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144 Neurociências • Volume 2 • Nº 3 • maio-junho de 2005

Revisão

A construção de falsas memórias


Construction of false memories
Marco Montarroyos Callegaro

Resumo
A lembrança que temos do passado não é literal, mas sim fortemente afetada por
expectativas, crenças e informação do presente. Neste artigo, examinamos o fenômeno das
falsas memórias, a recordação de um fato ou uma experiência que nunca ocorreu. O
conhecimento sobre a natureza construtiva da memória e a possibilidade de criação de
falsas memórias acarreta importantes implicações para todos aqueles envolvidos com a
recuperação de lembranças, em especial, no tratamento de transtornos psicológicos.

Palavras-chave: Falsas memórias, memória construtiva, sugestão.

Abstract
The remembrance of the past is not literal, is strongly affected by expectations, beliefs and
present information. In this article, we examine the phenomenon of false memories, a
remembrance of a fact or an experience that never happened. Knowledge about the
constructive nature of memory and the possibility of creating false memories brings important
implications for everyone involved in the recuperation of remembrances, especially in the
treatment of psychological disturbances.

Key-words: false memories, constructive memory, suggestion.

MARCO MONTARROYOS CALLEGARO é


psicólogo, mestre em
Neurociências formado pela
UFSC, professor do curso de
Psicologia da Universidade do
Sul de Santa Catarina
(UNISUL), psicoterapeuta
cognitivo-comportamental e
Diretor do Instituto Catarinense
de Terapia Cognitiva (ICTC).

Correspondência:
mcallegaro@brturbo.com.br
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Introdução registro fiel do mundo externo. A recuperação ou lem-


brança da memória armazenada depende da capaci-
Um importante aspecto da memória é a possibi- dade de remontar novamente, a partir das modalida-
lidade de lembrarmos eventos que nunca ocorreram e des sensoriais específicas, a imagem da situação vi-
experiências das quais não participamos realmente, vida, e neste processo nosso cérebro lança mão de
um fenômeno intrigante denominado pelos pesquisa- diversas estratégias cognitivas para gerar uma recor-
dores de “falsas memórias”. Examinaremos, neste ar- dação coerente, como excluir elementos díspares,
tigo, como o fenômeno acarreta uma série de impli- adicionar os que faltam, construir suposições implíci-
cações importantes para todos aqueles que lidam com tas e acreditar nelas, fazer inferências, etc.
a recuperação de lembranças. As evidências apontam
que a recordação que temos de eventos passados não Falsas memórias
é literal e fidedigna; é, na verdade, uma construção do
sujeito influenciada fortemente por suas expectativas, Em 1992, um conselheiro de igreja no estado do
crenças, experiência prévias e atuais. Não somente Missouri, nos EUA, ajudou sua paciente Beth Rutherford,
recuperamos os aspectos originais das situações na época com 22 anos, a lembrar-se durante a terapia,
vivenciadas, como também ajustamos nossas recor- que seu pai, um clérigo, a violentou regularmente entre
dações ao nosso modelo inernalizado do self e do a idade de sete e quatorze anos, e que sua mãe às
mundo. vezes teria colaborado, segurando-a durante o estupro
bárbaro [4]. Seu pai a engravidou duas vezes, forçando-
Memória construtiva a a abortar sozinha, com uma agulha de tricô – durante
a psicoterapia, essas memórias reprimidas foram esti-
Um dos pioneiros na pesquisa da codificação e muladas a vir à tona, e os fatos inaceitáveis e dolo-
recuperação da memória, o psicólogo cognitivo britâni- ridos foram conscientizados, com o estímulo da terapeu-
co Frederic Bartlett, reconheceu, ainda em 1930, o pa- ta. O pai de Beth abdicou do posto que ocupava quando
pel construtivo da memória [1]. O trabalho de Bartlett e as acusações foram tornadas públicas, e teve a repu-
de outros pesquisadores que prosseguiram nesta linha tação e a vida destruídas, passando a fechar-se em
de investigação revelou que o conhecimento e as ex- casa para não ser agredido ou linchado.
pectativas prévias afetam significativamente a memó- No entanto, exames médicos revelaram com
ria, às vezes intensificando, distorcendo ou interferindo segurança absoluta que ela continuava virgem, e que
nos processos pelos quais codificamos, armazenamos nunca tinha passado por nenhuma gravidez. Deste
e recuperamos as informações experienciadas. A me- modo, ficou evidente que as memórias dos improváveis
mória deixou de ser vista como apenas reconstrutiva abusos foram involuntariamente implantadas durante
(onde o armazenamento de informação sobre eventos a terapia. Em 1996, a família ganhou a ação movida
ou fatos seria depois reconstruído literalmente) e foi contra o terapeuta e recebeu uma indenização de um
reconhecida como essencialmente construtiva (onde o milhão de dólares [4].
armazenamento é afetado pelo conjunto de crenças
preexistentes e mesmo por novas informações, cons- Fundação Síndrome da Falsa Memória
truindo-se uma lembrança ajustada para ser coerente).
Muitos destes estudos iniciais foram baseados O caso desta moça é apenas um dentre as
na metodologia simples de pedir aos sujeitos para ler centenas de relatos semelhantes do que foi chamado
histórias e depois recontar o que haviam lido [2,3]. A de “síndrome da falsa memória”. A década de 1990
análise do material mostrou que as passagens foi marcada, nos EUA, pela polêmica em torno das
relembradas eram mais curtas e coerentes, como uma repercussões do grande número de relatos de
versão reordenada, reconstruída e condensada da ori- lembranças de abuso sexual na infância, que em geral
ginal. Quando confrontados mais tarde com as duas teriam sido cometidos pelos pais. A grande maioria
versões, a original e a distorcida, demonstravam mais destes relatos era de mulheres da classe média que
convicção na sua versão, que havia sido editada de tinham iniciado psicoterapia, e durante o trabalho
modo a fazer sentido. terapêutico teriam sido auxiliadas a lembrar de even-
Não havia confabulação nem mentira – os sujei- tos “reprimidos”. Os pais foram duramente acusados
tos interpretaram a história. Nossa percepção e me- de abuso sexual e de negação de uma realidade difícil
mória envolvem processos de transformação, interpre- de aceitar. No entanto, os pais quase sempre reagi-
tação e síntese das informações sensoriais, e não um am com indignação e repudiavam a versão das filhas,
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afirmando que tal coisa nunca tinha acontecido. Implantando memórias


É plausível, embora controverso [2,5], que alguns
relatos de resgate de memórias de abuso sexual sejam A psicóloga cognitiva Elisabeth F. Loftus ocupou
verdadeiros, mas mesmo assim este fato dificilmente um lugar central nesta discussão, uma vez que vem
justificaria a dimensão epidêmica de queixas, acusa- estudando o assunto de forma pioneira desde os anos
ções e processos que irromperam no início dos anos 70. Segundo Loftus [2,7,9-13], os implantes de
90, atingindo o auge em 1992. O próprio caráter súbito memória são experiências que fazem parte do nosso
da inundação de ocorrências tornou visível que muitas cotidiano mental, não requerem hipnose e nem sequer
destas memórias resgatadas não eram precisas. a intenção deliberada. Ocorrem muitas vezes em
Segundo apontaram pesquisas, realizadas exatamente suspeitos pressionados por policiais em interroga-
neste período [6], o uso de técnicas sugestivas como tórios, em pacientes submetidos à técnicas psicotera-
hipnose ou imagens mentais assistidas era corrente, pêuticas que estimulam o uso da imaginação e
pois muitos terapeutas acreditavam que assim esta- também em pessoas em situações que estimulam
riam estimulando a lembrança perdida de aconteci- experiências esotéricas, como regressão a supostas
mentos significativos da infância, que poderia estar “vidas passadas”. Sob certas condições, nossa me-
reprimida. Desconhecendo os mecanismos de nossa mória construtiva absorve novas informações senso-
memória construtiva, alguns psicoterapeutas adeptos riais, sugestões ou dados da imaginação, assimilando-
destas práticas estavam, involuntariamente, implan- as às memórias verdadeiras.
tando falsas recordações naqueles pacientes mais Quanto mais distante no tempo, mais sujeita à
sugestionáveis. distorção está a memória, o que deveria inspirar maior
Como as pessoas atingidas pelas acusações cautela e conhecimento das vicissitudes deste fenô-
tiveram suas vidas profissionais e pessoais destro- meno por parte de psicanalistas e psicoterapeutas que
çadas irremediavelmente, resolveram reagir e juntar trabalham com lembranças da infância de seus pacien-
forças criando, em 1992, uma organização dedicada tes. Existem algumas diferenças entre as verdadeiras
ao estudo desta forma de distorção, a Fundação e as falsas memórias [9]; os sujeitos tendem a usar
Síndrome da Falsa Memória. Os pais que dirigiam a mais palavras e ter maior clareza na lembrança dos
entidade procuravam dar apoio às vítimas da síndrome, episódios reais. No entanto, simplesmente não é pos-
cujo número aumentava cada vez mais. sível saber se a pessoa está relatando algo que real-
A enxurrada de acusações foi rapidamente associa- mente ocorreu ou uma falsa memória – a pessoa não
da ao uso destas práticas por alguns terapeutas, e os está mentindo, acredita que realmente vivenciou a
psicólogos que estudavam a memória foram convo- experiência.
cados a se manifestar em julgamentos, no meio acadê- O ambiente terapêutico pode ser bastante propício
mico e nos meios de comunicação [7]. A sociedade à sugestionabilidade, criando as condições favoráveis
demandava respostas mais precisas sobre as ques- aos implantes de memória. Um procedimento usado
tões emergentes: seria possível criar memórias sobre por alguns psicoterapeutas, por exemplo, é o uso da
eventos pessoais nunca experimentados realmente? interpretação dos sonhos, que foi investigado pela
A pressão por respostas cientificamente consistentes psicóloga italiana Giuliana Mazzoni [14], em um
impulsionou uma verdadeira corrida dos pesquisadores experimento que apontou a inquietante possibilidade
da área por dados elucidativos, e uma intensa polêmica de que a interpretação sugestiva dos sonhos pode induzir
que atravessou a década. Segundo Schacter [8], no à construção de uma estrutura fictícia de lembranças
final da década de 1990, existiam sinais nítidos de que de experiências passadas, alterando para sempre nosso
a crise de memórias resgatadas estava começando a conhecimento consciente autobiográfico.
se atenuar. A incidência de novos casos envolvendo A equipe do psicólogo Ira Hyman tem utilizado
disputas em torno de memórias resgatadas despencou. metodologia semelhante para produzir falsas
Isso talvez possa ser atribuído aos novos conhe- lembranças [4,5,15], fazendo perguntas sugestivas
cimentos sobre sugestionabilidade e memória, que sobre eventos que, de acordo com familiares,
encorajam os terapeutas a adotar uma postura mais comprovadamente não ocorreram. Cerca de um terço
conservadora em relação ao resgate de memórias. dos participantes lembra dos acontecimentos falsos
Outra razão pode ter sido o número de processos em entrevistas realizadas mais tarde, e metade dos
impetrados na justiça contra terapeutas, pelos pacien- sujeitos que tiveram memórias implantadas pode ci-
tes que depois se arrependeram de suas memórias tar detalhes específicos (não fornecidos pelos
[8, p. 162]. experimentadores), como o local e outras minúcias
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sobre o incidente, além de declarar que estas memó- reduzir as contradições entre cognições díspares, em
rias eram bastante claras e que se sentiam seguros uma procura incessante de coerência, mesmo que
de que estavam lembrando incidentes reais [5]. pagando o preço da adulteração dos fatos? A resposta
pode estar na especialização dos hemisférios cerebrais.
Culpados inocentes
Especialização hemisférica
A corroboração de um evento por outra pessoa é
uma técnica eficaz de promover implantes de memória O cérebro esquerdo é o artífice da busca de consis-
[5,16]. Se outras pessoas alegam ter visto alguém tência e estabilidade, mesmo que reconstruindo memó-
agir de certo modo, isto pode levar algumas pessoas rias e tecendo narrativas fictícias [3,6,22-26] para
altamente sugestionáveis a admitir o fato que nunca encaixar a realidade no modelo internalizado do mundo
ocorreu. Mais interessante, podem levar a pessoa a e do self. O conservador cérebro esquerdo tenta manter
confessar [5,16], remoendo-se em sentimentos de o modelo a todo custo, lançando mão de distorções
culpa e relatando detalhes de sua participação (muitas quando confrontado com nova informação que não
vezes, baseando-se em informações obtidas bem encaixa, em um esforço para reduzir a dissonância
depois). Existem vários casos documentados pela jus- entre “como as coisas deveriam acontecer” (o modelo)
tiça norte-americana de réus confessos condenados, e “como meus sentidos me informam que as coisas
cuja inocência foi demonstrada por evidência irrefutável, estão realmente acontecendo” (a percepção da
anos mais tarde. realidade).
O psicólogo social Saul M. Kassin [17,18] conduziu Segundo teoria do neurocientista Ramachandran,
um experimento desenhado para investigar as reações o cérebro direito, por sua vez, contrabalança esta ten-
de indivíduos falsamente acusados de danificar um dência, sugerindo revisão do modelo quando detecta
computador “apertando a tecla errada”. Muitos sujeitos anomalias demais: muita dissonância leva o progres-
inocentes assinaram uma confissão por escrito, de- sista hemisfério direito a obrigar o esquerdo a uma
monstrando culpa pelo ato, além de confabular detalhes revisão do modelo [26]. As forças conservadoras lo-
que eram consistentes com a falsa crença de ter aper- calizadas no cérebro esquerdo (que tentam manter
tado a tecla errada. nossas teorias sobre a realidade) travam contínuo
embate com as forças revolucionárias do hemisfério
Dissonância cognitiva direito (que procura convencer o esquerdo a construir
novas teorias, quando as velhas não predizem ade-
O psicólogo social Leon Festinger formulou, na quadamente os novos inputs sensoriais). Se não
década de 60, a teoria da ‘redução da dissonância houvesse essa disputa dialética, argumenta
cognitiva’ [19-21], demonstrando, com experimentos Ramachandran [25,26], jogaríamos fora a realidade,
engenhosos, que as pessoas inventam uma justifica- nos ancorando em teorias delirantes.
tiva ou uma nova opinião para resolver uma contradição Muitas condições psicopatológicas envolvem
em suas mentes: “tendemos a reduzir a dissonância precisamente a manutenção de um sistema de
entre duas cognições conflitantes, isto é, a dissonância crenças, sem corroboração nos fatos observáveis, mas
cognitiva é um estado motivador” [19]. Quanto maior a síndrome conhecida como anosognosia destaca-se
a dissonância, maior a pressão para reduzi-la, o que pela geração espontânea de falsas memórias.
pode gerar lembranças distorcidas.
Uma forma de manifestação da nossa tendência Anosognosia
a reduzir a dissonância é a distorção que acontece
depois de uma decisão: avaliamos como mais acer- A anosognosia (do grego nósos, “doença” e
tada, a escolha que fizemos depois de escolher. Se gnôsis, “conhecimento”) é uma estranha condição
ao comprar um carro estamos indecisos entre dois encontrada em pacientes que sofreram derrame
modelos que nos parecem igualmente atraentes, após cerebral no hemisfério direito. Como o hemisfério direito
considerar e titubear frente às duas possibilidades e, controla o lado esquerdo do corpo, conforme o dano
finalmente, fazer a escolha, passamos a acreditar que provocado pelo derrame e as regiões atingidas, decorre
o carro escolhido é, sem dúvida, o mais vantajoso, uma paralisia, chamada hemiplegia. Às vezes, a hemi-
desta forma reduzindo a dissonância. Mas, qual o plegia vem acompanhada da anosognosia, que é a
substrato neural desta força motivadora, a bem docu- negação da paralisia. Esta firme negação de uma ób-
mentada redução da dissonância que pressiona para via incapacidade é algo bizarro e difícil de ser expli-
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cado, uma vez que os sujeitos estão em perfeitas con- a especialização dos hemisférios, como a orientação
dições mentais; não mostram sinais de demências, lingüística do esquerdo e viso-espacial do direito
amnésia ou afasias, não apresentam condições psicó- Um dos alunos de Sperry, Michael Gazzaniga
ticas, alucinações ou delírios, enfim, nada que possa destacou-se por prosseguir na investigação do cérebro
justificar essa estranha alteração. Pacientes com pen- dividido e pelo impulso no campo das Neurociências
samento lógico e racional em todos os domínios ne- Cognitivas, a partir da década de 80 [3,22,23,27,28].
gam veementemente a paralisia do lado esquerdo. O Segundo Gazzaniga, o cérebro está organizado em
sujeito não consegue mover a mão, o braço, a perna, unidades funcionais relativamente independentes que
o pé e a metade do rosto no lado esquerdo do corpo, funcionam em paralelo, os ‘módulos mentais’. Nosso
mas simplesmente nega qualquer dificuldade, cons- funcionamento mental é produzido por uma coletividade
truindo uma história autobiográfica “coerente” com sua de módulos que realizam várias operações relativa-
negação, relatando levar a vida normalmente sem pa- mente independentes.
ralisia [26]. Um destes módulos, no entanto, requer especial
A interpretação de Ramachandran [25,26] é que atenção daqueles que procuram esclarecer a gênese
a lesão impede o cérebro direito de executar sua função de falsas memórias: o ‘intérprete’ do hemisfério
fundamental de forçar o esquerdo a uma revisão do esquerdo. Este módulo está encarregado de interpretar
modelo original, quando um certo limiar de anomalia é as respostas eventualmente discordantes dos outros
atingido. Os sujeitos, então, confabulam livremente, módulos do cérebro, enquanto outro módulo traduz em
lançando mão de deformações que se tornam neces- palavras o resultado. Mesmo que a pessoa esteja se
sárias para reduzir as discrepâncias. comportando por razões desconhecidas, ainda assim
Estes estudos revelam um quadro surpreendente este circuito neural do cérebro esquerdo esforça-se em
e contra-intuitivo de nosso funcionamento mental, atribuir significado a este comportamento, produzindo
descortinando um cenário onde existe um cérebro falsas memórias.
esquerdo empenhado em manter seu conjunto de cren-
ças mesmo que seja necessário deformar os aspectos O intérprete
da realidade que produzem dissonância. Regulando o
excesso ficcional, está o honesto cérebro direito, que Gazzaniga e o neurocientista Joseph E. LeDoux,
busca uma mudança paradigmática quando o grau de em um estudo clássico com pacientes com cérebro
discrepância atinge um ponto crítico. dividido [29], endereçaram a seguinte questão: como
A extraordinária capacidade de construir narrativas o hemisfério esquerdo responde aos comportamentos
(convincentes, mas pouco realistas) do cérebro esquer- produzidos pelo silencioso cérebro direito? A cada
do pode ser melhor compreendidas à luz da teoria do hemisfério foi apresentada visualmente uma fotografia
“intérprete”, formulada pelo neurocientista Michael S. diferente. Depois, o sujeito com o cérebro dividido
Gazzaniga com base em décadas de estudo de sentava-se frente a uma mesa com quatro fotografias
pacientes com o ‘cérebro dividido’. ao alcance da mão direita, e quatro próximas à mão
esquerda. A tarefa de cada mão era apontar para uma
O cérebro dividido das quatro fotos, sendo a correta aquela que relacio-
nava-se com a foto vista anteriormente por cada
Na década de 70, Roger Sperry, laureado com o hemisfério.
Prêmio Nobel, estudou pacientes que foram subme- Conforme o previsto, o direito levou a mão esquer-
tidos à cirurgia para aliviar a epilepsia, secionando a da à apontar o estímulo que tinha visto, e o esquerdo
super rodovia inter-hemisférica de neurônios, o corpo conduziu a mão direita à fotografia que havia visto
caloso. As funções dos dois hemisférios cerebrais são anteriormente; ambos acertaram a escolha. O sujeito
normalmente integradas em nossa mente e compor- se viu na estranha situação de apontar cada uma das
tamento, uma vez que 200 milhões de fibras nervosas mãos para fotografias diferentes. Os resultados mais
garantem a comunicação. No entanto, se as conexões interessantes, na verdade, foram as respostas dos
nervosas que ligam os dois hemisférios forem inter- sujeitos sobre as razões pelas quais sua mão direita
rompidas, cada cérebro trabalha sozinho, não se co- estava apontando para uma foto que nunca tinham
municando mais com o outro: é o chamado ‘cérebro visto antes. Quando questionados sobre as razões da
dividido’ (split brain). Utilizando pacientes com o cére- mão direita estarem apontando fotografias “desconhe-
bro dividido como modelo experimental, Sperry docu- cidas”, os sujeitos obviamente não sabiam as razões,
mentou grande parte do que conhecemos hoje sobre mas rapidamente desenvolviam uma explicação, uma
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teoria. LeDoux e Gazzaniga [29] denominaram este de slides, descoberta que foi replicada por estudos
mecanismo criativo, dotado de imensa capacidade posteriores, utilizando diferentes metodologias [30].
narrativa, de “Intérprete” do cérebro esquerdo. O literal cérebro direito lembrou-se dos slides que tinha
Este padrão explicativo foi encontrado sistemati- realmente visto, e o interpretativo cérebro esquerdo
camente no discurso do hemisfério esquerdo. Segundo muitas vezes reconheceu incorretamente as cenas
Gazzaniga [30], o Intérprete busca explicações sobre novas não apresentadas, mas que eram coerentes com
as razões pelas quais os eventos ocorrem. Indo além o estereótipo geral da situação.
da simples representação de eventos e perguntando Uma forma particularmente interessante de
por que ocorrem, um cérebro pode lidar com estes even- distorção de memória produzida pelo intérprete é a
tos de forma mais adaptativa quando acontecerem chamada distorção de compreensão tardia, que nos faz
novamente. O resultado é um cérebro esquerdo inven- acreditar, depois de saber como foi o resultado de uma
tivo que trabalha duro na procura de ordem e razão, situação, que sempre soubemos o que iria acontecer –
mesmo quando não dispõe de informações que possibi- lembramos seletivamente de fatos e incidentes que
litem a construção de um modelo explicativo satisfatório. confirmam um resultado já conhecido. Para tornar o
passado coerente com o que sabemos atualmente,
O Intérprete como gerador das distorções de reconstruímos inconscientemente as nossas lembranças
memória de um modo tal que o desfecho de uma dada situação
é visto como inevitável em retrospectiva.
O mecanismo descrito como “Intérprete” por Schacter [8] aponta vários exemplos do cotidiano
Gazzaniga pode estar na origem dos fenômenos de sobre esta distorção, como previsões sobre o resultado
distorções da memória – para o neurocientista, no esforço de jogos ou eleições políticas: segundo estudos
para tentar criar ordem e impor coerência em nosso realizados, depois de saber quem venceu o jogo ou a
mundo psicológico, o intérprete do hemisfério esquerdo eleição, as pessoas lembram que sempre souberam
pode criar distorções, utilizando o conhecimento geral e disso, embora esta crença não tenha corroboração em
as experiências passadas como matéria prima. registros objetivos de suas avaliações efetuadas antes
Em um engenhoso experimento sobre a influência de saber o desfecho. O mecanismo interpretativo do
do intérprete nas memórias, Gazzaniga e a psicóloga hemisfério esquerdo entra em ação particularmente
Elisabeth Phelps mostraram, a pacientes com o cérebro quando o sujeito busca uma explicação pós-fato para
dividido (split brain), slides com cenas de atividades a causa daquele determinado desfecho, sendo geradas
comuns no dia a dia, como um homem acordando, neste momento racionalizações poderosas que podem
olhando o despertador e se preparando para ir ao traba- beirar o delírio. Schacter acredita que o fundamento
lho [31]. A apresentação da seqüência de slides foi de neural das distorções de memória repousa na atuação
uma cena que se encaixava bem em um padrão do mecanismo interpretativo do cérebro esquerdo, o
comum, um estereótipo da ida ao trabalho, o que os intérprete de Gazzaniga, que “recorre a deduções,
psicólogos cognitivos chamam de “esquema”. Em um racionalizações e generalizações quando tenta
momento posterior, apresentava-se a seqüência de relacionar o passado e o presente” [8].
slides, novamente, aos sujeitos, mas perguntando
(com uso das técnicas especialmente desenvolvidas Conclusão
para pacientes com o cérebro dividido), a cada hemis-
fério em separado, sobre quais dos slides lembravam O conhecimento dos mecanismos de proces-
ou não. samento de nossa memória construtiva inspira uma
O artifício sutil usado pelos pesquisadores foi in- atitude cautelosa que possa restringir a influência da
troduzir, na segunda seqüência, novas cenas que não sugestionabilidade na gênese de implantes de me-
tinham sido mostradas anteriormente, como slides com mória. Como argumenta Schacter [16], a evocação de
o homem sentando na cama ou escovando os dentes. uma memória envolve uma complexa interação entre
Apesar destas cenas não terem sido vistas anterior- as expectativas do sujeito quanto ao que espera re-
mente pelos sujeitos, elas se encaixavam bem no es- cordar, o que ficou guardado do passado e o ambiente
tereótipo ou esquema cognitivo da situação geral, pois atual, e os métodos sugestivos aumentam a influên-
é bastante provável e esperado que uma pessoa sente cia do presente na determinação do que é lembrado.
na cama e escove os dentes antes de ir ao trabalho. Emergem dessas investigações, evidências de
Conforme a predição teórica, os hemisférios se que experiências emocionais completas e com um for-
lembravam de forma diferente da seqüência original te sentimento de engajamento pessoal têm maior pro-
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babilidade de serem criadas, seja em ambientes 13. Loftus EF, Miller DG, Burns HJ. Semantic integration of
terapêuticos ou na vida cotidiana, quanto maior for a verbal information into a visual memory. J Exp Psychol
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sociais que incentivam as pessoas a lembrar de algo, change beliefs about the past. Psychotherapy
encorajamento explícito para imaginar eventos e 1998;35:177-87.
também estímulo para as pessoas não pensarem se 15. Hyman IE, Husband TH, Billings FJ. False memories of
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suas construções são reais [4,15]. 97.
Estes achados tem importantes implicações. 16. Schacter DL. Searching for memory: the brain, the
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muito a fazer para diferenciar um implante de uma 17. Kassin S, Kiechel KL. The social psychology of false
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