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Um modelo que segue a lógica do capital e outro modelo que tenta combatê-la.
O desenvolvimento do capitalismo no campo gera trabalhadores que estão em
movimento constante; se movimentam porque a estrutura do campo não os favorece: a
mecanização da agricultura e o desenvolvimento da indústria e do comércio geram um
desemprego estrutural. A alternativa que se apresenta é única: tornar-se camponês.
Ocupar terras, lutar por reformas e participar de políticas de crédito fundiário acabam se
transformando em saída para a ressocialização dessas pessoas excluídas pelo sistema. E
como já vimos, a ocupação de terras gera conflito. Mas é importante apontar que esse
conflito não é unilateral, na realidade é uma reação aos processos de exclusão causados
pelo desenvolvimento do capital no meio agrário. A ocupação não é o começo, nem o
fim desse conflito, somente uma resposta à expropriação, ao desemprego estrutural, às
desigualdades inerentes à introdução do capitalismo no campo (FERNANDES).
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Entendemos o agronegócio como uma estrutura capitalista que objetiva aumentar a lucratividade do
campo. É uma associação entre capital agroindustrial, latifúndio e capital financeiro: basicamente grandes
propriedades com grandes investimentos que visam acumular cada vez mais capital sem levar em
consideração a realidade daqueles que vivem no campo e do campo (CARVALHO, 2015, p. 137).
Explicitamos aqui um pouco da complexidade da questão agrária brasileira:
capital e campesinato em constante luta, criando e recriando formas de reprodução
social no mesmo espaço, gerando conflitualidades e promovendo desenvolvimentos
com lógicas muito diferentes (FERNANDES). O capital tenta manter sua lógica e seus
princípios através da subalternização dos camponeses, que por sua vez, lutam por
autonomia política e econômica, este é o processo de destruição e recriação do
campesinato. O problema que perpassa essas relações se dá após a conquista da terra,
quando os camponeses passam a ser dominados pelo capital com a sujeição da renda de
suas terras. Percebemos aqui mais uma vez que o conflito é constante, quase como um
ciclo: essas relações sociais de dominação e resistência permanentes, geradoras de
conflitualidade, são pilares da questão agrária brasileira.
A conflitualidade gerada pelo desenvolvimento capitalista no campo impede a
superação da questão agrária. Paradoxalmente, a conflitualidade alimenta a si mesma,
propiciando o perpetuamento das tensões inerentes ao mundo agrário. Essas tensões são
reflexo de um modelo de desenvolvimento que alimenta o conflito através da
concentração de terras, riquezas e da submissão do camponês, e para além, quando este
resiste, ainda é preso, assassinado expropriado e politicamente anulado2.
Até aqui apontamos os eixos pelos quais tentamos compreender o debate
agrário: conflitualidade e modelo de desenvolvimento; mas pouco falamos sobre o
campesinato. O camponês é central no debate da questão agrária pois é justamente nele
que a materialidade do conflito irá se manifestar. Em outras palavras, o camponês é o
ator que se transformará e mostrará as deficiências do capitalismo e de seus avanços no
meio rural.
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Essa realidade somente pode ser alterada se outro modelo de desenvolvimento, que diminua a
conflitualidade e desconcentre terras e riquezas se implemente, e, nesse sentido, é que a resistência
campesina persiste, lutando por terra e reforma agrária, buscando a diminuição das desigualdades
estruturais do modo de produção capitalista. (FERNANDES, 2008)
Nesse sentido, precisamos entender como se deu o debate sobre o campesinato em três
blocos: as reflexões de Marx acerca da questão agrária, os teóricos do Paradigma da
Questão Agrária e os representantes do Paradigma do Capitalismo Agrário.
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Obra escrita originalmente em 1899.
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Obra também escrita originalmente em 1899.
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Obra escrita originalmente em 1924.
da introdução do capitalismo no campo. A exploração agrícola capitalista tem como
consequências a concentração fundiária, proletarização, expropriação e subalternização
do campesinato. A alternativa que se apresenta para a solução desses problemas é a
passagem para o socialismo, que configuraria uma nova forma de produção: os grandes
estabelecimentos agropecuários socialistas (GIRARDI, 2008).
Mais importante que a produtividade do sistema capitalista é o caráter
contraditório desse modo de produção, que destrói o camponês e o recria de acordo com
sua própria necessidade. Ao observar o que acontece na Alemanha de sua época,
Kautsky (apud GIRARDI, 2008) percebe que o estabelecimento capitalista concentra as
terras expropriando os camponeses, mas ao mesmo tempo, as arrenda ou vende para
outros. O que se percebe nesse processo é uma contradição inerente ao modo de
produção capitalista: ao mesmo tempo o que estabelecimento consegue mais terras, ele
expulsa a mão de obra trabalhadora do campo, e se torna necessário trazê-la de volta. O
campesinato é recriado pelo capital: “o grande estabelecimento pode expulsar quantos
camponeses quiser que uma parte destes voltará sempre a ressuscitar como pequenos
rendeiros” (KAUTSKY apud GIRARDI, 2008, p. 94).
Outro ponto que nos interessa na obra do alemão é diferença entre produção
capitalista e produção camponesa. O camponês é aquele que cultiva a terra com sua
família, e o que é produzido nela é usado para sobrevivência e troca, mas sem se tornar
mercadoria. Não existe a necessidade de produção de lucro, portanto sua renda provém
do mais-produto e não da mais-valia como na produção capitalista:
O que fica evidente dessa discussão é que o camponês, mesmo que inserido no
mercado, não é capitalista, pois funciona sob outra lógica. O capitalista é aquele que
explora mão de obra assalariada e se apropria da mais-valia no processo de produção. O
camponês é aquele que produz com a sua própria mão de obra e desfruta do consumo de
sua produção coletivamente. O camponês é aquele que vende produtos agrícolas, mas
que não vive da renda de sua propriedade e sim de seu trabalho, é aquele que precisa da
terra para transformar seu trabalho em garantia de sobrevivência e não para a obtenção
de lucro ou renda fundiária (KAUTSKY apud GIRARDI).
Diante de todos esses apontamentos podemos perceber que Kautsky compreende
a subordinação do campo ao capital, que se configura em um processo de recriação do
campesinato. O camponês feudal some, mas aparece um campesinato em constante
desintegração e recriação, situação que só seria sanada com a implantação do socialismo
e dos grandes estabelecimentos agropecuários socialistas.
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De acordo com suas necessidades. (GIRARDI, 2008, p. 99)
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Segundo Abramovay “o capitalismo é por definição avesso a qualquer tipo de sociedade e de cultura
parciais”. (ABRAMOVAY apud GIRARDI, 2008, p. 100)
forma a “base fundamental do progresso técnico e do desenvolvimento do capitalismo
na agricultura contemporânea” (ABRAMOVAY apud GIRARDI, p. 100).
O novo agricultor é o oposto do camponês, tendo somente a mão de obra
familiar como ponto comum. Esse agricultor familiar possui dinamismo técnico e
capacidade de inovação, podendo facilmente se integrar aos mercados capitalistas. Nos
países onde o capitalismo está mais avançado se percebe a gradual extinção do
camponês e sua substituição pelo agricultor familiar profissional. Essa transição só é
possível dentro de um sistema capitalista mais avançado onde o estado fortaleça a
formação dos mercados nacionais, somente assim é que os agricultores familiares
atingem a capacidade produtiva: “[...] a renda agrícola é um tema decisivo de discussão
pública e responde a critérios institucionalmente estabelecidos” (ABRAMOVAY apud
GIRARDI, 2008, p. 101).
Contribuições e críticas
Diversas críticas são construídas acerca dos teóricos aqui apresentados. Em
relação aos autores do PQA, é preciso compreender que seus pensamentos se limitaram
a um período específico, mas não se pode jamais deixar de considerar o processo de
diferenciação do campesinato. Se esse processo é ignorado, como feito por Abramovay,
a capacidade de adaptação e transformação do camponês é ignorada, é como se o
campesinato não pudesse absorver mudanças e incorporar tecnologia à sua produção,
quando na verdade é justamente sua capacidade de adaptação que permite sua existência
em diferentes modos de produção. O que precisa ser ressaltado é que não existem, em
separado, camponeses e agricultores familiares, mas sim
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De camponês para agricultor familiar.
possíveis pelas quais o campesinato se assume e suas estratégias de interação com o
capital. Na verdade, essa ideia acaba por homogeneizar os diferentes tipos de
campesinato, principalmente em um país como o Brasil que, como veremos depois,
possui uma diversidade infinita de camponeses. Além, acreditar nessa metamorfose é
acreditar na homogeneização do campo, onde o camponês perde sua herança de luta,
resistência, e passa a se conformar com as contradições presentes no sistema capitalista.
(GIRARDI, 2008)
Depois de todas essas contribuições podemos nos voltar às perguntas feitas no
início dessa seção: existe campesinato? Está ele fadado a desaparecer? O capitalismo o
transformará? Os paradigmas da questão agrária e do capitalismo agrário respondem a
essas questões de forma diferente. A partir dessas contribuições, das críticas realizadas
por Girardi (2008) e dos apontamentos de Shanin (2005) e Carvalho (2015) poderemos
responder concretamente essas questões.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O campesinato é, de fato, central nos debates acerca da questão agrária. Os
camponeses são a expressão material dos conflitos causados pelo desenvolvimento do
capitalismo no campo e por isso são alvos constantes de análises e debates teóricos.
Desde o fim do século XVIII teóricos marxistas debatem acerca da condição de
sobrevivência do campesinato com a introdução do capital no meio rural. Kautsky e
Lênin entendem que o sistema de produção capitalista, necessariamente, modifica as
estruturas de condição e reprodução social camponesa, e nesse sentido, o campesinato é
subordinado à nova ordem. De uma forma ou de outra, o campesinato é assimilado e
modificado pelo capital. Os autores não associam as formas de produção e reprodução
social camponesas à uma lógica diferente da hegemônica.
Chayanov é quem vai repensar esse processo de assimilação, compreendendo
que os camponeses possuem uma lógica própria, que foge da hegemonia do capital. É
por aqui que devemos avançar: o campesinato tem seu próprio modo de vida9, que não
pode ser anexado pelo capital. É por isso que os camponeses não se transformarão em
agricultores familiares profissionais, pois suas ações não visam lucro, mas sim,
condições de produzir e reproduzir socialmente. Entendendo que o modo de vida
camponês não se submete às aspirações capitalistas, aniquilamos as dúvidas a respeito
de sua não existência.
Os camponeses não só existem, resistem. Resistem à assimilação do modo de
produção hegemônico, resistem às tentativas de avanço do agronegócio, resistem às
tentativas de universalização. A luta constante para continuar existindo é a única coisa
que pode ser considerada universal dentro do campesinato. Qualquer outra
generalização não leva em consideração as diversas formas de se relacionar com o meio
e com as pessoas. Não existe um camponês idealizado, existem camponeses,
organizados das mais diversas formas com seus territórios e mercados.
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Que não é atraso, como defendido por Abramovay (1992 apud CARVALHO, 2008), pelo contrário, é
aquilo que permite sua existência.
REFERÊNCIAS