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Copyright © 1987 by Renato Mezan Copyright da edição em português para o Brasil: Editora Escuta

FICHA CATALOGRAFICA

CDU

159.964.2:296 Mezan, Renato


Psicanálise, Judaísmo: Ressonâncias
M 579 p. Renato Mezan — Campinas.
Escuta,
1986
1. Psicanálise 2. Judaísmo 3. Anti-Semitismo
I. Título

Para Yvoty

Ψ-2
SUMARIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................................................... 4
TÔNICA: O JUDAÍSMO DE FREUD (1a AULA).................................................................................................................... 5
A Emancipação e suas Conseqüências...................................................................................................................................... 5
Um dilema para o indivíduo...................................................................................................................................................... 8
"Queria contar-lhes brevemente.............................................................................................................................................. 11
Perseverança, Racionalidade e Judaísmo ................................................................................................................................ 16
DOMINANTE: IDENTIDADE JUDAICA (2a. AULA)........................................................................................................ 20
Identidade e Identificação ....................................................................................................................................................... 21
Judaísmo e Conflito Edipiano ................................................................................................................................................. 23
O Gorro de Pele....................................................................................................................................................................... 26
O Ritual da Circuncisão........................................................................................................................................................... 28
Narcisismo dos Pais e Identidade dos Filhos .......................................................................................................................... 31
INVERSÃO DA DOMINANTE: EM TORNO DO ANTI-SEMITISMO (3a aula) ................................................................ 34
Imagens dos Judeus................................................................................................................................................................. 35
Angústias e Defesas ................................................................................................................................................................ 39
O Diabo e os Judeus................................................................................................................................................................ 40
As Fantasias Arcaicas ............................................................................................................................................................. 42
Sexo, Pecado e Feiticeiras....................................................................................................................................................... 45
O Século XVIII ....................................................................................................................................................................... 50
Advento do Anti-Semitismo Moderno .................................................................................................................................... 51
Duas Jóias do Pensamento Reacionário .................................................................................................................................. 53
ACORDE MAIOR: PROCESSO PRIMÁRIO E INTERPRETAÇÃO (4a. aula) .................................................................. 57
Uma "Ciência Judaica'"? ......................................................................................................................................................... 57
Em busca da Identidade Perdida ............................................................................................................................................. 59
O Intelecto Livre de Preconceitos... ........................................................................................................................................ 61
O Postulado da Interpretação Rabínica ................................................................................................................................... 64
Midrash e Interpretação Analítica ........................................................................................................................................... 66
O Estrangeiro do Zohar........................................................................................................................................................... 71
Redes Associativas e Sobredeterminação ............................................................................................................................... 74
Há algo de Judaico na Psicanálise? ............................................................................................................................................. 78
CODA: CARTA ABERTA A UMA EX-ALUNA ................................................................................................................. 84
Leitura ..................................................................................................................................................................................... 85
Análise..................................................................................................................................................................................... 86
Obras e Autores Mencionados Neste Estudo.............................................................................................................................. 90

Ψ-3
APRESENTAÇÃO
Este livro se baseia em dois cursos dados para a Associação Universitária de Cultura Judaica, em 1983 e
em 1985, na PUC de São Paulo. As notas e transcrições das aulas foram inteiramente refundidas, resultando deste
trabalho o texto em que o leitor tem em mãos.
Procurei manter o tom coloquial das palestras, organizando-as de modo a cobrir um campo razoavelmente
extenso. A posteriori, dei-me conta de que elas tinham um andamento semelhante ao de uma composição tonal;
daí o título, e a designação dos capítulos por referências ao sistema da tonalidade. Tendo assistido a um curso
sobre música dado pelo Professor José Miguel Wisnik, pude perceber que esta intuição ainda informe podia ser
melhor explicitada. Cito um texto escrito por ele:
"A tonalidade define-se como o equilíbrio mais ou menos instável entre os planos interferentes de
uma opção diatônica (que procede por intervalos desiguais) no interior de uma totalidade cromática
(que procede por intervalos iguais). A desigualdade relativa introduzida na escala diatônica cumpre,
no entanto, uma função importante: permite que os graus da escala entretenham uma lógica de
encadeamento, hierarquicamente presididos pelo I°, V° e IV° graus (tónica, dominante e
subdominante). A lógica dos encadeamentos harmónicos está subordinada a um sistema de atrações
que tem suas junturas no princípio da resolução, isto é, no movimento cadenciai através do qual uma
tensão é convertida em repouso (voltando ao acorde perfeito maior sobre o primeiro grau, a tónica).
Os encadeamentos harmónicos instauram movimentos reversíveis de transição entre seus eixos: a
tônica, que aparece como centro polarizador dos sistema, e as dominantes, isto é, o V° e o IV° graus,
que correspondem respectivamente à quinta superior e sua inversão, a quinta inferior da tônica." (1)
A tônica deste curso, em torno da qual se polarizam as tensões, é dada pela questão do judaísmo de Freud.
A dominante se acha no problema da identidade judaica; sua inversão corresponde à inversão da imagem do judeu
engendrada pelo anti-semitismo. E na última aula, os três aspectos aparecem vinculados no que chamei de "acorde
maior", por meio da investigação de um problema bastante amplo: o que, finalmente, a psicanálise possui de
"judaico"?
Apraz-me imaginar este texto como uma sucessão de "encadeamentos harmônicos", introduzindo tensões
e resoluções, fazendo vibrar em consonância ou dissonância algumas das notas que compõem um repertório
cromático pessoal. Dele, selecionei alguns aspectos, que constituem a escala básica na qual me apoio: questões de
história judaica, de psicanálise, de filosofia, entrelaçam-se para formar algumas configurações. Refletindo-se umas
nas outras e produzindo uma seqüência em espiral, elas me fazem pensar em certos argumentos talmúdicos e em
certos fragmentos de análise, nos quais o sentido se dobra sobre si mesmo, e do choque das tensões brota uma
perspectiva estimulante.
Que o leitor experimente, ao 1er este escrito, um prazer comparável ao que tive ao redigi-lo; que ele lhe
suscite idéias, inquietações e — por que não? — um pouco de perplexidade. Se isto ocorrer, e se as questões aqui
levantadas encontrarem ressonância em seu espírito, quem sabe surgirá nele o desejo de ir adiante, dando
cumprimento à secular injunção da Ética dos Pais: "Busca um mestre, arranja um companheiro de estudos e julga
todos os homens com indulgência".
São Paulo, maio de 1986.
Nota: Na transcrição de palavras hebraicas, utilizou sh para o shin e ch para o chet e o chaf, letras que representam
o "h" gutural, como no espanhol jefe. Assim, halachá, iechupár , devem ser pronunciados guturalizando o ch.
A Esther Karlik, sou grato pela eficiência, pela boa vontade e pelo interesse com que datilografou o
manuscrito original deste trabalho.
R.M.

(1) José Miguel Wisnik, O Coro dos Contrários — A Música em Torno da Semana de 22, São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1983.

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TÔNICA: O JUDAÍSMO DE FREUD (1a AULA)
Ao iniciarmos estas palestras, gostaria de lhes dizer algumas palavras de caráter geral. Nosso tema é Freud
e o Judaísmo; questão bastante complexa, que tem sido muito discutida nos últimos anos. O que a torna tão
interessante? Para os especialistas na biografia de Freud, trata-se de determinar, com a maior precisão possível, a
maneira pela qual ele vivia o fato de ser judeu; mas a maioria de vocês, como a maioria dos que se interessam pela
psicanálise, não são propriamente especialistas no que costumo denominar de "freudologia". Na verdade, o tema
Freud e o Judaísmo recobre outro, de alcance a meu ver bem mais amplo: o tema Psicanálise e Judaísmo. De fato,
se Freud não tivesse inventado a psicanálise, e deste modo se tornado um dos pensadores mais influentes do século
XX, cujas idéias se materializam não só na cultura em geral, mas ainda diretamente na vida de milhares de pessoas
que fazem análise ou psicoterapia — se isto não tivesse acontecido, o problema que vamos discutir teria apenas
um sentido biográfico ou acadêmico. Mas não é o caso: muitas e muitas vezes, a começar pelo próprio Freud,
levantou-se a questão de saber qual a influência que o judaísmo teve sobre a psicanálise, indo além do fato de ser
judeu o inventor desta disciplina, e tentando verificar se existem ou não correspondências entre o pensamento
judaico e a maneira psicanalítica de conceber o ser humano e seu funcionamento psíquico.
Uma outra forma de colocar a questão — que também estará presente em nossas aulas — é a de saber até
onde a psicanálise pode esclarecer o sentido do judaísmo, e o que significa, para os judeus, o ser judeu. Não se
trata, obviamente, do mesmo tipo de pergunta. Quando colocamos o problema na forma: "até que ponto existe
influência do judaísmo sobre a psicanálise?", estamos admitindo implicitamente que, no fundo, esta é uma variante
— por certo muito específica, mas sem deixar de ser uma variante — de algo que podemos chamar de "espírito
judaico", "pensamento judaico", "maneira judaica de ver o mundo", etc. E, obviamente, este espírito ou este
pensamento não produziu apenas, nem principalmente, a psicanálise: produziu toda uma cultura, com suas
dimensões literárias, religiosas, sociais, etc. Em suma, imaginamos a psicanálise como uma espécie do gênero
"judaísmo", um pouco como o gato, a onça e o leão são espécies do gênero "felino". É claro que, quando
buscamos utilizar a psicanálise para compreender o judaísmo — na segunda vertente que propus — estamos numa
outra perspectiva. Aqui, já não se trata de dedicir o que psicanálise e judaísmo podem ter em comum, nem se a
psicanálise é ou não, finalmente, uma "ciência judaica". Trata-se de algo totalmente diverso: implicitamente,
consideramos o judaísmo como uma formação cultural, e a psicanálise surge como um instrumento para
esclarecer certos aspectos desta formação cultural, assim como a sociologia, a história ou a filosofia poderiam ser
úteis para compreender outras dimensões dela. Neste caso, a psicanálise já não é encarada como uma espécie do
gênero judaísmo, mas como uma espécie do gênero ciências humanas, e o judaísmo torna-se um de seus objetos,
como poderiam sê-lo outros objetos deste tipo de ciência, por exemplo o romantismo, a Revolução Francesa ou a
mística indiana. Em nossa comparação com os gatos e as onças, a psicanálise já não seria algo equivalente à
categoria dos felinos, mas algo semelhante à zoologia.
Frente a esta multiplicidade de perspectivas, e tendo em vista que dispomos apenas de quatro aulas, o que
procurarei fazer é o seguinte: em primeiro lugar, discutiremos o mais imediato, isto é, a relação do indivíduo
Sigmund Freud com o judaísmo. Em seguida, falaremos brevemente da possível intluência do "espírito judaico" (o
que quer que isto queira dizer) sobre a psicanálise. Veremos que, quando o formulamos deste modo, o problema
não pode ser bem esclarecido. Por esta razão, tomaremos a via oposta, e procuraremos utilizar certas idéias
psicanalíticas para discutir algumas questões, entre as quais a da identidade judaica. Falaremos então das imagens
que os judeus têm de si mesmos e das imagens que, no decorrer da História, os não-judeus formaram a respeito dos
judeus, em particular a concepção de que estes são por essência maléficos: estaremos então na área da psicologia
do anti-semitismo. Por fim, utilizaremos alguns exemplos tirados de obras clássicas do pensamento judaico — em
especial do Talmud e do Zohar — para assinalar certas analogias entre alguns aspectos delas e alguns
procedimentos da clínica e da terapia psicanalíticas. Ficará então colocado o problema de como compreender o
sentido destas analogias, evitando a solução — que me parece demasiado simplista — de considerar que elas são
suficientes para demonstrar que a psicanálise é um produto do "espírito judaico". De forma bastante geral, este é o
caminho que vamos percorrer. Espero que ele esclareça alguns pontos da questão, e que, propositadamente, deixe
outros em aberto, a fim de que estas aulas funcionem como uma espécie de fermento, dando a vocês,
simplesmente, vontade de se aprofundar nestes problemas e de prosseguirem por conta própria o estudo deles.

A Emancipação e suas Conseqüências


Em escritos anteriores, tive oportunidade de discutir amplamente o problema das relações de Freud com o
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judaísmo: no livro Freud, Pensador da Cultura, esta é uma das questões que retornam com freqüência, e, no índice
remissivo acrescentado à 4" edição (1986), vocês encontrarão as páginas da obra nas quais ela é abordada. Num
pequeno ensaio de divulgação a respeito de Freud — o volume 5 da coleção Encanto Radical, da Editora
Brasiliense — tomei esta dimensão como eixo condutor da discussão, retomando e ampliando certas formulações
do livro anterior. Não vejo muito sentido em repetir aqui o que já está escrito e publicado em outros textos; os que
desejarem informações mais detalhadas a respeito podem consultá-los. Ali encontrarão um grande número de
passagens das obras de Freud nas quais ele mesmo discute este tema, bem como uma razoável bibliografia de
comentadores que retomam e debatem esta faceta da obra freudiana, procurando esclarecê-la de diferentes
ângulos. Por outro lado, numa série de palestras como esta, não podemos deixar de nos referir, ainda que
brevemente, ao tópico das relações de Freud com o judaísmo; vamos, pois, entrar um pouco nesta questão,
procurando focalizá-la de um ângulo um pouco diferente do que adotei nos livros a que me referi.
Comecemos por uma observação metodológica. É freqüente tendermos a crer que palavras iguais
designam as mesmas coisas, independentemente da época ou do lugar em que se situam tais "coisas". No caso que
nos ocupa, somos levados a pensar, quase sem nos dar conta disso, que os termos judeu e judaísmo significam o
mesmo para nós e para alguém que, como Freud, viveu num tempo e num país que não o nosso. Isto se explica de
uma forma muito simples: estamos tão próximos destas significações — quer dizer, "judeus" e "judaísmo" são para
nós coisas tão familiares — que parece estranha a proposta de definir mais exatamente o que estes vocábulos
significam. Especialmente porque, se pararmos um momento para refletir, veremos que tal familiaridade é bem
pouco clara: todos "sabemos" intuitivamente o que, para cada um de nós, estas palavras conotam, mas ao mesmo
tempo é difícil formular seu sentido com nitidez. Em conseqüência disso, é quase fatal que incorramos no erro do
anacronismo, isto é, projetaremos sem muita dificuldade nossas idéias e sentimentos, mais ou menos confusos,
sobre a época e a pessoa de Freud, supondo que, para ele, "judeu" e "judaísmo" querem dizer o mesmo que para
nós, ou pelo menos algo muito semelhante. Ora, para podermos dar um início de resposta à pergunta sobre a
influência do judaísmo na criação da psicanálise, é evidente que precisamos primeiro saber que judaísmo é este, e
de que modo o criador da psicanálise o compreendia e o vivia.
São duas questões diferentes. Para esclarecer a primeira delas, necessitamos recorrer à história; para
avançar na segunda, é preciso examinar os textos e sobretudo as cartas de Freud. Vamos, então, por partes,
tratando inicialmente do aspecto histórico, e depois do conteúdo "pessoal" de que se revestia, para Freud, o fato
de ser judeu dentro daquelas condições históricas.
Freud nasceu em 1856 e morreu em 1939. Quase toda a sua vida, até 1938, transcorreu em Viena; só
abandonou esta cidade após a invasão nazista ter colocado em risco sua existência pessoal, não apenas porque era
judeu, mas também porque a psicanálise era vista pelo regime hitlerista como "psicologia judaica", e portanto
combatida como nociva à pureza da cultura ariana. Estes oitenta e poucos anos correspondem a um momento
muito particular da História Judaica: aquele no qual, em virtude dos processos políticos, econômicos e sociais que
afetam a Europa Ocidental e Central, os judeus passam a se integrar de um modo mais intenso às sociedades em
cujo seio viviam há vários séculos. Para compreender o que isto significa, é necessário recuar um pouco no tempo
e descrever o que se costuma denominar de Emancipação dos Judeus.
Outra observação metodológica se impõe aqui. Penso que é legítimo considerar a história judaica como
um todo e estudá-la como disciplina específica; mas ela precisa ser inserida no contexto da História Geral, sob
pena de nada compreendermos do que se passou com os judeus ao longo dos três mil e poucos anos de sua
existência. Isto vale, claramente, para qualquer povo e qualquer época: é impossível entender a formação social do
Brasil, por exemplo, sem vincular o que se passou nestas terras ao sistema colonial como um todo, e sem vincular
este último à história do capitalismo europeu a partir do final da Idade Média. Com mais razão ainda, este princípio
se aplica ao caso dos judeus, que passaram boa parte de sua existência sob o signo da Diáspora, isto é, dispersos
nos quatro cantos do planeta. É evidente que os fatos e os processos da história judaica encontram-se intimamente
entrelaçados com os processos e fatos que ocorreram nas sociedades nas quais viviam, e, mais ainda, que o lugar
ocupado pelos judeus nestas sociedades é função da estrutura de cada uma delas. Como os judeus se organizaram
dentro destas condições, como viveram e o que criaram na esfera da cultura — tudo isto é em parte função destas
estruturas globais, e em parte se origina na ação e no pensamento dos próprios judeus, nas suas instituições
anteriores e nas formas pelas quais eles as adaptaram, a cada vez, a estas estruturas mais amplas. O que desejo
deixar claro é que este complexo jogo de fatores depende em grande medida do grau de autonomia e do grau de
isolamento das comunidades judaicas em relação às sociedades nas quais elas viviam, e que, obviamente, estes

Ψ-6
graus de autonomia e de isolamento não são determinados apenas pela vontade exclusiva dos judeus. Creio que
isto é de importância fundamental para compreendermos como e por que os judeus puderam conservar-se como
tais ao longo de tantos séculos, e como e por que atualmente o ser judeu deixou de ser algo claro e simples, como
foi até algumas décadas atrás na Europa Oriental, e, na Europa Central e Ocidental, até os meados do século XIX.
Não é preciso remontar até Moisés para esclarecer o que significou a Emancipação. Basta que aludamos
ao contexto imediatamente anterior, isto é, à situação dos judeus nos séculos anteriores à Revolução Francesa.
Esta situação foi gerada pelo sistema feudal e, de modo geral, pelas condições pré-capitalistas de produção.
Convém lembrar que o capitalismo não se implantou nem simultaneamente nem do mesmo jeito em toda a Europa.
Por este motivo, a imensa transformação trazida pelo capitalismo afetou os judeus de modos muito diversos nos
diferentes países, embora, de maneira geral, o sentido desta transformação seja relativamente simples de
compreender. Em toda parte, tal sentido pode ser definido da seguinte forma: o grupo judaico deixa de ser um
estamento numa sociedade rigidamente estratificada, e os judeus enquanto indivíduos passam a fazer parte das
novas classes sociais que emergem juntamente com a formação econômica capitalista.
Isto pode parecer complicado, mas não é. As sociedades européias pré-capitalistas se caracterizavam pelo
que chamei de estratificação social rígida e estamental, o que quer dizer que os diferentes grupos sociais (nobreza,
campesinato, burguesia etc.) se articulavam entre si de modo tal, que a passagem de um indivíduo qualquer de um
deles para outro era muito difícil. Certos burgueses foram elevados à categoria de nobres, aqui e ali; mas, mesmo
arruinado, um nobre permanecia um nobre, e, se um camponês singular podia eventualmente enriquecer e mudar-se
para a cidade, era mínima, no geral, a mobilidade social entre estes diferentes grupos, hierarquicamente or-
ganizados sob o predomínio da aristocracia. Embora superficial e sumária (já que nosso tema principal não é as
sociedades pré-capitalistas, mas a relação de Freud com o judaísmo), esta caracterização basta para prosseguirmos.
Neste quadro, os judeus configuravam uma parcela do estamento urbano, parcela cujas funções econômicas
variaram em diferentes épocas e lugares, mas cuja homogeneidade social era garantida pela própria organização da
sociedade. Havia uma larga margem de autonomia para a organização interna da comunidade, margem que se
explica pelo reduzido alcance da ação do Estado: não existiam serviços públicos como os que conhecemos hoje, e
as principais tarefas do Estado consistiam em coletar impostos e organizar a defesa do território. Os judeus
tinham, pois, sua posição no sistema econômico (geralmente na esfera comercial); ocupavam seu lugar no sistema
social (caracterizado por diferentes modalidades de exclusão); em alguns locais — especialmente na Polônia,
Rússia e nos Bálcãs — possuíam uma cultura completamente divorcidada da cultura hegemônica, às vezes falando
entre si uma língua própria (o ídiche e o judeu-espanhol); e, de modo geral, distinguiam-se dos demais súditos do
czar ou do imperador por sua religião, por seus costumes e por suas instituições internas. Mas não eram os únicos
a ser "diferentes", embora fossem sem dúvida os mais diferentes: em Impérios cuja população se compunha de
inúmeros povos e grupos étnicos, falando diversas línguas e partilhados entre diferentes modalidades da religião
cristã (ortodoxa, católica e protestante), a diferença cultural era a regra e não a exceção. É o caso do Império
Austro-Húngaro, no qual Freud nasceu.
Mas, quando Freud nasceu, estas condições, ainda muito próximas do que havia sido o sistema feudal,
estavam em rápida transformação. Tal transformação tem motivos em parte econômicos — a paulatina
implantação do modo de produção capitalista — e em parte sócio-políticas — em especial, a Revolução francesa e
seus ecos pelo século XIX afora. O que importa destacar, para nosso tema, é a Emancipação. Por Emancipação,
entende-se a concessão da cidadania aos judeus, na esteira da concessão desta mesma cidadania aos demais súditos dos
diferentes Estados europeus. Cidadania aqui significa o gozo de direitos civis e políticos, tais como o acesso à
educação pública, ao voto, aos diferentes organismos da sociedade civil, ao serviço público, à prática de
profissões liberais, à Universidade, ao jornalismo, etc. Aqui é importante lembrar uma diferença essencial: na
França e na Inglaterra, o acesso à cidadania no plano político foi conseqüência de revoluções burguesas que
modificaram radicalmente as relações de poder e a organização do Estado, enquanto na Alemanha e na Áustria
tais revoluções não se verificam; a partir dos meados do século XIX, houve rebeliões episódicas, centradas na
exigência de autonomia nacional para os povos não-germânicos (é o caso das revoltas de 1848, conhecidas como
"Primavera dos Povos"). No Império russo, a cidadania no sentido aqui definido só começa a se configurar com a
rebelião de 1905 (e mesmo assim, em caráter extremamente restrito); mas isto não nos interessa. Na Europa
Central, a conquista da cidadania foi conseqüência das invasões napoleônicas, que, embora finalmente repelidas,
deixaram um rastro que a Restauração imposta pelo Congresso de Viena (1815) não conseguiu apagar. Durante
todo o século XIX, de modo episódico e convulsivo, trava-se esta batalha pelo acesso da burguesia da Europa
Central ao direito de ser representada e consultada, o que acaba por ocorrer com o advento da democracia
Ψ-7
parlamentar. Este regime, apesar de consideravelmente diluído e submetido às estruturas antigas de poder
(aristocracia rural-militar e forte organização militar na Alemanha, condições um pouco diferentes no Império
Áustro-Húngaro), termina por ser adotado na segunda metade do século XIX, atingindo também os judeus que
viviam nestes países.
O que caracteriza a cidadania, em sua versão representativo-parlamentar, é que ele a é exercida pelo
indivíduo, e não pelo grupo social ou Étnico. Mesmo fora do plano estritamente político, os direitos civis são direitos
individuais — liberdade de pensamento e de opinião, liberdade de associação, liberdade de locomoção, etc. A
própria idéia de liberdade de associação indica que o ponto de referência é o indivíduo e não o grupo, como na
sociedade estamental. Estas liberdades e direitos são correlativos à liberdade de empreendimento, que concerne à
esfera econômica, e caracteriza o regime de livre-empresa ou capitalismo concorrencial, como é denominado
pelos cientistas sociais. Para isto, é preciso que se organize um mercado de trabalho em que os indivíduos vendam
individualmente sua força de trabalho, o que pressupõe o relaxamento, e mesmo a destruição, dos laços comu-
nitários e de propriedade dos meios de produção que definiam a estrutura econômica pré-capitalista. Este processo
foi estudado por Marx em algumas das mais célebres páginas de O Capital: nelas se descreve o surgimento do
"trabalhador livre", isto é, despojado dos laços econômicos, sociais e culturais que impediam ou dificultavam a
transformação de sua força de trabalho em mercadoria à disposição do capital.
O que tem tudo isto a ver com o judaísmo de Freud? Muitíssimo, como veremos em seguida. A paulatina
implantação do capitalismo na Europa Central tornou obsoletas as restrições que pesavam sobre os judeus, assim
como tornou obsoletas as restrições que pesavam sobre outros grupos sociais. O capital necessita de um espaço
desimpedido para circular e se reproduzir; as mercadorias precisam ser vendidas para cumprir seu ciclo
econômico. Barreiras alfandegárias entre feudos, por exemplo, precisam ser eliminadas; é necessário que a força
de trabalho possa chegar aos locais em que será empregada na indústria, sem estar ligada à terra em que nasceu o
trabalhador; é conveniente que exista um sistema de transportes eficaz; surge a necessidade de trabalhadores
alfabetizados e saudáveis, portanto de um sistema de educação e de saúde que aos poucos vai sendo implantado
pelos Estados. Operários se organizam e conquistam direitos; a luta de classes vai se tornando mais nítida, e, neste
processo, que afeta (embora com acentuações desiguais, segundo as regiões de cada país toda a população, os
judeus são também alcançados. De modo geral as necessidades da racionalidade econômica capitalista trabalham
a favor da constituição de um mercado unificado e tanto quanto possível homogêneo; obviamente, a constituição
deste mercado pode levar dois séculos ou mais, porém a tendência geral é esta. É evidente, nesta perspectiva, que
a racionalidade capitalista tende a dificultar a existência de grupos autônomos, que não estejam inseridos, de um
modo ou de outro, na cadeia da produção e da circulação das mercadorias. Repito que isto se faz de modo lento e
gradual, inclusive porque encontra resistências de várias ordens, tanto por parte da aristocracia, quanto do lado
daqueles que vão compor a força de trabalho, isto é, principalmente os camponeses. Instala-se um descompasso
entre a realidade econômica e as várias formas de sentir, pensar e viver, bem mais difíceis de modificar, porque
ancoradas na tradição e pouco acessíveis a esta lógica homogeneizadora à qual me referi. A própria ideologia, ao
procurar ocultar a divisão e a luta no interior da sociedade, fazendo surgir a imagem de um todo indiviso
constituído por indivíduos associados (por exemplo, nas teorias do "contrato social"), contribui para preservar
certos particularismos, recuperando-os sob a forma do folclore, do "tradicional", do "típico", do "pitoresco". No
que se refere aos judeus, estes processos "irão atingi-los de modo extremamente intenso, como veremos agora.

Um dilema para o indivíduo


Desde os tempos bíblicos, os judeus se consideraram e foram considerados pelos demais como um povo.
Não importa muito o sentido exato deste termo, que certamente deve ter variado ao longo dos séculos; o essencial
é que, para uns como para outros, ser judeu significa antes de mais nada fazer parte de um grupo claramente
definido. Na época bíblica, este grupo tinha seu fundamento real na organização das tribos, e posteriormente nos
reinos de Efraim e de Judá, com as estruturas políticas, econômicas e culturais que os caracterizavam. Com as
deportações resultantes da conquista babilônica (586 a.C), surge a primeira comunidade importante fora do
território de Israel; inaugura-se assim a chamada Diáspora, termo grego que significa dispersão. Quando o
Oriente Próximo é por sua vez conquistado por Alexandre Magno (século IV a.C.), verifica-se um fato de
consequências importantíssimas para o destino posterior do povo judeu: o território nacional passa a fazer parte de um
império cujo centro de gravidade é o Mar Mediterrâneo, por assim dizer invertendo a situação geográfica de Israel.
De extremo ocidental de impérios orientais (Babilônia, Pérsia), voltado para a Mesopotâmia como seu pólo

Ψ-8
hegemônico no plano político, comercial e cultural, o território em torno de Jerusalém passa a ser um dos
extremos orientais de impérios ocidentais, cujos pólos de hegemonia política, econômica e cultural se situarão
sucessivamente na Grécia, no Egito helenístico, em Roma, em Bizâncio... Os judeus serão influenciados pela civilização
greco-romana, e posteriormente, através do cristianismo, a influenciarão por sua vez; desta absorção recíproca de
elementos culturais (no sentido mais amplo deste termo), surgirão a civilização européia e os judeus "europeus".
Estou frisando este aspecto por um motivo simples: se — como poderia perfeitamente ter sucedido — não se
tivesse verificado a conquista da Ásia Ocidental pelos gregos, os judeus provavelmente não teriam se fixado em
grandes quantidades na bacia do Mediterrâneo; é bem possível que tivessem permanecido na órbita de influência
dos persas, dos muçulmanos, ou, quem sabe, dos india-nos (por que não?); e, com toda a certeza, sua história teria
sido muitíssimo diferente do que foi.
No mundo antigo (pré-cristão), a religião desempenhava um papel bem diferente daquele que foi o seu na
Idade Média e nos tempos modernos. Ela constituía uma das dimensões em que se manifestava a vida política;
estava associada ao governo da "pólis" grega, e, posteriormente, do Império Romano, sob a forma de cerimônias
cívico-religiosas. Mas em momento algum o tipo de governo ou os direitos e deveres dos cidadãos foram
determinados ou justificados por meio da religião. O próprio caráter politeísta da religião grega, e da religião
romana tornava possível a convivência com as outras religiões, isto é, com aquelas praticadas pelos povos submetidos
ao domínio helenístico e latino. A estrutura política, econômica e social destes vastos conglomerados que foram os
impérios helenísticos, e depois o Império Romano, possibilitava a permanência dos judeus na posição de um entre
os inúmeros grupos étnicos que os compunham. Não havia pressão para que eles se convertessem à religião dos
dominadores; os judeus eram por essência metecos (estrangeiros), e a nenhum ateniense ou romano ocorreria a idéia
de que, se deixassem de cultuar Jeová e passassem a sacrificar a Zeus e a Afrodite, eles se tornariam atenienses ou
romanos. No século III d.C, concedeu-se a cidadania romana a todos os homens livres do Império; mas isto não
implicava na latiniza-ção compulsória, tendo apenas a função de igualar a população do Império, extremamente
heterogênea, do ponto de vista da aplicação da lei e do direito. Em outros termos, ser cidadão romano, nesta época,
não era de modo algum incompatível com a crença nesta ou naquela divindade. A religião judaica era considerada
"licita" (permitida), e seu Deus só não tinha um lugar no Panteão porque os judeus se recusavam a representá-lo
sob a forma de uma imagem. O que desejo acentuar é que a idéia que os judeus faziam de si mesmos — "Am
Israel", o povo de Israel — era perfeitamente compatível com a organização social e com as maneiras de pensar
da sociedade em que viviam. Isto não impedia eventuais conflitos; porém, nas raras ocasiões em que os judeus
foram perseguidos, expulsos ou proibidos de sê-lo, isto se deveu a rebeliões militares, como a que resultou na
destruição do segundo Templo: é por serem rebeldes, e não por serem judeus, que o poder imperial se exerceu
contra eles.
Uma vez esclarecido este ponto, vejamos brevemente o que se passou em seguida. A, organização social
que sucedeu ao Império Romano foi o feudalismo, sob a hegemonia cultural da Igreja (isto cobre
aproximadamente do ano 500 até cerca de 1200 d.C). Aqui, novamente os judeus eram percebidos e se percebiam
antes de mais nada como um grupo específico, e novamente esta percepção repousava sobre uma estrutura social,
econômica e política que a tornava clara para todos. Os judeus têm seu lugar designado, nesta estrutura, pela
própria estrutura: eles são instrumentos de ligação entre os feudos, na qualidade de comerciantes. Não são
agricultores ("servos da gleba"), embora fossem, como todo mundo, vassalos do senhor feudal que dominava tal ou
qual região. O que há de novo é a pressão da Igreja no sentido de isolar os judeus e caracterizá-los como deicidas
("assassi-nos de Cristo"). Mas, ao contrário do que se costuma imaginar, a Alta Idade-Média (até as Cruzadas) não
é uma época de perseguições contra os judeus. Em primeiro lugar, a vasta maioria dos judeus não vive nas
sociedades cristãs, mas no mundo islâmico, onde as condições são diferentes (não há nem feudalismo nem Igreja
Católica); em segundo, os próprios cristãos estão demasiado ocupados em conter as sucessivas invasões bárbaras,
e em edificar seu sistema social e cultural, para perseguir os judeus, apesar da retórica eclesiástica. Se vocês
desejaram maiores informações sobre esta época, bem como sobre o período posterior, até a Revolução Francesa,
recomendo a leitura do volume III do livro Caminhos do Povo Judeu, que pode ser obtido junto à Federação
Israelita do Estado de São Paulo.
É com as transformações sociais que se iniciam com as Cruzadas, e que resultaram no declínio do sistema
feudal, que a situaçao vai se alterar. Surgem as cidades, e nelas um novo grupo social vai se estruturar: são os
burgueses, isto é, os habitantes dos burgos. A função econômica das cidades é a de serem centros de comercio e de
produção de mercadorias; esta função vai gerar antagonismos entre burgueses e judeus, já que eram estes que,
grosso modo, a desempenhavam anteriormente. Com a organização das corporações de ofício, os judeus vão
Ψ-9
sendo aos poucos excluídos dos diferentes ramos da produção e do comércio; muitos se dedicam aos negócios
bancários, outros emigram para terras mais hospitaleiras (é assim que os judeus acabam por chegar à Polônia e à
Rússia). Mesmo no terreno da atividade bancária, eles sofrem a concorrência dos lombardos e depois dos
florentinos (os Mediei eram banqueiros). Em resumo, à medida que as funções econômicas preenchidas pelos
judeus vão sendo assu-midas pelos burgueses, a presença daqueles torna-se desnecessária, e mesmo
inconveniente, o que acarreta a sua expulsão sucessivamente da Inglaterra (1291), da França (Século XIV) e por fim
da Espanha cristã (1492) e de Portugal (1506). É desta maneira que os judeus vão chegando à Europa-Central,
em especial aos territórios de língua alemã, então divididos em centenas de pequenos Estados relativamen-te
autônomos, cada qual concedendo aos judeus posições e direitos ou deveres específicos. Mas sempre permanece
a clareza da percepção que judeus e não-judeus têm do judeu: ele é, indiscutivelmente e independentemente de sua
riqueza ou pobreza, de seu talento ou ofício, um membro do grupo judaico, com tudo o que isto implica no plano
da vida,cotidiana.
Penso que isto está suficientemente esclarecido. Podemos então retomar o que disse atrás quanto aos
efeitos da implantação progressiva do modo de produção capitalista. É importante relembrar que esta implantação
não se fez simultaneamente nos diversos países europeus; quando na Inglaterra se desencadeia a Revolução
Industrial (fim do século XVIII), a Áustria, por exemplo, ainda é um país essencialmente agrícola, e na Polônia o
feudalismo vigora com toda a intensidade. Também é importante relembrar que as maiores concen-trações de judeus
estão localizadas nas regiões mais atrasadas da Europa, do ponto de vista da organização econômica capitalista: em
1833, Marx e Engels ainda falam numa Alemanha pré-industrial, o Império Austro-Húngaro conserva características
marcadamente pré-capitalistas, e a Europa do leste se encontra virtualmente na Idade Média, com uma
organização econômica e social semelhante à que havia vigorado na França e na Inglaterra cerca de quinhentos
anos antes.
É nos meados do século XIX que o capitalismo chega à Europa Central, e isto coincide com o nascimento de
Freud. Sua vida transcor-rerá, portanto, numa época historicamente densa, marcada por profundas transformações,
que afetam a sociedade como um todo, e os judeus em particular. A principal destas transformações, no que se
refere aos judeus, é a Emancipação da qual falamos antes. Na Alemanha, ela ocorre em 1860; na Áustria, em 1869
— época em que Freud estava fazendo seu "bar-mitzvá". Ela significa, como vimos, a concessão de direitos civis
e políticos aos judeus, que passam a ser cidadãos iguais aos outros, do ponto de vista jurídico. Mas o acesso à
cidadania não basta para dar conta destas modificações. Os judeus da Europa Central também estavam passando
por processos sociais e culturais que os aproximavam da maioria cristã, em especial por um processo de absorção
da cultura germânica, que, inicialmente, ficou restrito a uma pequena elite intelectual, mas que aos poucos vai se
expandindo, e acaba por atingir as populações urbanas judaicas em grande escala. Trata-se da assimilação, sobre a
qual é preciso dizer algumas palavras.
Novamente, trata-se de um processo que não ocorreu simultaneamente, nem de modo rápido, nos
diferentes lugares e nos diferentes segmentos sociais que compunham a população judaica da Europa Central. É
fácil compreender que os habitantes das grandes cidades vivem-no de forma mais intensa de que os judeus do
interior, e que aqueles cujas posses econômicas lhes permitem uma educação mais apurada se vêem mais
estimulados a se "europeizarem" do que algum obscuro alfaiate ou açougueiro vivendo num gueto e inteiramente
cercado pela cultura judaica tradicional. Mas os efeitos do processo de assimilação são, no essencial, os mesmos:
trata-se de, paulatinamente, sair da esfera restrita da comunidade judaica, e passar, de modo igualmente paulatino,
a se comportar, a pensar e a agir como a burguesia alemã e austríaca. Isto ocorre de muitas maneiras diferentes e
em graus igualmente diferentes. A geração que vem dos "shtetls" para as cidades grandes ainda permanece muito
próxima dos padrões tradicionais judaicos; a geração seguinte, educada nas escolas públicas e cuja língua materna
passa a ser o alemão (e não mais o ídiche), tem outras aspirações e passa por outros conflitos. Temos uma idéia do
que isto significa, aqui mesmo no Brasil: a geração de imigrantes (digamos, nossos avós) não teve os mesmos
hábitos nem as mesmas aspirações que a geração seguinte (digamos, os que se tornaram profissionais liberais,
comerciantes, industriais, a partir da década de 1940-50). É por este mesmo processo que, cerca de cem anos
antes, passaram os judeus da Europa Central.
A assimilação é conseqüência das novas condições sociais correlativas à implantação do capitalismo, e
traduz, no plano social e ideológico, estas condições. Insisti bastante no fato de que a lógica do capitalismo é uma
lógica homogeneizadora, obedecendo aos ditames do mercado, e que neste sistema socio-econômico os agentes
sociais se percebem como indivíduos. Mais precisamente, devemos dizer que os agentes sociais são, neste

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sistema, as classes; mas no nivel das imagens, das representações, o que aparece para seus membros (em
particular no caso da burguesia) é o indivíduo, para quem se abrem possibilidades de realização e de mobilidade
até então inéditas. Isto produz um efeito cujas proporções dificilmente podem ser exageradas: pela primeira vez em
sua história, o judeu encontra-se diante da seguinte questão — como ser judeu?É desejável ser judeu? Vale a pena
sê-lo? A mobilidade provocada pelo mercado e pelo movimento de homogeneização a que me referi, ao tornar boa
parte da população judaica da Alemanha e da Áustria uma fração da classe burguesa, vai colocar estes judeus frente
a dilemas e a conflitos que, pela primeira vez em sua história — é importante repeti-lo — devem ser solucionados
pelo indivíduo e no plano individual. Torna-se possível deixar de ser membro da coletividade judaica — basta
deixar de freqüentar a sinagoga, ou mesmo pedir ao Ministério do Interior o desligamento formal da comunidade.
Torna-se possível a conversão religiosa em larga escala. Torna-se possível o matrimônio com não-judeus — basta
casar-se apenas no civil. A aparência física dos judeus muda — caem as "peiot" (cachos laterais de cabelo),
abandona-se o "shtrammel" (chapéu de pele) pela cartola, substitui-se o "talit "(xale religioso) pela sobrecasaca e
pela gravata. Muda a alimentação, com o abandono das regras dietéticas da "kashrut". O que antes eram os sinais
exteriores de uma identidade clara e precisa, imposta simultaneamente pela sociedade geral e pela educação
judaica, e aceita pelas pessoas como natural e desejável, passa a ser objeto de preferências, a depender do gosto
ou da escolha de cada um. É totalmente diferente comer "gefilte fish" porque o achamos saboroso, ou porque nossa
alimentação kasher nos proíbe de comer camarão ou de misturar carne e leite. O ato físico é o mesmo, porém seu
sentido muda por completo: num caso, depende de mim escolher este ou aquele prato, enquanto no outro o tipo de
alimentação é determinado pela crença religiosa e funciona como elemento reafirmador da identidade, porque ao
mesmo tempo me distingue dos outros e me aproxima dos judeus que se alimentam deste modo.
E é precisamente porque, a partir dos meados do século XIX, torna-se possível ser ou não ser judeu, e, caso
se seja, determinar este "ser judeu" de muitas maneiras diferentes, que nosso tema é Freud e o judaísmo. Isto é, se
desejamos saber o que para Freud significava ser judeu, é porque este significado não está a priori determinado
pela época, pelo meio social e pela tradição. Imaginemos que nosso tema fosse, por exemplo, "Maimônides e o
judaísmo": poderíamos querer saber como Maimônides influiu sobre o pensamento judaico, ou como conseguiu
combinar a filosofia com a religião; mas dificilmente nos perguntaríamos "o que significava para Maimônides o ser
judeu", implicando com esta pergunta que Maimônides poderia escolher entre muitas maneiras diversas de sê-lo,
ou mesmo não ser judeu. É claro que existe uma margem individual para o "ser judeu", mesmo na Espanha
muçulmana do século XII; mas ela é infinitamente menor do que a margem individual oferecida pelas condições
geradas na Europa oitocentista pelo advento do capitalismo. Era esta considerável diferença, e a novidade
essencial destas condições, que eu desejava tornar claras com este rápido passeio pela História. Agora que temos
uma noção aproximada das condições históricas e sociais nas quais, para Freud, se colocou o problema do
judaísmo — e que não dependem de Freud, mas do meio em que ele viveu — podemos nos aproximar desta questão
de modo a esclarecê-la, e não apenas de modo a torná-la um campo privilegiado para confirmar nossas próprias
idéias preconcebidas.

"Queria contar-lhes brevemente.


Vamos, então, abordar a questão de forma mais direta. Mas — qual questão? É preciso que fique clara a
seguinte idéia: um problema é saber o que Freud pensava do judaísmo; outro problema, diferente do primeiro, é saber
em que medida o judaísmo de Freud influenciou a criação, por ele, da psicanálise; um terceiro problema é saber o
que a psicanálise contém (se contiver) de "judaico"; um quarto problema, diferente dos outros três, é saber o que a
psicanálise pode dizer acerca do judaísmo, como sistema de crenças e de práticas - ou seja, quais dimensões do
inconsciente encontram uma expressão nestas práticas e crenças; um quinto problema é saber como a psicanálise
pode ajudar-nos a compreender o que significa para um judeu o ser judeu, isto é, a compreender como uma pessoa
determinada vive um certo aspecto de sua vida psíquica, emocional e intelectual, aspecto possivelmente decisivo
para a configuração de sua identidade como pessoa. É de extrema importância, acredito, distinguir estas várias
coisas, sob pena de nos enredarmos em confusões inextrincáveis. Ora, o curioso é que nosso quinto problema (o
da identidade judaica) simplesmente coloca em termos gerais aquilo que o primeiro formula, em termos
singulares, para o indivíduo Freud. Mas com uma diferença crucial: o primeiro problema só pode ser resolvido
consultando o que Freud disse, enquanto para resolver o quinto podemos nos servir de conceitos gerais da teoria
psicanalítica. "O que Freud disse" — claramente, o que disse a respeito de sua relação com o judaísmo — e é
preciso convir que ele falou bastante sobre o assunto.

Ψ - 11
Aqui se impõe uma seleção. Optei por trabalhar com um único texto, que a meu ver é o mais representativo
dos que pude encontrar. Trata-se de uma carta enviada por Freud à sociedade Bnei Brit em 1926, como
agradecimento às felicitações que esta lhe enviara por ocasião do seu 70° aniversário. Freud escreve:
"Queria contar-lhes brevemente como me tornei membro da Bnei Brit e o que busquei entre Vocês.
Foi nos anos seguintes a 1895 que duas poderosas impressões coincidiram em mim, despertando um
poderoso efeito. Por um lado, havia alcançado minha primeira visão dos abismos da vida instintiva
do homem, tinha contemplado muitas coisas capazes de me desiludir e, no início, capazes mesmo de
me assustar. Por outro lado, a exposição de comprovações tão desagradáveis teve o efeito de que me
visse privado da maior parte das relações humanas que cultivava naquela época. Sentia-me como um
proscrito, repudiado por todo mundo. Neste isolamento, despertou em mim o anelo por um círculo de
homens seletos e de elevadas ambições, que me recebessem amistosamente, apesar da minha
temeridade. Sua Sociedade me foi indicada como o lugar onde poderia encontrar tais homens.
Que Vocês fossem judeus só podia ser-me grato, pois eu mesmo era judeu e sempre considerei
como indigno e, mais ainda, como absurdo, procurar negá-lo. Devo confessar-lhes aqui que nem a fé
nem o orgulho nacional me ligavam ao judaísmo, pois fui sempre incrédulo, fui educado sem religião,
embora não sem respeito pelas exigências da cultura humana que consideramos éticas. Quando me
sentia inclinado ao orgulho nacional, sempre procurei dominá-lo como funesto e injusto,
amendrontado pelo exemplo ameaçador dos povos em cujo meio nós, judeus, vivemos. Contudo,
ainda restava muita coisa para tornar irresistível para mim a atração do judaísmo e dos judeus:
grandiosas e obscuras potências emocionais, tanto mais poderosas quanto mais difíceis de expressar
em palavras; a clara consciência de uma identidade íntima, a secreta familiaridade de possuir uma
mesma arquitetura psíquica. A isto, não demorou a se acrescentar a compreensão de que somente à
minha natureza judaica devo as duas qualidades que chegaram a ser-me indispensáveis, no difícil
caminho de minha existência. Precisamente por ser judeu, encontrava-me livre de muitos preconceitos
que dificultam a outros o uso de seu intelecto; como judeu, estava preparado para colocar-me na
oposição e para renunciar à concordância com a 'maioria compacta'. (...)
Não sei se cheguei a ser um verdadeiro B,B., no sentido em que Vocês o entendem. Inclino-me a
duvidar disso, pois em meu caso intervieram demasiadas condições particulares . No entanto, posso
assegurar-lhes que Vocês significaram muito para mim, que foi muito o que Vocês me
proporcionaram nos anos em que pertenci a este grupo. Assim, queiram receber meus calorosos agra-
decimentos pelos dias passados, assim como pelo dia de hoje.
Com benevolência, fraternidade e harmonia,
Seu
Sigmund Freud" (1)
Prestemos atenção a certos aspectos desta carta, tão típica de Freud. Em primeiro lugar, podemos perceber
nela o eco das condições históricas que descrevi com certo detalhe nas páginas anteriores. Freud era um cientista,
e as "comprovações desagradáveis'' cuja revelação o privou das ''relações humanas que cultivava naquela época"
dizem respeito aos "abismos da vida instintiva do homem". Ou seja: estas linhas pressupõem que Freud, como
outros jovens judeus de sua geração, havia freqüentado a Universidade e absorvido a cultura científica disponível
na época. Não foi como judeu, porém, e sim como médico interessado em doenças nervosas, que veio a explorar
os "abismos da vida instintiva do homem". Para que isso pudesse ocorrer, eram necessários todos estes complexos
movimentos sociais e econômicos que reuni sob a rubrica do advento do capitalismo, da emancipação e da
assimilação: esta carta não poderia ter sido escrita, de modo algum, pelo avô de Freud, que viveu em outras
condições históricas.
(1) Obras Completas, Biblioteca Nueva, Madrid vol. III, P. 3229-3230. Freud assina a carta com o lema da Bnei Brit. Esta carta, assim como
outros textos de Freud sobre o judaísmo, é comentada nas páginas 60 e seguintes de Freud, Pensador da Cultura (Brasiliense, 4a edição,
1986), e fornece o fio condutor para o ensaio Freud: A Conquista do Proibido (Brasiliense, col. "Encanto Radical", 4a edição, 1986).

Mas há outros aspectos igualmente importantes. Freud julga necessário dizer que "eu mesmo era judeu e
sempre considerei indigno, e mais ainda, absurdo, procurar negá-lo". Isto pressupõe que tal comportamento — o
de negar o judaísmo — fosse mais ou menos freqüente, ou, pelo menos, possível na sociedade em que ele vivia.
Ψ - 12
Mais importante, negar ou não o judaísmo aparece nestas linhas como uma decisão pessoal de cada judeu,
motivada por critérios particulares: no caso de Freud, o que importa é o que ele acha indigno e absurdo; poderia
muito bem achar indignas e absurdas coisas completamente diferentes, e, com a mesma decisão, ter abandonado o
judaísmo. O deslocamento da decisão quanto ao permanecer ou não judeu para o foro íntimo de cada individuo é a
conseqüência mais importante dos processos sociais e históricos que mencionei; vemos aqui, com a máxima
clareza, o que isto significa. O judeu existe agora como um indivíduo, e cabe a ele associar-se a outros judeus — é
o que fazem os membros da Sociedade Bnei Brit — para fundar organizações e instituições cujo conjunto formará
a comunidade judaica, e que poderiam perfeitamente não existir ou serem totalmente outras. A direção se
inverteu: não é mais do povo para seus membros, mas dos indivíduos para suas associações, que se dá o
movimento de constituição.
Isto fica claro nas linhas seguintes da carta: Freud estava em busca de um círculo acolhedor, e a Sociedade
Bnei Brit lhe foi indicada como tal. Casualmente, este círculo era composto de judeus; tanto melhor, diz Freud.
Mas, se por acaso todos os judeus de Viena fossem religiosos ortodoxos, ele não se teria afiliado a uma
organização judaica; teria ficado em seu isolamento, ou, se o Clube dos Bebedores de Vodca Siberiana lhe tivesse
oferecido sua hospitalidade, talvez ele se tivesse vinculado a tal entidade. Caricatura à parte, é importante perceber
duas coisas: a comunidade judaica, de Viena era diferenciada o suficiente para conter várias modalidades do ser
judeu, e havia nela homens "seletos" o suficiente — isto é, com uma educação comparável à de Freud, com
interesses semelhantes aos seus, etc. — para que ele se sentisse à vontade em seu meio.
Outra conseqüência dos processos históricos a que me referi aparece no parágrafo seguinte. Freud se
considera judeu e considera indigno negá-lo; no fim da carta, fala em sua natureza judaica, isto é, ser judeu é para
ele algo muito profundo, muito importante, e não algo descartável, como gostar ou não de determinada marca de
charutos. Mas qual é o conteúdo deste judaísmo? "Nem a fé nem o orgulho nacional me ligavam ao judaísmo,
pois sempre fui incrédulo, fui educado sem religião... " Vejam bem: o que caracterizou o judaísmo desde Moisés,
o fundamento de tudo o que os judeus produziram em quatro milênios de cultura, é precisamente a religião. Freud
escreve que, para ele, a religião não tem qualquer importância; é ateu, sempre o foi, e não se sente em absoluto
concernido pelo judaísmo enquanto religião. Da mesma forma, o "orgulho nacional" tampouco o seduz. Que
significa isto? Creio que se refere à idéia do Povo Eleito, Am Seguiá, que também definiu os judeus, a seus
próprios olhos, durante séculos a fio. Povo Eleito significa: eleito pelo Deus único para ser o depositário de sua
Torá; aqui, a religião especifica o povo e o povo se define pela religião. Em outros termos, para Freud é possível
ser judeu sem se sentir ligado nem à fé religiosa, nem à idéia de um povo judeu. Também podemos nos lembrar de
que a vida adulta de Freud transcorre nos fins do século XIX e no início do XX, isto é, quando o sionismo propõe o
retorno à terra ancestral e a formação de um Estado nacional como solução para o "problema judaico". Freud não
se sensibiliza com estas idéias; e, não obstante, continua a sentir-se judeu, a considerar "indigno" e "absurdo"
negar sua "natureza" judaica. Esta atitude só é possível em virtude da Emancipação e da "individualização" do
judeu; como homem do século XIX, Freud confessa-se ateu e indife-rente à religião; na verdade, colocou a ciência
no lugar que seus avós haviam reservado à religião, e num escrito posterior (O Futuro de uma Ilusão, de 1927)
falará em "nosso Deus Logos", isto é, na racionalidade científica personificada como uma divindade (há uma certa
ironia nisso, evidentemente).
Freud retém do judaísmo algo que é também conseqüência dos complexos processos históricos e sociais
que afetaram os judeus da Europa Central no século XIX: a idéia de que o judaísmo é, essencialmente, uma ética.
Caracteristicamente a ética é colocada como uma "exigência da cultura humana", isto é, como algo universal e
não meramente particular aqui se pode observar o efeito do pensamento iluminista sobre os judeus, pensamento
que" levou alguns filósofos a acentuarem a dimensão universal do judaísmo como conjunto de princípios éticos de
elevado valor. Tal idéia representa uma profundíssima revolução intelectual, porque significa separar o "conteúdo"
ético das "formas" rituais em que eles estariam depositados, e que, justamente, distinguiam o judaísmo de outras
possíveis materializações destes valores éticos. Isto é importante, e gostaria de esclarecê-lo melhor.
Digamos que as exigências éticas são aproximadamente as mesmas em todas as civilizações (por isso
Freud pode apresentá-lo como ''exigências da cultura humana''): a filosofia chinesa, a sabedoria hindu, o
pensamento grego, o cristianismo, o judaísmo, etc, estão todos de acordo em que o ser humano deve buscar a
sabedoria, deve conviver pacificamente com seus semelhantes, deve fazer algo em proveito deles, deve controlar
seus impulsos violentos e obedecer a certos modelos de comportamento, e coisas deste gênero. O que diferencia
estas formações culturais é precisamente a forma como estes objetivos devem ser alcançados (para não falar dos

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próprios objetivos, que podem ser também um pouco diferente uns dos outros, hierarquizados de diversos modos
etc). O mestre zen procurará despertar em seu discípulo as tendências que o zen-budismo considera adequadas,
mas este esforço não passará pela recitação diária do Shemá Israel nem pela proibição de comer fermento na
Páscoa. O que caracteriza o judaísmo — ou melhor, a forma judaica de realizar estes objetivos éticos exigidos "pela
cultura humana"— é precisamente a ligação deles com as regras religiosas judaicas, que não são apenas rituais
vazios, mas exprimem estes ideais éticos de um certo modo, com a utilização de um certo repertório de símbolos e
de maneiras específicas de agir, pensar e sentir.
Do ponto de vista da ortodoxia judaica, não basta ser um homem decente e não prejudicar os outros; se
Você quer ser um bom judeu, esta decência e estes ideais humanos devem se concretizar na observância das
regras da alimentação kasher, no respeito ao Shabat, etc. O que o Iluminismo fez — e em sua esteira Freud — foi
dissociar o conteúdo das formas em que ele se expressava e dizer que o conteúdo, por ser universal, é válido
("exigências éticas da cultura humana", e não de Jeová), enquanto as formas, por serem historicamente condi-
cionadas e sobretudo particulares, exclusivas dos judeus, não têm tanta importância e podem ser abandonadas.
Quero que fique bem claro o seguinte: não se trata de opor a valorização das formas à valorização do conteúdo,
pois para o judaísmo rabínico as formas também só têm valor porque estão preenchidas pelo conteúdo. O que
separa o judaísmo rabínico do iluminismo é que para aquele, o particular tem valor enquanto tal (pois foi ordenado
por Deus), en-quanto para o iluminismo o particular é apenas uma carcaça incômoda", um obstáculo no caminho da
fraternidade humana: o particular é, em última instancia, impregnado de irracionalidade, enquanto o universal é
idêntico à razão.
Isto aparece com clareza quando Freud fala do "orgulho nacional" (expressão evidente do particularismo):
''sempre procurei dominá-lo como funesto e injusto, amedrontado pelo exemplo dos povos entre os quais nós,
judeus, vivemos.'" O particularismo é fonte de injustiça (portanto contrário às exigências éticas universais) e de
violência: por isto, é causa de medo, pelo "exemplo dos povos", quer dizer, é gerado pela irracionalidade e conduz
à irracionalidade. Toda esta parte da carta espelha as convicções iluministas no poder da Razão, convicções que
muitos judeus abraçaram no século XIX, como forma de justificar seu anseio de entrar no mundo ocidental; Razão
que, em última instância, tem a ver com a universalidade inerente à lógica do capital, e Razão que parecia ser um
alvo suficientemente digno de apreço para justificar o abandono dos particularismos nacionais e religiosos. Não se
trata apenas de uma racionalização barata; muitos, judeus e não judeus, aderiram a este credo, que é um dos
alicerces do liberalismo político, do positivismo científico e de muitas outras coisas. A História, infelizmente, veio
mostrar que a Razão também tem efeitos perversos (veja-se o mundo "racional" que construímos à nossa volta), e
sobretudo que o particularismo não podia ser erradicado, como imaginaram os iluministas, apenas pela educação e
pela difusão das luzes: os nacionalismos de toda ordem, o anti-semitismo, o nazismo, a revivescência
contemporânea da religiosidade como força política (Khomeini, etc), mostraram que o particular tem raízes mais
profundas do que suspeitava a filosofia das luzes. E, alem disso,"talvez o particular seja a forma mesma do humano
— e a imagem de um universal harmônico e indiviso seja ainda mais perigosa do que o particularismo violento: mas
este é um tema complexo e que não trataremos aqui. O que, penso eu, fica claro com esta explicação é que,
quando Freud escreve estas linhas, toda uma corrente do pensamento europeu, e uma corrente do próprio
pensamento judaico do século XIX, se encontram nelas subentendidas: correntes segundo as quais o universal tem
precedência sobre o particular, e para as quais, embora o ético se exprima nas religiões, elas são invólucros
inadequados para tal conteúdo; por isto, mais vale ficar com a ética do que com a fé e com o "orgulho nacional".
Coloca-se então a seguinte pergunta: por que Freud não seguiu o exemplo de tantos de seus
contemporâneos, e não se afastou por completo do judaísmo? Até aqui, acentuei as dimensões presentes na carta
que, segundo penso, devam ser atribuídas às condições históricas e sociais em que viviam os judeus austríacos na
segunda metade do século XIX: a carta de Freud, neste caso, foi examinada como um documento que poderia ter
sido escrito por qualquer indivíduo daquele grupo. Mas nela há muito mais do que esta faceta: Freud, a partir do
meio do texto, diz coisas que são estritamente pessoais, e que representam a maneira pela qual ele, como pessoa
singular, vivia e sentia sua "natureza judaica". Vamos agora abordar este lado do problema.
Reparem que, quando descreve o que se passou com ele a partir de 1895, Freud não acentua apenas que
suas descobertas científicas causaram escândalo entre os cientistas. Diz também que elas eram capazes de
desiludi-lo e de amedrontá-lo. Foi então que, tendo sido repelido por aqueles a quem se ligara ("sentia-me como
um proscrito..."), sentiu necessidade de um grupo que o recebesse amistosamente; isto é reiterado no final da
carta, onde lemos que ''Vocês significaram muito para mim, e foi muito o que me proporcionaram durante estes

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anos". O que será que a Sociedade Bnei Brit proporcionou a Freud? Claramente, um clima amistoso, um certo
calor humano, bem mais do que a adesão intelectual ou a compreensão do que significava seu trabalho. Entramos
assim numa outra dimensão, que contrasta com aquela anteriormente estudada. Podemos denominar esta nova
dimensão de dimensão emocional, distinguindo-a da primeira, melhor caracterizada como dimensão intelectual. E
é precisamente neste registro que encontramos as frases nas quais Freud define sua relação com o judaísmo.
Vejamos: "Contudo, ainda restava muita coisa para tornar irresistível para mim a atração pelos judeus e pelo
judaísmo: grandiosas e obscuras forças emocionais, tanto mais poderosas quanto mais difíceis de expressar em
palavras... ". Reparem como o vocabulário muda: Freud fala em atração, em algo irresistível, em forças
obscuras, grandiosas, poderosas, e que não se deixam expressar em termos verbais, isto é, que escapam à alçada
da Razão. É bastante claro que, para Freud, ser judeu significa algo profundo e arraigado, algo que se situa no
plano da emoção, e de uma emoção que só pode ser realizada em conjunto com outros. Nesta esfera, ser judeu é
ter algo em comum com os outros judeus, poder usufruir deste calor que provém da intimidade, e poder sentir-se à
vontade num meio que se caracteriza pela bonomia, pela irreverência, pela alegria de viver. É o que Freud afirma
numa outra carta, endereçada à sua noiva em 1882, e na qual procura explicar o que, para ele, significa ser judeu.
A noiva de Freud era neta do rabino Isaac Bernays, uma figura interessantíssima que combinava a ortodoxia
religiosa com uma grande alegria de viver, e "ensinava a religião com muita imaginação e humanidade". Freud se
encontra, em Hamburgo, com um discípulo de Bernays, um senhor idoso em cuja papelaria entra por acaso para
encomendar papel de carta com as iniciais dele e de Martha; o homem o retém para uma longa conversa, que ele
relata à noiva com evidente prazer:
" Ele disse que Bernays havia sido uma pessoa fora do comum, e que ensinava a religião com
muita imaginação e humanidade. Se alguém se recusava a acreditar em algum ponto de suas lições,
não tratava de convencê-lo. Mas se alguém exigia uma razão para tal ou qual coisa considerada
absurda, o mestre saía da lei, discutia, e construía ali mesmo uma explicação para o incrédulo.
Tomemos a lei relativa aos alimentos, por exemplo: o que pode ser menos importante do que o que
se come? A isto, ele responderia: Retornemos à história da criação. Pode ser uma fábula, mas aquilo
em que a Humanidade acreditou durante séculos não pode ser uma bobagem: deve possuir algum
significado. Quando Deus criou os primeiros seres humanos e os pôs no Jardim do Éden, por acaso
o primeiro mandamento que lhes deu não se referia à comida? Comerás desta árvore, mas não
daquela. Isto não constitui um mandamento moral? E, se o primeiro mandamento dado por Deus
concernia ao alimento, será que é possível pensar que o que comemos carece de importância?
Meu velho judeu fez outras tentativas engenhosas deste tipo, para explicar e justificar as
Escrituras. Eu já conhecia este método, e sabia que a exigência de verdade e obediência por parte
das Sagradas Escrituras não pode ser cristalizada neste sistema, que não deixa espaço para a
reforma, e sim apenas para a revolução. Mas neste método existe implicitamente um grande pro-
gresso (...). A religião deixa de ser um rígido dogma e se converte em tema de reflexão, para a
satisfação do gosto artístico cultivado, e para intensificar os esforços da lógica; e o mestre de
Hamburgo o recomendava, finalmente, não porque existisse e tivesse sido declarado santo, mas
porque se sentia gratificado pelo significado profundo que nele encontrava (...).
Acrescentou que o judeu é a flor mais bela da humanidade, e que foi criado para o prazer.
Os hebreus desprezam aqueles que não possuem a capacidade de gozar da vida. (...) A lei ordena aos
judeus apreciarem todos os prazeres, por menores que sejam, e darem graças por cada fruto que
recorde o belo mundo no qual nasceram. O judeu foi criado par^ a alegria, e a alegria foi criada para o
judeu (...).
Quanto a nós, creio que, embora as coisas que tornavam felizes os velhos judeus já não nos
proporcionem um refúgio autêntico, algo da substância, a essência mesma deste judaísmo tão cheio
de sentido e de alegria de viver, não estará ausente no nosso lar." (2)
(2) Carta 7 a Martha, 23.7.1882, in Epistolario I, Barcelona, Plaza y Janet. Há tradução brasileira destas cartas: Cartas de Amor de Freud, Ed.
Nova Fronteira. Para um comentário mais detalhado desta carta, ver: Freud, Pensador da Cultura, p.74 ss.

É interessante verificar que, já em 1882, com apenas 26 aos, Freud exprime opiniões muito próximas das que se
depreendem da carta à Bnei Brit. A religião não serve para atingir a verdade, mesmo que seja interpretada de
maneira engenhosa, como o fazia o Rabino Bernays para justificar as regras da kashrut. "Este sistema não deixa
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espaço para a reforma, e sim apenas para a revolução", isto é, não adianta dourar a pílula, pois ou se tem fé — e
neste caso, por mais absurdas que pareçam à Razão, as normas religiosas têm validade, porque há um poder
superior à Razão, e que é Deus — ou não se têm fé, e neste caso, por mais habilidosa que seja a interpretação, a
Razão continuará a prevalecer, e a norma religiosa (por ser religiosa, simplesmente) continuará a ter um caráter
absurdo, isto é, irracional. Freud opta pela Razão: "a exigência de verdade não pode ser cristalizada neste
sistema''. O lugar da verdade não é a religião, mas a ciência. Por outro lado, há "grandes progressos" neste método:
a religião deixa de ser dogma rígido, e se converte em tema de ''reflexão'' e veículo para satisfazer o ''gosto
estético" (pela elegância da interpretação, por sua engenhosidade formal, mesmo que o conteúdo dela seja
irracional). Mas ainda não é este o motivo que justifica a adesão ao "ser judeu". O final da carta é claro: "as coisas
que tornavam felizes os velhos judeus já não nos proporcionam um refúgio autêntico", isto é, já não é possível ser
religioso se se é um cientista europeu no fim do século XIX. Não obstante, o que define o judaísmo para Freud
não é a religião; não é nem mesmo a ética (esta é uma "exigência da cultura humana", como vimos na outra carta, e
nesta Freud não se convence quando o velho conta que Bernays justificava a kashrut com um argumento moral).
O que especifica o judaísmo é a alegria de viver, como se vê claramente pelas alusões à "flor mais bela da
Humanidade", etc. E o lar dos Freud será um lar judaico, não porque se acendam velas no Shabat, mas porque nela
existirá "algo da essência mesma deste judaísmo tão cheio de sentido e de alegria de viver".
Não importa muito se Freud tem ou não razão aqui, se o judaísmo é ou não o que ele afirma que é.
Queremos determinar que significa, para Freud, o ser judeu: ele mesmo o diz, com notável clareza. É algo do
registro emocional, e não do registro intelectual: é uma sensação, um sentir-se à vontade, um estar autorizizado a
fruir dos prazeres que o "belo mundo" oferece. Não se trata, é óbvio, de libertinagem ou de desregramento: o
prazer que se experimenta com demasiada intensidade se converte em desprazer, e além disto os prazeres estão
submetidos à norma religiosa (no caso do judeu religioso) ou à norma ética (no caso do judeu iluminista).
Voltaremos a isto mais adiante; quero apenas deixar claro como é determinante, para Freud, que esta alegria de
viver se encontre no judaísmo e não, por exemplo, na atmosfera despreocupada e jovial que costuma ser associada
à Viena da Belle Époque.
Podemos avançar mais um pouco nesta via, se retomarmos a carta à Bnei Brit. Nela, Freud relata o que
suas descobertas sobre o inconsciente o amedrontaram, o que nada tem de espantoso, se pensarmos que elas se
referem aos desejos edipianos do incesto e do parricídio. O que buscava na Sociedade Bnei Brit, assim, não era
apenas substituir os colegas que o repudiaram por um círculo mais amistoso, que o acolhesse apesar de sua
"temeridade": dificilmente podemos imaginar que os honestos burgueses judeus que o compunham fossem
aplaudir Freud por ter descoberto os impulsos mais primitivos da alma humana. Mas não deixa de ser significativo
que, nesta Sociedade, Freud encontrasse um refúgio, um lugar de repouso; e, embora descreva a Bnei Brit como
um círculo de homens "seletos" e de "elevadas ambições", a frase seguinte se refere ao fato de serem judeus: "que
Vocês fossem judeus só poderia ser-me grato..."
Aqui cabe um momento de reflexão. O que Freud diz apreciar no judaísmo é o que chama alegria de viver
na carta a Martha, e que na carta à Bnei Brit aparece como acolhimento amistoso. Estas não são características do
judaísmo como cultura em geral, mas dos judeus como pessoas, se admitirmos por um momento como válido o que
Freud está afirmando. Há um pequeno deslocamento destas qualidades, no texto de Freud, dos judeus para o
judaísmo: "os hebreus desprezam todos aqueles que não possuem a capacidade de gozar a vida (...); a lei ordena
aos judeus apreciarem todos os prazeres, por menores que sejam". E o que o atrai para o círculo da Bnei Brit é "a
clara consciência de uma íntima identidade, a secreta familiaridade de possuir uma mesma arquitetura psíquica".
Podemos perceber que é porque se sente semelhante aos judeus que Freud encontra prazer no convívio com eles, e
não porque concorda com suas opiniões: o último parágrafo da carta diz, de forma velada, que não chegou nunca a
ser um verdadeiro B.B., "no sentido em que Vocês o entendem''. São detalhes pequenos, porém muito importantes:
Freud se sente judeu, e sentir-se judeu significa partilhar de uma certa "arquitetura psíquica" especial, diferente da
dos não-judeus. Isto é bastante vago, ao menos por enquanto, mas já podemos perceber certos elementos desta
"arquitetura psíquica": a alegria de viver é um deles, o calor humano é outro, a capacidade de fruir os pequenos
prazeres da existência é um terceiro.

Perseverança, Racionalidade e Judaísmo


Há duas frases na carta a Bnei Brit que nos elucidam quanto a outros componentes desta "arquitetura
psíquica": "A isto não demorou a se acrescentar a compreensão de que somente à minha natureza judaica devo as
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duas qualidades que chegaram a ser indispensáveis no difícil caminho da minha existência. Precisamente por ser
judeu, encontrava-me livre de muitos preconceitos que toldam a outros o exercício de seu intelecto; precisamente
por ser judeu, estava preparado para colocar-me na oposição e para renunciar à concordância com a maioria
compacta". Comecemos por esta segunda afirmação, já que a primeira — sobre os preconceitos e o intelecto —
nos conduzirá bem mais longe.
O judeu é aqui definido por sua exclusão da "maioria compacta", isto é, pela capacidade de resistir ao
conforto de pensar como todo mundo, e de suportar os inconvenientes próprios ao estar na "oposição". A
referência aqui é, obviamente, ao fato de os judeus não se terem convertido ao cristianismo nem ao islamismo,
persistindo em suas crenças e organizando-se comunitariamente de modo a poderem garantir a transmissão destas
crenças às gerações seguintes. E ao caráter de minoria que Freud alude; e, para manter-se como minoria, o judeu
precisa de uma qualidade específica, que, numa outra carta, Freud denomina de tenacidade. Falando de um amigo
seu, Freud escreve a Martha: "Tudo isto mostra a capacidade de trabalho e entusiasmo tenaz do judeu, mesmo
quando não acompanhado do talento que habitualmente se atribui aos hebreus. Nós poderemos conseguir algo
semelhante" (3). Esta tenacidade ou perseverança acaba por se tornar um atributo psicológico que Freud
considerava inerente ao caráter judaico: e ela se aplica tanto à busca do conhecimento quanto à disposição para
lutar contra um meio hostil, seja este meio o da sociedade, que discrimina os judeus, ou o da ciência oficial, que
rejeita as descobertas escandalosas do Dr. Freud.
Esta idéia de luta me parece absolutamente essencial, tanto no que se refere à personalidade de Freud,
quanto a certas noções da psicanálise que ele inventou. A bem dizer, ela está implicada na idéia de "estar na
oposição e renunciar a concordância com a maioria compacta". Tais atitudes não são de forma alguma passivas:
quem está na oposição se encontra submetido a pressões, precisa combater incessantemente, a fim de preservar
seu espaço, mais ainda do que para aumentá-lo. Pode ser útil aqui uma comparação com certos fenômenos físicos:
Vocês conhecem a idéia de entropia, isto é, a tendência que existe no mundo físico à equalização das tensões, à
homogeneização, à desorganização. Deste ponto de vista, a manutenção de um objeto qualquer na sua situação
dada em um momento qualquer não é apenas algo passivo, porque, se a coisa for simplesmen te deixada ali, as
pressões no sentido de que ela perca suas diferenças com o meio ambiente — isto é, se torne uniforme a ele —
acabarão por vencer, e a coisa desaparecerá. Exemplo: a erosão de uma montanha pelo vento ou pela chuva, ou
este fato tão comum que é o encontrarmos, nos rios, pedras lisas e arredondadas. Elas eram originalmente rugosas
e bicudas; é a ação homogeneizadora da água que apara suas arestas, e, dentro de mais alguns milhões de anos, fará
com que se dissolvam em pó ou se reduzam agrãozinhos absolutamente idênticos. O mesmo vale para um
organismo vivo: viver significa manter uma organização própria, resistindo às pressões externas (e internas) no
sentido da homogeneização, da redução das diferenças frente ao meio externo; isto é, no sentido da morte.

(3) Carta 26 a Martha (23.10.1883).

Uma vez clara esta idéia, é fácil compreender que ela vale também para as formações sociais e para a vida
psíquica. Os judeus são um caso bem claro do esforço para não sucumbir às pressões que se opuseram à sua
continuidade como civilização, pressões que ora foram violentas (perseguições), ora sutis (assimilação). E
evidente que, neste esforço, eles próprios se modificaram muito, absorvendo e "judaizando" elementos das
civilizações vizinhas; se não fosse assim, ainda estaríamos vestidos como na época bíblica e não rezaríamos em
sinagogas, mas sacrificaríamos carneiros no Templo de Jerusalém. O que quero dizer é que se preservar é o mesmo
que estar na oposição, e nenhuma destas atitudes representa um mero "deixar-como-está-para-ver-como-fica":
ambas implicam uma postura ativa, combativa, que discrimina nas trocas com o meio ambiente o que pode ser útil e
o que pode ser fatal para a sobrevivência do grupo em questão.
Ora, estas idéias estão na base da teoria freudiana do funciona-mento psíquico, concebido como resultado de
um conflito entre várias partes da mente ou da alma; também estão na base do tratamento psicanalítico, concebido
como um campo de forças no qual o reprimido busca expressar-se, enquanto outra parte da psique resiste a esta
expressão, ou à modificação psíquica que o paciente diz desejar. Há muitas imagens militares no vocabulário
cunhado por Freud para designar suas descobertas: conflito, resistência, investimento, repressão, defesa, formação
de compromisso, são algumas delas. Além disso, ele próprio se via não tanto como um pacato cientista às voltas
com um objeto de estudo, ou como um médico compassivo desejando curar ou diminuir o sofrimento de seus
pacientes, mas, como escreveu numa carta a seu amigo Fliess, como um conquistador, "como um aventureiro, se
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Você quiser traduzir assim — com a curiosidade, a audácia e a tenacidade próprias a este tipo de pessoa". Vemos
assim reaparecer o tema da tenacidade, e agora podemos compreender que, para Freud, esta qualidade significa o
trabalho para resistir às condições exteriores, capazes de fazer algo ou alguém deixar de ser o que é: tanto faz que
elas sejam brutais ou suaves, pois, neste último caso, serão ainda mais perigosas, justamente porque não darão
esta impressão. (Há um certo componente paranóide nesta idéia, mas disso trataremos mais adiante). E, para
Freud, a tenacidade da qual é dotado provém do fato de ser judeu, pois, ''como judeu, estava preparado para ficar
na oposição e renunciar à concordância com a maioria compacta".
Bem, que os judeus são especialmente teimosos não é propriamente uma novidade: Moisés já se queixava
de que seus liderados eram "am kshei óref", um "povo de dura cerviz". Por isto, esta frase de Freud, embora nos
esclareça quanto a uma faceta importante do que denominava a "arquitetura psíquica" dos judeus e dele mesmo,
não nos surpreende muito. Já a outra idéia expressa na carta à Bnei Brit — a de que, por ser judeu, ele se
encontrava "livre dos preconceitos que toldam a outros o uso de seu intelecto" — nos parece muito mais estranha.
Por acaso os judeus são menos preconceituosos do que os outros? Não é o que nossa experiência nos mostra, é o
mínimo que se pode dizer! Posso lhes garantir que, a mim mesmo, ela intrigou bastante; à primeira vista, pareceria
tratar-se apenas de um proconcei-to do próprio Freud, sem maior importância do que sua paixão por catar
cogumelos selvagens ou seu interesse pela telepatia: isto é, seria uma posição sua, desprovida de qualquer
relevância para a gênese da psicanálise. Mas a carta é absolutamente explícita, pois afirma que esta qualidade
devida à sua "natureza judaica" lhe foi indispensável no "difícil caminho de sua existência". Por que este caminho
foi difícil? A frase seguinte o explica: porque precisava "manter-se na oposição", isto é, defender suas idéias
contra a indiferença e o repúdio da ciência da época. Juntas, as duas frases significam que Freud atribuía à sua
natureza judaica a independência de julgamento que o fez descobrir coisas novas e terríveis, e a tenacidade para
prosseguir em seu caminho, apesar da oposição que encontrava, tanto em seus adversários, quanto em alguns de
seus discípulos (que, como Adler e Jung, se separaram dele), quanto ainda dentro dele mesmo (as "coisas capazes
de me desiludir e mesmo de me assustar" a que alude no início da carta). Freud diz com todas as letras que, por
ser judeu (e não, vejam bem, por ser ateu), foi-lhe possível descobrir o inconsciente e explorá-lo, criando a
psicanálise. Esta é uma afirmação de grande alcance, pois estabelece um vínculo muito íntimo entre o fato de o
criador da psicanálise ser judeu e o conteúdo desta disciplina; equivale quase a dizer que a psicanálise é um
produto do espírito judaico, ou algo deste gênero. O que devemos pensar disto?
Vê-se agora a importância de ter claras as condições históricas em que Freud viveu e pensou, bem como
do significado do "ser judeu" para ele e para alguns de seus contemporâneos. Freud não é um judeu religioso
tradicional: por esta singela razão, é impossíivel considerar a psicanálise como fazendo parte, de modo direto e
linear, do pensamento, da filosofia ou da tradição judaica. Se há influência do judaísmo sobre ela, tal influência só
pode ser oblíqua, indireta, através de mediações complexas e multifacetadas. Uma destas mediações é a ciência
ocidental, à qual os judeus tiveram acesso através da Emanci-pação e da assimilação: Freud não aprendeu
neurologia e psiquiatria no seminário talmúdico, mas na Universidade de Viena e no hospital da Salpêtrière, onde
estudou com Charcot. Outra destas mediações é a postura crítica em relação ao "óbvio", ao "aceito como natural",
que, no caso dos judeus, começa com a recusa dos padrões judaicos tradicionais de agir e pensar, isto é, com a
recusa daquilo que em sua educação, em sua casa e em sua comunidade era considerado natural, correto,
adequado, etc. Tal postura não foi rara entre os judeus da Europa Central na época em que Freud viveu: e a razão
última disto não é a genialidade de certos indivíduos, mas a possibilidade, aberta pelas transformações econômicas,
sociais e culturais decorrentes do advento do capitalismo e da Revolução Francesa, de que os judeus pudessem ter
acesso à cultura ocidental, utilizando-a para criticar o próprio judaísmo. Alguns dos que o fizeram aceitaram esta
cultura como excelente e se assimilaram por completo; outros aplicaram a postura crítica à própria cultura na qual
a haviam aprendido, e, por motivos variados, tornaram-se capazes de vê-la com olhos menos embevecidos. Vieram
assim a inovar profundamente esta cultura, exatamente porque não caíram na armadilha de considerar os hábitos e
crenças dela como naturais, como os únicos ou como os melhores possíveis. Duvidaram daquilo que todos
consideravam óbvio: por isto, foram tão revolucionários em seus respectivos setores. Freud, Einstein, Marx,
Wittgenstein, Husserl e tantos outros são exatamente judeus que não mais encontravam "um refúgio autêntico nas
coisas que tornavam felizes os velhos judeus", como escreve o jovem Sigmund à sua noiva; mas tampouco
encontraram refúgio no que tornava felizes — ou acomodados — seus contemporâneos não-judeus. É claro que
não foram os únicos a questionar a naturalidade ou a necessidade de certos aspectos da cultura e da sociedade
ocidentais: houve inúmeros outros, não-judeus, que fizeram o mesmo, e também inúmeros judeus que os
aceitaram sem questionamento algum. Por isto, não devemos ceder à ilusão de que basta ter sido um judeu crítico
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em relação ao considerado "evidente" para inventar a psicanálise, a relatividade ou a fenomenologia. Isto pode
confortar nossa auto-estima, por termos algo em comum com estas personalidades geniais; apenas, elas foram
geniais não pelo que têm em comum conosco, isto é, o judaísmo, mas exatamente pelo que não tem em comum
conosco, isto é, pela capacidade de ir muito longe no questionamento do "óbvio" e na construção de verdadeiras
contra-teorias, à luz das quais o pretensamente óbvio surge como a consequência de nossas ilusões, de nossa
ignorância ou de nossos preconceitos.
Retornemos agora à frase de Freud. A primeira observação a fazer aqui é que ela subverte o que havia
sido afirmado nos trechos anteriores da carta à Bnei Brit: até aqui, o judaísmo era algo profundo e importante no
plano emocional, não no plano intelectual. Neste, Freud se confessava um discípulo das luzes, um racionalista
convicto, um cientista para quem a religião não favorece e sim atrapalha a busca da verdade. Ora, é precisamente
esta divisão nitida que cai por terra, quando ele escreve que "por ser judeu, encontrava-me livre dos preconceitos
que toldam a outros o uso do seu intelecto": agora, o judaísmo — ou melhor, o fato de se ser um agnóstico cuja
cultura original era o judaísmo — aparece como uma disposição que favorecece o uso livre do intelecto, isto é, a
capacidade de fazer perguntas originais e de encontrar um caminho original para respondê-las. Esta idéia de Freud,
convém repelir, é muito estranha, mas agora, tomando em consideração o que foi dito até aqui, ela pode ser
investigada com maior clareza.
Vou resumir brevemente as conclusões a que cheguei a este respeito; as análises detalhadas que justificam
estas conclusões se encontram nos livros a que me referi, e não vejo utilidade em repeti-las aqui (4). Penso que esta
afirmação de Freud só pode ser compreendida à luz de sua identificação com o profeta Moisés, e à luz do que, para
Freud, significava a instituição por Moisés da religião judaica. Ao contrário do que pode parecer, segundo Freud o
essencial da doutrina de Moisés não é o monoteísmo, isto é, a crença num Deus único. Isto já era conhecido pelos
egípcios, cujo faraó Ikhnaton tentou implantar, por volta de 1300 a.C, o culto a um Deus único, que chamou de
Aton e cuja representação visível era o sol. Para Freud, o que Moisés trouxe de radicalmente novo é a idéia de um
Deus invisível e impossível de ser representado por imagens. Isto obrigou aqueles que acreditaram nesta idéia —
isto é, os judeus — a um excepcional esforço de abstração, separando-se do mundo dos sentidos e abrindo
caminho para o pensamento racional. Nas palavras de Freud:
"Ao ser aceita, esta proibição exerceu um profundo efeito, pois significava subordinar a percepção
sensorial a uma idéia decididamente abstrata, um triunfo da intelectualidade sobre a sensibilidade, e,
estritamente considerada, uma renúncia aos instintos, com todas as suas conseqüências,
psicologicamente inevitáveis. (...) Toda a magia das palavras decorre desta fé na onipotência do
pensamento, assim como a convicção do poder ligado ao conhecimento e à enunciação de algum
nome. Nós consideramos que a 'onipotência do pensamento' exprime o valor atribuído pelo homem
ao desenvolvimento da linguagem, que trouxe um progresso tão extraordinário das atividades
intelectuais. Foi então que se estabeleceu o reino novo da intelectualidade, a partir do qual, concei-
tos, lembranças e deduções assumiram importância decisiva, em oposição às atividades psíquicas
inferiores, ligadas às percepções sensoriais imediatas. Esta foi uma das etapas mais importantes no
caminho da humanização do homem" (5).

(4) Pode-se consultar também o belo livro de Marthe Robert, D'Oedipe à Moïse: Freud et la Conscience Juive, Paris, Le Livre de Poche, 1978.

Segundo Freud, assim, Moisés e a sua doutrina de um Deus invisível representaram um passo adiante
nesta trilha aberta com a invenção da linguagem. A linguagem permite que o homem se refira ao que não está
presente, ao passado, ao distante, ao possível— enfim, às diferentes variedades do invisível. Por isto, ela amplia
imensamente o campo da atividade mental do ser humano, deslocando-a da referência imediata ao sensível, isto é,
ao visto agora, ao farejado agora, etc, em função do qual vivem os animais. É claro que os deuses e as forças que
governam a Natureza pertencem a este reino do invisível; mas os povos antigos procuraram dar deles uma
representação visual, nas imagens que povoam os templos de todas as religiões. Moisés fala de um Deus não
apenas invisível, mas ainda impossível de ser representa-do por uma imagem análoga a ele; para Freud, este é
outro avanço na direção inaugurada pela invenção da linguagem, isto é, na valorização crescente dos conceitos, das
lembranças, das deduções, em detrimento das "percepções sensoriais imediatas". Estas nos revelam a aparência das
coisas, mas todos sabemos que "as aparências enganam". Todo conhecimento implica em ir além destas
aparências, em estabelecer ligações entre elas, explicá-las por meio de leis e princípios que só podem ser
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atingidos pelo pensamento; por isto, as atividades de pensar, lembrar e raciocinar são indispensáveis para o
conhecimento, mesmo para o mais simples conhecimento. O que Freud está dizendo é que, devido à proibição de
representar visualmente a divindade, os judeus foram estimulados a desenvolver estas capacidades, tornando-se
hábeis no raciocínio abstrato, na dedução, na inferência, no manejo das palavras e dos conceitos; acostumaram-se
a desconfiar da aparência sensível e a buscar no invisível, por meio da palavra e do raciocí-nio, a explicação para
o visível.

(5) O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, III, 2" parte, C ("O Progresso na Intelectualização"), edição espanhola, vol. III, p. 3309.

Não temos tempo, agora, de discutir estas idéias de Freud; voltaremos a elas na 4a aula desta série. Queria
apenas deixar claro o que quer dizer a enigmática frase sobre o "uso do livre intelecto", que encontramos na carta
à Bnei Brit: ela se refere a este "reino da intelectualidade", que começa com a invenção da linguagem, passa pela
doutrina mosaica do Deus invisível e que se comunica com o homem através da palavra e da lei, e vem culminar
com a ciência moderna, que leva esta tendência até as suas últimas conseqüências, ao investigar o invisível com
instrumentos surgidos do próprio invisível, como a Matemática. A própria psicanálise, nesta linha, conquista —
para usar a metáfora de Freud para o conhecimento — mais uma área deste invisível: a psique humana. É por isto
que, nas entrelinhas da carta à Bnei Brit, podemos 1er a idéia de que Freud é um digno herdeiro de Moisés, ou, em
seus termos, que o fato de ser judeu lhe facilitou o uso de seu intelecto. Assim se fecha a cisão de que falei há
pouco, segundo a qual a Razão é uma coisa e a emoção outra, estando o judaísmo apenas do lado desta última. O
que Freud faz ao falar do intelecto sem preconceitos é estabelecer, através da referência ao judaísmo, uma ponte
entre estas duas esferas, a racional e a afetiva: e veremos que, ao estabelecer esta ponte, está sendo coerente com
os ensinamentos da psicanálise por ele inventada.
Vamos deixar as coisas assim, por hoje. Na próxima vez, procuraremos utilizar algumas noções da
psicanálise para compreender o que significa, para os judeus, o ser judeu.

DOMINANTE: IDENTIDADE JUDAICA (2a. AULA)


Na outra vez, ao enumerar os problemas que poderíamos abordar sob a rubrica Psicanálise e Judaísmo,
distingui cinco tópicos:
a) o que Freud pensava do judaísmo;
b) em que medida o judaísmo de Freud teve influência sobre a criação da psicanálise;
c) o que a psicanálise contém de "judaico";
d) o que a psicanálise pode dizer acerca do judaísmo, como sistema de crenças e práticas ;
e) o que a psicanálise pode esclarecer quanto ao sentido, para os judeus, do fato de o serem.
A primeira aula procurou fornecer alguns elementos para esclarecer os dois primeiros aspectos, deixando
deliberadamente alguns fios soltos, porque não pretendo oferecer respostas prontas nem para estas questões, nem
para nenhuma outra. A finalidade destas palestras é, já o disse, sensibilizar Vocês para certas idéias, para certos
problemas, e deixar que o que vou expondo faça seu caminho dentro de cada um de Vocês; quero suscitar
inquietações, propor algumas idéias pessoais, mas sobretudo deixar espaço para que cada qual elabore por conta
própria o que puder retirar das palestras. Estes problemas são espinhosos, dependem de interpretações complexas,
e, embora acredite que o que lhes proponho está razoavelmente justificado, não gostaria de dar estas aulas de modo
tal que elas viessem a dificultar, em vez de favorecer, a reflexão de Vocês sobre estes temas.
Esta diretriz merece ser enfatizada especialmente no que se refere à aula de hoje, na qual pretendo abordar
o quinto dos tópicos enumerados acima. Vamos falar sobre a identidade judaica, ou, em outros termos, sobre os
caminhos pelos quais um ser humano, biologicamente igual a todos os demais, vem a se tornar um judeu e não
outra coisa qualquer. Para tanto, vamos recorrer a alguns conceitos da teoria psicanalítica, que considerarei
portanto como instrumento para estudar o problema da identidade judaica. Estamos por assim dizer mudando de
nível: não se trata agora de saber o que o judaísmo, de Freud ou de qualquer outro, pode aportar ao modo de
pensar psicanalítico, mas sim de saber no que a psicanálise pode ser útil para compreender um processo psíquico e
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cultural, como o da formação da identidade judaica. Quero deixar claro, antes de entrar diretamente no problema,
meu objetivo: vou procurar descrever um processo psíquico. Descrever, isto é, mostrar como funciona, sem entrar
no mérito de se é bom ou não que funcione assim; não há aqui nenhum juízo de valor, nenhuma norma acerca do
que deve ser a identidade judaica. E vou descrever um processo psíquico, isto é, vou deixar deliberadamente de
lado todos os outros aspectos da identidade que não são psíquicos, mas históricos, sociais, políticos, ideológicos,
etc. Espero que a primeira parte da aula passada tenha dissipado qualquer dúvida quanto ao papel fundamental
que atribuo à História e à esfera social para compreender nossos temas. Apenas, hoje o assunto é outro, e vamos
nos ater a este aspecto.

Identidade e Identificação
A idéia básica da qual vamos partir é a seguinte: a identidade não é um elemento que cada um de nós
possui ao nascer; ela é algo adquirido aos poucos, ao longo de nossa infância, de nossa educação, etc. A
identidade situa-se no ponto de cruzamento entre algo que vem de nós (o equipamento psíquico com o qual
nascemos) e algo que nos vem de fora, isto é, da realidade externa. E, como dizia Freud em Totem e Tabu, na
realidade externa o que existe é a sociedade humana, com as suas instituições e as suas normas.
Tentemos definir, brevemente, o que quer dizer a palavra identidade. O primeiro sentido é o de ser
idêntico a: duas folhas de papel são idênticas quando não existe diferença perceptível entre uma e outra. Outro
sentido é aquele em que empregamos a expressão "carteira de identidade": neste caso, trata-se de um conjunto de
sinais que permitem a outros dizerem quem nós somos, isto é, nos identificar, nos distinguir em meio a um
conjunto. No caso da carteira de identidade, tais sinais são o número do R.G., a filiação, etc. Já percebemos, ao
justapor estas duas acepções da palavra, que a identidade remete aos temas da diferença e da alteridade, isto é,
remete aos seus opostos. Identificar significa "separar", "designar", mas também significa "tornar igual a": é neste
campo semântico que se insere o sentido propriamente psicológico do termo.
Todos nós temos um sentimento de identidade, isto é, a sensação subjetiva de que algo subjaz aos
diversos momentos de nossa existência e os torna partes da mesma vida, a de cada um de nós. Este sentimento de
identidade está associado a fenómenos como o da continuidade (hoje e ontem, sou o mesmo, embora esteja em
outro lugar e esteja vivendo coisas diferentes), e como o da sensação de ter limites (por exemplo, limites do meu
corpo; sei intuitivamente onde começo e onde termino, e me sinto inteiro dentro dos limites da minha pele). Estes
fenômenos podem parecer naturais, mas não são: existem pessoas cuja perturbação psíquica concerne exatamente
a estas sensações de permanência, de continuidade, de limites claros entre si e outros; tais pessoas podem
apresentar sintomas muito variados, que indicam estar pouco estruturado o nível de identidade, neste sentido que
estou assinalando.
São patologias deste gênero que colocaram Freud e seus sucessores na pista de um problema que envolve
este que estamos estudando, e que eu formularia assim: como se constitui a identidade de um ser humano? Que
ela não é um dado natural é evidente pelo fato de que podemos perdê-la, ou de que ela pode ficar seriamente
comprometida em certos quadros clínicos. Então, de onde vem? A psicanálise responde: do processo a que
chamamos identificação. E este processo de identificação resulta na constituição, dentro de cada um de nós, de
um eu, isto é, de uma parte nossa que vai nos parecer a única, porque é apenas dela que temos consciência.
Quando uma criança nasce, ela ainda não tem um "eu", por mais estranho que isto possa parecer. Um
bebê é um animalzinho que nasce cedo demais para a vida; é preciso cuidar dele durante vários anos, até que
ganhe uma certa autonomia, coisa que os filhotes da maioria dos animais obtêm em questão de horas, dias ou
semanas. Este fato biológico tem conseqüências psíquicas muito importantes. Através de filmes como Kaspar
Hauser e de histórias reais de crianças que foram abandonadas logo ao nascer entre animais selvagens, e que por
algum milagre sobreviveram, nós sabemos o que acontece quando o ser humano se desenvolve fora da sociedade
humana: ele não realiza nenhuma das potencialidades que caracterizam nossa espécie, como a postura ereta ou o
uso da linguagem e das técnicas de trabalho. Histórias como a de Tarzan ou a de Mowgli, o Menino-Lobo, são
infelizmente mitos; elas humanizam a vida dos macacos e dos lobos, transformando-as em réplicas melhoradas da
sociedade humana. Um psicanalista diria que estas lendas projetam sobre os animais algumas idéias acerca da
felicidade do homem em estado selvagem, idéias que deram origem, em outros contextos, às mais variadas utopias
(sem qualquer sentido pejorativo no termo utopia). Um personagem como Tarzan representa algo dos nossos
ideais, ou pelo menos dos ideais do autor e da sociedade na qual e para a qual ele escreve: o homem, deixado às
influências da Natureza, torna-se belo, autônomo, justo (Tarzan está sempre combatendo pelo Bem); ele reúne as
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melhores qualidades do animal e do ser humano. Mas as coisas não são bem assim: sem tirar a graça das histórias
de Tarzan, é preciso reconhecer que o que humaniza o homem, o que o torna homem, é o convívio com outros seres
humanos. E isto não apenas no plano mais óbvio, o dos hábitos, crenças e maneiras de ser que diferenciam as
civilizações umas das outras — é claro que uma criança educada entre os pigmeus tem boas chances de se
converter um pigmeu, socialmente falando, e independentemente de sua estatura. O que a psicanálise mostra é que
a própria identidade pessoal nos chega através do convívio com outros seres humanos: nosso Eu, que
consideramos tão "nosso", na verdade resulta de um longo e complicado trabalho psíquico.
Suponhamos um momento uma psique desencarnada, fechada sobre si mesma e fora de um corpo. O que
esta psique seria capaz de produzir? Claramente, nada que tivesse relação com o mundo fora dela: vamos chamar
estas produções, quaisquer que posam ser elas, de pictogramas, utilizando um termo criado pela psicanalista Piera
Aulag-nier. Mas a psique não existe assim. Ela existe dentro de um corpo, e, por mais desagradável que seja esta
experiência, ela precisa se abrir para o mundo e ser capaz de representar este mundo; se não, ela e o corpo que a
abriga morrerão rapidamente. Originariamente, a psique não distingue entre um "dentro" e um "fora" dela; ou
melhor, coloca fora de si tudo o que seja desagradável (ainda que a fonte deste estímulo desagradável seja o
próprio corpo), e coloca dentro de si tudo que é agradável (mesmo que a fonte deste estímulo agradável seja, por
exemplo, o seio do qual o bebê mama). Este é um espaço de fantasia, no qual vigora o princípio que Freud
chamou de onipotência do pensamento. Todos nós sabemos que, em nossas fantasias, tudo é possível: às vezes,
em nossos devaneios, somos amigos do rei, ou o próprio rei, somos imortais, belíssimos, etc. Basta querer e as
coisas acontecem; uma imagem disto é a idéia da boa fada, com sua varinha de condão, que torna
instantaneamente reais nossos desejos mais profundos.
Mas nem a fantasia nem o que caracterizei como pictograma são funções do eu. Este é uma parte do
espaço psíquico que está em relação com a realidade exterior, cujos objetos de prazer se encontram nesta realidade,
e não podem ser criados, como as fantasias, pela atividade espontânea da psique. Os primeiros objetos deste
gênero são o corpo próprio e o Eu da mãe. E criação de um Eu no bebê depende decisivamente da maneira como a
mãe lida com ele, o que por sua vez depende decisivamente da maneira como ela lida com sua própria psique e
com seu próprio Eu. A função do Eu é dar sentido ao que ocorre à psique, ao que vai lhe acontecendo por estar
inserida num corpo e num sistema de relações com os outros seres humanos. Por isto, é preciso que o eu seja capaz
de uma atividade psíquica que não se confunde com a fantasia, e que se chama o pensamento. E, para que o Eu do
bebê tenha pensamentos para pensar, é preciso que a mãe os ofereça a ele.
Aqui convém introduzir uma noção psicanalítica muito importante: a de investimento. Investir algo
significa, em psicanálise, ligar uma certa fração de energia psíquica a um objeto, objeto que pode ser uma idéia,
uma pessoa, uma parte do corpo, uma coisa do mundo externo, etc. A psicanálise utiliza esta idéia um pouco
esquisita segundo a qual, para que o Eu se constitua, é necessário que ele invista a si próprio, isto é, que a idéia de
"eu" tenha sentido para o bebê. E como isto acontece? De uma maneira muito simples: é a mãe, como porta-voz da
sociedade em que o bebê nasce, que por assim dizer "introduz" na psique do bebê um certo tipo de pensamentos,
pensamentos cuja função é identificante, isto é, que dizem ao bebê quem ele é. "Você é meu bebê", "Você é
lindo", "Você é meu filho", são exemplos simples deste tipo de pensamentos, que são pensamentos da mãe acerca
de seu bebê. Eles exprimem os desejos da mãe quanto a esta criança, como podemos ver na seguinte anedota: Uma
mãe judia está passeando na praça Buenos Aires com seus dois filhos, no carrinho de bebê. Uma pessoa se
aproxima e pergunta: "São seus filhos?" E ela: "Claro! Este é o médico e este é o engenheiro!" Enunciados deste
tipo são, na linguagem técnica da psicanálise, enunciados identificatórios.
Uma parte importante destes enunciados concerne ao nome e ao sobrenome que nós temos, e que fazem
parte de nossa identidade, mas não foram escolhidos por nós. Eles nos localizam dentro da sociedade, como
membros desta ou daquela família, e assim designam para cada um de nós alguém como nossa mãe, alguém como
nosso pai, outros seres humanos como nossos irmãos ou primos. Isto serve também para definir aqueles ou
aquelas com quem não posso manter relações sexuais: é o que se chama de lei de proibição do incesto. Entre os
animais, não existe esta regra: um gatinho, quando cresce, pode fecundar uma gata que nós sabemos que é a mãe
dele; mas nenhum dos dois sabe disso, porque no mundo dos gatos não existem pais nem mães, só existem machos
e fêmeas. Estou dando este exemplo para mostrar que um gato não tem o que chamamos de identidade. Ele pode
até reconhecer que seu nome é este ou aquele — os cachorros, por exemplo, percebem perfeitamente quando
dizemos seu nome — mas eles não se designam a si mesmos desta maneira. Então, creio que está clara esta idéia:
nós nos designamos por nosso nome, e nosso nome nos foi dado por outros, para quem este nome tem um sentido

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qualquer, no seu próprio desejo.
Aqui cabe uma observação. Costuma-se apresentar a relação entre a sociedade e o indivíduo como sendo
basicamente uma relação de repressão. O indivíduo, por viver em sociedade, não pode fazer tudo o que deseja,
deve aprender a controlar seus impulsos etc. Mas a sociedade não apenas nos impede de fazer o que desejamos.
Através dos procedimentos identificatórios, ela também nos permite, torna possível para nós, o exercício de
nossas potencialidades. No cinema, há bons exemplos disso. Num filme de Buñel, se não me engano O Discreto
Charme du Burguesia, há uma cena que mostra isto bem: as pessoas comem em segredo, mas defecam em
público. Isto é perfeitamente admitido naquela sociedade, enquanto o ato de comer é considerado sujo e indecente.
Cenas assim servem para mostrar como são relativos os critérios do permitido e do proibido; os romanos defeca-
vam em latrinas coletivas, como se pode ver nas ruínas das termas; ia-se ali não só para tomar banho ou fazer as
necessidades, mas para ficar sabendo das últimas novidades, etc. Mesmo em nosso meio social, os critérios do
permitido e do proibido variam de época para época. Há cem anos, era absolutamente indecente para a mulher
mostrar as pernas, mas o colo era considerado como feito para ser exposto: de onde saias compridas e decotes
extremamente ousados. Há um romance de José de Alencar, A Pata da Gazela, no qual o herói se apaixona pelo
sapato da moça, que sugere um lindo pé, não visto e por isto mesmo misterioso, desejável; era considerado
extremamente indecente mostrar os pés, mas os ombros e os cabelos podiam ser exibidos sem o menor
constrangimento. Tudo isto nos ajuda a compreender que sempre existe uma regra que partilha entre o permitido e
o proibi-do, embora o que faz parte de cada uma destas categorias possa variar de época para época e de
sociedade para sociedade.
A sociedade precisa criar não somente obstáculos à realização dos desejos, mas também canais através
dos quais o sujeito possa dispor de um espaço psíquico interno; e uma das partes deste espaço interno é a
identidade. O poder não é apenas uma instância que reprime e proíbe; ele faz surgir, incita, produz
comportamentos, como mostram os estudos de Michel Foucault. Entre estes comportamentos, está a relação do
indivíduo consigo próprio, que é função de certas maneiras de sentir, de agir e de pensar que lhe são inculcadas
através dos mecanismos identificatórios. Cada sociedade precisa se estruturar de forma tal, que seus membros
possam se identificar a certos modelos, adotá-los como seus, representá-los como ideais a serem atingidos, etc. É
necessário que haja também uma margem de manobra interna para cada sujeito, um espaço dentro do qual ele
possa acomodar estes modelos gerais que a sociedade lhe oferece às suas próprias fantasias e às suas próprias
fontes de prazer; é neste espaço que cada um de nós é Pedro ou João, goza de um direito à subjetividade que nos
permite ser assim ou assado. Caso contrário, se houvesse apenas o processo de identificação no sentido sociedade
→ psique, todos os membros de uma dada sociedade seriam psiquicamente iguais, o que, obviamente, não é
verdade.
Isto tudo pode parecer muito abstrato, mas não é. Sem termos uma idéia do que sejam estes processos de
identificação, não é possível dizer nada especificamente psicanalítico sobre a identidade judaica. O que resulta
disto que acabei de expor é que uma criança, para se tornar um judeu, necessita identificar-se com este conjunto de
significações que é o "ser judeu", significações que vão lhe ser transmitidas pelos agentes sociais apropriados, e
que no caso costumam ser os pais. Isto tudo poderia ser apenas um modo bastante embrulhado de dizer que
judaísmo se aprende em casa, se não fosse por um elemento muito importante, e que sem a psicanálise nós não
saberíamos que existe: a saber, que a identificação é um processo inconsciente, e que seus alvos privilegiados são
o pai e a mãe de cada um de nós.

Judaísmo e Conflito Edipiano


Todos sabem que a psicanálise vê no complexo de Édipo o cerne da vida psíquica. É em torno de Édipo
que se estrutura a personalidade humana, e isto quer dizer muita coisa. Esquematicamente, podemos dizer que o
complexo de Édipo consiste numa constelação de desejos inconscientes, de natureza sexual e agressiva, que
concernem às imagens internas do pai e da mãe. Não é muito importante que as palavras "pai" e "mãe" designem
os progenitores biológicos; a "mãe" pode ser uma tia, uma avó, a babá, etc, o "pai" pode ser qualquer um. O
importante é que se estabeleça a seguinte relação triangular: alguém que deseja, um objeto para este desejo, um
terceiro elemento que impede a realização deste desejo. No exemplo mais simples, a criança deseja a mãe e o pai a
impede de possuí-la, tanto sexualmente, quanto, de modo mais cotidiano, porque ela é o objeto de seu desejo, e por
sua vez também o deseja. A criança é levada assim a formar em relação tanto ao pai quanto à mãe fantasias
eróticas e agressivas; o complexo de Édipo "completo" inclui quatro vetores, a saber: o amor e ódio pela mãe,
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amor e ódio pelo pai, e isto para os dois sexos.
Se o judaísmo chega à criança através dos pais — como qualquer outro conteúdo identificatório —, ele
vai estar incluído na rede de desejos e fantasias que constituem o complexo de Édipo. "Ser judeu" não é um desejo
primário do inconsciente; portanto, é algo que precisa ser investido pela criança, dentro do esquema que
desenvolvi atrás. Sua identificação com este "ser judeu" — digamos, com este atributo — vai depender então de
vários fatores. Um deles é a forma como se estrutura seu complexo de Édipo: é isto que vai determinar como ela
se relaciona com seus pais, e portanto o que vai aceitar e o que vai recusar daquilo que eles lhe oferecem como
modelos identifi-catórios. Outro fator é, evidentemente, o modo pelo qual estes pais se relacionam com o fato de
serem judeus, o que, pela lógica do que acabo de dizer, remete ao seu próprio complexo de Édipo, isto é, à relação
de cada um deles com seus próprios pais.
Aqui intervém uma variável que não é psíquica, mas social. O que ficou exposto na primeira aula acerca
da história judaica pode ser utilizado neste contexto. Os filhos sempre amaram e odiaram seus pais, desde Adão e
Eva; mas não depende do complexo de Édipo, e sim de fatores sociais, que o judaísmo dos pais entre no conflito
edipiano. Vamos explicar isto melhor: numa sociedade que designa aos judeus um lugar específico — digamos, o
do gueto — e na qual quem nasce numa família judaica tem sua posição social determinada de forma rígida, as
coisas são muito claras, e a identificação com o judaísmo se processa de modo tão intenso, que dificilmente ela
será abalada. O indivíduo pode detestar seu pai ou sua mãe, mas o conflito com eles tomará outras formas: serão
atacados porque são pobres, porque são ignorantes, porque não permitem ao filho isto ou aquilo, mas não por
serem judeus. Que mais poderiam ser? A separação necessária entre filhos e pais — necessária para que os filhos
vivam sua própria vida — tampouco irá passar pela esfera do judaísmo: o pai é rabino, o filho talvez seja
comerciante, mas novamente será muito difícil que este conflito culmine no questionamento do judaísmo como
herança comum. Em resumo, o ser judeu é algo imposto pela sociedade de modo tão nítido, que o conflito
inevitável entre pais e filhos nunca, ou somente em casos muito raros, passará por aí. Ora, se vocês se lembram do
que falei sobre a história judaica na outra aula, este foi o caso até a emancipação. Mas, dali para a frente, a
sociedade abriu para os judeus um caminho novo, o de integração social em proporções até então inimagináveis.
Passou a ser, então, possível continuar a ser judeu ou deixar de sê-lo; por este motivo, o conflito edipiano passa a
atravessar também esta esfera, já que permanecer judeu era uma das formas de ser igual ao pai (de identificar-se com
ele), enquanto abandonar o judaísmo poderia ser uma das formas em que se expressa-va o ódio pelo pai ou a
rebelião contra a sua autoridade.
Bem, dirão Vocês: mas se o complexo de Édipo é tão universal, e se o conflito com os pais é tão
inevitável, como se explica que a maioria dos judeus tenha permanecido como tais, mesmo nas novas condições
sociais criadas no século XIX? Por que todos não deixaram de sê-lo? E, prosseguindo nesta hipótese, por que todos
os filhos de judeus assimilados não retornaram ao judaísmo, para se distinguirem dos pais, no contexto da revolta
edipiana? A pergunta é muito apropriada; para poder respondê-la, porém, quero dar um ou dois exemplos disto, a
fim de que as coisas não fiquem num nível tão abstrato.
Tomemos o caso de Kafka, um daqueles para quem o problema do judaísmo entra no contexto edipiano
de forma particularmente aguda. Em seu ensaio sobre Freud e a Consciência Judaica mencionado anteriormente,
Marthe Robert cita alguns trechos da correspondência de Kafka, nos quais este problema transparece com nitidez.
Escrevendo a seu amigo Max Brod acerca de um livro de Karl Kraus, Kafka afirma:
"Mais do que a psicanálise, agrada-me neste caso a constatação de que este complexo paterno, do
qual vários se alimentam espiritualmente, não se refere ao pai -inocente, mas ao judaísmo do pai. A
maior parte daqueles que começaram a escrever em alemão desejava abandonar o judaísmo,
geralmente com a aprovação vaga dos pais (é este 'vaga' que é revoltante); eles queriam isto, mas
suas patas de trás ainda estavam coladas ao judaísmo do pai, e suas patas da frente ainda não
encontravam um novo apoio. O desespero que se seguiu a isto foi sua inspiração".(1).
Neste trecho, fica clara uma das respostas à pergunta anterior: o complexo de Édipo se compõe de quatro vetores,
e os que concernem ao pai são tanto de amor quanto de ódio. Isto resulta no que se chama ambivalência, isto é, na
presença simultânea do ódio e do amor em relação ao mesmo objeto. É o que Kafka descreve: o ódio pelo pai pode
passar pelo judaísmo dele, de modo que abandonar o judaísmo pode ser um modo simbólico de realizar o
assassinato do pai. O problema é que estes pais "aprovavam de modo vago" tal decisão dos filhos, isto é, sua
própria atitude frente ao judaísmo também era ambígua: de modo que abandonar o judaísmo poderia simbolizar
tanto a revolta contra o pai quanto a realização de um desejo inconsciente deste último, como se o filho fizesse
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por procuração algo que o pai não havia podido fazer. "As patas de trás coladas ao judaísmo do pai" — numa
metáfora canina tão ao gosto de Kafka — aludem ao outro vetor do complexo de Édipo: o amor pelo pai. E
importante assinalar isto, pois, se esta dimensão não estivesse tão presente, seria impossível identificarmo-nos
com nossos pais, o que, repito, não significa sermos exatamente iguais a eles, mas sim podermos ocupar uma
posição análoga à deles: ser, por exemplo, sexualmente masculinos, ou podermos ser por nossa vez pais e
engendrar filhos, etc. O resultado geral do complexo de Édipo, segundo Freud, é a formação da instância psíquica
denominada superego, isto é, aquela parte da nossa psique que encarna as proibições e normas cuja primeira
encarnação, externa, foi o pai. Desta forma, interiorizamos estas normas (e portanto nos tornamos "como nosso
pai"). Mas ao mesmo tempo, interiorizamos a proibição do incesto (e portanto não podemos fazer tudo o que
nosso pai faz, em particular dormir com nossa mãe). Mas por que obedecemos a estas normas? Obedecemo-las
não só porque temos medo da vingança do pai, mas também porque o amamos e amamos aquilo que ele deseja
para nós. Vocês vêem que as coisas são bem mais complicadas do que parecem à primeira vista! O importante é
deixar claros alguns pontos: ser judeu ou não é algo que concerne à identificação; esta, por sua vez, se inscreve no
contexto dos afetos edipianos; em virtude disto, depende do jogo destes afetos a relação inconsciente com nossos
pais, e portanto com o judaísmo, que, antes de ser um, atributo nosso, é um atributo deles; e, nas condições sociais
modernas, este atributo pode ser tomado como campo para as fantasias e conflitos edipianos, o que,
anteriormente, era muito raro. Este breve resumo, acredito, nos ajuda a esclarecer isto que foi dito até aqui.

(1) Citado por Marthe Robert, D'Oedipe à Moïse: Freud et la Conscience Juive, p. 21.

Há um outro texto de Kafka a respeito desta questão do judaísmo e do complexo paterno: é a célebre
Carta a Meu Pai, escrita aos 36 anos e jamais enviada. Este texto é esplêndido por vários motivos; dele, porém,
quero retirar apenas algumas passagens que concernem ao nosso problema. Hermann Kafka é um representante
típico desta geração ambivalente de judeus recém-entrados no mundo contemporâneo, em crise permanente
quanto à sua identidade judaica, como aliás quanto a várias outras coisas. Escreve Kafka:
"Também no que se refere ao judaísmo, me libertei muito pouco de ti. Ali, no entanto, a libertação
poderia ter acontecido; mais ainda, teria sido possível que nos tivéssemos encontrado juntos no
judaísmo, ou que tivéssemos, juntos, saído dele. Mas, em matéria de judaísmo, o que me
transmitiste! (...) Tu tinhas, com efeito, trazido um pouco de judaísmo desta espécie de gueto rural
de onde provinhas; era bem pouco, e diminuiu ainda mais sob a influência da cidade e do Exército;
mas, seja como for, tuas impressões e tuas lembranças de juventude eram suficientes para te permitir
uma espécie de vida judaica, por mínima que fosse (...) Era impossível fazer com que uma criança,
que tudo observava com o excesso de acuidade nascido do medo, compreendesse que as poucas
ninharias que tu realizavas em nome do judaísmo, com indiferença proporcional à futilidade delas,
pudessem ter um sentido mais elevado... Para ti, elas possuíam o valor de pequenas lembranças de
uma época passada, e é por isto que querias que eu as adquirisse; mas, como tu mesmo não mais
acreditavas no valor intrínseco delas, só podias consegui-lo pela persuasão ou pela ameaça. De um
lado, isto nunca levaria a nada, e, do outro, como não tinhas a menor idéia da fraqueza de tua
posição, isto deveria necessariamente exasperar-te contra mim, que 'e"ra aparentemente tão
obstinado". (2)
Kafka diz que "também no judaísmo, me libertei muito pouco de ti": clara evidência de que a luta de
libertação do filho agora passa também pelo judaísmo. E, como a infância de Kafka transcorre em Praga, no final
do século XIX, tornamos a encontrar as marcas da Emancipação e da assimilação: é um assunto individual o
permanecer judeu ou deixar de sê-lo ("podíamos ter-nos encontrado"...); o pai de Kafka vem do "gueto rural" (a
aldeia do tipo shtetl, onde vivia a maioria dos judeus da Europa Oriental e Central) para a cidade grande, serve ao
Exército austríaco, e passa pelo processo da assimilação "vaga" que já conhecemos. O que esta carta contém de
novo, no ponto que nos interessa, é a elaborada análise do que significavam para o pai as "ninharias" e
"futilidades" a que se reduziria a prática do judaísmo. A situação descrita nos é bem conhecida: realizam-se rituais
sem alma, dos quais só restou a casca exterior, e que são cumpridos, necessariamente, sem qualquer emoção real.
O pai de Kafka guardava ainda alguns destes rituais, e, para ele, por causa das "lembranças e impressões da
juventude" dele, estes gestos e normas ainda possuíam algum sentido. Havia, digamos, uma certa nostalgia por
parte de Hermann Kafka, ao repetir de maneira "indiferente" o reduzido repertório de símbolos que ainda o ligava
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ao judaísmo. O conteúdo destes vivia apenas na memória do pai de Kafka, mas, cindido em dois pelo processo da
assimilação, ele já não conseguia dar a estes símbolos qualquer significado efetivo: eram apenas "futilidades e
ninharias". Entretanto, Hermann Kafka quer transmitir o judaísmo a seu filho: por isto, o obriga a assistir a tais
rituais, na esperança de que o menino se encante com eles... Nada mais falso: observando tudo com a "acuidade
nascida do medo" (medo que concerne ao conflito edipiano e não aos rituais judaicos, obviamente), o jovem Franz
percebe que, para o pai, estes gestos já não significavam nada ("não mais acreditavas no valor intrínseco delas").
E pela "persuasão" e pela "ameaça" que o pai deseja introduzi-lo neste universo simbólico; a criança, é claro,
resiste; o pai se exaspera; gritos, surras... "Isto nunca levaria a nada". Para o pai de Kafka, que viveu o processo de
saída do shtetl e acabou por se "europeizar" de modo tão completo, estes resquícios vagos do que havia sido um
universo simbólico rico e variado (as "impressões e lembranças da juventude") ainda tinham um sentido — porém
um sentido meramente pessoal, e por isto intransmissível. Podemos imaginar, a título de hipótese, que ao executar
mecanicamente, digamos, o ritual de Pessach, este homem encontrasse algum prazer na repetição de gestos e falas
que vira, talvez, serem solenemente executados por seu pai ou seu avô. Há, claramente, um desejo de preservar
elos com este passado. Mas não existe um "valor intrínseco", quer dizer inerente aos símbolos enquanto tais, e
capaz por isto de ser transmitido ao filho. O sentido do símbolo se tornou de tal modo confuso, que já não pode ser
usufruído ou captado por ninguém mais. O pai de Kafka, porém se obstina e se exaspera: seu filho será judeu!
Tem que saber rezar em hebraico, mesmo que nada compreenda do que está dizendo! E ameaças daqui, gritos
dali... Penso que fica claro o seguinte: o jovem Franz é encarregado de realizar um desejo ou uma fantasia do pai,
que aqui toma a forma do "tu saberás dar conteúdo a estas formas, que já não sei o que significam: aprende-as!" E
Kafka não faz, não aprende... O judaísmo — creio que agora isto fica bem evidente — justamente por ser agora
questão de foro íntimo, passa a ser um dos campos em que se trava a batalha entre filhos e pais.
(2) Kafka, Carta a Meu Pai, citada por Marthe Robert, op. cit., p. 23-24.

O Gorro de Pele
Falaremos mais adiante sobre esta seqüência de gerações (no qual o pai de Kafka está na posição do
meio), ao tratar brevemente da circuncisão. Queria dar agora o segundo exemplo de como o judaísmo passa a fazer
parte dos conflitos edipianos: desta vez, o exemplo é de Freud, e se encontra no capítulo V da Interpretação dos
Sonhos. Freud está discutindo o papel do infantil — lembranças e desejos — na formação dos sonhos dos adultos;
diz que o infantil é um elemento essencial de todo sonho; e, para demonstrar sua afirmação, conta uma série de
sonhos relacionados com a cidade de Roma (sonhos todos da época em que escrevia seu livro, por volta de 1897,
aos 41 anos). Associando sobre estes sonhos, Freud é conduzido a momentos cada vez mais remotos de seu
passado:
"Durante minha última viagem pela Itália (...), revelou-se para mim o reforço que determinadas
impressões de minha infância trazem para meu desejo de conhecer a Cidade Eterna. (...) Em minha
viagem, havia seguido ao pegadas de Aníbal; como ele, eu não tinha podido chegar até Roma (...)
Aníbal, a quem me parecia neste ponto, foi meu herói favorito no ginásio; e, ao estudar as guerras
púnicas, todas as minhas simpatias foram para os cartagineses, e não para os romanos. Mais adiante,
quando nas classes superiores fui compreendendo as conseqüências de pertencer a uma raça estranha
ao país em que se nasceu, e me vi obrigado a adotar alguma atitude frente às tendências anti-semitas
de meus companheiros, a figura do guerreiro semita se tornou ainda maior aos meus olhos. Aníbal e
Roma simbolizaram para mim, respectivamente, a tenacidade do povo judeu e a organização da
Igreja Católica (...) O desejo de ir a Roma converteu-se assim, em minha vida onírica, em símbolo e
encobridor de vários outros (...)
Aparece agora o acontecimento infantil que ainda manifesta seu poder em todos estes sentimentos
e sonhos. Teria eu dez ou doze anos quando meu pai começou a me levar em seus passeios, e,
conversando, comunicar-me sua opinião sobre as coisas deste mundo. Uma destas vezes, e para
mostrar me que eu havia nascido numa época melhor que a dele, contou-me o seguinte: "Quando eu
era jovem, saí para passear certo sábado, no lugar em que Você nasceu, bem vestido e com um gorro
de pele novo. Um cristão passou, jogou de um golpe o gorro na lama, e gritou: 'Judeu, desce da
calçada!' 'E Você, o que fez?' 'Fui até o meio da rua e peguei meu gorro', foi a resposta resignada.
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Isto não me pareceu nada heróico da parte daquele homem grande e forte, que me conduzia,
pequeno, pelo mão. Substituí esta situação, que não me agradava, por uma outra que correspondia
melhor a meus sentimentos: a cena na qual o pai de Aníbal, Amílcar Barca, faz seu filho jurar diante
do altar da casa que se vingará dos romanos. Desde então, Aníbal teve um lugar em minhas
fantasias." (3).
Penso que Vocês vão se acostumando a prestar atenção aos textos. Como documento histórico, este trecho
de Freud alude aos processos sociais e econômicos que afetaram os judeus da Europa Central: por volta de 1835
ou 1840 ("quando eu era jovem"), o pai de Freud vestia-se como um hassid (o gorro de pele) e, no sábado, punha
suas melhores roupas para passear. Não trabalhava, portanto, no Shabat, e provavelmente era um judeu religioso,
vivendo na mesma espécie de "gueto rural" de que fala Kafka. No bojo das transformações econômicas e sociais
abordadas na primeira aula, Jakob Freud vai para Viena, e, por volta de 1868, leva seu filho para passear. Este filho,
"educado sem religião" (carta à Bnei Brit), não estuda o Talmud, mas as guerras púnicas; seus heróis não são o rei
David ou Rabi Akiva, e sim o guerreiro Aníbal; este mesmo filho, já adulto, estuda as neuroses e passa as férias
visitando lugares da Itália onde se podem admirar obras de arte e ruínas antigas. É sensível o enorme intervalo
mental que separa uma geração da outra. Mesmo o anti-semitismo mudou de figura: o jovem Sigmund não é
esbofeteado por um cristão nem precisa descer da calçada, mas precisa adotar um atitude frente às "tendências anti-
semitas" de seus colegas do Ginásio público.

(3) Freud, A Interpretação dos Sonhos, Cap. V, Seção B, "O Infantil aos Sonhos' ed. espanhola, vol. I, p. 466-467.

Do ponto de vista do que nos interessa neste momento — o judaísmo como campo para os conflitos edipianos —
este trecho é muito significativo. Freud não foi, como Kafka, uma criança aterrorizada por seu pai; a cena que
descreve — o "homem grande e forte que me conduzia pela mão" — o mostra com clareza. Não obstante, o Édipo
está presente: a narrativa do pai afeta a imagem que o filho tem dele, pois não é nada "heróica". O menino necessita
de uma imagem paterna positiva, com a qual seja possível a identificação, e mesmo a luta: não é nobre nem
grandioso superar um pai covarde. Na fantasia juvenil de Freud, estão presentes os dois vetores do complexo de
Édipo: por ódio ao pai, o afasta da linhagem ("não sou filho deste homem covarde"); por amor ao pai, escolhe um
substituto para ele que seja conforme às expectativas de um bom filho: Amílcar Barca, o general que liderou os
cartagineses na Primeira Guerra Púnica. Tendo sido derrotado pelos romanos, já velho, continua a sonhar com a
vingança: toma pela mão seu filho Aníbal e o faz jurar, diante dos deuses da família, que fará aquilo que ele não
pôde fazer: vencer Roma. E, de fato, Aníbal cumpre seu juramento, e ataca os romanos, desencadeando a Segunda
Guerra Púnica. Também é derrotado; mas, pelo menos, tentou realizar o que prometera a seu pai. Freud não aceita
a resignação com que seu pai recolhera o gorro de pele; e esta impressão é forte o suficiente para, trinta anos
depois, "manifestar seu poder em todos estes sentimentos e sonhos". Aliás, Aníbal não é só um emblema do amor
ao pai: procurou fazer o que este não pudera realizar, isto é, procurou superar seu pai; e por isto, serve bem como
símbolo das tendências ambivalentes de Freud a respeito do seu próprio pai. Aníbal era seu "herói favorito": isto
nos abrirá, mais adiante, um caminho para estudar o papel dos modelos e dos ideais no processo de identificação.
O fato é que, tendo decidido "ser" Aníbal, Freud se serve desta identificação para lidar com a realidade das
"tendências anti-semitas" de seus colegas de escola: opta pelos cartagineses contra os romanos, e vê no general
semita (Cartago foi fundada pelos fenícios, que eram semitas como os hebreus) um modelo da tenacidade judaica,
desta capacidade de resistir à maioria "romana", da qual falamos na outra aula. Por isto, o desejo de ir a Roma, isto
é, de "entrar em Roma", de "conquistar Roma", superando inclusive o seu herói (que não pôde fazê-lo) converteu-
se em "símbolo" e em "encobridor" de "vários outros desejos". Podemos perceber agora que um destes desejos
concerne ao pai: superá-lo, mas ao mesmo tempo ser fiel a ele (cumprir o prometido). É como se Freud se dissesse
algo assim: "Por que meu pai não procede como o pai de Aníbal, e me faz prometer que vingarei a humilhação
sofrida por ele?".
Com este segundo exemplo, creio que fica claro o que quero dizer com idéia de que o judaísmo passa a
fazer parte do terreno em que se trava o conflito edipiano, a partir dos processos sociais já conhecidos. Tanto faz
que o judaísmo do pai seja apenas um vestígio formal e vazio, como no caso de Hermann Kafka, ou, como parece
ser o caso de Jakob Freud, que ele tinha ainda um sentido vital; tanto faz que o pai seja um tirano impiedoso frente
ao qual o filho se sente aterrorizado, ou que o relacionamento seja afetivamente bom: o conjunto de desejos e
fantasias inconscientes, conhecido como complexo de Édipo, virá a se manifestar também através da dimensão do
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judaísmo , no interior do dilema "ser como o pai/ não ser como o pai". E isto nos permite responder à pergunta
com a qual chegamos aos exemplos: por que todos os filhos judeus não abandonaram o judaísmo, na seqüela da
rivalidade com seus pais? Por várias razões, que podemos enumerar:
a) o judaísmo destes pais é, ele mesmo, algo ambíguo, correspondente à ambivalência edipiana frente aos
pais deles (isto é, aos avós da terceira geração, a de Kafka ou a de Freud);
b) o complexo de Édipo comporta um fator de ódio e de desejo parricida, que se exprime na rivalidade,
mas também comporta um fator de carinho e de desejo de imitar o pai, que se exprime na nostalgia por ele — é isto
que move Freud a desejar ser filho de um pai "heróico";
c) de modo que, em virtude destes aspectos, o judaísmo será para estes filhos algo ambíguo e
problemático, um verdadeiro sintoma da maneira pela qual resolveram sua crise edipiana; como esta maneira não é
sempre a mesma, dependendo de outros fatores que não concernem ao judaísmo, as "soluções" serão muito
variadas. Kafka resolve o problema de um modo, Freud de outro, e assim por diante.

O Ritual da Circuncisão
Para retomar um ponto que ficou em suspenso agora há pouco — o dos modelos e dos ideais — podemos
tomar estes exemplos de um outro ângulo. Acabei de dizer que o judaísmo dos pais de Kafka e de Freud é ambíguo
também, e entra no debate inconsciente com os pais deles, estes sim "judeus integrais", no sentido de terem uma
identidade clara e definida. Não que não tivessem, estes avós, seus problemas e angústias; porém tais problemas e
tais angústias não passavam, provavelmente, pelo dilema de ser ou não judeu, nem pelo de qual o melhor modo de
sê-lo — e isto por motivos sociais e históricos que tornavam quase impossível a um judeu deixar de ser visto pelos
demais como membro do grupo judaico. Isto nos leva a perceber que existem aqui três gerações, e não apenas duas:
este ponto me parece fundamental, tanto para entender o complexo de Édipo quanto para entender a questão da
identidade judaica. Aquilo que os pais vão transmitir a seus filhos lhes foi transmitido por seus próprios pais, e a
forma como se dará esta transmissão para a terceira geração depende da relação que a segunda estabelecer com a
primeira. Talvez isto seja mais fácil de compreender se tomarmos como fio condutor o exemplo da circuncisão.
Segundo o capítulo 17 do livro do Gênesis, a circuncisão foi estabelecida por Deus sob a forma de um
pacto com Abraão, quando lhe promete que, apesar da idade avançada, ele e Sara terão um filho, que se chamará
Isaac. E este o filho cujo sacrifício Deus exigirá no capítulo 22, como prova da fé de Abraão; Ismael, filho de
Abraão com a escrava Agar, também é circuncidado, mas Deus deixa claro que "meu pacto, porém, estabelecerei
com Isaac, o qual Sara te dará" (Gen. 17:21). Esta é a versão tradicional da origem deste rito; tudo leva a crer, no
entanto, que se trata de uma construção retrospectiva, isto é, projetou-se para a época de Abraão um fato
provavelmente ocorrido bem depois, nos tempos de Moisés e do Êxodo do Egito. Testemunhos antigos (entre os
quais o do historiador grego Heródoto, que viveu no século V a.C. e percorreu todos os países então conhecidos,
recolhendo suas tradições e costumes) mostram que a invenção da circuncisão era universalmente atribuída aos
egípcios, pelos próprios povos que a praticavam na época de Heródoto (com exceção, é claro, dos judeus). Em
todo caso, é certo que os egípcios a praticavam, e é bem possível que ela tenha sido adotada pelos hebreus durante
sua estadia de vários séculos à beira do Nilo.
Seja como for, na própria história do Gênesis nos deparamos com três gerações: Deus, Abraão e os filhos
deste. O agente da circuncisão é Abraão, e ele tem o sentido de selar um pacto entre ele (geração intermediária) e
a divindade, aqui figurando a geração anterior à do patriarca. Isto parece ser um traço distintivo da circuncisão
judaica; digo judaica, porque o ritual da circuncisão é praticado por muitos povos primitivos, que nada sabem acerca
de Abraão e jamais estiveram em contato com os egípcios. Não foram só os etnólogos que se interessaram por este
costume; os psicanalistas escreveram bastante sobre o assunto, a partir de uma interpretação feita por Freud, e
segundo a qual o ritual da circuncisão teria algo a ver com as fantasias inconscientes do ser humano, em especial
com as fantasias de castração. Vocês sabem que o tema da castração está estreitamente associado ao complexo de
Édipo: o menino deseja inconscientemente sua mãe, mas não realiza o incesto porque teme, da parte do pai, a
castração, isto é, o corte do seu pênis. Dito assim, parece um tanto absurdo; mas, creiam-me, no inconsciente o
absurdo é a regra e não a exceção, e as fantasias e angústias de castração realmente desempenham um papel
importantíssimo na vida psíquica de todos nós, homens, mulheres ou homossexuais.
Bem, há alguns elementos que distinguem a circuncisão judaica daquela praticada pelos povos primitivos
(4). Bruno Bettelheim, em seu livro As Feridas Simbólicas, enumera três deles: o fato de que a circuncisão
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"primitiva" não tem apenas um sentido religioso, mas sobretudo de iniciação social; isto porque ela ocorre na
época da puberdade, significando o acesso do rapaz à comunidade dos adultos, enquanto a circuncisão judaica é
praticada no oitavo dia de vida; em terceiro lugar, entre muitos povos primitivos existe um equivalente feminino
da circuncisão (a excisão do clitóris), ou então a circuncisão é acompanhada pela sub-incisão, que consiste num
corte perpendicular do pênis, cujo efeito é abrir nele uma espécie de "vagina". Nada disto existe entre os judeus, e
a ausência destes ritos também tem sua importância. Destes três traços, parece-me que o mais significativo é a
época em que ocorre a circuncisão: pelo fato de o circundado ser um bebê, ela não pode ter o sentido de incluí-lo
na classe dos homens adultos (no judaísmo, esta função é cumprida pelo bar-mitzva). Então, qual é o sentido deste
ritual? Para quem, finalmente, ele é significativo?
Laplanche menciona um artigo do psicanalista americano Ma-lev, que descreve a cerimônia da
circuncisão ortodoxa e procura interpretar diversos detalhes dela. É interessante acompanhar esta descrição:
"No oitavo dia, a criança é trazida por seu padrinho diante dos pais. O padrinho é um personagem
idoso e instruído. E aqui se introduz uma série de substituições de personagens: o menino é passado
ao sondék, encarregado de segurá-lo e de apresentá-lo ao operador; este é uma pessoa tecnicamente
qualificada para praticar a circuncisão, e se chama mohél. Enfim, último elemento da cadeia, uma
quarta pessoa, escolhida entre as pessoas veneráveis da assembléia, recebe a honra de sugar a
primeira gota de sangue após a circuncisão. Em seguida, a criança é vestida e se procede a uma
cerimônia com leitura de textos sagrados. A interpretação de Malev, bastante breve, é que existe a
presença simbólica de três gerações nesta cerimônia (...) Como muitos outros, Ma-lev cita este
episódio da Bíblia (Ex. 4:24-26), no qual Moisés, não tendo efetuado a circuncisão de seu filho, é
alvo da cólera do Senhor, que quer matá-lo. É então a mulher de Moisés que deve efetuar,
rapidamente, a circuncisão, e desta forma resgatar Moisés pelo sangue da circuncisão de seu filho.
Existem aí, de fato, três personagens: o avô (Deus), Moisés e seu filho. O personagem central
(Moisés) deve ser resgatado da vingança de seu próprio pai pelo sangue de seu filho (...) Entre os
judeus, é o padrinho que representa a geração do avô, transformando este papel de dois modos ao
mesmo tempo: o mau se converte em bom (isto é, há uma espécie de formação reativa), e sobretudo
há interposição de uma segunda pessoa, o sondék (termo que vem do grego syndikos,
"representante"). No entanto, a castração efetiva deve ser realizada pelo pai. Na cerimônia, é o mohél
que realiza o ato, mas encontramos numerosas provas que convidam a atribuir ao pai, em última
análise, esta castração. O Talmud diz que o melhor dos casos é aquele no qual o próprio pai é o
mohél. No ritual costumeiro, no qual não é o pai quem circuncida, o mohél se volta para o pai e lhe
solicita sua autorização, sua delegação (...) Ultimo ponto, a sucção do sangue não é um elemento
acessório da cerimônia, mas um elemento verdadeiramente essencial; o Livro das Orações liga esta
cerimônia às outras partes do ritual nestes termos; "O Misericordioso abençoará aquele que
cincuncida o prepúcio, aquele que descobre a glande e aquele que suga o sangue da circuncisão." (5)

(3) Para uma ampla discussão deste problema, inclusive com citações e comentários de vários autores, ver: J.Laplanche, vol. Il da série Problématiques,
intitulado Castration, Symbolisations (Paris, PUF, 1981), p. 184ss. A parte sobre a circuncisão judaica, na qual me inspiro aqui, começa na p. 237.

Vocês têm aqui um bom exemplo de interpretação psicanalítica clássica. Existe uma série de atos e de
pessoas envolvidas; pergunta-se qual é o sentido desta cerimônia, e em seguida se verifica se os detalhes se
encaixam neste sentido. Um primeiro procedimento interpretativo é reduzir o número de participantes a três,
como no modelo bíblico; nesta perspectiva, o padrinho e quem suga o sangue ("escolhido entre as pessoas
veneráveis da assembléia") são um desdobramento da figura do avô, enquanto o sondék e o mohél representam
desdobramentos da figura do pai. Os detalhes da cerimônia — o pedido de autorização feito ao pai pelo mohél, a
recomendação do Talmud — mostram que o personagem central deste rito é o pai, aquele a quem chamei de
personagem intermediário. O pai, então, faz algo a seu filho, por intermédio destas pessoas interpostas: muito
precisamente, corta-lhe o prepúcio. Qual o significado deste ato? Aqui, a psicanálise o refere à temática da
castração, isto é, à imposição ao filho de uma lei, cujo representante é o pai. Mas é importantíssima a presença do
pai do pai, simbolizada pelo padrinho e por aquele que suga a primeira gota de sangue. O rito consiste então em algo
que o pai faz ao filho a fim de ser visto por seu próprio pai, e, dado que é o padrinho/avô quem traz o menino, tudo
parece indicar que o rito cumpre um desejo do avô: ao realizá-lo, o pai demonstra aceitar este desejo, ou esta

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norma, como válida.

(5) Laplanche, op.cit.,p.240-241.

Isto está, convenhamos, um pouco abstrato. Que desejo e que norma seriam estas? E por que o pai os
acata? O episódio bíblico mencionado lança alguma luz sobre o assunto: é para escapar à cólera do Senhor que
Moisés circuncida seu filho, ou melhor, que a mulher de Moisés (pessoa interposta) circuncidar seu filho. Aqui, a
interpretação religiosa — Deus estava zangado com Moisés porque este desobedecera a ordem, dada a Abraão, de
cincuncidar os machos — precisa ser afastada: ela representa uma elaboração secundária, isto é, uma siste-
matização a posteriori dos dados do problema, a fim de conferir ao conjunto uma aparência lógica e racional.
Apenas — mas é decisivo — não fica clara, nesta interpretação, a razão pela qual a cólera do Senhor tem que se
expressar sob a forma de uma tentativa de assassinato, nem por que é aplacada pelo ato da mulher. Por que Deus
não fez, por exemplo, Moisés cair e quebrar a perna? Ou não o entregou aos egípcios que o perseguiam? Por que
tentou matá-lo, e, sobretudo, por que a circuncisão do filho salva a vida do pai?
Se considerarmos a narrativa do Êxodo como um sintoma, isto é, como traduzindo para uma forma
coerente uma série de fantasias inconscientes, cujo sentido se exprime e ao mesmo tempo oculta nesta "forma
coerente", temos alguma chance de avançar no problema. A fantasia básica é exatamente a que aparece como
pergunta: a circunci-são do filho salva a vida do pai. Não há resposta lógica para esta pergunta, pela simples razão
de que estamos diante de um conteúdo do inconsciente, e o inconsciente não obedece à nossa lógica habitual; tal
conteúdo está relacionado com o complexo de Édipo e tem o nome técnico de complexo de castração. Um
complexo é um conjunto razoavelmente articulado de fantasias, de angústias por elas suscitadas, e de defesas
mobilizadas para controlar as angústias e para "dar um jeito" nas fantasias, habitualmente fazendo-as desaparecer
do campo da consciência. No caso do complexo de castração, a angústia predominante é o medo de ter o pênis
arrancado, medo que pode aparecer sob inúmeros disfarces simbólicos: por exemplo, o de ter dentes arrancados, e
em geral cenas em que uma parte do corpo ou da mente é mutilada, cortada, separada do resto, etc. Esta angústia
se cristaliza em fantasias inconscientes, isto é, em certos roteiros típicos e universais, que encontramos com
regularidade impressionante na base dos mais variados comportamentos e idéias do ser humano. Uma destas
fantasias é, justamente, a da castração: e ela contém algo mais do que imagens que figuram o corte de um membro
ou do pênis; no roteiro, tipicamente, quem realiza este ato é o pai. E por que ele o faria? A castração seria,
simultaneamente, um castigo pelos desejos incestuosos em relação à mãe, e uma resposta do pai aos desejos
parricidas do filho, desejos que surgem da rivalidade, por sua vez causada pelo fato de que a mãe pertence ao pai e
não a ele. Mais ainda, a castração é a retirada de uma parte do corpo (o pênis), em vez de matar o filho. Por mais
terrível e assustadora que seja esta fantasia, ela já é indício de uma certa evolução psíquica, pois, como veremos na
próxima aula, no início o homem funciona pela regra do tudo-ou-nada: a morte, a aniquilação total, é pena para
todos os crimes. A castração introduz não só a idéia de perder uma parte para salvar o resto, mas ainda a idéia de
regra, de norma, já que o que a regra faz é precisamente distinguir uma parte da outra: por exemplo, certos atos
que são
proibidos de certos outros que são permitidos. E, segundo Freud, a imposição da regra, da norma, é uma função do
pai. Por este motivo, é ele o agente da castração, isto é, aquele que é temido porque pode castrar, ou então aquele
que, nas cenas fantasiadas, executa o ato pelo qual o pênis é cortado.
É evidente que o rito da circuncisão, que além de ser uma cirurgia no órgão sexual ainda é um ritual
judaico, só podia atrair intensamente o interesse dos primeiros analistas, quase todos judeus e judeus interessados
em compreender "cientificamente" certos aspectos da cultura judaica. O próprio Freud foi o primeiro a ligar a
circuncisão às fantasias de castração, e muitos outros — entre os quais Malev, de quem falamos atrás — seguiram
nesta trilha. Aqui é importante assinalar que a circuncisão é um ato e que a castração é uma fantasia; o ato
simboliza a fantasia, representa-a num outro plano, mas também serve para proteger o indivíduo contra a angústia
associada à realização da fantasia. Este ponto é fundamental para a compreensão do funcionamento psíquico: a
psicanálise considera que certos comportamentos nossos têm o sentido de evitar catástrofes imaginadas, ou então, e
às vezes ao mesmo tempo, de expiar culpas inconscientes. Por exemplo, uma criança que constantemente cai e se
machuca pode estar, com isso, castigando-se por agressões imaginárias a seus pais, e ao mesmo tempo, ao se
autocastigar, evitar a retaliação por parte destes pais. É como se o menino dissesse: "Papai, já cortei o dedo, está
doendo; não precisa mais me bater", ou algo do gênero.
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O ritual da circuncisão é assim, simultaneamente, a realização simbólica de fantasias associadas à
castração e de uma série de medidas para evitar que elas se realizem no "concreto". Você está delirando, me dirão
vocês; mas raciocinem comigo, e vejam se os detalhes da cerimônia não confirmam esta hipótese. Em primeiro
lugar, o personagem principal do rito é o pai do menino, diante do seu filho e do próprio pai. O que acaba de
acontecer ao pai é que nasceu seu filho (há oito dias); a paternidade foi assumida, alguém que era só filho passa a
ser também pai. Podemos supor — e isto é regularmente confirmado pela clínica — que um fenômeno tão
importante não passa em brancas nuvens pela psique do novo pai: o nervosismo e a ansiedade, tão freqüentes
naqueles cujos filhos acabam de nascer, têm certamente algo a ver com a reativação das angústias de castração,
reativação motivada principalmente pelo nascimento de um filho. E por que isto deve ocorrer? Porque, para fazer
um filho, é preciso ter relações sexuais, é preciso fazer o que o pai fez com a mãe, é preciso de certa forma "tomar
o lugar do pai": e todos nós temos boas razões (fantasmáticas, é claro) para supor que o pai não vai gostar nem um
pouco de ver seu lugar tomado pelo filho. O nascimento de um bebê tem todos os ingredientes necessários para
fazer reviver, assim, o conflito edipiano, com sua correspondente angústia de castração. É preciso como que pedir
perdão ao pai (avô deste bebê), garantir a sua aprovação, demonstrar que o acesso à paternidade não significará
desrespeito à lei paterna, por parte do filho que acaba de se converter em pai. O ritual da circuncisão vem
preencher esta função, e a multiplicação dos personagens serve apenas para interpor, entre as três gerações em
causa, figuras neutras (o padrinho, o sondék, o mohél, etc). E isto também tem sua lógica: podemos imaginar que
o pai tema não somente a agressividade e a castração do seu próprio pai, mas também a agressividade e a
vingança de seu filho, que agora é um recém-nascido indefeso, mas que vai crescer... O mohél e o sondék servem,
assim, de alvos para esta agressividade, desviada portanto do pai, o qual poderia dizer ao filho, caso este viesse
um dia cobrar-lhe o corte do prepúcio, algo assim: "Por que você se queixa a mim? Não é de mim que voce deve
ter ódio: quem ordenou a sua circuncisão foi meu pai, e quem a executou foi o mohél. Eu não tenho nada com
isto..." A multiplicação dos personagens serve, portanto, para deslo-car a agressividade e para embraralhar os
papéis: serve, diremos, a funções defensivas.
Um outro aspecto se encontra presente na sucção do sangue. Como muitos outros atos, este também
realiza simultaneamente fantasias cujos significados são opostos: por um lado, é uma figuração evidente da
castração através da mordida, e, por outro, representa um ato carinhoso, de reparação pela agressão contra o bebê;
ao mesmo tempo, é uma aceitação do sangue do neto oferecido como sacrifício por seu filho (pois quem suga
sangue é um representante do avô), e portanto um gesto de paz para com este filho, que o reassegura: algo do gênero
"aceito teu sacrifício, simbolizado pelo sangue do teu filho, e não vou mais te ameaçar com a castração por teres
ousado ter um filho. " Outra dimensão presente aqui, mas na qual não entraremos, diz respeito à dimensão
homossexual do rito, executado exclusivamente por, para e em indivíduos do sexo masculino.
A circuncisão, pois, sintetiza num ritual religioso uma série de angústias, fantasias e defesas, estruturando-
as e assim permitindo que sejam "elaboradas", isto é, que não fique isoladas e enquistadas no interior da psique,
mas sim que se integrem em outras redes de, significação. Ela configura um diálogo entre um filho e um pai, por
intermédio do filho deste filho, que assim é introduzido na seqüência das gerações e, no caso judaico, na religião
de seu pai. Um aspecto essencial do rito é que ele constitui um ato religioso, e portanto social: a significação
inconsciente que esta análise desvenda não nos deve fazer esquecer que, tratando-se de uma prática social, a
circuncisão se inscreve em outros contextos, e serve também para "socializar", isto é, para introduzir na cultura, a
psique do bebê: ela o designa como membro deste grupo e não "daquele", através de um sinal corporal visível;

Narcisismo dos Pais e Identidade dos Filhos


E assim retornamos ao problema da identidade, que, segundo ficou dito no início desta aula, é a parte de si
por meio da qual o sujeito se define como sendo ele mesmo. A utilidade do exemplo da circuncisão para
compreendermos isto, a meu ver, é dupla: mostra que a identidade (no caso, a identidade do bebê circuncidado)
não é um dado natural, mas uma construção psicossocial; e mostra que ela vem de "fora" para dentro, através do
que os pais (neste caso, pai) transmitem ao recém-nascido. Este, através do processo da identificação, irá construir
sua identidade com os materiais oferecidos pela cultura e pela sociedade em que nasceu. Neste processo, a
identidade construída se compõe de várias dimensões, e é sobre este ponto que gostaria de dizer algumas palavras,
a fim de concluir esta aula.
A identificação é o mecanismo essencial pelo qual se constitui uma pessoa, ou, para ser mais preciso, o
mecanismo essencial pelo qual se constitui um sujeito. Há várias identificações simultâneas, e que podem ser
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contraditórias umas com as outras; identificações comuns a todos os seres humanos — sem as quais, podemos
dizer, um exemplar da espécie biológica Homo Sapiens não se converte num "homem" — e identificações
específicas de certos grupos, assim como identificações absolutamente individuais, que constituem a mim e a
você como sujeitos singulares, não intercambiáveis, únicos. A psicanálise distingue estes vários níveis ou planos:
para dar um exemplo, todo mundo necessita ter uma identidade sexual (macho, fêmea ou homossexual): isto é uma
identificação universalmente necessária. Ser judeu ou budista é uma identificação grupal, que distingue o indivíduo
como pertencente a este ou àquele povo, classe ou religião. Ser psicanalista ou escritor é uma identificação mais
particularizada; ser Freud ou Kafka é algo somente possível a Freud e a Kakfa, indivíduos únicos, não
reprodutíveis em série, como aliás cada um de nós.
Tudo seria muito simples, se cada identificação permanecesse sossegadamente em seu lugar, somando-se às
outras para constituir um todo harmonioso. Infelizmente, não somos feitos assim: o que ocorre é que cada
identificação é por assim dizer imantada por outras, de modo que, em nosso exemplo, ser judeu pode ter um sentido
edipiano, ou ser psicanalista pode ser uma forma de satisfazer a curiosidade sexual infantil. O inconsciente se
infiltra em todos os nossos atos e em todas as nossas escolhas, sejam elas profissionais, políticas, amorosas ou
religiosas,e por esta razão psicanalisar significa decompor, reduzir a seus elementos básicos, desconstruir a vida
psíquica para ver do que ela é feita e como funciona: tornar consciente o inconsciente, como costumava dizer
Freud.
É por estas razões que a identidade judaica pode ser estudada de um ponto de vista psicanalítico, sem
prejuízo de outras abordagens. As condições históricas descritas na aula anterior fizeram com que o judaísmo
passasse a ser, também, assunto de escolha e de opção; colocaram-no na berlinda das identificações conflitantes, e
o fizeram entrar em contextos novos, no nível intra-psíquico dos judeus expostos a estas condições. A
identificação com o modelo judaico passou a ser contestada pela identificação com outros modelos, como o do
intelectual, o do "europeu", o do burguês, o do revolucionário. Alguns resolveram o problema abandonando este
modelo judaico e identificando-se inteiramente aos modelos "ocidentais": estes se assimilaram completamente, e
só o anti-semitismo — isto é, a recusa dos europeus em tolerar a assimilação total — veio a colocar um limite para
este processo. Outros resolveram o problema identificando-se globalmente com o judaísmo tradicional e rejeitando
os modelos ocidentais: são os ortodoxos, para quem não existe problema algum no plano da identidade. A imensa
maioria dos judeus europeus, porém, ficou dividida entre modelos contrapostos, a meio caminho entre a ortodoxia e
a assimilação: acabaram compondo numerosas soluções intermediárias, da congregação conservadora até o
socialismo autonomista do Bund, passando pelo sionismo de direita e de esquerda, pela adesão puramente
emocional a certos fragmentos significativos da cultura judaica, e por uma multidão de outras formas sociais e
pessoais, capazes de estruturar sua identidade e de torná-la suficientemente coesa para funcionar razoavelmente
bem. Outros ainda pagaram com a neurose o preço deste conflito; é o caso de Kafka e de tantos outros judeus que
viveram, na bela expressão de Anatol Rosenfeld, "entre dois mundos". Em todos estes casos, a identificação com
o judaísmo passou pelo plano da identificação com os pais — sexual e social — e foi atravessada por ela: é o que
queria deixar claro ao situá-la no contexto dos complexos de Édipo e de castração.
O exemplo da circuncisão nos mostrou que este processo pode também ser visto do lado do pai, e não
somente do lado do filho. Ele entra no debate deste pai com seu próprio pai, e no campo em que o pai é um modelo
para o filho: modelo que precisa ser interiorizado, e cuja interiorização se faz em meio a conflitos tremendos,
porque mobilizam angústias intensíssimas e fantasias aterradoras. A circuncisão é um bom exemplo para
percebermos algo de importância fundamental: os filhos são, para os pais, um objeto de fantasias inconscientes,
de projeção de seus conflitos internos, de suas expectativas e de seus desejos. Isto não tem apenas conseqüências
negativas: todos nós fomos isto para nossos pais e fazemos isto com nossos filhos, e, ao fazê-lo, erotizamos
nossos filhos, os introduzimos na cultura, os tornamos pessoas. É claro que estes processos não devem atingir
proporções exageradas, caso contrário o filho objeto deles tem boas probabilidades de se converter em um
psicótico. Mas, dentro de um grau razoável, é por esta simples razão que os filhos podem aceder ao estatuto de
seres humanos. Costumamos dizer que "filho de peixe, peixinho é": este provérbio resume perfeitamente o que
quero dizer. Se o peixe não investisse em seu filhote seu próprio mundo interior (metaforicamente falando), o
bichinho em questão não se tornaria um peixinho, e depois um peixe, capaz de reproduzir com seu próprio filhote
o mesmo processo. O que distingue os homens dos peixes é que a vida dos peixes é mais simples, porque o
instinto se encarrega daquilo que na espécie humana tem de ser realizado pelo jogo das identificações e da
sexualidade: a criação de um espaço psíquico, no qual sejam representados o próprio indivíduo e as relações que
ele mantém com os outros homens.
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Neste processo é indispensável, como vimos no início desta aula, que o ego possa ser construído e
investido positivamente, isto é, possa ser amado, primeiramente pelos pais, e depois por si próprio. É uma
observação fácil de ser comprovada que cada um de nós gosta, em sua personalidade, das características que são
apreciadas pelos outros; o protótipo desta sensação reconfortante é o investimento pelo bebê daquilo que a mãe
lhe diz que ele é. E o que o bebê é? Na realidade empírica, apenas um bebê; na imaginação da mãe, muito mais do
que isto — é, o seu filho, o mais bonito, o que será isto e aquilo — isto é, que realizará no futuro toda uma série
de desejos e expectativas dela. Isto vale também, é claro, para o pai: é por isto que afirmei atrás que os filhos são
um campo de projeção dos desejos e das fantasias de seus pais. Agora, podemos acrescentar mais um aspecto: eles
são igualmente os depositários dos ideais destes pais, e, assim como se identificam aos desejos e fantasias deles
(procurando, por exemplo, realizá-los em sua vida posterior, ou imaginando que um dia os realizarão), também se
identificam a estes ideais, que passarão a ser os seus próprios. Isto tudo será revisto e alterado durante a fase
edipiana, na qual intensas emoções e fantasias vão ser mobilizadas; mas mesmo assim, permanecem em algum lugar
da mente os vestígios desta época em que cada um de nós foi, como diz Freud, "Sua Majestade o Bebê", isto é,
aquele ou aquela cujos pais elevaram à categoria de depositário de seus sonhos mais queridos. Ao fazerem isto, é
claro, estes mesmos pais estão revivendo sua própria época de glorioso reinado, quando eram por sua vez bebês; a
perfeição infantil perdida é, em suma, aquilo que vai sendo passado de geração em geração, cada uma delas sendo
encarregada pela precedente de concretizar suas fantasias mais arcaicas. Como tal coisa é impossível, é necessário
se contentar com aproximações do Paraíso: nem a geração mais nova quer realizar os sonhos da mais velha (eles
lhe servem de parâmetro, para serem adotados ou combatidos, mas sempre preservando um intervalo necessário
para poder ser ela mesma), nem a realidade comporta tal realização completa.
Na história psíquica de cada um de nós, este momento inaugural — que, disse, vai ser preservado no
inconsciente — é sucedido pela edipianização, da qual resulta um indivíduo ao mesmo tempo ligado aos pais e
separado deles: resulta um indivíduo cuja relação com os pais é ambivalente, como é ambivalente a relação dos
pais com ele. Isto ficou claro, espero, com o exemplo de Freud e de Aníbal: o menino precisou escolher como
modelo um herói mais heróico do que seu pai, retificando na fantasia "uma situação que não me agradava e
substituindo-a por outra mais conforme a meus sentimentos". Vimos há pouco toda a ambigüidade desta escolha:
trata-se de vencer o pai, de ir mais longe do que ele, mas realizando o que ele queria realizar e não pôde: vencer o
pai, lutando contra o pai com as armas do pai — agressão e homenagem a um só tempo. E também superar o
herói Aníbal, entrando em Roma, o que o cartaginês não conseguiu — e Freud realizou, embora a bordo de um
trem noturno e não à frente dos exércitos semitas...
A ambivalência da relação, no sentido pais/filhos, ficou esclarecida com o exemplo da circuncisão. Resta
elucidar um último ponto: no início desta aula, dei grande importância ao papel da mãe, enquanto a partir de uma
certa altura falamos quase somente do pai. É certo que estas distinções têm um valor didático, pois o tema já é
suficientemente complicado para que o compliquemos ainda mais tratando de tudo ao mesmo tempo. Mas também
é certo que, na vida psíquica de cada pessoa, o pai e a mãe não ocupam posições simétricas: um não é
simplesmente o reverso do outro. Sem entrar em detalhes a esta hora da noite, podemos dizer que a mãe está
associada, na fantasia infantil, aos primeiros tempos da vida, às experiências mais precoces, a mo-mentos de fusão
e de indistinção. Também está associada, como veremos na próxima vez, a outras coisas; por enquanto, importa
distinguir esta faceta daquela associada ao pai. O pai é aquele que vem romper esta continuidade idílica entre o
bebê e sua mãe, é aquele que vem instaurar uma regra, uma proibição: não é pemitido à mãe nem ao bebê ficarem
eternamente neste namoro solitário, encapsulados em sua mônada narcísica. Por este motivo, ele é figurado como o
agente de castração. Podemos dizer também que a imagem da mãe está associada a uma dimensão da vida que é pré-
verbal, enquanto a imagem do pai tem vínculos estreitos com a linguagem e com a razão. Isto tem um enorme efeito
sobre a constituição da identidade em geral e da identidade judaica em particular; e, com uma observação a esse
respeito, encerraremos a aula de hoje.
É muito comum que tenhamos dificuldade em definir lógica e claramente o que significa para cada de nós
"ser judeu"; esta idéia, com freqüência, é preenchida menos com conceitos do que com imagens, com sensações,
como as de Freud descreve em sua carta à Bnei Brit: um certo calor, certos gestos, certos cheiros, fragmentos de
palavras em línguas então incompreensíveis e cujo som nos encanta. Costuma-se brincar com isto, dizendo que se
trata de um judaísmo "culinário": o gefilte fish acaba por se converter no símbolo e na quintessência do judaísmo,
numa época em que as práticas religiosas se afrouxaram muito e na qual o conflito identificatório recai em cheio
sobre o "ser judeu". Não penso que isto seja o ideal; constato que é assim e me parece útil tentar compreender por
que. Em minha interpretação, estas sensações idefiníveis, porém agradáveis, que nos ligam a "algo" que não
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sabemos bem o que é, mas a que desejamos permane-cer ligados, remetem à nossa relação com a imagem materna:
o judaísmo "culinário", isto é, não-verbal, não-racionalizado, epidérmico reproduz em sua escala própria um tipo
de ligação próximo do que unia um bebê à sua mãe, nos tempos míticos e felizes em que o pai não havia ainda
aparecido para perturbar a festa. Trata-se da sublimação, se Vocês quiserem, de impulsos e emoções muito
primitivos, que se alojam nos gostos, perfumes, sons e sensações de "calor" precisamente porque não temos
palavras para expressá-los, ou, ainda, porque nossa razão (herança paterna) já não aceita "aquilo que tornava
felizes os velhos judeus", na expressão usada por Freud na carta à sua noiva.
Penso que a inclusão do judaísmo no terreno das significações edipianas tornou o sentido tradicional de
"ser judeu" — com a ênfase no estudo e na palavra — intolerável para muitos de nós; isto se combina com a
identificação socialmente valorizada e emocionalmente intensa a modelos identificatórios ocidentais, para fazer
surgir uma atitude crítica em relação a este judaísmo tradicional. Mas parece que algo escapa a esta situação: algo
que, segundo penso, vai se refugiar em modalidades mais arcaicas, de índole "materna"; talvez porque a relação
com a figura materna, que aparentemente nada tem a ver com a circuncisão nem com a castração, tenha sido para
os judeus menos angustiada do que com a figura paterna... Não sei; são hipóteses. Em todo caso, achei que numa
aula sobre a identidade judaica não poderia deixar de mencionar aquilo que para tantos judeus modernos é o
conteúdo principal dela: um "gosto de ser judeu", uma certa satisfação em participar de um Seder de Pessach, algo
indefinível e que sem dúvida pertence mais ao registro da sensibilidadé do que ao registro do intelecto.
A bem dizer, veremos na próxima aula que a relação com a figura materna também pode ser muito
ansiogênica (geradora de angústia), sobretudo para as mulheres. Mas isto terá de ser explicado em outro contexto;
por hoje é só.

INVERSÃO DA DOMINANTE: EM TORNO DO ANTI-SEMITISMO (3a aula)


Hoje vamos tratar de uma questão que, de certa forma, prolonga a da última aula. Naquela vez, procurei
dar uma idéia do que a psicanálise nos diz acerca da constituição da identidade, a fim de iluminar o problema da
identidade judaica por um ângulo um pouco diferente daquele a que estamos habituados. Terminávamos falando
acerca das diversas facetas da identidade, isto é, das diversas imagens que cada pessoa pode ter de si mesma;
pluralidade esta sem dúvida fomentada pelas condições da sociedade capitalista, que solicita o indivíduo em
muitos papéis e funções, não obrigatoriamente paralelos. Também deixamos em suspenso uma outra questão, a das
imagens inconscientes do pai e da mãe; talvez possamos abordá-la hoje num outro contexto.
O essencial do argumento desenvolvido na palestra anterior é o seguinte: os outros são indispensáveis para
a constituição da identidade de alguém. Estes "outros" foram tomados principalmente na sua função de modelos
identificatórios, função mais relevante naquele momento, já que procurávamos elucidar os processos de
identificação, ou seja, de constituição da identidade. Mas os "outros" não são somente modelos; podem ser
também adversários, e, nesta posição, cumprir um papel importante na reafirmação da identidade. Aqui se
acentua mais a dimensão da diferença, contida na idéia de "outro", e menos a dimensão da semelhança, que
preside à noção de "modelo". Esta diferença pode ser maior ou menor; um de seus graus máximos é a oposição, que
se define como um tipo de relação no qual as características que especificam um dos membros se encontram
ausentes do outro membro, e vice-versa. Por exemplo: branco e azul são cores diferentes, mas branco e preto são
cores opostas. Para sermos precisos, o branco é o efeito da presença simultânea de todas as cores do prisma,
enquanto o preto é a ausência de cor. Deste modo, o que subjaz à oposição branco/preto é a oposição
todas/nenhuma (cor). Outros exemplos de oposição: ligado/desligado, vivo/morto, cheio/vazio, etc. Na gramática,
a categoria dos antônimos recobre boa parte das idéias que admitem um oposto. Há algumas outras, que entram em
relações de um tipo diferente, as relações de contradição; mas isto é um outro assunto, que fica para uma outra
vez.
A existência dos opostos é de grande utilidade para reafirmar a identidade, caso seja necessário: e costuma
ser necessário, exatamente em momentos e situações nos quais a coesão das imagens identificató-rias corre algum
risco. É claro que, se existem "x" e se eu sou um "não-x", fica mais fácil garantir a permanência de minha
identidade, já que se traça um limite nítido entre duas classes, de uma das quais eu estou excluído, pertencendo por
conseguinte à outra. Um bom exemplo disto nos é dado pelas histórias em quadrinhos: o Clube do Bolinha tem
como divisa "Menina não entra", ou seja, o mundo é dividido em duas categorias — meninos e meninas — e
qualquer ser humano tem necessariamente que pertencer a uma delas (critério da exaustividade da divisão).
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Portanto, se estou no clube do Bolinha, é porque sou menino, e qualquer dúvida a respeito de minha identidade
sexual — dúvida que poderia ser causadora de angústia — fica afastada, pelo menos enquanto eu fizer parte deste
clube. O mesmo esquema é repetido quando se divide a população infantil da cidade em duas "turmas", e só é
nomeada a "turma da Zona Norte"; por exclusão, somos — Bolinhas e Luluzinhas em conjunto — membros da
"turma da Zona Sul". Isto é tão evidente que nem sequer é preciso que nos designemos como "turma da Zona
Sul": basta chamar os outros de "turma da Zona Norte" para que a identidade do meu grupo fique estabelecida e
assegurada.
Esta autodefinição por meio da divisão exaustiva em dois e da exclusão de uma das metades pode ser feita
de duas maneiras diferentes. Ou bem cada metade ganha seu sinal distintivo, seu emblema (por exemplo, uma
bandeira ou um uniforme); ou bem só uma das metades possui uma insígnia, enquanto a outra se caracteriza pela
ausência de qualquer insígnia. Imaginemos um jogo de futebol: cada time pode ter seu uniforme próprio, ou, como
nas peladas de várzea, um dos times pode jogar sem camisa. A ausência da camisa basta para distinguir um time do
outro, e para fazer com que os membros do time sem camisa se reconheçam reciprocamente como jogadores da
mesma equipe. Dois times de nadadores podem competir, digamos, com ou sem touca; dois times de basquete
podem jogar, um de tênis e outro descalço; e assim por diante.
Na evolução psíquica, há um momento conhecido com o nome de fase fálica, no qual as fantasias de
castração das quais falamos na aula passada estão em plena atividade. Aqui a castração é entendida como ablação
ou corte do pênis. Uma das teorias sexuais infantis mais comuns "explica" a existência de meninos e meninas —
portanto a diferença dos sexos — como resultado da castração das meninas: elas tinham, "como todo mundo", um
pênis, mas por alguma razão (provavelmente o mau comportamento delas) ele lhes foi retirado, ficando no seu lugar
um "vazio". Percebam que, na verdade, esta idéia é uma maneira de negar a diferença dos sexos: não existem aqui
dois sexos, cada qual com seu órgão genital próprio, mas apenas um, o masculino: as meninas são, nesta
perspectiva, meninos castrados. Esta "explicação" confirma, para o menino, sua hipótese de que o pênis pode ser
arrancado; o das meninas não foi? E, desta forma, não é preciso se incomodar com a existência da vagina e com
todas as complicações que sobreviriam, se se admitisse que há não um, mas dois sexos positivos. Este exemplo de
divisão em duas classes — uma delas dotada do atributo decisivo (o pênis) e a outra privada dele — vai nos servir
mais adiante. Por enquanto, guardemos a idéia de que o "outro" pode ser tanto aquele cujos atributos são opostos
aos meus, quanto aquele que não possui o meu atributo; neste caso, é fácil imaginar que ele já o possuiu e veio a
perdê-lo, ou então que o tal atributo pode vir a surgir nele (no caso que estou comentando, isto aparece sob a forma
do "ela ainda não tem pênis, porque é pequena, mas quando crescer terá um"). Em todo caso, fica clara a função
que desejo ressaltar: a divisão em duas classes exaustivas serve constantemente para reafirmar a identidade de
quem divide deste jeito, porque a divisão é construída como uma alternativa: ou se é assim ou se é assado, ficando
excluída qualquer outra possibilidade; e, como não se é assado, só se pode ser assim: c.q.d.
Este tipo de raciocínio está longe de ser exclusivo dos meninos às voltas com suas angústias de castração:
na verdade, é um dos esquemas mais comumente empregados pelos grupos humanos para se autodefinirem. Em
muitas sociedades indígenas, a palavra que designa a nação na sua própria língua é a mesma que significa "ser
humano": o mundo se reparte então em "nós, os homens" e em "outros, não homens". Não é preciso ser racista ou
favorável ao apartheid para se pensar assim, embora o racismo e o preconceito possam se servir da freqüência e
da intensidade com que o homem é assaltado por dúvidas quanto à sua identidade, sendo levado a reassegurar-se
dela imaginando algum critério pelo qual seu grupo possua um atributo positivo, enquanto os outros estão privados
dele. O sentimento de superioridade que resulta desta operação pode ser vantajoso para reforçar a coesão do grupo
ou a identidade de algum de seus membros. Reforço ilusório, certamente, mas não destituído de qualquer eficácia:
se fosse assim, não o veríamos ser empregado tão abundantemente em todas as épocas e em todos os lugares.

Imagens dos Judeus


Com estas noções claras, podemos abordar um novo aspecto do nosso tema: o das imagens que os judeus
fazem ou fizeram de si mesmos, e das imagens que os outros povos fazem ou fizeram dos judeus. Este tópico é
extremamente interessante, já que nos permite entrar em facetas do funcionamento psíquico que ainda não
abordamos, e que podem ser úteis para compreender fenômenos como o anti-semitismo, a conversão, e em geral a
relação ambígua que muitos judeus mantêm com sua condição de judeus, bem como certas conseqüências
psicológicas do renascimento nacional judaico no século XX (estou falando em Israel e no sionismo). De modo
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amplo, podemos dizer que existem diferentes imagens do judeu, algumas produzidas pelos próprios judeus, outras
pelos não-judeus; colocam-se problemas como o de saber quais relações estas imagens podem ter entre elas, por
que certos judeus adotaram para si mesmos imagens criadas por não-judeus, por que estas imagens são
persistentemente negativas, e também por que elas podem, como puderam, conduzir a perseguições, pogroms e
fornos crematórios. Entramos assim num terreno fascinante, ó da história e da psicologia do anti-semitismo; e
gostaria de estudá-lo, nesta aula, com alguns instrumentos fornecidos pela psicanálise.
Toda pessoa necessita de imagens positivas acerca de si mesma, adequadamente investidas, para poder
funcionar de modo não-psicótico. Todos nós precisamos acreditar que somos, ao menos em alguma medida,
"bons": se não, o ódio e a agressividade que fazem parte de nossa vida emocional viriam atacar nosso próprio "eu",
com conseqüências severas para o funcionamento psíquico. E como sabemos que somos "bons"? Porque nossos
pais nos transmitem esta imagem, como vimos na aula passada; e também porque o grupo ao qual pertencemos,
normalmente, tem acerca de si mesmo uma concepção positiva, que é transmitida — e aliás deve ser transmitida,
caso contrário o grupo se desagregará como grupo — aos seus membros. Esta exigência da sobrevivência grupai
se reflete no orgulho que cada pessoa sente ao dizer "sou tal e qual coisa": "sou corintiano", "sou brasileiro", "sou
médico", etc. E claro que nem todos nós nos orgulhamos absurdamente por ser tudo o que somos — isto seria
indício provável de que algo vai mal em nossa psique; mas é necessária uma dose razoável de reconforto narcísico
por fazer parte de tais e tais grupos, ainda que seja para tolerar o desconforto narcísico provocado por outros
fatores.
Tradicionalmente, o grupo judaico tem de si próprio uma elevada opinião: somos o Povo Eleito, "am
seguia", escolhidos pelo Deus único para sermos depositários de Sua Torá. Esta idéia, que soa tão mal a ouvidos
democráticos, nada tinha de extraordinário nos tempos antigos: os gregos dividiam o mundo em helenos e
bárbaros, e bárbaros é um termo que significa algo entre "gagos" e "irracionais"; quem não era grego era
evidentemente inferior, não dispunha do logos, da razão e da palavra. Os chineses se consideravam como o Império
do Meio, isto é, ocupando o centro do mundo; quando Marco Polo chega à corte de Kublai Khan, somente
arrastando-se no pó (porque é estrangeiro), consegue ser admitido à presença do imperador. É inútil multiplicar os
exemplos: a noção de igualdade não faz parte do mundo antigo, nem do medieval, e mesmo hoje em dia está mais
difundida na retórica do que na prática. O importante é assinalar que esta auto-imagem altamente positiva teve um
papel considerável na manutenção dos judeus como um grupo coeso, ao lado de outros fatores que evoquei na
primeira aula. Por contraste, mencionemos que para muitos negros — existem belos estudos sobre isto — o fato de
ser negro é vivido com muita dificuldade, já que foram introjetadas imagens tremendamente negativas acerca do
que "é" ser negro — imagens, obviamente, produzidas pelos brancos de quem estes negros eram escravos.
Imaginem a dificuldade de conviver com um corpo cujas formas são -decretadas a priori feias, pois não condizem
com os padrões dominantes da beleza; de ter de pentear diariamente um cabelo por definição "ruim"; ou então de
se ouvir dizer que "Você é uma pessoa excelente, um negro de alma branca"; ou, ainda, de procurar
desesperadamente um parceiro sexual mais claro, a fim de "branquear" e de "melhorar a raça". Todos estes
problemas são discutidos num livro corajoso e inteligente, que se chama Tornar-se Negro, de Neusa dos Santos, e
publicado pela Editora Graal, do Rio. Estou citando este exemplo justamente para que fique clara a importância
de um "ideal do ego", como se costuma dizer, compatível com as possibilidades de o sujeito eventualmente
alcançá-lo: caso contrário, uma grande quantidade de energia psíquica será gasta tentando realizar alvos por
definição inatingíveis, gerando conflitos graves e empobrecendo significativamente a vida psíquica.
É fácil compreender por que muitos negros interiorizaram ideais do ego cuja presença em sua psique gera
estes efeitos, às vezes catastróficos. A escravidão é uma razão mais do que suficiente, e, numa outra oportunidade,
poderemos talvez tentar compreender algo do que significa para um ser humano o ser escravo: quais acomodações
psíquicas devem ser feitas para que a vida se torne ao menos suportável, para que o trauma da captura e da venda
possa ser de certa forma assimilado. Por que todos os escravos negros não sucumbiram ao "banzo", isto é, à
depressão que atingia alguns deles? Por que foi possível construir uma sociedade escravocrata, que funcionou
razoavelmente durante vários séculos? São questões fascinantes, mas que terão de esperar uma outra ocasião. Em
todo caso, para o escravo — de qualquer cor — seu dono é um modelo, modelo obviamente ambivalente: é objeto
de ódio e de cólera, mas também representa aquilo que o escravo gostaria de ser. Podemos imaginar que a
introjeção das imagens que o dono tem de seu escravo — em outra palavras, a ação de certos mecanismos de
identificação com os modelos oferecidos pela sociedade — tenha algo que ver com a durabilidade das condições
escravocratas, e com a freqüência impressionantemente pequena das revoltas e fugas. Por mais comuns que
tenham sido, o problema é exatamente este: por que não eram a regra, mas a exceção? Por que a sociedade
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escravocrata pôde implantar-se e durar, por que não acabou num banho de sangue, como no Haiti? Não penso que
fatores psíquicos dêem conta disto de modo exaustivo: há outras dimensões, como a violência física e o medo, ou a
inexistência de alternativas na estrutura social, que devem ser incluídas. Mas é certo que algum grau de
identificação com o dominador é indispensável para que o domínio se mantenha; daqui surgem perspectivas
interessantes para se estudar a alienação, a obediência, a "servidão voluntária", etc.
Voltemos aos judeus, que foram perseguidos muitas vezes, mas que depois do Êxodo do Egito não
voltaram a passar, coletivamente, pela experiência da escravidão. Penso que é de evidência ofuscante que a
religião, com sua eficácia costumeira, implantou neles uma sólida auto-estima, tendo mais sólida quanto mais
discrepava das imagens produzidas pelos não-judeus. Por que os judeus não introjeta-ram estas imagens, que lhes
eram oferecidas pelo meio, e muitas vezes eram hostis? Uma resposta plausível só pode articular-se, segundo
penso, se descermos da generalidade abstrata e interrogarmos a história destas imagens, tais como foram sendo
criadas ao longo dos séculos.
Elas têm, certamente, algo em comum, embora seu conteúdo específico tenha variado nas diferentes
épocas e lugares: são imagens que o caracterizam como perigoso ou como inimigo. Neste sentido, é conveniente
lembrar o que ficou estabelecido na primeira aula: na Antigüidade, entendendo por este termo o período anterior
ao advento do Cristianismo, os judeus não foram perseguidos como tais, embora certamente tivesse havido
episódios de violência contra eles. Violência sob a forma de guerras, como no caso dos assírios e dos babilônios,
que destruíram os reinos judaicos nos séculos VIII e VI A. C; violência sob a forma de conflitos entre gregos e
judeus (como ocorreu em Alexandria no século III a. C), ou de conflitos entre dominadores helenistas e seus
aliados, os judeus helenizantes urbanos, contra os camponeses judeus tradicionalistas (como na guerra dos
Macabeus, cujas razões não foram, obviamente, de fundo apenas religioso); violência sob a forma de repressão
militar e de penas jurídicas, como as que se seguiram às revoltas de 70 d. C. e de 135 d. C. contra o domínio
romano. Mas de modo algum podemos tomar estes episódios como significando perseguições sistemáticas contra
os judeus por serem judeus, isto é, não-gregos ou não-romanos. É certo que houvesse antipatia pelos judeus no
mundo helinístico, em especial motivada pela recusa de muitos deles em se helenizarem por completo, e pelo fato
de que o desprezo dos gregos pelos bárbaros — entre os quais eram incluídos os judeus — encontrava seu
equivalente na atitude altaneira dos judeus para com os idólatras — entre os quais eram incluídos os gregos, e
posteriormente os romanos. Escreveram-se livros e panfletos contra a insistência dos judeus em acreditar num
Deus invisível e em manter costumes considerados contrários à razão; mas eles foram respondidos por outros
livros e por outros panfletos, escritos pelos judeus, nos quais estes justificavam suas crenças e seus costumes. Em
todo caso, já no mundo antigo a imagem do judeu aparece associada às idéias de resistência, de isolamento, de
não-aceitação do koinós, do comum a todos: traços talvez antipáticos, mas de modo algum capazes de justificar a
expulsão, o extermínio ou a discriminação em larga escala contra eles.
É com o advento do Cristianismo que as coisas vão mudar de figura, já que contra os judeus passa a pesar
uma acusação gravíssima: a de ter matado Jesus. Esta idéia tem aspectos curiosos: segundo a história dos
Evangelhos, Jesus foi crucificado pelos romanos, embora a pedido dos fariseus; mas não houve ódio aos romanos,
mesmo quando estes perseguiram os cristãos e os atiraram às feras do Coliseu. Por outro lado, segundo a teologia
cristã, Jesus foi enviado aos homens para, com sua morte na cruz, salvá-los do pecado e reconciliá-los com Deus,
abrindo uma brecha no decreto que expulsou Adão e Eva do Paraíso. Deste ponto de vista, a morte de Jesus estava
prevista pela vontade divina, sendo os judeus apenas instrumentos na execução dos Seus desígnios: o que teria
acontecido com a salvação da humanidade, se os fariseus tivessem aclamado Jesus e adotado as reformas propos-
tas por ele? Estas observações sugerem que a acusação de deicídio imputada aos judeus não se baseia apenas em
possíveis fatos históricos, mas que ela contém elementos que escapam à dimensão da racionalidade: elementos
propriamente emocionais, que a psicanálise talves nos ajude a elucidar.
O cristianismo difundiu-se inicialmente na bacia do Mediterrâneo e na parte da Europa continental que
fazia parte do Império Romano. Nos primeiros séculos da era cristã, a mensagem dos Apóstolos continha elementos
claramente subversivos, e por este motivo os romanos a declararam religião "não-lícita", isto é, proibida. Mas, por
uma série de fatores que não vêm ao caso, ela acabou não só por se divulgar em larga escala, mas ainda por ser
adotada pelo imperador Constantino, em 321 d.C, como religião oficial do Império. Desta forma, toda a
organização política e militar do Império Romano foi posta a serviço da Igreja, e, quando o Império sucumbiu aos
ataques dos bárbaros, a Igreja foi a única instituição que sobreviveu a esta catástrofe. Sabemos que os séculos
seguintes foram de grande turbulência, devido às invasões, às guerras, à conquista de novos territórios

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(especialmente na Europa Central e Oriental) por parte dos cristãos, tanto romanos como bizantinos. Até
aproximadamente o ano 1000, estes processos de difusão e de consolidação das novas formas sociais, políticas e
religiosas estão em pleno andamento, em alguns lugares da Europa mais avançados, em outros apenas incipientes.
Quanto aos judeus, em primeiro lugar eles não eram numerosos na Europa, e, em segundo lugar, havia uma
enorme distância entre a teologia e a vida real, de modo que a imagem do deicida, embora amplamente freqüente
nos escritos dos Padres da Igreja, só lentamente chegou a penetrar nos meios populares, e mesmo assim não
resultou em maiores violências até a época das Cruzadas, isto é, até o século XII d.C.
As Cruzadas foram um fenômeno de importância extraordinária para a civilização européia.
Representaram o momento inicial da expansão militar e econômica dos europeus cristianizados, embora
esbarrassem com dura resistência por parte dos muçulmanos, os quais, depois de serem derrotados, reorganizaram-
se e destruíram o Reino Latino de Jerusalém nos meados do século XII. Aliás, o perigo islâmico rondou as
fronteiras da Cristandade até bem avançado o século XVII: em 1683, os turcos otomanos estavam às portas de
Viena, e toda a região dos Bálcãs foi por eles dominada até meados do século XIX. Na Rússia, as invasões tártaras
continuaram até o século XV — Vocês se lembram do filme Alexandre Nevski, de Eisenstein — e, na Espanha, os
árabes só foram definitivamente expulsos em 1492. O perigo de aniquilação veio, durante todos estes séculos, de
fora da Europa, e se combinou com outros perigos, de origem interna; estes, aos poucos, vão se tornando
preponderantes, e tal processo é em extremo relevante para compreendermos as motivações e a lógica do anti-
semitismo.
Na esteira das Cruzadas, verificam-se os primeiros massacres de judeus, na Alemanha (1096), em Israel
(1099) e na Inglaterra (1188). Foram de uma barbárie indescritível, e chocaram os espíritos civilizados da época. O
pretexto manifesto era justamente o deicídio: por que ir até a Terra Santa para recuperar os lugares onde se
desenrolara a História Sagrada, e deixar em paz, ali mesmo na Europa, os "inimigos da Cristandade"? O judeu
começa a aparecer, assim, como o inimigo que chamarei de externo-interno: diferente por sua religião, por seus
costumes e pela posição que ocupava na sociedade feudal, ele era "outro"; vivendo nesta sociedade, ele
simbolizava para ela o "externo" ameaçador; porém ao mesmo tempo sua proximidade e sua localização como
parte integrante desta sociedade o tornavam "interno", e por_isto mesmo ainda mais ameaçador. O que vamos
estudar agora é precisamente este processo pelo qual os judeus vieram a encarnar de maneira privilegiada a figura
do Outro, do inimigo por excelência: é óbvio que, neste processo, o que os judeus na realidade eram e faziam fica
rapidamente obscurecido por aquilo que se imagina que eles são e fazem. Eis por que o aspecto imaginário — ou,
em outros termos, as imagens que começam a circular acerca dos judeus — é um campo fecundo para
compreendermos o sentido do anti-semitismo, tirando daí, talvez, algumas idéias sobre o lado da psique humana
que nele se exprime.
Antes, porém, algumas palavras sobre as condições sociais nas quais vai surgir este imaginário. A partir do
século XIII, em parte em conseqüência das Cruzadas e em parte por outros fatores, começa a se transformar
rapidamente o panorama da Europa cristã. Desenvolveram-se as cidades e nelas surge a classe mercantil, que aos
poucos vai ganhando importância e poder; as comunicações melhoram, o regime feudal vai se modificando, o
Império e o Papado se defrontam em guerras sucessivas, surgem os príncipes territoriais e o embrião do que será
depois o Estado nacional; no plano das idéias, os mosteiros deixam de ser o refúgio do conhecimento, aparecem
as primeiras Universidades, começam a se escrever textos nas línguas novas... São inúmeras mudanças e
transformações, a que só podemos aludir de passagem, mas cujo efeito geral é o de produzirem insegurança nas
classes dominantes e na Igreja, cuja hegemonia começa a ser contestada. De início, tal contestação assume formas
religiosas: o século XII presencia o surgimento das chamadas heresias, isto é, de doutrinas contrárias ao
ensinamento da Igreja. Tais heresias (como a dos albigenses no sul da França e a dos valdenses nos vales alpinos)
são abraçados precisamente por aquelas sociedades mais sofisticadas e mais dispostas a afirmar sua autonomia;
elas espelham, no plano intelectual, a diferenciação crescente da própria cristandade, que se desenvolve num
sentido oposto ao da homogeneidade que, bem ou mal, prevalecera até então, e que era considerada desejável pela
Igreja. Nada mais natural do que a reação eclesiástica: em 1215, cria-se a Inquisição, que será o braço armado do
conservadorismo clerical, e cuja função inicial é precisamente o combate às heresias que se alastram pela Itália e
pela França. É evidente que a Igreja não era apenas uma organização religiosa, estando intimamente entrelaçada
às estruturas de poder e de riqueza então vigentes; isto permitiu toda sorte de alianças, com a nobreza aqui, com as
cidades ali, com os reis acolá, alianças nas quais a Igreja se servia de seus parceiros para realizar suas finalidades,
e estes parceiros se serviam dela para concretizar as deles.

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Angústias e Defesas
É uma constatação fácil de ser comprovada que grandes transformações geram incertezas e inseguranças
de todos os tipos, e que os agentes históricos muitas vezes não têm clareza alguma quanto ao sentido dos processos
nos quais estão envolvidos. A psicanálise considera que a incerteza e a insegurança são expressões emocionais da
angústia, e que a psique humana, em presença da angústia, põe em marcha mecanismos de defesa, a fim de diminuí-
la e de controlá-la. Estes mecanismos são inconscientes, assim como o conteúdo das fantasias infantis mobilizadas
pela situação. Por que infantis? Porque a infância é por excelência o momento da vida em que a insegurança e a
incerteza prevalecem, já que a criança é por natureza frágil e indefesa, corre perigos reais caso seja abandonada, e
corre perigos ainda mais reais, para ela, em decorrência da sua atividade imaginativa, consciente e inconsciente. Os
eventos sociais, econômicos e políticos têm obviamente causas econômicas, políticas e sociais, mas não podemos
desprezar os efeitos psíquicos que desencadeiam; tais eventos podem ser muito apropriados para conferir um
conteúdo "observável" e "real" às fantasias mais arcaicas e profundas da Humanidade. E as defesas mobilizadas
para conter as angústias a elas associadas podem tomar a forma de ações sociais, políticas e econômicas,
aparentemente dirigidas para refrear ou eliminar as transformações indesejadas, mas cuja função psíquica consiste
em aplacar a angústia inconsciente. Esta angústia será tanto mais intensa quanto mais nitidamente os eventos em
questão parecerem confirmar as fantasias primitivas, e, como resultado, as defesas mobilizadas serão
proporcionais aos riscos vislumbrados pelos agentes sociais. Épocas de grandes mudanças são, por estas razões,
muito propícias para desencadear comportamentos completamente absurdos, se vistos apenas pela óptica racional,
mas que parecem adequados e justificados para aqueles que os adotam; e as forças da inteligência serão empregadas
para encontrar razões, provas e argumentos que os justifiquem ainda mais, no processo defensivo a que a
psicanálise denomina racionalização.
O século XIV certamente foi um daqueles em que as mudanças em todos os níveis se deram com maior
intensidade, e seu alcance foi agravado por uma epidemia — a Peste Negra — que em dois anos matou um terço
da população da Europa, quase realizando o que os hunos, os turcos e os vândalos reunidos não haviam
conseguido: acabar com a civilização ocidental. Catástrofes desta ordem, que põem em risco não apenas um
sistema social, mas a própria existência dos seres humanos, têm a propriedade de desencadear angústias do tipo
que mencionei, e portanto de acionar defesas igualmente violentas. É uma exigência da mente humana atribuir a
todo efeito uma causa; e, se os efeitos são tão devastadores como o foram os acontecimentos ocorridos na Europa
no século XIV, as causas deles só podem ser igualmente terríveis e extraordinárias. Não estava morrendo, repito,
apenas o sistema feudal e a maneira de viver que se consolidava nos seiscentos ou setecentos anos anteriores; a
Peste Negra punha em risco a existência física de todos os europeus, feudais ou não, ortodoxos ou heréticos,
habitantes das cidades ou dos campos. De onde vinha? Por que viera? Qual o seu sentido? O que fazer para acabar
com ela?
Numa sociedade como aquela, as respostas a estas perguntas só poderiam ser formuladas em termos
religiosos. A Peste Negra era um castigo de Deus; mas castigo pelos pecados de todos, ou somente de alguns? É
neste momento que a figura do inimigo externo-interno revela sua utilidade; a culpa pela Peste, e de roldão com
ela por todo o clima de incerteza e insegurança que caracterizava a época, vai ser atribuída aos judeus. Mas os
judeus eram pouco numerosos, espalha-dos pela Europa, e, apesar de alguns terem amealhado riquezas no
comércio e na banca, eram na maioria burgueses pequenos ou médios. Claramente, a desproporção entre os efeitos
e a suposta causa deles era grande demais. É neste momento que entra em cena outra encarnação do inimigo
externo-interno, este sim capaz de realizações tão grandiosas: o Diabo. A idéia de uma aliança secreta entre o
Demônio e os judeus, com o fito de exterminar a Cristandade, parece dar conta So que se vê na cena da realidade;
portanto, ela deve ser verdadeira; portanto, ela é verdadeira. A lógica do pânico determina, assim, que se encontre
o culpado, e, uma vez este localizado, vão surgir os argumentos, as provas e os indícios de sua ação nefasta:
concretamente, os judeus vão ser acusados de terem celebrado um pacto com Satanás; e a primeira "prova" da
existência deste pacto é exatamente terem assassinado Cristo, a segunda aparecendo sob a forma das catástrofes
de então.
Do nosso ponto de vista, interessam menos os detalhes das perseguições desencadeadas com este pretexto
do que a análise das acusações levantadas para justificá-las, e isto por um motivo simples: é a partir delas que
podemos entrever que tipo de fantasias e que tipo de angústias puderam ser contidas por este meio. Para
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determiná-las, é preciso interpretar tais acusações; e para interpretá-las, é preciso compreender o que significava,
para um europeu do século XIV, a idéia do Diabo. Nosso percurso será, pois, o seguinte: vamos investigar um
pouco a história do Diabo e os usos que se fizeram deste personagem; em seguida, veremos que os conteúdos
associados a ele vão ser transferidos para os judeus, depois para as bruxas, e novamente para os judeus, quando as
bruxas tiverem desaparecido de cena, no século XVIII. Neste trajeto, ficará explícita a determinação sexual e
infantil da figura do Diabo; vamos estudá-la nos servindo de algumas ideias de Melanie Klein. A sexualidade
transbordante associada ao Diabo será, na Idade Moderna, transferida para as bruxas: diremos algo a respeito
delas, e de como, ao desaparecerem do imaginário europeu, serão substituídas por outras figuras. O moderno anti-
semitismo deslocará para os judeus alguns dos aspectos que os séculos XVI e XVII percebiam no personagem da
feiticeira; um texto de Dostoyevski nos ajudará a descobrir por quê. E concluiremos dizendo algo a respeito desta
"Summa Bestialogica" do anti-semitismo que se intitula "Os Protocolos dos Sábios de Sion".

O Diabo e os Judeus
A figura do diabo não consta do Antigo Testamento; ela surgiu pouco a pouco, através da combinação de
diferentes elementos, que originalmente não pertenciam ao mesmo contexto. Antes de mais nada,é preciso
compreender que a religião israelita anterior ao Exílio da Babilônia (século VI a.C.) se caracteriza por um
monoteísmo absoluto: embora na prática o povo não fosse lá muito fiel a YHWH, nos escritos bíblicos não há
traço algum de uma potência sobrenatural que pudesse contestar, em nível de igualdade, o poder do Deus único. É
provável que, antes do surgimento do monoteísmo, os antigos hebreus adorassem diversos espíritos e deuses,
alguns benéficos, outros maléficos; mas eles não foram transformados em demônios quando o monoteísmo
triunfou, contrariamente ao que ocorreu quando outras religiões desalojaram as que as tinham precedido (por
exemplo, o cristianismo frente às religiões bárbaras). Segundo a Bíblia, o mal não procede de espíritos adversos a
YHWH, mas dele mesmo ou de seus emissários (malachim ou anjos): um deles é Satan, como vemos no livro de
Jó. Existia a crença em espíritos impuros, que rondavam os campos (Lev. 17:7), as ruínas (Isa. 13:21) ou o deserto
(Lev. 16:22), mas não são destrutivos nem maldosos (1). O povo oferecia-lhes ocasionalmente sacrifícios ;
supunha-se que tivessem a forma de um bode (seirim), e é provável que representem ecos longínquos dos antigos
deuses pré-israelitas. Conformemente ao princípio monoteísta, as criaturas que desafiam YHWH não são estas, mas
monstros como Rahab (a serpente marinha), Leviatã ou Behemot; restos destas antigas lendas, que talvez falassem
de combates entre YHWH e outros deuses, figuram nos Salmos e nas imagens empregadas pelos profetas para
ilustrar o poder de Deus (2). Nenhuma destas criaturas, entretanto, compara-se a YHWH, não porque este seja
mais forte ou mais astuto do que elas (como o Zeus grego), mas, como explica Kaufmann, porque é uma entidade
independente da Natureza e de qualquer "Ser" primordial: não é gerado por nada, sendo, ao contrário, o Criador
de tudo o que existe, inclusive do reino dos demônios. Nas palavras de Kaufmann: "O que é fundamental e
peculiar à demonologia judaica é que os espíritos e demônios derivam, não de uma raiz maléfica primordial, mas
do pecado. Seu símbolo satânico é a serpente terrestre, o tentador do Éden, não a serpente marinha (Rahab), o
rebelde primevo contra Deus. A religião bíblica não podia admitir a idéia de que existisse um poder no universo
capaz de desafiar a autoridade de Deus, e que pudesse servir como um anti-Deus, símbolo e fonte do mal. Por isto,
procurou transferir o, mal do, reino metafísico para o reino moral: para o reino do pecado. A serpente do Eden não
é um rival de Deus, mas um 'animal do campo' que estimula a rebelião contra a ordem divina". (3)

(1) Cf. Yehezkel Kaufmann, The Religion of Israel, New York, Schocken Books, 1972, p. 63 ss.

Resumindo: estas diversas figuras não são suficientes para formar uma noção como a do Diabo. De
onde, então, ele surgiu? Da combinação destes diversos elementos entre si, e da combinação do resultado com
figuras presentes em outras religiões, como a babilônica e a persa, com as quais os hebreus entraram em contato
após o Exílio da Babilônia. Uma primeira combinação juntou as imagens de Satan e da serpente, que pertencem a
tradições diferentes. A palavra Satan aparece no livro de Jó, e designa um personagem que, embora inimigo dos
homens, não é um adversário de Deus. O vocábulo Satan provém de uma raiz que significa "colocar de lado",
"separar". Sua gama de conotações envolve as idéias de "rebelar-se", "ser infiel", "ser adversário de"; mas não é
um adversário de YHWH, e sim do homem: "termos próximos a Satan são sotén (acusar, perseguir) e sitná
(acusação). O Satan que aparece no livro de Jó corresponde a esta descrição: é um dos "filhos de Deus" (Jó 1:6),
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e acusa o bom uzita de ser fiel a Deus apenas porque este o cumulara de bênçãos, de alegrias e de prosperidade.
Um eco desta concepção aparece no Fausto de Goethe, cujo "Prólogo no Céu" põe em cena um diálogo bastante
cordial entre o Altíssimo e Mefistófeles.

(2) Uma interessante compilação deste material, que resulta numa história da Criação bem diferente da relatada pelo Gênesis, encontra-se em
R.Graves e R. Patai, Hebrew Myths: The Book of Genesis, New York, McGraw Hill, 1963, p. 29 ss. (3) Kaufmann, op. cit., p. 65.

Já a serpente (nahash) não faz parte dos "filhos de Deus": ela é apenas o "mais astuto dos animais" (Gên.
3:1). Seu papel é o de tentar Eva a comer do fruto proibido, desobedecendo a ordem de Deus; ela argumenta com
a mulher, dizendo que, se comer da "árvore que está no meio do jardim", "se abrirão vossos olhos, e sereis como
Deus, sabendo o bem e o mal" (Gên. 3:3-5). A emoção em jogo aqui é, claramente, o orgulho (ser como Deus,
onisciente e imortal). Por esta razão, a serpente veio, a simbolizar o orgulho, e tornou-se possível fundi-la com
outra tradição, a do anjo Lúcifer, que originalmente nada tinha em comum nem com Satan, nem com o astuto réptil.
Lúcifer quer dizer "o que transporta a luz"; é um termo latino que traduz o hebraico Helél ben Sháhar, que significa
"filho da Aurora". A fonte aqui é uma passagem do profeta Isaías (14:12-15), que, comparando a queda futura do
rei da Babilônia com a de Helél ben Sháhar, diz: "Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filho da Aurora!
Como foste lançado por terra(...)! Tu dizias em teu coração: Subirei ao céu; acima das estrelas de Deus levantarei
meu trono (...); ascenderei sobre as nuvens mais altas, e serei igual ao Altíssimo (edamé leelión). E contudo foste
lançado ao Sheól, ao abismo sem fundo." Reparem como a idéia de subir caracteriza esta passagem, opondo-se à
punição da queda; o desejo de Helél ben Sháhar é ser igual a Deus, ou seja, o mesmo que a serpente promete a
Eva. Penso que esta é a base da condensação entre as duas figuras, a do anjo e a da cobra. Em seu livro, Graves e
Patai explicam que "Helél ben Sháhar" era originalmente o planeta Vênus, a última "estrela" que desaparece do
céu, desafiando o nascer do sol, e que tudo indica que esta alegoria foi combinada com um mito babilônico, cujo
eco se encontra na lenda grega de Faetonte, o filho do Sol que morreu queimado porque conduziu de modo
desajeitado e presunçoso o carro de seu pai, Hélios (4). O tema do orgulho estabelece, pois, a ponte entre a estrela
da manhã, o anjo caído, a serpente do Gênesis e a lenda babilônica.

(4) Graves e Patai, op. cit.,p. 57-59. Cf. Ovídio, Metamorfoses, I, 748-780 e II, I-I05,para a lenda de Faetonte.

Esta figura de Lúcifer é identificada no Novo Testamento com o Satan do livro de Jó. No Evangelho de
São Lucas, o vínculo é bastante claro: "Eu vi Satan, como um raio, cair do céu; eis que vos dou poder para pisar
serpentes e escorpiões..." (Lucas, 10:18-19). Estes dois versículos referem-se a Satan, ao que "caiu do céu" e à
serpente como sendo a mesma figura. Outras passagens do Novo Testamento indicam que, no século I d.C, já
existia entre os hebreus uma demonologia bastante sofisticada; Satanás não é o único demônio, mas um Príncipe
que comanda todo um exército de seres maléficos (5).
O cristianismo reservou ao Diabo um espaço bem maior do que o judaísmo clássico. Os Padres da Igreja
tiveram de combater a heresia maniqueísta, originada dos ensinamentos de um certo Mani, que viveu na Pérsia no
século III d.C Segundo o maniqueísmo, o Mal é uma dimensão independente do Bem e luta constantemente
contra este; abala-se assim a idéia de um Deus único, e por isto a crença maniqueísta foi considerada herética. Nos
debates com os maniqueís-tas, os primeiros teólogos cristãos foram levados a precisar sua noção do Diabo, e a
idéia de um combate entre as forças do mal e do bem acabou por se condensar na figura do Anticristo,
identificada à do Demo. O Anticristo viria no final dos tempos e desencadearia terríveis horrores, antes de ser
finalmente derrotado pelas hostes do Senhor nos campos de Armagedon. Esta figura tenebrosa funcionou durante a
Idade Média como explicação para muitas desgraças, desgraças que eram interpretadas como o prenúncio da
chegada do Anticristo (invasões, guerras, pestes, morte misteriosa de reis e imperadores...). Na imaginação
popular, tal como a vemos expressa nas pinturas e nas lendas sobre os santos, o Diabo esteve sempre presente,
como tentador e como Príncipe das Trevas. É o adversário da luz, de Cristo e da Cristandade; e por este caminho,
veio a se situar do mesmo lado que os judeus, primeiro em certos escritos teológicos, e, posteriormente, no
imaginário popular.

(5) Ver, para um estudo bastante interessante da evolução do Diabo, o artigo de Leszek Kolakowski, "O Diabo", na revista Religião e

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Sociedade, 12:2, Rio, outubro de 1985, pp. 4-22, de onde retirei algumas das informações aqui apresentadas. (6) Ver Renato Mezan, Caminhos
do Povo Judeu, vol. III, São Paulo, Federação Israelita, 1975, capítulos 5 e 7.

Com isto, retornamos aos judeus e às perseguições de que foram objeto a partir das Cruzadas. Aos motivos
econômicos e sociais que estão na base destas perseguições (6), acrescentaram-se acusações fantásticas, destinadas
a justificá-las. Assim, em 1140, surge na Inglaterra o boato de que os judeus matavam crianças cristãs, para utilizar
seu sangue na fabricação das matzot de Pessach; embora formalmente desmentida em 1272 por uma bula papal,
esta acusação vai se alastrar pela Europa e ser repetida em muitos lugares (pela última vez em Kiev, em 1913,
num episódio que deu origem ao romance de Bernard Malamud, O Homem de Kiev, do qual se tirou um filme). Em
1243, a Inquisição de Paris condenou o Talmud à fogueira, sob o argumento de que a obra estava repleta de
"inumeráveis erros, blasfêmias e iniqüidade, que despertam vergonha nos que falam deles e horrorizam o ouvinte,
a ponto de estes livros não poderem ser tolerados em nome de Deus sem injúria à fé cristã... " Não se fala aqui em
sangue, mas em injúrias a Jesus e em blasfêmias. Mas o tema da sangue vai reaparecer em 1298, na Alemanha:
desta vez, afirma-se que os judeus roubam hóstias das igrejas, para espetá-las até que vertessem sangue, repetindo
com o corpo simbólico de Cristo as torturas praticadas sobre seu corpo físico. E, no século XIV, que já vimos ser
uma época de grande agitação e de profundas transformações, a maldade atribuída aos judeus atinge novas
proporções: na França, difunde-se a idéia de que, em conluio com os leprosos, os judeus estavam envenenando os
poços, a fim de destruir a cristandade. Sob tortura, alguns judeus "confessam" o plano e revelam a fórmula do
veneno, que consistiria em sangue humano, pó de serpentes, e coisas deste gênero. Pouco depois, com a Peste
Negra, a teoria do envenenamento dos poços parece se confirmar; seguem-se novos massacres de judeus, alguns
antes mesmo de que a peste chegasse às cidades onde viviam (a fim de evitar o perigo). As conseqüências destes
fatos são fáceis de imaginar. Os judeus começam a ser expulsos dos territórios cristãos, criando-se a figura do
"judeu errante" — imediatamente interpretada como mais uma prova da maldição divina que pesava sobre este
povo: para expiar o assassinato de Cristo, o judeu deveria vaguear sem repouso pelos quatro cantos da Terra, até a
nova vinda de Jesus.
Se os judeus são maldosos por natureza, se desejam destruir os cristãos depois de terem matado Cristo,
quem os inspira nestes desígnios? Só pode ser o Diabo. Forma-se assim a conjunção fatídica entre Satanás e os
judeus, que logo é "explicada" utilizando-se um tema do antigo folclore germânico: o pacto com o demônio. Os
judeus teriam realizado este pacto e seriam, assim, a incarnação terrena do Anticristo; a iconografia ilustra esta
idéia através de imagens nas quais os judeus aparecem com rabos e chifres, ou cercados de diabinhos que os
ajudam nas tarefas domésticas, ou ainda, como na Ponte de Madeira em Lucerna (Suíça), ao lado de uma porca (a
Judensau) que simboliza o Diabo. Surgem superstições estranhas, como a de que as judias dão à luz cabras e
cachorros, ou a de que os homens judeus ficam menstruados: sinais "evidentes" de seu caráter demoníaco. E isto
nos permite introduzir uma interpretação do tema do sangue, tão presente nas acusações feitas aos judeus; esta
interpretação nos conduzirá a um novo desenvolvimento, desta vez acerca das bruxas.

As Fantasias Arcaicas
No início desta aula, falei acerca da divisão em duas partes e da utilização de defesas contra a angústia.
Podemos agora juntar estas duas idéias, através do conceito psicanalítico de projeção. A projeção é um meçanismo
de defesa que consiste em expulsar de si mesmo e localizar um outro — seja este outro uma pessoa ou uma coisa
— certos conteúdos psíquicos geradores de intensa angústia. Aparece com particular clareza na paranóia, mas
também está presente nos inícios da vida psíquica, sendo a defesa característica dos primeiros meses da existência
de todos nós. O bebê, ao que tudo indica, não pode tolerar a dor e a ansiedade provenientes de suas fantasias
agressivas, fantasias desencadeadas pela ausência do seio e por sua própria atividade pulsional; "resolve" este
problema projetando para o exterior a causa destas sensações, de modo que o "bom" coincide com o interno e o
"mau" com o externo. Este mecanismo é normal nos primeiros meses de vida, e foi descrito por Freud; sua
discípula Melanie Klein se aprofundou nestas questões e chegou a elaborar consideravalmente a idéia da projeção,
associando-a ao momento psíquico por ela denominado "posição esquizo-paranóide". Segundo Klein, a projeção
do "mau" que existe em nós — o ódio, a cólera, a agressão, o desejo de matar, etc. — está associado a fantasias
muito arcaicas, nas quais o objeto destes sentimentos é o seio materno, causa de prazer, mas também causa de
frustração e de angústia quando não aparece no momento em que é necessário (por exemplo, quando o bebê sente
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fome). Klein imagina uma seqüência assim: o bebê projeta seu ódio no seio, mas em seguida este seio "assimila" o
ódio nele projetado; torna-se por sua vez colérico e agressivo, e vem perseguir o bebê. Pelo mecanismo da
introjeção, que designa a tranposição para "dentro" dos objetivos exteriores, o seio perseguidor "entra" na psique,
ameaçando-a novamente com a destruição. Causando angústia, ele é novamente projetado para fora, e o ciclo
recomeça. Estou esquematizando grosseiramente um processo bem mais complexo, mas isto basta para
prosseguirmos. Aos poucos, através destas projeções e introjeções sucessivas, o seio "mau" vai sendo aproximado
do seio "bom", isto é, daquele que satisfaz a fome e suprime a ansiedade; quando as duas imagens se combinam
numa só, a de um seio bom e mau ao mesmo tempo, isto é, ambivalente, inicia-se uma nova etapa da vida psíquica,
que já não nos concerne aqui.
Tendo claro o mecanismo da projeção e sua estreita associação com o "mau" que todos nós abrigamos,
podemos compreender a relação entre este mecanismo e as angústias de perseguição contra as quais ele nos
protege. A projeção é o segundo tempo de um movimento que se inicia com a cisão, ou splitting, isto é, com a
divisão de uma idéia, de uma imagem ou e uma sensação em duas partes, uma das quais será "boa" e ficará
"dentro" de nós, enquanto a outra, intolerável, será projetada para "fora". A vantagem deste processo é obvia, em
termos psicológicos: é bem mais fácil se proteger de um perigo externo do que de uma ameaça interna, já que
contra o perigo externo podemos lutar, podemos fugir dele, podemos "trancá-lo" numa prisão, enquanto a ameaça
interna nos acompanha onde quer que nos refugiemos. Por outro lado, a projeção tem o incoveniente de desenca-
dear a retaliação do objeto sobre o qual se projetou o "mau", iniciando o ciclo da perseguição: por isto, muitas
vezes é necessário tomar medidas para que o objeto "mau" não possa nos alcançar e se vingar de nós. Ê o que
acontece nas fobias: o ódio pela mãe ou pelo pai é projetado, por exemplo, num animal — digamos num cachorro
— e a criança passa a ter medo de cachorro, em vez, de ter medo do pai ou da mãe ("vantagem" da
cisão/projeção: separa-se o amor e o ódio, o amor fica com os pais e o ódio vai para o cachorro, que passa então a
ser temido). Acontece que é bem mais fácil se proteger dos cachorros do que dos pais: basta evitar o contato com
aqueles. Instala-se então todo um sistema de procedimentos destinado a evitar ver cachorros, sejam cachorros
reais, sejam desenhos de cachorros, ou cachorros em filmes, etc.
Melanie Klein formulou uma regra para a interpretação destes medos: aquilo que a criança teme por parte
do objeto é exatamente o mesmo que ela deseja, inconscientemente, fazer ao objeto. Se o medo é de ser mordido
pelo cachorro, a fantasia inconsciente é de natureza oral-agressiva (morder), e assim por diante. De modo geral, as
investigações kleinianas resultaram num formidável inventário de fantasias agressivas, ou, como ela as chama, de
fantasias sádicas, cujos instrumentos são as atividades corporais do ser humano: fantasias sádico-orais, como
sugar até a morte, morder, despedaçar, picar em pedacinhos etc; fantasias sádico-anais, como explodir, envenenar,
penetrar violentamente etc; fantasias fálico-uretrais, como inundar, afogar, queimar etc. Perto da Psicanálise da
Criança, obra escrita por Klein em 1932, os filmes de horror são inocentes brincadeiras de criança — opa, não de
criança! E, por mais estranho que pareça, a psicanálise descobre com grande regularidade fantasias inconscientes
deste tipo, não apenas no tratamento de crianças, mas também nas terapias de adultos. Não é de admirar, assim,
que o ser humano seja atormentado por intensíssimas angústias de perseguição, de morte e de destruição, e que
procure livrar-se delas empregando mecanismos de defesa como a cisão e a projeção. E vejam que estou
selecionando apenas uma parte do que povoa nosso inconsciente, precisamente aquela parte que nos é útil para
compreender as acusações lançadas contra os judeus.
Retornemos, pois, a estas acusações. Elas giram em torno de sangue, no registro oral: o sangue seria
utilizado para fabricar matzot, isto é, como alimento; as hóstias sagradas são colocadas na boca dos fiéis, durante a
comunhão. O sangue figura aqui não como substância corporal no sentido biológico, mas, é óbvio, como uma
imagem inconsciente, como uma significação. E, como significação, está associado às idéias de vida, de
nascimento, de origem: "sangue do meu sangue", "ter sangue azul nas veias,", "ser de sangue português", "ouvir a
voz do sangue", são expressões que remetem ao ciclo da vida e, em particular, ao nascimento. Nascimento e
alimentação são, por sua vez, significações associadas à imagem materna, e em geral à feminilidade. Só que aqui,
não estamos mais em presença de uma figura de mãe bondosa e aconchegante, e sim de uma figura terrível,
persecutória, alvo de ataques por mordidas e dentadas, e que se vinga na mesma moeda: figura tenebrosa, que
habita o inconsciente de todos nós. Se juntarmos a idéia das fantasias oral-sádicas às angústias que elas
desencadeiam e exprimem, veremos porque a projeção pode ser um mecanismo eficaz para controlá-las: uma
fantasia do tipo "eu mordo o seio e tiro sangue dele", com seu correlato persecutório "a mãe me morde e tira
sangue de mim" ( me mata), pode ser projetada para fora e se converte em "ele morde o seio e tira sangue dele": a
conseqüência é que o seio vai se vingar de "ele" e não de mim. De maneira geral, como nas fobias, o resultado da
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projeção é simultaneamente o alívio da angústia, a constituição de uma figura ameaçadora externa, e o deslo-
camento do medo para esta figura, com a possibilidade de se proteger dela por meio de medidas defensivas, que
incluem o ataque para exterminá-la, a fuga, o isolamento dela numa "jaula" qualquer, o isolamento de quem
projetou num castelo murado, etc. etc.
Afirmei atrás que em épocas de grande tensão social a angústia habitualmente controlada por defesas mais
sofisticadas, pode-se intensificar a ponto de exigir o emprego maciço de defesas arcaicas, como a projeção. Esta
idéia precisa ser um pouco aprimorada, embora me pareça válida. Todas as épocas são de tensão social, maior ou
menor; por isto, as ansiedades psicóticas que existem em todos nós podem suscitar defesas projetivas em larga
escala, e é exatamente isto o que vemos acontecer desde Adão e Eva: o outro, o estrangeiro, o que não fala a nossa
língua, o que tem cor ou religião diferente da nossa, serve muito bem como depositário destas ansiedades, como
incarnação do perigo em potencial. Isto ajuda a manter nítida a diferença entre "nós" e os "outros", e reforça o
sentimento de coesão, reafirmando os atributos definidores da identidade. O que pode ocorrer é que determinadas
situações sociais exacerbem as tensões a tal ponto, que o simples preconceito já não seja suficiente para contê-las.
Assistimos então à formulação de acusações específicas contra tal ou qual grupo social, e muitas vezes ao que os
analistas denominam passagem ao ato, ou seja, neste caso, a realização concreta de agressões contra o grupo em
questão, afim de puni-lo pelo que supostamente fez ou antecipar-se às maldades supostamente em vias de ser
praticadas. Penso que algo assim sucedeu na Baixa Idade Média com relação aos judeus, resultando na formulação
de acusações como as de assassinato ritual, de envenenamento dos poços etc, e culminando com os massacres e
expulsões a que me referi. Resta explicar o principal: por que os judeus? Por que foram eles os alvos privilegiados
destas agressões? Por que elas foram "justificadas" desta forma específica? Por que não se percebeu que as
acusações eram absurdas, e que eles nada tinham a ver com a Peste Negra, com o esboroamento da sociedade
feudal ou com a diminuição da influência da Igreja sobre os corações e as mentes?
A resposta a estas perguntas é complicada, porque os motivos são de várias espécies. Em primeiro lugar,
porque transformações tão profundas suscitam ansiedades ainda mais profundas, e põem em jogo a projeção e as
passagens ao ato. Isto é um fenômeno psíquico que nada tem a ver com os judeus; eles é que se encontravam no
caminho de processos deste gênero. Em segundo lugar, porque a sociedade medieval estava estruturada de forma
a abrigar em si os judeus e ao mesmo tempo a isolá-los, em virtude de processos históricos que os tinham
conduzido até estas regiões e lhes atribuído funções específicas nesta sociedade. Em outros termos, os judeus
estavam ali, e estavam ali de uma certa maneira. Esta "maneira" — terceiro motivo — incluía a ligação
estabelecida entre eles e o assassinato de Cristo, que os tornava alvos fáceis do ódio religioso, e também aspectos
bem mais imediatos, tais como sua situação jurídica relativamente desprotegida, o pequeno número de indivíduos
em cada comunidade, a violência que em geral predominava naqueles tempos, fatores variados de ordem
econômica, etc. Tais circunstâncias tornavam possível e mesmo fácil a passagem do simples preconceito à ação
exterminadora, cuja impunidade quase garantida a tornava ainda mais atraente. Fatores psíquicos e sociais
combinaram-se, deste modo, para transformar o judeu num suporte excelente para a projeção, numa verdadeira
"prancha de Rorschach", nas palavras de dois autores que estudaram psicanalitica-mente o problema do anti-
semitismo (7). De todos estes fatores, o que interessa mais à psicanálise é o imaginário, isto é, aquele que vincula
os judeus ao Diabo; isto não significa que seja o único, nem o mais importante, mas abre o caminho para
compreendermos por que a imagem do judeu tornou-se tão ameaçadora, tão repelente, a ponto que massacrar
judeus pudesse funcionar como válvula de escape para a violência interna e para as angústias psicóticas de tanta
gente.
A bem dizer, nossa interpretação ficou em suspenso. Apenas estabelecemos o significado do sangue como
resultado do sadismo oral, mas, convenhamos, isto é muito pouco, e gostaríamos de aprofundar esta investigação.
Para fazê-lo a contento, necessitamos de mais alguns elementos, e vamos buscá-los na figura do Diabo, com quem
se imaginava que os judeus se tivessem aliado. Talvez Vocês tenham reparado num detalhe aparentemente
insignificante: a superstição segundo a qual as mulheres judias pariam monstros ou animais, e os judeus homens
ficavam menstruados. A referência à menstruação indica que ainda não esgotamos o tema do sangue, já que aqui
ele aparece num novo contexto, mais diretamente ligado à sexualidade genital; e vemos nossa suspeita confirmada,
quando observamos que o suposto parto, de animais por parte das mulheres judias deixa vislumbrar uma outra
idéia: a de que elas têm relações com o Demônio, que seria portanto o pai destes monstros (como no filme O Bebê
de Rosemary, de Roman Polanski).

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Sexo, Pecado e Feiticeiras
No retrato que fizemos há pouco do Demônio, ressaltamos a característica do orgulho, que permitiu
estabelecer a ponte entre Lúcifer e a serpente do Paraíso. Por razões de clareza, foi deixado de lado um outro
aspecto da figura diabólica, que agora podemos abordar: sua íntima relação com a sexualidade. Segundo o Gênesis,
ao comerem do fruto proibido, Adão e Eva descobriram que estavam nus, e sentiram vergonha; em seguida, foram
expulsos do Paraíso. Marilena Chauí, com sua limpidez habitual, esclarece-nos a ligação entre estes dois
acontecimentos:
(7) M. Jahoda e N. Ackerman, Distúrbios Emocionais e Anti-Semitismo, São Paulo, ed, Perspectiva, 1969, p. 96.

"Que é perder o Paraíso? Tornar-se mortal, separar-se de Deus e conhecer a dor (lavrar a terra
estéril, parir no sofrimento). O pecado original (...) é um queda: separar-se de Deus, descobrir a
morte e a dor, conhecer a carência e a falta (...). A queda, o distanciar-se para sempre de Deus, é o
sentimento de um rebaixamento real e do qual a descoberta do sexo como vergonha e dor futura é o
momento privilegiado. Com ele, os humanos descobrem o que é possuir corpo. Corporeidade
significa carência (necessidade de outra coisa para sobreviver), desejo (necessidade de outrem para
viver), limite (percepção de obstáculos) e mortalidade (pois nascer significa que não se é eterno, é ter
começo e fim). O pecado original é originário porque descobre a essência dos humanos: somos seres
finitos. A finitude é a queda.
Separar-se de Deus é descobrir os efeitos de não possuir atributos divinos: eternidade,
infinitude, incorpo-reidade, auto-suficiência e plenitude. Ora, pelo sexo, os humanos não somente
reafirmam sem cessar que são corpóreos e carentes, mas também não cessam de reproduzir seres
finitos. O sexo é o mal porque é perpetuação da finitude. Nele, está inscrita a morte, como diria,
séculos mais tarde Freud. Ou o poeta, respondendo a pergunta: o que é o homem? com a resposta:
'cadáver adiado que procria."(8)
Se o sexo é aquilo que caracteriza o corpo humano, em todos estes sentidos apontados por Marilena, o
essencial aqui é ser ele o emblema visível da finitude: a psicanálise nos mostra que é difícil suportar a idéia de
sermos somente macho ou fêmea, e portanto necessitar de uma fêmea ou de um macho para realizar o ato sexual.
A bissexualidade é uma fantasia universal, e a masturbação não é nada mais do que a tentativa de vencer a
diferença dos sexos, imitando a cópula, mas dispensando a presença de um parceiro. A idéia de sexo está
intimamente ligada à de separação (talvez a palavra sexo venha de sectio, termo latino que significa secção, corte,
separação). É por isto que a história da Queda vincula a separação entre Deus e o homem à descoberta da
sexualidade: elas são duas faces de uma mesma moeda. E o responsável por esta catástrofe é a serpente/Diabo:
por esta razão, a sexualidade será permanentemente associada a ele, quer através da idéia de tentação (por seduzir
Eva, o Diabo instaurou a sexualidade), quer através da figuração do próprio Diabo como um ser extremamente
sensual.

(8) Marilena Chauí, Repressão Sexual, São Paulo, Brasiliense, 1984, p. 86-87. 92

Mas a sexualidade não se inscreve do mesmo jeito nos homens e nas mulheres. Quem sucumbiu à conversa
da serpente foi Eva; é ela, pois, a responsável em última instância pela expulsão do Paraíso. A mulher será por isso
considerada como a sede da luxúria e do pecado, o que é o mesmo que dizer que por ela o Demônio penetra em nossa
vida. Uma vasta literatura, recenseada por Marilena em seu livro, elogia a castidade, promove o controle do corpo
e da mente através da confissão, e de modo geral procura demonstrar as vantagens de o homem se manter afastado
da mulher, ou, se isto for inviável, de fenqüentá-la o mínimo possível. A Igreja procurou — e levou séculos para
conseguir — caracterizar a feminilidade como sinônimo de prazer e este como sinônimo de perdição: mulher,
pecado e Diabo ficaram estreitamente associados, como adversários da salvação da alma cristã. Podemos perceber
que os judeus, ao serem imaginados como aliados do Demônio, estão em boa companhia: de uma forma ou de
outra, um dos conteúdos que serão projetados neles será a sexualidade, concebida como o arquipecado por
excelência. E uma sexualidade demoníaca, ora sedutora, ora repelente: assim, a lenda da "bela judia", de feições
orientais, olhos amendoados e cabelos negros vai fazer sua aparição (em Portugal e na Espanha, ela será
representada pela "moura encantada"); no romance Ivanhoé, de Sir Walter Scott, que se passa na Idade Média, a
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judia Raquel é uma das principais personagens. Quanto à sexualidade repelente, ela vai aparecer na idéia de que os
judeus têm um pênis extraordinariamente grande, ou então mutilado; que menstruam, que suas mulheres
engendram monstros, etc. Reparem como a projeção divide os atributos: para o homem judeu, uma sexualidade
anômala; para a mulher, a sexualidade que engendra o prazer. O que é projetado aqui é a ansiedade de castração
dos cristãos homens, e a ambiguidade inerente à projeção fica particularmente clara: como resultado dela, os
judeus aparecem simultânea e contraditoriamente como hiper-sensuais e como impotentes. O mesmo, aliás, vai
ocorrer com os negros, séculos mais tarde: basta consultar os estereótipos sexuais brasileiros, nos quais a negra é
exaltada por sua sensualidade, enquanto o negro é imaginado como dotado de extraordinária potência fálica. São
maneiras de transfigurar a violência sexual dos fazendeiros coloniais — que se serviam sem a menor cerimônia de
suas escravas — em conseqüência da "tentação irresistível" exercida pela fêmea africana, que assim se aproxima da
Natureza e da animalidade, pois seus impulsos sexuais são imaginados como incontroláveis e insaciáveis.
Estas observações nos são úteis porque ajudam a compreender um fenômeno espantoso: o da substituição,
a partir do século XV, das bruxas aos judeus como aliados típicos do Demônio. Este processo é curiosíssimo, e
merece ser brevemente estudado. A bruxa é a mulher que dorme com o Diabo, e em virtude disto recebe tremendos
poderes maléficos, que utilizará para corromper a Cristandade. Ela é, por assim dizer, a herdeira do judeu, e por
isto é interessante mencioná-la em nosso contexto: veremos, ao final desta aula, que o projetado sobre as
feiticeiras retornará à imagem laica do judeu, nas formas modernas do anti-semitismo. Vamos, então, por partes:
em primeiro lugar, é preciso provar que houve o deslocamento de que estou falando, em conseqüência do qual a
bruxa passa a ser suporte de certas características anteriormente atribuídas ao judeu.
De onde vem a crença na existência das feiticeiras? Ela é antiquíssima e faz parte de muitas culturas,
entre as quais a bíblica. Mas é importante, como faz o historiador Trevor-Hoper, distinguir entre as superstições
populares concernentes às feiticeiras — "lançar encantamento, produzir tempestades, conversar com espíritos,
praticar magia" — e o que se pode chamar de "fobia organizada às bruxas", que assolou a Europa entre 1500 e
1650 (9). A Igreja da Alta Idade Média, preocupada em eliminar os vestígios de paganismo nas populações
bárbaras recém-convertidas, repudiou á crença nas bruxas, declarando-a absurda e sinal de infidelidade ao
Cristianismo. Isto não impediu os europeus de acreditarem nelas, mas tais crenças não chegaram a se organizar
num sistema coerente até aproximadamente o século XV. Podemos sugerir uma hipótese para dar conta disto:
enquanto a sociedade feudal foi relativamente estável, não havia nada que exigisse a crença em forças
desagregadoras e maléficas atuando no mundo cristão, pois não existiam efeitos que tornassem necessário supor
esta causa. O Diabo dava conta do recado por seus próprios meios. Quando começa a era das grandes
transformações, elas são atribuídas de início aos hereges e depois aos judeus; a partir de 1215, a Inquisição se
estrutura para combater as heresias, obtendo nesta empresa um razoável sucesso. É durante o século XIV que se
estabele cerá, num movimento originalmente distinto do da perseguição aos judeus, a realidade da bruxaria, sendo
necessário alterar a doutrina até então vigente a este respeito. A diferença entre ambos é que os judeus são
representados coletivamente como aliados do Diabo, enquanto as bruxas não o são: são raras as acusações de
feitiçaria levantadas no período anterior a 1400, e nelas não figura a idéia de um pacto em larga escala com o
Príncipe das Trevas. Um momento importante no processo pelo qual as feiticeiras são atraídas para a órbita do
Demônio é a acusação de Tolouse, feita em 1335 aos judeus desta cidade: são apontados como feiticeiros, e o
Talmud é designado como manual de bruxaria. É a época em que surge a lenda do envenenamento da água, por
meio de um preparado parecido com as poções e filtros mágicos supostamente empregados pelas feiticeiras em
seus sortilégios.

(9) H. Trevor-Roper, "A Fobia às Bruxas na Europa", em Religião e Sociedade, 12/2 p. 39-63.

O século XIV foi designado, pelo historiador judeu Grayzel, como a "Era do terror". Quando ele termina,
os judeus econtram-se expulsos da Inglaterra e da França, assim como de muitas cidades alemãs, e estão se
dirigindo para a Polônia, para a Tchecoslováquia e em geral para e Europa do leste, onde as condições são mais
hospitaleiras. O vazio por eles deixado, como bodes expiatórios de violência popular e dos temores da Igreja
frente às novas tendências sociais e intelectuais que ameaçam, sua hegemonia, será preenchido pelas feiticeiras;
durante todo o século XV, vai sendo estruturada a doutrina eclesiástica sobre elas, e ao iniciar-se o século XVI a
caça às bruxas converte-se numa verdadeira epidemia, que, com altos e baixos, perdurará até o fim do século
seguinte. Vários detalhes corroboram esta hipótese. O primeiro deles é a idéia do pacto com o Diabo, que assume
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a forma do intercurso sexual com ele: a feiticeira é a mulher que dorme com o Demônio; concentra-se nesta figura
todo o pavor à sexualidade de que falamos antes. Em segundo, a reunião das bruxas é denominada "sabá", numa
paródia sinistra do Shabat judaico. Trata-se de orgias espantosas, às quais as mulheres são transportadas pelos
ares, e onde copulam com Satanás, habitualmente representado como um bode mal-cheiroso; a prova de amor e de
vassalagem consiste em beijá-lo no ânus, somando a imundície ao horror, ou então nos lábios, caso ele tivesse
assumido a forma de um sapo. Em seguida, sentam-se para um banquete, no qual iguarias servidas recordam as
acusações feitas aos judeus: crianças assassinadas, cadáveres desenterrados, ou fatias de nabo, finas, redondas e
brancas como a hóstia. Trevor-Hoper, em cujo artigo recolhi estas informações, menciona um quarto detalhe que
confirma esta hipótese: aos alimentos ingeridos no sabá falta um ingrediente, o sal. Não é preciso, como ele fez,
supor que isto se deva a uma "misteriosa razão demonológica" : basta lembrar que os rituais atribuídos aos judeus,
e nos quais era preciso utilizar sangue, mencionam o consumo de matzot em Pessach, isto é, de pães ázimos,
fabricados sem fermento. O termo alemão para "ázimo" é ungesäuert; insosso (sem sal) se diz ungesalzen, de modo
que é fácil o deslocamento de uma idéia para a outra. E, por fim, a semelhança entre as finalidades da ação dos
judeus e da ação das feiticeiras salta aos olhos: trata-se de recuperar o domínio do mundo para Satanás, destruindo
por dentro a civilização cristã e sua leal zeladora, a Igreja Católica. São seitas secretas, que ameaçam a ordem
social, e por isto é necessário empregar a tortura para que as bruxas confessem seus tenebrosos planos.
O fato é que, no final do século XV, quando os judeus quase desapareceram da Europa Ocidental, da
Alemanha e da Áustria, uma bula papal autoriza a Inquisição a perseguir as bruxas, e o inquisidor alemão
Sprenger escreve o Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), que codifica os critérios para decidir se uma
mulher é ou não uma feiticeira. O livro teve um sucesso retumbante, sendo feitas dezenas de edições dele durante
os dois séculos seguintes. E as fogueiras iluminaram o céu da Europa, tanto do lado dos católicos quanto, logo
depois, do lado dos protestantes. Pois a caça às bruxas guarda estreita relação com a Reforma e com a Contra-
Reforma, acentuando-se no período compreendido entre 1550 e 1650, isto é, exatamente quando as guerras de
religião assolam a Europa, e diminui consideravelmente no século XVIII, quando o mapa religioso do continente
se estabiliza em suas feições atuais.
Muito já se escreveu sobre a caça as bruxas, e não vamos repetir isto hoje. Quero chamar a atenção para
dois aspectos das acusações feitas a elas, que merecem interpretação, e que vamos reencontrar no anti-semitismo
moderno. O primeiro destes aspectos é a ligação da mulher com a sexualidade e desta com o conhecimento; o
segundo é o caráter secreto da ação das bruxas. Com respeito ao primeiro, podemos observar o seguinte: a
concupiscência, que define a feminilidade na teologia cristã medieval, tem íntimas conexões com o saber. Em suas
Confissões, Santo Agostinho descreve sua luta contra a "tentação", que se exprime pela volúpia carnal, pelo prazer
do olhar e do olfato (perfumes), pelo prazer da boa mesa, e pela sede de poder. A estas tentações, acrescenta-se o
desejo de conhecer, a "libido scien-di", e a idéia de que a curiosidade é um pecado, porque leva a querer penetrar
pela razão os mistérios da fé. Eva não foi tentada pela serpente com o argumento de que o fruto proibido lhe
abriria os olhos, "e sereis como Deus, sabendo o Bem e o Mal"? O conhecimento é um objeto de desejo, objeto
aliás intensamente investido, porque proporciona àquele que conhece um grande prazer. Marilena Chauí, ao
examinar os rituais da confissão, mostra como o pecado sexual ''domina todos os outros: em primeiro lugar, porque
qualquer ato se converte num dos pecados capitais toda vez que for praticado com excesso, e o excesso se chama:
luxúria. Em segundo lugar, nas representações dos sete pecados, nas iluminuras medievais e nas pinturas
renascentistas, todos eles trazem .traços de forte sexualização do prazer (...). Nesta perspectiva, o pecado da
palavra (...) torna-se também pecado sexual. A sexualização dos pecados e do corpo significa, simplesmente, a
preocupação cristã com todas as formas da concupiscência, visto ser esta a manifestação da fraqueza da carne, e
conseqüentemente, a preocupação está voltada para a percepção, captura e controle de tudo o que desperte prazer.
E pela via do prazer que a palavra passará a ser um pecado sexual (...) A peculiaridade da palavra (...) acha-se no
fato de toda e qualquer palavra, dependendo de quem a usa, quando e por que a usa, estar investida de prazer
sexual." (9). E a palavra, a linguagem, é a via que conduz ao conhecimento.
Contudo, o conhecimento não é apenas objeto de prazer; é também instrumento de poder. A repressão às
feiticeiras se faz no contexto de um aumento dos controles institucionais sobre o saber, em particular sobre o saber
que concerne ao corpo, isto é, àquilo que faz parte da Medicina. Muitas mulheres acusadas de feitiçaria eram
parteiras, curandeiras de aldeia, etc. Trata-se de práticas de origem popular, que escapavam aos padrões
codificados da ciência de então; suas portadoras serão exterminadas com requintes de crueldade, depois de terem
confessado, sob tortura, que tal conhecimento lhes fora transmitido pelo Diabo como parte do pacto demoníaco. A
ligação entre sexualidade, conhecimento e transgressão aparece aqui com toda a nitidez. É por isto que o pecado
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por excelência é o pecado sexual, e o conhecimento, obtido pela aliança entre o sexo e a palavra, torna-se objeto
de anátema, sua aquisição só podendo ser realizada dentro de moldes rígidos e controlados. A bruxa torna-se
assim o símbolo encarnado de um poder rebelde ao poder, de um reino noturno e misterioso, associado à
feminilidade como potência da desordem, do perigo e da impureza. Ora, segundo Freud, a sexualidade é aquilo que
reprimimos com maior intensidade, precisamente porque está associado às idéias de perigo e de desordem (da
impureza falaremos na próxima aula). A imagem da bruxa polariza, assim, estas conotações, concentrando-as num
lugar que não é o do bom cristão, homem temente a Deus. O mecanismo da divisão em duas partes, que assinalei
no início desta aula, funciona aqui com toda a clareza: se quem possui uma sexualidade desenfreada é a bruxa,
produto da multiplicação da mulher pelo demônio, então tal sexualidade desenfreada não está em mim, porque
está nela. Se a bruxa representa o conhecimento adquirido no pecado, e se eu não sou bruxa, então o meu
conhecimento não é pecaminoso; e aliás, quanto menos conhecimento eu tiver, melhor: bem-aventurados os
pobres de espírito, porque deles é o reino dos Céus.

(9) Marilena Chauí, op. cit. p. 102 e 106.

A íntima associação entre a busca do conhecimento e a sexualidade transparece na expressão freudiana


Wisstrieb, que designa o impulso de conhecer. Diz Freud que os primeiros objetos deste conhecimento são as
questões sexuais: de onde vêm os bebês? Como é feito o corpo dos pais? Por que eu nasci? e outras deste gênero.
Mas o conhecimento também está associado à angústia, tanto porque a própria sexualidade provoca angústia,
quanto porque existe todo um lado agressivo no ato de saber, lado que, na perspectiva de Melanie Klein, entra no
contexto das ansiedades paranóides, já que o objeto atacado no processo de conhecimento se torna por isto mesmo
persecutório. Vale a pena ver isto mais de perto. Num artigo de 1928, ela escreve:
"Conseqüências muito importantes se seguem do fato de que o ego ainda está tão pouco
desenvolvido quando é assaltado pelo surgimento das tendências edipianas e pela incipiente
curiosidade sexual a elas associada. O bebê, ainda não desenvolvido intelectualmente, fica exposto a
uma avalanche de problemas e questões. Uma das queixas mais amargas com que nos defrontamos
no inconsciente é que estas questões, múltiplas e esmagadoras, que tudo indica serem apenas em
parte conscientes, e mesmo quando são conscientes ainda não podem ser expressas em palavras,
permanecem sem resposta (...) Na análise, estas queixas fazem surgir uma extraordinária quantidade
de ódio (...) O sentimento precoce de não saber tem muitas conexões. Une-se com o sentimento de
ser incapaz, impotente, que logo resulta da situação edipiana (...) A precoce conexão entre o impulso
de saber e o sadismo é muito importante para todo o desenvolvimento mental. Este instinto, ativado
pelo advento das tendências edipianas, diz respeito inicialmente ao corpo da mãe, que se supõe ser
cenário de todos os processos e desenvolvimentos sexuais. A criança ainda está dominada pela
posição libidinal sádico-anal, que a impele a desejar se apropriar dos conteúdos do corpo. Assim,
começa a ficar curiosa quanto àquilo que ele contém, ao que se parece etc. Assim, o desejo de se
apossar e a pulsão de conhecer desde muito cedo se vinculam intimamente ente si, e ao mesmo
tempo com o sentimento de culpa provocado pelo incipiente conflito edipiano". (10).
Este texto nos permite avançar um pouco nestas questões tão obscuras. Vemos que o desejo de saber
encontra muitos obstáculos internos, alguns derivados da imaturidade do intelecto infantil, que se coloca questões
que é incapaz de responder, e outros derivados da associação deste desejo com fantasias agressivas e com as
tendências edipianas, isto é, incestuosas e parricidas. O elo entre sexualidade e conhecimento não passa apenas
pelo fato de que a esfera sexual é objeto da curiosidade infantil, nem de que a busca do conhecimento em geral é
alimentada pela libido sexual. Melanie Klein mostra que o objeto desta curiosidade — o ventre materno — é alvo
simultaneamente do desejo de saber e do desejo de "se apropriar" que ela vincula à posição sádico-anal. Esta idéia,
aparentemente tão estranha, liga-se à noção psicanalítica segundo a qual os processos psíquicos têm como
protótipos os mecanismos corporais; os processos psíquícos que visam ao controle e a dominação do objeto têm sua
matriz no controle do esfíncter anal, isto é, o aprendizado de que não se pode defecar a qualquer momento nem
em qualquer lugar. E isto é de extrema importância, tanto na vida psíquica de cada um de nós, quanto para
compreender a bruxaria e o anti-semitismo. Permitam-me explicar por que.
Ao falarmos das acusações de sangue formuladas contra os judeus durante a Baixa Idade Média,
mencionei as fantasias orais de devoração que me parecem sustentá-las. Elas consistem em imagens de sucção e
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de mordida, e certamente não desapareceram com a "descoberta" de que os judeus não se alimentam de sangue.
Como costuma acontecer, o suporte da projeção foi simplesmente colocado em outro lugar: surgiram lendas
relativa aos vampiros, a mais conhecida delas sendo a do Conde Drácula. Os vampiros são supostamente
originários da longínqua Transilvânia, outra imagem do perigo interno-externo; interno porque fica na Europa,
externo porque fica longe da Europa Ocidental. Mas não vamos entrar na análise do Conde Drácula; quero assinalar
outra coisa. O que caracteriza a devoração é que, para incorporar o alimento, ele precisa ser destruído: suga-se,
mastiga-se, digere-se, e os alimentos perdem sua forma, sua consistência, ao serem assimilados pelo organismo.
Paralelamente, a agressão canibal é visível, no sentido de que deixa traços, exatamente porque o objeto assim
atacado desaparece enquanto tal. O Conde Drácula pode ser facilmente identificado por seus longos caninos, pela
capa preta, e pelo excêntrico hábito de dormir num caixão. Visibilidade do agressor e destruição do objeto
desejado/agredido se combinam para conferir ao sadismo oral um tipo de violência que se caracteriza por ser
nítida e aberta. Este atributo de transparência a torna menos angustiante do que a violência própria ao sadismo
anal. Inicialmente, o esquema da analidade é o da expulsão: as fezes são violentamente atiradas para fora do
corpo, e as fantasias correspondentes são as de sujar, explodir, esparramar, etc. Mas, com o advento do controle
esfincteriano, aparece a possibilidade da retenção das fezes, que permanecem intactas e invisíveis. Ao se
converterem em instrumentos da agressividade infantil, estas fezes invisíveis serão imaginadas como formas de
controlar o objeto no qual se introduzem, assim como são controladas no intestino da criança. Surgem assim
fantasias de ataques secretos, sorrateiros, que já não se efetuam abertamente, mas cujo modo de ação é a
infiltração, a impregnação, o envenenamento, etc. Estas fantasias se associam a outras, de origem sádico-uretral,
nas quais a urina é imaginada como um líquido corrosivo, que queima (é quente), inunda ou afoga o objeto. A urina
queima ou corrói por fora, enquanto as fezes envenenadas destroem o objeto por dentro. Tais fantasias suscitam o
terror de uma retaliação equivalente, isto é, o medo de ser invadido por inimigos invisíveis, misteriosos, que agem
na sombra e através de meios aparentemente inofensivos, tanto mais nefastos quanto mais inocente for sua
aparência.

(10) Melanie Klein, "Os Estágios precoces do Conflito de Édipo" (1928), in Contribuições à Psicanálise, São Paulo, Metre Jou, 1969, p.
255ss.

Penso que começa a ficar clara a relação entre tudo isto e o tema das bruxas, do Diabo e dos judeus. As
bruxas formam uma sociedade secreta; qualquer mulher, em virtude de sua sexualidade ser por essência insaciável,
pode realizar o pacto com o Demônio e, em troca dos favores sexuais, converter-se em feiticeira. Certos detalhes
do sabá das bruxas sugerem uma atmosfera rica em fantasias anais: o beijo no ânus do Diabo, o odor
nauseabundo do bode, a idéia do segredo da assembléia, o vôo pelo ar (que é um gás), a idéia de impureza
associada ao sangue menstrual e aos animais utilizados nos ritos satânicos (cobras, morcegos, escorpiões,
aranhas, sapos). As receitas das poções utilizadas pelas bruxas são invariavelmente nojentas e repugnantes,
empregando toda uma série de partes dos animais comuns impróprias para o consumo humano. Mais do que a
associação óbvia com as fezes, importa ressaltar o caráter de segredo e o caráter de controle de que se revestem os
atos de bruxaria, que evidenciam seu parentesco com as fantasias da esfera anal. Por "controle", entendo tanto o
desígnio de subjugar alguém (por exemplo, por meio de um filtro amoroso), quanto o projeto mais amplo de
dominar o mundo, razão pela qual o Diabo tem interesse no pacto com as bruxas. E a dimensão do segredo fica
patente, se pensarmos que um dos truques mais eficazes do Demônio consiste em fazer-nos acreditar que ele não
existe; assim, pode agir tranqüilamente nas sombras. Os inquisidores retiraram daí um dos critérios para descobrir
quem eram os amigos do Demo: precisamente, aqueles que se obstinavam em negar sua existência!
Se reunirmos estes elementos aos que foram sendo enumerados até aqui, poderemos formar uma idéia
mais clara do que significou a perseguição às feiticeiras, e começar a nos encaminhar para a conclusão da aula de
hoje. Vamos resumir rapidamente o nosso, percurso, que deu várias voltas até este momento. Partimos da idéia dê
que o outro não é apenas um modelo identificatório, mas também um possível adversário; estudamos certas noções
psicanalíticas acerca da divisão — também chamada de "cisão" — e da projeção. A projeção nos apareceu como
um mecanismo de defesa que consiste em atribuir ao outro aquilo que, em nós, não pode ser tolerado, porque é
temido como perigoso. Ao projetarmos o "mau" no outro, o definimos como ameaçador, e a nós mesmos como
bons: o atributo ou insígnia que serve para distinguir os dois campos, um deles o possuindo e o outro não, passa a

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ser este "mau". Vimos em seguida como o judeu foi, aos poucos, sendo identificado como o portador desta
"maldade", a partir das convulsões sociais e ideológicas que se seguiram às Cruzadas ; para bem compreender quão
novo era este papel social, demos uma rápida vista de olhos às imagens anteriores que os não-judeus haviam se
formado acerca deles. O veículo pelo qual se decantou esta nova imagem do judeu foi a idéia de sua aliança com o
Diabo; por isto, fomos investigar como se construiu esta figura. O personagem tem estreitas relações com o
orgulho e com a sexualidade; vimos então como, por trás da "aliança", estavam presentes fantasias arcaicas de
caráter oral, e de que modo associá-las aos judeus as tornava úteis como defesa contra seu reconhecimento por
parte de quem as projeta-va neles: é o momento das acusações ligadas ao sangue. Mas o sangue, por sua vez, está
vinculado à feminilidade, através da menstruação. Partindo de certas superstições relativas aos judeus, pudemos
entrever que estes se converteram em depositários de outro tipo de "mal": o ligado à sexualidade. Contudo, fatores
históricos tornaram mais adequado projetar este tipo de angústia sobre outro segmento social: as mulheres do
campo, através de cuja perseguição, na qualidade de bruxas, a sociedade européia do Renascimento e da Reforma
vai se livrar de suas fantasias sexuais. É evidente que este processo se realiza por meio de mecanismos de controle
social, e funciona não apenas como método para defender-se da sexualidade, mas também para atingir outros fins,
de natureza política e econômica: não entramos neste aspecto, porém é oportuno recordá-lo. De modo amplo, a
caça às bruxas é o ensaio geral de tendências que vão caracterizar a época moderna, e que autores como M.
Foucault estudaram bastante: ten-dencias disciplinadoras, coercitivas, que ampliam em escala gigantesca os
procedimentos de controle do corpo e da alma. A psicanálise discerne neste tipo de movimento uma significação
específica, a saber, a proteção contra angústias associadas à esfera anal; e o que expliquei há pouco dá uma idéia
acerca do que isto quer dizer. Mais uma vez, a psicanálise não pretende com esta hipótese esgotar o sentido de tais
fenômenos; apenas sublinha uma faceta deles, a faceta inconsciente, que é a da sua esfera de investigação.

O Século XVIII
Penso que esta recapitulação sumária nos ajuda a colocar em perspectiva o que foi dito até agora. Vamos,
então, prosseguir. Ao final do século XVII, a fúria com que os europeus se dedicavam a queimar feiticeiras
decresce bruscamente. Vários fatores são responsáveis por isto, entre os quais podemos citar, sem qualquer
preocupação sistemática, a influência das idéias racionalistas e científicas, as necessidades econômicas ligadas à
manufatura, o fim das guerras de religião, o surgimento de novos suportes para a projeção das ansiedades
psicóticas, as modificações na estrutura social, a política das regiões nas quais a caça às bruxas foi mais intensa
(Escócia, França e Alemanha), etc. etc. Bem sei que esta lista se assemelha ao "samba do crioulo doido", mas
vamos deixá-la assim. O que importa é ter presente que, por volta de 1700, as bruxas começam a desaparecer na
Europa. Como não é provável que elas se tenham recolhido ao Inferno, temos o direito de perguntar se esta brusca
diminuição dos processos por feitiçaria indica a diminuição paralela das angústias nelas projetadas, ou se
simplesmente se encontraram novos suportes para tal projeção.
A resposta a esta pergunta é complexa: na verdade, aconteceram ambas as coisas. Correspondendo à
crescente diversificação das sociedades européias, a categoria da bruxa, ao se dissolver, não foi substituída por
uma nova categoria unitária. Certos aspectos dela confluíram para a "possuída"; certos outros encontraram novos
depositários: entre eles, como veremos, os judeus.
O Diabo não desapareceu da cena das idéias, durante o século XVIII: ele simplesmente mudou de
domicílio. O século XVIII costuma ser descrito como o "Século das Luzes", o século do racionalismo, da filosofia,
dos Enciclopedistas, etc. Isto é verdadeiro; mas convém lembrar que a filosofia das luzes combatia as "Trevas", e
as trevas consistiam precisamente na religião (católica e protestante) e no absolutismo monárquico. Segundo os
filósofos do século XVIII, em especial Voltaire, a responsabilidade por estas três pragas da Humanidade incumbia
à "infame", isto é, à Igreja Católica, que originou também os protestantes e sustentava o poder dos monarcas.
Aquela se vê, assim, atacada como nunca o fora anteriormente, já que o Iluminismo era mais do que uma mera
heresia: não se tratava de atingir o Céu por um caminho diferente do da Igreja, e sim de negar a existência do Céu,
e portanto a utilidade da religião, e portanto a validade da própria existência de uma organização como a Igreja.
Ora, as classes sociais interessadas na permanência do que se costuma chamar "Antigo Regime" não iriam aceitar
passivamente tal ameaça a sua hegemonia, nem a Igreja, depois de ser o pilar da cultura européia durante mil e
tantos anos, iria confessar que tudo não passara de um equívoco, e se retirar sob vaias do palco da História. O
pensamento conservador vai articular-se durante todo o século XVIII em torno da defesa da fé, e neste processo o
Diabo não poderia ser dispensado. Torna-se, porém, ridículo e inócuo acusar os pensadores anti-religiosos de

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serem instrumentos do Demônio: a luta contra eles tinha de ser travada no terreno das idéias, por meio de
argumentos baseados de uma forma ou de outra na Razão. O Diabo, como disse, vai mudar de endereço: seu campo
de atividades já não será a sociedade como um todo, mas as freiras enclausuradas. É assim que surge a figura da
"possessão demoníaca", que recolhe alguns aspectos anteriormente ligados à feitiçaria.
Entre estes aspectos, sobressai o da sexualidade desenfreada e insaciável. Mas a possuída já não é uma
bruxa: esta concentra em si um certo poder, e com ela se lida por meio de tortura e da fogueira. Já a possuída não
fez nenhum pacto com o Demônio; este penetrou em sua alma sem consentimento, e portanto ela não é uma aliada,
mas uma vítima do Tinhoso. Trata-se então de expulsá-lo deste corpo, que ele ocupa indevidamente: esta é a tarefa
do exorcista, o qual, por meio de encantamentos e injunções, procura fazer o Diabo abandonar a possuída. Vocês se
lembram de filmes como O Exorcista, Madre Joana dos Anjos, A Monja de Monza, e outros do gênero: a possuída
é geralmente uma freira, vivendo supostamente sob o voto de castidade, e isto já a diferencia, socialmente falando,
das camponesas acusadas de bruxaria. São em geral mulheres nobres e razoavelmente instruídas; mas o
importante é que, como nota Monique Schneider em seu belo livro De l'Exorcisme à la Psychanalyse (Paris, Retz,
1979), a possuída é apenas um campo de combate entre duas figuras masculinas: o Diabo e o exorcista. Qualquer
idéia de poder, e por esta via de ameaça, está ausente desta configuração; verifica-se uma neutralização do femini-
no, a mulher é agora concebida como um receptáculo sem energia própria: receptáculo do demônio ou receptáculo
da palavra do exorcista, ela se vê privada de toda fonte própria de atividade.
Mas, neste caso, para onde migra a fantasia de uma sexualidade transbordante e perigosa? A resposta é:
sobretudo para o corpo dos meninos. O século XVIII "descobre" a sexualidade infantil através do horror súbito à
masturbação; Michel Foucault examinou este processo com brilho inigualável no primeiro volume de sua História
da Sexualidade, que se intitula A Vontade de Saber. Para nós, o que interessa é que as idéias de poder e de
sexualidade, até aqui condensadas na figura da bruxa, vão se separar: a mulher, temida e perseguida nos séculos
anteriores porque sua sexualidade era fonte de um poder imaginado como maléfico, passa a ser vista como uma
"pobre criatura". A sucessora da possuída, nesta linhagem, será a histérica: seus tormentos serão considerados pela
medicina do séxulo XIX como "imaginários", até que Freud decida escutá-los e, com a interpretação da histeria,
invente a psicanálise.
A idéia de um "contra-poder", que no final da Idade Média fora associada aos judeus e nos séculos XVI e
XVII às bruxas — em parte porque já não havia judeus na Europa Ocidental —, vai precisar de um outro suporte.
No século XVIII, este suporte será o "materialismo iluminista", a filosofia das Luzes, encarada — com razão, aliás
— como o principal antagonista do sistema vigente. Não vamos entrar nos detalhes deste tópico, apenas indicando
que o que acabo de dizer é de uma extrema abstração: há muitas mediações aqui, mas este não é nosso tema. E
não é nosso tema porque não concerne (ainda) aos judeus, os quais, nos trezentos anos que vão de 1500 a 1800,
estão completamente ausentes da cena onde se desenvolvem tais processos. A maioria deles vive na Europa
Oriental e no Império Otomano; existem judeus no que hoje é a Alemanha e no Império dos Habsburgo (Áustria,
Hungria, Tchecoslováquia, Romênia etc.); mas são pouco numerosos, e levam uma existência miserável e obscura;
em todo caso, sem qualquer relevância para os fenômenos que carcterizam a Idade Moderna. E, por isto mesmo,
foram deixados em paz: salvo um ou outro episódio de violência, uma vez encerrados em seus guetos nos meados
do século XVI — pois o gueto, ao contrário do que se imagina, não é uma instituição medieval — os judeus da
Europa Central e da Itália se eclipsam como atores da História universal. É claro que continuam a existir e a
produzir sua cultura; apenas, ela é tão insular que não tem efeito algum sobre o pensamento europeu. Nestas
condições, não poderiam ser um suporte adequado para a projeção de fantasias terroríficas: eram demasiado
poucos, demasiado estranhos e demasiado indefesos para que alguém pudesse se incomodar com eles.

Advento do Anti-Semitismo Moderno


O século XVIII terminou, como todos sabem, com o mais formidável cataclisma político ocorrido no
planeta desde a queda do Império Romano: a Revolução Francesa, logo exportada para o resto da Europa pelos
exércitos de Napoleão. Apesar da derrota militar da França em Waterloo (1814) e da Restauração imposta pelo
Congresso de Viena, os efeitos da Revolução não puderam ser apagados, e durante todo o século XIX se farão
sentir pelo continente afora. Acompanhando os processos econômicos que mencionamos na primeira aula, e que se
vinculam à revolução industrial e à expansão do modo de produção capitalista, as idéias liberais sintetizadas na
divisa "Liberdade, Igualdade e Fraternidade" irão se difundir em todos os países, esbarrando em cada um deles
com ferozes resistências por parte dos poderes dominantes. O século XIX presencia o surgimento de exigências
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políticas como a autonomia dos povos, a limitação constitucional do poder dos soberanos, a representação
parlamentar, a liberdade de opinião e de expressão, enfim, a materialização daquilo que na concepção liberal define
a cidadania. Tais exigências são sistematicamente repelidas pelas forças conservadoras, e só muito lentamente
estas vão cedendo terreno à oposição liberal. Grosso modo, é na segunda metade do século que o liberalismo (muito
atenuado, é verdade) se implanta na Alemanha e na Áustria, e, no Império Russo, as primeiras e tímidas concessões
ao ideário liberal só se concretizarão em 1905. Outro fator importante a ser considerado é o surgimento do
socialismo, em suas diversas modalidades, paralelamente à organização paulatina dos trabalhadores industriais.
Para o pensamento reacionário, liberalismo e socialismo são duas cabeças de um mesmo monstro; e, como nesta
perspectiva é impossível imaginar que a sociedade tenha sua dinâmica própria, será necessário encontrar
"explicações" para os fenômenos e idéias que surgem por toda a Europa. O pensamento conservador e sua variante
contra-revolucionária não demorarão a encontrar a "causa" destas ameaças, a cada década mais claras, à
manutenção do "status quo": ela será localizada nos judeus.
Por que nos judeus? Porque uma das medidas mais prenhes de conseqüências tomadas pelo governo
revolucionário francês foi a Emancipação dos judeus, Emancipação imposta por Napoleão a todos os territórios por
ele conquistados, e sistematicamente revogada após a restauração do absolutismo em cada um destes territórios.
Daí a imaginar que a Revolução havia sido obra dos judeus, e que estes, embora momentaneamente derrotados
por ela, estavam tramando novos e terríveis golpes contra o Trono e o Altar, o passo era pequeno: e este passo foi
dado rapidamente, resultando na constituição da forma moderna do anti-semitismo. Vimos anteriormente que as
épocas de grandes convulsões sociais são propícias à projeção maciça das ansiedades mais arcaicas sobre
determinados grupos, que funcionam como verdadeiros bodes expiatórios do terror inspirado por tais transforma-
ções. Isto é particularmente claro quando o pensamento hegemônico não dispõe de meios para tematizar a
transformação como algo inerente à própria sociedade, ou mesmo à natureza humana. Nestes casos, a origem da
mudança tem que ser personificada numa figura visível, figura que precisa ter certas características, a fim de tornar
plausível a projeção sobre ela do mal radical. Para o pensamento reacionário do século XIX, a sociedade não tem
espessura própria: ela é pensada sob as metáforas da família e do corpo, imagens que se caracterizam pela idéia de
um funcionamento harmonioso sob a direção de um Pai, de uma Cabeça, etc. Nesta perspectiva, o conflito só pode
ser compreendido como resultante de fatores acidentais e exógenos; doenças causadas por miasmas, germes ou
bactérias no caso do corpo, más influências no caso da família. Surge a imagem de um agente heterogêneo ao
organismo ou à família, mas que possui um traço que o define: ele está presente como um "corpo estranho", e sua
forma de ação é insidiosa, sorrateira, muito lenta. Quando por fim se percebem os efeitos de sua presença, já é
quase impossível identificá-lo e desalojá-lo, porque ele se confunde com as células sadias ou com os
"verdadeiros" membros da família. Em termos do corpo humano, estas idéias são expressas no imaginário
oitocentista pela doença da tuberculose, assim como posteriormente o câncer e talvez a AIDS se prestarão ao
mesmo papel. Em termos da sociedade, as imagens da perseguição interna serão figuradas exemplarmente pelo
judeu.
Eu disse atrás que a dissolução da categoria da bruxa não foi sucedida pela formação de outra categoria
equivalente, mas pela refração de seus atributos sobre vários suportes. A possuída e o materialista foram dois
destes suportes durante o século XVIII; mas não há medida comum entre o terror provocado pela feiticeira e a
repulsa suscitada por estes dois "filhotes" dela. Tal repulsa foi muito menos intensa; o século XVIII é um século
otimista, e mesmo o conservadorismo tem um tom civilizado. É difícil entrar neste campo, sobretudo sem examinar
documentos e textos capazes de elucidar tais dimensões. Convém, em todo caso, que nos demos conta do seguinte:
os medos da elite dominante não são necessariamente os medos da grande massa. Em sua obra La Peur en
Occident, o historiador francês Jean Delumeau mostra como "o grande número" temia a fome, a peste e o frio,
enquanto as elites tinham outros motivos para se aterrorizar. O Diabo, embora presente no imaginário popular, é
sobretudo uma figura do "medo das elites": são as classes dirigentes que estão convencidas, a partir do século
XIV, que o avanço dos turcos, as fomes, as epidemias, as revoltas camponesas, as heresias e depois a Reforma
protestante são outros tantos sinais da presença do Demônio, cujos instrumentos são sucessivamente os judeus e as
feiticeiras, contra quem se desencadeiam então perseguições paroxísticas, proporcionais às angústias que nelas se
aliviam. Delumeau levanta uma hipótese, que me parece razoável, para dar conta da diminuição generalizada do
medo durante o século XVIII. Resumindo, diz ele que os camponeses sentiram-se mais seguros quando o Estado e
a Igreja, mais bem organizados, os "enquadraram" de forma mais consistente, surgindo canais razoavelmente
eficazes para garantir à população uma proteção militar, judiciária é moral apropriada: isto teria feito com que
diminuíssem os temores referentes ao poder maléfico do sobrenatural. Quanto à cultura das elites, a filosofia
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racionalista empreende a crítica da imaginação, vista como a fonte do erro e da ilusão, enquanto os progressos da
ciência sugerem que o Universo obedece a leis racionais e previsíveis. Além disto, os horrores antecipados não se
realizaram: o mundo não acabou, os turcos recuaram, foi-se instalando uma certa convivência entre católicos e
protestantes, a ambigüidade e fragilidade que haviam caracterizado a cultura humanista se condensam em novas
certezas. "A civilização já não precisa temer o assalto de forças incontroladas. Satanás não foi negado, mas aos
poucos foi sendo dominado. Nada há de extraordinário, por conseguinte, no fato de o medo do Juízo Final e dos
turcos, os processos de feitiçaria, as guerras de Religião e o anti-judaísmo terem se esgotado ao mesmo tempo, na
segunda metade do século XVII: havia sido feito um diagnóstico parcialmente errôneo, e o medo fora maior do
que a ameaça. A ofensiva geral do INIMIGO prelúdio do final dos tempos, não se verificara, e ninguém mais
podia dizer quando ela teria lugar. A cristandade, que se imaginara sitiada, se desmobilizava." (11).
É verdade. Mas também é verdade que a Revolução Francesa ultrapassou em muito as piores expectativas
da classe dominante, sobretudo se esta estava, como diz Delumeau, "desmobilizada".

(1) Jean Delumeau, La Peur en Occident, Paris, Fayard, 1978, p. 540.

Tomada de surpresa pelo Mal radical, ela não repetirá o erro: a ideologia reacionária formulará teorias que lhe
permitam detectar a tempo a presença do mal, e tomar medidas capazes de proteger a ela e a sociedade que se
confia a seus cuidados da ação nefasta do inimigo comum. Para tanto, é preciso localizá-lo, e eu dizia que tal
localização será operada sobre o judeu. Para compreender por que precisamente sobre o judeu, é necessário ter em
mente os fatores históricos que já conhecemos — a Emancipação, o capitalismo e a conseqüente afluên-cia dos
judeus às cidades, nas quais aos poucos vão ganhando lugar de destaque na vida econômica e intelectual. Mas
também é preciso tomar em conta o tipo de ansiedade desencadeado na aristocracia, no clero e na realeza, pela
revolução de 1789: trata-se de angústias extremamente arcaicas, referentes às fases mais primitivas da evolução
psíquica, e que dizem respeito por um lado à desintegração, ao despedaçamento e à fragmentação, e por outro a
infiltração, ao ataque por inimigos interno-externos, ao efeito cumulativo de processo tanto mais perni-ciosos
quanto menos perceptíveis. Numa palavra são ansiedades esquizóides e paranóides, e a defesa contra estas
ansiedades vai ser feita por meio da construção de uma "teoria" que apresenta todas as características de uma
formação delirante: o anti-semitismo seculari-zado.
O judeu é escolhido como alvo desta construção delirante porque, historicamente, estava associado ao
Demônio, através de todos os laços que pudemos discernir; porque social e economicamente, as novas oportunidades
abertas pelo capitalismo o beneficiaram; porque, culturalmente, a assimilação da civilização ocidental o dota de
instrumentos para participar dela, e mesmo para criticá-la; porque, religiosamente, a maioria dos judeus continua a
não se converter; e porque, em virtude de todos estes fatores, inicia-se um processo de assimilação que tende a
reduzir sua diferença frente à sociedade não-judaica, isto é, tende a torná-lo exteriormente, e em certa medida
interiormente, idêntico aos não-judeus. Este processo o converte num alvo particularmente apropriado para conter
ansiedades paranoides, já que, ao diminuir a diferença que tornava fácil sua identificação, as imagens arcaicas
ligadas à infiltração e ao controle "por dentro" podem ser projetadas sobre ele sem muita dificuldade. E a lógica do
delírio se instala: através de procedimentos os mais escusos, com grande astúcia, diz-se os judeus se difundiram por
toda a Europa; agem na sombra a fim de corromper os Estados que, ingenuamente, os abrigaram; acabarão por
destruir a unidade nacional e religiosa dos povos em cujo seio habitam, envenenando-os com sua peçonha, debili-
tando sua juventude, dominando sua cultura, controlando suas riquezas, e assim por diante. E, exatamente como
ocorrera como o Diabo e as feiticeiras, apontar o absurdo de tais crenças só poderia significar que o incrédulo
estava mancomunado com os judeus, e que se empenhava em negar suas maldades a fim de melhor encobri-las.

Duas Jóias do Pensamento Reacionário


A reação fará do anti-semitismo, portanto, seu cavalo de batalha. É especialmente na Europa Central e na
Rússia que se verificará o emprego desta arma, precisamente porque são os países nos quais as reivindicações
burguesas e posteriormente operárias ameaçam a estabilidade do regime absolutista. O caso da Rússia é o mais
nítido, porque é ali que vigora o regime mais retrógrado da Europa, e porque é ali que vivem três quartas partes
dos judeus europeus: no final do século XVIII, com as partilhas da Polônia, os judeus que ali habitavam desde as

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migrações a que nos referimos se tornam súditos do czar. Vamos encerrar esta aula, assim, examinando
brevemente um texto de Dostoyevski, muito revelador do que estou denominando "anti-semitismo secularizado",
isto é, que traduz em linguagem econômica e política os mesmos conteúdos que antes se expressavam num
vocabulário religioso, acrescentando a eles mais alguns de sua própria lavra. Este texto prefigura o dos Protocolos
dos Sábios de Sion, último tópico da aula de hoje.
Além de escrever os romances e novelas que o tornaram célebre, Dostoyevski foi um ativo publicista e
tomou parte nos debates que agitaram a Rússia na época em que viveu. O gênio literário de Dostoyevski é
indiscutível, mas ele não o impediu de ser, além de extremamente reacionário em suas opiniões políticas, um anti-
semita virulento e prolífico. Não é, aliás, o único grande artista a propagar o ódio contra minorias étnicas: Wagner,
Louis Céline, Ezra Pound foram anti-semitas notórios, e muitos autores norte-americanos ostentavam com orgulho
suas convicções racistas. No caso de Dostoyevski, como fica claro pela leitura do livro de David Goldstein,
Dostoyevski et les Juifs, o anti-semitismo percorre sua obra de uma ponta a outra, exprimindo-se tanto nos relatos
de ficção quanto em artigos de jornal e na correspondência. O judeu é quase invariavelmente designado em seus
textos pela forma pejorativa jidy, quando o termo russo que significa judeu é ievréi. A tradução mais aproximada
para a palavra "jid" seria, com perdão da expressão, "judeuzinho de merda". Escrevendo de uma estação de águas
na Alemanha, onde fora se tratar em 1879, ao conselheiro Pobiedónostsev, Dostoyevski se queixa de que a
Alemanha está se "judaizando" rapidamente; seu correspondente — uma figura sinistra, que desempenhou junto ao
czar Alexandre III um papel semelhante ao de Rasputin na corte de Nicolau II, só que de modo muito mais
eficiente, porque era menos obviamente louco — seu correspondente, então, lhe responde com estas linhas, que nos
fazem sentir o clima do que denominei anti-semitismo secularizado:
"O que o senhor diz dos jidy (judeuzinhos...) se justifica plenamente. Eles se apoderaram de tudo,
minaram tudo, mas têm a seu favor o esprit du siècle. São a causa primeira do movimento
revolucionário-social e do regicídio, dominam a imprensa, controlam o mercado do dinheiro, as
massas populares caíram sob suas garras financeiras, comandam os destinos da ciência contemporâ-
nea, que busca situar-se fora do cristianismo. Além disso, à menor alusão a esta questão, ouve-se um
concerto de protestos para defender os judeus, em nome da pretensa civilização e daquilo a que
chamam tolerância, quando na verdade se trata de indiferença religiosa. Assim como na Romênia e
na Serbia, ninguém ousa aqui dizer que os judeus controlam tudo. Até nossa imprensa se judaíza..."
(12)
È difícil ser mais explícito. Segundo Pobiedónostsev, é plenamente correto afirmar-se que a Alemanha está
se "judaizando" , assim como a Romênia, a Serbia, e a própria Rússia. A reação européia reiterou copiosamente
esta idéia: sugiram livros com títulos como La France Juive, A Alemanha sob o poder do Judeus, etc. Este
processo é a contrapartida da assimilação, vista pelo prisma do anti-semitismo: como os Estados relaxaram sua
vigilância e permitiram o acesso dos judeus à vida social, política e cultural, agora vêem-se às voltas com a
contaminação de suas respectivas sociedades pelo "espírito judaico". Reparem no termo em francês. Como se
trata de um argumento reacionário, os fenômenos sociais não são dotados de nenhuma especi-fidade: a
contaminação se realiza por meio do "espírito", e não através de mecanismos sociais. Estes aparecem, é verdade,
mas de uma forma muito curiosa: são espaços passivos, que os judeus ocupam num movimento de expansão
ininterrupta. A idéia central deste texto é a de que os judeus são seres gelatinosos, que se insinuam por toda parte
("minaram tudo") a fim de corromper o que estiver ao seu alcance. E vem o elenco das acusações, encabeçado
pela mais grave delas:"são a causa primeira do movimento revoluvionário-social e do regicídio", regicídio que
alude obviamente à decapitação de Luís XVI. A Revolução é o meio através do qual os judeus tentaram apoderar-
se das nações européias; não o conseguiram, mas instituíram o exemplo da guilhotina e esta coisa tenebrosa que é
o "movimento revolucioná-rio-social", ou seja, todas as reivindicações que visam diminuir o poder absoluto,
venham de onde vierem e seja qual for o conteúdo delas.

(12) Citado por David Goldstein, Dostoyevski et les Juifs, Paris, Gallimard Collection Idées, 1976, p. 119.

A Revolução se realiza à luz do dia, já que é difícil disfarçar o assassinato de um rei. É por terem sido
contidos pelas "forças vivas" das nações que os judeus mudaram de tática: agora, vão investir contra todos os
setores da sociedade civil. A lista começa com a imprensa, pois ela é decisiva para formar a opinião pública. O
século XIX presencia o surgimento do jornal diário, cuja leitura, dizia Hegel, é a "prece matutina" do europeu
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moderno. O papel da imprensa na vida contemporânea dificilmente pode ser exagerado; o fato de a maioria dos
jornais serem de orientação ao menos não-reacionária já é prova suficiente de que estão a serviço da Revolução, e
portanto só podem ser controlados por judeus. A referência ao mercado do dinheiro é clássica; pouco importa que
as grandes indústrias e bancos do século XIX pertençam, em sua esmagadora maioria, a não-judeus: basta um
Rothschild para "provar" que os judeus dominavam o mundo através do ouro, empregado para difundir o
materialismo, a corrupção moral, a devassidão sexual, o alcoolismo, etc. A referência às "grandes massas" é
obrigatória no discurso demagógico, posto que a razão de ser do absolutismo consiste na proteção dos pequenos
contra os grandes, e principalmente contra o perigo judaico. Já a ciência do século XIX, impregnada de
positivismo, só se explica pelo "comando" judaico, que se serve dela para "minar" as bases da religiosidade
popular e da crenças das elites. Reparem como, através da referência à imprensa e à ciência, retornam as imagens
arcaicas que tornam perigoso o conhecimento, por causa de sua associação com fantasias sexuais e agressivas.
Estas aparecem aqui de modo mais difuso, mas a conotação delas é a mesma. Controlando magicamente a
produção e circulação das mercadorias através dos bancos e do mercado financeiro, controlando magicamente a
produção e circulação de idéias através da imprensa e da atividade científica, controlando magicamente as massas
populares através das "garras financeiras", falta apenas aos judeus tomarem o poder político, o que, no entanto,
estão prestes a fazer, através do "movimento revolucionário-social". Frente a esta verdadeira tarântula (a imagem
é de Dostoyevki, num artigo sobre Disraeli), a única maneira de se defender é cercar fileiras em torno do Trono e
do Altar, cujo defensor por excelência é o imperador de todas as Rússias.
No texto de Dostoyevski — um longo artigo publicado em 1876, e estudado detalhadamente por
Goldstein no capítulo 7 de seu livro — ressaltam idéias ainda mais esdrúxulas. A carta de Pobiedó-nostsev revela
(creio que a idéia não soará mais tão estranha) o que denominamos ansiedades paranoides: elas são por assim
dizer vistas pelo avesso, através da sua projeção sobre os judeus, aqui determinada como acusação. Os judeus
estão invadindo tudo, controlando tudo, e as idéias de "civilização" e "tolerância" são suas armas mais perigosas,
já que paralisam o legítimo direito de defesa das nações corroídas por este câncer. O remédio para isto se lê nas
entrelinhas da carta: só pode ser a expulsão dos judeus, ou o seu confinamento, ou o seu extermínio. O que o
ministro diz nas entrelinhas é expresso por Dostoyevski com toda a clareza. Leiamos:
"Outra coisa: os jidy (judeuzinhos ...) se tornam proprietários de terras, e se grita de todos os lados
que eles esgotam o solo da Rússia, que o judeuzinho, tendo colocado todo o seu capital na compra
de uma chácara, se apressa — a fim de recuperar com juros o seu capital — em extrair todas as
possibilidades e recursos da terra que ele adquiriu. Mas tente dizer alguma coisa contra isso, e o
ensurdecerão de clamores sobre a violação do princípio da liberdade econômica e da igualdade dos
direitos cívicos. Mas o que vem fazer aqui a igualdade dos direitos, quando o que existe em primeiro
lugar é antes de tudo um Estado dentro do Estado, manifesto e talmúdico, quando o que há não é
apenas esgotamento do solo, mas ainda exploração ameaçadora do nosso muji-que, o qual,
emancipado dos proprietários nobres, cairá agora, rapidamente, por comunas inteiras, numa servidão
bem pior e sob senhores bem piores — sob novas aves de rapina, que são os mesmos que já sugaram
o sangue dos mujiques da Rússia ocidental, os mesmos que agora não apenas adquirem propriedades
e camponeses, mas que já começaram também comprar a opinião liberal, e continuam a fazê-lo com
grande sucesso! Por que tudo isto entre nós? Por que tanta indecisão e tantos desacordos para
qualquer decisão? Em minha opinião, não é em absoluto por incapacidade de nossa parte ou porque
somos ineptos para agir; isto vem de nossa persistente ignorância acerca da Rússia, de sua essência e
de sua individualidade, de seu sentido e de seu espírito..."(13)
A pena de Dostoyevski torna fascinante este amontoado de tolices, que nos interessa aqui porque fecha o
círculo aberto com as acusações de sangue. A fantasia de base, se podemos chamá-la assim, é a do canibalismo
oral, porém modificada e adaptada às novas circunstâncias. Dostoyevski não acusa os judeus de matarem crianças
para usar seu sangue em matzot de Pessach; o crime deles é bem mais grave. Estão sugando o solo da Rússia, da
Grande Mãe Rússia (isto não é uma fantasia Kleiniana, e sim um dos epítetos da pátria russa); a agricultura, isto é,
o contato com o corpo materno, tinha sido proibida — sabiamente, devemos supor — aos judeus. Com o
liberalismo que eles mesmos inspiraram (doutrinas ocidentais da liberdade e da igualdade), agora lhes é lícito
comprarem terras, com o capital que amealharam explorando o povo. Mas, como o judeu vê na terra apenas um
meio de se enriquecer, não tem com ela nenhum laço afetivo; utiliza sua avidez tradicional para recuperar com
juros o seu capital, e isto o quanto antes: não respeita os ciclos vitais, despreza o repouso necessário à terra,
desobedece ao ritmo das estações e das chuvas. Aqui se delineia outro tema do anti-semitismo: o judeu artificial,
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urbano, comerciante, por oposição ao "povo local", agrário e unido à terra-mãe por laços quase místicos. Aqui
funciona a oposição entre Natureza e Cultura, e o judeu está completamente do lado da segunda: perdeu o vínculo
com a Natureza, e, quando se aproxima dela, a corrompe. Isto é interessante, porque representa a contrapartida de
ideias que situam o judeu inteiramente do lado da Natureza, como as concepções hitleristas acerca da raça e do
sangue. Talvez por ser um ente absolutamente artificial, desnaturado, o judeu precisa sugar o sangue dos mujiques
(reiteração do tema do vampirismo, muito difundido entre os eslavos). Vemos que a metáfora nada tem de inocente;
ela simplesmente transpõe, para o registro moderno — o judeu como capitalista — a velha temática do assassinato
ritual.

(13) Dostoyevski, Oeuvres, Bibliothèque de la Pléiade, tomo VII, p. 580-581; citado por Goldstein, Dostoyevski et les Juifs, p. 206-207, em
tradução própria.

Passemos sobre a idéia de que, para os mujiques, é melhor serem servos dos boiardos do que dos judeus; vamos
reencontrar a acusação de que os judeus dominam a imprensa, através da corrupção da opinião liberal, e que por
este motivo quem denunciar as perversidades que cometem será "ensurdecido" por clamores em nome da liberdade
econômica e cívica. Aqui o argumento é mais sutil: os judeus, na verdade, não deveriam ser protegidos pela
imprensa, nem gozar de direitos civis e econômicos, porque constituem um Estado dentro do Estado, "manifesto e
talmúdico". Isto quer dizer o seguinte: os judeus se regem pelo Talmud, e não pelas leis do país em que vivem; por
isto, não podem se prevalecer delas como os demais cidadãos. Esta é outra idéia clássica do anti-semitismo, e
funciona como complemento ao tema da infiltração; na verdade, é o seu fundamento. É porque os judeus
constituem um corpo estranho à nação que os abriga, e permanecem como tais, que podem insinuar-se em todos os
setores da vida nacional sem deixar de serem o que são: a conseqüência disto é que a Alemanha, a Rússia, etc, se
judaízam, em vez de se produzir uma simbiose entre judeus e alemães ou judeus e russos, ou, o que seria melhor
ainda, em vez de se produzir a germanização/russificação dos judeus. Dostoyevski ignora tudo sobre a
assimilação, cujos traços encontramos na carta de Kafka a seu pai, estudada na primeira aula. Mas isto não muda
nada: como estamos em plena paranóia, tudo o que parecer desmentir o delírio será convertido em prova do caráter
multiforme do perseguidor.
Os judeus são, assim, acusados de coisas absolutamente contraditórias: ora são capitalistas, ora
revolucionários; ora são um Estado dentro de um Estado, ora mergulham nas profundezas da alma nacional... Isto
demonstra que este discurso está estruturado como uma fantasia, já que, como veremos na próxima vez, o
inconsciente não conhece o princípio de contradição. E podemos acrescentar mais um elemento à resposta
sugerida para a questão: por que os judeus são o alvo predileto deste pensamento conservador? Vemos que, como
grupo, eles são suficientemente diversos entre si para poderem servir de receptáculo às mais variadas projeções, o
que não acontece, por exemplo, com os negros, mais homogêneos como grupo e portanto menos vulneráveis a
preconceitos que se afaste demais desta homogeneidade. O judeu, por estar em toda parte, por ser ora louro, ora
moreno, ora rico, obra pobre, ora inteligente, ora ignorante, presta-se à função de continente para todos os
predicados, já que sempre se pode encontrar algum que corresponda à descrição mais conveniente no momento.
E é precisamente este traço do grupo judaico que vai estar na base do texto conhecido como Protocolos
dos Sábios de Sion, que só não podemos qualificar de delirante porque se trata de uma falsificação deliberada e
comprovada. A esta hora da noite, já não podemos entrar na análise deste texto; remeto Vocês a um pequeno
ensaio de Anatol Rosenfeld, publicado pela Editora Perspectiva na Coleção Elos, e que intitula Mistificações
Literárias: "Os Protocolos dos Sábios de Sião". Ali, Vocês poderão encontrar excertos deste livro, que inspirou os
piores massacres de toda a multissecular história dos judeus: o extermínio sistemático promovido pelos nazistas.
Trata-se de um suposto plano judaico para dominar o mundo, ''apresentado" no ano de 1897 por Theodor Herzl,
em Basiléia, aos delegados do Primeiro Congresso Sionista. Encontram-se reunidos nestes "Protocolos" todos os
elementos da demonologia religiosa e leiga, com seus correlatos fantas-máticos facilmente identificáveis. O
estudo de Rosenfeld traça a história do texto, que é a paródia de uma sátira escrita em 1867 contra Napoleão III, e
que a polícia secreta do czar lhe apresentou, na tentativa de obter dele autorização para perseguir revolucionários
russos, imaginariamente a serviço dos Sábios de Sion.
Bem, por hoje vamos deixar as coisas por aqui. Na próxima aula, retomaremos nosso tema a partir de
outras questões, em particular esta que ficou esboçada ao falarmos do artigo de Dostoyevski: o funcionamento do
processo primário. Veremos então que a psicanálise também foi considerada como uma "ciência judaica", isto é,
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como mais um instrumento a serviço dos tenebrosos propósitos judaicos de alcançar o domínio mundial por meio
da corrupção da alma dos povos. E procuraremos responder à pergunta que nos acompanha, em surdina, desde o
início destas palestras: afinal, há ou não há na psicanálise algo que pudesse ser considerado "judaico"?

ACORDE MAIOR: PROCESSO PRIMÁRIO E INTERPRETAÇÃO (4a. aula)


A esta altura do nosso trajeto, creio estar claro o motivo pelo qual escolhi, para título deste curso, uma
metáfora musical: o que temos feito nestes encontros faz pensar na modalidade de composição conhecida como
"tema e variações".
O assunto proposto era, como Vocês se lembram, Freud e o Judaísmo; logo nos demos conta de que, na verdade,
este era apenas um aspecto de um tema mais amplo, o das relações recíprocas entre o judaísmo e a psicanálise. Na
primeira aula, mostrei que este tema comportava cinco tópicos, entrelaçados porém não idênticos: o que Freud
pensava do judaísmo, a hipotética influência da condição judaica de Freud sobre as suas teorias, uma possível
influência do judaísmo em geral sobre o modo de pensar psicanalítico, a interpretação analítica de certas crenças e
práticas comuns entre os judeus, e a interpretação analítica da identidade judaica. Procurei tratar destes tópicos
não um a um, já que eles estão articulados entre si, mas dando a cada um deles, sucessivamente, a função de nota
tônica, com o que os outros, ou alguns outros, iam entrando na qualidade de modulações subordinadas. Assim, a
primeira aula abordou o tema do "judaísmo de Freud" (tópico 1); a segunda centrou-se na questão da identidade
(tópico 5, com modulação para o tópico 4, no item sobre a circuncisão); e a terceira aplicou a noção de fantasias
paranóides à imagem invertida do judeu produzida pelo anti-semitismo (tópico 5, com reversão do tema da
identidade através do conceito de projeção). Resta-nos, para terminar de percorrer as questões levantadas na aula
inicial, tratar dos tópicos 2 e 3: é o que faremos hoje. Convém, de saída, deixar claro que todas estas observações
não fazem mais do que aflorar os vastíssimos problemas que se colocam quando tentamos precisar o que a
psicanálise pode ter em comum com o judaísmo, ou o que ela pode dizer sobre o judaísmo; meu objetivo é apenas
enumerar alguns deles, sugerir formas de colocá-los mais adequadamente, e, aqui e ali, aventar alguma hipótese
menos batida; suscitar em Vocês, enfim, certas interrogações, e também o desejo de ir adiante, de estudar mais
tanto a psicanálise como o judaísmo.
Isso posto, vamos ao assunto de hoje. Eu o formularia assim: existe algo de comum entre a psicanálise e o
judaísmo? E, se existir, o que é? Cabe lembrar que, como o judaísmo foi inventado antes da psicanálise, o "algo
comum" é habitualmente entendido como algum fator judaico que permeia ou fundamenta a psicanálise, e não
como algo psicanalítico que impregna ou origina o judaísmo. Daí a idéia de que "há algo judaico na psicanálise";
e, como Freud era judeu, esta idéia se ramifica em duas direções. O judaísmo de Freud — isto é, a maneira pela
qual Freud vivia, consciente e inconscientemente, sua condição judaica — poderia ser uma das fontes da
psicanálise; de maneira mais sutil, poderia haver o que chamei de influência difusa do judaísmo sobre a psicanálise.
Neste caso, o verdadeiro inventor dela seria o judaísmo, e Freud aparece mais como um canal, um veículo, através
do qual "o judaísmo" teria produzido um de seus frutos mais estranhos e mais fecundos: a psicanálise. É o que, na
primeira aula, eu procurava ilustrar com a metáfora do gênero e da espécie: o gênero seria o judaísmo, e suas
espécies a psicanálise, o Talmud, a Cabala, o sionismo, etc. Em suma, a psicanálise seria, aberta ou veladamente,
uma "ciência judaica".

Uma "Ciência Judaica'"?


Ora, esta idéia foi levantada pela primeira vez pelos adversários da psicanálise e do judaísmo, o que
equivale a dizer que ela se inscreve no contexto do anti-semitismo moderno, do qual falamos na outra vez. O que,
na psicanálise, se prestaria a "confirmar" as fantasias paranóides que subjazem às doutrinas anti-semitas? Em
primeiro lugar, a importância por ela conferida à sexualidade, que Freud colocava no centro da vida psíquica. O
anti-semitismo é, entre outras coisas, uma construção defensiva contra ansiedades psicóticas, que transparecem
pelo avesso nas fantasias que organizam seu discsur-so. Neste contexto, a sexualidade é percebida como uma força
estranha e terrível, como uma fonte de loucura. Quando Freud afirma seu caráter universalmente constituinte,
quando postula que a vida psíquica se estrutura em torno do complexo de Édipo, quando interpreta as formações
culturais como expressão das pulsões e defesa contra elas, isto só pode provocar escândalo e repúdio. A maneira
anti-semita de dar vazão ao escândalo e ao repúdio suscitados pelas teorias freudianas é, obviamente, vinculá-las à
pessoa do seu autor e por esta via ao "espírito" do judaísmo, espírito concebido como maléfico por natureza,
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agindo nas sombras para destruir a civilização ocidental e para dominar o mundo. A psicanálise seria mais um dos
recursos verdadeiramente inesgotáveis criados pelos judeus para realizar seus planos sinistros; recurso
particularmente eficaz e terrível, porque atua diretamente sobre a alma, porque mina a solidez da instituição
reputada como "célula da sociedade" — a família —, porque difunde a libertinagem e a devassidão, porque destrói
a confiança na autoridade, porque mostra que a sexualidade está em toda parte, mesmo naquilo que a civilização
ocidental considera santo e sublime. Em suma, a psicanálise seria um instrumento diabólico de desorganização, e
tanto mais perigoso quanto se apresenta como uma terapia benéfica e como uma teoria científica, portanto
verdadeira: sob a aparência do cordeiro, oculta-se um lobo. Será preciso, assim, desmascarar a psicanálise,
revelando sua verdadeira essência: a de um produto do "espírito judaico".
Há uma coincidência histórica curiosa: a psicanálise surge na década de 1890, pouco depois da eclosão do
anti-semitismo como doutrina organizada. Entendo por "doutrina organizada" a formulação das idéias antijudaicas
de maneira sistemática, fundamentada não somente no ódio em geral, mas em teorias específicas acerca da
sociedade, da história e do que significa ser homem. O anti-semitismo é também uma intepretação dos fenômenos
sociais, e, como toda interpretação, necessita para se formar de um certo número de "ingredientes". No caso, trata-
se de ingredientes econômicos — as crises que começam abalar periodicamente o capitalismo a partir dos anos 1870
— sociais —, a insatisfação popular, o acesso dos judeus à classe média e a ocupações novas, etc. — políticos — a
ameaça pressentida pelas classes dominantes na nascente organização dos dominados, sob a forma de sindicatos e
de partidos socialistas —, ideológicos e científicos — como a teoria das raças, que pressupõe avanços na biologia
e sua interpretação reacionária. Tudo isso ficou claro, espero, ao analisarmos os textos de Dostoyevski e de
Pobiedónostsev. Ora, um destes ingredientes será precisamente a idéia de que os judeus parecem fracos mas são na
verdade fortes, sua força residindo na dispersão por todos os países e na organização secreta. Vimos na outra aula
que o anti-semitismo necessita, por sua própria lógica, caracterizar os judeus como maximamente diferentes; a
diferença máxima será descoberta na idéia da raça, que estabelece um abismo intransponível entre o judeu e o não-
judeu. Com efeito, a raça é um dado natural, portanto impossível de ser alterado. E vai haver um esforço para
naturalizar o judeu, isto é, para defini-lo por características naturais e não por traços culturais: de onde a
insistência em que o corpo do judeu é disforme, seu nariz é adunco, seu cabelo crespo, sua pele azeitonada, etc.
A sexualidade é também um elemento corporal: existem hormônios, órgãos genitais, etc. A psicanálise
mostra, porém, que o sexo não se limita ao corpo, que inclui uma face psíquica, e que é isto que o torna tão
importante; a reação conservadora contra a psicanálise procurará, sistematicamente, desmentir esta idéia,
reduzindo novamente o sexo a um dado natural e questionando sua influência sobre o psíquico, a qual só ocorreria
em casos patológicos. Um destes casos seria o de Sigmund Freud, o qual teria colocado a sexualidade no centro
da psique humana porque, em sua própria psique, ela ocupava um lugar desproporcional. E isto é generalizado
para os judeus: pois não são eles lúbricos e sensuais por natureza, tendo vindo deste Oriente lânguido e erotizado
cuja expressão por excelência é o harém? A psicanálise seria assim uma "ciência judaica", porque transpõe para
toda a Humanidade uma idéia absurda se aplicada ao homem em geral, mas congruente com a baixeza judaica: a
de que o sexo governa nossas ações e nossos pensamentos. Isto certamente vale para o judeu, diria o anti-semita, e
é prova de sua inferioridade moral e biológica (pois o aproxima dos animais, que funcionam por instinto); mas
não para o homem ocidental, ariano, cristão, etc.
Freud propõe suas teorias fundamentais entre 1895 e 1905; é a época em que o que denominei "anti-
semitisipo como doutrina organizada" começa a ter efeitos concretos. Se é verdade que épocas de grande tensão
suscitam conflitos de identidade — porque os parâmetros identificatórios do "bom" se embaralham — e
ansiedades psicóticas — porque os eventos são tidos como ameaças à estrutura e à sobrevivência do grupo social,
parecendo realizar as fantasias de morte, de confusão e de fragmentação mais primitivas presentes em cada um de
nós — se isto é verdade, não é de admirar que os últimos trinta anos do século XIX tenham engendrado, entre
outras pérolas, o anti-semitismo como doutrina organizada. Já vimos porque os judeus se prestavam de modo
privilegiado para encarnar o "perigo", tornando-o visível, e portanto capaz de ser contido por medidas adequadas.
Tais "medidas" variaram de país para país. Na Rússia, a partir de 1880, voltam as perseguições e massacres —
coisa extraordinária, pois, com exceção da revolta de Chmielnicki na Polônia do século XVII, a Idade Moderna
não se caracterizou pelo massacre dos judeus; até 1700, as bruxas foram alvo deste privilégio, e no século XVIII
os grandes medos diminuíram bastante. O resultado daquelas perseguições foi a emigração em larga escala dos
judeus para as Américas e para a Europa Ocidental, além do surgimento do sionismo em suas várias modalidades.
A França encena o Caso Dreyfus, cujo sentido mais amplo consistia em, através dos judeus, atingir as instituições
republicanas e criar um clima favorável à restauração do prestígio tanto da monarquia quanto da Igreja. Na
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Alemanha, a partir de 1933, o nazismo começa por estabelecer as medidas de evitação características da neurose
obsessiva — distintivos, proibição de contatos de qualquer espécie (sobretudo sexual) entre judeus e cristãos, etc.
— para desembocar na paranóia indisfarçada, a serviço da qual vai ser posta a racionalidade administrativa e
militar: o resultado são os campos de concentração e a destruição do judaísmo na Europa Central e Oriental, que
fora seu território por excelência nos últimos quatro ou cinco séculos.
Neste contexto, a idéia de uma influência do judaísmo sobre a psicanálise significa simplesmente que a
depravação intrínseca do judeu se estende a ela; depravação a ser entendida como sexual, e que "dá conta" de por
que Freud viu na sexualidade o motor do psiquismo. Por vezes, este tema aparece de modo mais discreto, sem
mencionar o judaísmo: por exemplo, atribui-se à "atmosfera lasciva" de Viena o fato de a psicanálise ter sido
criada nesta cidade. O absurdo desta noção, e seu caráter nitidamente projetivo, aparecem de imediato quando
verificamos que tal acusação é levantada em Paris, que, como todo sabemos, é um santuário da abstinência sexual
e da disciplina monástica! Freud interpretava estas insinuações como deslocamentos do anti-semitismo, e uma vez
escreveu a seu discípulo Abraham: "Esteja certo de que, se eu me chamasse Oberhuber, a resistência às minhas
idéias seria bem menor". Deveríamos traduzir: se eu me chamasse Dr. João da Silva...
Outro fator que, a meu ver, favoreceu a incriminação da psicanálise como estando a serviço da
conspiração judaica internacional foi a ênfase colocada pela terapia freudiana na idéia de mudança. A análise
serve para modificar o equilíbrio existente na psique de quem se submete a ela, equilíbrio que merece ser
modificado porque é causa de sofrimento, e porque na verdade representa uma mutilação. Ora, a mudança em si
mesma aterroriza o pensamento reacionário, que não dispõe de instrumentos para pensá-la a não ser como vinda
de fora, e portanto como prenúncio de catástrofes terríveis. Não é preciso ser marxista para admitir que o que
existe pode deixar de existir: a noção de uma potencialidade de transformação do que é remonta às épocas mais
antigas da história humana. Uma das imagens desta potencialidade de transformação é fornecida pelo Tempo: por
estar imerso no Tempo, o que existe nasce e desaparece, ou, como o figura plasticamente a mitologia grega, o
Tempo (Chrónos) é um deus que devora seus próprios filhos. Vejam que atribuir ao Tempo o fundamento da
modificação do que é implica naturalizar este fundamento: não é preciso agir para que algo mude, "basta estar
vivo para morrer", como diz o provérbio. Os chineses representam o Tempo como uma serpente que morde seu
próprio rabo: imagem simultaneamente orientada (o futuro vem depois do passado) e circular (pois o Tempo é
visto como cíclico). Ora, a serpente é também associada ao Diabo, como princípio de transformação: a história da
Queda fala da mudança mais importante jamais ocorrida ao ser humano, e isso num contexto de culpa cuja
responsabilidade última incumbe ao Demônio. Vimos que as significações Diabo, sexualidade e judaísmo foram
associadas estreitamente ao longo da História. Por isto, não é de admirar que, quando o pensamento reacionário
tenta incriminar os judeus por tudo o que se move sobre a Terra, o simbolismo da serpente volte à tona: segundo o
autor dos Protocolos dos Sábios de Sion, a Serpente Simbólica representa para os judeus "o nosso próprio povo"
(1). Pouco importa que, entre os símbolos judaicos, a serpente jamais figure, nem mesmo como mero ornamento;
na lógica do delírio, isto só prova ser caráter extraordinariamente importante, tão importante que precisa ser
mantido em segredo. O judeu é visto assim como portador de um princípio de não-estabilidade, e, com sua
finalidade de transformação, a psicanálise encarna este princípio de maneira exemplar: mais uma razão para
detestá-la, e para considerá-la digna filha do "monstro" judaico.

Em busca da Identidade Perdida


Vocês percebem que insistir na influência que o judaísmo poderia ter tido sobre a psicanálise não é
exatamente inocente... Por outro lado , a esta interpretação de origem anti-semita logo veio a se opor uma outra, de
inspiração filo-semita. Aqui convém distinguir duas vertentes: a do judeus tout-court e a dos psicanalistas; Vocês
verão logo por que. Comecemos pela versão "dos judeus".

(1) Citado por Anatol Rosenfeld, Mistificações Literárias: Os Protocolos dos Sábios de Sião, p. 27.

Numa aula anterior, falei das conseqüências da Emancipação e da assimilação sobre a coerência das
identificações que asseguravam ao judeu uma razoável estabilidade no plano narcísico. A presença de ideais
identificatórios não judaicos e valorizados como excelentes, que a inserção social mais fluida acarretada por tais
processos sociais tornou possível, contribui a principio para desorganizar a estrutura da identidade judaica.
Posteriormente, o êxito de muitos judeus nos mais variados setores da vida econômica, social, intelectual e artística
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veio a fornecer um instrumento de reparação narcísica extremamente eficaz : a ideia de que , embora eu não seja
um grande homem, meu povo os produz com abundância inigualável. A caricatura disto é a preocupação com a
freqüência de judeus entre os laureados com o Prêmio Nobel; de modo menos grotesco, saber-se pertecente ao
mesmo povo que deu ao mundo Freud, Einstein, Marx, Sabin e tantos outros personagens eminentes traz um
reasseguramento enorme e fortalece sobremaneira a auto-estima. O mesmo ocorre com a imagem de Israel: seus
sucessos militares, científicos, sociais etc, são causa de prazer narcísico para todos os judeus, ainda que se possa
discordar individualmente de vários aspectos da ação israelense no plano internacional. O curioso é que um
mesmo fenômeno se verifica em relação a Israel e aos "grandes vultos" de origem judaica : eles funcionam como
instrumentos de reafirmação narcísica exatamente para pessoas que jamais irão morar em Israel e que, na maior
parte das vezes, pouco compreendem das teorias ou dos desempenhos artísticos ligados a estes "grandes vultos".
A meu ver, isto é suficiente para mostrar que não estamos diante de um fato racional, mas de um fenômeno cujas
raízes são em larga medida inconscientes. O que importa, no caso da psicanálise, é que Freud tenha sido judeu:
que tenha inventado a psicanálise precisamente porque "as coisas que tornavam felizes os velhos já não nos
proporcionam um refúgio autêntico", como escreve a Martha, é algo passado sob completo silêncio. O prestígio
de Freud passa assim a aureolar qualquer judeu, assim como o prestígio de Einstein, de Isaac Stern ou de Arthur
Rubinstein, por meio de uma operação que consiste em apagar o vestígio da diferença: se o judaísmo tradicional
fosse capaz de satisfazê-los, estes indivíduos teriam sido talvez grandes rabinos ou cabalistas notáveis, mas
certamente não músicos ou cientistas "ocidentais".
Algo semelhante ocorre com o sionismo. Originalmente, ele foi um enérgico protesto contra a vida na
Diáspora e contra tudo o que a caracterizava: a humilhação, o medo, as restrições impostas pelos não-judeus —
mas também contra o judaísmo tradicional. Os pioneiros e ideólogos do sionismo rejeitaram o ídiche,
abandonaram as práticas religiosas, mudaram de nome, valorizaram a época bíblica em detrimento dos períodos
posteriores da história judaica (períodos nos quais, é bom ter em mente, se constituiu o judaísmo como civilização
específica), trocaram o valor máximo do judaísmo tradicional (o estudo da Torá) pelo trabalho manual e pela
organização política e militar. Foram estigmatizados como semi-hereges, e na verdade corria um vento de
transgressão pelos meios sionistas, a começar pela idéia de restabelecer o Estado judaico sem esperar pelo
Messias. A adoção da Estrela de David como emblema do movimento — ela figura na bandeira adotada em
Basiléia, por ocasião do Primeiro Congresso Sionista — confirma esta tendência: foram os partidários do Falso
Messias Shabetai Tzvi que, no século XVII, a tomaram como símbolo da redenção. Num artigo extremamente
interessante (2), Geshon Scho-lem mostra que a Estrela de David não era de início uma insígnia judaica, mas
condensa duas tradições originalmente independentes uma da outra: a referente ao hexagrama ou estrela de seis
pontas, e a que concerne ao Escudo de David. O símbolo por excelência dos judeus, nos tempos antigos e
medievais, era a Menorá, ou candelabro de sete braços; o hexagrama, como o pentagrama, era um símbolo mágico
ligado aos "selos" e às fórmulas encantatórias para dominar os espíritos ("selo de Salomão"). Já o Escudo de
David, sem forma precisa, tinha o sentido de "salvação frente ao perigo", resultando da interpretação de certas
passagens bíblicas nas quais David escapa ao ódio de Saul. Somente no século XIV, o espanhol David ben
Yehuda identifica o Escudo de David com a estrela de seis pontas. Datam dos séculos XV e XVI alguns exemplos
de utilização deste símbolo como emblema da comunidade judaica, mas apenas a partir de meados do século XVII
é que seu uso de torna freqüente, e mesmo assim restrito às comunidades de Praga e Viena. Segundo Scholem, foi
no século XIX, e em virtude da assimilação, que os judeus desejaram encontrar um equivalente judaico da cruz,
capaz de fornecer uma insígnia para a religião judaica: data daí o emprego em larga escala da "Magén David". As
conotações do símbolo convergem, portanto, para o anti-tradicional, e por isto ele se tornou tão conveniente para o
sionismo, já que combinava numa mesma figura a iconoclastia, a idéia do reino de David, a associação do futuro e
do passado (o futuro representando a inversão do passado recente e o retorno a um passado remoto) e a idéia de
redenção, simultaneamente ligada ao Messias "ben David" — filho de David — e a recusa de esperá-lo,
substituindo-se a ele.

(2) "Das Davischild: Geschichte eines Symbols", in Judaica, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1963, vol. 106 da "Bibliothek Suhrkamp".

Podemos ver, assim, que o sionismo tinha sentidos que tornavam difícil aos judeus da Diáspora —
assimilados ou ortodoxos — identificarem-se com as idéias nele representadas. Aliás, a própria imagem do Halutz
se opõe, ponto por ponto, à da Galut: não só porque um se vincula a Israel e a outra denota a Diáspora, mas porque

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cada uma delas faz um uso contrário da mesma idéia: a de "estar descoberto". Halutz significa, em hebraico,
"descalço", "com os pés nus"; Galut quer dizer, literalmente, "condição de quem está descoberto". O que une as
duas significações é portanto a idéia de nudez, mas com sentidos diametralmente opostos. A nudez dos pés do
Halutz conota contato com a terra, virilidade, força, adesão à Natureza, recusa da moral sexual tradicional, recusa
do código ritual religioso; a nudez do "estar a descoberto" implícita na idéia de Galut (neutralizada na sua tradução
como "Diáspora", termo grego que significa apenas "dispersão") tem o valor de desproteção, de fragilidade, de ser
vulnerável, e portanto de precisar buscar na religião e na comunidade o remédio para estes males. O pioneiro
kibutziano — Halutz — é assim o contrário do judeu galútico, pelo qual, claramente, só sente desprezo. Pois,
curiosamente, é esta figura que representa tudo o que ele não é que o judeu moderno gosta de apontar como prova
de que os judeus são bons, viris, criativos, etc. Neste sentido, o Estado de Israel funciona, paralelamente aos
"grandes vultos", como veículo de reafirmação da identidade judaica, porém de uma identidade por procuração,
que recobre precisamente o vazio deixado pela desaparição do valor identi-ficatório ligado aos referenciais que a
cultura judaica produziu ao longo dos dois mil anos transcorridos entre a Guerra dos Macabeus e o século XIX.
Para que isto possa ocorrer, é evidentemente necessário reinterpretar a emergência do sionismo e a atividade dos
grandes vultos como decorrência linear e direta de judaísmo em geral, apagando a crítica ao judaísmo tradicional
contida tanto na idéia sionista quanto na mera existência dos "grandes judeus", cujas façanhas intelectuais,
científicas e artísticas vieram no lugar da (e não por causa da) reverência à tradição.

O Intelecto Livre de Preconceitos...


E Freud? Vimos na primeira aula algo que parece contradizer o que acabo de afirmar: na carta a Bnei
Brit, ele diz textualmente que "devo à minha natureza judaica as duas qualidades que chegaram a me ser
indispensáveis no longo caminho de minha existência": e estas qualidades são, como vimos, a tenacidade e a
independência de julgamento, ou, nos termos de Freud, o uso sem preconceitos do intelecto. E, ainda mais
claramente, ele escreve em 1918 a seu discípulo Pfister: "Por que nenhum destes homens piedosos inventou a
psicanálise? Por que se teve de esperar por um judeu absolutamente agnóstico?". Mas, reparando bem, estas
declarações de Freud não invalidam meu argumento; antes o comprovam. Entre as qualidades "judaicas" que o
favoreceram, Freud não enumera a adesão aos 613 mandamentos, e a Pfister diz com todas as letras que era
preciso ser ateu para inventar a psicanálise. Mas não ateu de qualquer jeito: ateu que abandonou o judaísmo, já que
a independência de julgamento e a tenacidade não são, segundo Freud, atributos dos agnósticos, e sim dos judeus.
Isto requer um exame mais pormenorizado; vamos a ele.
Curiosamente, e embora como pessoa se sentisse muito judeu (lembram-se do valor afetivo do judaísmo na
carta à Bnei Brit), Freud não gostava de associar publicamente a psicanálise ao judaísmo. Certa ou erradamente,
parecia-lhe que a resistência a suas descobertas só aumentaria, trazendo mesmo o risco de desaparição da
psicanálise, se ela fosse considerada um produto do espírito judaico. E não vejo nisto nenhum sentimento de
desconforto ou de covardia por parte de Freud: o que dissemos sobre o anti-semitismo da época justifica esta
precaução. Além disso, para Freud a psicanálise é uma ciência, e a ciência não tem pátria nem origem étnica: ela
representa o esforço máximo de que.é capaz o homem, no sentido de se desprender de sua particularidade e de
atingir uma verdade universal. A idéia de uma "ciência judaica" ou de uma "ciência alemã" o deixa perplexo, e,
mais do que isto, irritado: pensar assim significa, segunda ele, nada compreender do que é a ciência, e degradá-la à
categoria da ilusão, na qual alojava a filosofia e a religião. Este era seu pensamento; podemos discordar dele, em
especial da idéia de que a ciência é neutra e despida de interesses particulares ou subjetivos; mas isto em nada
altera o fato de que, segundo Freud, a psicanálise é científica, e portanto não cabe designá-la nem como judaica
nem como não-judaica: seria como perguntar o que é mais azul, uma banana ou uma laranja.

(3) Freud a Abraham, 20.7.1908, in Freud-Abraham: Correspondance 1907-1926, Paris, Gallimard, 1965, p. 52. Para uma discussão mais
profunda deste tópico e da relação Freud-Jung, ver R. Mezan, Freud, Pensador da Cultura, parte I, cap. 4, e parte III, caps. 1 e 5, além do
ensaio de divulgação Freud: A Conquista do Proibido, Brasiliense, vol. 5 da coleção "Encanto Radical".

Por outro lado, para Freud a ciência é uma atividade racional que concerne ao invisível, e se insere na
linhagem inaugurada por Moisés. Além disso, "uma secreta familiaridade, uma mesma arquitetura psíquica" o
unem aos judeus; e isto pode ser interpretado — como o foi, no contexto da polêmica com Carl Jung — no sentido
de que seria mais fácil para um judeu do que para um cristão compreender a psicanálise, "porque nos falta o
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elemento místico", diz Freud (3). Isto é absolutamente falso: os judeus tiveram seu misticismo, e mesmo várias
correntes místicas; Freud, descendente de hassidim e casado com a neta de Isaac Bernays, estava plenamente a par
do assunto. Penso que a "falta do elemento místico" alude à mesma coisa nomeada na carta à Bnei Brit como
"ausência dos preconceitos que toldam a outros o uso do seu intelecto". Novamente, se Freud quisesse dizer com
isto que os judeus são menos preconceituosos do que os demais, teríamos todo o direito de discordar dele. Os
judeus têm seus preconceitos, não só contra os não-judeus, mas ainda (e talvez sobretudo) contra os judeus
oriundos de outras terras: sefaraditas e asquenazitas não se beijam muito, os alemães vêem com desprezo os
"poilishe", que por sua vez designam os primeiros como "iékes"... Séculos de perseguições e um pouco de paranóia
atávica os fazem ver anti-semitas em toda parte, por exemplo a cada vez que alguém critica um ato ou uma
instituição de Israel. Freqüentemente, tal atitude é imediatamente taxada de anti-sionista, e o anti-sionismo
corresponderia a uma variante particularmente nefasta do anti-semitismo, justamente porque não é declarada: ora,
que diferença existe entre tal pensamento e a idéia reacionária de que os judeus são perigosíssimos exatamente
porque parecem frágeis, a fim de melhor ocultar sua ação secreta? É conhecida a história do jovem judeu que,
tendo sido reprovado num concurso para locutor de rádio, explica o motivo disto à sua namorada: "E - e -eram - t -
t - to - todos - an - an - antissem - em - emitas".
O que Freud parece implicar, com a idéia de que o judaísmo permite um uso do intelecto menos toldado
por preconceitos do que outras civilizações - em particular a cristã - é algo totalmente diferente. Detenhamo-nos na
palavra toldado: ela significa encoberto, enevoado, que não deixa passar a luz. O uso do intelecto esbarra com
forças que se opõem a ele e o nublam, diminuindo sua capacidade para penetrar luminosamente no invisível: são
forças emocionais, que tornam este invisível ameaçador, e personificam estas ameaças na idéia de espíritos, de
demônios, de "forças ocultas" que se torna necessário aplacar. Numa palavra, Freud está dizendo que o judaísmo
torna o intelecto dos judeus menos vulnerável à superstição, à magia, à sedução do imaginário. A proibição de
fazer imagens e o monoteísmo absoluto da doutrina de Moisés - que, segundo Freud, é tanto o pai do judaísmo
quanto o avô da ciência moderna - teriam de certa forma "vacinado" o judeu contra as tentações da superstição,
contra a idéia de que poderes sobrenaturais adversos podem se voltar contra aquele que investiga o invisível. Pode
ser que tenha razão neste ponto, ou que se engane; ao exame deste problema será dedicado o resto da aula de hoje.
Mas uma coisa é certa: Freud não quer dizer que os judeus são menos vulneráveis do que os outros ao preconceito,
isto é, um certo tipo de projeção das fantasias agressivas sobre outrem. Afinal, foi também estudando os sonhos de
um judeu - ele mesmo - que descobriu o mecanismo da projeção...
Que devemos pensar acerca da relação entre judaísmo e "uso desimpedido do intelecto", postulada por
Freud como relevante para a criação da psicanálise? Ela contém duas teses diferentes:
a) o judaísmo nasce do e tem como conseqüência o "uso desimpedido do intelecto";
b) esta capacidade de pensar sem se enredar nas ilusões materializadas na magia e em seus equivalentes
modernos"— entre os quais o "elemento místico" - foi um dos fatores essenciais para a invenção da psicanálise.
São duas afirmações de grande alcance, e que a meu ver não devem ser confundidas. Vamos examiná-las
separadamente, a fim de não complicar demais a argumentação. A discussão da primeira tese nos levará a estudar
a estatuto da magia no judaísmo bíblico, as noções de impureza e de pecado e a ritualização da prática religiosa, o
que, por sua vez, nos conduzirá ao Talmud. Aqui nos depararemos com um método de raciocinar digno do maior
interesse, e cujo estudo nos proporcionará uma hipótese para passarmos à segunda tese: a do suposto vínculo entre
o modo de pensamento típico do judaísmo e a psicanálise. Poderemos então discutir com mais profundidade esta
questão, e procurar sugerir uma resposta satisfatória ao problema que nos serve de fio condutor: há ou não há algo
judaico na psicanálise, e, caso haja, o que é?
Retornemos um momento à obra de Yehezkel Kaufmann mencionada na terceira aula, quando falamos das
origens do Diabo. Numa seção acerca da santidade e da impureza, tais como aparecem no texto bíblico, Kaufmann
reitera sua posição acerca do que caracteriza o judaísmo pré-exílio: a idéia da onipotência divina, que não admite
qualquer concorrência. A Bíblia acredita na existência da impureza, mas não lhe confere o estatuto de uma força
demoníaca primária: não existe tensão entre a esfera do puro e do impuro, porque todo poder e toda atividade estão
concentrados no reino do sagrado. A estreita vinculação pagã entre impureza e magia — esta servindo para
proteger homens e deuses da ação demoníaca da impureza — simplesmente não existe para a religião bíblica. A
impureza é uma "condição estético-religiosa", proveniente do contato com situações e objetos considerados
impuros, tais como a lepra, o bode expiatório do Dia do Perdão, o cadáver, o sêmen, a menstruação, etc. Ela é
contagiosa e, para ser removida, necessita de um ritual de purificação; mas nenhum destes rituais visa afastar um
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perigo inerente ao estado de impureza. Diz Kaufmann:
"É o contato entre a impureza e o sagrado que é banido, e terrivelmente perigoso: a finalidade das
leis é impedir esta confusão entre sagrado e impuro, manter o impuro distante do sagrado, e guardar
o sagrado da profanação pelo impuro (...) No paganismo (...), a impureza não é menos potente do que
o sagrado; é essencialmente e intrinsecamente nefasta, e mesmo mais perigosa do que o sagrado. Na
Bíblia não é assim. Nenhum poder ou atividade é atribuído à impureza em si. O perigo de misturar os
domínios provém apenas do sagrado, do reino de YHWH. O contato com os mortos não envolve
risco algum; mas tocar, aproximar-se de modo errôneo e até ver o sagrado são causa de morte imediata
(seguem-se exemplos) (...)
O contato com o domínio do "exterior ao campo", moradia de sátiros como Azazel (Lev. 16:22) é
aparentemente a fonte da profanação. Mas de nada mais do que profanação. Longe do sagrado, os
sátiros habitam na impureza; contudo, não são maléficos ou destrutivos, como os demónios do
judaísmo pós-exílico. Os Israelitas vão atrás deles, porém eles não seduzem o homem para pecar (...)
O Azazel bíblico é fonte de profanação; habita o deserto como uma sombra, cuja única função
aparente é receber a carga de pecado e de poluição que, anualmente, lhe é enviado"(4).

(4) Kaufmann, The Religion of Israel, p, 103-105.

Esta passagem me parece importante por várias razões. Em primeiro lugar, porque reafirma a noção de
que, no judaísmo bíblico, não existe e não pode existir um adversário à altura de YHWH; portanto, a impureza é
antes um acidente do que uma fonte independente de perigo, este estando bem mais próximo do tabernáculo do que
do cadáver ou da mulher menstruada. Em segundo lugar, porque diferencia nitidamente o período bíblico do
judaísmo "pós-exílico", isto é, a partir de 500 a.C, época a partir da qual começam a penetrar na religião judaica
elementos oriundos de outras crenças (o que é decorrência natural do contato maior dos judeus com outros
povos): Kaufmann situa isto no nível dos demônios, que de passivos se tornam "destrutivos e maléficos". Em
terceiro lugar, porque a idéia de impureza na religião bíblica não está associada à culpa, que marcará tão
profundamente o judaísmo rabínico. Isto é importante para uma interpretação psicanalítica, já que a psicanálise
costuma vincular a idéia de impureza à analidade, à agressão e às defesas contra angústias originadas em fantasias
deste gênero (cf. Totem e Tabu). Em todo caso, a ausência de um reino demoníaco ativo e autônomo torna
plausível a noção de que a impureza não provém dele, e portanto plausível a tese de Kaufmann, segundo a qual o
judaísmo bíblico não conhece a magia nem necessita dela para manter longe os demônios, a impureza e os riscos
que ela acarreta: Se a "ausência de preconceitos" puder ser interpretada como significando recusa da magia e da
superstição, como sugeri, então a afirmativa de Freud soará menos estranha do que parece à primeira vista, pois
encontraria confirmação num traço distintivo do judaísmo bíblico. Há mais, porém: o lugar da impureza como
fonte do mal: o lugar da impureza como fonte do mal é ocupado no judaísmo bíblico pela categoria do pecado este
consiste na rebelião contra os mandamentos divinos, rebelião que atesta a autonomia da vontade do homem. Por
outro lado, a idem de uma vontade autônoma no ser humano é um tanto incompatível com a onipotência de
YHWH, e a Bíblia costuma resolver este dilema atribuindo ao próprio YHWH a origem do mal, em passagens que
chocam a sensibilidade do leitor, como o sacrifício de Isaac e a crueldade da ordem para matar todos os cananeus
(cf. Kaufmann, p. 73 s s.). Mas não é o pecado em si que, automaticamente, acarreta a punição, e sim a vontade de
Deus, o que é coerente com a doutrina da Sua onipotência exclusiva. E por este motivo que o pecado é
exclusivamente moral, e consiste no desafio à vontade de YHWH. Tal desafio é metaforizado como "avodá zará",
como idolatria, e é segundo os profetas a causa da destruição do Templo e a causa da punição por excelência: o
Exílio ou Galut (com as conotações de fragilidade estudadas atrás). Mas, com exceção de Ezequiel, os profetas
abrem uma perspectiva para a salvação: é o arrependimento, a "Eshuvá" que segundo Jeremias tornará o homem
futuro incapaz de pecar ( o "novo coração" de Jer. 31:31 ss.)
A destruição do Templo de Jerusalém em 586 d.C., talvez tenha sido o evento mais marcante na história dos
judeus, já que foi interpretado pelas gerações posteriores como prova da ira divina; para não provocá-la novamente,
a idolatria foi erradicada de Israel. Como o pecado é conseqüência da revolta contra a vontade de YHWH, torna-se
conveniente conhecer esta vontade, a fim de não a desobedecer. Ela está expressa nas leis e mandamentos
outorgados aos ancestrias, de modo que uma das preocupações dos líderes pós-exílicos será reunir estas leis e
mandamentos, codificá-los e torná-los conhecidos de todos. Assim se compila a Torá, no século V a.C.,
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provavelmente sob a direção de Esdras; assim se institui a sua leitura em porções semanais; e assim se inaugura a
alfabetização compulsória dos judeus do sexo masculino, tornando-os um povo de leitores. Logo surgiu a
necessidade de interpretar as Escrituras, já que nem todas as situações estavam previstas nelas; esta prática da
interpretação vai se consolidar, sob a direção dos fariseus, nos séculos seguintes, até culminar na redação do Talmud
da Babilônia. Foi assim que os judeus desenvolveram o "uso do intelecto" mencionado por Freud; resta saber se
tal uso era "desimpedido", e para tanto é necessário examinar mais de perto como funciona a interpretação da
Bíblia na tradição judaica.

O Postulado da Interpretação Rabínica


Ela se assenta numa axioma considerado auto-evidente: a interpretação não acrescenta nada de novo ao
texto bíblico; limita-se a explicar os infinitos níveis da sua significação. Tudo o que se obtém pela interpretação,
Moisés já o sabia, pois Deus lhe revelou ao mesmo tempo a Tora escrita e a Tora "she be al pe", a tradição oral. O
tratado talmúdico Pirkei Avot estabelece que "Moisés recebeu a Tora no Sinai e a transmitiu a Josué, e Josué aos
Anciãos, e os Anciãos aos Profetas. E os Profetas a transmitiram aos homens da Grande Assembléia". Trata-se
portanto de desvendar o latente do texto, adequando as novas interpretações às antigas e ao conjunto da tradição.
Reparem que, nesta perspectiva, a História não desempenha qualquer função constituinte: não é a evolução social
ou o debate das idéias que faz surgir a nova interpretação, mas sim o espaço infinito de significações organi-zado
nas dobras do texto, que só se revela pouco a pouco e a quem souber o que lhe perguntar (5). A Bíblia permanece
como o referencial último das interpretações; estas serão de vários tipos, jurídicas, filosó-ficas, místicas, lendário-
históricas, etc. o Talmud é a compilação escrita e relativamente sistematizada — mas muito relativamente — das
interpretações formuladas em Israel até o ano 200 d.C. (Mishná), por sua vez comentadas e interpretadas na
Babilônia até o ano 500 d.C. (Guemará). Uma vez pronta, a obra converteu-se por seu turno em objeto de
interpretações ininterruptas, cujo conjunto constitui a literatura religiosa judaica até o presente. Sob a influência
do pensamento grego, e independentemente do trabalho dos mestres talmúdicos, surgiram modalidades filosóficas
de interpretação da Bíblia (por exemplo, Filon de Alexandria, e posteriormente os filósofos judeus medievais que
viveram nos territórios muçulmanos). Uma outra linha de interpretação, esotérica e voltada para a descoberta dos
segredos do Universo supostamente contidos na Tora, dará origem às vadiadas correntes místicas do judaísmo, a
mais célebre das quais é a Cabala. Sobre estes temas, pode-se consultar os trabalhos do Professor Gershon
Scholem; vários deles estão traduzidos para o português e publicados pela Editora Perspectiva (As Grandes
Correntes da Mística Judaica, A Cabala e seu Simbolismo, etc.).

(5) Este tema foi desenvolvido num artigo para revista Shalom: Renato Mezan, "Tradição e Contradição", Shalom n° 124, São Paulo,
setembro de 1976, p. 10-16.

Isto colocado, interessa-nos perceber como funciona esta interpretação, baseada nos axiomas da
inesgotabilidade do texto e da inerência do comentário ao comentado. Ela opera através de múltiplos métodos, que
vão da explicação literal à alegoria (entendendo toda uma passagem como alusão a outra coisa) ; da exploração
sistemática de cada palavra e de cada letra (drash) ao anagrama e ao cálculo do valor numérico das palavras. Um
único princípio deve ser, porém, obedecido: a Bíblia se explica pela Bíblia. Em virtude da contempora-neidade
suposta, existir entre todas as passagens, mesmo que separadas por centenas de páginas — já que toda a Torá é
obra do Eterno e foi revelada no mesmo instante a Moisés — uma passagem ilumina qualquer outra, desde que
sejam explicitados os elos intermediários que as unem. Estes elos podem ser ou raciocínios ou outras passagens, e
assim, no limite, qualquer citação serve como interprétante de qualquer outra, desde que seja possível construir
uma ponte entre elas. Foram estabelecidas certas regras para definir o que é uma ponte, neste sentido, e o que não
é: são as seis midot ou "medidas", formuladas por Hillel no século I d.C. e elevadas a treze por Rabi Ismael. As
treze regras de Rabi Ismael fazem parte do Sidur (livro de orações), e estão incluídas no volume Do Estudo e da
Oração, publicado pela Editora Perspectiva. Este livro é uma imensa mina de informações, e proporciona, através
de excertos prefaciados, uma visão fascinante da cultura judaica erudita desde a Bíblia até a época de Spinoza
(1660) e do hassidismo (séculos XVIII e XIX). Para nossa aula, Do Estudo e da Oração, será de extraordinária
utilidade.
A descrição do processo interpretativo característico da tradição judaica talvez tenha feito Vocês pensarem
nas formas características da interpretação psicanalítica. A idéia não será nova, e mais de um autor já tentou definir
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nestes termos o que a psicanálise herdou do judaísmo: seria, nada mais nada menos, do que a técnica da interpreta-
ção, simplesmente transpondo o seu objeto do texto bíblico para o funcionamento psíquico, ou, para dizê-lo de
uma vez, da palavra de YHWH para a palavra do paciente. Sem dúvida, esta idéia é tentadora, e bem mais
plausível do que as teorias daqueles que procuram no conteúdo da psicanálise analogias com o conteúdo do
judaísmo. Gostaria de me explicar brevemente sobre este ponto, que considero fonte de confusões lamentáveis.
Um bom exemplo desta maneira de proceder se encontra na obra de David Bakan, Freud e a Tradição
Mística Judaica. Para Bakan, a psicanálise é uma "expressão do misticismo judaico" (6), expressão evidentemente
secularizada (despida de seus significantes religiosos) e disfarçada como ciência ocidental. Uma tese deste tipo
precisa ser demonstrada em dois níveis diferentes: em primeiro lugar, é necessário provar o parentesco entre as
doutrinas psicanalíticas e as doutrinas místicas dos judeus; em segundo, explicar por que, entre as cinco mil
páginas das obras e cartas de Freud, não se encontra uma única referênciàao misticismo, embora a citação de
fontes e textos seja nelas uma constante. O segundo ponto é "demonstrado" por Bakan da seguinte maneira: a
tradição mística é por definição esotérica e secreta; portanto, o fato de Freud não mencionar sua pertinência a ela
não invalida o argumento, sobretudo se pensarmos que viveu e escreveu numa época de grande anti-semitismo, o
que certamente levaria qualquer um a procurar calar uma origem tão suspeita (além de ser uma doutrina judaica, a
psicanálise teria raízes na parte do judaísmo menos simpática ao espírito ocidental, racionalista e avesso às
especulações místicas desde o século XVII). É claro que o argumento, assim apresentado, é circular: a ausência de
referências explícitas ao misticismo "prova" a vontade deliberada de Freud em escondê-las, precisamente porque
elas estariam implícitas de uma ponta a outra de seus escritos, e porque ocultar-se faz parte da tradição mística!
Tudo depende, portanto, das provas aduzidas no primeiro nível, isto é, as encarregadas de demonstrar o parentesco
entre as teorias de Freud e as doutrinas dos cabalistas.
Isto é feito por Bakan na Quinta Parte de seu livro, intitulada "Psicanálise e Cabala". Trata-se de um texto
que só posso qualificar de aflitivo. Ele se funda no emprego sistemático da analogia, arrolando uma série de
temas, justapondo as afirmações da Cabala às afirmações de Freud acerca destes temas, e inferindo desta
justaposição que, como Freud não pode ter influenciado a Cabala, foi a Cabala que influenciou Freud. Alguns
exemplos: a Cabala considera que o seu objeto de análise é a Torá; Freud teve uma paciente que apelidou de
Dora; como em Moisés e o Monoteísmo Freud escreve que o deus egípcio Aton transformou-se no deus hebraico
Adonai, a sonorização do /t/ em /d/ era conhecida por ele; Aton está para Adonai como Tora para Dora. C.q.d. ! (p.
198-200 da edição francesa). A atenção prestada pelos talmudistas à letra do texto bíblico encontra seu
correspondente na atenção prestada pelo psicanalista nos mais ínfimos detalhes do discurso de seu paciente (este
argumento será examinado mais abaixo). De modo geral, os procedimentos de interpretação inventados por Freud
são paralelos às técnicas de interpretação empregadas pelo Midrash, pelo Talmud e pelo Zohar (isto também
veremos adiante). Os talmudistas se interessavam pela interpretação dos sonhos, pela sexualidade, pelo incesto,
pela função erótica do conhecimento (é um tema explícito do Zohar); Freud se interessa pelos mesmos temas, e o
que diz deles lembra em certos aspectos os ensinamentos dos cabalistas. Portanto, a psicanálise é uma expressão
leiga do misticismo judaico! Leiam Vocês mesmos e verão que não estou exagerando.

(6) D.Bakan, Freud et la Tradition Mystique Juive, Paris, Payot, 1977, p. 15.

Este tipo de argumento é absurdo, porque prova demais. Os homens não esperaram Freud para se
interessar pela alma e por seus segredos; se fôssemos nos basear nas semelhanças entre os temas da psicanálise e
os temas de qualquer outra escola de pensamento, nada seria mais fácil do que "provar" que Freud não apenas foi
um cripto-cabalista, mas ainda um cripto-platônico, um cripto-aristotélico, um cripto-budista, um cripto-
comunista e o que quer que desejamos que ele tenha sido, até mesmo um cripto-psicanalista. Qualquer tentativa
de filiação de um pensador a doutrinas que o precederam tem que passar pela crítica textual de seus escritos, e pela
probabilidade empírica de que ele tenha estudado ou pelo menos lido os textos nos quais supostamente se inspirou.
Se vocês quiserem observar um exemplo de como se faz este trabalho, leiam o capítulo de As Grandes Correntes da
Mística Judaica intitulado "O Zohar: o Livro e seu Autor", no qual G.Scholem justifica a atribuição do Zohar ao
cabalista espanhol do século XIII Moisés de Leão. Perto disto, a tese de Bakan é de um amadorismo
desconcertante, e, por insuficiência metodológica, ela simplesmente não se sustenta.
Conclusão: nada se pode inferir acerca das origens judaicas da psicanálise, se nos ativermos ao conteúdo
da teoria analítica, pelo simples motivo de que este conteúdo é uma trama conceituai que toma por objeto a psique
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humana, também estudada por milhares de outros pensadores ao longo de todos os séculos que nos separam do
homem de Neandertal, e em particular pelos estudiosos da Bíblia. Esta, com efeito, contém não apenas leis e
narrativas sobre a divindade, mas todo um imenso panorama das paixões humanas, incarnadas nas centenas de
personagens que povoam seus relatos. Nada mais natural do que os comentadores judeus terem tratado também de
temas "psicológicos", como trataram de inúmeros outros ; isto não prova coisa alguma. Se há algo judaico na
psicanálise, este "algo" não pode ser de ordem tão geral quanto afirmar a existência de uma sexualidade eficiente
no ser humano, ou interessar-se pela capacidade que todos nós temos de sonhar à noite.
A outra hipótese, que comecei a mencionar, refere-se a uma semelhança de nível diferente: a das técnicas
de interpretação. Aqui as coisas são mais plausíveis. Com efeito, a interpretação psicanalítica tem por método a
aproximação de pontos distantes da fala do paciente, utilizando uns para esclarecer outros; supõe que à aparente
incoerência do discurso associativo subjaz uma certa ordem, a ordem inconsciente, e busca formar uma idéia a
respeito desta última, isto é, busca descobrir qual o sentido daquilo que o paciente está dizendo (7). Para isto,
vale-se de alguns procedimentos e de algumas hipóteses, que funcionam em diversos níveis. A primeira e mais
fundamental destas hipóteses é a seguinte: Todo discurso, por mais absurdo que pareça, tem um sentido, ou mesmo
vários; e a aparência de absurdo se deve à supressão de partes importantes, em conseqüência do conflito incons-
ciente. A primeira parte deste axioma é semelhante à que funda a interpretação rabínica da Bíblia, mas a segunda
introduz algo completamente diferente. Aliás, podemos dizer que o axioma segundo o qual o que vai ser
interpretado possuí um sentido, mesmo oculto, é a bem dizer um princípio de qualquer interpretação possível, seja
ela rabínica, psicanalítica ou de outra índole: pois, se isto não for suposto a priori, não haverá nada para ser
interpretado. Da mesma forma, toda interpretação pressupõe por definição que o sentido a ser descoberto por ela
não está evidente, caso contrário não seria necessário interpretar: bastaria constatar o sentido imediato. Se
permanecermos neste nível de generalidade, portanto, nos veremos novamente às voltas com teorias que, à força
de provarem demais, não provam nada. É preciso ser mais minucioso, e ver as coisas mais de perto. Vamos, então,
proceder assim: examinaremos alguns exemplos da interpretação clássica judaica, a fim de bem compreender seus
mecanismos. Em seguida, diremos algo sobre a interpretação analítica, procurando destacar qual é a sua
especificidade. Isto nos conduzirá à noção de processo primário, sem a qual me parece impossível prosseguir.
Veremos então que o problema é mais complicado do que parece, e que não basta, para solucioná-lo, dizer que a
psicanálise é herdeira das técnicas interpretativas que, sob o nome genérico de Midrash, o judaismo inventou para
descobrir os sentidos ocultos da Palavra de Deus.
(7) Uma interessante e original discussão da interpretação psicanalítica pode ser encontrada no livro recente de Fábio Herrmann, Andaimes do
Real (II): O Cotidiano, São Paulo, Vértice, 1985, em especial às pp. 40, 76, 90 e 99.

Midrash e Interpretação Analítica


O termo Midrash vem da raiz darásh, que significa buscar, procurar, inquirir, investigar e é aplicado ao
conjunto dos comentários a Bíblia produzidos pelos eruditos. Por oposição ao sentido óbvio de uma passagem
bíblica (pshat), o drash consiste numa inferência, cujo resultado é o midrash. Distinguem-se dois grandes tipos de
midrash: o midrash halachá, que acarreta o surgimento de uma nova regra, seja na esfera civil ou criminal, seja na
esfera ritual, e o midrash agadá, que elabora uma interpretação do significado das leis e narrativas bíblicas, ou usa
estes elementos para transmitir um ensinamento moral. Muitas vezes, o mesmo texto é interpretado nestas duas
vertentes. Um exemplo deste duplo tratamento encontra-se na Mechilta, e se refere a Ex. 20:25: "E me farás um
altar de pedras, e não o construirás com pedra lavrada: pois, se tiveres levantado teu instrumento de ferro sobre
ela, a terás poluído". O midrash halachá deste texto enfatiza o pronome oblíquo o (et'hén) e conclui que o altar
não pode ser construído com pedras lavradas; na edificação do Templo, no entanto, é permitido empregar pedras
lavradas e instrumentos de metal. O midrash agadá se pergunta: por que é proibido usar ferramentas de ferro na
construção do altar? Porque o ferro encurta a vida e o altar a prolonga; o ferro causa miséria e destruição, o altar
reconcilia Deus e o homem; e por isto não se pode usar ferro na construção do altar (8).

(8) Cf. Moses Mielzyner, Introduction to the Talmud, Nova York, Bloch Publishing Co., 1925 (3a ed. 1968), p. 119. Esta obra apresenta um
interesse especial, porque discute pormenorizadamente as regras hermenêuticas do Talmud.

Outro exemplo, também citado por Mielzyner, mostra que os sábios podiam tomar certas liberdades com
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o texto. Certa ocasião, tratava-se de determinar a base bíblica para o costume, sancionado pela tradição, segundo
o qual um tribunal nunca é composto por um único juiz, sendo as decisões tomadas por maioria de votos, e a
votação começando sempre pelo mais jovem dos juízes. A referência bíblica que fundamenta este costume e, mais
do que o costume, a exigência de que o tribunal tenha ao menos três juízes, é encontrada no texto de Ex. 23:2: "Lo
tihié acharéi rabím leraót, veló taané ai rav lenatót, acharei rabím lehatót ". Traduzido ao pé da letra, isto signifi-
ca: "Não seguirás a multidão para o mal, e não falarás num processo tomando o partido do maior número, para
inclinar após os muitos". Inclinar, subentende-se inclinar a lei, torcê-la para agradar à maioria. O sentido "pshat" é
evidente: o juiz deve seguir sua convicção e não se deixar influenciar pelos "muitos", possivelmente pelos que
assistem ao julgamento. Já o drash estabelece duas inferências. Isolando as três últimas palavras — acharei rabím
lehatót — conclui que "inclinar" se refere a um juiz entre vários (rabím), portanto o tribunal deve ser constituído
por mais de um, e o veredicto deve ser pronunciado "acharei rabím", isto é, seguindo a maioria. E a expressão rav
é tomada em seu sentido derivado de "grande", de modo que "veló taané ai rav" é lido como "não deporás depois
do grande": logo, o menor fala antes do maior, isto é, a votação começa pelo juiz mais jovem.
Aqui estamos diante de procedimentos hermenêuticos que, claramente, não se pautam pela lógica formal.
Isto é importante, porque a intepretação rabínica da Bíblia, segue normas estritas, codifi-cadas por Hilel no século I
d.C. e novamente"por Rabi Ismael no século II d.C. ; são as midot das quais falei há pouco. Ora, estes critérios são,
na sua maioria, derivados da lógica aristotélica, que reconhece como válidos certos tipos de raciocínio e recusa
como sofismas inaceitáveis certos outros. Regras como a generalização a partir de casos particulares (binián av) ou
a inferência a fortiori (kal vachómer), largamente empregadas nas deduções talmúdicas, são absolutamente coerentes
com a doutrina do silogismo; podem ser aplicadas de modo sutil, mas não é legítimo considerá-las como seguindo
uma "outra" lógica. Dois exemplos, para esclarecer este ponto:
a) kal vachómer: kal significa leve o chómer pesado; é a regra que autoriza a ampliação de uma restrição, de um
caso menos importante para outro mais importante, e, vice-versa, a ampliação de uma permissão, de um caso mais
importante para outro menos importante. Assim, num exemplo citado por Mielzyner à p. 133, no tratado Baba
Metzia, cap. 95, discute-se se aquele que tomou emprestado um animal ou uma coisa deve ressarcir o prejuízo
causado ao credor, caso o animal ou a coisa lhe seja roubado. A lei sobre o empréstimo (Ex. 22:13) é omissa
quanto a este ponto, mas especifica que o prejuízo deve ser reparado, se o animal morrer ou se a coisa for
destruída. A responsabilidade do tomador, no caso do roubo, é demonstrada pelo método do kal vachómer. O texto
do Ex. 22:9-11 trata de alguém a quem se paga para que zele por um animal; se este morrer ou se machucar, o
depositário não é responsável e não precisa ressarcir o proprietário, mas é obrigado a fazê-lo se o animal for
roubado. O raciocínio é o seguinte: "Se o depositário, embora livre da responsabilidade por acidente ou por morte,
deve no entanto pagar pelo roubo {kal), o tomador de empréstimo, que é responsável em caso de acidente ou de
morte (chômer), não deverá estar ainda mais obrigado a ressarcir o credor em caso de roubo daquilo que foi
emprestado?" Aqui existe um silogismo perfeitamente regular:
Premissa maior: O depositário e o devedor estão numa relação de menor para maior (responsabilidade).
Premissa menor: Para o menor, no caso de roubo, vale a regra de restituição.
Conclusão: No caso do maior, com mais razão ainda vale a mesma regra.
b) Binián av: quando a lei se refere a um caso particular, mas a razão dada ou suposta é geral, a lei deve ser
aplicada a outros casos particulares que caiam sob a mesma razão geral. No mesmo tratado Baba Metzia, 9, 13, a
Mishná comenta o texto de Deut. 24:6, segundo o qual "nenhum homem tomará como penhor o moinho ou a mó
superior, pois ao fazê-lo estaria tomando como penhor a vida de outrem". A lei é especial e se refere apenas à mó
superior e ao moinho. Mas, como a razão é geral, os rabinos decidiram generalizar o preceito, resolvendo que
"todo e qualquer utensílio empregado no preparo de alimentos não pode ser tomado como penhor".
Penso que está clara a idéia de que boa parte das interpretações no âmbito da halachá, isto é, no que se
refere às normas obrigatórias para todo judeu piedoso, são obtidas por, raciocínios válidos a partir das regras
lógicas universalmente admitidas na época, e mesmo hoje. Era necessário esclarecer este ponto, a fim de fazer
ressaltar todo o interesse daqueles outros casos, não tão freqüentes na halachá, mas absolutamente comuns na
agadá, que se regem por regras diferentes das reconhecidas pela lógica formal. A principal destas regras
hermenêuticas é a gzeirá shavá ou analogia. Mielzyner esclarece que a analogia é empregada com cautela pelos
rabinos, sobretudo quando é apenas formal, isto é, quando os termos relacionados pela analogia não denotam
atributos intrínsecos às coisas de que se está tratando, mas apenas figuram no enunciado das leis que se referem a

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elas, ou então figuram apenas no contexto das passagens aproximadas pela analogia. Este tipo de inferência não é
em absoluto legítimo no caso da lógica formal; nenhum teorema demonstrado desta maneira seria considerado
válido por um matemático. Por outro lado, estes procedimentos são admitidos na análise de textos literários ou
filosóficos, na qual o contexto é significativo, e o emprego de um termo claramente definido aqui pode elucidar o
sentido obscuro deste termo acolá. O espantoso é que os rabinos tenham admitido tais técnicas da interpretação
para deduzir leis, cujo cumprimento era obrigatório para todos. Um exemplo clássico é o do jejum de Yom Kipur.
O texto de Lev. 16:29 diz: "No décimo dia do sétimo mês, afligireis as vossas almas, e nenhuma obra fareis...";
porém não define no que consiste este aflição. A expressão "afligir" (laanót) ocorre, porém, em contextos nos
quais é acompanhada pela idéia de sofrimentos de privação e de fome, por exemplo Deut.8:3 ("E te afligiu e te fez
passar fome...", referindo-se ao maná do deserto), ou Salmos 35:13 ("E afligi minha alma com jejum"). Logo, por
analogia, deduz-se que o mandamento do Levítico significa que no Yom Kipur se deve jejuar. O fundamento desta
operação é, evidentemente, a idéia da simultaneidade de todas as passagens da Escritura, simultaneidade
compreendida como resultante da autoria divina (ou pelo menos da inspiração divina) de todo o texto.
Estás interpretações por gzeirá shavá podem ser baseadas até mesmo em detalhes totalmente secundários ;
como diz Mielzyner, "sua peculiaridade consiste em que o argumento a partir da paridade de expressões é
admitido mesmo em casos nos quais as duas passagens comparadas entre si nada têm em comum, exceto uma
única palavra, muitas vezes insignificante, e que não tem qualquer conexão natural com a conclusão que se vai
tirar dela (...) Um uso muito extenso deste tipo de gzeirá shavá é feito na Agadá, na qual nenhuma regra o
restringe. Ali, este método deu origem a algumas das interpretações e lendas mais imaginosas que encontramos no
Midrash e no Talmud "(9). "Este tipo de gzeirá shavá" é denominado de "exorbitante", pelo autor que o compara à
falácia lógica e ao sofisma. O que caracteriza sobretudo estes raciocínios, ditos falaciosos ou sofísticos, é o uso
que fazem do equívoco: termos que significam várias coisas são empregados ora numa acepção, ora em noutra,
resultando daí uma aparência de rigor, mas que já Aristóteles procura desmascarar sistematicamente, no livro do
Organon intitulado "Refutações Sofísticas". Este fato é de importância crucial para meu argumento, porque
mostra com clareza meridiana que a lógica formal se constitui pela exclusão de certos tipos de raciocínio — as
falácias e os sofismas — e pela negativa de considerá-los válidos. O principal motivo desta recusa, repito, é a
múltipla significação dos termos neles empregados. Não é difícil perceber que o esforço da lógica consiste em
restringir esta polivalência de sentidos, reduzindo-a a um só através da definição. A definição, como se sabe, é um
enunciado que "convém a todo o definido e somente ao definido". Se defino "francês" como "indivíduo que possui
a cidadania francesa", todos os cidadãos franceses e apenas os cidadãos franceses caem sob esta definição;
estrangeiros morando na França, por exemplo, não estão nela incluídos, e estão incluídos filhos de franceses que
nasceram no exterior.

(9) Mielzyner, op. cit., p. 147-148 e 149.

De onde provêm, então, as falácias e os sofismas? Segundo a lógica formal, em primeiro lugar (embora
não sempre) da falta de cuidado em definir os termos do silogismo de maneira correta, isto é, unívoca. Segundo a
psicanálise, que distingue entre processos psíqui-cos primários e secundários, o que é falácia para a lógica
compreen-dido como interferência do processo primário no processo secundário: exemplos disto são os lapsos, os
ditos de humor, e os sonhos, que representam o funcionamento psíquico que mais se aproxima do processo
primário. O que caracteriza os processos primários, do ponto de vista dinâmico-econômico, é que "neles a energia
se escoa livremente, passando sem entraves de uma representado a outra segundo os mecanismos da condensação
e do deslocamento". Quanto aos processos secundários, neles "a energia é inicialmgnte 'ligada', antes de se escoar
de maneira controlada; as representações são investidas de modo mais estável" (10). Freud descobriu estes dois
tipos de processos psíquicos logo no início de sua carreira; eles designam o modo de operação respectivamente do
inconsciente (primário) e do pré-consciente/consciente (secundário). O processo primário governa os sonhos e a
formação dos sintomas neuróticos; suas leis são muito diferentes das do processo secundário, cujo refinamento
sistemático conduz aos princípios da lógica. Estas leis do processo primário são abundantemente desmonstradas
na Interpretação dos Sonhos; seus mecanismos principais são o deslocamento e a condensação. Tais mecanismos
são muito simples de compreender. No deslocamento, um detalhe aparentemente insignificante pode receber toda a
intensidade energética e toda a significação atribuídas originalmente a outra representação qualquer. A
condensação é uma encruzilhada, para a qual convergem todas as significações carregadas por diferentes idéias e

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diferentes cadeias associativas.

(10) Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la Psychanalyse, Paris, PUF, 1967, verbete "Processus Primaire, Processus Secundaire", p. 341
ss.

Vamos a dois exemplos. É comum nos lembrarmos de um detalhe insignificante da nossa infância — por
exemplo, a imagem de uma porta aberta, ou um certo perfume, sem sabermos por que ele ficou na nossa memória,
enquanto coisas muito mais importantes, como por exemplo a cena da morte de uma pessoa querida, submergiram
no olvido mais completo. A psicanálise diz que se produziu um deslocamento: o evento importante foi esquecido
porque foi reprimido, e a carga psíquica a ele vinculada se transferiu para um detalhe meramente acessório, o qual
então é recordado, mas sem que se saiba porque, já que foram rompidas as conexões que lhe conferiam
significação. Quanto à condensação, ela é onipresente nas frases de humor, já que é do choque das significações
habitualmente separadas que nasce o efeito engraçado. Quando morreu Tancredo Neves, uma charge de Millôr
Fernandes o mostrava no céu, abraçando de um lado São Pedro e do outro o Diabo. A legenda fazia alusão às
virtudes de conciliação que caracterizavam Tancredo; até aí, a idéia é boa, mas não passa de exagero do tipo "kal
vachómer": Tancredo conciliava tanto que seria capaz até de conciliar São Pedro com Satanás ! O golpe de gênio,
porém, está no resto da legenda: "O grande conciliador foi causa, porém, de uma guerra visceral entre os médicos
de são Paulo e de Brasília". É preciso ser Milôr para jogar assim com as palavras... Outro exemplo de
condensação: uma charge feroz de Chico Caruso, na qual Paulo Maluf aparecia de calças curtas, levando um puxão
de orelhas de D. Maria Maluf. Esta, com o boletim do Paulinho na mão — boletim em cuja capa se lia "Colégio
Eleitoral" — dizia com ar furioso: "Então é para ter estes resultados que estou te pagando o Colégio?"
Creio que está claro o que a psicanálise chama de "processo primário". Ele carateriza-se exatamente por
permitir o livre trânsito de uma idéia a outra, sem qualquer respeito pelas fronteiras da lógica racional; por isto,
ignora qualquer limite, em particular os limites do tempo e do princípio de não-contradição. Ignora os limites do
tempo: um fato vivido hoje pode reativar uma lembrança da semana passada e um desejo infantil, produzindo com
estes ingredientes o sonho de hoje à noite. E ignora o princípio da não-contradição, alicerce de todo o pensamento
racional: segundo este princípio, A não pode ser simultaneamente não-A; ou é A ou não é A, excluindo-se toda
outra possibilidade: (por isto este princípio é chamado às vezes de "princípio do terceiro excluído"). (A dialética,
que trabalha com a contradição interna, precisa reformular por completo a noção de contradição, para articular de
outro modo o domínio do racional; isto é tão pouco simples, que a Lógica de Hegel tem 800 páginas... Mas não
vamos entrar neste tema, no momento). No exemplo dos cidadãos franceses, ou bem alguém é francês, ou é não-
francês. Não existe terceira alternativa; se alguém é francês, não pode ser ao mesmo tempo não francês e vice-
versa, embora depois ou antes, possa ter sido ou vir a sê-lo (por exemplo, um estrangeiro naturalizado). A
condensação é, obviamente, fruto da suspensão deste princípio: é por isto que, em sonhos, uma pessoa pode
representar meu analista e meu pai, e também a própria pessoa cujas feições vejo no sonho.
Com estes elementos em mãos, vamos retornar à interpretação da Bíblia. Manifestamente, o que
Mielzyner denomina "uso exorbitante da gzeirá shavá" não é nada mais do que o emprego abundante do modo de
pensamento típico do processo primário, e não nos admiraremos de encontrá-lo na base das interpretações do
Midrash Agadá. Já os processos secundários, caracterizados pela univocidade do sentido ("a energia está ligada")
e pelo controle do processo de argumentação ("ela se escoa de modo controlado"), controle entendido como
impedimento de seguir todas as vias associativas, são próprios da interpretação lógica que fundamenta a maior
parte do Midrash Halachá. Por isto, encontramos aqui regras de" inferência nada estranhas a nossos hábitos
mentais, como a generalização e a indução. Mesmo assim, o Talmud emprega ocasionalmente a analogia (gzeirá
shavá) para fundamentar deduções legais; isto, contudo, é feito com circunspecção, porque a lei deve ser
obedecida, e para tanto não pode parecer absurda aos que irão cumpri-la.
Ora, o que Freud postula como regra fundamental da análise? Precisamente a livre associação isto é, a
suspensão da crítica lógica e da censura moral que costumamos exercer sobre nossos processos mentais. A
proposta de "dizer tudo o que lhe venha à cabeça", que explícita ou implicitamente todos os analistas fazem a todos
os pacientes, equivale simplesmente a um convite para abandonar-se à aparente ilogicidade do processo primário,
deixando de lado os processos secundários e pondo em palavras tudo o que "lhes vier à cabeça" enquanto
estiverem deitados no divã. E, de lado do analista, a regra da atenção flutuante prescreve exatamente o mesmo.
Isto significa que, durante a análise, o psicanalista procura deixar em liberdade as suas associações, e é delas que
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surge a interpretação. É esta característica da interpretação analítica que faz com que certos autores estabeleçam
uma filiação entre o judaísmo e a psicanálise: esta teria herdada dos sábios judeus não tanto o conteúdo de suas
doutrinas, mas sobretudo uma certa forma de pensar. A psicanálise seria, em suma, a reabilita-ção da arte do
Midrásh frente a racionalidade puramente secundaria da Ciência e da Filosofia ocidentais; e, por esta razão, só um
judeu poderia tê-la inventado.
É uma idéia fascinante! A formulação mais clara que conheço, neste sentido, e a de Gérard Haddad, um
psicanalista tunisiano que vive em Paris, e de cujo livro L' Enfant illegítime: Sources Talmudi-ques de la
Psychanalyse julguei adequado extrair algumas passagens. Haddad considera que a "arte de ler "característica do
Midrash é muito próxima da "retórica do inconsciente", e que existe uma relação de causalidade entre o tipo de
interpretação rabínica e o tipo de interpretação psicanalítica:
"Como o analista, ou o simples leitor da Interpretação dos Sonhos ou da Psicopatologia da Vida
Quotidiana, não sentiria, à vista destes exemplos colhidos entre centenas, a estranha familiaridade da arte
do Midrash? Contudo, imaginar por causa disso que Freud tivesse um conhecimento explícito da arte do
Midrash nos parece insustentável. Tratar-se-ia de um "retorno do reprimido", mais do que uma utilização
delibera-da (...) Saussure renunciou (à pesquisa sobre os anagramas, R.M.); Freud perseverou, é, neste
movimento inventou a psicanálise. Teria ele encontrado, na vaga lembrança de uma arte da qual seus
ancestrais souberam tirar efeitos misteriosos, o encorajamento que faltou ao mestre suíço? A resposta a
esta pergunta deve levar em conta outro dado: a memória de Freud foi "refrescada" por um outro avatar
incontornável, o encontro singular com as histéricas, estas mulheres que faziam midrash sem saber, "sem
tomar a linguagem usual como modelo, mas bebendo da mesma fonte que ela", como diz Freud no caso
de Elizabeth von R. dos Estudos sobre a Histeria". (11)
Estamos aqui longe das barbaridades de Bakan; Haddad leva em conta que a psicanálise foi inventada
num consultório para doenças nervosas e não nos bancos de uma academia talmúdica. Mas fala em "retorno do
reprimido", em "vaga lembrança da arte dos ancestrais": a "estranha familiaridade da arte do Midrash" para
ouvidos habituados ao insconsciente se deve, portanto, à influência do judaísmo — aliás, o subtítulo de seu livro
é "Fontes Talmúdicas da Psicanálise". Em outras passagens, a cautela de praxe é posta de lado; assim, à p. 79
lemos que "a arte do Midrash parece, bem ao contrário, ser a via real do pensamento dos mestres do Talmud, e
por isto mesmo da cultura judaica em sua originalidade. A partir daí, o trajeto de Freud, sua arte de interpretar os
sonhos e os atos falhos, aparecem nesta perspectiva como um retorno do reprimido, varrendo não apenas o
antijudaísmo em vigor entre os não-judeus, mas ainda o esclerosante banimento efetuado durante quinze séculos
pelos depositários da mensagem". A psicanálise, assim, não apenas recupera uma arte esquecida pelos judeus e
desprezada pelos gentios, mas ainda equivale a um retorno do reprimido, isto é, a uma "primarização" do
pensamento racional, que Haddad saúda como uma vitória contra a esclerose. O "retorno do reprimido" e a
categoria psicanalítica por excelência para conceituar a formação dos sintomas; deste modo, a própria psicanálise
seria um sintoma, a saber sintonia da recuperação do judaísmo na cultura ocidental. Haddad o diz com todas as
letras na Introdução de seu livro. "Assim, a estranha novidade da psicanálise não se deveria ao retorno
impetuoso, na cultura ocidental, do judaísmo por tanto tempo reprimido e desconhecido? (...) Freud seria este
lugar novo, pelo qual o antigo pensamento judaico entraria enfim num verdadeiro diálogo com as melhores obras
dos não-judeus?" (p. 16-17). "

(11) Gérard Haddad, L'enfant Illégitime: Souces Talmudiques de la Psychanalyse, Paris, Hachette, 1981, p. 64-65.

Reparem como Haddad gosta de utilizar expressões como "estranho" (estranha novidade, estranha
familiaridade) e "retorno do reprimido". Há aqui não apenas uma hipótese sobre as relações do judaísmo com a
psicanálise — esta seria uma derivação deslocada da arte do Midrash — mas ainda o esboço de uma interpretação
da História, judaica e geral: o judaísmo seria o grande "reprimido" da cultura européia, e seu retorno glorioso se
faria através de Freud... E este tipo de idéia que eu tinha em mente ao dizer que, em certas versões, Freud aparece
como um canal (aqui, um "lugar novo") através do qual o judaísmo se desdobra na psicanálise. E este é o
momento para retomar algo que ficou em suspenso no início desta aula, quando falei das duas interpretações filo-
semitas da idéia de que a psicanálise seria uma "ciência judaica": a dos judeus e a dos psicanalistas. Para os
judeus, isto significava uma reafirmação narcísica; para os psicanalistas, ela tem a mesma função, só que por vias
diferentes. Dizer que a psicanálise tem origens judaicas significa acentuar a diferença entre a maneira habitual e a
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maneira psicanalítica de pensar, por "maneira habitual" entendendo-se tanto o senso comum quanto a ciência. Esta
ênfase na diferença é facilmente exarceba-da para transformar a descoberta do inconsciente numa revolução: a
revolução freudiana. E imaginar-se como revolucionários, como portadores da "peste", é algo a que certas
correntes analíticas — em particular as que se inspiram em Lacan — não resistem: todo um imaginário romântico-
adolescente, feito de rebeldia inócua contra o "establishment" universitário ou psicanalítico, vai-se alimentar da
suposta "marginalidade" da psicanálise, da sua granítica "irredutibili-dade" a qualquer outra disciplina... Não é o
momento de nos alongarmos sobre isso. Quero apenas deixar registrado que o tema da "psicanálise judaica" pode
se prestar aos mais variados delírios e a genealogias absolutamente fantasmagóricas, que se explicam bem mais
pela situação de quem as inventa do que pelas características da psicanálise, de Freud ou do judaísmo (12).
Que pensar da tese de Haddad? A questão é difícil. Em primeiro lugar, é preciso estabelecer mais
claramente se a "arte do Midrash" tem algum parentesco com a interpretação analítica; em segundo, se ela de
algum modo origina esta interpretação, seja porque representa o "retorno do reprimido" na cultura ocidental, seja
porque Freud tinha uma "vaga lembrança da arte de seus ancestrais", seja por qualquer outro motivo. Aqui, minha
hipótese é um pouco diferente. Não creio que as possibilidades aventadas por Haddad se justifiquem: não se onde
basear uma afirmação de tamanho alcance — a interpretação analítica se baseia na arte do Midrash— apenas nas
"vagas lembranças" de Freud; e, quanto ao retorno do reprimido, penso que é uma filosofia da História um tanto
pobre. Se há, com a invenção da psicanálise, retorno do reprimido, este reprimido provavelmente não está na arte
da interpretação, mas na ênfase conferida pela teoria de Freud à sexualidade e ao conflito psíquico; e mesmo isto
precisa ser afirmado com reservas, procurando estabelecer com exatidão o que é novo no pensamento de Freud e o
que é apenas transposição de idéias disponíveis na época em que ele escreveu. Foucault, por exemplo, mostra que
as idéias correntes sobre a era vitoriana — habitualmente imaginada como o século de ouro da repressão sexual —
precisam ser revistas. Não podemos aqui entrar neste terreno; o processo secundário nos aconselha a manter,
mesmo nas digressões, um mínimo de linearidade !
Penso que o problema deve ser colocado de outro modo. A meu ver, o Midrash está construído segundo as
regras do processo, primário, assim como boa parte da literatura de ficção, já que o processo primário fundamenta
a criatividade e a imaginação. Por outro lado, a psicanálise faz uso do processo primário, favorecendo sua
emergência no paciente através da regra da livre-associação e no analista através da regra da atenção flutuante.
Mas é preciso lembrar que a interpretação analítica não se esgota nisto; ela põe em jogo certas hipóteses sobre o
conflito psíquico, o desejo e a transferência, que nada têm a ver com a "arte do Midrash". Além disso, a
interpretação analítica não é a mesma coisa que a teoria analítica, que, pelo menos no caso de Freud, se apresenta
como uma construção racional, isto é, descrevendo fenômenos, nomeando-os, procurando estabelecer relações
entre eles e entre os conceitos que os designam, etc: em suma, a formulação teórica obedece, grosso modo, aos
princípios lógicos de processo secundário. Desta forma, proponho que continuemos nosso trajeto da seguinte
maneira: vamos estudar mais de perto dois exemplos de interpretação judaica, a fim de verificar, numa escala mais
ampla, se é possível considerá-la como incorporando modos de operar típicos do processo primário. Em seguida,
examinaremos brevemente qual o sentido, em psicanálise, do ato de interpretar. Somente então poderemos ter
condições de avaliar adequadamente a hipótese de Haddad, segundo a qual o Midrash é a mola oculta da
psicanálise, e portanto o "judaico" da psicanálise está na arte da interpretação. E se não estiver aí? Ou bem nada
haverá de "judaico" na psicanálise, ou bem este "judaico" terá de ser procurado em outro lugar. Vamos, então, por
partes.
(12) Ver, a este respeito, Renato Mezan, "Viena Imaginária", Cadernos do Centro de Lógica, Epistemologia e Filosofia da Ciência,
Campinas, UNICAMP, 1986 (no prelo).

O Estrangeiro do Zohar
Nosso primeiro exemplo será retirado do prólogo do Zohar, e o comentaremos com o auxílio de uma obra
de Mme. Eliane Amado Valensy, que citarei daqui a pouco. Sobre o ponto que nos interessa, a saber, a presença do
processo primário na interpretação judaica, existe uma passagem de G. Scholem que se reporta precisamente ao
Zohar. Escreve ele:
"Eu já disse que o autor do Zohar é um homiliasta, mais do que um pensador sistemático. Nisso,
contudo, ele está de acordo com uma tendência profundamente enraizada no pensamento judaico.
Quanto mais genuína e caracteristicamente judaica é uma idéia ou doutrina,tanto mais

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deliberadamente não-sistemática ela é. Seu princípio de construção não é o de um sistema lógico.
Mesmo a Mishná, que mais se aproxima do arranjo sistemático do pensamento, reflete esta falta de
sistematização." (13)
Isto é sem dúvida verdadeiro. Se vocês quiserem fazer a experiência, leiam os capítulos 3 e 9 do tratado
Berachot, transcritos em Do Estudo e da Oração, e que têm por tema a interpretação dos sonhos. Transcorrem
umas dez páginas antes que o tópico seja abordado, e quando finalmente o é... Mas não vou desmanchar o prazer
de Vocês; vão, leiam e se deleitem por sua própria conta.
O texto de Zohar se encontra, eu dizia, no Prólogo. Rabi Eleazar e Rabi Abba estão viajando, e um
estrangeiro vai atrás deles, conduzindo uma mula com suas bagagens. Eles discutem sobre o Shabat. O estrangeiro
os interrompe e faz um discurso impressionante sobre o versículo em questão; os rabis lhe perguntam quem é ele,
e, ao invés de responder, o estrangeiro começa um novo discurso, desta vez sobre uma passagem do segundo livro
de Samuel (23:20). O versículo fala de um certo" Benaiahu filho de Yehoiadá, que matou dois fortes leões de
Moabe, e desceu, e feriu um leão no meio de uma cova, num dia de neve. O estrangeiro interpreta que este
Benaiahu ben Yehoiadá (literalmente, "filho-de-Deus-ele, filho-do-Deus-que-conhece") é a própria divindade,
porque é chamado na passagem citada na "Ben Ish Hai Rav Pealim", isto é, "Filho de um Homem Corajoso que
fez Grandes Ações". "Rav Pealim" se refere a Deus, porque Ele é o Senhor de todas as ações; os dois leões de
Moabe significam os Dois Templos que Ele "matou", isto é, destruiu. O "dia da neve" se refere à sentença
pronunciada contra Israel no tribunal celeste, por causa de seus pecados. E aqui cito o Zohar, I, 6a-b:
"O verso seguinte diz: 'Vehu chiká et ish mitzri ósher mar'é, ubeiád hamitzri chanít, veiarád eláv
bashevét, vaigzól et hachanít miiád hamitzrí, vaiahargéhu bechanitó' ('E ele golpeou um homem egípcio de
aspecto claro, e na mão do egípciohavia uma lança; e desceu rumo a ele com um cajado, e arrancou a lança
da mão do egípcio e o matou com sua lança ' — II Sam. 23:21). O sentido místico deste versículo é que, a
cada vez que Israel peca, Deus o abandona e retira dele todas as bênçãos e todas as luzes que o iluminam.
Ele matou um egípcio: isto significa a luz do grande luminar de Israel, a saber, Moisés, que é chamado
'um egípcio ', como está escrito: ' Elas disseram: um egípcio nos salvou ', etc. (Ex. 2:19), porque ele
nasceu lá, lá cresceu e lá recebeu a luz mais alta. Um homem de aparência clara também significa Moisés,
de quem está escrito: ' Umar'é veló behidót ', por aparição clara e não por enigmas (Núm.l2:8). E o
egípcio tinha uma lança na mão, a saber, o cajado de Deus que foi entregue na mão de Moisés, como
lemos: 'com o cajado de Deus em minha mão ' (Ex. 17:9), que é o mesmo cajado criado na véspera do
Shabat, e no qual, com letras sagradas, estava gravado o nome de Deus. Com o mesmo cajado, Moisés
pecou golpeando a rocha, como lemos: 'E golpeou a rocha com seu cajado duas vezes ' (Núm. 20:11). O
Senhor, Louvado seja, disse-lhe: Não te dei meu cajado para este fim; por tua vida, doravante ele não
mais estará na tua mão. Imediatamente, desceu até ele com um bastão: julgou-o severamente, e arrancou a
lança da mão do egípcio, pois a partir daquele momento ele a perdeu e nunca mais a recuperou. E o matou
com sua lança: através do pecado de golpear a rocha com aquele cajado, ele morreu sem entrar na Terra
Santa, e com isto a luz foi retirada de Israel." (14).

(13) Gerrschon Scholem, As Grandes Correntes da Mística Judaica, São Paulo, Perspectiva, 1972, p, 158. Haddad concordaria com esta tese.
Ver L'Enfant Illégitime, p. 97: "A primeira característica do Talmud é esta constante difluência do texto, esta prática sistemática de misturar
alhos com bugalhos..."

Este texto é bastante típico do Zohar; ele é também sugestivo para os que leram o livro de Freud O homem
Moisés e a Religião Monoteísta, no qual se afirma que Moisés era egípcio. Mme. Valensy ficou tão impressionada
com a descoberta deste texto, no qual o Zohar diz a mesma coisa, ou quase, que escreveu todo um livro. Le Moïse
de Freud ou la Reference Occultée (15), no qual a análise desta passagem ocupa um lugar de destaque. O livro diz
muitas coisas interessantes, mas vamos nos ater apenas a este texto, no qual, espero. Vocês perceberão o
funcionamento evidente do processo primário.

(14) The Zohar, translated by Harry Sperling and Maurice Simon, Londres, The Soncino Press, 1934 (3" edição, 1970), p. 25-27.
(15) Monaco, Éditions du Rocher, 1984. O texto de Zohar I, 6a-b é longamente discutido no capítulo IV, PP. 99-130, discussão que tomo como
base para meu comentário. Mme. Valensy também acentua o caráter "onírico" e ao mesmo tempo lógico do pensamento judaico "(p. 104),
que, em minha opinião, justifica o emprego do conceito de processo primário.
Ψ - 72
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O estrangeiro começa por tomar ao pé da letra o nome do herói de Samuel 23:20, tirando-o do contexto no
qual figura, e que faz alusão às proezas dos guerreiros de David na luta contra os filisteus. Decomposto em suas
raízes, este nome significa "filho-de-Deus-(é)-ele, filho do Deus-que-conhece". Portanto, faz-se aqui referência a
YHWH em pessoa. Esta maneira de interpretar uma passagem Bíblica é muito semelhante a construção de um
Sonho, e também à sua desconstrução, na interpretação analítica. Podemos "dizer que o estrangeiro constrói um
discurso "onírico" a partir dos materiais bíblicos, associando livremente sobre eles; ou, inversamente, que toma o
texto bíblico como o relato de um sonho, e vai em busca das cadeias associativas, dos pensamentos latentes. É,
assim como na livre-associação, surgem certos pontos mais densos, nos quais se cruzam as cadeias associati-vas:
são os pontos de condensação. A referência a outras passagens bíblicas obedece ao principio do deslocamento,
isto é, daquilo que mencionei há pouco, ao dizer que, em virtude da contemporaneidade postulada entre todas as partes
da Bíblia, qualquer texto serve como interpretante de qualquer outro. O tempo é abolido aqui: eis outra
semelhança com os processos inconscientes - é por causa desta abolição da temporalidade que todos os textos
podem ser considerados contemporâneos entre si, o que, repito, fundamenta a legitimidade da interpretação.
O teor geral do discurso do estrangeiro é bastante claro: se Benaiahu é Deus, o egípcio que ele matou é
Moisés. Trata-se então de provar que: 1) Moisés pode ser sobreposto a este egípcio do II livro de Samuel; 2) todas
as coisas ditas acerca deste egípcio se aplicam também a Moisés; 3) disto tudo pode ser retirada uma verdade
mística, a saber: quando Israel peca. Deus o abandona e retira dele as bênçãos e as luzes. Reparem que a estrutura
do raciocínio é perfeitamente coerente, e pode ser formulada como um silogismo: P. Maior: Benaiahu é uma
designação de Deus e faz uma série de coisas a um egípcio;
P. Menor: Deus fez a Moisés uma série de coisas semelhantes às que Benaiahu fez ao egípcio;
Conclusão: Logo, o egípcio do qual se fala aqui não é outro senão Moisés.
Este processo lógico pertence ao secundário. O que é da esfera do primário é o método pelo qual se provam
as correspondências afirmadas na premissa menor; este método é a "analogia exacerbada'' da qual falava
Mielzyner, e que no Midrash tem o nome de Rémez (alusão, alegoria). Se isto for verdade, veremos ocorrer uma
sucessão ininterrupta de condensações e de deslocamentos, na "demonstração" do estrangeiro.
E, reparem, é exatamente o que acontece.
1) Primeiro deslocamento: "Ele matou um egípcio significa o grande lumina de Israel, Moisés, como está escrito:
'Elas disseram: um egípcio nos salvou' (Ex. 2:19)". Elas se refere às filhas e Jetro, junto a quem Moisés busca
refúgio após ter matado o egípcio que batia no escravo hebreu. O Zohar assinala que Moisés "é chamado" de
egípcio, porque deveria estar vestido como egípcio (já que fugira a toda pressa do Egito) e porque crescera lá; mas
a que luz se refere o texto? A revelação de Deus ocorre no Sinai, como lemos em Ex. 3:1-6 É que a "luz" deve ser
entendida no contexto do Mar'e, através do segundo deslocamento.
2) Segundo deslocamento: "Um homem de aparência clara significa também Moisés, de quem está escrito: Umar'é
velo bechidót, por aparições claras e não por enigmas" (Núm. 12:8)." Aqui o contexto bíblico trata dos futuros
profetas que aparecerão em Israel, e de como serão reconhecidos: Deus lhes aparecerá em visões e em sonhos,
contrariamente ao que ocorre entre Ele e Moisés: "Boca a boca falo com ele, umar'é velo bechidót: de modo a
fazê-lo ver, e não por enigmas". O deslocamento é fácil de perceber: Mar'e significa "fazer ver", "mostrar", e por
contiguidade "desvelar", "retirar' da obscuridade para a luz", tanto no sentido literal, quanto metaforicamente (em
oposição a "por enigmas", isto é, através de sinais ambíguos e obscuros). Portanto, o egípcio de aparência clara
remete a Moisés, a quem Deus aparecia "claramente", e que além disso possuía uma face resplandecente por causa
do brilho do Senhor. É por este motivo que o Zohar, no início da passagem, se refere ao profeta como "grande
luminar de Israel". De onde é possível inferir que a luz é retirada de Israel, quando há um pecado. Que pecado é
este, no caso examinado pelo estrangeiro?
3) Primeira Condensação: "E o egípcio tinha uma lança na mão": esta lança é assimilada ao "cajado de Deus"
mencionado em Ex. 17:9. O contexto aqui é o da luta contra Amalek; Moisés levanta os braços, e enquanto seus
braços estão levantados, os hebreus vão vencendo os amalequitas. Na mão de Moisés está o maté haelohim, o
cajado de Deus. A condensação se faz aproximando a lança (chanit) do egípcio e o cajado (maté) de Moisés, e seu
"tertium comparationis" é a mão: o egípcio segura a lança na mão, e Moisés segura na mão o seu cajado.

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4) Segunda Condensação: "Com o mesmo cajado, Moisés pecou golpeando as rochas, como lemos: Vaià'ach et
haséla bematéhu paa-máim, "e golpeou a rocha duas vezes com seu cajado" (Núm. 20:11). "Trata-se do dramático
momento em que Moisés vai tirar água da rocha, em Meribá, a fim de mostrar ao povo sedento o poder de
YHWH; mas, em vez de falar à rocha, como lhe ordenara o Senhor, ele bate nela com o cajado, dando a impressão
de que o milagre é obra sua e não do Eterno. Por este motivo, a Moisés não é permitido entrar na Terra de Canaã.
Temos então uma dupla condensação: da lança ao cajado, e do "cajado de Deus" ao cajado com que Moisés bateu
na rocha e pecou.
5) Terceiro Deslocamento: "E desceu até ele com um bastão": O sujeito desta frase, em II Samuel, é Benaiahu;
"ele" é o egípcio de aparência clara. O deslocamento está na idéia do bastão (shévet): agora, quem o empunha é
Deus (Benaiahu). O Zohar interpreta: este bastão é sinal do "julgamento severo" de Deus, que castiga Moisés por
seu pecado. O deslocamento está sustentado por uma condensação, desta vez entre o shévet de Benaiahu e o maté
haElohim de Ex. 17:9; o "tertium comparationis" está, obviamente, na idéia de que o cajado, antes de ser de
Moisés, é de Deus (maté haElohim). Esta condensação reforça a interpretação de Benaiahu como uma alusão a
YHWH.
6) Conclusão: "E arrancou a lança da mão do egípcio, e o matou com sua lança": dado o desenvolvimento
anterior, o Zohar infere que Deus, irritado com Moisés após o episódio da água, retirou-lhe o seu maté; e, como
este acontecimento é mencionado expressamente como causa da morte de Moisés antes de entrar na Terra de
Israel, conclui-se que Moisés "morreu por sua lança", ou seja, através do pecado cometido com sua lança/cajado,
foi decretado o modo pelo qual ele morreria. Por isto, a luz (de Moisés) foi retirada de Israel, e (recapitulação da
hipótese inicial) isto acontece todas as vezes que Israel peca. Cqd.

Redes Associativas e Sobredeterminação


Creio que podemos resumir isto com a fórmula de Mme. Valensy: o pensamento que aqui se exprime é ao
mesmo tempo "onírico" e "lógico", ou, no linguajar psicanalítico, estamos diante de uma construção do processo
secundário, a partir de um tratamento do texto bíblico em termos do processo primário. Será isto exclusivo do
pensamento místico, já que, afinal de contas, o Zohar é um dos monumentos do canibalismo espanhol? De forma
alguma. Esta liberdade de associar característica do processo primário, reencontra-se em todos os momentos que
designamos como criativos. Na verdade, a palavra associação descreve o que se passa com o inconsciente, porém
do ponto de vista da consciência: é para nós, seres conscientes, que A e B estão separados e vão ser ligados pela
associação. No inconsciente, rigorosamente falando, o que existe é um magma de representa-ção-afetos, com
deslizamento incessante de umas para dentro das outras: é o que Freud procurou sugerir através da imagem de
uma energia que se escoa livremente, "como um carga elétrica pela superfície de um corpo", como diz num texto
de 1894. Se incluirmos no sistema inconsciente os mecanismos de defesa, que, apesar de serem acionados pelo
ego, trazem a marca dos processos primários, podemos propor dele uma imagem diferente da do magma, mas que
preserva o caráter difuso e agitado desta noção. Imaginemos um sistema de nós, um pouco como uma rede; ou,
melhor ainda, um sistema em que se dão nós com outros nós, como no caso do macramé. Cada fio destes nós
corresponderia a uma representação do inconsciente, que convém figurar como um barbante, comprido, fino e
ondulante, mais do que como uma figura dotada de contornos nítidos: há tranças que servem de suporte a outras
tranças, e assim sucessivamente. Nos Estudos sobre a Histeria, Freud compara o inconsciente a um novelo, que é
uma metáfora do mesmo registro.
Por estar constituído desta maneira, o inconsciente ignora, como dissemos, qualquer limite. O limite é
uma invenção do processo secundário, invenção absolutamente imprescindível para a sobrevivên-cia da psique, que
no entanto comporta também alguns inconvenientes: ao opor fronteiras à mobilidade dos afetos e das
representações, o secundário pode trabalhar no sentido de tornar demasiado rígido o funcionamento psíquico. Um
sintoma preocupante em certas crianças é a estereotipia das suas brincadeiras, assim como sintoma que caracteriza
a perversão é a impossibilidade de gozar de modo diferente daquele imposto pelo roteiro fantasmático. De modo
geral, quanto menos plástico e menos permeável for o mundo interior de cada um de nós, mais pobre ele será, e
menos disponíveis estarão para nós mesmos os recursos psíquicos de que potencialmente poderíamos nos servir. A
neurose mutila o homem, que paga assim um pesado tributo à angústia infantil. É por esta razão que a psicanálise
vê no processo primário a fonte do que chamamos habitualmente de criatividade: esta consiste justamente nesta
capacidade de juntar coisas até então separadas, fazendo com que do seu entrechoque brote a chispa do novo. Isto
vale para as idéias novas, para as imagens novas, para as teorias novas, e portanto para o processo de invenção na
Ψ - 74
arte, na ciência, na filosofia, na técnica nas relações Antre, os homens, e assim por diante. Nesta perspectiva, toda
leitura que não se limite à paráfrase é uma recriação, que pode ser mais ou menos brilhante, mais ou menos
original, porém sempre conterá algo da subjetividade e da determinação histórica do leitor. O que caracteriza o
Midrash é o emprego sistemático destes procedimentos "primários" para descobrir sentidos ocultos num texto
suposto inesgotável porque inspirado por Deus; mas tais pressupostos não são os mesmos que organizam qualquer
leitura de qualquer texto. Por isto, o Midrash é tão característico, e se distingue facilmente de outras formas de
interpretação.
Falei há pouco do macramé; esta metáfora nos servirá para assinalar um aspecto essencial das formações
do inconsciente, aspecto indispensável para compreendermos a especificidade da interpretação psicanalítica: a
sobredeterminação. Esta se define como a propriedade de uma formação do inconsciente remeter a uma
pluralidade de fatores determinantes, não apenas no sentido de que resulta de várias causas
combinadas - o que é evidente - mas ainda num sentido muito
preciso: ela remete a seqüências significativas diferentes, cada qual-dotada de sua coerência própria, e consistindo cada
qual de múltiplos
elementos inconscientes (16). É no estudo do sonho que isto fica mais claro. Os pensamentos latentes que
subjazem a ele estão invariavelmente representados mais de uma vez nos elementos do sonho manifesto, os quais
são "pontos nodais" — de onde a utilidade da comparação com o macramé — em que se cruzam e se intersectam
diversas séries de idéias e afetos. Um exemplo simples, tirado de uma boa anedota judaica, mostra o
funcionamento da sobredeterminação. Dois jovens estão discutindo se se pode fumar e estudar a Torá ao mesmo
tempo. Um deles vai e pergunta ao rabino: "Rabino, pode-se fumar enquanto se estuda a Torá?" "Claro que não,
seria um sacrilégio!" O outro diz: "Você não sabe perguntar! Rabino, é permitido estudar a Tora enquanto se
fuma?" "Claro que sim, deve-se estudar a Tora dia e noite, a qualquer momento!" Aqui, o mecanismo mais
saliente é o deslocamento, mas a história só é engraçada porque as significações "fumar" e "Torá" estão
sobredeterminadas pelas, inúmeras séries contextuais nas quais figuram, despertando toda uma série de associa-
ções que percorrem as cadeias ou "seqüências significativas" da cultura judaica.
Vamos utilizar agora dois textos paralelos para mostrar o funcionamento da sobredeterminação na
interpretação rabínica da Bíblia. O primeiro é retirado da Mechilta para o texto de Ex. 20:7; o segundo provém do
Mishné Tora de Maimônides. Ambos estão traduzidos em Do Estudo e da Oração, o trecho da Mechilta à p. 197-198,
e o parágrafo de Maimônides à p. 429-430. Vocês verão mais uma vez em ação as técnicas do Midrash, e também
como a filosofia se afasta do processo primário que as impregna.

(16) Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la Psychanalyse, artigo "surdétermination' 467-468, cuja definição reproduzo.

A Mechilta comenta o segundo mandamento: "Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o
Senhor não considerará inocente o que toma o Seu nome em vão" (Ex.20:07). Diz o texto:
"Rabi Eleazar diz: 'É impossível dizer ele não absolverá, já que também está dito: ele
absolverá (vena-ké: Ex. 34:7). Mas também é impossível dizer: ele absolverá, uma vez que
igualmente está dito: ele não absolverá (lo ienaké, Ex. 34:7). Por isso, deveis dizer: ele absolverá
aqueles que se arrependerem, mas não absolverá aqueles que não se arrependerem".
"Por quatro coisas, Rabi Matias ben Haresh foi até Rabi Eleazar ben ha-Kapar em Laodicéia.
Disse-lhe: 'Mestre! Ouvistes as quatro coisas acerca da expiação que Rabi Ismael costumava
explicar? Rabi Eleazar lhe respondeu: 'Sim'. Um texto das Escrituras diz. 'Conver-tei-vos, ó filhos
rebeldes' (Jer. 3.14), texto pelo qual aprendemos que,o arrependimento traz perdão. E outra
passagem diz: 'Porque naquele dia se fará expiação por vós' (Lev. 16:30), texto pelo qual aprendemos
que o Yom Kipur traz perdão. Ainda outra passagem diz: 'Acaso esta maldade será expiada por vós
até que morrais?' (Isa. 22:14), texto pelo qual aprendemos que a morte traz perdão. E outro texto
ainda diz: 'Então visitarei com vara a sua transgressão, e com açoites a sua iniqüidade' (Salmos
89:33). Como deverão ser harmonizadas todas estas passagens?".
"Se alguém transgride um mandamento positivo e se arrepende disto, é perdoado
imediatamente: no que diz respeito a isso, está escrito: 'Convertei-vos,' etc."
Ψ - 75
"Se alguém violou um mandamento negativo e se arrepende, o mero arrependimento não é
suficiente para expiar isso; apenas deixa a matéria pendente, e o Yom Kipur traz o perdão, como
lemos: 'Porque naquele dia', etc".
"Se alguém comete deliberadamente transgressões cuja punição é a morte, e se arrepende
disto, o arrependimento somado ao Yom Kipur deixam a matéria pendente, trazendo meio perdão; no
que diz respeito a isso, está escrito: 'Então visitarei com vara as suas transgressões', etc."
"Todavia, se alguém profana o nome de Deus e se arrepende disto, nem seu arrependimento
pode deixar o caso pendente, nem o Yom Kipur trazer-lhe perdão, nem os sofrimentos limpá-lo do
seu pecado. O arrependimento somado ao Yom Kipur podem deixar a matéria pendente, e o dia da
morte, com os sofrimentos que o acompanham, completa a expiação. A isto se aplica o versículo:
'Acaso esta maldade será expiada por vós até que morrais?" (17).
A Mechilta é um conjunto de interpretações acerca do segundo livro da Tora, o Êxodo, e data da época
talmúdica (século IV ou V), embora provavelmente seus textos mais antigos remontem ao século II d.C. Cam
efeito, o estilo geral deste comentário é bastante próximo do Talmud. Reparem na sua estrutura: parte de um
versículo bíblico, o interpreta (Rabi Eleazar), interpola uma história (Rabi Matias) cujo ponto de derivação é algo
relacionado com a interpretação precedente (o arrependimento), joga com quatro versículos tirados de quatro
textos diferentes (Jeremias, Levítico, Salmos e Isaías), interpreta-os engenhosamente para fazê-los entrar numa
escala de severidade correspondente à gravidade das transgressões (infringir mandamentos positivos, infringir
mandamentos negativos, cometer crimes puníveis com a morte e profanar o Nome), e, por fim, transmite uma
lição moral: o arrependimento sozinho não basta para obter o perdão. Espero que, a esta altura. Vocês já estejam
habituados às condensa-ções e deslocamentos que estruturam explicações deste gênero. Que-ro, porém, ressaltar
umoutro aspecto, o da sobredeterminação, e para isto necessitamos recorrer ao texto hebraico das passagens
citadas, tratado com inacreditável engenhosidade pelos autores da Mechilta.
Tudo começa com o versículo do segundo mandamento: Ki lo ienaké Adonai et ashér issá et shemó lessáv
(Ex.20:7), "pois Deus não ienaké aquele que tomar Seu nome em vão". Que quer dizer ienaké? Vem da palavra
naki, limpo, puro, inocente, sem mácula. Deus não limpará, literalmente, quem profanar o seu Nome: por isso, no
fim do texto da Mechilta, aparece a idéia de "limpar do pecado". Rabi Eleazar cita então outro versículo, no qual
aparecem a palavra naké e seu negativo: "Notzér héssed alafim, nossé avón va pésha vachatá, venaké lo ienaké,
poked avón avót ai baním veál bnei baním ai shlishím veriviím", o que significa: "Guarda a misericórdia por mil
(gerações), perdoa a iniqüidade, a transgressão e o pecado, venaké lo ienaké, visita a iniquidade dos pais sobre os
filhos e sobre os filhos dos filhos até a terceira e quarta (gerações)" (Êx. 34:7). Este versículo trata da justiça de
Deus, da recompensa aos puros e da punição aos iníquos: muito natural, portanto, que Rabi Eleazar se lembrasse
dele e o associasse à discussão sobre o segundo mandamento. Além disso, figura neste segundo versículo a
mesma palavra ienaké empregada pelo primeiro. Aqui, porém, nos deparamos com um enigma: o sentido evidente
do versículo é a oposição entre o perdão e o castigo, e o ponto central em que se passa de uma idéia para outra é a
expressão venaké lo ienaké. Que significará isto? Ao pé da letra, "limpo e não limpará", "não purificará o
inocente", o que claramente é um pleonasmo. Rabi Eleazar retira a expressão do seu contexto, e compreende cada
palavra isoladamente: naké se tranforma em ienaké, futuro de verbo lenakot ("ele absolverá"), e ló ienaké passa a
ser o seu oposto ("Ele não absolverá"). Frente a isto, parece haver uma contradição com o versículo do
mandamento: ali. Deus não absolverá (não terá como puro quem tomar seu Nome em vão), enquanto aqui Deus
absolverá e também não absolverá (naké velo ienaké). Rabi Eleazar argumenta então que não se pode dizer nem
que Deus absolverá (a todos os pecadores) nem que Ele não absolverá (a todos os pecadores): absolverá alguns —
os que se arrependerem — e não absolverá os outros.

' Do Estudo e da Oração, p. 197-198, tradução modificada.

Esta análise minuciosa é indispensável para captarmos os procedimentos interpretativos. Regarem como
eles mesclam o deslo-camento e a condensação (em torno da palavra naké) com uma aplicação rigorosa do
princípio de não contradição: Deus não pode simulta-neamente absolver e não absolver; então, absolverá alguns e
castigará outros, solução que deixaria Aristóteles encantado. Com isto, entra em nosso texto da Mechilta a noção de
arrependimento— teshuvá — que origina novas séries de associações. Estas girarão em torno das palavras tahár

Ψ - 76
(puro) chapér (purificar, expiar), shuv (retorno, arrependi-mento), avón e pésha (iniquidade e transgressão). com o
jogo dos versículos, cada um destes termos reenvia aos outros, num vaivém de entrecruzamentos organizado pela
sobredeterminação. Vejamos isto
mais de perto.
Os versículos citados — sequências significativas, na definição de Laplanche e Pontalis — são os seguintes:
a) Jer. 3:14 - "Shuvu banim shovavim...'': "retornai, filhos que se afastaram (tradução literal: shavav é o fragmento,
a lasca de madeira), ou ''arrependei-vos. filhos rebeldes" (sentido metafórico).
b) Lev. 16:30 - "Ki vaióm hazé iechapér aleichém, vetahér etchém, mikol chateichem lifnei Adonai tit' harú": "Pois
neste dia será feita expiação sobre vós, e vos purificarei, e sereis purificados de todos os vossos pecados diante do
Eterno."
c) Salmos 89-33 - "Ufakádti beshévetpish'am uvin'ga'im avonám", "e visitarei com um bastão as suas
transgressões (pésha) e com golpes a sua uniquidade (avóm) ".
d) Isaías 22:14 - "Im iechupár heavón hazé ad temutún", "acaso sera expiada esta iniqüidade até que morrais?"
O tema geral destes versículos é o perdão e o castigo, como no texto de Êx. 34:7; independentemente do
seu emprego para justificar a escala dos pecados e das expiações, é extremamente notável perceber porque estes
versículos são associados ao de Ex. 34:7. Minha hipótese é a seguinte: primeiro Rabi Eleazar, por associação,
lembrou-se dos quatro versículos; depois, construiu a escala das penitências. E por que associou exatamente estes
versículos? Porque, como vemos no diagra-ma abaixo, cada um deles está vinculado a um ou mais elementos do
versículo. ÊX 34.7, exatamente como na sobredeterminação do sonho. Vejamos:

Ψ - 77
Limitei ao mínimo indispensável o número de elementos, para não tornar ilegível o diagrama; mas é fácil
verificar que, no nível formal, cada termo do versículo de Ex 34:7 se encontra em diferentes pontos das outras citações,
as quais, por sua vez, também estão ligadas entre si por remissões recíprocas. E todo o conjunto está deslocado, já
que a Mechilta não está comentando Ex.34:7, e sim Ex.20:7 (o segundo mandamento). Acho impossível encontrar
um exemplo mais evidente do que este: o texto está manifestamente construído como um sonho, cujos
pensamentos latentes são os versículos citados, supostamente (outro deslocamento) como suporte para o raciocínio
acerca dos pecados e das expiações. E, como num sonho, a menção de um dos elementos — no caso, a discussão
sobre ienaké — desencadeia o macramé de associações, já que cada termo reenvia a séries infinitas.
Já está tarde e por isto não comentaremos o texto paralelo de Maimônides (18) com atenção que ele
merece. Direi apenas que ele menciona os quatro versículos da Mechilta (com uma ligeira alteração em Jeremias),
mas submete todo o assunto a um tratamento bastante diferente. O contexto não é o comentário de um trecho
bíblico, mas a discussão do conceito de Teshuvá (arrependimento); a dialética do perdão imediato e do perdão
diferido organiza a leitura de Maimônides, que inclusive desloca o lugar dos "sofrimentos" — na Mechilta, eles
"precedem a morte", enquanto para o filósofo se situam na terceira categoria, a das transgressões punidas com
"vara e açoite". De modo geral, nota-se no texto de Maimônides uma preocupação com a simetria entre os graus da
escala ausente por completo da Mechilta. E, finalmente, as citações bíblicas vêm cumprir um papel bastante
diferente: servem para ilustrar o raciocínio, e não para desencadeá-lo. Mas isto tudo vocês poderão observar por si
próprios, se o desejarem. Por enquanto, já é tempo de nos encaminharmos para nossa conclusão.

Há algo de Judaico na Psicanálise?


Pode ser útil aqui, como o fizemos na aula passada, recapitular rapidamente nosso trajeto. Estamos em
busca de uma resposta para a seguinte questão: o que psicanálise contém de judaico, se é que tal idéia é
verdadeira? Examinamos primeiramente o sentido anti-semita e antipsicanalitico desta noção, no prolongamento
da terceira aula. Em seguida, retomamos um tema da segunda — a identidade judaica — e estudamos a função de
reafirmação narcísica desempenhada pela idéia de que foram judeus alguns dos principais homens deste século,
idéia que envolve a de que a psicanálise herda algo da cultura judaica; utilizamos o paralelo do sionismo para
mostrar que cumprir uma função útil não é algo suficiente para demonstrar a verdade de uma hipótese.
Retornando à carta de Freud à Bnei Brit estudada na primeira aula, procuramos entender melhor o que significa
"um uso do intelecto não toldado por preconceitos": isto nos conduziu à concepção bíblica da magia, à qual aliás
retornaremos daqui a pouco, e a idéia do Deus onipotente. Vimos então de que modo a interpretação da Bíblia
surge na história dos judeus, quais são os postulados e ao que ela serve. Uma analogia se impôs com a
interpretação psicanalítica, e aqui surgiu a primeira resposta à nossa pergunta: o que a psicanálise tem em comum
com o judaísmo é seu método de interpretação. Após ter afastado a hipótese de que o parentesco entre ambos se
devesse à presença de conteúdos comuns (Bakan), estudamos a idéia de Haddad segundo a qual existe um "efeito
midrashico" na interpretação analítica. Isto nos conduziu à noção de processo primário, cuja ação no Midrash
quisemos demonstrar com alguns exemplos e com a análise detalhada de um texto do Zohar. Uma outra idéia
importante — a de sobredeterminação — foi ilustrada com a dissecção do trecho da Mechilta. E agora?

(18) Do Estudo e da Oração, p. 429-430 158

Agora, trata-se de juntar estes fios todos e tecer nossa própria rede. O primeiro nó será o seguinte: de nada
adianta procurar filiações diretas entre o judaísmo e a psicanálise, pela simples e boa razão de que ela foi inventada
por um judeu "completamente agnóstico". Mas, dirão Vocês,repetindo talvez sem saber uma observação
endereçada a Freud por Karl Abraham numa carta de 1908: "O modo talmúdico de pensar não pode ter
desaparecido subitamente de nós!" De acordo; Freud em pessoa parece subscrever esta idéia — segundo a qual o
judaísmo é antes um modo de pensar do que um doutrina — quando fala da "mesma arquitetura psíquica" , da
"secreta familiaridade anímica" que o vincula tão fortemente aos judeus. Mas reparem que, para conceituar assim
o judaísmo, é preciso já ter saído dele, já tê-lo abandonado com Weltanschauung, para encontrar "refúgio" em ou-
tras concepções acerca do homem, do mundo e da vida. Muitos judeus o fizeram, na esteira dos processos que
estudamos na primeira aula: apenas, não é legítimo conceber como idênticos ao judaímos os novos campos a que
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se dedicaram, com a mesma energia e a mesma tenacidade com as quais seus antepassados haviam perscrutado os
mistérios da Escritura. Inúmeros judeus se apaixonaram pelas ciências da sociedade e da natureza, mas estes
objetos de desejo e de curiosidade não são equivalentes ao judaísmo, o qual jamais foi para os judeus tema de
estudo teórico antes do século XIX. É preciso levar a sério a crença na Revelação, no destino único de Israel, na
necessidade de se obedecer aos mandamentos divinos nos menores detalhes da vida quotidiana, que
caracterizavam os judeus antes da Emancipação e da assimilação. Estudar a Tora nada tem em comum com
estudar a estrutura do átomo ou a determinação social de uma escola de pintura: são atividades qualitativamente
diferentes, porque uma se move num universo repleto da presença de Deus, e as outras "prescindem desta
hipótese", como diria Laplace. É certo que a ciência ou a revolução podem se converter em substitutos da religião;
mas o projeto científico visa, para conhecê-lo, um objeto marcado pela indeterminação, e isto é incompatível com
uma visão religiosa do mundo. Na ciência, enquanto ciência, não há outra garantia da verdade do que dizemos a não
ser a inexistência de uma prova em contrário, o que torna esta verdade sempre provisória, sempre vacilante, à
espera do dia fatal em que se demonstrará sua falsidade. Critérios como a experimentação e a matematiza-ção,
como o caráter condicional das hipóteses e o livre exame dos pressupostos, inexistem na religião e inexistem
igualmente no debate talmúdico: a nenhum sábio medieval ocorreria questionar, por exemplo, o postulado da
inerência ao texto interpretado dos significados nele descobertos pela interpretação. Em virtude disto, qualquer
analogia entre a psicanálise e o judaísmo — ou entre o marxismo e o judaísmo, ou entre a teoria da relatividade e
o judaísmo — não prova coisa alguma a priori, porque a eventual semelhança dos enunciados é insuficiente para
apagar a enorme diferença existente quanto aos espaços da enunciação: o Talmud e a Intepretação dos Sonhos
não falam a partir do mesmo lugar.
Porque não se respeitam estas distinções, a pergunta sobre "o que há de judaico na psicanálise" tem sido
respondida por uma inacreditável profusão de tolices. O judaísmo só aparece como ancestral da psicanálise a
posteriori, depois que o interpretamos com as ferramentas conceituais por ela construídas: e o que há de
admirável no fato de que, depois de selecionarmos no judaísmo certos elementos (sejam eles o interesse dos
talmudistas pelos sonhos, o interesse dos cabalistas pela sexualidade, ou o isomorfismo entre as técnicas do
Midrash e as técnicas da interpretação analítica), e depois de os estudarmos com o instrumental analítico, estes
elementos nos dêem a impressão de conterem em si uma psicanálise virtual? Mas, justamente, é apenas virtual
esta psicanálise; encontraremos somente indícios, idéias que, se desenvolvidas numa certa direção, soam parecida
com as da psicanálise. Porém, para que pudéssemos "perceber" isto, foi necessário que, em outro lugar e para
responder a questões totalmente diversas, a psicanálise as tivesse formulado por extenso, e não apenas em regime
de virtualidade. Tudo o que o rei Midas tocava transformava-se em ouro; o objeto de estudo construído pelos
analistas traz a marca das categorias utilizadas na sua construção. O livro de Haddad o comprova: dedicando-o a
Jacques Lacan, ele descobre no judaísmo talmúdico que o homem é um ser de linguagem, sujeito à tirania do
significante, marcado pela falta, que encontra na Lei do Pai a sua redenção — em suma, o homo lacanensis está
contido em germe nas linhas e nas entrelinhas do Talmud. Sejamos claros: o livro de Haddad traz muitas
informações interessantes, estabelece uma analogia suges-tiva entre a arte do Midrash e a técnica da interpretação
analítica, mas afirma uma tese insustentável: a de que a psicanálise, com sua maneira de interpretar, reintroduz na
cultura ocidental algo que esta repromida com violência — o judaísmo e seu Midrash. A psicanálise não é de
modo algum "retorno do reprimido", e caracterizá-la deste modo implica considerar — o que está longe de ser uma
idéia sem conseqüen-cias — que uma formação cultural é um sintoma da natureza idêntica à do sintoma neurótico
formações culturais não brotam, evidentemente, no vazio, mas daí a pensar que o esquema pulsão/angústia/conflito/
defesa/ retorno do reprimido seja suficiente para dar conta da História — mesmo que seja apenas da historia da
psicanálise — vai uma longa e problemática distância.
Existem, sem dúvida, analogias entre certos temas e conceitos da psicanálise e certas elaborações da
tradição judaica. Para tomar uma delas, a noção de um invisível eficiente está contida tanto na idéia de Deus, como
no conceito de inconsciente; o próprio Freud situava o início da tradição racional na lei de Moisés que proíbe a
representação da divindade por imagens... E daí? Iremos inferir disto que o inconsciente é uma laicização da idéia
de YHWH? É evidente que não, já que, para não ir muito longe, YHWH é um princípio de atividade pessoal, que
não tolera adversários (vide a inexistência da magia no judaísmo bíblico), que exige uma ação moral... O
inconsciente é impessoal (seus "enunciados", diz Freud, são todos no modo infiniti-vo), a psicanálise trabalha com
a noção de conflito entre duas pulsões irredutíveis uma à outra, e encontra a origem da moral não na vontade santa
de YHWH, mas nas identificações edipianas que estruturam o superego. Vocês vêem que basta dar dois passos a
partir da analogia para que ela se desfaça. Isto invalida por completo qualquer proposta do gênero sugerido por
Ψ - 79
Bakan, como, penso, deve estar claro a esta altura. Mas — e a tese de Haddad? Será verdade que a interpretação
analítica se inspira na "arte do Midrash"?
A resposta é: decididamente não. Estamos diante de mais uma analogia, simplesmente mudando de nível: já
não se trata de pensar a derivação judaísmo/psicanálise no plano dos conteúdos, mas no plano das formas. Ora,
para que a analogia tivesse valor, seria necessário demonstrar: 1) que o essencial da psicanálise é a arte da
interpretação; 2) que esta arte é, no fundamental, idêntica à do Midrash; 3) que a interpretação midráshica é o elo
inicial de uma cadeia que conduz à interpretação analítica. Ora, nenhuma destas três proposições é verdadeira.
Então, de onde vem a analogia, que as análises de texto a que procedemos talvez tenham tornado ainda mais
palpável? Vejam bem: não nego que a analogia exista; nego apenas que ela seja suficiente para responder à
pergunta acerca do que há de "judaico" na psicanálise.
E, em primeiro lugar, vamos ver de onde ela provém. O que foi dito a respeito dos processos primários me
parece suficiente para que percebamos com clareza o seguinte: os métodos hermenêuticos do Midrash fundam-se
sobre a utilização — sistemática, deliberada e justificada pelo postulado da interpretação rabínica — dos
mecanismos característicos do processo primário, de modo que a construção de seus textos obedece inúmeras vezes
às mesmas leis que presidem ao trabalho do sonho. O estudo da passagem da Mechilta nos mostrou que até mesmo a
sobredeterminação pode estar presente num texto rabíni-co. Não há, assim, por que dizer que o Midrash é a
origem oculta da psicanálise: o que acontece é que o Midrash, como o sonho, a literatura de ficção, a desoberta
científica, a inspiração artística e a invenção técnica, para citar só alguns exemplos paralelos, consiste no resultado
da liberação do processo primário e no aproveitamento eficaz (= secundário) das significações assim criadas ou
desvendadas. Longe de ser a causa da psicanálise (ou uma de suas causas), o Midrash é o efeito literário de uma
série de mecanismos psíquicos isolados e descritos pela psicanálise. Que os judeus tenham acreditado nas
explicações midráshicas é que tenham obedecido ao código ritual, civil, criminal e moral assim constituído não é
evidentemente explicável apenas pelas noções psicanalíticas que mencionei; trata-se de fenômenos sociais
complexos, para cuja elucidação a psicanálise pode eventualmente contribuir, mas que ultrapassam em muito sua
esfera de competência.
Bem, mas o que a psicanálise tem a dizer sobre a origem da interpretação analítica? Por acaso ela não
emprega técnicas interpretativas chocantes para a lógica do secundário? São duas coisas diferentes. O que acabei
de formular quanto ao Midrash se refere à terceira das proposições enumeradas acima; resta ver se a interpretação
analítica é mesmo tão parecida com a arte do Midrash quanto, por comodidade, a deixamos parecer ate aqui.
Sinto muito desiludi-los: ela não é. A interpretação, em psica-nálise, não se limita à descoberta de sentidos
ocultos, nem mesmo à criação de novos sentidos; a analogia entre o discurso do paciente e o texto bíblico é muito
curta, ainda que concebamos o texto como inesgotável e o discurso como infinito, em virtude da
sobredeterminação de todas as suas partes. E isto por um motivo muito simples: para ser analítica, a interpretação
precisa visar não somente o sentido latente da fala do paciente, mas ainda visar uma transformação do espaço
psíquico no qual emerge esta fala.
Partamos da idéia de que a interpretação analítica, ao desvendar o sentido latente, "visa elucidar as
modalidades do conflito defensivo, e em última análise o desejo que se formula em toda produção do inconsciente",
segundo a conceituação de Laplanche e Pontalis(19). O objeto da interpretação, portanto, é o conflito defensivo e
o desejo que o sustenta; a finalidade da interpretação é fazer com que o paciente aceda a este sentido latente. E
para que serve isto? Fiera Aulägnier, numa conferência intitulada "Le Travail de l'Interprétation", nos oferece
uma resposta luminosa:
"Para que um pensamento possa ser chamado de analítico, é preciso que possua duas
propriedades, as mesmas que possuía a teoria de Freud: — propor a formulação de uma série de
conceitos que se refiram ao funcionamento psíquico, e mais particularmente ao inconsciente, tal
como Freud o definiu; — mas também, e afesta sua singularidade, formular uma teoria cuja
apropriação, tanto pelo teórico quanto por aqueles que a farão sua, comporte um poder de
modificação sobre a relação que vai se instaurar entre aquele que interioriza a teoria, o Eu, e aquilo
de que fala a teoria: o inconsciente.
Mais brevemente, eu diria que a teoria de Freud é uma 'teoria de' e um 'um instrumento
para'. A aquisição dos conhecimentos que ela propõe é, em princípio, para-lela a uma transformação
dos objetos psíquicos dos quais ela trata: transformação que é a própria finalidade desta aquisição

Ψ - 80
(...) Esta definição se aplica ponto por ponto ao conceito de interpretação: o ato de interpretar se
define, do mesmo modo, pela nova relação que ele põe entre um efeito e sua causa (...) e peia
transformação que a apropriação desta nova relação opera na organização do espaço psíquico" (20).

(19) Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la Psychanalyse, artigo "Interprétation", p. 206-209.


(20) Piera Aulagnier, "Le Travail de l'Interprétation", in Comment l'Interprétation vien au Psychanalyste, Paris, Aubier-Montaigne, 1977, p.
16.

Percebam que, mesmo sem ir muito adiante, a noção de interpretação mudou de registro. Não é apenas o
seu objeto que se altera (do texto, passamos às defesas, aos desejos e às fantasias de um ser humano). O que muda
é o seu objetivo e os meios de obter sua efetivação. Seu objetivo: induzir uma transformação psíquica no desti-
natário da interpretação, transformação a ser entendida rigorosamente como "alteração da relação entre o Eu e o
espaço psíquico exterior à sua jurisdição"(p.21), e não apenas como aquisição de uma nova informação, como
despertar de uma emoção ou como adoção de um propósito por parte de quem a recebe. E os meios de efetivar
tais objetivos: esta transformação é obtida por vias libidinais, através dos fenômenos da transparência. O que
Haddad deixa de lado, ao postular a filiação arte do midrash/arte analítica da interpretação, e que a interpretação
psicanalítica só tem sentido numa psicanálise, e que nesta, o que a torna eficaz é a transferência. Á comunicação
de uma interpretação ao paciente se faz tendo em vista, não a novidade ou a sutileza da relação descoberta entre o
dito e seu conteúdo latente, mas duas características essenciais, ausentes da interpretação midráshica (e, em geral,
de qualquer interpretação não-analítica: por isso, são definidoras desta última): "a descoberta, no que se ouviu, da
ligação presente entre o que é vivido aqui e agora e a representação fantasmáti-ca de um desejo reativado por este
momento da relação transferencial, e nossa convicção de que o ponto do percurso em que se encontra o paciente
torna possível que ele se aproprie do sentido e do alcance da interpretação" (p.24 da conferência mencionada).
Esta conferência de Piera Aulagnier merecia, sozinha, toda uma aula. Penso que, para nossa finalidade
atual, os trechos que citei são suficientes: a interpretação analítica, em sua criação pelo analista, em sua
comunicação ao paciente e nos efeitos de metabolização e de singularização que ela produz (ou pode produzir)
neste paciente — três aspectos decisivos — não se aparenta à hermenêutica rabínica, mística ou filosófica. Ela
resulta da liberação, no analista, dos mecanismos do seu processo primário ("atenção flutuante") e por isto
apresenta pontos de contato com as demais produções do processo primário ou infiltradas por ele: sonhos,
literatura, arte, invenção técnica ou científica — e Midrash. Eis aí a origem da analogia que Haddad aponta, e da
qual deseja extrair uma prova de que a psicanálise é o retorno do reprimido na cultura ocidental.

(21) Freud, "O Manejo da Interpretação dos Sonhos na Psicanálise", 1911, edição espanhola da Biblioteca Nueva, II, p. 1646.

Então, onde chegamos? Não há nada de judaico na psicanálise? Antes de lhes propor minha resposta para
esta pergunta, quero dizer duas palavras sobre a proposição n° 1: a de que é falso afirmar que o essencial da
psicanálise é a arte da interpretação. Esta afirmação pode soar escandalosa, visto que a interpretação é o ato
analítico por excelência. Quero esclarecer que também penso assim: ao dizer o que disse, tinha em mente a noção
de interpretação proposta por Haddad. Em outras palavras, é falso afirmar que o essencial da psicanálise seja a
descoberta dos sentidos ocultos na fala do paciente, descoberta equivalente às que os rabinos é místicos judeus
produziram interrogando o texto da Escritura. O essencial da psicanálise é realizar o projeto analítico, e para isto a
interpretação — mesmo no sentido mais depurado definido por Piera Aulagnier — é apenas um instrumento.
Freud o diz, com sua limpidez habitual: "Sustento portanto que a interpretação (dos sonhos) não deve ser
praticada, no curso da terapia analítica, como uma arte em si mesma, mas que seu manejo se submete às regras
técnicas às quais deve obedecer todo o conjunto do tratamento" (21). O mesmo, aliás, vale para a teoria analítica:
uma das idéias fecundas de Piera Aulagnier, no texto que citei, é a de que a teoria analítica, para ser analítica e
não apenas "sobre o inconsciente", precisa ser formulada de um modo tal, que sua apropriação por quem a estuda
tenha efeitos transformadores na relação entre Eu e o inconsciente deste estudante. Não nos cabe agora explicitar
isto, mas convém reformular uma afirmação anterior, um pouco esquemática demais: a de que a gênese da
interpretação ocorre no nível do processo primário, enquanto o pensamento teórico se move na esfera do secun-
dário. Isto não é bem assim: há participação do processo secundário no pôr em palavras a interpretação, e há

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participação do processo primá-rio — em particular, da angústia, da sexualidade e da transferência — na
elaboração da teoria. De qualquer teoria, mas sobretudo da teoria psicanalítica. Isto vai ficar, infelizmente, um
tanto vago; mas nosso tema não é este, e já é hora de lhes oferecer minha resposta atual para o problema que nos
ocupa.
Penso que a relação entre judaísmo e psicanálise não reside nem em conteúdos comuns, nem em uma
genial arte de interpretar que os rabinos teriam descoberto séculos antes de Freud: As diferenças entre a
psicanálise e o judaísmo são enormes, e a meu ver decisivas. O que os aproxima, para mim que sou judeu e
psicanalista, é uma inspiração comum, inspiração que contudo não é exclusiva nem à psicanálise, nem ao
judaísmo; eu a encontro, sob diferentes roupagens, em muitos aspectos e obras da civilização ocidental. Trata-se
do seguinte: abrir um espaço para pensar o lado obscuro e o terrível da natureza humana, sem fazê-lo desaparecer,
mas sem tampouco sucum-bir a ele. Bem sei que isto é muito genérico; gostaria de encerrar esta palestra com
algumas observações a este respeito, necessariamente fragmentárias, porque representam apenas o ponto a que
cheguei atualmente na elaboração destas questões.
O judaísmo bíblico se constitui pela exclusão de um reino independente do Mal: as citações que fiz de
Yehezkel Kaufmann, e todo o seu livro, me parecem provar isto de modo conclusivo. O poder atribuído a YHWH
é de tal ordem que perto dele não pode subsistir nenhum outro; o sagrado é fonte de brilho e de luz, mas também
de morte e de horror, caso alguém se aproxime dele em estado de impureza. Esta é concebida apenas como
ausência do esplendor de YHWH: sua fonte é o deserto, a ruína, o "exterior ao campo". Por isso não há magia na
Bíblia, por isto seus demônios não são ativos, por isto todo o perigo provém do Eterno.
Mas o judaísmo pós-bíblico não se contentará com isto. Não que questione a unicidade de Deus; ao
contrário, a reafirmará sem cessar. Porém a idéia de uma vontade humana autônoma, fonte do pecado, irá também
se consolidando, em parte pela evolução e aprofundamento das concepções judaicas originais, em parte pelo
contato dos hebreus com outras civilizações, que haviam tematizado este aspecto sob a forma de noções religiosas
ou filosóficas. O fato é que se 'tornou perceptível a existência de um outro reino, concebido em termos religiosos
como domínio do mal ou do pecado; e, para manter este reino sob controle, desenvolveu-se todo o ritual judaico,
tão minucioso que chegou a ser interpretado como um sistema de defesas contra angústias fortíssimas. A
interpretação rabínica da Bíblia visava "construir uma cerca em torno da lei", como lemos na primeira frase da
Ética dos Pais. Se é preciso construir uma cerca, é porque a Lei corre algum perigo; e este perigo vem das
entranhas do homem. O Talmud e todas as obras da tradição judaica são claros a este respeito: é a uma percepção
extremamente aguda da eficácia daquilo que os cabalistas denominaram "sitra achra", o "outro lado", que
devemos o rigor das normas rituais e legais que caracterizam o judaísmo tradicional.
Gostaria de desvincular este "outro lado" de'qualquer conotação moral. Ao fazer isto, sei que me afasto
da visão judaica tradicional; mas, justamente, não sou um judeu tradicional, e "não encontro refúgio nas coisas
que deixavam felizes os velhos judeus". Para mim, é mais sugestivo pensar este "outro lado" como um poder de
desorganização e de indiferenciação, que a psicanálise descreve com o nome de inconsciente; é claro que tal idéia
me diz respeito pessoalmente e se ancora em minhas próprias fantasias. Ela não é, contudo, estranha à
psicanálise; o inconsciente, efetivamente, é o pulsional, o arcaico, o magma de representações e afetos
governados pelo processo primário e pelo princípio do prazer, cuja outra face é a quietude marmórea da morte. O
ser humano nada quer saber deste "outro lado", que no entanto o habita e o constitui. O que faz a psicanálise?
Suscita estes "demônios da alma", como diz Freud no Caso Dora; mas "não para prosternar-se admirativamente
diante deles, nem para humilhar o espírito... Freud compreende a superioridade afetiva e dominante da pulsão
sobre o espírito (...), mas não se presta à confusão, nem é ele próprio vítima da confusão. Sem dúvida alguma,
seu interesse pela pulsão — pelo lado noturno da psique — não é servil, não nega o espírito por um
conservadorismo da Natureza. Contribui para a vitória revolucionária, no futuro, da razão e do espírito (...) Freud
escreve: 'Podemos sublinhar quanto quisermos que a inteligência humana é inferior em força às pulsões, e
mesmo ter razão ao dizê-lo. Mas esta fraqueza tem um caráter particular: a voz do intelecto é frágil, mas não
descansa enquanto não se faz ouvir. No final, após inumeráveis fracassos, ela sempre o consegue ."(21).
E isto nos traz de volta ao nosso tema, através da enigmática expressão de Freud: "O uso do intelecto não
toldado por preconceitos". O primeiro destes preconceitos reside na idéia de que o intelecto é o senhor do
Universo: não é, e, mesmo no espaço psíquico, a instância que pensa — o Eu — não é nem o primeiro nem o
único inquilino. Mas toda a psicanálise se dirige para "alterar a relação presente entre ó"Eu e o espaço psíquico
fora de sua jurisdição", nas palavras de Piera Aulagnier. E Freud dizia: Wo es war, soll ich werden — onde havia o
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id, que haja o Eu. São expressões que não significam a restauração dos privilégios da consciência, mas que
tampouco retiram ao Eu todas as suas funções. Pois, se o Eu é o agente da repressão, é igualmente o instrumento
deste pouco de liberdade interna que a psicanálise nos proporciona, não porque ela o reforce, mas porque coloca à
sua disposição recursos psíquicos que as defesas mutiladoras da neurose lhe haviam confiscado. A psicanálise, em
suma, brinca com fogo, mas segundo certas regras. Estas lhe dão uma garantia razoável de que é possível sentir
menos frio sem por isto incendiar a casa: é possível abrir espaço para o inconsciente, sem que tal abertura signifi-
que necessariamente soçobrar na loucura.*

(21) Thomas Mann, "O Lugar de Freud na História Intelectual Moderna", 1926; edição bilingüe, Paris, Aubier-Flammarion, 1970. A citação de
Freud provém de "O Futuro de uma Ilusão", cap. X, edição espanhola, p.2990.

Creio que Gérard Haddad é muito feliz quando aproxima esta dimensão da psicanálise do projeto que animava os
talmudiatas. Vale a pena citar um sugestivo parágrafo de seu livro: "Em última análise, o Talmud é antes de tudo o
imenso exercício de se acostumar sem descanso a uma prática da diferença: percebê-la, se necessário, sob uma luz
levíssima, ou aumentá-la pelas técnicas do Midrash, mesmo que ela esteja oculta, dissimulada (...) A mensagem
primordial dos fariseus reside nesta prática. Um universo simbólico cujas arestas fossem aparadas, no qual a
diferença não fosse mais reconhecida, se tornaria mortífero, e deslizaria rumo ao além do princípio do prazer, ao
reino de Tânatos. Em outros termos, o Talmud efetua a tentativa — bastante bem-sucedida — de ancorar o homem
à Razão, à Lógica, uma lógica regrada pela Letra, uma advertência solene contra qualquer tentação supersticiosa,
mágica, e mesmo mística. Assim, Freud aparece como um digno herdeiro deste pensamento..." (22). Discordo de
Haddad no que se refere à Lógica, e penso ter boas razões para isto; o judaísmo é menos racional do que ele
pretende. Mas concordo com a idéia de que Freud é digno herdeiro de um pensamento que avalia o que se opõe a ele
de modo tão preciso, que julga necessário modificar a direção do investimento libidinal, canalizando-o para o
universo das regras e do estudo da Tora. A psicanálise realiza algo equivalente, sem as restrições impostas à
sexualidade pelo judaísmo clássico, e sem a preocupação obsedante pela pureza ritual e moral que o caracteriza.
Dela também se pode dizer que é uma prática sistemática da diferença, se por isto entendermos a prática da
singularidade, o investimento daquilo que se opõe ao reino indiferenciado de Tânatos (isto é, o funcionamento
psíquico irrigado por Eros), a incessante produção de novas significações, que vêm afinar e apurar o universo
simbólico de cada um de nós, fazendo-nos aceder a uma fruição menos angustiada de nossa própria vida psíquica e
a um relacionamento com os outros menos governado pelas defesas arcaicas. Bem sei que nada disto se encontra no
Talmud; considero, porém, que o judaísmo tenta, em seu próprio terreno e utilizando as categorias pertinentes à
sua idéia essencial, preservar um espaço para que o pulsional se expresse, ainda que sublimado no estudo e na
oração.
Mas não apenas aí; Freud falava das fontes de calor humano que, para ele, estavam ligadas à sua condição
judaica. Pessoalmente, não tenho esta experiência; para mim, em virtude de minha história pessoal, esta simbiose
não se verificou. Vejo no judaísmo uma de minhas raízes, porém a busco e a cultivo à minha própria moda: sinto
prazer em estudar sua história e as obras que produziu, em falar dele, em praticar um ou outro ritual que me
emociona e me parece significativo. Talvez ele conote para mim um passado remoto e inacessível; talvez por isto a
história e a cultura judaicas me soem como tão atraentes; talvez por isto, procuro manter com elas uma relação
que não apague a diferença, que respeite as arestas do universo simbólico que é o meu. Como a sitra achra, elas
me seduzem, e, se delas me aproximo com instrumentos forjados pela razão, é porque me fascinam e me fazem
pressentir dimensões insuspeitadas de meu próprio ser.

(22) Haddad, op. cit., p, 102-103.

Disse-lhe que só poderia oferecer, à pergunta que baliza esta aula, uma resposta pessoal, ou seja, na qual
estão inevitavelmente presentes, em meio à argumentação racional, certas significações conscientes e
inconscientes que se referem apenas a mim mesmo. A análise me é útil para desvendar algumas delas; outras
permanecerão secretas, talvez para mim, e certamente para Vocês. Queria concluir esta aula contando-lhes uma
história, cuja conexão com o que expus ficará a cargo de Vocês determinar. Haddad a narra na página 47 de
L'Enfant Illégitime, e me encantou descobri-la; ela fala do Paraíso. Diz a história:

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Um pagão se admira de que os judeus, gente tão prática, empreguem tanto esforço no estudo. "Deve haver
nisto um ganho fabuloso". Toca no assunto com um rabi. "O senhor tem razão, mil vezes razão: um ganho
fabuloso, nada menos que nosso Paraíso".
— "Este paraíso deve ser maravilhoso. Gostaria de visitá-lo, e, se for como o imagino, eu me
converterei".
— "Negócio fechado", diz o rabi; "esta noite mesmo virei buscá-lo em sonhos e o levarei até lá".
Naquela noite o pagão, em seu sonho, foi conduzido pelo rabino por caminhos escuros e esburacados.
— "É isto, o paraíso de Vocês?"
— "Como o senhor é impaciente!" Finalmente, entrevêem uma modesta cabana, "Eis nosso paraíso",
disse o rabino, entremos!"
O que o pagão vê ali? Um velho debruçado, à fraca luz de uma vela, sobre um volumoso tratado.
— "É Rabi Akiva, o maior de nossos sábios depois de Móises. Ele está no Paraíso."
— "Mas, explode o pagão, o senhor está zombando de mim! Este paraíso é ridículo, e este velho, que
deve ter estudado a vida inteira, continua a fazê-lo!"
— "Justamente, esta é sua recompensa. Agora, ele compreende o que lê."

CODA: CARTA ABERTA A UMA EX-ALUNA


Durante o curso, foram-me dirigidas diversas perguntas sem relação aparente com o tema, mas que
revelavam grande preocupação com a decadência do judaísmo em São Paulo, com a situação dos jovens, e com o
convívio dos judeus com a realidade não-judaica. Lembrei-me então de uma carta que escrevi de Paris a uma ex-
aluna do Colégio LL.Peretz, e cuja cópia havia guardado; pensei que o que dissera a ela poderia contribuir para
situar mais claramente questões como as que, com insistência, pareciam polarizar o interesse do público. Por isto
a reproduzo aqui, na expectativa de que estas idéias — que continuo a defender — tenham algum valor para os
que se defrontam com interrogações semelhantes.
"Sabe, Renato, estou com um grande drama de consciência. Sei lá, nem sei como começar a te
dizer. Eu gostaria de ouvir você dizer alguma coisa sobre este assunto, pois para mim é muito
importante. O pessoal da minha faculdade é supergenial. Estou me dando muito bem com todo
mundo. Mas estamos com um sério problema aqui, que é a falta de ambiente judaico. Estou ficando
apavorada, sabe? Estou fazendo muitas amizades entre os não-judeus e tenho medo de me envolver
com um cara, sei lá. Sabe, Renato, eu não gostaria de jogar fora toda uma educação judaica, valores
judaicos que sempre tive e que sempre achei muito importantes. Como atualmente está faltando o
lado judaico (ambiente), tenho medo de 'fraquejar' . O pessoal da faculdade é genial, gente cheia de
coisas para ensinar, sei lá. Eu gostaria de ouvir alguma coisa de Você a este respeito. Vê se escreve
para mim, tá?"
Paris, 25 de junho de 1978.

Querida B.,
Fiquei impressionado com o que você me diz na sua carta, nas linhas como nas entrelinhas. Você bem sabe
que muitas vezes, nas aulas de que guardo uma lembrança tão agradável, o mesmo problema se levantou. Peço-lhe
licença, assim, para citar suas palavras, tão sentidas, tão verdadeiras, e que traduzem com tanta precisão o "drama
de consciência" vivido não só por você mas, estou certo, por toda uma geração de jovens judeus. É esta
universalidade, que transparece na expressão aparentemente mais pessoal, que me leva a responder-lhe sob a
forma de uma "carta aberta". Enganam-se os que pensam ser o mais íntimo intransponível para o registro do
conceito, como se nos problemas de cada um a reflexão não fosse capaz de descobrir aquilo que os liga aos de
todos os outros. Não existe de um lado o "pessoal" e de outro o "geral"; o universal e o singular se entrecruzam, se
permeiam, se determinam reciprocamente. Por outro lado, a questão é vivida por você segundo sua própria
maneira de ser, segundo aquilo que faz de você o que você é e ninguém mais. Se a sua angústia é sintomática do

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que se passa em muitas outras cabeças, ela não é por isso menos "sua", menos verdadeira do ponto de vista de
você mesma. É por isso que, respondendo ao seu pedido, penso responder também a outros que se encontram na
mesma situação, e, quem sabe? não puderam ou não quiseram enfrentar o problema com a coragem e a decisão de
que você deu mostras.
Você se lembra de como nós começávamos a leitura de um texto, naquelas aulas de Filosofia que me
ensinaram tanto ou mais do que a vocês: eu lhe disse numa outra carta que é comum verem-se alunos avaliando o
que devem a tal ou tal professor, mas que é mais raro um professor perguntar-se o que deve a seus alunos. E, sem
sombra de dúvida, eu devo a vocês todos as ocasiões de pensar em conjunto, as perguntas que abriam caminhos
novos à nossa reflexão coletiva, a perspicácia com que vocês encontravam as falhas nos raciocínios que se
apresentavam, a audácia com que nos aventurávamos numa trilha para ver aonde ela poderia conduzir. Mas, dizia
eu, nós começávamos a 1er alguma coisa levantando os termos e os temas principais do texto. Permita-me
considerar o que você escreve como se fosse um texto a ser analisado; você verá que este método nos conduzirá a
bons resultados.

Leitura
Você se descreve numa situação-limite: há uma escolha a fazer, e você não sabe que partido tomar. Por
um lado, sua "educação judaica", que para você consiste essencialmente em valores, não deve ser jogada fora.
Mas falta um ambiente, um círculo de relações que de certa forma encarne estes valores e lhes permita uma
expressão social. Por outro lado, você vem de uma escola judaica e acaba de entrar na faculdade, onde descobre
um pessoal genial, supergenial, cheio de coisas novas para ensinar; você se dá bem com todo mundo. Ora, esta
situação lhe aparece como um dilema: você a vive como um drama de consciência. Em que consiste o drama? No
pavor de, em meio às amizades não-judaicas, envolver-se com um cara. E, de quebra, a indecisão permeia tudo o
que você sente a este respeito: você escreve três vezes a expressão "sei lá". Envolver-se com "o cara", seria, para
você, fraquejar. De onde a angústia: você espera que eu lhe diga como proceder (duas vezes "eu gostaria de ouvir
algo de você sobre isto") isto é para você muito importante.
Bem. Em suma: um ambiente interessante mas não-judaico, contraposto a vem judaísmo sem apoio no
ambiente, dada a falta de um grupo. Digamos que o problema não é precisamente novo... Mas vale a pena
prosseguir na análise do seu texto. A primeira etapa já cumprimos: aproximamos os termos a aproximar. Passemos
agora aos temas:
1) Você não pode ter deixado de notar que, entre os dois ramos da sua alternativa, há uma dissimetria essencial. O
"judaísmo" está dentro de você, sob a forma de uma educação e de valores; esta interioridade do judaísmo é
suficientemente marcada pela expressão "jogar fora". Só se joga fora o que de certa maneira está dentro,
concorda? A esta interioridade do judaísmo não corresponde um suporte grupai, sob a forma de "outros" judeus
com quem você pudesse trocar idéias e vivências, obviamente não só sobre o judaísmo, mas sobre a totalidade da
sua experiência. Ora, o não-judaico apresenta-se sob um aspecto precisamente inverso.
Há um "pessoal", um grupo, que atrai você por suas qualidades visíveis (são "geniais", dão-se bem com
você e vice-versa) e por aquilo que você apenas entrevê, mas que a interessa também: as "coisas novas" que o
"pessoal" vai ensinar.
2) Dilacerada entre um judaísmo que, por ser interior, de certa forma não a estimularia a buscar novas
companhias, e um novo que a atrai, você sente um drama de consciência. Tem "pavor" de "fraquejar". Fraquejar
em que? Em não sustentar a força que você faz. Mas esta força é bem misteriosa. Você não diz em lugar nenhum
que esteja fazendo força. Mas pense comigo: só fraqueja quem está envolvido num intenso esforço: quem está
placidamente refestelado numa rede, por uma bela tarde de verão, não tem por que fraquejar. Você está fazendo
força para se manter judia. Esta força não lhe é natural, pois, até agora, dado o ambiente em que você vivia, ser
judia não necessitava de esforço algum. Fazendo um esforço de certa maneira artificial, você cria duas
conseqüências: artificializa seu judaísmo e, em virtude disto, entra em pânico. Acho que é simples perceber o
seguinte: você está tentando preservar um judaísmo que, pela maneira mesma com que você se relaciona com ele,
tende a ficar cada vez mais artificial e portanto desprovido de qualquer interesse. Entra em cena o círculo vicioso:
preservar, por preservar, algo que se deteriora cada vez mais à força de ser tão "guardado". Você me acreditará se
eu disser que o judaísmo também mofa? Ora, você não quer que isso aconteça com você; logicamente, fica
apavorada.

Ψ - 85
3) O "pessoal da faculdade" recobre uma coleção de pessoas provavelmente bastante heterogêneas, mas que, para
você, se apresentam como "geniais". Em que consiste a genialidade? No fato de que você e elas se dão bem, em
primeiro lugar; e nas "coisas novas" que elas têm a "ensinar". A um leitor atento não escapará a correspondência
entre a "educação" judaica que você recebeu e o "ensino" das coisas novas que você espera dos seus colegas de
faculdade. Estas "coisas novas", designadas abstratamente, significam o mundo da experiência não-judaica, que é
o destes colegas. Como tudo o que é novo, a experiência que você desconhece a atrai e a repele ao mesmo tempo;
mas é curioso que a transmissão se faça num sentido só, dos outros para você, sem que transpareça a outra face da
moeda, isto é, o que você pode comunicar a eles. Sem se dar conta, você se coloca na posição de quem tem tudo a
receber e nada a dar. É por quê? Porque aquilo que você traz consigo, a educação e os valores judaicos, estão
ainda num nível muito pouco elaborado; você se sente, na esfera judaica, ao mesmo tempo à vontade e
incapacitada para pensá-la e formulá-la em termos "comunicáveis". Há muitas coisas que passam despercebidas
nesta relação que você estabeleceu com seus colegas, e que tanto a agrada, a ponto de você considerar que se dão
muito bem.
4) Por fim, o medo de "se envolver com um cara", isto é, de ter um namorado não-judeu. Medo de quê? Em
primeiro lugar, do que os outros vão dizer. Estes "outros" são a família, os amigos (ou ex-amigos, pois você se
queixa precisamente da falta de um círculo judaico), a "opinião pública", para usar um termo vago. Além disto,
sendo você menina, o medo de uma relação amorosa que poderia eventualmente ter conseqüências mais sérias.
Um rapaz pode ter seus namoricos com o "outro lado"; são outras tantas vitórias, que bajulam o amor próprio: ser
capaz de seduzir as mulheres do outro grupo étnico! Mas que uma das nossas "idische mêidales" seja objeto do
mesmo desejo por parte de um não-judeu, isto é muito mais grave! Pelo menos é a opinião corrente. Sem refletir,
você está simplesmente assumindo os preconceitos mais obsoletos do gueto — o terror (o termo é seu) de que os
soldados do "outro lado" arrebatem as belas jovens judias. Há mais uma implicação, atávica neste medo: o temor
da inconsequência, isto é, de ser apenas um objeto de diversão para o homem não-judeu, para ser jogada às traças
quando ele se cansar da sua conquista. Não digo que você tenha pensado nisto tudo, mas é o que se lê, digamos,
nas entrelinhas do seu discurso. Mais adiante comentarei de onde vem este "temor atávico"; neste primeiro
momento, quero apenas marcar este traço, quase inaudível, porém presente no que você diz.
Em resumo, estes quatro temas desenham uma constelação bastante clara. Você acaba de entrar na
faculdade. Os colegas não são judeus; eles a fascinam pelo tipo novo de sociabilidade que você descobre (são
geniais), pela naturalidade com que a recebem (enquanto o grupo judaico perguntaria primeiro se você é judia ou
não); seu "ser judia", que se resume em algo emocional, recebido como educação, mas não elaborado
conceptualmente, se choca com a abertura inesperada do círculo de amizades; você entra em um drama de
consciência. Neste drama, figuram como personagens um judaísmo indefinido e que corre o risco de se
artificializar, uma atração pelo novo, o medo de se descaracterizar, de se despersonalizar e de "se envolver"
demais com os outros. E você entra em pânico. Por um lado, um grupo interessante mas não-judeu; por outro, um
judaísmo sentido, mas sem eco no grupo que a atrai. Não é isto? De permeio, sentimentos confusos de inferioridade
(as coisas a aprender), de medo (o "envolvimento" conduziria aonde?), de alegria (estou me dando muito bem),
de admiração (eles são geniais), de autodepreciação (tenho medo de fraquejar), enfim, uma tonalidade angustiada
que é imediatamente visível no que você diz.

Análise
Bem, penso ter colocado suficientemente em relevo o que se depreende da sua carta. Vamos agora à
análise da situação, tal como eu a vejo; e sinto-me autorizado a fazê-la à minha moda, já que você pede que eu lhe
precise o que penso do assunto.
Longe de mim a idéia de desvalorizar a premência do problema. Você o sente na carne, e a verdade do seu
sofrimento não deixa lugar a dúvidas. Acho apenas que, se desdobrarmos juntos as implicações da situação, você
verá que talvez a alternativa que você se impõe não esteja bem formulada. Talvez a coisa não se coloque em
termos de "ou-ou": ou o grupo judaico inexistente, ou a aderência total ao "pessoal da faculdade".
Quem é o pessoal da faculdade? Você está operando com universais abstratos, isto é, com descrições
vagas que você toma por conceitos. O "pessoal da faculdade" não é uma massa homogênea, mas um conjunto
provavelmente bem diversificado de estudantes. Para você eles se unificam no "não serem judeus"; mas esta é
uma característica negativa, que, como você bem se lembra, não serve para definir coisa alguma. Não são nem
mesmo cristãos, pois a religião já não desempenha hoje, no ambiente estudantil de São Paulo, nenhuma função
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especificadora. Você está diante de um grupo provavelmente de pequena e média burguesia, temperado com
alguns (raros) filhos de operários e alguns (menos raros) filhos da alta burguesia. Boa parte deles é de origem
portuguesa, italiana, japonesa ou mestiça; são frações da população dita brasileira com que, até agora, você teve
pouco contato, e mesmo este, superficial: são os "não-judeus" que, em sua experiência até aqui, formavam o
mundo do trabalho — empregadas, tintureiros, comerciantes em geral, operários tipo marceneiro ou encanador,
serventes da escola.
O único contato mais profundo com não-judeus lhe veio da influência de alguns professores da escola, e
mesmo este só em certos casos; mas o que há de comum entre os professores e os outros que mencionei é que
nem uns nem outros estavam na mesma posição que você (eles lhe eram superiores, na hierarquia escolar, os
outros inferiores, na hierarquia social). Você ou recebia algo deles (por exemplo instrução) ou lhes dava algo (por
exemplo encomendas, pagamentos...), mas a comunicação se realizava sempre na vertical. Ora, você está diante
da necessidade de se comunicar na "horizontal", com pessoas do mesmo "nível". E, surpreendentemente, esta
comunicação funciona bem. A sociabilidade induzida pelas condições da faculdade — tempo integral, grupos de
trabalho, excursões de calouros, etc. — faz você descobrir que eles são "geniais". Reação imediata: fascínio e
medo. Eles são certamente diferentes de você: vestem-se talvez de outra maneira, têm outros gestos, outros
códigos tácitos de comunicação, outra linguagem. É claro: a infância deles se passou em outros cenários, outros
foram os cheiros, as fisionomias, os pequenos rituais familiares e de rua que compõem o mundo do "natural", do
"imediato". Não apenas são diferentes de você, mas também diferentes entre si. Ou você acha que um nativo do
Pacaembu vive no mesmo mundo simbólico que um trânsfuga de Cotia? A variedade cria as condições da aceitação
recíproca, de mais a mais porque, no ambiente da faculdade, as semelhanças pesam mais que as diferenças: todos
são calouros, todos acabam de passar pelo traumatismo do cursinho e do vestibular, todos gostam ou pensam
gostar da disciplina que escolheram, todos estão fascinados pela novidade do estudo e da Universidade. Pode estar
certa de que, cada um à sua maneira, eles se colocam as mesmas questões que você.
Mas, enquanto para eles a faculdade é o grupo natural, para você o grupo natural é o da escola judaica.
Isto faz toda a diferença. A escola judaica tem certas vantagens, mas entre elas certamente não se conta a
variedade de origens nem de meios sociais. Já estamos na segunda geração de judeus nascidos no Brasil: a
proveniência dos avós, ela sim muito variada, já quase não pesa como fator de formação. O meio social judaico é
notavelmente homogêneo: pais normalmente burgueses, nível de renda classe A, freqüência aos mesmos dois ou
três clubes, aspirações idênticas quanto ao futuro da prole, alienação marcante do ponto de vista político,
preconceitos, defeitos e qualidades mais ou menos comuns. Você cresceu e se formou nesse ambiente, e, ao
contrário dos seus colegas, o cursinho e a faculdade representaram uma abertura enorme no seu campo de
relações. Nada mais natural que se coloque a comparação entre o que você já conhece e o que se lhe- apresenta
agora pela primeira vez, pois na época do cursinho o estudo acaba contando em geral mais do que o relaciona-
mento social.
Ora, se você fizer o balanço do que absorveu do mundo exclusivamente judaico que foi até aqui o seu,
certamente terá dificuldades para uma formulação precisa. O judaísmo que você respirou é mais um certo
perfume, uma certa atitude, um certo aceitar-como-naturais-certas-coisas-e-repelir-outras, do que um conjunto de
fatos indiscutíveis. Ora, uma cultura não sobrevive sem bases materiais e sociais enraizadas no real; o judaísmo
não escapa à regra. As bases sociais da cultura judaica na Europa desapareceram com a imigração para o Brasil.
Transplantados do "shtetl" ou das comunidades multisseculares da Europa Central que, ao longo de trezentos ou
quatrocentos anos, haviam secretado uma forma específica de ser judeu — crenças, costumes, alimentos, práticas
rituais, formas de se relacionar com outros judeus e com os "goim", esperanças, medos e ódios profundamente
arraigados — os judeus que aportaram ao Rio ou a São Paulo viram-se em meio a uma sociedade em rápida
transformação, onde, em virtude do dinamismo econômico, havia oportunidades de ascensão social, e onde, em
virtude do passado escravocrata, o "outro" era secularmente o negro e não o estrangeiro, categoria na qual se
enquadravam os recém-chegados. O judaísmo do "shtel" não podia sobreviver nestas condições. Enquanto a
maioria da comunidade viveu ao redor do Bom Retiro — grosso modo, de 1920 a 1950 — as instituições criadas
pela primeira leva de imigrantes asseguraram a vida orgânica do judaísmo de São Paulo: foi a fase do teatro ídiche,
das refregas entre sionistas e "roiter" das sinagogas ainda precárias mas razoavelmente freqüentadas, do perigo
nazista, das ameaças integralistas, das primeiras escolas, cooperativas de crédito e folhas jornalísticas. Mas, de
1950 para cá, isto tudo foi se dissolvendo. A geração nascida no Brasil e com freqüência educada na Universidade
não podia se contentar com os horizontes relativamente estreitos do bairro judaico; as novas avenidas serviram de
escoadouro às ambições nascentes, e os judeus vieram para a Zona Sul. O judaísmo não ficou imune a esta
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mudança de endereço. Compare os sócios do Círculo Israelita de 1935 com os da Hebraica de 1975. Não preciso
dizer mais nada, não é verdade?
O que define a situação da comunidade judaica em São Paulo é a sua inserção social. Esta é, de modo geral,
determinante para as formas de consciência de todo grupo social; e neste particular os judeus não escapam à regra.
Herdeiros de um judaísmo rico e profundo, que se nutria da grande tradição religiosa e se perpetuava em
condições de relativo isolamento — mesmo no século passado, as barreiras sociais ainda eram suficientemente
sólidas para perpetuarem os efeitos da discriminação multi-secular exercida contra ele —, os judeus que
emigraram para o Brasil viram desaparecer as duas condições sem as quais nenhuma cultura pode sobreviver
autonomamente: uma população homogênea e numerosa, e um mínimo de "condições de produção cultural":
língua, público educado, isolamento relativo das outras culturas, sólidas raízes num passado partilhado pelos prati-
cantes da cultura em questão. O judaísmo esvaziou-se do seu conteúdo em terras paulistas: a religião foi aos
poucos deixando de ser observada; o ídiche foi morrendo com a geração de imigrantes; o hebraico é um idioma
artificial no Brasil; o meio social judaico perdeu suas características próprias, e tornou-se aos poucos uma fração a
mais da burguesia brasileira. As formas que significavam ainda algo para a primeira geração tornaram-se mudas
para quase toda a segunda. Excetuados alguns poucos intelectuais, ninguém se ocupa seriamente de produzir
cultura judaica em São Paulo. Onde estão nossos romancistas? Nossos pintores? Nossos poetas? Nossos hazaniml
A comunidade não produz sequer seus próprios rabinos, que, com duas ou três exceções, são todos estrangeiros. E
isto não se deve a nenhuma sinistra conspiração contra o judaísmo; é o resultado inevitável da assimilação cujas
raízes se encontram em grande parte fora do alcance exclusivo dos judeus. O que sobrou?
Sobrou apenas o "perfume", como eu disse no começo; e para os que, como você, freqüentaram uma
escola judaica, sobrou também um contato mais direto com as fontes do judaísmo, com o hebraico, com a história
e a cultura judaicas, com Israel. Isto você resume na expressão "valores judaicos". Ótimo: mas estes valores ficam
no vazio, pois as formas e os ritos sociais em que eles se encarnavam deixaram de nos ser familiares. O "ser
judeu" conservou apenas um elo por meio do qual unir-se à realidade quotidiana: o estar entre outros judeus. O
gregarismo atávico fornece energia para que funcionem as máquinas da grande fábrica comunitária: esta é a
verdade nua e crua. Organizações se estruturam com a finalidade de "estar-com": grupos, núcleos, círculos
juvenis, etc. Ora, uma vez fundado o grupo, o estar-com se realiza: e então surge o vazio, a busca de um objetivo
mais amplo, que infelizmente, no mais das vezes, não é alcançado, dissol-vendo-se o núcleo pouco tempo depois
de formado. O vazio do "estar-com" explica-se pelo vazio que está em cada membro do grupo: muitos vazios,
lamentavelmente, não bastam para criar um pleno. Diante desta situação, a angústia se instala, e sua carta a
comprova em toda a sua intensidade.
Você se sente um pouco como a herdeira de uma grande fortuna, que não sabe o que fazer com ela porque
é incapaz de avaliá-la em toda a sua extensão. O judaísmo que você herdou é ambíguo: você dispõe das
informações a que teve acesso na escola, mas elas não correspondem mais à situação concreta que você vive, pela
simples razão de que as condições em que se produziu a cultura que você estudou não existem mais. É natural,
assim, que você hesite; os judeus que você conhece pouco têm a ver com os "valores" que para você representam o
judaísmo, e em quase nada se distinguem dos não-judeus que você encontra na faculdade. Estes, por sua vez, não
tendo que corresponder a nenhum modelo idealizado, valem para você por si mesmos, pelo que são no dia a dia:
estudantes, gente alegre e desinibida, amigos possíveis, companheiros de uma luta comum que os envolve e os
ultrapassa. Como não se sentir atraída por isso? Os judeus você já conhece ; foram seus colegas na escola, seus
parceiros nos esportes da Hebraica, seus vizinhos de prédio. Por um momento, o "estar-com" gente da mesma
origem, do mesmo meio, não é mais suficiente. Tampouco é suficiente a ligação emocional com os "valores"
judaicos, que, impotente para por em prática, você contudo considera importantes. Que valores são estes? Como
você os articula, em que eles consistem? Eis aí uma tarefa nada fácil: dizer com conceitos algo que, em minha
opinião, é de origem profundamente emocional. O que você chama de "valores judaicos" não são nem os valores
da religião — a pureza moral e ritual — nem os valores tradicionais do "shtetl": astúcia, solidariedade, apreço
pela erudição, esperança na era messiânica. Talvez eu me engane, mas sou levado a pensar que os "valores" que
você tem tanta dificuldade em definir são indefiníveis, porque estão muito mais vinculados ao registro emocional
que ao racional.
Permita-me explicar-me melhor. O que marca as pessoas são determinadas experiências, muitas delas
remontando à infância, que servem como linhas de força para estruturar nosso campo psicológico. O que se
relaciona com o judaísmo me parece ser desta natureza, posto que só assim consigo explicar a enorme intensidade

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da problemática judaica mesmo para aqueles cuja educação tradicional é perfeitamente nula. São certas imagens
(uma menorá? uma estrela de David?), certas cerimônias (um Yom Kipur? um seder de Pessach?), certos choques
emocionais (a Guerra dos Seis Dias? a morte de um parente?), certos elementos, que configuram um perfume,
uma atitude, um sentir-se à vontade mais em certas circunstâncias que em outras, mais com certas pessoas que com
outras, mais em certos lugares que em outros. Isto marca uma criança da maneira mais profunda que você possa
imaginar; é a impressão do "Tu és isto" no mais profundo do nosso inconsciente, o selo de Abraão, se você quiser,
muito mais fundo até do que a circuncisão nos meninos, que, ela, serve de signo distintivo imediato e crucial. A
estas experiências estruturadoras, você somou tudo o que lhe ocorreu na escola, a recepção de informações, a
vivência com colegas. O "natural" para você foi sempre marcado com este signo característico: provir de judeus,
relacionar-se com judeus. E, agora, o fato de você ter entrado na faculdade faz com que o "imediato" mude de
aspecto: espaços e pessoas já não falam de judaísmo, mas de coisas outras e totalmente diferentes.
Que fazer? A resposta é uma só: viver o que você chama a sua "educação" da forma mais "sua" que for
possível. Suas experiências, mesmo indefinidas, mesmo mais ancoradas no desejo-de-ser do que naquilo que
chamo de bases sociais, são tão genuínas e tão importantes como as de seus colegas. Foram-se para sempre os dias
da bela totalidade religiosa, em que a fé e o ritual definiam de forma nítida e insofismável o que era e o que não
era ser judeu. O presente é de dilaceração, de dúvidas, de angústias. A comunidade judaica é o que é, a roda da
história não gira para trás. A sociedade brasileira acolheu os imigrantes, permitiu-lhes que enriquecessem e
ascendessem na escala social; a consciência judaica diluiu-se, os pontos cardeais se embaralharam, os signos
perderam sua eloqüência de outrora, e em vão você procurará nas quadras da Hebraica o sentido do ser-judeu que
emanava das pedras do mais miserável dos vilarejos da Polônia.
Você não tem de optar entre o "grupo" judaico e o "grupo" da faculdade. Os judeus se tornaram burgueses
circuncidados, esta é a verdade; é o modo de ser judeu que condiz com as condições de existência de São Paulo,
cidade em que, na autofagia generalizada, nada sobrevive intacto, tudo se deteriora ao contato da voracidade do
capital, inclusive o capital cultural que os imigrantes trazem consigo. Nestas condições, a Universidade funciona
como um dos poucos lugares em que o real pode ser elaborado, pensado e criticado. A vivência deste lugar é
indispensável; é indispensável a participação no modo de pensar, na atitude de certa forma saudavelmente cética
frente aos chamados "valores estabelecidos", para separar o joio do trigo. O Brasil vive nestes meses um momento
decisivo da sua história. Os movimentos subterrâneos que agitam a sociedade civil estão emergindo, o corpo
político se movimenta, coisas importantes estão por acontecer. Os judeus certamente não ficarão imunes a estas
transformações, como não ficaram àquelas que as precederam. Você tem a oportunidade de assistir de perto à
eclosão de um movimento intelectual, de tomar parte nas suas lutas, nas suas glórias e nos seus fracassos. Vale a
pena rejeitar isto em nome de...de quê? Do judaísmo? Mas uma coisa nada tem a ver com a outra! O grupo
judaico não lhe oferece as mesmas oportunidades; talvez lhe ofereça outras, que num outro momento poderão ser,
ou não, mais atraentes. Você não pode continuar a se considerar em posição de inferioridade, como se só você
tivesse algo a aprender. Na vida, como na História, não existem portos seguros do saber. O sentido de cada
experiência só aparece a quem sabe inventá-lo; ele não está escrito em nenhum manual, em nenhum livro dos
livros que se poderia consultar no silêncio de um gabinete de estudo. Ele está ali, latente, nos contatos que surgem
a cada dia, no corpo-a-corpo das idéias, dos olhares, da trama invisível que liga uns aos outros os atores de uma
mesma cena.
E é neste sentido que eu gostaria de responder à mais angustiada das suas perguntas, o medo de se
"envolver com um cara". Se você não aceita plenamente as regras do jogo, como pode esperar que ele lhe traga as
satisfações que promete? Das duas uma: ou você se aceita como é, quer dizer, como judia também, e neste caso
você deve aceitar os outros como são; ou você é rejeitada por ser judia, e neste caso nada tem a fazer neste grupo.
Ora, este não é o caso, como você afirma na sua carta. Portanto, se você está integrada no "pessoal", se você se
sente bem entre eles, se, ao invés de admirar embasbacada o novo, você o integra à sua personalidade e sabe ser
você mesma em todas as ocasiões, não vejo nada de mal em "envolver-se". Neste ponto, discordo dos que
vituperam os namoros e os casamentos mistos. Não vejo nada de mais nos casamentos mistos, desde que as
pessoas se amem e se respeitem mutuamente, o que, aliás, um casamento endogâ-mico não garante a priori. Deste
ponto de vista, o envolvimento amoroso com um não-judeu poderá ser enriquecedor ou não; tudo depende das
pessoas que se envolvem. Talvez a sintonia dos universos simbólicos ajude a travar um conhecimento mais
profundo, a partilhar experiências que só ocorrem entre judeus ou entre havaianos; a importância deste fator
depende diretamente das pessoas em questão, e é impossível prever o seu peso específico em cada casal. Em todo
caso, se você vier a gostar de um rapaz não-judeu, não permita que preconceitos do mais baixo nível venham a
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turvar a sua experiência. O amor é algo que tão dificilmente vê a luz em nossos tempos, intrinsecamente medíocres,
que seria tolo deixar passar uma vivência potencialmente fecunda por motivos tão pouco dignos de um ser
humano decente.
Bem, espero ter dado a você elementos para refletir novamente sobre a situação que vive atualmente. Não
há soluções prefabricadas; cada um tem que inventar sua rota a cada momento. É assim que compreendo o
pensamento de um dos sábios do Talmud, o excelente Hillel, que disse certa vez: "se eu não for por mim, quem
será por mim? E se não agora, quando?" Com este fragmento da antiga sabedoria judaica, que, ela sim, vivia do
confronto permanente com o real, permita-me, querida B., despedir-me com um abraço carinhoso Renato.

Obras e Autores Mencionados Neste Estudo


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