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O QUE É DANÇA CONTEMPORÂNEA?

A NARRATIVA DE UMA IMPOSSIBILIDADE.

Thereza ROCHA1
tereza-rocha@hotmail.com

Resumo: Muito difundida, tanto nacional quanto internacionalmente,


a dança contemporânea, ainda assim, permanece uma interrogação.
Desconstruir a pergunta “O que é dança contemporânea?” talvez seja
mais urgente do que responde-la. Haveria resposta possível? O presente
estudo pretende explorar o conceito de dança contemporânea para tratar
da experiência estética envolvida no seu fazer e no seu fruir.
Palavras-chave: Dança contemporânea. Especificidade do meio. Filosofia
da dança. Ontologia da diferença.
Abstract: Widespread both nationally and internationally, contemporary
dance yet remains a question mark. Deconstructing the question “What
is contemporary dance?” is perhaps more urgent than responding. Would
there be any response? This study aims to explore the concept of
contemporary dance to address the aesthetic experience involved in its
making and its fruition.
Keywords: Contemporary Dance. Specificity of the medium. Philosophy
of Dance. Ontology of difference.

Este texto resulta da palestra homônima ministrada pela autora no


evento internacional Autonomia e Complexidade: intercâmbios artístico-
filosóficos, coordenado pelo Prof. Dr. Paulo Paixão e realizado pela Escola
de Teatro e Dança da UFPA-ETDUFPA, na cidade de Belém em 2010. Ele
integra também o rol de preocupações da pesquisa de doutorado em curso
desde 2008 na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO,
intitulada Por uma (des)ontologia da dança em sua (eterna)
contemporaneidade e orientada pelo Prof. Dr. José da Costa. Trata-se de
investimento balizado pelos estudos teórico-filosóficos em dança, campo
principal de atuação da autora, na busca por interrogar algumas das
polêmicas envolvidas na fruição de dança contemporânea, fenômeno
cultural de vulto na história da dança cênica ocidental. Trata-se também
da vontade de fazer ressoar na forma escrita alguns ecos de memória da
intensa participação da autora no movimento de dança contemporânea
que teve lugar no Rio de Janeiro nos últimos vinte anos, cidade que chegou
a receber, na década de noventa, o epíteto de capital da dança
contemporânea do país.
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2007: Marcela Levi2 nua, calçando sapatos altos e portando um
colar de pérolas no pescoço, carrega uma cabeça de boi empalhada à
frente do tronco enquanto circunda silenciosamente, em passos lentos
e regulares, a periferia da área de apresentação repetidas vezes na
seqüência inicial de seu In-organic; Denise Stutz3, trajando roupa
comum, convida um espectador a executar com ela um pas de deux
imaginário, ele sentado na platéia, ela sentada na cadeira de uma cena
nua de acessórios, enquanto descreve meticulosamente cada um dos
movimentos que são dançados ao som de Clair de Lune de Debussy
(Absolutamente só, 2005); Frederico Paredes4 caminha trajetória retilínea
descendo por uma das diagonais do palco italiano do fundo à boca de
cena, enquanto descreve o processo colonizatório implicado em certa
territorialização cultural da cidade do Rio de Janeiro do início do século
XX (Intervalo, 2003); uma breve vinheta da música da série televisiva
Mulher Maravilha prepara a chegada dos super-herois: Gustavo Ciríaco5
e outros três artistas-em-colaboração 6 anunciam cada um, uma
identidade correspondente no Quarteto Fantástico assumindo as poses
características das personagens em um canto de cena qualquer (Jorge,
2003); Micheline Torres7 manipula meticulosamente uma faca e um
frango depositado sobre uma mesa frontalmente em relação ao
espectador, abrindo-lhe no peito um corte longitudinal que alude a uma
vulva para, depois de retirar do animal morto os miúdos separados em
saquinhos plásticos, aplicar-lhe um absorvente íntimo e em seguida
costurar os dois lábios abertos com agulha e longa linha atada à sua
própria calcinha (CARNE, 2007).
1993: Marcela Levi, Denise Stutz e Micheline Torres8 exploram a
musicalidade da fala na repetida frase “Todo dia a mesma coisa!”,
enquanto manipulam fraldas e baldes em gestos fortes e também
repetitivos, resignificados dos rituais cotidianos da maternidade, para
cunhar no próprio corpo a consistente poética da Lia Rodrigues 9
Companhia de Danças em Ma; Gustavo Ciríaco e outros quatro
intérpretes10 bebem da fonte dos ritmos nordestinos para depois os
diluírem e retrabalharem na dança orquestral da coreógrafa Paula
Nestorov11 para o espetáculo Chegança (1997); Frederico Paredes flui
silenciosamente as elegantes volutas e a gestualidade original de João
Saldanha12 e seu Atelier de Coreografia, nos espetáculos A Fase do Pato
Selvagem (1998) e Sopa (2000).
De uma geração à outra: a proliferação de diferentes assinaturas
em dança; a abertura de grandes conglomerados artísticos outrora
organizados quase sempre como companhias de dança em inúmeros
trabalhos-solo e/ou de colaboração; o aprofundamento, inclusive e talvez
sobretudo político, de uma função que nasce junto com a dança
contemporânea, a do intérprete-criador. Em um primeiro momento, o
artista da dança pesquisa movimentos a partir de procedimentos
investidos do caráter dialógico de sua convivência artística em companhia,

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para esculpir em si a corporeidade específica de uma dada poética de
dança que leva o nome do coreógrafo como assinatura. Em um segundo
momento, esses mesmos artistas desfocam da fatura propriamente
coreográfica e da pesquisa de movimento visando a constituição de uma
linguagem, na direção quase de uma anti-cena testemunha do discurso
de um corpo-manifesto. Sim, no decurso de duas décadas da dança
contemporânea carioca, muitos elementos poderiam ser listados como
balizas demarcatórias entre uma e outra gerações. Mas diferencia-las
importa menos aqui. Importa mais perceber que, em ambos os momentos,
de modo mais ou menos evidente, está em curso uma progressiva
rarefação da espetacularidade em/na dança, na recusa do produto em
prol de uma forte pergunta formulada como corpo.
Importa mais investigar como um tal cômputo de disparidades de/
em dança podem ser alinhados sob o (mesmo) conceito poroso da dança
contemporânea. Alinhamento que se inspira em outro muito mais grave
operado por Laurence Louppe (2004) em sua seminal Poethique de la
danse contemporaine. Logo no início do livro, a importante historiadora
francesa perturba a seta histórico-cronológica que faria da
contemporaneidade o depois da Modernidade ao considerar a dança
contemporânea como “a dança de cada um” (...) uma vez que “a mesma
dança não pode pertencer a duas pessoas” (LOUPPE, 2004, p. 44). É
importante salientar a pertença da última frase a Isadora Duncan,
apontada em qualquer manual de história da dança como uma das
pioneiras da dança moderna. Contrariando os manuais, Louppe talvez
esteja querendo dizer da dança de Isadora (já) como uma dança
contemporânea. Com esse argumento, a crítica encrava no meio da
(suposta) linha do tempo, o argumento que faz da história entendida
como sucessão de épocas amparada em incessante movimento geracional
de rupturas, uma ingenuidade. Mais importante, leva a concluir que
toda a dança do século XX que “se inventa a partir de seus próprio
recursos” (Brown apud LOUPPE, 2004) seria portanto contemporânea.
Ajuda a enunciar o problema estético que o termo dança contemporânea
comporta, ao mesmo tempo em que o agrava. Se a dança contemporânea
não é aquela que vem depois da dança moderna, o que é dança
contemporânea?
O escândalo está quase sempre na base de numerosos exemplos
da aventura da dança cênica ocidental, por que não da dança
contemporânea, no decurso do século XX. É o caso de Isadora Duncan,
no final ainda do século XIX, com sua dança de pés descalços, nudez
vestida de véus transparentes e fluida utilização de tronco e braços em
vocabulário de movimento inédito até então; é o caso da dança com
fluxo contido, quase estática, tendendo à bidimensionalidade e, por isso
mesmo, com forte exploração do paralelismo no corpo do inesquecível
L’après-midi d’un faune de Nijinski (1912), talvez a primeira
performatividade de gênero da história da dança ocidental; é o caso de

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A Sagração da Primavera – a iconoclastia chega agora ao extremo com
as bailarinas literalmente dançando com os pés, pernas e braços torcidos
e voltados para dentro –, novamente com Nijinski como coreógrafo de
uma dança feia interpretada pela música feia e dilacerante de Stravinski
para os Ballets Russes do empresário idealista Sergei Diaghilev, cuja
estréia provocou um motim na platéia parisiense de 1913; é o caso de
Eros Volúsia estampando na capa da revista Life de 1941 as marcas de
uma miscigenação cultural que ousou comer antropofagicamente o ballet
de sua mestra russa Maria Olenewa e cuspir um corpo em febre
afrobrasileira para uma elite boquiaberta do Cassino Da Urca; é o caso
dos ready-made gestuais de uma dança qualquer de Ivonne Rainer, Trisha
Brown, Steve Paxton, David Gordon, Douglas Dunn, nomes da
contracultural Judson Church da Nova Iorque da década de sessenta,
movimento que ficou conhecido como Dança pós-moderna americana;
é o caso da uruguaia Graziela Figueroa que foi passar uma temporada
no Rio de Janeiro e inventou, junto com vários cariocas, os gestos
improvisacionais de uma dança solta, suja e iconoclasta; é o caso de um
melancólico e vazio Theatro Municipal do Rio de Janeiro na primeira vez
de Pina Bausch na cidade, com Café Müller em 1980, e cheio e combativo
na segunda, com On the mountain a cry was heard, por ocasião do
Carlton Dance Festival de 1990; é o caso extremo do processo judicial
movido por um espectador, Raimond Whitehead, contra o IDF –
International Dance Festival of Ireland –, com base em falsa propaganda
e obscenidade, por ocasião da apresentação do espetáculo Jérôme Bel
do coreógrafo de mesmo nome, em 2002. Em todos os casos, fortes
dissensos de dança produzidos pelo quase sempre ruidoso contato do
público com a dança contemporânea. Privado de referências seguras,
incapaz portanto de nomear propriamente o objeto (de dança e de arte)
que tem diante de si, uma inevitável pergunta sobrevém: - O que é isso?!
De acordo com matéria publicada no jornal The Irish Times,
Whitehead afirmava relativamente a Jérôme Bel que “não havia nada na
performance que se assemelhasse à dança”, que ele mesmo definira como
sendo “pessoas que se movem ritmicamente, quase sempre ao som de
uma música, comunicando alguma emoção”13 (apud LEPECKI, 2006, p.
2). As bases do processo movido contra o festival e correlativamente contra
Jérôme Bel repousam todas elas em formulações acerca da identidade/
especificidade do meio. Aquilo a que assistira não é dança. Whitehead
não está a judicar em sua ação, se aquilo é ou não é belo/bom. Ele acusa
aquela obra em sua não-pertença à Dança. Ele talvez gostasse que, em
sendo deferido, o processo o devolvesse apaziguado ao mundo pela
recognição da Dança como Dança; da Arte como Arte.
Ferir a especificidade do meio, no caso da dança, é ferir sua
dançalidade, neologismo do qual poderíamos lançar mão se estivéssemos,
em investimento à la Clement Greenberg, na busca pelas marcas da
dança pura. Seguindo essa perspectiva essencialista, um dado objeto é

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uma obra de dança e é de arte, não sendo portanto uma coisa qualquer,
dadas as condições em que nele se organizam as unidades mínimas
constituintes de sua sintaxe – a saber, no caso, os movimentos. Não
teria sido mesmo este o suporte de sustentação da dança em sua aventura
abstrata ou mesmo em sua empreitada expressionista no decurso do
século XX? A resposta é afirmativa para uma vasta gama de especialistas
da dança dedicados à sondagem daquilo que, segundo Louppe (2004, p.
25), “se batizará de específico, conforme um feio anglicismo infelizmente
sem equivalente em nossa língua”14. São estudiosos sobretudo de acento
anglo-saxão, de cujo corpus teórico nos afastamos pelo tanto que a
dedicação à especificidade da dança nos desviaria do enfrentamento do
pulsante problema estético presente na dança contemporânea: nome
próprio de todas as danças do século XX que não hesitaram em
abandonar o compromisso com a dançalidade em favor “da ação, da
consciência do sujeito no mundo”15 (LOUPPE, 2004, p. 43).
No lugar da forma e da essência trans-histórica, a contingência e o
contexto. No lugar da especificidade do objeto, o objeto específico: cada
nova obra (de dança) interroga não somente o meio naquilo que o definia
como tal; interroga conjunta e mais gravemente o próprio meio acerca
dos aprioris que garantiam o seu estatuto como sendo de arte. E é
precisamente aí que a dança se alinha a todas as investidas disso que
não menos problematicamente se denominou de arte contemporânea.
Cada nova obra (de arte) contemporânea, digamos, desontologiza o objeto
de uma origem já dada na Arte, antepondo, neste lugar de origem, a
dúvida. O que é arte? Especializado ou não, o espectador se vê confrontado
e impelido a criar categorias a partir do enfrentamento com a obra, com
cada obra em particular, na medida em que é o objeto que nos pergunta,
porque pergunta a si mesmo: - Por que sou uma obra de arte?
Concordamos com Thierry de Duve quando afirma que, diante da
arte contemporânea, substituímos a afirmação “isto é belo” por “isto é
arte”, passando respectivamente do juízo de gosto ao juízo estético. A
afirmação primeira, base do juízo kantiano, partiria de duas certezas dadas
a priori – de que a arte seja e do que ela seja –, ocupando-nos, então, do
discernimento entre o que é e o que não é belo (bom). No caso da arte
contemporânea, a moldura das certezas foi retirada e a barreira que
separava a arte da não-arte, o objeto de arte do objeto qualquer, vai se
tornando rarefeita até quase desaparecer. Seguindo o autor, “a arte
contemporânea aparece como reino do n’importe quoi16 (...) a fórmula isto
não é arte (...) expressa a iminência do n’importe quoi e imediatamente o
limite do interdito. (...) Ela significa: isto não pode ser arte.”17 (DE DUVE,
1989, p. 107, 109). Trata-se de uma circunstância na qual qualquer coisa
pode tornar-se artística. Dizer que qualquer coisa pode ser arte, entretanto,
não é o mesmo que dizer que tudo é. Nesse processo outras faculdades
do juízo são convocadas. É um juízo estético que então se apresenta diante
de um objeto não especializado que se declara como objeto estético.

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A frase isto é arte, quer ela se aplique às obras do passado
ou àquelas da arte moderna, ao ready-made ou mais
rigorosamente à qualquer coisa, nomeia isto de um nome
inexponível, por referência a uma Idéia indemonstrável.
“A arte não existe mais, ela se declara”, dizia Rosenberg.
Ela não é um objeto, mas p. 86)

Contrariamente ao que gostaria o Sr. Whitehead, na arte


contemporânea todos os possíveis podem; todos os possíveis, e não
somente os prováveis, podem devir-arte em seu contínuo movimento
íntimo e cúmplice das potências de heterogeneidade.
Ao apresentar-se na ausência de todos os seus pressupostos-
sustentação, o (des)objeto contemporâneo permanece como uma
interrogação, nos obrigando a todos, artistas, espectadores, críticos,
curadores, a nos reunirmos sob o mesmo estatuto não-especializado e
entrevermos no nosso olhar sobre o objeto, o processo que o torna objeto
de arte. O objeto-obra-em-seu-processo-de-fazimento-como-de-arte
interrompe, abre um vazio, um tempo de silêncio, uma parada, uma
questão sem resposta, provocando um dilaceramento sem reconciliação
onde o mundo é obrigado a interrogar-se.
É precisamente por isso que responder a pergunta “O que é dança
contemporânea?” perde aqui o seu valor. Mais interessante do que tentar
respondê-la e retornar ao mundo, a tranqüilidade pela recognição, talvez
seja pensar que esta pergunta não tem resposta e, na recusa (política)
de respondê-la, fazer a genealogia da pergunta. Não há resposta, pois
a própria pergunta é sua resposta própria (mais apropriada), uma vez
que ela põe o problema rodeando-o em torno de si. Esta é uma remissão
e um tributo ao jogo certeiro de palavras, proposto por Maurice Blanchot,
entre trouver/tourner para falar do sentido do buscar (trouver), mesma
palavra que, na língua francesa, aplica-se a encontrar (trouver). Trata-
se aí da proposição de uma busca, e por que não de um pensar, que
erra, que se sabe impossibilitada(o) ontologicamente de encontrar seu
objeto, restando-lhe tão somente en tourner, ou seja, fazer-lhe o contorno
optando pelo “abandono ao encantamento do desvio”. (BLANCHOT, 2001,
p. 63-64).
Diferente da busca blanchotiana, atender à pergunta “O que é dança
(contemporânea)?” necessitaria de uma resposta amparada no princípio
de identidade intermediado pelo verbo ser e cuja figura de atualização
é a estrutura de predicação. Admitimos, assim, do ser, a multiplicidade,
porém somente como atributo da decisão apriorística de que o ser seja,
pluralidade que só é admitida ao nível do predicado, do que vêm depois.
Perguntamos o que é, partindo do pressuposto de que a resposta virá
relacionando um predicado variável a um sujeito fixo. Assim, a dança
que conhecemos aprioristicamente, cuja origem já foi estabelecida e,
portanto, cuja essência também já foi descoberta, cujo conceito já nos
é dado como dado, pode, assim, variar, mas somente a partir de si.

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Fixar a identidade da dança na raiz das proposições que serão feitas
a seu respeito é controlar o seu vir-a-ser (Aristóteles). As coisas só são no
futuro e só são no plural porque são atualizações possíveis do que elas
sempre foram (já) na origem. Ontologia. Trata-se de um trabalho do
pensamento amparado naquilo que poderíamos chamar de lógica do futuro
– de um futuro amparado na promessa de um objeto. Teleologia. A
discussão sobre “o que é” exige resposta cujo objeto coincida exatamente
com a razão de ser da proposição. Está implícita aí a necessidade de
tornar o entendimento um simples processo de recognição 19 e um
verdadeiro legislador do pensamento. Legislador, pois entrevemos neste
modus pensandi algo moralmente validado a partir de sua natureza
normativa a respeito do futuro. Dizer que um dado (des)objeto de dança
contemporânea não é dança é também dizer que ela não pode vir a ser
dança ou, ainda, e melhor, que a dança não pode vir a ser isto. Trata-se
de uma legislação sobre o futuro da dança, pois o que faremos se isto
tornar-se arte?
A dança contemporânea ainda e sempre não decidiu o que a dança
é e, assim, o que ela deve ser. Ela deambula na direção da véspera de
sua origem para abrir a fechadura que lhe põe o conceito. Sair do jogo
dos pressupostos que diz: Sabemos o que é dança. Dancemos a partir
daí., para dizer: A dança não se sabe. A dança não se sabe nunca.
Voltemos sempre aí. Está é a única condição do dançar imediatamente
agora. Condição também honesta de qualquer pensamento crítico a seu
respeito. Seguindo Gilles Deleuze, o que se encontra na origem? Não o
ser, a essência imutável das coisas, mas a diferença, as coisas em (sua)
diferença. O que fazer quando a multiplicidade, a variabilidade, encontra-
se na origem?
Foucault nos apresenta Nietzsche, o genealogista, aquele que “tem
o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica. A
genealogia não se opõe à história (...) se opõe à pesquisa da origem”
(FOUCAULT, 1998, p. 16 - 17). E nos convida: “Tornar-se mestre da
história para fazer dela um uso genealógico, isto é, um uso rigorosamente
antiplatônico” (FOUCAULT, 1998, p. 33). Pensar o processo histórico a
partir de Nietzsche visitado por Foucault parece mais interessante para
aqueles que não buscam a origem genealógica das coisas, mas tentam
antes e/ou conjuntamente fazer a genealogia da origem. E isto não é um
mero jogo de palavras.
Atrás das coisas há algo inteiramente diferente: não seu
segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas
não tem essência, ou que sua essência foi construída
peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas.
(...) herança não é aquisição, um bem que se acumula e
se solidifica: é antes de tudo um conjunto de falhas, de
fissuras, de camadas heterogêneas que a tornam
instável, e, do interior ou de baixo, ameaçam o frágil
herdeiro (...) A história genealogicamente dirigida não

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tem por fim reencontrar as raízes de nossa identidade,
mas ao contrário se obstina em dissipá-la; ela não
pretende demarcar o território único de onde nós viemos,
essa primeira pátria à qual os metafísicos prometem que
nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as
descontinuidades que nos atravessam (...) clarificar os
sistemas heterogêneos que, sob a máscara de nosso eu,
nos proíbem toda identidade. (FOUCAULT, 1998, p. 18,
21, 34-35)
Para seguir uma tal convocação, será preciso fazer sempre a
genealogia da dança, ou seja, submeter os discursos de/sobre a dança
ao método genealógico (Nietzsche/Foucault) para colocar a descoberto
as formas de poder intrínsecas às respostas acerca do que ela é. Trata-
se de uma denúncia das regras que modelam o que pode ser pensado
e dito, como forma de resistência e de luta contra os saberes que se
legitimam à revelia da atenção ao coeficiente de diferença intrínseca ou
interna que a dança comporta. Fazer a genealogia da dança na dança
contemporânea significa elaborar uma reflexão crítica das práticas
discursivas, dos enunciados e das categorias filosóficas, que ancoram
as possibilidades de pensar a dança a partir de seu objeto de
conhecimento. Na seara dos estudos em dança, isso pode significar colher
da dança contemporânea sua potência de heterogeneidade,
necessariamente dissensória, e arrastá-la para os discursos a serem
feitos sobre/com ela, aproveitando o esboroamento permanente que ela
opera no objeto de especificidade, no objeto de conhecimento, da dança
como a própria potência de seu pensar.
Na recusa em dizer o que é dança contemporânea, uma política.
Dizem Deleuze e Guattari: “seguindo o veredito nietzscheano, você não
conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto
é, construído numa intuição que lhes é própria” (1992, p. 15). Não é isto
o que faz a dança contemporânea pedindo a seu espectador que ele
invente um conceito de dança a partir da recusa (do artista e, por
extensão, do espectador-crítico-curador) em dizer o que é (dança) e fazer
a si a pergunta? Trata-se de uma nova ontologia do conceito que diz “o
acontecimento e não a essência ou a coisa” (DELEUZE; GUATTARI, p.
33). “Por isso, ele não é referencial, mas auto-referencial. Ele põe a si
mesmo e põe seu objeto no mesmo instante de sua criação. Assim, o
conceito não diz a coisa, mas busca na coisa, o seu acontecimento”
(SCHÖPKE, 2004, p. 140). Ao invés de se dedicar a encontrar a raiz da
dança contemporânea, talvez seja mais interessante explorar o seu
rizoma, os pontos de contato das várias malhas que se desenvolvem
simultaneamente e em várias direções segundo um devir sem projeto,
constituindo, deste modo, as identidades contemporâneas de dança a
partir da única marca inaugural que lhes parece caber – a diferença.
Identidade ambígua e mesmo contraditória que não poderia ser outra
senão uma espécie de não-lugar onde o que sempre retorna é a diferença.

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A dança contemporânea talvez seja uma promessa (de dança) sempre
repetida e adiada e retornada como tal do fundo do devir; uma promessa
deslocada da lógica da promessa (futuro), à deriva de si mesma. Nesse
ambiente nenhuma ontologia metafísica, nenhuma te(le)ologia metafísica.
Tal como nos sugere Louppe: “em uma zona de expressividade ainda
turva e mal explorada pelos saberes estéticos, a dança pertence à
ontologia tanto quanto à filosofia da arte”20 (2004, p. 21). A dança
contemporânea pede por uma nova ontologia que admita o devir qualquer
da dança por acolher a potência (política) de heterogeneidade que ela
comporta. Uma ontologia que não poderia ser outra senão uma ontologia
da diferença (Gilles Deleuze), uma desontologia portanto.
Como resposta à pergunta “O que é dança contemporânea?”, a dança
contemporânea devolve a própria pergunta. Se a dança contemporânea
repete a pergunta ao invés de respondê-la, uma vez que não há resposta
possível, não o faz repetindo-a como um retorno do mesmo, pelo contrário,
como eterno retorno da diferença ou, com Giorgio Agamben, em diferença.
Não é mesmo isso o que retorna nas danças do século XX? Talvez um
coeficiente de diferença interna, uma diferença discreta, ou se tormamos
de empréstimo a Deleuze, de diferença menor, responsável pelo
esboroamento constante do terreno, impossibilitando a edificação de
qualquer tradição. Diferença responsável também por um eterno estado
de ambiguidade presente nos (des)objetos de dança de Bausch, Bel,
Ciríaco, Duncan, Levi, Nestorov, Nijinski, Paredes, Paxton, Saldanha,
Stutz, Rainer, Rodrigues, Torres e de tantos outros. Ambigüidade de um
objeto que não é dança, mas também não deixa de ser; permanece no
limiar de sua recusa em passar a ser dança e sua correlata incapacidade
de já não sê-lo. Em seu estado de desaparecimento, a dança, entretanto,
ali permanece; permanece durando como pergunta.

REFERÊNCIAS

BLANCHOT, Maurice. A Conversa infinita. São Paulo: Escuta, 2001.


DE DUVE, Thierry. Au nom de L’art: pour une archéologie de da
modernité. Paris: Les Éditions de Minuit, 1989.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Rio de Janeiro:
Editora 34, 1992.
LEPECKI, Andre. Exausting dance: performance and the politics of
performance. New York: Routledge, 2006.
LOUPPE, Laurence. Poéthique de la danse contemporaine. Bruxelas:
Contredanse, 2004.
SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o
pensador nômade. São Paulo: Edusp, 2004.

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_________
Notas

1
Pesquisadora de dança e dramaturgista/diretora. Professora do setor de estudos teórico-
filosóficos em dança dos cursos de dança da UFC – Universidade Federal do Ceará. Doutoranda
em Artes Cênicas pela UNIRIO com a pesquisa “Por uma (des)ontologia da dança em sua
(eterna) contemporaneidade”. Mestra em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ. Foi
contemplada com o Prêmio FUNARTE de Dança Klauss Vianna/2008 para montagem do
espetáculo Três Mulheres e um Café: uma conferência dançada com o pensamento em Pina
Bausch (Espaço SESC/RJ/2010). Concebeu e organizou, junto com os Professores Doutores
Roberto Pereira e Charles Feitosa, o I e II Encontro Internacional de Dança e Filosofia (RJ/
2005 e 2006). Colunista do portal idança (www.idanca.net).
2
Intérprete-criadora carioca formada na Escola Angel Vianna (Rio de Janeiro, 1996). Participou
da Lia Rodrigues Companhia de Danças de 1996 a 2002. Desenvolveu, além de In-Organic,
outros trabalhos-solo: Massa de Sentidos (2004) e Imagem (2003). Premiada no Brasil e no
exterior, desenvolveu, junto com Flavia Meireles, o espetáculo duo Em redor do buraco tudo
é beira (2009).
3
Bailarina fundadora do Grupo Corpo, integrou posteriormente a Lia Rodrigues Companhia de
Danças onde atuou também como assistente de direção. Desde 2003, desenvolve seus trabalhos-
solo (DeCor, 2003; Absolutamente só, 2005; Estudo para impressões, 2007) apresentando-se
no Brasil e no exterior. Em 2008, trabalhou uma releitura dos seus trabalhos anteriores no
espetáculo 3 solos em 1 tempo.
4
Bailarino e coreógrafo, formado pela Escola (1996) e Faculdade Angel Vianna (2010), fundou
com Gustavo Ciríaco a Dupla de Dança Ikswalsinats onde atuou, como coreógrafo e intérprete,
de 1995 a 2005. Dançou nas companhias cariocas Marcia Rubin e Atelier de Coreografia
entre 1996 e 2000. Desenvolve, desde então, trabalhos-solo, coreografa pequenas peças e
espetáculos de dança, colabora com outros artistas em seus trabalhos.
5
Bailarino e coreógrafo, estudou ciência política e formou-se em dança contemporânea na Escola
Angel Vianna (1996). Fundou com Frederico Paredes a Dupla de Dança Ikswalsinats onde
atuou como coreógrafo e intérprete, de 1995 a 2005. Desenvolve trabalhos-solo e em colaboração
com outros artistas brasileiros e estrangeiros, como Aqui enquanto caminhamos, com Andrea
Sonnberger (2006). Estreou os espetáculos: Still – sob o estado das coisas (2007); Nada. Vamos
ver (2009) e Eles vão ver (2010).
6
Dani Lima, Marcela Levi e Alex Cassal. Flavia Meireles substituiu Dani Lima no 2o elenco.
7
Intérprete-criadora, dançou na Lia Rodrigues Companhia de Danças de 1996 a 2007, onde
também atuou como assistente de direção. Realizou trabalhos de colaboração com vários artistas
da dança e das artes visuais. Desenvolveu em 2007 o trabalho-solo Carne, primeira parte do
projeto Meu corpo é minha política que foi finalizado, em 2010, com o espetáculo-solo Eu
prometo, isto é politico.
8
Este segundo elenco de Ma contava ainda com a bailarina Mariana Roquete Pinto. No primeiro
elenco dançavam Denise Stutz, Duda Maia e a própria Lia Rodrigues.
9
Premiada coreógrafa carioca, reconhecida nacional e internacionalmente, fundou sua
companhia em 1990, quando de sua chegada da França onde atuou como bailarina na
companhia de Maguy Marin. Criadora do longevo festival Panorama da Dança Contemporânea
(1992), onde atuou como diretora artística até 2005. Coreógrafa e diretora de vários espetáculos:
Folia (1996); Aquilo de que somos feitos (2000); Formas Breves (2002); Incarnado (2005);
Pororoca (2009). Desde 2003, sua companhia reside no hoje intitulado Centro de Artes da
Maré, no Complexo da Maré (RJ), um lugar de partilha, convivência e de troca de saberes,
direcionado para a formação, criação, difusão e produção das artes.
10
Astrid Toledo, Cristina Souza, Maria Acserald e Charles Siqueira.
11
Bailarina e coreógrafa, trabalhou na Companhia Regina Miranda e Atores-bailarinos por oito
anos. Fundou, em 1996, a Paula Nestorov Cia. De Dança, criando, em parceria com o compositor
Antonio Saraiva, os espetáculos Chegança (1997), Guirlanda (1999) e Orquestra (2001).
12
Bailarino e coreógrafo, fundou o Atelier de Coregrafia em 1987. Completando em 2011, vinte
e quatro anos de trabalhos ininterruptos, a companhia estreou, além do premiado Dança de
III (1996), com diversas apresentações no Brasil e no exterior, os espetáculos: A Fase do Pato
Selvagem (1998); Sopa (2000); ExtraCorpo (2006); Monocromos (2007); III Danças (2008);
Paisagem concreta (2009). Dentre as produções fora do âmbito do Atelier, João Saldanha
coreografou os solos Eles Assistem e Eu Danço (2005) e Bambi (2009), especialmente criados

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para os bailarinos Mônica Burity e Jamil Cardoso, respectivamente, e o espetáculo Qualquer
coisa a gente muda (2010) para Angel Vianna e Maria Alice Poppe.
13
Tradução da autora. No original: There was nothing in the performance (he) would describe as
dance, which he defined as people moving rithymically (…) usually to music but not always and
conveying some emotion.
14
Tradução da autora. No original: (…) on baptisera selon un villain anglicisme malheureusement
sans equivalent dans notre langue de spécifique.
15
Tradução da autora. No original: (…) l’action, la conscience du sujet dans lemonde.
16
Optamos, por questão de estilo, em manter n’importe quoi em francês na tradução, pelo tanto
que o acento da língua francesa acrescenta ao sentido e precisão da expressão, o que se perde
em seu equivalente em português. Isso acontece sem prejuízo do entendimento do leitor de
língua portuguesa uma vez que o termo será explicado logo a seguir.
17
Tradução da autora. No original: L’art contemporain apparaît comme le règne du n’importe
quoi. (...) La formule ceci n’est pas de l’art (...) traduit le sentiment du n’importe quoi e le barre
aussitôt d’un interdit.
18
Tradução da autora. No original: La phrase ceci est de l’art (...) qu’elle s’applique aux oeuvres
du passé ou à celles de l’art moderne, au readymade ou en verité à n’importe quoi, elle nomme
un ceci d’un nom inexponible par référence à une Indée indémontrable. “L’art n’existe pas, il se
déclare”, disait Rosenberg. Ce n’est pas un objet, mais il fait l’objet d’une déclaration.
19
Entender como reconhecer; pensar como relembrar e quem fala aqui é Platão.
20
Tradução da autora. No original: Dans un secteur d’expressivité encore trouble et mal exploré
par les savoirs esthétiques, la danse concerne l’ontologie tout autant que la philosophie de l’art

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