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[-] Sumário # 13
EDITORIAL 5
ARTIGOS
A CRISE ATUAL E O ANACRONISMO DO VALOR 32
Uma leitura marxiana
Moishe Postone
Cláudio R. Duarte
EDITORIAL
novo fascismo, em parte, expressa a dor vivida pelas pessoas como um resultado da
transformação do capital na ausência de um movimento político que dê um sentido a
essa dor de maneiras que não sejam antissemitas nem façam de bode expiatório grupos
diversos de forma xenofóbica ou racista”. Entendemos que o legado teórico de Postone
oferece valiosas portas de acesso para se elevar esta dor ao conceito. Isso fica bem
ilustrado no texto recente que publicamos, que delineia o quadro geral de sua teoria para
explicar as grandes transformações dos séculos XX e XXI, além de refletir sobre o que
seria uma “crise secular da valorização”. Publicamos também o texto de Postone sobre
Derrida, Desconstrução como crítica social. Aqui se evidencia a sua
impressionante capacidade de interpretação histórica das formas de pensamento (pós-)
modernas, rebaixando suas pretensões ao nível que lhes cabe na memória histórica das
“fantologias” e “espectralidades” que, se fornecem boas perspectivas para se quebrar a
linearidade do tempo histórico vazio e homogêneo do capitalismo, não nomeiam a
desintegração social objetiva no cerne dos conceitos; antes, os desconstrói para poder
decretar seu fim precipitado e gozar com suas dispersões, esquivando-se da crítica
frontal da forma-mercadoria.
Em Constituição e destituição pelo trabalho - Observações sobre o
tempo e a liberdade à margem da obra de Moishe Postone, CLÁUDIO R.
DUARTE retoma a dialética do valor, do trabalho e do tempo abstrato desenhada por
Postone em sua obra, apontando algumas consequências para a crítica atual do sistema.
Recuperando os conceitos-chave de mediação e de dominação social abstrata pelo
trabalho, o autor lança outro olhar para o que parece ser o ponto mais frágil dessa obra
seminal: a crise do valor como crise da luta de classes, do paradigma produtivista do
marxismo tradicional e do sujeito histórico por ele pressuposto. Em vez de despachar a
questão através da negação abstrata, confirmando impressões superficiais de leitura, o
autor retoma a ideia do próprio Postone de sacar da “contradição” a necessidade da
“negação determinada”. Aqui, deste processo de crise e desintegração geral do sistema
categorial capitalista, incluindo a destituição das formas de pensamento, subjetividades
e necessidades “moldadas” pelo fetichismo, pode renascer o movimento social como
libertação: superação do “trabalho livre” e do tempo social abstrato de modo imanente,
que é também o movimento do próprio texto quando examinado mais de perto.
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social a partir de um viés específico: o dos afetos. Com isso, o autor propõe uma
discussão sobre angústia, desamparo e mal-estar, tentando colocá-los como substrato
para a tarefa da crítica.
DANIEL CUNHA, em Crise do capital e carisma apocalíptico busca
explorar e historicizar esse conceito weberiano para o entendimento da explosão trans-
nacional de figuras carismáticas. Para tanto, constroi um modelo no qual insere tal noção
no curso da “trajetória da produção” (Postone), usando também o conceito “esotérico”
marxiano do Estado (como alienação). Com isso, a explosão carismática é situada
historicamente na época do “anacronismo do valor”, de modo que se diferencia das
explosões de carisma históricas.
O mesmo autor, em Pós-capitalismo regressivo e “inércia conceitual”
especula sobre os limites epistemológicos da ciência social, inclusive da dialética, na era
da crise da formação histórica que dá origem às próprias categorias de pensamento,
argumentando que a crise do capital é também uma crise epistemológica. Mais do que
isso, o autor coloca a provocação: já não estaríamos vivendo sob as primeiras formas de
manifestação de um “pós-capitalismo” para o qual ainda não dispomos de categorias
analíticas adequadas?
Seguimos com a resenha de LEOMIR HILÁRIO A crítica do valor à prova
da atualidade, do livro “Poder mundial e dinheiro mundial” (Robert Kurz).
A revista fecha com Discruso da Paulista, comentado, no qual o discurso
de Jair Bolsonaro é pontuado por comentários de Daniel Cunha.
Agradecemos a Caroline Nogueira, Diogo Carvalho, Germano Nogueira Prado,
Luiz Philipe de Caux, Manoel Dourado Bastos e Vinícius Domingos por atenderem nosso
chamado à tradução coletiva da entrevista de Postone.
Março de 2019.
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A sua obra estabelece uma distinção crucial entre a crítica do capitalismo do ponto de
vista do trabalho e a crítica do trabalho no capitalismo. A primeira implica uma
concepção trans-histórica do trabalho [work], enquanto a última situa o trabalho
como uma categoria constitutiva – capaz de “síntese social” – no modo capitalista de
produção. Essa distinção exige que abondemos toda forma de concepção ontológica do
trabalho?
Em que sentido você diria que há uma possível concepção do trabalho em termos de
constituição? Algo que se pode encontrar no jovem Marx aponta nessa direção.
Sim, e parece que, uma vez que Marx historiciza a centralidade do trabalho para
um processo contínuo de desenvolvimento, isso em si mesmo não afasta a ideia de que
o trabalho é o processo de autoconstituição. Apenas ele não estaria ligado a uma noção
de desenvolvimento histórico e progresso constante no trabalho.
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Uma das contribuições mais importantes de Tempo, trabalho e dominação social é uma
nova teoria de dominação impessoal na sociedade capitalista. À luz dessa forma de
dominação irredutivelmente abstrata, poderíamos inverter – ou talvez dar um novo
sentido – à famosa definição de Marx de fetichismo como “relações entre pessoas que
aparecem como relações entre coisas”? A forma capitalista de dominação não seria
melhor definida como a aparência de relações realmente abstratas como se fossem
relações concretas, pessoais? Além disso, essa inversão, ou pelo menos o
reconhecimento do papel crucial da abstração no capitalismo, não torna a definição
de luta de classes insustentável, ou teríamos necessidade de um conceito de classe que
tome essa distância do concreto em consideração?
ocorre no interior das formas sociais estruturantes, e é moldada por elas. Essa posição
rejeita a centralidade ontológica ou o primado da luta de classes como aquilo que é
verdadeiramente social e real por detrás do véu das formas capitalistas. A luta de classes,
pelo contrário, é moldada pelas relações capitalistas expressas pelas categorias do valor,
da mercadoria, do mais-valor e do capital.
Uma das suas teses ou afirmações famosas e muito discutidas é a de que a dominação
impessoal no capitalismo, como notoriamente colocado por Marx, é exercida pelo
tempo, e que, portanto, a crítica da economia política em última análise se torna a
crítica da economia política do próprio tempo. Para um filósofo convencional formado
no idealismo pré-hegeliano, ou seja, kantiano, isso só pode ser surpreendente: o que
Kant considerava uma forma de intuição dada a priori deve ser radicalmente
historicizado, e pode ter – como se pode argumentar com Sohn-Rethel – o seu estatuto
apriorístico apenas porque foi colocado historicamente como a priori. É possível dizer
a partir da sua perspectiva que nem toda história é história da luta de classes, mas que
toda luta de classes é luta de classes pela história, e mais precisamente pelo tempo? Em
que estrutura temporal transcendental se vive? E, portanto, o primeiro passo para
romper a transcendentalização capitalista do tempo (tornar uma base a priori o que
você chama de “tempo histórico”) é demonstrar (crítica por meio da Darstellung
[exposição], como fazia Marx) que o que consideramos natural (o tempo) é ele próprio
um produto histórico, o que significa dizer: que não existe o tempo como tal (o tempo é
essencialmente relativo e nunca deveria ser naturalizado)? Essa compreensão então
poderia ser a própria condição para a emancipação daquilo que parece ser um regime
de tempo imutável, já que natural.
Sim, mas eu acrescentaria que a natureza da luta de classes no que diz respeito ao
tempo varia historicamente. Isso significa, como pode ser argumentado, e em muitos
aspectos alguém como E. P. Thompson realmente o fez, que em grande medida as
primeiras lutas de classe foram lutas contra um novo regime de tempo que estava sendo
introduzido. Foi uma luta contra o regime do tempo abstrato como disciplinamento, por
assim dizer. Porém, no intervalo de algumas gerações, (e é claro que estou sendo
bastante esquemático) as lutas da classe trabalhadora se tornaram uma luta no interior
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Poderíamos reformular isso de maneira que o proletariado não está lutando contra
outra classe (como a burguesia), mas sim contra o mundo burguês e a sua concepção
de tempo, com o que a própria autoabolição do proletariado modificaria esse mesmo
mundo e com isso modificaria a concepção constitutiva do tempo desse mundo? Isso
vai no sentido do que você diz?
Claro, com certeza. Isso fica mais difícil de ser visto em períodos como o atual, no
qual há enormes desigualdades. E assim as pessoas pensam que a luta é contra o 1%.
Mas estou completamente de acordo.
mais de uma dimensão do tempo, de maneira que há uma peculiar ausência não
apenas do futuro (como afirma a atitude “sem-futuro”), mas também de um presente
propriamente dito (e, portanto, mesmo de um passado propriamente dito)?
O(s) tempo(s) do capital são de uma dinâmica complexa, que implica de uma só
vez transformações em curso e em aceleração, que não são apenas tecnológicas, mas de
todas as esferas da vida, de um lado, e, de outro lado, a reconstituição da base
fundamental do próprio capital. Esse processo de reconstituição da base do capitalismo
no interior da estrutura da crítica de Marx é a reconstituição do trabalho, não apenas
como fonte da forma valor da riqueza, mas, relacionado a isso, do trabalho como a
atividade mediadora socialmente necessária que dá origem a toda uma estrutura de
dominação abstrata. Sugeri que as pessoas tendem a ver apenas uma dimensão dessa
dialética complexa: ou elas notam apenas que quanto mais as coisas mudam, mais elas
permanecem as mesmas, que tudo é apenas esse constante deserto sem qualidades do
presente, ou elas ficam muito entusiasmadas sobre tudo o que é sólido se desmanchando
no ar, sobre como tudo é aceleração. A real trajetória do desenvolvimento do capital no
interior do quadro da teoria, como eu a entendo – e isso é particularmente potente – não
deveria ser entendida como referindo-se nem a um nem a outro, mas a ambos ao mesmo
tempo. Isso significa que ela não é um desenvolvimento linear. Há muitas tensões de
cisalhamento, como se diz na física, que são internas ao sistema. Tanto a forma da
produção quanto o sentido das possibilidades historicamente constituídas têm de ser
entendidas com referência ao que eu chamo de tensões de cisalhamento dos
desenvolvimentos capitalistas. Isso faz sentido?
Faz, sim. Então, poderia ser dito que certas posições teóricas contemporâneas que
aparecem sob o nome “aceleracionismo”, uma posição que assume que é necessário
abraçar as tendências contraditórias do capital e acelerar sua produção em todos os
níveis, é simplesmente como uma fantasia de superar o capitalismo desde dentro do
próprio funcionamento do capitalismo e, portanto, não é capaz senão de acompanhar
sua própria dinâmica?
Bem, mesmo aqui eu teria que desarticular vários momentos na sua descrição que
estão mesclados. Essa dinâmica dialética que eu esbocei é uma dinâmica contraditória,
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isto é, ela gera uma contradição crescente entre o potencial do sistema e sua efetividade.
O fato de que há um limite para o capital não significa que o capital colapse. O limite é
antes uma curva assintótica, você chega mais e mais perto de um limite absoluto, mas
nunca o alcança. Se uma transformação irá ocorrer, ela tem de ocorrer porque as pessoas
presas na contradição entre o que é e o que poderia ser olham para o que poderia ser,
para o futuro, em vez de permanecerem fixadas naquilo que elas pensam que era o
passado. De certo modo, boa parte da esquerda, no que diz respeito a isso e desde esse
ponto de vista, está se tornando conservadora. O que quero dizer com isso é que seu
ponto de vista é o passado. No século XIX, por exemplo, muitos movimentos
anticapitalistas olhavam para o passado. Eles tinham uma imagem glorificada de uma
sociedade de camponeses cuja organização era justa. Uma tal sociedade nunca existiu, é
claro. E foi o trabalho de intelectuais associados com o movimento da classe
trabalhadora que viu claramente que não havia caminho de volta. Todavia, muitos desses
associados a movimentos da classe trabalhadora, baseados em parte na leitura do
Manifesto Comunista, assumiram que a classe trabalhadora iria apenas se expandir
indefinidamente e abarcar a maior parte das pessoas. Por fim, a sociedade seria
composta por 1% de burgueses e os trabalhadores iriam assumir o controle. Isso, no
entanto, não é e não será o caso. E o que enfrentamos hoje é uma crise da classe
trabalhadora tradicional e do trabalho. Contudo, temos variedades do pensamento de
esquerda que ainda glorificam o trabalho proletário, que ainda têm implicitamente um
conceito de sociedade baseada no pleno emprego – com o que que eles querem dizer
pleno emprego proletário. Ou, de modo mais socialdemocrata, eles olham para trás para
a síntese exitosa fordista-keynesiana das décadas do pós-guerra, onde muito mais
pessoas estavam empregadas, os salários eram mais altos, a desigualdade de renda não
estava nem perto de ser tão grande como é hoje, e elas gostariam de ver um retorno a
esse tipo de utopia socialdemocrata. Mas não há retorno. E uma análise sóbria do capital
indicaria que não há retorno e que todos que ainda insistem em falar sobre pleno
emprego industrial, etc., são reacionários em um sentido bem específico. Eles estão
olhando para trás, para um passado que não pode mais ser restabelecido. Por outro lado,
a resposta não é simplesmente abraçar o capital. O capital não irá realizar o potencial
que ele gera, e ele não pode fazer isso. O capital é enormemente destrutivo, assim como
é gerador de possibilidades que apontam para além dele. É preciso haver uma
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Não estou seguro sobre essa questão, porque não estou seguro de que tenha
defendido que a indeterminação é uma característica da luta social e política. Se você
puder elaborar um pouco mais, ficaria mais claro para mim sobre o que é a questão.
O que temos em mente é: o que poderia ocupar o próprio lugar que o trabalho está
ocupando?
1 Moishe Postone, “History and helplessness: mass mobilization and contemporary forms of
anticapitalism”. Public Culture 18 (1): 93-110. Disponvível em português em: http://o-
beco.planetaclix.pt/mpostone5.htm (N. E.)
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Só uma coisa, ligada a isso. Você diria: houve relatos de movimentos estudantis mais
recentes, como o movimento Occupy, onde as pessoas enfatizaram que uma força desse
mesmo movimento foi ou emergiu de sua total indeterminação, pelo menos no começo.
De modo que eles não levantaram nenhuma demanda específica, mas a própria
fraqueza do movimento foi também essa mesma indeterminação, de modo que o ponto
de inflexão mesmo é que é difícil determinar: onde a indeterminação ainda é produtiva
ou se torna indeterminada. Você concordaria com uma consideração desse tipo?
Bem, se eu puder voltar o que eu estava dizendo antes, o que tenho tentado
elaborar é um modo de ver a esfera de produção na análise de Marx como o locus de uma
dinâmica histórica. Não é simplesmente um locus onde coisas concretas são produzidas
e pessoas são exploradas. Parece-me que muitas pessoas, incluindo Michael Heinrich,
interpretaram mal do que se trata a esfera de produção. Na crítica de Marx, a esfera de
produção é a esfera da dinâmica histórica, é a esfera na qual o valor excede a si mesmo
e ainda reconstitui a si mesmo. E ao focar na troca, de certa forma Sohn-Rethel remove
essa dinâmica da investigação, e fica preso numa oposição que, embora Sohn-Rethel
fosse muito sofisticado e de forma alguma pudesse ser jogado no mesmo saco intelectual
dos stalinistas, mesmo assim opõe a produção à troca. E eu sou crítico dessa posição –
não por que ele coloca o locus da abstração apenas na troca. Penso que isso é um grave
erro, porque o verdadeiro locus da abstração é a dinâmica histórica. E ainda assim isso
é muito mais difícil de compreender do que a ideia da abstração do mercado. Um
resultado é, portanto, que não há diferença histórica em Sohn-Rethel entre a filosofia
grega e a filosofia do século 17 e o pensamento do século 19. Tudo é moldado pela
abstração real da troca. E eu penso, por mais rico e sugestivo que seu trabalho era e é,
que isso é uma fraqueza. Por outro lado, e isso era o que você estava levantando, ao
contrário dos românticos, Sohn-Rethel diz que há uma dimensão positiva ao reino da
abstração. Eu concordo com ele, mas gostaria de modificar isso um pouco: o reino da
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Seu trabalho é um dos poucos – talvez ao lado da teoria dos diferentes “modos de troca”
de Kojin Karatani – a criticar a “metáfora arquitetônica”, que pensa a lógica dos
modos de produção em termo de base/superestrutura sem ceder espaço à centralidade
da crítica da economia política.2 O que sobra da teoria dos “modos de produção”
quando nós partimos não do objetivo em direção ao subjetivo, mas, ao contrário,
enfatizamos, como você propõe, a constituição simultânea das dimensões subjetiva e
objetiva da vida social sob o capitalismo – como isso afeta o próprio conceito de crítica?
Mais uma vez, eu acho que tem bastante coisa envolvida aqui. Primeiramente,
estou questionando o materialismo histórico – que não foi realmente criado por Marx,
mas posteriormente largamente por Engels – isto é, a ideia de que se tem sucessivos
modos de produção. Eu penso que analisar os argumentos de Marx em O capital chama
2 Outra obra importante a respeito é a de Derek Sayer, The violence of abstraction: the analytic
foundations of historical materialism. Basil Blackwell, 1989. (N. E.)
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política, por outro. Como você visualiza a relação entre a crítica da economia política
e a organização política militante hoje?
Por um lado, não se pode esperar que as pessoas que tentam exercitar uma crítica
categorial sofisticada estejam sempre nas linhas de frente dos movimentos, e também
não se pode esperar que aqueles que são mais inclinados para o ativismo sejam grandes
teóricos. Pode haver exceções, mas geralmente você não pode esperar isso. No entanto,
você pode esperar que um dos papéis da teoria – e isso soa muito modesto, mas é muito
importante – seja mostrar quais caminhos são claramente equivocados. Você pode
colocar muito esforço e energia em caminhos equivocados. Eu lembro de argumentar
com as pessoas nos anos 70, nos EUA e na Alemanha, que um movimento de retorno à
“natureza”, onde todo mundo poderia ordenhar suas próprias vacas, poderia ter sido
satisfatório individualmente e poderia ter sido uma maneira mais rica e gratificante de
viver. Porém, de maneira alguma isso poderia servir como um modelo para a sociedade.
Chegou-se ao ponto de as pessoas promulgarem esse ideal romântico; ao ponto de elas
impedirem forças de oposição, grupos, pensadores de tentarem trabalhar para definir o
que seria um caminho adequado. Então, uma das tarefas mais importantes da teoria
talvez tenha menos a ver com indicar exatamente qual é o caminho para a revolução e
mais a ver com indicar quais caminhos não levam a uma transformação emancipatória.
Por exemplo, esse argumento poderia ter sido feito com relação ao movimento Occupy.
O seu argumento, em “The Holocaust and The Trajectory of the Twentieth Century” [“O
Holocausto e a trajetória do século XX”],3 de que os campos de concentração deveriam
ser compreendidos como a “grotesca negação anticapitalista” da modernidade
capitalista – uma espécie de “fábrica de ‘destruir valor’ (...) de destruir as
personificações do abstrato” – serve como um exemplo persuasivo da tese,
apresentada em Tempo, trabalho e dominação social, de que a dialética capitalista da
transformação/reconstituição é, na verdade, uma expressão do entrelaçamento de
duas formas de dominação: uma baseada no tempo abstrato e outra baseada no tempo
histórico. Consequências cruciais poderiam ser extraídas disso, especialmente para
3 Publicado em Moishe Postone e Eric Santner (org.) Catastrophe and meaning. Chicago: University of
Chicago Press, 2003, p. 81-115. Ver, também de Postone, “Anti-semitismo e nacional-socialismo”, Trad.
Nuno M. C. Machado. Sinal de Menos, nº8, 2012, p. 14-28. (N. E.)
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uma crítica dos projetos emancipatórios que baseiam suas expectativas para o futuro
na libertação do “concreto” e do “histórico” das garras da abstração. Como a sua
análise das categorias de tempo e temporalidade no capitalismo afeta a dialética da
utopia e da ideologia?
Ela é um aviso. O que eu tentei fazer no ensaio sobre o Holocausto ao qual você
se refere foi duas coisas de uma só vez. Tentei ajudar as pessoas a entender que há uma
diferença entre assassinato em massa e extermínio. Não se trata de uma diferença moral.
Não é que um seja pior ou melhor do que o outro. Não se pode compreender o
Holocausto apenas analiticamente caso ele seja subordinado às categorias de xenofobia,
ódio racial e assassinato em massa. Ele tem um sentido de missão e propósito que outras
formas de racismo, eu diria, não têm. Não apenas isso, ele é utópico. É utópico muito no
sentido de que tenta libertar o concreto das garras da abstração. Essa noção de
emancipação caracterizou a chamada “Revolução Alemã” dos nazistas. Os judeus, dentro
dessa visão de mundo, tornaram-se, de certa forma, não apenas a personificação do
capital, mas também a origem da sua dominação abstrata. Eu penso que o Holocausto
deveria servir como um significativo aviso contra todas as formas de utopia que reificam
o concreto e vilificam o abstrato – ao invés de ver que ambos, o abstrato e o concreto,
bem como sua separação, são o que formam o capital. Esse era o primeiro ponto. O
segundo é que o capital (e isso é baseado na minha leitura de Marx) não é simplesmente
um vampiro sentado em cima do concreto, onde, sendo assim, poderíamos
simplesmente nos livrar dele, como quando tomamos um remédio para dor de cabeça.
Dentro desse imaginário, o capital é considerado extrínseco ao concreto, à produção ou
ao trabalho. Porém, o capital na verdade molda o concreto. Ele continuamente esvazia o
trabalho de seu sentido. Ao mesmo tempo, ele é uma forma alienada de sociabilidade
humana, de capacidades humanas. Como tal, ele é criador de formas gerais de
conhecimento e poder, mesmo que ele historicamente as crie numa forma que oprime
os vivos. Ainda assim, em muitos aspectos, é precisamente isso que se torna a origem de
possibilidades futuras. Isto é, o trabalho vivo (proletário) não é a fonte de possibilidades
históricas futuras. Pelo contrário, aquilo que tem sido constituído historicamente como
capital é essa origem. Agora, eu sei que isso soa como se eu estivesse colocando tudo de
cabeça para baixo. Eu estou dizendo que a categoria de trabalho vivo em Marx não é a
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origem da emancipação. Que, ao invés disso, o trabalho morto é essa origem. Talvez isso
soe como uma provocação, mas é algo que precisa ser pensado.
Você acha (ou diria) que qualquer mudança fundamental na dinâmica e na estrutura
do capitalismo é também sempre perigosa, não somente no sentido de vir com a
ameaça de reincidir no que se quis superar, mas também no de correr o risco de piorar
a situação? Podemos pensar na frase de W. Benjamin, que diz que por trás de todo o
fascismo há uma revolução fracassada. Além disso, você diria que é preciso, ainda
assim, correr o risco de fracassar ao fazer a revolução (e, com isso, correr o risco do
fascismo) ou algo mudou com o século XX e na sua sequência (de forma que o
imperativo seria sempre o de evitar o risco de fascismo e, desta forma, seria preciso
repensar a revolução e a transformação política a partir desta perspectiva)?
Acho que este é um conjunto muito complicado de problemas. Por um lado, não
acho que o risco de fascismo, que é alto, seja tanto que não devamos tentar mudar nada.
Porque não é como se estivéssemos vivendo num sistema estático onde se pode dizer
“saia sozinho tranquilamente, mas não balance o barco”. O barco já está sendo balançado
pelos desenvolvimentos históricos estruturais. Há o perigo real do fascismo, e aí é que a
análise comunista reducionista do fascismo nos fez um tremendo desserviço. Fascismo
não é simplesmente um movimento manipulado pelas classes dominantes reacionárias,
é também, de forma não simples, uma expressão do declínio das classes tradicionais. Ao
contrário disso, o movimento em direção a um novo fascismo, em parte, expressa a dor
vivida pelas pessoas como um resultado da transformação do capital na ausência de um
movimento político que dê um sentido a essa dor de maneiras que não sejam nem
antissemitas nem façam de bode expiatório grupos diversos de forma xenofóbica ou
racista. Acho que isto é particularmente corrente nos dias de hoje. Um fenômeno como
Donald Trump, algumas facções dos apoiadores de Bernie Sanders, o movimento Brexit,
a direita na França – estas não são mais expressões das classes reacionárias tradicionais,
mas expressões em grande parte das classes trabalhadoras industriais em declínio. Não
basta que a esquerda simplesmente os chame de racistas, xenofóbicos e mesquinhos. E
seria um erro terrível adotar, oportunisticamente, essa mentalidade, ainda que se leve
sua miséria a sério. Neste caso, não se está confrontando adequadamente a crise do
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capital industrial. Ao invés disso, nós precisamos de outra forma de ver o mundo, para
além das políticas identitárias de esquerda assim como das de direita. Como membros
de uma configuração cosmopolita, não podemos simplesmente dizer que o
multiculturalismo é cool porque gostamos muito de andar pelas ruas de uma cidade
como Londres, que é uma verdadeira metrópole, e vivenciar de mil pequenas maneiras
a globalidade disso tudo. Não podemos simplesmente ignorar todos os que estão no
Norte da Inglaterra. O fato de eles terem cometido um erro não significa que não haja
bons motivos para que se sintam radicalmente insatisfeitos. O novo perigo do fascismo,
e uso ”fascismo“ num sentido muito amplo, é gerado pela dor e miséria causadas pela
dinâmica do capital. Muitos na esquerda costumavam tentar solucionar a natureza
propensa a crises do capitalismo com programas de pleno emprego e formas de
segurança social que fossem baseadas em tal pleno emprego. Isso não irá mais funcionar.
Eu não denuncio tal programa por ser reformista. Ele fez perfeito sentido em seu tempo.
Contudo, não faz sentido agora. A esquerda tem cada vez menos a dizer em termos de
uma análise da situação – para além de se apresentar como antirracista, cosmopolita e
globalizante. Tudo o que isso irá fazer é gerar ressentimento da parte daqueles que
realmente sentem os golpes da economia globalizada.
Leva-se a sério aqueles que não se pode levar a sério. Então pode-se dizer que se a única
articulação que é dada a esse tipo de insatisfação é um tipo de fascismo, também pode-
se ver uma falha da esquerda em fazer algo a respeito.
Sim.
Uma das posições prevalecentes na esquerda hoje é a ideia de que precisamos de novas
formas de organização política que privilegiem a imanência em relação à
transcendência, a multiplicidade em relação à unidade – e engajamento concreto,
local, em relação a mediações abstratas. Quais são, em seu julgamento, os limites dos
instrumentos tradicionais de luta da esquerda (forma-partido, sindicatos etc.)? Além
disso, sua crítica da visão teleológica do proletariado implica uma concepção populista
da construção de agentes políticos?
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Em Tempo, trabalho e dominação social você argumenta em dado momento que se pode
comparar estrutural e sistematicamente o apontamento de Hegel, que afirma o
Absoluto como substância, mas também sujeito, com a determinação de Marx do
capital como autovalorização do valor, por meio da qual o capital poderia ser
precisamente a forma anônima, impessoal de dominação, que é a substância e também
o sujeito do capital. Em Hegel, essa história do espírito (e também do Espírito Absoluto,
ou seja, o Absoluto como Espírito) necessariamente chega a um fim (que, para ele, é a
precondição para ela continuar numa maneira não pré-determinada); você diria que
algo similar poderia ser afirmado sobre Marx? Seria necessário primeiro incluir –
como alguém como Jean-Pierre Dupuy, o teórico francês das catástrofes, parece fazer
– o fim (do capitalismo e emancipação etc.) para finalmente alcançar uma nova
perspectiva da emancipação?
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colapso social. Eu digo isso, muito embora não seja de todo um amigo das teorias da
catástrofe. Não gosto de visões apocalípticas, usualmente elas foram destrutivas.
Dupuy apresenta um argumento levemente diferente, porque ele argumenta que nosso
caminho de nosso próprio futuro é parte da catástrofe que já está ocorrendo. Diz que
nosso modo de lidar com a crise ecológica depende de um quadro de cálculos que
precisa se manter estável e estamos agindo sob a hipótese de que esse é o caso e de que
não há um ponto de inflexão alcançável que poderia mudar o quadro ele próprio.
Porém, deve haver um ponto de irreversibilidade precisamente como um efeito de
nosso modo de lidar com a catástrofe que pretendemos prevenir (assumindo que
possamos manejá-la), porque a catástrofe certamente irá ocorrer se procurarmos
preveni-la da maneira como fazemos.
Isso faz mais sentido para mim. Porém, as pessoas que argumentam sobre a
importância de limitar o aumento nas temperaturas em dois graus estão cientes de um
dilema. Se você disser a todos que a catástrofe ambiental tornou-se agora irreversível,
isso também irá induzir as pessoas a rejeitar essa posição como meramente alarmista ou
a dizer, então, que não há nada a ser feito sobre isso. As pessoas que conheço que pensam
que definitivamente irá ocorrer uma catástrofe são direitistas estadunidenses
sobrevivencialistas, que constroem abrigos subterrâneos, espaços providos com um
estoque de comida, armas etc. Isso pode ser risível como uma resposta, mas é uma
resposta imediata. Isso não é diretamente o que Dupuy está argumentando. Mas, me
parece que estamos ante uma catástrofe e que está emergindo apenas lentamente nas
pessoas que se trata de uma grande catástrofe e não acho que a catástrofe deva ser
abraçada.
Você disse antes que os judeus se tornaram objeto de uma dominação abstrata.
Podemos talvez fazer uma comparação com a crise dos refugiados?
Acho que não. Mas isso não significa que o racismo e a xenofobia direcionada aos
migrantes não seja real e reacionária e um problema real. Mas penso que o
antissemitismo é, de fato, algo diferente e que a esquerda é insensível a ele. O
antissemitismo é sobre quem controla o mundo. Ninguém pensa que os refugiados
sírios, afegãos ou africanos controlam o mundo. Eles os veem como uma ameaça a seu
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modo de vida. Isso é diferente. Isso é mais como os brancos sulistas nos Estados Unidos
considerando os negros como uma ameaça a seu modo de vida se eles vierem a obter
direitos civis plenos. Há uma diferença. Ninguém no sul [dos EUA] nunca pensou que
os negros governassem o mundo. Ninguém pensa que os refugiados governam o mundo,
que eles estão por detrás dos bancos, por exemplo. Se alguém governa o mundo no
interior do quadro desse tipo de pensamento populista, são os Estados Unidos e Israel,
e isso tem um bocado a ver com antissemitismo. Fazer essa distinção não significa dizer
que o antissemitismo é ruim e que ser contra refugiados não é igualmente ruim. É muito
ruim, e as pessoas fazem uso disso como um meio de dar sentido à miséria de suas vidas.
Essa miséria tem muito a ver com as políticas de austeridade da Europa, assim como a
crise do trabalho assalariado que vem se arrastando, da qual agora os refugiados estão
se tornando as vítimas não intencionais.
Uma última pergunta sobre o Brexit, que aconteceu há pouco. Ele surge de um
movimento nacionalista, que é peculiar porque parece que o que eles querem recuperar
é a sua autonomia. Mas eles serão completamente dependentes, no entanto, da política
da União Europeia. Então parece que a Grã-Bretanha abandonou a própria posição
de ainda ser capaz de influenciar o quadro político, que ainda continuará a determiná-
la. O que você acha dessa situação?
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comportas durante períodos de dificuldade econômica. E uma das razões pelas quais eu
digo isso é que, dadas as decisões da União Europeia sobre a livre circulação de pessoas,
o governo britânico decidiu não introduzir essas políticas gradualmente, mas abrir as
fronteiras de uma só vez para os nacionais da União Europeia. Se você fosse um
trabalhador polonês, você poderia ter o direito de trabalhar na Alemanha e na Grã-
Bretanha. No entanto, você poderia entrar imediatamente na Grã-Bretanha, enquanto
demoraria um certo tempo para entrar na Alemanha, pois a Alemanha escolheu
implementar gradualmente a circulação de pessoas. Mas esse é apenas um dos níveis. O
pano de fundo real é que a economia industrial está há um bom tempo descendo a
ladeira. Ninguém discute e explica a mudança estrutural massiva àqueles que são
afetados, pelo menos não na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. As pessoas que
trabalham na economia carvoeira nos Estados Unidos, os trabalhadores carvoeiros,
acreditam que seu declínio econômico se deve ao ambientalismo e às regulações do
governo. Ninguém mostra para eles que hoje se produz mais carvão do que no passado,
utilizando-se muito menos trabalho. A empresa esconde isso culpando o governo. Nos
Estados Unidos, a reação popular contra essa crise do trabalho assume a forma do
populismo de direita: somos contra o governo e os imigrantes. Na Europa, ela assume a
forma de ser contra os migrantes e ser contra a Europa. Eu só tive uma breve experiência
com a imprensa britânica. Ela é inacreditavelmente ruim. Não admira que o Guardian,
que nem é um jornal tão grande, mas é um jornal decente, se destaque como uma joia,
um farol contra as mentiras racistas xenófobas. Parece que Boris Johnson, e eu só
descobri isso na semana passada, fez seu nome trabalhando como repórter para o
Telegraph na década de 90, quando estava instalado em Bruxelas. E foi ele quem sugeriu
as histórias sobre burocratas sem rosto que determinam o quão grandes deveriam ser
pepinos ou preservativos. A maior parte do que ele escreveu era empiricamente falso,
era nonsense, mas para a imprensa britânica isso não fez diferença; quase toda ela
embarcou nessa. Penso que o que aconteceu é que muitas pessoas se sentiram
impotentes em face dessas transformações estruturais. Ao mesmo tempo, a União
Europeia tem um forte déficit democrático. Só há dois caminhos. Um é democratizar a
Europa e o outro é voltar aos Estados nacionais. Parece haver muito pouca
movimentação em direção a uma democratização da Europa. Então a única outra reação,
que é uma reação de frustração, é simplesmente ir embora dessa coisa toda. E eu não sei
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se, quando os seis ministros se encontrarem agora em Berlim, se isso ao menos está em
sua agenda. Ou se eles simplesmente irão punir a Grã-Bretanha pela saída.
E então o perigo é que a União Europeia apenas continue como se nada tivesse
acontecido.
Tradução:
Caroline Nogueira
Daniel Cunha
Diogo Carvalho
Germano Nogueira Prado
Luiz Philipe de Caux
Manoel Dourado Bastos
Vinícius Domingos
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Moishe Postone
I.
A eleição de Donald Trump, o voto em favor do Brexit e a onda de populismo de
direita varrendo parte significativa da Europa são expressões de uma crise profunda da
legitimidade política das democracias liberais, tão extensa e potencialmente perigosa
quanto aquela no período entre-guerras na Europa.
Essa crise política, que tem uma expressão na infeliz oposição entre
neoliberalismo global e nacionalismo autoritário, funda suas raízes, indiscutivelmente,
nas abrangentes transformações estruturais das décadas recentes, que se tornaram
manifestas com o crash de 2008 e suas consequências. Além de provocar a ascensão de
movimentos como o Occupy e uma onda de populismos - tanto à direita quanto à
esquerda - em vários países, a crise e a Grande Recessão deram novo ímpeto a tentativas
de entender criticamente e de maneira abrangente os desenvolvimentos históricos
contemporâneos. Junto a isso, o termo “capitalismo” foi reintroduzido em amplas
discussões, tanto acadêmicas como genericamente intelectuais, como uma concepção
que agora parece mais adequada analiticamente do que aquela de “modernidade”, que
foi mais dominante nas décadas do pós-guerra.
Mesmo assim, as compreensões de “capitalismo” variaram consideravelmente.
Com base em uma releitura das obras maduras de Marx, sugiro que uma teoria crítica
do capitalismo deve entendê-lo não apenas como uma forma determinada de
desigualdade ou, relacionado a isto, como um sistema de exploração baseado na classe,
uma categoria que em anos recentes tem sido frequentemente relacionada com aquelas
de gênero e raça como categorias de identidade e opressão. Dito de maneira mais
generalizada, uma adequada teoria crítica do capitalismo não deve ser entendida apenas
em termos de uma crítica ao modo dominante de distribuição - isto é, a propriedade
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privada dos meios de produção e do mercado -, como sem dúvida tem sido o caso com o
marxismo tradicional.
Em vez disso, especialmente como observado com a vantagem do presente, sugiro
que o capitalismo deve ser entendido, antes de tudo, como uma forma histórica
específica de vida social, em cujo coração está uma forma abstrata historicamente única
de dominação que encontra expressão em uma dinâmica histórica global. Essa forma de
vida surgiu contingencialmente na Europa Ocidental, que foi fundamentalmente
transformada por ela, assim como passou a transformar e constituir o globo. Ou seja, ao
contrário de alguns pressupostos que se tornaram generalizados, essa forma de vida não
é intrínseca ou ontologicamente ocidental, mas ela própria remodelou o Ocidente. Ela
não pode, portanto, ser adequadamente compreendida em termos culturalistas
reificados. Ao contrário, quero sugerir que uma teoria capaz de compreender
adequadamente o caráter dinâmico dessa forma de vida social pode ser desenvolvida
mais rigorosamente baseada num encontro renovado com as obras maduras de Marx.
Para muitos, é claro, é o caso de afirmar que o colapso da União Soviética e a
transformação da China marcaram o ponto final do socialismo e da relevância teórica de
Marx. Esse fim também foi expresso, noutro nível, pela emergência de outros tipos de
abordagens teóricas, tais como o pós-estruturalismo e a desconstrução, que buscaram
proporcionar críticas da dominação que evitavam o que elas consideravam as
armadilhas dos grandes programas de emancipação humana.
A atual crise global, contudo, revelou dramaticamente as limitações fundamentais
dessas novas abordagens - incluindo aquelas associadas a pensadores tão diferentes
quanto Habermas, Foucault e Derrida - como tentativas de compreender o mundo
contemporâneo. Ela também expôs a unilateralidade daquilo que foi chamado de “virada
cultural” [cultural turn] nas humanidades e ciências sociais. A existência contínua de
crises econômicas severas como uma característica da modernidade capitalista, assim
como as transformações estruturais das sociedades industriais (que recentemente
geraram massivas reações populistas de direita), a existência de “desindustrialização
prematura” em outras partes do mundo (onde o caminho estatista para a acumulação
nacional de capital não aparece mais como uma opção viável), a financeirização
crescente da vida social, casada com a prevalência da pobreza massiva e exploração
estrutural em uma escala global, o dramático crescimento da desigualdade e - sobretudo
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
II.
Meu foco no caráter historicamente dinâmico do capitalismo busca responder aos
padrões das abrangentes transformações globais do século passado. Como é bem sabido,
pesquisadores como Piketty, focando em questões relativas à desigualdade, estabeleceu
recentemente a existência de um abrangente padrão histórico de mudanças na
desigualdade que caracterizou o século passado - de um período de grande desigualdade
em fins do século XIX e inícios do século XX a um período em torno de meados do século
XX durante o qual a desigualdade foi reduzida drasticamente. Isso foi seguido após o
início da década de 1970 por uma inversão - um ressurgimento acentuado do aumento
da desigualdade.
Esse padrão não apenas revela uma extrema alteração na riqueza e no poder
político no mundo contemporâneo, mas também coloca em questão compreensões de
desenvolvimentos históricos modernos em termos lineares - como é certamente o caso
da teoria da modernização, por exemplo.
Significativamente, esse padrão de mudanças na desigualdade é supranacional e
se sincroniza com outros padrões abrangentes. Por exemplo, a taxa média de
crescimento econômico dos países capitalistas avançados foi relativamente baixa
durante a primeira metade do século, então mais do que dobrou em meados do século
XX - período este de desigualdade mais baixa. Isso então se inverteu após o início da
década de 1970: o crescimento econômico declinou e a desigualdade aumentou.
Mudanças na taxa do PIB per capita seguiram um padrão similar. Elas foram
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com seu contexto histórico. Isso sugere que, diferente dessas abordagens, uma teoria
crítica deve estar apta a problematizar sua própria contextualização histórica. Ou seja,
deve ser reflexiva.
Esses padrões abrangentes sugerem a importância de um engajamento renovado
na crítica da economia política de Marx, pois a problemática das dinâmicas históricas e
mudanças da estrutura global está no cerne dessa crítica. Todavia, como mencionado
acima, a história do último século também sugere que uma teoria crítica adequada deve
diferir fundamentalmente da crítica marxista tradicional do capitalismo - com o que eu
quero dizer um quadro interpretativo geral no qual o capitalismo é analisado
essencialmente em termos de relações de classe que estão baseadas na propriedade
privada e mediadas pelo mercado, sendo a dominação social entendida principalmente
em termos de dominação e exploração de classe.
Dentro desse quadro básico de análise, tem havido uma ampla gama de abordagens que
geraram poderosas análises econômicas, políticas, sociais, históricas e culturais.
Contudo, as limitações de abrangência do quadro de análise em si mesmo se tornaram
cada vez mais evidentes à luz dos desenvolvimentos históricos do século XX. Esses
desenvolvimentos incluem o caráter não-emancipatório do “socialismo realmente
existente”, a trajetória histórica de sua ascensão e declínio, em paralelo com aquela do
capitalismo de estado intervencionista (sugerindo que elas estavam situadas
historicamente de maneira similar), a importância crescente do conhecimento científico
e da tecnologia avançada na produção (que parecia colocar em questão a teoria do valor
trabalho), críticas crescentes ao progresso e crescimento tecnológico (que se opôs ao
produtivismo de grande parte do marxismo tradicional) e a importância crescente de
identidades sociais não baseadas na classe. Juntos, eles indicam que o quadro
tradicional não pode mais servir como um ponto de partida para uma teoria crítica
adequada.
De fato, gostaria de sugerir que um senso da inadequação do quadro marxista
tradicional - ao mesmo tacitamente - deu forma a uma política progressista crítica por
décadas. A noção de pós-capitalismo, de socialismo, como uma sociedade baseada no
trabalho industrial, propriedade pública dos meios de produção e planejamento
centralizado começou a perder o controle sobre o imaginário de muitos intelectuais,
estudantes e trabalhadores progressistas durante a crise do capitalismo fordista em fins
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dos anos 1960 e inícios dos 1970. Essa inadequação era frequentemente sentida em vez
de explicitamente teorizada. Eu sugiro, contudo, que ela foi expressa implicitamente nas
difundidas críticas do trabalho e crescimento industrial, no enfraquecimento do apoio
aos partidos social-democratas e comunistas, na crescente perda de orientação desses
partidos, assim como nas tentativas de localizar novos sujeitos revolucionários - por
exemplo, em movimentos anti-coloniais.
De qualquer modo, colocando de lado tais considerações por um instante, estou
sugerindo que considerar os padrões históricos gerais que caracterizaram o século
passado questiona tanto o marxismo tradicional, com suas afirmações sobre trabalho e
história, assim como as compreensões pós-estruturalistas da história como
essencialmente contingente. Não obstante, esta consideração não necessariamente nega
o discernimento crítico que dá forma às tentativas de lidar com a história de maneira
contingente - a saber, que a história, entendida como o desdobramento de uma
necessidade imanente, delineia uma forma de ausência de liberdade.
Essa forma de ausência de liberdade, como irei elaborar, é o objeto central da crítica da
economia política de Marx, que fundamenta o caráter historicamente dinâmico e as
mudanças estruturais do mundo moderno em imperativos e restrições que são
historicamente específicos à sociedade capitalista. Longe de ver a história
afirmativamente, Marx fundamenta essa dinâmica direcional nas categorias de
mercadoria e capital, desse modo apreendendo-a como uma forma de dominação, de
heteronomia.
Dentro desse quadro, a crítica de Marx, então, não é tomada do ponto de vista da
história e do trabalho, como o é no marxismo tradicional. Ao contrário, a dinâmica
histórica do capitalismo e a aparente centralidade ontológica do trabalho se tornam os
objetos da crítica de Marx. Pela mesma razão, a teoria madura de Marx não mais
pretende ser uma teoria com validade trans-histórica da história e da vida social, mas é
de modo auto-consciente historicamente específica e coloca em questão qualquer
abordagem que reivindica validade universal e trans-histórica a si mesma. Essas
dimensões centrais das análises de Marx tornam sua teoria crítica mais adequada ao
nosso contexto histórico do que o marxismo tradicional ou o pós-estruturalismo.
Deveria ser evidente que o impulso crítico da análise de Marx, de acordo com essa
leitura, é similar em alguns aspectos às abordagens pós-estruturalistas na medida em
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que isso implica numa crítica da totalidade e uma lógica dialética da história. Contudo,
considerando que Marx trata tais concepções como expressando a realidade da
sociedade capitalista, as abordagens pós-estruturalistas recusam sua validade insistindo
no primado ontológico da contingência. Do ponto de vista da crítica marxiana da história
heterônoma, qualquer tentativa de restaurar a agência histórica [historical agency]
insistindo na contingência de modo a recusar ou obscurecer a forma dinâmica de
dominação característica do capital é, ironicamente, profundamente desempoderadora.
III.
Essas alegações são baseadas numa leitura que reconsidera as mais fundamentais
categorias da crítica madura de Marx em referência à dinâmica heterônoma que
caracteriza o capitalismo. Dentro do quadro tradicional, suas categorias - tais como
valor, mercadoria, mais-valor e capital - foram geralmente tomadas como categorias
econômicas que afirmam o trabalho como a fonte de toda riqueza social e demonstra a
centralidade da exploração de classe no capitalismo. O trabalho aqui, entendido trans-
historicamente, fornece o ponto de vista da crítica do capitalismo.
Dentro desse quadro, o centro fundamental da dominação no capitalismo é a
propriedade privada - a exploração do trabalho pela classe capitalista. A centralidade do
trabalho para a vida social é além disso obscurecida pelo mercado. Isso é, no capitalismo,
o significado social central do trabalho é suprimido e velado pelo mercado e pela
propriedade privada; eles impedem o trabalho de se tornar plenamente realizado. A
emancipação, portanto, é realizada numa sociedade em que o trabalho trans-histórico
emergiu abertamente como o princípio regulatório da sociedade. Essa noção, é claro,
está vinculada àquela do socialismo como a “auto-realização” do proletariado.
Uma leitura atenta da madura crítica da economia política de Marx, contudo, coloca em
questão as pressuposições históricas da interpretação tradicional. Marx afirma
explicitamente nos Grundrisse que suas categorias fundamentais não são trans-
históricas, mas historicamente específicas. Mesmo categorias como dinheiro e trabalho
que parecem trans-históricas, por conta de seu caráter abstrato e geral, são válidas em
sua generalidade abstrata somente para a sociedade capitalista, de acordo com Marx.
Isso coloca em questão vários entendimentos das categorias de Marx. Irei me
referir brevemente ao Livro I de O Capital a fim de delinear uma compreensão não-
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tradicional dessas categorias. Esta obra começa com a categoria da mercadoria, que não
se refere às mercadorias como elas podem existir em diversos tipos diferentes de
sociedade. Ao contrário, Marx toma o termo e o usa para se referir à mais básica relação
social da sociedade capitalista, sua forma fundamental de mediação social e princípio
estruturador. Essa forma, de acordo com Marx, é caracterizada por um caráter dual
historicamente específico (valor de uso e valor). Ele procura então desdobrar a natureza
e a dinâmica fundantes da modernidade capitalista a partir do caráter dual dessa forma
estruturadora básica, das interações de suas dimensões constitutivas. No coração de sua
análise está a ideia de que o trabalho no capitalismo tem uma função mediadora
socialmente única que não é trans-historicamente intrínseca à atividade do trabalho.
Numa sociedade em que a mercadoria é a categoria estruturadora básica do todo,
o trabalho e seus produtos não são distribuídos por normas tradicionais, ou relações
abertas de poder e dominação, como é o caso em outras sociedades. Ao contrário disso,
o trabalho ele mesmo constitui uma nova forma de interdependência, em que as pessoas
não consomem aquilo que produzem, muito embora seu próprio trabalho ou produtos
do trabalho funcionem como um meio quase objetivo de obter produtos de outros.
Servindo como tal meio, o trabalho e seus produtos, de fato, antecipam essa função no
que diz respeito às relações sociais manifestas; eles fazem a mediação de uma nova forma
de inter-relacionamento social.
Nas obras maduras de Marx, então, a noção de centralidade única do trabalho
para a vida social não é uma proposição trans-histórica. Ao contrário, ela se refere à
constituição historicamente específica do trabalho no capitalismo como uma forma de
mediação social que fundamentalmente caracteriza essa sociedade. Ao revelar essa
mediação, Marx busca fundamentar socialmente e elucidar as características básicas da
modernidade capitalista, bem como sua dinâmica histórica abrangente.
O trabalho no capitalismo, então, é tanto trabalho tal qual nós entendemos trans-
historicamente e segundo o senso comum, de acordo com Marx, como é uma atividade
socialmente mediadora historicamente específica. Consequentemente, aquilo que o
trabalho produz, suas objetificações - e aqui estou me referindo à mercadoria e ao capital
- são tanto produtos do trabalho concreto como formas objetificadas da mediação social.
De acordo com essa análise, portanto, as relações sociais que mais basicamente
caracterizam a sociedade capitalista são bem diferentes das relações sociais
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
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por meio das quais essas últimas são compreendidas como as relações sociais básicas do
capitalismo. Em vez disso, elas são as relações sociais essenciais do capitalismo elas
mesmas - formas temporalmente dinâmicas e contraditórias da mediação social que
subjazem uma dinâmica histórica complexa.
Deve-se levar a sério a descrição de Marx em O Capital da categoria de capital
como a substância auto-movente que é sujeito. Ao descrevê-la com a mesma linguagem
que Hegel usou na Fenomenologia ao se referir ao espírito, Marx sugere que a noção de
Hegel sobre a história como algo que tem uma lógica, como um desdobrar dialético, é
certamente válida - mas apenas para a modernidade capitalista. Aquilo que Hegel tratou
como o Sujeito da História, Marx nesse momento identifica como o capital, uma
estrutura dinâmica de dominação abstrata que, embora constituída por humanos, se
torna independente de suas vontades e é geradora de uma dinâmica histórica.
Como um ponto paralelo, deve-se notar que daí conclui-se que a crítica madura
de Marx a Hegel não implica numa inversão antropológica da dialética idealista deste
último. Ao contrário, Marx nesse momento implicitamente demonstra que o “centro
racional” da dialética de Hegel é precisamente seu caráter idealista. Isso expressa um
modo de dominação constituído por relações que adquirem uma existência quase
independente vis-à-vis aos indivíduos, exercendo uma forma abstrata de compulsão
sobre eles e que, por conta de seu caráter dualista, são de caráter dialético.
No interior desse quadro, a História - tal qual apresentada por Hegel - é
historicamente específica. Não é uma característica universal da vida social humana,
mas é constituída por formas historicamente específicas de práticas que, por sua vez,
moldam e restringem. Isso implica em que a história humana como um todo não pode
ser caracterizada trans-historicamente - nem em termos de uma lógica abrangente,
como em Hegel, ou como trans-historicamente contingente, como em Nietzsche. Ao
contrário, uma dinâmica direcional conduzida de modo imanente é uma das
características marcantes do capitalismo. Note-se que, aqui, o Sujeito histórico, a
totalidade e o trabalho que o constitui tornam-se então os objetos de crítica na teoria
madura de Marx e não seu ponto de vista.
A compreensão da complexa dinâmica do capitalismo que eu delineei pode ajudar
a iluminar a iminente dupla crise contemporânea - aquela da degradação ambiental e a
morte da sociedade do trabalho. As categorias marxianas de mais-valor e capital
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permitem uma análise crítica social (em vez de tecnológica) da trajetória de crescimento
na sociedade moderna. A dimensão temporal do valor, especialmente na forma daquilo
que Marx chama mais-valor relativo, subjaz um padrão determinado de “crescimento”,
dirigido por pressões contínuas, mesmo aumentos acelerados na produtividade. Isso
gera aumentos na riqueza material bem maior do que aqueles no mais-valor (que, na
análise de Marx, mantém-se a forma relevante de excedente no capitalismo) e,
consequentemente, uma demanda acelerada por matéria prima e energia, o que
contribui centralmente para a destruição acelerada do ambiente natural. Nesse quadro,
então, o problema com o crescimento econômico no capitalismo não está apenas no fato
de que ele é afetado pela crise. Ao contrário, a forma do crescimento ela mesma é
problemática. Isso sugere que a trajetória do crescimento seria diferente se o objetivo
final da produção fosse quantidades crescente de bens, em vez de mais-valor.
De acordo com essa abordagem teórica, a raiz desse problema está em que o valor
é uma forma temporal de riqueza. Como resultado, o processo de valorização transforma
a produção em um processo peculiar, por meio do qual - sob a superfície da produção
material - a matéria é transformada em unidades de tempo abstrato. Por ser uma forma
temporal de riqueza, o capital ambiciona a infinitude, ignorando, por assim dizer, a
necessária finitude material de seu ambiente natural, o planeta.
Essa abordagem também fornece a base para uma análise social da estrutura do
trabalho social e produção no capitalismo com referência à sua contradição básica. No
interior do quadro da análise de Marx, o impulso para o aumento contínuo na
produtividade leva à crescente importância da ciência e tecnologia na produção. Isto é,
a dinâmica do capital é historicamente geradora de uma rápida acumulação de
conhecimento socialmente geral. A tendência de longa duração desse desenvolvimento
histórico é tornar a produção baseada no tempo de trabalho - isto é, no valor e,
consequentemente, no trabalho proletário - crescentemente anacrônica. Por um lado,
isso abre a possibilidade de reduções socialmente gerais em larga escala no tempo de
trabalho, e mudanças fundamentais na natureza e organização social do trabalho, o que
sugere que, para Marx, a abolição do capitalismo não implicaria na auto-realização do
proletariado, mas na auto-abolição.
E ainda, por outro lado, porque a dialética da transformação e reconstituição não
apenas encaminha a produção adiante, mas também reconstitui o valor, assim, ela
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Quero sugerir - e isso não é mais que uma sugestão - que é possível considerar o
fim em crise da enormemente produtiva configuração do capitalismo pós-guerra
keynesiano-fordista como a expressão de uma crise secular da valorização. Respondendo
a esse desenvolvimento, o capital buscou não apenas reverter os ganhos do trabalho sob
o fordismo ao enfraquecer sindicatos, mudando a produção para áreas com salários
baixos e substituindo trabalho por tecnologia, mas também ao desenvolver novas formas
de gerar riqueza. Pode-se ver a expansão da economia da dívida como uma tentativa de
desenvolver novas fontes de receita. Isso em si mesmo não é necessariamente novo. A
análise de Marx a respeito da tendência do valor se tornar anacrônico, contudo, pode
lançar uma luz diferente na atual configuração do capital financeiro. No interior deste
quadro, a financeirização neste momento não seria exatamente o mesmo que a
financeirização no passado, visto que agora a expansão de uma economia da dívida
ocorreria contra o pano de fundo da produção estagnada de mais-valor.
A dívida, falando de maneira ampla, implica uma explícita ou tácita nota
promissória. Ela implicitamente pressupõe que, em algum ponto do futuro, haverá
riqueza o suficiente para cobrir a dívida. Se, contudo, a atual economia da dívida é
considerada contra o pano de fundo da estagnação da produção de mais-valor, o capital
financeiro poderia ser visto como tentando, por assim dizer, constituir seu próprio
domínio de produção de riqueza. A ampla variedade de notas promissórias e
“instrumentos” meta-promissórios desenvolvidos são orientados ao horizonte do futuro.
Contudo, esse horizonte, no quadro da teoria do valor, recua à medida em que a
produção de mais-valor estagna; não há produção suficiente de riqueza na subjacente
forma do valor para eventualmente cobrir essas dívidas.
Uma consequência é a crescente tentativa frenética de transformar tudo o que for
possível em recursos para riqueza futura. O que haviam sido formas bastante simples e
diretas de dívida - por exemplo, hipoteca - se tornaram “financeirizadas” - isto é, são
tratadas como matérias-primas, por assim dizer, de riqueza que supostamente pode ser
aproveitada no futuro. Mais e mais dimensões da vida - desde hipotecas à infraestrutura
- vieram a ser transformadas no conteúdo de novas formas de riqueza simulada.
No interior desse quadro interpretativo, então, a crise da produção de valor é
mascarada pela tentativa mediada financeiramente em transformar mais e mais
dimensões da vida em “matérias-primas” do preço e do lucro - em formas de riqueza
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IV.
O que eu delineei é uma crise sistêmica fundamental que ocorre na medida em
que as formas sociais subjacentes do capitalismo se tornam anacrônicas enquanto se
mantém necessárias. Ela dá origem a enormes tensões de cisalhamento com
consequências potencialmente desastrosas. Ela também sugere que categorias como
classe (ou gênero ou raça) não são historicamente estáveis, mas estão em fluxo,
constituídas e reconstituídas pelo fluir dinâmico do capital.
Como um adendo, deve-se notar que no interior deste quadro, a ideia de outra
forma possível de vida social, além do capitalismo, é imanente à modernidade capitalista
ela mesma. Ela não é derivada do contato cultural ou do estudo etnográfico de formas
de vida social fundamentalmente diferentes; tampouco é baseada na experiência de uma
ordem social prévia com sua própria economia moral que está sendo destruída pelo
capitalismo - muito embora essa experiência certamente foi geradora de oposição.
Oposição ao capitalismo, contudo, não aponta necessariamente para além dele. Ela pode
- e frequentemente tem sido - subsumida pelo capital ele mesmo ou descartada como
inadequada às exigências do contexto histórico amplo. A análise de Marx é direcionada
menos para a emergência da “resistência” (que é política e historicamente
indeterminada) do que para a possibilidade da transformação. Ela procura delinear a
emergência de uma forma de vida que, como resultado da dinâmica capitalista, é
constituída como uma possibilidade histórica e ainda é limitada por essa dinâmica em
ser realizada. Essa lacuna entre o que é e o que poderia ser permite uma possibilidade
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futura que, crescentemente, se tornou historicamente real. É essa lacuna que constitui a
base para uma crítica histórica daquilo que é. Ela revela o caráter historicamente
específico das formas sociais fundamentais do capitalismo - não apenas em referência
ao passado, ou outra sociedade, mas também em referência a um futuro possível.
É o capital ele mesmo, como capacidades humanas objetivadas, que gera a
possibilidade de uma sociedade futura. Porém, ele faz isso numa forma que, ao mesmo
tempo, é crescentemente destrutiva do ambiente e a população trabalhadora.
Um dos resultados dessa crise dual - na ausência de críticas não tradicionais do
capital que tratem essas crises como interrelacionadas - foi uma bifurcação. Muitos
discursos sobre a mudança climática tendem a ignorar a crise do trabalho. Isso abriu os
portões para vários movimentos populistas de direita que negam tanto a primeira como
a segunda. Esses movimentos populistas procuram dar sentido à crise do trabalho em
termos concretos (como referência a minorias, imigrantes, mulheres e países
estrangeiros) em vez de em termos das limitações abstratas e imperativos que
direcionam a dinâmica do capital e entendem esse processo, essencialmente temporal,
em termos espaciais como “globalização” (pela qual os bancos ou os judeus são os
responsáveis). Como movimentos essencialmente defensivos, eles opõem como um
contra-peso a esses supostos problemas uma nova visão romântica que não aspira pela
Idade Média desta vez, mas pelo Estado-nação - imaginado como delimitado e
homogêneo, funcionando na base de uma economia nacional. (Infelizmente, vários
movimentos tradicionais de trabalhadores e progressistas também reagiram
defensivamente, desenvolvendo uma resposta nacionalista de esquerda em vez de tentar
repensar e retrabalhar a ideia de um internacionalismo progressista como resposta ao
internacionalismo neoliberal.)
Os movimentos populistas de direita, então, tem um quadro abrangente para
explicar um mundo em crise, ainda que ele seja condenável, equivocado e perigoso como
pode ser. A geração anterior de críticos e movimentos sociais progressistas de esquerda
também tinham um quadro abrangente - socialismo internacional, uma organização da
sociedade mais racional. Tal quadro abrangente, bastante difundido, está ausente pelas
últimas cinco décadas.
No interior do quadro da abordagem delineada aqui, o crescente caráter
anacrônico do valor na ausência de um imaginário abrangente de um futuro para além
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Moishe Postone
1 Derrida, Jacques. Specters of Marx: the state of the debt, the work of mourning, and the new
International. Tradução de Peggy Kamuf. New York and London: Routledge, 1994, Pp. xx, 198.
2 Gostaria de agradecer a Nicole Jarnagin Deqtvaal, bem como a Martin Jay, a Tom McCarthy e a Neil
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
4 Ibidem, p. 3-4.
5 Ibidem, p. xvii-xviii.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
6 Ibidem, p. 3-4.
7 Ibidem, p. 13.
8 Ibidem, p. xix, 4, 25-27.
9 Ibidem, p. xviii-xix, xxix, 25-27, 70-75.
53
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
possibilidade de uma justiça situada para além do direito, uma justiça, enfim, subtraída
da fatalidade da vingança10.
Heidegger também tratou de formular uma noção alternativa de justiça, uma
noção de justiça situada para além do direito (Diké). Todavia, segundo Derrida,
Heidegger vinculou tal justiça à injunção; permanecendo assim sua noção de justiça
vinculada à metafísica da presença. A concepção de Derrida de uma justiça situada para
além do direito se diferencia da de Heidegger na medida em que supõe uma relação com
o outro como outro - e isto, segundo Derrida, requer disjunção ou anacronia. A noção de
justiça de Derrida se vincula, portanto, à espectralidade11.
De maneira geral, para Derrida, a desconstrução como procedimento crítico finca
suas raízes na disjunção e na anacronia. Renega, assim, o horizonte totalizante e fechado
das regras, as normas ou as representações jurídico-morais que privam o futuro de toda
possibilidade. O futuro a que Derrida se refere está relacionado com sua noção de
espectralidade: trata-se de um futuro que, rompendo radicalmente com o tempo
presente, já não pertenceria à história12.
No centro das considerações de Derrida encontra-se uma crítica radical do
presentismo, de uma ordem existente que se pretende imutável. Realiza sua crítica em
nome de outro futuro e de uma conceituação de justiça capaz de ir para além da presença,
para além do direito e do cálculo. Derrida se refere a tal crítica em termos de um
messianismo "desértico", sem conteúdo nem Messias identificável, que se contrapõe ao
caráter concreto, encarnado, presentista, em última instância, das posturas
escatológicas, teleológicas e apocalípticas13.
Em Espectros de Marx, o conceito abstrato de messiânico é o primeiro indício -
como em sua crítica do logocentrismo do ponto de vista da primazia da escrita - de que
uma das facetas de sua exposição crítica é uma crítica dos aspectos básicos do
pensamento ocidental cristão do ponto de vista secularizado de seu outro mais
significativo: os judeus. Sua reapropriação de um aspecto crucial da tradição judaica - a
recusa em assumir o dado - recorda as "Teses da Filosofia da História" de Walter
10 Ibidem, p. 21.
11 Ibidem, p. 25-27.
12 Ibidem, p. 21.
13 Ibidem, p. 28.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Benjamin, assim como Max Horkheimer, quem, em 1938, em tempos ainda mais
sombrios, escreveu: "Há períodos nos quais o status quo [...] tornou-se diabólico. Os
judeus se mostraram, alguma vez, orgulhosos do monoteísmo abstrato [...], de sua
negativa de fazer um absoluto de algo finito. Sua miséria atual os conduz de novo ao
passado. A falta de respeito a qualquer ser mortal que se eleve a si mesmo ao nível de
Deus é a religião daqueles que, na Europa da cortina de ferro, não renunciam viver uma
vida melhor"14.
Tendo introduzido o conceito do messiânico, Derrida o utiliza para caracterizar a
herança de Marx como uma injunção política cuja força quebra e desarticula o tempo 15.
Assim como na espectralidade, o espírito emancipador do pensamento de Marx põe em
questão a profunda linha divisória - uma linha estabelecida pelos poderes constituídos
para reafirmá-los - entre a atual realidade do presente e tudo quanto possa opor-se a ele.
Frente à nova ordem mundial, Derrida afirma que compreender as lições das grandes
obras de Marx tornou-se particularmente urgente na atualidade. Ao mesmo tempo,
reapropriar-se de um dos espíritos de Marx torna-se mais simples graças à derrocada do
comunismo europeu, bem como à dissolução dos aparelhos ideológicos marxistas.
Nestas circunstâncias, desprezar Marx converte-se em uma falta de responsabilidade
teórica, filosófica e política16.
Assim, os conceitos espectralidade e o messiânico proporcionam a Derrida um
ponto de apoio para a sua tentativa de reapropriação positiva do legado de Marx. Estes
conceitos fornecem, também, o ponto de partida para sua crítica do triunfalismo
neoliberal e da escatologia teleológica - ambos presentes de maneira combinada em O
Fim da História e o Último Homem de Francis Fukuyama. Derrida considera este livro
exemplificador dos novos discursos ideológicos dominantes que declaram a vitória do
capitalismo e recusam Marx e a possibilidade de uma transformação radical da
sociedade; fazendo-o, segundo Derrida, com o objetivo de exorcizar o caráter ameaçador
e ameaçado da nova ordem mundial17. A principal tese de Fukuyama, derivada da
interpretação de Hegel realizada por Kojève, vem dizer que a recém derrocada das
14 Horkeimer, Max. The Jews and Europe. In: Bronner, Stephen E.; Kellner, Douglas M. (orgs.). Critical
Theory and Society. New York and London, 1989, p. 94.
15 Derrida, Jacques, op. cit., p. 30-31.
16 Ibidem, p. 11, 13.
17 Ibidem, p. 49-53, 57.
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18 Ibidem, p. 56-61.
19 Ibidem, p. 57, 62-64.
20 Ibidem, p. 85.
21 Ibidem, p. 53-54, 63-64, 78.
56
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
22 Ibidem, p. 78-82.
23 Ibidem, p. 53-54, 63-64.
24 Ibidem, p. 13, 54, 88.
25 Ibidem, p. 29.
26 Ibidem, p. 70.
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espectralidade pretende proporcionar a base para uma crítica social radical dirigida
contra os dois polos da oposição constitutiva da Guerra Fria.
Derrida pretende ir para além de tal oposição diferenciando, na herança de Marx,
os elementos que afirmam a espectralidade do marxismo como ontologia, como sistema
metafísico ("materialismo dialético"). Seu objetivo é reestabelecer uma crítica social do
mundo contemporâneo recuperando o que ele denomina a historicidade da história
contra as exposições que cancelam tal historicidade, a saber: o conceito "onto-teo-
arqueo-teleológico" da história em Hegel e em Marx, assim como o "pensamento epocal"
de Heidegger27. Busca fazê-lo com a ajuda de uma concepção de acontecibilidade fora do
tempo presente - similar à imagem de Benjamin do salto de tigre da revolução como o
voo messiânico de uma época determinada alheia ao curso homogêneo da história28. Por
meio desta noção, Derrida busca abrir a possibilidade de pensar o messiânico
afirmativamente e, deste modo, a possibilidade da emancipação como promessa, mais
que como programa ou desenho onto-teológico ou teleo-escatológico29.
Derrida relaciona o conceito de democracia com tal promessa. Fala de uma
democracia futura como de uma promessa que não seria simplesmente uma modalidade
futura do presente vivo. A promessa de semelhante democracia implica, por um lado, o
respeito à singularidade e a infinita alteridade; e, por outro lado, o respeito pela
igualdade calculável entre singularidades anônimas30. A democracia, portanto, como
ruptura com o presente, implica superar a oposição entre o particular e o universal. Tal
esforço por unir o respeito pela alteridade e pela igualdade se afasta profundamente do
enfoque de Derrida das críticas neorromânticas da modernidade e de todos aqueles que
almejam a "comunidade" até o ponto de dissipar aquilo que, no espírito de Marx, Derrida
valoriza, implicitamente, como um aspecto positivo da modernidade capitalista.
Na nova Internacional - o vasto desdobramento de movimentos e instituições não
governamentais e não partidárias que surgiram de uma resposta política à nova ordem -
Derrida distingue os tipos de política que apontam para a promessa de tal democracia.
Aquilo que, segundo Derrida, caracteriza esta nova Internacional é que não possui
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que serve como ponto de vista crítico de Stirner não é mais que um corpo abstrato,
artificial: simplesmente o espaço no qual as entidades autonomizadas são reunidas; um
corpo de espectros, um fantasma38.
Reformulando o raciocínio de Marx na linguagem da fenomenologia, Derrida
observa que, para Marx, tanto a forma fenomênica do mundo com o ego fenomenológico
são espectrais. O ponto de vista de sua crítica da dimensão cristiano-hegeliana da
fenomenologia é a "estrutura prática" do mundo: trabalho, produção, realização,
técnicas39.
Este ponto de vista, porém, se vincula, segundo Derrida, a uma metafísica da
presença que afirma que a crítica de Marx é morfologicamente similar à de Stirner 40.
Derrida sustenta que, para além das diferenças entre ambos, tanto Marx como Stirner
desejam vencer o fantasma: ambos opõem o "princípio hiper-fenomenológico da
presença em carne e osso da pessoa viva"41, à onto-teologia espectral. A crítica de Marx
difere da de Stirner somente quantitativamente, buscando levar a crítica deste para mais
longe.
No fundo, para Derrida, Marx deseja diferenciar claramente o espectro (negativo)
do espírito (positivo). Mas, esta distinção não se sustenta. O espectro não é somente a
aparição carnal do espírito (isto é, o fetiche), é também a impaciente e nostálgica espera
de uma redenção, de um espírito. Segundo Derrida, a diferença entre espectro e espírito
é, por consequência, uma différance42.
Derrida estende esta interpretação da análise de Marx da forma-mercadoria no
primeiro capítulo do volume I de O Capital. Observa que, com seu conceito de fetichismo
da mercadoria, Marx trata de demonstrar que o capitalismo se caracteriza,
precisamente, por aquilo que supostamente deixou para trás: o animismo, o espiritismo.
Para Derrida, o enfoque de Marx é aqui análogo à sua crítica a Max Stirner: trata-se de
uma crítica de um tipo de "secularização" que reconstitui o animismo que acreditava
haver superado. O novo tipo de objeto do bom sentido fenomenológico: o ego
fenomenológico, por exemplo, ou a mercadoria como objeto.
38 Ibidem, p. 126-129.
39 Ibidem, p. 130, 135.
40 Ibidem, p. 131.
41 Ibidem, p. 132; 191, nota 14.
42 Ibidem, p. 136.
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Derrida supõe que a categoria de valor de uso é o ponto de vista da crítica de Marx
em O Capital e, portanto, sua crítica seria efetuada do ponto de vista ontológico da
materialidade, da presença. Ao aceitar a consagrada leitura marxista tradicional, Derrida
relaciona a dimensão valor de uso à técnica, e identifica a categoria valor com mercado.
Sobre esta base sustenta que a exposição de Marx não permite uma crítica da tecnologia;
em seu lugar, imagina uma sociedade que levaria para ainda mais longe, o processo de
secularização capitalista43.
Derrida prossegue argumentando que o valor de uso e, por conseguinte, a
produção e a tecnologia, não pertencem unicamente ao presente: não se encontram
realmente tão livres de espectros como Marx havia, supostamente, dado por certo, mas
se conformariam socialmente. Deste modo, não podem servir como ponto de partida de
uma teoria emancipatória, pois uma teoria emancipatória, ao contrário, somente pode
ser aquela que aceite a espectralidade.
Derrida conclui seu livro retomando a questão de uma esperança messiânica
desmontada, de uma espera sem o horizonte da esperança. Se se pudesse contar com o
que está por vir, a esperança não seria mais que o cálculo de um programa44, isto é,
permaneceria vinculada ao presentismo. Em vez de afugentar os fantasmas, como fez
Marx, se deveria garantir-lhes o direito de regressar. Trata-se de uma condição de
justiça, de um modo de vida radicalmente diferente do da existência atual.
II
43 Ibidem, p. 160-163.
44 Ibidem, p. 168-169.
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45 Ibidem, p. 78.
46 Ibidem, p. 53-54, 63-64, 79-81, 112.
63
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profundamente distorcida e que sua própria postura se baseia em uma melhor análise e
mais adequada do mundo atual. Tal exposição vai, implicitamente, para além dos limites
de uma crítica desconstrucionista imanente, ao tempo em que formula necessariamente
a pergunta acerca da adequação da crítica social a seu objeto. Contudo, esta é uma
pergunta que Derrida não se coloca.
Para formulá-la, Derrida deveria, também, ter tematizado, explicitamente, o
problema da dinâmica histórica do mundo contemporâneo. A intervenção de Derrida,
como vimos, é uma resposta a uma situação histórica que se transformou
dramaticamente em 1989. As recentes derrocadas da União Soviética e do comunismo
europeu não deveriam, no entanto, ser vistas como fenômenos que se esgotam em si
mesmos, como vitórias democráticas locais das sociedades sobre os Estados. Ao
contrário, deveriam ser contextualizadas na relação com um desenvolvimento histórico
mais geral que se estende ao longo dos últimos vinte e cinco anos, e que implicou o
declínio do regime fordista de poderosos Estados metropolitanos, empresas nacionais e
sindicatos industriais; ao tempo em que se caracterizou por uma crescente globalização
e por uma cada vez maior diferenciação no que se refere a riqueza e poder.
A partir da perspectiva de fins do século XX, tal desenvolvimento geral, origem
da nova ordem mundial que Derrida ataca, pode ver-se como um dos diferentes padrões
históricos em grande escala discerníveis de maneira descritiva. Se os primeiros dois
terços do século XX se caracterizaram pela crescente intervenção e controle sobre os
processos socioeconômicos por parte dos Estados nacionais, o período que se iniciou a
princípios da década de 1970 conheceu o desvanecimento, o desfalecimento e - nos
desaparecidos países comunistas da Europa - a derrocada de tais regimes estatais. Estes
padrões se generalizaram, não dependendo totalmente dos partidos políticos ou dos
indivíduos no poder. Não podem, portanto, ser entendidos adequadamente fazendo-se
referência a fatores locais e a diferentes contingências. Estas últimas podem explicar
variações em tais padrões comuns, mas não podem, contudo, explicar os padrões em si
mesmos.
Visto assim, o pressuposto, comumente aceito na década de 1960 no ocidente (e
anteriormente no oriente), de que a esfera política havia alcançado a primazia sobre a
dinâmica socioeconômica do capitalismo - uma suposição adotada de maneira implícita
por muitos pós-marxistas - demonstrou ter sido historicamente incorreto. As décadas
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
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48 Ibidem, p. 89.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
possibilidades e lutas do presente. Neste sentido, qualquer futuro será, por necessidade,
historicamente imanente, independente de até que ponto os atores históricos possam
pensar que estão realizando um salto radical fora da história.
A questão, pois, reside em se é possível que uma crítica social do presente aponte
na direção de um futuro radicalmente diferente do presente e, no entanto, fundamente
a possibilidade de tal futuro no presente. Semelhante crítica deveria compreender o
presente sem se limitar a reproduzir e a afirmar tal presente. Em outras palavras, o
exame crítico da obra de Derrida, Espectros de Marx, realizado neste ensaio, expõe a
pergunta acerca da possibilidade de uma teoria crítica que se encontre em consonância
com um determinado espírito da desconstrução e com sua crítica do presentismo, ao
tempo que avance uma base mais sólida para uma análise crítica do mundo
contemporâneo. Sugeri que tal crítica requereria um giro social e histórico de maior
envergadura que a realizada por Derrida. Aparentemente, Derrida se mostra precavido
perante um giro deste tipo, pois teme que implique necessariamente uma volta ao
presentismo. Esta suposição é questionável e debilita sua tentativa de formular uma
crítica adequada do presente e de sua dinâmica histórica.
Em Espectros de Marx, Derrida reconhece a importância de uma crítica do
capitalismo atual, bem como a força da análise de Marx. No entanto, Derrida, muito
consciente dos riscos associados ao marxismo tradicional, parece haver pensado que não
teria outra opção que não fosse justapor elementos de uma análise marxista a seu
próprio enfoque "espectral". Com o intuito de apresentar um enfoque teórico alternativo,
avançarei brevemente alguns elementos de uma leitura de Marx muito diferente da
interpretação tradicional que subjaz no enfoque de Derrida49. O objetivo desta leitura
não é, de modo algum, "defender" Marx da crítica de Derrida, mas proporcionar a base
para uma teoria crítica que possa compreender a nova situação mundial de maneira
social e historicamente mais adequada e, ainda assim, ser congruente com a intenção
crítica do conceito de espectralidade de Derrida, bem como com sua crítica do marxismo
tradicional.
49Para uma elaboração desta leitura ver Postone, Moishe. Time, Labor, and Social Domination: a
reinterpretation of Marx's critical theory. Cambridge, Eng. and New York, 1993.
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No marco desta leitura, as categorias presentes nas obras maduras de Marx fazem
referência a relações sociais historicamente específicas e não deveriam ser entendidas
em termos "materiais" trans-históricos. Tais relações sociais, captadas mediante
categorias, tais como "mercadoria" e "capital", não são fundamentalmente relações de
classe - como assumem as interpretações do marxismo tradicional -, mas formas
particulares e quase-objetivas de mediação social. As relações sociais estão constituídas
por determinados tipos de práticas sociais que exercem um modo abstrato e "estrutural"
de constrição, historicamente novo, sobre os atores que geram tais práticas. Os traços
definidores do capitalismo, segundo tal interpretação, não se situam no mercado e na
propriedade privada. Portanto, o ponto de vista da crítica do capitalismo não se localiza
na produção (industrial) e no proletariado; de fato, este último é considerado essencial
- e moldado - pelas relações sociais básicas do capitalismo.
Neste ponto de vista, um possível futuro pós-capitalista não implicaria a
realização do proletariado industrial e do trabalho que este efetua - isto é, a realização
racional do mundo industrial moderno - mas, a superação de uma estrutura
historicamente específica de constrições racionais abstratas, bem como a superação das
formas concretas de produção, trabalho e, mais geralmente, da vida social
historicamente moldadas por tais constrições. Portanto, a teoria crítica do capitalismo
de Marx não é entendida como uma análise crítica de uma variante classista de sociedade
moderna, mas constitui uma crítica da sociedade moderna em si.
Por esta razão, as categorias da análise de Marx são historicamente específicas,
no sentido de que são categorias próprias unicamente de sociedades capitalistas,
modernas, diferenciando analiticamente tal modo de vida social de outros. No entanto,
estas categorias são também categorias gerais do capitalismo. Em um alto nível de
abstração lógica, permitem conceitualizar as principais características da sociedade
capitalista e de sua dinâmica: aqueles traços que caracterizam o capitalismo,
independentemente de suas configurações históricas mais específicas, tais como o
capitalismo "liberal" do século XIX, o capitalismo "estatista" ou "fordista" do século XX,
ou o capitalismo "pós-fordista" ou "pós-moderno" de fins do século XX. Apesar destas
categorias não bastarem para analisar qualquer dessas configurações mais específicas,
oferecem o ponto de partida necessário para qualquer análise deste tipo, bem como para
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uma análise dos processos dinâmicos que transformam uma dada configuração em
outra.
Ao contextualizar historicamente as principais categorias de sua teoria crítica
presentes em suas obras de maturidade, Marx, segundo a leitura que aqui estamos
efetuando, também contextualiza historicamente o conceito de dinâmica histórica.
Marx, abandona, implicitamente, a noção trans-histórica de que a história humana em
geral tem uma dinâmica, a favor de uma análise, em termos historicamente específicos,
dessa dinâmica como uma característica única e específica do capitalismo. As categorias
da crítica da economia política de Marx em suas obras maduras - muitas vezes
compreendidas como categorias do mercado e da exploração de classe (propriedade
privada) - permitem, em um alto nível de abstração lógica, uma análise das principais
características e da força motriz de tal dinâmica historicamente específica.
Definitivamente, as concepções trans-históricas da história - sejam hegelianas
ou marxistas tradicionais - implicam uma afirmação de uma dinâmica (e,
correlativamente, da totalidade) contra a qual reagiram pensadores como Derrida. A
compreensão historicamente específica da dinâmica histórica apontada acima conduz
esta problemática para fora do reino das afirmações metafísicas sobre a natureza da
realidade social (seja esta totalizante ou heterogênea) e, ao contrário, trata de
compreender socialmente um processo dinâmico historicamente único. No âmbito deste
tipo de compreensão, a existência de uma dinâmica histórica não é considerada
positivamente como a locomotiva da existência humana, mas é compreendida,
criticamente, como um tipo de heteronomia, de dominação temporal abstrata.
Por outro lado, esta compreensão lança alguma luz sobre uma dimensão muito
importante da democracia, a saber: a autodeterminação. Segundo esta perspectiva, a
tensão existente entre capitalismo e democracia não provém simplesmente da
desigualdade de acesso à riqueza e do poder que o capitalismo produz e reproduz, mas é
o resultado da existência de uma dinâmica histórica que necessariamente implica
importantes limitações estruturais para a possibilidade de autodeterminação. Longe de
equiparar a abolição do capitalismo com um (apocalíptico) fim da política (uma posição
criticada por Derrida), tal análise aponta para uma ampliação do âmbito da política
como uma possível consequência da abolição das constrições estruturais do capitalismo.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Este giro conceitual implica o retorno a um conceito de totalidade, mas não como
uma categoria alternativa, como no marxismo ortodoxo, onde se considera que o
problema do capitalismo é seu caráter irracional e fragmentado. Aqui, ao contrário, a
totalidade é o objeto da crítica. Tal enfoque, como em Derrida, é crítico com respeito à
homogeneidade e à totalização. No entanto, em lugar de negar sua existência real, esta
crítica fundamenta os processos de homogeneização e totalização em formas
historicamente específicas de relações sociais e busca mostrar como as tensões
estruturais internas a tais relações abrem a possibilidade da abolição histórica de tais
processos.
O problema de muitas exposições críticas recentes (incluindo as de Derrida) que
afirmam a heterogeneidade é que buscam inscrevê-la de maneira quase-metafísica,
negando a existência daquilo que somente pode ser abolido historicamente. Deste modo,
estas exposições, pretendendo ampliar a capacidade de ação das pessoas terminam por
diminuí-la, na medida em que equiparam e tornam invisíveis dimensões centrais da
dominação no mundo moderno.
Uma importante diferença entre Hegel e Marx reside na distinção entre uma
concepção trans-histórica e afirmativa da dinâmica histórica e uma concepção
historicamente específica e crítica da mesma. Esta diferença foi ignorada por Fukuyama,
Kojève e por boa parte do marxismo ortodoxo. Derrida também termina por aproximar
Marx de Hegel, assumindo que qualquer noção de dinâmica histórica direcional deve ser
linear, teleológica e afirmativa: definitivamente, presentista. Por conseguinte, Derrida
opõe a história, enquanto que encadeamento linear de unidades homogêneas de tempo
abstrato, à acontecibilidade, uma oposição que reproduz a antinomia clássica entre
necessidade e liberdade. Dentro de tal esquema dicotômico, a mudança radical somente
pode ter lugar como resultado de uma ruptura completamente inesperada e não como
uma possibilidade inscrita no presente.
Estas pressuposições debilitam a capacidade de Derrida para compreender
criticamente a dinâmica do capitalismo e, com ela, uma dimensão central da dominação
no mundo moderno, de modo tal que Derrida pudesse fundamentar, também, a
possibilidade imanente de uma mudança qualitativa radical. Na medida em que
interpreta tal dinâmica através das lentes das formas afirmativas do marxismo ortodoxo
- que recusa como presentista - Derrida, na tentativa de se reapropriar do "espírito de
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
afirmaria que Marx está sustentando que o indivíduo moderno está social e
historicamente constituído por uma forma das relações sociais que ele mesmo constitui.
Sobre esta base, Marx critica Stirner por pressupor o indivíduo como dado, como um
ponto de partida ontologicamente irredutível, em lugar de um resultado histórico.
Em outras palavras, Derrida toma sistematicamente como o ponto de vista
"material" e ontológico da crítica marxiana o que Marx, por sua vez, analisa como a
expressão reificada de uma forma historicamente específica das relações sociais. Como
consequência, a leitura "materialista" de Marx realizada por Derrida lhe impede de
compreender a dinâmica do capital enquanto reificação "real", compreensão que lhe
possibilitaria superar a oposição clássica entre necessidade e contingência. A análise de
O Capital efetuado por Derrida mostra isto com clareza.
Como vimos, Derrida afirma que, em O Capital, o valor de uso proporciona o
ponto de vista ontológico para a crítica de Marx da forma mercadoria e de suas
mistificações. Vinculando o valor de uso e a técnica, Derrida identifica a crítica de Marx
ao capitalismo com a valorização da produção industrial do marxismo ortodoxo. Sobre
essa base, sustenta que a crítica de Marx permanece atada ao imediato da presença: a
visão marxiana do futuro não poderia ir, realmente, para além da dominação do
presente. Em seguida, Derrida busca desconstruir a crítica de Marx assinalando (de
maneira trans-histórica) que o valor de uso (e, portanto, a produção) não se encontra
unicamente ali, mas possui, também, uma dimensão espectral. Ao evacuar-se de tal
dimensão, Marx teria ficado preso ao presente; permaneceria, definitivamente, assolado
pelo espectro que buscava exorcizar.
A interpretação de Derrida da crítica de Marx ao capitalismo e de sua concepção
da história é, fundamentalmente, ortodoxa. Considera o althusserianismo um tipo mais
sofisticado de marxismo e, em um livro que se bate com a forma-mercadoria, ignora as
obras de Lukács e Adorno. Ao pressupor em Marx uma concepção teleológica da história
que compreenderia a temporalidade histórica como o encadeamento sucessivo de
presentes idênticos em si, Derrida não leva sua leitura de O Capital para além do
primeiro capítulo.
No entanto, torna-se problemático deter-se no primeiro capítulo; capítulo que
poderia, a primeira vista, ser lido em termos de uma simples oposição estática entre o
social/abstrato, o natural/físico. A investigação da forma mercadoria realizada por Marx
72
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
52 Ibidem, p. 149-156.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
53 Habermas, Jürgen. The Philosophical Discourse of Modernity. Trad. Frederick Lawrence. Cambridge,
Mass., 1987, p. 131.
76
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Cláudio R. Duarte
1 POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. (Uma reinterpretação da teoria crítica de
Marx). São Paulo: Boitempo, 2014. As referências que seguem serão dadas no corpo do texto sob a
abreviatura: TTDS, seguido do número da página. Noutro ensaio, tentei oferecer uma resenha crítica do
livro. DUARTE, Cláudio R. “A potência do abstrato. Resenha com questões para o livro de Moishe
Postone”. Sinal de menos, n. 11, vol. 2, 2015.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
2 Nota sobre Hegel e a alienação no Marx dos Manuscritos econômico-filosóficos (São Paulo: Boitempo,
2004). A alienação é um tema que, na Fenomenologia do espírito, de Hegel, vinha embutido
nebulosamente na chamada dialética do senhor e do escravo (dialética do reconhecimento), no capítulo
da consciência de si e, principalmente, no capítulo da alienação da Cultura. Em alguns dos pontos
centrais da crítica do jovem Marx a Hegel (sem querer aqui esgotar essa leitura), sabemos que ele busca
tirar as consequências de seu Idealismo: a) em lugar do Homem sensível, ativo, finito, Hegel coloca a
atividade da consciência e do espírito, que se objetiva, se duplica e se aliena nas formas de consciência,
cultura e sociedade históricas, retornando dessa alienação no interior da consciência filosófica, que
expressaria a reconciliação ao nível do Saber Absoluto. A supressão da alienação apareceria para Hegel
como um ato abstrato, puramente subjetivo (um ato de “reflexão” ou “rememoração” da experiência
alienada etc.), que restabeleceria o infinito do Espírito, a teologia etc., a positividade da empiria existente
como falsa positividade, como pura mistificação e acomodação com a mentira (ibid., p. 122 e 130); b) a
partir dessa lógica especulativa e formalista (a “coisa/causa da lógica” em lugar da “lógica da coisa”), se
segue que toda objetivação do trabalho – do homem como “sujeito pressuposto” (Idem, ibidem: 118) –
aparece mistificada como trabalho espiritual ou atividade da Ideia e não do homem/trabalho (alienado)
enquanto tal. O sujeito real do mundo real torna-se mero “predicado” do Espírito. Nesse sentido, Hegel
assumiria o ponto de vista da economia política, mas o suspenderia como objeto, num ato de puro
pensamento ou da razão especulativa (ib.: 133). Desse modo, a partir do pressuposto da identidade de
sujeito-objeto, toda objetivação apareceria como alienação (ib.: 125) – mas logo também, como
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apontado, como uma desalienação garantida no nível da verdade do Espírito – com o que a própria
objetividade seria facilmente suprassumida (ib.: 128), pois o homem real, o objeto real etc. valeriam aqui
apenas como “objeto evanescente”, “uma nulidade” (ib.: 129), em suma, figura exteriorizada e abstrata
da consciência. Assim, o mundo teria uma “essência não-objetiva, espiritualista” (ibid: 125) – embora
paradoxalmente o “objeto” permaneça subsistindo na efetividade. Hegel manejaria as noções de
Entfremdung e Aufhebung de modo escandalosamente idealista. Note-se como este retrato de Hegel
quase como um idealista subjetivo (ao modo de Kant, Fichte, mesmo com toques da dialética da ironia
de Schlegel) é, no mínimo, controvertível. Para um bom comentador dessa questão da diferença entre o
Marx da juventude e o da maturidade, para além do mero continuísmo, ver a leitura de: FAUSTO, Ruy.
Marx: lógica e política, tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1983; como aqui: “Vemos que [o jovem] Marx
critica Hegel porque este supõe a existência de um sujeito autônomo de que os indivíduos são portadores.
O que, guardadas outras diferenças, ele mesmo suporia mais tarde, ao escrever O Capital. Analisada
mais de perto, a Critica do Direito do Estado de Hegel aparece assim não (ou não só) como a crítica do
formalismo dialético, mas como a crítica da própria dialética. Crítica do pensamento que estabelece a
posição de abstrações reais que se tomam autônomas” (ib.: 243).
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Tal leitura baseada no jovem Marx tem a sua coerência e sua força prática, e foi
sem dúvida sempre muito produtiva para se pensar a história, moldando as versões
antropológicas, fenomenológicas, historicistas ou ontológicas do marxismo 3. Mas ela
3 Aqui, poderíamos citar uma plêiade de marxismos que vão do jovem Lukács e do jovem Marcuse
passando por Korsch, Gramsci e Lefebvre até Sartre, Thompson e o último Lukács.
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tem também o seu preço, caracterizando o que Postone denomina como “marxismo
tradicional” ou “marxismo ricardiano”. No prefácio da edição brasileira de sua obra, o
autor aponta o que precisaria ser invertido em relação a esta abordagem:
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4 ALTHUSSER, Louis et alli. Lire Le Capital, T. I e II. Paris: François Maspero,1966/67; Idem, “Idéologie
et appareils idéologiques d’État” [1970] in:__. Positions. Paris: Éd. Sociales, 1982; POULANTZAS,
Nicos. Les clases sociales dans le capitalisme aujourd’hui. Paris: Seuil, 1974.
5 “L’histoire est bien un ‘procès sans Sujet ni Fin(s)’, dont les circonstances données, où ‘les hommes’
agissent en sujets sous la détermination de rapports sociaux, sont le produit de la lutte de classe.
L’histoire n’a donc pas, au sens philosophique du terme, un Sujet, mais un moteur: la lutte des classes.”
(ALTHUSSER, Louis. Réponse à John Lewis. Paris: Maspero, 1973, p. 76).
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manifestação empírica esse princípio abstrato. O que significa dizer que seu ponto de
partida é a posição dialética do conceito de trabalho abstrato no modo de produção
capitalista, pressupondo as formas mais simples e abstratas em que ele se cristaliza
(mercadoria e valor)6. O que não se confunde com uma abstração mental, dita
“conceitual” ou “razoável”. “Na análise de Marx, a categoria de trabalho abstrato exprime
esse processo social real de abstração; ele não se baseia simplesmente em um processo
conceitual de abstração” (TTDS, 178). Noutros termos, uma abstração concreta que
demanda uma apreensão “dialética”, unificando o universal e o particular. Dialética
então no sentido rigoroso de mediação de essência e aparência, ou de posição e
pressuposição entre um certo “sujeito” e sua “substância” (aqui as referências à Lógica
de Hegel e à chamada “Nova Leitura de Marx”, em ascensão nos anos 70, são essenciais
para Postone). Disso emerge um exame demorado do “núcleo duro” das categorias,
segundo sua ordem de apresentação dialética em O Capital (formas da mercadoria e do
valor, abstração real, troca e trabalho abstrato, mais-valor, etc.). Penetrando nesse
núcleo, encontramos seu conceito-chave de trabalho como mediação social. A ideia
parece banal, uma mera ferramenta de sociologia funcionalista, mas logo se percebe a
determinação rigorosa de um conceito dialético, pressuposto o tempo todo na obra de
Marx, mas praticamente novo para os ouvidos tradicionais: “O que torna geral o trabalho
no capitalismo não é simplesmente o truísmo de ele ser o denominador comum de todos
os vários tipos específicos de trabalho”, ou seja, não é seu aspecto concreto e seu papel
histórico no metabolismo do homem com a natureza, mas antes é
6 Apenas para lembrar um texto de Marx pouco refletido pelo marxismo tradicional, citemos: “Parece ser
correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia,
por exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção
como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A população é
uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por
sua vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho
assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada
sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc.” (MARX, Karl. Grundrisse der
Kritik der Politischen Ökonomie, MEW 42. Berlin: Dietz, 1983, p. 34-5). Assim, o trabalho deveria ser
entendido como uma categoria posta efetivamente apenas na modernidade: “O trabalho parece ser uma
categoria totalmente simples. Também a representação do trabalho nesse sentido geral – como trabalho
em geral – é muito antiga. Porém, compreendido economicamente nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é
uma categoria tão moderna quanto as relações que geram essa simples ‘abstração’. (...) Aqui pois [nos
EUA], a abstração da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho em geral’, trabalho sans phrase, ponto de partida da
economia moderna, tornou-se pela primeira vez uma verdade prática.” (ibid., p. 38-9).
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“a função social do trabalho que o torna geral. Como prática que constitui uma
mediação social, o trabalho é trabalho em geral. Ademais, estamos tratando com
uma sociedade em que a forma-mercadoria é generalizada e, portanto,
socialmente determinante; o trabalho de todos os produtores serve como meio
pelo qual é possível obter os produtos de outros. Consequentemente, ‘trabalho em
geral’ serve de uma forma socialmente geral como atividade mediadora” (TTDS,
178).
7 Completamente de acordo com Marx: “Na economia burguesa — e na época de produção que lhe
corresponde — esta plena elaboração da interioridade humana aparece como um completo
esvaziamento, esta objetivação universal (universelle Vergegenstandlichung) como alienação total
(totale Entfremdung) (...)” (MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, op. cit., p.
396).
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desde a base do processo real temos um trabalho alienado que funciona como
objetivação das finalidades do Capital por meio de seus suportes.
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relações coisificadas entre as pessoas e relações sociais entre as coisas” 8. Com o que
“produção social” e “trabalho humano abstrato” (que põe valor) são falsamente
identificados. O valor e o trabalho sans phrase são assim divinizados como meios
“neutros”, “naturais” ou “essenciais” de toda e qualquer forma de produção e
socialização. Se a alienação é um processo complexo de autonomizações e inversões reais
de determinadas relações sociais, que se tornam necessariamente coisificadas nesta
sociedade histórica, o fetichismo seria a sua completa naturalização e ontologização.
8 MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. Livro I, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p.
71 (trad. modificada).
9 Idem, Ibidem, p. 126.
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“é baseada no fato de a forma das relações sociais e da riqueza, bem como a forma
concreta do modo de produção, continuarem determinadas pelo valor, mesmo
quando se tornam anacrônicas do ponto de vista do potencial de criação de
riqueza material do sistema. Em outras palavras, a ordem social mediada pela
forma-mercadoria gera, de um lado, a possibilidade histórica de sua própria
negação determinada - uma forma diferente de mediação social, outra forma de
riqueza, e um novo modo de produção não mais baseado no trabalho humano
direto fragmentado como parte integral do processo de produção. Por outro lado,
essa possibilidade não é automaticamente realizada, a ordem social permanece
baseada no valor”.
10 Cf. o artigo de POSTONE, “Crise atual e anacronismo do valor”, nesta edição de Sinal de Menos.
11 MARX, Karl. Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie, op. cit., p. 601.
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A partir das reflexões dos Grundrisse e de O capital (TTDS, 36-45, 433-5) sobre
a contradição incurável do valor, Postone equaciona a crítica marxista como uma crítica
antiprodutivista fundamental:
12 Para uma análise mais extensa de toda essa problemática, ver: DUARTE, Claudio R. “A superação do
trabalho em Marx – Em busca do tempo não-perdido”. Sinal de menos, nº3, 2009.
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“As ações sociais e políticas das organizações da classe trabalhadora têm sido
historicamente importantes nos processos pelos quais os trabalhadores têm
constituído e defendido a si mesmos como uma classe dentro do capitalismo, no
desdobrar da dinâmica do trabalho assalariado-capital e, especialmente na
Europa ocidental, na democratização e humanização social da ordem capitalista.
Por mais militantes que tenham sido as ações e as formas de subjetividade
associadas à autoasserção do proletariado, contudo, elas não apontaram e não
apontam para a superação do capitalismo” (TTDS, 430).
13 Aqui, Postone pressupõe certamente o debate entre Adorno e Sohn-Rethel sobre a constituição do
sujeito transcendental, como reflexão do processo de trabalho e troca mercantil, mal criticado pelo
positivismo ou pelos ontologismos: “Alfred Sohn-Rethel foi o primeiro a chamar a atenção para o fato
de que nisso, na atividade universal e necessária do espírito, se esconde incondicionadamente trabalho
social. (...) Em face dessa consciência, porém, esse conceito não representa apenas o mais abstrato, mas,
em virtude de sua potência formadora, também o mais real. (...) A universalidade transcendental não é
uma simples autoexaltação narcisista do eu, nem a hybris de sua autonomia, mas ela tem sua realidade
no domínio que se impõe e eterniza por meio do princípio de equivalência. O processo de abstração
transfigurado pela filosofia e atribuído unicamente ao sujeito cognoscente transcorre na sociedade de
troca efetiva. (...) Parodiando Heidegger, nós poderíamos interpretar sem muitos artifícios a ideia da
necessidade naquilo que é filosoficamente universal em função da necessidade de evitar a penúria, de
remediar a carência de meios de subsistência pelo trabalho organizado; com isso, porém, a mitologia
linguística heideggeriana sairia certamente de seus eixos, pois ela é uma apoteose do espírito objetivo
que desde o princípio denigre como de valor inferior a reflexão sobre o processo material que se prolonga
no espírito. (...) A unidade da consciência é moldada segundo a objetividade e tem por conseguinte seu
critério de medida na possibilidade de constituição de objetos, ela é o reflexo conceitual da reunião total
e sem falhas dos atos de produção na sociedade, atos por meio dos quais se forma efetivamente pela
primeira vez a objetividade das mercadorias, o seu "caráter objetivo': - Mais além, aquilo que o eu possui
de sólido, estável, impenetrável é mimesis da impenetrabilidade do mundo exterior para a consciência,
tal como essa impenetrabilidade é percebida pela consciência primitiva. É na onipotência intelectual do
sujeito que sua impotência real encontra seu eco” (ADORNO, Theodor W. Dialética Negativa. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003, p. 152-5).
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14 POSTONE, Moishe. “Antissemitismo e nacional-socialismo”. Sinal de menos, nº8, 2012 (Trad. Nuno
Machado).
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Para terminar uma nota curta sobre o debate atual. Desse painel de questões
desenhado por Postone, emergem as controvérsias teóricas de nosso tempo, nas quais o
marxismo tradicional desponta sob a bandeira da ortodoxia e da verdadeira crítica,
coerente, responsável e voltada às lutas reais, como “arma revolucionária” enfim,
relegando Postone e a crítica do valor aos modismos intelectuais importados. Ora, estes
são os primeiros a acusarem a dificuldade de se pensar e realizar o processo de mediação
e superação, apontando seu caráter necessariamente distanciado e abstrato. Além disso,
há muito que se pensar a respeito das dinâmicas atuais do capital fictício, da acumulação
simulada de valor e reprodução estatal das relações do sistema. Para eles, “o que está em
debate é a natureza do capitalismo” (TTDS, 461), a reconstrução de uma teoria crítica
do valor e da mediação social etc., e os pressupostos histórico-sociais de uma superação
efetiva, que não se trata de adiantar ou orientar diretamente. A unidade férrea entre
teoria e práxis é deletéria; uma autonomia relativa e um distanciamento recíproco
sempre foram saudáveis para o avanço de ambos. Por outro lado, podemos verificar o
que restará em breve do chamado “marxismo tradicional” à luz desse processo de
destituição objetiva/subjetiva do trabalho vivo em curso acelerado após a consolidação
de uma Terceira ou mesmo de uma Quarta Revolução Industrial. Em vez da conservação
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da crítica imanente objetiva/subjetiva em dois planos, um que corre por trás das costas
dos envolvidos na base mesmo desse processo, outra como crítica das formas de
identidade subjetiva, a crítica anticapitalista tende a “resumir-se” cada vez mais, por
assim dizer, à crítica política “social-democrata” ou “socialista” da propriedade privada
e da distribuição dos meios, ou restringir-se à análise da exploração e do atraso do
desenvolvimento, sonhando com uma nova revolução nacional modernizadora. Seja
como for, o consenso em torno de “crescimento, emprego e renda” está estabelecido. A
estratégia ofensiva geralmente conflui com a defensiva por necessidade lógica, pois nem
sequer se lembra, ou quer se lembrar, desse outro Marx da crítica da alienação pelo
trabalho. A afirmação abstrata do “proletariado” na luta dissolve e reverte
“teoricamente” as contradições sistêmicas em lutas empíricas por direitos, gestão do
dinheiro público e mais pleno emprego, que certamente expandem o capital e dão
sobrevida a um sistema anacrônico (TTDS, 415-24). Ao soterrar a crítica teórica e o
tempo longo do desenvolvimento das contradições sistêmicas, ao subordinar toda teoria
à prática política “realista” e “antimessiânica”, o marxismo apenas garante sua
indistinção dos grupos desse velho consenso conformista. Contudo, em vez da lógica da
antinomia e da exclusão das perspectivas, não se trata antes de sustentar a diferença e a
contradição até que esta possa se resolver? A crítica deve incidir simultaneamente sobre
o processo de constituição/destituição em curso, que abre as condições para libertar-se
do trabalho livre, abstrato – e encerrar a pré-história humana.
“O capital não é a forma mistificada de forças que ‘na verdade’ pertencem aos
trabalhadores; ele é a forma real de existência das ‘capacidades da espécie’, não
mais dos trabalhadores apenas, que são constituídas historicamente sob forma
alienada como forças sociais gerais” (TTDS, 406).
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Ernst Lohoff
“Parece ser correto começarmos pelo real e pelo concreto, pelo pressuposto
efetivo, e, portanto, no caso da economia, por exemplo, começarmos pela
população, que é o fundamento e o sujeito do ato social de produção como um
todo. Considerado de maneira mais rigorosa, entretanto, isso se mostra falso. A
população é uma abstração quando deixo de fora, por exemplo, as classes das
quais é constituída. Essas classes, por sua vez, são uma palavra vazia se
desconheço os elementos nos quais se baseiam. P. ex., trabalho assalariado,
capital etc. Estes supõem troca, divisão do trabalho, preço etc. O capital, p. ex.,
não é nada sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço
1 Publicado na revista Marxistische Kritik, n. 1, 1986 com o título Die Kategorie der abstrakten Arbeit und
ihre historische Entfaltung. NOTA DO TRADUTOR: Surgida em 1986, a revista Marxistische Kritik,
organizada em torno de Robert Kurz e do IMK [Initiative Marxistische Kritik] foi a precursora da revista
Krisis. Os pontos de vista apresentados na antiga revista eram ainda marcados decisivamente pelo
pensamento marxista tradicional, como a definição ontológica do trabalho e o ponto de vista da “classe
operária”. Tratava-se de uma “revista de teoria e política revolucionária”, qualificação que permaneceu
até o início dos anos 1990. O texto de Ernst Lohoff que ora publicamos faz parte do primeiro volume da
MK, juntamente com “A crise do valor de troca”, ensaio “fundador” da teoria da crise de Robert Kurz
(publicado em 2018 pela Editora Consequência, juntamente com outros materiais da MK). Ambos os
ensaios abordam o valor e o trabalho abstrato em sua dinâmica histórica, recusando o tratamento
“estático” que lhes era dado pelo pensamento marxista. Especialmente no ensaio de Lohoff, o argumento
é desenvolvido sempre em companhia dos textos de Marx e da reivindicação do seu método “ortodoxo”.
É a partir deles que o autor acompanha o trabalho abstrato em sua relação com o desenvolvimento das
forças produtivas e as “contradições objetivas” da sociedade capitalista madura. Aqui os processos
produtivos ditados pela microeletrônica aparecem como a plena realização do trabalho abstrato, a
eliminação de qualquer vínculo entre o “trabalho concreto” e o produto do trabalho. Ao mesmo tempo,
com a progressiva eliminação do trabalho vivo nos processos produtivos tem início uma nova fase de
socialização material da produção cuja tendência é a abolição da lei do valor. No argumento então
desenvolvido nos primeiros ensaios da Marxistische Kritik, essa tendência, que se manifesta como crise
da classe operária tradicional, também indicaria o novo grau de socialização material que constitui a
base para a revolução antecipada teoricamente por Marx. Daí a conclusão de Lohoff e do antigo circulo
da IMK, segundo a qual, o aprofundamento das contradições do capital produzem não um “adeus ao
proletariado”, mas uma reestruturação da classe operária e exigem a redefinição do objetivo socialista
(M. B).
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etc. Por isso, se eu começasse pela população, esta seria uma representação
caótica do todo e, por meio de uma determinação mais precisa, chegaria
analiticamente a conceitos cada vez mais simples; do concreto representado
[chegaria] a conceitos abstratos [Abstrakta] cada vez mais finos, até que tivesse
chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar início à viagem de
retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas desta vez não como
a representação caótica de um todo, mas como uma rica totalidade de muitas
determinações e relações. A primeira via foi a que tomou historicamente a
Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex., começam
sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos Estados etc.;
mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas e gerais,
tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem por meio da
análise. Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos fixados e
abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do simples,
como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o Estado, a
troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente o método
cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas
determinações, portanto, unidade da diversidade” (Grundrisse, p.21).
Sempre que buscamos de uma maneira “ortodoxa”, partindo de uma categoria real
marxiana abstrata até às novas reestruturações da classe operária, como essa categoria
se desenvolve na história, tal abordagem inicialmente irrita a maioria dos leitores. Por
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mais evidente que nosso método devesse ser para os marxistas, tornou-se, no entanto,
incomum. O positivismo e o empirismo raso minaram completamente as ideias da teoria
na esquerda, e também o marxismo foi dissolvido, entre outros, numa coleção de
teoremas políticos, sociológicos, econômicos. Seus teóricos costumam usá-lo como uma
prateleira de supermercado, separando um ou dois pedaços da obra de Marx e
ajustando-os em suas construções enviesadas. Perde-se irremediavelmente a conexão
entre a obra de Marx e seu método dialético. Este parece ser uma mera exterioridade,
um discurso antiquado do qual é preciso se abster para chegar ao conteúdo positivo da
teoria de Marx. Ainda que a dialética, a ascensão do abstrato para o concreto, o
desdobramento da lógica conceitual, seja a essência da obra de Marx, muitos dos seus
discípulos consideram-na como um capricho individual, uma relíquia da sua pré-
história filosófica. Os teóricos da esquerda, com impulso irreprimível para a prática
política, ficaram muito aquém da posição da Escola de Frankfurt na querela positivista,
entregando-se incondicionalmente ao domínio dos fatos empíricos e estabelecendo-se
como retaguarda de esquerda do positivismo. Uma vez que estão familiarizados com a
ciência apenas em sua caricatura positivista, eles também reduzem o marxismo a uma
ciência positiva. Como tal, é claro, ele já não pode compreender a totalidade do processo
social e, como qualquer outra ciência positivista, depende da adição de outras ciências
particulares. Assim, tornou-se costumeiro um certo entusiasmo com a crise do
marxismo – crise que não é outra coisa senão a crise da redução prévia da recepção de
Marx e sua adulteração – o que autoriza a sua diluição com adições do empreendimento
científico burguês para, em seguida, submetê-lo ao ataque dessa teoria substituta assim
obtida como “suplemento ao marxismo” ou como seu mais elevado “aprimoramento”.
Embora as várias tentativas sejam geralmente de curta duração e geralmente se
condenem rapidamente por sua própria deficiência, à parte o fato de que isso agora é
incorporado como virtude de imobilidade e modéstia na estratégia de marketing, o
princípio subjacente revela-se extremamente resistente e generalizado.
Há muito tempo se esquece que o caráter básico dos textos de Marx, inclusive nos
seus títulos, é o de serem críticas. Nas mãos dos teóricos da esquerda, a obra principal
de Marx, O Capital, se transforma de uma “Crítica da economia política” em um livro de
economia, perdendo, é claro, a capacidade de presumir o contexto social global. Se o
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objetivo é capturar a conexão entre a obra de Marx e sua força crítica explosiva, devemos
antes de tudo levar a sério seu método dialético, que dá origem a ambos. Poucos teóricos
marxistas o fizeram para identificar o alcance das categorias reais de Marx e sua
dinâmica.
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estar ligado aos indivíduos em uma particularidade. Tal estado de coisas encontra-se no
mais alto grau de desenvolvimento na mais moderna forma de existência da sociedade
burguesa – os Estados Unidos. Logo, só nos Estados Unidos a abstração da categoria
“trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho “puro e simples”, o ponto de partida da
Economia moderna, devém verdadeira na prática. Por conseguinte, a abstração mais
simples, que a Economia moderna coloca no primeiro plano e que exprime uma relação
muito antiga e válida para todas as formas de sociedade, tal abstração só aparece
verdadeira na prática como categoria da sociedade mais moderna” (Grundrisse, p.25).
É claro que, quando Marx reconhece uma história para o trabalho humano
abstrato, reconhecendo-a como materialmente prática, ela não termina nos Estados
Unidos de meados do século passado. Inerente à relação do capital, essa tendência à
abstração do trabalho não encontrou sua forma material final naquela época, mas, com
o tempo, se tornou ainda mais “praticamente verdadeira” no desenvolvimento ulterior
do capital.
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maquinaria, ele próprio só um membro do sistema, cuja unidade não existe nos
trabalhadores vivos, mas na maquinaria viva (ativa), que, diante da atividade isolada,
insignificante do operário, aparece como organismo poderoso. Na maquinaria, o
trabalho objetivado se contrapõe ao trabalho vivo no próprio processo do trabalho como
o poder que o governa, poder que, de acordo com sua forma, o capital é como
apropriação do trabalho vivo. A assimilação do processo do trabalho como simples
momento do processo de valorização do capital também é posta quanto ao aspecto
material pela transformação do meio de trabalho em maquinaria e do trabalho vivo em
mero acessório vivo dessa maquinaria, como meio de sua ação” (Grundrisse, p.584-585).
Nesta forma desenvolvida, no entanto, é só muito tarde que o trabalho abstrato penetra
em toda a produção social. A cientifização da produção finalmente se firma só após a
Segunda Guerra Mundial.
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as operações dos operários cada vez mais em operações mecânicas, de tal modo que a
certa altura o mecanismo pode ocupar os seus lugares. Por conseguinte, um modo de
trabalho determinado aparece aqui diretamente transposto do operário para o capital na
forma da máquina, e por meio dessa transposição sua própria capacidade de trabalho é
desvalorizada” (Grundrisse, p. 591).
Esse processo de substituição de uma forma de trabalho abstrato pela sua forma
mais desenvolvida avança de modo gradual e diferente de um ramo para outro. O
trabalho vivo, como trabalho diretamente produtivo, é preservado durante muito tempo
como um substituto no sistema automático de máquinas. Com a introdução da
microeletrônica, esse desenvolvimento está dando um salto qualitativo, cuja
importância não deve ser subestimada. Ele conduz o nível esboçado de abstração do
trabalho até o seu fim consequente e, ao mesmo tempo, o eleva a um novo nível que
ainda queremos delinear. O primeiro pode ser lido de modo simples e ilustrativo no
estudo do IG-Metall sobre “as consequências negativas da racionalização”: “Há cada vez
menos influência do tempo. A influência imediata dos trabalhadores na concepção do
processo de trabalho diminui”. (p. 63 do resumo de 1983). “Os trabalhadores e
empregados da execução, assim como os quadros médios da gerência, são privados
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de idade e sexo” (MEW 23, Das Kapital, p.442). Igualmente importante é uma
característica quase naturalizada que aqui não é mencionada por Marx: a nacionalidade.
Após a guerra, esse sistema foi convertido às condições civis e aperfeiçoado como
um momento constituinte do “modelo Alemanha”. Aqui se encontra uma base material
essencial para o racismo, que ainda ornamenta este país e que nenhum choramingar
humanitário pode mudar minimamente. O mesmo se aplica ao campo do trabalho
feminino. Em muitas áreas do emprego feminino industrial, as posições do mestre e do
capataz ainda estão reservadas para os homens. Em ambos os casos, as diferenças
biológicas e quase biológicas solidificam a estrutura hierárquica. Os sindicatos são tudo
menos hostis a isso. Se os sindicatos, antes da Primeira Guerra Mundial, representavam
principalmente os operários qualificados, eles se estabeleceram cada vez mais como
defensores dos interesses de capatazes e mestres, os subcomandantes do capital. Em
consequência, ele mudou de caráter. O corporativismo de operários especializados
relativamente independentes deu lugar ao corporativismo dos subcomandantes e
executores do capital. O pacto de produtividade entre capital e sindicatos tem também
raízes em partes da base sindical de mentalidade “motivacional”. Mesmo que os
sindicatos de tempos em tempos se esforcem para atrair filiados de outras camadas
operárias, isso não altera seu caráter fundamental. A recente reestruturação da classe
nos anos 1980 torna isso ainda mais visível.
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significa que eles são ajustados uns aos outros em uma dimensão até agora
desconhecida. Conforme os estudos IG Metall sobre as consequências negativas da
racionalização, isso é expresso no fato “impressionante de que as mesmas atividades
laborais sejam identificadas como causadoras de doenças por comissões de segurança
de empresas em setores, tamanhos e localizações diferentes” (p. 62 do resumo de 1983).
Pois “as novas tecnologias são tecnologias de racionalização e controle universais que,
devido à sua flexibilidade, podem penetrar em quase todas as áreas da atividade
humana” (p.66).
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definida dessa empresa particular (ideia dos conselhos). Essa demarcação clara
desapareceu. Por trás da produção de cada pino aparece a infraestruturada sociedade
como um todo. A dicotomia entre o valor de uso produzido concretamente pelo trabalho
útil e o valor de troca produzido pelo trabalho humano abstrato está ligada ao caráter
privado da produção e desaparece com ele.
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Na discussão marxista essa passagem foi tantas vezes referida quanto mal
interpretada. “O desenvolvimento do indivíduo social... coluna de sustentação da
produção e da riqueza” sempre foi interpretado como um objetivo a ser realizado apenas
no socialismo, bem como o fim da lei do valor, e não como um processo que, embora
catastrófico, se inicia no interior das relações de capital. Para a consciência confinada na
lei do valor, considerada mais ou menos como uma lei natural, seu solapamento por
meio do próprio processo capitalista desapareceu completamente, e isso ainda mais à
medida que o movimento operário clássico confrontava um estágio de desenvolvimento
produtivo que por muito tempo ainda se moveria no interior da lei do valor. Se a abolição
da lei do valor foi tomada, ainda de maneira relativamente justificada, como uma tarefa
pós-revolucionária do proletariado na sua auto-superação final, hoje a sua
decomposição prenhe de catástrofes e o daí resultante desastre do capitalismo do pós-
guerra devem ser o ponto de partida de uma estratégia revolucionária. Hoje temos que
levar a sério esses comentários de Marx, porque nesse meio-tempo eles se tornaram
praticamente verdadeiros. O próprio capital destrói o valor, seu fundamento lógico. A
iminente crise prolongada do capital, em última análise, se baseia no fim histórico de
sua categoria fundamental. “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato]
de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por
outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa
razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para aumentá-
lo na forma do supérfluo; por isso, põe em medida crescente o trabalho supérfluo como
condição – questão de vida e morte – do necessário. Por um lado, portanto, ele traz à
vida todas as forças da ciência e da natureza, bem como da combinação social e do
intercâmbio social, para tornar a criação da riqueza (relativamente) independente do
tempo de trabalho nela empregado. Por outro lado, ele quer medir essas gigantescas
forças sociais assim criadas pelo tempo de trabalho e encerrá-las nos limites requeridos
para conservar o valor já criado como valor. As forças produtivas e as relações sociais –
ambas aspectos diferentes do desenvolvimento do indivíduo social – aparecem somente
como meios para o capital, e para ele são exclusivamente meios para poder produzir a
partir de seu fundamento acanhado. De fato, porém, elas constituem as condições
materiais para fazê-lo voar pelos ares” (Grundrisse, p. 593/594).
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É claro que isso é apenas uma tendência e não se tornou realidade da mesma
forma em todas as áreas da produção e da reprodução sociais. Determinar a amplitude
e a velocidade desse desenvolvimento é, em si mesmo, uma tarefa. Aqui duas coisas me
interessam. Antes de tudo, quero demonstrar que as categorias marxianas fornecem um
instrumento analítico adequado para a análise dos modernos processos de
reestruturação do capitalismo atual; em segundo lugar – e diretamente relacionado com
isso – elas mostram que esse tão deplorado fenômeno aqui indicado, longe de invalidar
a lógica do capital e o antagonismo entre o capital e o trabalho, ao contrário, representa
apenas a lógica capitalista levada ao extremo, a ponto de explodir a si mesma. Em
primeiro lugar, estou preocupado com a tendência geral, cuja aplicação exata,
naturalmente, aguarda uma investigação mais aprofundada. Quando tomo as categorias
reais marxistas como o quadro da minha análise e sigo sua lógica, é para deixar claro o
quanto a realidade mais moderna vai na sua direção.
Como Lênin já sabia, quem pretende antecipar o curso das circunstâncias corre o
risco de se adiantar a elas. Isso é uma característica do conjunto da obra marxiana. Marx
expôs a lógica conceitual do capital num momento em que o seu desenvolvimento
histórico, medido pelo seu estado atual, ainda estava na infância. A tendência do capital
para abolir a lei do valor e a correspondente criação de um proletariado, que é então
compelido a executar essa tendência, só se torna realidade progressivamente, mais de
100 anos após a morte de Marx. Durante décadas, o desenvolvimento histórico da
relação de capital manteve-se irremediavelmente aquém de sua descoberta teórica. Eis
a causa fundamental do reducionismo das interpretações tradicionais de Marx. A teoria
de Marx não conseguiu compreender as massas na sua forma autêntica, porque a própria
realidade ainda não estava pronta o suficiente para impelir as ideias de Marx. Os teóricos
marxistas apenas mantiveram essa tensão até o final e abordaram na obra de Marx tão
só os pedaços que já eram, até certo ponto, tangíveis na realidade.
O trabalho humano abstrato em sua forma mais desenvolvida não o era para o
proletariado qualificado e seus representantes intelectuais no período do movimento
operário clássico, nem as potencialidades revolucionárias associadas a ele. Os mais
qualificados, como estrato que dava suporte ao movimento proletário, não tinham o
menor interesse na sua autoabolição, de modo que nas ideias socialistas concretas essa
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oportunidade oferecida pela crise para produzir uma nova força de trabalho, conforme
a estrutura tecnológica modificada. Flexibilização é a palavra-chave sob a qual o capital
absorve o trabalho abstrato residual em qualquer proporção em condições
tecnologicamente revolucionárias. O capital não precisa mais competir por cada besta
de carga, como nos anos de alta conjuntural, mas pode colocar a permutabilidade da
força de trabalho a seu favor. Nas condições de um persistente desemprego em massa, o
núcleo da força de trabalho está cada vez mais reduzido aos subcomandantes e aos
setores de capital especialmente intensivo sujeitos a falhas. O núcleo da força de trabalho
que se tornou escassa é complementado por uma diversidade de trabalhos precários. As
formas de trabalho precárias, antes apenas um fenômeno marginal e residual de tempos
passados, estão se tornando um fenômeno de massa. Trabalho temporário ilegal e legal,
ainda desconhecido no início da década de 1970, está se espalhando, bem como novas
formas de relação de trabalho temporárias, trabalho parcial e trabalho em casa
[Heimarbeit]. O capital procura minimizar sua porção variável, e o principal meio para
fazê-lo é reduzir os custos salariais indiretos. As conquistas sociais das décadas de 1960
e 1970 (salário regular, pagamento de férias, proteção contra demissão, acumulação de
ativos, etc.) são minadas pelo capital para uma parte precária e crescente da classe e
transformadas em privilégios da parte central da força de trabalho. O que foi celebrado
como progresso para todos os “empregados” torna-se um motivo e um meio para o
capital dividir a classe. As reformas, que visavam a relação de trabalho normal
(permanente, em tempo integral), são elas próprias um incentivo para que o capital
dissolva essa relação de trabalho normal em muitas esferas.
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Não é apenas para a parte precária crescente da classe que a empresa individual
em grande parte desaparece como ponto de referência. O próprio capital em seu
desenvolvimento há muito desdobrou a estrutura da empresa individual e relativizou
sua importância como unidade de produção. Isso vale especialmente para grandes
empresas. Seu desmembramento aponta o caminho para a grande versão capitalista do
small is beautiful. O processo capitalista de socialização começou concentrando
espacialmente a força de trabalho, forçando os operários a se comunicarem e, em
seguida, devolveu-os à dispersão. Os pontos de contato em que os operários isolados
devem travar relações pessoais devido à combinação capitalista do trabalho tornam-se
cada vez menores, precisamente por causa do desenvolvimento continuo da combinação.
Neste nível, isso também se aplica à empresa individual, e ainda mais naturalmente para
os setores subcontratados. Dentro da empresa individual, o capital constante está
crescendo em meio ao decréscimo da força de trabalho. A coesão na empresa enfraquece
juntamente com o significado da empresa individual em geral.
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Uma coisa é clara: a socialização, impulsionada pelo capital, obriga que as futuras
lutas proletárias, se quiserem ser mais do que mera caricatura, se deem em um nível de
universalidade que permaneceu estranho ao movimento operário tradicional, mesmo
em suas formas mais desenvolvidas. Por exemplo, o caráter internacionalista de um novo
movimento operário é desde o início uma necessidade indispensável e não uma simples
reivindicação moral. Mas o mesmo se aplica às nações tomadas individualmente e aos
respectivos mercados; e também o lado político (intervenções estatais, etc.) está mais
intimamente ligado às lutas econômicas do que nunca. Há pouco espaço objetivo para a
separação entre lutas políticas e econômicas. Neste contexto, modifica-se a dialética da
espontaneidade e da organização, e o lado teórico da luta torna-se uma conditio sine qua
non. Aqui, no entanto, não há lacunas, mas abismos.
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Daniel Cunha
Marx arguiu nos Grundrisse que o capital é uma “contradição em processo”, pois
ele tem no trabalho abstrato a sua medida de riqueza, mas ao mesmo tempo elimina
trabalho vivo do processo imediato de produção à medida que a composição orgânica do
capital segue a sua tendência de aumento.
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ainda não conquistados pela acumulação de capital. O processo inclui não apenas o
aumento da escala de produção, possivelmente incorporando novas regiões do globo,
mas também dois momentos inter-relacionados: a conquista de ramos da produção
ainda sob a forma da subsistência e a criação de novos ramos de produção (novas
necessidades) à medida que os antigos eliminam trabalho no processo imediato de
produção.
Esse processo teria continuidade histórica até que finalmente se alcança um ponto
no qual o valor se tornaria um fundamento miserável para a produção de riqueza. Nas
palavras de Marx:
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Mas a crise não espera até que o “último trabalhador” seja eliminado do processo
imediato de produção. Ao invés disso, o colapso da valorização começa no ponto
histórico no qual o balanço entre a eliminação de trabalho vivo e a sua reabsorção através
da expansão sistêmica se inverte. Se mais trabalho vivo é eliminado do que pode ser
reabsorvido, a crise começa a desdobrar o seu processo histórico. Kurz (2018/1986)
localiza esse ponto entre o começo e a metade dos anos 70, tendo como expressões
empíricas o avanço do desemprego estrutural e o colapso de Bretton Woods.
“Então, e somente então, esse processo de acumulação não pode mais ser
compreendido como infinito, pois se a riqueza abstrata, na forma de dinheiro,
é essencialmente ilimitada e interminável, o conteúdo material tem que
possuir um limite histórico absoluto. Não há, porém, qualquer acumulação
sem suportes materiais, por mais que esse seja o ideal do capital. A absorção
do trabalho produtivo vivo imediato deve se relacionar a um conteúdo material
e a um suporte, e este também pode ser observado histórica e concretamente
em muitos aspectos.” (Kurz 2018/1986, 54).
Pode-se ver que, ainda que Kurz esteja consciente da contradição entre valor e
conteúdo material, nesse estágio o seu tratamento da crise reduz o conteúdo material ao
trabalho vivo. É bem verdade que Kurz afirma que uma das consequências da
acumulação baseada na mais-valia relativa é
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1 Mais tarde, Postone falaria em “anacronismo do valor”. Ver o texto de Moishe Postone publicado nesta
edição da Sinal de Menos.
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“Mas se o fetichismo consistir de fato nessa inversão real, ele não será tão
diferente da alienação de que falava Marx em seus primeiros textos. (...) Marx
sugere – eis porque se pode falar de uma continuidade propriamente
conceitual entre as noções de alienação e de fetichismo em Marx – que o
fetichismo da mercadoria é a continuação de outras formas de fetichismo
social, como o fetichismo religioso. O “desencantamento do mundo” ou a
“secularização” não tiveram lugar verdadeiramente: a metafísica não
desapareceu com as Luzes, mas desceu do Céu e se mesclou à realidade
terrestre. É o que Marx diz quando denomina a mercadoria um “ser sensível-
suprassensível” (...) A descrição que Marx oferece da alienação nos
Manuscritos de 1844 não aparece, portanto, como uma abordagem
fundamentalmente diferente da conceitualização do fetichismo, mas como
uma primeira aproximação, uma abordagem ainda limitada, que já dizia,
implicitamente, o essencial: a despossessão do homem pelo trabalho abstrato
que se tornou o princípio da síntese social.”
3 Sobre a continuidade entre o jovem Marx e o Marx tardio, e entre os seus conceitos de alienação e
fetichismo, ver também Colletti (1992).
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“Ao escolher a mercadoria como ponto de partida, Marx não apenas localiza o
objeto próprio da dialética na forma social historicamente específica da
produção de mercadorias, mas também localiza historicamente a própria
dialética. Essa auto-reflexividade é uma consequência necessária da noção de
adequação do conceito ao seu objeto, que está na base da dialética tanto de
Hegel quanto de Marx. O que se rejeita ao começar pela mercadoria é uma
noção da dialética como método universalmente aplicável – ou, em outras
palavras, como a expressão adequada de uma realidade indeterminada cuja
natureza essencial é contraditória. Ao invés disso, a dialética é entendida como
um conceito crítico que agora deve ser visto como tendo surgido com a
aparição da forma-mercadoria e como sendo o único método adequado para
4 Foster menciona com aprovação o entendimento do valor de Sweezy como “teoria geral do equilíbrio”
em Foster (1986, 49).
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natureza:
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Por outro lado, Malm (2017) defende uma versão mais “ortodoxa” da “fissura
metabólica”:
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naturais, mais o inverso se torna também verdadeiro, e isso ocorre até o ponto
no qual tudo acaba por colapsar. Poderíamos chamar isso de paradoxo de uma
natureza historicizada. (...) Aqui se encontra [na teoria da ruptura metabólica]
um método para reparar as combinações perturbatórias do natural e do social.”
5 Os argumentos de Saito, Flatschart e Malm são também parte do debate sobre monismo versus dualismo
que está fora do escopo deste artigo. Deve-se notar que Moore reconhece que “[Natureza e Sociedade]
são (...) abstrações ao mesmo tempo violentas e reais. Elas são violentas no sentido de que abstraem
demasiado da realidade no interesse da clareza conceitual. E elas são reais no sentido de que Sociedade
e Natureza são de fato forças operantes, tanto em nossas estruturas de conhecimento quanto nas relações
de poder e produção realmente existentes do capitalismo”; “A Natureza pode ser uma abstração violenta
– um conceito no qual relações essenciais são abstraídas da realidade em questão – mas ela é também
uma abstração real, um força operante no mundo.” (Moore 2015, 27, 47-8; tradução minha). A
insistência de Moore em um “metabolismo singular” é, de um lado, normativa – “um meio de se
resguardar contra nossa tendência a aceitar a ontologia do capital” (Moore 2015, 47; tradução minha),
daí a alusão de Saito (2017) à décima primeira tese sobre Feuerbach. Por outro lado, como vejo, ela se
origina da distinção wallersteiniana entre a lógica do capital e o capitalismo histórico (Wallerstein 1983).
A lógica do capital produz uma separação entre sociedade e natureza, como argumentam Flatschart
(2017) e Saito (2017), mas essa separação tem de ser levada a cabo historicamente, e aparece de maneira
imperfeita ao longo da história do capitalismo. A separação plenamente realizada entre sociedade e
natureza na verdade coincidiria com a aniquilação de ambas, um estágio do qual estamos provavelmente
nos aproximando no século XXI – mas essa é uma tendência histórica, não uma ontologia estática, que
evolui pari passu com a crescente composição orgânica do capital. Essa dialética entre lógica e história
(More 2015, 47-8) é entendida como inconsistência por Malm (2017). Criticar um método para o estudo
do capitalismo histórico com base na lógica do capital me parece equivocado.
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individual e fetichismo na reprodução social agregada são dois lados da mesma moeda.
O mesmo se aplica às “naturezas históricas”, na qual o controle prevalece (por exemplo,
em plantações ou minas), e no Antropoceno como fetichismo, no qual os fluxos materiais
globais do planeta estão cada vez mais fora de controle (por exemplo, o ciclo global do
carbono). A relação entre o Capitaloceno como projeto de classe ou imperialista e o
Antropoceno como fetichismo é mediada pela escala, como notado por Campagne (2017,
84-5). 7
Com o advento da “revolução microeletrônica”, juntamente com novas
biotecnologias e a geoengenharia, o capital está progressivamente se aproximando da
plena fungibilidade da natureza, o sonho-pesadelo descrito por Postone (2014/1993): as
naturezas históricas tendendo a coincidir com a “abstração real” da natureza,
acumulação sem trabalhadores e uma natureza perfeitamente fungível – exceto que isso
é impossível em um sistema cuja substância é o trabalho abstrato, assim como é
impossível subsumir perfeitamente a natureza ao capital. Com a sua apropriação
intensificada e aceleração das fronteiras de mercadorias, o novo regime ecológico
intensifica a feiura. Isso na melhor das hipóteses, se tivermos a sorte de escapar de
catástrofes reais. Ao mesmo tempo, essa contradição torna mais possível do que nunca
uma vida na qual a “lei do valor” é substuída pelas “leis da beleza”. Contudo, um dos
momentos da alienação, para o jovem Marx, é a separação do homem dessas “leis da
beleza” (Marx 2004, 84). O núcleo de verdade do Capitaloceno é o Antropoceno, levado
a sério: o “intelecto geral” da humanidade, constituído em forma alienada no tempo
histórico, deve ser apropriado e transformado para configurar a natureza e a sociedade
como um metabolismo reconciliado de acordo com as “leis da beleza”, não para subjugar
a natureza à lei do valor, mas para libertar o seu potencial pleno com a mediação
humana. “Beleza” e “feiura” são aqui entendidas não como estética em abstrato, mas em
relação direta com o trabalho alienado, ou seja, com as forças e relações de produção:
7 Porém, Campagne (2017) compreende mal a noção de “trajetória da produção” como “teleologia”. Uma
trajetória alienada e historicamente específica da produção não deve ser confundida com uma teleologia
metafísica da História em si.
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Conclusão
Neste artigo, propus o argumento de que a teoria da crise elaborada por Kurz
(2018/1986) e desenvolvida por Ortlieb (2009) com base em Kurz (2018/1986) e
Postone (2014/1993) ainda apresenta um ponto cego. Nessa teoria, o valor da natureza
(como capital circulante) não é levado em consideração. Como consequência, a “crise
ecológica” é considerada apenas como um problema de “externalização” (tipping points)
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9 Para uma análise da ascensão do bolsonarismo que faz uso da teoria da crise aqui proposta, ver meu
texto “Bolsonarismo e ‘capitalismo de fronteira’”, nesta edição de Sinal de menos.
140
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142
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Dois fatos recentes indicaram uma mudança de percurso na relação entre política
e questão ambiental. Nos EUA, em março de 2017, Donald Trump anulou uma série de
medidas que controlavam a exploração de carvão mineral e cancelou acordos anteriores
em relação à mudança climática. Com um discurso de geração de empregos, o gesto foi
visto como uma retomada das formas clássicas de energia sem preocupação com os
impactos ambientais e sociais. No Brasil, em agosto do mesmo ano, Michel Temer
revogou uma imensa reserva ambiental na Amazônia, permitindo a exploração mineral
de uma área com gigantesco depósito de cobre no subsolo.
Esses dois eventos, embora simbólicos, não correspondem a uma ruptura abrupta
com a preocupação ambiental. Há pelos menos dez anos uma mudança significativa tem
sido verificada no trato oficial das questões ambientais. Essa mudança poderia ser
resumida como o fim do capitalismo verde: o rompimento com as tênues preocupações
ambientais erigidas nas décadas de 1980, 1990 e que avançaram após o milênio. Visíveis
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Assim, numa trajetória muito breve em termos históricos, podemos dizer que a
relação entre economia capitalista e questão ambiental saiu de um catastrofismo oficial
(cujo símbolo foi o Relatório Meadows e a Conferência de Estocolmo) e transitou para
um discurso de capitalismo verde em que seria possível lucrar com a integração da
proteção ambiental aos negócios (cujo símbolo foi o conceito de “desenvolvimento
sustentável” e sua popularização com a Eco-92).1 Nos últimos anos, um novo limiar foi
atravessado: há um completo abandono do pudor da preocupação ambiental. As
reclamações contrárias são tratadas como mero “infantilismo ecológico”, o que ocorre
mesmo no ambiente “científico”.
1 “Ao contrário do “Limites do Crescimento”, que preconizava o divórcio entre ecologia e economia – uma
vez que o “crescimento zero” strictu sensu é antagônico ao modo de produção capitalista –, a publicação
do extenso Relatório Brundtland, que adquiriu o sugestivo título de “Nosso Futuro Comum” (“Our
Common Future”, 1987) foi o corolário do processo de alinhamento dos interesses econômicos
com a questão ambiental” (OLIVEIRA, Leandro Dias de. Os "Limites do Crescimento" 40 Anos Depois.
Revista Continentes, [S.l.], n. 1, p. 72-96, jul. 2012. Disponível em:
http://www.revistacontinentes.com.br/continentes/ index.php/continentes/article/view/8. Acesso em
mar. 2018, p. 81).
144
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
É verdade que o decreto assinado por Michel Temer, que previa a abertura da
Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), foi revogado depois de uma forte
pressão da opinião pública internacional, capitaneada por figuras da mídia. Mas no
“recuo” da extinção da Renca, o governo federal brasileiro acabou permitindo a
exploração mineral em áreas protegidas, uma autorização lançada em meio a uma
145
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
cortina de fumaça legal sobre o “manejo sustentável”.2 Além disso, essa medida foi
apenas a mais noticiada de uma série de outras mudanças na permissão de exploração
de áreas da Floresta Amazônica. Essa mudança é muito expressiva na política oficial em
relação à floresta pois agora se sabe que pelo menos 9 % do seu desmatamento se deve à
exploração mineral.3
2Novo decreto de Temer não afasta ameaça à Amazônia, dizem especialistas, Carta Capital, 29 ago. 2017,
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/novo-decreto-de-temer-nao-afasta-ameaca-a-amazonia-
dizem-especialistas.
3Sonter, Laura J.; Herrera, Diego; Barrett, Damian; Galford, Gillian L.; Moran, Chris J.; Soares-Filho,
Britaldo S. Mining drives extensive deforestation in the Brazilian Amazon. In: Nature Communications
8, out. 2017. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41467-017-00557-w. Acesso em mar.
2018.
4 Gomez, André Villar; Barreira, Marcos. Catástrofe como modelo: agronegócio, crise ambiental e
movimentos sociais durante o decênio 2003-2013. In: Sinal de Menos, ano 7, n. 11, v. 1, 2015, p. 74-112.
146
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
5 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Editora da Unicamp: Campinas, 2015, p. 116.
6 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 282. “A produção de carvão, em especial, está a
conhecer um dramático renascimento, com o século dezenove a perseguir com os seus espectros o século
vinte e um. Centenas de milhares de mineiros estão agora a trabalhar em condições que teriam
estarrecido Charles Dickens, extraindo os sujos minerais que permitem à China abrir duas novas centrais
térmicas a carvão por semana. Enquanto isso, prevê-se que o consumo total de combustíveis fósseis
aumente pelo menos 55%, ao longo da próxima geração, com as exportações internacionais de petróleo
a duplicar em volume.” (Davis, Mike. Vivendo na plataforma gelada. In: O comuneiro, n. 25, set. 2017,
disponível em: http://www.ocomuneiro.com/nr07_05_mikedavis.html). Acesso em mar. 2018.
7 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 286.
8 Dow, Kirstin; Downing, Thomas E. O Atlas da Mudança Climática: o mapeamento completo do maior
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território chinês, mas o efeito foi mínimo do ponto de vista da matriz energética (caiu de
64 % para 62 %) e foi provocado muito mais pela redução dos preços globais do barril
do petróleo, depois do estouro da bolha das commodities, do que propriamente por uma
guinada na política ambiental chinesa, tal como a imprensa fez parecer.9 Agora se sabe
que em 2017 deve ser registrado uma retomada do consumo de carvão na China,
provocado pelas baixas chuvas.10 A tão aclamada diversificação da matriz energética
chinesa não se deve a uma preocupação ambiental sincera, mas aos gargalos da própria
crise energética em curso: é preciso encontrar alternativas para manter aceso o forno do
maior produtor mundial de mercadorias.
9 China reduz seu consumo de carvão pelo terceiro ano consecutivo, El País, 08 mar. 2017, disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/04/internacional/1488631238_086175.html. Acesso em
mar. 2018.
10 “a diminuição das chuvas no país asiático também fez com que caísse a energia hidroelétrica produzida
e o ‘espaço energético foi coberto com o carvão, cujo uso aumentou 3%’. Mudança climática: as emissões
mundiais de CO2 voltam a crescer em 2017, El País, 13 nov. 2017. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/09/ciencia/1510243597_169204.html. Acesso em mar. 2018.
11 Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 282.
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– principalmente as usinas “a fio d’água”. Até mesmo o Brasil ampliou seu uso de
termoelétricas para evitar o colapso energético: entre 2012 e 2013, a participação do
carvão na matriz energética nacional passou de 1,6 % para 2,6% e as projeções do
governo indicam a ampliação desse tipo de usina para os próximos anos como forma de
conter o apagão (com os custos da energia em ampliação vertiginosa). Talvez sua
importância ainda seja mínima, mas além de ser um salto significativo em apenas dois
anos, é preciso ponderar que no subsolo brasileiro possui pouco carvão e de baixa
qualidade, além de que uma parte das termoelétricas estão sendo acionadas também
com gás natural e biomassa.
Uma das causas principais dessa redução do volume hídrico de rios, a eliminação
de nascentes e alteração na dinâmica das chuvas, é o desmatamento de grandes
ecossistemas, como as floretas tropicais e as savanas. Em que pese toda a mobilização
social, a acalorada “preocupação” da opinião pública mundial e os tantos acordos de
proteção florestais firmados por organismos internacionais, o processo de destruição
desses biomas tem se acelerado, como se pode ver no caso da própria Floresta
Amazônica, que passou por períodos seguidos de queda na velocidade do desmatamento,
mas agora salta significativamente em 30 % em 2016, comparado ao ano anterior.13
Mesmo os índices parciais comemorados de 2017 são enganosos: eles mostram uma
12 Demanda por carvão cresce 10 vezes mais que por energia renovável, Terra, 7 mar. 2013, disponível em:
https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/demanda-por-carvao-cresce-10-vezes-
mais-que-por-energia-renovavel,c0aa81fdbd44d310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html. Acesso em
mar. 2018.
13 Desmatamento na Floresta Amazônica cresceu 30% em 2016, Jornal Hoje, 11 jan. 217. Disponível em:
http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/01/desmatamento-na-floresta-amazonica-cresceu-30-
em-2016.html. Acesso em mar. 2018.
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O exemplo da quase completa eliminação das florestas dos EUA, ao longo de uma
história de expansão econômica destrutiva (restaram cerca de 5 % das matas originais)
parece não significar absolutamente nada diante de uma sociedade com absoluta
inconsciência de sua própria capacidade destrutiva (e incapaz de rememorar seus feitos
históricos negativos). Também a Mata Atlântica brasileira poderia servir como exemplo
negativo de uma voraz destruição ambiental – 7 % da floresta original é o que resta,
sendo que entre 2015 e 2016 foi registrado um aumento de quase 60 % em sua área
desmatada, o maior nível atingido em 10 anos.16
14 Desmatamento na Amazônia Legal cai 21% e interrompe crescimento após 5 anos, aponta Imazon, G1,
22 ago. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/natureza/noticia/desmatamento-na-amazonia-
legal-cai-21-e-interrompe-crescimento-apos-5-anos-aponta-imazon.ghtml. Acesso em mar. 2018.
15 Desmatamento, pasto e mudança climática causam recorde de queimadas no país, UOL, 30 set. 2017,
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17 Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia. Relatório de Avaliação Científica. São José
dos Campos: ARA: CCST-INPE: INPA, 2014, p. 5-6.
18 Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia, p. 28.
19 Nobre, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia, p. 22.
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20Lovejoy, Thomas E.; Nobre, Carlos. Amazon Tipping Point. In: Science Advances 21 Feb 2018:
Vol. 4, no. 2, disponível em: http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat2340. Acesso em mar.
2018.
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21 “O Cerrado está extinto e isso leva ao fim dos rios e dos reservatórios de água”, Jornal Opção, 04 out.
2014, disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/entrevistas/o-cerrado-esta-extinto-e-isso-leva-
ao-fim-dos-rios-e-dos-reservatorios-de-agua-16970/. Acesso em mar. 2018.
22 Um grave problema de contaminação de aquíferos em São Paulo, Guia Ecológico, 9 jan. 2014, disponível
em: https://guiaecologico.wordpress.com/2014/01/10/um-grave-problema-de-contaminacao-de-
aquiferos-em-sao-paulo/. Acesso em mar. 2018. Na China, as águas subterrâneas de fácil alcance já estão
sob risco: um relato recente de pesquisadores do país apontou que 80 % dos poços analisados nas áreas
mais populosas estavam altamente contaminados, inviabilizando seu consumo e uso doméstico (China
diz que 80% dos poços testados no país têm água poluída demais para uso e consumo, UOL, 12 abr. 2016,
disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/the-new-york-
times/2016/04/12/china-diz-que-80-dos-pocos-testados-no-pais-tem-agua-poluida-demais-para-uso-
e-consumo.htm. Acesso em mar. 2018). Voltando ao Brasil, já não se pode mais confiar nas bacias
hidrográficas: é quase mensal o vazamento de rejeitos de mineração para os cursos d’água em vários
estados, principalmente em Minas Gerais.
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seu apetite não está determinado pelo crescimento populacional. Entre 1960 e 2000, a
população dos EUA cresceu 2,5 vezes, mas o lixo gerado pelo país triplicou nesse
período. Em sociedades demograficamente quase estáveis, o resultado é ainda mais
surpreendente: na Espanha, entre 1996 e 2003, a produção de lixo aumentou em 46 %;
na União Europeia, em 2020, 45% a mais de lixo será produzido em relação a 1995. O
Brasil, que passa por um processo de desaceleração de seu crescimento populacional,
amplia a produção de resíduos: entre 1991 e 2000, a população brasileira aumentou 15,6
%, mas o volume de lixo gerado aumentou em 49 %.24 O gigantesco volume anual de
resíduos lançado no planeta, se persistir por muito tempo em sua trajetória de
aceleração, realizará efetivamente a distopia de uma Terra soterrada por lixo. 25
24 A civilização do lixo. Entrevista especial com Maurício Waldman Revista IHU-Online, 03 dez. 2012,
disponível em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/516032-a-civilizacao-do-lixo-entrevista-
especial-com-mauricio-waldman. Acesso em mar. 2018.
25 “Sabe-se que, do ponto de vista quantitativo, a natureza movimenta, em seu ciclo normal formado pela
movimentação da crosta, vulcanismo, processos erosivos, etc., cerca 50 bilhões de toneladas de materiais
por ano. A humanidade, por sua vez, está movimentando 48 bilhões de toneladas no mesmo período. É
como existisse uma segunda natureza agindo no planeta! Duro ainda é saber que desses 48 bilhões, 30
bilhões viram lixo. Daí que não há como não perceber que o lixo está para tudo quanto é lado. Existe até
mesmo um continente artificial de detritos em formação no Pacífico. Trata-se de um território formado
por 100 milhões de toneladas de refugos, conhecido como Grande Vórtice de Lixo do Pacífico.
Estima-se que a superfície ocupada por esse novo "continente" seja de 15.000.000 de km². Em suma:
quase duas vezes a extensão do Brasil, uma vez e meia a área da Europa, metade da África ou 8% da
superfície do Pacífico, o maior dos oceanos do globo terrestre. Assim, tendo o problema do lixo assumido
proporções tão dantescas, como discordar do geógrafo francês Jean Gottman, que certa vez definiu
provocativamente a época atual como uma Era do Lixo. Quem ousaria dizer que ele está enganado?”
(A era do lixo. "Ele está visceralmente associado ao atual modo de vida". Entrevista especial com
Maurício Waldman, Revista IHU-Online, 11 nov. 2011, disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500514-a-era-do-lixo-ele-esta-visceralmente-associado-ao-
atual-modo-de-vida-entrevista-especial-com-mauricio-waldman. Acesso em mar. 2018.)
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26 Os gastos com a energia são tão exorbitantes em sua implantação que só é viável com a presença do
Estado em sua instalação, que pode passar depois à concessão privada em sua operação. O cálculo
comumente apresentado de custo final do megawatt baixo considera uma vida longa das usinas
nucleares que é irreal e, sobretudo, desconsidera os custos com sua desativação, que podem ser tão
elevados quanto de implantação (Professora da USP alerta: Dizer que os reatores nucleares duram, em
média, 40, 60 anos é blefe, disponível em: https://www.viomundo.com.br/denuncias/emico-okuno-
dizer-que-os-reatores-nucleares-duram-em-media-40-60-anos-e-blefe.html. Viomundo, 17 mar. 2011.
Acesso em mar. 2018).
27 Eletronuclear. Panorama da Energia Nuclear do Mundo. Disponível em:
http://www.eletronuclear.gov.br/LinkClick.aspx?fileticket=SG_9CnL80wM%3d&tabid=406. Acesso
em mar. 2018, p. 13-14.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
28Setor nuclear quer triplicar número de usinas no mundo até 2050, Agência Brasil, 07 jun. 2016,
disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2016-06/setor-nuclear-
mundial-se-mobiliza-para-triplicar-numero-de. Acesso em mar. 2018. O grau de insanidade nesse setor
é tamanho que agora a Rússia anuncia sua primeira usina nuclear flutuante, ou seja, uma fonte de
energia nuclear móvel, cujo protótipo servirá para futuros modelos a serem exportados (Rússia vai lançar
primeira usina nuclear flutuante com perspectiva de exportação, Sputnik Brasil, 08 abr. 2018, disponível
em https://br.sputniknews.com/russia/2018040810938021-usina-nuclear-flutuante-russia-brasil/.
Acesso em abr. 2018).
29 Eletronuclear. Panorama da Energia Nuclear do Mundo, p.17..
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nos próximos anos. Aqui vale a comparação precisa de Luiz Marques: a construção do
aparato nuclear de produção de energia, ao longo da segunda metade do século XX, foi
o embarque da humanidade num voo de avião cujo piloto que não sabia ainda como
pousar a aeronave. O desafio de desligamento, tratamento dos resíduos e isolamento das
centrais nucleares ativas só está começando,30 mas a sua multiplicação continua sem que
isso represente um problema a ser administrado.
No curso da vida de um indivíduo da geração atual, serão extintas pela menos 400
espécies de animais, sem contar os vários outros grupos de seres vivos que estão sob a
pressão dos efeitos sociais devastadores.31 O relatório de um grupo de pesquisadores que
reúne cientistas mexicanos e norte-americanos é enfático sobre a capacidade de
destruição da vida na história moderna: nos últimos 500 anos, a taxa de extinção de
espécies de vertebrados (universo principal utilizado para a pesquisa) foi muito superior
à extinção conhecida em milhares de anos, sendo que no século XX a taxa foi acelerada,
passando por um novo incremento no século XXI. Esse é o fenômeno da chamada “sexta
extinção”, cuja causa agora, diferente de todas as anteriores, é de natureza social:
30 “Em muitos casos, o tempo para desativar completamente uma usina nuclear ultrapassa sua própria
vida útil. Segundo a Agência de Usina Nuclear (NEA, na sigla em inglês), o local onde foi instalada uma
unidade nuclear pode demorar até cem anos para ser útil para outro empreendimento, caso o nível de
radiação na região não retorne aos níveis normais.” (Desativar uma usina pode levar décadas, Gazeta do
Povo, 26 mar. 2011, disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/desativar-uma-usina-
pode-levar-decadas-et3kfkyef94svyk0n4e0w2qmm. Acesso em mar. 2018).
31 Sexta grande extinção está em curso, El País, 21 jun. 2015, disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/06/19/ciencia/1434727661_836295.html. Acesso em mar. 2018.
158
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
32 Ceballos, Gerardo et alli. Accelerated modern human–induced species losses: Entering the sixth mass
extinction. In: Science Advances , 19 Jun 2015, Vol. 1, no. 5, disponível em:
http://advances.sciencemag.org/content/1/5/e1400253.full. Acesso em mar. 2108.
33 World on track to lose two-thirds of wild animals by 2020, major report warns, The Guardian, 27 out.
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Nas pistas deixadas por Racquel Carson em seu clássico Primavera Silenciosa,
uma série de pesquisadores de toda parte do mundo têm relatado o vínculo entre
substâncias químicas dispersas pelo ambiente e alterações nos órgãos sexuais, alterações
de nascimento (hermafroditismo, órgãos sexuais atrofiados ou incompletos), câncer de
mama, câncer de próstata, câncer do testículo, câncer do ovário, disfunções menstruais,
abortos “espontâneos” e infertilidade sistemática. Entre os principais agentes desses
desreguladores endócrinos estão PCBs (policloretos de bifenilas), HCBs
(hexaclorobenzeno), ftalatos, chumbo, cádmio, manganês, mercúrio, bisfenol A etc.
34 Colborn, Theo; Dumanoski, Dianne; Myers, John Peterson. Nosso futuro roubado. Porto Alegre: L&PM,
1997.
35 Dupuy, Jean-Pierre; Robert, Jean. La traición de la opulência. Barcelona: Gedisa, 1979, p. 68.
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36 “... quando temos muito mais meios de prever e de calcular esses danos, nos pedem para termos a mesma
cegueira que atribuímos a essas civilizações do passado que destruíram o meio ambiente de que
dependiam. E o destruíram apenas de maneira local e, ao contrário, o que nós fizemos em um século,
sem ter explorado até a quase extinção os ‘recursos’ constituídos ao longo de milhões de anos de história
terrestre (muito mais tempo para os lençóis freáticos)”. Isabelle Stengers. No tempo das catástrofes:
resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015, p. 55.
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Hoje essas escalas são pequenas.37 Vivemos, desde pelos menos a entrada na Era
Nuclear, naquilo que Ulrich Beck denominou de “sociedade de risco global”:
37Aqui se preferiu a interpretação popular da dimensão das escalas. O correto é que uma pequena escala
abranja grandes áreas ou mesmo toda a Terra.
38Beck, Ulrich. La sociedad del riesgo. Hacia uma nova modernidade. Barcelona: Paidós, 1998, p. 28.
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E, novamente, esse é um novo patamar que a ciência parece ainda não ter
alcançado: o “ceticismo” científico se comporta do mesmo modo como esses
economistas embasados em teorias do século XIX que tentam entender a realidade de
economia global do século XXI. Ou seja, os instrumentos da ciência natural e dos
experimentos locais não são mais suficientes para dar conta da dinâmica social-natural
global. O esforço do IPCC de reunir dados mundiais e construir uma visão unificada
(criticável por uma série de aspectos, desde a “unificação do separado” (Debord), típica
do positivismo, até a leitura ainda otimista do declínio ecológico) é visto pelo
negacionismo como “extrapolação não-verificável” ou como um exagero incapaz de ser
controlado.
39Com esse transtorno entre o social e o natural, seus atributos precisam ser reelaborados pela cultura
industrializada: como a natureza tornou-se um subproduto da produção industrial, não é estranho que
um campo de golfe no meio de uma metrópole caótica seja encarado como um lugar tranquilo, bucólico
e clean, enquanto uma ilha desabitada do Pacífico tenhas suas praias completamente abarrotadas de
lixo: com essa mudança de escalas, “o ‘natural’ é pior e mais degradado que o artificial” (Jameson,
Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1996, p. 104).
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Mas isso ainda não é tudo. Como já discutido acima, os efeitos inconsequentes de
uma vida social num ambiente cada vez mais sintético estão provocando alterações
fisiológicas e hormonais que só agora começam a ser investigadas. Também se sabe dos
efeitos grotescos da radiação sobre a genética de homens e animais. O perigo invisível
da radioatividade e dos disruptores endócrinos está alterando as raízes genéticas e
reprodutivas dos seres vivos, erguendo um mundo novo que deverá ser interpretado
pelos instrumentos da teratologia. Isso é algo absolutamente original e inédito na
história da relação entre sociedade e natureza: os fundamentos mais básicos da própria
existência biológica estão sendo inconsequentemente alterados pela loucura de uma
produção sistemática de quinquilharia industrial. Assim, além dos fundamentos físicos
— as bases externas para a vida —, também os fundamentos biológicos — as bases
internas da vida — estão sendo solapadas por uma forma social destrutiva.
Isso significa que o futuro da humanidade está ameaçado. Aqui seria preciso
repetir as reflexões de Günther Anders sobre a Era Atômica, num nível ainda mais
assustador porque não é apenas a “loucura nuclear” que nos ameaça. A mudança de
escala temporal, geográfica e social-natural nos levou a uma espécie de síntese absoluta
do espaço e do tempo históricos: assim como o indivíduo desconhecido do outro lado do
planeta é nosso vizinho, pois sujeito às nossas irresponsáveis ações sobre o ambiente,
“nossos filhos são nossos contemporâneos”, pois é a existência deles e de nossos netos
que está sob ameaça da pressão industrial sobre a reprodução e a genética. 40 Por outro
lado, agora, mais do que em 1960, também nossos antepassados estão ao nosso lado
nessa empreitada de enfrentar o risco global, não apenas porque sua memória corre o
risco diante da extinção, mas também porque liquidamos em poucos anos toda a energia
40“Não apenas nosso horizonte espacial deve ser ampliado, como também o temporal. Na medida em que
ações praticadas hoje (explosões para testes nucleares, por exemplo) afetam gerações futuras tão
perniciosamente quanto afetam a nossa, o futuro pertence ao âmbito de nosso presente. ‘O futuro já
começou’ – pois o trovão de amanhã vem do relâmpago de hoje. A distinção entre as gerações de hoje e
de amanhã perdeu o sentido; podemos até mesmo falar em uma Liga de Gerações, à qual nossos netos
pertencem tão automaticamente quanto nós. Eles são nossos ‘vizinhos no tempo’. Ao pôr fogo em nossa
casa, não podemos evitar que as chamas atinjam as cidades do futuro, e que as casas ainda-não-
construídas das gerações ainda-não-nascidas se reduzam a cinzas junto com nossas casas. Até mesmo
nossos antepassados são membros de pleno direito dessa Liga: pois, morrendo, faríamos com que eles
morressem também – uma segunda vez, por assim dizer; e, depois dessa segunda morte, tudo seria como
se eles nunca tivessem existido” (Anders, Günther. Teses para a Era Atômica. Disponível em:
http://www.culturaebarbarie.org/sopro/outros/anders.html#.WtTJ8ojwbIU. Acesso em mar. 2018.)
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deixada intocada por eles e que poderia de algum modo, com uso menos intensivo e para
fins sociais, servir às gerações futuras.
Na década de 1980, ainda era possível imaginar que a ampliação crescente dos
riscos ambientais pudesse levar a uma comunidade ampla e sem fronteiras de
interessados em combater os subprodutos da indústria, isto é, que o risco global pudesse
unificar as lutas contra as possibilidades autodestrutivas da sociedade industrial.41 O que
foi subestimado, naquele momento, foi exatamente a capacidade do mercado de
absorver essas lutas, convertê-las em autolegitimação democrático-universalista (na
medida em que correspondiam a uma superação das lutas de interesses típicas da época
da sociedades de classe) e transformar seus slogans em embalagem para um
“capitalismo verde” que oferecia soluções paliativas para problemas industriais.
Hoje já não há mais essa ilusão. Desde a escala local até as negociações
internacionais, esvaiu-se o aparente interesse em criar consensos com relação aos
problemas ambientais. O fim do “capitalismo verde” é o fim da esperança universalista
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Aqui é preciso apreender uma contradição que parece ter se instalado no cerne da
ciência: enquanto no passado era a autorreflexão epistemológica a base de uma crítica
da ciência moderna que mostrava os seus perigos e limites, hoje é a negação dos
fundamentos científicos que está ao lado do inquestionável “progresso industrial e dos
produtos científicos”. Enfim, para que se mantenha a ciência e seus produtos industriais
a salvo de que qualquer ingerência crítica, apela-se para a incapacidade científica em
aferir seus próprios danos. Um estranho matrimônio de positivismo e ceticismo se
instalou no cerne das ciências naturais para quebrar a evidência material que não é mais
possível afastar: o de que os riscos provocados por uma gigantesca produção industrial,
principalmente com suas substâncias químicas e nucleares, são globais, diferente dos
riscos até então experimentados em toda a história humana.
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42 Arantes, Paulo. O Novo Tempo do Mundo. São Paulo: Boitempo, 2014, p. 169.
43 Na formulação de Ulrich Beck: “os riscos são os primeiros bens a evitar cuja inexistência se supõe até
um novo aviso, de acordo com o lema: in dubio pro progressu, o que quer dizer: in dubio, olhe para
outro lado” (Sociedad del riesgo, p. 40).
44 O negacionismo climático ampara-se sobre duas objeções comuns: a de que aumento do dióxido de
carbono não pode ser atribuído às transformações ambientais provocadas pela sociedade e de que o
papel do gás carbônico é pequeno para a ampliação do efeito estufa. Essas duas objeções, as mais
importantes do ponto de vista do questionamento do aquecimento, como se nota, sustentam-se menos
em demonstrações de teses contrárias e mais na dúvida sobre a origem “antrópica” de parcela cada vez
maior do principal gás do efeito estufa e no improvável impacto significativo de sua ampliação. Mas essas
refutações epistemológicas não resistem ao menor teste teórico-científico atual – enfim, são tentativas
de refutação que não tocam nos próprios fundamentos físicos dos processos climáticos. A identificação
de um isótopo de carbono específico ligado ao consumo de combustível fóssil e queima de florestas já
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
demonstrou que é esse CO2 que está em ampliação vertiginosa (Nobre, Carlos A.; Reid, Julia; Veiga, Ana
Paula Soares. Fundamentos científicos das mudanças climáticas. São José dos Campos: Rede
Clima/INPE, 2012, p. 11). Por outro lado, ainda que se possa questionar os efeitos significativos do
dióxido de carbono sobre o aumento da temperatura, a brutal ampliação de metano liberado na
atmosfera por processos “antrópicos” e pelo efeito de retroalimentação do próprio aquecimento
(liberação do metano do permafrost), não deixa dúvidas sobre a radicalização do efeito estufa: embora
permaneça em curto prazo na atmosfera, seu potencial de absorção de calor é cerca de 25 vezes maior
que o CO2. As projeções sobre o aquecimento, em geral, ignoram ou subestimam a liberação de metano
e seus efeitos sobre a atmosfera, o que pode indicar que o mais realista é a tendência a um “efeito estufa
descontrolado” (Marques, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental, p. 428-440).
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A NOVA CRUZADA
DO FANTASMA AUTORITÁRIO BRASILEIRO
Rubem Klaus
1- Pioravante, marche!
O bolsonarismo seguirá em sua marcha batida para o futuro – uma fuga para a
frente arrastando uma acumulação periférica subdesenvolvida, mais ou menos
fracassada em sua agenda de modernização e integração nacional num mercado global
cada vez mais excludente – idêntica a uma cruzada militar-religiosa para o passado
arcaico de uma ex-colônia escravagista, ameaçando liquidar o presente e o futuro, bem
como a memória histórica dessa barbárie a ser reinstalada, com o superministro dos
negócios Paulo Guedes no leme. Centenas de diagnósticos interessantes já foram
traçados, o fundamental aqui será captar o sentido ideológico mais fundo do “projeto
conservador”(!) de reformas destrutivas dessa extrema-direita. Sua base e suas alianças
são claras e conhecidas: um inepto autoritário do baixo clero na presidência associado a
uma junta militar ultraneoliberal, elementos dos grandes bancos e do judiciário, forças
conservadoras e modernizadas do campo e do setor primário-exportador, milicianos,
fundamentalistas religiosos e uma malta de políticos novatos celerados, reacionários
nostálgicos da ditadura, machistas, racistas e ultraliberais. Um “governo de ocupação”
“autocrática” – como bem flagrou Wanderley Guilherme dos Santos1 – ocupação
1 “Quando ele estima considerar movimentos de sem-terra como organização terrorista ou diz que os
vermelhos ou vão embora ou vão para a cadeia isto é um governo de ocupação que transforma toda a
oposição em inimigo. A visão que Bolsonaro transmitiu é que seus opositores são estrangeiros ao Brasil.
Não são brasileiros propriamente ditos. São estranhos ao Brasil. É importante entender que um governo
de ocupação não é necessariamente fascista. Ele vai usar as leis que existem. Leis que estão no código
penal e na Constituição e que podem ser aplicadas de uma forma perfeitamente violentadora daqueles
direitos que supúnhamos adquiridos mas que não têm respaldo institucional nas leis do país. (...) As
instituições democráticas, pelas suas virtudes, de tolerância interpretativa, abrem um espaço para se
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
governar autocraticamente em nome da democracia” (SANTOS, Wanderly Guilherme dos. "Só uma
frente apartidária conterá um governo de ocupação". Valor econômico, São Paulo, 29/10/2018.
https://www.valor.com.br/politica/5955315/so-uma-frente-apartidaria-contera-um-governo-de-
ocupacao. (Acesso em 07/03/2018).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
2 Para uma análise das raízes desse processo, cf. TELES, Edson e SAFATLE, Vladimir (orgs.). O que resta
da ditadura. (A exceção brasileira). São Paulo: Boitempo, 2010; SERRANO, Pedro Estevam.
Autoritarismo e golpes na América Latina. Breve ensaio sobre jurisdição e exceção. São Paulo: Alameda,
2016; MASCARO, Alysson. Crise e golpe. São Paulo: Boitempo, 2018.
3 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
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inclusive aquela que votou no candidato vencedor. É deste último elemento que
deveríamos partir para decifrar esse monstrengo autoritário fã de torturadores que se
aproxima como um estranho conhecido, um líder de bando soberano, um fantasma
remoto.
Por certo esse fenômeno político abstruso e algo delirante tem vários níveis e
dimensões econômicas, sociais e culturais que se desdobram e se entrelaçam. Mas esse
real precisa ser examinado em seus próprios termos. Não é difícil encontrar o centro da
questão – o sentido deste capitalismo de rapina – se penetrarmos no ponto de vista de
seus próprios agentes. Pois o espaço social estará como nunca sujeito às “representações
do espaço concebido”4 por este governo de ocupação. Nesse sentido, é incrível a frieza
com que Paulo Guedes lida com os números mais abstratos, inflados e imaginários do
orçamento, da previdência ou das privatizações, totalmente de costas para as
necessidades sociais e as consequências materiais dessa política neoliberal de choque,
que visa tornar o que parecia politicamente “impossível” algo viável através do uso
instrumental das crises econômicas e institucionais5. Isso do lado da gestão econômica.
Do outro lado, temos a visão político-ideológica típica do bolsonarismo. A título de
experimento, imaginemos que isso então se condense suficientemente bem numa
mensagem exorbitante de um guru pancada do grupo, figura machadiana clássica criado
na Casa Verde de Itaguaí, lançada no calor da hora triunfal, na rota de uma eleição quase
vencida6. Abram-se aspas,
4 Conforme a útil conceituação de LEFEBVRE, Henri. La production de l’espace. Paris: Anthropos, 1974.
5 KLEIN, Naomi. The Shock Doctrine. The rise of disaster capitalism. New York: Metropolitan
Books/Henry Holt Co., 2007. A autora reconhece num texto de Milton FRIEDMAN (Capitalism and
Freedom, 1962) a semente do programa desse “capitalismo de desastre”: "Only a crisis—actual or
perceived—produces real change. When that crisis occurs, the actions that are taken depend on the ideas
that are lying around. That, I believe, is our basic function: to develop alternatives to existing policies, to
keep them alive and available until the politically impossible becomes politically inevitable." (ib., p. 6 e
140).
6 Olavo de Carvalho, "O que cai com a ascensão do Bolsonaro" (publicado originalmente como post em seu
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Eles não estão lutando pelo poder nem para vencer uma eleição, estão lutando
pela sua sobrevivência política, social, econômica e até física. É inconcebível que,
nessas condições, não lutem com a fúria de milhares de leões feridos, apelando a
todos os recursos lícitos e ilícitos, morais e imorais, para obter não só a vitória a
todo preço, mas, se possível, a redução do povo à total inermidade.”
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7 Lembremos do célebre “Discurso” de Bolsonaro na Av. Paulista (comentado por D. Cunha nesta edição
de Sinal de menos) e teremos uma amostra de como isso se expressa na voz do próprio líder autoritário.
Isso tudo tomou forma com a erosão da hegemonia petista e a crise de governabilidade a partir de 2013.
Ver, p.ex.: Bob KLAUSEN. “A espuma, a onda e o mar da reação. Cruzando o fantasma autoritário
brasileiro”. Sinal de menos, n. 11, vol., 1, 2015. Comparar com a leitura da ascensão do bolsonarismo
feita por CATALANI, Felipe. “Aspectos ideológicos do bolsonarismo”, 2018. Blog da
Boitempo. https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/31/aspectos-ideologicos-do-bolsonarismo/
(Acesso em 05/01/19).
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8 FRAGOSO, João e FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia, Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
9 Remeto aqui à discussão da arbirariedade do narrador machadiano feita por: SCHWARZ, Roberto. Um
mestre na periferia do capitalismo – Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1990; PASTA, José
Antonio. Formação supressiva: constantes estruturais do romance brasileiro. São Paulo: Dep.
Literatura Brasileira, FFLCH-USP, Tese de Livre-Docência, 2011; DUARTE, Cláudio R. “Nada em cima
de invisível – Esaú e Jacob, de Machado de Assis. (As aventuras do dinheiro na transição do Império à
República)”. São Paulo: DTLLC-FFLCH/USP, 2017 (Tese de doutorado).
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colonial, como dizia Darcy Ribeiro, esta ordem consistiu em “moinhos de gastar gente”10.
Muito do que o antropólogo sintetiza em sua obra final poderia ser trazido para iluminar
o fenômeno da ascensão e da possível permanência do bolsonarismo:
10 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. (A formação e o sentido do Brasil). São Paulo: Companhia de Bolso,
2011, p. 95.
11 Idem, Ibidem, 22.
12 FERNANDES, op. cit., p. 365; CUEVA, Augustín. “La Fascistización del Estado en América Latina”.
(Intervención em el debate sobre "La cuestión del fascismo en América latina"), Cuadernos Políticos,
México, Ediciones ERA, núm. 18, octobre-dicièmbre, 1978, pp. 15-21. O texto é ambíguo, contudo,
variando entre a admissão dum regime político fascista e a fascistização do Estado:“En lo personal me
inclino a caracterizar de esta manera a regímenes como los del cono sur de América Latina, tomando en
consideración que representan la implantación de una dictadura terrorista abierta de los elementos más
reaccionários del capital monopólico, ejercida en contra de la clase obrera y el sector revolucionário de
los campesinos y los intelectuales”. Sobre esse debate, ver o artigo sintético de TRINDADE, Hélgio.
“Fascismo e neofascismo na América Latina”, 2000.
(http://www.derechos.org/nizkor/brazil/libros/neonazis/cap5.html#N_13_ Acesso em 07/03/2919).
13 Cf. FERNANDES, op. cit.
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integral das formas de vida14. Ora, que “fascismo” seria este hoje, portanto, quando a
legalidade formal permanece e o que se espreita no horizonte é apenas a imposição
violenta do programa neoliberal mais antipopular e o fim de qualquer política
desenvolvimentista? Um fascismo sem “nação”, sem “comunidade popular”, sem ação
de massas fascistizadas e mobilizadas, calçado em frações reacionárias da elite e da
pequena burguesia com seu nacionalismo de araque, e sem classe operária organizada
ou politicamente derrotada no campo oposto?15 É claro que muitos elementos soltos do
fenômeno original parecem aqui presentes, que compartilham seu espírito com a
extrema-direita “neofascista” ascendente no mundo. Chutando fora a escada de incêndio
da “gestão da barbárie” içada pelo lulismo16, também aqui “o neofascismo em ascensão
tem o inconveniente de precipitar aquilo que já é realizado pelos mecanismos
antissociais do mercado, por isso precisa se afirmar em conjunto e não contra a ideologia
liberal. O neofascismo é uma combinação, aparentemente inusitada, de dirigismo estatal
repressivo e desintegração dos mecanismos estatais de proteção como tentativa de
administrar a crise estrutural do capitalismo”17.
14 DARDOT, Pierre e LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. (Ensaio sobre a sociedade neoliberal).
São Paulo: Boitempo, 2016.
15 Cf. SANTOS, op. cit. Além das análises de POULANTZAS, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo:
Martins Fontes, 1978 (especialmente Cap. VII. O Estado Fascista, 4. Proposições gerais sobre o Estado
fascista, forma de regime de exceção); KONDER, Leandro. Introdução ao fascismo. São Paulo:
Expressão Popular, 2018.
16 Cf. MENEGAT, Marildo. “Entrevista com Marildo Menegat”. Sinal de menos, Nº 12, vol.2, 2018.
17 BOTELHO, Maurílio L. “Notas sobre o fascismo, o de ontem e o de hoje”. Blog da Consequência, 02/10/
2018. (https://blogdaconsequencia.com/2018/10/02/notas-sobre-o-fascismo-o-de-ontem-e-o-de-
hoje/ (Acesso em 03/10/18). Bem entendido, um fenômeno totalmente diferente, novo na continuidade
dispersiva do conteúdo típico do fascismo histórico: “As duas cavidades presentes no coração neoliberal
estão também no peito do neofascismo. De um lado, uma preocupação em continuar a forrar os
mercados financeiros com o capital fictício num volume que apenas o Estado é capaz de oferecer; de
outro, levar às ultimas consequências a dissolução de qualquer garantia social, fazendo com que cada
indivíduo seja responsável por sua própria sobrevivência”. Ver também as considerações importantes
sobre a ascensão da extrema-direita mundial em: LAVAL, Christian. “Bolsonaro e o momento
hiperautoritário do neoliberalismo”, 29/10/2018.
(https://blogdaboitempo.com.br/2018/10/29/o-momento-hiperautoritario-do-neoliberalismo/ Acesso
em 05/01/19).
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regredir sem memória histórica suficiente para o passado mais triste, desigual e violento.
Para começar, porque aqui, como nos lembraria Darcy, tivemos tradicionalmente apenas
um território a conquistar, e “ao contrário das sociedades autônomas, o povo não existe
para si e sim para outros”18. Nesse sentido, pode-se falar da ampliação do modelo de
rapina neocolonial típico das zonas de fronteira capitalista para todos os cantos do país,
e assim de um modelo de “capitalismo de fronteira”, com consequências nefastas para o
desmatamento, as populações tradicionais e periféricas e até muito provavelmente o
clima global19.
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Esta enfim deve ser a ideia fixa na cabeça do capitão Jair, recolhida por exemplo
nas memórias falsificadas do torturador Brilhante Ustra, depositadas em sua cabeceira
de cama. Líder que seus fãs mais fanáticos já tatuaram na pele e pedem para já irmos
nos acostumando com a cruzada obscurantista que vem por aí. Ora, sob a possibilidade
concreta de entrarmos num novo colapso financeiro ou nova recessão global a partir de
2019, este projeto de liquidação pode endurecer-se muito mais rapidamente do que hoje
dá como sinal, o que significaria talvez o declínio das ilusões democráticas alimentadas
desde a Anistia e a Abertura consolidada com a Nova República. Teremos sorte se nessa
marcha batida em direção ao progresso da totalização da ideologia do “livre mercado”
não refundarmos o Império brasileiro (ou antes, ianque-brasileiro).
É daqui que pode emergir quem sabe uma nova crítica da economia, da política e
das identidades vigentes, até hoje vestida pela esquerda noutra fantasia: a utopia de uma
sociedade do trabalho livre. É preciso saber atravessá-la em direção à liberdade.
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BOLSONARISMO E
“CAPITALISMO DE FRONTEIRA”
Daniel Cunha1
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mundo, conforme Wallerstein (1974, 88-9): “O cultivo de açúcar começou nas ilhas mediterrâneas, mais
tarde avançou para as ilhas do Atlântico, e então cruzou o Atlântico em direção ao Brasil e às Índias
Ocidentais. A escravidão seguiu o açúcar. À medida que se moveu, a composição étnica da classe dos
escravos foi transformada. Mas por que africanos como os novos escravos? Por causa da exaustão da
oferta de trabalhadores autóctones das regiões das plantações, porque a Europa precisava de uma fonte
de força de trabalho de uma região razoavelmente populosa que fosse acessível e relativamente próxima
da região do seu uso. Mas ela tinha de vir de uma região externa à economia-mundo, de maneira que a
Europa não tivesse que preocupar-se com as consequências econômicas da remoção de mão-de-obra em
larga escala na forma de escravos da região de reprodução. Coube à África Ocidental preencher melhor
esses requisitos” (tradução minha).
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Se avançarmos até o século XXI, vivemos sob aquilo que Moishe Postone
chamou de “anacronismo do valor”.5 Como antecipado por Marx nos Grundrisse, a
composição orgânica do capital atinge tal grau que o valor ou tempo de trabalho
socialmente necessário passa a ser uma base mesquinha para a medição da riqueza
material.6 Trata-se do limite absoluto do modo de produção capitalista, que se desenrola
enquanto processo de crise cujos efeitos vão do desemprego estrutural à favelização
mundial, da financeirização ao asselvajamento do patriarcado, do reforço do racismo
estrutural ao agravamento da crise ecológica.7 Robert Kurz localizou esse “ponto de
viragem” na “revolução microeletrônica” a partir dos anos 70, quando as racionalizações
dos sistemas produtivos (automatização computadorizada etc.) começam a eliminar
mais trabalho vivo do que o gerado pela expansão da do sistema.8 Esse “ponto de
viragem” foi marcado por uma constelação de eventos, como o colapso de Bretton
Woods, a queda do muro de Berlim e dos regimes do Leste, a crise de dívida nos países
do Terceiro Mundo. Ocorre, se Kurz está certo, que neste ponto a “modernização”
4 Moore (2015).
5 Postone (2019), nesta edição da Sinal de Menos.
6 No célebre “fragmento sobre as máquinas”: Marx (2011/1858), 940-ss.
7 Sobre o asselvajamento do patriarcado, elemento gritante do bolsonarismo, ver Scholz (2017). Scholz
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
brasileira (e dos países do “Terceiro Mundo” em geral) ainda estava incompleta. Trata-
se do “colapso da modernização”, o fim dos projetos de “modernização retardatária”,
geralmente impulsionados por ditaduras que conduzem o desenvolvimento das forças
produtivas com mão-de-ferro. Desde então, temos uma sociedade “pós-catastrófica” em
uma economia-mundo capitalista que passa a girar em falso. 9 “Pós-catastrófica” e
apenas parcialmente modernizada, frise-se, não tendo uma completa formação de
classes, instituições e democracia de massas como nos países centrais; nem o
“proletariado” e tampouco o “cidadão” foram aqui plenamente acumulados. Racismo,
violência estrutural exterminista, mandonismo e capricho anti-republicano (para além
de suas formas militaristas mais óbvias, como por exemplo no Judiciário e no Ministério
Público), permanecem não como meros “preconceitos” ou “privilégios” idiossincráticos,
mas como elementos estruturantes de uma sociedade escravista de fronteira apenas
parcialmente superados.
9 Kurz (1992)
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
de Menos (2013).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
14 A sabotagem do PSDB foi surpreendentemente admita por Tasso Gereissati em entrevista ao jornal O
Estado de São Paulo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,nosso-grande-
erro-foi-ter-entrado-no-governo-temer,70002500097. Em artigo publicado em 2004, o juiz Moro
escreveu: “A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento,
não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes.”
Ele também defendeu as “delações premiadas”, incluindo o uso de táticas de desinformação contra os
acusados e o uso dos meios de comunicação de massa para revelar informações durante o processo,
antecipando a sua decisão de “vazar” ilegalmente a conversa entre a então presidente Dilma Rousseff e
Lula em 2016. Ver Moro (2004).
15 Ver Jiménez (2018).
16 Ver Araújo (2017) e minha crítica no adendo a este texto.
17 Cf. Botelho (2018).
18 Sobre liberais escravistas, ver Bosi (1988) e Schwarz (2000/1977).
188
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
https://www.nexojornal.com.br/grafico/2017/04/19/Quais-%C3%A1reas-ind%C3%ADgenas-as-
mineradoras-querem-explorar. Uma consequência importante desse impulse de expansão fronteiriça é
a pressão sobre a Floresta Amazônica, prejudicando a biodiversidade e arriscando o colapso da floresta
oriental se for atingido um ponto de não-retorno (tipping point) que provocará a conversão da floresta
em savana e a liberação de enorme quantidade de carbono à atomosfera. Isso configura uma pressão
adicional nos ciclos biogeoquímicos planetários, já for a de controle. Ver Lovejoy e Nobre (2018) e Cunha
(2015).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
assassinadas no campo em conflitos por terra ou ambientais.24 Junto com a favela, onde
milhares são assassinados todos os anos, esse é o lugar da milícia no “capitalismo de
fronteira”. Também neste aspecto, o bolsonarismo se diferencia da versão brasileira do
movimento fascista histórico (integralismo), que em seu projeto de “nação” imaginária
buscava “incluir” negros e indígenas (devidamente “evangelizados”), inclusive utilizando
como saudação oficial o tupi “Anauê”.25
***
A indicação de Ernesto Araújo como futuro chanceler por Jair Bolsonaro trouxe à
luz um debate que estava até então sendo feito implicitamente: a questão do novo
nacionalismo de extrema-direita liderado internacionalmente por figuras como Steve
Bannon.27 Araújo parece ser uma versão subalterna dessa Internacional neonacionalista,
https://blogdaconsequencia.com/2018/11/27/comunidade-e-nacionalismo-na-era-da-crise-do-valor/
27 Ver Rossi (2018) e Fernandes (2018).
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
191
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
192
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
33 Marx (2013/1867), 207 (tradução modificada para preservar a continuidade entre sachliche e Sache).
34 Convém lembrar que no pensamento dialético, a conclusão do modo de investigação (capítulo sobre o
valor nos Grundrisse) abre o modo de exposição (primeiro capítulo d’O Capital). O capítulo de abertura
de O Capital, assim, ao invés de ser lido como um preâmbulo do que vem a seguir, como faz a maior
parte dos leitores marxistas tradicionais, deveria ser lido como uma conclusão, plenamente
compreensível apenas em uma segunda leitura do volume.
35 Ver Jappe (2014); Colletti (1992/1975)
36 Marx (2007), 37. Ver também Sobre a questão judaica (Marx (2010)). Para uma introdução da noção
Adorno, Marcuse) e no jovem Lukács da História e consciência de classe etc., que Araújo parece
identificar com um “marxismo cultural” divorciado da crítica da mercadoria. Já em Gramsci essa crítica
da mercadoria não parece presente. Ver Bösch (2015).
193
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Lembrando que, para Adorno, o antissemitismo tem caráter funcional e independência relativa do
objeto. Ver Catalani (2018) sobre o anticomunismo bolsonarista como estruturalmente antissemita.
Ademais, se há uma “Internacional” ativa hoje, é a dos neonacionalistas comandada por Steve Bannon.
194
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
195
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Referências
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Bosi, Alfredo (1988). “A escravidão entre dois liberalismos.” Estudos Avançados 2(3):
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Di Cunto, Raphael, Carla Araújo e Carolina Freitas (2018) “Novo chanceler diz que
esquerda criou ‘ideologia da mudança climática’”, Valor,
15.11.2018. https://www.valor.com.br/politica/5985233/novo-chanceler-diz-que-
esquerda-criou-ideologia-da-mudanca-climatica
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Jappe, Anselm (2006). As aventuras da mercadoria: por uma nova crítica do valor.
Trad.: J. M. Justo. Lisboa: Antígona.
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Politischen Ökonomie”. https://www.marxists.org/deutsch/archiv/marx-
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Marx, Karl (2010/1843) Sobre a questão judaica. Trad. N. Schneider. São Paulo:
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Menos, edição especial “Os sentidos da revolta”: 55-79. Disponível em
www.sinaldemenos.org
Menegat, Marildo e Sinal de Menos (2018). “Entrevista”. Sinal de Menos 12(2): 8-19.
Moore, Jason W. (2000). “Sugar and the expansion of the early modern world-economy:
commodity frontiers, ecological transformations, and industrialization.” Review 23(3):
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Moore, Jason W. (2015). “Nature in the limits to capital (and vice versa).” Radical
Philosophy 193: 9-19.
Moore, Jason W. (2015b) Capitalism in the web of life: ecology and the accumulation
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Prado Jr., Caio (2015/1942). Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo:
Companhia das Letras.
Safatle, Vladimir (2018). “Há um golpe militar em curso no Brasil hoje”. TV Boitempo.
Palestra disponível em https://www.youtube.com/watch?v=BwLg13hSkRk
200
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Cláudio R. Duarte
1 Para um panorama geral da biografia e da obra do autor: MONEGAL, Emír Rodriguez. Las raíces de
Horacio Quiroga - Ensaios. 2ª ed. Montevideo: Ed. Asir, 1961; do mesmo autor, ver o “Prólogo” à
coletânea de contos por ele organizada: QUIROGA, Horacio. Cuentos. 3ª ed. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 2004. Salvo indicação contrária, as citações dos contos referem-se a esta edição, facilmente
encontrável nas redes sociais. A obra completa foi reunida numa edição crítica: QUIROGA, Horacio.
Todos los cuentos. Ed. crítica por Napoleón L. de León e Jorge Lafforgue (coords.). 2ª ed.
Paris/Madrid/São Paulo (...): Unesco/ALLCA XX/Edusp, 1996.
201
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interpretada em detalhe, após a tradução integral dessa pequena joia do conto latino-
americano, até hoje inédita. Mas antes disso devemos retomar o contexto e o sentido da
obra, através da análise de outros contos significativos e da limpeza do verdadeiro cipoal
de interpretações construídas pela fortuna crítica.
“...para lutar contra nós, a antiga colônia deve lutar contra ela
mesma.” (J.-P. Sartre, Prefácio a Frantz Fanon, Os condenados
da terra, 1961)
2 Sobre tais pressões editoriais vide as observações de Angel RAMA (“Prólogo” in:
Cuentos - Obras inéditas
y desconocidas de Horacio Quiroga, vol. IV. Montevideo: Arca, 1967) e de MONEGAL (op. cit.). A
perfeição do conto realista de Quiroga foi desdenhada por Borges, Bioy Casares e outros autores dos anos
30 e 40; com o tempo foi reconhecida pela fortuna crítica clássica (Estrada, Zum Felde, Monegal, Jitrik,
Garet) e relembrada por escritores de peso, no início dos anos 1980 e 90, alinhando-o a outros mestres
como Poe, Maupassant, Tchékhov (CORTÁZAR, Julio. Clases de literatura – Berkeley 1980. Buenos
Aires: Alfaguara, 2013, p. 134; PIGLIA, Ricardo. La Argentina em pedazos. Buenos Aires: Ed. de la
Urraca, 1993, p. 64-5).
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fronteira é, assim, seu grande tema vital, em nada exótico ou contingente, a ponto de
tornar-se uma espécie de metáfora obsessiva.
À primeira vista, entretanto, o autor parece perder-se numa fuga ilusória em
direção à primeira natureza. De fato, aqui sentimos mais do que tudo a presença
agressiva do meio, a vida determinada pela fatalidade e os acasos da natureza. Tome-se
um conto como “El hombre muerto”, ou “Las moscas”, que lhe dá continuação. Em
ambos, por um acidente, um homem se fere gravemente no meio do mato, agonizando
solitariamente até a morte. O drama individual parece completamente anódino. Entre
roçados e bosques, rios e estiagens severas, plantas e animais ameaçadores, Quiroga
procuraria nos apresentar, como descreve Bella Jozef, “de maneira direta o efeito
devastador do ambiente físico sobre o homem. O meio, com suas consequências
inevitáveis, chega a ser uma das personagens principais e encontra-se na base de todas
as situações. A selva impiedosa rege a ação dos homens e até seu pensamento”3. Estamos
a um passo do caminho que dá Quiroga como ideólogo de uma relação antropológica
simples e imediata entre Homem e Natureza. A brutalidade da natureza aparece sem
mediação social visível. Nesse mundo de forças implacáveis, elementos de uma estética
naturalista, no seu sentido mais literal, tornar-se-iam opções incontornáveis. E de fato
a obra cimentará, embrenhando-se por tais caminhos isolados em Misiones, sua
primeira camada de uma certa configuração realista. (Por isso mesmo tais contos, que
são complexos em sua aparente imediatidade, serão nosso ponto de chegada).
Aqui, na verdade, o modernismo “decadentista” do autor dava uma espécie de
giro materialista, subordinando a imaginação poética, a fábula e a intertextualidade a
um determinado contexto histórico. Isso nos leva ao sentido social da fronteira
neocolonial. Num primeiro nível de manifestação, o melhor da obra remete à fronteira
política e econômica do território, invocando, embora de maneira velada, nada menos
que questões ligadas à propriedade da terra, aos usos e às disputas territoriais no
momento de consolidação do Estado argentino. Mas, levada adiante, esta base deriva
para noções de fronteira social, linguística, cultural, simbólica e psíquica4, o que lhe
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5 QUIROGA, “Tacuara-Mansión” [em Los desterrados, 1926] in:__. Cuentos, op. cit., p. 264.
6 Para uma teoria crítica da socialização mercantil como “história natural”: ADORNO, Theodor W.
“Espírito do Mundo e História Natural – Excurso sobre Hegel in:__. Dialética negativa [1966]. Rio de
Janeiro: Zahar, 2003, especialmente p. 293-97.
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7 QUIROGA, “Decálogo del perfecto contista” in: Cuentos, op. cit., p.416-20; Trad. John O’Kuinghttons:
Contos de amor, de loucura e de morte. São Paulo: Hedra, 2013, p. 16-8.
8 Cf. ARRIGUCCI JR., Davi. O escorpião encalacrado. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 141-147;
BALDERSTON, Daniel. “Short story” in: Encyclopedia of Latin American and Caribean Literature
1900-2003, ed. Daniel Balderston and Mike Gonzalez. London/New York: Routledge, 2004, p. 537. O
autor cita também o caso do conto “El hijo”.
9 PRIETO, René. “The politics of Indigenismo” in: Echevarría, R. Gonzalez & Enrique Pupo-Walker (orgs.).
The Cambridge History of Latin American Literature, Vol. 2: The Twentieth Century. Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p. 141; ECHEVARRÍA, Roberto Gonzalez. Mito e archivo. Una teoría
de la narrativa latino-americana. 2ª ed. México: Fondo de Cultura Económica, 2011, cap. II.
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ele lucidamente corre em direção às margens da “cidade letrada” e do seu sujeito burguês
“racional”, cujo projeto modernizador configurou-se, segundo Ángel Rama, como
produção de “mitos letrados e urbanos” de ascendência liberal, feitos a contrapelo da
“cidade real” e às expensas das massas campesinas e indígenas, que continuarão a pagar
o pato do sobretrabalho nas atividades agrícolas e extrativas, chegando no limite à
“extinção da natureza e das culturas rurais”10. Isso sem esquecer a política de extermínio
dos grupos indígenas do país – a chamada “conquista do deserto” executada pelos
governos liberais-conservadores com o apoio dos militares positivistas na segunda
metade do XIX, cujo ápice foi a campanha do general Roca em 187911.
Nesse sentido, Quiroga regressa ao que o pensamento hegemônico considerava o
horror: as raízes coloniais e a “barbárie” do campo, grupos e culturas que estão em vias
de “modernização”, obliteração ou pura e simples eliminação física. O risco, adivinha-
se, seria um retorno aos mitos românticos da natureza, do bom selvagem, das culturas
comunitárias e patriarcais autárquicas etc. De fato, seu “rechaço da cidade mercantil” foi
lido em certa época a partir de uma perspectiva marxista ortodoxa como uma “variante
da viagem modernista e do anarquismo individual”12, que terminaria por atualizar um
romantismo regressivo: distância de toda “integração social, ação grupal ou
incorporação em uma ação crítica coletiva”; donde a fronteira seria simples “metáfora”
vazia, que o próprio autor não ultrapassaria: “yo me voy, pero no me passo; mis
fronterizos son insólitos pero nada más que casi locos”13, p. ex., índios “cretinos” ou tidos
como moralmente fracos e degradados pelo álcool; ou ainda, uma posição literária de
cunho “populista” e “moral”, que se solidariza com as vítimas do processo, mas
identificaria o fundamento da opressão social numa espécie de “Grande Causa” ou
“Motor Primeiro” puramente ideológico de base natural (“Es la Selva”), ou
obscurantista, conforme o “casuísmo naturalista” de meros acidentes num ambiente
inóspito, enquanto que reserva para si a inteligência, a virtude, a sinceridade, a atividade
viril, a distância crítica e a individualidade mesmo no desterro, que ele projetaria em
e realidade política: de Sarmiento a Cortázar. Buenos Aires: Siglo Vinte, 1971, p. 55.
13 Idem, ibidem, p. 57.
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alguns de seus caracteres numa forma de reedição do “espectáculo del pioneiro” 14. Em
síntese, para o crítico e ficcionista argentino David Viñas, o suicídio de Quiroga teria
relação com tais ambiguidades político-sociais jamais resolvidas.
Esta crítica tem alguma procedência, mas talvez se fia demais nas aparências e
negligencia o trabalho de interpretação crítica, confundindo-o com dados biográficos,
psicológicos e sociais externos. Pois a fronteira ficcional quiroguiana não aparece jamais
à maneira romântica, como idílio natural e utópico, nem simplesmente como lugar de
culturas indígenas ou tradicionais reprimidas que cumpriria salvar do processo
modernizador. O genocídio indígena estava praticamente concluído, e poderíamos
perguntar se não é ele que retorna sob o fantasma da morte onipresente nessa prosa
ficcional fronteiriça. Diante da expropriação e da concentração de terras que se
seguiram, não há moral a reinventar ideologicamente, nem a moral do colonizador é
consagrada no altar de um novo “destino manifesto”. Para começar, Quiroga troca a
beleza e a nostalgia neoparnasiana pela sinceridade e a verdade histórica negativa do
país, ultrapassando os mitos restauradores do regionalismo simbolista e impressionista
de um Güiraldes (Don Segundo Sombra, 1926) e da literatura criolla e gauchesca
tradicional15. Tanto quanto aqui, por suposto, também distanciava-se do mito do
pioneiro norte-americano clássico: o conquistador e colonizador de terras indígenas, o
imigrante bem sucedido convertido em pequeno fazendeiro ou cowboy, militar, pastor,
jornalista, médico, advogado que se faz reconhecer pela profissão e o trabalho próprio.
Em Quiroga, esse mito triunfal se desenvolve por meio de ásperos confrontos
entre ideologia e realidade, como no relato cheio de humor irônico “El Monte Negro”
(trabalhos infernais, fracassos em série, vitória duvidosa), ou noutros em que a aventura
e o heroísmo, mediados pelo espírito técnico, o trabalho artesanal, a invenção de
engenhocas, a vontade resistente do homem às intempéries naturais e sociais pode
desabrochar, mas sem promessa alguma de prosperidade, consagração ou
reconhecimento (“La voluntad”, “El techo de incienso”, “Los destiladores de naranja”,
“El desierto”, “Los pescadores de viga”). Estes tornam-se então ideologias ou francos
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delírios. Assim, de maneira explícita, num conto em que a fantasia substitui por
completo a realidade, “Los inmigrantes”, em que a esposa de um alemão perece ao
enfrentar os rigores da selva enquanto o marido alucina a chegada da família à terra
prometida, carregando a falecida nos braços. Esta a mesma atmosfera pesadelar de “El
hijo”, “El desierto”,“El hombre muerto” e “Las moscas”. Nesse ponto, pode-se imaginar
que o autor tem como base literária sua própria experiência traumática 16, tanto como o
desgaste de seu próprio rosto, de sua própria consciência individualista repleta do
pathos de “heroísmo” e “aventura”17 enquanto habitante, produtor e inventor na frente
pioneira18. É assim que suas coletâneas confrontam a experiência comum desses homens
práticos da fronteira, mais ou menos isolados no norte do país, que têm no trabalho e na
sobrevivência diante da adversidade sua medida de sucesso patriarcal, atravessada
contudo pela perda da identidade, deparando-se com o trauma histórico da
proletarização e do etnocídio sofrido pela população nativa. Não se trata de saltar a
própria sombra, mas de atravessá-la como novos condenados da terra neocolonial. As
ideologias do self made man, do predomínio da razão, da liberdade e da vontade do
“homem de caráter”, são, assim, testadas literariamente. Este isolamento, voluntarismo
e caráter moral das figuras, por sua vez, dão azo às leituras “metafísicas” de sua obra:
segundo estas, somada ao aspecto de horror metafísico originário do modelo de Edgard
Alan Poe, a parte mais válida de sua obra estaria voltada ao teor universal de
“experiência vital e de descobrimento do homem”19. Assim, para Noé Jitrik, existiriam
duas linhas de interpretação de sua obra: uma “historicista”, outra “metafísica”, o que
colocaria em dúvida a significação social de sua literatura. Sem recusar esta sugestão de
maneira abstrata, na verdade tais linhas se cruzam quando adequadamente mediadas,
como realidade e ilusão necessárias. Noutros termos, Quiroga incorpora
sistematicamente tais ilusões individualistas, os mitos da fronteira, como partes
integrais da realidade histórica a analisar. Seus quatro temas principais identificados
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partes o assalto às terras indígenas (somado em algumas regiões à que se desencadeia contra as terras
eclesiásticas); este processo, quem em alguns casos avança junto à expansão de cultivos para o mercado
mundial, em outros se dá perfeitamente separado desta. Seu primeiro motor parece ser então a maior
agressividade de setores frequentemente situados a um nível mais abaixo que os tradicionalmente
dirigentes (aristocracia rural provincial, comerciantes, amiúde mestiços, das cidades pequenas; também
o que se chama agora “índios ricos”, seja porque estes tenham prosperado dentro ou fora da estrutura
comunitária, e em primeiro caso sobre tudo mediante um uso econômico criterioso de sua preeminência
político-social); junto com ela, o que faz mais atrativa a conquista das terras indígenas parece ser, em
uma primeira etapa, a expansão dos mercados locais proporcionados pelas cidades e povoados (...)”
(DONGHI, Tulio Halperin. Historia contemporánea de la América Latina. [Ed. revisada e ampliada:
1996]. Madrid: Alianza, 2005, p. 213).
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Contestando Noé Jitrik, David Viñas e outros críticos, poderíamos dizer que em
vez do “homem” no centro, Quiroga põe a figura histórico-negativa do que ele denomina
“ex hombres”24. A começar pelos rastros por eles deixados após o grande genocídio
indígena sul-americano acima rememorado: índios e peões proletarizados, camponeses
mestiços em desagregação, uma massa de trabalho abstrato concentrada nos rincões do
país, que serve como meio fundamental da acumulação. Seus contos mais atuais, e quase
sempre os melhores, terão a ver com essa substância social: “La insolación”, “A la
deriva”, “Los mensú”, “Los pescadores de viga”, “Un peón”, “Una bofetada”, “Los
precursores”, “Las moscas”. Representam tipicamente os trabalhadores em busca de
sobrevivência e emprego, às vezes sujeitos à mobilidade e à coerção direta (escravidão
por dívidas) como ocorre entre os índios mestiços conhecidos como “mensús”
(<mensualeros>). O mito estilhaçado do pioneiro desdobra-se então na figura negativa
do ex-homem. Como descreve uma autora húngara, com um pé na ideologia, ex-homens
são em geral: “estrangeiros que cortaram amarras com sua vida, ninguém sabe quando
ou por quê” (...) “sobreviventes de si mesmos, oprimidos e despojados de tudo, inclusive
(“Tacuara-Mansión” e “Los destiladores de naranja”), mas permeia todos os textos deste e de outras
coletâneas a partir de sua instalação na província de Misiones.
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de afeto e clemência como João Pedro e Tirafogo, em Los desterrados; pobres indígenas
cujas vidas valem menos que os animais ou as coisas (os bêbados, os mensú), são
escravizados por um trabalho brutal e insalubre e que não conhecem outra norma de
conduta que a submissão à violência, sempre extrema”25. Na verdade, tais traços de
degradação, mobilidade e subordinação típicas do processo de proletarização, ou mais
amplamente, de coisificação e desumanização das relações sociais mercantilizadas,
afetam, em medida desigual, todas as figuras “desterradas” da fronteira, como percebe
mais além a autora: a figura do imigrante europeu ou migrante forasteiro não menos que
a do peão mensú; ou a do criollo típico, incluindo pequenos e médios proprietários
expostos a laços de dependência e assalariamento, mas não menos ainda, poderíamos
acrescentar por nossa conta, o cidadão urbano que termina desdobrado na figura
reificada do grande empresário ou latifundiário, de “olhos sombrios” e mortiços. Ao
redor do conceito pleno do ex-homem, a ideia de fronteira entre a civilização e a barbárie
capitalista atravessa simbolicamente todas as camadas sociais tragadas pelo rolo
compressor do mercado e da divisão social do trabalho. O grupo de ex-homens pode
abranger virtualmente então a classe média, como ex-químicos e ex-engenheiros (de
“Tacuara-Mansión”, “Van-Houten” e “Los destiladores de naranja”), assim como
técnicos e cientistas amadores mais ou menos fracassados (“Los fabricantes de carbón”,
“El mármol inútil”), que testam seus limites na fronteira, até proprietários e pequenos
burgueses que se perdem para o vício, a doença e a neurose, ou são devorados pelo meio
selvagem e por relações coisificadas (“La miel silvestre”, “El almohadón de plumas”, “Los
ojos sombrios”, “La muerte de Isolda”, “El solitário”), passando pela curiosa
metamorfose de um homem em “cão raivoso” (“El perro rabioso”, espécie de releitura da
lenda do lobisomem), ou pelo caso dos filhos oligofrênicos de um casal, tratados
brutalmente como seres selvagens e desprezíveis por ambos os pais, até que nasce Berta,
uma filha normal, que é amada e protegida; certa vez, os “quatro monstros”, imitando a
cozinheira da casa e o tratamento animal que sempre lhes foi dispensado por todos,
matam a pequena Berta qual fosse uma galinha (“La gallina degollada”). Sem esquecer
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26“Uma tal essência [Wesen] é antes de tudo inessência [Unwesen], a organização do mundo que rebaixa
os homens a um meio de seu sese conservare', que amputa e ameaça suas vidas, reproduzindo-as e
fazendo-os acreditar que o mundo seria assim algo para satisfazer suas necessidades. Essa essência
também precisa aparecer exatamente como a hegeliana: mascarada em sua própria contradição. A
essência não pode ser reconhecida senão junto à contradição do ente em relação àquilo que ele afirma
ser”. (ADORNO, Dialética negativa, op. cit., p. 144).
212
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mensú”). Como dito acima, então, em vez do “homem”, o “ex-homem” real, em vez da
“civilização”, a barbárie civilizatória do capital captada no coração da província, em vez
da ideologia do trabalho concreto, a inversão capitalista que potencialmente faz de toda
atividade um meio e um fim em si mesmo da acumulação. Este enquadre trespassa o
próprio fazer artístico: a maquinaria racional de cada conto – em parte imposta pelos
editores, em parte estritamente aceita pelo autor (o espaço restringido em geral a uma
só página de revista, cerca de 1.250 palavras27, moldado por um padrão de relojoeiro
astuto, às vezes vítima da fórmula e da repetição de efeitos e desenlaces) – deve ser lido
como expressão mediada desse mesmo processo social de mercantilização.
Por fim, do ponto de vista da série literária local, ou antes continental, uma
“identidade” dúbia e alienada se cristaliza nesses contos de fronteira: uma espécie de
universal minado pelo peso da particularidade local, que começa a ser levada realmente
a sério na produção literária. O que abriu trilhas e perspectivas dentro da nossa
literatura, fortemente marcada pelo conto curto, realista, prosaico e provinciano – mas
mediado pelo fantástico, o “horror” de uma sociedade sem lei, ou em que a lei é
sistematicamente suspensa por estados de exceção originários da experiência histórica
da colônia28. A conjunção de imperialismo, modernidade e atraso, o cruzamento de
tradição nacional “criolla” ou das frentes pioneiras com os valores modernos
importados, junto às demandas do mercado global, prefigura assim aquela “cultura de
mescla”29 que definiria mais tarde a versatilidade e permeabilidade da cultura argentina
aos influxos externos divisada por Sarlo na geração posterior. Aqui seria interessante
testar uma hipótese: se Quiroga passa além do modernismo inicial (representado pelo
próprio simbolismo neoparnasiano de seu primeiro livro de poemas, Los arrecifes de
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no trabalho nos bananais da região. Nas horas vagas, o indígena costumava roubar toras
nos rios do Alto Paraná lançadas por serrarias, aliás multinacionais inglesas. Assim, após
um acordo com um contador comercial inglês, Mister Hall, ele troca uma enorme viga
de pau-rosa, “pescada” através de um esforço hercúleo, e na verdade suicida, por um...
surrado gramofone e vinte discos de uma música que nada deve lhe significar. O
narrador suspende o juízo, deixando ao leitor a constatação: o inglês sai do negócio com
a percepção do ganho material concretizado em finos móveis da melhor madeira,
enquanto o indígena, seduzido e ludibriado, sai com um velho gadget inútil, suporte
para música estrangeira, aliás, uma “maquininha prodigiosamente barulhenta”32. Nossa
simpatia vai para o lado do ex-homem explorado e enganado, que não foge à palavra
empenhada – mas que não muda um centímetro de sua condição objetiva após a
empreitada e ao cabo de uma vida destroçada, uma “moral” da história que o narrador
ironicamente bota no início do relato:
“Candiyú mora na costa do Paraná há trinta anos e se seu fígado ainda for capaz
de eliminar qualquer coisa depois do último ataque de febre em dezembro
passado, deve viver ainda mais alguns meses. Ele passa agora os dias sentado em
seu catre de varas, com o chapéu posto. Apenas suas mãos, lívidas garras sulcadas
de verde que pendem imensas dos pulsos, como projetadas em primeiro plano
numa fotografia, se movem monotonamente sem parar, com um tremor de
papagaio depenado”33.
32 QUIROGA, “Los pescadores de vigas” in: __. Cuentos, op. cit., p. 134; Idem, “Os pescadores de vigas”
in:__. Contos de amor, de loucura e de morte, trad. cit., p. 192.
33 Ibidem, p. 135; ibidem, trad. cit., p. 192.
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santa... talvez quinta..., e morre repentinamente). O corte, a ironia sutil, a ponta de uma
cruel objetividade em que o escritor logo iria se especializar nos indica que: “O homem
que ia nela [na canoa] se sentia cada vez melhor, pensando no tempo que havia passado
sem ver seu ex-patrão Dougald. Três anos? Talvez não tanto. Dois anos e nove meses?
Talvez. Oito meses e meio. Isso sim, com certeza.” 34 Eis quanto dura a independência e
o sentimento de bem-estar dos pobres nessa deriva pelos domínios do capital
monopolista – a verdadeira selva social oculta no texto. E aqui novamente entra o
detalhe crítico da forma: o comentário irônico, a revelação cruel nos últimos momentos,
o corte brusco e a inversão de perspectivas representam a crítica do mito do
empreendedor. Onde o romantismo ou o anarquismo aristocrático, portanto? Na
aparência pode ser que sim, mas como analisa Rama, face à inexistência do mito do self
made man nas fronteiras latino-americanas, “impõe reconhecer a força constritiva que
no Sul exerceu a oligarquia proprietária de terras, paralisando o esforço democratizado
que no Norte cumpriram os pioneiros sedentos de terras. A ‘conquista do deserto’ na
Argentina segue de perto à ‘conquista do Oeste’ nos Estados Unidos, mas a primeira é
levada a cabo pelo exército e a oligarquia, enquanto que a segunda concedeu uma ampla
parte aos esforços dos imigrantes, aos que teve de recompensar com propriedades”35.
Exatamente este é o sentido mais geral de um de seus “cuentos de monte”36 mais
famosos e paradigmáticos: “La insolación” (publicado em 1908, em Caras y caretas).
Aqui temos a prova maior dessa linha de enredo antimítica. Nele, outro proprietário
inglês ocioso e bebedor de uísque, Mister Jones, falece ao substituir seu peão, enviado
para a compra de um parafuso numa madeireira próxima, na verdade ao repetir o
percurso do peão e seu cavalo até a madeireira mais o retorno ao rancho sob um sol
abrasante no clima semiárido. Horas antes da fatalidade, o cavalo também caíra morto
de extenuação por ter sido forçado pelo peão a galopar, decerto com pressa pois ele
34 Idem, “A la deriva” in:__. Cuentos, op. cit., p.108; trad. “À deriva” in: __. Contos de amor, de loucura
e de morte, op. cit., p. 136, grifos nossos.
35 RAMA, La ciudad letrada, op. cit., p. 64.
36 Em Quiroga, o monte refere-se em geral à zona de bosques na fronteira rural mais desabitada. Mais
especificamente, o monte é uma região biogeográfica particular da Argentina, que se alastra para o sul e
sudoeste, caracterizada pelo clima semiárido e por um bioma de transição entre o chaco e os campos
cerrados, com bosques de mata densa, seca, fechada e escura, formada por plantas xeromórficas e
arbustivas, geralmente localizada em médias altitudes. Limite da penetração humana, é às vezes aberto
por roçados recentes através de queimadas, como vemos em “La insolación”, “La miel silvestre”, “El
hombre muerto” e “Las moscas”.
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também castigado pela insolação durante uma estiagem insuportável do Chaco e, o que
não é dito, pelo trabalho extenuante na monocultura do algodão – condições não
obstante suportadas diariamente pelos peões e os animais sem reclamação, ou como diz
o texto, “com o mutismo de seus trabalhos de lavoura”, executados numa “paisagem
silenciosa e ofuscante do sol”37. O senhor estava insatisfeito com o trabalho realizado;
assim, toma sua máquina carpinadeira em mãos, junge-a às mulas e trabalha até as nove,
mas constata que as lâminas estão cegas e soltas, pois o parafuso quebrara. Dá então as
ordens de compra de um novo. Apesar da recomendação contrária do patrão, o peão
forçara o galope e matara o cavalo de cansaço, sem conseguir trazer o parafuso
necessário para a máquina. O proprietário aparece gritando e pedindo o parafuso, mas,
como é plausível, “não havia parafuso, o depósito estava fechado, o encarregado estava
dormindo etc.” “Sem replicar”, tira o chapéu e vai ele mesmo em busca da peça, que é
por fim obtida. Nesse momento, Mister Jones encarna a razão, enquanto o peão é só
“jesuíticas desculpas” (“Culpólo com toda su lógica racional, a lo que el otro respondía
con evasivas”38). O imigrante inglês aparece ilusoriamente então como modelo de
trabalho racional, previdência, eficácia e moralidade, enquanto o peão nacional aparece
como um cretino, displicente, inepto e malandro. Na prática, porém, o conto demonstra
justamente o contrário: pastos abertos e campos lavrados em série, uma propriedade
trabalhada o ano inteiro pelos peões, que criam animais, aram a terra, plantam e
capinam manualmente os pés de algodão mesmo sob a seca e o calor mais intensos,
enquanto Mr. Jones dorme, levanta tarde, almoça, vigia o trabalho alheio e goza seguidas
noitadas de uísque39. Sua pequena participação nas tarefas é mediada pela máquina e as
mulas. À “alma pensativa” do leitor, guiada pelo olhar dos cães e convocada logo no início
37 “En el paisaje silencioso y encegueciente de sol, el aire vibraba a todos lados, dañando la vista. La tierra
removida exhalaba vaho de horno, que los peones soportaban sobre la cabeza, envuelta hasta las orejas
en el flotante pañuelo, con el mutismo de sus trabajos de chacra” (QUIROGA, “Insolación” in:__.
Cuentos, op. cit., p. 51; “Insolação” in: __. Contos de amor, de loucura e de morte, trad. cit., p.140).
38 Idem, ibidem, p. 53; frase faltante na tradução citada, cf. ibid., p. 143.
39 Sinta-se o ritmo binário e as tensões desse trecho no original: “El día avanzaba igual a los precedentes
de todo ese mes; seco, límpido, con catorce horas de sol calcinante que parecía mantener el cielo en
fusión, y que en un instante resquebrajaba la tierra mojada en costras blanquecinas. Míster Jones fue a
la chacra, miró el trabajo del día anterior y retorno al rancho. En toda esa mañana no hizo nada. Almorzó
y subió a dormir la siesta.// Los peones volvieron a las dos a la carpición, no obstante la hora de fuego,
pues los yuyos no dejaban el algodonal. Tras ellos fueron los perros, muy amigos del cultivo, desde que
el invierno pasado hubieran aprendido a disputar a los halcones los gusanos blancos que levantaba el
arado. Cada uno se echó bajo un algodonero, acompañando con su jadeo los golpes sordos de la azada.”
(Idem, ibidem, p.50-1; trad. cit., p. 139).
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do texto sob o céu límpido do Chaco, ficava o aviso sobre “as melancolias de um trabalho
melhor recompensado”40.
Mas a luz transbordante do sol apresenta outra coisa, de fato, no final, numa
espécie de segunda negação determinada, que repõe a primeira negação41: o proprietário
capitalista encarna simbolicamente a morte. Na conversa dos cães, que avistam Jones
vestido de branco, evanescente, estabelece-se a ambivalência da figura como uma
espécie de duplo fantasmagórico: “é o patrão”, “não é ele, é a Morte”, “é o patrão
morto?”42. No desfecho, contudo, o patrão caminha e é confirmado como um
“autômato”, um Doppelgänger idêntico à morte: “a Morte, a Morte!”, uiva o cão Old43.
Note-se que desde o início ele surge à luz, após as noitadas de uísque, com uma “mirada
muerta y el lábio pendente”44. E é a partir dele que a morte se espalha pelo conto. Eis
como se esclarece esta alegoria da “Morte”, que ao invés de uma entidade metafísica,
externa e independente, aparece encarnada ou duplicada na imagem do próprio Mister
Jones tal como visualizada pelos cães – que no texto, então, têm a função de transmitir
essa visão imanente da morte ao leitor, como centros refletores, auxiliares do ponto de
vista do narrador onisciente. Assim, o sobrenatural ganha o centro de referência do
conto, constitui o próprio ponto de vista que funda o real, mas assumindo contornos
histórico-sociais muito precisos quando lido nesta chave crítica. Mister Jones, a
personificação do Capital, é a cegueira da razão autoconservadora45, o rastro da morte
social que se difunde pelo campo como segunda natureza, a verdadeira insolação
ofuscante. Obcecado por sua meta, apenas no retorno ele “se convence de que tinha
ultrapassado seu limite de resistência”, e sua cabeça passa a flutuar, entrando em
vertigens e ausências sob a pressão alta, em que deve pesar o álcool remanescente no
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corpo após a noitada solitária. Como figuras do limite entre o homem e a matéria
inorgânica, os cães (assemelhados à posição subordinada dos peões), que já sentiam o
menor cheiro da embriaguez do amo, agora enxergam a presença da Morte. Ela surge
em cadeia: a visão do fantasma de Jones prenuncia a morte do cavalo; o cavalo morto
pelo trabalho excessivo prenuncia a morte do Jones real quando este precisamente
assume a máscara e as tarefas do trabalhador; mortes que então assombram os próprios
cães, principalmente após a rápida liquidação da fazenda pelo irmão do proprietário, e
que se religam, finalmente, ao destino dos peões – que podem ser agora declarados o
que realmente são: “índios”46. Nesse ritmo de liquidação geral tocado pelo poder do
dinheiro, para esses peões o fantasma da morte significa simbólica e concretamente
tanto o desreconhecimento de seu trabalho, sua cultura e etnia pelos proprietários, como
assinala as consequências gerais da mercantilização, da divisão do trabalho e do
antagonismo de classes, vividos na imediaticidade como sofrimento corporal
diariamente suportado em silêncio até a morte. Morte que já se impunha com o trabalho
e agora se avizinha com o desemprego. Numa sentença: tal fantasmagoria social revela
algo sobre a morte diária por eles realmente vivida nesta paisagem calcinante em que se
acumula trabalho morto, ao mesmo tempo opaco e resplandecente, oferecido e ocultado
à vista desde a abertura do texto, em que a fazenda é localizada na... “monótona llanura
del Chaco, con sus alternativas de campo y monte, monte y campo, sin más cor que el
crema del pasto y el negro del monte”, que “cerraba el horizonte” 47. Insolación trata
assim da invisibilidade do processo de exploração e dominação social do trabalhador
indígena. Com isso, o mito heroico do pioneiro ou do trabalhador venturoso é
literalmente enterrado, ao mesmo tempo que retraduzido na linguagem mística do
fetichismo moderno, como ilusão real da autovalorização do capital. Um conto
extraordinário, portanto, inigualável à época de sua publicação, com que poucos ou
apenas a literatura do próprio Quiroga poderiam emparelhar. Aliás, valeria perguntar: a
46 O corte brusco no final, forma quiroguiana já examinada, aparece como uma lâmina mortífera vinda da
cidade: “Mister Moore, seu irmão materno, viajou de Buenos Aires até lá, ficou uma hora na chácara, e
em quatro dias liquidou tudo, voltando em seguida para o sul. Os índios repartiram entre eles os
cachorros, que passaram a viver magros e sarnentos e iam todas as noites, com faminto sigilo, roubar
espigas de milho nas plantações alheias” (QUIROGA, ibid., p.55; trad. emendada, p. 146, grifo meu).
47 Idem, p. 49; trad., cit., p. 137.
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poesia desse conto não suspende e conserva o modernismo da primeira fase do autor,
elevando-a/os a outro patamar?
**
Para fechar o tópico, vejamos rapidamente os contos sobre os mensús. Dois deles,
ao contrário do que os críticos citados disseram, tratam de sua resistência à exploração.
Em “Una bofetada”, o indígena se vinga da humilhação e da bofetada recebida do patrão
em grande estilo senhorial – e por isso mesmo da forma mais cruel depois de cozinhar
as chicotadas de sua represália em fogo brando: prova de identidade de caráter e
memória histórica, mas também de impotência para resolver a questão politicamente,
como classe. Em “Los precursores” (1929), é esta questão da organização da classe que é
retratada de um ponto de vista histórico (a criação do sindicato de trabalhadores do
campo da erva-mate), através de um foco narrativo totalmente imanente, na voz de um
mensú semiletrado, que conversa com um “patrão” (e algo desse modelo repercutirá
mais tarde, da prosa de Rulfo à de Rosa). A organização sindical incipiente promove uma
greve, mas esbarra em confusões e fortes obstáculos sociais e culturais: a greve é
abortada após o assassinato acidental de um capataz, vem a repressão, as empresas
deixam de empregar peões sindicalizados e tudo se fragmenta novamente. O interesse
do texto, contudo, é o registro do movimento dessa perspectiva imanente dos de baixo,
de quem enfrenta as circunstâncias reais, na esteira do espírito social em devir nos anos
20, após a revolução russa. As inversões dialéticas são uma especialidade de Quiroga:
“Ahora a vos te parece raro, patrón, que un bolichero fuera el jefe del movimiento, y que
los gritos de un tuerto medio borracho hayan despertado la conciencia. Pero en aquel
entonces los muchachos estábamos como borrachos con el primer trago de justicia” 48.
No fundo, o conto insiste que o marco civilizatório da organização social e do direito
trabalhista mínimo não pode se dar senão pela implicação política de todos os sem parte,
“los más bárbaros”49, jamais tolerados pela consciência racista prevalecente, ao mesmo
tempo em que aponta a precariedade dessa luta.
Em “Los mensú” (1914), a perspectiva é a da alienação do trabalho. Por um lado,
temos a vida sacrificada dos mensú no trabalho nas madeireiras (obrajes) das serras de
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Misiones, em que são tratados como potenciais escravos por dívida, sujeitos a
perseguições e ameaças de morte; experiência contrastada, por outro lado, pelos raros
dias de liberdade e consumo hedonista na cidade ribeirinha de Posadas. O ponto de vista
moral do narrador, entre o aristocrático e o burguês, cobra postura e certo conformismo
dos protagonistas (Cayé e Podeley), mas dá leve sinal de construir a gênese de seu caráter
heterônomo e submisso através da dominação prática do trabalho alienado e autoritário,
e não por qualquer moral “fraca” própria ao indígena. O dito “fatalismo indígena” que
submete as personagens à humilhação e à superexploração, por exemplo o “aumento
crescente do preço das provisões” compradas no armazém da empresa ou centros
monopolistas exploradores, é contrapesado por uma afirmação de dignidade contida
nesse mesmo processo de alienação: “o mesmo fatalismo que aceitava isso com um anhá!
e um olhar risonho para os demais companheiros lhe ditava, em elementar desagravo, o
dever de fugir da madeireira assim que pudesse”50.
No limite, a perspectiva ético-política da enunciação se inverte, apontando-se o
campo dos proprietários como o responsável pela perpetuação do infortúnio e da
degradação moral, principalmente os que comandam através da violência pessoal: “o
capataz olhou aquela ruína e não deu grande valor à vida que resta em seu peão” (...) “e
o capataz preferia um homem morto a um devedor distante” 51; por seu turno, o
trabalhador “Podeley nunca deixou de cumprir nada, única altivez que um mensú se
permite diante de seu patrão”52. O capitalista leva a justiça do contrato firmado com seus
trabalhadores até sua inversão em injustiça e execução do contratado, o “extremo final”
do des-reconhecimento como luta de morte53; os capatazes perseguem os fugitivos da
madeireira aos tiros, como verdadeiros animais de trabalho e seres extermináveis, em
boa medida para dar o exemplo aos trabalhadores que ficam. Ninguém deixa de pagar
suas dívidas ali impunemente: a administração terrorista do trabalho é decorrência da
fronteira aberta: terra abundante e vazio demográfico significam escassez de um
“proletariado livre como os pássaros”54. Em primeiro lugar, como indicamos acima,
50 QUIROGA, “Los mensú” in:__. Cuentos, op. cit., p. 159; trad. cit.: “Os mensú” in: __. Contos de amor,
de loucura e de morte, op. cit., p. 167, grifos nossos’1’’.
51 Ibidem, p. 161-2; Trad. cit., p. 170.
52 Ibidem, p. 162; trad. cit., p. 171.
53 Ibidem, p. 159, trad. cit., p.167.
54 MARX, Karl. O Capital. (Crítica da economia política). São Paulo: Nova Cultural, 1996, Livro I, tomo 2,
p. 355.
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mesmíssima coisa acontecera da primeira vez em que eles desceram a Posadas, no início
do conto (“Pouco depois, estavam ébrios e com novo contrato fechado”58). Além disso,
quem nos assegura que desta vez Cayé não será morto quando retornar ao trabalho,
encontrando os mesmos patrões que o condenaram à morte? Por isso, ele chora e
reclama ao capitão do barco que o resgatou: “vão me matar!”59. Seu destino é as moscas.
Nessa tensão de vozes acolhida pelo narrador, que não cede nas críticas para ambos os
lados, Quiroga atinge um dos pontos máximos dentro de seus parâmetros artísticos.
AS MOSCAS
(Réplica de “O homem morto”)
Horacio Quiroga
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folhas da porta escapa em fuga uma tropilha de potros brancos, enquanto por
outra entra correndo uma teoria de homens decapitados.
Quero fechar os olhos e já não o consigo. Vejo agora um pequeno quarto de
hospital, onde quatro médicos amigos se empenham em convencer-me de que
não vou morrer. Eu os observo em silêncio, e eles começam a rir, pois seguem o
meu pensamento.
– Então – diz um deles – não lhe resta mais nenhuma prova de convicção
que a jaulinha de moscas. Eu tenho uma.
– Moscas?...
– Sim – responde –; moscas verdes de rastreio. Você sabe que as moscas
verdes cheiram a decomposição da carne muito antes do falecimento do sujeito.
O paciente ainda vivo, elas acodem, seguras de sua presa. Voam sobre ela sem
pressa, mas sem perdê-lo de vista, pois já cheiram sua morte. É o meio mais eficaz
de prognóstico que se conhece. Por isso eu tenho algumas selecionadas, de olfato
apuradíssimo, que podem ser alugadas por um preço módico. Onde entram, presa
segura. Posso colocá-las no corredor quando você ficar sozinho, e abrir a porta da
jaulinha que, diga-se de passagem, é um pequeno ataúde. A você não resta mais
trabalho que virar o olho da fechadura. Se uma mosca entra e você a ouve zumbir,
esteja seguro de que as outras acharão também o caminho até você. Alugo-as por
um preço módico.
Hospital?... Subitamente o quartinho branco, o armário de primeiros
socorros, os médicos e sua risada se desvanecem em um zumbido...
E bruscamente, também, se faz para mim a revelação: as moscas!
São elas que zumbem. Desde que caí acudiram sem demora. Amodorradas
no monte pelo hábito do fogo, as moscas tomaram, não sei como, conhecimento
de uma presa segura em sua vizinhança.
Farejaram a iminente decomposição do homem sentado, por
características inapreciáveis para nós – talvez através da exalação da carne da
medula espinhal cortada. Acudiram sem demora e revoam sem pressa, medindo
com os olhos as proporções do ninho que a sorte acaba de inesperadamente criar
para seus ovos.
O médico tinha razão. Seu ofício não pode ser mais lucrativo.
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Mas eis aqui que esta ânsia desesperada de resistir se aplaca e cede o passo
a uma beata imponderabilidade. Não me sinto já um ponto fixo na terra, arraigado
a ela por gravíssima tortura. Sinto que flui de mim, como a própria vida, a leveza
do vapor ambiente, a luz do sol, a fecundidade da hora. Livre do espaço e do
tempo, posso ir aqui, acolá, a esta árvore, àquela liana. Posso ver já muito distante,
como uma lembrança de existência remota, mas ainda posso ver, ao pé de um
tronco, um boneco de olhos que não piscam, um espantalho de olhar vítreo e
pernas rígidas. Do seio desta expansão, que o sol dilata esmiuçando minha
consciência em um bilhão de partículas, posso me levantar e voar, voar...
E voo e pouso com minhas companheiras sobre o tronco caído, sob os raios
do sol que emprestam seu fogo à nossa obra de renovação vital.
61 Um de nossos melhores críticos interpretou-o e apontou sua importância ainda no início dos anos 70.
(ARRIGUCCI JR., op. cit., p. 145-148).
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62QUIROGA, Horacio. “El hombre muerto” in:__. Cuentos, op. cit., p. 258 e ss. Uma tradução desse conto
foi publicada como “Homem morto”, por Liege Karyj, em:
https://www.recantodasletras.com.br/contosdesuspense/4736351 (Acesso em 04/03/2019).
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“pelo próprio valor de troca”63. Desse modo, com a chegada das moscas vindas do bosque
e a respeito da proposta macabra feita pelo médico ao doente moribundo, que ao invés
de socorrê-lo quer lhe alugar moscas verdes que apenas confirmam a morte –, o narrador
vaticina sarcasticamente: “O médico tinha razão. Seu ofício não pode ser mais lucrativo”!
Daqui surge a terceira perspectiva, que metamorfoseia a morte abjeta em meio às moscas
na perspectiva de uma falsa reconciliação com a natureza.
A tensão dos pontos de vista introduz assim um jogo de contrastes, que codifica
os antagonismos sociais da sociedade das mercadorias. Mas que aparecem
transfigurados por um olhar mítico, de falsa transcendência. Assim, o preparo do roçado
através das queimadas do bosque, como o falso trabalho do médico empulhador,
transforma-se em puro nada, ou antes, em “trabalho” natural do sol e das moscas na
cena final (como “nossa obra de renovação vital”) incorporado à fertilidade da
propriedade. Da mesma maneira, à paralisia e à “gravíssima tortura psicológica” sofrida
pelo trabalhador moribundo corresponde, de maneira mágica e evanescente, a “beata
imponderabilidade” da mosca, em seu voo “livre do espaço e do tempo”.
A comparação incomum entre o homem e a árvore caídos tem outro sentido, se
voltarmos ao início. Mas desta vez negativo, desintegrando o mito naturalista do final.
No páramo forrado de cinzas nos são apresentados de chofre e sem véus os resultados
finais do sobretrabalho no campo: degradação da natureza e degradação do homem, este
prestes a se reconhecer como “ex-homem” proletarizado, a certa altura criticamente
nomeado no texto. Homem não casualmente “esquecido” por alguém, mas ser
vulnerável, isolado como mônada abstrata de trabalho “livre” e já sem valor, como a
árvore derrubada, incendiada e abandonada às intempéries.
Por fim, além das interversões do vivo em morto, do trabalho em capital e do
capital em simples “natureza”, enquanto o trabalhador vive/morre como mosca, a
dramatização da consciência alucinada à espera da morte torna-se o centro da fantasia
desenhada pelo conto, que serve como tela de defesa para esse real abjeto, o de uma
degradação total do sujeito a pequeno objeto excrementício do Outro64. No primeiro
63 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. 2ª
ed. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 52 e 227.
64 Como lembra Freud, “[d]esejos insatisfeitos são as forças impulsionadoras das fantasias e toda fantasia
individual é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória”. Além disso, “uma
fantasia paira entre três tempos, os três momentos temporais de nossa imaginação. O trabalho psíquico
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tempo da encenação imaginária, tudo surge como um devaneio positivo, em que desejos
de fuga (uma tropa de cavalos brancos), amparo e proteção (médicos, hospital) desviam
a mente desse sumo horror da insignificância humana. Mas a cena, na verdade, tem seu
lugar num mercado marroquino. Ou seja, um mercado, a imagem-sede da alienação
moderna, na realidade um zouk marroquino, situado na fronteira da civilização
ocidental, por cujas portas sai correndo uma tropilha de potros brancos, como dito,
enquanto “entra correndo uma teoria de homens decapitados”. Uma referência cifrada
aos médicos, talvez, que logo adentram no recinto dessa fantasia, bem como a suas
teorias de cunho naturalista – inúteis e sem pé nem cabeça, que apenas duplicam a
aflição do homem.
O devaneio inverte-se então numa lúcida reflexão crítica (“Quero fechar os olhos
e já não o consigo”). Tal seria a verdade desse desejo captado na tela de uma fantasia
social em que diversos tempos e espaços se misturam de modo ambivalente: um corpo
que cai e sente a própria impotência, um desejo perverso que vem do Outro
(corporificado pelo médico), cuja história, como vimos ao longo do ensaio, desfila na
construção prototípica de um mundo neocolonial marcado pelo signo da exploração, da
violência e da morte, que tende a reduzir os sujeitos a trabalhadores servis e meros
instrumento de gozo alheio – um mero “boneco” ou “espantalho de olhos vítreos e pernas
rígidas” ao final –, aparecendo reforçado no conto através de uma Voz cruel e obscena
do narrador onisciente, supostamente “neutro”, uma espécie de Supereu ambivalente65,
acopla a uma impressão atual, a oportunidade no presente, capaz de despertar um dos grandes desejos
da pessoa; remonta a partir daí à lembrança de uma vivência antiga, na sua maioria uma vivência
infantil, na qual aquele desejo foi realizado e cria então uma situação ligada ao futuro, que se apresenta
como a realização daquele desejo, seja no sonho diurno, seja na fantasia, que traz consigo os traços de
sua gênese naquela oportunidade e naquela lembrança” (FREUD, Sigmund. “O poeta e o fantasiar”
[1908] in: __. Arte, literatura e os artistas. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 57-8). Lacan lembra que
“[é] em relação ao real que funciona o plano da fantasia. O real suporta a fantasia, e a fantasia protege o
real.” (LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 43-4).
65 Freud indica no humor traços ambivalentes de um “triunfo do narcisismo” e “do princípio do prazer”,
em que o Eu afirmaria sua invulnerabilidade, “teimando que os traumas do mundo exterior não podem
o afligir”; mas também de traço consolador e educativo que se ligaria ao Supereu (como herdeiro da
instância paterna), cf. FREUD, S. “O humor” [1927] in: __. Arte, literatura e os artistas, op. cit., p.273-
81. Sobre a mudança para um “Supereu pré-edipiano”, com suas injunções perversas, como imagem de
um “grande Outro fora da lei que exerce o que podemos chamar de um despotismo benévolo”, ver:
ŽIŽEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem – O sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro: Zahar,
1992, p.72. Nessa linha, ver também os artigos do mesmo autor: “Entre a ficção simbólica e o espectro
fantasmático: rumo a uma teoria lacaniana da ideologia” e “Revisando a crítica social ‘lacaniana’: a Lei e
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que brinca e redime ironicamente essa vida lesada na fronteira com a benção do ciclo
histórico-natural capitalista. Mas tudo isso devendo ser lido a um só tempo sob a
perspectiva da morte simbólica e da castração desse Outro violento da fronteira, ao fim
de uma travessia desse fantasma decapitado: pois também sob esse “sol [que] dilata
esmiuçando minha consciência em um bilhão de partículas, posso me levantar e voar,
voar....”.
Algo então se ergue, alça voo, se dilata e ganha a força do pensamento e a
perspectiva de uma totalidade histórica. O “poder mágico que converte o negativo em
ser”, lembraria Hegel, é o mesmo que determina a “verdade como resultado”. Mas como
converter um todo subdesenvolvido e quebrado “em [um] ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-
mesmo”66?
seu duplo obsceno” in: ŽIŽEK, Slavoj. Interrogando o real (Org. Rex Butler e Scott Stephens). Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.
66 HEGEL, Georg W.F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 1992, Parte I, §§ 32 e 19.
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Thiago Canettieri
Freud pode nos mostrar como uma política realmente emancipatória, de certa
forma, funda-se na capacidade de fazer circular socialmente a experiência de
desamparo e sua violência específica, e não de construir fantasias que nos
defendam dela2
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3 FREUD, Sigmund. “Inibições, sintomas e ansiedade”. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 20). Rio de Janeiro: Imago, 1976.
4 LACAN, Jacques. Seminário X: A angústia (1962-1963. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
5 SAFATLE, Vladimir. Grande Hotel Abismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
6 ADORNO, Theodor. “A astúcia da dialética”. Caderno Mais, 31 ago. 2003. p. 6.
7 ZIZEK, Slavoj. Vivendo no fim dos tempos. São Paulo: Boitempo, 2012.
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8 DANTAS, Daniel; TUPINAMBÁ, Gabriel. 2015. “O analista cobra, o paciente paga e a economia política
dá o troco”. Lacuna – Revista de Psicanálise, n.0, n.1, p.8.
99 Idem.
10 Apud BOYTON, Robert. “Enjoy your Zizek”. Lacanian ink, n.26, 2001, s/p.
11 ADORNO, Theodor. “A astúcia da dialética”, op. cit., p. 7.
12 Cf. NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaios sobre as alternativas para a modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A., 1992. NEGRI, Antonio. Kairòs, Alma, Vênus, Multitudo: nove lições ensinadas a mim
mesmo. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
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produzida pelo objeto perdido poderia ser suplementada em sua integralidade pela
construção de um objeto substituto a ocupar seu lugar. Um mundo de balcão de trocas
sem prazo de vencimento.”13 Freud estava ciente de que não se trata simplesmente de
substituição e que o desamparo que a perda de um objeto produz não é simplesmente
revertida e reorientada a outro “Por isto, vincular o luto a uma operação de esquecimento
seria elevar a lobotomia ao ideal de vida”14. O que ocorre no luto é uma operação que
deve lidar exatamente com o desamparo gerado, diretamente, sem nada evanescente
para mediar essa relação. E, se a lobotomia não ocorre e a memória não é enxotada no
processo de luto, seu significado só pode ser o oposto: uma rememoração do que foi
perdido. Uma rememoração das derrotas. É o que destaca Brecht em seu poema Aos que
vierem depois de nós [An die Nachgeborenen], no qual Benjamin15 adiciona o
comentário: “Pedimos àqueles que vierem depois de nós não a gratidão por nossas
vitórias, mas a rememoração de nossas derrotas.”
Portanto, é nesse sumo breu que temos que agir. Não existe nada fora dele e falta-
nos luz para entender o monstruoso movimento do desastre que não deixa de ocorrer,
se reinscrevendo constantemente no corpo social e se aperfeiçoando ao mesmo tempo
que desenha seus limites, criando um constante estado de crise.
13 SAFATLE, Vladimir. “O trabalho do impróprio e os afetos da flexibilização”. Veritas, Porto Alegre, v.60,
n.1, p.41, 2015.
14 Idem, p.42.
15 Apud LOWY, Michel. 2005. Aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005, p.134.
16 BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In: __. Magia e técnica, arte e política. Ensaios
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A psicanálise já estava bem ciente que o movimento de gerar uma outra forma de
vida só é possível quando a anterior perecer, em um movimento de destruição. E a
angústia é o sintoma deste processo. O movimento que a angústia permite fazer é
exatamente aquele que Butler18 descreve o processo, próprio da angústia, de desejar o
fim de sua existência social:
“O que significaria para o sujeito desejar outra coisa que não sua existência social
continuada? Se essa existência não pode ser desfeita sem cair em uma espécie de
morte, a existência pode ser posta em risco, a morte pode ser cortejada ou
perseguida, de modo a se expor e abrir à transformação o poder social sobre as
condições de persistência da vida? O sujeito é compelido a repetir as normas pelas
quais é produzido, mas a repetição estabelece um domínio de risco, pois, se não
consegue restabelecer a norma de “modo correto”, fica-se sujeito a sanções
ulteriores, veem-se ameaçadas as condições prevalentes de existência. E, no entanto,
sem uma repetição que ponha em risco a própria vida – em sua organização presente
-, como podemos começar a pensar a contingência dessa organização e reconfigurar
performativamente os contornos das condições de vida?”
É por isso que Žižek19 ao comentar o trabalho de Butler indica que é exatamente
por esse motivo que a pulsão de morte freudiana indica a forma mais elementar do ato
ético. É esse o pano de fundo sob o qual a existência social, chegada ao seu limite, deve
encontrar uma resposta que dê conta de sua angústia, organizando e reconfigurando os
contornos nos quais se insere a própria reprodução da vida.
Dessa forma, o afeto da crítica deve ser responsável por desamparar os sujeitos,
criando o sentimento de despossessão e de absorção de contingências, que atua como
um afeto que despossui os predicados que identificam o sujeito20.
17 Idem, p.225.
18 BUTLER, Judith. 1997. The psychic life of power. Standford: Standford University Press, p.28.
19 ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo: o centro ausência da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016,
p.282.
20 SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos, op. cit., p.26.
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atos, sempre os mesmos agentes e que tem, como resultado, sempre os mesmos sujeitos.
Para mudar é necessário assumir essa impotência exatamente como movimento. O
desamparo produz corpos em errância que, desprovidos de sua capacidade de
estabilizar, são obrigados a se reconfigurarem a partir de outras bases que não aquelas
que faziam parte do seu processo de inscrição em uma totalidade21.
21 Idem, p.27.
22 MARX, Karl. Obras escolhidas. Livro I. Lisboa: Avante, 1982.
23 RANCIÈRE, Jacques. “O dissenso”. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. Rio de Janeiro:
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Assim como o caso deste psicanalista, a crítica não deve estar as voltas em oferecer
respostas para o mundo presentes ou buscar possibilidades alternativas no futuro ou no
passado. Tudo isso, para usar a expressão do próprio Slavoj Zizek é uma ilusão
fetichista26. A verdadeira tarefa da crítica é reconhecer que não existe saída. Nosso
personagem tentava parar sem sucesso, o que lhe causava culpa, mas essa culpa era
experimentada com um excesso de satisfação narcísica. Não é o mesmo que parte da
crítica de hoje, voltada para os processos constituintes faz? Ao mudar a estratégia, o
psicanalista de Zeno desfez esse excesso, e, em total desespero – e não como uma grande
decisão – Zeno para de fumar.
238
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Daniel Cunha
Por mais que ocasione rejeição ou mesmo repulsa de uma parte significativa da
população brasileira, a ascensão de Jair Bolsonaro representa aquilo que Max Weber
chamou de liderança carismática. Em sua caracterização do carisma e do carismático,
diz Weber que
Bolsonaro, que é ovacionado por seus apoiadores como sendo nada menos do que
um “mito”, encontra-se aqui. O apoio de evangélicos e de figuras iniciadas no misticismo
(Olavo de Carvalho, cujo livro foi posto sobre a mesa no discurso da vitória), aliado à
facada e subsequente “ressurreição” confere mais substância a essa caracterização. Com
efeito, Bolsonaro não está sozinho aqui: ele faz parte de uma “onda” trans-nacional que
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inclui figuras “endiabradas” como Trump e Duterte, mas também o papa como
derradeiro “herói” de uma esquerda carente de referências.
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Apesar da sua aversão a qualquer tipo de lógica histórica, Weber oferece algumas
indicações sobre as condições para a emergência do carisma ou da liderança carismática:
“O carisma pode ser uma transformação com ponto de partida íntimo, a qual,
nascida de miséria ou entusiasmo, significa uma modificação da direção da
consciência e das ações, com orientação totalmente nova de todas as atitudes
diante de todas as formas de vida e diante do ‘mundo’, em geral” (Weber 2000,
161)
“Todas as necessidades extraordinárias, ou seja, aqueles que transcendem a
esfera das rotinas econômicas cotidianas, sempre foram satisfeitas de maneira
inteiramente heterogênea: sobre uma base carismática. Quanto mais
retrocedemos na história, mais fortemente se aplica essa afirmação” (Weber
1968, 1111; tradução minha)
Estado e alienação
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É notável que a noção de inversão real de sujeito e objeto já está presente. Ela também
aparece como: “Esse Estado e essa sociedade produzem a religião, uma consciência
243
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido.”; “A realidade da ideia ética
aparece, aqui, como a religião da propriedade privada” (Marx 2010a, 118, 145)
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245
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Now I found you, it’s almost too late. And this Earth seems
obliviating (…) I’m so empty here without you. (…) I know
it’s the last day on Earth.
De todo modo, a superação da alienação não poderia ser levada a cabo com líderes
carismáticos que tomam a maquinaria estatal (isso sempre significou a restauração da
alienação), mas com a forma política que dissolve a “vida comunal ilusória” e institui
uma “comunidade substantiva”. A Comuna de Paris foi, por assim dizer, “prematura”; as
forças de produção ainda não estavam prontas para a “liberdade plena”. Porém, hoje a
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À medida que as “expectativas decrescentes” se tornam cada vez mais claras para
os “trabalhadores sem trabalho”, as suas formas se multiplicam: Trump, Estado
Islâmico, jihadismo, amok ocidental, o papa como mais novo herói da esquerda, o
ressurgimento pós-moderno da Ku Klux Klan, neonacionalismo, ressurgimento de
teorias conspiratória antissemitas e política identitária excludente em geral são
expressões do mesmo desamparo, a mesma expressão pervertida e violenta da
“aspiração de uma vida de bela e serena” que não encontra uma forma adequada de
expressão. Um projeto alternativo e emancipatório não centraria o foco no Estado e no
trabalho – tomada do Estado, “direito ao trabalho” – mas no seu oposto: na dissolução
da “comunidade ilusória” através da instituição de uma vida comunal substantiva, na
dissolução do “trabalho” – como esfera cindida da vida social dedicada à valorização do
valor, em oposição às demais esferas – no fluxo geral da “atividade vital”.
A tese que apresentei pode ser resumida assim: o “pêndulo” que oscila entre
carisma e rotinização burocrática é historicamente específico do desenvolvimento
histórico alienado da modernidade; nisso, o carisma é o estado de emergência da
alienação. O próprio quadro de referência do pêndulo, a “trajetória da produção”, atinge
agora os seus limites. A explosão de carisma atual é o último estado de emergência da
modernidade, o que chamo de “carisma apocalíptico”. Dessa vez, com Bolsonaro ou
qualquer outro, o carisma não será capaz de restaurar a rotina sobre a mesma base da
valorização do valor, apesar dos nostálgicos do Estado de bem-estar de esquerda e
direita. Todo projeto emancipatório tem de rejeitar formas carismáticas de liderança e
poder (qualquer forma de “bolsonarização de esquerda”) e construir novas formas de
sociabilidade que superem a alienação; para isso, a forma política da Comuna de Paris
pode servir de inspiração, e a reconfiguração da produção material para além da
valorização do valor deve ser o seu conteúdo. Em outras palavras, não o “direito ao
trabalho”, mas tempo livre e riqueza incondicional para todos deve ser a aspiração capaz
de pacificar as almas atormentadas. Porém, se as categorias da modernidade seguirem
sendo mobilizadas ao longo de todo o espectro político, parece bem mais provável que
no próximo meio século a humanidade decaia definitivamente a novas formas de
barbárie. O carisma é um índice dessa decadência.
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Referências
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3ª. ed. Trad. R. Barbosa e K. E. Barbosa. Brasília: UnB.
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PÓS-CAPITALISMO REGRESSIVO
E “INÉRCIA CONCEITUAL”
Uma hipótese sobre a decomposição social em curso
Daniel Cunha
Einstürzende Neubauten
1 Este pequeno texto se enriqueceu, mesmo na eventual discordância, a partir de debates com Joelton
Nascimento, Leo Vinicius, Bruno Lamas, Juliana Mesomo, Rubem Klaus, Victor Marques, Marcos
Barreira, Jefferson Almeida, Edilberto Malheiros, Ofensiva Histórica. A responsabilidade por ele é
exclusivamente minha.
2 Marx (2011), 587-ss.; Kurz (1992) e Kurz (2018/1986).
3 Ver Wallerstein (1974) e Wallerstein (2004). Em entrevista recente, Wallerstein afirmou crer que
(2017/2019).
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5 Recentemente, chamam a atenção a recente “lei do trabalho escravo” na Hungria de Orban e o projeto
bolsonarista de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém, motivado por mediações religiosas
(seguindo o padrão dos EUA), por exemplo – ver Duchaide (2018). Sobre a exaustão das fronteiras de
mercadorias, ver Moore (2015). Sobre favelização mundial ver Botelho (2015). Sobre escravidão
contemporânea, ver Lamas (2012). Sobre amok ocidental, ver Jappe (2017), cap. 4.
6 Marx (2011, 59).
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Aqui Marx destaca, por um lado, que nessa mediação entre a realidade e o conceito, a
dialética ou o método da economia política e suas categorias derivadas são
historicamente específicos “dessa sociedade determinada”, e não uma ontologia ou
método trans-histórico que permitiria a análise de qualquer forma social. 7 De outro, ele
observa que há uma defasagem histórica entre o estabelecimento dessa formação social
e a consolidação do arcabouço conceitual ou método que permite que ela seja decifrada.
De tal forma que uma hipotética bifurcação atual, ainda que possa ser conceituada
a partir da determinação dos limites tendenciais da formação capitalista utilizando-se o
método da economia política, talvez não possa ser propriamente “detectada” em
processo, devido à “inércia conceitual” da ciência social; a crise do capitalismo é também
uma crise do seu método específico de análise. A transição do feudalismo para o
capitalismo só foi teorizada séculos mais tarde, a partir da perspectiva histórica
posterior. A modernidade capitalista possibilitou a emergência da secularização e da
crítica social e dinamizou os processos de formação de conceitos, mas sendo uma
formação ainda sob os auspícios da alienação, estes seguem o padrão da coruja de
Minerva, sendo necessariamente post festum. Apenas uma sociedade livre seria
conscientemente auto-reflexiva quanto à sua própria forma e assim tenderia a eliminar
aquela “inércia”.
Mas nada indica que hoje estejamos diante da perspectiva de uma “sociedade
livre”. As inúmeras insurreições dos últimos anos no mundo todo, ainda que busquem
superar formas políticas obsoletas, esbarram em uma espécie de “tabu dos meios de
produção”, enfatizando na prática e na teoria quase que exclusivamente o problema da
“representação política”, reforçando assim a dissociação capitalista entre política e
economia. Essas insurreições “espontâneas” são carentes de uma nova forma do sujeito,
passando a girar em falso, já que passam ao largo do problema estrutural da reprodução
social capitalista baseada na forma-mercadoria.8 As reivindicações não passam pelo
7 Sem esse ancoramento histórico da dialética, ela se converte em uma metafísica. Ver Postone e Reinicke
(1974) e Colletti (1969).
8 Uma expressão elaborada desse politicismo que radicaliza a transformação política mas se abstrai da
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buraco da agulha da mercadoria, mas o sujeito da mercadoria ainda não foi superado, e
assim se abre o caminho para a reação.
Referências
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
254
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
Leomir C. Hilário
I-
A queda do Muro de Berlim, em 1989, em vez de unificar todo o mundo numa paz
duradoura regida pelo mesmo sistema de produção, como acreditaram alguns, foi o
pontapé inicial para a multiplicação de cisões pelo mundo. Se outrora havia um grande
muro separando dois supostos projetos diferentes de sociedade, hoje temos vários: o
muro que separa os Estados Unidos do México, construído em 1994 para conter a
imigração ilegal; o muro da Cisjordânia, que desde 2002 separa os palestinos dos
israelenses, chamado pelo governo de Israel como “Cerca de Separação ou Segurança”
para evitar a infiltração de “terroristas”, isolando mais de 450 mil pessoas; os muros que
separam Espanha e Marrocos nas cidades de Melilla, Ceuta e do Ilhote de Vélez de la
Gomera; os muros contra ciganos na Eslováquia, em Kosice; o muro entre Turquia e
Grécia, construído em 2012 ao longo da margem do rio Evros, erguido em meio à crise
grega e que custou 3,2 milhões de euros; dentre tantos outros.
255
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1 Para se ter uma ideia do fluxo de imigrantes, a operação “Mare Nostrum” da Itália, que consistia em
resgatar os imigrantes em alto mar, salvou a vida de 150 mil em um só ano, o tempo que durou esta
operação, entre 2013 e 2014. Esta operação se iniciou após os naufrágios em Lampedusa (uma ilha
italiana) que provocaram a morte de mais de 400 pessoas, cuja imagem dos corpos boiando no mar
chocou o mundo.
2 Cf. a resenha escrita por Maurilio Lima Botelho, publicada em: http://arlindenor.com/2016/01/05/as-
aventuras-da-mercadoria-de-anselm-jappe-maurilio-lima-botelho-em-o-livro-que-estou-lendod/. E
também o texto “Do marxismo à crítica do valor”, de Ulrich Leicht, disponível em:
http://obeco.planetaclix.pt/ulrich-leicht.htm.
3 Refiro-me a sua principal obra chamada Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da
teoria crítica de Marx, publicada no Brasil em 2014 pela editora Boitempo. Escrevi uma pequena
resenha introdutória sobre este livro chamada “Com Marx para além do marxismo”, disponível em:
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/Noticias/visualizar/3690. Eu indicaria, ainda a respeito
deste livro de Moishe Postone, a resenha de autoria de Cláudio R. Duarte chamada “A potência do
abstrato: resenha com questões para o livro de Moishe Postone”, publicada pela revista Sinal de Menos,
n. 11, vol. 2, em: https://www.dropbox.com/s/yu3b9u0mtrs0sqf/SINAL_DE_MENOS_11_2.pdf.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
II-
4 Cf. A necessidade da ação: carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de 2015 para
2016, disponível em http://obeco.no.sapo.pt/herbert_bottcher.htm.
259
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
a força de trabalho é expulsa do processo produtivo, numa visada de alcance mais amplo,
o processo de desmobilização global da força de trabalho é evidenciado. Recuperando
aquela argumentação de Marx nos Grundrisse e também no volume III d’O Capital
segundo a qual “o próprio desenvolvimento é o limite para o desenvolvimento da força
produtiva do capital”, Kurz afirma que “com a desmobilização da força de trabalho, a
capacidade imanente do desenvolvimento capitalista chegou ao fim”.
Neste contexto, para as massas supérfluas à margem do processo de valorização
do valor restam duas alternativas: realizarem perigosas viagens através de montanhas,
oceanos e fronteiras, com a finalidade de venderem sua força de trabalho, ou juntarem-
se a clãs armados, grupos terroristas, milícias religiosas ou étnicas. Assim, migrações
socioeconômicas e guerras civis são dois lados da mesma moeda, expressam o
mecanismo alienado, cego e irracional constitutivo do capital.
III-
5 Cf. The Economics of Global Turbulence: The Advanced Capitalist Economies from Long Boom to Long
Downturn [A economia da turbulência global: as economias capitalistas avançadas da longa expansão
ao longo declínio], New Left Review, 1998. Há uma edição espanhola: La economía de la turbulencia
global: Las economías capitalistas avanzadas de la larga expansión al largo declive, 1945-2004,
Ediciones Akal, 2009.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
a última potência mundial. Mesmo o poderio militar estrondoso dos Estados Unidos,
ancorado num “aparelho high-tech” de drones e ataques com armas de última geração,
devora quantidades astronômicas de dinheiro e, neste sentido, deve passar pelo “buraco
da agulha da financeirização”. Razão pela qual Kurz aposta na repetição de seu
diagnóstico sobre a União Soviética, a saber, de que o colosso arrogante e cheio de
músculo americano tem pés de barro e será derrubado por sua própria lógica interna.
Em O terror do estado de emergência: como se pretende fazer da Grécia um
exemplo, Kurz reflete também sobre as metamorfoses do imperialismo em tempos de
crise. O que faria o antigo imperialismo ao conquistar zonas econômicas povoadas de
populações supérfluas? A crise mundial do capitalismo promove mudanças
significativas na ação do imperialismo. Hoje não se trata mais de anexar territórios, pois
isto representaria não mais uma opção para a acumulação, mas um peso, pois na crise
atual há grandes zonas supérfluas ao mercado mundial, territórios que perderam sua
capacidade de ser explorados.
Não é o caso de afirmar que este imperialismo à moda antiga tenha saído de cena
por completo, mas de que agora se trata de controlar a globalização enquanto crise.
Porque “o paradigma do conflito no mundo decadente dos Estados não é a guerra
externa, mas sim a guerra interna, com base em divisões étnicas e religiosas”. Robert
Kurz toma a Grécia como exemplo de gestão da crise, dissecando a preocupação da
Alemanha com a crise grega, bem como tendências futuras.
IV-
para ficar, razão pela qual, se ela não será superada, terá de ser gerida, administrada,
controlada. O capitalismo é, hoje, a crise.
O limite interno da valorização real do capital, cujo emblema é a terceira
revolução industrial, promoveu a fuga para o crédito e para economias de bolhas
financeiras. Uma vez que os salários reais, em média, estagnaram ou regrediram desde
os anos 19706, o consumo se tornou o pilar do crescimento. Mas, se a desindustrialização
é a tendência mundial, como isso é possível? Basta verificar o último boom da economia
brasileira, impulsionada não pelo crescimento da indústria nacional ou pelo aumento
dos salários reais, mas sim pelas bolhas financeiras dos mercados de ações e
imobiliárias, por exemplo.
Quem não se recorda do feito extraordinário do empresário brasileiro Eike
Batista, ao prever a extração de petróleo de 15 a 29 mil barris por dia em alguns de seus
poços, figurando entre os mais ricos do planeta em 2012, segundo a Revista Forbes, para
menos de dois anos depois colapsar? Como jogador do “capitalismo-cassino”, Eike
Batista declarou, em setembro de 2015, que tinha apostado demais numa área de alto
risco. Na verdade, tratavam-se de blefes, alguns de seus postos de petróleo não
produziram nenhum barril em meses. Ele é o exemplo individual do declínio nacional
da Petrobrás e da economia brasileira, que chegou a figurar entre as seis primeiras
maiores economias mundiais em 2012, registrando superávit de quase US$ 30 bilhões
em 2011. A crise parecia, de fato, apenas uma “marolinha” se vista a partir do Brasil,
como afirmou o ex-presidente Lula, sobretudo devido ao papel da demanda da China em
relação às commodities brasileiras que possibilitou a trajetória ascendente do lulismo.
6 Além do livro do Robert Brenner que eu mencionei, vale sublinhar que a referência utilizada por Robert
Kurz neste momento é o livro de Lester C. Thurow chamado O futuro do capitalismo, publicado no Brasil
pela Editora Rocco, em 1997. Acrescento ainda que as relações entre os mais próximos da Crítica do
Valor e aqueles que se aproximam mais da leitura histórica de Fernand Braudel, baseada na longue durée
[perspectiva da longa duração histórica], pode ser dimensionada através da leitura do artigo de Moishe
Postone, chamado Teorizando o mundo contemporâneo: Robert Brenner, Giovanni Arrighi e David
Harvey, disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
33002008000200008. Eu diria que há, sim, uma convergência no que diz respeito à hipótese de um
declínio sistêmico de longo prazo entre autores como Immanuel Wallerstein, Robert Brenner e Robert
Kurz. Todos eles defendem que, a partir da década de 1970, o capitalismo, entendido como sistema-
mundo, entrou numa fase de declínio.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
7 Gostaria de indicar, também, o argumento do sociólogo alemão Wolfgang Streeck (1946-), no livro
Tempo Comprado: A crise adiada do capitalismo democrático, publicado para o português em 2013
pela editora Actual, onde esta fuga para a frente se dá nos marcos daquilo que ele denomina de “comprar
tempo”, indicando movimentos históricos nos quais o capitalismo procura adiar e gerir sua própria crise.
A este respeito ver o artigo deste autor intitulado As crises do capitalismo democrático, disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002012000100004&script=sci_arttext. Bem como a
resenha escrita por Maurílio Botelho intitulada Comprando tempo diante da crise do capitalismo,
disponível em http://r1.ufrrj.br/revistaconti/pdfs/6/RES1.pdf.
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
texto que compõem este pequeno livro de ensaios. Essa centelha de esperança que surge
ali quando Kurz termina de pincelar o quadro sombrio da erosão da forma social
capitalista é algo que não deve ser negligenciado, porque faz parte da montagem desta
crítica social radical. No final do texto sobre migração e guerras de ordenamento
mundial, Robert Kurz aposta num “movimento social das migrantes e dos migrantes”,
no sentido de uma conscientização cuja possibilidade está vinculada a um “movimento
social transnacional disposto a suprimir o sistema produtor de mercadorias”.
Creio que não há melhor maneira do que essa de adentrar no ensaio Crise
econômica mundial, movimento social e socialismo. Ele está organizado em doze teses,
as quais consistem basicamente em expor a conjuntura da crise financeira mundial
global de hoje. O que eu gostaria de sublinhar neste texto é o tom final de aposta num
novo conceito de socialismo, o qual “só pode ser conseguido na medida em que for
rompida a internalização das formas de vida capitalistas através da forma de mercadoria
da força de trabalho, do trabalho abstrato, da lógica de valorização e da forma de
mercadoria da reprodução. [...] Se a crítica de esquerda do capitalismo quiser sair do
desmoralizado combate de retaguarda e recuperar a ofensiva, ela precisa quebrar essa
casca e saltar acima da própria sombra histórica”. A citação é longa porque este me
parece um problema urgente e atual para esquerda, o fato de ela ter entrado num “estado
de sítio moral”, para usar uma expressão do filósofo brasileiro Paulo Arantes.
A esquerda, de um modo geral, não consegue compreender o atual estágio
histórico, é sempre pega de surpresa pelas irrupções de crise, além de ter perdido sua
capacidade propositiva e prática. Progredindo com uma “crítica truncada” ao
capitalismo reduzida ao capital financeiro, sem nenhuma elaboração sobre as bolhas
especulativas e a riqueza irreal, pode acabar exigindo sua fatia de um bolo que não existe,
como foi o caso das lutas em relação ao Pré-Sal, onde não havia possibilidade real de que
o Petróleo fosse explorado de maneira rentável num contexto de variação do preço do
barril do petróleo para baixo, como ocorreu desde pelo menos junho de 2014.
O texto O clímax do capitalismo: breve esboço sobre a dinâmica histórica da
crise segue nesta linha de expor a noção de crise como colapso da forma social
capitalista, e o que este ensaio tem de curto também tem de denso. Kurz se opõe à ideia
comum de que sempre há crises no capitalismo e ele sempre as superou. Ideia que,
mudando-se o que se deve mudar, subjaz a certa esquerda que compreende a crise como
265
[-] www.sinaldemenos.org Ano 10, n°13, 2019.
V-
Para concluir, eu diria que há uma tarefa da qual nós, situados na periferia do
capitalismo, não podemos nos furtar, a saber, aclimatar esta teoria crítica radical às
condições periféricas do capitalismo. O que significa compreender como desde aqui se
produz modos particulares de “gestão da barbárie” constantemente produzida pela crise,
por exemplo. Entre nós, o filósofo e professor da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Marildo Menegat8, tem realizado esta tarefa, ou
8 Eu citaria dois textos onde ele faz isso diretamente, como, por exemplo: Unidos por catástrofes
permanentes: o que há de novo nos movimentos sociais da América Latina, disponível em:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&cad=rja&uact=8&ved=0
ahUKEwjnsZmU-
qHKAhVBEJAKHahAD74QFggiMAA&url=http%3A%2F%2Fwww.historia.uff.br%2Festadoepoder%2F
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seja, de pôr à prova da atualidade periférica a Crítica do Valor. Ele não está sozinho. Eu
citaria também este grupo de intelectuais cariocas que idealizaram a publicação desta
obra de ensaios de Kurz e que também já publicaram um livro em comum chamado Até
o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, pela editora
Boitempo em 2013. Estes são apenas alguns exemplos de outras experiências de
recepção e atualização desta tradição minoritária da crítica social. Há outros, como a do
Grupo Crítica Radical em Fortaleza e a do pessoal que organiza e publica a Revista Sinal
de Menos, dentre outros que fatalmente escapam à minha percepção individual. Ao
produzir efeitos de análise em relação ao nosso contexto periférico, entendo que a Crítica
do Valor pode contribuir para a construção de uma dissolução ativa do capitalismo.
[Fevereiro de 2016.]
7snep%2Fdocs%2F005.pdf&usg=AFQjCNE-SMkTa8HE67AXK826-
H9watVY_Q&sig2=XAQig7qjUBVfAQMHmGW8wA&bvm=bv.111396085,d.Y2I; O fim da gestão da
barbárie, disponível em: http://arlindenor.com/2016/01/06/o-fim-da-gestao-da-barbarie-marildo-
menegat/.
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“Perderam ontem, perderam em 2016 e vão perder semana que vem de novo”.
“Só que a faxina agora será muito mais ampla. Essa turma se quiser ficar aqui vai
ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão pra fora ou vão pra cadeia. Esses
marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria.”
Desumanização do adversário
político, identificando-o com
“sujeira”. Promessa de
banimento caso não se coloque
“sob a lei”. O que é a “lei” é
esclarecido mais tarde.
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“Ninguém vai sair dessa pátria, porque essa pátria é nossa. Não é dessa gangue
que tem uma bandeira vermelha e tem a cabeça lavada.”
“O Brasil será respeitado lá fora. O Brasil não será mais motivo de chacota junto
ao mundo.”
“Seu Lula da Silva, se você estava esperando o Haddad ser presidente para assinar
o decreto de indulto, eu vou te dizer uma coisa: você vai apodrecer na cadeia!
Brevemente você terá Lindberg Farias para jogar dominó no xadrez. Aguarde, o Haddad
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vai chegar aí também. Mas não será para visitá-lo, não. Será para ficar alguns anos ao
seu lado. Já que vocês se amam tanto, vocês vão apodrecer na cadeia. Porque lugar de
bandido que rouba o povo é atrás das grades.”
“Você achava que tava tudo dominado? Não tava, não. Esse povo sempre se
levantou nos momentos mais difíceis da nossa nação, para exatamente salvá-la. Vocês
da Paulista, vocês que fazem manifestação em todo o Brasil, vocês estão salvando a nossa
pátria. Não tenho palavras para agradecê-los nesse momento. Vocês estão salvando o
meu, o seu, o nosso Brasil. Petralhada: vai tudo vocês (sic) pra ponta da praia! Vocês não
terão mais vez em nossa pátria, que eu vou cortar todas as mordomias de vocês! Vocês
não terão mais ONG’s para saciar a fome de mortadela de vocês. Será uma limpeza nunca
visto (sic) na história do Brasil. Vagabundo vai ter que trabalhar! Vai deixar de fazer
demagogia junto ao povo brasileiro. Vocês verão as instituições sendo reconhecidas.
Vocês verão umas forças armadas altiva (sic) que estará colaborando com o futuro do
Brasil. Vocês, petralhada, verão uma polícia civil e militar com retaguarda jurídica pra
fazer valer a lei no lombo de vocês!”
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campos de concentração
nazistas]. Promessa de
violência política - a lei “no
lombo”.
Promessa de criminalização e
encarceramento de movimentos
sociais. Aqui está a “lei” referida
anteriormente - quem não se
adequa será banido. Referência
chula ao ex-presidente.
Referência cínica à
“democracia”, após prometer
banimento de adversários
políticos, exclusão de minorias,
criminalização de movimentos
sociais e encarceramento do
opositor na eleição.
“sem mentiras, sem fake news, sem Folha de São Paulo! Nós ganharemos essa
guerra. Queremos a imprensa livre, mas com responsabilidade. A Folha de São Paulo é
o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo.
Imprensa livre: parabéns! Imprensa vendida: meus pêsames!”
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SINAL de MENOS
ISSN 1984-8730
Contribuições:
Edição:
A revista aceita contribuições e
comentários críticos, que serão
Cláudio R. Duarte (São Paulo) avaliados quanto ao conteúdo, o
estilo e a adequação à linha
Daniel Cunha (Binghamton) editorial. Os artigos devem ser
enviados para
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