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CDD: 302.23
CDU: 316.77
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Eu narrador e a vida como relato
Depois, quando eu aprendi a ler, devorava os livros, e pensava que eles
eram como árvores, como bicho, coisa que nasce. Não sabia que havia
um autor por trás de tudo. Lá pelas tantas eu descobri que era assim e
disse: "isso eu também quero". [... mas ... ] Escrever memórias não faz
meu estilo. É levar ao público passagens de uma vida. A minha é muito
pessoal.
Clarice Lispector
Acho bom aparecer nessas revistas de celebridades ... O dia mais triste
da minha vida será aquele em que os fotógrafos virarem as costas para
mim. Vou achar que não sou mais uma pessoa querida, não sou mais
interessante.
Vera Loyola
procurada fora dos textos: no mundo real, nas relações entre autores e
leitores. Foi isso o que descobriu o crítico literário Philippe Lejeune em
1975: as obras autobiográficas se diferenciam de todas as demais porque
esta~~_leceaj .llm "pacto de leitura" ue as consagra como tais. Em que
~ consiste ta pacto? Na crença, por parte do leitor, de que coincidem as
identidades do autor, do narrador e do protagonista da história que está
sendo contada. 1 Em suma:
-"'" .....,
se o leitor
..
acredita que o autoi;_Q --.
narrador e
-----~~- ~,,-~~-----~-----~·,,,__-...,,,.~.,...- -~--~--=-----
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\\~y Paula Síbília
y·
e instável onde convergem todos os relatos de si, também é inegável que
.··.. ·~~·-se trata de um tipo muito especial de ficção. Pois além de se desprender
do magma real da própria existência, a~a p~~~~~o um forte efeito
no mundo:. nada menos 9 ue eu, um efeito-~to. if-~~~~~~ã- 1r
ria, p~I~-~ornos feitos desses relatos: eles são a matéria que nos constitui 1í
i
enquanto sujeitos. A linguagem nos dá consistência e relevos próprios,
pessoais, singulares, e a substância que resulta desse cruzamento de naF-
rativas se (auto)denornina eu.
A experiência de si corno um eu se deve, portanto, à condição de nar-
rador do sujeito: alguém que é capaz de organizar sua experiência na
primeira pessoa do singular. Mas este não se expressa unívoca e linear-
mente através de suas palavras, traduzindo em texto alguma entidade
que precederia o relato e seria. "mais real" do que a mera narração. Em
vez disso, a subjetividade se constitui na vertigem desse córrego discursi-
vo, é nele que o eu de fato se realiza. Pois usar palavras e imagens é agir:
graças a elas podemos criar universos e com elas construímos nossas
subjetividades, nutrindo o mundo com um rico acervo de significações.
A linguagem não só ajuda a organizar o tumultuado fluir da própria
exjJeriência e a dar sentido ao mundo, mas também estabjjg_a o espaç_o_e
j
i
< ordena o tempo, em diálogo constante com a multidão de outras vozes
'3~~tarnbérn nos modelam; coloreiam e recheiam. Há limites, porém,
para as possibilidades criativas desse eu que fala e desse eu que se nar-
ra. Pois o narrador de si não é onisciente: muitos dos relatos que dão
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O show do eu
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Paula Sibilia
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O show doeu
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O show doeu
mais ou menos perceptíveis a olho nu. Além disso, arremata com um ve-
redicto bastante sombrio para o futuro das belas-artes literárias: "Nesta
velocidade, esse tipo de atividade tende a desaparecer em meio século." 4
Refere-se à leitura de contos e romances, prevendo a definitiva - e muito
próxima - extinção do velho mundo das ficções escritas e impressas.
Claro que essas previsões são sempre arriscadas; no entanto, é difícil
ignorar que os hábitos de leitura estão mudando. Apesar da complexi-
dade do fenômeno e dos riscos inerentes a todo ensaio de premonição,
parece evidente que a cultura ocidental contemporânea não mais se en-
quadra no clássico horizonte da civilização letrada. E é bem provável
que nem procure mais esse objetivo. Urna ruptura histórica, então? De
-vacordo com o livro intitulado História da leitura no mundo ocidental, no
.y'/ rnorn~~to atual estaria ocorrendo urna "terc~ir: Kyolu~ã~" _nesse campo
1 \./.da at1v1dade humana, decorrente da transrn1ssao eletromca dos textos e
{,A('/ dos novos modos de ler assim inaugurados. 5 A primeira dessas rupturas
teria ocorrido em meados do século XV graças à invenção da imprensa,
que alterou as formas de elaboração dos livros e multiplicou a sua repro-
dução, um processo que derivou no surgimento da leitura silenciosa. O
segundo corte teria ocorrido em meados do século XVIII, com a trans-
formação do leitor intensivo no extensivo: enquanto o primeiro lia e
relia um corpus limitado de textos, o segundo passou a ter urna crescente
diversidade de livros à sua disposição. Agora estaríamos ingressando em
outra era: a terceira, ligada às vertigens dos computadores e da internet.
Seria vão menosprezar a influência que esses novos artefatos - cada
. 1
vez mais utilizados para pensar, escrever, ler e comunicar - estão exer-
cendo na maneira que pensamos, escrevemos, lemos e nos comunicamos.
Os textos eletrônicos, escritos e lidos nas telas dos computadores, muitas
vezes pontilhados de sons e imagens fixas ou em movimento, instauram
novos hábitos e práticas; tanto para os autores quanto para os leitores.
Por isso, é no suporte tecnológico onde reside a primeira e mais óbvia
diferença entre as novidades que configuram a Web 2.0 e as velhas ar-
tes manuscritas da auto-exploração. À materialidade áspera e tangível
da folha de papel, do caderno, da tinta, das capas duras e do envelope,
~:
opõe-se a etérea virtualidade dos dados eletrônicos. Mesmo dependendo
de urna pesada - e custosa - parafernália rnaquínica ligada na tornada,
após digitarmos no teclado os signos se propagam na magia etérea dos
Paula Sibilia
1/
_sua referência autoral. Os acontec1men~aes·relãta~
autênticos e verdadeiros porque supõe-se que são experiências íntimas
Jr
1
âe um indivíduo real: o autor, narrador e personagem principal da his-
tória. Um ser sempre único e original, po~s diminutÔ-que-eie possa
ser-- eu, você, qualquer um de nós. Pois os fatos relatados nos gêneros
autobiográficos são considerados verídicos e, inclusive, verificáveis. Por
isso, às vezes, nos escritos éxtimos que circulam pela internet ainda pa-
rece assomar algum vestígio longínquo da velha aura. Ou, quem sabe,
uma vontade sempre frustrada de recuperar essa originalidade perdida.
Talvez isso aconteça porque esses relatos estão envolvidos em um halo
autoral que remete, por definição, a uma certa autenticidade - algo que
se hospeda no próprio coração do "pacto de leitura" antes mencionado.
- e implica uma referência ·ª alguma verdade, um vínculo com uma vida
real e com um eu que assina, narra e vive o que se conta.
Deixando esse importante assunto em suspensão, agora convém nos dis-
tanciarmos um pouco do pólo subjetivo destes relatos (o autor, narrador e
personagem) para observarmos algumas características do seu pólo objeti-
vo: os textos, sons e imagens; as obras por eles criadas. De um modo geral,
nos novos espaços da internet se cultiva um tipo de escrita com fortes mar-
cas de oralidade. É habitual o recurso à transcrição literal da fonética e um
(.
tom coloquial que evocá as conversas cotidianas. O estilo desses escritos
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--11"!
O show do eu
não costuma remeter a outros textos, nem que seja para se sublevar contra
eles ou para fundar ativamente uma nova linguagem. Sua feitura não se
apóia em parâmetros tipicamente literários ou letrados, nem de maneira
explícita, nem tampouco implícita nas entrelinhas ou no sentido do esto
escritural. A ém disso, impera certo escui o com relação ~s formalida-
des êlã l~guagem e às regras da escrita. Mais propulsados pela perpétua
pressa do que pela perfeição, estes textos costumam ser breves. Abusam
das abreviaturas, siglas, acrónimos e emoticons. Às vezes juntam várias
palavras eliminando os espaços, enquanto ignoram os acentos ortográficos
e os sinais de pontuação, bem como todas as convenções referidas ao uso
de maiúsculas e minúsculas. O vocabulário também é limitado. Se consi-
derarmos ainda o fato de costumarem praticar uma ortografia lastimosa
e uma sintaxe relaxada, em casos extremos, os textos deste tipo podem
beirar os limites do incompreensível - pelo menos, para aqueles que não
foram treinados na peculiar alfabetização do ciberespaço.
i
"A arte da conversação está morta, e logo estarão mortos quase to- i-
dos os que sabem falar", metralhou Guy Debord em 1967, nas páginas
de seu livro-manifesto intitulado A sociedade do espetáculo. 6 Isso pode
parecer curioso em uma época em que os telefones celulares proliferam <
por toda parte e, junto com eles, as conversas se multiplicam sem limites. ~
Paralelamente, e muitas vezes até mesmo simultaneamente, os chats e os
programas de mensagens instantâneas invadem os computadores, com
uma rede de contatos permanentemente "ligada" ao espaço de trabalho,
convidando para um diálogo constante, múltiplo e sem fim. Além disso,
o tom coloquial da linguagem oral que permeia as escritas promove um
excesso de informalidade verbal, que não cessa de espalhar-se sob a influência
dessas novas formas de diálogo digitado. Não apenas na internet, mas
também nas mensagens de texto enviadas de um celular para outro e,
aliás, por toda parte.
Resulta paradoxal aludir à morte da conversação neste contexto,
quando poderíamos admitir mais obviamente a extinção da leitura, por
exemplo, ou mesmo a--morte da escrita. Com a popularização da co-
municação mediada por computador, porém, a versão oposta de todas
essas sanções funestas também costuma frequentar os debates. Há quem
estime que não só estaria renascendo certa arte da conversa, como tam-
bém ganhariam novo fôlego as vituperadas artes da escrita e da leitura.
Paula Sibilia
Antes, bem antes, era diferente. O fluxo narrativo das velhas artes de J:> ~~
recitar, entrelaçadas aos modos de vida rurais e às atividades artesanais ,.ri:~'
1
partilhadas, constituíam um "fazer ºunto". Os ouvintes participavam ..y
do relato narra o, e este possuía uma instabilidade vivente: era aberto
por definição e se metamorfoseava ao sabor das diversas experiências
enunciativas. Tratava-se de uma arte irmanada às distâncias, tanto no
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O show doeu
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/
~~~ Paula Sibilia
I
da nossa civilização em que os jovens alegremente "inexperientes" se
apropriaram do cetro, iniciando um caminho triunfante que desembo-
caria em uma espécie de imposição da juventude obrigatória e universal.
Mas Benjamin escreveu antes, bem antes mesmo da aparição dos com-
putadores e outros gadgets eletrônicos que hoje povoam nossos lares e
paisagens, abolindo qualquer pretensão dos mais idosos de lidar com a
juventude invocando sua própria experiência. Se três ou quatro décadas
atrás "não confiar em ninguém com mais de trinta anos" implicava uma
espécie de rebeldia provocadora, hoje as empresas que lideram nosso
mundo - especialmente nas florescentes áreas de publicidade, marketing
e informática - costumam demitir seus servidores quando atingem essa
idade. Não precisamente por conta de sua "falta de experiência", mas
sob o argumento de terem ficado velhos demais, tendo portanto perdi-
do a espontaneidade e a criatividade inerentes à sacrossanta juventude.
Como o próprio Benjamin advertiu, porém, junto com as evidentes no-
f vas riquezas também teria surgido uma nova forma de miséria, acompa-:
\s~ nhando esse "monstruoso desenvolvimento da técnica". Daí o ingresso
~"""' da humanidade em uma nova barbárie, um devir histórico que exige uma ;
\/' difícil prova de honradez: admitir e confessar a própria pobreza, a nossa 1
flagrante falta de experiência.
Talvez seja esse o germe da declarada "pobreza narrativa" de mui-
tos blogs confessionais de hoje em dia, prova da despretensão explícita
desses novos narradores interativos. Porém, essa honradez face à versão
mais nova da "barbárie" talvez não atinja de igual modo seu autor ou
seu protagonista: contenta-se com afligir apenas o modesto narrador.
Mesmo que todos três coincidam na mesma persona, como propõe o
"pacto de leitura" previsto por Lejeune, que ao confiar nessa tríplice
coincidência identitária consagra-nos como gêneros autobiográfico~. De
todo modo, ainda haverá ocasião de examinar com maior atenção as
figuras do autor e do protagonista dos novos gêneros confessionais da
internet; agora, convém voltar novamente o foco para essa figura desfa-
lecente do narrador.
De acordo com a análise de Benjamin, teria sido o romance, como a
grande forma narrativa do século XIX e do ethos burguês, o encarrega-
do de anunciar os primeiros indícios da agonia do narrador. Contudo,
o verdadeiro golpe mortífero não teria lhe sido dado por esse gênero
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O show doeu
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Paula Sibilia
história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitu-
de que não existe na informação".
, É precisamente nesse sentido que Umberto Eco denuncia uma irre- E v'
cusável pobreza inerente à comunicação audiovisual, em comparação à
riqueza infindável da palavra. Ou, mais exatamente, seu menor nível
de exigências com relação ao público. "Enquanto um livro requer uma
leitura cúmplice e responsável, uma leitura interpretativa, o filme ou a
televisão mostram-nos as coisas já prontas'', explica Eco. É certo que
os narradores dos romances clássicos assinados por Gustave Flaubert
ou Henry James se demoravam em extensas descrições de paisagens e
personagens, com um preciosismo e um grau de minúcia que hoje podem
parecer antiquados ou até mesmo beirar a exasperação. Porém, apesar
dessa minuciosidade, delegavam ao leitor a tarefa de imaginar o rosto de
"uma mulher mais bela que uma obra de arte", por exemplo, ou o aspec-
to e o sabor que poderiam ter "a melancolia dos vapores" e "a amargura
das simpatias truncadas". Nem tudo estava dito. Ou melhor, nem tudo
era mostrado. Assim, e embora procure evitar "conclusões apresadas e
moralistas" quanto à inferioridade da comunicação visual em relação à
verbal, Umberto Eco admite que os narradores fílmicos se vêem obriga-
dos a "dizer mais'', a ser mais explícitos. É por isso que as telas oferecem
"coisas já prontas" com excessiva freqüência, livrando os espectadores
de fazer um esforço de interpretação pessoal.
~ \J~/ No entanto, a maior diferença entre ambas as formas de narrar talvez
~' não resida nessa explicitação à qual devem recorrer aqueles que utilizam
táticas audiovisuais, mas no outro extremo da comunicação, precisa-
. \J 1
m_ente: na at~tude do leitor ou espect~dor. "O leitor de romance qu:
nao pensa (nao colabora) perde essencialmente tudo", assevera Eco. Ja
o espectador cinematográfico que tenha idêntica atitude "no final do
:' \-" espetáculo estará convencido de estar levando para casa alguma coisa".
! ~ É habitual que os leitores de romances recusem os convites demasiada-
_i..·-
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O show do cu
Com o declínio não apenas das velhas artes daquele narrador benja-
miniano de tempos remotos, mas também da leitura de romances como
os de Flaubert e Henry James, no mundo contemporâneo não só se
multiplicam as informações como também se popularizam os códigos
audiovisuais nos mais diversos âmbitos. Inclusive, é claro, nos gêneros
autobiográficos. Tudo isso parece confirmar o diagnóstico de Walter
Benjamin quanto à morte do narrador - ou, pelo menos, daquele nar-
rador. Tanto a necessidade de explicitar e "dizer mais" apontada por
Umberto Eco, que se atrela ao universo das imagens (e da informação)
em contraposição ao mundo mais implícito das palavras (e da ficção
literária), como a "recepção preguiçosa" que estas novas expressões
midiáticas permitem com crescente tolerância. Por isso não deixa de
ser sintomático que o momento contemporâneo costume se apresentar
como "a era da informação".
Deve ter sido este o horizonte que Guy Debord vislumbrou em tom
profético no ano de 1967, quando vaticinou que a arte da conversação
estava morta e que logo feneceriam todos seus praticantes, pois o espe-
táculo era "o oposto do diálogo". Digno representante daquela enérgica
geração contracultural que um ano mais tarde deslancharia o episódio
conhecido como Maio Francês, este autor denunciara a primazia do
espetáculo como "o sol que jamais se põe no império da passividade
moderna". Mais do que um conjunto de imagens, o espetáculo se trans-
-formou em nosso modo de vida e em nossa visão do mundo, na forma
c~mo nos relacionamos uns com os outros e na maneira com que o
mundo se organiza. Tudo é permeado pelo espetáculo, sem deixar pra-
ticamente nada de fora. Os contornos dessa gelatinosa definição ultra-
passam aquilo que se exibe na mídia, pois o espetáculo "recobre toda a
superfície do mundo e se banha indefinidamente em sua própria glória".
Por isso, em vez de se limitar à enxurrada de imagens que se mostram
nas telas e que trituram as velhas potências das palavras - sejam escri-
tas ou conversadas - , o espetáculo é a transformação do mundo nessas
imagens. E mais ainda: "É capital em um grau tal de acumulação que se
transforma em imagem." 12
Para constatar as profecias de Debord, pode ser útil folhear um par de
livros como A arte da conversação, do historiador inglês Peter Burke, e
A cultura da conversação, da italiana Benedetta Craveri. Ambos os au-
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O show do eu
~--=======~~iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiliillliimi------...1
~ ·~,l.·-:.
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l
experiência coletiva do narrador vai ficando ainda mais distante, visto
que não apenas os aparelhos de rádio e televisão abandonam a sala fami-
liar para se instalarem nos quartos particulares, mas também costumam
sair para as ruas plugados nos corpos, ouvidos e olhos de seus donos.
Nos últimos anos, ampliou-se o catálogo de artefatos que já não são de
uso público nem familiar, mas estritamente pessoal: computadores, in-
ternet, reprodutores de MP3, notebooks, palmtops, telefones celulares.
Até o cinema abandona os grandiosos teatros do centro da cidade - e
inclusive as salas acolchoadas dos shoppings - para se instalar junto ao
sofá ou ao lado da cama de cada espectador, primeiro no formato da fita
cassete analógica e logo nos diversos discos digitais.
Contudo, nada disso parece implicar um retorno à solidão, ao silên-
cio e ao "monólogo interior" dos leitores-escritores do século XIX. Tais
atributos não combinam com as paisagens e os ritmos contemporâneos.
Não é apenas a multiplicação de vozes e a ambígua reivindicação do
ruído que hoje se manifestam nos âmbitos mais diversos; além disso,
as atividades em grupo são tidas como mais criativas e produtivas do
que o clássico trabalho individual. E a capacidade de fazer várias coi-
sas ao mesmo tempo é mais estimulada do que a de focar a atenção em
uma tarefa contínua e persistente. A abrangência inédita desse tipo de
mudanças socioculturais, inclusive, pode levar a questionar se o "trans-
torno de déficit de atenção e hiperatividade", conhecido como TDNH,
não seria melhor compreendido como um traço característico das no-
vas subjetividades - perfeitamente compatível com o mundo em que
vivemos, e até mesmo por ele incitado -, em vez de uma estranha
epidemia infantil.
Como quer que seja, parece que a nossa habilidade "multitarefa" evo-
lui junto com a dos nossos computadores, e é provável que esse processo
não implique apenas uma perda (da velha capacidade de concentração),
mas também um ganho nas novas formas de cognição que estão se en-
gendrando. "Os jogos de computador podem melhorar alguns aspectos
da atenção, tal como a capacidade de contar objetos rapidamente na
periferia do campc;> visual", afirmam pesquisadores que investigam essa
"ampliação cognitiva". Outros estudos desse tipo constataram que aque-
les que navegam pela web em busca de informações passam menos de
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O show do eu
dois segundos em um site antes de passar para outro. Em vez - ou, pelo
menos, além - de ver nesse dado um mero indício de desconcentração e
ansiedade, os especialistas enxergam um sinal da capacidade de análise
incisivo e veloz que os novos meios de comunicação promovem. Seja
como for, em um ponto todos parecem concordar: nesse novo contexto,
além de mais "interativos", :?~ sujeitos estão se tornando "mais visuais
d~~".16
No compasso de uma cultura que se ancora crescentemente em ima-
gens, desmonta-se o velho império da palavra e proliferam fenômenos
como os aqui examinados, nos quais a lógica da visibilidade e o mer-
cado das aparências desempenham papéis primordiais na construção
de si e da própria vida como um relato. Isso ocorre, porém, em meio a
um grau de espetacularização cotidiana que talvez nem o próprio Guy
Debord teria ousado imaginar. Um contemporâneo do pensador situa-
cionista francês escreveu a seguinte frase em 1968: "Daqui a uns poucos
anos, o homem será capaz de se comunicar de forma mais efetiva atra-
vés de uma máquina do que face a face." O autor deste depoimento foi
um dos pioneiros na pesquisa sobre interfaces gráficas em computação,
cujo trabalho contribuiria grandemente para a popularização do uso da
internet algumas décadas mais tarde: J.C.R. Licklider.17 Quem estava
certo, nesses diagnósticos tão opostos proferidos há quatro décadas?
Debord, com sua sombria sociedade do espetáculo e a morte da con-
versação? Ou Licklider, com suas luminosas interfaces para uma eficaz
comunicação informática?
Se respondermos à luz dos fenômenos contemporâneos aqui analisa-
dos, provavelmente iremos admitir que ambos os autores tiveram sua
dose de razão premonitória. Tu49 depende, é claro, do que se entenqa
por "comunicação efetiva". Naquele gesto intempestivo que deu origem
a Üm livro amda class1c'b-- e a um filme homônimo, hoje praticamente
esquecido - , Debord denunciava as tiranias de uma formação social
que naquele momento estava apenas assomando seus tentáculos, porém
já tendia a cercear o campo do possível. Ao mesmo tempo em que abria
outras possibilidade$ e outras portas da percepção, evidentemente, mas
sua crítica apontava para a padronização dàs trocas subjetivas. Denun-
ciava a asfixia de certas regiões da sensibilidade, a estimulação exclusiva
de algumas zonas e a hipertrofia de umas poucas, enquanto todas as
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O showdoeu
f sonagem. Essa definição pesa mais do que aquela referida a alguém que
faz, um sujeito que realiza uma atividade narrativa ou elabora um relato,
alguém que conta uma história sobre acontecimentos "exteriores" a si
próprio, inclusive fictícios, não reais. Não se trata mais, portanto, de um
narrador à moda antiga, e tampouco de um autor à moda burguesa.
Por isso, apesar das instigantes semelhanças, uma imensa distância
assoma entre os espetáculos do eu que borbulham nas telas contempo-
râneas e aquelas antigas sessões de autoconhecimento solitário plas-
madas nos diários íntimos tradicionais, assim como é cada vez maior
a brecha que nos separa do contexto histórico que fez germinar e viu
florescer tais práticas. Os rituais hermenêuticos daqueles diários ínti-
mos tinham as raízes bem fincadas naquela complexa trama de valo-
res e crenças que Max Weber denominara "ética protestante", uma
_., firme companheira do "espírito do capitalismo" em seus primórdios
industriais. Essas práticas estavam atreladas ao paradigma subjetivo do
Homo psychologicus; isto é, um tipo de sujeito que se supunha dotado
, de vida interior e que se voltava para dentro de si, que minuciosamen-
l:econstruía seu eu em torno de um eixo situado nas profundezas de
/ . sua interioridade psicológica. Porém, pelo visto, estamos cada vez mais
longe dessas configurações.
Vale efetuar aqui uma primeira comparação com outro gênero de não-
ficção hoje triunfante: os reality shows. Essas produções, que têm inva-
dido a televisão mundial nos últimos anos e, supostamente, não fazem
mais do que mostrar a vida real de um grupo de pessoas reais trancadas
em uma casa infestada de câmeras de TV, possuem vários aspectos em
comum com os rituais confessionais da internet. Aquilo que entre os pro-
tagonistas desses espetáculos televisuais ocorre de maneir:acaricaturesca
' )._ e deturpada pelo exagero - essa construção de si como personagens este-
,-)""reotipados e sem maiores espessuras, por meio de recursos performáticos
-.. ._ e de marketing pessoal - replica-se tanto nas modalidades autobiográ-
_-t . )I'"
ficas da Web 2.0 como no show da realidade cotidiana de qualquer um.
Essa tendência aponta para a autoconstrucão como personagens reais
_:.-'""" porém ao mesmo tempo ficcionalizados, de acordo com a linguagem al-
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O show do eu
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tamente codificada d~ mídia, administrando as táticas audiovi u:iis para
'gerenciar a própria exposição aos olhares alheios.
- O que significa tudo isto? Haveria uma espécie de falsidade, uma deplo-.
rável falta de autenticidade nas construções subjetivas contemporâneas? ·
Teria se generalizado o uso de máscaras que ocultam alguma verdade
fundamental, algo mais real que estaria por trás dessa imagem bem cons-
truída e literalmente narrada, porém fatalmente falsa ou fictícia? 9u, ao
contrário, será que essa multiplicação de autoficções estaria indicando o
advento de uma subjetividade lástica e mutante lib r .da ellfim-das ve-
lhas tiramas a identidade? Essa saturação atual de eu e você anunCiaria,
de maneira paradoxal, a definitiva extinção daquele velho eu sempre uni-
ficador e supostamente estável? Ou, antes, tratar-se-ia de um paroxismo
de identidades efêmeras produzidas em série, todas tão autênticas quan-
to falsas, porém fundamentalmente visíveis? A resposta a todas essas
questoes encerra uma complexidade que excede um simples sim ou não,
porque as relações entre verdade e mentira, ficção e realidade, essência
e aparência, verdadeiro e falso - que nunca foram simples - também
se complicaram. Para sair desse impasse, convém contextualizar o pro-
blema e observá-lo por uma perspectiva histórica, a fim de apreciar as
transformações que estão em andamento.
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