmar que o modelo lógico proposicional serviu para a elaboração da Teoria
Computacional da Mente – que se baseia na suposição da cognição como uma cadeia formal
simbólica e é um modelo de representação, segundo Fodor – e comporta o processamento de
informações. Além disso, algumas pistas deixadas por Winograd e Flores sugerem
122
A visão de Pylyshyn é coerente com a hipótese aqui defendida de que tanto o processamento
de informações como a Teoria Computacional da Mente são modos de compreender a
cognição como transformação de representações, mediante uma sequência formal de
operações – um processo –, a partir de estados iniciais, produzindo comportamento. Em
outras palavras, tanto a noção de processamento de informações, quanto a Teoria
Computacional da Mente decorrem da adoção de um modelo geral para a cognição: o modelo
lógico-proposicional. Além disso, Pylyshyn chama o aspecto formal do processo de “estrutura
de dados”, o que corroboraria nossa anterior suposição – seguindo Floridi – de que
“informação”, no sentido formal, sintático, pode ser adequadamente substituída por “dado”.
Mas talvez um resumo mais perfeito da associação entre processamento de informações e
representação esteja em Ramsay:
Se para Simon uma das acepções para “representar” é armazenar informação, para outro
cientista cognitivo, como Sloman, representar pode ser carregar, ou expressar, informação.
Sua abordagem é, também, um exemplo de uma acepção mais ampla de processamento de
125
Por outro lado, em vez de divergência, podemos apontar convergência entre as acepções de
“representação” usadas por Simon e Sloman, ao conceber que, para o modelo de
processamento de informações, “armazenar” não teria sentido diferente de “portar”, ou
“expressar”. Todos seriam casos em que a representação contém informação: pode recebê-la,
transportá-la, guardá-la e fornecê-la quando necessário ao processo. Mas a que sentido de
“informação” Simon e Sloman se refeririam? A seu sentido meramente formal, estrutural – o
“sentido de Shannon” –, ou a seu sentido signficativo, semântico? Busquemos a resposta nas
palavras dos autores. Simon diz que as informações são recebidas pelos órgãos dos sentidos e
permitem que sejam produzidos outputs motores e verbais a partir delas. Sloman afirma que
um usuário pode tomar uma representação (portadora de informação) para expressar algo
remoto. Numa primeira apreciação, somos tentados a afirmar que ambos se referem à
informação com conteúdo semântico. Afinal, Simon fala em produção de comportamento a
partir de percepções, e Sloman em uma ação de expressão, em que a informação se refere a
algo que não ela mesma. Estes efeitos são associados à informação dotada de conteúdo, como
vimos anteriormente. Porém, entendemos também que a informação com conteúdo deve
obedecer a algumas regras formais para que seja capaz de conduzir seu conteúdo. Com base
nisto, somos levados a concluir que ambos os aspectos da informação devem ser considerados
no processamento de informações, ao menos naquele descrito por Simon e Sloman. Dito de
outro modo, os aspectos formais da informação – tais como presentes nas preocupações de
Shannon e George Miller – seriam condições para que a informação seja tomada como
matéria de transformações no modelo de processamento de informações. Ou ainda, os
aspectos sintático e semântico seriam níveis de análise, como propõem Stillings et al:
126
Isto é, para estes autores, o nível formal do processamento de informações explicaria como se
produz a cognição, e o nível comportamental explicaria o que se produz através da cognição.
Ambos seriam níveis indispensáveis à compreensão do modelo de processamento de
informações aplicado à cognição. Além disso, segundo os mesmos autores, “a análise dos
sistemasao níveldo conhecimento eao nível formal, e o uso doconceito de representação
para unir estes níveis, distingue mas ciências cognitivas (incluindo ciência da computação)
de outras ciências (STILLINGS et al, 1985,p. 8 – grifo meu)”.42 Esta proposta de utilizar o
conceito de representação para unir os níveis formal e comportamental de análise vem ao
encontro da seguinte abordagem que Varela, Thompson e Rosch fazem do cognitivismo:
42
Os autores, no mesmo livro, ainda consideram outros níveis de análise da cognição, como o nível físico. Para
abordagens alternativas e mais extensas dos níveis de análise na cognição, v. NEWELL (1981), STICH (1983),
FODOR (1987) e MARR (1982).
127
O que eles afirmam é que a sintaxe, para o cognitivismo – o que pode ser aplicado à Teoria
Computacional da Mente –, é a forma de operar do pensamento, embora a representação tenha
como conteúdo valores semânticos. Este paralelismo próprio da representação seria uma
propriedade intrínseca a ela que a permitiria unir os níveis formal e comportamental da
análise da cognição como processamento de informações. Isto porque a face formal, ou
sintática, da representação articula-se com o nível formal da informação, enquanto a face
semântica da representação articula-se com o nível comportamental da informação. É por esta
razão que, como já foi dito mais de uma vez anteriormente, podemos pensar que o
processamento de informações seja um processo de transformação de representações. Ou, em
outras palavras, que o modelo lógico-proposicional possa absorver o conceito de
representação no interior da tentativa de se constituir uma teoria geral da cognição.
A esta altura, já se pode apresentar um resumo do que foi dito, propondo que alguns
aspectos da relação entre processamento de informações e representação em suas aplicações
nas ciências cognitivas clássicas sejam considerados. São eles:
1) Se há alguma unidade nas ciências cognitivas, esta é proporcionada pelo compromisso
de cientistas de diversas disciplinas afins em torno de compromissos, em torno do
modelo lógico proposicional da cognição – sendo que uma das variações deste é o
processamento de informações;
2) A noção de processamento de informações traz inspiração tecnológica, através da
inteligência artificial, e tem como principal característica consistir em um processo de
transformação de inputs em outputs cognitivos;
128
2. A COGNIÇÃO CORPÓREA
constituem; e aquele voltado para assimilar o sentido de cada uma destas frentes em
particular. A ênfase do primeiro tipo é exigida, em especial, para a compreensão dos
processos através dos quais contextos sociais e conceituais teriam embasado, ou até mesmo
estimulado, a unificação da cognição corpórea. O segundo tipo de ênfase dirige-se, sobretudo,
às referências apresentadas nas argumentações dos próprios autores de cada uma das
abordagens – sendo, assim, voltado ao que é mais específico, e não necessariamente
comprometido com uma postura unificadora. Tal diferença será assinalada sempre que
necessário. Esta dupla perspectiva se coaduna com a hipótese defendida neste trabalho de que,
embora uma forma geral da orientação corpórea seja patente, sua compreensão mais completa
não prescinde da atenção a certas particularidades das frentes relativamente autônomas que a
compõem.
Em suma, esta seção se ocupará, orientada pelos dois fios condutores explicitados, de
questões como as seguintes: de que conceitos, controvérsias e linhas de pesquisa a cognição
corpórea partiu para contestar o cognitivismo? Como transformou as produções científico-
filosóficas nas quais que se baseou? Que particularidades – mas também que traços comuns,
ou de união – se podem perceber nas diferentes formas como as influências foram recebidas
pelas abordagens que constituem hoje a cognição corpórea?
Porém, outra forma de considerar as influências recebidas pela cognição corpórea deve
ser mencionada: trata-se de sugerir que os autores que adotaram esta orientação nas ciências
cognitivas vêm promovendo uma síntese de diversas ideias que se manifestaram em vários
campos do conhecimento, sobretudo, no século 20. São ideias que, por terem tido origem em
diversos domínios, não eram usualmente aproximadas e articuladas. Sendo assim, um modo
de compreender o surgimento da cognição corpórea é caracterizá-la como a reunião e
transformação destas ideias no contexto das ciências cognitivas. A partir desta perspectiva,
surge um duplo desafio: primeiramente, entender por que motivos e como essas ideias têm
sido introduzidas nas ciências cognitivas – com a característica suposta de contribuírem para
rejeitar as premissas do cognitivismo –; e, em segundo lugar, explicar de que modo a
heterogeneidade destas ideias não tem sido empecilho para que a cognição corpórea não
apenas as utilize de forma coerente, mas também o faça para manter o campo das ciências
cognitivas dotado de unidade na sua perspectiva.
Em favor do enfrentamento deste duplo desafio existe a possibilidade de que estas
ideias sejam ser classificadas conforme grandes grupos de atividades. Tal procedimento tem a
vantagem de reconhecer que as influências da cognição corpórea foram desenvolvidas em
contextos específicos, a partir de atividades intelectuais de naturezas diversas, o que permite
131
identificar com maior facilidade que diferenças de linguagem tiveram de ser superadas e,
assim, como afinidades puderam ser estabelecidas. Além disso, a identificação de um nível
mais geral de diferenças recomenda que os antecedentes históricos da cognição corpórea aqui
abordados sejam tipificados, principalmente, como de natureza filosófica e científica. Por
fim, no campo científico, os antecedentes deverão ser classificados em dois tipos, o que
resulta no seguinte agrupamento:
a) Biofisiológicos – que abarcam as diversas iniciativas científicas de explicar a origem
da vida, as diferenças entre seres vivos e não vivos, e as bases biológicas e
neurofisiológicas da cognição humana, além de perspectivas na neurociência
desafiadoras do cognitivismo, como o conexionismo;
b) Filosóficos – que correspondem sobretudo a posicionamentos críticos ao racionalismo,
ao logicismo e às correntes que disputam os desdobramentos do conceito brentaniano
de intencionalidade – mas também alcançam questões como o reducionismo, a relação
entre seres vivos e máquinas e mesmo a natureza da própria ciência, manifestando-se
de maneira particular na questão da percepção;
c) Psicolinguísticos – que reúnem estudos científicos sobre comportamento e linguagem
humanos, incluindo os culturais e multiculturais.
A cognição corpórea recebeu também influência de cientistas computacionais que
produziram críticas ao cognitivismo internas à própria inteligência artificial. Esta influência,
todavia, é mais recente que as demais, podendo ter sido já motivada pelos mesmos trabalhos
que anteciparam a cognição corpórea, e até por esta última – o que será esclarecido e
analisado ao final da seção.
Mas é preciso notar também que em muitas atividades precursoras da orientação
corpórea domínios como os acima relacionados se entrelaçaram. Alguns exemplos são
bastante notáveis. Sobretudo no caso dos antecedentes que envolvem questões biológicas,
encontram-se preocupações ontológicas e epistemológicas importantes – como veremos no
que diz respeito aos conceitos de auto-organização, complexidade e emergência. De fato, os
autores da cognição corpórea herdaram interesses filosóficos muito semelhantes aos que
moveram os criadores de tais conceitos. Ficará patente, também, como na abordagem
fenomenológica de Merleau-Ponty a respeito da percepção e do comportamento – e bastante
influente sobre certos autores da orientação corpórea – já se incorporavam temas provenientes
da biologia e da neurologia. Mas o que estes exemplos também confirmam é que os principais
problemas que resultaram na cognição corpórea foram enfrentados a partir de cada um dos
três enfoques aqui considerados, por autores que os tinham como atividade principal – o que
132
lhes confere suficiente particularidade. Por outro lado, os três enfoques não serão aqui
apresentados de forma estanque ou sucessiva. Tendo em vista as características da formação
da cognição corpórea, a exposição nesta seção necessitará mencionar os três tipos de
influência de maneira às vezes alternada, e frequentemente combinada.
Serão ainda mencionados antecedentes culturais da cognição corpórea, mas a atenção
a eles será breve, tendo em vista sua importância ser relativamente menor face aos problemas
discutidos nesta pesquisa. Por outro lado, esta influência cultural será rapidamente abordada
quando da menção a atividades institucionais que fomentaram a cognição corpórea – como,
por exemplo, a Lindisfarne Association43 e o Biological Computer Laboratory44. Aspectos
políticos respectivos serão tratados, também com brevidade, no interior das controvérsias
teóricas e das situações institucionais.
O exame realizado nesta seção não terá como ponto de partida, contudo, o mais
remoto dentre os antecedentes históricos da cognição corpórea a serem abordados. Inicia-se
“no meio do caminho”, tendo como referência um mesmo conjunto de atividades coletivas
que, segundo a premissa adotada neste trabalho, deu início ao processo que culminou com a
criação das ciências cognitivas: as Conferências Macy e o Simpósio Hixon. Iniciar o presente
exame por estes eventos se justifica porque neles se estabeleceu de maneira decisiva um
debate do período subsequente: aquele que, de um lado, defendeu, como já foi tratado no
primeiro capítulo, o processamento simbólico de informações como imagem mecanicista da
cognição humana e, de outro, buscou romper com esta imagem não só em sua forma lógico-
proposicional da cognição, mas também em sua modalidade reducionista dos processos
orgânicos em geral a leis físicas subjacentes, quer no cérebro ou no corpo. Já se abordou no
capítulo 1 deste trabalho a questão da redução da cognição a processos mecânicos, tanto os
simbólicos, como os físicos. Nesta seção será discutido como os precursores da cognição
corpórea colocaram em questão ambas as imagens mecanicistas da cognição.
Isto, evidentemente, equivale a dizer que a cibernética foi crucial para a formação da
orientação corpórea – e não apenas por ter contribuído para o nascimento das ciências
cognitivas, como foi visto nas seções 1.1.2 e 1.1.3. Mais precisamente, uma segunda geração
do movimento cibernético – doravante Segunda Cibernética – deu origem a conceitos e
debates que, ao longo de alguns anos, e mediante sua circulação em diversos meios
científicos, terminaram por produzir forte influência nos autores da orientação corpórea. Além
43
Associação fundada por William Thompson em 1972, no estado norte-americano de Nova York, que teve
papel direto na publicação de obras seminais da cognição corpórea, cuja importância será adiante detalhada.
44
Laboratório fundado por Heinz Von Foerster na Universidade de Illinois (1958-1975), cujas características e
influências sobre a cognição corpórea serão a seguir especificadas.
133
disso, a segunda fase da cibernética deve grande parte de suas diferenças em relação à
primeira fase a produções de autores anteriores que, graças também a esta intermediação, se
tornaram fundamentais para a formulação da cognição corpórea45. Além disso, começar o
presente estudo pela segunda fase da cibernética está em conformidade com a suposição de
que o mesmo conjunto de atividades científicas que deu origem às ciências cognitivas já
continha as sementes da cognição corpórea, e que isto é essencial para compreender mais
claramente esta última como oriunda da dinâmica interna do campo científico interdisciplinar
que integra.
De acordo com o relato de Francisco Varela,
A fase cibernética das ciências cognitivas produziu uma incrível variedade de
resultados concretos, além de sua longa (e muitas vezes subterrânea) influência.
Alguns deles são:
• a utilização da lógica matemática para compreender o funcionamento do
sistema nervoso;
• a invenção de máquinas de processamento de informação (como
computadores digitais), constituindo a base da inteligência artificial;
• o estabelecimento da metadisciplina da teoria dos sistemas, que deixou
marcas em muitos ramos da ciência, como a engenharia (análise de sistemas,
teoria do controle), biologia (fisiologia da regulação, ecologia), ciências
sociais (terapia de família, antropologia estrutural, gerenciamento, estudos
urbanos), e economia (da teoria dos jogos);
• a teoria da informação como uma teoria estatística do sinal e de canais de
comunicação;
• os primeiros exemplos de sistemas auto-organizados.
A lista é impressionante: temos a tendência de considerar muitas dessas noções e
ferramentas como uma parte integrante de nossas vidas. No entanto, nenhuma delas
existia antes desta década formativa, e foram todas produzidas por intenso
intercâmbio entre pessoas de origens amplamente diferentes: um esforço
interdisciplinar especialmente bem sucedido. (VARELA, 1992, p. 237)
.
O que Varela chamou de “fase cibernética das ciências cognitivas”, no texto acima,
ainda não é considerado, neste trabalho, como um período em que as ciências cognitivas já
estivessem constituídas. Estas, como já se argumentou no primeiro capítulo, tiveram início na
segunda metade da década de 1950. A fase referida por Varela é anterior – mas a menção a
ela é pertinente, desde que assumida, justamente, como aquela na qual se deram os fatos que
nesta pesquisa são tidos como cruciais na formação não só do cognitivismo, mas também da
cognição corpórea. Dentre os resultados da cibernética apontados acima por Varela, aqueles
correspondentes à utilização da lógica matemática na compreensão do sistema nervoso, à
engenharia e ao gerenciamento, assim como ao processamento e à teoria da informação, já
foram apontados neste trabalho como constitutivos do cognitivismo. Mas aqueles referentes à
teoria dos sistemas e suas aplicações quanto à vida e à ecologia, e à auto-organização,
45
Um destacado exemplo desta classe de mediação seria como se deu a transmissão da noção de sistema,
sobretudo a partir do trabalho de Ludwig Von Bertalanffy, da Segunda Cibernética para a cognição corpórea.
134
Este conjunto de argumentos e pesquisas apontado por Varela como desafiadores dos
pressupostos do cognitivismo ainda não constituía a cognição corpórea, que somente se
46
Com a exceção de autores como Ashby.
47
Considera-se aqui “eventos conceituais” as publicações de teorias, e “eventos sociais” as atividades coletivas
promovidas com o propósito de debate filosófico e científico.
48
Para evitar equívocos, no texto deste trabalho não será usada a expressão “segunda geração da cibernética”,
como é feito por alguns autores (v., por exemplo, PICKERING, 2010) – a não ser em citações nas quais não haja
risco de que seja compreendida com relação à idade dos autores envolvidos. Em seu lugar, serão empregadas
expressões como Segunda Cibernética, segunda fase da cibernética, segunda etapa da cibernética ou cibernética
de segunda ordem.
49
Tem também relevância, para a cibernética como um todo, o grupo informal denominado “Ratio Club”, que
reuniu, de 1949 a 1958, entre outros cientistas britânicos, Ashby, Donald McKay e William Grey Walter – mas
também Alan Turing (DUPUY, 1996 [1994]; MCCORDUCK, 2004; HUSBANDS et al, 2008). Contudo, está
por ser explorada a influência do “Ratio Club” para as teses que inauguraram a Segunda Cibernética, o que se
justificaria, ao menos, pela a presença, no grupo, de Ashby e Grey Walter.
50
É importante acentuar que este título somente se estabeleceu após a 9ª conferência.
135
consubstanciaria três décadas depois. Parte deles corresponde justamente ao que se veio a
denominar Segunda Cibernética.
Em resumo – e com atenção à sua importância para a origem da cognição corpórea –,
podemos dizer que a Segunda Cibernética teve as seguintes características principais (VON
FOERSTER, 1979; DUPUY, 1966 [1994]; FROESE, 2010 e 2011):
1) Apresentou-se como uma cibernética de segunda ordem, na medida em que se aplica
ao conhecimento e ação humanos – inclusive à própria cibernética –, no que evidencia
um caráter de circularidade de observação e, sobretudo, o papel ativo do sistema
observador;
2) Dedicou-se, mais do que a “primeira” cibernética, às especificidades dos chamados
sistemas biológicos – e não só ao controle destes, mas ao crescimento e ao
aprendizado;
3) Aprofundou preocupações metafísicas da primeira cibernética, adotando postura
crítica antirreducionista ao rejeitar a imagem mecanicista dos seres vivos51.
Sobretudo da segunda característica – mas com interferência das outras – decorrem
dois fatos de especial importância para a identificação dos antecedentes da orientação
corpórea: em primeiro lugar, a participação da Segunda Cibernética nestes antecedentes deu-
se principalmente a partir de questões de natureza biofisiológica (para utilizar a classificação
dos três tipos de influência anteriormente proposta); em segundo lugar – o que decorre do
primeiro aspecto –, a influência da Segunda Cibernética se efetivou predominantemente sobre
a abordagem aqui denominada corpóreo-enativista, que é examinada na seção 2.3 (VARELA,
1996; BOURGINE & STEWART, 2004; FROESE & STEWART, 2010; FROESE, 2011).
Não vem de outra motivação o trecho acima reproduzido de Varela. A abordagem corpóreo-
enativa, além de ser considerada neste trabalho – conforme se buscará justificar mais adiante,
e especialmente na seção subsequente – como pioneira da orientação corpórea, distingue-se
das demais por ter nascido e se desenvolvido no âmbito de pesquisas dedicadas a explicar a
natureza dos organismos vivos, de sua autonomia e reprodutibilidade, e os processos
cognitivos como indissociáveis desta natureza. Sendo assim, podemos afirmar que a
orientação corpórea teve como primeiro impulso questionamentos de caráter biológico – ainda
que fortemente impregnados de determinadas preocupações filosóficas – ao cognitivismo.
Dito de outra forma, e como ficará mais evidente à frente: foi a partir de atividades de
pesquisa no campo da biologia, direcionadas já em grande parte ao tema da cognição, e
51
A pesquisa com redes neurais, que pode ser considerada parte da Segunda Cibernética, tem traços, contudo,
reducionistas.
136
ocorridas nos anos 1960 e 197052, que se gestaram os primeiros passos do que, nas duas
décadas seguintes, se afirmou como sendo a orientação corpórea das ciências cognitivas.
Contudo, e como já foi de outra forma advertido acima, o reconhecimento da
centralidade e da antecedência do campo biofisiológico nas bases da orientação corpórea não
deve sugerir, de modo algum, que ele tenha exercido sua influência isoladamente da filosofia
e da psicolinguística. É preciso assinalar que, entre outras interações, as ideias precursoras da
cognição corpórea no campo da biologia não se engendrariam sem fortes provocações
filosóficas, e que, além disso, as influências de origem psicolinguística foram intensamente
inspiradas por questionamentos ontológicos e epistemológicos, assim como por resultados de
pesquisas biológicas, fisiológicas e neurológicas. Estas interações antecipam um tema que
será examinado na próxima seção: o modo característico de como a multidisciplinaridade se
efetiva na orientação corpórea. Isto é, neste momento já se anuncia e a seguir aprofundaremos
como na orientação corpórea – e acabou de ser dito que isso já acontecia desde suas origens –
certas atividades e reflexões, tradicionalmente desenvolvidas por especialistas circunscritos a
disciplinas isoladas, tendem a conviver nos trabalhos dos mesmos cientistas. Mais
precisamente: enquanto nas ciências cognitivas tradicionais a multidisciplinaridade tinha
como característica desejada (vide, por exemplo, declarações citadas de Frank Fremont-Smith
no capítulo 1, além do Relatório Sloan), ou efetivada (vide sobretudo a iniciativa Sloan), a
interdisciplinaridade – isto é, a colaboração entre pesquisadores de diferentes disciplinas53 –,
na cognição corpórea práticas científicas e filosóficas diversas, normalmente circunscritas a
tradições disciplinares mais ou menos fechados, são frequentemente exercidas pelos mesmos
autores.
Feitas estas ressalvas, reconhecer que as origens mais imediatas da cognição corpórea
já se encontravam, ao menos em parte, na cibernética, envolve três constatações principais
sobre a dinâmica histórica correspondente:
1) A partir da cibernética, dois caminhos divergentes teriam se constituído (FROESE,
2010, 2011): um, mais imediatamente, com a formação concomitante das ciências
cognitivas e de sua corrente inaugural cognitivista; o outro, com a Segunda
Cibernética e seus desdobramentos na direção de alguns dos principais pressupostos
da cognição corpórea – o que nos leva a supor um conflito em parte latente, a ser mais
52
Aqui são referidas sobretudo as pesquisas desenvolvidas no Chile neste período por Humberto Maturana e
Francisco Varela.
53
Alguns polímatas importantes como Warren McCulloch, John Von Neumann e Norbert Wiener foram
propriamente precursores das ciências cognitivas, e não seus praticantes, enquanto um outro como Herbert
Simon contribuiu para este campo mais efetivamente nos limites da disciplina que ajudou a criar, a IA.
137
Tal como acontece com toda ideia nova na ciência e em outras áreas, o conceito de
sistema tem uma longa história. Mesmo considerando os casos em que o termo
"sistema" em si não tenha sido enfatizado, a história deste conceito inclui muitos
nomes ilustres. Na "filosofia natural", podemos relacioná-lo com Leibniz, com
Nicolau de Cusa e sua coincidência de opostos, com a medicina mística de
Paracelso, com a visão da história de Vico e Ibn Khaldun como uma sequência de
entidades ou "sistemas" culturais, e com a dialética de Marx e Hegel, para citar
apenas alguns nomes de uma rica panóplia de pensadores (VON BERTALANFFY,
1968, p. 11).
Pelo fato de, em seguida a esta passagem, no mesmo texto, Kant afirmar que a unidade
e a articulação que se empenha em caracterizar se aplicam a sistemas de conhecimento e não a
outros agregados – como, por exemplo, corpos de animais –, se poderia supor que sua
arquitetônica não teria implicações para o que esta seção busca explorar. Afinal, conforme
ficará cada vez mais evidente nas próximas linhas, o emprego que mais nos interessa da noção
54
Para maior aprofundamento na concepção de sistema em Condillac, v. HINE, 1979.
141
de sistema é exatamente quanto a organismos vivos, por ser primordial na cognição corpórea.
Contudo, percebe-se que a exigência de critérios unificadores, assim como a interdependência
entre as partes e destas com a totalidade, tais como destacadas em Condillac e Kant, são
traços que permaneceram presentes nas utilizações mais recentes da noção de sistema. E
embora o século 19 tenha presenciado a reafirmação do princípio unitário de um totalizador
“sistema da ciência”, especialmente por parte do romantismo alemão e de Hegel, como
destaca Nicola Abbagnano no verbete “Sistema” de seu Dicionário de Filosofia
(ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 908-910), ainda segundo este autor, o termo “sistema”
foi e é empregado também sem relação com este significado, para indicar qualquer
organismo dedutivo, mesmo que não tenha um princípio único corno fundamento. É
o caso dos sistemas científicos que hoje se fala em matemática e lógica. Os sistemas
hipotético-dedutivos, abstratos, axiomáticos, etc. não são sistemas por terem um
princípio único; aliás, os seus princípios, que são os axiomas, devem ser
independentes entre si, não devem poder ser deduzidos um do outro. São chamados
de sistemas unicamente por seu caráter dedutivo, e no mesmo sentido fala-se de
sistema numérico e, ás vezes, de “sistema de axiomas" para indicar um simples
conjunto não contraditório de proposições primitivas (...). Isso significa que o uso
dessa palavra perdeu o significado forte ou elogioso de discurso dedutivo (Ibid.)
Isto quer dizer que as transformações que afetaram a noção de sistema nos últimos
séculos, quanto esta foi aplicada a conjuntos coerentes de ideias, nela preservaram o caráter
de unidade dada por relações entre partes, mesmo renunciando à exigência de princípios
unificadores. Mas a dispensa a tais princípios virá ainda de outra origem, no caso dos sistemas
físicos. Vejamos como.
Abbagnano, no mesmo verbete, ainda se refere a dois outros tipos de sistemas que não
se restringem a um conjunto de ideias. O primeiro deles é “qualquer totalidade ou todo
organizado” (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 909). Embora, evidentemente, tal definição
possa abranger as totalidades em geral, inclusive as de ideias, a intenção do autor, evidenciada
pelos exemplos apresentados, é a de tratar dos sistemas naturais: “sistema solar, sistema
nervoso”. São sistemas componentes da natureza já referidos anteriormente, como os
“sistemas de corpos” em Newton e Laplace. Entretanto, ao abordar esta acepção o autor
identifica mais um aspecto muito importante para nossa investigação:
Desse ponto de vista, às vezes se faz a distinção entre o sistema como conjunto
contínuo de partes que têm inter-relações diversas e a estrutura ou a organização que
os componentes dele podem assumir em determinado momento (Ibid.).
a caracterizar um aspecto fundamental dos sistemas: são conjuntos cujos elementos possuem
relações entre si e com o todo, nos quais algumas destas relações se modificam ao longo do
tempo, e outras permanecem inalteradas, de modo a garantir a unidade característica do todo
ao longo do tempo e sob transformações. Dito de outra forma, o modo particular como as
relações fixas e as variáveis ocorrem em um dado sistema serve para caracterizá-lo. Este
critério de definição dos sistemas será especialmente útil ao examinarmos as modificações do
uso da noção até suas acepções na cognição corpórea.
Constatado que a temporalidade é uma condição essencial para que se compreenda a
unidade dos sistemas, deve se prosseguir na investigação de como outras questões foram
colocadas historicamente quanto a ela. Abbagnano ainda apresenta uma terceira acepção de
sistema, que corresponde àquela aqui abordada em primeiro lugar: “Qualquer teoria científica
ou filosófica, especialmente quando se quer ressaltar seu caráter escassamente empírico. No
séc. XVIII falava-se de ‘sistema do mundo’ para indicar as teorias cosmológicas”. (Id., Ibid.,
p. 910). Neste sentido, sistema, como já aludido acima quanto a Galileu, designa não somente
a teoria, mas também seu objeto, não apenas a representação como igualmente o que se supõe
o mundo. Contudo, como podemos extrair do que foi mencionado sobre os sistemas de
Galileu, o mais importante nesta relação de representação é que o sistema de ideias destinado
a representar o sistema do mundo possa expressar matematicamente, de maneira adequada, as
relações internas que se considera estarem estabelecidas em seu objeto. Este é, também, o
pressuposto de Newton e Laplace (NEWTON, 2009 [1686]; LAPLACE, 1824, [1749] e 1951
[1812]; DIJKSTERHUIS, 1986; p. 478). Quanto a Newton, é importante considerar a seguinte
afirmação de Cassirer:
Como se nota, Cassirer faz convergirem neste trecho duas características que
Abbagnano apontou na história da noção de sistema: de um lado, o fato de o sistema teórico
espelhar as relações constituintes do sistema como objeto de estudo; e, de outro, a
dispensabilidade de princípios que antecipem, na teoria, a articulação interna da forma do
objeto – já que esta última é encontrada e demonstrada na determinação empirista dos fatos.
143
Porém, o mais importante é que a convergência apontada por Cassirer revela a identidade das
duas características: é justamente a confiança na forma coerente das relações internas do
objeto que permite ao newtonianismo relativizar a necessidade da antecipação conceitual. A
partir desta configuração, os sistemas físicos se caracterizam por relações internas suficientes
para explicar sua unidade e sua estrutura. Estas relações internas são aquelas caracterizadas
como racionais. Neste sentido, os sistemas físicos e os sistemas teóricos que os explicam
possuem em comum uma estrutura racional (o que será retomado na próxima seção), condição
que garante a inteligibilidade dos primeiros com o emprego dos segundos. Esta noção de
razão como “poder primitivo” da verdade e da certeza, isto é, como correspondência entre os
sistemas do mundo e os sistemas de ideias – o que, de certo modo, diminuirá a importância
dos sistemas metafísicos criticados por Condillac –, se consolidará a partir do século 18,
conforme se extrai das palavras de Elika Takimoto:
Esta racionalidade, tal como generalizada no século 18, e que, segundo o texto acima, seria
característica de um determinado contexto histórico, é a principal característica dos sistemas
compreendidos através do que tem sido chamado nesta seção de imagem mecanicista, que é
expressa de forma exemplar pelo “sistema do mundo” de Laplace, proposto no início do
século seguinte, amplamente discutido nos dois últimos séculos e já mencionado acima:
144
Devemos então considerar o estado presente do universo como o efeito de seu estado
anterior e como a causa do que se seguirá. Dada por um instante uma inteligência
que pudesse compreender todas as forças pelas quais a natureza é animada e a
situação respectiva dos seres que a compõem – uma inteligência suficientemente
vasta para submeter esses dados à análise – ela poderia abarcar na mesma fórmula os
movimentos do maiores corpos do universo e os do átomo mais leve; para ela nada
seria incerto e o futuro, assim como o passado, estaria presente aos seus olhos. A
mente humana oferece, através da perfeição que ela tem sido capaz de dar à
astronomia, uma ideia fraca dessa inteligência. Suas descobertas em mecânica e
geometria, acrescentadas à da gravidade universal, lhe permitiram compreender
através das mesmas expressões analíticas os estados passados e futuros do
sistema do mundo. Aplicando o mesmo método a alguns outros objetos de seu
conhecimento, ela conseguiu relacionar leis gerais a fenômenos observados e prever
aqueles que, dadas as circunstâncias, deveriam ser produzidos (LAPLACE, 1951
[1812], p. 5 – grifo meu).
55
Não se aplica, aqui, a ideia de “mecânico” apenas no sentido cartesiano, qual seja, de um conjunto de relações
causais entre corpos dadas exclusivamente por contato direto. O sentido da palavra neste trabalho é mais
propriamente o conferido por Laplace, ou de causalidade determinística linear. Isto quer dizer que se admite
numa cadeia causal deste tipo, por exemplo, forças gravitacionais ou eletromagnéticas que atuem sem que haja
contato direto entre os corpos, desde que o sistema se caracterize por ter suas relações causais plenamente
determináveis e previsíveis. O mesmo se pode dizer das relações matemáticas destinadas a representá-lo.
145
Deste verbete podem ser colhidos três sentidos principais para sistema, a partir de um
sentido técnico geral. O sentido geral é, como já foi aqui anotado a partir de outras fontes, o
de um conjunto de partes interconectadas; mas o verbete reparte este sentido de sistema em
três tipos: o físico, como um organismo ou um grupo de corpos celestes; o simbólico, como
um plano, um método ou um regulamento; e uma combinação de ambos os tipos, como um
computador ou uma rede de computadores, que possui um nível físico e um nível simbólico
articulados.
Por outro lado, a Encyclopaedia Britannica oferece uma definição de “sistema físico”
que demonstra ser bastante precisa e conveniente para a elucidação de seu emprego nas
ciências:
Um sistema é uma parte do universo selecionada para estudar as alterações que
ocorrem dentro dela em resposta a condições variáveis. Um sistema pode ser
complexo, tal como um planeta, ou relativamente simples, como o líquido dentro de
um copo. Aquelas porções de um sistema que são fisicamente distintas e
mecanicamente separáveis de outras partes do sistema são chamadas fases
(ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA).
56
A partir desta definição, não é sistema um conjunto em que as relações entre os seus elementos não seja
fundamental para caracterizá-lo.
147
Esta passagem deixa claro que considerar os sistemas como abertos, tal como,
segundo a autora, procedeu a cibernética, foi necessário para o nascimento das ciências
cognitivas clássicas, já que os sistemas deveriam processar informações, o que implica troca
de informações com o exterior. Contudo, atribuir abertura aos sistemas, além de decorrer da
necessidade de se apresentarem soluções para problemas que os usos anteriores da noção não
enfrentaram, foi uma atitude adotada também – como veremos – pela Segunda Cibernética,
embora aos poucos o mero processamento de informações deixasse de ser a exigência da
abertura. Assim, sem contar a abertura, que características essenciais os sistemas tiveram na
primeira cibernética, suficientes para permitir perceber suas diferenças em relação à
concepção newtoniana de sistema, mas insuficientes para os propósitos da Segunda
Cibernética e de outras perspectivas afinadas com esta? E haveria outras características, como
a abertura, que embora também exigidas aos sistemas caracterizados pela Segunda
Cibernética, tivessem sentido diferente daquele empregado pela primeira cibernética?
Margaret Boden nos relembra a seguinte definição de cibernética, na qual uma
determinada característica dos sistemas é associada aos primeiros cibernéticos:
como precursor da cibernética e das ciências cognitivas. A questão original apresentada neste
artigo era exatamente a da retroalimentação intencional (purposeful feedback), forma de
autocontrole observada no comportamento de algumas classes de objetos. O importante, neste
momento, é compreender que esta propriedade, em tal classe de objetos, pressupõe a condição
destes últimos de sistemas – mas começa a traçar o tipo de sistemas que já não corresponde
mais àquele usual até o final do século 19. Isto quer dizer que quando os autores usaram como
exemplo, no artigo mencionado, o caso do sistema nervoso, o emprego da palavra “sistema”
já trazia as qualidades específicas que aqui buscamos definir como intrínsecas ao pensamento
cibernético. Seriam sistemas em relação aos quais se questionou a condição de serem ou não
fechados – para atribuir-lhes a propriedade de abertos – e, principalmente, nos quais se
identificou que o fator de abertura deveria incluir que os sistemas também se “abrem” para
eles mesmos no tempo, de modo a que alguns outputs de seu comportamento se tornam inputs
de seus momentos futuros. Como demonstra o artigo de Rosenblueth et al, trata-se assim, por
um lado, de um processo cujo sentido temporal é essencial para corroborar a sua
intencionalidade – uma vez que o propósito de seu comportamento presente se traduz em
situação futura. Por outro lado, este processo somente pode ser teleológico, ter um propósito –
como o de autocontrole – voltado para si mesmo, se sua linearidade57ao longo do tempo
resultar numa circularidade, ao ter efeitos sobre a conservação e os propósitos teleológicos do
mesmo objeto: do mesmo sistema. O autocontrole e o feedback foram temas trazidos às
ciências e ao conceito de sistema como solução para problemas tecnológicos – o que é
evidenciado no artigo ora em foco. Isto serve para reiterar que o enfrentamento de problemas
teve papel crucial nas transformações conceituais que são aqui investigadas – ainda que nem
sempre estas soluções tenham tido efeito estritamente em relação aos problemas que as
suscitaram, frequentemente acontecendo de servirem a outras linhagens de problemas, como
se demonstrou no caso da máquina de Turing. E, evidentemente, as ideias de autocontrole –
ou de autorregulação – e circularidade antecipam a de auto-organização, mas explicar o
processo de organização exigiria mais do que agregar vários processos de controle, porque
novos problemas se colocam neste caso, de tal modo que uma agregação deste tipo – sem uma
organização geral – não seria solução para eles. Para constatarmos de que maneira esta
observação vai ao encontro de problemas e disputas efetivamente enfrentados no âmbito da
cibernética, devemos retornar ao período das Conferências Macy e do Simpósio Hixon.
57
Não se está empregando o termo “linearidade” para restringir a análise a sistemas lineares, dela excluindo
sistemas não-lineares. A linearidade, neste caso, aplica-se à linha do tempo no modo que se observa em sistemas
mais simples (WIENER, 1961 [1948]. p. 97-98).
149
Porém, antes, há dois breves passos a serem dados: primeiro, é preciso resumir uma
acepção específica de sistema, estabelecida pela primeira cibernética, com vistas a
compreender que qualidades no conceito foram então acrescentadas ou modificadas, e quais
ainda o seriam; e, também, como decorrência da acepção de sistema na cibernética, ressaltar
as implicações de, nela, ser peculiar a questão do fluxo de informações.
Quanto à acepção específica de sistema da primeira cibernética, propõe-se a seguinte:
Embora este trecho afirme que a influência da Teoria Geral dos Sistemas sobre a
cibernética ocorreu na década de 1950, os trabalhos de Von Bertalanffy em biologia teórica
que tiveram importância no quadro da Segunda Cibernética se originaram pelos menos vinte
anos antes (VON BERTALANFFY, 1950, p. 7; STENGERS, 1985, p. 68; CAPRA, 1996).
Contudo, Von Bertalanffy somente anunciou uma teoria geral para os sistemas nos anos 1950.
É preciso assinalar que Von Bertalanffy não participou de eventos aqui considerados
decisivos para a cibernética e as ciências cognitivas como as Conferências Macy e o Simpósio
Hixon. A menção à Teoria Geral dos Sistemas no quadro da Segunda Cibernética, portanto, se
deve à influência de Von Bertalanffy e da Teoria Geral dos Sistemas nas controvérsias que
151
aqui são examinadas, caracterizada por fatos como: a militância de Von Bertalanffy em favor
de sua doutrina, representada, entre outros aspectos, pela criação da “Society for the
Advancement of General Systems Theory”58, em 1954, por ele juntamente com Ralph Gerard,
Kenneth Boulding e Anatol Rapoport no Stanford Center for Advanced Study in the
Behavioral Sciences; a participação de Ralph Gerard nas Conferências Macy, que será à
frente relatada brevemente (DUPUY, 1996 [1994]; ABRAHAM, 2002); a tendência posterior
de assimilação da Teoria Geral dos Sistemas ao pensamento sistêmico (CIRNE-LIMA, s/d;
CAPRA, 1996; ROSNAY, 2000); e, especialmente, as menções feitas por Jean-Pierre Dupuy
e Isabelle Stengers ao peso das ideias de Von Bertalanffy na concepção que, em consonância
com a Segunda Cibernética, pôs em questão a imagem mecanicista para explicar a dinâmica
dos seres vivos (DUPUY, 1996 [1994], p. 176-177; STENGERS, 1985). Para investigar o
papel da Teoria Geral dos Sistemas na constituição da cognição corpórea, através das
questões colocadas pela Segunda Cibernética, deve-se partir do artigo de Von Bertalanffy “An
outline of General System Theory”, de 1950 – e não do seu livro General System Theory:
Foundations, development, applications, de 1968, que, embora constitua uma obra mais
alentada e completa, foi publicado posteriormente ao surgimento das controvérsias iniciais
estudadas nesta seção. O artigo, que possui o tom de um manifesto, defendeu basicamente os
seguintes pontos:
1) Era inadequada a tendência mecanicista – laplaciana – de a ciência buscar explicar
os fenômenos através da sua redução a partes elementares, estudadas isoladamente,
isto redundando na aplicação de leis físicas às demais ciências;
2) Por outro lado, a opção de valorizar o todo, crítica ao reducionismo e recente à
época do artigo, carecia de precisão e rigor e tendia a ser vaga e mística;
3) Era então necessário que se produzisse uma mudança geral na atitude científica,
capaz de dar conta não apenas das partes de um sistema, mas também das relações
e interações entre elas, ao assumir a totalidade como organização dinâmica, e não
mero agregado – mas de forma rigorosa e lógico-matemática, comprometida com a
garantia de exatidão;
4) Para tal, a solução decorreria da criação de uma Teoria Geral dos Sistemas, que
produziria leis gerais dos sistemas que, por sua vez, refletiriam padrões
subjacentes, revelando a correspondência formal e a homologia lógica de vários
58
Atualmente, International Society for the Systems Sciences (ISSS), v. em http://isss.org/world/about-the-isss.
152
tipos de sistemas, desde os mais simples aos mais complexos, sem reduzir, porém,
os padrões destes últimos aos dos primeiros;
5) Por recusar o reducionismo da imagem mecanicista dos sistemas, a Teoria Geral
dos Sistemas também seria capaz de enfrentar novos problemas, que não
apareciam na física, mas eram sobretudo característicos dos sistemas vivos.
Sendo assim, a Teoria Geral dos Sistemas, ao mesmo tempo em que se propôs a ser
uma nova doutrina geral e uma nova metodologia hipotético-dedutiva para todas as ciências,
teve sua proposição provocada pela incapacidade, atribuída por Von Bertalanffy à imagem
mecanicista, para lidar com um tipo inédito de problema: aquele decorrente da necessidade de
explicar o comportamento típico dos sistemas vivos. Isto porque, segundo ele, os sistemas
vivos não se comportam como um agregado de sistemas físicos, nem mantêm o mesmo
padrão de transformações destes últimos ao longo do tempo, e a imagem mecanicista não
estava sendo capaz de explicar este comportamento. Nas palavras de Von Bertalanffy,
Este “salto” – ou aparente descontinuidade – entre leis físicas e leis biológicas não foi,
contudo, tratado por Von Bertalanffy como misterioso ou inexplicável, nem usado como
justificativa para se renunciar a uma unificação racional da natureza. Para ele, esta suposta
desunidade da ciência denunciava um modo inadequado de se considerarem suas leis. Embora
ele deixe em aberto “a questão da ‘redução final’ das leis da biologia (e dos outros reinos não-
físicos) às da física”, (Ibid., p. 12), afirma:
Mas há outra questão enfrentada por Von Bertalanffy que é decisiva para a presente
pesquisa. Ele não apenas recusou o que chamou de misticismo das posições que, em geral,
153
combatiam a imagem mecanicista dos sistemas na biologia, mas contestou diretamente uma
teoria que tentara, décadas antes, explicar certos padrões dos seres vivos aparentemente não
adequados aos princípios da física, a partir de experimentos em embriologia. Trata-se do
vitalismo proposto por Hans Driesch, como princípio apriorístico da vida (DRIESCH, 1908).
Segundo Driesch e Von Bertalanffy, os estados finais dos sistemas vivos, ao contrário dos que
chama de inanimados, não são determinados pelos estados iniciais. Esta característica, por
ambos denominada “equifinalidade”, foi explicada por Driesch como uma propriedade dada
por um fator não sujeito à explicação científica, a ”enteléquia”59. Partindo do exemplo de um
sistema do tipo laplaceano, discute Von Bertalanffy:
59
Este é um termo que, em Aristóteles, significa o ato final ou perfeito, a realização acabada da potência, também
associado à alma de um corpo orgânico. Para Driesch, a enteléquia é o princípio espiritual dos seres vivos,
irredutível a causas físico-químicas (ABBAGNANO, 2007 [1971], p. 334).
154
De um lado, Von Bertalanffy ressalta a qualidade dinâmica dos sistemas vivos, cujo
equilíbrio não é o equilíbrio térmico característico dos sistemas fechados, e sim o estado
“estacionário” que se mantém graças a ser também fluxo permanente de mudanças; isto é,
trata-se de um equilíbrio que depende justamente da contínua troca de matéria e energia do
sistema com o exterior e de incessantes transformações internas a ele. Além disso, trata-se de
uma autorregulação metabólica que não implica apenas um servomecanismo informacional,
como na imagem de sistema da primeira cibernética. Mas, de outro lado, uma notável
inovação de Von Bertalanffy reside na sua aposta – ainda que não muito segura – na hipótese
de uma termodinâmica própria dos sistemas abertos, baseada nas teorias de Ilya Prigogine
(VON BERTALANFFY, 1950, p. 12). Von Bertalanffy reportou-se, no artigo de 1950, ao
livro de Prigogine Étude thermodynamique des phénomènes irréversibles, de 1947, que trazia
seu teorema de produção mínima de entropia, aplicável aos estados estacionários de não
equilíbrio próximos ao equilíbrio. Embora demonstrasse confiança ainda reticente60 em
relação a este teorema, Von Bertalanffy chegou a afirmar que Prigogine demonstrou que os
estados estacionários dos sistemas vivos são definidos pela produção mínima de entropia. Isto
ao menos revela sua confiança de que a capacidade de sistemas vivos de se desenvolverem
espontaneamente para uma maior heterogeneidade, diferenciação e complexidade – ou seja, a
produção de ordem a partir da desordem – é explicável com base em leis científicas, e não um
contrassenso insondável pela ciência. Mas, também, permite que se chame a atenção para a
questão sobre até que ponto, hoje, já se considera devidamente explicada cientificamente a
produção de ordem a partir da desordem em seres vivos, ou mesmo se tal exigência de
explicação ainda se faz.
Nota-se que, a partir de sua crítica tanto à imagem mecanicista quanto ao vitalismo,
Von Bertalanffy não propôs tão somente uma nova forma de unificação da ciência e da
natureza, ou apenas uma abordagem inovadora dos sistemas. O que ele defendeu foi uma
terceira via para explicar o desenvolvimento, no tempo, dos sistemas vivos – ainda que não
tenha chegado a plenamente elaborá-la.
60
No artigo, Von Bertalanffy adverte que o fato de as pesquisas sobre sistemas abertos ser recente recomenda
que, sobre elas, caiba no texto a citação de “apenas alguns pontos de importância geral e filosófica” (VON
BERTALANFFY, 1950, p. 7). Ainda no livro de 1968, o teorema de produção mínima foi tratado por Von
Bertalanffy como aplicável somente a condições restritivas (VON BERTALANFFY, 1968, p. 151). De qualquer
modo, Prigogine somente apresentaria uma formulação matemática determinista da termodinâmica dos sistemas
abertos e das estruturas dissipativas mais tarde.
155
Esta tentativa de criar uma terceira via é o que acentua Isabelle Stengers, já
caracterizando a teoria de Von Bertalanffy como organicista – tal como identificada por ela
em obra do autor anterior à aqui examinada – e a localizando no quadro que esta seção busca
delinear:
Assim, verifica-se que os sistemas, para a parte da Segunda Cibernética afinada com
Von Bertalanffy (e Von Foerster), adquirem uma terceira característica central, além daquelas
dos sistemas mecanicistas (causalidade unidirecional) e dos sistemas da primeira cibernética
(causalidade circular): a causalidade organicista, que será uma ideia cara à cognição
corpórea, ainda que por ela transformada. Esta nova imagem apresenta duas descontinuidades
correlatas: uma, aquela identificada em seus objetos de estudo na natureza, e que se aplica à
dinâmica de desenvolvimento dos seres vivos em relação aos processos inanimados
subjacentes, recusando claramente o reducionismo fisicalista; outra, aquela apontada em seus
objetos de estudo que são as próprias teorias sobre a natureza, e que se aplica à dinâmica de
compreensão da natureza, significando uma guinada no estudo dos sistemas. Esta guinada, na
medida em que, nela, é crucial a ideia de equilíbrio estacionário dinâmico, anuncia duas das
qualidades dos sistemas que a presente investigação vem considerando como fundamentais
para a cognição corpórea: a auto-organização e a complexidade. Um dos efeitos das ideias de
Von Bertalanffy para as ciências cognitivas será, como se verá adiante, a adoção por parte da
cognição corpórea – em especial pela abordagem corpóreo-enativa – da noção de que a
cognição é um processo plenamente envolvido na dinâmica de manutenção da vida através de
formas de equilíbrio dependentes de permanente transformação. Esta imagem se contrapõe
diretamente à cognitivista, assim como ao reducionismo mecanicista que para alguns, como
Jean-Pierre Dupuy, ainda era forte na primeira cibernética. Porém, segundo este autor, outras
controvérsias se traduziram em embates mais frontais – o que se passará a expor.
A contribuição do embriologista experimental e biólogo teórico Paul Weiss à
constitituição da imagem não mecanicista dos sistemas biológicos se deu de forma direta no
Simpósio Hixon, em 1948. De acordo com Dupuy, o confronto
156
Neste trecho, Dupuy menciona dois pontos importantes, além de anunciar a relevância
das posições de Weiss. O primeiro é que McCulloch teria se tornado, então, o representante,
dentre os cibernéticos, da posição reducionista. O segundo é que Weiss teria contraposto a
McCulloch uma concepção precursora da autopoiese. Isto antecipa uma divergência de
McCulloch com Humberto Maturana (que colaborou diretamente com o primeiro) e Francisco
Varela, além daquela que opôs o modelo lógico-proposicional da cognição à noção biológica
de conhecimento destes dois autores: trata-se do modo como Maturana e Varela modificaram
a ideia inicial de epistemologia experimental de McCulloch (VARELA, 1996; FROESE, 2010
e 2011), e que será alvo de análise adiante. Mas o que mais conta neste momento é ressaltar
que, para Dupuy, primeiro Weiss “vai, ante a biologia molecular em ascensão, opor-se ao
reducionismo e ao determinismo da informação genética, bem como à conquista da biologia
pela cibernética” (DUPUY, 1996 [1994], p. 175); e, em segundo lugar – mas ainda mais
importante para este trabalho por se tratar de posição valiosa para a cognição corpórea –,
defenderá a noção de autonomia do sistema nervoso. Ainda de acordo com a narrativa de
Dupuy sobre o Simpósio Hixon, Weiss, em réplica a afirmação de McCulloch em uma
palestra sobre a percepção depender exclusivamente da veracidade ou falsidade de um
estímulo dado ao globo ocular, defende o papel constitutivo do organismo sobre o estímulo.
Nas palavras de Dupuy,
Numa primeira análise, o que estava em jogo no Simpósio Hixon, de acordo com
Dupuy, era uma controvérsia fundamental para a presente pesquisa: aquela que opunha o
modelo lógico-proposicional, expresso pela imagem do cérebro como dispositivo processador
de informações mediante a operação de um nível simbólico-mecânico desencarnado, à
157
sistema vivo estabelece um padrão mais estável para si mesmo, o que lhe permite se contrapor
à tendência de aumento de indiferenciação e entropia atribuída aos sistemas inanimados. Dito
de outra forma: embora as menores partes do sistema vivo – no caso em análise, o sistema
corresponde à célula, mas também aos agregados de células como o sistema nervoso – ainda
se comportem como seres inanimados, sua aglutinação orgânica adquire um padrão diverso,
de tal modo que “níveis de integração superiores não são redutíveis aos níveis inferiores”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 182). Na verdade, Dupuy afirmou algo que vai além: para ele,
Weiss enxerga nesta diferença de padrões uma causalidade mútua, em que o todo também
determina e restringe o comportamento das partes, estabilizando-o, e antecipando aquilo que
61
mais tarde será chamado de causalidade “top-down” , ou “descendente”. Dupuy chega a
chamar essa mútua causalidade de codeterminação e a identificá-la com o que Varela
denomina, segundo Dupuy, “princípios de autonomia biológica”. A autonomia viria do fato de
o todo não se subordinar às partes e nem ao exterior, contrariando a concepção “bottom-up”,
ou “ascendente”, “que consiste em partir de elementos completamente especificados, bem
como de suas conexões, e em deduzir daí as propriedades da totalidade que eles constituem”
(DUPUY, 1996 [1994], p. 198).
É preciso assinalar que, neste momento, as divergências entre a primeira e a segunda
cibernética se tornam mais evidentes e radicais. Conforme a interpretação de Dupuy, a
primeira “cibernética falhou neste ponto, justamente quando colocava suas conferências
fundadoras sob o signo da ‘causalidade circular’” (DUPUY, 1996 [1994], p. 183)62. Neste
sentido, a causalidade circular da primeira cibernética constitui algo muito mais simples do
que a codeterminação que se configura com a Segunda Cibernética – se Weiss for
considerado, como tem sido feito aqui, uma autor afinado com esta abordagem. Além disso,
acrescentada às formulações de Von Bertalanffy, a proposição de Weiss sobre a relação entre
as partes e o todo de um sistema vivo contribui para que se compreendam melhor as
profundas diferenças entre as noções de sistema de matriz newtoniana, aquela comum à
primeira cibernética (e que foi influente no cognitivismo) e as que foram precursoras dos
sistemas auto-organizados, e dos dotados de emergência e complexidade. Numa análise que
61
Para um estudo sobre este tema, afinado com o conteúdo do presente trabalho, e que relaciona vasta
bibliografia a respeito, v. VARELA et al, 2001.
62
Quanto a este ponto, é preciso observar a sugestão de Dupuy de que McCulloch teria, de algum modo,
defendido a ideia de causalidade “top-down” (DUPUY, 1996 [1994], p. 198). Contudo, esta suposição não seria
capaz de contrariar a tese, em parte defendida pelo próprio Dupuy, de que tanto na primeira cibernética quanto
no cognitivismo teria sido predominante a noção de causalidade “bottom-up”.
159
Não serve a nenhum projeto, não é concebido para realizar nenhuma tarefa. É uma
“experiência de pensamento” destinada a ilustrar uma tese que Ashby gostaria que
fosse universal: longe de serem acidentes extremamente improváveis da evolução, a
vida e a inteligência desenvolvem-se necessariamente em todo sistema isolado. Estar
vivo é ter a capacidade de manter um pequeno número de variáveis “essenciais” no
interior de certos limites fisiológicos, e isso para uma gama muito ampla de
ambientes diferentes (DUPUY, 1996 [1994], p. 202).
Esta ousada formulação de Ashby supõe também que a estabilização seja uma forma
de seleção própria a toda máquina – sendo o cérebro apenas mais uma delas –, tal como
asseverou mais tarde (mas acompanhando o mesmo sentido), no seguinte trecho:
Ao ir de qualquer estado em direção a apenas um de equilíbrio, o sistema passa de
um maior para um menor número de estados. Desta forma, está realizando uma
seleção, no sentido puramente objetivo de que rejeita alguns estados, ao abandoná-
los, mas mantém algum outro estado, aderindo a ele. Assim, como todo sistema
determinado segue rumo ao equilíbrio, desta forma ele realiza uma escolha.
Ouvimos ad nauseam a afirmação que uma máquina não pode selecionar; mas a
verdade é exatamente o oposto: cada máquina, toda vez que segue rumo ao
equilíbrio, realiza o correspondente ato de seleção (ASHBY, 1962, p. 270).
primeira cibernética, expondo sua dependência da metafísica – se esta última for entendida
como algo além do nível físico das máquinas materiais.
Enfatizando a premissa de Ashby de que o comportamento do homeostato é descritível
puramente através de uma função matemática, Isabelle Stengers reconhece o fado
determinista de que
63
Para maior aprofundamento no conceito ashbyano de ultra-estabilidade, v. ASHBY, 1947, FROESE &
STEWART, 2010.
163
constituição material do sistema deve ser tratada como inseparável da sua relação com o
ambiente. Como já foi salientado anteriormente, os sistemas a partir da Segunda Cibernética
e, especialmente, para a cognição corpórea, são sistemas abertos de transformações e
intercâmbio de matéria e energia com o meio exterior. A influência de Ashby sobre estas
correntes teria sido impeli-las a romper a limitação imposta por ele mesmo, ao ter concebido
os sistemas auto-organizados como entidades basicamente abstratas, imaginárias, e não
dotadas de interação concreta com o mundo.
Em relação ao papel do observador, de certo modo a mesma questão se coloca, se for
seguida a argumentação de Froese, a partir do que ele chama de “guinada epistemológica”
(Id., ibid.). Isto porque o que se apresenta como questão epistemológica é, justamente, o
enfoque dado às relações entre o sistema observado e o sistema observador, nas quais, como
veremos à frente, a cognição corpórea identifica um sentido basicamente material ou, mais
precisamente, na forma de fluxo de matéria e energia. Mas, por ora, devemos nos concentrar
na afirmação de Froese de que Ashby, embora identifique na relação de observação
propriedades que não são intrínsecas à coisa observada, mas à relação em si, de certo modo
reage a esta constatação:
Neste sentido, a tendência de Ashby seria se manter nos limites da noção de sistema
mecanicista, como já foi tratado anteriormente – assim como no que Froese identifica como
uma postura representacionista. Ao contrário de Von Foerster, que teria operado a “guinada
epistemológica”, como será abordado a seguir, quando estiverem em foco acontecimentos já
posteriores às Conferências Macy.
Por ora, cabe um resumo da análise aqui feita da importância destas conferências na
formação das duas correntes das ciências cognitivas aqui estudadas. Nele, tem-se que a
imagem científica mecanicista do ser humano se viu abalada em decorrência dos estudos dos
sistemas de tal maneira que se pode questionar se isto contribuiu para o definhamento da
primeira cibernética. Este fato se explicaria, ao menos em parte, pelos ataques proferidos à
primeira cibernética, liderados por autores como Von Bertalanffy, Paul Weiss e W. Ross
164
A epistemologia de que aqui se trata corresponde, portanto, a uma postura que tende a recusar
o caráter representacional da cognição, e clama por um papel ativo do observador. Contudo,
ela teria tido sua inspiração mais imediata nos trabalhos de um autor identificado não apenas
com a primeira cibernética, mas justamente com a imagem computacional e representacional
da cognição: Warren McCulloch. Já foi dito anteriormente que McCulloch acreditava estar
tratando a psicologia e a epistemologia de modo incorporado com suas pesquisas nos final da
primeira metade do século 20, embora já tenhamos visto os efeitos que suas formulações
produziram no sentido oposto. Um testemunho desta sua crença aparece na frase: “Fazer
psicologia em epistemologia experimental é tentar entender a corporeidade da mente”
(MCCULLOCH, 1988 [1965], p. 2). Acompanhando o entendimento de Tom Froese, é
166
preciso destacar dois aspectos do legado de McCulloch quanto a este ponto. De um lado,
trata-se de notar que autores como Von Foerster, Maturana e Varela prosseguiram no desafio
de realizar pesquisas experimentais, seja diretamente em seres vivos ou por simulações
computacionais, com interesse no papel ativo do observador na constituição dos objetos do
conhecimento (FROESE, 2010 e 2011). De outro lado, sobretudo Maturana e Varela
aprofundaram a epistemologia experimental a ponto de romper definitivamente com o modelo
representacional de McCulloch, em seus trabalhos a partir dos anos 1970 (VARELA,
MATURANA & URIBE, 1974; MATURANA & VARELA, 1998, 2010), fazendo com que a
cognição fosse compreendida de modo inseparável da vida e dos organismos. Isto é, se
McCulloch em algum momento expressou seu intuito de mais propriamente encarnar a
cognição no organismo, não foi ele mesmo quem alcançou este objetivo.
Porém, é preciso ainda examinar o papel de Von Foerster na ruptura com a primeira
cibernética, e sua importância para a constituição da cognição corpórea, tendo em vista sua
insistência no papel ativo do sistema observador. Esta foi uma mudança fundamental em
relação não apenas à primeira cibernética, mas também ao cognitivismo, ainda que, como
estamos prestes a verificar, possua ainda algumas limitações. Mesmo assim, por esta razão –
mas também por outras, principalmente as relacionadas à sua intervenção direta no ambiente
científico, que abordaremos adiante –, Von Foerster deve ser considerado o mais importante
autor, dentre os associados à Segunda Cibernética, na formação dos antecedentes da cognição
corpórea. Seu conceito de trivialidade ilustra bastante bem suas preocupações críticas do
modelo computacional da cognição, e revela teor ético e político de sua abordagem – já
antecipando a postura crítica e política da cognição corpórea. Vejamos como se dá esta
formulação:
Deixe-me apresentar dois conceitos, que são os de máquina "trivial" e "não trivial".
O termo "máquina" neste contexto refere-se a propriedades funcionais bem definidas
de uma entidade abstrata, e não a um conjunto de engrenagens, botões e alavancas,
embora tais mecanismos possam representar realizações físicas daquelas entidades
funcionais abstratas. Uma máquina trivial é caracterizada por uma relação um-para-
um entre o seu "input" (estímulo, causa) e seu "output" (resposta, efeito). Esta
relação invariável é "a máquina". Uma vez que esta relação seja determinada de uma
vez por todas, este é um sistema determinístico; e dado que um output uma vez
observado para a um determinado input será o mesmo para o mesmo input que se dê
mais tarde, este é também um sistema previsível. Máquinas não triviais, no entanto,
são criaturas bastante diferentes. Sua relação de input-output não é invariante, mas
determinada por um output anterior da máquina. Em outras palavras, os seus
próprios passos anteriores determinam as suas reações presentes. Embora estas
máquinas sejam ainda sistemas determinísticos, para todos os sentidos práticos elas
são imprevisíveis: um output, uma vez observado para um dado input,
provavelmente não será o mesmo para o mesmo input dado posteriormente. (VON
FOERSTER, 1972, p. 6).
167
Os sistemas não triviais são capazes de usar, como inputs alternativos, outputs
produzidos por eles mesmos – ou externos à sua configuração, e assim inesperados –, de tal
modo que não têm a mesma condição de previsibilidade dos sistemas triviais. Von Foerster,
no mesmo texto, dá o exemplo de estudantes que, diante de um teste de conhecimentos,
oferecem diferentes respostas. Os estudantes “triviais” dão respostas previsíveis, que podem
ser definidas como corretas ou erradas. Os estudantes “não triviais” oferecem respostas não
previsíveis e que, por isso, podem ser classificadas como erradas, embora possam estar
corretas segundo critérios alternativos. Com estas considerações, Von Foerster apresenta uma
critica ao sistema educacional preponderante em sua época que, em sua opinião, selecionava
os estudantes que se comportam como máquinas triviais. Esta concepção também adianta a
aplicação da complexidade aos sistemas cognitivos, e a medular noção de autotransformação
tão característica da cognição corpórea. Com a seguinte consideração ele define socialmente a
trivialização: “Um perfeito desempenho em um teste é indicativo de perfeita trivialização: o
estudante é completamente previsível e assim pode ser admitido na sociedade. Ele não
causará surpresas ou problemas” (Ibid.).
Contudo, Tom Froese alerta para a insuficiência da noção de máquina não trivial para
que se alcance a ideia de um papel efetivamente ativo – e autônomo – do observador. Em seu
entendimento, apenas uma perspectiva propriamente construtivista pode dar conta da
necessidade de superação da condição mecanicista das máquinas não triviais, que ainda as
condena a serem sistemas determinados (FROESE, 2010, p. 81). Não cabe nos propósitos
deste trabalho uma abordagem mais extensa da questão específica do construtivismo, sendo
preferível deixar para referi-lo através de menções feitas pelos próprios autores da cognição
corpórea. O que de mais importante deve resultar da discussão sobre a trivialidade tal como
posta por Von Foerster é exatamente a abertura que oferece para se romper com o
determinismo cognitivista e, além disso, ressaltar o sentido de autocriação da cognição,
desenvolvido sobretudo a partir da biologia cognitiva de Maturana e Varela. Dito de outra
maneira, o caráter mecânico presente na não trivialidade termina por estimular os críticos do
cognitivismo a fazerem com que a complexidade apenas insinuada na concepção de Von
Foerster seja radicalizada. Outro aspecto, passível de crítica pela cognição corpórea,
encontrado na noção de não trivialidade, é a não plenamente colocada questão da separação
entre sistemas observados e observadores. Neste sentido, devemos atentar para o fato de que
este problema será mais adequadamente enfrentado quando os autores da orientação corpórea,
através principalmente da iniciativa de Varela, buscarem embasamento filosófico na
fenomenologia, conforme será tratado adiante, e, assim, proporem, para além da guinada
168
(i) já participamos do mundo antes de nos isolamos através reflexão abstrata, e (ii)
não precisamos encontrar uma representação de nós mesmos como sujeitos
cognitivos em nossos "cérebros-computadores" porque nós já coincidimos com a
nossa própria experiência vivida (Ibid., p. 82).
O que aqui foi apontado como uma insuficiência da posição de Von Foerster
demonstra, de fato, que apenas com o surgimento da cognição corpórea a questão ontológica
da cognição seria mais radicalmente enfrentada. Considerado este fato de outro ponto de vista,
o que se conclui é que a Segunda Cibernética não avançou, do mesmo modo que a orientação
corpórea, na direção de uma ruptura ontológica tão radical com a primeira cibernética e, de
certo modo, com o cognitivismo.
Entretanto, antes de passarmos a tratar dos antecedentes filosóficos da cognição
corpórea e, assim, investigarmos mais de perto a que corresponde a aqui chamada guinada
ontológica, ainda há alguns pontos a explorar sobre a influência que esta sofreu da Segunda
Cibernética e, mais particularmente, de Von Foerster, Gordon Pask, e da noção de cibernética
de segunda ordem. Esta noção implica algo mais do que tão somente investigar o sistema
observado, ou mesmo o papel do observador. Com ela se apresenta uma ideia especialmente
nova nas considerações feitas até o momento sobre a transformação da noção de sistema,
sobretudo no que diz respeito à constituição da cognição corpórea. Vejamos por quê. Pask
diferencia, inicialmente entre um suposto objetivo independente que sistemas teriam, e o
objetivo que estes sistemas teriam para um utilizador:
Estabelecendo uma importante diferença desta posição para a concepção de Ashby, ele
prossegue:
169
A verdade da hipótese cibernética não pode ser decidida (em relação a um sistema
particular) no nível do tipo mais fundamental e simples de modelo: a "caixa preta"
de Ashby. Não importa quanto tempo um sistema identificado com tal modelo seja
observado, e não importa quantos experimentos sejam realizados através da variação
do input da "caixa preta": somente será possível dizer que o sistema se comporta
como se fosse (ou não) um sistema direcionado a um objetivo. (Id., ibid.)
Sugiro que a cibernética dos sistemas observados possa ser considerada a cibernética
de primeira ordem, enquanto cibernética de segunda ordem é a cibernética de
sistemas de observação. Isto está de acordo com uma outra formulação que tem sido
dada por Gordon Pask. Ele também distingue duas ordens de análise. Àquela em que
o observador entra no sistema, estipulando a finalidade do sistema, podemos chamar
de "condição de primeira ordem". Em uma "condição de segunda ordem", o
observador entra no sistema, estipulando seu próprio propósito. A partir disso,
parece ficar claro que a cibernética social deve ser uma cibernética de segunda
ordem – a cibernética da cibernética –, a fim de que o observador que entra no
sistema seja autorizado a estipular seu próprio propósito: ele é autônomo (VON
FOERSTER, 1979)
adaptação do sistema ao mundo exterior –, a formulação do próprio Ashby não comporta dois
níveis de análise como os propostos por Von Foerster.
Entretanto, não é nesta diferenciação entre dois níveis interdependentes que Von
Foerster mais se aproxima da cognição corpórea. Sua formulação mais afim com esta
abordagem encontra-se explicitada em três postulações no final da citação acima: de que a
cibernética de segunda ordem é uma cibernética social, de que o observador tem o poder de
estabelecer seu próprio objetivo e – mais importante – que esta última característica define
sua autonomia.
A autonomia, para Von Foerster, tem um caráter eminentemente correlacional – entre
o sistema observador e os sistemas observadores – mas, evidentemente, seu polo principal é o
sistema observador, uma vez que é nele que a autonomia se expressa e se produz. Além disso,
a autonomia se caracteriza mais propriamente quando o sistema observador tem a si como
sistema observado e, nesta condição, estipula o propósito de si mesmo. E ela se destaca tendo
como fundo o ambiente – no caso da citação acima, o ambiente social. A autonomia, portanto,
é uma característica dos sistemas vivos, que se manifesta de modo especial nos seres humanos
– e, segundo a cognição corpórea, está intimamente ligada ao fato de que, nos humanos, a
auto-estipulação de propósito é ao mesmo tempo um traço cognitivo e de sobrevivência.
Assim os sistemas autônomos são a noção mais próxima, nas transformações que aqui
são estudadas na noção de sistema, daquela utilizada na cognição corpórea – e que mais
radicalmente rechaça a noção de sistema simbólico do cognitivismo e, de modo semelhante,
se afasta da ideia de sistema da primeira cibernética. Veremos nas próximas seções como a
noção de autonomia se faz presente nas abordagens que compõem a cognição corpórea. Mas
podemos desde já afirmar que é através da abordagem corpóreo-enativista que a autonomia
ganha maior relevância para as ciências cognitivas de orientação corpórea, ao demarcar a
importância do organismo individual em sua explicação da cognição. Isto fica patente na
seguinte afirmação de Evan Thompson: “Um ponto chave é que a abordagem enativa explica
a individualidade64 e a subjetividade desde o início levando em conta a autonomia própria de
seres vivos e cognitivos” (THOMPSON, 2007, p. 14). E a relação entre a noção de autonomia
e a crítica ao cognitivismo já havia sido explicitada no livro fundador do enativismo, lançando
mão da noção de clausura (ou fechamento) operacional:
64
No original selfhood.
171
Uma importante e ampla mudança está começando a ocorrer nas ciências cognitivas
em decorrência de sua própria pesquisa. Essa mudança exige que nos afastemos da
ideia do mundo independente e extrínseco em direção à ideia de um mundo
inseparável da estrutura desses processos de automodificação65. Essa mudança de
postura não expressa uma mera preferência filosófica; ela reflete a necessidade de
compreendermos os sistemas cognitivos não com base nas relações entre
informações (input) e comportamento (output), mas a partir de sua clausura
operacional. Em um sistema operacionalmente fechado, os resultados de seus
processos são os próprios processos. A noção de clausura operacional é uma forma
de especificar classes de processos que, na sua própria operação, voltam-se sobre si
mesmos para formar redes autônomas. Essas redes não se enquadram na classe de
sistemas definidos por mecanismos externos de controle (heteronomia), mas, ao
contrário, na classe de sistemas definidos por mecanismos internos de auto-
organização (autonomia). O ponto chave é que esses sistemas não operam por
66
representação. Em vez de representar um mundo independente, eles enatuam em
um mundo como um domínio de distinções inseparável da estrutura incorporada
pelo sistema cognitivo (VARELA et al, 1991, p. 139-140).
65
Aqui os autores se referem à noção de automodificação dos processos cognitivos defendida por Marvin
Minsky em The Society of mind (MINSKY, 1985).
66
Juntamente com o neologismo substantivo “enação” (enaction), o enativismo propõe também o verbo
“enatuar” (to enact) para designar sua compreensão da ação cognitiva.
172
O conceito de emergência tem relação com o que foi chamado, acima, de causalidade
organicista, ou seja, com as abordagens de Bertalanffy e Weiss. Isto é, busca dar conta de
descontinuidades observadas entre o comportamento individual de elementos de um sistema e
o comportamento global deste último. E, embora, na história da ciência, não se aplique apenas
ao desenvolvimento dos sistemas vivos, no que concerne à cognição corpórea seu sentido é,
basicamente, o de explicar processos orgânicos e mentais de modo não reducionista. Para
ficar mais claro seu emprego na cognição corpórea, levemos em conta o seguinte fragmento
de Varela, no qual é ressaltado o sentido ontológico da emergência:
A noção de emergência é difícil, pois embora essencial, tem sido geralmente mal
interpretada. Utilizo o termo emergência em um sentido mais técnico. Quando
observamos a forma como o cérebro funciona, ou melhor, o funcionamento do
processo de cognição, há cada vez mais evidências de que estamos lidando com
componentes muito individuais, neurônios ou grupos de neurônios, ou populações
de neurônios. O trabalho do neurocientista é investigar essas células e tratar de
compreender seu funcionamento, a impressionante riqueza do cérebro e a
complexidade extraordinária de milhões e milhões de conexões complexas.
Podemos nos referir a esses elementos locais em interação como regras locais; essas
regras locais e interações locais não são como a transferência de informações em um
computador – o envio de mensagens de um lado para outro de forma sintática ou
programática. Estas interações ocorrem em tempo real de forma muito rápida,
dinâmica e simultânea. O que disso se depreende é algo que ainda não parou de me
surpreender, e é que a partir deste elemento local surge um processo global, um
estado global ou nível global que não é independente dessas interações locais
nem redutíveis a elas. Trata-se da emergência de um nível global que surge a partir
das regras locais; e que tem um status ontológico diferente, porque traz consigo a
criação de um indivíduo, ou de uma unidade cognitiva. Então, quando veem um
animal em movimento, ou me veem dirigindo-lhes a palavra, eu me comporto
como uma unidade coesa, não como uma mera justaposição de movimento, voz,
olhar e postura. Eu sou uma unidade integrada, mais ou menos harmônica, o que eu
chamo de "eu mesmo" ou "minha" mente, e vocês interagem comigo nesse nível.
(...) Esta interação está ocorrendo no nível da individualidade, que é o global, o
emergente. Mas sabemos que o global é simultaneamente uma causa e consequência
das ações locais que acontecem o tempo todo no meu corpo (VARELA, 2000, p. 5 –
grifos em negrito meus)
67
Para um compreensivo panorama da emergência na filosofia da mente v. CRANE, 2001 e KIM, 2006.
177
68
Para um maior aprofundamento sobre as divergências entre as posições correntes sobre a emergência de
propriedades mentais – especialmente de Jaegwon Kim – e as posições enativistas, v. o apêndice B de
THOMPSON, 2007, de onde se extrai o seguinte trecho: “O reducionismo parte/ todo anda de mãos dadas com
uma metafísica atomista de dados físicos básicos e suas configurações mereológicas, uma metafísica que Kim
subscreve aparentemente (1993, p. 77, 96-97, 337). Ao mesmo tempo, ele também, aparentemente, acredita que
nada na disputa filosófica sobre emergência depende de definições gerais precisas de "físico" (1993, p. 340).
Mas isso parece errado em ambas as explicações. No contexto da ciência contemporânea, como vimos,
"natureza" não consiste em elementos básicos, mas em campos e processos, e esta diferença entre o ponto de
vista do processo e uma partícula elementar da versão da metafísica de substâncias cartesianas faz diferença para
as questões filosóficas sobre a emergência (Campbell e Bickhard 2002; Hattiangadi 2005). No primeiro ponto de
vista, não há um nível inferior dos elementos básicos com propriedades intrínsecas que ascende determinando
todo o resto. Tudo é processo em todo o trajeto "para baixo" e "para cima”, e os processos são irredutivelmente
relacionais, eles existem apenas em padrões , redes, organizações, configurações ou camadas. Para a visão
reducionista parte/todo , "para baixo" e "para cima" descrevem níveis de realidade mais e menos fundamentais.
Níveis mais elevados são realizados e determinados por níveis mais baixos (o "modelo em camadas da
realidade"; ver Kim 1993 , p. 337-339). Do ponto de vista do processo, "para cima" e "para baixo" são termos de
contexto relativo usados para descrever fenômenos de vários escala e complexidade. Não existe um nível de base
de entidades elementares para servir como a última "base de emergência" na qual tudo se fundamenta.
Fenômenos em todas as escalas não são entidades ou substâncias , mas processos relativamente estáveis , e uma
vez que os processos alcançam a estabilidade em diferentes níveis de complexidade, ao mesmo tempo
interagindo com processos em outros níveis, todos são igualmente reais e nenhum tem primazia ontológica
absoluta.” (THOMPSON, 2007, p. 440-441).
178
Outras considerações sobre o conceito de emergência ainda serão feitas adiante, mas
no âmbito já das teorias corpóreas. Porém, há ainda necessidade de tratarmos de outro
aspecto, que complementa tecnicamente as características da noção de sistema que orienta os
modelos corpóreo-experienciais, e que vimos estar presente nas questões da auto-organização
e da emergência: a complexidade.
69
Ver, por exemplo, BITBOL, 2007, e DI PAOLO et al 2010, p. 40.
179
trabalho não se restrinja à de modelo matemático (vide seção 1.1.1), referências de vários
autores a sistemas complexos costumam incluir a menção a modelos matemáticos dinâmicos
como forma de explicar tais sistemas. É como diz Fritjof Capra, assimilando sistemas auto-
organizados à noção de complexidade:
O que se depreende desta afirmação é que até mesmo para se conceber a ideia de
sistema complexo foi necessário o desenvolvimento de ferramentas matemáticas. É
conveniente, contudo, dar um passo atrás para examinar, antes dos sistemas complexos e dos
sistemas dinâmicos não-lineares, alguns aspectos gerais da ideia de sistema dinâmico.
Mencionando sua aplicação à cognição, Evan Thompson fornece a seguinte descrição da
noção de sistema dinâmico, assinalando a ambiguidade, que já foi mencionada anteriormente
neste trabalho, que envolve duas acepções de sistema – o objeto “real”, e a sua representação
teórica.
180
[Nos sistemas dinâmicos lineares], dados os valores iniciais das variáveis (as
condições iniciais), todos os estados futuros do sistema podem ser conhecidos sem
se recalcular o estado do sistema para cada incremento de tempo. (...) Quando as
equações contêm termos não lineares – funções em que o valor de saída não é
diretamente proporcional à soma das entradas – então, tal solução é impossível.
Portanto, uma abordagem matemática diferente tem de ser adotada a fim de se
encontrar uma fórmula que possibilite a previsão de um estado futuro a partir de um
estado presente (Ibid., p. 39-40).
Embora não mencione auto-organização, mas apenas organização, este trecho (escrito,
como se vê, na última virada de século) enseja que se pense em um fato: a noção de
complexidade em seres vivos tem sido com tal frequência associada à de auto-organização,
que dificilmente se pode defini-la, nas ciências da vida recentes, de maneira isolada desta
inter-relação. Sobre este ponto, levemos em conta os dois textos abaixo, o primeiro de Henri
Atlan e o segundo de Jean-Pierre Dupuy e Paul Dumouchel, que fazem alusão à origem
cibernética70 não apenas de ambos os conceitos, mas também de sua vinculação mútua:
Que querem dizer essas noções de informação, código e programas, aplicadas, não a
máquinas artificiais, mas a sistemas físico-químicos naturais? O fato de qualificá-las
de psicológicas não basta, porque, embora a psicologia as utilize, elas não são
apenas psicológicas. São, na verdade, noções cibernéticas que se situam “no ponto
de articulação do pensamento e da matéria’’ (Costa de Beauregard), ou “entre a
física e a biologia” (S. Papert), e que fazem com que voltemos a nos interrogar sobre
a questão da realidade material ou ideal das noções físicas, até mesmo as mais
corriqueiras. Com efeito, se nos restringirmos à biologia, essas noções, pelas
respostas que sugerem para as antigas questões sobre a origem da vida e a evolução
das espécies, de fato provocam a emergência de indagações inteiramente novas e
fundamentais sobre a realidade física da organização, sobre a lógica da
complexidade e sobre a lógica dos sistemas auto-organizadores (ATLAN,
1992[1979], p. 20 – grifo meu).
70
Para uma discussão do tema da complexidade no âmbito da cibernética, considerando o conceito de
informação, na Nona Conferência Macy, v. o texto “Feedback mechanism in cellular biology”, de Henry
Quastler (VON FOERSTER, 1952, p. 167-181).
183
Varela e seus coautores, no mesmo livro, assinalam duas limitações do modelo lógico-
proposicional, que, segundo eles, teriam provocado o desenvolvimento da alternativa
conexionista. Ressalte-se que esta argumentação vem ao encontro da ideia defendida neste
trabalho de que não apenas a cognição corpórea, mas também muitas das formulações que a
influenciaram, decorreram de tentativas de solucionar problemas que o modelo lógico-
proposicional teria se mostrado incapaz de enfrentar:
1) O fato de o processamento simbólico de informações ser baseado em regras
sequenciais, aplicadas uma por vez, naquilo que os autores chamaram de “gargalo
de Von Neumann”. Tal limitação é crucial na medida em que não permite dar
conta de “um grande número de operações sequenciais, como a análise de imagens
ou a previsão do tempo.” Esta deficiência recomendaria supor um processamento
paralelo. (Ibid., p. 86);
2) O fato de o processamento simbólico de informações ser “localizado”, o que
implica que a “perda ou o mau funcionamento de qualquer parte dos símbolos ou
regras do sistema resulta em uma disfunção séria.” Esta limitação recomendaria
supor um processamento distribuído. (Ibid.).
Percebe-se que ambas as limitações se aplicam não apenas à cognição humana, ou ao
cérebro. Alcançam também o processamento de máquinas computacionais. Isso nos leva a
compreender que o modelo lógico-proposicional seria uma simplificação excessiva, mesmo
para as necessidades da inteligência artificial, o que é corroborado pela tentativa de se
desenvolverem computadores dotados de processamento distribuído e paralelo, por vezes
inspirados na própria arquitetura do cérebro – o que seria chamado de “brain-style modeling”
(RUMELHART& MCCLELLAND, 1986; PINKER & PRINCE, 1988).
Mas, Varela, Thompson e Rosch acrescentam ainda que uma importante mudança
proporcionada pelo conexionismo teria sido utilizar como padrão de cognição a criança, em
vez do especialista. Isto porque “ficou claro que o tipo mais profundo e fundamental de
inteligência é a do bebê capaz de adquirir a linguagem a partir de enunciados cotidianos
dispersos, e de formar objetos significativos a partir do que parece ser um mar de luzes”
(Ibid.). No mesmo texto, eles ainda ressaltam a característica de plasticidade do processo
cognitivo. Referem-se à “regra de Hebb”, proposta por Donald Hebb, em 1949: “se dois
neurônios tendem a ser ativados conjuntamente, sua conexão é fortalecida; caso contrário, ela
é enfraquecida. Consequentemente, a conectividade do sistema torna-se inseparável de sua
história de transformações” (Ibid., p.87). Estas duas concepções são de fundamental
importância para o que neste trabalho é considerado o cerne da ideia de cognição corpórea:
185
que os significados cognitivos são desenvolvidos, nos e pelos indivíduos, através de suas
experiências de interação e transformação sensório-motora com o mundo, e não obtidos
através do acesso a uma suposta estrutura transcendente de sentidos literais. Ao contrário, a
suposição de que os significados cognitivos são previamente estabelecidos, e alimentam um
processo algorítmico de manipulação de símbolos, toma como padrão o modo de raciocinar
“correto” científico ou filosófico, assumido como a forma mais plenamente desenvolvida de
cognição.
Curiosamente, as abordagens conexionista e dos sistemas dinâmicos não lineares,
embora aplicadas ao cérebro, significam uma preparação da valorização do corpo como um
todo na compreensão da cognição, própria da cognição corpórea. Em primeiro lugar, por
apontarem as limitações do modelo lógico-proposicional, que é a imagem da cognição
desencarnada por excelência. Em segundo lugar, por contribuírem para a concepção de uma
noção de cérebro como corpo, inclusive no seu caráter de autotransformação. E em terceiro
lugar – o que de certa forma é um corolário do fator anterior – por fortalecerem a admissão de
conexões orgânicas entre o cérebro e o resto do corpo.
Quanto às características específicas dos sistemas dinâmicos não lineares – aqui
considerados como os sistemas “em si”, e não no sentido da ferramenta matemática, por mais
problemática que seja essa suposição –, ressalte-se a seguinte afirmação de Raymond Gibbs:
Uma característica fundamental dos sistemas dinâmicos é que eles são auto-
organizados – eles chegam a novos estados simplesmente através de seu próprio
funcionamento, sem especificação do ambiente ou de determinação vinda de dentro.
Com a mudança contínua de um ou mais parâmetros de controle (de modo
semelhante, mas não equivalente a variáveis independentes), novos estados surgem
espontaneamente como uma função não linear de interações entre os componentes
dos sistemas. (GIBBS, 2005, p. 225).
Segunda Cibernética e da Teoria Geral dos Sistemas, e como já foi advertido anteriormente
neste trabalho, a cognição corpórea pode ser compreendida como uma síntese de diversas
noções produzidas por aquelas tradições. Por este prisma, o que a cognição corpórea tem feito
é promover uma convergência eminentemente científica – isto é, não apenas teórica mas
experimental e observacional – dos temas ligados à teoria dos sistemas dos anos 1960 e 1970.
O esforço que se nota é para dar um novo sentido a noções como auto-organização,
emergência e complexidade. Ou, melhor dizendo, o efeito da estratégia explícita da orientação
corpórea tem sido promover uma composição destas noções de tal maneira que elas
convergem e quase se fundem. Para melhor compreender este ponto, mais uma vez será
considerada uma formulação de Varela, Thompson e Rosch:
Foram grifados nesta passagem os termos que denotam exatamente as noções de auto-
organização, emergência e complexidade, mas sobretudo para demonstrar como elas se
aproximam umas das outras na cognição corpórea – ou, ao menos, no enativismo. E podemos
dizer também que a chave para compreensão desta aproximação, ou desta síntese, está na
frase grifada: “Em tal sistema, não há necessidade de uma unidade de processamento central
para orientar toda a operação”. Isto quer dizer que foi através, sobretudo, da recusa a um dos
pilares do cognitivismo – o processamento central – que se promoveu a síntese aqui
mencionada. Dito de outra forma: ambas as decorrências históricas da primeira cibernética,
quais sejam, as ciências cognitivas clássicas e a Segunda Cibernética, se encontram dessa
forma na gênese da cognição corpórea. As ciências cognitivas clássicas, como alvo de
rejeição em seus pressupostos cognitivistas mas, também, como padrão de
multidisciplinaridade no estudo da cognição; a Segunda Cibernética, como origem de noções
novas, mais ainda dispersas e pouco amadurecidas: ambas, contudo, proporcionaram
motivações para que, mediante a contestação do modelo-lógico-proposicional do
cognitivismo, as noções de auto-organização, emergência e complexidade adquirissem
187
coerência inédita. Desta maneira, a imprecisão apontada anteriormente, quando foi referido o
conceito de auto-organização tal como tratado por Dupuy, se reduz. Mas somente se reduz
porque há uma nova noção de sistema, para a cognição corpórea que, necessariamente, se
ergue da rejeição à noção de sistema do cognitivismo. Sendo assim, podemos considerar que
o trecho recém citado de Varela et al apresente, a seu modo, uma definição de sistema
bastante adequada para a cognição corpórea – sobretudo se assinalarmos que se trata de um
sistema ao mesmo tempo observado e observador e, em ambas as perspectivas, ativo.
Ademais, na passagem acima fica bem caracterizado aquilo que Isabelle Stengers chamou de
causalidade organicista, desde que se esteja falando de sistemas vivos. Isto porque na
concepção de sistema nela proposta não se apela para princípios holistas ou vitalistas para
tentar explicar como a coerência global nos seres vivos nasce de comportamentos que fogem
ao padrão mecanicista, ou para apresentar uma alternativa ao reducionismo. No trecho citado,
ao contrário, encontramos uma concepção materialista. Haverá ensejo nas próximas seções
para que se retome, sob outros prismas, a questão do materialismo da cognição corpórea. Mas,
com o que se acaba de discorrer, podemos dar por concluída a incursão sobre os antecedentes
da cognição corpórea relacionados ao conceito de sistema, e suas transformações ocorridas
nos últimos séculos, com ênfase naquelas que se deram no século 20. A seguir, serão
abordados dois outros temas importantes para a eclosão da cognição corpórea, ainda no
âmbito biofisiológico: o primeiro é o da autopoiese; o segundo virá indiretamente através da
fenomenologia, por meio das influências da Gestalt na biologia; Posteriormente, se tratará da
influência da psicologia, da linguística e de fatores culturais na cognição corpórea.
O primeiro dos dois temas retoma, de certa forma, o conceito de autonomia, e, embora
ainda relacionado às transformações do conceito de sistema e próxima às noções de auto-
organização, emergência e complexidade, trouxe algumas questões e características
destacadamente novas e de extrema relevância para a gestação da cognição corpórea: trata-se
do conceito de autopoiese. Para identificar as raízes deste conceito, retomemos o trabalho de
Heinz Von Foerster, porém agora como empreendedor científico, para analisar, ainda que com
brevidade, a importância do seu Biological Computer Laboratory para o nascimento da
cognição corpórea. O Biological Computer Laboratory foi fundado na Universidade de
Illinois, em 01/01/1958 – ou seja, quase cinco anos após a décima e última das Conferências
Macy, das quais Von Foerster foi relator. No período entre as Conferências Macy e a
188
fundação do Biological Computer Laboratory, Von Foerster realizou, entre outros, trabalhos
com Warren McCulloch no MIT e com Arturo Rosenblueth no México, com ênfase em
neurofisiologia e fisiologia muscular (MÜLLER, 2000, p. 283). Não cabe nos limites desta
pesquisa apresentar uma análise comparativa entre o Biological Computer Laboratory e
outras iniciativas que tiveram importância para as ciências cognitivas, como as próprias
Conferências Macy, o acolhimento às pesquisas de Herbert Simon e Allen Newell pela
RAND Corporation ou mesmo o financiamento Sloan – embora uma comparação deste tipo
possa ser bastante útil para a compreensão dos desafios colocados ao paradigma cognitivista
no período. Um ponto que merece maiores esclarecimentos é aquele das causas do fim do
laboratório por falta de recursos, em 1974. É suficiente, contudo, para atender aos propósitos
deste trabalho, registrar que participaram do Biological Computer Laboratory, de vários
modos, cientistas como os ingleses W. Ross Ashby, Stafford Beer e Gordon Pask; os alemães
Gotthard Günther e Ernst Von Glasersfeld; e os chilenos Humberto Maturana, Francisco
Varela e Ricardo Uribe, entre outros. Este caráter internacional diferencia a iniciativa em
relação às outras citadas, sem deixar de se vincular às inclinações heterodoxas do local.
Afinal, o Biological Computer Laboratory foi o centro de pesquisa mais importante da
Segunda Cibernética. Não apenas isto; a importância do Biological Computer Laboratory
para o conceito de autopoiese fica evidente na seguinte citação:
Para que se esclareça a relação entre a ideia de autômato e a de ser vivo neste
contexto, as diferenças entre auto-organização e autopoiese, e a importância disto para a
cognição corpórea, alguma incursão precisa agora ser feita aos antecedentes chilenos do
conceito de autopoiese, sobretudo à obra de Maturana.
Um aspecto relevante da contribuição de Maturana está na noção de que os seres vivos
se caracterizam pelos processos através dos quais se conservam. Segundo seu próprio
depoimento (MATURANA & VARELA, 1998 [1974]; MATURANA, 2012), ele chegou a
esta ideia a partir das perguntas equivalentes: "O que começou quando os seres vivos
começaram a existir na Terra e foi conservado desde então?”, ou "Que tipo de sistema é um
sistema vivo?". A segunda forma da questão já foi brevemente discutida nas páginas
anteriores, sobretudo quando foram examinados os trabalhos de Von Bertalanffy e Weiss.
Contudo, a resposta que Maturana propôs – e que está na origem da noção de autopoiese – se
diferencia daquelas que levaram ao conceito de auto-organização de seres vivos, tal como
investigado neste trabalho até o momento. Ela se notabiliza por estar centrada na ideia de
individualidade:
190
Eu pensei que o que era fundamental para explicar e compreender os sistemas vivos
era atentar para a sua condição de seres discretos, entidades autônomas que vivem a
sua vida como unidades independentes. Na verdade, eu pensei (como eu ainda faço)
que a coisa mais importante sobre a biologia como uma ciência é o fato de que o
biólogo lida com entidades discretas e autônomos que, em sua operação individual,
geram fenômenos gerais que são válidos para todos os membros da classe de seres
vivos: o que é central na biologia é o que acontece na vida dos seres vivos como
individualidades. Ao mesmo tempo, eu acho que a coisa mais importante na física
como uma ciência é que o físico lida com leis gerais e não com as particularidades
das entidades que, estando subordinados a elas, tornam o funcionamento dessas leis
aparentes através de suas relações e interações: o que é central na física são as leis
gerais que definem o que é possível e o que não é possível nas relações e interações
de entidades em geral, sem se importar com a sua possível individualidade
(MATURANA & VARELA, 1998 [1974], p. 11 – grifo meu).
Nota-se que, diferentemente do que vimos nos diversos aspectos do conceito de auto-
organização, o que mais importa na clausura operacional é a independência do sistema em
relação ao ambiente, no que diz respeito à sua capacidade de se manter. Este seria o caráter de
sua autonomia, que não chega a revelar incompatibilidade entre auto-organização e
autopoiese. Digamos que o primeiro conceito é mais geral do que o segundo, uma vez que
este se refere a sistemas que se autocriam, autoproduzem, no todo e em suas partes, e não
apenas organizam, por si mesmos, partes pré-existentes. Disto decorre uma importante
implicação para a cognição corpórea: os sistemas autopoiéticos, ou autônomos, dependem
essencialmente de sua estrutura interna para se manterem e se autoproduzirem. Isto, acrescido
do fato de que a cognição é entendida como um processo vital pela orientação corpórea,
confere papel fundamental para as dinâmicas e estruturas dos seres individuais na geração dos
significados cognitivos. Tal é a compreensão que se explicita quando Maturana afirma que os
indivíduos que chama de “unidades compostas são sistemas determinados por suas estruturas”
(MATURANA, 1988, p. 7), se reforça no comentário de Varela de que Maturana realizou a
conexão entre a circularidade dos processos neuronais e dos processos orgânicos (VARELA,
191
Alguns pontos deste trecho exigem destaque, uma vez que trazem algumas
informações valiosas sobre como a noção de sistema tem sido tratada na cognição corpórea. O
primeiro deles, contudo, diz respeito a como o conceito de autopoiese é associado por
Thompson apenas à autonomia celular. Dito de outra forma, o autor restringe a noção de
autopoiese ao caso da célula. Mas, em outra passagem do mesmo livro, Thompson esclarece a
importância da noção de autopoiese para a compreensão das de autonomia e autoprodução:
no qual ele se produz ao realizar processos cognitivos e, além disso, realiza estes processos de
modo dependente de sua estrutura individual, de seu organismo, de seu corpo.
O intuito de se analisar aqui o conceito de autopoiese não é de avaliá-lo em todos os
seus aspectos e limites. Isto fugiria ao escopo deste trabalho. Por esta razão, basta que seja
indicada a relevância deste conceito para as teses da cognição corpórea. E esta relevância não
é pequena, ainda que a noção de autopoiese não venha sendo mencionada com muita
frequência nos textos mais influentes da cognição corpórea71 – como, por exemplo, The
embodied mind, Philosophy in the flesh, ou nos livros de Mark Johnson e António Damásio.
A autopoiese (como “explicação” da noção de autonomia – VARELA, 1981) serve como
meio de compreensão do que, como já vimos em citação anterior de Varela et al (1991),
significa autonomia em oposição a heteronomia ou alonomia (VARELA, 1981), que
corresponderiam a um controle externo. No caso da cognição, a heteronomia se associa ao
modelo lógico-proposicional, na medida em que o controle externo do organismo se dá
mediante um sistema simbólico abstrato e a ele transcendente, no qual os significados são
produzidos predominantemente através de estímulos, ou inputs, exógenos.
Este aspecto não pode, contudo, ser plenamente compreendido fora do contexto
político e do questionamento ontológico que o precederam.
É necessário fazer uma incursão aos acontecimentos que antecederam a disseminação
do conceito de autopoiese, inseparáveis de seu próprio sentido para a cognição. Cabe então
mostrar que Von Foerster teve papel central na aceitação internacional do conceito,
considerando o contexto da vinculação da sua produção a seu local de nascimento e às
dificuldades de sua penetração no meio científico dominante norte-americano, conforme
importante narrativa de Varela (VARELA, 1996)72. O seguinte trecho revela com propriedade
a consciência que Varela tinha sobre as relações entre o conceito, sua origem, sua influência e
seu sentido ontológico-político:
71
Uma importante exceção é o livro Mind in life, de Evan Thompson, no qual há um capítulo, de cerca de 35
páginas, inteiramente dedicado ao conceito. Para discussões mais pormenorizadas a respeito do conceito de
autopoiese, no interesse da cognição corpórea, v. BOURGINE & STEWART, 2004 e FROESE & STEWART,
2010.
72
Este artigo – contendo uma atitude política de Varela quanto à ciência – já foi referido na introdução deste
trabalho.
193
Se a autopoiese tem sido influente é porque ela foi capaz de alinhar-se com um outro
projeto que se concentra na capacidade interpretativa do ser vivo e concebe o ser
humano como um agente que não descobre o mundo, mas sim o constitui. É o que
poderíamos chamar de guinada ontológica da modernidade que, no final do século
XX, está tomando forma como um novo espaço de interação social e de pensamento,
e que, sem dúvida, está progressivamente mudando a face da ciência. Em outras
palavras, a autopoiese é parte de um quadro muito maior do que a biologia, no qual
hoje detém uma posição privilegiada. É essa sintonia com uma tendência histórica,
intuída mais do que conhecida, que é o núcleo das primeiras ideias sobre a
autopoiese (VARELA, 1996, p. 407-408 – grifo em negrito meu).
Chile do início dos anos 1970. Ademais, não deve ser negligenciado o fato de que o próprio
artigo, ainda que retrospectivo, possa ser compreendido como um texto motivado
politicamente, justamente no sentido de não deixar que seja esquecido, em nenhum momento,
o sentido ontológico-político da autopoiese.
Varela destaca, dentre as principais influências que teve no período anterior à
elaboração do conceito, seu aprendizado como orientando de Maturana, suas leituras
filosóficas e a cibernética.
Quanto à filosofia, Varela aponta a importância da fenomenologia de Husserl,
Heidegger e Merleau-Ponty em sua formação. Como é bem conhecido – e como veremos
adiante –, especialmente a filosofia de Merleau-Ponty foi essencial para a elaboração da
concepção ontológica da cognição corpórea, e isso se deve sobretudo à leitura que Varela fez
deste filósofo desde sua juventude.
Entretanto, neste artigo Varela revela uma influência menos conhecida: aquela de
filósofos da ciência como Thomas Kuhn, que defenderam a natureza histórico-social da
dinâmica científica. Varela afirma que as noções kuhnianas de revolução científica, anomalia
e paradigma foram conscientemente utilizadas por ele ao defender a autopoiese como uma
nova concepção para o fenômeno da vida – isto é, como um novo paradigma biológico. Em
outras palavras, Varela adotou os conceitos de Kuhn – especialmente aqueles desenvolvidos
em A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1978 [1962]) – não como forma de
explicar a posteriori as transformações no cenário da ciência, mas como tentativas de
provocar estas transformações, o que não deixa de ser incomum. Foi com este raciocínio que
ele identificou como anomalia da então biologia normal (para fazer alusão ao conceito e
ciência normal, de Kuhn), a insatisfação dele e de Maturana com a noção de informação como
chave para a compreensão da cognição. Esta posição teria levado ele e Maturana a buscar
reformular a ideia de epistemologia experimental, originalmente proposta por McCulloch,
com quem Maturana trabalhara no MIT.
De 1968 a 1970, Varela teve outra experiência importante para sua formação como
cientista, e que também aguçou sua percepção das diferenças entre as concepções então
tradicionais e o que chamou de sua heterodoxia: foi quando fez seu Doutorado em Biologia na
Universidade de Harvard. Lá, estudou, além dos temas ligados ao seu objeto principal,
antropologia, teoria dos sistemas dinâmicos não lineares, filosofia e linguística, e se deu conta
de que, diferentemente do que experimentara em Santiago, não havia recepção favorável às
questões epistemológicas que o interessavam mais vivamente. Sua maior referência nos EUA
era, então, exatamente Von Foerster, a quem visitou muitas vezes no Biological Computer
195
Laboratory, tendo então participado do encontro “Cognition: a multiple view”, promovido por
Von Foerster, no qual Maturana apresentou o trabalho “Neurophysiology of cognition” – que
viria a ser embrião da sua obra “Biology of cognition”. Mas, além disso, seu contato com a
política estudantil em Harvard, animada pela onda de maio de 1968 em Paris, foi crucial,
segundo sua própria narrativa, para que ele adotasse uma posição política voltada para a
transformação das condições de vida na América Latina. Coincidentemente, retornou a seu
país dois dias antes da eleição do socialista Salvador Allende para presidente da República do
Chile.
É se referindo ao período de Allende que Varela afirma, descrevendo os meses de
gestação do conceito de autopoiese:
Foram meses de trabalho e discussão quase constantes. Algumas das ideias eu testei
com os meus alunos no curso de biologia celular, outros com colegas no Chile.
Ficou claro para nós que estávamos embarcando em uma viagem que era
conscientemente revolucionária e anti-ortodoxa, e que esse valor tinha tudo a ver
com o clima no Chile, onde as possibilidades foram se desdobrando em uma
criatividade coletiva. Os meses que levaram ao desenvolvimento de autopoiese são
inseparáveis do Chile na época (VARELA, 1996, p. 412).
Assim, se nota que o conceito de autopoiese, em vez de ser estudado como um mero
conjunto abstrato de formulações teóricas, deve sê-lo, de acordo com sua importância para a
cognição corpórea, em função de sua íntima vinculação com o contexto em que foi elaborado
e, além disso, em função do modo como foi levado ao encontro do ambiente científico fora de
seu local de nascimento.
Varela reporta no artigo em análise que o primeiro texto em inglês contendo o
conceito de autopoiese – “Autopoiesis: the organization of the living systems”, de 1971, seu e
de Maturana – foi recusado por pelo menos cinco publicações internacionais às quais fora
enviado. A mesma indiferença teria ocorrido diante de sua palestra chamada “Cells as
autopoietic machines”, proferida na Universidade do Colorado, nos EUA, em 1972.
Por outro lado, Varela dá conta de alguns focos de boa receptividade para o conceito,
como as de Von Foerster, Ivan Illich, Erich Fromm e Stafford Beer, que escreveria o prefácio
de uma das edições dedicadas a ele, após trabalhar no Chile a convite do então ministro de
Allende, e futuro pesquisador da inteligência artificial, Fernando Flores.
Mesmo com a boa aceitação do conceito no Chile, apenas em 1973 foi publicada a
versão em espanhol do livro De máquinas y seres vivos: uma teoria de la organización
biológica. Porém, a tradução para o inglês do livro somente seria publicada em 1980.
196
Esta tendência que designo como guinada ontológica não é um modo filosófico, mas
sim um reflexo da vida de todas as coisas. Estamos entrando em um novo período de
fluidez e flexibilidade que arrasta consigo a necessidade de refletir sobre a maneira
pela qual os seres humanos fazem o mundo em que vivem, e não já o encontram
feito como uma referência permanente (Ibid., p. 415).
Esta densa passagem apresenta três pontos extremamente importantes para a presente
pesquisa e suas hipóteses sobre a cognição corpórea:
1) A ideia de que o momento histórico de então exigiu uma reflexão nova sobre a
construção humana do mundo, que articularia de modo inseparável as dimensões
biológica, cognitiva e politica;
2) A acepção ontológica da cognição como produção de um mundo, que se
consubstanciaria posteriormente no conceito de enação, oposta à perspectiva
representacional de sentido meramente epistemológico73, afinada com o
cognitivismo então ainda dominante nas ciências cognitivas;
3) Uma nítida posição filosófica – metafísica – do autor, que não se limita a uma
suposta neutralidade científica, e orienta seu posicionamento diante da sua
atividade de cientista no mundo, que ele, como vimos, compreende como algo que
é permanentemente produzido, e não apenas representado.
Cabe ainda uma suposição sobre este fragmento, coerente com o que foi exposto
anteriormente: de que, para Varela, a própria ontologia não seja apenas um ramo da filosofia,
73
Entenda-se como “meramente epistemológico” o sentido dos estudos sobre a cognição que considere
separadamente os sujeito e o objeto, como entidades independentes – tal como caracterizado pela crítica da
cognição corpórea.
197
mas uma expressão da própria vida humana se autoproduzindo – concepção que envolveria,
por certo, a filosofia mesma.
Ao examinarmos o conceito de autopoiese ficou bastante evidente o peso da reflexão
filosófica na sua elaboração. Através deste caminho, ocorreu, nesta seção, uma particular
transição de questões originalmente biológicas na direção de questões filosóficas. Estas
questões filosóficas passam a exigir elucidação, o que nos leva à segunda parte da seção, que
se dedicará prioritariamente às influências filosóficas da cognição corpórea. Prosseguiremos a
partir da ideia de guinada ontológica, ou da importância que tem a questão da produção de um
mundo para a cognição corpórea, sobretudo através da abordagem corpóreo-enativa. Porém,
há três observações a fazer a respeito. A primeira é que um aprofundamento da questão
ontológica, para a cognição corpórea, virá com a investigação das abordagens corpóreo-
enativa e corpóreo-conceitual, nas seções 2.3 e 2.4 – além de algumas considerações gerais
importantes na próxima seção. Sendo assim, ao contrário do que foi feito com o estudo dos
antecedentes biológicos da cognição corpórea – os quais não merecerão maiores
considerações nas seções seguintes –, não nos estenderemos muito nesta seção no que tange à
sua base ontológica, apresentando apenas as principais referências que posteriormente serão
detalhadas. A segunda observação é de que a questão ontológica que será tratada nas
próximas seções tem forte conexão com a importância da noção de experiência humana para a
cognição corpórea. Sendo assim, devemos investigar, agora, como nasceu a dimensão
experiencial da orientação corpórea. Veremos que ela se deve predominantemente à
abordagem corpóreo-enativa, e à influência da fenomenologia sobre ela. Mas a terceira
observação sugere que a filosofia que mais influenciou o enativismo, a fenomenologia do
comportamento e da percepção de Maurice Merleau-Ponty, já possuía, ela mesma, influências
de um modo de pensar os organismos vivos que antecipou em muitos aspectos a cognição
corpórea.
Tom Froese cunhou o termo guinada experiencial para designar – parafraseando
Varela – a atenção deste para com a fenomenologia como meio de compreender a experiência
humana, o que contribuiu para que propusesse o enativismo. Paralelamente à necessidade de
compreender a experiência humana, vem a necessidade de compreender o fenômeno da
vida74, a ela associado, que foi enfrentado por Varela sobretudo com a noção de autopoiese.
Froese afirma que “uma apropriada compreensão do fenômeno da vida deve levar em conta o
corpo concreto vivo, incluindo o suas propriedades materiais e termodinâmicas, e o corpo
74
A noção de fenômeno da vida, na maior parte dos trabalhos de Varela e Thompson, tem como origem a obra
de Hans Jonas (JONAS, 1966).
198
(VARELA et al, 1991, p. 173-175) a passagem inicial em que o autor afirma, baseando-se nas
teorias dos fisiologistas alemães Viktor Von Weizsäcker e Kurt Goldstein, que:
1) A concepção da cognição, com utilização da analogia de que o organismo animal seria
um teclado passivo, no qual os estímulos do mundo exterior seriam “tocados”, é
inadequada. Isto porque, segundo Merleau-Ponty – apoiado em Weizsäcker – o
organismo ao perceber não é passivo como um teclado, mas ativo. Dito de outra
forma: para que os estímulos sejam recebidos, o ser vivo que percebe tem que se
movimentar e a seus órgãos dos sentidos, de maneira ativa, para que a percepção, e
posterior ação, ocorram. Sendo assim, não se pode dizer, propriamente, que os
estímulos sejam apenas “recebidos”. Eles, de certa forma, são colhidos, buscados,
produzidos, pelo próprio animal. Deste modo, segundo Weizsäcker, citado por
Merleau-Ponty, “as propriedades do objeto e as intenções do sujeito (...) não apenas se
misturam, mas ainda constituem um todo novo” (MERLEAU-PONTY, 2006 [1942],
p.);
2) O mundo, portanto, não é algo independente das características do organismo que o
“conhece” – ou dele extrai elementos para sua sobrevivência. Ao contrário, conforme
a citação de Goldstein feita por Merleau-Ponty, “o meio (Umwelt) se recorta no
mundo segundo o ser do organismo – sendo claro que este só pode existir se encontrar
no mundo um ambiente adequado” (Ibid,. p. 15).
Tem-se a partir destas afirmações que na experiência perceptiva – que não é apenas de
percepção, mas precedida e seguida de ação – o mundo que importa não é o mundo
supostamente objetivo nem subjetivo, entendidos como separados, mas uma nova realidade
provocada pelo encontro das duas dimensões: aquela proporcionada pelo mundo exterior, e
aquela proporcionada pelo organismo. Nas palavras de Varela et al, “como Merleau-Ponty
observa, o organismo tanto inicia o ambiente, quanto é moldado por ele” e “devemos ver o
organismo e o ambiente como reunidos em especificação e seleção recíprocas” (VARELA et
al, 1991, p. 174).
É importante observar que Merleau-Ponty, ao desenvolver uma filosofia do
comportamento, da percepção e da ação, não se baseou unicamente em obras filosóficas.
Como já foi assinalado acima, a influência filosófica que, através da fenomenologia da
percepção, ajudou a produzir a noção de enação, decorre ela mesma de trabalhos científicos.
Isto deve provocar reflexões importantes sobre os limites que supostamente garantiriam a
pureza dos discursos filosófico e científico, e cujo questionamento é de fundamental
importância na cognição corpórea. Como já foi dito, este trabalho defende a ideia de que os
200
Pode-se dizer que, além desta concepção holística do ser humano, Goldstein se
aproxima da cognição corpórea por suas posições já assinaladas na obra de Merleau-Ponty.
Suas inclinações filosóficas se encontram presentes na sua concepção de biologia tal como
expressa no livro The organism, e de onde se extrai o seguinte fragmento:
.
201
O que se entende por mente sempre vai depender do que se entende por vida e
natureza. Parece-nos que, em geral, a concepção de espírito é (e para Scheler
também) determinada por uma noção incorreta do fenômeno da vida, porque ela foi
arrancada, "isolada", do todo a que pertence. Desta forma, a vida se tornou imbuída
de características realmente não atribuíveis a ela, um mero artefato de descrição
isolada. (GOLDSTEIN, 1995 [1934], p. 354).
Goldstein explicita neste texto sua consciência de que, por trás de um discurso
científico, há posições metafísicas sobre o significado dos conceitos utilizados, que não
deixam de influir nas conclusões teóricas75. Além disso, expõe sua própria concepção crítica
sobre conceitos como “vida” e “natureza” que, por sua vez, estarão presentes nas influências
que provocou em filósofos como Merleau-Ponty, Foucault e Canguilhem – e, ainda que em
sua maior parte indiretamente, sobre os autores da cognição corpórea.
A menção a Weizsäcker e Goldstein recupera alguns dos temas discutidos
anteriormente, quando nesta seção se tratou da importância do trabalho de alguns cientistas,
como sobretudo Weiss, no desenvolvimento de uma nova noção de sistema vivo – uma noção
marcada pelas ideias de holismo e auto-organização, mas buscando evitar apelar para uma
interpretação vitalista do fenômeno da vida. Contudo, deve-se ressaltar neste momento que a
influência de Weizsäcker e Goldstein se notabiliza não somente pelo sentido de propor novas
explicações para a natureza da vida, mas sobretudo por nascer de trabalhos já comprometidos
com novas concepções de ser humano, de saúde e da relação entre cognição e organismo.
Sendo assim, estes autores se aproximam de uma importante dimensão da cognição corpórea:
sua preocupação com as consequências práticas dos conceitos científicos. Ou ainda: que os
conceitos científicos podem nascer já comprometidos, de algum modo, com a destinação que
terão. Veremos mais à frente, em detalhe, como se manifesta este aspecto da cognição
corpórea – embora ele já venha sendo anunciado como sendo o sentido ontológico-político da
atuação dos autores dessa nova vertente das ciências cognitivas.
Quanto à influência de Merleau-Ponty sobre a cognição corpórea, contudo, não deve
pairar a desconfiança de que tenha sido tão somente uma transmissão direta das ideias de
cientistas como Weizsäcker e Goldstein. É preciso deixar patente que alguns conceitos de
Merleau-Ponty foram fundamentais, em si mesmos, para o desenvolvimento da noção da
cognição como acontecimento corpóreo-experiencial. Para explicitar esta convicção, deve ser
referido o sentido mais especificamente filosófico da concepção enativista. Para tanto,
levemos em consideração o início do livro The embodied mind:
75
Sobre as implicações da importância da metafísica na constituição da ciência moderna e contemporânea v.
VIDEIRA, 2011 e TAKIMOTO, 2013.
202
Pode-se dizer que o que é afirmado acima já foi dito com apoio de Weizsäcker e
Goldstein. Porém, a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty apresenta outras questões
além daquelas já apresentadas com apoio destes dois cientistas. Vejamos a citação abaixo,
unindo as questões da reflexão e da percepção, reproduzida, em parte no livro acima
mencionado:
Eu comecei a refletir, minha reflexão é reflexão sobre um irrefletido, ela não pode
ignorar-se a si mesma como acontecimento, logo ela se manifesta como uma
verdadeira criação, como uma mudança de estrutura da consciência, e cabe-lhe
reconhecer, para aquém de suas próprias operações, o mundo que é dado ao sujeito,
porque o sujeito é dado a si mesmo. O real deve ser descrito, não construído ou
constituído. Isso quer dizer que não posso assimilar a percepção a sínteses que são
da ordem do juízo, dos atos e da predicação. A cada momento, meu campo
perceptivo é preenchido de reflexos, de estalidos, de impressões táteis fugazes que
não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu situo
imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações. A cada
instante também eu fantasio acerca de coisas, imagino objetos ou pessoas cuja
presença aqui não é incompatível com o contexto, e todavia eles não se misturam ao
mundo, no teatro do imaginário. Se a realidade da minha representação só estivesse
fundada na coerência intrínseca das “representações”, ela deveria ser sempre
hesitante, e abandonado às minhas conjecturas prováveis, eu deveria a cada
momento desfazer sínteses ilusórias e reintegrar ao real fenômenos aberrantes que
primeiramente eu teria excluído dele (MERLEAU-PONTY, 2006 [1945], p. 06)
Este trecho bastante denso apresenta algumas questões que, embora não tenham sido
explicitamente exploradas pelos autores da cognição corpórea, parecem figurar como pano de
fundo de suas críticas à representação como processo intelectual, abstrato. A primeira delas é
a da reflexão como algo que já se dirige a um sujeito que não é separado do mundo. A
segunda, a da diferenciação entre os estímulos provenientes do mundo com aqueles
provocados internamente no sujeito, o que exige que se considere o mundo como realidade, e
o papel do sujeito como produtor de imaginação e fonte da distinção entre realidade e
imaginação. A terceira diz respeito à implausibilidade da percepção como análise e síntese
abstrata.
203
De fato, não se pode afirmar que as teses merleau-pontianas tenham sido suficientes
para se estabelecer a noção de enação, ou para fundar a concepção da cognição corpórea para
a inseparabilidade entre sujeito e objeto e entre percepção e ação. Como veremos nas seções
subsequentes, as influências da fenomenologia, seja originada em Husserl, William James,
Heidegger, Merleau-Ponty ou mesmo Hans Jonas, não foram a única fonte do enativismo.
Alguns resultados de pesquisas científicas tiveram grande peso na constituição da ideia de
enação, como será examinado em maiores detalhes adiante76. Assim, não se justifica neste
trabalho um aprofundamento da investigação sobre a fenomenologia de Merleau-Ponty, para
além do que expressamente é referido na literatura da cognição corpórea. Todavia, uma
citação de Merleau-Ponty feita por Varela e seus coautores merece ainda ser examinada: “O
mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que só é projeto do mundo, e o sujeito é
inseparável do mundo, mas de um mundo que ele mesmo projeta” (VARELA et al, 1991, p.
4). Coerentemente com o método que vem sendo adotado neste trabalho, não cabe uma
interpretação desta passagem à luz da obra merleau-pontiana em si, mas de acordo com a
apropriação que a abordagem corpóreo-enativa fez do autor. Neste sentido, embora não se
possam fazer afirmações com maior certeza a respeito – até porque os próprios autores não
deixam claro exatamente os critérios de sua apropriação –, esta citação parece demonstrar que
a unidade entre percepção e ação e aquela entre sujeito e mundo não são diferentes em
essência, ou decorrem de uma mesma condição. Isto é, a ideia de projeto vincula percepção e
ação, assim como sujeito e mundo, a partir da noção de que a ação do sujeito, embora
dependa do mundo e de sua própria estrutura, engloba a percepção que, sem a íntima
articulação com a ação, poderia ser apenas representação abstrata e desincorporada. Ou seja, a
experiência, para o enativismo, é essencialmente atividade corpórea que, por sua vez, se dá na
forma da experiência. Para corroborar esta ideia, devemos reproduzir as palavras dos
criadores do enativismo sobre Merleau-Ponty, naquilo que pode ser lido como um resumo de
sua posição sobre o autor:
76
As principais delas foram as pesquisas de Held e Hein com a percepção de gatos (VARELA et al, 1991,
p.174), de Bach y Rita com a “visão” tátil, e o trabalho sobre cores de De Valois (LAKOFF, 2003) e dos
próprios Varela e Thompson,
204
77
Esta palavra não foi traduzida, uma vez que se trata de neologismo de Gibson que não consta dos dicionários da língua
inglesa.
206
Em torno de 1975, um grande número de coisas chamou minha atenção (...). Uma
delas foi o trabalho de Charles Fillmore na semântica de enquadramentos78, no qual
ele mostrou que não se pode fornecer uma explicação do significado condicionada à
verdade, mas ainda assim explicar corretamente a distribuição de itens lexicais. O
trabalho de Eleanor Rosch na teoria de protótipos atraiu minha atenção em 1972, e
em 1975 eu tomei conhecimento da obra dela e de Brent Berlin na categorização de
nível básico (BAUMGARTNER & PAYR, 1995, p. 119).
A ideia de protótipo é mais ou menos esta. Em vez de o significado de uma forma linguística
ser representada em termos de uma lista de condições que têm de ser satisfeitas para que a
forma seja utilizada de maneira apropriada ou verdadeira, afirma-se que a compreensão do
significado requer, pelo menos em um grande número casos, um apelo a um exemplar ou
protótipo – este protótipo sendo possivelmente algo que é disponível de maneira inata para a
mente humana, possivelmente algo que, em vez de ser analisado, precisa ser apresentado,
demonstrado ou manipulado. A ideia de quadro é esta. Há certos esquemas ou estruturas de
conceitos ou termos que se articulam como um sistema, que impõem estrutura ou coerência
em algum aspecto da experiência humana, e que podem conter elementos que são,
simultaneamente, partes de outras tais estruturas (FILLMORE, 1975, p. 123).
[Em] 1975, eu ouvi Eleanor Rosch dar uma de suas primeiras palestras sobre
categorias de nível básico, que são as categorias de nível intermediário, como
cadeira, ao contrário da superordinada móvel e da subordinada cadeira de balanço -
ou de automóvel ao invés de veículo ou automóvel esporte. Rosch demonstrou que
as categorias de nível básico têm diferentes propriedades cognitivas das categorias
hierarquicamente superiores. Elas são definidos por nossas capacidades de
percepção gestáltica, movimento motor e imagens mentais. Compare cadeira e
móvel. É possível obter uma imagem mental de uma cadeira, mas não de uma peça
de mobiliário em geral (ao contrário de uma cadeira, cama, mesa ou sofá). Há
esquemas motores para interagir com cadeiras, mas nenhum para interagir com
peças de mobiliário em geral. Em suma, o nível básico é o mais alto nível em que as
imagens mentais, esquemas motores e percepção gestáltica caracterizam toda a
categoria e o nível básico é o nível ideal em que as pessoas interagem com os
objetos (LAKOFF, 2003, p. 57).
não trabalharam e não se apresentaram como cientistas cognitivos. Por outro lado, Varela –
sobretudo a partir do livro The embodied mind (VARELA et al, 1991)–, afirmou-se como um
cientista cognitivo, desde o início propondo que as ciências cognitivas seguissem um rumo
divergente daquele empreendido pelo cognitivismo. Sendo assim, ele realizou algo que
poderíamos considerar como que um recuo hipotético para o momento em que, da primeira
cibernética, nasceram as ciências cognitivas, o cognitivismo e a Segunda Cibernética, a fim de
propor que a partir daquela bifurcação de posicionamentos se desenhasse um outro rumo para
as ciências cognitivas – ainda que anos depois. Em outras palavras: sua proposta pode ser
interpretada como a afirmação de que as ciências cognitivas têm como prosseguir em
consonância com as intuições da Segunda Cibernética ou, inversamente, de que as
divergências da Segunda Cibernética em relação à primeira não precisariam abdicar das
ciências cognitivas – e que estas últimas, por tal motivo, podem se tornar radicalmente
diferentes de sua primeira feição mas, ainda assim, continuarem a ser chamadas pelo mesmo
nome.
Outra característica importante da contribuição de Varela foi, como se demonstrou
acima, ter enfatizado o caráter experiencial da cognição. Como vimos, no âmbito das ciências
cognitivas foi Varela que promoveu aquilo que Tom Froese chama de guinada experiencial
(FROESE, 2011) ao incorporar a suas pesquisas uma vertente filosófica de peso: a
fenomenologia – de Husserl, sobretudo, mas também de William James, Martin Heidegger e
Merleau-Ponty. Como teremos ocasião de examinar com maior minúcia mais à frente, a
abordagem enativista é aquela que, dentre as principais da cognição corpórea, tem sido
responsável por manter o enfoque experiencialista e fenomenológico com maior empenho.
Além disso, não se percebe nos autores das abordagens corpóreo-conceitual e corpóreo-
afetiva o mesmo envolvimento com a fenomenologia – embora, como veremos, todos se
preocupem em enfatizar o caráter experiencial da cognição, de uma forma ou de outra.
Considerando estes pontos, podemos afirmar que se deve predominantemente ao enativismo o
fato de que a cognição corpórea seja chamada adequadamente de cognição corpóreo-
experiencial.
Estas considerações reforçam duas hipóteses que vêm sendo defendidas neste trabalho:
de que o enativismo pode ser compreendido como a abordagem pioneira da cognição corpórea
e que, levando-se em conta especialmente a já mencionada guinada ontológica proposta por
Varela e sua atuação política, este pioneirismo (que se transformou em liderança, ao menos
durante o período inicial) comportou desde o princípio a proposta de continuidade das
211
ciências cognitivas – agora sobre outras bases, não mais em torno de um modelo dominante
da cognição, como no cognitivismo, e sim a partir de motivações ontológicas e políticas.
Por outro lado, deve ser destacado papel fundamental que o filósofo Mark Johnson
tem desempenhado na articulação das diversas abordagens da cognição corpórea, sobretudo
em seu livro The meaning of the body, de 2007. Neste livro, como veremos nas próximas
seções, Johnson realiza uma síntese filosófica das três abordagens que se destacam no
presente trabalho. Ele incorpora à sua própria abordagem os trabalhos de António Damásio e
Joseph LeDoux sobre os aspectos afetivos da cognição, e chega a adotar para si o termo
enação. Como base de suas afirmações, lança mão das influências tanto do anti-objetivismo
de Hilary Putnam e Richard Rorty, quanto do pragmatismo deste último, de John Dewey e
William James, entre outros – as quais serão amplamente exploradas nas seção 2.4 e, por esta
razão, deixaram de ser tratadas neste momento. E, como veremos, Johnson realiza uma síntese
mantendo a firme orientação ao mesmo tempo política e ontológica já encontrada em Varela.
Este novo caráter de unidade das ciências cognitivas, de acordo com a orientação
corpórea, será o principal objeto da próxima seção.
Esta seção apresenta a hipótese principal deste trabalho: de que, mesmo tendo
rejeitado o modelo lógico-proposicional da cognição, próprio do cognitivismo e unificador
das ciências cognitivas desde seu surgimento, a cognição corpórea demonstra que ainda
pretende manter coeso este campo de estudos. De início, esta intenção se evidencia no simples
fato de que a cognição corpórea se apresenta como uma corrente das ciências cognitivas, e
não como uma rejeição a este campo multidisciplinar. Todavia, o que se busca investigar aqui
é o modo como este engajamento ocorre. Quando neste trabalho se fala em cognição corpórea
está sendo referida a orientação corpórea das ciências cognitivas, como já foi assinalado, e
esta orientação se dá na forma da atividade de pesquisa, no posicionamento teórico e na
atuação pública de diversos autores. Porém, não se pode afirmar que todos os autores que têm
contribuído para as teses da cognição corpórea assumam os dois compromissos: criar e manter
uma corrente em especial, e defender a unidade das ciências cognitivas. De fato, grande parte
dos cientistas e filósofos que neste trabalho são compreendidos como envolvidos na
construção das teses da cognição corpórea não atuam explicitamente em favor das ciências
212
cognitivas, ou mesmo da cognição corpórea. Por outro lado, o que aqui se considera que
caracteriza um pesquisador como participante da orientação corpórea são dois critérios
principais: defender teorias que ao mesmo tempo enfraqueçam o modelo lógico-proposicional
da cognição, e buscar, ainda que não explicitamente, a unificação desta orientação ou de suas
teses essenciais. Assim, é preciso compreender o que significa dizer que a cognição corpórea
pretende manter a unidade das ciências cognitivas. Com esta ideia não se supõe, por certo,
que a cognição corpórea seja um sujeito com pretensões próprias, acima de seus praticantes. A
suposição é de que há duas atitudes: i) o esforço declarado e constante de alguns autores de,
adotando uma postura de liderança, advogarem as deficiências do cognitivismo e de seus
pressupostos, assim como as vantagens da abordagem corpórea para compreender a cognição
humana (este tem sido o caso – só para apresentar os exemplos mais notórios – de Francisco
Varela, Evan Thompson, Alva Noë, Shaun Gallagher, Raymond Gibbs Jr., George Lakoff,
Mark Johnson e António Damásio); ii) a pressuposição mais ou menos tácita que muitos
autores demonstram assumir das principais teses da cognição corpórea, mesmo que se
dediquem primordialmente a defender suas teorias específicas e não uma nova concepção
geral da cognição79. Desta maneira, o que é aqui chamado de cognição corpórea é um
conjunto de noções que se pode abstrair da atividade concreta, seja experimental ou teórica,
de um conjunto de pesquisadores, difundidos em diversos locais de pesquisa no mundo,
exercida basicamente desde os anos 1980. E é, portanto, através da identificação de atitudes,
explícitas ou não, dos referidos pesquisadores, que a presente pesquisa defende que há um
esforço coletivo de ao mesmo tempo modificar os compromissos teóricos das ciências
cognitivas e manter a coesão destas.
Há também dois pontos a destacar, quanto à atitude aqui definida como defesa da
unidade das ciências cognitivas sobre novas bases: em primeiro lugar, salvo raras exceções80,
não se encontra nos trabalhos dos diversos pesquisadores da orientação corpórea um empenho
em traçar articulações entre suas diferentes abordagens de tal modo que se constate uma
totalidade coerente de ideias; em segundo lugar, os pesquisadores que se destacam na
liderança da orientação corpórea têm procurado defender sua concepção da cognição lançando
mão de argumentos ontológicos – que ao mesmo tempo criticam pressupostos sobre a noção
de realidade que identificam no cognitivismo e apresentam novas teses a respeito da questão –
e argumentos políticos – que se dirigem, com frequência, às aplicações das ciências cognitivas
79
Para ter notícia de um grande número destes autores, v. os diversos exemplos de pesquisas apresentados em
GIBBS JR., 2005.
80
Um caso notável é o de JOHNSON, 2007, conforme será explorado adiante e já foi mencionado ao final da
seção anterior.
213
Dizer que a cognição é corpórea significa que ela surge a partir de interações
corpóreas com o mundo. Sob este ponto de vista, a cognição depende dos tipos de
experiências que se originam do fato de se ter um corpo com determinadas
capacidades motoras e perceptivas – que são indissociáveis –, e que em conjunto
formam a matriz dentro da qual raciocínio, memória, emoção, linguagem, e todos os
outros aspectos da vida mental são articulados. A noção contemporânea de uma
cognição corpórea contrasta com a postura predominante cognitivista, que considera
a mente como um dispositivo de manipular símbolos e, assim, preocupa-se com as
regras formais e processos pelos quais os símbolos apropriadamente representam o
mundo real (THELEN et al, 2001, p. 1).
Se, para Lakoff e Johnson, as metáforas na cognição são elementos geradores dos
conceitos, é necessário deixar patente qual a importância, o papel e a natureza dos conceitos
em sua abordagem, conforme as duas passagens seguintes de suas obras:
O importante não é apenas que tenhamos um corpo e que o pensamento seja, de
algum modo, corpóreo. O importante é que a natureza peculiar dos nossos corpos
molda nossas próprias possibilidades de conceituação e categorização (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 19)
Para explicar a cognição, Lakoff e Johnson dão ainda especial valor à imaginação
como elemento constitutivo da razão (JOHNSON, 1987, 139-172; LAKOFF & JOHNSON,
1999, p. 395-412). Mark Johnson dá destaque ao papel da imaginação na constituição de uma
cognição de natureza corpórea, já anunciando seu caráter social, como se constata no trecho a
seguir:
A imaginação é central para a racionalidade e significação humanas pelo simples
motivo de que aquilo que podemos experimentar e conhecer como tendo sentido, e
também a forma como podemos raciocinar sobre isto, são dependentes de estrutura
de imaginação que tornam nossa experiência o que é. Segundo esta visão, o sentido
não se encontra apenas nas proposições; ao contrário, ele permeia nossa
compreensão corpórea, espacial, temporal, culturalmente formada e carregada de
valores. As estruturas de imaginação são parte do que é compartilhado quando
compreendemos uns aos outros e quando somos capazes de nos comunicar dentro de
uma comunidade (JOHNSON, 1987, p. 172).
e ao fato de considerarem a maioria dos processos cognitivos não conscientes (LAKOFF &
JOHNSON, 1999, p. 9-15). Segundo tal perspectiva, as experiências sensório-motoras
passadas de um indivíduo transformam seu corpo, ficando nele inscritas. Por meio desta
inscrição, são valoradas de maneira a dar sentido às experiências individuais futuras. Sendo
assim, encontramos na abordagem corpóreo-conceitual uma primeira versão da ideia que
atribuo ao conjunto das propostas aqui apresentadas da cognição corpórea, de que o corpo é
transformado no processo cognitivo, mas também o transforma. Estes autores fundamentam,
assim, os conceitos em experiências corpóreas, recusando os modelos lógico-proposicionais
da cognição por compreenderem a cognição a partir de vivências irredutíveis a proposições:
as proposições e o sentido de seus termos é que se originariam de vivências corpóreas. A
mútua transformação é entre corpo e conceitos, com a ênfase em como os conceitos se
transformam.
A abordagem corpóreo-afetiva defende a participação central de emoções e
sentimentos na constituição corporal do processo cognitivo – com maior ênfase às decisões
racionais. Seu principal argumento, de António Damásio, é de que o corpo interfere na
cognição através do papel nela desempenhado pelas emoções e pelos sentimentos, estes
entendidos como processos de transformação do corpo – sendo o cérebro concebido como
parte do corpo, ainda que com funções centrais para a cognição. Em tais processos, as
experiências são vividas inseparavelmente das emoções e sentimentos que provocam, sendo
assim marcadas somaticamente (isto é, no corpo), e recuperadas, em parte inconscientemente,
quando o indivíduo vive experiências identificadas como semelhantes, com vistas a decisões e
ações (DAMÁSIO, 2004 [1994]; DAMÁSIO, 1996).
Damásio fornece também uma hipótese sobre como a memória se constitui
218
corporeamente, a partir das marcas deixadas pela experiência sensório-motora vivida pelo
organismo individual na interação com uma entidade – que será devidamente explorada na
seção 2.5.2. Deste modo, corpo e cérebro são modificados conforme as experiências se dão,
de modo significativo para as próximas experiências. Este processo cognitivo-afetivo é inter-
relacionado com um processo mais amplo, envolvido na promoção da homeostasia, ou
equilíbrio bioquímico essencial à manutenção da vida. Na abordagem corpóreo-afetiva, a
principal atenção é dada à mútua transformação entre conceitos e corpo, com ênfase em como
o corpo se transforma afetivamente. Damásio caracteriza o corpo e o cérebro como integrando
inseparavelmente o organismo – o que é fundamental para que se compreenda o processo
cognitivo como um processo orgânico e, assim, vital.
Para ilustrar e reforçar esta ideia, utilizemos, por exemplo, a seguinte afirmação de
Gerald Edelman sobre como o cérebro opera na geração de conceitos corpóreos, executando
desta forma um processo importante para a sobrevivência do organismo (característica que é
essencial também na abordagem enativista, como veremos nas próximas linhas):
Descritas resumidamente estas três abordagens principais, seguem breves notas sobre
as articulações entre elas, destinadas a reforçarem a relevância de cada uma e apontarem para
a unidade das ciências cognitivas que se opõem à orientação cognitivista. Deixando de
comentar, dados os limites deste trabalho, as numerosas referências recíprocas entre os
autores das três abordagens, ressaltam-se as seguintes confluências entre suas obras:
1) A abordagem corpóreo-conceitual compartilha com a corpóreo-enativa, sobretudo,
uma compreensão da cognição como um processo em que tanto percepção e ação,
quanto sujeito e objeto, são inseparáveis – o que envolve uma ontologia realista,
porém manifestamente não objetivista e não subjetivista;
2) As abordagens corpóreo-conceitual e corpóreo-afetiva compartilham principalmente a
compreensão da cognição como um processo de formação analógica de conceitos e
crenças, nos corpos individuais, realizados através das marcas – necessariamente
afetivas, e em grande parte não conscientes – neles deixadas e recuperadas pelas
experiências vividas;
3) As abordagens corpóreo-enativa e corpóreo-afetiva compartilham, de forma bastante
nítida, a compreensão da cognição como continuidade do processo de constituição e
219
anteriormente.
Por outro lado, como foi ressaltado na seção anterior, algumas pesquisas recentes em
neurociências, biologia, linguística e inteligência artificial81 criaram condições para a eclosão
de novos modos de pensar a cognição.
Mas em que medida estes modelos teriam deixado de depender de uma explicação
reducionista da cognição a processos cerebrais – assim como ocorreu na orientação
cognitivista? Além disso, em que sentido se pode dizer que a orientação corpórea não
apresenta uma compreensão trivial da fundação da cognição em processos neurofisiológicos?
Ambas as perguntas podem ser respondidas a partir da seguinte afirmação de António
Damásio, em que ele, de início, identifica um pressuposto dualista na apropriação das ideias
de Descartes pelas ciências cognitivas tradicionais, no processo de superação do reducionismo
fisicalista:
Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo que esteve na
origem, na metade do século 20, da metáfora da mente como programa de software.
De fato, se a mente pudesse ser separada do corpo, talvez fosse possível
compreendê-la sem recorrer à neurobiologia, sem nenhuma necessidade de saber
neuroanatomia, neurofisiologia e neuroquímica. É interessante e paradoxal que
muitos investigadores em ciências cognitivas, que se julgam capazes de investigar a
mente sem nenhum recurso à neurobiologia, não se considerem dualistas
(DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 281)
A partir deste trecho poderíamos ser levados a supor que a orientação corpórea – ao menos
aquela adotada por Damásio – se fundamentaria em um naturalismo restrito ao cérebro ou, no
máximo, ao sistema nervoso. Mas o próprio Damásio repele esta suposição, ao prosseguir:
O que fica claro nesta posição de Damásio é que a orientação corpórea não apenas
assume o desafio de combater o reducionismo neurobiológico mais trivial – como aquele que
Damásio critica acima –, mas o faz a partir da firme disposição em suplantar a solução dada
pelo modelo lógico-proposicional, no qual Damásio identifica uma feição incorpórea de
81
Para abordagens corpóreas da inteligência artificial, ver PFEIFER & BONGARD, 2007.
221
inspiração dualista. E isto passa pela concepção de novos modelos que exigem uma inovadora
perspectiva ontológica que, como acabamos de ver, corresponde à recusa das separações entre
mente e corpo, sujeito e objeto e percepção e ação.
Antes de se passar mais detalhadamente à questão ontológica tal como apresentada
pela cognição corpórea, é preciso apontar ainda três dimensões que se destacam na
compreensão da cognição como transformação – e autotransformação. Na primeira, se
evidencia uma forte crítica à noção de cognição como transformação simbólica (tal como
afirma a citação de Jerry Fodor no final da seção 1.2.2), apenas. E esta crítica pode ser
exemplificada até mesmo na obra de um autor que se notabilizou como um dos pioneiros da
inteligência artificial, como Marvin Minsky. Nela, Minsky aponta para um fato extremamente
importante que considera ocorrer na cognição humana, e que tem o poder de contestar
profundamente orientação cognitivista da cognição:
Por que processos são tão difíceis declassificar? Em épocas anteriores, usualmente
podíamos julgar máquinas e processos pela forma com que transformam matérias-
primas em produtos acabados. Mas não faz sentido falar de cérebros como se
fabricássemos pensamentos da mesma maneira como fábricas fazem carros. A
diferença é que os cérebros usam processos que mudam a si mesmos, e isso significa
que não podemos separar tais processos dos produtos que eles produzem. Em
particular, os cérebros produzem memórias, que mudam as formas com que vamos
pensar subsequentemente. As principais atividades do cérebro consistem em fazer
mudanças em si mesmo. Porquea idéia de automodificação dos processos é nova
para a nossa experiência, ainda não podemos confiar em nosso julgamento comum
sobre tais questões (MINSKY, 1985, p. 288).
Como podemos observar, os argumentos de Minsky apresentam bons motivos para que os
cientistas cognitivos passem a desconfiar do modelo fabril de transformação de inputs em
outputs, ou mesmo renunciar a seu poder preditivo, já que o cérebro, ao contrário das fábricas,
não modificaria constantemente apenas suas matérias primas, mas suas próprias linhas de
produção, o que aumenta enormemente a complexidade de seu objeto – a cognição – e
enfraquece o modelo lógico-proposicional.
Na segunda dimensão, de acordo com o que se extrai do que foi dito até aqui, a
cognição não se resume ao que ocorre apenas do cérebro – ainda que, nem mesmo ao cérebro,
como mostrou Minsky, se possa aplicar o modelo que se baseia unicamente nas
transformações simbólicas. Para a orientação corpórea, a cognição se dá no corpo, que é
pensado antes como um conjunto de processos autotransformadores, em grande parte não
conscientes, imanentes a todos os acontecimentos de percepção, pensamento e ação, do que
como um objeto destacável, ou substrato físico pré-determinado, da dimensão cognitiva dos
seres humanos. Isto implica reconhecer, também, a presença nas crenças e decisões humanas
222
de pressupostos não apenas tácitos, mas que tendem a se manter em parte inapreensíveis, ou
intraduzíveis na forma de sentenças proposicionais, às tentativas de sua observação ou captura
conceitual.
Na terceira, e de acordo com alguns dos trechos de obras acima citados, os corpos dos
indivíduos são entendidos em sua necessária condição de produtos e produtores de relações
sociais e políticas. Os autores da orientação corpórea apontam insistentemente para o fato de
que compartilharmos: a) certas configurações de corpos, que permitem (ou determinam) o
compartilhamento de conceitos, crenças e ações – com todas as limitações decorrentes das
diferenças individuais; e b) a condição de que nossos corpos são continuadamente alterados e
moldados pelas relações cognitivas com outros corpos. Dedicados a este sentido social da
cognição corpórea há trabalhos relevantes como os de Shaun Gallagher, Ezequiel Di Paolo,
Hanne de Jaegher, Thomas Csordas e Edwin Hutchins. Esta dimensão supra-individual da
cognição corpórea é especialmente importante quando se trata de almejar, e empreender, a
construção de conhecimento socialmente partilhado – inclusive o conhecimento científico (e a
objetividade possível a ele associada), como o que os próprios autores da orientação corpórea
buscam estabelecer. Contudo, como o objetivo central do presente trabalho é delinear os
contornos principais da cognição corpórea, através de sua crítica ao cognitivismo, do
entrelaçamento entre as suas três abordagens mais importantes e de sua busca política por
unificação, para tal é suficiente a concentração de nossa atenção à cognição do organismo
individual. Por esta razão, e considerando que esta tese necessita respeitar, ao máximo
possível, limites que a permitam dedicar-se de modo satisfatório aos seus propósitos
principais, não será feito aqui um estudo específico da dimensão social da cognição corpórea.
Pelos mesmos motivos, não se fará nesta tese uma investigação dedicada à robótica
corpórea – correspondente principalmente à construção de robôs autônomos móveis –, tal
como documentada nas obras de Rodney Brooks (BROOKS, 2010), Randall Beer (BERR,
1995), Mark Tilden (HASSLACHER & TILDEN, 1995), Valentino Braitenberg
(BRAITENBERG, 1986) e Maja Mataric (MATARIC, 2007), nem ao conceito de mente
estendida, tal como presente nas obras de Andy Clark e David Chalmers (CLARK e
CHALMERS, 1998). Ambos os temas podem ser encontrados no livro Embodied cognition,
de Larry Shapiro (SHAPIRO, 2011), cujo enfoque sobretudo crítico da cognição corpórea
difere significativamente do adotado na presente tese.
223
Como se pode extrair do exame das três dimensões da cognição como transformação,
o modelo lógico-proposicional, com elas, se vê profundamente questionado. Mas isso também
ocorre com a noção de representação, defendida sobretudo na Teoria Computacional da
Mente – mas, de resto, em todo o cognitivismo. Outro sentido que se pode dar às três
dimensões da cognição como transformação é seu caráter de criação, e não apenas de
conhecimento, da realidade: não apenas porque elas implicam a autocriação dos processos
cognitivos, mas também porque, na esteira desta ideia, são incompatíveis com a concepção de
representação como espelho do mundo.82
Assim, dentre as três dimensões aqui apontadas a ontológica sobressai. Isto porque, ao
se penetrar mais diretamente nos aspectos ontológicos da cognição corpórea, mais uma vez
deve ser evidenciado o teor das críticas que a orientação corpórea faz ao cognitivismo, dado
que, como já afirmado anteriormente, não se deve considerar a concepção ontológica da
orientação corpórea independente das críticas que faz a outras concepções. Em outras
palavras, trata-se de uma ontologia essencialmente crítica.
82
A alusão ao livro Filosofia e o espelho da natureza, de Richard Rorty, nesse caso, não é casual. Veremos esta
correspondência na próxima seção.
224
Mas estes dois sentidos de representação não seriam independentes entre si, segundo as
objeções da orientação corpórea. Ao contrário, a noção de representação mental, constitutiva
dos modelos lógicos, estaria fundada em pressupostos ontológicos. Isto equivale a dizer que a
representação é intrinsecamente associada ao objetivismo (e também, como será discutido à
frente, a outra face que lhe é atribuída, o “subjetivismo”). Mas o que seria o objetivismo para
os autores da orientação corpórea? Seria o mesmo que realismo? A crítica ontológica à noção
de representação mental corresponderia a um antirrealismo? Mas, se corresponder, como a
orientação corpórea defenderia o corpo, o ambiente, a experiência como conceitos adequados
para compreender a percepção? Estes conceitos se refeririam a algo irreal? Para tentar
responder a estas questões, vejamos em primeiro lugar como Lakoff demarca a diferença
entre realismo em geral e objetivismo:
O realismo básico apenas assume que existe uma realidade de algum tipo. (...) Na
visão objetivista, a realidade vem como uma única, correta e completa estrutura de
entidades, propriedades e relações. Esta estrutura existe independente de qualquer
compreensão humana (LAKOFF, 1987, p. 159).
Johnson descreve o objetivismo que basearia a orientação cognitivista como a crença em uma
realidade de coisas, existentes de modo independente da cognição, cuja transcendência ele
expressa de duas maneiras:
a) É assegurada por uma imparcial e suposta visão divina, isto é, como algo que
apresenta naturalmente a propriedade de dissipar prováveis divergências decorrentes
de variados pontos de vistas humanos sobre si mesma; e
b) Possui uma estrutura racional em seu âmago.
A estas descrições da transcendência dos objetos ele acrescenta mais duas observações sobre
o objetivismo que o relacionam diretamente à representação:
c) À estrutura racional do mundo corresponde uma homóloga razão humana;
d) A correspondência entre a racionalidade do mundo objetivo e a do pensamento é uma
condição para que uma linguagem do pensamento simbólica e racional descreva
adequadamente o mundo objetivo.
Porém, ao que parece, esta condição de homologia não é suficiente: a correspondência das
sequências lógico-proposicionais com o mundo dos objetos somente pode ser garantida se
regras corretas forem obedecidas pelo pensamento. E após uma série de elaborações teóricas a
partir desta suposição –ou desta exigência –, as ciências cognitivas clássicas teriam se
considerado capazes de estabelecer a manipulação algorítmica de símbolos como a forma
adequada de representar mentalmente o mundo objetivo. Isto é, elas teriam estabelecido para
este fim exatamente aquilo que foi descrito na seção 1.2 deste trabalho como sendo o modelo
lógico-proposicional.
O enativismo faz uma crítica semelhante ao objetivismo, mas acrescenta um outro
polo à crítica do que seria a abordagem incorpórea da cognição:
Assim, o outro polo é o que Varela e outros autores chamam de subjetivismo. Mas, neste
caso, a crítica não é ao subjetivismo do idealismo solipsista83, em que se supõe todas as
experiências estarem limitadas a invenções da mente do sujeito (e que pode ser associado a
um relativismo absoluto), mas à contrapartida do objetivismo que é a crença na existência de
um sujeito separado e preexistente, assim como as coisas que lhe são dadas conhecer. Desta
sorte, o enativismo se opõe a um realismo que classifica de objetivista/subjetivista, incluindo
em sua crítica o que chama de subjetivismo, um elemento que Lakoff e Johnson endossam,
citando a abordagem de Varela et al e atribuindo as raízes desta ideia a Maurice Merleau-
Ponty (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 25, 97) – tal como já foi sublinhado na seção
anterior. Para continuar a responder às questões acima formuladas sobre a perspectiva
ontológica da orientação corpórea, é importante que se caracterize também por que ela inclui
em seus questionamentos a suposta existência fixa do sujeito. Porém, isto será mais bem
enfocado quando da descrição que será feita da concepção de realismo corpóreo, ou enação,
na seção 2.3.1.
Antes, é necessário aprofundar a investigação da crítica de autores da orientação
corpórea às convicções ontológicas atribuídas por eles à orientação cognitivista. E esta crítica
se apresenta de duas formas. Primeiramente, dirigida à crença na existência transcendente de
objetos, cuja representação na cognição geraria os significados com os quais os sujeitos –
também existentes “objetivamente” – lidam. Em segundo lugar, ela é voltada para o
pressuposto tácito de que há a realidade transcendente não apenas dos objetos e dos sujeitos,
mas da própria estrutura racional do mundo e dos sujeitos cognoscentes. Tratemos,
inicialmente, da primeira crítica. A segunda será o tema da próxima seção.
A primeira crítica é formulada de diversas maneiras nas obras dos autores de
orientação corpórea. Mas, neste trabalho, se dará ênfase aos argumentos de George Lakoff e
Mark Johnson, tendo em vista que nas obras destes autores esta crítica se faz de modo mais
extenso e estreitamente vinculado à sua concepção corpóreo-experiencial da cognição
humana.
No livro Philosophy in the flesh, Lakoff e Johnson fazem esta crítica como uma
objeção à “teoria da verdade por correspondência”. Um dos problemas que estes autores
identificam nos pressupostos realistas das ciências cognitivas ortodoxas reside na questão do
que chamam de “lacunas”, formadas não apenas entre as proposições e o mundo, mas também
83
A crítica ao idealismo solipsista será retomada na seção 2.3.1., quando for abordada a concepção ontológico-
epistemológica do enativismo e, mais especificamente, aquilo que Varela, Thompson e Rosch chamam de
“posição do ovo”.
227
na própria relação das línguas com as proposições. Esta crítica é aqui ressaltada porque se
dirige a uma suposta neutralidade das proposições, que se atribui, também, ao modelo lógico-
proposicional. Para eles, está equivocado o pressuposto de que a verdade decorre da
correspondência entre símbolos e um mundo independente da mente, do cérebro e do corpo.
Mas o exemplo que utilizam diz respeito à relação entre uma suposta estrutura neutra das
proposições e as falas reais humanas. Isto é, eles identificam nos pressupostos do
cognitivismo (embora se refiram explicitamente à filosofia analítica, à qual atribuem, por sua
vez influência à abordagem tradicional das ciências cognitivas) um tipo de problema que não
se limita à correspondência entre o mundo e as estruturas cognitivas. Segundo Lakoff e
Johnson, o problema provém de um realismo “técnico” em que a
A ciência tinha uma parte formal (a estrutura lógica das teorias) e uma parte
empírica (seu fundamento em dados objetivos). O Empirismo Lógico estava, desta
forma, diante de duas tarefas necessárias para a defesa da objetividade científica. (i)
Tinha de mostrar que a racionalidade da ciência poderia ser analisada em termos da
lógica matemática, uma vez que a lógica era considerada como a essência da
racionalidade. (ii) Tinha de mostrar que as teorias científicas eram baseadas em
dados empíricos independentes da teoria, e testáveis em relação a estes. Em outras
palavras, os pressupostos objetivistas poderiam ser defendidos mostrando-se que a
ciência estava firmemente enraizada no solo da evidência empírica e que suas teorias
e leis foram conectadas a esse fundamento empírico via relações logicamente
corretas (JOHNSON, 1987, p. 198-199).
Após criticar, também, o que chama de “relativismo vicioso” – que seria um oposto
“anárquico” do objetivismo –, Johnson (Ibid.) conclui que os filósofos da ciência vêm
reconhecendo que a racionalidade científica se distingue não por manifestar um quadro
decorrente de um “ponto de vista de Deus”, ou da neutralidade em relação a valores, mas, ao
contrário, pela natureza crítica de suas investigações, que envolvem valores e são
direcionadas a objetivos. Esta nova imagem da ciência serve, segundo Johnson, para
desenvolver as críticas, também, ao objetivismo adotado pelas ciências cognitivas ortodoxas.
Nesta argumentação, Johnson lança mão, sobretudo, das refutações ao objetivismo efetuadas
por Hilary Putnam e Richard Rorty.
Como na menção feita acima à sua posição, juntamente com Lakoff, em Philosophy in
the flesh, ele alude ao que seria um “realismo técnico”, ou um “novo objetivismo”, baseado
em uma “nova teoria da referência”. O termo “realismo técnico”, utilizado por Johnson,
provém do pragmatismo de Richard Rorty, que atribui a criação de uma “nova teoria da
referência” verificacionista a Quine e Wittgenstein – ainda que originada em Saul Kripke, e a
uma supostamente equivocada leitura de Frege –, como podemos constatar na seguinte
passagem de Rorty, aqui ampliando uma citação de Johnson:
Com base da "nova teoria da referência" originada em Saul Kripke, dizem [Quine e
Wittgenstein], podemos agora construir uma imagem melhor, não-fregeana, das
relações entre palavra e mundo. (...) Kripke vê o mundo como já dividido não só em
particulares, mas em tipos naturais de particulares, e mesmo nas características
essenciais e acidentais desses particulares e tipos. A pergunta "É verdade que 'X é
<p'?" deve ser, portanto, respondida ao se descobrir a que – como uma questão de
fato físico, e não das intenções de ninguém – 'X' se refere e, assim, descobrir se esse
particular ou tipo é <p. Só por uma tal teoria "fisicalista" de referência, dizem os
realistas técnicos, pode a noção de "verdade como correspondência com a realidade"
ser preservada (RORTY, 1982, p. xxiii).
Para Johnson, o que Rorty chama de “realismo técnico” assume que a verdade é uma
questão de quais palavras mapeiam as coisas particulares, enquanto que, para o pragmatismo
rortiano, não há referência que não esteja “entrelaçada com alguma rede semântica particular
ou algum sistema de descrição” (Ibid.). No mesmo sentido – de acordo com Johnson – iria
Putnam, ao recusar que a conexão das palavras com as coisas independam do observador.
230
Mas isto não faria de Putnam, ou mesmo Rorty, idealistas. Deixar isso claro é uma forte
preocupação de Johnson:
1) Ela seria uma visão sobre conhecimento humano e não sobre um conhecimento
absoluto e divino que só poderia ser acessível a partir de um ponto de vista de Deus.
Tal conhecimento requer estrutura e categorização;
2) Todo o conhecimento é mediado pela compreensão. Conhecer é compreender de uma
certa maneira, uma forma que pode ser compartilhada por outras pessoas, numa
comunidade de compreensão;
3) A compreensão compartilhada não é apenas uma questão de compartilhamento de
conceitos e proposições. É também uma questão de estruturas corpóreas de
compreensão, tais como os esquemas de imagem – que serão abordados na seção 2.4 –
231
Isto iria ao encontro da ideia de alguns autores da cognição corpórea84 de que uma
racionalidade transcendente é pressuposto do programa de pesquisas cognitivista. Contudo, na
passagem acima Johnson ainda não expressa tão claramente que o objetivismo e a orientação
cognitivista tomariam a racionalidade como algo que tem existência universal, real e objetiva.
Isto fica mais claro na seguinte descrição de Lakoff e Johnson de dois aspectos da razão
desincorporada:
(...)
• Razão universal: há uma razão universal que caracteriza a estrutura racional do
mundo. Ela utiliza conceitos universais que caracterizam as categorias objetivas
do mundo. Tanto os conceitos como a razão são independentes das mentes,
corpos e cérebros dos seres humanos.
• Razão humana desincorporada: A razão humana é a capacidade da mente
humana de usar uma parte da razão universal. O raciocínio pode ser efetuado
pelo cérebro humano, mas sua estrutura é definida pela razão universal,
independentemente de corpos e cérebros humanos. A razão humana é portanto
desincorporada (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 553 – grifo meu).
A razão humana na concepção objetivista seria, de acordo com essa afirmação, parte da razão
universal transcendente, e a ela – como já sugerido anteriormente – homóloga. Isto daria uma
justificativa para que um tipo de estrutura que possua características racionais essenciais
possa ter sido adotado como modelo para a cognição, na orientação cognitivista. Mas tal
hipótese nos levaria mais longe: nos conduziria a supor que, ao contrário da concepção
sugerida na seção 1.1.1 para o procedimento de representação científica em geral, os
cognitivistas não considerariam seu modelo tão somente um modelo, isto é, uma imagem
metafórica com capacidade de descrever e explicar seu objeto, assim como de guiar ações no
mundo, mas o considerariam a descrição de um objeto real. Dito de outra forma, assim como
os cientistas naturais (físicos, químicos, biólogos, geólogos) de orientação objetivista
suporiam estar descrevendo a realidade mesma de seus objetos com suas teorias, os cientistas
cognitivos tradicionais, ao abraçarem a crença objetivista, tratariam seu objeto – a cognição –
84
Neste caso, a referência é, em especial, à obra de Mark Johnson, George Lakoff e Rafael Núñez.
233
igualmente com uma descrição realista. Ou ainda, dizendo o mesmo de forma mais ousada:
eles teriam descoberto a estrutura essencial e imutável do pensamento racional. Tal afirmação
não ficou claramente explicitada até aqui nos textos citados dos autores da orientação
corpórea. Mas tomemos inicialmente a definição de Lakoff e Rafael Núñez em seu livro
dedicado a explicar corporeamente a matemática. Eles atribuem a compreensão tradicional da
matemática e da razão ao que chamam de “mitologia” ou “romance” da matemática, que
descrevem da seguinte maneira:
Estas são afirmações bastante radicais que, embora inicialmente não sejam sobre a razão em
si, assumem que esta tem sido compreendida filosoficamente por um determinado tipo de
orientação como tendo a mesma estrutura lógica da matemática. Na crítica de Lakoff e Núñez
se torna bastante preciso o argumento que se identifica menos claramente nas considerações
anteriormente apresentadas de Johnson e Lakoff, e que sugere a crença do objetivismo na
existência transcendente de um mundo de coisas, mas também de uma estrutura racional que o
organiza e permite compreender. O que fica claro na apresentação de Lakoff e Núñez do
“romance da matemática” é que haveria uma crença filosófica e, particularmente, ontológica
tradicional de que a matemática, a lógica e a razão teriam existência própria, transcendente às
experiências humanas, e independente da forma como se dê a cognição. Mas a ideia é mais
forte ainda: eles identificam no “mito” tradicional o que chamam, como na frase acima
grifada, uma “linguagem da natureza” que seria também uma linguagem do pensamento. Não
é o caso de avaliar esta convicção, porém de explicitar seus termos e seu sentido, para
seguirmos no propósito de compreender a orientação corpórea em seu projeto crítico. E o que
234
aqui se pretende sugerir, como já afirmado, é que uma forte objeção dos autores da orientação
corpórea citados se dirige ao que seria a crença da orientação cognitivista de que seu modelo
seria a descoberta de uma realidade mais fundamental ainda do que as próprias coisas ou a
própria experiência cognitiva. Ou seja, descrever adequadamente a cognição e o pensamento
humano, assim como a cognição e o pensamento atribuídos a artefatos de computar, seria
descrevê-los com base em uma estrutura subjacente que os condicionaria. Se explicar a
cognição e o pensamento seria encontrar as regras que os determinam, isto não levaria a supor
que estas regras corresponderiam a uma forma transcendente da razão? Lakoff e Johnson não
chegam a apresentar uma argumentação que diretamente conduza a esta conclusão. Porém, a
fim de investigar esta hipótese, ainda que sugestiva e sumariamente, fazem-se a seguir
associações entre certas convicções de Lakoff e Johnson e a oportunidade propiciada pela
argumentação de Lakoff e Núñez sobre a realidade transcendente da racionalidade
matemática. A argumentação de Lakoff e Núñez vincula uma concepção transcendente da
matemática a uma concepção transcendente da estrutura racional do pensamento e, assim,
vem ao encontro de três afirmações de Lakoff e Johnson que indiretamente permitem traçar
uma influência histórica de Frege sobre as ciências cognitivas tradicionais, a partir de sua
logicização da matemática – mas agora ressaltando aspectos eminentemente filosóficos nesta
influência, e não aqueles ligados à solução de problemas predominantemente técnicos, como
os enfrentados por Turing, Church e Shannon, já mencionados na seção 1.1.4, e diretamente
associados à eclosão da inteligência artificial. As referidas afirmações de Lakoff e Johnson
são as seguintes:
1) O projeto logicista de Frege promoveu uma dessubjetivação da matemática e da
lógica;
2) Este trabalho de Frege teve influência decisiva na constituição da filosofia analítica,
especialmente sobre sua corrente formalista;
3) A filosofia analítica formalista teve influência filosófica, e particularmente ontológica,
sobre os autores da orientação cognitivista.
Meu intuito será, a partir destas afirmações e com o recurso a outros autores, verificar
de que modo o movimento logicista pode ter tido algum tipo de influência sobre os
pressupostos ontológicos de transcendência da razão – e de seu próprio modelo –,
alegadamente presentes na orientação cognitivista.
A primeira das três afirmações acima diz respeito a um fato já me mencionado na
seção 1.1.2, quando da apresentação de teorias e acontecimentos que podem ser considerados
como precursores das ciências cognitivas: o processo de logicização da matemática
235
promovido inicialmente por Frege, no final do século 19, e que teve como pressuposto
explícito que a matemática fosse universal, independente da subjetividade humana particular,
e assim invariável frente às particularidades dos sujeitos. Vejamos que, nas palavras de Lakoff
e Johnson,
De fato, são encontradas nas obras do próprio Frege afirmações que se coadunam com tal
ideia de Lakoff e Johnson, como a seguinte, sobre a possibilidade de, através da
conceitografia fregueana, expressar relações de pensamento que possuiriam independência de
seus objetos: “Já que me limitei, aqui, a expressar relações que independem das propriedades
particulares das coisas, poderia também empregar a expressão ‘linguagem formular do
pensamento puro’”85 (FREGE, 2009 [1879], p. 45); ou esta outra, em que ele reafirma sua
crença em um fundamento racional para a objetividade: “O fundamento da objetividade não
pode de fato estar na impressão sensível, que, enquanto afecção de nossa alma, é totalmente
subjetiva, mas, tanto quanto posso perceber, apenas na razão” (FREGE, 1974, p. 231).
Podemos ainda obter de um destacado estudioso de Frege, como Michael Dummett, uma
interpretação – apresentada após o amadurecimento de um século de debates filosóficos sobre
o tema – da oposição fregueana ao que é comumente chamado de “psicologismo”:
[Para Frege], se algo é comum ou acessível a todos, deve ser independente de todos;
inversamente, algo cuja existência depende da consciência de qualquer pessoa deve
ser lhe privativa, e não comunicável a outros. Esta é a fonte primária de sua oposição
ao psicologismo, que é a tentativa de explicar os significados dos operadores lógicos
ou de proposições matemáticas, ou mesmo o significado de um modo geral, em
termos de operações mentais internas. Se o significado de uma proposição envolveu
essencialmente alguma coisa interior à consciência, então, de acordo com Frege, não
pode ser transmitida, pelo menos na totalidade ou com certeza: não deveríamos ter
nenhuma maneira de saber se o que foi despertado na mente daquele a quem a
tentativa de comunicação foi feita era, ou não, o mesmo que o original na mente da
pessoa que tentou se comunicar. E ainda que tal proposição pudesse ser comunicada,
não poderia haver nenhuma base comum para determinar a sua verdade ou falsidade:
se ela pareceu verdadeira para um e falsa para outro, ambos poderiam apenas
reconhecer esta diferença, mas não resolvê-la. Por essa razão, a psicologia deve ser
banida da lógica e da matemática: o único resultado de sua intrusão seria a
dissolução, numa inextricável subjetividade, daquilo que deve ser objetivo e igual
para todos (DUMMETT, 1991, p.78).
85
A frase entre aspas é também o subtítulo do livro Conceitografia, de Frege. Aqui optou-se por utilizar a versão
da frase proposta por Paulo Alcoforado, tradutor da edição brasileira em que este trabalho se baseia, que escolhe
o adjetivo “formular”, uma vez que, para o tradutor, o adjetivo utilizado por Frege (“Formelsprache”) qualifica a
linguagem como sendo expressa mediante fórmulas.
236
Todavia, nada do que se encontra diretamente expresso na obra de Frege teria importância
para o argumento de Lakoff e Johnson se não se houvesse disseminado e ganho valor na
constituição da filosofia dominante no século 20. E é o que consideram Lakoff e Johnson, e
que assim explicitam a segunda afirmação deles acima destacada:
É noção disseminada entre muitos autores a influência de Frege sobre a filosofia analítica,
ideia que alcança alguns filósofos desta tradição, como Dummett, que a reafirma nos
seguintes trechos:
A filosofia analítica nasceu quando a "guinada linguística" se deu. Esta não foi,
naturalmente, assumida uniformemente por todos os grupos de filósofos em todos os
momentos, mas o primeiro exemplo claro conhecido para mim ocorre com Frege em
Die Grundlagen der Arithmetik, de 1884 (DUMMET, 1992, p. 5).
Por fim, vejamos como Lakoff e Johnson expressam em sua obra a terceira afirmação acima
resumida, sobre a força com que a filosofia analítica formalista – que eles abarcam mediante a
denominação mais ampla de “filosofia anglo-americana” – influenciou as ciências cognitivas
clássicas:
Muitos cientistas cognitivos cresceram na tradição da filosofia analítica. (...) A
primeira geração das ciências cognitivas evoluiu nos anos 1950 e 1960, centrada nas
ideias da computação simbólica. Ela aceitou sem questionar a visão prevalente que a
razão é desincorporada e literal – como na lógica formal ou a manipulação de um
sistema de signos. Naqueles anos, a filosofia anglo-americana se ajustava muito bem
com certos paradigmas dominantes daquela era: a inteligência artificial inicial, a
psicologia de processamento de informações, a lógica formal, a linguística gerativa e
a antropologia cognitiva inicial. Isto não se deu por acidente. Muitos praticantes
destes paradigmas foram treinados utilizando as suposições da filosofia anglo-
americana (LAKOFF & JOHNSON, 1999, p. 74 e 75).
Mas, ao contrário das outras duas afirmações anteriores, esta terceira não tem tido muita
ressonância no meio dos estudiosos e dos praticantes das ciências cognitivas. Isto pode ser
atribuído à ideia de que muitos deles se pronunciariam a partir de seus próprios pressupostos
afinados com a filosofia analítica formalista, condição que, no mínimo, dificultaria um
distanciamento crítico de sua parte. Contudo, esta hipótese assumiria como suposição o que
237
pretende confirmar, o que não recomenda seja levada em consideração aqui. Para não dizer
que todos os que historiaram as ciências cognitivas silenciam a respeito, Jean-Pierre Dupuy –
um autor francês que, de todo modo, tem menor influência da filosofia formalista – reconhece
o papel da filosofia analítica na formação dos pressupostos cognitivistas, embora o faça para
expressar sua estranheza com o fato de que a valorização de aspectos psicológicos da
cognição, recusado desde Frege, teria sido de algum modo reassumido pela tradição lógico-
linguística ao se constituírem as ciências cognitivas sob sua influência (DUPUY, 1996 [1994],
p. 114-116). Evidentemente, podemos constatar, em passagens que acabamos de registrar, que
Lakoff e Johnson discordariam desta ideia, uma vez que associam a recusa fregueana ao
“psicologismo” à dispensa cognitivista da corporeidade cognitiva.
Contudo, embora não tenhamos corroboração de mais estudiosos das ciências
cognitivas à terceira tese de Lakoff e Johnson acima referida, uma forma de verificá-la seria
através do exame direto dos próprios autores das ciências cognitivas clássicas, nos quais se
poderia buscar reconhecer uma educação na filosofia analítica de cunho formalista. É o caso
de Jerry Fodor, chamado por Gardner de “o cognitivista completo” (GARDNER, 1985, p. 81).
Não é o propósito deste trabalho “provar” que Fodor tenha tido formação marcada pelos
preceitos formalistas da filosofia analítica. Nem há aqui espaço para um acompanhamento da
terceira afirmação de Lakoff e Johnson mediante uma análise pari passu da filiação dos
argumentos cognitivistas à filosofia analítica, apesar de esta ser uma empresa, em princípio,
factível. Além disso, esta não é uma premissa inevitável na argumentação principal deste
trabalho. É bastante que deixemos esta ideia à mercê de possíveis estudos mais aprofundados,
mas a tratemos como uma hipótese plausível e aceitável.
Um empreendimento mais modesto, e aqui cabível, seria tentar identificar nos textos
dos autores das ciências cognitivas clássicas o que se possa considerar reverberações da
matriz fregueana e analítica, para então questionar diretamente a hipótese de sua crença
ontológica quanto à objetividade estrutural dos modelos lógicos. Fodor acabou de ser
mencionado não apenas por sua suposta herança lógico-linguística, mas por outras duas
razões, uma relacionada às suas atividades e outra ao conteúdo de suas teses: a primeira razão
é seu papel de destaque como líder do desenvolvimento teórico do modelo lógico-
proposicional, através d Teoria Computacional da Mente, e a segunda é a importância, nesta
liderança, de seu conceito de “linguagem do pensamento”, já discutido na seção 1.2.4, para a
reflexão aqui proposta. Neste conceito podem ser encontrados aspectos que reforçam a
suspeita de haver um vínculo de crença ontológica, propiciado pela metáfora do pensamento
238
Em poucas palavras, Fodor acredita que deve existir uma linguagem do pensamento.
Se os sistemas cognitivos envolvem representações, se as operações cognitivas
envolvem a manipulação de representações do tipo símbolo, então estas
representações devem existir em algum lugar e ser manipuladas de alguma maneira
(GARDNER, 1985, p. 83).
Além de assumir a noção de que as representações existiriam “em algum lugar”, Fodor as
conceberia como uma estrutura inata – isto é, elas seriam próprias da natureza, ou ao menos
de algo compreendido como natureza humana:
Ainda segundo Gardner, embora o inatismo da linguagem do pensamento possa ser pensado
tão somente como uma hipótese de trabalho, ou seja, sem ser tratada como um compromisso
ontológico forte, seria no embate com outros teóricos da cognição que o viés ontológico se
reforçaria:
Outro indício desta suposição ontológica não viria do inatismo da linguagem do pensamento,
mas da noção de estrutura a ela vinculada pelo próprio Fodor: “Uma teoria da estrutura da
racionalidade é o melhor que podemos esperar com as ferramentas que temos em mão; o
melhor, talvez, que qualquer psicologia não redutivista poderia esperar” (FODOR, 1975, p.
203). Esta frase não apenas explicita que a linguagem do pensamento possa ser tomada como
uma estrutura da racionalidade – a respeito da qual afirmar que seja invariável às suas
manifestações em seres humanos particulares seria redundante –, como demonstra que
constituiu uma saída para o problema do reducionismo fisicalista. Embora uma investigação
da linguagem do pensamento como uma forma de racionalidade transcendente, com o
propósito de examinar a aplicação do pressuposto realista da razão transcendente a toda
239
cognição, ainda esteja por ser feita, a ideia de estrutura da racionalidade, como a que surge em
Fodor, exige ainda algumas observações antes de que se concluam aqui as reflexões sobre a
hipótese da crença ontológica subjacente à construção dos modelos lógico-proposicionais.
Para tal, deve ser invocado outro desdobramento do logicismo de Frege que teria ocorrido
paralelamente ao desenvolvimento das ciências cognitivas, e que permite enfatizar o tipo de
suposição ontológica que, sugere-se, o logicismo tenha tido a propensão de desencadear.
Como foi dito, o esforço de Frege para livrar a matemática das subjetividades e do empirismo
ganha importância na presente investigação na medida em que teria tido força para influenciar
a adoção, no meio científico e filosófico predominante, de uma noção transcendente da
matemática ou, mais propriamente, de uma noção transcendente de certas formas da lógica e
mesmo da razão – na linha do que afirmam Lakoff e Núñez na citação apresentada
anteriormente. E para deixar mais clara essa questão, com respeito ao que aqui interessa, é
importante assinalar que nas discussões filosóficas sobre a matemática referidas neste trabalho
deve ser feita uma diferenciação entre a crença na existência objetiva dos números e a crença
na existência objetiva dos padrões estruturais que os relacionam e organizam. Esta segunda
hipótese ontológica é a que teria maior relevância para a discussão quanto à suposta realidade
dos modelos lógicos das ciências cognitivas. Isto não despreza a importância na crença em
objetos transcendentes (mesmo nos números) para certas correntes de cientistas e filósofos,
mas focaliza a crença em estruturas racionais subjacentes. O desdobramento do logicismo
referido acima, como paralelo ao nascimento das ciências cognitivas, é, na filosofia da
matemática, o que Stewart Shapiro chama de estruturalismo ante rem:
A concepção do padrão estrutural como mais relevante do que objetos que os povoam está
também presente nos trabalhos de outro filósofo da matemática, Michael Resnik, que nos diz:
A ideia filosófica subjacente aqui é que na matemática o tema principal não são os
objetos matemáticos individuais, mas, ao invés disso, as estruturas em que se
encontram dispostos. Os objetos de matemática, ou seja, as entidades que nossas
constantes e nossos quantificadores matemáticos denotam, são eles próprios átomos,
pontos sem estrutura, ou posições em estruturas. E, como tal, não têm identidade ou
distinção características fora de uma estrutura (RESNIK, 1997, p. 202).
240
Para compreendermos como o estruturalismo de Shapiro e Resnik seria uma crença realista na
existência de padrões e estruturas independentes dos objetos que as povoam, vejamos o que
diz a respeito Mark Balaguer:
A versão mais tradicional do platonismo – aquela defendida por, por exemplo, Frege
e Gödel – é uma versão do platonismo objetal. O platonismo objetal é a visão de que
o reino da matemática é um sistema de objetos matemáticos abstratos, como
números e conjuntos, e que nossas teorias matemáticas, como a teoria dos números e
a teoria dos conjuntos, descrevem estes objetos. Assim, nesta perspectiva, a sentença
“o 3 é um número primo” diz que o objeto abstrato que é o número 3 tem a
propriedade de ser primo. Mas há uma alternativa muito popular ao platonismo
objetal, que é o estruturalismo. De acordo com este ponto de vista, nossas teorias
matemáticas não são descrições de sistemas específicos de objetos abstratos, e sim
descrições de estruturas abstratas, onde uma estrutura é algo como um padrão, ou
um "modelo sem objeto" – isto é, um sistema de posições que podem ser
"preenchidas" por qualquer sistema de objetos que exibam esta dada estrutura. Uma
das motivações centrais do estruturalismo é que as "propriedades internas" dos
objetos matemáticos parecem ser matematicamente sem importância. O que é
importante matematicamente é a estrutura – isto é, as relações entre os objetos que
possuem matemáticas. (...) (A razão pela qual este ponto de vista ainda é uma versão
do platonismo é que as estruturas e as posições estão sendo tomadas aqui como
reais, objetivas e, mais importante, abstratas). (BALAGUER, 1998, p.8).
Como já foi visto com brevidade, e será mais aprofundado adiante, este pressuposto é
o principal alvo da crítica da orientação corpórea aos modelos lógico-proposicionais: a
autonomia do aspecto algorítmico e lógico da cognição em relação ao modo como se encarna
ou, antes, é produzido experiencial e corporeamente. Esta autonomia da dimensão lógico-
proposicional do pensamento (e da ação) é também a principal objeção de Lakoff e Johnson à
matriz filosófica formalista à qual atribuem influência sobre o cognitivismo, e que através
deste se teria sustentado e aprofundado, ao adquirir caráter científico. Afinal, recorde-se de
que é reclamando a importância do corpo na cognição que Johnson explicita sua suposição de
que o objetivismo tem como pressuposto que haja uma razão transcendente:
O corpo tem sido ignorado pelo objetivismo porque a ele se atribui a introdução de
elementos subjetivos alegadamente irrelevantes para a natureza objetiva do
significado. O corpo tem sido ignorado porque a razão tem sido considerada
abstrata e transcendente, isto é, desvinculada de quaisquer aspectos da
compreensão humana (JOHNSON, 1987, p. xiv – grifo meu).
Assim, considerando o que foi dito nos últimos parágrafos, a dimensão lógico-
proposicional do pensamento e da ação seria, ao mesmo tempo, independente do meio físico
no qual opera e dos conteúdos que manipula – como no estruturalismo matemático. Porém,
esta segunda característica cria dificuldades para a associação que a orientação corpórea faz
entre cognitivismo e objetivismo. Isto porque, a princípio, se a dimensão lógico-proposicional
– e, por extensão, o modelo lógico-proposicional – é independente de seu conteúdo, como
poderia estar comprometida com o que representa, isto é, com um mundo objetivo
transcendente? Como poderia ser vinculada a um mundo exterior se não através de seus
conteúdos semânticos, referidos a objetos do mundo? Ocorre que esta vinculação tem sido
relativizada sobretudo por Fodor, através de seu aproveitamento do conceito de solipsismo
metodológico, originado em Carnap (GARDNER, 1985, p. 84; CARNAP, 2003 [1928], p.
102). Referindo-se ao modelo “computacional da mente”, Fodor afirma:
242
Segundo Fodor, portanto, o modelo lógico deve ser avaliado apenas quanto à sua capacidade
transformadora, isto é, quanto à sua capacidade de manipular formalmente as informações
recebidas e fornecer produtos cognitivos como resultado. Se não importa para avaliar o
processo se as informações de entrada são verdadeiras ou não – e o mesmo valendo para os
produtos de saída –, Fodor interpreta esta condição como uma espécie de solipsismo
hipotético – metodológico – do modelo, na medida em que ele não depende da realidade
exterior para ser concebido ou utilizado, bastando para explicá-lo e avaliá-lo a consideração
de sua estrutura formal interna. Como já se destacou na seção 1.2.4, embora o nome dado ao
processo seja “representação”, este nome não se referiria à capacidade de a sequência lógica
que o constitui representar corretamente a realidade objetiva, mas à sua capacidade de
representar simbolicamente qualquer que seja o conteúdo semântico que lhe seja fornecido –
inclusive aquilo que for tido como significando a “realidade objetiva”.
De todo modo, deve ser avaliada como bastante sustentável a hipótese de que o
logicismo de Frege tenha tido como um de seus efeitos o pressuposto ontológico da estrutura
transcendente do pensamento, e que este pressuposto possa ter sido fundamental para a
constituição do modelo lógico.
243
2.2.2.3. Observações finais sobre a ontologia da cognição corpórea como crítica à ontologia
do cognitivismo
Já quanto ao primeiro ponto, o que se nota com bastante evidência é que, embora os
autores da orientação corpórea identifiquem no cognitivismo uma crença forte na realidade
objetiva, e atribuam ao modelo lógico-proposicional a pretensão de se ajustar ao mundo
exterior como representação adequada, um segmento influente de seus autores, a começar por
Fodor, recusa em parte estas conclusões.
Para prosseguir no exame destes pontos e das respectivas polêmicas serão a seguir
registradas mais três observações sobre as críticas da orientação corpórea ao que seriam os
pressupostos ontológicos cognitivistas.
A primeira é que os dois pontos acima sugeridos sobre os compromissos ontológicos
da orientação cognitivista se interligam. A hipótese para tal síntese – ainda que não
suficientemente explorada –, é de que os cientistas cognitivistas, na medida em que tomem o
mundo como constituído de objetos transcendentes, também compreendam seu objeto de
estudo – a cognição – como tendo uma existência real, objetiva e transcendente. Dito de outra
forma: assim como a cognição em geral seria um processo de representação objetiva, a ciência
e, particularmente, as ciências cognitivas clássicas também o seriam, tendo na cognição um
objeto transcendentemente estruturado. É necessário ressaltar que este pressuposto de dupla
face não estaria presente explicita ou implicitamente em todos os cientistas cognitivistas, mas
não obstante seria uma tendência predominante nesta orientação – ressalva que será
devidamente complementada na terceira observação, adiante. E é oportuno acrescentar que
esta hipótese ainda admite uma variação, coerente com algumas afirmações que vimos, de
Lakoff, Johnson e Núñez: assim como as ciências cognitivas clássicas compreenderiam seu
objeto como uma estrutura formal racional e invariável, exprimível na sua essência através de
uma sequência lógico-proposicional, mediante o mesmo tipo de estrutura essencial seriam
exprimíveis todos os objetos do mundo.
A segunda observação é que uma suposta capacidade explicativa dos modelos lógico-
proposicionais não pode ser totalmente compreendida sem se recorrer à sua relação com o
mundo exterior e/ou com uma estrutura simbólica a ele subjacente. Ainda que um destacado
autor como Fodor defenda o solipsismo metodológico no seio do cognitivismo, é importante
salientar interpretações do modelo através de sua capacidade preditiva – ou mesmo prescritiva
– como indicadoras de sua vinculação com os objetos que representa, mediante seus
resultados esperados. Vejamos, por exemplo, a análise de Terry Winograd e Fernando Flores
a seguir. Para eles, uma vez que o modelo lógico-proposicional possa ser tomado como um
processo formal de produção, seus outputs podem ser predeterminados em função das
variáveis (inputs) introduzidas. Isto é, mesmo que se considere que o que está em jogo sejam
245
coletivo sobre a cognição – e ontológico – por envolver uma concepção de mundo associada à
prática científica. Evidentemente, tal constatação sugere que a ontologia tem um porquê
prático. Pelos mesmos e outros motivos, a perspectiva ontológica da orientação corpórea, que
é inseparável da crítica que formula – como, em parte, já foi examinada acima –, deve ser
apreciada com o devido destaque e será mais precisamente caracterizada a seguir, conforme
forem examinadas as diversas abordagens que a constituem.
Corroborando esta afirmação, para compreender adequadamente a perspectiva
ontológica da cognição corpórea será necessário investigar mais profundamente o conceito de
enação. Isto será feito na próxima seção.
De todo modo, nas seções seguintes deste capítulo será ampliada e aguçada a análise
da crítica da cognição corpórea à representação mental e ao realismo objetivista e estrutural,
de modo inseparável daquilo que as três abordagens apresentam como resultados de suas
investigações científicas.
Contudo, não se deve perder de vista que este trabalho busca demonstrar que as três
vertentes da cognição corpórea se complementam em suas críticas ao modelo lógico-
proposicional, e que este é um dos principais aspectos de sua unidade. Assim, serão a seguir
apresentados argumentos de que elas demonstram postular a manutenção da unidade das
ciências cognitivas, ao sustentarem a importância da ampliação e do aprofundamento de
pesquisas científicas como forma de promover o desenvolvimento de uma nova concepção de
cognição humana – mas sempre com motivações de natureza ontológica e política.
Neste trabalho se assume que o enativismo nasceu com a publicação do livro The
embodied mind: cognitive science and human experience, em 1991, por Francisco Varela,
Evan Thompson e Eleanor Rosch, em grande parte como resultado de pesquisas realizadas no
CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), em Paris, França. Embora não se possa
afirmar que os conceitos de enação e enativismo tenham aparecido pela primeira vez neste
livro – a rigor, eles surgiram três anos antes, na obra precursora de Varela Cognitive Science:
a cartography of current ideas (VARELA,1988) –, é nele que tais conceitos foram
desenvolvidos mais plenamente.
Na seção 2.1 já foram abordados alguns pontos importantes do enativismo, assim
247
Estas mesmas perguntas são feitas no livro – escrito, em parte, na forma de uma
história das ciências cognitivas – para definir o cognitivismo (p. 42) e o conexionismo (p. 99).
248
Mas é apenas no caso do enativismo que a definição de cognição recebe um outro nome:
enação. Antes de dirigirmos nossa atenção este fato, contudo, é preciso observar que os
autores consideraram apropriado repetir as mesmas perguntas para as três correntes que
examinaram e que, mesmo no caso do enativismo, acharam cabível considerar que a cognição
pode ser descrita como um sistema, e que ela, assim, pode ser avaliada quanto ao seu
adequado funcionamento. O primeiro ponto não é de difícil compreensão. Como já foi visto, a
cognição é entendida no enativismo como parte de um sistema autônomo. Assim, seria um
subsistema de mesma natureza – como teremos ocasião de explorar – que a do sistema vivo
de que ela faz parte. Porém, em que sentido caberia perguntar se a enação funciona
adequadamente? A hipótese que se defende neste trabalho, considerando este aspecto, é a de
que o enativismo acredita que o fato de a cognição ser compreendida como enação, permite
uma explicação mais adequada do processo cognitivo como acoplamento do indivíduo a um
mundo a ele vinculado. Quanto ao novo nome que a cognição recebe no enativismo, isto se
justifica pela caracterização – inclusive ontológica – radicalmente diferente que ela merece
nesta abordagem. O que fica implícito neste batismo é a ideia de que a cognição, para o
enativismo, é algo profundamente diverso daquilo que é para o cognitivismo.
Para compreendermos como se dá esta diferença, partiremos da análise que Varela et
al fazem da cognição como solução de problemas. Como foi visto, a caracterização da
cognição como solução de problemas foi marcante no cognitivismo, principalmente devido à
contribuição de Simon e Newell – isto é, graças ao fato de ser identificada ao funcionamento
de computadores eletrônicos. Mas devemos, exatamente, esclarecer a que tipo de problemas –
e soluções – nos referimos. Ou, antes, em como o mundo e o ser humano devem ser
imaginados quando para que se considera a cognição como solução de problemas. O que o
livro que estudamos salienta é que
249
86
Os autores aqui se referem a outras abordagens da cognição. Além do cognitivismo, mencionam a emergência,
como sendo característica do conexionismo, e as sociedades da mente, que é uma abordagem de Marvin Minsky.
87
O tema da divisão precisa do mundo foi abordado na seção anterior, quando se tratou da crítica a esta
suposição, feita por Mark Johnson.
250
O robô deve prestar atenção aos pedestres ou não? Ele deve levar em consideração
as condições do tempo? Ou deve levar em consideração o país no qual a cidade está
localizada e seus hábitos particulares de direção? Esta lista de perguntas e ilimitada.
O mundo da direção não termina em determinado ponto; ele tem a estrutura de
níveis regressivos de detalhamento que se misturam a um background não
específico. De fato, movimentos direcionados bem sucedidos, tais como dirigir,
dependem de habilidades motoras adquiridas e do continuo uso do senso comum o
conhecimento de background.
Esse conhecimento de senso comum é difícil, senão impossível, de ser
transformado em um conhecimento proposicional explícito – “saber que”, no
jargão dos filósofos –, considerando-se que ele é amplamente uma questão de
prontidão para agir – ou ‘saber como’ – baseado no acúmulo de experiência a partir
de um grande número de casos. (...) Além disso, quando ampliamos os domínios de
tarefas de micromundos artificiais para o mundo como um todo, não fica claro se
podemos sequer especificar o que deve contar como objeto independente do
tipo de ação que está sendo realizada. A individuação de objetos, propriedades e
eventos pode variar de acordo com a tarefa envolvida (Ibid., p. 147-148 – grifos
em negrito meus).
As frases grifadas neste trecho chamam a atenção para dois problemas – que
decorrem justamente de se considerar a cognição mera resolução de problemas. O primeiro
deles diz respeito à irredutibilidade da realidade cognitiva a conhecimento proposicional – tal
como aquele que se supunha possível quando da constituição do modelo lógico-proposicional
da cognição. Ou seja, o que Varela et al ressaltam é que há situações e significados que
escapam à formalização proposicional necessária à sua representação puramente simbólica. O
segundo problema é mais claramente ontológico: não só se apresenta a dificuldade de redução
da realidade a uma estrutura lógico-proposicional, tal como se dá no primeiro problema, como
a individuação em si mesma – na forma da predefinição de objetos constantes e previamente
independentes das experiências concretas – é problemática, se a cognição é considerada como
“saber como”. Deve ser assinalado que a segunda limitação seria suficiente para impedir
aquilo que se torna inviável quando se observa a primeira: se não for possível definir objetos
finitos e constantes para a cognição, também não é possível traduzi-los na forma de
conhecimento proposicional, já que este exige qualificações precisas do que representa. Por
este motivo a crítica ontológica do enativismo ao cognitivismo é tão importante, o que
corrobora seu papel na continuidade crítica que a orientação corpórea propõe para as ciências
cognitivas. Dito de outro modo: para que as ciências cognitivas, a partir da orientação
corpórea, possam ainda se manter coesas, deverão enfrentar, juntas, o problema ontológico
que inviabiliza a mais plena aplicação do modelo lógico-proposicional – modelo científico
que havia, de acordo com a hipótese defendida por este trabalho, assegurado a convergência e
a unidade das ciências cognitivas em seu estágio inicial. O enfrentamento deste problema
ontológico se dá pela definição do que pode ser o realismo cognitivo – segundo o livro de
Varela e seus colaboradores que está em exame nesta seção. O realismo cognitivo pode ser
251
Se o nosso mundo vivido não tem fronteiras predefinidas, então parece irreal
esperarmos captar a compreensão do senso comum sob a forma de uma
representação – sendo a representação compreendida, em seu sentido forte, como a
re-presentação de um mundo previamente dado. (...) Devemos inverter a atitude
representacionista e tratar o conhecimento dependente do contexto não como um
artefato residual que pode ser progressivamente eliminado pela descoberta de regras
mais sofisticadas, mas como, na verdade, a própria essência da cognição criativa
(Ibid., p. 148).
É fundamental enfatizar esta noção de cognição criativa, porque ela supõe o realismo
cognitivo não como a crença na possibilidade de registro de um mundo dado de antemão, mas
como criação de uma realidade na qual são inseparáveis sujeito e objeto, indivíduo e
ambiente, ação e percepção. Realidade, para a orientação corpórea – e especialmente para a
abordagem corpóreo-enativista –, não é algo exterior ao sujeito, mas aquilo que emerge da sua
interação com o mundo.
Varela, Thompson e Rosch acolhem os argumentos de Mark Johnson em The body in
the mind, de 1987 – que, em parte, já foram examinados na seção anterior – de que o realismo
cognitivo tradicional compartilha pressupostos com a filosofia analítica. O fazem, entre outros
motivos, para defender que esta corrente filosófica se opõe à inspiração hermenêutica e
fenomenológica que – como vimos também na seção 2.2 – influenciou o nascimento da
cognição corpórea. E esta oposição teria seu centro no fato de que a filosofia analítica, ao
contrário da hermenêutica de autores como Heidegger e Gadamer, procura eliminar a
psicologia popular e o senso comum do realismo cognitivo. Neste sentido, a filosofia analítica
seria uma das forças intelectuais que resistem à ideia de cognição como compreensão
corpórea e como criação. Referindo-se à recusa que Mark Johnson, inspirado na
252
88
Para aprofundamentos desta abordagem, v. THOMPSON, E. “Colour vision: a study in cognitive science and
the philosophy of perception”, 1995. Londres: Routledge.
253
A respeito da aparência das cores, Varela et al afirmam, em primeiro lugar, que todas
elas podem ser descritas a partir da combinação de seis cores básicas: vermelho, verde,
amarelo, azul, preto e branco, e que elas possuem três dimensões: matiz, saturação e brilho. O
matiz corresponde ao grau de vermelho, verde, amarelo ou azul de uma cor. A saturação
decorre da força do matiz. E o brilho consiste na visibilidade da cor. Mas eles acrescentam,
em segundo lugar, que estes não são atributos das cores “em si”. Em vez disso, defendem que
essas qualidades estão vinculadas à fisiologia da percepção das cores, ou como elas são
geradas no nosso corpo, mediante o que chamam de teoria do processo oponente, como um
processo de formação da percepção cromática constituído por diferenças de sinais de tecidos
receptores:
De acordo com esta teoria, a geração da aparência das cores depende de como se combinam
as diferenças entre os receptores da retina. Ou seja, os atributos das cores teriam uma
dimensão fisiológica fundamental. Mas para compreendermos a implicação deste aspecto para
as teses do enativismo devemos prosseguir acompanhando sua argumentação.
O próximo ponto abordado no livro corresponde à importância das características dos
próprios objetos para a percepção das cores. Varela e coautores afirmam (Ibid., p. ) que,
embora seja corrente a teoria de que as cores decorrem da reflexão de determinadas faixas de
frequência de luz na superfície de objetos dotados de estruturas físico-químicas específicas,
não há uma relação direta entre os comprimentos de ondas luminosas e a percepção
cromática. Isto porque esta suposição somente se sustentaria se – de acordo com os autores –
as áreas que refletem determinadas frequências pudessem ser vistas isoladamente. Em vez
disso, dizem eles, há interferência – ou “indução cromática” – entre as diversas áreas
refletoras, de tal modo que uma cena complexa não mantém a independência da percepção
singular de cada área. Isto se dá porque há “comparação cooperativa entre os múltiplos
conjuntos de neurônios do cérebro, que atribuem cores a objetos de acordo com os estado
254
globais e emergentes que eles alcançam dada uma imagem retiniana” (Ibid., p.). Para ilustrar
esta afirmação, Varela et al descrevem o seguinte experimento:
Colocamos dois projetores de slides idênticos com os focos superpostos sobre uma
tela comum, e em cada um deles inserimos cópias idênticas de um slide contendo
um tabuleiro de damas em cinza, branco e preto. Os dois slides devem ter suas
projeções superpostas, estando perfeitamente alinhadas. Em um dos projetores
colocamos também um filtro vermelho, de forma que o padrão é o resultado de uma
variada gama de cor-de-rosa de diferentes saturações. Vamos agora gerar um dos
slides em 90 graus. O resultado é uma imagem inteiramente multicolorida, contendo
pequenos quadrados amarelos, azuis e verdes, bem como vermelhos e rosas.
O efeito desse experimento é bastante dramático: surge uma imagem multicolorida
onde a física nos levaria a esperar somente diversas sombras de rosa. Esse efeito
cromático pode ser descrito pelas proporções branco a branco e vermelho a
vermelho através dos lados dos pequenos quadrados efetuadas pela rotação de um
dos slides. Como isso acontece? (Ibid., p. ).
A cor, como um atributo, está intimamente envolvida com outros atributos de nosso
mundo percebido. Nossa análise tem mostrado que não conseguiremos explicar a cor
se buscamos localizá-la em um mundo independente de nossas capacidades
perceptivas. Em vez disso, devemos localizar as cores no mundo percebido ou
experiencial, que é produto de nossa história ou acoplamento estrutural (Ibid., p. ).
Mas o que seria tal “mundo experiencial”? Para buscar esclarecer este ponto, devemos levar
em consideração que, em seguida, Varela, Thompson e Rosch ainda abordam duas questões
para melhor esclarecer sua compreensão enativa das cores: primeiramente, enfrentam uma
objeção possível à sua teoria até aqui defendida; em segundo lugar, tratam da cor como
categoria experiencial e cultural.
A objeção a que se referem consiste numa abordagem das cores típica do modelo de
processamento de informações. Segundo essa abordagem, a função dos processos neuronais
na percepção cromática seria compensar as mudanças de iluminação e estabilizar as
255
características dos objetos. Por exemplo, a proporção de cada comprimento de onda de luz
refletida pela superfície de um objeto redundaria numa propriedade estável do objeto, graças à
resolução do problema de processamento de informações por parte dos órgãos da visão e do
cérebro. A resolução proporcionaria a estabilização necessária. Dizem os autores:
Assim, pareceria que tudo o que o sistema visual tem a fazer é uma amostragem da
cena com seus três canais de cores, e desse modo reconstruir os reflexos de
superfície da atividade desses canais. Com base nesses modelos, diversos cientistas
da visão, bem como alguns filósofos, argumentaram não só que a função da visão de
cores é a recuperação do reflexo de superfície, mas também que a própria cor é
exatamente uma propriedade do reflexo de superfície (Ibid., p.).
Contudo, eles afirmam que esta hipótese suscita outros problemas – decorrentes, mais uma
vez, de se propor a conceber a cognição, como já vimos anteriormente, como um mero
processo resolução de problemas. São eles:
1) Ainda que a cor tenha como origem parcial um reflexo da superfície, não se pode
reduzi-la às propriedades decorrentes unicamente dos reflexos dado que as cores –
como foi proposto no modelo do processo oponente – mantêm relações entre si a partir
das dimensões matiz, saturação e brilho, produzidas nos órgãos da visão. Em outras
palavras, “as propriedades que especificam o que são as cores simplesmente não têm
contrapartidas físicas, não experienciais” (Ibid., p.). Dito ainda de outra maneira, as
cores não podem ser consideradas como resultados das propriedades dos objetos,
apenas, nem como efeitos dos órgãos da visão, exclusivamente. Ao contrário, o
aparecimento de cores depende de uma dinâmica complexa que não pode ser
explicada satisfatoriamente pelo modelo de processamento de informações, já que este
supõe o input de informações inequívocas já disponíveis no ambiente, para que seja
gerado o output da sensação de cor graças à operação de um sistema cognitivo linear;
2) A cor não é apenas atributo das superfícies, mas também de volumes, como o céu –
que não pode ser considerado uma mera superfície refletora, mas também provoca a
sensação cromática;
3) Ademais, as cores se manifestam também em sonhos e lembranças dos seres humanos,
ocasiões em que, evidentemente, não emanam de superfícies objetivas;
4) A teoria representacional das cores se inspira na “tentativa da engenharia de projetar
um sistema capaz de detectar objetos descontando a variação da iluminação e
recuperando os reflexos invariáveis em cena” (Ibid., p.). Para Varela et al, mesmo
considerando a importância desta pesquisa tecnológica para a compreensão dos
princípios abstratos da visão, ela não apresenta elementos suficientes para ser um bom
256
modelo para a visão cromática humana e para seus propósitos biológicos e ecológicos,
já que, para estes últimos, é de grande importância a variação proporcionada pela
iluminação, as condições climáticas e a hora do dia, tanto quanto as propriedades que
seriam supostamente constantes, como o reflexo das superfícies;
5) Mas talvez o principal problema – e, também segundo os autores, “oculto e mais
profundo” (Ibid.) – da teoria objetivista das cores seja a dificuldade de se
especificarem os limites, textura, orientação, de uma superfície, de maneira
independente de um observador. Mesmo que o reflexo, num ponto da cena, possa ser
definido em termos de variáveis físicas, o que conta como superfície depende da
referência a algum observador. Citando Gouras e Zrenner, os autores ressaltam que
não é possível separar o que é objeto percebido daquilo que é sua cor, já que o próprio
contraste de cor forma o objeto (Ibid., p. ). Isto, evidentemente, revelaria uma petição
de princípio na tentativa de se definir a cor a partir do objeto. Segundo eles, também:
Por fim, Varela, Thompson e Rosch ainda se dedicam à questão da cor como
categoria, também com base em pesquisas científicas. Este seria o aspecto mais propriamente
cognitivo das cores, uma vez que não se limita ao âmbito da percepção, avançando sobre os
significados das cores para a ação humana – e sobre como as cores são um produto da
cognição criativa.
As pesquisas a que os autores se referem têm como ponto de partida aquela que foi
realizada por Brent Berlin e Paul Kay, e publicada em 1969 no livro Basic colour terms: Their
universality and evolution (BERLIN & KAY, 1969) – brevemente mencionada na seção
anterior, a partir de uma citação de George Lakoff. O que há de mais relevante nesta primeira
pesquisa sobre cores citada no livro que criou o enativismo é que ela, ao investigar noventa
línguas, concluiu que há, nelas, um máximo de 11 categorias básicas de cores: vermelho,
verde, azul, amarelo, preto, branco, cinza, laranja, roxo, marrom e rosa. Mas o que significa o
fato de essas categorias básicas existirem? Essa ideia não contrariaria a cognição corpórea ao
supor categorias a priori? Segundo os autores do livro, ao contrário: as categorias são o
257
mostram que a categorização das cores como um todo depende de uma hierarquia
imbricada de processos perceptivos e cognitivos, alguns específicos da espécie,
outros da cultura. Eles também servem para ilustrar o fato de que as categorias de
cores não devem ser encontradas em algum mundo predeterminado, independente
de nossas capacidades perceptivas e cognitivas. [As categorias das cores] são
experienciais, consensuais e corpóreas: elas dependem de nossa história biológica e
cultural de acoplamento estrutural (Ibid., p. 185- grifo meu)
um estudo de caso, possibilitam-nos observar o fato óbvio de que a galinha e o ovo, o mundo
e a pessoa que o percebe, especificam-se mutuamente” (Ibid.). E prosseguem afirmando que
ambos os extremos – o objetivismo e o idealismo – têm a representação, que eles procuram
evitar, como noção central: “no primeiro caso, ela é utilizada para recuperar o que é externo;
no segundo, para projetar o que é interno. Nossa intenção é desviar inteiramente dessa
geografia lógica do interno versus externo, abordando a cognição não como recuperação ou
projeção, mas como ação corpórea” (Ibid., p. 190 – grifo meu).
A esta altura encontramos aquele que talvez seja o conceito mais importante para que
se compreenda a ideia de enação, como crítica à representação em geral e ao cognitivismo: o
de ação corpórea. A cognição, para a orientação corpórea é, antes de tudo, uma forma de
ação, uma atividade – propriamente uma ação criativa em que o indivíduo se transforma, isto
é, se autoproduz, transformando e produzindo também o seu mundo. Neste sentido, trata-se de
uma atividade ligada à sobrevivência dos organismos que a realizam, e consiste também em
uma característica dos seres vivos que com eles evolui.
Assim, a percepção também é entendida pelo enativismo como ação, já que é parte da
ação cognitiva. Porém, nesta abordagem a percepção não é tratada como limitada a uma etapa
cognitiva, ou como uma função de captação de informações no ambiente – que são maneiras
de entendê-la próprias da tradição cognitivista. Como já foi mencionado na seção 2.1, quando
da referência à influência direta de Merleau-Ponty – e indireta de Kurt Goldstein e Viktor Von
Weizsäcker –, a percepção para o enativismo orienta a ação e é por ela influenciada, o que
corresponde a ser uma forma de ação. De acordo com Varela, Thompson e Rosch,
89
Para maiores informações a respeito desta pesquisa, v. seu desdobramento em FREEMAN & SKARDA, 1985,
e em GIBBS, 2005.
261
caminho para que, nas ciências cognitivas corpóreas, o sentido político da crítica ao
cognitivismo ultrapasse a dimensão epistemológica e seja intimamente vinculado à
noção de cognição como transformação da realidade – inclusive da realidade social.
Sendo assim, a contribuição científica e metafísica da abordagem corpóreo-enativista
à cognição corpórea reforça o sentido político da unidade desta corrente das ciências
cognitivas, de forma intrinsecamente combinada com a sua recusa ao modelo unificador do
cognitivismo.
A primeira ideia é a de que os seres vivos são agentes autônomos que ativamente
geram e mantêm a si mesmos e, assim, também enatuam ou produzem seus próprios
domínios cognitivos. A segunda ideia é que o sistema nervoso é um sistema
autônomo dinâmico: gera e mantém ativamente seus próprios padrões coerentes e
significativos da atividade, de acordo com a sua operação como uma rede circular e
reentrante de neurônios interagentes. O sistema nervoso não processa informação,
em uma acepção computacionalista, mas cria sentido. A terceira ideia é que a
cognição é o exercício do conhecimento hábil em ação situada e corpórea. Estruturas
cognitivas e processos emergem de padrões sensório-motores recorrentes de
percepção e ação. Acoplamentos sensório-motores entre o organismo e o ambiente
modulam, mas não determinam, a formação de padrões endógenos e dinâmicos de
atividade neural, que por sua vez informam o acoplamento sensório-motor. A
quarta ideia é de que o mundo de um ser cognitivo não é um domínio externo pré-
definido, representado internamente pelo seu cérebro, mas um domínio relacional
produzido por enação pelo agenciamento autônomo que é o modo de acoplamento
daquele ser com o meio ambiente. A quinta ideia é de que a experiência não é um
problema epifenomênico, mas central para qualquer compreensão da mente, e
precisa ser investigada de uma maneira fenomenológica cuidadosa. Por esta razão, a
abordagem enativa sustenta que a ciência da mente e as investigações
fenomenológicas da experiência humana devem prosseguir informando-se mútua e
complementarmente (THOMPSON, 2005, p. 13 – grifos em negrito meus)
muito sólidas, embora autores como ele e Varela busquem estabelecer um sentido ontológico
para uma ideia como a de emergência. Uma impressão que um texto como este pode passar é
a dificuldade de vocabulário para expressar noções novas, que escapam às concepções
ontológicas e epistemológicas mais tradicionais.
Seja como for, segundo Thompson a cognição seria proporcionada pela geração,
internamente à autonomia do ser vivo, do sistema nervoso, outro sistema também dotado de
autonomia. Dito de outra forma, ela seria a criação de sentido por parte de tal sistema
autônomo. Criar sentido no interior da vida seria a característica da cognição, que receberia
também o nome de enação. E a respeito da dinâmica antirreducionista da nova
interdisciplinaridade, vejamos o que afirmam Shaun Gallagher e Francisco Varela:
Se alguém começa por pensar nas ciências cognitivas (...) em termos de análise
computacional e processamento informações tem dificuldade em ver como a
fenomenologia poderia participar da “revolução cognitiva”. Nesta formulação, o
estudo científico da cognição é um estudo de como uma mente subpessoal, não
fenomenológica, manipula símbolos discretos de acordo com conjunto de
procedimentos sintáticos, e como isso pode ser expresso em termos neurológicos.
Esta, contudo, não é mais a visão corrente das ciências cognitivas. Confrontada com
uma variedade de problemas implícitos nesta visão, a revolução cognitiva tomou um
rumo diferente no final dos anos 1980. Este corresponde a uma nova ênfase na
neurociência e no conexionismo, que desafiou a ortodoxia computacional
prevalente, introduzindo uma abordagem baseada em sistemas dinâmicos não
lineares. Com esta formulação houve uma mudança de ênfase do reducionismo para
noções de emergência e auto-organização. A questão passou a ser: como níveis mais
altos de estruturas pessoais emergem de níveis de mais baixos de processos
subpessoias auto-organizados (GALLAGHER & VARELA, 2001, p. 18).
Esta posição acompanha, de certo modo, a intenção manifestada por Varela no artigo
“The early days of autopoiesis: Heinz and Chile”, já citado anteriormente, de buscar uma
revolução científica com o enativismo. Mas também demonstra que a corrente procura
desenvolver suas teses de modo independente das demais abordagens da cognição corpórea. A
maioria dos artigos do livro, por exemplo, não usa a expressão “cognição corpórea”.
Uma das características do livro é a ênfase na intersubjetividade – o que vem a ser um
traço distintivo do enativismo contemporâneo. A adesão de Edwin Hutchins – um dos
pioneiros da cognição corpórea com seu livro Cognition in the wild, de 1995 – ao enativismo
e o trabalho de Véronique Havelange sobre a questão da tecnologia são exemplos importantes
dessa tendência.
266
90
Esta vertente tem sido amplamente batizada de “linguística cognitiva”. Contudo, sabe-se que, a rigor, a
linguística tem sido “cognitiva” ao menos desde Chomsky, sendo este um dos principais alvos de crítica nas
obras de Lakoff, Johnson e seus colaboradores. Por este motivo, e para evitar confusões desnecessárias, neste
trabalho a linha de pesquisa liderada por Lakoff e Johnson será chamada de linguística corpórea. No entanto, a
denominação “linguística cognitiva” será mantida nas traduções de citações feitas por mim, e quando for
utilizada fora de citações o será entre aspas.
268
natureza filosófica que seus autores realizam, sobre as relações entre ciências cognitivas
corpóreas e filosofia. Segundo eles, o livro-manifesto Philosophy in the flesh
Gramática cognitiva – A partir dela, não se concebe uma sintaxe autônoma (como em
91
Os itens que dizem respeito à contestação específica das noções de Chomsky (no original, “Colorless green
ideias”, “The language capacity and linguistic universals” e “Innateness”), serão apresentados com destaque
mais à frente.
269
Chomsky), uma vez que não pode haver módulos livres de input no cérebro; ao se estudarem
generalizações sobre distribuições de elementos sintáticos, foi descoberto empiricamente que
estas generalizações, em centenas de casos apenas no inglês, requerem referências a funções
semânticas, pragmáticas e de discurso; pesquisas de autores como Langacker, Lakoff e
Fauconnier levaram à conclusão de que em vez de haver sintática autônoma, os símbolos são
unidades indissolúveis entre seu significado e sua expressão (fonética, por exemplo); de uma
perspectiva neural, a simbolização é uma forma de tratar da conectividade neural: “a
gramática de uma língua consiste em conexões neurais altamente estruturadas ligando os
aspectos conceituais e expressivos (fonológicos) do cérebro”; a gramática liga esquemas
ancorados corporeamente, e, assim, os termos input e output são enganosos, já que a
conectividade flui em ambas as direções nestes sistemas, que são ancorados no corpo de
maneira independente.
O léxico – Os itens léxicos, nos casos mais simples, são pares de formas fonéticas com
conceitos individuais; mas são exceções, e a polissemia é a norma, tendo a maioria das
palavras numerosos significados sistematicamente relacionados.
Construções gramaticais (mais que a soma das partes) – Na “linguística cognitiva” uma
construção gramatical consiste em um par de estruturas conceituais complexas; cada estrutura
gramatical indica: como os significados das partes da construção se relacionam com o
significado do todo, como a combinação conceitual é expressa na forma linguística e que
significados ou função cognitiva são expressos em virtude dos dois itens anteriores.
270
• Não se baseia numa visão filosófica a priori do mundo, embora adote alguns
pressupostos metodológicos;
• Ao utilizar contribuições da cognição corpórea para a compreensão de noções como
conceito, razão e linguagem, tal procedimento produz implicações filosóficas;
• Com isso, fornece uma base para a crítica das perspectivas filosóficas tradicionais, e
leva ao que eles denominam de “filosofia experiencialista”.
92
Os itens a seguir são em parte resumidos com base no texto do livro, em parte inteiramente citados. Quando se
trata de citação literal isto se encontra no formato definido pela norma apropriada.
271
Senso comum – Para Lakoff e Johnson, a evolução humana tem sido de tal maneira que
mecanismos ocultos de significado produzem uma experiência global que nos permite
funcionar bem no mundo. Para eles, a preponderância que temos de experiências básicas
comuns nos conduz à teoria do senso comum do significado e da verdade, de que o mundo
real e objetivamente é como nós o experimentamos e conceituamos. Esta teoria funciona bem
em situações simples justamente devido à natureza de nossa corporeidade e nossas
capacidades imaginativas, mas não naquelas em que há conflitos de conceituação e de visões
de mundo, e estas são bastante comuns. Dado que os mecanismos de conceituação estão
ocultos de nossa consciência, não se incluem na nossa compreensão comum da verdade. Mas
esta, para um usuário da língua, é relativa aos nossos mecanismos de compreensão corpórea.
Verdade corpórea – “Uma pessoa toma uma sentença como ‘verdadeira’ em relação a uma
situação se o que ela compreende da expressão da sentença está de acordo com o que ela
compreende ser a situação”. Lakoff e Johnson afirmam que a teoria clássica da verdade por
272
correspondência deixa de perceber o papel que os seres humanos têm tido de produzir a noção
de verdade. Segundo eles, a verdade não existe sem seres com mentes que conceituam
situações, e sem uma linguagem convencionalmente utilizada por esses seres para expressar a
conceituação das situações. Sendo que as conceituações necessárias para produzir a própria
noção de verdade nascem de mecanismos cognitivos ocultos. Um dos principais
empreendimentos da cognição corpórea é compreender a verdade para um usuário da
linguagem tornando visíveis os mecanismos de conceituação.
Visão de mundo – Os autores consideram que uma visão de mundo é “uma constelação
consistente de conceitos, em especial conceitos metafóricos”. Ela pode ser filosófica, moral e
política, e rege a maneira como a pessoa compreende o mundo e portanto influencia
profundamente seus atos. Culturas se diferenciam por visões de mundo, que também podem
mudar ao longo da vida de um indivíduo. Para Lakoff e Johnson, a visão de mundo
caracteriza nossa metafísica ordinária, ou aquilo que acreditamos que existe, e a metafísica
cotidiana não é algo fantasioso. Ela nos conduz, efetivamente, através de nossa vida diária, e é
constituída por metáforas e outras estruturas conceituais.
Visto aquilo que os autores chamam de “implicações filosóficas” de sua linha de
pesquisa, devemos examinar mais amiúde algumas de suas teses científicas, que teriam
ocasionado tais implicações. A primeira delas é justamente aquela referida acima – e que
perpassou os exemplos, acima apresentados, de resultados empíricos que mostram
“mecanismos cognitivos ocultos”: o inconsciente cognitivo.
Mas deve-se começar investigando a noção de inconsciente cognitivo exatamente com
referência ao último ponto acima destacado: a visão de mundo ou metafísica individual. Para
Lakoff e Johnson:
Eles prosseguem afirmando que no dia a dia os seres humanos adotam pressupostos sobre, por
exemplo, a natureza da moral e da causalidade que guiam suas ações e decisões sociais:
273
Por este motivo, segundo Johnson, percebemos menos nosso corpo do que nossa
“mente” no processo cognitivo e chegamos a ter a impressão – e crença tácita, metafísica – de
que existem duas substâncias diferentes, o corpo e a alma. Voltaremos à questão do dualismo.
Contudo, por ora, é necessário prosseguir com mais algumas observações sobre o
inconsciente cognitivo e a ideia de “corpo ausente”. Diz Johnson:
274
Os nossos atos de ver são direcionados para aquilo que vemos. Nossa
intencionalidade parece ser dirigida para o mundo "lá fora". Os mecanismos de
nossa visão não são, e não podem ser, o foco da nossa consciência e atenção,
estamos cientes do que vemos, mas não de nossa visão. Os processos corporais se
escondem, a fim de tornar possível a nossa fluida e automática experiência do
mundo. (...)
Leder denomina este ocultamento perceptivo do corpo como “desaparecimento
focal” dos órgãos corporais e atividades específicas da percepção. Além do
desaparecimento focal dos nossos órgãos de percepção, há também um necessário
“desaparecimento de background”, que afeta outros processos e atividades que
tornam a percepção possível, processos dos quais raramente ou nunca somos cientes
(Ibid., p. 5).
Para eles, em vez disso, o significado de uma sentença provém de estruturas conceituais, que
são metafóricas por natureza, e também baseadas na experiência física e cultural. A verdade,
em sua perspectiva, é sempre oriunda de um sistema conceitual e das metáforas que o
estruturam. Neste sentido, a verdade jamais é absoluta ou objetiva, mas baseada na
compreensão. As sentenças, portanto, não possuem significados inerentes, objetivamente
dados, e a comunicação não pode ser apenas a transmissão de tais significados. Mas como as
metáforas funcionam corporeamente? Por que elas podem fundamentar uma tese de cognição
corpórea? Como podem elas ser pensadas como materiais e não ideais?
No livro que foi acima citado, Lakoff e Johnson já sustentavam nas experiências
sensório-motoras a base dos conceitos, mediante um processo de analogias que nasce de
sensações físicas e se torna mais abstrato. Ali, eles dão um exemplo envolvendo a ideia de
para cima (up).
276
Eles aduzem que nosso conceito espacial de “para cima” nasce de nossa experiência
espacial, uma vez que temos corpos e ficamos de pé: “Nossa atividade física constante no
mundo, mesmo quando dormimos, promove uma orientação do tipo em cima-embaixo não
relevante apenas para a nossa atividade física, mas centralmente relevante” (Ibid.).
No entanto, a teoria não se sustentaria se apenas se baseasse em conceitos espaciais.
Ela exige outras hipóteses, como as que são apresentadas pela teoria da metáfora primária, de
Joseph Grady (GRADY, 2005), que será examinada na próxima seção.
Outro conceito básico da abordagem de Lakoff e Johnson é o de esquema de imagens
– que também se relaciona com o de metáfora conceitual. Johnson apresenta uma explicação
do conceito em que destaca sua condição de dimensão não proposicional dos significados
cognitivos. Porém, para examinar mais adequadamente sua argumentação, devemos partir de
uma definição que ele oferece:
1. Algo proposto – uma afirmação. Este é o sentido mais geral, e talvez o mais
antigo. Ele é interpretado por filósofos como envolvendo a noção de valores de
verdade, ou seja, a proposição deve afirmar algo e, assim, ser o tipo de entidade que
pode ser verdadeira ou falsa.
2. Uma representação usando símbolos predicativos finitários (funções) e um certo
número de símbolos de argumento. Tipicamente, os símbolos de argumento se
referem a entidades e os símbolos de predicados representam as propriedades e
relações dessas entidades.
3. Um estado de coisas no mundo, geralmente estabelecido entre uma entidade e seu
predicado (por exemplo, propriedades) ou entre entidades.
4. Da teoria do modelo: a) uma função de mundos possíveis para valores de verdade;
(b) uma função de possíveis situações de fato (onde a "verdade" é uma propriedade
ou relação pareada com as entidades respectivas).
5. Uma representação finitária usando elementos e ligações relacionais entre esses
elementos. Esta formulação é oferecida por Pylyshyn no seu argumento de que as
imagens podem ser representadas proposicionalmente. Ele sugere que qualquer
imagem pode ser fracionada em elementos ou segmentos cujas relações podem ser
completamente descritas de uma forma proposicional.
Estas primeiras cinco definições insistem, todas, no caráter finitário das proposições.
Agora, admito que as representações proposicionais deste tipo irão capturar algumas
das características estruturais importantes de qualquer da do esquema de imagem.
Mas tais representações finitárias não irão capturar sua natureza analógica e o papel
crucial que desempenham nas transformações imago-esquemáticas. Por
"transformação" eu denomino operações cognitivas tais como digitalizar uma
imagem, traçar a trajetória provável de um vetor de força, sobrepor um esquema em
outro, e tomar um múltiplo agrupamento de entidades e contraí-lo em uma massa
homogênea. Em outras palavras, as proposições definidas nos sentidos acima não
irão representar as operações cognitivas naturais de esquemas de imagem. No
entanto, há um outro sentido que podemos dar a "proposição" que se aplica
adequadamente a esquemas de imagem, e faz sentido no seu papel crucial no
significado e no raciocínio, ou seja,
6. Uma proposição existe como um padrão contínuo e analógico de experiência ou
conhecimento, com estrutura interna suficiente para permitir inferências (Ibid., p. 3-
4).
Após estas definições, é necessário para a melhor compreensão do conceito que sejam
dados alguns exemplos de esquemas de imagens. Gibbs continua:
As experiências subjetivas, sentidas, que as pessoas têm com seus corpos em ação
fornece parte da ancoragem fundamental para a linguagem e o pensamento.
Cognição é o que ocorre quando o corpo envolve o mundo cultural e físico e deve
ser estudada em termos de interações dinâmicas entre as pessoas e o meio ambiente.
A linguagem humana e o pensamento emergem de padrões de atividade corpórea
que condicionam o comportamento. Não devemos supor que a cognição seja
puramente interna, simbólica, computacional e desencarnada, mas buscar as formas
mais gerais e mais detalhadas em que linguagem e o pensamento são
inextrincavelmente moldados pela ação corpórea (Ibid., p. 9).
93
No que demonstram uma atitude de síntese coerente com sua postura de liderança na abordagem.
280
As pessoas devem ter destinos na vida, e elas devem se mover de forma a chegar a
esses destinos.
Quando estas frases são tomadas em conjunto, elas implicam um mapeamento metafórico
complexo:
282
Esse mapeamento define uma metáfora complexa composta por quatro sub-
metáforas. É uma consequência de (a) a crença cultural de que todos deveriam ter
um propósito na vida, (b) as metáforas primárias “Fins são destinos” e “Ação é o
movimento”, e (c) o fato de que um longo passeio para uma série de destinos é uma
viagem.
A importação completa dessa metáfora para nossas vidas surge através de seus
vínculos. Esses vínculos são consequências de nosso conhecimento cultural comum
sobre as viagens, especialmente:
Uma vida com propósito requer planejamento como meio para alcançar seus
propósitos.
Vidas com propósitos podem enfrentar dificuldades, e você deve tentar
antecipá-las.
Você deve provera si mesmo com o que você precisa para seguir uma vida
com propósito.
Como uma pessoa prudente com objetivos de vida, você deve ter um plano de
vida global, indicando quais os objetivos necessários deverá atingir em que
momentos e quais os objetivos preparam o alcance dos seguintes. Você deve
sempre saber o que foi feito até agora e oque você vai fazer a seguir (Ibid., p.
62).
Com estas observações conclui-se esta seção. Pelo que nela foi exposto, fica patente
que a abordagem corpóreo-conceitual é importante ao propor um processo temporal de
formação de conceitos nos seres humanos individuais, com base em suas experiências
corpóreas subjetivas, e ao reunir hipóteses de como este processo se dá. Além disso,
demonstra com clareza as preocupações metafísicas e políticas da cognição corpórea – que, de
286
Esta passagem apresenta o que seria a limitação principal do computador, diante das
possibilidades cognitivas humanas, no entender dos autores. Para eles, esta limitação
corresponde à impossibilidade de o computador realizar avaliações mais complexas de seus
propósitos, o que acarretaria deficiências sérias na busca de alcançá-los.
A seguir, os autores discutem esta limitação introduzindo o tema da afetividade como
função ao mesmo tempo cognitiva e evolutiva, levando em conta a necessidade de o passado
ser considerado numa cognição propriamente humana.
288
nosso cérebro complexo produz naturalmente, com mais ou menos detalhes, mapas
explícitos das estruturas que compõem o corpo. Por força, também mapeia de modo
natural os estados funcionais que estes componentes do corpo assumem. Uma vez
que (...) os mapas cerebrais são a base das imagens mentais, o cérebro criador de
mapas tem o poder de literalmente introduzir o corpo como conteúdo do processo
mental. Graças ao cérebro, o corpo torna-se um tema natural da mente. (DAMÁSIO,
2009 [2011], p. 118).
Deste modo, começa a se delinear uma compreensão da relação entre corpo e cérebro
desprezada pelo cognitivismo, já que atribuía ao cérebro unicamente a função de hospedar o
processo cognitivo de natureza lógico-proposicional e sem relação essencial com os
acontecimentos do corpo. Na teoria de Damásio, o corpo não apenas tem função essencial na
cognição – como será visto à frente – como precisa se relacionar de maneira orgânica e
permanente com aquela sua parte que se chama cérebro. E, indo ao encontro da abordagem
corpóreo-enativa, Damásio também atribui a esta correlação uma função vital. Em sua
perspectiva,
290
a tarefa de gerir a vida consiste em gerir um corpo, e essa gestão torna-se ainda mais
precisa e eficiente graças à presença de um cérebro (...). O tema dos neurônios é a
vida, e a gestão da vida em outras células do corpo, e que essa dedicação requer uma
sinalização de mão dupla. Os neurônios atuam sobre outras células do corpo via
mensagens químicas ou excitação de músculos, mas para cumprir sua missão
precisam de inspiração, digamos assim, fornecida pelo próprio corpo que eles devem
impelir. (Ibid.).
O organismo (o corpo e seu cérebro) interage com objetos, e o cérebro reage a esta
interação. Em vez de fazer um registro da estrutura de uma entidade, o cérebro
registra as várias consequências das interações do organismo com a entidade. O
que memorizamos de nosso encontro com determinado objeto não é só sua estrutura
visual mapeada nas imagens ópticas da retina. Os aspectos a seguir também são
necessários: primeiro, os padrões sensitivo-motores associados à visão do objeto
(como os movimentos dos olhos e pescoço ou o movimento do corpo inteiro, quando
for o caso); segundo, o padrão sensitivo-motor associado a tocar e manipular o
objeto (se for o caso); terceiro, o padrão sensitivo-motor resultante da evocação de
memórias previamente adquiridas relacionadas ao objeto; quarto, os padrões
sensitivo-motores relacionados ao desencadeamento de emoções e sentimentos
associados ao objeto (DAMÁSIO, 2011 [2009], p. 169 – grifo meu).
Com isso, apresenta uma hipótese fundamental para a cognição corpórea: de que a
percepção é essencialmente percepção do próprio corpo, ou das transformações que ocorrem
neste em sua interação com o mundo. Esta talvez seja uma das suposições mais importantes
da orientação que se estuda neste trabalho. E contribui, também, para a compreensão da
cognição como enação, ou seja, como codeterminação entre sujeito e objeto.
A frase grifada acima, contudo, desencadeia novamente a questão da cognição
afetiva, propriamente dita. Ela será o tema das próximas seções.
Todavia, antes de se dar por concluída a presente seção, é necessário caracterizar mais
claramente o sentido de memória, para Damásio. Isto porque, mais uma vez no âmbito da
cognição corpórea, encontra-se um conceito – o de memória – com um sentido bastante
diferente daquele usual no cognitivismo. E também porque, para se entender a importância
291
A memória, assim como a percepção, jamais seria neutra não apenas no sentido de
não registrar os objetos como puros inputs, mas também no sentido de serem influenciadas
por novas retenções.
É muito provável que a mente não seja concebível sem algum tipo de corporeidade,
uma noção que tem lugar de destaque nas propostas teóricas de George Lakoff,
Mark Johnson, Eleanor Rosch, Francisco Varela e Gerald Edelman, e,
evidentemente, nas nossas próprias (DAMÁSIO, 2004 [1994], p. 265).
Sendo assim, sua contribuição deve ser estudada nos aspectos em que se torna
fundamental para compor o todo da cognição corpórea, através de suas hipóteses sobre a
importância orgânica do corpo e dos afetos no processo cognitivo.
292
Uma primeira questão a ser esclarecida, com este objetivo, é a definição que Damásio
apresenta para sentimento e emoção – que, para ele, não são sinônimos.
As emoções, para Damásio, têm uma função vital. Assim, servem tanto para
comunicar significados a terceiros, como para o que ele chama de “orientação cognitiva”
(Ibid., p. 159). Ele fornece a seguinte definição de emoção:
Vejo a essência da emoção como a coleção de mudanças no estado do corpo que são
induzidas numa infinidade de órgãos por meio das terminações das células nervosas
sob o controle de um sistema cerebral dedicado, o qual responde ao conteúdo dos
pensamentos relativos a uma determinada entidade ou acontecimento. Muitas das
alterações do estado do corpo — na cor da pele, postura corporal e expressão facial,
por exemplo — são efetivamente perceptíveis para um observador externo. (Com
efeito, a etimologia da palavra sugere corretamente uma direção externa a partir do
corpo: emoção significa literalmente “movimento para fora”). Existem outras
alterações do estado do corpo que só são perceptíveis pelo dono desse corpo. (...)
Em conclusão, a emoção é a combinação de um processo avaliatório mental, simples
ou complexo, com respostas dispositivas a esse processo, em sua maioria dirigidas
ao corpo propriamente dito, resultando num estado emocionai do corpo, mas
também dirigidas ao próprio cérebro (núcleos neurotransmissores no tronco
cerebral), resultando em alterações mentais adicionais. (Ibid., p. 168-169).
Se você possui uma representação dispositiva para o rosto de tia Maria, essa
representação não contém o rosto dela como tal, mas os padrões de disparo que
desencadeiam a reconstrução momentânea de uma representação aproximada desse
rosto nos córtices visuais iniciais. As várias representações dispositivas que
necessitariam disparar de modo mais ou menos sincronizado, para que o rosto de tia
Maria aparecesse no campo de sua mente, estão localizadas em vários córtices
visuais de associação de alto nível (...). A mesma arquitetura aplicar-se-ia no nível
do domínio auditivo. Existem representações dispositivas para a voz de tia Maria
nos córtices de associação auditivos, as quais podem disparar para os córtices
auditivos iniciais e gerar momentaneamente a representação aproximada da voz (...)
O que estou chamando de uma representação dispositiva é uma potencialidade de
disparo dormente que ganha vida quando os neurônios se acionam com um
determinado padrão, a um determinado ritmo, num determinado intervalo de tempo
e em direção a um alvo particular, que é outro conjunto de neurônios. (Ibid., p. 130-
131).
Esta ideia é congruente com a de que corpo e cérebro são, para Damásio,
indissociáveis no processo cognitivo, como já foi visto na subseção anterior.
Examinadas brevemente estas noções, a esta altura já se pode avançar na direção de
uma hipótese mais complexa sobre o papel das emoções na cognição. Trata-se da hipótese do
marcador somático – que se aproxima das questões mencionadas por Changeux e Connes, e
que se vincula à questão da função de avaliação por eles mencionada. Segundo Damásio,
Extrai-se deste trecho uma consequência importante. Embora não se possa dizer que
94
Um dos pais deste modelo, Herbert Simon, também propôs, como já mencionado, a teoria da racionalidade
limitada, em que postula modos de decisão não plenamente analíticos. Mas ainda assim, são modos em que as
emoções não têm lugar central e decisivo, como na hipótese de Damásio. Para conjecturas semelhantes às de
Damásio, na questão das escolhas econômicas, cf. TVERSKY & KAHNEMAN, 1974; KAHNEMAN, 2011.
296
seja impossível um processo decisório ou cognitivo sem a participação intrínseca das emoções
– e, portanto, de processos eminentemente corpóreos –, o que decorre desta hipótese é que os
processos mais propensos a proporcionar a sobrevivência do indivíduo e da espécie são
aqueles em que prepondera a presença funcional e cognitiva de emoções. Isto quer dizer
também que nos processos que tendem a manter a vida de modo mais econômico, a análise
lógica de custo/benefício não é o padrão dominante. Outra maneira de tratar desta questão
envolve lançar mão do conceito de homeostasia, tão caro a Damásio. Concebida por Walter
Cannon, a ideia de homeostasia significa a capacidade de os seres vivos manterem a
constância de certas variáveis orgânicas ao longo do tempo e, assim, sustentarem as condições
necessárias à manutenção da vida (CANNON, 1932). Como o conceito de autopoiese, a
homeostasia pode ser considerada um processo de autodeterminação e autoprodução, uma vez
que é promovido pelo próprio indivíduo. Ele envolve a regulação interna da temperatura do
corpo, a concentração de vários nutrientes e hormônios, assim como a salinidade, o pH e
outras variáveis vitais. Damásio inclui dentre os fatores relacionados com a homeostasia o
papel das emoções na tomada de decisões. Dando o exemplo do que se pode passar na
percepção de uma paisagem predileta, Damásio, afirma que o organismo seleciona ativamente
uma série de elementos deste processo. O cristalino e a íris graduam a entrada de luz e variam
suas próprias dimensões, o globo ocular é dirigido automaticamente por diversos músculos
para melhor captar a cena, o mesmo acontecendo com a musculatura do pescoço e da cabeça.
Segundo ele, “todos esses ajustamentos dependem de sinais vindos do cérebro para o corpo e
de sinais correspondentes do corpo para o cérebro” (Ibid., p. 255). Mas o ciclo não se
interrompe, porque quando a cena chega ao cérebro, “a partir de representações dispositivas
em diversas áreas, o resto do corpo também participa do processo” (Ibid.). E ele completa,
numa série de considerações típicas das posições sobre percepção da orientação corpórea:
Ter percepção do meio ambiente não é, portanto, apenas uma questão de fazer
com que o cérebro receba sinais diretos de um determinado estímulo, muito
menos imagens fotográficas diretas. O organismo altera-se ativamente de modo
a obter a melhor interface possível. O corpo não é passivo. Cabe notar também um
outro aspecto talvez não menos importante: a razão pela qual têm lugar a maioria
das interações com o meio ambiente deve-se ao fato de o organismo necessitar que
elas ocorram a fim de manter a homeostasia, ou seja, um estado de equilíbrio
funcional. O organismo atua constantemente sobre o meio ambiente (no princípio
foram as ações), de modo a poder propiciar as interações necessárias à
sobrevivência. Mas, para evitar o perigo e procurar de forma eficiente alimento, sexo
e abrigo, é necessário sentir o meio ambiente (cheirar, saborear, tocar, ouvir, ver)
para que se possam formular respostas adequadas ao que foi sentido. A percepção é
tanto atuar sobre o meio ambiente como dele receber sinais (Ibid., 256 – grifo em
negrito meu).
Já a respeito dos sentimentos, Damásio afirma que estes “exercem uma forte
influência sobre a razão, que os sistemas cerebrais necessários aos primeiros se encontram
enredados nos sistemas necessários à segunda e que esses sistemas específicos estão
interligados com os que regulam o corpo” (Ibid., p. 276). Esta asserção de Damásio recoloca a
questão do marcador-somático e a integra ao tema da homeostasia. Isto quer dizer que a
tomada de decisões nos seres humanos depende das emoções e dos sentimentos, e que este é
um padrão que contribui para a sobrevivência racional e para um melhor acoplamento com o
ambiente tipicamente humano – social, por essência.
As principais considerações sobre a importância da obra de Damásio para a cognição
corpórea foram feitas. Os pontos principais de sua contribuição correspondem à importância
das emoções e dos sentimentos para uma compreensão corpórea da cognição.
298
Como foi dito, esta articulação corresponde, principalmente, ao que foi anteriormente
chamado de dimensão ontológica da cognição corpórea. Porém, esta dimensão não deve ser
confundida com um posicionamento filosófico mais geral dos principais autores desta
corrente. Em vez disso, ela é aqui investigada com foco no interior das teorias científicas
apresentadas pelos pesquisadores da orientação corpórea. Portanto, constitui uma dimensão
propriamente científica suficientemente caracterizável, embora não possamos afirmar que seja
separável de maneira absoluta das concepções metafísicas dos cientistas que a têm elaborado.
O fato de não serem muito frequentes – embora numerosas – as referências mútuas
entre os autores das abordagens corpóreo-enativista e corpóreo-conceitual não obscurece o
que já foi visto anteriormente: os vínculos entre elas são bastante fortes. E o principal vínculo
está na crítica que ambas fazem ao objetivismo que supõem embasar o representacionismo
das ciências cognitivas tradicionais. Porém, as críticas e propostas que partem das duas frentes
de pesquisa diferem um pouco em dois aspectos: tanto na origem filosófica, quanto nas
formulações que apresentam.
Como já foi aqui reiteradamente afirmado, a frente de pesquisa corpóreo-enativista se
destaca por sua abordagem biológica. Foi a partir do conceito de autopoiese que o enativismo
desenvolveu sua noção singular de autonomia dos organismos vivos, o que permitiu que
produzisse a ideia de cognição como processo essencial para a vida. Seu enfoque ontológico
da cognição, portanto, não se limita a uma compreensão estática da relação entre o ser
humano e a realidade, mas se dedica a estudar como a realidade se cria, materialmente, no
acoplamento entre o organismo individual e o mundo. Assim, cognição, para a frente de
pesquisa corpóreo-enativista, é um processo de transformação material, que faz parte da
atividade de autoprodução dos organismos. Implica também a transformação do mundo do
organismo, dado que conhecer é uma atividade, uma intervenção, uma criação de sentido
concreto (VARELA, 1995). Como já foi visto, esta perspectiva biológica do enativismo se
articula com a fenomenologia de Merleau-Ponty.
Por outro lado, a abordagem corpóreo-conceitual, por se dedicar sobretudo às
questões linguísticas da cognição, faz sua crítica e sua formulação ontológicas de maneira um
303
O realismo corpóreo que estamos desenvolvendo aqui não foi criado a partir do
nada. Foi antecipado por dois dos nossos maiores filósofos da mente corpórea, John
Dewey e Maurice Merleau-Ponty. Apesar de suas grandes diferenças de
temperamento e estilo, tanto Dewey quanto Merleau-Ponty acreditavam que a
filosofia deve ser informada pelo melhor conhecimento científico disponível, e cada
um deles fez uso extensivo da psicologia empírica, da neurociência e da fisiologia de
sua época. Ambos argumentaram que a mente eo corpo não são entidades
metafísicas separadas, que a experiência é corpórea, não etéreo, e que quando
usamos as palavras mente e corpo estamos impondo estruturas conceituais
delimitadas artificialmente ao processo integrado contínuo que constitui a nossa
experiência.
Dewey enfocou todo o circuito complexo de interações entre organismo e ambiente
que compõe a nossa experiência, e mostrou como a experiência é ao mesmo tempo
corporal, social, intelectual e emocional. Merleau-Ponty argumentou que "sujeitos" e
"objetos" não são entidades independentes, mas surgem de um background, ou
"horizonte", de experiência fluida e integrada à qual impomos os conceitos
"subjetivo" e "objetivo" (Ibid., p. 97).
A partir destas afirmações, vemos que o realismo corpóreo não é uma concepção
sobre a forma ou a natureza do real, mas sobre como o real se cria e transforma, seja na
qualidade de “mundo” ou de “sujeito”. Dito de outra forma, o realismo corpóreo propõe que a
realidade existe, mas não é independente da cognição. E que a própria cognição é um
processo de criação de realidade – embora não se trate de uma criação ilusória, e sim material.
Contra as interpretações radicalmente construtivistas, ou relativistas, Lakoff e Johnson, por
exemplo, recusam o que chamam de pós-estruturalismo. Sobre isso, dizem:
Esta citação revela uma concepção de ciência com claro excesso de otimismo e
ingenuidade – ao aparentar confiar na “convergência de provas”, sem discutir por que se deve
acreditar no poder que tal convergência teria na “eliminação” de dúvidas sobre o que a
natureza é. Isto demonstra, neste texto específico, pouco esforço de Lakoff e Johnson no
sentido de discutir mais profundamente o sentido do conhecimento científico, justamente
aproveitando contribuições de autores como Kuhn e Feyerabend, que costumam citar.
Contudo, demonstra a confiança na “probabilidade” de que o conhecimento científico seja
confiável, e que, assim exista alguma realidade. Obviamente, sua aparentemente excessiva
confiança na veracidade e estabilidade do conhecimento científico se defronta com suas
próprias teses contra o objetivismo e, assim, recomenda que seus leitores suavizem suas
afirmações acima com base em seu anti-objetivismo. Assim, pode-se continuar afirmando na
existência de alguma realidade, sem no entanto se firmar compromisso na existência de uma
realidade objetiva transcendente – risco que se corre ao se seguir as palavras exultantes acima
de maneira acrítica. O realismo corpóreo pode, desta maneira, confiar no conhecimento
científico – que serve, inclusive, de embasamento para ele mesmo – sem necessitar apostar na
306
crença de que este conhecimento espelha uma realidade fixa e com contornos plenamente
definidos. O conhecimento científico que se harmoniza com o realismo corpóreo seria, ao
contrário do que parece sugerir a passagem acima transcrita, aquele que se sabe provisório e
permanentemente incompleto – mas mesmo assim utilizável por ser necessário à vida
humana. Ser realista, assim, é um modo de acreditar que se pode viver no mundo.
Porém, vale notar que se encontra na obra de Lakoff e Johnson, assim como no
enativismo, considerações muito mais ricas sobre o conhecimento científico – o que absolve
os dois primeiros da superficialidade patente na passagem acima transcrita e demonstra que o
realismo corpóreo tem melhores questões a endereçar ao conhecimento científico.
Já vimos que, para a orientação corpórea, toda forma de cognição é a criação de
sentido, seja por pensamento ou ação, a partir de experiências individuais, que se articulam
através de imaginação, analogias e metáforas vividas de maneira intrinsecamente corpórea,
sensório-motora e situada – inclusive social e historicamente. Então, a questão quanto à
ciência em si, para a orientação corpórea, passa por duas outras: a primeira é se a cognição
corpórea se aplica à cognição científica; a segunda é se, mesmo que se aplique, haveria
alguma característica da cognição científica que, ainda assim, significaria uma ruptura de
natureza com a cognição em geral. Levemos em conta a seguinte afirmação de Lakoff
Os conceitos teóricos centrais da ciência não são literais, incorpóreos nem objetivos.
(...) Compreender a natureza metafórica corpórea dos conceitos científicos é dar uma
nova dimensão à teorização científica, para melhor compreender a ciência. Realismo
científico ingênuo não funciona mais. Mas um realismo científico corpóreo
podefuncionar (...). As leis científicas não estão no mundo, nem nele se encaixam
objetivamente. Mas isto não faz a ciência nem um pouco menos válida quando
compreendemos o realismo corpóre. Compreender a natureza metafórica e corpórea
dos conceitos científicos é dar uma nova dimensão à teorização científica, para
compreender melhor a ciência e compreender o mundo de forma mais realista.
(LAKOFF, 2003, p. 53)
Por meio desta citação, já se pode dizer que a resposta à primeira questão é positiva: a
orientação corpórea (ao menos na vertente de Lakoff e Johnson) afima que a ciência (ou a
teorização científica) também é uma produção de conhecimento efetuada de forma situada e
corpórea. Mas é quando se referem ao processo metafórico de construção do conhecimento,
que os dois autores demonstram crer que o conhecimento científico seja apenas uma forma de
conhecimento em geral, porque produzido intrinsecamente pelo mesmo processo do
conhecimento comum: “Toda teoria científica é construído por cientistas – seres humanos que
necessariamente usam as ferramentas da mente humana. Uma dessas ferramentas é a metáfora
conceitual.” (LAKOFF & JOHNSON, 1987, p. 252). E, ainda: “Os chamados conceitos
puramente intelectuais, como por exemplo, os conceitos de uma teoria científica, são muitas
307
vezes – possivelmente sempre – baseados em metáforas que têm uma base física e/ou
cultural.” (Ibidem, p. 18 e 19). Ao que Lakoff acrescenta, ao falar do papel da categorização e
da taxonomia corpóreas nas ciências e no conhecimento comum:
Deve ser ainda mencionada, com vistas a explorar esta questão, o conceito de
comunidade de compreensão, proposto por Mark Johnson:
95
Há outras acepções do conceito de circularidade, mesmo no enativismo, e uma delas é especificamente
aplicada às ciências cognitivas: trata-se do reconhecimento que os cientistas cognitivos devem considerar sua
própria produção científica como objeto das ciências que praticam (VARELA, THOMPSON & ROSCH, 1991,
p. 09-12).
309
emoções na cognição. E não se pode negar que sua abordagem se mostra suficiente para seus
propósitos. Ele não está interessado, por exemplo, em discutir questões ontológicas como o
enativismo e a linguística corpórea – até porque seu tema central não é a cognição e nem a
crítica ao cognitivismo como tal. Sendo assim, sua pesquisa é, como já vimos, a menos
declaradamente comprometida com um projeto de alternativa ao modelo lógico-proposicional.
Por outro lado, os seus resultados empíricos têm um impacto profundo sobre este modelo.
Ademais, como foi observado, sua contribuição à discussão do papel do corpo na
percepção é fundamental, o que não deixa de ter relação com o modo como ele integra as
emoções e os sentimentos ao processo cognitivo. Para explicar a dependência que a cognição
tem das emoções e dos sentimentos, ele precisou definir qual seria a relação entre mundo,
cérebro e corpo. E esta relação expressa, em sua teoria, as condições em que as emoções,
como transformações no corpo decorrentes de percepções e pensamentos, são inseparáveis
destes últimos.
Isto revela, de certa forma, uma convergência com as concepções ontológicas do
enativismo, mesmo que Damásio não promova esta discussão. Outro aspecto dessa questão é
que o conceito de enação se fortalece com a contribuição de Damásio, uma vez que a
afetividade deve ser a ele integrada.
Em um livro recente, The feeling body, Giovanna Colombetti destaca a importância
de uma abordagem enativa das emoções considerar a função de avaliação desempenhada
pelos afetos como essencialmente orgânica, mas ainda assim cognitiva (COLOMBETTI,
2014, p. 110). Dadas as limitações do escopo deste trabalho, não cabe uma discussão mais
extensa das argumentações deste livro, que se coloca desde o princípio como uma obra escrita
a partir do enativismo, sem mesmo considerar que haveria uma orientação das ciências
cognitivas chamada cognição corpórea96. As críticas que a autora faz a Damásio neste livro
tendem a ser, em geral, por não encontrar neste autor um compromisso com as teses
enativistas. Contudo, esta característica não deveria ser tratada como um defeito, uma vez que
o próprio enativismo somente agora, com as pesquisas da própria Colombetti, passa a se
dedicar mais intensamente à questão afetiva. Por outro lado, muitas das preocupações de
Damásio provavelmente não surgiriam da matriz do enativismo. Assim, a confluência entre as
abordagens corpóreo-enativa e corpóreo-afetiva devem ser avaliadas, também, a partir da
valorização do pluralismo de enfoques, modelos, hipóteses e métodos em se compreender a
cognição.
96
Na verdade, no livro não há nenhuma ocorrência da expressão “embodied cognition”.
311
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta tese se dedicou a investigar a orientação corpórea das ciências cognitivas em seu
esforço para constituir uma alternativa crítica ao modelo lógico-proposicional da cognição.
Como já foi dito, as diversas iniciativas de pesquisa que constituem a cognição corpórea,
embora não se comportem em bloco, como um programa de pesquisa único, podem e devem
ser compreendidas como formando um todo, ainda que não fechado. O que caracteriza sua
coesão são dois fatores: primeiramente, serem complementares entre si na crítica e na
proposta de alternativa ao cognitivismo; e, em segundo lugar, o manifesto esforço de suas
lideranças na direção de defender suas formulações de maneira essencialmente política.
Mas o que poderia constituir uma postura política de uma corrente científica como a
cognição corpórea? Evidentemente, ela não buscaria, por exemplo, transformar a sociedade
defendendo algum tipo de governo, algum regime político ou algum sistema econômico. Sua
atitude vai bastante além disso: chega a ressignificar até mesmo o conceito de ação política.
Porque tem a ousadia de propor um novo conceito de ser humano.
Cabe nos perguntarmos o porquê de uma vertente científica voltada para as
capacidades cognitivas chegar a propor algo tão ambicioso. Mas talvez a resposta esteja
justamente na origem da cognição corpórea.
Não se pode afirmar que o fato de as ciências cognitivas terem nascido – juntamente
como seu modelo unificador, lógico-proposicional – de inciativas militares e financiadas pelo
capital industrial confira a elas uma feição adequada aos interesses de seus financiadores.
Quais seriam estes interesses, em primeiro lugar? Eles seriam capazes de, por exemplo, guiar
a constituição de uma abordagem da cognição adequada aos seus fins? E quais seriam estes
fins?
Esta tese não procurou desvendar estes supostos mistérios. Pelo que se pode extrair
dos fatos explanados no primeiro capítulo deste trabalho, o que se constata é uma confluência
de formulações teóricas prestigiadas no meio acadêmico – como a máquina de Turing ou o
neurônio de McCulloch-Pitts – e soluções tecnocientíficas – como os primeiros computadores
eletrônicos construídos ao longo da Segunda Guerra Mundial, sendo suficientes para
desencadear a eclosão das ciências cognitivas. Não se encontram indícios de que estes eventos
tenham sido aproveitados de alguma forma deliberada para criar uma certa imagem do
pensamento humano, e muito menos que tenha sido proposital que isso fosse feito por meio
de uma nova ciência sobre a cognição.
Todavia – se reitera a questão –, por que os principais líderes da cognição corpórea,
314
como Francisco Varela, George Lakoff, Mark Johnson e António Damásio, têm adotado uma
atitude de tão veemente rejeição das teses e consequências do cognitivismo, a ponto de
clamarem por novas formas de se compreender a vida e a cognição humanas? Não bastaria
que eles recusassem os argumentos científicos das ciências cognitivas tradicionais? Não
deveriam eles tão somente se fixar no embate teórico? Se eles têm extravasado os limites
epistêmicos com tanta determinação, não haveria um inimigo oculto a ser guerreado, postado
de fora da ciência com intenções e poderes também extra científicos?
Mais uma vez, diga-se: não está ao alcance nem nada exige do presente trabalho
promover este tipo de ilação. Basta que se mantenham as investigações no âmbito das
próprias ciências cognitivas, com atenção aos seus argumentos e formulações.
Porém, de um lado, seria justificável limitar as ciências cognitivas a suas práticas
investigativas e teóricas? Ou seu universo se estenderia em direção às influências que
propagou na sociedade?
De outro lado, com que argumentos se pode apontar quais as influências as ciências
cognitivas produziram? Seriam científicos estes argumentos? Estariam circunscritos ao
âmbito das próprias investigações das ciências cognitivas?
Pelo que foi examinado neste trabalho, os principais autores da cognição corpórea
não esperam as respostas a tais perguntas para se posicionarem contra pressupostos que,
tenham surgido por inspiração do cognitivismo, ou os tenham inspirado, são considerados
como presentes no ambiente em que se produziu o modelo lógico-proposicional da cognição.
Quando Varela rejeita o que chama de heteronomia em favor da autonomia, defendendo uma
guinada ontológica; quando Lakoff e Johnson apontam hiatos instransponíveis no objetivismo
que enxergam associado às teses representacionistas da cognição; e quando Damásio se
insurge contra uma medicina “cartesiana”, eles não demonstram preocupação em comprovar
até a última instância seus próprios pressupostos. Contudo, afirmam que as ciências – e não
apenas as cognitivas – têm proporcionado as bases para suas suposições críticas. E então se
mantêm em suas atitudes em defesa explícita de um novo paradigma.
Visto isso, retomam-se as duas questões: estaria na origem da cognição corpórea sua
ambição de conteúdo político? E isto teria a ver com as origens das ciências cognitivas?
A resposta que a presente tese pretende esboçar a estas duas indagações é, em parte,
positiva – embora não seja simples. Estaria sim na origem da cognição corpórea sua atitude
política. Mas não como uma reação às origens institucionais e/ou ideológicas das ciências
cognitivas e do cognitivismo. O motivo pelo qual estaria na própria gênese da cognição
corpórea sua feição política se deveria ao fato de que ela propõe que os seres humanos devem
315
mudar seu conceito sobre si mesmos. E este fato decorre de outro: seu objeto de estudos é
exatamente o conceito que os seres humanos mantêm sobre a natureza de sua forma de pensar,
agir, perceber. A consequência política disto é quase imediata: se os seres humanos hoje
sustentam um conceito (avaliado por alguns como) equivocado sobre si mesmos, devem
alterá-lo sob pena de viverem coletivamente de maneira correspondente ao conceito. Esta
ideia se sustenta em outra ainda: para a cognição corpórea, é característico da cognição
depender do contexto, inclusive social; sendo assim, o que a cognição de cada ser humano
produz atualmente depende das estruturas sociais nas quais vive, e que moldam seu modo de
pensar. Mas se, por outro lado, estas estruturas também são mantidas pela cognição individual
e pelos modos de pensar individuais, qualquer transformação em ambos – estruturas e modos
de pensar – precisa acontecer, em algum momento, no nível individual. Assim, considerando
todos estes aspectos, a dimensão política da cognição corpórea seria ao mesmo tempo
intrínseca às suas teses críticas, e indutora de uma mudança no significado mesmo de política.
Quanto a esse fato ter ou não relação com as origens das próprias ciências cognitivas,
o que se percebe pelo que foi examinado no presente trabalho é que isto tem importância, mas
limitada. Isto porque as críticas que a cognição corpórea faz se dirigem à imagem de cognição
e de ser humano que estes possuem de si mesmos no contexto social atual – desde que se
considere como influente o poder prático do modelo lógico-proposicional da cognição na
sociedade global de hoje. Deste modo, a crítica pode se dirigir àquilo que seja entendido como
esta imagem, sem necessariamente se investigar por que esta imagem surgiu socialmente. Ou,
melhor dizendo, uma nova imagem – a da cognição corpórea – pode ser criada
conscientemente sem que a imagem rejeitada – a do modelo lógico-proposicional – tenha sido
conscientemente produzida. Disto decorreria uma característica crucial da cognição corpórea:
ela buscaria aumentar a consciência dos seres humanos sobre sua própria imagem, revelando
assim que um de seus pressupostos – ou uma das qualidades da nova imagem possível – é que
a consciência é algo que pode ser, de certo modo, ampliado. Isto implicaria, então, que para o
sucesso da orientação corpórea das ciências cognitivas, sua atuação deverá ser mais
consciente de sua constituição do que teria sido o cognitivismo. Sendo assim, não é preciso de
modo algum se identificar no cognitivismo uma ação organizada, orquestrada,
conscientemente estabelecida nas instituições – e com o intuito explícito de se disseminar uma
determinada imagem do ser humano sobre si mesmo –, para que uma reação a esta imagem
seja empreendida de maneira consciente e buscando alcançar o máximo de consciências
individuais.
Esta tese começou com a defesa de uma hipótese: de que as ciências cognitivas
316
objetiva das próprias relações e de uma suposta estrutura que formariam, independentemente
dos sujeitos que as podem conceber e conhecer. A abordagem corpóreo-conceitual o faz para
contestar uma suposta racionalidade que estaria na base das crenças que sustentam o modelo
lógico-proposicional. Tal crítica aventa que a compreensão mecanicista do mundo e da
cognição crê que esta racionalidade possui duas faces homólogas: a razão humana seria parte
da razão universal transcendente, e a própria forma do pensamento. Segundo a abordagem
corpóreo-conceitual, para a tradição racionalista a linguagem do pensamento seria, assim,
uma forma lógica, sintática e abstrata do mesmo modo como a linguagem da natureza – mas
ambas seriam linguagens sobretudo na medida em que comunicariam uma à outra sua
essência estrutural desincorporada e anterior a toda experiência. Para os autores da cognição
corpórea, a imagem do pensamento e da natureza como realidades estruturalmente lógicas
procura universalizar uma determinada concepção da razão como a única possível e, portanto,
inevitável. Esta racionalidade lógico-matemática inevitável seria, no pensamento, a maneira
de este conhecer a natureza por afinidade estrutural e, na natureza, o modo como esta se
mostraria ao pensamento a ela semelhante. Embora tal conjectura crítica seja acompanhada de
argumentação insuficiente, sugere desdobramentos promissores.
Na trilha do que acaba de ser dito, uma das questões que a leitura desta tese pode
suscitar é se o modelo lógico-proposicional é ou não compatível com a cognição corpórea, e
de que maneira tal compatibilidade seria possível. O que se coloca então é que tipos de
problemas que se busca solucionar em cada um dos casos. Embora se deva reconhecer que o
modelo lógico-proposicional permitiu solucionar diversos problemas, devemos considerar
outros problemas que não solucionou, ou ainda outros que ajudou a criar. Das teses da
cognição corpórea surgem alguns destes últimos. Por exemplo: se os seres vivos se
autotransformam continuamente, e seu controle não é originado externamente, como manter a
imagem da máquina lógica para representar a cognição, já que tal imagem sugere que os
processos que opera sejam fixos, e tenham controle dependente de regras definidas
externamente? Com o uso do modelo lógico-proposicional, não se corre o risco de que os
seres humanos sejam induzidos a se acreditarem incapazes de autotransformação? Se os
significados que o corpo fornece para a cognição são variáveis ao longo do tempo e são
imprecisos, como manter a suposição de que, dados certos inputs, certamente determinados
outputs vão ser produzidos? Com o modelo lógico-proposicional, corre-se o risco de
considerar apenas parte dos significados que importam na cognição e na experiência humana,
desprezando-se todos aqueles que não cabem em formalizações quantificadas. Além disso: se
os corpos interferem diretamente, através de suas características próprias e de sua ação, na
320
cognição, como manter a suposição de que o processo cognitivo é independente dos corpos
em que se dá? Se o modelo lógico-proposicional ajudou a disseminar na sociedade uma
imagem do ser humano como máquina e como processador lógico e abstrato, e se essa
imagem é limitada, como enfrentar no ensino, na saúde, na tecnologia, na administração e em
diversas atividades humanas, essa autoimagem? Diante de tais questões, a convivência do
modelo lógico-proposicional da cognição com as teses da cognição corpórea vê-se limitada
pelos seus respectivos alcances. Desde que se considere que se dedicam a esferas diferentes
de problemas, sua coexistência se torna menos problemática.
Evidentemente, o emprego de formalizações é fundamental para a evolução da técnica;
mais propriamente, deve-se considerar se não foi graças a elas que a tecnologia se
desenvolveu desde a chamada “revolução científica”. Mas a imagem da natureza, do
pensamento e dos seres humanos como máquinas – físicas ou abstratas – possui uma
implicação nada desprezível: é comum ser associada às máquinas a impossibilidade de
autotransformação e a necessidade de padronização e redução das diferenças individuais.
Assim, uma compreensão rigidamente mecanicista é não raro acompanhada de uma
concepção limitada da ação do ser humano sobre si mesmo e dos modos de pensar e ser que
não sejam adequados aos padrões vigentes. Os seres humanos, ao serem convencidos de que
são (como) máquinas, podem vir a se comportar como tais: sem acreditar que possam se
autotransformar e que devem renunciar às suas características que fogem às padronizações.
As interações entre seres humanos e máquinas ou, mais precisamente, o emprego de
técnicas de produção, oferecem um terreno de investigação fértil no âmbito da crítica
corpórea – o que deve evidenciar e reforçar seu sentido materialista. De um lado, podemos
conjecturar se a adoção do modelo lógico-proposicional da cognição humana não foi
estimulada pela necessidade de que seres humanos, ao trabalharem diretamente com
computadores e equipamentos semelhantes, adequassem seu modo de pensar ao
funcionamento padrão destes últimos – de modo a ser criada uma máquina híbrida e complexa
formada por seres humanos e máquinas, em cujo interior conviveriam em forçada indistinção
processos orgânicos, maquinais e técnicos, articulados por instruções formais que, embora
tenham um aspecto abstrato, se imiscuiriam materialmente no âmago e nas extremidades de
contato de seus participantes. Esta é uma especulação que está a cobrar maior atenção das
ciências e da filosofia. De outro lado, deve-se considerar que mesmo esta interação é corpórea
– tal como investigado no livro Where the action is: The foundations of embodied
interactions, de Paul Dourish (DOURISH, 2004). Em outros termos: seria através da
permanente transformação dos seus corpos, incluindo sua dimensão afetiva, que os seres
321
97
Não apenas por homofonia, tais hábitos podem ser pensados de maneira sugestiva em convergência com o
conceito de habitus, tal como desenvolvido por Pierre Bourdieu (BOURDIEU, 2007).
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