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III Seminário LEDDES Página |1

Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011


ISSN 2237-4051
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Anais eletrônicos do III Seminário LEDDES


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Anais Eletrônicos do
III Seminário LEDDES:
(Textos completos)

ISSN
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Anais eletrônicos do III Seminário LEDDES


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Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais


Endereço:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Departamento de História
Campus Francisco Negrão de Lima - Pavilhão João Lyra Filho
Rua São Francisco Xavier, 524 - 9° andar - Bloco EŔ Sala 06 -Rio de Janeiro
Página do Laboratório: www.leddes.com.br

Editoração dos Anais


Gustavo Pinto de Sousa
Marina Vieira de Carvalho
Paulo Henrique Pacheco
Rogério Guimarães

Revisão
Rogério Guimarães
Paulo Henrique Pacheco

Diagramação
Paulo Henrique Pacheco

Capa:
Paulo Henrique Pacheco

Arte-finalização:
Paulo Henrique Pacheco
Rogério Guimarães

Observação: A adequação técnico-linguístico dos textos é de responsabilidade dos autores.

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Anais eletrônicos do III Seminário LEDDES


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-

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/ CCS/A

528.711.7

Se57a Anais Eletrônicos do III Seminário LEDDES: História, Discursos


e poderes.
Anais Eletrônicos do III Seminário LEDDES: História,
Discursos e poderes/ Editores: Gustavo Sousa; Marina Carvalho;
Rogério Guimarães; Paulo Henrique Pacheco. – 2011. 479 p.
CD
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Evento realizado pelo Laboratório de Estudos das Diferenças


e Desigualdades Sociais (LEDDES/UERJ); FAPERJ,
Maracanã (RJ).

1. Seminário. 2. História. 3. Diferenças e Desigualdades


Sociais. 4. Política e Cultura. I.LEEDES. II.Título.

PUBLICAÇÃO DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS


DAS DIFERENÇAS E DESIGUALDADES SOCIAIS DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
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REITOR DA UERJ:
Ricardo Vieiralves de Castro
DIRETOR DO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS - CSS/UERJ:
Domênico Mandarino
DIRETOR DO INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS - IFCH:
José Augusto de Souza Rodrigues
COORDENADORA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA/UERJ:
Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira

Coordenação do LEDDES:
Marilene Rosa Nogueira da Silva
Sonia Maria de Almeida Ignatiuk Wanderley
Comissão Organizadora:
Rogério Guimarães Ŕ Presidente/1ª Tesoureiro.
Marina Vieira de Carvalho Ŕ 1ª Secretária/2ª Tesoureira.
Gustavo Sousa Ŕ 2º Secretário/Monitoramento e desenvolvimento das etapas do
Seminário.
Paulo Henrique Pacheco Ŕ Material gráfico/Promoção e Divulgação.
Monitores:
Érida Ferreira dos Santos
Jenifa Lima Pedrosa
Luciana Duarte dos Santos
Vinícius Vieira
Apoio:
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Ŕ PPGH-
UERJ.
Instituição de Fomento:
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Ŕ FAPERJ.

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SUMÁRIO

I. APRESENTAÇÃO 10
II. PROGRAMAÇÂO 11

III. CONFERÊNCIA

CULTURA HISTÓRICA, CONSCIÊNCIA HISTÓRIA E DIDÁTICA DA


HISTÓRIA: PROBLEMAS POLÍTICOS DE ENSINAR E APRENDER
Profª. Drª. Sonia Wanderley 18

IV. GRUPOS TEMÁTICOS

SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO: SOBRE POLÍTICA REPRESSIVA


NOS GOVERNOS DE MOREIRA FRANCO A MARCELLO ALENCAR
Alessandra Costa Mamede 29

OS ESTATUTOS DO CONVENTO DE NOSSA SENHORA DA


CONCEIÇÃO DA AJUDA DO RIO DE JANEIRO
Amanda Dias de Oliveira 43

ADMINISTRAÇÃO E OS JOGOS POLÍTICOS NA FAZENDA


COLONIAL: CONFLITOS E PODERES NA SOCIEDADE DO RIO DE
JANEIRO (SÉCULO XVIII)
Ana Carolina da Silva 58

TRABALHO E EDUCAÇÃO INDÍGENA: UM PROCESSO


CIVILIZATÓRIO 74
Ana Paula Balduino

ŽIŽEK E A CRÍTICA DA TOLERÂNCIA COMO CATEGORIA


IDEOLÓGICA
Carlos Augusto Santana Pereira 92

CAMINHOS E MEMÓRIAS: O ŘESPÍRITO DO DOMř E A


CONSTRUÇÃO DE CARREIRAS POLÍTICAS
Cínthia Annie de Paula Ferreira 106

CORPOS DAS NEGRAS: ENCRUZILHADA ENTRE CULTURA E


PODER NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
Claudia Regina Cabral Reis da Hora 118

CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM DO CICLO DE POLÍTICAS


PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS.
Cláudia Regina de Paula 131
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O MERCADO DE ESCRAVOS E CONTROLE SANITÁRIO DOS


NEGROS NOVOS NA CORTE JOANINA
Cláudio de Paula Honorato 143

A TEATRALIDADE DO PODER: A POLÍTICA NO TEATRO E O


TEATRO DA POLÍTICA (1830-1840)
Daniel Mandur Thomaz 160

MOVIMENTOS COLETIVOS: A POTÊNCIA DOS "SUJEITOS


ORDINÁRIOS" DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Daniela Bruno Quintanilha
Mairce da Silva Araújo
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais 175

ASPECTOS DA FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO GABINETE


PORTUGUÊS DE LEITURA SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO
DISCURSO
Fabiano Cataldo de Azevedo 188

OS AFRICANOS LIVRES E A DEFESA DOS INTERESSES


INTERNACIONAIS.
Gustavo Pinto de Sousa 205

CASA DE DETENÇÃO: ESPAÇO PARA (RE) EDUCAR OS ŖVADIOSř


DA CORTE (1880-1889).
Jailton Alves de Oliveira 219

O ENVOLVIMENTO DO IPES NAS RELAÇÕES ENTRE O REGIME


CIVIL-MILITAR E A SOCIEDADE CIVIL
Joana D‟Arc Fernandes Ferraz
Elaine de Almeida Bortone 231

O DEBATE SOBRE A PUNIÇÃO E O PERDÃO EM PORTUGAL DO


ANTIGO REGIME E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA REPRESSÃO ÀS
REVOLTAS DO BRASIL NO SÉCULO XVII E PRIMEIRA METADE DO
XVIII
João Henrique Ferreira de Castro 248

O DISCURSO DE JULIANO MOREIRA: A PSIQUIATRIA COMO


INSTRUMENTO DE MODERNIZAÇÃO NA BELA ÉPOCA CARIOCA
José Paulo Antunes Teixeira 268

DIRETAS JÁ ATRAVÉS DO HUMOR: UMA ANÁLISE DAS CHARGES


SOBRE O MOVIMENTO PUBLICADAS NO JORNAL DO BRASIL
ENTRE JANEIRO E ABRIL DE 1984.
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Luciana Borges Patroclo 278

NARRAR E NÃO NARRAR: IMPLICAÇÕES ÉTICAS


Marcus Vinicius de Moura Telles 292

VULNERABILIDADE E CONTROLE SOCIAL NA CIBERCULTURA:


A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA EM DEBATE
Marilene Rosa Nogueira da Silva
304
UMA DÉCADA DE MILÍCIAS NO RIO DE JANEIRO
Michelle Airam da Costa Chaves 314

ŖPRESTADO POR UM INDIVÍDUO A OUTRO QUE COM ELE


CONVIVE, MEDIANTE RETRIBUIÇÃOŗ: O SERVIÇO DOMÉSTICO
EM FINS DO SÉCULO XIX
E PRINCÍPIOS DO XX
Natália Batista Peçanha 327

O SERVO DE CORPO E ALMA, O PÃO ESPIRITUAL E A


ESCRAVIDÃO NO PROJETO MISSIONÁRIO
BENCIANO
Natália de Almeida Oliveira 342

O NOVO DA NOVA: SEXUALIDADE FEMININA EM REVISTA.


Renata Rodrigues Brandão 358

DA VULNERABILIDADE À RESISTÊNCIA POSSÍVEL: OS MUSSEQUES


DE LUANDA E A GUERRA COLONIAL.
Rogério da Silva Guimarães 374

GUIMARÃES ROSA E A NOMADOLOGIA: TRÊS TEMPOS DE UMA


HISTÓRIA
Rogério Mattos 388

AS REPRESENTAÇÕES DE LAMPIÃO E DO CANGAÇO ATRAVÉS


DOS VERSOS DA LITERATURA DE CORDEL
Sabrinne Cordeiro
William Oliveira Collyer Junior 403

PERSCRUTANDO O TEMPO PRESENTE: ALGUMAS


CONTRIBUIÇÕES DA HISTORIOGRAFIA CHILENA
CONTEMPORÂNEA À FILOSOFIA DA HISTÓRIA.
Silvia Cáceres 414

ESTUDIOSOS DA(S) MASCULINIDADE(S): UMA ANÁLISE


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COMPARATIVA DOS ESCRITOS DE M. KIMMEL E R. W. CONNELL


Tatiane Sant'Ana Coelho Reis 429

O TEATRO HOMOAFETIVO NA CONTEMPORANEIDADE: ESTUDOS


SOBRE TORCH SONG TRILOGY
Valmir Aleixo Ferreira 441

REPRESSÃO OU REGRAMENTO? REFLEXÕES TEÓRICO-


METODOLÓGICAS PARA O ESTUDO DA SEXUALIDADE NO
OCIDENTE MEDIEVAL
Wendell dos Reis Veloso 451

A HISTÓRIA COMO JOGO: CONTRIBUIÇÕES DE MICHEL FOUCAULT


PARA O TRABALHO DO HISTORIADOR1
Luciano Rocha Pinto 465

1
Texto publicado originalmente com o título ŖA história como jogo: contribuições de Michel Foucault para o ensino da
históriaŗ,na Revista História & Ensino, Londrina, v. 17, n. 1, p. 149-165, jan./jun. 2011.
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I. APRESENTAÇÃO

O Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES/UERJ),


coordenado pelas professoras doutoras Marilene Rosa Nogueira da Silva (UERJ) e Sonia Maria de
Almeida Ignatiuk Wanderley (UERJ), apresenta a terceira edição de seu seminário História, Poderes e
Discursos. Com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
(Faperj), o evento contou com a participação de pesquisadores em diferentes momentos de
produção acadêmica (doutorado, mestrado e graduação) propiciando a interação de suas pesquisas
e a construção de conhecimento. Nesta edição, tivemos como conferencistas os professores
doutores Adriano de Freixo (UFF), Laura Nery (UERJ), Renata Rozental Sancovsky (UFRRJ) e
Sonia Wanderley (UERJ). Os temas privilegiados (História, Poderes e Discursos) também foram
aprimorados com três mesas de debate, oito sessões de grupos temáticos - nos quais se objetivou a
discussão de distintas pesquisas no campo das ciências humanas - e duas oficinas sobre a relação
História da África e os currículos da Educação Básica.
Nesse sentido, apresentamos os Anais do Seminário LEDDES: História, Poderes e Discursos,
como resultado das discussões ocorridas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, entre os
dias 07 e 10 de novembro de 2011. Esperamos que os artigos reunidos suscitem nos leitores o
exercício da crítica e das novas possibilidades de pesquisa. Boa leitura!

Comissão Organizadora:

Gustavo Sousa
Marina Carvalho
Paulo Henrique Pacheco
Rogério Guimarães
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II. PROGRAMAÇÃO

07 de novembro

Credenciamento: 09h ( Rav 94)

Conferênciadeabertura:10h às 12h (Rav 94)


Tema: História e suas relações discursivas. Um embate ou debate?
Conferencistas: Profª Drª Laura Nery(UERJ)
Prof. Dr. Adriano de Freixo (UFF)
Mediação da Prof.ª Dr.ª Marilene Rosa Nogueira da Silva (UERJ)

Almoço 12:00 às 14:00h

Conferência especial: 14h às 16h (Rav 94)


Tema: O Campo da Intolerância nos Estudos Históricos: Conceituações e Perspectivas Teóricas.
Conferencista: Prof.ª Dr.ª Renata Rozental Sancovsky (UFRRJ).

Grupos Temáticos
Mesa 01 Ŕ 16h15min às 18h (Auditório PPGH)
Tema: Relações luso-brasileiras no século XVIII e XIX: representações e negociações.
Proponentes
Mestrando João Henrique Ferreira de Castro (UFRJ)
O debate sobre a punição e o perdão em Portugal do antigo regime e suas consequências na repressão às
revoltas do Brasil do século XVII e primeira metade do XVIII.

Mestrando Fabiano Cataldo de Azevedo (UNIRIO)


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Representações da identidade portuguesa no Gabinete Português de Leitura sob a perspectiva da análise do


discurso.

Profª Ana Carolina da Silva (UFF)


Administração e os jogos políticos na fazenda colonial: conflitos e poderes na sociedade do Rio de Janeiro
(século XVIII).

Mestrando Marcelo do Nascimento Gambi (UFRJ)


Um estudo da Picada de Goiás: fronteiras em expansão.

Mediador: Prof. Ms. Lincoln Marques

Mesa 02 Ŕ 16h15min às 18h (Rav 94)


Tema: História e suas possibilidades discursivas: uma interface entre literatura e a psiquiatria
Proponentes
Prof. Rogério Reis Carvalho Mattos et. al. (UERJ)
ŖGuimarães Rosa e a Nomadologia: uma história em três tempos”.

Mestrando José Paulo Antunes Teixeira (UERJ)


O discurso de Juliano Moreira: a psiquiatria como instrumento de modernização na Bela Época carioca.

Profª Sabrinne Cordeiro Barbosa da Silva et al. (UGF)


As representações de Lampião e do Cangaço através dos versos da literatura de cordel.

Mediador: Prof. Mestrando Rogério Guimarães (PPGHC/UFRJ)

08 de novembro

Mesa de Debates Ŕ 10h às 12h (Rav94)


Tema: Vulnerabilidade e controle social
Debatedores:
Prof.ª Dr.ª Marilene Rosa Nogueira da Silva (PPGH/UERJ
Vulnerabilidade e controle social na cibercultura: a legislação brasileira em debate.

Doutorando Luciano Rocha Pinto (PPGH/UERJ)


A história como jogo: as contribuições de Michel Foucault para o historiador.

Doutoranda Valéria Lima Guimarães (PPGHC/UFRJ)


Disciplinando corpos, orientando o olhar sobre a nação: representações, discursos e normatização do turismo no
Brasil e na Argentina (1933-1946).

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Mediadora: Doutoranda Ana Lúcia Vieira (PPGH/UERJ)

Almoço 12 às 14h

Grupos Temáticos
Mesa 03 Ŕ 14h às 16h (Auditório PPGH)
Tema: Discursos, movimentos de resistência e vulnerabilidades sociais no século XX.

Proponentes
Doutoranda Luciana Borges Patroclo (PUC-Rio)
Diretas Já através do humor: uma análise das charges sobre o movimento publicadas no Jornal do Brasil entre
janeiro e abril de 1984.

Mestranda Denize Ramos Ferreira (PPGHC/UFRJ)


“Nega, nun ti mete com essa gente não” – o clientelismo na favela Vila Operária em Duque de Caxias.

Mestrando Jonatas Carlos de Carvalho (PPGH/UERJ)


Uma história política da criminalização das drogas no Brasil; a construção de uma política nacional.

Mestranda Elaine de Almeida Bortone, et al. (UFF)


O envolvimento do IPES nas relações entre o regime civil-militar e a sociedade civil.

Mediadora: Prof.ª Ms.ª Alessandra Costa Mamede (SME/RJ)

Mesa 04 Ŕ 16h15mim às 18h (Rav 94)


Tema: Produção discursiva sobre a medievalidade
Proponentes
Doutorando Sergio Fernandes Alois Schermann (PPGHC/UFRJ)
A laicização do discurso e a teologização do poder: os debates sobre a autoridade política e religiosa no Islã.

Prof. Wendell dos Reis Veloso (LITHAM/ UFRRJ)


Repressão ou regramento? Reflexões teórico-metodológicas para o estudo da sexualidade no ocidente medieval.

Graduando Natanael de Freitas Silva (UFRRJ)


A intolerância ao “herético”
o discurso agostiniano contra o donatismo, uma disputa religiosa no Norte da África em 430.

Mediador: Prof. Wendell dos Reis Veloso (LITHAM/ UFRRJ)

09 de novembro

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Mesa de Debates Ŕ 10h às 12h (Rav 94)


Tema: África e africanidades: discursos, representações e poderes.
Debatedores:
Dra. Edna Maria dos Santos (PPGH/UERJ)
Estudos sobre África: relação entre História e Literatura

Dra. Elielma Ayres Machado (DCSE/UERJ)


Democracia Racial ou racismo à brasileira?

Dra. Larissa Gabarra (UFPEL-UERJ/FFP)


Profetismo e resistência no período das independências coloniais africanas

Doutoranda Cláudia Regina de Paula (PROPEd/UERJ)


Contribuições da abordagem do ciclo de políticas para a educação das relações etnicorraciais.

Mediador: Doutorando Cristiano Bispo (PPGH/UERJ)

Almoço 12 às 14h

Oficinas
Tema: Arte e africanidades brasileiras: as máscaras no cotidiano escolar.
Local: Sala 9038 Ŕ 14 às 15h30min
Profª Angélica Herdy Lopes Ŕ (SME/RJ)

Tema: Mitologia Dogon: As funções sociais das máscaras


Local: Sala 9038 Ŕ 15h45min às 17h15min
Profª Maria de Fátima do Rosário (NEA/UERJ)

Grupos Temáticos
Mesa 05 Ŕ 14h às 16h (Auditório Rav 94)
Tema: Escravidão, discurso médico e normas disciplinares.
Proponentes
Mestranda Claudia Regina Cabral Reis da Hora (UFFRJ)
Corpos das negras: encruzilhada entre cultura e poder na primeira metade do século XIX.

Prof. Cláudio de Paula Honorato (FFCLDC-FEUDUC)


O mercado de escravos e controle sanitário dos negros novos na corte joanina.

Mestrando Jailton Alves de Oliveira (PPGH/ UERJ)


Casa de Detenção: espaço para (re) educar os “vadios‟ da corte (1880-1889).
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Graduando Vinicius Vieira (História/ UERJ)


A Casa de Correção e Detenção da Corte na ordem do discurso médico - Rio de Janeiro 1850-1890.

Mediador: Prof. Ms. Gustavo Pinto de Sousa (FCHS - Instituto Isabel/ CAp-UERJ)

Mesa 06 Ŕ 16h15min às 18h (Rav 94)


Tema: Narrativas e Poderes na escrita da História
Proponentes
Doutoranda Silvia Karina Nicácio Cáceres (PPGHIS/ UFRJ)
Perscrutando o tempo presente: algumas contribuições da historiografia chilena contemporânea à filosofia da
história.
Doutorando Carlos Augusto Santana Pereira (UFRJ)
ZiZek e a crítica da tolerância como categoria ideológica

Mestrando Marcus Vinicius de Moura Telles (UFRJ)


Narrar e não narrar: implicações éticas

Mediadora: Prof.ª Ms.ª Marina Vieira de Carvalho (UNIRIO-CEDERJ / FAMATH / FEUDUC)

10 de novembro

Mesa de Debates Ŕ 10h às 12h (Rav 94)


Tema: A escrita didática da História e a Historiografia
Debatedores:
Dra. Helenice Rocha

Prof.ª Doutoranda Helena Araújo

Doutorando Fernando Penna

Mediadora: Prof.ª Dra. Sonia Wanderley (UERJ)

Almoço 12h às 13h

Grupos Temáticos
Mesa 07 Ŕ 13h às 14h45min (Rav 94)
Tema: Poder, Trabalho e Educação.
Proponentes
Mestranda Ana Paula Balduino (UFRRJ)
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Trabalho e educação indígena: um processo civilizatório.

Mestra Daniela Bruno Quintanilha et al. (FFP/UERJ)


Movimentos coletivos: a potência dos "sujeitos ordinários" da educação de jovens e adultos.

Mestranda Natália Batista Peçanha (UFRRJ)


“Prestado por um indivíduo a outro que com ele convive, mediante retribuição”: o serviço doméstico em fins do
século XIX e princípios do XX.

Mediadora: Prof.ª Dr.ª Marilene Rosa Nogueira da Silva (PPGH/UERJ)

Mesa 08 Ŕ 15h às 16h45min (Rav94)


Tema: A religiosidade como prática discursiva

Proponentes
Mestranda Cínthia Annie de Paula Ferreira (UFRRJ)
“Caminhos e memórias: o „espírito do dom‟ e a construção de carreiras políticas”

Prof.ª Natália de Almeida Oliveira (UGF)


O servo de corpo e alma, o pão espiritual e a escravidão no projeto missionário benciano

Graduanda Amanda Dias de Oliveira (UGF)


Os estatutos do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda do Rio de Janeiro.

Mediador: Prof. Ms. Paulo Henrique Pacheco (FEUDUC)

Encerramento: 17h (Rav 94)


Tema: A escrita didática da História e a Historiografia: encontros e tensões.
Conferencista: Prof.ª Dr.ª Sonia Maria Wanderley (UERJ)

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CONFERÊNCIA
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CULTURA HISTÓRICA, CONSCIÊNCIA HISTÓRIA E DIDÁTICA DA HISTÓRIA:


PROBLEMAS POLÍTICOS DE ENSINAR E APRENDER

Profª. Drª. Sonia Wanderley1

Introdução

A postura que adotamos com respeito ao passado, quais as relações entre


passado, presente e futuro não são apenas questões de interesse vital para todos:
são indispensáveis. É inevitável que nos situemos no continuum de nossa própria
existência, da família e do grupo a que pertencemos. É inevitável fazer
comparações entre o passado e o presente: é essa a finalidade dos álbuns de fotos
de família ou filmes domésticos. Não podemos deixar de aprender com isso, pois
é o que a experiência significa. Podemos aprender coisas erradas Ŕ e,
positivamente, é o que fazemos com freqüência-, mas se não aprendemos, ou não
temos nenhuma oportunidade de aprender, ou nos recusamos a aprender de
algum passado algo que é relevante ao nosso propósito, somos, no limite,
mentalmente anormais. (HOBSBAWM, 1998, p. 36)

Hobsbawm nos lembra com suas palavras que o pensamento histórico é uma característica
intrínseca à existência humana. Melhor seria dizer que, por sua natureza, a necessidade de conhecer
o passado e relacioná-lo ao presente é algo imprescindível aos seres humanos.
Essas palavras nos remetem ao conceito de consciência histórica, tal qual foi definido por
Jörn Rüsen, historiador e filósofo alemão. Para esse autor, a consciência histórica é algo
universalmente humano e articula, fundamentalmente, dois elementos: o passado como

1
Coordenadora da linha de pesquisa As escritas de História no mundo contemporâneo, do Laboratório de Estudos
das Diferenças e Desigualdades Sociais Ŕ LEDDES.
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experiência e o presente e o futuro como campos de ação orientados por este passado, tendo como
função auxiliar a compreensão da realidade passada para entendimento da realidade presente.
(RÜSEN, 2001).
Dizer que a consciência histórica é algo inerente ao humano, não importa negar que ela seja
mutável, melhor dizendo, que possa se tornar mais complexa com o aprendizado. Ou seja, assim
como Hobsbawm nos deixa antever com as palavras que introduzem este texto, Rüsen também é
categórico quanto à importância da aprendizagem, no desenvolvimento da consciência histórica.
Melhor dizendo, ele indica que a aprendizagem histórica pode ser explicada como um processo de
mudança estrutural na consciência histórica.
O texto de Hobsbawm situa muito bem a relação precípua entre aprendizado e formas
variadas de experiência. Da mesma forma, Rüsen considera a relação necessária entre esses dois
termos e aponta que a experiência que permite a apreensão da historicidade não se encontra
vinculada unicamente a uma disciplina, seja ela acadêmica ou escolar. Para esse autor, a
aprendizagem escolar é apenas uma forma, dentre outras, de se desenvolver a consciência histórica.
Todos os diálogos que os homens realizam com a natureza, com os demais homens e
consigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo desenvolvem a consciência
histórica (RÜSEN: 2001). Assim, a aprendizagem da história é um processo que busca explicar as
experiências do tempo a partir do desenvolvimento de habilidades de narrar histórias por meio das
quais a vida prática adquire sentido e recebe uma orientação no tempo. Ou seja, a aprendizagem da
história comporta o desenvolvimento de Ŗcompetências narrativasŗ, nos informa Rüsen.
Partindo desses pressupostos, devemos, pois, nos perguntar se estamos, enquanto
profissionais da história, sendo capazes de desenvolver ou refletir acerca de narrativas que, em sua
constituição de sentido, se vinculem à experiência do tempo de maneira que o passado possa
tornar-se presente no quadro cultural de orientação da vida prática contemporânea.
Mais ainda, se e de que forma estamos trabalhando/refletindo a perspectiva apontada por
Rüsen de que ensino e aprendizagem devam ser encarados como fenômeno e processo
fundamental da cultura humana, não restritos simplesmente à escola. (RÜSEN, 2010).
Considerando que o aprendizado histórico incorpora as experiências adquiridas na convivência
com outras instâncias socializadoras nas quais estamos mergulhados cotidianamente e que dão
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forma ao que se convencionou chamar de Ŗcultura históricaŗ, quais as reflexões que estamos
produzindo como profissionais de história Ŕ pesquisadores, professores e formadores de professores
Ŕ sobre essas outras instâncias e suas competências narrativas que constituem a Ŗcultura históricaŗ?
Estamos compreendendo Ŗcultura históricaŗ como uma forma específica de experimentar e
interpretar o mundo, que descreve e analisa a orientação da vida prática, a autocompreensão e a
subjetividade dos seres humanos (CARDOSO, 2008). Pode-se dizer que a cultura histórica é o
resultado de manifestações da consciência histórica que relacionam-se aos diversos meios nos quais
a história é utilizada, mesmo que de forma inconsciente, tais como os produtos da comunicação de
massa. As narrativas produzidas pelos historiadores e as do saber histórico escolar são partes
constitutivas dessa cultura, mas, como foi dito, a cultura histórica não se resume ao que é
ensinado/aprendido no ambiente acadêmico e/ou escolar.
Em um mundo midiatizado, como o atual, pode-se definir, de forma monopolista, a quem é
dado o direito de produzir sentidos, dar forma e expressividade ao passado, principalmente se
levarmos em conta o presentismo reinante, aliado à Ŗsacralizaçãoŗ da memória e de seus lugares?
Pensar a história na contemporaneidade, portanto, nos obriga a considerar todo um
conjunto de narrativas que têm a produção/difusão do conhecimento histórico como um de seus
objetivos As narrativas produzidas pelos meios de comunicação estão entre as mais eficientes, haja
vista sua capacidade de fabricar eventos e constituir sentidos na contemporaneidade.
Portanto, os campos da produção historiográfica Ŕ senhora, até pouco tempo, da produção
de sentido para o passado Ŕ e o da comunicação Ŕ no que tange à reflexão sobre sua capacidade na
Ŗfabricaçãoŗ de imagens simbólicas, conjunto de representações que forjam verdades/significados Ŕ
se entrelaçam de tal forma no estabelecimento da cultura histórica que não podem, tanto
historiadores, como jornalistas ou estudiosos da comunicação, deixar de refletir sobre a questão.
De que forma, nós, pesquisadores e professores de história, consideramos entre os nossos
afazeres a tarefa de refletir sobre a ação/reação dessa outra competência narrativa no aprendizado
da história? Em sentido inverso, mas não contrário, de que forma consideramos a sua utilização ou
propomos pesquisas aplicadas para entendermos como ela influencia o desenvolvimento da
consciência histórica, principalmente no âmbito do ensino da história?

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Justificativa

Antes que os historiadores viessem a olhar para seu trabalho como uma simples
questão de metodologia de pesquisa e antes que se considerassem Ŗcientistasŗ,
eles discutiram as regras e os princípios da composição da história como
problemas de ensino e aprendizagem. Ensino e aprendizagem eram considerados
no mais amplo sentido, como fenômeno e processo fundamental da cultura
humana, não restrito simplesmente à escola. O conhecido ditado historia vitae
magistra (...) indica que a escrita da história era orientada pela moral e pelos
problemas práticos da vida, e não pelos problemas teóricos ou empíricos da
cognição metódica. (RÜSEN, 2010)

Hoje, mais o que nunca, a história é uma disputa. Certamente, controlar o


passado sempre ajudou a dominar o presente: em nossos dias, contudo, essa
disputa assumiu uma considerável amplitude. De fato, a democratização do
ensino e a difusão dos conhecimentos históricos por outros meios Ŕ cinema,
televisão Ŕ contribuem para esclarecer o cidadão, ao mesmo tempo sobre o
funcionamento de sua própria cidade e sobre o uso e utilizações políticas da
história. (...) Pois, na verdade, o Estado e o político não são os únicos a colocar a
história sob vigilância. Também o faz a sociedade, que, por sua vez, censura e
autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que
possa comprometer a imagem que uma sociedade pretende de si mesma.
(FERRO, 1989, p. 1-2)

Nesses tempos pós-modernos (?) o rigor científico que diferencia o saber produzido pela
ciência, no caso a História dos historiadores, não qualificaria tal saber a ter um reconhecimento
maior que quaisquer outras formas de conhecimento, como o de senso comum, ou o que alguns
denominam de ciência popular2. Essa é a afirmativa que vem caracterizando diversas reflexões
acadêmicas nos dias de hoje.
Apesar de discordar dos fundamentos das críticas pós-modernas, Rüsen acredita que tais
questionamentos, longe de fortalecerem a perspectiva de que a História não detém mais lugar
cativo enquanto explicação do passado, refundam conceitos definidores para a visão moderna de
História, obrigando-nos, como profissionais, a considerá-los, com o rigor teórico e metodológico
que caracteriza os estudos históricos. No trecho selecionado, o historiador alemão nos lembra que
devemos, profissionais da história, retornarmos às reflexões acerca da história como parte da

2
Significados e sentidos constituídos por leigas a partir do conhecimento dito científico. Seria o caso, por exemplo, dos
livros que abordam temas sob a perspectiva histórica, mas não foram escritos por historiadores. Cf. foi apresentado
por Oldimar Cardoso em palestra para o grupo Oficinas de História, no dia nove de novembro de 2011, na UniRio.
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cultura humana, sem esquecer que a produção historiográfica não deve ser encarada como um
campo descolado dos problemas relacionados ao seu ensino e aprendizagem.
Outra questão pertinente nos é apresentada por Ferro na epígrafe utilizada acima. Seu texto
nos lembra que a controle na produção de significados sobre o passado não se faz apenas pelo
Estado, por meio da história oficial. Os diferentes grupos que compõem a sociedade civil também
estão atentos à produção de significados para os eventos do passado, tendo em vista as disputas que
os envolvem na luta pela hegemonia de seus próprios valores, comportamentos, memórias.
Diante da preocupação tão contemporânea de que a produção/reflexão acadêmicas estejam
orientadas para o reconhecimento de um mundo que reconhece/respeita a diversidade de culturas
que o compõe, da necessidade de os ambientes acadêmico e escolar refletirem as diferentes
orientações deste mundo, além da força política/simbólica do informacionismo, oriundo do
desenvolvimento dos meios de comunicação, não deveríamos retomar a leitura clássica de Ferro e
pensar de que forma a produção do Ŗpoliticamente corretoŗ multicultural não está nos afastando
de um objetivo mais primordial, qual seja, o papel político enquanto pesquisadores, professores e
formadores de professores que têm como objetivo o desenvolvimento da consciência história, como
nos indica Rüsen?
Unindo a preocupação de Ferro à de Rüsen, entendemos que seja um campo bastante
profícuo ao pesquisador de história debruçar sobre a diversidade de narrativas 3que compreendem a
cultura histórica, mormente aquelas hegemonicamente produzidas pelos meios de comunicação de
massa e pelo saber histórico escolar, em busca do entendimento de como elas se entrelaçam no
processo de ensino-aprendizagem de história. Como elas se aproximam ou se diferenciam do
conhecimento histórico acadêmico, baseado no desenvolvimento da historiografia. Essas pesquisas
devem considerar a necessidade de compreender a diversidade da cultura histórica; porém, não
podem descuidar do caráter político formador do ensino escolar da história.
Como nos diz Ferro: também a sociedade Ŕ compreendida como um todo social no qual os
grupos/classes se organizam e disputam a hegemonia na produção de saberes e significados Ŕ
Ŗcensura e autocensura qualquer análise que possa revelar suas interdições, seus lapsos, que possa

3
Entenda-se narrativa como um processo de fazer ou produzir uma trama da experiência temporal tecida de acordo com
a necessidade da orientação de si no curso do tempo. O produto deste processo narrativo, a trama capaz de tal
orientação, é Řuma históriař. (RÜSEN, 2010)
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comprometer a imagem que (...) pretende de si mesmaŗ. O perigo de não se diferenciar/avaliar as


formas com as quais a consciência histórica vem à tona, muita delas simplificadoras ou reificadoras
enquanto processo, é real e, muitas vezes, capaz de retirar do ensino de história seu caráter
formador, em essência, político, transformando-o em um simples espaço no qual as diferentes
memórias dos indivíduos/grupos que compõem o ambiente escolar podem ser apresentadas, mas,
não necessariamente, serem objetos de reflexão.
A reverberação do conceito de cultura histórica dentro e fora dos meios acadêmicos
repercute o papel que a memória histórica vem adquirindo no espaço público.
El concepto de cultura histórica aborda un fenómeno que caracteriza desde años
el papel de la memoria histórica en el espacio público: me refiero al boom
continuo de la historia, a la gran atención que han suscitado los debates
académicos fuera del círculo de expertas y expertos, y a la sorprendente
sensibilidad del público en el uso de argumentos históricos para fines políticos.
(RÜSEN, 2009)

Torna-se questão essencial, portanto, a importância adquirida pela memória na constituição


de manifestações da consciência histórica. Pierre Nora identifica como fator determinante no
desejo de memória de nossa época a questão da mundialização, processo no qual os meios de
comunicação de massa exercem um papel primordial. Nora discorre acerca de um movimento de
alteração do tempo, que passa a ser mais dinâmico. A duração do fato é a duração da notícia, o
novo é quem comanda, propagando significado para a hegemonia do efêmero.
Também estudiosos da mídia, como o intelectual alemão Andreas Huyssen, demonstram
preocupação com essa problemática. Segundo esse autor, está em curso a ascensão de uma Ŗcultura
da memóriaŗ para a qual o desenvolvimento da mídia tem papel significativo:
A reciclagem e exploração pela indústria cultural de tópicos relacionados à
memória contribuem para a expansão de preocupações relativas à memória na
esfera pública. Num sentido mais amplo, contudo, a maior parte da cultura
contemporânea da memória, eu penso, resulta do naufrágio do imaginário de
utopias futuras característico do século XX. (HUYSSEN, 2004)

Demonstrando paralelismo com o pensamento de Nora, Huyssen considera que nos dias de
hoje tentamos combater o medo e o perigo do esquecimento com estratégias de sobrevivência de
rememoração pública e privada:

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O enfoque sobre a memória é energizado subliminarmente pelo desejo de nos


ancorar em um mundo caracterizado por uma crescente instabilidade do tempo e
pelo fraturamento do espaço vivido (HUYSSEN: 2000).

Para Huyssen, essa Ŗcultura da memóriaŗ seria uma forma de compensar a perda de
estabilidade que o indivíduo tem no tempo presente, uma forma decombater a nossa profunda
ansiedade com a velocidade de mudança e o contínuo encolhimento dos horizontes de tempo e de
espaço.
Sem dúvida o discurso midiático ter participação ativa na aceitação social dessa Ŗcultura da
memóriaŗ. Por isso, Huyssen, embora considere o jornalismo investigativo sério essencial para a
construção pública de discursos de memória nacional, acredita que seu enquadramento temporal é
necessariamente limitado ao presente e ao passado recente, por isso ele precisaria ser
complementado pelo trabalho historiográfico. (HUYSSEN: 2004) O autor aponta os perigos de
uma análise que considere apenas o espaço/tempo privilegiado pelos meios de comunicação e, de
certo modo, aproxima-se da leitura realizada por Ferro.
Essa proximidade também pode ser identificada na obra de Nora, quando ele considera a
memória, um processo vivido e conduzido por grupos vivos, em evolução permanente, suscetível a
manipulações:
ŖA memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está
em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizaçõesŗ
(NORA:1993).

Por outro lado, se o espaço público cada vez mais utiliza e se sensibiliza com a argumentação
histórica na explicação de seu espaço/tempo, como estão os historiadores refletindo sobre essa
apropriação por Ŗnão iniciadosŗ, em especial os jornalistas, de discursos e práticas que até então
lhes eram cativos? Mais ainda, os pesquisadores do ensino de história estão refletindo sobre como a
narrativa midiática de teor dito histórico, porém carregada de memória, tem sido utilizada na
produção do saber histórico escolar?
O saber histórico escolar é uma das fontes primordiais do desenvolvimento da consciência
histórica dos indivíduos contemporâneos. E não se pode negar que as interpretações apresentadas

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pela mídia têm um espaço cada vez mais ampliado na produção dos materiais didáticos. Muitas
vezes, a narrativa midiática chega a rivalizar com aquela desenvolvida pela historiografia, se
considerarmos as fontes pesquisadas e as opiniões apresentadas por alunos/professores em sala de
aula.
O próprio Rüsen reconhece os limites atuais da análise desenvolvida por parte dos
historiadores. Recorrendo à necessidade de expandir as perspectivas da didática da história4,
afirma:
Ainda é uma questão aberta se a ênfase na vida pública da didática da história
terá um eco positivo. Mas deveria ficar claro que, desde que o público não pode
digerir a produção de uma disciplina profissional altamente especializada da
história profissional sem mediação, existe uma necessidade definitiva de pessoal
treinado e disposto a cumprir esta mediação. O que deveria ser evidente é que as
habilidades normais adquiridas pelo historiador profissional não são suficientes
para a execução dessa mediação. (RÜSEN: 2010)

No tocante a utilização de uma abordagem da moderna didática da história na análise dos


usos e funções da história nos meios de comunicação de massa, ele indica: Ŗos insights específicos
da didática da história (...) têm de ser transformados na linguagem do nosso entendimento da
comunicação de massaŗ. Em outras palavras, aponta para a necessidade do desenvolvimento de
abordagens teóricas e metodológicas e de estudos empíricos que integrem questões e métodos com
as disciplinas especializadas na análise da vida pública. (RÜSEN: 2010)
Entendemos, portanto, que está mais do que na hora a ampliação das reflexões acadêmicas
acerca dos usos da história na vida pública. Dentre esses estudos, destacamos aqueles que
considerem a produção midiática e o saber histórico escolar, haja vista serem essas narrativas as
explicações históricas mais aceitas pelos indivíduos nos dias de hoje e a importância política que
tais explicações têm no desenvolvimento da consciência histórica, principalmente em sociedades
com as características da brasileira.

4
Rüsen considera a didática da história uma disciplina do campo historiográfico que analisa os fundamentos da
educação histórica. Expandindo seus objetos de estudo para além do ensino e aprendizagem na escola, considera
como problemáticas dessa disciplina Ŗtodas as formas e funções do raciocínio e conhecimento histórico na vida
cotidiana, práticaŗ. (RÜSEN: 2010)
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A pesquisa didático-histórica
Como nos ensina Rüsen, faz-se urgente, no campo da pesquisa acerca do ensino da história,
o desenvolvimento de estudos que encontrem caminhos metodológicos para resgatar, como
competência da reflexão histórica, as dimensões do pensamento histórico inseparavelmente
combinadas com a vida prática, ou seja, que produzam reflexão sobre a comunidade na qual eles se
inserem. (RÜSEN, 2010).
Em outras palavras, Rüsen está propondo pesquisas que considerem a práxis, ou seja, que
tenham como um de seus objetivos a intervenção nos espaços pesquisados, tendo em vista o
desenvolvimento da consciência histórica 5.
É o que propõem outros estudiosos alemães da Didática da História, como Bernd
Schönemann. Para ele, a pesquisa didático-histórica deve considerar três campos de trabalho: o
teórico, o empírico e o pragmático. Em outras palavras, a Didática da História preocupa-se em
esclarecer o seu próprio objeto de pesquisa (área teórica), funciona como uma ciência experimental,
já que atua em campo Ŕ mais realizando observações do que experiências Ŕ (área empírica) e,
finalmente, é também uma ciência-ação, na medida em que objetiva influenciar as instâncias
produtoras de consciência histórica (área pragmática). (Cardoso: 2008)
Vamosconsiderar que, assim como a escrita da história dos historiadores, as demais escritas
da história, como a midiática e escolar, também se utilizam da narrativa como um procedimento
mental que confere sentido à experiência do tempo, sendo a forma lingüística por meio da qual se
realiza a função de orientação da consciência histórica. Portanto, a pesquisa didático-histórica deve
ser competente na identificação dos procedimentos da narração histórica, na definição seus
diversos componentes e na descrição de sua coerência e inter-relações.
A justificativa teórica para utilização metodológica dessa tipologia é a compreensão de que
ela permite explicar e perceber o processo de aprendizagem histórica como Ŗum processo de
mudança estrutural na consciência históricaŗ. Voltando aos objetivos propostos pela pesquisa,

5
O estudo das narrativas históricas apontaria tipos diversos de consciência história. Em uma escala crescente de
complexidade, Rüsen desenha uma tipologia, embora aponte o caráter essencialmente didático dessa construção, na
medida em que os tipos de consciência histórica não existiriam no estado puro em situações reais da vida. Ele
propõe, então, quatro tipos de consciência histórica, relacionadas às competências narrativas que refletem
(diferenciação passado/presente, interpretação e orientação). São elas: tradicional, exemplar, crítica e genética.
(RÜSEN: 2010).
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busca-se desligar o processo de aprendizado da história do simples adquirir conhecimento do


passado ou informações atualizadas quase que imediatamente.
Em termos teóricos, não é difícil explicar o desenvolvimento da consciência
histórica como um processo de aprendizagem. A aprendizagem é conceituada em
seu marco de referência como uma qualidade específica dos procedimentos
mentais da consciência histórica. Tais procedimentos são chamados de
Ŗaprendizagemŗ quando as competências são adquiridas para a) experimentar o
tempo passado, b) interpretá-lo na forma de história e c) utilizá-lo para um
propósito prático na vida diária. (RÜSEN: 2010)

Referências Bibliográficas utilizadas:


CARDOSO, Oldimar. Por uma definição de Didática da História. In: Revista Brasileira de História
[on line]. São Paulo, v. 28, nº 55, p. 153-170 Ŕ 2008. FERRO, Marc. A história vigiada. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.

HOBSBAWM, Eric. Sobre a História: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela Memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.

________. Mídia e discursos da memória. Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, vol. 27, nº
1, p. 97-104 Ŕ 2004.

MENESES, Sônia. A história midiatizada: os desafios colocados por um novo histórico entre a
mídia, a memória e a história. Anais eletrônicos do X Encontro Nacional de História Oral: Testemunhos:
História e Política. Recife, 2010. In: www.encontro2010.historiaoral.org.br

NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares, In: Projeto História. São Paulo:
PUC, nº 10, pp. 07-28, dezembro de 1993.

RIBEIRO, Marialva, GOULART, Ana Paula. O que a história pode legar aos estudos de jornalismo. In:
www.intercom.org.br/papers/nacionais/2005.

RÜSEN, Jörn. "¿Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia".
Culturahistórica. In: www.culturahistorica.es(2009).

________. Razão histórica: teoria da história – fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora da
UnB, 2001.

SCHMIDT, Maria Auxiliadora, BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Resende (orgs.). Jörn Rüsen
e o ensino de história. Curitiba: Editora UFPR, 2010.

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GRUPOS TEMÁTICOS
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SEGURANÇA NO RIO DE JANEIRO: SOBRE POLÍTICA REPRESSIVA


NOS GOVERNOS DE MOREIRA FRANCO
A MARCELLO ALENCAR

Prof. Ms. Alessandra Costa Mamede

Resumo
Esta comunicação tem como principal objetivo levantar questões sobre as políticas de segurança
pública aplicadas no Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 1987 e 1999. Pretendo analisar a
forma como cada um dos três governadores do período tratou a questão da segurança pública,
notadamente no combate a criminalidade e a corrupção policial. Os governadores do período
foram Wellington Moreira Franco (1987-1991), Leonel de Moura Brizola (1991-1994) e Marcello
Alencar (1995-1999).
Palavras-chave: Segurança Pública; Rio de Janeiro; Polícia.

Esta comunicação tem como principal objetivo levantar questões sobre as políticas de
segurança pública aplicadas no Estado do Rio de Janeiro entre os anos de 1987 e 1999. Pretendo
analisar a forma como cada um dos três governadores do período tratou a questão da segurança
pública, notadamente no combate a criminalidade e a corrupção policial. Os governadores do
período foram Wellington Moreira Franco (1987-1991), Leonel de Moura Brizola (1991-1994) e
Marcello Alencar (1995-1999). Os três enfrentaram de diferentes formas o crescimento dos índices
de criminalidade no Estado e foram taxados como omissos, passivos, repressores ou coniventes pela
imprensa e pelos estudiosos do assunto. Parte dos métodos utilizados pelos três governadores

Mestra em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ, professora da rede municipal de ensino Ŕ SME/RJ,
pesquisadora associada do Leddes.
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falhou e deixou transparecer uma polícia violenta e corrupta, além da ausência de uma cultura de
direitos na sociedade brasileira.
Cada um colocou-se politicamente como oposição ao governo anterior, o que supõe uma
mudança significativa na tomada de decisões e na forma de concretizar seus objetivos no campo da
segurança. O entendimento de o que vem a ser política de segurança pública também mostrou-se
diverso nos três momentos aqui apresentados. Planejar uma política de segurança que objetivasse o
combate a criminalidade supõe, a nosso ver, o combate também a corrupção policial e suas práticas
violentas. Mas de que forma esses governos o fizeram e a partir de que modelo de segurança
pública?
Moreira Franco assumiu o governo em 1987 com a promessa de acabar com a violência em
cem dias. Uma bravata de campanha que lhe renderia ferozes críticas durante todo o seu mandato.
Ele não ignorou ou tentou esconder as precárias condições nas quais estavam as Polícias Civil e
Militar, assumindo-as como herança do primeiro governo de Leonel Brizola. Porém, manteve de
certa maneira o discurso de seu antecessor e com isso sua campanha não atacou diretamente
Brizola1. Provavelmente, por entender que mesmo desgastado após quatro anos de um governo
caracterizado por crises sucessivas, Brizola ainda representava uma forte força política em todo o
Estado, tendo grande apoio ainda das classes populares. A segurança pública foi um tema
recorrente durante toda a campanha, mas ainda assim, Moreira foi eleito sem apresentar nenhum
plano de atuação no setor, apenas a promessa que marcaria sua vida política de acabar com a
violência em um período pré-fixado.
A situação no início de seu governo, ao lermos as manchetes dos periódicos 2, é de total falta
de controle do governo sobre a criminalidade. As violentas práticas da polícia deram a ela o
codinome de Ŗpolícia do Moreiraŗ 3, o que significava permissividade e corporativismo em relação à
prática abusiva e violenta das corporações policiais. Moreira teria firmado-se como oposição ao
governo Brizola, como Ŗa civilização que se opunha à barbárie brizolistaŗ, porém impondo um

1
SENTO SÉ, 1999:256
2
Jornais O Globo e O Dia, abril Ŕ setembro, 1987.
3
SOARES, 2002: 177
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Ŗretorno de uma política de segurança que deixava em segundo plano o respeito aos direitos
humanosŗ 4. Seria

... o retorno à barbárie, uma vez que o Estado aniquila a idéia de direitos humanos
enquanto um princípio básico da civilização. Com isso, não se imporia mais
limites de atuação por parte da polícia à repressão da violência. sendo que a
partir daí, o que passa a valer é o direito dela própria Ŕ Polícia Ŕ de reprimir
quem, como e onde quisesse5.

Era como se a polícia em 1987 recebesse de volta o que lhe havia sido tirado por Brizola em
1983: a autonomia de ação, a possibilidade de fazer sua própria lei e não responder judicialmente
por isso. Os primeiros meses do governo Moreira Franco foram extremamente violentos,
combinando ações de grupos de extermínio, uma atuação mais ousada por parte dos traficantes,
denúncias de violência e corrupção envolvendo policiais militares e civis e tentativas frustradas de
investigar crimes que envolvessem membros das corporações policiais6.
Por outro lado, o governador teve que lidar com a insatisfação dos policiais do Estado. Foi
uma prática das Polícias Civil e Militar durante todo o governo utilizar seus rádios de comunicação
para criticar o governo, os chefes das polícias, organizarem manifestações e paralisações, denunciar
e dividir suas frustrações com as condições de trabalho e os baixos salários. Outro ponto que deve
ser levado em conta é o fato de seus chefes de Polícia Civil não serem policiais de carreira e sim
advogados: Marcos Heusi (mar/1987 Ŕ set/1987) e Hélio Saboya (set/1987 Ŕ mar/1991). Isto deu
aos policiais civis espaço para muito descontentamento e críticas.
As ações lançadas pelo governo de Moreira Franco vão em sentido contrário ao que é dito
por parte da bibliografia sobre o período mencionado7. Logo no início de seu governo, Moreira
lançou os Dez Mandamentos da Polícia Militar do Rio8, que nada mais era do que um código de
conduta para a corporação. Outro documento, o Plano dos Cem Dias9 traçava metas a serem
alcançadas tanto na Polícia Civil quanto na Polícia Militar, no que tangia a questão do

4
SENTO SÉ e SOARES, 2000
5
SOARES, 2002: 174
6
Jornais O Globo e O Dia, abril - dezembro, 1987.
7
SENTO SÉ e SOARES, 2000; SOARES, 2002.
8
O Globo, 24/03/1987: 13
9
Governador: Imprensa Oficial, 1987
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reaparelhamento, reforma de delegacias antigas, inauguração de novas e planejamento de


policiamento ostensivo.
Apesar disso, os índices de criminalidade em todo o estado continuavam altos 10. Em
conseqüência, quando tem início a campanha para a sucessão ao governo estadual, Moreira Franco
amargava o título de governador mais impopular do país11. Quem figurava como a principal
personagem do pleito era Leonel Brizola, novamente candidato. Não havia novidade alguma em
seus planos para o mandato que se iniciaria em 1991: a redução da repressão policial 12. Por detrás
disso, o mesmo perfil de seu primeiro governo: priorização da educação como forma de prevenção
a criminalidade, respeitando os direitos de moradores de áreas pobres do Estado.
As características da eleição de 1990 em relação a Leonel Brizola assemelhavam-se à de
1982, que o levou pela primeira vez ao Palácio Guanabara. Havia grande apoio das classes
populares, provavelmente em resposta às violentas ações policiais do governo Moreira Franco.
Brizola elegeu-se ainda no primeiro turno com 60,88% dos votos 13, tendo desta vez grande apoio
também das classes médias amedrontadas com o crescente número de sequestros na cidade, uma
característica presente nos anos do governo de Moreira Franco.
Os acontecimentos enfrentados por Brizola no segundo mandato não se diferenciavam
muito dos que caracterizaram em geral o de Moreira Franco: chacinas, sequestros, envolvimento de
policiais com grupos de extermínio. Porém, a relação de Brizola com a imprensa deixou a
população ainda mais insegura em relação à segurança do Estado. Os arrastões nas praias da zona
sul carioca, largamente veiculados nos telejornais e retratados na mídia escrita superdimensionaram
o temor da falta de controle, barbárie e caos social entre a classe média carioca 14. Em determinado
momento de seu governo, Brizola passou a recusar-se a falar com qualquer veículo das organizações
Globo, certo de que essas distorciam a realidade com o objetivo de prejudicá-lo politicamente.

10
SOARES,1996: 173, 174, 175, 181
11
SENTO SÉ, 1999: 235
12
BORGES, 2006: 98
13
SENTO SÉ, 1999: 236
14
O Globo, outubro, 1993.
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Este governo é frequentemente lembrado como aquele que assistiu a volta das forças
armadas às ruas. Num primeiro momento, durante a Eco-9215, quando Ŗforças do exército
16
assumiram o policiamento ostensivo do Rio de Janeiroŗ e, já com Brizola afastado do governo
para concorrer à presidência da República nas eleições de 1994, a Operação Rio 2, um Ŗconvênio
de cooperação entre os governos estadual e federal que vigeria de 31/10/1994 a 31/12/1994ŗ17,
resultado de uma forte pressão política e social sobre o governador em exercício, Nilo Batista.
Durante anos, Moreira Franco vem sendo colocado como o governador que introduziu no
período democrático pós-ditadura militar a política de segurança repressora e violenta, que resgata
práticas de então. Uma política que teria reativado e legitimado o Ŗcomportamento violento da
instituição policialŗ 18. Ele representaria um intervalo entre dois governos de Brizola, totalmente
contrário à política chamada pelo último de preventiva e não de repressão aos pobres.
...o governo Moreira Franco acreditava apenas na força arbitrária para combater a
criminalidade. O que, por outro lado, indicava o aumento da violência praticada
por parte da polícia19.

Acredito que esse perfil seja mais aplicável ao governo de Marcello Alencar e não somente
por ter iniciado seu governo com uma operação federal na área da segurança que colocava o
exército nas ruas da cidade. Ainda durante a campanha, Alencar defendeu o caminho da repressão
para o combate à criminalidade20. Ele empreende mudanças, colocando as Polícias Civil e Militar
sob a mesma pasta, Secretaria de Segurança Pública, extinta no primeiro governo de Leonel Brizola.
Como responsáveis por ela, ele escolheu figuras do exército. O primeiro secretário de segurança
pública foi o general Euclimar da Silva, demitido após cinco meses no cargo. Considerado pelo
governador como um Ŗmilitar da banda suaveŗ21, foi substituído pelo polêmico general Nilton
Cerqueira, que já havia chefiado a Secretaria de Segurança Pública durante a década de setenta,
imprimindo com Marcello Alencar uma linha de atuação semelhante a que tinha durante o

15
Encontro internacional de meio ambiente em que estiveram presentes alguns dos principais chefes de Estado do
mundo, além de ONGs e ativistas ambientais.
16
SENTO SÉ, SOARES, 2000: 19
17
BORGES, 2006: 104
18
SOARES, 2002: 174
19
SOARES, 2002: 181
20
BORGES, 2006: 119
21
AZIZ FILHO, 2003: 241
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governo militar22. Principalmente depois que o governo instituiu a Řgratificação faroesteř, um tipo
de abono dado ao policial que praticasse Ŗatos de bravuraŗ. O resultado dessa gratificação foi que
...desde a entrada em vigor da política de premiações, o número de mortos em
ações policiais dobrou na capital fluminense, passando de 16 para 32 por mês, e o
índice de letalidade subiu de 1,7 para 3,5 mortos por ferido. //... forte indícios de
execução sumárias na gestão de Cerqueira: não houve testemunhas na maioria dos
casos (83%); o número médio de perfurações era de 4,3 por vítima; 61% dos
mortos apresentavam pelo menos um tiro na cabeça; e 65% tinham recebido pelo
menos um tiro pelas costas, o que indica que muitos estariam fugindo da polícia.23

A morte por execução deixou de ser exclusividade dos grupos de extermínio. A Polícia
Militar passou a ser premiada por isso. Cada governo teve uma forma diferente de ver a política de
segurança pública. Foi um período em que a criminalidade atuava em diversas frentes,
desenvolvendo-se, principalmente, no tráfico de drogas e nos sequestros. Grupos de traficantes
desafiavam o governo territorializando a cidade em áreas de influência e empreendendo sangrentas
disputas por esses espaços. Algumas ações pontuais dos governadores aqui estudados foram
pontualmente vitoriosas, o que não impediu o contínuo aumento na criminalidade no estado.
Mesmo a presença do delegado Helio Luz, conhecido pela fama de incorruptível e que saiu
do governo por expor as mazelas da instituição na mídia24, não retirou da polícia a fama de
violenta, corrupta e elitista.
Eu digo, não precisa ninguém dizer: a polícia é corrupta. Eu afirmo: a polícia é
corrupta. A instituição que existe é uma instituição que foi criada Řprař ser
violenta e corrupta, Řnéř? E o pessoal estranha. (...) A polícia foi criada para fazer
segurança de Estado, Řnéř? E segurança da elite. Eu faço polícia de repressão,
entende? Em benefício do Estado, pra proteger o Estado tranquilamente. // É
polícia política mesmo. Então, isso aqui é uma sociedade injusta e nós garantimos
uma sociedade injusta. O excluído fica sob controle. Ai dele que saia disso.25

Cada governo teve uma forma diferente de se ver a política de segurança pública. Foi um
período em que a criminalidade atuava em diversas frentes, desenvolvendo-se, principalmente, no
tráfico de drogas e nos sequestros. Grupos de traficantes desafiavam o governo territorializando a
cidade em áreas de influência e empreendendo sangrentas disputas por esses espaços. Algumas

22
SENTO SÉ e SOARES 2000: 20
23
Estadão.com.br em 05/05/2010
24
AZIZ FILHO, 2003: 248
25
Hélio Luz, Notícias de uma Guerra Particular, 1999
Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011
ISSN 2237-4051
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ações pontuais dos governadores aqui estudados foram pontualmente vitoriosas, o que não
impediu o contínuo aumento na criminalidade no estado.
Acredito que as dificuldades enfrentadas pelos governos escolhidos foram além daquelas
presentes na criminalidade organizada em grupos de traficantes ou de seqüestradores. A corrupção
e a violência policial tiveram papel de destaque no fracasso das políticas de segurança desenvolvidas
no período. Um fato que marca a história de todas as polícias estaduais brasileiras foi a sua
reorganização em 1969, através de um decreto que ao atribui ao Ministério do Exército seu
controle e coordenação. Isto significa que, a partir de então, as forças estaduais estariam à
disposição do governo militar e sua ação passaria a ser politizada e ditada pelo comando militar
federal. A atuação da PMERJ (Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro) tornava-se praticamente
autônoma do poder judiciário civil.
Em 1977, saiu o Pacote de Abril, quando a PM passa a agir internamente de acordo com
suas próprias leis26. Isto é, policiais julgando policiais por crimes que até então seriam julgados por
tribunais civis, caso fossem julgados. Podemos observar até aqui que a principal característica da
ação das Polícias Civil e Militar durante o período do regime militar é a impunidade, associada à
conivência das autoridades governamentais e policiais. Ao voltar às ruas sem a
coordenação/administração do governo militar, os policiais continuaram a aplicação das mesmas
práticas acobertadas pelas autoridades da ditadura. A tortura manteve-se como uma técnica de
investigação27 e a estereotipação do suspeito volta a ação para as classes mais pobres. Pretendemos
comprovar que as polícias têm sua prática e sua ideologia viciadas em violência, marginalização e
estigmatização dos moradores de favelas e bairros pobres.
Quando Marcello Alencar assume, quatro anos depois da saída de Moreira, o perfil da
criminalidade mudara um pouco e a situação na segurança pública do estado tornara-se ainda mais
preocupante. As redes de traficantes estavam estabelecidas no estado. As favelas viviam verdadeiros
ŖEstados paralelosŗ, onde, onde os chamados donos dos morros ditavam regras e assumiam espaços
deixados vagos pelas instituições públicas. A experiência do exército nas ruas durante a Eco-92

26
PINHEIRO, 1982:61
27
KANT DE LIMA, 1995: 84
Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011
ISSN 2237-4051
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levou aos moradores da capital e região metropolitana sensação de segurança e fundamentou as


Operações Rio 1 e 2.
Marcello Alencar deu continuidade à Operação Rio 1, iniciada em novembro de 1994 e
prorrogou o prazo inicial que terminaria em 31 de dezembro e 1994 até 03/03/1995 e assinou
outro que vigorou entre abril e junho do mesmo ano Ŕ Operação Rio 228. Esse convênio deu o tom
do que seria o governo de Alencar. Apoiando-se no caos da segurança pública e no alto índice de
rejeição e críticas ao governo anterior (Leonel Brizola,1983-1987) Alencar assume disposto a tentar
algo diferente do que vinha sendo feito.
A forma como o combate ao crime desenrolou-se teve como características a violência e a
presença dos militares em favelas bairros populares29. Os militares não tardaram a aparecer nos
periódicos como responsáveis por ações altamente questionáveis:

Centenas de pessoas foram presas arbitrariamente,várias torturadas e mesmo


seqüestradas, milhares de casas invadidas, os mais variados roubos perpetrados,
escolas, igrejas e centros comunitários utilizados para operações militares e
transformados em centros de triagem e torturas. Toques de recolher vigoraram em
quase todos os locais e morros invadidos, num flagrante desrespeito ao direito de
ir e vir.30

31
A Operação Rio 2 seguiu o mesmo perfil e ao terminar parece ter servido de exemplo ao
governador do estado, que seguia seu mandato com mão-de-ferro em suas ações contra a
criminalidade, o que muitas vezes significou a bruta repressão contra moradores de bairros pobres e
favelas, estigmatizados pela sua condição econômica e social. O governo de Marcello Alencar
trabalhou no sentido de fortalecer uma marginalização de parte da sociedade fluminense a partir
do uso da violência contra ela.
Ao voltar às ruas sem a coordenação/administração do governo militar, os policiais
continuaram a aplicação das mesmas práticas acobertadas pelas autoridades da ditadura. A tortura
manteveu-se uma técnica de investigação32 e a estereotipação do suspeito volta a ação para as classes

28
BORGES, 2006: 104
29
COIMBRA, 2001: 143.
30
COIMBRA, 2001:161
31
COIMBRA, 2001: 176.
32
KANT DE LIMA, 1995: 84
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mais pobres. Acreditamos que as polícias têm sua prática e sua ideologia viciadas em violência,
marginalização e estigmatização dos moradores de favelas e bairros pobres.
A relação de violência entre a população pobre e a Polícia Militar tornou-se evidente com o
fim do regime militar. Com a volta do comando das polícias estaduais à esfera estadual, o alvo
deixou de ser o comunista infiltrado nas camadas populares e passou a ser o narcotraficante que
atuava nos morros e favelas da cidade do Rio de Janeiro. Este alvo ampliou-se a ponto de
incorporar em seu espaço os moradores de favelas dominadas pelo tráfico. Oficiais com práticas
viciadas em violência e corrupção reproduzem a estigmatização a marginalização de moradores de
favelas e de bairros pobres. Como esta realidade justifica-se?
Corrupção e a violência são dois pontos fundamentais a serem trabalhados quando se
pretende desenvolver algum tipo de política pública de segurança. A corrupção faz parte da
história da polícia e o combate a ela evidencia seu corporativismo.
...quando se sugere que a polícia é corrupta, os policiais tendem a cerrar fileiras
em defesa de sua instituição e de sua própria honra. E se os policiais corruptos
são influente Ŕ o que normalmente é o caso -, eles terminarão neutralizando a
possibilidade de colaboração dos demais policiais com as autoridades interessadas
em diminuir e controlar a corrupção. Políticas sérias de combate a corrupção
devem, por isso, ser traçadas e executadas com discrição.33

Exatamente o contrário do que se observou no período pesquisado. Moreira Franco e


Leonel Brizola, por um lado, e Marcello Alencar por outro, alardearam bastante suas ações na área
de segurança, mas as ações parecem ter sido diferentes.
Já a violência da qual falo não é indiscriminada. O que marca a atuação policial nas
décadas em questão é a violência aplicada em determinados setores da sociedade fluminense: os
moradores de favelas e de bairros populares e esta é uma das questões relevantes neste trabalho.
Essas habitações localizam-se em áreas carentes de serviços públicos básicos e que, em alguns
casos, passavam por um processo onde o poder dos traficantes parecia substituir o do Estado. Essa
influência dava-se através do uso da violência, mesmo que mascarada por ações paternalistas e uma
duvidosa proteção. Desta fora, a exclusão de que era vítima marginalizava esta população, deixando-
a sob diferentes formas de controle pelo uso da violência, uma do Estado e outra dos traficantes.

33
ROLIM, , 2006: 33
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As práticas que caracterizam a atuação das polícias no período pesquisado são a violência e
a corrupção. Essas ações baseiam a hipótese de que a própria polícia dificultou a aplicação de
políticas de segurança que objetivassem diminuir a criminalidade. A corrupção estaria enraizada em
suas práticas e a violência surgia nas relações da corporação com moradores de favelas e bairros
pobres, majoritariamente.
Nossa sociedade baseia-se em práticas de exclusão. É um estado que produz margens e
formas de controle daqueles que ali se localizam.para melhor entendimento do conceito de
margens e sua produção pelo estado, será utilizado o estudo de Veena Das34, no qual e outros
pesquisadores definem margem como locais onde Ŗa natureza pode ser imaginada como selvagem e
sem controle e onde o estado está constantemente restabelecendo suas formas de ordem e
legislaçãoŗ35 . Quem está dentro e quem está fora e o que determina o pertencimento são pontos
desenvolvidos nos diversos artigos que fazem parte do trabalho. As margens são lugares onde a lei
e a ordem do estado precisam ser restabelecidas36. Elas não são fixas, movimentam-se de acordo
com o interesse de setores da sociedade que as produz. Para identificá-las, Ŗprecisamos nos voltar
para a penetrante incerteza da lei em todos os lugares e para a arbitrariedade da autoridade que
busca fazer a lei incontestávelŗ 37
Os mecanismos de controle são Ŗos mais variados possíveis, diversificando-se na severidade
da punição imposta ao desviante e na abrangência do grupo visadoŗ. No cerne desse controle está
o não respeito aos direitos individuais dos que estão fora dessa fronteira social, nas margens.
Entendemos margens como lugares onde é necessário ao Estado constantes tentativas de recriar-se a

34
DAS, Veena and POOLE, Deborah. Anthropology in the margins of the State. Santa Fe, NM, USA : School
of American Research Press ; Oxford [England] : 2004.
35
Ŗ...sites qhere nature can be imagined as wild and uncontrolled and where the state is constantly refounding its
modes of order and lawmakingŗ( Das, Veena and Poole, Deborah. State and its Margins Ŕ Comparative
Ethnographies In Das and Poole. Anthropology in the margins of the State. Santa Fe, NM, USA : School of
American Research Press ; Oxford [England] : 2004: 08.
36
ASAD, 2004:279
37
Ŗ ... we must turn to pervasive uncertainty of the law everywhere and to the arbitrariness of the authority that seeks to
make the law certain.ŗ(Asad, Talal. Where are the margins of the State? In Das, Veena and Poole, Deborah.
Anthropology in the margins of the State. Santa Fe, NM, USA : School of American Research Press ; Oxford
[England] : 2004: 287.
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si próprio, já que seu poder ali é questionado38 . O estado perderia sua função como tal se por
algum acaso perdesse uma área que seria de seu controle.
O estado produz suas margens e delimita a fronteiras que estabelecem quem está dentro e
quem está fora. O agente diretamente responsável pelo controle dessas margens, ou melhor,
daqueles que habitam um espaço marginalizado e possuem esse perfil é a polícia. E esse controle faz
largo uso da violência. No caso das favelas, outro poder (o tráfico de drogas) ameaça tomar o lugar
do estado e isso pode justificar em parte essa violência, já que o controle através dela originalmente
é exclusividade sua.
O fator imediato responsável pela formação das modernas forças de Ŗpolíciaŗ foi a
emergência de um sem-número de revoltas populares e desordens de rua na maior
parte dos países europeus e a incapacidade dos governos para continuarem
lidando com elas através da convocação de tropas do exército39

Esse monopólio da violência pelo estado poderia justificar as ações da polícia contra os
traficantes que sitiavam a cidade. Mas o que justifica a utilização de métodos violentos contra seus
moradores? Como a polícia constrói o perfil do suspeito e justifica a margem e o fato de ignorar os
direitos daqueles que ali habitam? De forma mais abrangente, o que leva à perpetuação da falta de
cultura de direitos na sociedade brasileira, evidenciada pelas práticas policiais?
Para responder a essas questões utilizarei como base teórica a obra de Norbert Elias, Os
Estabelecidos e os Outsiders – Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade40. Na
citada obra, Elias estuda as relações que se estabelecem entre moradores de uma pequena cidade
inglesa. Os moradores mais novos são vítimas de um contínuo processo de exclusão e
estigmatização pelos moradores mais antigos. O espaço do Ŗnósŗ e o espaço do Ŗelesŗ é
rigidamente demarcado por normas de grupo e deixam claro os preconceitos, as diferenças sociais,
econômicas e/ou étnicas. Os estabelecidos possuem Ŗum estilo de vida comum e um conjunto de
41
normasŗ e os outsiders são vistos pelos primeiros como Ŗindignos e confiança, indisciplinados e
desordeirosŗ 42.

38
DAS, 2004: 08
39
ROLIM, 2006: 25
40
Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2000.
41
ELIAS, 2000: 25
42
ELIAS, 2000: 27
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Os estabelecidos de Elias, com ressalvas, são neste projeto identificados como os moradores
da cidade Ŗformalŗ, lar da classe média e de seus representantes. Do Ŗoutro ladoŗ da fronteira
estão os nossos outsiders: os moradores de favelas e bairros pobres, excluídos pelo grupo que possui
mais influência da tomada de decisões políticas. Esse poder evidencia quem é o agente da exclusão:
Ŗum grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de
poder das quais o grupo estigmatizado é excluídoŗ 43. Um dos principais fatores dessa exclusão, que
identifica aquele que deve ser mantido além da fronteira é o econômico44.
O olhar voltado para o outro como diferente de si já legitima internamente o pré-conceito
contra o grupo que está sendo considerado inferior. Separar uma sociedade entre Ŗnósŗ e Ŗelesŗ, os
que estão Ŗdentroŗ e os que estão Ŗforaŗ, exige daqueles que estipulam as regras de pertencimento,
dos que delimitam as margens um rigoroso exercício de auto-avaliação, de estipulação de regras e
condutas. No caso deste projeto, este exercício tem por base o pertencimento econômico e social, o
local de moradia, as relações sociais.

Não é fácil entender a mecânica da estigmatização sem um exame mais rigoroso


do papel desempenhado pela imagem que cada pessoa faz da posição de seu grupo
entre outros e, por conseguinte, de seu próprio status como membro desse grupo45

Aqueles que habitam fora do grupo chamado de estabelecido por Elias e aqui, os que não
habitam a cidade formal Ŗsão vistos Ŕ coletiva e individualmente Ŕ como anômicosŗ 46. Quem os
caracteriza desta forma é o mesmo grupo em posição de poder para delimitar as margens.
Quem vigia essas fronteiras é a Polícia, órgão oficial de segurança do estado e a postos para
defender os interesses da classe hegemônica. Desta forma, ela reproduz seus preconceitos e
estigmas, tratando moradores de favelas e bairros pobres como seres inferiores e sem direitos, por
viverem de uma forma que não reproduzia as normas dos setores médios fluminense.
O respeito aos direitos de cidadão dependia do lugar em que o indivíduo estava
inserido, do lado da fronteira a que ele pertencia. E a ação policial variava de acordo com esse

43
ELIAS, 2000: 23
44
Cf. ELIAS, 2000: 28
45
ELIAS, 2000: 25-26
46
ELIAS, 2000: 23
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pertencimento, reproduzindo esses conceitos e contribuindo para a perpetuação de uma sociedade


de direitos onde os direitos não são respeitados.
Não acredito que possa desmontar o discurso que coloca o governo Moreira Franco como
um governo violento na área da segurança pública sem apresentar aquele que eu acredito que seja o
violento de fato. A falência do pensamento pós-ditadura que prima pela democratização das
instituições de segurança, pela igualdade de tratamento entre os grupos sociais e pelo fim da
estereotipação, da ligação pobreza-criminalidade, em meu entender, concretiza-se quando Alencar
assume o governo do Estado.

Referências Bibliográficas:
ASAD, Talal. Where are the margins of state? In Anthropology in the margins of State. Santa Fe,
NM, USA: School of American Research Press; Oxford [England]:, 2004.

AZIZ Filho, Francisco Alves Filho. Paraíso Armado: interpretações da violência no Rio de Janeiro.
SP: Garçoni, 2003.

BORGES, Wilson Couto. Criminalidade no Rio de Janeiro: a imprensa e a (in) formação da


realidade. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

DAS, Veena, Poole, Deborah. State and its margins: Comparative Ethnographies In Anthropology
in the margins of State. Santa Fe, NM, USA: School of American Research Press; Oxford
[England]:, 2004.

FRANCO, Wellington Moreira. Em defesa do Rio. RJ: TopBooks, 1991.

___________. Diretrizes de um governo popular e democrático. RJ: Paz e Terra, 1986.

KANT DE LIMA, Robert. A polícia da cidade do Rio de Janeiro: seus dilemas e paradoxos. Rio de
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RIO DE JANEIRO (ESTADO). Governador (1987-1990: Moreira Franco). Realizações do Governo


Moreira Franco. Niterói: Imprensa Oficial, 1990.

RIO DE JANEIRO (ESTADO). Governador (1987-1991: Moreira Franco). Plano dos 100 dias: metas e
resultados. Niterói: Imprensa Oficial, 1987.

Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011


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ROLIM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século


XXI. RJ: Jorge Zahar Ed.; Oxford, Inglaterra: University of Oxford, Centre for Brazilian Studies,
2006.

SAPORI, Luis Flávio. Segurança pública no Brasil Ŕ desafios e perspectivas. RJ: Ed. FGV, 2007.

SENTO-SÉ, João Trajano de. Brizolismo, estetização da política e carisma. RJ: Ed. FGV/Espaço e
Tempo, 1999.

__________________ Estado e Segurança Pública no Rio de Janeiro: dilemas de um aprendizado


difícil. UFRJ - Inst. Economia, 2000.

SOARES, Francisca Vergínio. A política de segurança pública dos governos Brizola e Moreira
Franco Ŕ à margem da Nova Violência. RJ: Papel Virtual Editora, 2002.

SOARES, Luiz Eduardo. Violência e política no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ISER, 1996.

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OS ESTATUTOS DO CONVENTO DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO


DA AJUDA DO RIO DE JANEIRO

Amanda Dias de Oliveira

Resumo
Este trabalho busca demonstrar o cotidiano das religiosas do Convento de nossa senhora da
conceição da ajuda do Rio de Janeiro. Será construído o entendimento das práticas cotidianas
destas mulheres, e como estas reagiam frente ao estatuto, ou constituição do convento, se
obedeciam ou praticavam transgressões, será abordada uma perspectiva social e institucional do
estatuto deste convento. Sendo entendido através não só dos estatutos como também em outras
fontes o cotidiano das mulheres no convento, juntamente com as relações eclesiásticas do período,
analisando também outros conventos como o do Desterro da Bahia. Este trabalho contará com a
contextualização das fontes analisadas durante a pesquisa no arquivo da Cúria Metropolitana do
Rio de Janeiro, que destacara não só os estatutos como também a diplomacia para a fundação de
Conventos.
Palavras–chave: Religiosidade Colonial; Mulher; História.

Esta comunicação pretende dar prosseguimento a uma pesquisa realizada na graduação


referente à vida religiosa feminina no século XVIII, do ano de 1750 a 1808. A pesquisa tratou
especificamente do convento da Ajuda do Rio de Janeiro, como era o cotidiano das mulheres que
tinham o objetivo de levar uma vida professa e os seus diferentes aspectos institucionais, ou seja, o
estatuto e suas regras. Aborda-se-á uma questão de contexto, ou seja, como era a sociedade colonial,
seu modelo estrutural e o papel da mulher neste período, compreendendo como era o
comportamento destas mulheres frente à sociedade na qual estavam inseridas. Será destacado

Graduada pela Universidade Gama filho em licenciatura e bacharelado. Esta comunicação apresenta resultados finais
da pesquisa realizada para a obtenção de título de bacharel, realizada com o auxílio do CNPq, que terá continuidade
na pesquisa de mestrado.
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também o processo de fundação dos conventos e de recolhimentos na América Portuguesa,


especificamente no Rio de Janeiro. Como destaca Riolando Azzi, no século XVIII já existiam
Ŗinstituições com caráter religiosoŗ,1 tanto que foi neste século que surgiu no Brasil o primeiro
mosteiro de mulheres, enquanto que, na América Espanhola, os conventos já se faziam presentes,
chegando a possuir aproximadamente setenta conventos. Este tema é tratado por uma vasta
historiografia, que mostrará como era dinâmica a vida destas mulheres e que estas se educavam
(para os padrões da época), e poderiam até fazer escolhas de como usufruiriam suas vidas, se iriam
para o convento ou se casariam. A maioria destas mulheres vivia na reclusão de suas casas, por isso
é importante destacar que estas, na América Portuguesa, possuíam um papel de seguradoras de
bons costumes tendo que ser honradas e recatadas, ficando basicamente na reclusão de suas casas.
Ao propor uma análise sobre esta questão, tenta-se romper a visão de que estas mulheres
não contribuíram para a formação sociocultural do Brasil, e que não tinham nenhuma espécie de
educação, e que era um grupo totalmente alienado da realidade na qual viviam. Para isso, é
relevante nesse projeto a necessidade de abordar as formações de conventos e recolhimentos, para
provar a existência de instituições que possuíam não só um caráter religioso (votos solenes), como
também um caráter educativo, dando a estas mulheres certo conhecimento e autonomia frente à
dominação masculina.2
A fonte analisada foi a do estatuto do convento da Ajuda do Rio de Janeiro, utilizando o
método comparativo, ou seja, comparando este estatuto com o do convento do Desterro na Bahia.
Sendo que, alguns trechos dos estatutos do Convento do Desterro encontram-se no livro
ŖPatriarcado e Religião: As enclausuradas clarissas do Convento de Desterro da Bahia 1677-1890,
da autora Ana Amélia Vieira Nascimento, para que assim, se entenda como se davam as relações
eclesiásticas e até quando as mulheres que ingressavam nesta vida obedeciam aos estatutos. Foram
utilizados também, os registros sobre a reforma de hábitos das freiras do convento da Ajuda para
que se entendam como estas se comportavam frente ao estatuto. E por ultimo a fonte ŖArcipreste
Antonio Alves Ferreira dos Santos. ŖNotícia Histórica Da Ordem da Immaculada Conceição da
Mãe de Deus e do convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda do Rio de Janeiro,

1
AZZI, Riolando. A vida religiosa no Brasil enfoques históricos.Petrópolis. Vozes. 1983,p.24-60.
2
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia- Condição feminina nos conventos e
recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. 2°ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
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Typographia Leuzinger, 1913ŗ. Esta fonte tem por objetivo auxiliar a construção do entendimento
sobre a construção do convento da ajuda e seus precedentes. Assim, para isso é importante não só
fazer uma análise institucional como também é importante fazer uma analise social para que
entendamos certos comportamentos que se faziam presente na estrutura da sociedade colonial.
Na religião católica, uma das práticas mais conhecidas é a confissão. Os confessores
deviam cuidar deste local (confessionário), a fim de que outros ouvissem pecados de fieis neste
lugar sacro, tendo-se um diálogo secreto somente entre o pecador e o sacerdote. Mas, o local
deveria ser vigiado para evitar futuras intimidades e maldizeres. O sigilo era algo que deveria ser
praticado pelo sacerdote, tornando mais fácil e segura à confissão.3 Para Luiz Mott, a solicitação da
confissão está direcionada a religião privada, com a presença de confissões diante das quedas
morais. Assim, é oportuno ressaltar a questão de instituições com caráter religioso, pois existiram
mulheres que se dedicaram a um catolicismo formal. Ao lado de alguns institutos masculinos,
designados como ordens primeiras, surgiu em seguida, na Idade Média, o ramo feminino, sendo
designadas como segunda Ordem. Tanto as franciscanas como as carmelitas, tiveram seu ramo
feminino implantados na colônia. Assim, estando à colônia em desbravamento, foi somente em
meados do século XVII que ocorreu a instituição de primeiros claustros femininos. 4 Riolando Azzi
destaca que no século XVIII já existiam Ŗinstituições com caráter religiosoŗ. 5 No século anterior foi
que se eregiu no Brasil o primeiro mosteiro de mulheres, sendo que na América Espanhola, os
conventos já se faziam presentes, chegando a possuir aproximadamente setenta destes.
A defesa da virgindade de mulheres honradas e a falta de homens com títulos de nobreza
foram fatores que proporcionaram à necessidade de se pedir a fundação de conventos femininos,
encarcerando-as, podendo manter assim a sua honra e ao mesmo tempo preservar o status social da
família. Instituições deste tipo geralmente seguiam dois modelos, um oficial canônico e outro bem
informal e difuso. 6
Voltando a questão da resistência frente a fundações de conventos, pode-se analisar que por
mais que se tivesse resistência, foi pedida a construção de recolhimentos e conventos com o

3
Regra proporcionada pela teologia moral e o código canônico.
4
AZZI, Riolando. A Igreja Católica na Formação da Sociedade Brasileira. São Paulo: Santuário, 2008,p,38
5
Idem.
6
Ibidem,p.38.
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objetivo de educar moças e encaminhá-las ao casamento guardando a castidade. Muitos conventos


foram fundados sem a autorização régia, um exemplo foi o convento de Santa Teresa em São
Paulo. Os conventos fundados tardiamente levaram muitos a fazerem em suas próprias casas uma
espécie de claustro ou recolhimento, pois muitas donzelas católicas queriam consagrar de corpo e
alma ao Divino Esposo. Conventos como o da Conceição da Ajuda foi fundado no século XVIII
(1750), não tendo uma vaga ilimitada, pelo contrário, o que fazia com que muitas moças buscassem
uma opção informal para se ter uma vida recolhida, que seriam os recolhimentos.7 A autora Maria
Beatriz Nizza da Silva destaca que nesta instituição o número de reclusas parece ter sido bem
inferior:
O Comerciante inglês John Luccok refere que no Convento De Nossa Senhora da
Conceição da Ajuda se encontravam ao todo dezessete freiras, na sua maioria
com mais de trinta anos, enquanto que a abadessa era uma dama de mais de
cinqüenta anos.8

O recolhimento é uma casa religiosa, organizada a maneira de conventos, mas sem votos
solenes, ou seja, estas mulheres poderiam fazer votos de castidade, mas não necessariamente seguir a
vida religiosa de fato. Assim, o recolhimento possuía um significado diferente do convento, pois os
recolhimentos possuíam fins de devoção e educação. 9
Entende-se que, por detrás dos muros dos conventos, havia regras, sacrifícios, prazeres e
dores. Assim, no cotidiano destas religiosas, era comum o não cumprimento de algumas regras,
muitas mulheres encontravam-se de maneira não conveniente para o seu estado. 10 Dentro desta
instituição, existia a presença de diferentes mulheres como, abadessas, mulheres humildes,
sofredoras, ingênuas e escravas. As nobres não deixavam de utilizar recursos da época como
penteados da moda, cabelos anelados e postiços. Para a autora, a presença de utensílios como jóias,
móveis e objetos de família ajudavam amenizar uma vida de clausura eterna, peitada em regras. 11

7
Ibidem,p.71
8
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. São Paulo: EDUSP. 1984,p.63
9
Ibidem,p.78.
10
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e Religião: As enclausuradas clarissas do Convento de Desterro
da Bahia 1677-1890. Bahia: Conselho Estadual de Cultura. 1994,p.35.
11
Ibidem,p.36.
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A religiosidade das clarissas era demonstrada através do culto, da reza, da cantoria e da


contemplação, enfeitando altares, inventando procissões de honra a santos.12 Estas ansiavam por
uma liberdade não atendendo as regras de arquiepiscopais ou governantes, sendo dignas de certa
autonomia.No Rio de Janeiro funda-se, em 1687, um recolhimento junto à ermida da Ajuda, mais
tarde em 1742, funda-se outro recolhimento que se inicia como um educandário para meninas,
educandários estes que ficavam submetidos ao domínio masculino, vindo assim a causar
resistências. Então recolhimentos foram sendo instituídos não só no Rio de Janeiro, como também
em São Paulo, Norte e Nordeste.
Nestas instituições as vagas eram limitadas, a entrada era para poucas mulheres. No
convento da Ajuda, por exemplo, o número de vagas para a entrada de futuras religiosas era a de
oitenta mulheres, mas caso fosse necessário exceder este número para o bem do mosteiro, era
preciso consultar o prelado.13 A religiosidade no Rio de Janeiro não foi tão diferente frente às
afirmações colocadas. Moradores desta cidade desejavam a fundação de um convento, insistindo
para a Coroa Portuguesa tal privilégio. A permissão só foi liberada em 1687, fundando-se um
recolhimento junto à ermida da Ajuda, doada pela irmandade de N. Senhora da Ajuda, que seria
um futuro convento. 14
Para a fundação de um convento era necessário um controle forte por parte do Bispo. No
período colonial a resistência era muito forte, e para ser efetivado uma casa religiosa era necessário
saber se o estabelecimento estava propício. Tanto que somente em 1705 se consegue uma
autorização régia para erigir um mosteiro, sendo efetivado de fato em 1750, com a vinda de cinco
Clarissas do convento do Desterro da Bahia.15 Podemos analisar nesta fonte da fundação do
convento da Ajuda, todo este processo complexo de fundação:
Aos vinte e nove dias do mês de maio (trago) de 1750 anos nesta cidade do Rio de
Janeiro no convento da nossa senhora da conceição da ajuda desta cidade, onde o
excelentíssimo, e reverendíssimo senhor Dom Frei Antônio do Desterro bispo
deste bispado foi vindo com os muitos reverendos ministros eclesiásticos,
reverendo do juízo, comigo escrivão ao diante nomeado sendo aí foi por sua
excelência reverendíssima visto e bem examinado o sobredito convento, igreja,

12
Armavam andores para tais santos.
13
O que seria o Bispo.
14
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. op. cit ,p,34.
15
Idem.
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coro e mais oficinas dele, pelo achar em tudo com a capacidade e segurança
necessária o julgar capaz de ser recolherem nele as fundadoras e dar princípio(um)
principio espiritual à sua fundação...16

O convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda foi fundado ao século XVIII. Mas
desde meados do século XVII, o povo desta cidade desejava a fundação de um convento para as
religiosas jovens que quisessem alcançar o estado de perfeição monástica, não precisando passar
perigo para entrar em conventos longínquos. Neste período alguns devotos contribuíram com
esmolas para a fundação deste convento, junto à capela de Nossa Senhora da Ajuda. E em meados
do século XVII(1670), o Dr. Francisco da Silveira Dias, futuro bispo, animou e fomentou a ideia de
construir este convento.17 Em 1741 o Bispo D. Fr. João da Cruz tomou posse do Bispado,
encontrando a obra do convento muito atrasada, vendo a necessidade de comprar propriedades
18
próximas ao futuro convento. Esta passou a dar princípio à edificação do convento, lançando a
primeira pedra em 14 de Maio de 1742 a fim de:
Tendo deliberado fazer um Convento magnífico, em que se pudesse recolher
grande numero de Religiosas, exhortou todos os fieis a concorrerem com esmolas,
segundo as suas çposes, para se tornarem participantes dos suffragios e
penitências, orações e boas obras que fizessesm as Religiosas. 19

Em 1746, D Fr. Antonio do Desterro assume a posse da Diocese, sendo intimadas a dar
continuidade às obras do convento, tão desejada pelos moradores.20 Sendo decretado em quatro de
Janeiro de 1750 o estabelecimento do convento das religiosas franciscanas sob a regra da Santa
Clara, podendo receber trinta e três postulantes ao noviciado para admiti-las depois de um ano a
profissão solene, prescrito pelo Concílio Tridentino. 21 Assim no dia da fundação do mosteiro:

16
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha 1. Termo de Clausura que se fez do novo convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda desta cidade
(1750). Consultado e Transcrito em 25/08/2009.
17
SANTOS, Arcipreste Antonio Alves Ferreira dos. Notícia Histórica Da Ordem da Immaculada Conceição da Mãe de
Deus e do convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Typographia
Leuzinger, 1913. Capítulo VI, fl. 35-43.

18
Ibidem,p,87.
19
Ibidem,p.45.
20
Principalmente aquelas famílias que desejavam oferecer suas filhas a Deus.
21
SANTOS,Arcipreste Antonio Alves Ferreira dos. op. cit, p, 49;73 e 95.
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Chegando á porta da referida Igreja, acharam da parte exterior ao mesmo Exmo.


Bispo, que as esperava, acompanhado de toda Comunidade dos Monges daquelle
Mosteiro. Entraram a fazer oração e assistiram ao Te Deum, que se cantou com
dois córos de musica; e, revestindo-se Sua Ex. com os parâmetros pontificaes, se
deu principio á uma grande procissão em que tiveram primeiro logar as
Irmandades e Confrarias, todas as Comunidades Religiosas, logo o Clero, e
depois o Cabido, entre o qual iam as Madres Fundadoras, com os rostos cobertos,
e dez noviças riquissimamente trajadas, mas todas com imagens do santíssimo
Crucifixo nas mãos, como retratos do Esposo, a quem consagraram a sua
virgindade.22

Dentro dos claustros coloniais, do Rio de Janeiro, era comum ser pedida a prova de pureza
de sangue das candidatas. Inclusive, nos estatutos do convento da Ajuda é afirmado: “Adivirta-se com
muita diligencia, que as noviças, que ouverem de receber o hábito, sejão de sangue limpo, honestas e recolhidas
e que aspirem a perfeição religiosa, e amem o desprezo do mundo...”23Dentro destes mosteiros, o
preconceito era comum, tanto que para a entrada das mulheres nestas instituições era cobrada a
limpeza de sangue, ou seja, sem nenhuma descendência ou relações com a Ŗraçaŗ de mouro ou
judeu, e negro. Na Bahia, devido à convivência com a escravidão, era comum a repulsão e rejeição a
pessoas negras, mesmo sendo católicas. 24
Assim, ingressando na carreira religiosa, poderiam exercer funções negadas à mulher e de
quebra obter uma excelente educação aos padrões da época, tendo um status social. O Autor
Riolando Azzi destaca que, a preferência para a entrada de mulheres no convento era para as filhas
de senhores de engenho e, só mais tarde, que as filhas de comerciantes conseguiriam tal privilégio.
Senhores de engenho e comerciantes possuíam uma forte ligação entre eles, devido à participação
de ambos no empreendimento açucareiro. Assim, entende-se que o envio de mulheres para estas
instituições era algo que garantiria um status frente à sociedade, obter filhas num convento era um
privilégio.

22
Ibidem,p,51.
23
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha 16. Termo de Clausura que se fez do novo convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda desta cidade
(1750).
24
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. op. cit.p.106.
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Vauchez25destaca que o conceito de santidade esta relacionado à separação radical da


condição humana, mas também a possibilidade de uma relação com o Divino suscetível de efeitos
purificadores. Rodolf Otto26 destaca que a característica do santo é de ser ao mesmo tempo
totalmente diferente e extremamente próximo do homem. Na época dos profetas, a ideia bíblica de
santidade evoluiu num sentido espiritual, existe um ideal de santidade nas profecias bíblicas onde
ŖDeus voltará a conceder ao homem a sua benevolência no caso de este se abster do que é mal e de voltar a
adquirir pelo seu comportamento a pureza de ânimo”. 27
O evangelista João, sublinha com grande insistência aquilo que constitui a originalidade do
profeta Nazaré, tendo-se um apelo universal à santidade dirigido por Deus e a todas às criaturas.
Assim, percebe-se que a figura do homem religioso passa a participar da própria santidade e
beneficiar dos seus atributos, o ideal de santidade está relacionado à relação espiritual com o
divino, passando por um processo de dissociação em relação ao homem comum, recusando
qualquer elemento mundano como, por exemplo,
Abstendo-se de relações sexuais e vivendo na maior miséria, o santo foge aos
vínculos familiares e à propriedade e apresenta-se como um homem totalmente
livre. Do mesmo modo foge da autoridade, e geralmente não tenta ter discípulos
nem entra em contato com a hierarquia eclesiástica local.28

É neste contexto que a autora Leila Mezan Algrant destaca que ao se estudar a santidade
feminina é preciso se ater a três elementos que são: suplício, doença e morte. Inclusive muitas
mulheres como Jacinta, martirizam seu corpo com suplícios físicos, dedicando um espaço de sua
vida ao Ŗsofrimento moral e corporal advindo dos êxtases, os quais a deixavam prostrada por longos
períodos”.29A autora destaca que a santidade não se conciliava com o casamento, tanto que Jacinta
nunca se casou, optando por uma vida religiosa e de clausura no convento de Santa Teresa. Mas o
importante a se destacar é que, quando se fala de santidade é preciso entender que este era um
ideal a ser alcançado, mulheres de vida professa tentavam atingi-lo:

25
VAUCHEZ, André. ŖSantidadeŗ In: ROMANO, Ruggiero (Ed.). Mythos/logos, sagrado/profano (Enciclopédia Einaudi,
v. 12). Lisboa: Imprensa Nacional Ŕ Casa da Moeda, 1987,p,287.
26
Idem.
27
Idem.
28
Ibidem.,p,290
29
ALGRANTI, Leila Mezan. Livros de devoção atos de censura Livros de devoção atos de censura: Ensaios de
História do livro e da leitura na América Portuguesa. (1750-1821). São Paulo. Hucitec:Fapesp,2004,p,108.
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A vida no interior dos Claustros, porém, estimulava este tipo de


manifestação: Um universo místico, povoado por temores e ameaça de
Satã, repleto de tentações das quais era preciso fugir e de mortificações e
sofrimentos necessários para atingir a Deus. A busca da perfeição religiosa,
aliada à leitura de vidas de santas, estimulava as demonstrações excessivas
de piedade e de devoção. 30

Existia uma tentativa de se chegar a um ideal de pureza e santidade, tendo-se rigorosa


modéstia dentro de tais instituições.31 Percebe-se então que a igreja católica, desde o monasticismo
Medieval, estimula a disciplina espiritual e a dedicação a uma vocação, a fim de buscar a salvação e
até mesmo um intenso grau de santidade.32
A importância da santidade destaca-se pela exaltação da virtude, dos costumes puros e
33
doutrinas de uma religiosa. Então, tais mulheres tentam atingir este ideal. Quando se fazia os
votos solenes num convento, existia a valorização da santidade feminina, tendo uma narrativa
simbólica nupcial, ou seja, o encontro entre esposa e divino esposo. 34 Tentando-se construir assim,
um modelo de virtude cristã. Inclusive William de Souza Martins segue a linha de Vauchez ao
tratar de santidade. Para este:
A definição de santidade se caracteriza pelos seguintes atributos: proximidade em
relação à divindade de Cristo, o que faz do santo um Ŗamigo de Deusŗ; Ŗpoder de
agir em benefício dos indivíduos e das comunidades humanasŗ; superação da
condição humana, marcada pela abstinência de alimentos e de sexo e pelo
despojamento material como um todo; capacidade de agir como um intermediário
entre Deus e os homens e de ser um mediador nos conflitos humanos; domínio
exercido sobre os elementos naturais. 35

No estatuto do convento do Desterro da Bahia, por exemplo, as mulheres comprometiam-se a


viver em união de espírito com Deus e em votos de rigorosa pobreza. Desprezando prazeres do
mundo, seguindo uma vida de enclausuradas para servir ao senhor em plena liberdade e santos

30
Ibidem,p, 190.
31
O que não descarta a ideia de não comprimento das regras de um determinado convento ou mosteiro.
32
GONÇALVES, Margareth de Almeida. O império da fé: Andarilhas da alma na era barroca. Rio de Janeiro: Rocco,
2005,p, 46.
33
VAUCHEZ, André. op, cit, p, 289.
34
GONÇALVES, Margareth de Almeida. op, cit, p, 132,
35
MARTINS, William de Souza. D Domingos de Loreto Couto e a construção de modelos de santidade feminina na
época Colonial. Revista do Mestrado de História da UniversidadeSeverino Sombra. Vassouras, v 11,p. 193-229,
2009,p, 21-26.
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propósitos.36 Tanto nos estatutos do convento da Ajuda como nos estatutos do convento do
Desterro da Bahia, era afirmado que tais mulheres deveriam deixar de elementos mundanos para
tornarem-se noivas de Cristo. Outra semelhança nestes estatutos era de que estas mulheres
deveriam fazer votos perpétuos de viverem em enclausuramento. No convento da Ajuda deveria ter
grades de ferro por dentro e por fora, com a presença de um véu preto de linho para que as
religiosas não fossem vistas.37 Nos Estatutos do convento do Desterro era afirmado o seguinte:
Estabelecido o estado sublime das religiosas, a segunda constituição era sobre a
clausura e o fato de que nenhum pudesse sair dela sem licença da Sé Apostólica, a
não ser em casos especiais como incêndio do mosteiro, invasões inimigas. Em tais
ocasiões se conservariam em locais discretos e acomodados. 38

Dentro dos muros dos conventos, as mulheres praticavam em seus cotidianos elementos
que ia contra os estatutos e até mesmo a autorização dos Bispos. Mulheres que viam de fora traziam
servas para realizarem trabalhos domésticos, como fazer doces e enfeites. Para Leila Mezan Algranti,
dentro dos claustros coloniais ocorria um forte intercâmbio cultural entre esses dois mundos. Um
ponto em destaque seria concernente ao vestuário destas religiosas. No convento do Desterro, por
exemplo, era comum a utilização de ornamentos de beleza, mas a constituição do arcebispado da
Bahia mencionava que a vida comum e o voto de pobreza eram caminhos seguros para chegar-se a
Deus e, consequentemente, um grau de elevada espiritualidade. Os estatutos mencionavam que o
hábito de uma religiosa deveria ser modesto reconhecendo as virtudes especiais das freiras, estas
vestiam camisas de linho ordinário, sem rendas e bordados, ou seja, algo simples quase junto ao
pescoço. Sobre esta uma saia de drogueta, de lã e de cor honesta, redonda na cintura, sem fitas que
desçam dela, além de um justilho do mesmo tecido, sobre esta deveriam utilizar uma túnica de lã
juntamente com o escapulário e manto. 39
As cabeças deveriam ser cobertas por toucas de linho simples, que lhe cobrissem a testa, as
orelhas e o pescoço. Sobre esta trariam estendidos os véus negros de tafetá, bem fartos, estendendo-
se sobre os braços e as costas. Já as freiras do véu branco e as noviças vestir-se-iam como as religiosas

36
Idem.
37
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro das portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha 11-Regra das religiosas do Convento de N. Senhora da Conceição da Ajuda (P.3). Transcrito em
38
NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. op, cit, p, 92.
39
Ibidem,p,91
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e somente diferia a cor do véu, no caso branco. Os calçados deveriam ser simples e de dois em dois
anos cortariam os cabelos de forma semelhante ao que determinava a primeira regra do convento
do Desterro, ou seja, redondos não cobrindo as orelhas. Não traria nenhum ornato de ouro e nem
de prata, nem fitas de cor ou qualidade. 40 No estatuto do convento do Desterro, é destacado como
deveria ser os trajes das religiosas, sendo rotulados de honestos. Mas existiram religiosas que se
excederam nos gastos para se apresentarem nos dias de festa com pompa e luxo. O custo era
coberto, ou por seus pais, ou pela própria religiosa, que segundo a autora Ana Amélia Vieira
Nascimento, acabava excedendo as condições da família.
Hábitos com fita de cor e longos eram considerados como elementos que ofendiam a
modéstia, um exemplo foi com a Madre Leonor da Madre de Deus, esta possuía um hábito com
trinta e seis côvados de tecido, valendo 15.480$, quantia bem significativa para a época.41 Outra
questão levantada era a de que os hábitos de algumas religiosas possuíam uma extraordinária
largura com toucados decompostos, deixando descobertas às partes do pescoço e da cabeça,
utilizando ornamentos finos e rendados, sendo consideradas ousadas causando assim escândalos
42
fugindo da regra do convento do Desterro da Bahia. Já nos estatutos do convento da Ajuda, no
capítulo três, é minuciosamente elaborada a forma com que as religiosas deveriam portar-se frente a
sua vestimenta.
Deveria ser utilizada pelas freiras uma túnica, um hábito com um escapulário branco, para
que assim estas dessem testemunhos de sua pureza virginal, da alma e do corpo e um manto de
estamenha, ou pano grosso azul.43 Estas deveriam utilizar no escapulário uma imagem de nosso
senhor, mas devido à precariedade da fonte não foi possível transcrever os detalhes desta imagem,
mas é perceptível notar que se trata de Jesus Cristo. Inclusive é destacado:

Esta imagem serviria para que advirtão que hão de trazer a mão de Deus e rainha
dos anjos impressa sempre em seus corações como imagens de vida e glória para

40
Idem.
41
Ibidem,p, 236.
42
Ibidem, p, 237.
43
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha 11.op.cit.
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imitar sua inocentíssima conversação sua soberana humildade, e desprezo do


mundo que vivendo nesta seguio.44

Ou seja, a vestimenta deveria estar dentro das regras dos estatutos para que estas
professassem com louvor o nome de sua fé e de sua obediência, demonstrando a sua devoção.
Voltando à questão do vestuário, estas deveriam usar assim como as religiosas do convento do
Desterro, uma corda de linho como a dos frades na tentativa de evitar ornamentos de luxo. O
toucado seja uma toalha branca de linho, que cubra a testa, fazes e gargantas honestamente e sobre
este trarão as religiosas professas um véu negro com o cabelo devidamente cortado. Os calçados
deveriam ser pantufados, e esta regra serviria para todas as religiosas, inclusive para a Abadessa. 45
Assim como no convento do Desterro algumas religiosas não seguiam os estatutos, no
convento da Ajuda não deveria ser diferente. No registro feito sobre a reforma do hábito destas
religiosas é destacado uma forte insatisfação do Bispo Dom Frei Antonio do Desterro frente à falta
da modéstia e de irregularidade no traje das freiras. É destacado o costume destas mulheres no uso
abusivo de ornamentos em seus hábitos.ŖCom caldas {ileg} de excessivo comprimento e com
espartilhos da cintura para cima com roupas finas e crespas e com outros enfeites totalmente
alheios do estado religiosoŗ.46
Este tipo de comportamento causava desconforto e escândalo aos seculares. Para o Bispo
este tipo de conduta era algo que ofendia a Deus, estas mulheres deveriam servir de edificação e de
exemplo de modéstia e não de escândalos. Portanto era necessário que ocorresse uma reforma para
que estas ajustassem a sua conduta referente à vestimenta, não exagerado e sim sendo discretas e
honradas.

44
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha 11.op.cit..
45
É importante ressaltar que este pedaço da fonte encontra-se muito deteriorado, dificultando para a construção de
mais informações concernente ao vestuário destas religiosas.
46
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha- 62- Registro de uma portaria que sua Ex° M° mandou passar sobre a reforma de hábitos das religiosas do
convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda desta cidade e o seguinte.
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Afirma-se no registro de hábito a falta de regra destas religiosas que acabam por causar
escândalos aos seculares e o pior de tudo, ofendendo a Deus, Ŗnão servindo de edificação e de exemplo
de modéstiaŗ.47 Assim era necessário que estas retirassem o excesso da vestimenta:
Cortando as caudas dos hábitos, deixando toda a túnica meio palmo por detrás
mais comprida que por diante e o manto meio palmo a cima do chão igualmente
por de trás e por diante e deponham logo os espartilhos roupas crespas e os mais
enfeites ficando o hábito a compostura natural. 48

Percebe-se que os Bispos praticavam constante vigilância a fim de que, todas as regras
fossem cumpridas, não só pelas religiosas como também pelas Abadessas, indo contra a qualquer
transgressão.
Em outro registro concernente a reforma do hábito das religiosas do convento da Ajuda,
destaca-se que estas têm de dar ao senhor estreitas contas, e caso não o façam deverão ser obrigadas
a isso com preceito, censuras e castigos. Destaca-se novamente o excessivo uso de ornamentos nos
hábitos, como as ditas caldas nas túnicas e os enfeites, era ordenado que estas fossem modestas,
vestindo-se simplesmente, todas cobertas a fim de dar exemplo como freiras e esposas de cristo,
tanto que o registro aponta:
Isto foi o que mandamos de baixo de preceito e penas incluídas na mesma
pastoral e a gora mandamos de baixo do mesmo preceito e penas que os hábitos
de que usarem não tenha coisa alguma de seda e menos dela forradas, nem com
elas fabricadas.49

Esta insistência na vigilância do hábito se dava pela falta de comprimento destas religiosas
frente às regras estabelecidas pelo convento da Nossa Senhora da Conceição da Ajuda. E caso estas
não obedecessem eram retiradas do convento com pena de excomunhão, inclusive destaca-se o
seguinte concernente a posição dos bispos frente à culpa de alguma religiosa:
Madre Abadessa nos dara parte para mandarmos declarar publicamente
excomungada e encarcerada e proceder com os mais castigos das suas

47
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha- 62. op.cit.
48
Idem.
49
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha-67 V- Registro de uma portaria das religiosas do convento da ajuda desta cidade sobre reforma do hábito com
declarações a outra portaria sobre o mesmo.
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constituições que professaram e a reverenda Madre Abadessa o fará


publicar em convento pleno e se registrará nos livros dos conventos.50

Ou seja, por mais que existissem regras era comum a falta de comprimento destas, pois a
vida comunitária nem sempre transcorria como desejavam seus idealizadores, sendo necessário
aplicar a disciplina quando fosse preciso desde a falta de comprimento ao ofício divino até uma
agressão verbal por parte de alguma religiosa. No caso do convento da Ajuda conforme destacado
no registro sessenta e sete, a pena de culpa deveria ser aplicado em público, no refeitório, por
exemplo, onde algumas permaneciam com um pau na boca, sem se alimentar, e nas infrações mais
graves eram encarceradas. 51(ALGRANTI,1999: 208-9)
Assim dentro destes conventos encontraremos mulheres devotas que tentam seguir as
regras. Porém outras que se distanciam dos estatutos a fim de ter um espaço mais livre e
independente.

BIBLIOGRAFIA
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia- Condição feminina nos
conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. 2°ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1999.

ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas: Mulheres da Colônia- Condição feminina nos
conventos e recolhimentos do Sudeste do Brasil, 1750-1822. 2°ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1999.

AZZI, Riolando. A Igreja Católica na Formação da Sociedade Brasileira. São Paulo: Santuário,
2008.

_____________. A vida religiosa no Brasil enfoques históricos.Petrópolis. Vozes. 1983.

GONÇALVES, Margareth de Almeida. O império da fé: Andarilhas da alma na era barroca. Rio
de Janeiro: Rocco, 2005.

MARTINS, William de Souza. D Domingos de Loreto Couto e a construção de modelos de


santidade feminina na época Colonial. Revista do Mestrado de História da UniversidadeSeverino
Sombra. Vassouras, v 11. 2009

50
Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens Episcopais. Título E-238,
Folha-67 V.op.cit.
51
ALGRANTI, Leila Mezan. Honradas e Devotas. op, cit, p, 208-9.
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NASCIMENTO, Anna Amélia Vieira. Patriarcado e Religião: As enclausuradas clarissas do


Convento de Desterro da Bahia 1677-1890. Bahia: Conselho Estadual de Cultura. 1994.

SILVA, Maria Beatriz Nizza. Vida Privada e Cotidiano No Brasil na época de D. Maria I e D.
João VI. Estampa. 2ºed.2004.

VAUCHEZ, André. ŖSantidadeŗ In: ROMANO, Ruggiero (Ed.). Mythos/logos,


sagrado/profano (Enciclopédia Einaudi, v. 12). Lisboa: Imprensa Nacional Ŕ Casa da Moeda, 1987.

FONTES

Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro das portarias e Ordens
Episcopais. Título E-238, Folha 11-Regra das religiosas do Convento de N. Senhora da Conceição
da Ajuda (P.3).

Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens


Episcopais. Título E-238, Folha- 62- Registro de uma portaria que sua Ex° M° mandou passar sobre
a reforma de hábitos das religiosas do convento de Nossa Senhora da Conceição da Ajuda desta
cidade e o seguinte.

Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro - Livro Primeiro da portarias e Ordens


Episcopais. Título E-238, Folha-67 V- Registro de uma portaria das religiosas do convento da ajuda
desta cidade sobre reforma do hábito com declarações a outra portaria sobre o mesmo.

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ADMINISTRAÇÃO E OS JOGOS POLÍTICOS NA FAZENDA COLONIAL:


CONFLITOS E PODERES NA SOCIEDADE DO
RIO DE JANEIRO (SÉCULO XVIII)

Ana Carolina da Silva

Resumo
O artigo pretende abordar uma análise das redes sociais na sociedade colonial, o funcionamento do
Estado e a efetiva atuação das diferentes esferas administrativas. Partindo da hipótese que as redes
movimentavam essa sociedade, buscando seus mecanismos na função do poder na colônia,
procurando apreender o perfil e posição social dos indivíduos na administração fazendária,
apontando quem eram esses indivíduos, como se organizavam, quais os seus objetivos e que tipos
de funções ocupavam na estrutura política na Colônia. Munidos por alianças diversas, os
funcionários na Fazenda estabeleciam relações sociais, originando a organização e concretização de
múltiplos poderes, contribuindo para a formação de casamentos e formação de famílias nesse jogo
político na sociedade do Rio de Janeiro.
Palavras chave: Brasil Colonial; Administração fazendária; Relações de Poder

1. AS REDES E A ADMINISTRAÇÃO
A historiografia recente tem analisado a formação da sociedade colonial e de suas elites a
partir de eixos temáticos que envolvem desde a concessão de mercês, até ao estudo administrativo
dos cargos oficiais. Observa-se que a historiografia tem privilegiado as questões referentes ao
exercício do poder e o estabelecimento de redes sociais. Nesse sentido, a historiografia vem
buscando estudar essa complexa teia de alianças políticas das elites coloniais e a sua inserção destas

Atualmente é aluna do Curso de Pós Graduação em História Moderna na Universidade Federal Fluminense (UFF) e
é membro pesquisadora do Grupo de Estudo ŖTerra Brasilis”, coordenado pelo Professor Doutor Marcos Guimarães
Sanches (UGF/ UNIRIO). Possui Bacharelado e Licenciatura em História pela Universidade Gama Filho. É
pesquisadora do Arquivo do Poder Judiciário do Estado do RJ. Foi Bolsista de Iniciação Científica do CNPq por dois
anos, com bolsa vinculada à Universidade Gama Filho.
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em redes através de privilégios e cargos, o que garantiria certa hierarquia na sociedade e


possibilitaria também negociações com a Coroa.1
De acordo com Maria de Fátima Gouvêa, a temática das redes tem dominado o cenário da
produção acadêmica na área de História nas últimas décadas2. A autora chama-nos a atenção nesse
fenômeno do estudo das redes à discussão acerca da dinâmica interna e da formação das sociedades
coloniais. Citando as palavras de António Coelho Guerreiro, Secretário de Governo do Estado da
Índia, através de uma fonte datada no final do século XVII, sobre o papel dos provimentos de
ofícios3, ou seja, como era a distribuição dos cargos na época moderna, “... o fim de V. Majestade [é]
premiar a seus vassalos conforme o merecimento do serviço que lhe fizeram antepondo-se a mercês dos postos e
dos ofícios os mais beneméritos”.4
Na fonte observamos que a distribuição do preenchimento de cargos era baseada em
critérios de recompensas, aludidos à premência de interesses privados na administração. Para
pensarmos a formação das redes na América Portuguesa, é necessário remetermos a própria
dinâmica da Sociedade Colonial, pois, esta refletira no período as práticas típicas de uma sociedade
do Antigo Regime: uma sociedade estamental, porém com particularidades próprias, que lhe
acentuou na vertente na administração uma busca por privilégios diversos, entrelaçadas no
mecanismo absolutista em formação. Neste ponto, concordamos com a análise feita por Hespanha,
de que a venalidade dos ofícios fora uma característica singular na administração da Colônia, já
que nossa administração conhecera um procedimento que interligava combinações de interesses
sociais e de poderes administrativos.5
Na formação das redes na Sociedade Colonial, especificamente na Sociedade do Rio de
Janeiro nas últimas décadas do século XVII e início do século XVIII, observamos que a

1
É a idéia de ŖEconomia Política de Privilégiosŗ, baseada na concepção de cadeias de negociação e redes pessoais e
institucionais de poder.
2
GOUVÊA, Maria de Fátima. ŖRedes governativas portuguesas e centralidades régias no mundo português, c. 1680-
1730ŗ. In: FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes. Política e negócios no
Império Português, Século XVI- XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.p. 155.
3
O papel dos provimentos dos ofícios será estudado no Capítulo 2 deste trabalho monográfico.
4
António Coelho Guerreiro, Secretário de Governo do Estado na Índia, 1700. Apud GOUVÊA, Maria de Fátima.
Op. Cit. p. 157.
5
HESPANHA, António Manuel. ŖA Constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntesŗ.
In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; Gouvêa, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos Trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (Séculos XVI- XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001 p.182-183.
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historiografia atribui importância significativa para entendermos sua funcionalidade na Colônia.


Segundo Maria Fernanda Bicalho um dos instrumentos para se entender a Sociedade Colonial é o
conceito de rede, pois, “(...) Estes se constituíam por meio de múltiplas redes de relações- políticas,
econômicas, sociais e culturais- que conectavam os sujeitos históricos”6. As redes, portanto, contribuíram
como sendo à base de sustentação da administração colonial e do próprio Império Português, ou
seja, as redes por meio de suas alianças e políticas nos remetem as relações mantidas entre elas,
possibilitando a formação de uma dinâmica interna. Esta dinâmica interna caracteriza a
necessidade de constituições de redes sociais na sociedade colonial, nos permitindo através de seu
estudo destacar a manutenção das redes de poder na Sociedade, a dinâmica de preenchimento dos
cargos oficiais e a premência dos interesses privados na administração fazendária.
João Fragoso ao explicar a formação da economia colonial e de sua primeira elite senhorial,
demonstrou que estas redes constituíram-se de uniões e vínculos, chamados pelo autor de bando
ou de teia, considerando que tais indivíduos permaneciam em volta desta rede ou teia, formando
assim, as redes de poder. Consideramos que o poder e conhecimento estavam interligados na
sociedade colonial para reafirmarmos que na época analisada as alianças matrimoniais não eram
motivadas por laços afetivos, mas sim por estratégias sociais, políticas e econômicas 7, sugerindo o
entrelaçamento no exercício dos ofícios com estas redes de poder.
A explicação de que as redes sociais movimentaram a Sociedade e a Administração Colonial
possibilitaram diversos estudos na historiografia, porque foi possível analisar a dinâmica das redes
através de sua constituição e através do exercício da colonização da Metrópole, deixando de ser
vistos como uma simples colcha de retalho.
As redes desde o início da colonização portuguesa na Colônia são pólos de fundamentação
nos jogos políticos e econômicos na Sociedade Colonial. As elites aqui constituídas buscavam
alianças diversas e estudar tais alianças provenientes de relações familiares nos demonstram que

6
BICALHO, Maria Fernanda. ŖDos ŘEstados Nacionaisř ao Ř sentido da colonizaçãoř: história moderna e historiografia
do Brasil Colonialŗ. In: ABREU, Martha; SOIHT, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Orgs.). Cultura Política e leituras do
passado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 2007. p. 82.
7
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida; SANTOS, Marília Nogueira dos. ŖRedes de poder e
conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735ŗ. TOPOI, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004.
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destas relações podemos extrair “os movimentos da Sociedade Colonial de forma a privilegiar o poder” 8.
As redes assumiriam dentro dos quadros da Sociedade de Antigo Regime uma posição privilegiada,
por usarem de meios estratégicos para diversos benefícios. Antes de aprofundarmos tal discussão
teórica e metodológica seria relevante conceituarmos, conforme a historiografia como eram
classificados as redes/ famílias/poder.
Segundo Maria Beatriz Nizza da Silva, as redes de relações podem ser caracterizadas como
uma espécie de negócios em família, o que nos sugere uma analogia entre família e sociedade
mercantis, pois “todas as questões familiares se agudizam nas famílias da elite mercantil (...) como se o
objetivo fosse conservar intacto o capital aplicado nos negócios” 9. Tal prática é definida por João Fragoso
e Maria de Fátima Gouvêa como uma espécie de networks10 de relacionamentos com o objetivo
central de fomentar conexões que ultrapassassem laços de parentesco, sugerindo a existência do
clientelismo como uma nova análise de instrumento para o entendimento das hierarquias de
poder, das redes clientelares11, ou seja, relações de negociações entre as partes das mesmas redes ou
formando novas redes sociais.
Analisando a formação das redes em Portugal no Antigo Regime, António Manuel
Hespanha e Ângela Barreto Xavier consideram que tais mecanismos envolviam uma grande teia de
práticas de uma espécie de economia de mercês12, entrelaçando objetivos econômicos, sociais e até
simbólicos. Sendo assim, seria natural o estabelecimento de redes de interdependência que
possibilitasse a formação de alianças políticas e sociais entre os seus envolvidos. Segundo os

8
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento: Fortuna e Família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira 1998. p.21.
9
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. História da Família no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.p.115.
10
Expressão que segundo João Fragoso e Maria de Fátima Gouvêa definem e caracterizam a trama das redes, uma vez
que os autores consideram que, “as redes são aqui percebidas como network de relacionamentos, constituídos a partir das ações
e das relações vivenciadas entre diversos indivíduos com acesso a informação e recursos diferenciados entre si [...] o conceito de rede
define e dá forma à noção de império [...] formavam redes posto que suas conexões não se restringiam a meros relacionamentos.
Ambicionavam alcançar determinados fins que dependiam de recursos disponíveis quase sempre fora de seu alcance”. Cf.
FRAGOSO, João; GOUVÊA, Maria de Fátima (orgs.). Na Trama das Redes. Política e negócios no Império
Português, Século XVI- XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.p. 23.
11
António Manuel Hespanha nos sugere que estas redes clientelares são baseadas na ênfase no parentesco, nas alianças
matrimoniais, na amizade, na confiança e no compadrio. Cf. HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela
Barreto. ŖAs Redes Clientelaresŗ. In: HESPANHA, António Manuel (Orgs.). História de Portugal- O Antigo Regime,
v. 4. Lisboa: Estampa, 1993.
12
Segundo António Manuel Hespanha, as mercês reais reforçariam o caráter corporativo da monarquia portuguesa de
um tipo de Ŗmonarquia cujos encargos correspondem basicamente à estrutura feudal- corporativa do benefícioŗ.
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autores, ŗTambém se entende o reforço destas redes como forma de resistência ao movimento de centralização
que o aparelho administrativo central procurava realizar, estendendo a sua jurisdição sobre áreas que
tradicionalmente tinham „outro senhor‟”.13
O Rio de Janeiro tinha uma peculiar característica: as melhores famílias da terra, para
utilizarmos a expressão de Fragoso. Os descendentes dos conquistadores e dos principais
povoadores gostavam de ser reconhecidos pela sociedade colonial com este nome. Porém, como
nos alerta Fragoso, este título não era uma invenção da sociedade do Rio de Janeiro, porém, deve-se
ter o cuidado com a expressão, até mesmo porque não há uma definição clara de homens bons nas
Ordenações Filipinas. Sobre a expressão, sabemos que “elas podiam ser encontradas no Portugal do
Antigo Regime para designar os “homens bons” que ocupavam os cargos concelhios, ou no Pernambuco
seiscentista para identificar os senhores de engenho [...] que exerceram os cargos honrados da República”.14

3. JOGOS POLÍTICOS NA FAZENDA COLONIAL


Rafael Bluteau caracteriza a fazenda como o local de riquezas, de dinheiro. Ainda de acordo
com o padre português, considera-se como parte da fazenda o Conselho da Fazenda, “Na Corte de
Portugal é um Tribunal, composto de três títulos, ou fidalgos de grande fatisfação, com nome de vedores da
Fazenda e outros tantos”.15
Consideramos como fazenda o ramo administrativo responsável pela aplicação das diretrizes
econômicas na época, encarregando-se da gestão das finanças do Estado16.
Sendo assim, na Colônia, o aparelho fazendário local era uma extensão do modelo
metropolitano e a ele estava subordinado. A partir da metade do século XVI a estrutura da Fazenda
começou a se desdobrar e entre suas atribuições estavam à arrecadação tributária sobre as atividades

13
HESPANHA, António Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. ŖAs Redes Clientelaresŗ. In: HESPANHA, António
Manuel (Orgs.). História de Portugal- O Antigo Regime, v. 4. Lisboa: Estampa, 1993.
14
FRAGOSO, João. ŖAfogando em nomes: temas e experiências em história econômicaŗ. TEMPO. Revista do
Departamento de História UFF, Rio de Janeiro, nº 13, 2002.p.51.
15
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino (1712- 1721). Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Cultura,
2000. (CD- ROM). p.48
16
SALGADO, Graça. ŖAdministração Fazendáriaŗ. In:____. Fiscais e Meirinhos: A Administração no Brasil Colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.83.
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econômicas realizadas em terras americanas. Eram também responsáveis por zelar pelo monopólio
comercial e efetivar o recolhimento e administração dos dízimos eclesiásticos. 17
Como destacado por Graça Salgado, esta questão abarcava, em relação às receitas, não
apenas a cobrança de um considerável número de tributos e seu registro contábil, mas também
tocava a alçada jurídica sobre os infratores das leis fiscais e da aplicação de penas correspondentes.
Em relação às despesas, cabia a administração fazendária toda a organização contábil e o pagamento
de todas as despesas, incluindo-se nelas os emolumentos dos funcionários estatais.18
A Provedoria da Fazenda é vista pela historiografia como espinha dorsal da administração
fazendária no Brasil Colonial. As suas funções e suas atribuições não eram somente tributárias ou
fazendárias. As provedorias eram o cerne da administração cível e o alicerce da intendência militar.
Desde a arrecadação de impostos até o armazenamento de armas e munições, tudo competia às
provedorias.
Raymundo Faoro já nos chamava a atenção no clássico ŖOs Donos do Poderŗ para o estudo
da Fazenda Colonial, lembrando o autor que “A fazenda merece um capítulo especial, visto que em torno
dela se projeta a economia e a sociedade coloniais”. Esta idéia apresentada por Faoro mostra-nos um
corpo agregado à centralização régia, fixado em todos os níveis de governo, com o escoadouro
comum dirigido à metrópole. Sendo assim, teríamos nesta visão um Conselho da Fazenda, na
corte, em conflito ou em harmonia, com o Conselho Ultramarino dirigindo e controlando a
administração fazendária no Brasil.19
Concernentemente a esse quadro, podemos afirmar que a criação da Provedoria
conjeturara ao contexto de criação do Direito português ainda no século XVI, com a necessidade e
consciência preocupação de reduzir neste conjunto o espaço econômico ao espaço administrativo.
Por tais razões, a Provedoria refletira essa necessidade de mudança de conjuntura, uma vez que “as
rendas e direitos das ditas terras até aqui, não foram arrecadados como cumpriam.

17
SALGADO, Graça. ŖAdministração Fazendáriaŗ. In:____. Fiscais e Meirinhos: A Administração no Brasil Colonial.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p.83
18
Idem. Ibid.
19
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. São Paulo: Globo,
2004.p.188.
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Segundo a historiografia clássica, podemos definir a fazenda colonial como reflexo da


20
organização da sociedade e do Estado, ainda de fundo patrimonial em pelo menos, três pontos:
desigualdade ante o imposto; sistemas fiscais diferentes em cada território e fiscalidades paralelas,
mais ou menos independentes da monarquia. Porém, enquanto na metrópole a fazenda real sofria
as conhecidas limitações, nas colônias as rendas representavam uma transferência direta a Coroa, o
que justifica as sucessivas instituições de contribuições e donativos 21. Porém, como lembra-nos
Marcos Sanches, a fazenda “não se reduz a fiscalidade” e tão pouco, se apresenta como uma “instituição na
qual se reconhece a capacidade de exigir dos particulares e instituições prestações sem contrapartida imediata
para atender o gasto público”, colocando-se pelo menos dois limites a sua atuação nas colônias: a
pluralidade de instituições fiscais concorrentes como as Câmaras e o exercício patrimonial dos
ofícios, mesmo que se admita que a expansão atlântica correspondeu ao Ŗalongamento da
autoridade da coroaŗ22,
ŖA arriscada e dispendiosa empresa era uma instituição do Estado, criada por ele
e posta sob sua égide. Terras, mares e homens pertenciam à realeza. O critério da
monarquia era eminentemente patrimonial, confundindo-se, aqui propriedade e
soberania, função pública e gerência dos bens particulares do príncipe com as
terras descobertas. O poder de legislar do rei, no setor da economia, procedia da
conceituação do patrimônio, que era inalienável, e da centralização do poder
político que estava em suas mãosŗ23.

Segundo o padre Rafael Bluteau podemos definir como provimento de ofícios toda e
qualquer tipo de “coleção de benefícios”24 que assumiriam um papel importante para a sociedade
colonial, constituindo-se em mecanismo de entrelaçamento dos interesses coloniais na
administração e de limitação de sua atuação. Conforme relata Rodrigo Ricupero “O funcionalismo
colonial continua extremamente mal conhecido, tanto em seus aspectos formais (nomeações, instruções,
ordenados etc.) como em sua origem social ou em suas relações com a sociedade em geral”.25

20
SANCHES, Marcos Guimarães. ŖA Fazenda Colonial: Subordinações, ações e conflitos?ŗ (Texto inédito cedido pelo
autor, no prelo).
21
ARTOLA, Miguel. La Hacienda de Antiguo Regimen. Madrid: Alianza Editorial. s/d, p. 11-12.
22
Idem, p. 15 e 21.
23
DIAS, Manuel Nunes, APUD SANCHES, Marcos Guimarães.
24
BLUTEAU, Rafael. Vocabulário portuguez e latino (1712- 1721). Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Cultura,
2000. (CD- ROM). p.809
25
RICUPERO, Rodrigo. A Formação da Elite Colonial. Brasil c.1530-1630. São Paulo: Alameda, 2009. p.151
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Através do estudo da administração fazendária podemos identificar a dinâmica de


preenchimento os ofícios, consideradas aqui como pólo de agência de nobilitação e possibilitação
também dos mecanismos de mobilidade social. Dessa hipótese podemos afirmar que o exercício
dos ofícios era uma delegação do Rei e sua designação se apresentava como uma estratégia de
prestígio e privilégio, constituindo-se um elemento de ascensão social. Arno e Maria José Wehling
sumariaram as características dos ofícios no mundo colonial em seis etapas fundamentais:
Arno e Maria José Wehling ressaltam que o funcionário colonial seria “um súdito fiel, embora
com interesses pessoais e de grupo de natureza privada que muitas vezes predominava sobre o interesse e as
interações dos governantes”. A hipótese defendida pelos autores levanta outra questão: seriam estes
funcionários apenas um instrumento de centralização ou estes funcionários estavam apenas
preocupados com seus próprios interesses? Para essa questão, António Manuel Hespanha disserta
que,
a patrimonialização dos ofícios existia, mas antes sob a forma de atribuição de
direitos sucessórios aos filhos dos oficiais que tivessem servido bem; e era
justamente o reconhecimento desses direitos que, provavelmente, impedia, de
forma decisiva a venalidade, já que a Coroa não podia vender os ofícios vacantes
sem violar estes direitos sucessão, ao contrário do que acontecia com a concessão
de hábitos ou foros de fidalguia.26

Tais fatores influenciaram o preenchimento dos cargos na fazenda colonial, uma vez que
muitos dos cargos tanto da fazenda quanto da justiça foram precocemente preenchidos por
critérios burocráticos Ŗmodernosŗ, e não prebendários, dada a sua natureza especializada e o
manuseio de recursos financeiros.
Dessa forma, considera- se que os cargos eram distribuídos pelo rei, principalmente os mais
importantes, em geral pelo período de três anos, mas também poderiam ser atribuídas tais funções
ao governador- geral ou pelo bispo, por outros funcionários régios, destacando nesse caso o
provedor- mor e o ouvidor- geral. Quando isto ocorria, a provisão era temporária e o rei deveria ser
consultado, para seu parecer.

26
HESPANHA, António Manuel. ŖA Constituição do Império Português. Revisão de alguns enviesamentos correntesŗ.
In:______. FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos
Trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 183.
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Conforme destacado por Marcos Guimarães Sanches, devem-se pensar os ofícios com a sua
característica de venalidades, enquadrando-os na estrutura econômica e social do Antigo Regime,
onde as instituições são situações de fato, com uma Ŗpersonalização das funçõesŗ, podendo ser
lembrada a afirmativa de Raymundo Faoro, que Ŗinterfere entre a metrópole e a colônia oficial,
larga parcela de arbítrio do setor privado. Nesse sentido, seria possível observarmos a relação
dinâmica entre a crescente ação estatal e a necessidade de controlar e garantir a fidelidade dos
colonos distantes no espaço e mediados por interesses divergentes, constituindo-se a investidura em
ofícios em Ŗmecanismos locais de cooptação, familiares e econômicos, certamente contribuíram
para dar voz ativa aos interesses locais, fossem ou não legítimos à luz dos valores e das leis então
vigentes.27
A remuneração do exercício dos ofícios é expressiva da dinâmica da administração
inserida dentro da sociedade de ordens. Assim, os ofícios constituíam uma grande fonte de renda
do Estado demonstrando os oficiais permanente preocupação em extrair sua remuneração do
próprio exercício, não se descuidando em Ŗexecutar os contratadores pelo preço porque
arrematavam vos vão e onde pagar as propinas que sempre costumam pagar por tais
arremataçõesŗ28, ao mesmo tempo, em que era objeto de permanente atenção o Ŗcarregarŗ na
receita do Almoxarife a “propina do contrato dos dízimos”.29
Deve-se destacar ainda, que neste momento é a época de afirmação e centralização do poder
em Portugal. Concomitantemente, a manutenção dos quadros da sociedade estamental e a
ascensão de novos grupos, como ricos comerciantes, trazem inúmeros poderes paralelos e
concorrentes à monarquia portuguesa. Trata-se de uma época onde a monarquia, embora tenha
superioridade frente às outras instâncias de poder, não possui a exclusividade de seu exercício.30
A chamada Ŗatlantização do Impérioŗ, momento de aumento da importância da colônia
americana, em detrimento das possessões orientais portuguesas, se fez acompanhar por uma série
de orientações normativas fiscais sobre a colônia americana, em fase de desenvolvimento

27
SANCHES, Marcos Guimarães. ŖA Administração Fazendária na Segunda metade do século XVII: ação estatal e
relações de poderŗ. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 167 (432), jul./ set. 2006.
28
Secretaria do Estado do Brasil: AN. Códice 60. V.14. Fl.179
29
Idem. Códice 60. V. 14. Fl. 184.
30
HESPANHA, António Manuel. ŖPor uma teoria institucional do Antigo Regimeŗ In: Poder e Instituições na Europa
do Antigo Regime. Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 1986.
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econômico, em especial o Rio de Janeiro. Considerando que poder e conhecimento estavam


intrinsecamente ligados na sociedade colonial31, as orientações fiscais que, muitas vezes, esbarravam
nos interesses dos colonos, davam margem a uma série de conflitos, abertos ou velados, entre
grupos coloniais e metropolitanos. Parte-se da idéia de que esses conflitos limitavam, na prática, a
atuação régia, ao invadir espaços fiscais e políticos traçados pela Coroa e flexibilizavam a aplicação
das normas.
Dessa forma, o complexo sistema de contratos torna-se essencial para o entendimento do
provimento de ofícios, pois, poderiam ser necessários para a Coroa portuguesa pela impossibilidade
de arcar com o estabelecimento de tão extenso aparelho burocrático sobre a colônia, consistindo
em uma conjugação da ação estatal com particulares que, alçados a um patamar acima da
32
população em geral, já que atuavam em nome do Estado português , se inseriam no aparelho
estatal, mesmo sem as necessárias condições para fazer isso através da ocupação de um ofício,
assumindo, dentro do prazo estipulado pelo contrato, o papel de representantes do Estado
português, passando a agir não só em nome da Fazenda Real, mas como Fazenda Real 33. Percebe-se,
assim, que o ato de governar vai além de uma perspectiva impessoal a passa a significar também a
administração de relações privadas.34
Em relação à arrematação de contratos da Fazenda Real, destacamos o Registro da „provizão
de Sua Magestade sobre a nova forma das arremataçois do Contrato da fazenda real‟,
Eu El Rey fasso saber aos que esta minha, digo- este meu alvará em forma da ley
virem que eu hey por bem que os contractos da fazenda real das Capitanias do
Estado do Brazil se ponhão pellos Provedores em pregão com antecipação
conveniente, e que lansos que ouvir seremteão a Bahia declarandoçe,
declarandoçe as condições antiguas, e as que ouver novas para se examinar se estas
são de receber, ou não, e que se espere confirmação dos Ministros Superiores do
estado, e com ella se tornem a por os contratos em lanso, e havendo outro mayor,

31
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva; FRAZÃO, Gabriel Almeida & SANTOS, Marília Nogueira dos. Redes de poder e
conhecimento na governação do Império Português, 1688-1735. TOPOI, v. 5, n. 8, jan.-jun. 2004.
32
FAORO, Raymundo. Os donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. São Paulo: Globo, 2001.
33
ARAUJO, Luiz Antônio Silva. ŖContratos nas minas setecentistas: o estudo de um caso Ŕ João de Souza Lisboa
(1745-1765)ŗ. II Seminário sobre a economia mineira: Cedeplar, Diamantina, 2002. EconPapers: Economics at your
fingertips. Economic Research Institute (EFI) at the Stockholm School of Economics., 2002. Disponível em:
https://www.cedeplar.ufmg.br/diamantina2002/textos/D02.PDF.
34
DEDIEU, Jean Pierre. ŖProcesos y e redes. La historia de las instituciones administrativas de la época moderna hoyŗ
in: CASTELLANO, Juan Luiz; DEDIEU, Jean Pierre; LOPEZ CORDON, Maria Victoria. La Pluma, La Mitra y la
Espada. Estudios de la Historia Institucional em Edad Moderna. Madrid: Marcial Pons, 2000.
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ou sem as condições novas nelle as arrematem alias arematem nos mesmos


seguindo a forma da confirmação e que desta arrematação se paçe mandado de
correr aos contractadores dando fiança na forma de Regimento, e se de conta a
Bahia e ao meu conselho Ultramarino, para que em ambas as partes se saiba,
como e emquanto forão arrematados os ditos contractos , e todos os que em outra
forma forem feitos os hey por nullos; e dos Provedores que faltaram, digo- que
faltarem a esta disposição se haverá por conta de seus bens a que do contrário
obrarem toda a perda que a fazenda real receber nesta parte. Pello que mando ao
Governador e Capitão geral do Estado do Brazil; Provedor de minha fazenda
delle, e aos Governadores e Provedores da fazenda real das Capitanias de
Pernambuco e Rio de Janeiro asi emtendido, e cumprão e guardem e facão
cumprir e guardar esta minha lei tão inteiramente como nella se declara sem
duvida algua e este alvará se registrará nos Livros das Secretarias, e caza das
fazendas das ditas Capitanias (...)35

Podemos verificar que na estrutura fazendária as propinas e outros rendimentos dos cargos
alimentavam interesses privados e o constante exercício na administração garantia verdadeiros
privilégios nesta sociedade colonial, como por exemplo, “se lavrar moeda”, aos ordenados dos oficiais
da Casa da Moeda e do Superintendente das Minas, pagos pela Provedoria. Verifica Ŕ se pela
leitura da tabela (TABELA II) abaixo que o contrato dos dízimos são exemplo das dificuldades em
todo o período da fazenda, uma vez que eram o alvo freqüentes de determinações sobre a cobrança
dos contratadores, requisitando os rendimentos pela metrópole ou investigando a possível
existência de conluios nos processos.
Conforme destacado por Marcos Sanches, na administração fazendária foram consideráveis
os registros de intenções /tentativas de consolidação /modernização do seu ordenamento, como
indicam as solicitações de cópia dos documentos legais existentes, como da Ordem do Conselho
Ultramarino ao Provedor do Rio de Janeiro em 14 de outubro de 1750.36
Dessa forma, a distância entre o instituído e a prática colonial também se fez presente no
sistema dos contratos, uma vez que, como demonstram as fontes analisadas, era comum o não
pagamento dos valores devidos e a preferência por determinados arrematadores, contrariando as

35
Secretaria do Estado do Brasil: AN, Códice 61. V. 11. Alvará de 03/12/1694.
36
SANCHES, Marcos Guimarães. ŖContratos e Conluios: a administração fazendária no Rio de Janeiroŗ. Revista da
SBPH, Curitiba, 2001.
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diretrizes metropolitanas. Dependente de sua vaca leiteira americana, a metrópole conjuga


momentos de maior controle fiscal com outros de maior permissividade.37
TABELA II- Cobrança das propinas que pagarão os contratos abaixo declarados nesta Cidade.
Dízimos Reais
Cargos Valor em contos de réis
Ao governador cuja quantia entra no 600Ø000- Seiscentos mil reis
saldo
Ao Provedor da Fazenda Real 400Ø000- Quatro contos mil reis
Ao Escrivão da Fazenda Real 100Ø000- Cem mil reis
Ao Procurador della 100Ø0000 Cem mil reis
Ao Almoxarifado 50Ø000- Quinhentos mil reis

Ao Escrivão dos almoxarifados 40Ø000- Quatrocentos mil reis

Ao Escrivão dos Contos 40Ø000- Quatrocentos mil reis

Ao Oficial da Fazenda 28Ø800- Vinte e oito mil e oito contos


reis
Ao Almoxarifado 18Ø000- Dezoito mil reis

Ao Almoxarifado das Armas 19Ø200- Dezenove mil e duzentos reis

Ao Oficial das Armas 8Ø000- Oito mil reis

Ao Meirinho 24Ø000- Vinte e quatro mil reis

Ao Porteiro 24Ø000- Vinte e quatro mi reis

TOTAL 1:4870000

Fonte: Secretaria do Estado do Brasil. Arquivo Nacional: Códice 60. Volume 18. Fl. 68, Ano
1710.

Anteriormente a cobrança destas propinas, em uma Carta régia do Rei dirigido ao Provedor
da Fazenda já demonstrava a preocupação da Provedoria com a cobrança de dízimos. Em
19/10/1697 no registro da carta de Sua Majestade escrita ao Provedor da fazenda percebe-se a
intenção de se passar mandado executivo contra os que estiverem avançados nos contratos,

37
SANCHES, Marcos Guimarães. ŖContratos e Conluios: a administração fazendária no Rio de Janeiroŗ. Revista da
Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica, v. 21, Curitiba, 2001.
Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011
ISSN 2237-4051
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Domingos Pereira Fortes. Eu El Rey vos envio muito saudar Ordenandouos por
carta de 3 de outubro do anno passado me informásseis sobre o que me havia
escrito o Dezembargador Francisco da Sylveira Sotto maior servindo de Ouvidor
geral desta capitania acerca do danno que padecia esse povo das anexações que lhe
faziam os contractadores e rendeiros das [ilegível] ouvindo os ditos contractadores
e rendeiro e vendo o que sobre este particular informastes em carta de 20 e seis de
março deste anno repôs ta que derão os ditos contractadores e rendeiro e
testemunhas que tiras tes por huam e outra parte, me pareceu ordenarvos como
por esta a faço não passeis mandado executivo das [ilegível] sem o contratador
mostrar avença ou certidão do seu cobrador pella qual com este pediu o dízimo
em tempo de vido e se lhe não pagou declarando sempre as peçoas dos devedores,
e a quantia dos gêneros, que cada hum deu, visto com muitos [parte manchada,
ilegível] radores de gados e legumes por serem pobres, e suas dívidas limitadas
poderão querer antes pagar o que não devem que embargar a execução por lhes
ser mais custoza. Escrita em Lisboa a dezanove de Outubro de mil seis centos e
noventa e um. Rey.38

Já em 1719 há uma ordem para isenção de pagamento ao contador dos dízimos reais,
através do registro da carta de Sua Majestade para o Provedor da fazenda real (na época exercida
por Manuel Correa Vasques) sobre o requerimento de Manoel Gomes de Abreu para o “não
executar pelo valor de 1700 oitavas de ouro que o seu antecessor Gaspar Soares deve do resto do contrato”:
(...) Faço saber a vos Procurador da fazenda da Capitania do Ryo de
Janeyro, que por parte de Manoel Gomes de Abreu morador nesta cidade,
sem e representou que por cazar com Donna Helena da Sylva viúva que
ficou do Capitam Gaspar Soares de Castro, que havia sido contratador dos
dízimos reaes desta cidade, o triênio que principou no anno de mil
setecentos e sete e acabou no de mil setecentos e dez, o queirão executar
pella quantia de mil setecentas oitavas de ouro, por que fora rematado o
certão chamado o Serro do frio ao dito Capitão, por se incluir no seu
arrendamento, e depois disto, no mesmo anno se fizera outro na cidade da
Bahia (...)39

A historiadora Maria Fernanda Bicalho afirma que a prática de pagamento das despesas
coloniais com a arrecadação dos contratos era uma prática comum no século XVII, uma vez que a
Metrópole tinha grandes dificuldades em financias às despesas militares coloniais, por tais razões,
transferiam aos colonos “o custo de sua própria defesa”. Maria Fernanda Bicalho analisa que essa
dificuldade se dava em grande parte pela “dada à falta de recursos da Fazenda Real, exausta de rendas

38
Secretaria do Estado do Brasil: AN, Códice 60. V.8
39
Secretaria do Estado do Brasil: AN, Códice 60. V.16
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devido aos ônus representado pelo movimento da Restauração- seguida pela guerra e expulsão dos holandeses
dos territórios coloniais- os habitantes das praças marítimas da América assumiriam, através de tributos e
trabalhos os altos custos da manutenção do Império”.40
Deve-se ser destacado que aos funcionários ou oficiais da área fazendária cabia
principalmente a arrecadação. Inicialmente esses ofícios existiam apenas no âmbito das provedorias
das capitanias e na provedoria-mor do Brasil, mas com a expansão da administração- conseqüência
do próprio crescimento da Colônia- surgiram outras funções, de natureza fiscal ou com vistas à
regulamentação de determinados atividades, como o cultivo do açúcar ou do tabaco. 41
No Decreto de 18/05/1722 (Provisão de 23.09.1723) se determinava que,
Os oficiais do Brasil, que se tem criado, e se criarem se provam por donativo,
exceto os de recebimentos, e que, enquanto se não se provasem as propriedades
dos ditos ofícios, se nomeassem as serventias deles, contribuindo os serventuários
no fim do ano para a Real Fazenda com a terça parte de tudo o que rendessem,
segundo as avaliações em que fossem lotados, para o que dariam fiança idônea... 42

No trecho do regimento selecionado, percebe-se a clara preocupação com a restrição da


questão da venalidade dos ofícios, adotada pela administração colonial. Esta restrição baseara-se no
contexto do apogeu da exploração mineral, e teve destaque na restrição àqueles ligados a
arrecadação.
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40
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41
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Del (Org.). Revisão do Paraíso. 500 anos e continuamos os mesmos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. P.146.
42
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TRABALHO E EDUCAÇÃO INDÍGENA: UM PROCESSO CIVILIZATÓRIO

Ana Paula Balduino

Resumo:
O século XIX é um século de transição onde o nacionalismo torna-se uma questão importante, ou
seja, é o momento de criação da História Nacional. Diante disso, há uma preocupação por parte do
Império e dos intelectuais, especialmente do IHGB, em relação ao lugar dos índios na
nacionalidade. Sendo assim, torna-se de suma importância promover a educação dos nativos e a
inserção dos mesmos no mundo do trabalho.
Dentro desse quadro de construção e representação da nação delineiam discussões com o
intuito de definir o lugar ocupado por cada habitante do Brasil. É nesse pano de fundo que essa
comunicação irá desenvolver a ideia de inserção dos índios na nação brasileira pelas vias do
trabalho e da educação no Segundo Reinado.
Palavras- chave: educação, trabalho, civilização, nação, retribuição

1. Introdução
Francisco Adolpho de Varnhagen1, em carta ao imperador dom Pedro II, expõe, segundo
sua visão, os fundamentos que definiriam a identidade da nação brasileira, fundamentos estes
deixados pela colonização europeia. Segundo o historiador do Império, a nacionalidade brasileira
teve cunho especial proveniente do influxo de índios, africanos e holandeses, ainda que tenha tido
o português como elemento civilizador.
Em seu Discurso Preliminar lido na Academia de História de Madri, em 1832, o autor é
bastante enfático no intuito de mostrar que os índios não são puritanos como muitos defendiam e

Aluna do mestrado em História Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Relações
de poder, trabalho e movimentos sociais. Órgão financiador: Capes. Orientadora: Vânia Maria Losada Moreira.
1
Cf. VARNHAGEN, Francisco Adolpho de. Memorial Orgânico. In: MOREIRA NETO, Carlos de Araújo. Os Índios e
a Ordem Imperial. Brasília: CGDOC/ FUNAI, 2005, pp. 334-347.
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tampouco representantes da nacionalidade. Ao contrário da visão Iluminista de Rousseau do bom


selvagem, Varnhagen defende que os índios não viviam num estado social invejável. Para ele, os
índios eram, na verdade, selvagens não perfectíveis, ou seja, seu estado não mudaria caso não
houvesse um influxo externo que seria a convivência com os europeus civilizados.
Assim como Varnhagen, outros nomes do Império preocupam-se em delinear os contornos
da nação brasileira. O Brasil seria então, o representante do ideal de civilização no Novo Mundo. A
historiografia dentro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) na metade do XIX
restringe aos brancos o título de representantes da nação. Para o IHGB, o que marca a formação do
estado brasileiro é a continuidade, ou seja, não tem processo de ruptura. A ligação com o passado
europeu (regime português) está muito clara.
Entretanto esse processo é depreciativo e excludente, pois ao definir os representantes da
nação define-se o Ŗoutroŗ.
ŖConstruída no campo limitado da academia de letrados, a Nação brasileira
traz consigo forte marca excludente, carregada de imagens depreciativas do
Řoutroř desta Nação cujo poder de reprodução e ação extrapola o momento
histórico preciso de sua construção. Na medida em que Estado, Monarquia e
Nação configuram uma totalidade para a discussão do problema nacional
brasileiro, externamente define-se o Řoutroř desta Nação a partir do critério
político das diferenças quanto às formas de organização do Estadoŗ.2

Dentro desse quadro de construção e representação da nação delineiam discussões com o


intuito de definir o lugar ocupado por cada habitante do Brasil. É nesse pano de fundo que essa
comunicação irá desenvolver a ideia de inserção dos índios na nação brasileira pelas vias do
trabalho e da educação. O recorte escolhido é o Segundo Reinado (1840-1889). Admite-se que é
um período longo para ser tratado num trabalho como este, mas o que se pretende é apontar
visões, mesmo que gerais, do índio no momento de construção da nação e a importância da
educação para sua integração na sociedade. Assim, pretende-se lançar caminhos para pesquisas
futuras e mais questionamentos em relação acerca desta temática.

2
GUIMARÂES, Manoel Luís Salgado. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, 1, 5-27, p.3.

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Este trabalho será dividido em duas partes. Na primeira intitulada O estado imperial e a
construção da nação: os ideais civilizatórios exponho a respeito do processo de consolidação da nação
brasileira e os projetos civilizatórios que os envolveram. Além disso, abordo sobre a importância de
integrar as populações postas à margem para que não maculassem a imagem da nação que emergia
como modelo de civilização para o Novo Mundo.
E, em As escolas de índios: educação e formação para o trabalho- o momento de retribuir, comento
sobre a importância da escola como um instrumento civilizador à serviço do Estado Imperial e a
importância dos nativos, ao aprenderem um ofício, de devolverem à nação, por meio do trabalho
aquilo que lhes fora dado e ensinado.

2. O Estado Imperial e a construção da nação: os ideais civilizatórios


O século XIX é um século de transição onde o nacionalismo torna-se uma questão
importante, ou seja, é o momento de criação da História Nacional. Diante disso, há uma
preocupação por parte do Império e dos intelectuais, especialmente do IHGB, em relação ao lugar
dos índios na nacionalidade. Sendo assim, torna-se de suma importância promover a educação dos
nativos e a inserção dos mesmos no mundo do trabalho.
A correlação entre educação, conversão e civilidade caracteriza o pensamento monárquico
durante o Império. No século XIX, a educação passou a ser pensada no plural bem como as forças
educativas. Delinearam-se iniciativas que constituíam formas e práticas diversas para promover os
projetos de educação e de nação e de inserção das minorias na sociedade pela via do trabalho.
Sendo assim, a educação e o trabalho proporcionariam às classes subalternas a oportunidade de
estabelecer relações sociais.
A preocupação no momento de construção da nação era com a contradição de um país que
emergia (ou intentava emergir) como símbolo de civilidade no Novo Mundo e que contava com
uma vasta população de negros, índios, pobres e livres, todos sem instrução. Diante disso ficava a
pergunta: o que fazer com essa população posta à margem? Assim, inicia-se o processo de Ŗinclusãoŗ
destes marginalizados na nação brasileira.
A ênfase na adequação dos nativos à civilização, ainda que o lugar deles fosse colocado à
margem, servia para distinguir os indígenas dos negros, pois estes eram escravos enquanto os
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indígenas eram livres. Januário da Cunha Barbosa3, secretário perpétuo do Instituto Histórico,
afirmava que a convivência dos indígenas com os africanos prejudicaria o crescimento dos
primeiros. Segundo Cunha Barbosa, a escravização dos indígenas provocou atraso em seu processo
civilizatório. Além disso, o cônego afirmava que os índios não eram avessos ao trabalho, ideia
muito difundida na Colônia e ainda no Império. Segundo ele, devia-se proporcionar aos índios um
trabalho compatível com seus hábitos4 e empenhar-se na educação de crianças, mais passíveis de
civilização (essa ideia será mais desenvolvida adiante).
Manoel Salgado comenta que os textos produzidos pelo IHGB trabalhavam com uma
perspectiva dicotômica: civilização e estado social para os brancos e natureza e barbárie para os
índios. Segundo o autor, ainda que houvessem divergências de opiniões, tais textos apresentavam
os seguintes pontos comuns:
Ŗ1.Unanimidade quanto à necessidade de integração dos grupos indígenas,
particularmente no momento em que a questão nacional é prioritária, e na
medida em que o problema racial coloca sérias questões a um projeto que
se pretenda minimamente integrador.
2.Defesa do comércio e da educação como meios a serem priorizados no
contato com as populações indígenas.
3.Destinação de um papel central ao Estado que, embora não alijando as
ordens religiosas desta empresa, deveria preservar seu espaço de controle
sobre o desenvolvimento do trabalhoŗ5.

O que se pretende ressaltar nesse ponto são as ideias e projetos que vigoraram durante o
Império. A historiografia com ênfase na questão indígena preocupa-se em abordar sobre a exclusão
dos índios da nação brasileira. Contudo, tenho a intenção de mostrar como também existiram
projetos de inclusão e inserção dos nativos na nação ainda que tais projetos fossem hierarquizantes,
ou seja, delegassem aos índios as funções consideradas degradantes e inferiores.

2.1. A consolidação da identidade nacional e o lugar dos indígenas

3
CUNHA BARBOSA, Januário da. Programa: Se a introdução dos escravos no Brazil embaça a civilização de nossos
indígenas (1839). 3. Ed. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1: 123-129, 1908.
4
CUNHA BARBOSA, Januário da. Qual seria hoje o melhor sistema de colonizar os índios entranhados em nossos
sertões (1840). Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 2: 3-18, 1916.
5
GUIMARAES, op. cit. p.26.
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Especialmente no Segundo Reinado, houve uma necessidade de traçar as bases da


nacionalidade e forjar a identidade nacional, pois era uma questão de ordem para a consolidação
do Estado nacional. “Portanto, um dos grandes problemas enfrentados pela elite intelectual brasileira, no
estabelecimento de uma identidade nacional, deveu-se à diversidade étnico-racial que marcava a população
brasileiraŗ.6 Ilmar Mattos em O Tempo Saquarema7 demonstra bem essa questão da
responsabilidade da elite que, de acordo com o autor, era a Direção Saquarema e que tinha como
intuito construir a nação e propagar os ideais de Luzes e civilização.
Segundo a análise de Ilmar Mattos, intentava-se (e buscava-se) por meio da propagação da
civilidade, unificar os elementos que conviviam no Brasil de forma que se tornassem constitutivos
de uma sociedade civil com o objetivo de civilizar e instruir, contudo era também necessário
estabelecer a ordem que era constantemente ameaçada pela barbárie. Mattos aponta que a
sociedade era dividida em três mundos: o Mundo do Governo que constituía a Casa (ou seja, a
família, o poder patriarcal) e o Estado que era o poder público; o Mundo do Trabalho que era
constituído pelo povo e o Mundo da Desordem que era formado pela plebe. Estes dois últimos
mundos são considerados a Rua e não eram tratados pela historiografia clássica até o momento da
obra de Ilmar Mattos. Contudo, ainda que o autor tenha inovado nesse sentido, Mattos não
aborda sobre o lugar ocupado pelos indígenas em um desses mundos. No entanto, ele frisa de
forma eficiente o papel da Ŗboa sociedadeŗ, ou seja, a Direção Saquarema de inculcar os ideais
civilizatórios aos Ŗbárbarosŗ e construir a nação.
Acredito que a obra de Ilmar Mattos reflete o momento histórico em questão. Pois em
época de consolidação da nação, podemos perceber o silenciamento, a homogeneização e a
invisibilidade dos povos indígenas. Mas para que isso fosse possível, o Império precisou legislar e
criar formas de materializar tais processos.
Em relação à materialização desse processo já comentamos um pouco: a criação do IHGB
que tinha como tarefa dar perfil à população e criar contornos delimitando o lugar ocupado por
cada habitante deste país. Assim, em meio a esse momento de definição passou-se a definir o

6
SILVA, Marcilene da. Escolarização indígena no Brasil: particularidades da província mineira- 1845-1889.
7
MATTOS, Ilmar R. de. Tempo Saquarema. SP: Hucitec, 2004.

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outro. Esse processo acarretou consequências graves para nosso objeto de estudo que passou a ser
visto e designado como o Ŗoutroŗ, pois passou a sofrer intervenções para que se adequasse ao
momento em questão. Diante disso, a historiografia oitocentista estabeleceu em seu projeto os
excluídos: índios e negros, considerados como não portadores da noção de civilização.
ŖA futura nação, deveria surgir como o desdobramento de uma civilização
europeia nos trópicos, o que exigia redobrados esforços por parte da elite
intelectual, uma vez que a realidade brasileira era bastante diversa daquela
que lhe emprestava o modelo, a Europa. Essa forma de conceber a
população trouxe sérias consequências na proposição de uma identidade
nacional. No século XIX, tendo sido os índios definidos como os Řoutrosř no
conjunto amplo da sociedade, entendiam os governantes que era tarefa
essencial naquele momento promover a inserção desse Řoutroř à sociedade
nacional. O ideário da civilização para os índios, associou-se de modo
intrínseco a processos de intervenção sobre a vida destes povosŗ.8

A elite política e dirigente do Império era consciente da pluralidade e heterogeneidade da


população brasileira, mas via tal fator como prejudicial à proposta de unificação da sociedade e de
governabilidade desses povos. Assim, para solucionar esse problema era necessário desqualificar o
lugar desses grupos na sociedade e lhes inculcar novos valores.
Marcilene Silva considera que o termo civilizar assumiu um caráter de intervenção direta
sobre os povos indígenas com a finalidade de adequá-los à lógica dos colonizadores. Ou seja, essa
intervenção traduziu-se por meios disciplinares e de instrução e formação para o trabalho a fim de
delegar aos índios um lugar na nação em construção. O cerne da questão é que o século XIX
introduziu novas formas de violência: a violência à cultura e aos modos de vida das diversas
populações indígenas existentes em território brasileiro. Em outras palavras, o século XIX
modificou as interações sociais desses povos.
O debate que vigorou no Império durante esse período de consolidação foi permeado pelos
termos civilização, catequese, educação e pelos termos que acompanham estes como integração,
assimilação e formação para o trabalho. Kaori Kodama comenta que ainda que os atores sociais do
Império não pudessem controlar o percurso da ordem rumo à civilização, é possível traçar que o
termo civilização representou ações práticas que impunham uma hierarquia.

8
SILVA, Marcilene. Escolarização indígena no Brasil: particularidades da província mineira- 1845/1889. p. 296.
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Os discursos em prol da civilização fundamentaram os projetos que nortearam a construção


do Estado imperial e tal ideal seria atingido por meio da instrução e da educação. No início do
século XIX começam a emergir grupos e agremiações dispostos a educar e civilizar essa população
posta à margem9. Nos estatutos da maioria dessas agremiações os ideais de difusão das Luzes e de
civilização às diversas camadas da sociedade eram os objetivos principais. Com isso, delineiam-se
projetos de assimilação da população posta à margem (no estudo em questão foca-se nos indígenas)
por meio da educação voltada para o trabalho.
Para Norbert Elias, o termo civilização expressa a consciência que o Ocidente tem de si
mesmo. Ou seja, o momento em questão expressava o desejo do Império em Ŗunificarŗ a
população, em termos civilizatórios, e retirar do país a ameaça da desordem causada pela barbárie.
Civilização, portanto envolvia uma série de questões com um único propósito: integrar à nação.
Souza e Lima comenta que cristianizar, interpretado como helenizar, descaracteriza a ideia
de uma exploração sem povoamento o que torna a questão mais complexa. Afirma ainda
A civilização dos índios- assunção de valores básicos do conquistador pelos seus
aliados nativos gerando (auto) reconhecimento- dependeria apenas da presença de
um Estado imaginado enquanto nacional: os passos básicos implícitos no ato de
civilizar seriam tomar os nativos por mão-de-obra dentro de uma economia de
mercado e a incorporação (no sentido de fazer corpo) da língua, vestuário, religião e
outros costumes do povo conquistadorŗ.10

Podemos perceber que a intenção que movia o Segundo Reinado não se restringia a
converter os índios ao cristianismo. O intuito era incutir nos nativos uma nova moral marcada pela
ação do Estado. Para atingir tal objetivo seria necessário incentivar a educação, pois tinha como
função formar o povo e civilizar o país.
Os ideais civilizatórios do Império eram carregados de instrução religiosa ainda que esta não
fosse a maior finalidade. Mas, segundo Marta Amoroso, o conceito de catequese vai além da noção
religiosa.
ŖCatequese foi sinônimo de empresa colonial, de força, de coerção, de imposição
aos índios do medo e do respeito às autoridades coloniais. Mas foi também

9
Ver BALDUINO, Ana Paula. O projeto imperial de educação indígena: civilização e formação de trabalhadores nacionais.
Seropédica: UFRRJ. Monografia de conclusão, 2010.
10
LIMA, Antonio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1995, p. 122.
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sinônimo de economia de mercado, comunicação dos povos, estradas transitáveis


e escoamentos dos produtos da lavoura dos índios.ŗ 11

Podemos perceber que o Segundo Reinado criou dispositivos de inserção e integração dos
indígenas à nação brasileira. Contudo, também precisamos ter em mente que tal assimilação se deu
de forma dolorosa para os nativos e, principalmente, de forma hierarquizada. Ou seja, tanto
esforço do Império em delegar aos indígenas um lugar na nação era, na verdade, apenas uma forma
de não ter em uma nação em construção uma população que não condizia com os moldes
civilizacionais do Ocidente.

3. As escolas de índios: educação e formação para o trabalho- o momento de


retribuir

As escolas do século XIX eram movidas pelos ideais dos homens ilustrados e pela
necessidade de civilizar as populações postas à margem na nação em construção. Ainda que a
educação tenha sido pensada no plural bem como as forças educativas que delinearam de diversas
formas e práticas projetos de educação e civilização, as escolas e projetos tinham um mesmo
objetivo: formar trabalhadores nacionais úteis à sociedade brasileira.
Um ponto importante a ser ressaltado se trata do papel da Igreja nesse processo educativo e
civilizatório. No Império, a Igreja passou a ser tratada como funcionária do Estado quando o
Imperador permitiu a entrada de missionários capuchinhos para cuidar da educação e civilização
dos índios nos aldeamentos12 de acordo com do decreto nº 285 de 21 de junho de 1843.
Percebe-se que não houve ruptura definitiva entre o Estado e a Igreja. Na verdade, no
Império houve uma articulação entre Igreja e Estado, principalmente no que tange aos processos
educativos e civilizatórios. Assim, podemos concluir que “a igreja se organizou por dentro do aparelho

11
AMOROSO, Marta Rosa. Mudança de hábito: catequese e educação para índios capuchinhos.Revista Brasileira de
Ciências Sociais. Vol.13 n 37 São Paulo, junho 1998, p. 9.

12
O tema da atuação dos capuchinhos em aldeias indígenas e seu projeto pedagógico será tratado em minha
dissertação de mestrado com mais profundidade. Aqui toquei nesse ponto porque se faz necessário comentar sobre a
aproximação da Igreja com o Estado e que os religiosos passaram a ser vistos como funcionários do estado e não mais
os responsáveis por cuidar dos aldeamentos como acontecia no período colonial.
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do Estado, marcando uma relação de cumplicidade que, desde então, vem sendo mantidaŗ.13 Além disso,
apontamos que as atividades educativas dos religiosos exerceram um papel de aproximação da
Igreja com o aparelho de Estado.
A tentativa de incorporar os marginalizados (no caso deste trabalho, os indígenas), não foi
somente característica da Colônia e do Império. No início da República, também existiram
projetos de integração e civilização dos nativos, contudo com características laicas. Leolinda Daltro,
por exemplo, criou um projeto de catequese laica que visava moldar e adequar os índios dentro da
configuração de cidadão nacional. Em seu livro Da catequese dos índios do Brasil. Notícias e documentos
para a história. 1896- 1911, Daltro compila variados tipos de documentos reunidos durante suas
viagens pelo interior da Brasil quando ela atuou em defesa da causa indígena. No livro, Daltro
trabalha com um ordenamento de fotografias tornando possível perceber o processo de
transformação do indígena. A professora acreditava que a educação e o trabalho eram de suma
importância para a civilização dos nativos. Em seu projeto educacional, portanto fica latente sua
percepção de inferioridade dos índios em relação a sua concepção de cidadão.
ŖComo bárbaros e desconhecedores dos princípios de civilização, precisam
ser conduzidos e transformados por aqueles que possuem maiores
capacidades e cabedal para transformá-los e enquadrá-los dentro de um
determinado modelo de comportamento e culturaŗ.14

Apreendemos, portanto que uma marca do processo de assimilação e integração dos


indígenas ao longo da história brasileira foi a política tutelar que partia do princípio da
incapacidade do os indígenas de auto gestarem e da necessidade de controle do aparelho do
Estado. Souza Lima define poder tutelar como uma forma de ação que incide sobre os povos
indígenas e seus territórios.
ŖCom a categoria poder tutelar pretendo, pois, descrever uma forma de
ação sobre ações dos povos indígenas e sobre seus territórios, oriunda e
guardando continuidades implícitas com as conquistas portuguesas e sua
administração por aparelhos de poder que visavam assegurar a soberania do
monarca lusitano sobre terras dispostas em variados continentes.
Modalidade de poder de um Estado que se imagina nacional, ou melhor,

13
GONDRA, José; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008,
p.58.
14
GRIGÓRIO, Patrícia Costa. Leolinda Daltro e o projeto de catequese dos índios no Brasil. In: Anais do XIII Encontro
Regional Anpuh Rio, 2008, p.6.
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de uma comunidade política dotada de um exército profissional,


comunidade esta entendida aqui como um conjunto de redes sociais
estatizadas, com pretensões a abarcar e submeter a multiplicidade de
comunidades étnicas diferenciadas e dispostas num território cuja
predefinição face a outras comunidades políticas igualmente heteroclíticas é
relativa e instável. O poder tutelar pode ser pensado como integrando tanto
elementos das sociedades de soberania quanto das disciplinares. Mas é
antes de tudo um poder estatizado num aparelho de pretensa abrangência
nacional, cuja função a um tempo é estratégica e tática, no qual a matriz
militar da guerra de conquista é sempre presente. (...) O exercício do poder
tutelar implica em obter o monopólio dos atos de definir e controlar o
que seja a população sobre a qual incidirá (grifo meu).ŗ15

O poder tutelar é uma forma de sedentarizar os povos indígenas de maneira que lhes sejam
impostas novas formas de relação social. Ou seja, mais uma forma de violência, não física, mas
moral, desenvolvida contra os indígenas. Um instrumento da política tutelar utilizado no Império
foram as escolas para índios sejam elas militares, de formação profissional ou de cunho religioso.
Não analisaremos aqui de forma aprofundada as instituições educacionais e seu
funcionamento. O intuito é promover uma visão da importância dessas escolas no momento de
construção da nação como um elemento civilizador e as consequências de tal processo para a vida
dos nativos.

3.1. Novas relações sociais: consequências para a vida nativa


As escolas para índios apresentavam um elemento essencial para o processo civilizatório: a
mestiçagem. De acordo com Izabel de Mattos, a escola era um instrumento de promoção da
mistura, pois como analisamos, essas instituições não eram compostas apenas de índios e tempos
depois se incentivou a entrada de filhos de colonos para que as crianças indígenas aprendessem
com os civilizados. Podemos apreender, portanto que o intuito era que os nativos perdessem sua
identidade.

15
LIMA, Antonio Carlos de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1995, p. 73 e 74.
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O Império, por meio das escolas, intentava promover uma transformação cultural dos
sujeitos, incutindo nas crianças uma nova identidade. Rizzini, ao analisar o Instituto Santo
Antônio do Prata16, enfatiza esse papel transformador dos estabelecimentos educacionais.
ŖRestringir o contato dos internos com sua cultura e com a própria língua foram
estratégias empregadas para dificultar a construção da identidade tribal nas
crianças e impingir uma nova identidade, a do cidadão cristão e trabalhador
moralizado, como se esperava dos meninos pobres dos internatos urbanosŗ.17

Pretende-se, neste ponto, ressaltar o papel da escola como uma forma de os nativos terem
acesso às relações sociais. Contudo chamo a atenção para o fato de que tais processos educacionais
e de assimilação dos indígenas foram agressivos para os indígenas e repleto de conflitos.
ŖOs alunos foram vítimas de um projeto educativo que tinha como pressuposto o
aniquilamento dos indígenas pela assimilação cultural e, assim, nas relações de
encontro e desencontro com os outros, eles expressaram tensões, contradições,
conflitos e desafios para enfrentar as relações sociais em que estavam inseridosŗ.18

As crianças indígenas foram vítimas do tráfico, ou seja, quando seus pais não permitiam
que fossem para as escolas, eram raptadas e levadas para as instituições com o propósito de levar
sua cultura à morte e destruir o mundo do indígena. Segundo Marin, a prática do rapto, embora
não sendo permitida por lei, ganhou contornos de política do governo com o intuito de integrar os
indígenas na sociedade dos brancos.
Outra forma de estabelecimento de relações sociais muito recorrente foi o casamento.
Ressalto que na maioria das vezes, as meninas índias não chegavam a casar-se de forma efetiva com
os brancos. Elas acabavam tornando-se Ŗamantesŗ e tendo filhos dos brancos contribuindo para o
surgimento de uma raça mestiça como os missionários capuchinhos almejavam.
ŖOs padres, como tutores dos índios nos aldeamentos centrais, continuaram a dispor de
suas vidas, reorganizando as relações das crianças entregues aos educandários nos termos
dos arranjos matrimoniais elaborados com a finalidade expressa de fundar uma cidade
mestiça e uma população prósperaŗ.19

16
RIZZINI, Irma. A união da educação com a Religião nos institutos indígenas do Pará (1883-1913). In: VI Congresso Luso-
Brasileiro de História da Educação: Percursos e Desafios da Pesquisa e do Ensino de História da Educação, 2006,
Uberlândia. Anais do VI Congresso Luso-Brasileiro de História da Educação. Uberlândia: UFU, 2006. p. 5.314-
5.325.
17
Idem, p. 5315.
18
MARIN, J. O. B. . A formação de trabalhadores brasileiros: a experiência do Colégio Isabel. História Unisinos, v. 13,
p. 152-165, 2009.p. 161.
19
MATTOS, Isabel Missagia de. Civilização e revolta. Os botocudos e a catequese na província de Minas. Bauru: EDUSC,
2004, p. 412.
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Havia ainda a chamada violência erótica, ou melhor, práticas sexuais que eram costumeiras
nos educandários. As meninas índias que viviam nas instituições sem o convívio e a proteção dos
pais eram constantemente afetadas pela prática da violência sexual seja pelos próprios funcionários
ou por visitantes. Assim, percebemos que a prática da Ŗposseŗ do corpo da indígena foi um
instrumento de civilização e de assimilação da indígena a fim de reordenar sua vida cotidiana.
Não podemos deixar que a visão dessas meninas índias apenas como meras vítimas
prevaleça. Marin, em sua análise sobre o Colégio Isabel, comenta que uma índia, em 1887,
revoltou-se contra os abusos cometidos pelos funcionários. A índia provocou um aborto e não
escondeu o fato e tampouco se submeteu aos castigos. Assim, o diretor da instituição privou-a da
liberdade e solicitou orientações do presidente da Província questionando se deveria lhe arrumar
um casamento ou expulsá-la do estabelecimento. O presidente preferiu arrumar-lhe um casamento
arranjado concedendo um pequeno dote para a índia subvencionado pela Tesouraria da Fazenda.
Às meninas índias, com raras exceções, era reservado o concubinato ou a prostituição e aos
meninos a situação de quase escravidão, ou seja, a exploração excessiva da mão-de-obra do
indígena.
As consequências da imposição de uma nova ordem social poderia ser desastrosa para um
menino índio. Mattos nos conta o caso do índio Antônio que viveu sob a rígida disciplina do
Colégio Agrícola e chegou até a frequentar o Colégio Estadual. O índio Antônio possuía bom
comportamento, mas apresentava um semblante de tristeza:
ŖFicava a maior parte do tempo calado, com seu canivete, cortando madeira. Não
gostava de disciplinas mais abstratas, como a matemática, porém adorava o francês
e por isso foi apelidado ŘAntoine le bom elèveř. Morreu moço, com 20 e poucos
anos, de tristeza, deixando-nos um indício de como podia ser pesado, para uma
criança indígena, privada dos laços simbólicos com o espírito de sua gente, o fardo
de tornar-se Řcivilizadoř e Řbrasileiroř, de acordo com o espírito de sua épocaŗ.20

Diante do exposto, é possível perceber que o estabelecimento das novas relações sociais, na
maioria das vezes, teve consequências negativas para os nativos. Seja pela imposição da nova
cultura, da violência erótica ou do trabalho pesado, não importava ao Império com seu ideal
civilizador qual método seria usado para assegurá-lo. Ainda que essa nova interação social

20
Idem, p. 435.
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provocasse a morte do nativo como o caso do índio Antônio, o importante era que ao indígena
fosse incutida uma nova identidade: de cristão e trabalhador nacional útil à sociedade.

3.2. A retribuição
Os modelos de internato eram as melhores estratégias no processo de inserção ao mundo
do trabalho e da civilização. Tais instituições visavam proteger a infância pobre dos males do
convívio com os seus e, dessa forma, prepará-los para o mundo do trabalho.
Ainda que não tenha se tornado dominante, este modelo persiste, mantido pelo
Aparelho de Estado ou pela iniciativa privada. A sobrevivência desta forma escolar
se constituiu em sinal de que tal equipamento ainda embala os sonhos de que a
reclusão total se constitui a melhor estratégia para interferir no curso da vida,
formando trabalhadores e dirigentes exemplares.21

A difusão dos saberes elementares e de ofícios manuais tinha como estratégia evitar os
perigos representados pela população posta à margem e abastecer os postos de trabalho. Se
analisarmos por este ponto de vista, podemos perceber os asilos e internatos como um instrumento
de controle social. Assim, a fórmula instrução somada à aprendizagem profissional tinha como
intuito controlar o mundo da desordem representado pela população pobre.
Ressalto que o modelo de internato também foi utilizado para instruir a gente da chamada
Ŗboa sociedadeŗ, ou seja, podemos perceber que a difusão de tal modelo foi geral no Império.
O intuito dos intelectuais e da governança Imperial era que os índios se mesclassem à
população brasileira e se tornassem força de trabalho. Com esse propósito foram criadas as
instituições profissionalizantes já analisadas nesta comunicação. Entretanto o fato que desejo
ressaltar consiste no lugar reservado aos indígenas após sua formação profissional. Tais
estabelecimentos educacionais objetivavam que os indígenas aprendessem os mínimos de
civilidade, ou melhor, o intuito era que não atingissem um alto grau de civilização, mas o suficiente
para que se inserissem no mercado de trabalho.
Irma Rizzini em análise sobre o Instituto Providência, fundado pelo bispo D. Antonio
Macedo da Costa comenta que o instituto tinha como objetivo educar a infância desvalida do

21
GONDRA, José; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008, p.
124.
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interior para torna-los, desde a infância, Ŗoperários sinceramente católicosŗ, a fim de prepara-los
para o mercado de trabalho. Segundo o bispo, a instrução religiosa somada à intelectual era o
melhor caminho para superar a ignorância. O estabelecimento teve como inspiração os colégios de
ensino de ofícios e as colônias agrícolas e ensinava música, leitura, escrita, aritmética, doutrina
cristã, moral e cívica, ofícios manuais, etc. Entretanto, os poderes públicos não investiram no
empreendimento do bispo.
Assim, como o Instituto Providência, outros estabelecimentos também obedeciam às
mesmas propostas com recorte étnico definido, tal como o econômico e o social. O objetivo dos
institutos era o mesmo: educar as populações não brancas pela via do trabalho incutindo-lhes uma
nova disciplina tornando-os operários, camponeses ou o que mais a sociedade tivesse necessidade.
Essa necessidade de os indígenas tornarem-se trabalhadores nacionais é motivada pela ideia
da obrigação em retribuir àquilo que lhes foi dado pelo Estado Imperial. Diante disso, há a
necessidade de os alunos ao saírem das instituições se insiram no mercado de trabalho para que
devolvam à sociedade com o seu trabalho por tudo aquilo que lhes foi dado.
A ideia de retribuir, presente em Marcel Mauss 22, cabe nesta questão, pois se pensarmos o
indígena passou pelas três dádivas apontadas pelo autor. Inicialmente, o menino indígena que vive
em seu aldeamento é tirado do convívio dos seus pais e de sua cultura para receber um Ŗpresenteŗ,
ou melhor, alguns Ŗpresentesŗ: educação, civilização e uma profissão. E ao menino resta a obrigação
de Ŗreceberŗ aquilo que lhes foi Ŗdadoŗ porque não se pode recusar aliança ou declarar guerra
contra o Estado Imperial. E, por último, o menino indígena, que já não é mais menino, depois de
anos de processo civilizatório e educacional se depara com o momento de sair da escola e encarar o
mundo civilizado ao qual agora ele faz parte. Então para que o ciclo não seja rompido o indígena
precisa Ŗretribuirŗ à sociedade. Assim, ele se insere no mercado de trabalho devolvendo a dádiva do
Estado Imperial.
Ainda que possamos perceber um relacionamento recíproco entre não iguais, ou seja,
indígenas e a sociedade imperial, ressalto que esta reciprocidade não ocorre de forma igualitária,
esta reciprocidade reforça a hierarquia, pois o trabalhador indígena não executa ofícios tais como
os brancos da Ŗboa sociedadeŗ. Restam a ele, os trabalhos menores, ou seja, os trabalhos

22
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e Antropologia. SP: Edusp, vol. 2.
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considerados degradantes por esta sociedade. Apreendemos, portanto que esta reciprocidade é
desigual, ela implica em reafirmar poder e, ao mesmo tempo, inferioridade.
Assim, os indígenas se inserem na nação em construção e devolvem ao Estado Imperial a
dádiva que receberam. Os novos cidadãos nacionais não se ajustam ao novo modo de vida e
tampouco se incluíram no mundo dos brancos de forma satisfatória.

4. Considerações finais
Ser índio no Estado imperial em época de construção da identidade nacional não era tarefa
fácil. Na época em questão o Estado estava mais preocupado em legislar sobre a vida das pessoas do
que em qualquer outro período. E legislar no XIX possuía sentido de tutelar, ou seja, a necessidade
de intervenção na vida dessas populações à margem que eram consideradas incapazes de discernir o
que era bom ou mal para elas e, principalmente, para a nação que emergia.
A necessidade de inserir essa população considerada pertencente ao mundo da desordem
impulsionou o Estado Imperial a criar dispositivos para que tal ideal fosse alcançado. Assim, as
escolas, asilos, internatos, enfim, os estabelecimentos educacionais de tipos variados tiveram um
investimento para cumprir tal papel civilizador.
Enquanto na Colônia não havia interesse em difundir tal arma cívica como afirma José
Murilo de Carvalho23 tanto pela administração colonial como pelos religiosos, no Império a
educação passou a ser o ideal a ser alcançado seja pelas populações postas à margem ou pela Ŗboa
sociedadeŗ. A educação era ainda uma arma para ascender socialmente, para conseguir um bom
emprego.
Contudo, no que se refere aos índios, a educação serviu para atestar a sua não humanidade.
Ao saírem das instituições, os nativos não mais se adequavam junto a sua comunidade e tampouco
junto aos civilizados. O que eram então? Após o processo de integração e assimilação o que
acontecia a essa nova geração de índios? Não eram mais índios, não eram civilizados. Podemos
apenas levantar hipóteses.
Ainda que possuíssem um ofício não se integraram na nação e não alcançaram um alto
nível de civilidade. A postura do Império era, sem dúvida, hierarquizante. Ou seja, desejava-se que
23
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. RJ: Civilização Brasileira, 2009.
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o nativo aprendesse um ofício sim, mas tal ofício era considerado menor e degradante, reflexo da
visão que se tinha do nativo como tal.
O intuito era que os indígenas se tornassem trabalhadores para suprir a necessidade de
força de trabalho. Além disso, não podemos esquecer da necessidade de controle social e
disciplinamento dessa população numa nação que intentava ser o modelo de civilização no Novo
Mundo.
Os nativos cumpriram seu papel no ciclo do dom e retribuíram ao Estado àquilo que lhes
foi dado. Entretanto, eram eles trabalhadores nacionais, cidadãos cristãos e moralizados como se
pretendia? Ressaltei inúmeras vezes que os nativos não se enquadraram nessa nova ordem. Afinal,
ser civilizado significava a destruição de suas identidades para lhes incutir uma nova moral segundo
os moldes das Luzes.
Sem dúvida, eles não eram cidadãos do Império e não eram mais índios. O processo de
assimilação e de integração produziu efeito inverso: os nativos passaram a ser excluídos tanto da
sociedade civilizada quanto de sua própria comunidade. Tal processo produziu uma geração de
excluídos sem identidade definida, excluídos com várias identidades.
5. Referências
5.1. Fontes Impressas
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civilização de nossos indígenas (1839). 3. Ed. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1:
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5.2. Referências Bibliográficas


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ŽIŽEK E A CRÍTICA DA TOLERÂNCIA COMO CATEGORIA IDEOLÓGICA


Carlos Augusto Santana Pereira
Resumo
Tolerância tem sido um conceito reivindicado pela política na atualidade, principalmente de
caráter liberal e supostamente democrático, que busca encontrar uma saída ao problema dos
diferentes fundamentalismos, mas mantendo as coordenadas estabelecidas pelo chamado
capitalismo avançado. Na tentativa de contribuir ao debate deste conceito caro à história
contemporânea, apresentarei a sua crítica ideológica feita pelo filósofo sloveno Slavoj Žižek. Para
Žižek, parte do discurso capitalista atual assumiu uma roupagem multiculturalista, impondo e
ampliando a lógica de mercado. Nesse sentido, o conceito de tolerância sustentaria o hibridismo
cultural e, ao mesmo tempo, a homogeneização do capitalismo como um sistema global e
inabalável. Portanto, cabe à crítica da ideologia evidenciar o real da luta de classes que sustenta esse
capitalismo multiculturalista.
Palavras-chave: tolerância; ideologia; Žižek.

Abstract
Tolerance has been a concept claimed by the current politics, especially by the liberal and
supposedly democratic character, which seeks to find a way out for the different fundamentalism
problems, but keeping the coordinates established by the so-called advanced capitalism. In an
attempt to contribute to the discussion of this concept important to contemporary history, I'll
present the ideological critiscism made by the Slovenian philosopher Slavok Žižek. In his opinion,
part of the current capitalistic speech assumed a multiculturalist guise, imposing and amplifying the
market's logic. In this way, the concept of tolerance would sustain the cultural hybridism and, at
the same time, the homogenization of capitalism as a global and unwavering system. Therefore, it is
up to the ideological critics to highlight the Real aspects of class struggle that sustains this
multicultural capitalism.
Keywords: tolerance; ideology, Žižek.

Doutorando em História Comparada Ŕ PPGHC/UFRJ e bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro Ŕ FAPERJ.
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Sem dúvida, uma das maiores complicações que atravessa a história do pensamento é a
dificuldade de vincular a densidade conceitual com sua indispensável circulação e divulgação.
Desde a famosa anedota de Tales de Mileto1 até os dias de hoje, o pensamento se defronta com a
dificuldade de seu distanciamento do senso-comum. Na nossa atual sociedade espetacular, essa
dificuldade parece que ficou ainda mais aguda. Contudo, desde a noção de práxis em Platão, esse
desafio nunca pôde ser negado. Talvez um dos pensadores da atualidade que mais tem encarado
esse desafio de frente é o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek.
Caricaturado como o ŖElvis da Teoria Críticaŗ, Žižek não foge dos debates mais polêmicos
e do diálogo com o senso-comum, mesmo com todas as deturpações que os meios de comunicação
fazem de seus conceitos2. Nas recentes manifestações populares do mundo árabe, Žižek foi um dos
primeiros intelectuais que se posicionou publicamente a favor da então inclassificável Primavera
Árabe. Também já esteve presente discursando na Ocupação de Wall Street. Seguramente, é um
dos que mais viaja pelo mundo, indo de Brasil, Argentina e Bolívia passando por Israel, Arábia
Saudita e China, sempre buscando manter seu posicionamento crítico, mesmo quando defrontado
com a realidade local.
Todavia, a consequência quase inevitável dessa circulação é a perda da densidade conceitual
de suas proposições. Seu elogio à violência divina benjaminiana é lida como terrorismo; sua crítica
à democracia liberal é denunciada como totalitarismo (desconsiderando que seu segundo livro foi
dedicado a uma crítica do totalitarismo); seus argumentos relacionando Lacan, Hegel e Marx com
manifestações da cultura de massas são considerados mera excentricidade; sua critica à esquerda e
sua releitura de Lenin são interpretadas como uma improdutiva nostalgia... Contudo, seus livros e
artigos continuam sendo lidos, gerando questionamentos nos mais distintos campos do saber.
Uma de suas reflexões que vem sendo muito deturpada é sua crítica à tolerância como
categoria ideológica. É bem verdade que sua crítica à tolerância é uma das suas mais controvertidas
reflexões, já que ela, aparentemente, iria de encontro aos poucos avanços que tivemos nos últimos
anos no campo da política. Disso decorre uma espécie de repugnância imediata com os argumentos

1
Conta-se que Tales de Mileto, ao ser conduzido para fora de sua casa por uma velhinha para observar os astros, teria
caído num buraco. Esta teria ponderado: - ŖTales, não consegues ver o que tens aos pés e desejas conhecer o que está
no céu?ŗ.
2
Sobre essa relação do Žižek com mídia sugiro a leitura de Taylor (2010).
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do filósofo esloveno. O intuito deste texto é tentar apresentar de forma breve o que está em jogo na
crítica de Žižek à tolerância como categoria ideológica, vislumbrando, talvez, a hipótese de que tal
crítica não abre precedentes para intolerâncias (principalmente oriundas de fundamentalismo
políticos e religiosos), mas justamente o contrário, refutando-as de maneira radical. Mas para
entrarmos decididamente na reflexão žižekeana, precisamos também conhecer algumas
característica de como opera sua crítica ideológica, bastante influenciada pelo pensamento do
psicanalista francês Jacques Lacan.
Para Žižek (1996), a ideologia tem estrutura homóloga à da fantasia, tal como pensada na
psicanálise lacaniana. Para Lacan (2006), a fantasia é uma construção lógica que dá uma resposta à
hiância no sujeito atravessado pelo inconsciente. A ideologia pode ser interpretada como um modo
especial da fantasia cuja característica de resposta é tentar tamponar essa hiância. Portanto, para
conhecermos melhor os modos de operação da ideologia na crítica de Žižek, é necessário
adentrarmos um pouco mais na estrutura da fantasia. À medida que essas características da fantasia
forem apresentadas aqui, alguns problemas cruciais relacionados à sua crítica ideológica da
tolerância também serão debatidos. Desta forma, a crítica de Žižek à tolerância como categoria
ideológica servirá de caso para a apresentação de sua crítica ideológica mais geral.
Em El acoso de las fantasías, Žižek (2009) apresenta sete características, ou como ele diz, os
sete véus da fantasia. Trabalharemos aqui somente quatro. O primeiro é o lugar do sujeito na
fantasia. Não há uma identificação imediata do sujeito com sua fantasia. Pelo contrário, a sua
estratégia será sempre não se reconhecer na narrativa fantástica. O que pode ocorrer é um
deslizamento entre múltiplas identidades, mas não ocupar o lugar concreto na narrativa (essa, aliás,
é uma das tarefas primordiais de um início de análise: o sujeito se situar em sua fantasia). Um
exemplo clássico é um sujeito sonhando que o irmão mais novo está sendo envenenado por um
Ŗdesconhecidoŗ. Ou quando uma jovem praticante de bulimia se considera uma pessoa obesa e
feia. Há nesses exemplos o não reconhecimento ou deslocamento do sujeito no enunciado
discursivo, no corpo narrativo da fantasia (o irmão que queria ser o Ŗdesconhecidoŗ e a jovem
magra que se vê obesa e feia).
O problema é que esse lugar do sujeito é um vazio Ŕ os elementos de identificação que o
sustentam na fantasia se esmorecem. Daí a dimensão de insuportável, de impossível que é se situar
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nesse lugar. Mas, ao mesmo tempo, quando o sujeito se situa em algum momento neste lugar na
travessia da fantasia e consegue fazer algum rearranjo simbólico, algo da ordem do desejo irrompe.
Esvazia-se o gozo do sintoma que articula a fantasia. Esse esvaziamento libera parcialmente o sujeito
de suas inibições sintomáticas e o leva ao caminho de seu desejo. Uma belíssima descrição dessa
travessia da fantasia pode ser identificada no poema O operário em construção, de Vinícius de Morais,
quando o operário se reconhece como objeto de gozo do patrão, desfetichizando a dimensão do
trabalho foracluída na forma-mercadoria ignorada pela economia política: “– Loucura! – gritou o
patrão / Não vês o que te dou eu? / - Mentira! – disse o operário / Não podes dar-me o que é meu”
(MORAIS, 1980, p.210).
A partir do discurso da tolerância esse lugar da narrativa pode ser observado de duas
maneiras. Em um primeiro momento, a defesa da tolerância estaria articulada à exposição do lugar
de enunciação do sujeito que defende argumentos e pratica ações totalitárias e preconceituosas.
Aqui vale destacar o conceito de banalidade do mal elaborado por Hanna Arendt. O conceito de
banalidade do mal, tal como apresentado notadamente em Eichmann em Jerusalém (ARENDT,
1999), opera essa exposição do sujeito na narrativa de duas formas: por um lado, ao caracterizar a
dimensão banal do mal, Ŗdespsicologizandoŗ a maldade, Arendt aponta para uma Ŗuniversalizaçãoŗ
do ato, pois, desta forma, qualquer um é capaz de realizá-lo e não (supostamente) somente um
indivíduo Ŗnaturalmenteŗ mal; e, por outro lado, responsabiliza o sujeito, já que o mal, apesar de
seu caráter irreflexivo, é fruto da própria negligencia do sujeito diante do conteúdo ético do que
lhe é solicitado por um poder superior, por exemplo, da burocracia. Entretanto, quando o
argumento da tolerância perde essa dimensão Ŗuniversalŗ e de responsabilização se abre um grande
risco da própria denúncia incorporar na prática a intolerância. As variações da execução da política
norte-americana baseada no Destino Manifesto atestam isso exemplarmente. E elas são mais
violentas à medida que mais tenta assegurar a Ŗpaz entre os povosŗ. Ademais, tal discurso a favor da
Ŗpazŗ, da Ŗdemocraciaŗ e da Ŗtolerânciaŗ entre os povos é bastante presente atualmente (por
exemplo, quando o recém pré-candidato republicano à presidência dos EUA, Mitt Romey, diz
“quando a América está forte, o mundo fica mais seguro”, para justificar a ação militar externa para
assegurar o poderio econômico norte-americano).
Avancemos para a segunda dimensão da fantasia: a função da narrativa.
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A narrativa como tal surge para resolver um antagonismo fundamental mediante a


reacomodação de suas partes numa sucessão temporal. Por isto, é a forma mesma
da narrativa que permanece como testemunha de um antagonismo reprimido. O
preço que se paga pela resolução narrativa é la petitio principii do circuito
temporal, isto é, a narração pressupõe tacitamente que aquilo que pretende
reproduzir já está dado. (ŽIŽEK, 2009, p.20)

Como dito anteriormente, a função da fantasia é servir como resposta à hiância no sujeito.
A narrativa é o suporte discursivo dessa resposta. Em termos lacanianos, trata-se de uma cadeia de
significantes, cuja função é rearranjar-se para dar lugar a esse Ŗantagonismo reprimidoŗ. O
problema é que a amarração sintomática impede que esse reprimido venha à tona, redirecionando-
o incessantemente. Daí o caráter de petição de princípio, de circularidade vazia da narrativa
fantástica. Para esclarecer essa dimensão da narrativa na fantasia, analisemos o exemplo utilizado
pelo próprio Žižek: a estrutura do mito da acumulação primitiva denunciada por Marx.
Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite
laboriosa, inteligente e sobretudo econômica, e uma população constituída de
vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica [o mito do
pecado original] conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão com o
suor de seu rosto. Mas, a lenda econômica explica-nos o motivo porque existem
pessoas que escapam a esse mandamento divino. Aconteceu que a elite foi
acumulando riquezas e a população vadia ficou finalmente sem ter outra coisa
para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da economia. Por
causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a
própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos,
embora tenham esses poucos parado de trabalhar há muito tempo. (MARX, 1975,
p.829)

Como bem observou Žižek (2009), “a narração da acumulação primitiva efetivamente não
explica nada, pois supõe a existência de um trabalhador que se comporta já como um capitalista plenamente
desenvolvido” (p.21). Não por acaso, Marx faz uma analogia entre os mitos do pecado original e da
acumulação primitiva, já que se trata antes de tudo de uma crença de como deve se conformar as
relações sociais, considerando, a partir desses mitos, a sociedade como um todo orgânico e
harmônico. Ora, qual a operação que Marx faz no capítulo da Acumulação Primitiva?
Simplesmente gerar uma narrativa em que tenha lugar o Real da luta de classes foracluído no mito
econômico.
Aqui devemos nos agarrar a uma questão fundamental. Pois não se trata de que a
legitimidade dessa narrativa marxista esteja no uso correto de Ŗfontes históricas confiáveis e
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verdadeirasŗ. Ciência histórica em Marx não tem relação alguma com a ciência histórica positiva e
universitária de nossos dias, e a sua neurose obsessiva em busca de fontes históricas fidedignas. Não
que Marx negligencie o uso das fontes, mas porque a verdade histórica em perspectiva marxista não
reside no Ŗbom manuseio das fontesŗ e sim no que essas fontes nos permitem trazer à tona o Real
da luta de classes.
No que tange à Ciência Histórica, o diálogo aqui é um só: Marx e Hegel. Se para Hegel a
Ciência Histórica é o movimento do Ŗem-siŗ subjetivo ao Ŗpara-siŗ objetivo com fim de atingir a
síntese dialética no Espírito Absoluto, para Marx trata-se de condições objetivas (formas de
produção) que determinam um lugar subjetivo com o fim de superar suas contradições originais. O
importante nessa comparação é percebermos que, tanto para Marx como para Hegel, Ciência
Histórica é o próprio movimento de construção da realidade (no caso de Marx, também de
transformação) no qual já estamos imediatamente implicados. Por isso que a Ciência Histórica
Positivista que reina nas universidades atuais não serve para o marxismo. Pensar com Marx é já
pensar inserido no movimento de transformação da realidade, e não como um espectador passivo
dos acontecimentos3. Portanto, o marxismo não é uma Ŗvisão de mundoŗ ou uma disciplina
universitária. Aliás, como coloca Žižek (1991),

Para esclarecer essa ênfase hegeliana, tomemos um exemplo, talvez surpreendente,


que atesta a herança hegeliana no materialismo histórico e confirma a tese de
Lacan de que o marxismo não é uma Ŗvisão de mundoŗ. A afirmação
fundamental do materialismo histórico é a do papel revolucionário e da missão
histórica do proletariado; ora, o proletariado só se torna sujeito revolucionário
efetivo mediante a apropriação desse conhecimento de seu papel histórico. O
materialismo histórico não consiste num Ŗconhecimento objetivo do papel
histórico do proletariadoŗ, mas seu conhecimento implica a posição subjetiva do
proletariado, e nesse sentido, ele é auto-referente, está incluído em seu objeto de
conhecimento. O primeiro ponto em questão, portanto, é o caráter
Ŗperformativoŗ do processo de conhecimento: quando o sujeito penetra atrás da
cortina da aparência em direção à essência oculta, pensa descobrir o que estava ali
desde sempre e desconhece que, ao avançar pata trás da cortina, ele mesmo levou
para lá o que ali encontrou. (p.31)

3
Não por acaso, Lênin, o maior gênio político do século XX, considerou importantíssimo o estudo da dialética
hegeliana para uma melhor compreensão do pensamento de Marx. Como ele escreveu em uma de suas anotações de
estudos sobre Hegel: “Não se pode compreender completamente O Capital de Marx, e especialmente o seu primeiro capítulo,
sem ter estudado e compreendido toda a Lógica de Hegel. Portanto, nenhum marxista compreendeu Marx durante meio século
depois dele!!” (LENINE, 1975, p.105, grifos do autor).
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Esse velamento que a narrativa promove no âmbito do discurso ideológico da tolerância


possui contornos específicos. Primeiro vale destacar a volatilidade do significante Ŗtolerânciaŗ. Esse
significante (assim como outros, como Ŗsolidariedadeŗ, Ŗhonestidadeŗ, ŖGlobalizaçãoŗ etc) é
privilegiado ideologicamente, pois aponta para uma referência imediatamente vivida (não é difícil
se identificar com a causa da tolerância, pois é possível percebê-la diariamente) e, em contrapartida,
permite a suspensão de um posicionamento político (em princípio, todos são a favor da tolerância,
seja de direita, seja de esquerda). É essa junção do seu caráter inquestionável com a possibilidade
de suspensão do posicionamento político que viabiliza o deslocamento ideológico de questões
cruciais que estão em jogo na política. O problema da desigualdade econômica e social, por
exemplo, pode não ser visto como uma questão de justiça social, mas como uma Ŗintolerânciaŗ dos
ricos em quererem ser a todo o momento mais ricos em detrimento da melhoria das condições de
subsistência dos mais pobres. Nesse sentido, o discurso tolerante liberal aplicado ao plano
econômico Ŗresolveriaŗ o problema da desigualdade social a partir de Ŗconcessõesŗ dos mais ricos
aos pobres. Disso decorre que um problema que é inicialmente concebido como uma questão de
organização social é resolvido no plano psicológico/sentimental Ŕ o Ŗproblemaŗ é que alguns ricos
são muito Ŗgananciososŗ...
A eficácia desse discurso ideológico da tolerância repousa no artifício que ele desloca um
problema particular real (por exemplo, a desigualdade social) imediatamente a uma universalidade
abstrata, perdendo sua referência ao todo. Como afirma Žižek (2007), “qualquer conceito ideológico de
aparência ou alcance universal pode ser hegemonizado por um conteúdo específico que acaba „ocupando‟ essa
universalidade e sustentando sua eficácia” (p.14). Além disso, a narrativa impõe aquilo que deve ser
considerado como questão legitima de debate; “a narrativa pré-determina nossa percepção da „realidade‟”
(op. cit, p.17).Disso decorre o paradoxo de um crítico ao capitalismo ser considerado intolerante.
Ao querer sustentar que o problema econômico social está atrelado à forma como a nossa
sociedade se organiza, apontando para a necessidade de distribuição igualitária das riquezas
produzidas, ele é imediatamente taxado de intolerante, pois desconsideraria o interesse imediato da
população mais pobre, que estaria, mesmo que temporariamente, resolvido com o sistema de
Ŗconcessãoŗ dos mais ricos (e não seria mais ou menos por esse caminho que os adeptos do

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Lulismo criticam os políticos Ŗradicaisŗ de esquerda? A política assistencialista brasileira atual não
seria o desdobramento objetivo da ideia de que ricos e pobres podem conviver dentro de limites
Ŗrazoavelmente toleráveisŗ?). Nesse sentido, uma das características fundamentais da narrativa
fantasmática (nesse caso, a resolução do antagonismo social a partir de uma narrativa que situa
como dado o próprio antagonismo) ganha terreno (e a ilusão do Lulismo como Ŗtransiçãoŗ,
defendida por alguns setores do PT que ainda se consideram socialistas, não seria, no estilo
classicamente neurótico, uma desculpa para refutar continuamente o que é fundamental, isto é, a
superação do capitalismo? Não seria o discurso da Ŗtransiçãoŗ uma narrativa fantasmática por
excelência, isto é, uma narrativa que incorpora a desigualdade social acreditando que está se
opondo a ela?). Por isso, a tarefa fundamental é politizar esses significantes que aparentemente
seriam apolíticos. Como afirma Žižek (op. cit.), “a luta pela hegemonia ideológico-política é sempre uma
luta pela apropriação daqueles conceitos que são vividos „espontaneamente‟ como „apolíticos‟, porque
transcendem os confins da política” (p.15).
O terceiro véu da fantasia é sua ambiguidade na estruturação do desejo e seu caráter
intersubjetivo. Aqui percebemos o caráter paradoxal da fantasia: se por um lado ela é uma
construção que circunda o núcleo traumático, bordejando as arestas do Real (e não
necessariamente tentando tamponar, como na ideologia); por outro, é essa própria construção que
permite que o Real irrompa e algo da ordem do desejo venha à tona. Como nos diz Žižek (2009),
“uma fantasia constitui nosso desejo, prevê suas coordenadas, ou seja, literalmente, „nos ensina como desejar‟”
(p.17).
O conceito de luta de classes é um bom exemplo para identificarmos esse duplo movimento
da fantasia. Se por lado um lado ele dá lugar ao núcleo traumático recalcado do capital Ŕ a
dimensão do trabalho humano foracluído na forma-mercadoria Ŕ sustentando uma crítica radical à
economia política; por outro, ele fornece as coordenadas de superação do próprio capitalismo, a
partir de sua irredutibilidade à compreensão da sociedade como um todo orgânico e harmonioso,
deixando totalmente em aberto um porvir que inevitavelmente devemos assumir. Em suma, a
própria crítica ao capitalismo exige sua superação. Como bem assinalou Žižek (1996),
a luta de classes é Ŗrealŗ no sentido lacaniano estrito: uma Ŗdificuldadeŗ, um
empecilho que origina simbolizações sempre renovadas, mediante as quais nos
esforçamos por integrá-lo e domesticá-lo (a tradução/deslocamento corporativista
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da luta de classes para a articulação orgânica dos Ŗmembrosŗ do Ŗcorpo socialŗ,


por exemplo), mas que, ao mesmo tempo, condena esses esforços a um derradeiro
fracasso. (p.27)

Nesse sentido, é totalmente impertinente a crítica de que Marx fez um bom Ŗdiagnósticoŗ
do capitalismo, mas um péssimo Ŗprognósticoŗ com as consequências do chamado socialismo real.
Pois é preciso assinalar que Marx foi extremamente atento aos movimentos reivindicatórios e
revolucionários de seu tempo. Basta lermos a Crítica ao programa de Gotha ou Salário, preço e lucro
para identificarmos essa preocupação do pensador. Por outro lado, essas críticas nunca eram
totalmente destrutivas, mas visavam, exclusivamente, manter em aberto o núcleo traumático do
capital.
Em Salário, preço e lucro, por exemplo, Marx (1978) concorda em parte com a tese do
operário Jonh Weston de que o aumento dos salários não é o melhor caminho para a melhoria da
situação dos operários. Entretanto, os motivos que o levaram a essa posição são totalmente
distintos dos de Weston. Enquanto para este o valor monetário do trabalho (o salário) era apenas
uma estipulação arbitrária do capitalista, para Marx tal valor só era possível porque a própria
dimensão do trabalho humano já foi ignorada. “O valor ou preço da força de trabalho toma a aparência
do preço ou valor do próprio trabalho, ainda que a rigor as expressões de valor e preço do trabalho careçam de
sentido” (MARX, 1978, p.84). É somente através da redução do trabalho humano a uma mera
disponibilidade do corpo do trabalhador, isto é, a redução do trabalho à dimensão de força de
trabalho, a uma mercadoria, que ao trabalho humano pode ser estipulado um preço Ŕ o salário -,
mesmo que esse preço careça de sentido. É justamente a partir da foraclusão da dimensão do
trabalho humano no estabelecimento do salário que é possível a extração de mais-valor e, por
consequência, a edificação do capitalismo. No fundo, a crítica de Marx a Weston é que este, ao
desconsiderar a dimensão de negação do trabalho humano no estabelecimento do salário, acaba
por permanecer no mesmo solo fetichista do capitalista. Uma passagem de Marx no já citado sub-
capítulo do fetichismo da mercadoria dřO Capital nos serve aqui: “ao equiparar seus produtos de
diferentes espécies de troca, como valores, equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Não o
sabem, mas o fazem” (MARX, 1989, p.72). O que toda essa crítica nos revela é que Marx não era
condescendente a proposições revolucionárias que não levassem em conta o Real da luta de classes,

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pois o verdadeiro ato revolucionário necessariamente eclode na sustentação desse Real. Não
tenhamos dúvidas: se Marx vivesse na União Soviética durante o regime stalinista, seu destino seria
os gulags...
Na tolerância como categoria ideológica essa ambiguidade também é latente, notadamente
na tentativa de regular a intersubjetividade em jogo na construção discursiva. Para Lacan (2006), a
fantasia me informa o que sou eu para os outros; ela orienta o desejo não no sentido da vontade,
do Ŗo que eu quero?ŗ, mas no sentido do Outro, do Ŗo que eles querem de mim?ŗ. A tolerância
como categoria ideológica é um discurso que tenta controlar a pergunta pelo desejo, que é sempre
o desejo do Outro.

O que quer dizer atualmente "tolerância"? É simplesmente o inverso da noção de


"assédio". E, o que quer dizer "assédio"? Isso quer dizer que o Outro, como sujeito
de desejos, não deve se aproximar demasiadamente de mim. Em outros termos, a
tolerância é hoje exatamente a intolerância. A figura da subjetividade torna-se
completamente narcisista; ela se constitui no temor da proximidade dos outros.
Isso me lembra de quando Kierkegaard pergunta: "Quem é o próximo que se deve
amar?", e ele responde: "Aquele que está morto". (ŽIŽEK, 2010, p.1)

Neste momento aparece a Ŗoutra cenaŗ do discurso da tolerância liberal. Pois nesse discurso
o Outro é tolerado dentro dos limites estabelecidos pelo narcisismo; até o limite que em que o
Outro não vem perturbar minha vida pequena burguesa. Nesse contexto, o multiculturalismo não
crítico cumpre uma função complementar. Como argumenta Žižek (2011), “o principal problema das
formas da chamada „política de identidade‟ é que elas se concentram nas identidades „privadas‟; o horizonte
final é o da tolerância e da mescla dessas identidades, e toda universalidade, toda característica que percorra o
campo por inteiro é rejeitada como opressora” (p.47). Ao fragmentar os diferentes grupos sociais em
microidentidades, automaticamente o multiculturalismo atribui significação ao Outro (negro,
homossexual, mulher etc), particularizando determinados problemas que na verdade provém da
organização social, e, por fim, os vinculam ao capital a partir de um ponto de referência comum a
todos: a satisfação de uma demanda imediata Ŕ “o único vínculo que une a todos esses grupos é o vínculo
do capital, sempre disposto a satisfazer as demandas específicas de cada grupo ou subgrupo (cota para negros,
turismo gay, música latina etc)” (ŽIŽEK, 2007, p.48).

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Entretanto, esta ambiguidade da fantasia revela o seu último véu que trataremos aqui: sua
transgressão inerente. “Para poder funcionar, a fantasia deve permanecer „implícita‟, deve manter certa
distância com respeito à textura explícita simbólica que detém, e deve funcionar como sua transgressão
inerente” (ŽIŽEK, 2009, p.26). Neste momento, encontramos de forma mais decisiva os limites da
ideologia. Pois, por mais amarrada que seja uma narrativa fantasmática, ela nunca evitará a
transgressão inerente à sua estrutura. Por isso que a principal forma de desideologização é proceder
um curto circuito entre o Real da fantasia que deve permanecer Ŗimplícitoŗ e a textura explícita
simbólica que a sustenta. Nesse sentido, por exemplo, toda a obra de Marx, de diferentes formas e
graus, tenta produzir esse curto-circuito.
Analisemos um caso específico. Num artigo sobre a censura de imprensa, Marx escreve:
ŖMinha propriedade é a forma. Ela constitui minha individualidade espiritual. Le style, c‟est l‟homme.
E de que maneira!ŗ(MARX E ENGELS, 1971, p.71). “Minha propriedade é a forma”: essa frase
carrega uma impressionante força subversiva. Num primeiro momento, ela apresenta a textura
explícita simbólica do fetichismo ao identificar a propriedade como propriedade privada (“Minha
propriedade”). Num segundo momento, é revelado o Real recalcado da fantasia Ŗimplícitoŗ na
narrativa ao definir que a propriedade nada mais é do que uma forma, uma pura articulação
significante, e que nada tem de natural ou mitológica. E, por fim, a reconstrução da fantasia já
transformada, já revolucionada. Na frase em toda a sua extensão (“Minha propriedadeé a forma”), a
propriedade aí já não é a propriedade privada porque ela é apenas uma forma, totalmente
desfetichizada; ao mesmo tempo que a forma não é mais a forma-mercadoria presente no
fetichismo, mas uma construção em que a própria subjetividade do sujeito está implicada. “Minha
propriedade é a forma” indica algo de absolutamente singular. Um estilo Ŕ e isso é o homem4! Para
situarmos este curto circuito a partir do discurso tolerante liberal, vamos nos remeter a um
acontecimento importante ocorrido na recente Primavera Árabe.
No dia 17 de dezembro do ano passado, o desempregado Mohamed Bouazizi, de 26 anos,
foi abordado por policiais enquanto vendia verduras nas ruas de Sidi Bouzid, cidade da Tunísia.

4
Posição homóloga encontramos na famosa história de György Lukács quando foi preso na rebelião húngara de 1956.
Quando indagado por um policial se estaria armado, Lukács levou a mão ao bolso e lhe entregou sua caneta. Aqui
também os três momentos estão presentes: a arma, a caneta e a caneta-arma.
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Além de sua mercadoria ter sido apreendida por não ter licença para trabalhar, ele ainda foi
impedido de prestar queixa. Desesperado, o jovem, em frente ao prédio do governo, ateou fogo no
próprio corpo e morreu dias depois no hospital. Esse ato desencadeou uma série de protestos,
muito deles violentos, em toda a Tunísia, e em seguida no Egito, mas também em todo o mundo
árabe, contra o desemprego e pelas liberdades políticas, que desembocaram na queda dos
presidentes Zine Al-Abidine Ben Ali e Hosni Mubarak.
Neste momento, o discurso ideológico da tolerância entre em colapso. Pois não se trata
dessa Outro estranho simplesmente aceitar as condições dadas pelo capitalismo global, tão pouco
se um ataque terrorista a alvos ocidentais. Na verdade, o ato de Bouazizi promove um um curto
circuito entre essas duas perspectivas, estuporando o tecido que sustenta o discurso, pois ele
demonstra sua indignação com o capitalismo global não a partir de um ataque terrorista (que é o
Ŗesperadoŗ como reação pelo Ocidente liberal), mas a si mesmo, desfazendo o laço subserviente
com o discurso tolerante. Ao contrário da interatividade característica dos movimentos ativista de
hoje (movimento ecológico, de etnia etc), que diz fazer um crítica ao sistema, mas apenas o
retroalimenta; o ato de Bouazizi é interpassivo, aparentemente, ao atear fogo a si mesmo, não
atacou diretamente o sistema, mas quebro o alicerce fantasmático em que repousa tal discurso ao
atacar o corpo que sustenta o próprio sistema, isto é, ele próprio. Como afirma Žižek (2007), “a
interpassividade se produz quando o sujeito está permanentemente ativo (...) esforçando-se por superar o
trauma que supõe „isso que espera de mim o Outro‟” (p.122). Por isso que para superar esse Grande
Outro que articula o discurso capitalista (a Ŗmãoŗ do mercado e seus recursos paranoicos), é
necessário um ato violentamente potente: o autoflagelo. Diante dos desdobramentos dos fatos e o
desenvolvimento da Primavera Árabe, uma pergunta fica: como que um ato individual conseguiu
desencadear manifestações de proporções tão gigantescas?
Em Às portas da revolução, Žižek desdobra o que considera o núcleo subversivo do filme O
clube da luta, de 1999 e dirigido por David Fischer. Trata-se de uma determinada cena em que o
personagem principal (interpretado magistralmente por Edward Norton) se joga de um lado para o
outro no escritório do patrão, espacando-se até sair sangue, até ficar bastante ferido, antes que os
seguranças cheguem. Na frente de seu perplexo patrão, o personagem inflige a si mesmo a

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agressividade do próprio patrão em relação a ele. Esse ato do personagem revela o núcleo
traumático de sua relação de subserviência. Como bem observou Žižek (2005),
Paradoxalmente, tal encenação é o primeiro ato de libertação: por meio dela, o vínculo libidinal
masoquista do serviçal e seu patrão é posto em evidência, e o serviçal com isso adquire uma
distância mínima em relação a ele. Mesmo no nível puramente formal, o fato de se flagelar revela
o simples fato de que o patrão é supérfluo: ŖQuem precisa de você para me aterrorizar? Eu posso
fazê-lo sozinho!ŗ. Portanto, é apenas quando se espanca a si própria (bate-se) que uma pessoa se
liberta: o objetivo verdadeiro desse espancamento é arrancar de mim aquilo que me liga a meu
senhor. Quando, perto do final, Norton atira em si mesmo (sobrevive ao tiro, e na verdade mata
apenas Ŗo Tyler neleŗ, seu duplo), ele também se liberta da dupla relação de espelho do
espancamento: nessa culminação de auto-regulação, sua lógica se cancela; Norton não vai mais
precisar se espancar Ŕ de agora em diante ele poderá bater no verdadeiro inimigo (o sistema).
(p.271)

As semelhanças entre os atos de Mohamed Bouazizi e do personagem do filme são


impressionantemente próximas, mas com uma pequena e substantiva diferença: o tunisiano esteve
entre nós. O ato de Bouazizi desencadeou inúmeros protestos não por causa de um sentimento
humanitário e solidário, mas porque ele revelou a possibilidade de destruição do edifício fantástico
do capitalismo.
Numa série de perguntas feitas por suas filhas Jenny e Laura, Marx responde a uma delas de
forma precisa (e preciosa):
– Qual sua idéia de vida?
– Vida é luta.

O ato de Mohamed Bouazizi não pode ser compreendido como um mero suicídio. Ele
gerou tanta manifestação porque trouxe à tona a força da existência humana. Invertendo a frase de
Marx, Mohamed Bouazizi demonstrou que a luta é anterior à vida, ela a define Ŕ nem que para isso
a própria vida tenha que ser posta em perigo.

Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

LACAN, Jacques. O Seminário, 14: a lógica do fantasma. Recife: Centro de Estudos Freudianos
do Recife, 2006.

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CAMINHOS E MEMÓRIAS: O „ESPÍRITO DO DOM‟ E A CONSTRUÇÃO DE


CARREIRAS POLÍTICAS
Cínthia Annie de Paula Ferreira

Resumo
Este artigo procura analisar o processo de construção de carreiras políticas a partir da aquisição de
competências e habilidades necessárias à prática política. Para tanto, optamos pelo mapeamento de
uma trajetória política, porque seu estudo abre caminho para a reflexão sobre o papel dos laços
sociais no universo político contemporâneo. Vale lembrar que o campo político ao qual esta
discussão se refere não se trata de um campo homogêneo, monolítico e unidirecional, mas de uma
esfera da vida social em que inúmeros trajetos estão entrecruzados. Com efeito, será apreendida
uma trajetória que possui, em alguma medida, como fio condutor o deslizamento entre diferentes
superfícies sociais.
Palavras-chave:Pentecostalismo; construção de carreiras políticas e religiosas; mobilização de
capitais;

Trajetória política e “aquisição de competências e habilidades necessárias à prática política”1

Este artigo resulta de um trabalho de pesquisa em que objetiva-se, por um lado, investigar as
formas de aquisição, através da circulação de bens simbólicos e materiais, de competências
necessárias à carreira política de evangélicos e, por outro, examinar a circulação desses capitais por

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal Rural do rio de Janeiro,
bolsista pela CAPES;
1
A idéia de analisar a forma como certas competências e habilidades podem ser adquiridas através de um processo
pedagógico de transmissão já vem sendo trabalhada vastamente no campo da antropologia social, dos quais podemos
citar os trabalhos de Letícia Canêdo, Heranças e aprendizagens na transmissão da ordem política brasileira, 2004; A
produção genealógica e os modos de produção de um capital político familiar em Minas Gerais, 2003; Herança na
política ou como adquirir disposições e competências necessárias às funções de representação política, 2002; e Karina
Kuschnir, O cotidiano da política, 2000.
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meio das redes de relações sociais estabelecidas nos universos religioso e político no qual estes
atores sociais estão inseridos. Para isso, nesta discussão será analisada a forma como algumas das
obrigações morais de trocas de bens materiais ou simbólicos podem marcar a economia e a moral
de formas locais de práticas políticas.
Observamos que as obrigações morais do Ŗdar, receber e retribuirŗ, isto é, a economia da
dádiva analisada por Marcel Mauss2 suporta teoricamente o que, à priori, pensamos sobre a idéia de
Ŗespírito do domŗ que intitula esta análise. Como mostra Mauss a partir dessas obrigações morais
são construídas as redes de relações sociais que ligam os indivíduos de uma sociedade. Ou seja, a
Ŗtrocaŗ de Ŗdonsŗ é uma manifestação simbólica que representa todo um conjunto de relações
sociais e expressa a essência moral de uma sociedade. As Ŗtrocasŗ e Ŗos dons trocadosŗ investigados
neste trabalho certamente possuem significados mais específicos do que os gerais apontados por
Mauss. Todavia, suas reflexões possibilitam uma comparação enriquecedora sobre a forma como o
Ŗespírito do domŗ pode ser ordenador de uma dada estrutura social.
Mauss, ao analisar o Ŗcaráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e, no
entanto, obrigatório e interessadoŗ do que chamou de Ŗprestações totaisŗ Ŕ fenômeno que acontece
entre as diversas secções e subgrupos de que se constituem Ŗsociedades arcaicasŗ, no qual se
expressam ao mesmo tempo as mais variadas instituições religiosas, jurídicas, morais e econômicas
Ŕ procurou indicar os sintomas que deram a este fenômeno o aspecto de troca. A matriz que
orienta essas trocas, segundo Mauss, são três obrigações gerais: dar, receber e retribuir.
Na visão de Mauss dar, define uma relação, uma aliança, assim como a obrigação de
receber também determina essa condição. Nas duas obrigações estão em jogo os princípios de
reconhecimento, generosidade, honra, crédito, prestígio todos interpretados dentro da
circularidade que as três obrigações constituem. Retribuir, por conseguinte, é onde se expressa a
necessidade de devolver a coisa recebida, posto que através desta, o doador tem poder sobre o
beneficiário. Afinal, aceitar Ŗalguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma;
a conservação dessa coisa seria perigosa e mortalŗ3.

2
Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva, 2003.
3
Mauss, op.cit, p.200.
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Tais considerações de Mauss servem como suporte para pensarmos os significados que
determinados capitais simbólicos e materiais podem ter na circulação de bens que formam alianças
entre redes sociais a partir das quais indivíduos traçam suas trajetórias. Sendo assim, é possível
tentar entender como as obrigações morais das trocas de bens podem marcar a economia e a moral
de formas locais de práticas políticas. No caso do município estudado, pensamos que as relações
podem não ser impessoais e, extraordinariamente, burocráticas. Observando a construção da
carreira política de Emanuel4 estas idéias tornam-se claramente pertinentes por mais que seu
estudo seja ainda embrionário.
Com efeito, a forma como este ator social construiu a sua carreira se revelou interessante,
porque nela percebe-se uma circulação de bens simbólicos constituidores das lógicas locais de
ordenação social: respeito, confiança, compromisso, reputação. Em suma, Emanuel construiu laços
sociais que perpassam vários domínios que, com maior e menor intensidade, foram analisados
pelos pesquisadores que produziram e organizaram o arquivo.
Emanuel iniciou sua inserção no universo político a partir da transmissão da Ŗherança
imaterialŗ5 do status de sua mãe, Dona Nilza6, naquele município. Segundo Emanuel, em uma
entrevista realizada pelos pesquisadores em 2003, sua mãe exercera a profissão de enfermeira,
vinculada a Secretaria do município de Itaguaí: Ŗela dava injeção nas pessoas lá na Fazenda Caxiasŗ
(bairro do município de Seropédica). Por conta disso, Dona Nilza conhecera Arlindo Novaes
(PDT), um dos candidatos a prefeito do município de Itaguaí, que a convidou para Ŗajudá-loŗ na
sua campanha política. Apesar de não ter sido eleito, Arlindo Novaes novamente a convidou para
Ŗajudá-loŗ na sua segunda candidatura e sugeriu que ela concorresse ao cargo de vereadora 7.
Segundo Emanuel, Dona Nilza não aceitou o convide e indicou seu filho como herdeiro de seu
4
Este ator social será identificado por Emanuel, porque procuramos resguardar seu nome para proteger sua identidade,
já que a sua atuação como Ŗinterlocutorŗ e, muitas vezes como Ŗmediadorŗ, poderia, de certa forma, subjugá-lo a
algumas formas de coerção social. No entanto, os sujeitos sociais que exercem papéis ligados ao universo da Ŗgrande
políticaŗ (Bailey, 1971), e por isso, suas imagens já são consideradas públicas, terão seus nomes identificados. Estes
indivíduos, portanto, possuem outro tipo de atuação, porque fazem parte de um circulo de sociabilidade política que
não se restringe ao município.
5
Giovanni Levi, A herança imaterial, 2000.
6
Esta senhora será identificada pelo nome fictício: Dona Nilza.
7
Vale fazer uma pequena referência ao fato de que no período em que Dona Nilza foi convidada por Arlindo Novaes
(então candidato a prefeito do município de Itaguaí pelo PDT) para se candidatar como vereadora as normas do
universo religioso de que ela fazia parte não proporcionavam naquele momento a abertura para a candidatura de um
membro do sexo feminino.
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capital político8. Neste momento da entrevista, Emanuel aponta para o fato de que sua mãe tinha
adquirido certo capital político porque circulava por vários universos: da igreja à Secretaria de
Saúde do município. Dona Nilza foi, de certa forma, uma espécie de Ŗcabo-eleitoralŗ informal de
Arlindo Novaes, pois ela Ŗconhecia muita genteŗ. Emanuel, mesmo achando-se Ŗmuito novoŗ,
preferiu filiar-se ao mesmo partido a que pertencia Arlindo Novaes, o PDT9:

ŖEu fui procurando saber como é que era, estatuto, procurando saber tudo sobre o partido
pra saber onde eu estava entrando. E gostei de fazer isso. E comecei a organizar um
nucleozinho em Seropédica e aí comecei a entrar na políticaŗ (Entrevista realizada em
2003).

É possível, então, a partir da descrição etnográfica sobre a inserção de Emanuel no universo


político, aproximar este estudo daquele realizado por Kuschnir10, no qual a autora busca apreender
como a Ŗexperiência política se desenvolve no dia-a-dia e não apenas no período eleitoralŗ11. A autora
analisa a trajetória de uma família ligada ao universo político focalizando principalmente a carreira
política de um de seus membros, o qual, a partir da estruturação de várias redes sociais, construiu
sua carreira. Esta construção se tornou possível através da transmissão de capital por parte de
alguém que já estava inserido no universo político. De fato, o marco para a entrada da candidata
no universo da política se estabelece através de uma negociação entre o prefeito da cidade e seu pai
(que era então deputado estadual). Nessa negociação ficou acordada a candidatura da filha ao
cargo de vereadora. Vale ressaltar que mesmo não tendo participado desta negociação, ela aceitou
de imediato a indicação do pai.
A inserção deste ator social, estudado por Kuschnir (2000), no universo da política, tal
como a de Emanuel, resulta de certa lógica na qual o capital simbólico necessário para a

8
Apesar de Emanuel ser o último dos sete filhos de Dona Nilza, ele não faz nenhuma menção a posição ou
participação dos seus irmãos nessa transmissão de capital.
9
Há que se ressaltar que o Partido Democrático Brasileiro (PDT), segundo os dados recolhidos no website oficial do
Partido, Ŗsurgiu em junho de 1979, em Lisboa, fruto do Encontro dos Trabalhistas no Brasil com os Trabalhistas no Exílio,
liderados por Leonel Brizola. Seu objetivo era reavivar o PTB, Partido Trabalhista Brasileiro, criado por Getúlio Vargas e
presidido por João Goulart, e proscrito pelo Golpe de 1964 [...] Em 1989, o PDT era escolhido como o único membro da
Internacional Socialista no Brasil e seu líder, Leonel Brizola, eleito um dos vice-presidentes daquele organismo, com sede em
Londres, que reúne os principais movimentos populares do mundoŗ. Contudo, uma ação jurídica teria conferido a sigla
(PDT) a um grupo de aventureiros e adesistas, que se aliou às elites dominantes, reorientando os interesses iniciais
dos fundadores do partido.
10
Kuschnir, op.cit.
11
Ibidem, p. 8.
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consolidação de uma candidatura foi transmitido genealogicamente 12. Ora, na descrição feita fica
explicito que a inserção no universo político institucional não é um processo simples, e que sua
complexidade reside na necessidade de aquisição de um conjunto de Ŗcompetênciasŗ 13 que
permitem e tornam viável a entrada de um determinado ator social neste universo 14.
Uma dessas competências adquirira por Emanuel junto a sua mãe foi fruto do modo como
ele aprendeu, com ela, os primeiros conhecimentos sobre como circular pelo campo político.
Antes de candidatar-se, no ano de 1996, a vereança de Seropédica, já então emancipada de Itaguaí,
Emanuel, além de filiar-se ao PDT (como já foi dito), engajou-se no mundo da política
desempenhando o papel de secretário na ŖComissãoŗ pró-emancipação de Seropédica, formada em
198315. O presidente de tal ŖComissãoŗ era Zealdo Amaral, que naquele momento era vereador de
Itaguaí, pelo Partido, que viria desempenhar um papel de destaque no processo de emancipação
do município.
O fato de Emanuel ter Ŗlutado pela emancipaçãoŗ contribuiu para que ele se sentisse apto a
candidatar a vereança por Seropédica. Na entrevista concedida aos pesquisadores, em 2003,
Emanuel lembra que no ano de 1996, Arlindo Novaes, então candidato a prefeito de Itaguaí, não
ficara ao seu Ŗlado na luta pela emancipaçãoŗ. Esse fato aproximou Emanuel de Zealdo Amaral, pois,
afinal, mesmo não sendo do mesmo partido, os dois tinham uma Ŗluta em comumŗ. Emanuel chega
mesmo a afirmar que naquela época Zealdo Amaral não participava de nenhum partido: Ŗele lutava
pela emancipaçãoŗ.
Emanuel não foi eleito na primeira candidatura à vereança de Seropédica, mas teve um
número considerável de votos para alguém que, como ele próprio disse Ŗestava se candidatando pela

12
Para ampliar as noções sobre Ŗos modos de transmissão de um capital político familiarŗ, vale conferir o trabalho de
Canêdo (2003) no qual a historiadora faz uma extensa análise, através de fontes como genealogias, de uma rede de
grupos familiares que desde o século XIX construíram uma trajetória familiar na vida política de Minas Gerais. O
traçado regular, cronológico e cumulativo da trajetória dessa rede familiar garantiu a (da mesma forma que também
foi garantido pela) continuidade e a coesão desta Ŗfamíliaŗ no mundo político mineiro e, também, nacional, já que
dessa rede de parentela saíram 6 presidentes da República.
13
Canêdo, 2002 e 2004.
14
O espaço desta discussão tornou-se curto para aprofundarmos a nossa análise sobre o significado da interpretação das
práticas políticas que em determinadas esferas geralmente são entendidas como práticas profissionais Cf. Canedo,
op.cit.
15
De acordo com o Jornal de Seropédica o processo de emancipação foi iniciado em 1983, através da criação do
ŖComissão de Emancipação de Seropédicaŗ. Cf. Jornal de Seropédica Ano VI, Edição nº 127. Data: 1 a 15 de setembro
de 2004, pp.3.
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primeira vezŗ: [...] Ŗcom aqueles 221 votos e eu me destaquei, e na época esse número de votos, pra quem não
tinha recursos, não tinha dinheiro, era grandeŗ.
Percebe-se que a Ŗlutaŗ pela emancipação de Seropédica tinha exercido um papel crucial
para a ampliação da rede de relações sociais construídas por Emanuel. Afinal, suas atividades em
prol da emancipação parecem ter Ŗmobilizadoŗ recursos de natureza simbólica, através de sua
conexão com a igreja pentecostal a que ele e sua mãe pertenciam, que abriram espaço para a
propaganda a favor da emancipação. Em suas palavras: Ŗnessa época eu já estava na igreja, aí
ajudamos, pegando os membros da igreja conversando com eles, fazendo reuniões para poder conseguir a
emancipaçãoŗ.
Assim, Emanuel amplia seu universo de relações como político, ou seja, como membro da
igreja ele passa a ser (re)conhecido16 como alguém que está voltado para algumas das questões
sociais do município. Dessa forma, depois da autonomia de Seropédica (1996), Emanuel
candidatou-se a vereador por quatro vezes consecutivas. Em cada pleito 17 ele obteve um número
crescente de votos, por duas vezes ele chegou a ocupar a posição de vereador suplente 18. Todavia,
durante a eleição de 2008 sua reputação e (re)conhecimento parecem ter ficado comprometidos, o
que será trabalhado mais a frente.
Vale destacar que esse processo, experimentado por Emanuel, visando à aquisição de
competências necessárias para a construção de sua carreira política19 aponta para a necessidade de
um estudo mais aprofundado sobre as estratégias através das quais são organizadas localmente as
regras do jogo político20. Ora, o voto não é o único fator que determina se um candidato deve ou
não ser eleito. E, nesse sentido, pode-se considerar que Emanuel fez parte de uma coligação (PSC-
PMDB-PP-PMN-PAN)21 cujos partidos distribuíram seus capitais22 para outros candidatos, o que
não garantiu a sua eleição.

16
Gabriela Scotto, Campanhas de rua candidatos e biografias, 1996.
17
Otávio Bezerra, Em nome das bases, 1999.
18
Na primeira vez em que Emanuel se candidatou (1996/PMN) recebeu 221 votos, já na segunda eleição (2000/PDT)
esse número subiu para 315, por isso tornou-se suplente. Na terceira recebeu (2004/PSC) 482 votos e também foi
suplente, e na quarta (2008/PRP) 333 votos.
19
Canêdo, op.cit.
20
Mafalda Cunha, A casa de Bragança, 2000.
21
Essas siglas significam, respectivamente, Partido Social Cristão, Partido do Movimento Democrático Brasileiro,
Partido Progressista, Partido da Mobilização Nacional, Partido dos Aposentados da Nação.
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Observa-se, portanto, que a conquista de um cargo Ŗadministrativoŗ depende também da


força dos arranjos políticos estabelecidos pelos partidos, de um lado, e das relações de parentela, de
outro. Para discutir esta questão vale retomar a abordagem de Bezerra23 quanto à autonomia das
regras do campo político face às demais esferas sociais. Para Bezerra, as regras do campo político
não se dissolveriam quando em contado com as normas construídas nas relações sociais presentes
em instâncias como a da família, a da religião, etc. Na verdade, para este autor, haveria entre esses
campos uma espécie de justaposição de suas lógicas internas. O autor, então, propõe uma
relativização da eficácia dos vínculos produzidos através das alianças de parentesco, pois, afinal,
existem possibilidades de dissensões dentro de um grupo de parentela. Bezerra24 propõe que a
associação entre parentesco e alianças políticas deva ser apreendida através de uma análise
pormenorizada dos contextos em que as disputas ocorrem.
Destarte, torna-se possível delinear a noção de que as regras do universo político estão, de
certa forma, sobrepostas às regras que orientam outras instâncias sociais e não são, portanto,
prescritivas e completamente previsíveis. Essa perspectiva orienta a análise para a percepção de que
a carreira política de Emanuel não se construiu, unicamente, a partir de processos que
Comerford25 chamou de Ŗfamiliarizaçõesŗ e Ŗdesfamiliarizaçõesŗ26, afinal a ação individual
depende também das regras sociais do mundo social, que, com já foi dito, não são suficientemente
prescritivas ao ponto de eliminar todas as ambivalências das escolhas, negociações, interesses,etc.
Ora, esses apontamentos servem para indicar também que o universo da política não está
dado, mas precisa Ŗser investigado e definido a partir das formulações e dos comportamentos de atores sociais
e de contextos particularesŗ27. A articulação da trajetória de Emanuel com as algumas das demais

22
Os capitais necessários para que um candidato seja eleito não estão ligados somente ao número de votos. Existem
normas intrínsecas ao mundo da política que por ficarem submersas neste universo são, muitas vezes, naturalizadas.
Há que se lembrar que isto pode ser resultado daquilo que Bourdieu (2001) chamou de Ŗamnésia da gênese”, na qual a
Ŗilusão do naturalŗ cria raízes que muitas vezes cristalizam o conhecimento científico.
23
Bezerra, op.cit.
24
Idem.
25
John Comerford, Como uma família, 2003.
26
Para Comerford os grupos familiares não são unidades estabelecidas e finalizadas, mas Ŗunidades compostas, componíveis
e decomponíveis, círculos vivos e multi-localizados, em expansão, segmentação, contração, agregação e desagregação” Cf.
Comerford, ibidem, p. 328) esses processos são chamados pelo antropólogo de Ŗfamiliarizaçãoŗ e Ŗdesfamiliarizaçãoŗ.
27
Kuschnir, Antropologia e política, 2007, p.163.
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trajetórias de políticos locais nos mostra que estamos diante de uma estrutura social heterogênea
Ŗformada por redes sociais que sustentam e possibilitam múltiplas percepções da realidadeŗ28.

Rede de relações e aquisição de “dons”


Analisaremos agora uma das entrevistas realizadas pelos pesquisadores na qual se pode
observar o que Emanuel considera sobre representação política, cujas categorias Ŗajudaŗ e
Ŗcompromissoŗ seriam a base para a construção de suas redes sociais. Nessas relações observa-se
que os bens materiais e simbólicos ao serem Ŗtrocadosŗ definem posições hierárquicas. O voto,
neste sentido, teria um caráter ambíguo, por não se reduzir a meras Ŗtrocasŗ de caráter
Ŗeconômicoŗ. Como veremos no próximo item, a lógica que garante e legitima a Ŗtrocaŗ do voto
pela Ŗajudaŗ é, na verdade, um processo complexo de estabelecimento de Ŗcompromissosŗ e de
construção de reputações. Vale, portanto, iniciar a descrição densa das interpretações nativas sobre o
significado dos bens trocados.
Na entrevista realizada, em 2003, Emanuel faz alusão a uma das formas pelas quais se torna
possível estabelecimento de um vínculo entre um candidato e os eleitores no Ŗtempo da políticaŗ29.
Escolhi uma passagem que nos orienta quanto isso:
Pesquisadora – O que as pessoas estão esperando do senhor concretamente? O senhor que
trabalha na igreja, com pessoas velhinhas e tudo mais, quer dizer, quando o senhor se
candidata „o que as pessoas estão querendo‟ do senhor?

EMANUEL - Isso é importante. Olha só, geralmente, do jeito que o povo está hoje,
passando por uma situação de necessidade, o que eles mais me cobram quando eu vou
falar sobre a minha candidatura, eles falam assim:
“Olha eu vou te ajudar”.
Por que como meu público é um público carente, então, quando alguém fala que vai me
ajudar, eu sei que é pedindo voto para mim no dia da eleição. Me ajudando distribuindo
os papeizinhos. Eu sei que eu não vou ter nenhum retorno, nada financeiro dessa pessoa.
Então, eles falam:
“Vou te ajudar”.
Ou vai me ajudar por voto ou vai me ajudar assim dessa forma [distribuindo os
panfletos de propaganda].
Então, aí eles falam assim:
“Só que eu quero uma coisa tua”.
Aí eles começam a falar:
28
Ibidem, p.163.
29
Palmeira e Heredia, Política ambígua, 1997.
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“Tenta mudar aquela situação que está ali dentro. Que você seja um cara
honesto e não trabalhe individualmente. Dar uma sexta básica para um. E o
restante da comunidade? O que vai ser daquela comunidade, você protege
aquele ali e os outros ficam sem nada?”
Então, eles falam muito isso comigo, porque eu acho que quando a gente faz um trabalho,
ainda mais político, tem que ser um trabalho político coletivo, a gente tem que atender a
coletividade cada vez mais. Se esses políticos atendessem a coletividade seria muito
importante. Eles me pedem muito isso. Mas tem muitos que me pedem emprego:
“Eu quero que você me arrume pelo menos uma vaguinha lá. Não precisa ganhar
muito não, mas um salariozinho já vai dar para eu atender minha família”.
Com outros, por exemplo, faço também um trabalho de assistência técnica, porque eu sou
técnico agrícola, e dou assistência técnica nas propriedades rurais aqui no Mutirão Sol da
Manhã. (Entrevista realizada em 2003).

A leitura desta passagem nos informa sobre as maneiras diferenciadas que se estabelece a
Ŗtrocaŗ do voto do eleitor pela Ŗajudaŗ do candidato. Da mesma forma, além do voto o eleitor
pode também oferecer Ŗajudaŗ em troca de Ŗajudaŗ. Neste sentido, percebe-se que o uso desta
categoria (Ŗajudaŗ) reflete a peculiaridade do sistema de trocas em jogo que, como já foi dito, não
pode ser apreendido, unicamente, através de uma lógica Ŗeconômicaŗ.
Para Emanuel quando as pessoas Ŗmais carentesŗ diziam que iriam ajudá-lo era porque elas
votariam nele ou, então, seriam Ŗcabos-eleitoraisŗ (formais ou informais) de sua campanha. Neste
sentido, nota-se que o que é pedido em Ŗtrocaŗ é justamente a Ŗajudaŗ que se expressa de modos
diversos, como, por exemplo, na expectativa de uma atuação Ŗhonestaŗ por parte do candidato.
Isto se caracteriza como uma espécie de acordo entre o candidato e a sua rede de possíveis
eleitores. Além do mais, a demanda por oportunidade de trabalho feita pessoalmente ao candidato
aponta para questões como o Ŗempenho da palavraŗ, o Ŗcompromissoŗ e a garantia de uma
reputação positiva caso o candidato cumpra a sua promessa. Inicialmente, o que se troca é o
compromisso do voto pela Ŗpalavra empenhadaŗ, o que coloca, tanto candidato como eleitor, em
dívida potencial.
Vale, portanto, analisar as atribuições deste compromisso estabelecido entre candidato e
eleitor. A partir dessa perspectiva, acreditamos que a Ŗtrocaŗ, que sustenta o compromisso entre
eleitor e candidato, possa ser compreendida dentro da lógica da Ŗobrigação de dar, receber e
retribuirŗ30.

30
Mauss, op.cit.
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Com efeito, a Ŗtrocaŗ é, de fato, imprevisível, porque tanto eleitor quanto candidato
podem não cumprir suas promessas. No entanto, a Ŗdoaçãoŗ do voto do eleitor e o empenho da
palavra do candidato podem ser entendidos como expressões das trocas que regem a interação
entre os indivíduos, cujos elementos essenciais são atestados através da Ŗhonraŗ e do Ŗprestígioŗ,
por um lado, e da obrigação de retribuir as dádivas recebidas, por outro. Associamos a lógica da
troca de bens, porque o bem trocado, material ou simbólico, confere ao receptor uma autoridade
que poderá se perder se este não retribuir a dádiva. Por isso, a interação social entre os indivíduos,
não se estrutura apenas por uma lógica de reciprocidade, mas o que está em jogo no compromisso
selado, são as estratégias, a força do habitus31, a incoerências dos sistemas de normas e o continuum,
onde as formas de comportamento variam.

Conclusão
Dentro dessa economia moral e política, a dívida potencial, a que nos referimos, pode ser
mantida, tanto pelo candidato que pode não cumprir as suas promessas, como também, pelo
eleitor, que pode não votar, de fato, no candidato. Desta forma, a Ŗtrocaŗ faz parte de um sistema
de Ŗprestaçãoŗ e Ŗcontraprestaçãoŗ32, cuja lógica não pode ser observada apenas pela dimensão
econômica, mas sim como resultado de um contexto social de negociação no qual alguns bens
materiais ou imateriais podem ser mais Ŗúteisŗ do que outros. Nesse sentido, a Ŗtrocaŗ faz parte de
um sistema que não está dado, mas que se torna imprevisível por ser ordenado por complexos
processos de associações e dissociações.
Além do pacto estabelecido entre candidato e eleitor, a reconstrução da trajetória de
Emanuel tornou possível a percepção de que entre os políticos há também processos de clivagens,
arranjos e rearranjos de associações partidárias e à outras formas de Ŗfamiliarizaçõesŗ e
Ŗdesfamiliarizaçõesŗ de suas alianças políticas. Esses constantes processos resultam da forma como
se estabelecem as relações face-a-face, os interesses partidários, as afinidades entre partidos, etc. Em
outras palavras, percebe-se a ambigüidade das regras que estão em jogo, não se trata apenas de um
ordenamento econômico, mas das próprias relações sociais que se formam.

31
Bourdieu, Ilusão biográfica, 2002.
32
Mauss, op. cit.
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Neste sentido, vale lembrar que Emanuel, mesmo tendo herdado de sua mãe algumas das
competências que lhe garantiram a circulação em variados universos, iniciou sua atuação como
político através da participação como secretário na ŖComissão de Emancipaçãoŗ, presidida por
Zealdo Amaral. Essa vinculação a Amaral lhe garantiu também a aquisição de alguns
conhecimentos necessários para o seu (re)conhecimento33 por parte dos eleitores e dos políticos da
localidade.

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33
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CORPOS DAS NEGRAS: ENCRUZILHADA ENTRE CULTURA E PODER NA


PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX
Claudia Regina Cabral Reis da Hora

RESUMO
Problematizando os discursos sobre os corpos de negras no Rio de Janeiro da primeira metade do
século XIX, objetivo compreender como a legitimação de um sistema de dominação escravista,
pode ser explicada através de outras relações, que não unicamente pelas de força.
Palavras chave: negras, corpos, poder, discursos.

INTRODUÇÃO
Fugio no dia 25 de fevereiro do p.p. pela manhã uma preta por nome Antonia,
nação Angola, idade 20 a 24 anos, baixa, bonita e bem feita; levou consigo um
filho pardinho de 4 meses. Protesta-se contra quem a tiver acoitada, assim como se
dará 30U000 de gratificação a quem levar a rua da Alampadeza n.70 1

Os anúncios de escravos constituem rico material sobre as relações cotidianas na sociedade


escravista, como se pode perceber no anúncio acima, publicado na sessão de escravos fugidos de
1838 do ŖDiário do Rio de Janeiroŗ, jornal, vale ressaltar, que tinha popularidade graças ao preço
acessível.2 Nele encontra-se o discurso de uma elite branca, letrada e detentora de bens e escravos,

Mestranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Email: claudiadahora@live.com


1
Diário do Rio de Janeiro, seção Escravos fugidos, 8 de março de 1838. p. 4.
2
Ver: FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 2ª ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional; Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979.
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que falava para um amplo público, interessado nas gratificações em troca de informações sobre os
Ŗnegros fujõesŗ.
Através desses textos se tem contato com as experiências e vivências de um grupo de
mulheres Ŕ grupo esse diverso, plural e múltiplo Ŕ que, apesar, do que foi por muito tempo aceito
como verdade generalizante possível, não aceitavam caladas e resignadas suas condições de cativas.
O anúncio evidencia que essas mulheres foram pessoas que amaram, insistiram, tentaram, se
revoltaram, não só resistindo e sobrevivendo, como também existindo e vivendo, mesmo em um
contexto hostil, como o da escravidão.
Em relação ao conteúdo desse anúncio, é possível perceber que as características Ŗbonita e
bem feitaŗ sugerem a importância e o valor atribuído ao corpo na apresentação da escrava, além da
definição e da atribuição de lugares sociais nesta sociedade para as mulheres negras. Foi possível
identificar sentidos atribuídos historicamente e formas de perceber Ŕ não só a escravidão, como os
escravo Ŕ, que sugerem a condição de submissão em que vivia, por exemplo, a escrava Antônia. No
entanto, não se pode ler estas expressões e sentidos datados como substantivos e/ou adjetivos
simples, pois se tratam de categorias que tem sua própria história. Pretendo de examinar como os
discursos sobre o corpo das mulheres negras presentes na imprensa inventaram e/ou reforçaram
sentidos, valores, possibilidades históricas de ver, perceber e se referir essas mulheres, sobretudo a
partir de suas diversas características físicas.
Meu objetivo é demonstrar que a legitimação da escravidão não pode ser explicada apenas
pelas relações de força que todos os sistemas de dominação comportam. Toda essa produção
discursiva funda visibilidades e dizibilidades Ŕ modos de ver e de dizer Ŕ que combinadas umas às
outras, em conexão e em rede, permitem vislumbrar uma enorme variedade de critérios para
apropriação do corpo dessas mulheres.

HISTÓRIA SOCIAL: O CORPO INSTRUMENTALIZADO


A partir da década de 80 houve na historiografia brasileira maior desenvolvimento de
pesquisas sobre a relação mulher e escravidão. Essa produção inserida em uma perspectiva chamada
de história social Ŗvista por baixoŗ ou Ŗdebaixo para cimaŗ preocupada em privilegiar temas e/ou

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sujeitos marginalizados.Dessa forma,procurou-se resgatar a Ŗmulher negraŗ3 como sujeito histórico


ativo, ao contrário de descrever como passivas e ressignadas, restituindo seu lugar na história,
localizando-as em atividades comerciais, em espaços urbanos, repensando mitos e estereótipos e
enfatizando a luta para emancipação.
O foco dos estudos estava em demonstrar que as escravas não viviam somente de
sofrimentos, açoites, tiranias e estupros, e evidentemente, não viviam apenas de relações amistosas.
De tal modo, as relações entre escravas e senhores são vistas entre trocas e conflitos. Os trabalhos
questionavam as dificuldades enfrentadas pelas negras e as tentativas, na medida de suas
capacidades, de suavizar suas experiências de vida.
Esses trabalhos buscavam reconhecer a legitimidade da interpretação que os escravos
formulavam do processo político, considerando como sua visão de mundo era formada através de
seu cotidiano concreto de suas vidas, de seus parâmetros culturais, e encontrando lastro na
realidade social que vivenciaram. Além disso, essa interpretação que os escravos fizeram da história,
num processo circular, influenciou e sofreu influencia das idéias dominantes.
O conceito de Ŗculturaŗ é utilizado como forma de apontar o conjunto de atividades,
representações sociais e códigos de comportamentos que formavam crenças, idéias e valores
socialmente reconhecidos por um setor, grupo ou classe social.4 Esses padrões de comportamentos
surgem das experiências econômicas, sócio-políticas, ideológicas, familiares e religiosas dos
indivíduos e dos grupos que os expressam por meio da linguagem.5

3
Ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984;
FIGUEREDO, Luciano R. A & MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. ŖQuitandas e quitutes; um estudo sobre
rebeldia e transgressão femininas numa sociedade colonialŗ, CADERNOS DE PESQUISA. [online]. 1985, n.54, pp.
50-61.; GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910). São
Paulo: Cia. das Letras, 1988; GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher e escrava; uma introdução ao estudo da mulher negra no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988; MOTT, Maria Lúcia de Barros. Submissão e resistência: a mulher na luta contra a
escravidão. São Paulo, Contexto, 1988
4
Esses trabalhos têm forte influencia da abordagem de Thompson que entende que o processo de hegemonia não
impede as pessoas de defenderem seus interesses, de buscarem saídas alternativas, de procurarem brechas nos códigos
sociais e de perceberem os limites impostos pela dominação. Ver: THOMPSON, E. P. Tradição, revolta e consciência de
classe. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
5
Ferreira, Jorge Luiz. ŖCultura Política dos trabalhadores no primeiro governo Vargasŗ. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro: vol. 3, n.6, 1990, p. 182
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Dentro dessa perspectiva, o objetivo, deste modo, era ir além das explicações materiais e
investigavam quais seriam os bens simbólicos que foram produzidos a fim de se obter a aceitação e
o consentimento, ou seja, pesquisavam as bases culturais que davam legitimidade a sociedade
escravista. Procuravam, assim, compreender o comportamento coletivo e a maneira como os
escravos recebiam e reagiam contra aos argumentos dos grupos que exerciam dominação.
Preocupavam-se em perceber como escravos organizaram em suas mentes a realidade social,
buscando conhecer idéias e vivências, pesquisando o cotidiano e as condições de vida.
A partir dessa abordagem surgiram investigações sobre os mecanismos e instrumentos
utilizados pelos escravos com o objetivo de alargar seu campo de ação e até conquistar a liberdade.
Consideravam como as condições imediatas de vida levam aos indivíduos a construírem
argumentos, estratégias próprias, seleções, barganhas em benefício próprio e para contornarem a
dominação. Em outras palavras: estudam as relações entre os escravos e os senhores, partindo da
premissa que os escravos, assim como as classes dominantes, também produziram idéias e
contraíam estratégia de luta dentro do sistema político, aproveitando as oportunidades que se
abriam dentro dos padrões políticos e culturais da época.
Houve uma pequena mudança de abordagem nos trabalhos sobre a relação mulher e
escravidão realizados na década de 1990 e começo de 2000 6. Os estudos desse momento partiam
da premissa que Ŗas mulheresŗ deveriam ser analisadas em suas multiplicidades, pois existiam
fatores que contribuíram para que existissem diferenças e necessidades distintas entre elas. Assim,
procura-se contemplar as experiências distintas, considerando categorias como cor, etnia, crenças
religiosas, condição social, etnia, dentre outras diferenças, enquanto forma de entender as
especificidades de ser mulher negra, africana, parda, crioula, liberta, entre outras classificações.
As escravas agiam dentro de um campo de possibilidades regido por códigos e condutas de
comportamento da sociedade escravista que diferenciava mulheres negras, mestiças e pobres e
brancas, casadas e ricas. No esforço de demonstrar a agência escrava, o aparente conformismo das

6
Ver: SOARES, Cecília Moreira. ŖAs ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIXŗ. Afro-Ásia.
Salvador: CEAO-UFBA, n. 17, 1996, p. 57-72. FARIA, Sheila de Castro. ŖMulheres forras Ŕ riqueza e estigma socialŗ.
Tempo. Niterói: v. 5, n. 9, 2000, p. 65-92. KARASCH, Mary. C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Säo
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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mulheres negras foi interpretado como parte de uma estratégia de vida, em que se reelaboram as
concepções dominantes em proveito próprio.
As relações entre senhores e escravas são entendidas como um jogo de poder e sedução, em
que o corpo da escrava seria um mecanismo de negociação. Essa perspectiva não visa apagara o
caráter de violência que essas relações vislumbravam, mas aponta que a proximidade e a intimidade
propiciada pelo convívio poderiam ser instrumentalizadas em benefícios próprios pelas negras.
Assim, o corpo das mulheres negras foi interpretado como uns dos instrumentos por elas utilizados
para manipular os papéis e atribuições engendrados pelo imaginário das camadas dominantes.
Portanto, as mulheres escravizadas seriam uma mercadoria preciosa, quando sabia agradar, no
entanto mais rapidamente desvalorizadas, pois custava menos substitui-las e envelheciam mais
rápido em comparação aos homens.7
No entanto, esta historiografia, apesar da grande contribuição, não problematizou o
fenômeno que descreveu e que pode ser chamado de Ŗdupla barreiraŗ em que se localizava a
mulher negra na sociedade patriarcal e escravista. De tal modo, as relações, as normas e os papéis
de gênero, muitas vezes sugerindo, direta ou indiretamente, que a diferença da experiência
histórica entre homens e mulheres seria Ŗnaturalŗ, ou seja, como uma condição intrínseca às
diferenças biológicas e à marginalização feminina vista como uma forma de discriminação e
opressão masculina. Além de que, os olhares, as referências e as diversas apropriações dos corpos
das mulheres de cor foram entendidos somente como mais uma conseqüência do sistema
escravista.

CORPO COMO ENCRUZILHADA ENTRE CULTURA E PODER


Esse mapeamento historiográfico permitiu perceber que a maior parte dos trabalhos sobre o
tema e o período são desenvolvidos a partir das referências e das questões da chamada História
Social ou da História Social da Cultura em que os corpos das negras é pensado como um objeto
natural, como um dado, uma realidade e seus usos a serem analisados, explorados, explicados e
definidos por meio do contexto histórico.

7
MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense. p. 185
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Minha pesquisa visa articular olhares e problematizações de outros campos, como da (Nova)
História Cultural e da Nova História Política. Pretendo examinar visões e sentidos que foram
imputados para as características físicas das negras e que foram formados, moldados, definidos, a
partir de condições de possibilidade, estratégias, relações de saber e de poder. As fontes serão
focalizadas e exploradas através de novas questões, visando não tomar os discursos como reflexos
do real, uma vez que a linguagem não é transparente e que nada é evidente em si mesmo, mas
analisando como foram construídos olhares a partir de modos de dizer e de ver, instituídos
historicamente.
Nessa perspectiva está a analise de Nádia Cristina Nogueira sobre a obra de Gilberto Freyre,
em que critica a utilização pelo autor dos discursos dos viajantes sobre os corpos das negras sem um
trabalho anterior de contextualização. Deste modo, Freyre preservou a idéia de que a sexualidade
compreendia todo o corpo das mulheres negras, o que acaba por legitimar o discurso dos
cronistas.8 Raquel Soihet, que problematiza a descrição dos corpos das mulheres feitas por viajantes
estrangeiro no século XIX, defende que a narração está impregnada de idéias iluministas, convicção
de sua superioridade cultural, além de exporem um processo civilizador de contenção das
manifestações corporais, que se desenvolvia em vários países do continente europeu. ŖOs referidos
viajantes constroem imagens, representações e visões sobre tais costumes, informadas pela sua
experiência cultural e pessoal, nas quais o etnocentrismo, a discriminação de classe, de gênero e de
raça constituíram-se uma marca.ŗ9 Isso produziu narrações em que expõem a estranheza diante da
liberdade com o corpo revelada, especialmente, por negras e mulatas.
Trilhando pelo mesmo sentido, o trabalho de Maria Izilda examina as representações
femininas e masculinas que emergem dos discursos médico-sanitaristas formulados no período de
1890 a 1930, que investiam na normatização do imaginário social com a construção de um perfil
ideal feminino que refletia o perfil masculino.
Assim, o discurso médico ordenou e classificou o real através de categorias que se
transformaram em universais e em exemplo de objetividade e racionalidade,

8
NOGUEIRA, Nadia Cristina. Sexualidade e socialização em Gilberto Freyre. Dissertação de mestrado UNICAMP:
Campinas, São Paulo. 2000.p. 47
9
SOIHET, Rachel. ŖA sensualidade em festa: representação do corpo feminino nas festas populares no Rio de Janeiro
na virada do século XIX para o XX.ŗ In: Org. MATOS, Maria Izilda e SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate.
São Paulo: Editora Unesp. 2000. p. 178
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impondo uma ordem dualista com rígidas classificações que desembocavam no


binônimo permitido/proibido, na desqualificação de uns e na supremacia de
outros.10

A autora defende que os discursos médicos que assumem o homem como indivíduo forte,
com inteligência e agressividade, enquanto a mulher se caracterizava por sua natureza passiva e
fecunda, legitimava o domínio do homem sobre a mulher.
Esses trabalhos demonstram que não é o corpo de forma naturalizada e evidente que devem
ser levado em consideração, e sim os discursos sobre o corpo. Em outras palavras, examinar
atribuições, sentidos, valores que esses referenciais históricos produziram sobre o corpo das
mulheres negras. O que pretendo demonstrar é que a legitimação da escravidão não pode ser
explicada apenas pelas relações de força que todos os sistemas de dominação comportam. É preciso
ir além, e questionar como a legitimação se dava nos níveis capilares.
Na obra de Michel Foucault encontrei uma abordagem que propõe analisar os discursos
como uma relação entre poder e saber. Nessa perspectiva, o saber Ŕ discursos que determinam
modos de ver e de dizer Ŕproduzem ou reforçam efeitos de verdade, que na medida em que são
assimilados, produzem ou reforçam efeitos de poder. ŖA Řverdadeř está circularmente ligada a
sistemas de poder, que a produzem e a apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a
reproduzem. ŘRegimeř de verdade.ŗ11 A investigação do saber, isto é, de todo o conhecimento seja
ele científico ou ideológico, não deve remeter a um sujeito, mas as relações de poder que lhe
constituem, pois o conhecimento, só pode existir a partir de condições políticas que são as
condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios de saber.
Neste nível não se trata de saber qual é o poder que age do exterior sobre o enunciado, mas
os efeitos de poder e as condições de possibilidade que circulavam nos próprios enunciados,
imagens ou referências.
Portando, o trabalho que proponho é examinar
Relação de poder, não relação de sentido. A história não tem Ŗsentidoŗ, o que não
quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder

10
MATOS, Maria Izilda. Deliniando corpos: as representações do feminino e do masculino no discurso médico (São
Paulo 1890-1930) In: Org. MATOS, Maria Izilda e SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora
Unesp. 2000. p.121
11
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1990. p. 14.
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ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas,
das estratégias, das táticas. 12

O objetivo dessa perspectiva é examinar como o poder se exercia concretamente e em


detalhe, com sua especialidade, suas técnicas e táticas, ou seja, como modela comportamentos,
hábitos e atitudes ou, no limite, da impõe a diferenciação dos indivíduos através da classificação,
do enquadramento, do controle e da sujeição.
Michel Foucault abaliza um novo entendimento sobre poderes, que não são
necessariamente criados pelo Estado, mas se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da
rede social. Essas suscitações levam a pensar o poder, não como algo que se detém como uma coisa,
como uma propriedade, que se possui ou não, mas sim como práticas ou relações, algo que se
exerce, que se efetua, que funciona.
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não
pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas,
induz prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede
produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem por função reprimir.13

Concomitantemente, a escolha de analisar peculiaridades físicas está consonante a


abordagem de Roy Porter sobre história do corpo, em que aponta o papel crucial do tema para
interpretação das mudanças sociais.
O corpo não pode ser tratado pelo historiador, simplesmente como biológico, mas
deve ser encarado como mediado por sistemas de sinais culturais. A distribuição da
função e da responsabilidade entre o corpo e a mente, o corpo e a alma, difere
extremamente segundo o século, a classe, as circunstancias e a cultura, e as sociedades
com freqüência possuem uma pluralidade de significados concorrentes.14

Pretendendo, desta forma, nos afastar das explicações nas quais o corpo é visto apenas
como um dado ou uma realidade biológica e tentar recuperar suas funções e sentidos forjados
culturalmente, em uma relação tempo-espaço. Com todas as referências até aqui citadas, a proposta
é analisar os significados que os diversos discursos atribuíram ao corpo das mulheres negras e suas
condições de possibilidade. Porter cita a contribuição de Foucault, o qual enfatizou que formas
12
Ibidem. p. 6.
13
Ibidem. p. 8.
14
PORTER, Roy. ŖHistória do corpoŗ. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP. 1992. p.308.
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distintas de estratégias incidiram sobre os corpos, policiando-os forma de assegurar uma melhor
ordem social. Não só reprimindo-os, como também os adestrando, como parte dos mecanismos de
governo das pessoas.15
Porter também apresenta o ramo chamado de ŖA Forma do Corpoŗ que norteia esta
pesquisa, pois se arrisca à interpretação dos significados de imagens e narrativas.
Na arte, na escrita criativa, na ciência e na medicina, mas não menos em
provérbios, frases feitas e metáforas, o corpo assume uma forma visual, ou
visualizada. Magro ou gordo, bonito ou feio; o espelho do universo, o modelo dos
animais, a quintessência do pó Ŕ cada quadro conta a sua história e incorpora um
sistema de valor.16

Nesse sentido, não se pode ler estas expressões como mulher, negra, africana, crioula ou
liberta como substantivos e/ou adjetivos simples, pois são categorias que tem sua própria história,
com significados e sentidos históricos e datados. A questão que me instiga é examinar quais seriam
os artifícios que constituíram essas expressões como categorias, indo ao encontro do proposto por
Margareth Rago, quando comenta da crítica feminista a produção de conhecimento:
Revelar o processo artificial de construção de unidades conceituais, temáticas supostamente
Ŗnaturaisŗ: a desconstrução das sínteses, das unidades e das identidades ditas naturais, ao
contrário da busca de totalização das multiplicidades. E, fundamentamente, postula a noção
de que o discurso não é reflexo de uma suposta base material das relações sociais de produção,
mas produtor e instituinte de Ŗreaisŗ.17

Em minha analise ambiciono desnaturalizar ou historicizar a categoria Ŗmulher negraŗ, o


entendendo como um conceito que não pode ser entendido instintivamente. Dessa forma, focar na
tramas do discurso, visando mostras como e por meio de quais táticas essas categorias se
construíram como Ŗnaturaisŗ.

15
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis : Vozes, 2009. apud PORTER, Roy. ŖHistória
do corpoŗ. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP. 1992. p. 310.
16
PORTER, Roy. ŖHistória do corpoŗ. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP. 1992. p. 312.
17
RAGO, Margareth. ŖEpistemologia Feminina, gênero e Históriaŗ. In: Orgs Pedro, Joana; Grossi, Miriam. Masculino,
Feminino, Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998. P. 5.
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De tal modo, a diferença sexual, expressa, por exemplo, no estabelecimento de códigos e


ordem moral próprios para as mulheres negras18, não seria apenas o reflexo apenas das relações
econômicas e sociais, mas seria também construída pelos diversos discursos que as fundamentam e
as legitimam. O sistema escravista por si só não estabelece a sexualidade da mulher escravizada, mas
sim um discurso histórico e datado, constituído de um olhar masculino sobre o corpo que define
visibilidades, dizibilidades que ganharam ou instituíram práticas sociais e culturais, compondo
sujeitos.

ALGUMAS NOTAS DA PESQUISA EM DESENVOLVIMENTO


Com essas perspectivas e abordagens, percebi que os discursos não são posteriores as
práticas econômicas e políticas, nem refletem o real exterior, mas também são práticas que
produzem e instituem o Ŗrealŗ. Assim, meu intuito é complexificar a própria abordagem
historiográfica sobre o tema e o período, indo além, ao analisar como as hierarquias de gênero
foram construídas, legitimadas, contestadas e mantidas pelos diversos discursos da época, por meio
da atribuição de valores às características físicas dessas mulheres.
Tânia Navarro Swain19 reflete sobre corpo das mulheres, afirmando que os olhares
masculinos presentes, por exemplo, na imprensa se constituem em mecanismos de apropriação e
construção dos corpos das mulheres e da diferença sexual dos indivíduos e fazem dela o ponto de
inflexão da desigualdade e do exercício de poder.
Podemos perceber algumas dessas relações ao analisar o anúncio abaixo, que faz referencia a
mesma preta Antônia do começo deste artigo.
Fugio no dia 25 de fevereiro p.p. uma preta de nome Antônia, nação Angola,
idade 20 a 24 anos, baixa, bonita e bem feita, levou um filho pardinho de 4
meses; quem a levar á rua Alampadoza n.70, receberá de gratificação 50Urs.20

18
Ver: DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984;
FIGUEREDO, Luciano R. A & MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. ŖQuitandas e quitutes; um estudo sobre
rebeldia e transgressão femininas numa sociedade colonialŗ, CADERNOS DE PESQUISA. [online]. 1985, n.54, pp.
50-61.; GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910). São
Paulo: Cia. das Letras, 1988.
19
SWAIN, Tânia Navarro. ŖTodo homem é mortal. Oras, as mulheres não são homens; logo, são imortaisŗ. In: Org.
RAGO, Margareth; VEIGA NETO, Alfredo. Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p.
391.
20
Diário do Rio de Janeiro, seção ŖEscravos fugidosŗ, 15 de março de 1838. p. 4.
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Nesse anúncio, publicado uma semana depois do primeiro, o autor não se dá mais o
trabalho de protestar contra a quem tiver acoitado e aumenta a recompensa de 30Urs para 50Urs.
No entanto, o interessante é perceber como a figura de Antônia é arquitetada ou construída para o
leitor, ou seja, através das características Ŗbaixa, bonita, bem feitaŗ que inscritas no e pelo corpo,
não se constituem em referenciais e valores absolutos, universais e ahistóricos, mas pelo contrário
são construções culturais e datadas, dependentes das relações sociais, políticas e cultural do
período.
As características físicas dessa mulher foram apropriadas pelo discurso e exercitaram
relações de poder que produziram efeitos de controle, de esquadrinhamento de lugar e de função,
de hierarquias e de assimetria política. Seguindo mais uma vez Tânia Navarro Swain 21, me instiga
pensar como discursos que hipersexualizavam a imagem dos corpos das negras, sensualizando e
erotizando suas curvas, seios e genitálias se constituíram em mecanismos e estratégias de controle
para o sistema escravista. Essas construções foram aceitas como evidencias e naturalizações, dentro
de um regime de verdade, encobriram e justificaram as relações de violência, balizaram e definiram
historicamente o feminino possível a essas mulheres.
Essa perspectiva não entende as categorias mulher e negra unicamente como dupla barreira
para a ascensão social. De outra forma, pretende examinar quais seriam as condições que fazeram
emergir essas categorias e como esses modos de ver e dizer permitiam práticas de poder.
Praticas essas que são positivas, na medida em que não somente impedem ações, mas
produzem a sujeição e impõem a docilidade, organizando os corpos das negras para serem
utilizados de determinadas maneiras. Como exemplificado nos anúncios de venda abaixo:
Vende-se uma bonita negrinha de 13 a 14 anos ainda recolhida, sabendo engomar e
coser, e muito própria para mucama.22
Vende-se uma moleca de 10 anos, que cose e faz outros serviços; dá-se barato.23
Vende-se uma bonita e bem feita negrinha de 16 anos, recolhida, sabendo coser,
engomar, cozinhas, lavar de sabão e afinca-se a conduta.24

21
SWAIN, Tânia Navarro. ŖTodo homem é mortal. Oras, as mulheres não são homens; logo, são imortaisŗ. In: Org.
RAGO, Margareth; VEIGA NETO, Alfredo. Para uma vida não fascista. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009. p.
400
22
Jornal do Commércio, seção ŖAnúnciosŗ, 03 de janeiro de 1837. p. 3.
23
Jornal do Commércio, seção ŖAnúnciosŗ, 1º de maio de 1839. p.3.
24
Jornal do Commércio, seção ŖAnúnciosŗ, 04 de setembro de 1839. p.3.
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Neles ocorre a apropriação do corpo das negras, em favor de relações de dominação, não
através de formas de violência bruta e direta, mas sim por meio de tramas, técnicas,
enquadramentos e controles que criavam sentidos, visibilidades e representações.
REFERÊNCIAS
1. Documentais
Anúncios sobre negras nos Jornal do Comércio e Diário do Rio de Janeiro, nos anos de 1831 a
1850, que fazem parte do acervo de periódicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

2. Obras Consultadas

DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1984;
FARIA, Sheila de Castro. ŖMulheres forras Ŕ riqueza e estigma socialŗ. Tempo. Niterói: v. 5, n. 9,
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FERREIRA, Jorge Luiz. ŖCultura Política dos trabalhadores no primeiro governo Vargasŗ. Estudos
Históricos. Rio de Janeiro: vol. 3, n.6, 1990, p. 180-195
FIGUEREDO, Luciano R. A & MAGALDI, Ana Maria Bandeira de Mello. ŖQuitandas e
quitutes; um estudo sobre rebeldia e transgressão femininas numa sociedade
colonialŗ, CADERNOS DE PESQUISA. [online]. 1985, n.54, pp. 50-61.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Graal, 1990.
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. 2ª ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional; Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, 1979.
GIACOMINI, Sônia Maria. Mulher e escrava; uma introdução ao estudo da mulher negra no
Brasil. Petrópolis: Vozes, 1988; MOTT, Maria Lúcia de Barros. Submissão e resistência: a mulher na
luta contra a escravidão. São Paulo, Contexto, 1988
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-
1910). São Paulo: Cia. das Letras, 1988;
KARASCH, Mary. C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). Säo Paulo: Companhia das
Letras, 2000.
MATOS, Maria Izilda e SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo: Editora Unesp.
2000
MATTOSO, Kátia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense.

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NOGUEIRA, Nadia Cristina. Sexualidade e socialização em Gilberto Freyre. Dissertação de


mestrado UNICAMP: Campinas, São Paulo. 2000.
PORTER, Roy. ŖHistória do corpoŗ. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas.
São Paulo: UNESP. 1992.
RAGO, Margareth. ŖEpistemologia Feminina, gênero e Históriaŗ. In: Orgs Pedro, Joana; Grossi,
Miriam. Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis: Ed. Mulheres, 1998.
SOARES, Cecília Moreira. ŖAs ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século
XIXŗ. Afro-Ásia. Salvador: CEAO-UFBA, n. 17, 1996, p. 57-72.
SWAIN, Tânia Navarro. ŖTodo homem é mortal. Oras, as mulheres não são homens; logo, são
imortaisŗ. In: Org. RAGO, Margareth; VEIGA NETO, Alfredo. Para uma vida não fascista. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2009, p. 389-402.
THOMPSON, E. P. Tradição, revolta e consciência de classe. São Paulo: Cia das Letras, 1987.

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CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM DO CICLO DE POLÍTICAS PARA A


EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ETNICORRACIAIS.

Cláudia Regina de Paula1

Resumo

O presente artigo pretende discutir as contribuições da abordagem do ciclo de políticas, formulada


por Stephan Ball e colaboradores, especificamente sobre a alteração da LDB Ŕ Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, artigo 26-A que incluiu no currículo da escola básica, a história e a
cultura afro-brasileira. A Lei 10.639, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais, são políticas curriculares que resultam de um processo de longa duração,
permeado de lutas, avanços, recuos e conquistas do movimento negro com setores mais
progressistas do cenário político nacional.

Palavras Ŕ chave: movimento negro; ciclo de políticas; políticas curriculares.

Introdução
O currículo como campo de produção de significados, tem sido provocado a problematizar
temas emergentes surgidos, sobretudo a partir das teorias pós-críticas, que abrangem questões como
gênero, raça, sexualidade e produção de subjetividades.
A política curricular não restrita as esferas governamentais mantêm uma relação dialética
mediada pela escola, movimentos sociais, sujeitos coletivos entre outros. Essas inter-relações são

1
Doutoranda em Educação pelo PROPEd/UERJ, com financiamento da CAPES e orientação do Prof. Dr. Roberto
Conduru. Mestre em Política Social pela Universidade Federal Fluminense /UFF, Pedagoga, especialista em Relações
Raciais e Educação pelo PENESB Ŕ Programa de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira/UFF. Atualmente,
Técnica em Assuntos Educacionais da UFRRJ, assessora pedagógica do LEAFRO Ŕ Laboratório de Estudos Afro-
Brasileiros e Indígenas, NEABi da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e professora do curso de pós-
graduação lato sensu ŖDiversidade Étnica e Educação Superior Brasileira.ŗ Email: claudiareginadepaula@yahoo.com.br
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examinadas nesse artigo, com base nas contribuições da abordagem do ciclo de políticas, método
analítico formulado por Stephan Ball e colaboradores (Bowe; Ball; Gold, 19922; Ball, 19943ª apud
Mainardes, 2006, p.48). Em particular, se destina a analisar a política que alterou a Lei nº 9. 394,
de 20 de Dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir
no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ŖHistória e Cultura Afro-
Brasileiraŗ. Através da Lei 10.639/2003, e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-Raciais, atualizada pela Lei nº 11.645/2008, ampliada para a temática
indígena.

A abordagem do ciclo de políticas

São três os contextos principais do ciclo contínuo de políticas: influência, produção dos
textos e prática, que articulados e não sequenciais envolvem arenas e grupos de interesse.

O contexto de influência se caracteriza pela construção das políticas e dos discursos; onde
acontecem as disputas sobre a definição das finalidades sociais da educação. Atuam nele as redes
sociais, partidos políticos, os três poderes, as agências multilaterais, governos de outros países cujas
políticas são referência.

Em geral constituído pelo poder central, o contexto de produção dos textos mantém uma
associação estreita com o primeiro, e formula os textos visando sua aplicação.

O contexto da prática é eminentemente plural. Nele, as definições curriculares são recriadas


e reinterpretadas, incorporadas pelos outros dois contextos, conferindo aos discursos um caráter
circular nesse ciclo.

Historicamente os movimentos sociais, organizações não governamentais e instituições de


luta e garantia de direitos das populações, tem fomentado dispositivos legais, ações que
influenciaram e ainda influenciam a agenda política.

2
BALL, S.J.; BOWE, R. Subject departments and the Ŗimplementationŗof National Curriculum policy: an overview of
the issues. Journal ofCurriculum Studies, London, v. 24, n. 2, p. 97-115, 1992.
3
BALL, S.J. Educational reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994.
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O movimento negro brasileiro4 em suas esferas atuou em prol de políticas de


reconhecimento e garantia de direitos da população afro-descendente e elegeu a educação como um
campo estratégico. Embora os ativistas reconheçam que a educação não é a solução para todos os
males, essa tem sido uma importante bandeira de luta, uma vez que na educação brasileira
persistem desigualdades históricas tanto sociais quanto raciais. (GOMES,2010).

O contexto de influência
DOMINGUES, (2009) examinou a importância da questão educacional para movimento
negro, e, em sua análise atribuiu as seguintes fases: a primeira, de 1889-1937, da pós-
abolição/Primeira República ao Estado Novo, o movimento negro deu prioridade ao ensino
básico, em particular a alfabetização do negro.

Na sua primeira fase de existência, o movimento negro no pós-abolição fomentou


campanhas de conscientização junto à "população de cor", almejando conscientizá-
la da importância do letramento; abriu pequenas escolas e cursos noturnos,
privilegiando o ensino fundamental, sobretudo o trabalho de alfabetização.
Além de instrumento de compreensão do mundo, a alfabetização demarcava
a fronteira da cidadania formal no Brasil. (p.990)
Na Primeira República, a cidadania estava prevista na letra da Constituição, mas
muitos negros não tinham meios de exercê-la, uma vez que a educação básica
gratuita não era obrigatória e quem era analfabeto não podia votar. A afirmação
da cidadania também fez parte do jogo. Alguns negros que passaram pelos
bancos escolares não somente se apropriaram da leitura e escrita, como ainda
fizeram delas armas importantes nos embates por uma sociedade mais justa,
igualitária e democrática. O letramento, assim, deve ser igualmente apreendido
nos seus contornos e significados políticos. (ibidem, p.977)

4
O movimento negro através de sua pluralidade se expressa nos coletivos organizados, que congrega diversos grupos,
associações, movimentos e entidades. Nessa pesquisa, a compreensão de que, mesmo em diferentes contextos e a partir
de especificidades, o MN e seus agentes atuam como sociedade civil organizada e fomentam novas políticas. A
definição dessa complexidade multiface pode ser identificada na análise de Joel Rufino dos Santos (1994, p. 157). Ŗ(...)
todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de qualquer tempo (aí compreendidas mesmo aquelas que
visavam à autodefesa física e cultural do negro), fundadas e promovidas por pretos e negros (...). Entidades religiosas
(terreiros de candomblé, por exemplo), assistenciais (as confrarias coloniais), recreativas (Ŗ clubes de negrosŗ), artísticas
(inúmeros grupos de dança, capoeira, teatro, poesia), culturais (os diversos Ŗcentros de pesquisaŗ) e políticas (como o
Movimento Negro Unificado); e ações de mobilização política, de protesto anti-discriminatório, de aquilombamento,
de rebeldia armada, de movimentos artísticos, literários e Řfolclóricosř Ŕ toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou
encoberta, extemporânea ou cotidiana, constitui movimento negro.ŗ.
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A partir da segunda fase, (1937-1978) DOMINGUES (ibidem) observou que a educação


básica continuou no centro das atenções. Entretanto, surgiram as primeiras reivindicações sobre o
acesso do negro ao ensino superior e as criticas ao conteúdo preconceituoso dos livros didáticos,
porém persistiu devotando especial atenção ao ensino fundamental.
O período de 1978 a 2003 foi a terceira fase analisada pelo autor que marcou a fundação
do Movimento Unificado contra a Discriminação Racial, mais tarde denominado MNU, em 1978,
até a promulgação da Lei 10.639, em janeiro de 2003. Inaugurou-se nesse período, um novo
momento nas reivindicações como demonstraram algumas das propostas contidas no programa de
ação, de 1982, do MNU no campo educacional: Contra a discriminação racial nas escolas, por melhores
condições de ensino aos negros; Pela reavaliação do papel do negro na História do Brasil; Pela participação dos
negros na elaboração dos currículos escolares em todos os níveis e órgãos culturais; 5

Nessa fase, apesar da sistemática reivindicação de políticas educacionais com foco sobre o
ensino fundamental, o movimento negro brasileiro levantou a bandeira das ações afirmativas e da
democratização do acesso à universidade. Corroboraram o cenário cada vez mais atuante e ativista
que se configurou a partir dos anos 60 e 70 do século XX, com a luta travada por vários países
africanos contra a opressão colonial, assim como os movimentos pacifistas pelos Direitos Civis, e
outros mais radicais (Panteras Negras, Muçulmanos Negros) que lutavam contra o apartheid e
projetaram para o mundo lideres como Martin Luther King, Malcom X, Steve Biko e Nelson
Mandela.
A conjuntura internacional revelou profundas desigualdades raciais que vitimavam afro-
descendentes em escala global. Enquanto o Brasil imerso na ditadura militar, sufocado em suas
demandas sociais assistiu a suspensão dos direitos políticos, cassações, perseguições, prisões e
torturas imputados aos militantes de esquerda, lideranças, estudantes, intelectuais e sindicalistas.
Esse período, marcado pelo ostracismo na cena política brasileira, afetou substancialmente o debate
racial, conforme salientou Hasenbalg (1995).
Para CERTEAU (2008) o cotidiano, suas relações, ações e gestos produzidos pelos
sujeitos sociais, suas Ŗartes de fazerŗ e Ŗtáticas de resistênciaŗ inventam o cotidiano com mil

5
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. Programa de Ação, Belo Horizonte, 1982. (apud DOMINGUES, 2009,
p.984)
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maneiras de Ŗcaça não autorizadaŗ. Na invenção do cotidiano os sujeitos se (re) apropriam, (re)
significam os objetos e códigos. O período que sucedeu a abertura política no Brasil, marcado pela
reorganização de movimentos silenciados, entre os quais o Movimento Negro, pode ser apontado
como um momento de praticas pedagógicas, formativas dos movimentos populares, construtor de
sociabilidades, experiências, intervenções e utopias. Na perspectiva de ARROYO, os movimentos
sociais não apenas educam seus militantes, mas toda a sociedade. (2006, p.9).
Na etapa de reorganização, o movimento negro brasileiro denunciou os efeitos perversos da
ideologia do branqueamento. Sob influencia também das lutas e conquistas da América e pelos
processos de emancipação colonial na África, buscou criar uma comunidade de interesses em torno
da origem africana e dos símbolos da cultura afro-brasileira:
O povo negro tem um projeto coletivo: a edificação de uma sociedade fundada
sobre a justiça, a igualdade e o respeito por todos os seres humanos; uma
sociedade cuja natureza intrínseca torne impossível a exploração econômica ou
racial. Uma democracia autêntica, fundada pelos destituídos e deserdados da
terra. Não temos interesse na simples restauração de tipos e formas obsoletas de
instituições econômicas, políticas e sociais; isto serviria apenas para procrastinar o
advento de nossa emancipação total e definitiva, a qual virá apenas com a
transformação radical das estruturas socioeconômicas e políticas existentes. Não
temos interesse em propor uma adaptação ou reforma dos modelos da sociedade
capitalista. (Nascimento,5 1980, apud GUIMARÃES, 2002, p.103).

Abdias Nascimento foi uma liderança do movimento negro que participou ativamente do
movimento pan-africanista internacional, quando esteve no exílio. Ao retornar para o Brasil em
1981, elegeu-se Deputado Federal (1983-1987). 6 Em um de seus projetos observam-se um sistema
de valores que buscava eliminar referenciais racistas dos currículos ao mesmo tempo em que
pretendia incorporar estudos relativos à história e cultura africana e afro-brasileira, conforme os
destaques a seguir:
Projeto de Lei nº 1.332 de 1983.Dispõe sobre ação compensatória visando à
implementação do principio da isonomia social do negro, em relação aos demais segmentos
étnicos da população brasileira, conforme direito assegurado pelo art. 153, § 1º da
Constituição da República.

5
NASCIMENTO, Abdias. Quilombismo: an Afro Brazilian political alternative. Journal of black studies, 11(2): 141-
178, Afro Brasilian Experience and Proposals for Social Change, december, 1980.
6
Abdias Nascimento ampliou sua atuação no parlamento ao eleger-se senador (1991-1999) pelo PDT e apresentou
projetos definindo o racismo crime e mecanismos de ação compensatória para construir a igualdade racial no país.
NASCIMENTO, 2004.
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Art. 8º. O Ministério da Educação e Cultura, bem como as Secretarias Estaduais e


Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades negras
e com intelectuais negros comprovadamente engajados na matéria, estudarão e
implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos, em todos os
níveis (primário, secundário, superior e de pós-graduação), no sentido de:
I – Incorporar ao conteúdo dos cursos de História brasileira o ensino das
contribuições positivas dos africanos e seus descendentes à civilização brasileira,
sua resistência contra a escravidão, sua organização e ação (a nível social,
econômica e política) através dos quilombos, sua luta contra o racismo no
período pós-abolição;
II – Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História Geral e ensino das
contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente seus avanços
tecnológicos e culturais antes da invasão européia do continente africano;
III – Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de estudos religiosos o ensino
dos conceitos espirituais, filosóficos e epistemológicos das religiões de origem
africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô, tambor de minas, batuque,
etc.);
IV Ŕ Eliminar de todos os currículos referências ao africano como Ŗum
povo apto para a escravidãoŗ, Ŗsubmissoŗ e outras qualificações pejorativas;
V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o
negro de forma preconceituosa ou estereotipada;
VI Ŕ Incorporar ao material de ensino primário e secundário a apresentação
gráfica da família negra de maneira que a criança negra venha a se ver, a si mesma
e a sua família, retratadas de maneira igualmente positiva àquela que se vê
retratada a criança branca;
VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os
níveis em que é ensinado, o ensino de línguas africanas (yorubá ou kiswahili) em
regime opcional;
VIII Ŕ Incentivar e apoiar a criação de Departamentos, Centros ou Institutos de
Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro/Brasileiros, como parte integral e
normal da estrutura universitária, particularmente nas universidades federais e
estaduais (Projeto de Lei nº 1.332 de 1983 de autoria de Abdias Nascimento7)

Os representantes das entidades do Movimento Negro do país apresentaram uma agenda de


reivindicações, na Assembléia Constituinte com destaque para aquelas vinculadas à educação.
Demandas a serem discutidas e incluídas na nova Constituição:
• Contra a discriminação racial e a veiculação de idéias racistas nas escolas.
• Por melhores condições de acesso ao ensino à comunidade negra.
• Reformulação dos currículos escolares visando à valorização do papel do
negro na História do Brasil e a introdução de matérias como História da África
e línguas africanas.

7
A atuação parlamentar de Abdias Nascimento pode ser consultada em:
http://www.abdias.com.br/atuacao_parlamentar/deputado_lei.htm
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• Pela participação dos negros na elaboração dos currículos em todos os níveis e


órgãos escolares. HASENBALG, 198710 (apud Santos 2005, p. 24).

O anteprojeto apresentado pela ŖSubcomissão de Negros, Populações Indígenas, Pessoas


Deficientes e Minoriasŗ, na Constituinte tinha o seguinte teor:
Art.4º - A educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e
todas as formas de discriminação, afirmando as características multiculturais e
pluriétnicas do povo brasileiro.

Art.5º- O ensino de ŖHistória das Populações Negras do Brasilŗ será obrigatório


em todos os níveis da educação brasileira, na forma que a lei dispuser.
(Rodrigues, p.56,2005)

Quando submetida à Comissão Temática da Ordem Social e à Comissão de Sistematização,


o texto final da Constituição eliminou a ênfase sobre a historia das populações negras nos
currículos e discorreu que:

Art.242- §1º-O ensino de história do Brasil levará em conta as contribuições das


diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.
(Constituição Federal de 1988)

A Nova Carta, um marco no processo democrático definiu os "preconceitos de raça ou de


cor", crimes inafiançável e imprescritível; aprovou a universalização do ensino fundamental (ainda
com as desvantagens educacionais entre brancos e negros); aprovou o voto do analfabeto, que
incorporou um segmento da população afro-brasileira nos processos decisórios. Entretanto, a
reivindicação de reformulação dos currículos escolares não foi contemplada, e, essa demanda
continuou, portanto, na pauta do Movimento Negro Brasileiro.
Alguns anos após a promulgação da Constituição, na década de 90, um projeto de
Educação Popular, ainda em vigor se consolidou na Baixada Fluminense, região metropolitana do
Rio de Janeiro, denominado Pré-Vestibular para Negros e Carentes Ŕ PVNC. O movimento dos
pré-vestibulares populares11 se expandiu em escala nacional e atuou de forma a questionar a
elitização da universidade pública brasileira, pautando sua democratização e vinculando à questão

10
HASENBALG, Carlos A. O Negro nas Vésperas do Centenário. Estudos Afro-Asiáticos. (13): 79-86, 1987.
11
O primeiro pré-vestibular com essas características foi fundado na Bahia, em 1992, pelo Instituto Steve Biko de
Salvador.
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racial como uma dimensão fundamental e indissociável, assim como observou SANTOS (2005).
Seus agentes pretendiam, através da formação teórica e política, atuarem no fortalecimento da auto
estima e da identidade racial, de um segmento excluído das oportunidades proporcionadas, pela
apropriação do conhecimento cientifico. O movimento em seu caráter popular, voluntarioso, tinha
a tarefa de articular estudantes, docentes e militantes em defesa da qualidade e democratização da
educação e chamar a atenção para os mecanismos seletivos que impunham barreiras de acesso e
permanência à população negra no ensino superior.
SANTOS (2009, p.92-93) se referiu a construção de um Ŗmutirão de educação alternativaŗ,
a partir de um projeto auto-sustentável (partilha das despesas entre os alunos com a contribuição de
5% do salário mínimo), que teria ainda o objetivo de combater a Ŗindústria do pré-vestibularŗ que
a época estava em ascensão.
A educação básica e, posteriormente, a superior alcançaram relevância entre as demandas
dos grupos organizados em torno do debate étnicorracial no Brasil. Esse processo político-
organizativo impactou no contexto da produção de textos.

O contexto da produção dos textos


A inclusão da história dos negros nos currículos escolares nos Estados Unidos foi uma das
metas do movimento negro pelos direitos civis. (BANKS, 2006). No Brasil, o processo político
manteve regularidade histórica. Quando a escola passou a ser definida como possibilidade de
ascender socialmente, os movimentos de resistência e consciência negra passaram a postular, de
inicio a instrução/educação da população afro-brasileira e, mais adiante, a inclusão de sua história
nos currículos escolares.
O reconhecimento de que as escolas são instituições históricas e culturais que
sempre incorporam interesses ideológicos e políticos. Elas atribuem à realidade
significados muitas vezes ativamente contestados por diversos indivíduos e grupos.
As escolas, neste sentido, são terrenos políticos e ideológicos a partir dos quais a
cultura dominante Ŗfabricaŗ suas Ŗcertezasŗ hegemônicas; mas elas também são
lugares nos quais grupos dominantes e subordinados definem e pressionam uns
aos outros através de uma constante batalha e intercâmbio em resposta às
condições sócio-históricas Ŗcontidasŗ nas práticas institucionais, textuais e vividas,
que definem a cultura escolar e a experiência professor/estudante. As escolas são
tudo, menos inocentes, e também não reproduzem simplesmente as relações e
interesses sociais dominantes. Ao mesmo tempo, as escolas de fato praticam forma
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de regulação moral e política, intimamente relacionadas com as tecnologias de


poder que Ŗproduzem assimetrias nas habilidades dos indivíduos e grupos de
definirem e satisfazerem suas necessidadesŗ. Mais especificamente, as escolas
estabelecem as condições sob as quais, alguns indivíduos e grupos definem os
termos pelos quais os outros vivem, resistem, afirmam e participam na construção
de suas próprias identidades e subjetividades (GIROUX, 1997, p.204-205).

Como a abordagem do ciclo de políticas não mantém linearidade, pode ser observado o
atravessamento do contexto de influência na produção de textos. Ao sancionar a lei nº10. 639 em
09 de janeiro de 2003, o presidente Lula e o ministro da educação na época, Cristovam Buarque,
do Partido dos Trabalhadores atendiam a um projeto que tramitou ao longo dos anos no
legislativo. O Projeto de Lei nº259 de 1999 dos deputados federais Ester Grossi (educadora do Rio
Grande do Sul) e Bem-Hur Ferreira (oriundo do movimento negro de Mato Grosso do Sul), ambos
do PT tramitou até chegar ao senado em 2002 e receber a sanção, no ano seguinte do presidente
eleito. A referida Lei incorporou uma demanda histórica do movimento negro:
§ 1o - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil;

§ 2o - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão


ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileira. (Silva, 2003)

Art.79 b - A lei também inclui no calendário escolar o dia 20 de novembro como


ŖDia Nacional da Consciência Negra.ŗ

Como a produção de texto não ocorre isoladamente, mas sob a influencia de fatos e
pressões de grupos distintos, citamos ainda o Parecer do Conselho Nacional da Educação (CNE
nº. 003/2004, aprovado em 10/3/2004) que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. A conselheira relatora, professora Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, militante
orgânica de movimentos sociais negros, reconhecida no meio acadêmico - científico por sua obra e
compromisso com a igualdade racial representou naquela conjunção, o grupo de interesse na
produção do texto legal.
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O contexto da prática
A prática está presente em todos os contextos. A dinâmica de tradução do texto para o
cotidiano envolve modelos de interpretação, recriação e recontextualização12.
Os profissionais da educação são ativos no processo de (re)interpretação das políticas
curriculares como redes de poder, discursos e tecnologias que se desenvolvem no campo social da
educação. (Lopes, 2004).
Os profissionais que atuam no contexto da prática [escolas, por exemplo,] não
enfrentam os textos políticos como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias,
experiências, valores e propósitos [...]. Políticas serão interpretadas diferentemente
uma vez que histórias, experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A
questão é que os autores dos textos políticos não podem controlar os significados
de seus textos. Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas,
deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser superficiais etc. Além disso,
interpretação é uma questão de disputa. Interpretações diferentes serão
contestadas, uma vez que se relaciona com interesses diversos, uma ou outra
interpretação predominará embora desvios ou interpretações minoritárias possam
ser importantes. (Bowe et al.13, 1992, p. 22, Apud Mainardes, 2006, p.53)

Uma das questões chave na crítica resistente a reforma curricular, consistia na falta de
recursos pedagógicos. Em resposta à demanda uma relevante produção de material didático e
bibliográfico no campo das relações raciais ainda é observada. Ao ingressar na agenda política, o
tema alcançou visibilidade nacional e suscitou o debate. Entretanto, as iniciativas governamentais
são tímidas, dado o universo que seria necessário atingir. E, insuficientes se a temática étnicorracial
não estiver contemplada nos currículos das licenciaturas14.

12
No processo de recontextualização, Bernstein (1996, 1998) interpreta que os textos, assinados ou não pela esfera
oficial, são fragmentados ao circularem no corpo social da educação, alguns fragmentos são mais valorizados em
detrimento de outros e são associados a outros fragmentos de textos capazes de ressignificá-los e refocalizá-los.[...] Em
suas análises, Bernstein diferencia o campo recontextualizador oficial e o campo recontextualizador pedagógico. O
primeiro é criado e dominado pelo Estado; o segundo, é composto por educadores nas escolas e universidades, bem
como por produtores de literatura especializada e fundações privadas de pesquisa. No complexo quadro da
recontextualização, Bernstein ainda situa o campo internacional, as relações deste com o Estado, os campos de
produção material e controle simbólico e o campo recontextualizador nas escolas.(Lopes, 2005, p.54)
13
BOWE, R.; BALL, S.; GOLD, A. Reforming education & changing schools:case studies in policy sociology. London:
Routledge, 1992.

14
Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (Brasil. MEC, 2004), esse ensino se fará por diferentes meios, em
atividades curriculares ou não. As Diretrizes destacam a inclusão da discussão da questão racial como parte integrante
curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos iniciais e finais da educação Fundamental,
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A abordagem do ciclo de políticas, como referencial analítico das políticas públicas nesse
artigo procurou confrontar a concepção tradicional que concebe a política como linear e interpreta
as fases da formulação e implementação como processos ordenados. Mas, se a política, para uns
está assentada em valores, princípios reguladores e imperativos, como campo de conflito e de luta,
a percebemos como instável e complexa. Sua interpretação e implementação demandam esforços
coletivos diante do desafio de traduzir o texto na pratica. Esforço ainda empreendido para
consolidar o artigo 26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

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O MERCADO DE ESCRAVOS E CONTROLE SANITÁRIO DOS NEGROS


NOVOS NA CORTE JOANINA
Cláudio de Paula Honorato

Resumo
No presente artigo analisamos como era feito o controle sanitário dos negros novos que eram
expostos a venda no Valongo, assim como a introdução da vacina contra a varíola no Rio de
Janeiro e como era a sua aplicação, a criação da Junta Vacínica, após a chegada da Corte, qual o seu
papel como órgão do Estado no combate às epidemias e quais os resultados por ela obtidos.

Palavras chaves: Mercado de escravos; Controle sanitário; Vacina.

Abstract

In this article we analyze how it was done the sanitary control of blacks who were exposed to new
sales in Valongo, as well as the introduction of smallpox vaccine in Rio de Janeiro and as was his
application, the creation of the Joint vaccine after the arrival the Court, what is their role as an
organ of state in the fight against epidemics and what results she has achieved.

Um lugar para o mercado de escravos


Até meados do século XVIII a compra e venda dos escravos novos desembarcados no porto
da cidade era feita nos armazéns de escravos localizados em sua maioria na rua Direita, próximo à
Alfândega. As mais conhecidas casas de comércio ficavam no trecho entre a Casa de Contos e a
ladeira do Mosteiro de São Bento. Os conflitos entre os diversos agentes do comércio de escravos
na cidade tiveram relação direta com a decisão do Senado da Câmara de transferir o comércio de

Professor Ms de História da África na Faculdade de Filosofia Ciências e letras de Duque de Caxias - FEUDUC
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escravos novos para a periferia da cidade. A perpetuação do comércio de escravos na rua Direita era
favorável aos compradores residentes na cidade, em detrimento aos senhores de engenho e
lavradores de cana do recôncavo que vinham de longe.
A manutenção ou transferência do mercado de escravos do centro para a periferia da cidade
tornou-se um tema polêmico devido aos múltiplos interesses a ele envolvidos. No intuito buscar
subsídios para a decisão Ŕ e provavelmente sob pressão - a 14 de janeiro de 1758, sob a presidência
do juiz de Fora Antonio de Matos e Silva, os vereadores convidaram os médicos e os cirurgiões da
cidade para deliberarem sobre o grande prejuízo que causavam nesta cidade a venda pública de
escravos Ŕ Ŗachanques [sic] contagiososŗ1 Ŕ vindos da África de outros lugares serem
comercializados no centro da mesma.
Acordou-se, que:
Ŗnenhuma pessoa de qualquer estado ou condição, que seja tenha no continente desta
Cidade tanto em casa como nas ruas, rocios e praças da mesma magotes de negros novos
vindos das partes da Guiné ou outra região alguma em direitura a esta Cidade, o que se
averiguara pela entrada da Alfândega, sob pena de os negros serem apreendidos até que
seus proprietários ou administradores pagassem multa à câmaraŗ.2

Acordou-se também a definição de uma nova área para localização do comércio dos
africanos recém chegados, chamados Ŗpretos novosŗ. Os lugares então considerados mais indicados
foram a região da orla marítima do Valongo, Saúde e Gamboa, ou mais para o interior, na zona do
mangue de São Diogo. O local escolhido foi o Valongo por ter acesso por mar e por terra através
do Caminho do Valongo (atual rua Camerino) que ia da praia ao centro da cidade.3 Os donos de
escravos novos que desejassem enviá-los para serem vendidos ou despachados mediante encomenda
para Minas Gerais, deveriam informar suas intenções ao Senado da Câmara no prazo de 24 horas,
após a compra; e no prazo de oito dias obrigatoriamente retirá-los da cidade. Acrescia-se a essas
medidas a proibição de levar os escravos do Valongo para serem lavados no chafariz da Carioca,

1
AHU, RJ. Códice, 225.
2
Para se considerar magotes ou ranchos dos ditos negros bastava que se encontrassem juntos cincos negros mesmo
que fossem de donos diferentes. AHU, RJ. Doc. 19 Ŕ Cx. 84
3
CAVALCANTI, Nireu. ŖO Comércio de escravos novos no Rio setecentistaŗ. In Tráfico, Cativeiro e Liberdade. (Org.)
Florentino, Manolo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. p. 43.
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alegando os distúrbios que provocavam e o perigo de contaminação dos usuários do chafariz e da


própria água4.
A reação dos negociantes foi imediata. Entraram com recurso contestando o Edital e os
argumentos da questão sanitária, tida como Ŗfalsa e contrária à verdadeŗ, argumentaram que tal
comércio era muito antigo no centro da cidade Ŗonde sempre desembarcaram e venderam escravos
novos, as portas dos comerciantes sem que por esse motivo originasse moléstia alguma, nem
Řachaqueř contagiosoŗ. Assim argumentam:
Porque da postura e Acórdão embargando que manda extrair os escravos para fora da
cidade não resulta utilidade aos e mesmo (...), e contra a verdade por ficarem na mesma
cidade outros muitos escravos ladinos, de que andam cheias as Ruas (...) da mesma forma
não recebe a cidade detrimento em corrupção alguma nos ares de existirem nela vários
escravos novos, porque o comércio destes é tão antigo como a mesma cidade (...). 5

Em 1765, o Senado republicou o edital, dando com isso a entender que a venda de escravos
nas principais ruas da cidade continuava. O novo Edital incluía também os negros pertencentes às
companhias (que vinham de Pernambuco, Bahia e Maranhão). A maioria dos desembargadores do
Tribunal da Relação votou a favor da permanência do comércio de escravos nas ruas centrais da
cidade. A decisão do Tribunal estaria supostamente baseada em depoimentos de médicos e
cirurgiões que, de acordo com o Marquês do Lavradio talvez tivessem sido Subornados pelos
negociantes. Dessa vez, eles declararam não ter o comércio de negros novos nenhuma relação com
as epidemias. Resta, portanto a suspeita de que esses profissionais tenham dado seu parecer sob
influência dos interesses dos comerciantes, com a complacência do Tribunal da Relação6.
Nos depoimentos dados em março de 1768, os médicos Antonio Ferreira de Barros,
Francisco Correa Leal e os cirurgiões Luiz de França, Antonio Mestre, Francisco da Costa Brito e
João da Silva Passos Cabral, admitiram que trabalhavam para os negociantes de escravos novos,

4
AHU, RJ, Avulsos, Cx. 84, doc. 19 Acórdão do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, de 14 de janeiro de 1758, e
edital publicado e mandado fixar nas ruas mais publicas a cidade a 28 de janeiro do mesmo ano. Ver BICALHO,
Maria Fernanda. A cidade e o império: o Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro:Civilização Brasileira,2003,
PP. 242-244. Agradeço a profª. Maria Fernanda Bicalho e ao prof. Mauricio de Abreu que gentilmente me cederam
cópia dos documentos AHU sobre o acórdão de 1758 e Editais da Câmara sobre vendas de escravos nas vias públicas
da cidade 1766.
5
Códice 6.1.9 AGCRJ Ŕ Autos de homens de negócios e comerciantes de escravos Ŕ 1758-1768 Ŕ pp.78-79
6
Para VER mapas mostrando detalhes do Valongo e da rua Direita, Cf. BARREIROS, Eduardo Canabrava. Atlas da
Evolução Urbana da cidade do Rio de Janeiro, 1565-1965 Ŕ IHGB.
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muitos há vinte e cinco ou trinta anos, e por essa razão tinham experiência e vivência do problema.
O físico Mateus Saraiva, membro da Ordem de Cristo, cidadão da Cidade do Rio, físico-mor das
tropas reais, médico da Câmara e Saúde e sócio da Real Sociedade de Ciência de Londres, se
pronunciou contra os editais da Câmara e a favor dos negociantes de escravos novos tanto em
1758, quanto em 1765. Em 1758 declarou que era morador na rua Direita há 43 anos e que nunca
havia chegado ao seu conhecimento Ŗnenhuma epidemia, moléstia por contágio do mal de Luanda
(ou escorbuto) introduzidana cidade por algum escravo vindo da costa da África, nem por outra
doença, ou bexigaŗ. Disse ainda que o escorbuto e a bexiga não eram motivos de queixas dos
Ŗcomboios no exame da visita da saúdeŗ, nem no hospital militar e nem mesmo em Pernambuco e
nos outros principais portos do Brasil. Acrescenta ainda que nesses 43 anos jamais tomara
conhecimento de um surto de enfermidade resultante do contágio oriundo dos escravos novos das
casas de comércio da rua Direita. Em 1765 ele deu o seguinte depoimento:

Certifico que os escravos novos vindo da Costa da África e Guiné, antes que se
desembarque para a Alfândega são primeiro visitados pela Visita da Saúde, a que eu vou
como médico da saúde, por Provisão Real, para que, no caso que identificar algum mal
contagioso, se ordena dar-se-lhe quarentena e também mais que nas casas de minha
vizinhança e onde há muitos anos se administram a venderem os negros escravos, nada se
observa de epidemias, nem mal contagioso, por esses escravos, nem nas famílias das
citadas casas, ou quaisquer outra casas aonde venho assistindo, com escravos novos. 7

Foi, portanto, no meio de acirrados conflitos que, dez anos após a publicação do segundo
edital, o Marquês do Lavradio ordenou que o comércio dos chamados Ŗnegros novosŗ passasse para
o sítio do Valongo. Sua intervenção foi, portanto, o desdobramento de décadas de debates e
iniciativas no sentido de tirar ou não o comércio de escravos africanos do centro da cidade do Rio
de Janeiro. É importante mostrar como esses acontecimentos se desenvolveram porque a
memorialística e a historiografia nela baseada tendem a afirmar que o Marques de Lavradio foi o
criador do mercado do Valongo quando na verdade ele foi responsável pela implementação de uma
demanda antiga tanto da população quanto da Câmara de Vereadores. Essa interpretação dos
acontecimentos resulta de uma leitura isolada do relatório deixado por ele a seu sucessor Luis de
Vasconcelos. O relatório fala na criação do Valongo, mas omite o debate anterior e os interesses
envolvidos. Assim diz o referido relatório, datado de 19 de junho de 1779:

7
AHU-RJ, cód. 225.
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ŖHavia mais nřesta cidade o terrível costume de que todos os negros que chegavam da
costa dřAfrica a este porto, logo que desembarcavam, entravam para a cidade, vinha para
as ruas públicas e principais dela, não só cheios de infinitas moléstias (...) foi preciso ser eu
muito constante na minha resolução, para que logo que dessem a sua entrada na
Alfândega (...) embarcassem para o sítio chamado Valongo, (...) ali se aproveitassem das
muitas casas e armazens que ali há para os terem; e que aqueles sitos [sic] fossem as pessoas
que os quisessem comprar(...)ŗ8.

Esta é, entretanto uma afirmação feita num momento em que o Marques de Lavradio presta
contas de sua administração e enaltece seus próprios feitos. Como podemos constatar nas palavras
do Marquês de Lavradio, um problema que atormentava as autoridades. Como mostra o
documento abaixo escrito pelo marques do lavradio em12 de abril de 1774 determinando que o
comércio de escravos novos fosse definitivamente transferido para o Valongo:
Sendo-me presente os gravíssimos danos, que se tem seguido aos moradores desta cidade
de se conservarem (...) dentro da mesma, imensos negros novos que vêm dos portos de
Guiné e Costa de África, infestados de gravíssimas enfermidades, (...) dos quais se acham
sempre cheias a maior parte das ruas, e casas dos comerciantes, que os costumam vender
(...) de que tem resultado contagiosas queixas epidêmicas, de que de anos a esta parte se
acha infestado todo esse país, (...) a fim de que cessando os estragos que tem assolado e
destruído a todo esse continente e se possa preservar a saúde dos povos tão recomendada
por El Rei Meu Senhor, o que já em outro tempo foi ponderado pela Câmara dessa
Cidade, que justamente persuadida pelos professores. (...) a fim de que não sejam
conservados nessa cidade os negros novos, que vem dos portos da Guiné e Costa da
África, (...) depois de dada visita da saúde, sem saltarem em terra, sejam imediatamente
levados ao sitio do Valongo, onde se conservarão, desde a Pedra da Prainha até a Gamboa
e lá se lhes dará saída e se curarão os doentes e enterrarão os mortos (...) assim se haja de
observar daqui em diante, enquanto El Rei Meu Senhor não mandar em contrário. Deus
guarde a vós mercê. Rio de Janeiro, 12 de abril de 1774.9

Se levarmos em consideração o acórdão de 1758 e seus desdobramentos podemos constatar


que esse projeto é bem mais antigo e sua implantação resulta de uma longa e difícil disputa entre os
interesses dos comerciantes, da administração e dos compradores de escravos da cidade. O que o
Vice-rei fez em 1774 foi na verdade fazer cumprir determinações cuja necessidade vinha sendo
objeto de uma longa disputa que começara com uma postura da Câmara, acerca do comércio de
escravos dentro da cidade, atendendo finalmente a uma demanda da população e alguns médicos,
cirurgiões e vereadores que começavam a se mobilizar no sentido de desencadear uma reflexão e

88
Relatório do Marques de Lavradio, Vice-rei do Brasil, entregando o Governo a Luiz de Vasconcelos e Souza que o
sucedeu no Vice-reinado, 19 de junho de 1779. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1843, tomo 4, vol.
4, Nº 16.
9
ANRJ, Códice 70, v.7, p. 231.
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um conjunto de ações que terminaram por representar o primeiro grande esforço de construção de
uma saúde pública na cidade.
O Mercado do Valongo
A partir de 1774, uma vez desembarcados e cumpridas as formalidades legais da alfândega,
os africanos deviam ser reembarcados e conduzidos a região do Valongo, situado numa enseada a
noroeste da cidade, na Freguesia de Santa Rita. A área destinada ao mercado ficava entre o outeiro
da Saúde e o morro do Livramento e o morro da Conceição e podia também ser acessada pelo
então chamado caminho do Valongo que saia dos fundos da cidade em direção ao mar passando
entre os morros da Conceição e Livramento.
Segundo o memorialista Mello Morais Filho Ŕ que certamente se ampara nos viajantes -
essas casas existiam em toda a Prainha, a tal ponto agremiadas, que se poderia assegurar que
metade delas era ocupada por armazéns de escravos10.
Os escravos que chegavam ao Valongo eram preparados para serem exposto para venda na
porta das casas ou nos quintais, geralmente no fundo das casas. Os mais debilitados deviam receber
cuidados alimentares e médicos, o que lhes melhorava as condições de saúde e aumentava o preço,
no momento da venda. Essas casas eram chamadas Ŗbarracõesŗ.11 Algumas eram pequenas, mas
muitas podiam chegar a acomodar de 300 a 400 escravos, chamadas verdadeiros Ŗpaláciosŗ.12 Em
cima morava o proprietário com sua família e embaixo ficavam os escravos à venda 13.
A saúde e higiene no mercado

10
MORAIS FILHO, Melo. Festas e Tradições Populares do Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro:F. Briguet & Cia Editores, 1946.
pp. 405 Ŕ 412.
11
EBEL, Ernst . O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. trad. Joaquim de Sousa Leão Filho. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1972. p. 42.
12
SCHICHTHORST, Carl. O Rio de janeiro como é 1824-1825. Senado Federal, Brasília, 2000. p. 136.
13
Através dos registros contidos nos livros da Décima Urbana pode-se comprovar que grande parte desses imóveis ali
localizados eram sobrados e lojas comerciais, em sua maioria alugados 13. O andar térreo era adaptado para a
exposição dos escravos e mantido sem paredes internas, como um salão, uns maiores outros menores, conforme o
tamanho do sobrado, o que permitia avaliações tão dispares. O quadro de Thomas Ender reforça a descrição dos
viajantes. Cf. BANDEIRA, Julio. Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender, 1817-1818. T. 2. Por Robert
Wagner Ŕ Petrópolis Kapa Editoral, 2000, p. 451.
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O médico naturalista dr. F. J. T. Meyen do navio Princesa Louisa assim descreveu o mercado
formalmente pouco antes da abolição do tráfico legal em 183114:

Visitamos os Depósitos de Escravos no Rio e encontramos muitas centenas praticamente


nus, os cabelos quase todos cortados, parecendo medonhos. Estavam sentados em bancos
baixos ou amontoados no chão, e sua aparência nos fez estremecer. A maioria daqueles
que vimos era de crianças, e quase todos tinham sido marcados com ferro quente no peito
ou em outras partes do corpo. Devido à sujeira dos navios em que haviam trazidos e à má
qualidade de sua dieta (carne salgada, toucinho e feijão), tinham sido atacados por
doenças cutâneas(...)Devido à fome e miséria, a pele havia perdido sua aparência preta e
lustrosa. E assim, com as manchas das erupções esbranquiçadas e cabeças raspadas, com
suas fisionomias estúpidas e pasmas, certamente pareciam criaturas que dificilmente
alguém gostaria de reconhecer como seu próximo. (...).

Seus relatos nos dão uma excelente descrição sobre as condições de higiene dos navios e a
qualidade alimentar dos cativos. A falta de higiene, a qualidade da dieta assim como a fome eram
os principais responsáveis pelas doenças ou moléstias que atacavam os cativos. Como esse viajante
era médico, lhe foi possível fazer um relato minucioso sobre as condições saúde dos cativos.
Embora seu espanto nos revele que ele sentiu certa indignação com a forma de tratamento
dispensada aos negros novos pelos negociantes, não podemos deixar de perceber a forma negativa
como ele se refere aos cativos Ŗcom suas fisionomias estúpidas e pasmas, certamente pareciam criaturas que
dificilmente alguém gostaria de reconhecer como seu próximo”. Percebe-se também que, segundo a então
moderna concepção de saúde e higiene, o Valongo se apresentava como um caso de desleixo, onde
a maior preocupação dos comerciantes era o rápido retorno de seu investimento, ou seja, vender os
escravos o mais rápido possível, evitando assim despesas adicionais.
ŖO cônsul inglês James Henderson descreveu assim o desembarque dos escravos no Rio de
Janeiro: ŖOs navios negreiros que chegam apresentam um retrato terrível das misérias
humanas. O convés é abarrotado por criaturas, apertadas umas às outras tanto quanto
possível. As suas faces melancólicas e os seus corpos nus e esquálidos são o suficiente para
encher de horror qualquer pessoa não habituada a este tipo de cena. Muitos deles,
enquanto caminham dos navios até aos depósitos onde ficarão expostos para venda, mais
se parecem com esqueletos ambulantes, em especial as crianças. A pele, que de tão frágil
parece ser incapaz de manter os ossos juntos, é coberta por uma doença repulsiva, que os
portugueses chamam sarnaŗ (...).

14
The Foreign Slav Trade, A Brief Account of Its State, of the Treaties Which Have Been Entered into of the Laws
Enacted for Its Suppression (Londres, 1837), p. 39. Apud. Conrad. Op. cit. (1985: 61)
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Raramente os escravos do mercado eram atendidos por médicos, sendo a melhor alternativa
o recurso aos negros sangradores.15 Limitar a explicação da ausência de médicos no Valongo ao
custo elevado de seus serviços ou à carência de profissionais formados pode induzir a uma
interpretação falsa para a época. É preciso lembrar que o recurso aos sangradores não
necessariamente indica falta de atenção ou cuidados ou mesmo resistência de assumir gastos com o
tratamento dos escravos. Ainda no século XIX era usual o recursos a barbeiros e sangradores por
amplos setores da população, inclusive em hospitais.16 Ao lado da ganância dos traficantes e da
escassez de médicos, a opção pelos sangradores se explica também pelo imaginário popular, onde a
cura passava longe dos métodos prescritos pela nova medicina acadêmica vigente à época e
representada pelas duas escolas de medicina criadas no Brasil em 1808, a da Bahia e a do Rio de
Janeiro.17 Vale lembrar que os senhores e escravos, por exemplo, conviviam muito próximos uns
dos outros no cotidiano da cidade, o que certamente poderia facilitar o intercâmbio cultural entre
eles.18
Com o objetivo de maximizar o preço de venda dos escravos recém chegados, os
comerciantes lhes davam um tratamento diferenciado que incluía banho e duas refeições diárias 19
com pirão de farinha de mandioca e fubá de milho. Procuravam utilizar cozinheiros negros para
conquistar maior confiança dos africanos, também davam-lhes frutas para evitar o escorbuto20.
Recebiam a primeira refeição por volta das nove da manhã e a segunda às três da tarde. Para evitar
os suicídios atribuídos em grande parte à nostalgia e convencer os compradores da saúde dos

15
Mendes, Luiz Antonio de Oliveira. Discurso acadêmico: Lisboa 1812. Apud CONRAD, Robert E. Tumbeiros. O
tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. Cf. Karasch. Op. Cit. p. 79
16
Cf. Pimenta, Tânia Salgado. Entre sangradores e doutores: práticas e formação medica na primeira metade do século
XIX. Cad. Cedes, Campinas, v23, nº 5, p. 91 -102, abril 2003. Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> acesso
16/06/08 - 22:30.
17
Santos Filho, op. cit. p.6.
18
Cf. Soares, Marcio de Sousa. Médicos e Mezinheiros na Corte Imperial: uma herança colonial. História da Ciência e Saúde,
Maguinhos, Rio de Janeiro. V.1 nº 2 Ŕ 2001. pp. 407 Ŕ 438.
19
Karasch. op. cit. p.78.
20
Síndrome provocada por ausência de vitamina C. Comum entre aqueles que consomem dietas pobres em alimentos
frescos (as equipagens e os africanos embarcados como escravos por exemplo). O primeiro povo a aprender uma
forma de curar o escorbuto foram os índios canadenses, familiarizados, com a ocorrência a da moléstia no inverno
rigoroso da área que hbitavam; eles teriam recomendado uma infusão de galhos de um arvore da espécie anneda (
Ŗacúleo de abetosŗ) aos tripulantes atacados pela doença na expedição do francês Jacques Cartier ao rio São Lourenço
em 1536. Amaral vol. I (1963 :136-7)
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escravos, muitos comerciantes davam-lhes pimenta (usada como estimulante gástrico e intestinal). 21
Outra forma de curar a nostalgia era o incentivo à dança e o canto coletivo de músicas de sua terra
natal. Aqueles que se recusavam a tomar parte na dança eram forçados pelo feitor. Desta forma o
som das palmas e cantos dos africanos contribuíam para o bom funcionamento do Valongo. 22 Para
mantê-los vivos tinham ainda que cuidar de suas enfermidades e vaciná-los contra varíola.
A vacina anti-variólica
Em julho de 1798, portanto logo após Edward Jenner23 ter anunciado a conclusão dos
estudos sobre a vacina anti-variólica,24ela interessou ao governo português que recomendou aos
governadores das capitanias brasileiras providências no sentido de adotá-la. A primeira vacinação
antivariólica foi efetuada aqui por Francisco Mendes Ribeiro, cirurgião-mor do Primeiro
Regimento de Milícias do Rio de Janeiro. No mesmo ano ele já vacinava no Rio de janeiro, com
ótimos resultados. Quatrocentos e setenta e sete pessoas de ambos os sexos e idade, variando entre
vinte e um e cinqüenta anos, foram vacinadas sem incidentes. Apesar de tudo, o povo mostrou-se
temeroso e refratário à novidade, e Mendes Ribeiro não encontrou seguidores. Ele empregou o pus
vacínico retirado de secreção de pústula variólica e inoculado de indivíduo a indivíduo, pois a linfa
de Jenner só seria importada muitos anos depois.25 Através do patrocínio do brigadeiro Felisberto
Caldeira Brant Pontes Oliveira e Horta (marquês de Barbacena), os negociantes da Bahia, enviaram
a Lisboa o cirurgião Manoel Rosa com sete escravos, para trazerem o pus vacínico. Recomendado
especialmente ao cirurgião-mor Teodoro Ferreira de Aguiar, Moreira Rosa recebeu instruções e
regressou a Bahia. Inoculando os negros um a um de braço em braço chegou a Salvador em 31 de
dezembro de 1804. Após a chegada vacinou-se o próprio brigadeiro Brant Pontes, seu filho, o
futuro visconde de Barbacena e outros habitantes da capital baiana. Após seis meses haviam sido
inoculados mil trezentos e trinta e nove crianças, pelo médico José Avelino Barbosa e pelo cirurgião

21
Cf. Karasch.op. cit. p. 79-80.
22
Freireyss. Op. Cit. P.130.
23
A vacina contra varíola foi anunciada por Edward Jenner em 1796. Filho (1977:270). Op. cit.
24
Fernandes, T.: ŘVacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal)ř. História,
Ciências, Saúde ŕ Manguinhos, VI(1): 29-51, mar.-jun. 1999. cf Ŕ Chalhoub, Sidney Cidade febril: cortiços e epidemias
na Corte imperial. São Paulo Companhia da Letras, 1996. p.105.
25
Santos Filho, op. cit. p. 270).
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Francisco Rodrigues Nunes.26 A coleta de material para novas inoculações era feita em consultas
realizadas nas pessoas vacinadas no oitavo dia apos a vacinação, motivo pelo qual era importante o
retorno das pessoas ao local de vacinação.27
Ao observamos o índice de não comparecimentos na revisão do 8º dia indicado nas tabelas
abaixo para que os médicos pudessem fazer o acompanhamento e a verificação da validade da
vacina, percebemos como era grande a dificuldade dos médicos em continuarem o trabalho da
vacinação, pois o método de propagação braço a braço dependia do comparecimento do vacinados
após oito dias para que o pus fosse extraído de sua pústula e fosse utilizado na vacinação de outras
pessoas. Essa resistência em voltar ao oitavo dia a Casa da Instituição da Vacina dificultava a
continuidade do trabalho
Entre 1804 e 1818 a vacina era aplicada na Casa da Câmara e não existem registros sobre o
número ou as condições em que essa vacinação era realizada. Segundo indica a documentação do
Instituto Vacínico:
Tem se vacinado na Caza da Instituição desde o ano de 1811, até julho do presente ano,
102.719 indivíduos, não se fazendo menção dos que se vacinarão na Caza da Câmara
desde 1804 até o fim de 1818 que nada se publicou. 28

A vacina era gratuita e aplicada anualmente a qualquer um que levasse seus escravos aos
postos vacínios mantidos pelo governo. Segundo escreve o viajante alemão G. W. Freireyss que
visitou o Valongo em 1814:
As doenças eram inúmeras e pareciam estar relacionadas a fadiga as misérias e maus tratos
que sofreram na viagem e de que são de conseqüências. Muitos morrem de febres
infecciosas, desenteria, escorbuto, nostalgia etc., antes de chegarem ao novo senhor, mas
também muitas vezes logo depois. A varíola vitíma também anualmente uma grande
porção dos infelizes, não obstante, porem, podem ser vacinados gratuitamente, para o que
o governo mantém postos vacínios em muitos lugares. A indiferença, porem dos
traficantes pela vida dos escravos é tão grande que não utilizam-se destes postos úteis até
aqueles que conduzem escravos para o interior saem da capital sem terem vacinado um só
preto. Não se pode negar, todavia que a maior parte sucumbe por falta de cuidados e bens
médicos29.

26
Santos Filho, op. cit. p.p. 271-272.
27
Fernandes, op. cit. pp. 29-51. cf. Chalhoub, op. cit. 105.
28
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacínio Ŕ 1833. Op. Cit.
29
Freireyss. op. cit. P.130. grifos meus.
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Preocupado em contornar a saúde pública o Príncipe Regente D. João, criou em 1811 a


Junta Vacínica da corte, órgão responsável pelo controle e difusão da vacina antivariólica. Além de
tentar conter e solucionar a questão da epidemia de varíola, junto à população, podemos classificar
esse novo órgão como de Ŗprotetorŗ dos membros da Corte e do próprio D. João, que vivenciaram
e tiveram perdas familiares aumentando seu pavor em relação à doença fatal. A Junta significou o
início da implantação da prática médica como organização estatal, no combate as epidemias, mas
inicialmente não teve os resultados esperados, mesmo sendo vacinadas entre 1811/1833, 102.719
pessoas.30 Boa parte dessa população imunizada era constituída por escravos, tanto os recém
chegados quanto os que trabalhavam nos engenhos do Recôncavo da Guanabara. 31 Mas apesar da
gratuidade da vacina, muitos traficantes e compradores de escravos não recorriam a vacinação. Os
inspetores da vacina apelavam para todos argumentando:
[...] hé se esperar que alguns incrédulos se convenção desta verdade, e mandem de vacinar seus filhos e
escravos; não deixando também de os mandar no 8º dia á casa da de Instituição para serem observados. 32

Ao ser criada, a instituição vacínica subordinou-se à Fisicatura, cuja atribuição era, até
então, de fiscalizar a medicina. A junta vinculava-se também à Intendência Geral de Polícia ŕ órgão
que tinha, entre seus funcionários, um oficial de polícia ŕ considerada fundamental para a
efetivação das medidas propostas. Apesar do projeto ambicioso de D. João no sentido da difusão
plena da vacina antivariólica, a atuação da junta foi muito inexpressiva diante da magnitude dos
problemas decorrentes da doença, tanto na capital como nas demais províncias.33 A vacina vinha da
Inglaterra, era usada na Corte, e também enviada por ordem do governo para algumas vilas e
províncias. Segundo depoimentos dos inspetores de vacina desde a sua introdução diminuíram
muito, as mortes em decorrência da chamada bexiga (varíola), principalmente crianças.34 Ao
analisarmos a quantidade de pessoas vacinadas na corte nesse período em relação ao número de

30
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ Casa da Instituição Vacínica do Rio de Janeiro, 15 de julho de 1833 Ŕ Hercules Octaviano Muzzi Ŕ
Inspetor de vacinas.
31
Cf. Rodrigues, Festa de chegada... op. cit. p.105.
32
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacinio - 1833
33
Fernandes. Op. cit. pp. 29-51.
34
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacínio - 1833
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escravos recém chegados da África, percebemos que um número relativamente pequeno de escravos
era vacinado.

Através dos mapas da vacina da Junta Vacínica,35 podemos constatar que, no período de
1811 a 1826, foram vacinados 36.927 pessoas, e que no mesmo período entraram no porto do Rio
de Janeiro um total de 338.90036 escravos.

A partir desses podemos constatar que do total de vacinados para o período nem todos
eram escravos e que esse número representa apenas 10,9% do total de escravos desembarcados no
período, chegamos a constatação que um número muito grande de escravos não eram vacinados,
comprovando a avaliação de Freireyss de que muitos traficantes não levavam os escravos para
serem vacinados.
Alertamos para o fato de que esses dados, não representarem o total dos vacinados, apenas
os casos registrados. Pois, apesar de todas as buscas na documentação da Junta Vacínicano Arquivo
Nacional, faltam registros para alguns anos; por outro lado havia casos de pessoas livres e escravas
que eram vacinadas pelos professores de medicina, que não eram registrados, mas apesar disso os
inspetores de vacina fizeram uma avaliação positiva do serviço de vacinação:
[...] vê-se a vantagem da vacina vai tendo dia a dia nesta capital e se juntarmos á isto o grande número
dos que se vacinão particularmente por todos os professores de medicina chegaria a hum numero
extraordinário. [...].37
Encontramos mapas de vacinação apenas para os anos de 1820, 1828, 1833 e 1834, sendo
que para os anos de 1833 e 1834 os inspetores fizeram dois relatórios anuais, um para o primeiro
semestre e outro para o segundo semestre. No relatório de 1820, o inspetor foi mais detalhista (Cf.
tabela Ŕ 1) que os seus colegas dos anos posteriores, pois nos fornece o número mensal de
vacinados.
Tabela Ŕ 1 Ŕ número de indivíduos que foram vacinados na Casa da Câmara Ŕ 182038.

35
Esses relatórios não nos dão conta de quantos desses que foram vacinados eram escravos novos sabemos que além
dos recém chegados também eram vacinados os ladinos. Cf. Ŕ ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacinio Ŕ 1833. Op. Cit. Para
informações mais detalhadas Cf. HONORATO. Cláudio de Paula, Valongo o Mercado de Escravos do RJ (1758-
1831) Dissertação Mestrado, UFF, 2008.
36
Cf. Florentino, op. cit. p. 51.
37
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacinio Ŕ 1833. Op. Cit.
38
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ Instituto Vacínio Ŕ RJ 1809 Ŕ 1830.
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População Sexo Marcas da Não total


vacina* comparec
eram
Brancos Pardos Negros Índios Mas. Fem. V F Total -
Jan 44 23 258 - 212 123 168 9 158 335
Fev 46 24 181 - 166 85 80 3 168 251
Mar 34 14 99 - 58 89 44 1 102 147
Abr 60 19 168 - 162 85 54 1 192 247
Mai 36 8 121 - 127 38 34 - 131 165
Jun 25 18 107 1 102 49 33 5 113 151
Jul 63 24 137 - 148 76 68 1 155 224
Ago 97 45 177 1 217 103 122 3 195 320
Set 67 27 124 1 130 89 68 2 149 219
Out 58 24 146 4 132 100 78 3 151 232
Nov 30 25 105 - 85 79 46 2 116 164
Dez 33 23 176 1 165 68 54 6 173 233
Total 593 284 1.803 8 1.704 984 749 36 1.809 2.688
* marcas da vacina. V= verdadeiras Ŕ F= falsas

Podemos constatar que realmente a maioria dos vacinados eram os escravos, mas é
impossível saber qual o percentual de escravos vacinados. O que pode ser dito é que em 1820
entraram na cidade 21.140 negros novos. Nesse ano foram vacinados 1.803 negros, número que
corresponde a apenas 8,53% do total das entradas. Podemos, portanto, afirmar que o número de
negros novos vacinados era muito pequeno, a não ser que a grande maioria deles estivesse sendo
vacinada fora do controle oficial. O relatório do inspetor informa que dos vacinados no mês de
janeiro um teve bexigas (varíola) ao quarto dia, mas ficou bom; em abril três crianças tiveram febres
sem erupções; em julho Ŗ1 teve bexigas naturaes do concurso com a vacina, reagindo esta o seu andamento
regular”; em agosto dois vacinados tiveram erupções sem nenhuma febre no quarto dia; em outubro
um teve ao décimo segundo dia duas varicelas no rosto e em uma mão.39
A comparação dos dados sobre a vacinação nas décadas de 1820 e 1830 permite uma
avaliação das condições de difusão da prática da vacinação na cidade do Rio de Janeiro. Vamos nos
deter aqui nas informações referentes aos anos de 1828 e 1833. Infelizmente não obtivemos dados
para completar todo o período entre 1820 a 1834, o que nos deixa uma lacuna e não podemos
saber com certeza quantos escravos foram vacinados, mas mesmo observando isoladamente os
números de 1820, 1828, 1833 e 1834, em que foram vacinados 1.803, 513, 2.143 e 2.117 escravos

39
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacinio Ŕ 1833 Ŕ Theodoro Ferreira de Aguiar Ŕ Inspetor de vacinas.
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respectivamente, e associando a isso a informação do inspetor da Junta Vacínica que de 1811 a


1834 foram vacinados 104.697 pessoas40.
Para justificar o progresso alcançado com a vacina, o inspetor utiliza os mapas de vacinação
do ano de 1833, em que ele observa que no primeiro semestre foram vacinadas 2.517 pessoas e que
no segundo semestre 1.135 pessoas receberam a vacina, se comparamos esses números com o mapa
de 1828, quando foram vacinados 6.338, veremos que na realidade houve uma queda no número
de vacinados. Mas se compararmos os dados dos mapas de vacinação apenas para o número de
escravos vacinados, concordaremos com os inspetores da Junta Vacínica sobre o aumento no
número de vacinados, pois em 1828 foram vacinados 513 escravos contra 2.143 em 1833. Mas a
essa conclusão temos que acrescentar que em 1821 a população da cidade já era de 112.695
habitantes, entre eles 55.090 escravos. Diante desses números, podemos mais uma vez concluir que
o número de vacinados foi pequeno. Esses números comprovam a idéia de que a população da
cidade estava sob constate ameaça das doenças epidêmicas. Por outro lado, mesmo não tendo os
números para cada ano, podemos então chegar a conclusão que realmente a média de vacinados
aumentou, mas se compararmos tal número com o número de escravos que entraram no porto
durante o período 1811 a 1830, que foi de 490.840 reforça a idéia de que o número de escravos
vacinados era muito pequeno, levando-se em conta que o número total de vacinados para o
período representa apenas 21,33%41 do total de entradas de escravos no porto do Rio de Janeiro
Era consenso entre as autoridades médicas da época que o tráfico de escravos era o grande
responsável pelas epidemias de varíola na cidade. Mesmo que essas idéias fossem pautadas em
estereótipos, não podemos negar que elas tinham algum amparo na realidade. Ao pesquisarem a
relação existente entre o Brasil e a África no que diz respeito à transmissão epidemiológica da
varíola, do século XVI a primeira metade do século XIX, Dauril Alden e Joseph Miller concluem
que em períodos de seca em determinadas regiões da África havia epidemia de varíola e que essa
doença era transmitida para o Brasil através do comércio negreiro. As secas prolongadas
provocavam a fome, então estes indivíduos estariam em estado inadequado de nutrição e,

40
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ InstitutoVacínio Ŕ 1834 Ŕ Hercules Octaviano Muzzi Ŕ Inspetor de vacinas.
41
Voltamos a lembra que o número total de vacinados abrange, brancos, pardos, negros novos e ladinos e em algumas
ocasiões até índios. Vide tabelas 6,7,8,9,10, e 11.
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submetidos a condições sub-humanas características desse tipo de comércio, o que os tornava presa
fácil de doenças epidêmicas como a varíola, e também seus transmissores no Brasil.42 Os autores
observam que a fome e a seca continuam ocorrendo nessas regiões da África e que o fluxo de
cativos vindos dessas regiões o para o Brasil é continuo. No entanto, a transmissão da varíola
diminui a partir da introdução da vacina jenneriana.
Por outro lado perceberemos que o número de escravos vacinados em 1820, corresponde a
67,08% do total de vacinados naquele ano, sem levarmos em conta os vacinados fora da Casa da
Instituição. Observamos que a população escrava representava 45,6% do total da população em
1821, portanto mesmo sendo no conjunto total de vacinados, o número de escravos maior. Prova
que existia um enorme esforço por parte da junta em imunizar os escravos, mas esse esforço era
muito limitado.O número de vacinados em 1820 de acordo com o mapa da Junta Vacínica, em
termos percentuais representa apenas 3,27% da população escrava presente no censo de 1821.
Mesmo que os relatórios dos médicos da Junta Vacínica, favorecessem esses registros, os números
demonstram, ainda assim, uma grande resistência da população em aceitar a vacinação.

Mas se nos debruçarmos sobre os relatórios dos inspetores da Junta Vacínica com um olhar
otimista, pelo menos no que diz respeito à vacinação dos escravos, o serviço de vacinação teve um
resultado relativamente bem sucedido, ao longo da década de 1820, especialmente em 1828 com
um total de 6.338 vacinados. Destes, 4.766 eram escravos.43 Por outro lado ao analisarmos os
mapas de vacinação notamos que a Junta de Vacinação da Corte não conseguia acompanhar o
ritmo de crescimento da população, basta para isso observarmos número de habitantes e a
quantidade de vacinados a cada ano.
FONTES
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
- Códice Ŕ 6.1.43 Ŕ Comissários que negociavam escravos e outros bens.
- Códice 6.1.9 Ŕ Autos de homens de negócios e comerciantes de escravos Ŕ pp. 78-79.
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro

42
Alden e Miller apud Chalhoub, op. cit. p. 110.
43
ANRJ Ŕ IS442 Ŕ Casa da Instuição Vacínica do Rio de Janeiro, 15 de julho de 1833 Ŕ Hercules Octaviano Muzzi Ŕ
Inspetor de vacinas. Op cit. Cf Chalhoub, Op cit.p.112.
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- Códice 70, v.7, p. 231


- IS442 Ŕ Instituto Vacínio Ŕ RJ 1809 Ŕ 1830.
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
- Relatório do Marques de Lavradio Vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de
Vasconcelos e Souza, que o sucedeu no vice-reinado Ŕ 19 de jun. de 1779, publicado na Revista do
IHGB. Rio de Janeiro, T. 4, vol. 4, nº 16, pp. 452-453, 1843.
Arquivo Histórico Ultramarino
- Códice 226, p. 249.
- Avulsos RJ, cx. 84, doc. 19.
- Códices Rio de Janeiro, cód. 225.
LITERATURA DE VIAGEM E ICONOGRAFIA

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Wagner e Julio Bandeira. Petrópolis/RJ: Kapa, 2000.

FREIRYSS, Georg W. Viagemao interior do Brasil nos anos de 1814-1815. Trad. Alberto Löfren.
São Paulo: 1906.

SCHICHTHORST, C. O Rio de Janeiro como é (1824-1825). Senado Federal Ŕ Brasília Ŕ 2000.

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Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Companhia da Letras, 1996.

________ (org). Artes e Ofícios de Curar no Brasil. Campinas - SP: Editora da Unicamp, 2003.

CONRAD, Robert E. Tumbeiros. O tráfico escravista para o Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CAVALCANTI, Nireu Oliveira. A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: As muralhas, sua gente,
os construtores (1710 Ŕ 1810). Tese de Doutorado Ŕ Rio de Janeiro: UFRJ, 1997.

__________. O Rio de Janeiro dos setecentos: A vida e a Construção da cidade da invasão francesa até
a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2004.

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de Janeiro. São Paulo: Companhia da Letras, 1997.
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KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
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Primeira Metade do Século XIX.” Cad. Cedes, Campinas, v23, n. 59, p. 91-102 abril 2003 Ŕ
Disponível em http://www.cedes.unicamp.br

SANTOS FILHO, Licurgo. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo, Edusp/Hucitec,
1991.

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A TEATRALIDADE DO PODER: A POLÍTICA NO TEATRO E O TEATRO


DA POLÍTICA (1830-1840)

Daniel Mandur Thomaz

RESUMO
Esse trabalho discute a relação entre Política e Teatro no Período das Regências no Brasil
(1831-1840), momento de instabilidade política devido a Abdicação de D.Pedro I e conseqüente
vacância do Poder Executivo. Nesse contexto, idéias republicanas estarão em embate com o projeto
político de um liberalismo monarquista e conservador, que teme a radicalização do processo que
culminou com a saída do antigo monarca. A utilização do espaço do teatro como forma de
espetacularizar a autoridade, assim como as táticas de legitimação de idéias políticas através da
sensibilização estética são os focos dessa pesquisa. As relações entre teatro e poder, tanto no espaço
físico do teatro como na virtualidade do texto teatral, são capazes de apontar o aspecto estético dos
mecanismos de poder, assim como o aspecto político da arte.

Palavras-Chave: Teatro Ŕ Regência Ŕ Política

INTRODUÇÃO.

A teatralidade do poder é parte integrante da política. Os gestos e a entonação que compõe


a oratória, as formas de visibilidade dos regimes - com suas insígnias e estandartes - o espetáculo dos
Ŗrapapésŗ e dos rituais políticos que caracterizam as liturgias parlamentares e as comemorações nas
datas nacionais. A autoridade precisa do espetáculo porque é dessa forma que ela se faz visível.
Assim, o Estado ganha materialidade através de discursos e práticas. Da mesma maneira, nenhuma
forma de arte é ingênua ou neutra, dado que a produção estética não é dissociada das relações de

Mestre em História Política (UERJ- 2009). E-mail: thomaz.hist@gmail.com


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poder que caracterizam seu contexto histórico e social. Isso significa dizer que o discurso da arte
também oferece ferramentas para pensar as relações sociais e a política.
No período de estruturação do Estado brasileiro, teremos a constituição dos atores políticos
e dos projetos de poder que irão se enfrentar em busca de legitimidade. Esses embates tomarão
conta dos espaços públicos da Corte, nas ruas e nos jornais, e chegarão às salas de espetáculo. Ali,
no teatro, o público assistirá a espetáculos que fazem referência, direta ou indiretamente, à
conturbada atmosfera política e social que caracteriza o Período Regencial brasileiro e, mais do que
isso, as platéias muitas vezes passarão de espectadores passivos a importantes atores no cenário
político que se desenha na Corte imperial.
A Regência (1831-1840) foi marcada pela vacância do Poder Executivo após a Abdicação de
D.Pedro I, momento caracterizado pela hibernação do princípio monárquico no Brasil: uma
Ŗexperiência republicanaŗ12, como preferem alguns autores, a separar o Primeiro Reinado (1822-
1831) e o Segundo (1840-1889). Além disso, será um dos momentos mais conturbados do século
XIX, marcado por revoltas em inúmeras partes do Brasil - de Norte a Sul - dos Cabanos sublevados
na província do Pará aos Farrapos do Rio Grande do Sul.
Além disso, é no período Regencial que tradicionalmente se aponta para um marco
fundamental de nossa dramaturgia: a encenação ocorrida no dia 13 de março de 1838, quando a
Companhia de João Caetano representa a peça Antônio José, ou a Inquisição e o Poeta, de Gonçalves
de Magalhães, no Teatro Constitucional Fluminense. Considerado como marco fundador do
Teatro Nacional pela historiografia, esse momento tornou-se emblemático porque foi a primeira
vez que uma peça escrita por um brasileiro é montada e encenada por uma Companhia teatral
brasileira, com elenco exclusivamente brasileiro e protagonizada por João Caetano. O Jornal do
Commercio de 22 de Março de 1838 celebra esse acontecimento com a publicação dos versos de
Gonçalves Magalhães em homenagem a João Caetano:

Uma estátua compus;dei-lhe a palavra,

1
Expressão de Paulo Pereira de Castro em artigo consagrado sobre essa temporalidade. Ver: CASTRO, Paulo Pereira
de. A Ŗexperiência republicana, 1831-1840. In Brasil Monárquico: dispersão e unidade/ por Fernando Henrique
Cardoso...[et al] Ŕ 6.ed. Ŕ Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

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E tu lhe deste o movimento e a força.


Iguais porções de glória a nós pertencem;
E como esta obra a nós deve a existência,
No futuro talvez nós lha devamos.
N‟arte sublime que às paixões da vida,
sempre mestre e discípulo de ti mesmo,
os vôos de Talma com que tu sonhas,
avante segue, escurecendo a inveja,
que já não ousa disputar teu gênio.
Tu deixarás teu nome; avante, ó jovem.
Que a glória que predizem teus amigos
será pelo porvir sancionada.3

Profetizando sua inclusão no cânone literário, como marco fundador do Teatro no Brasil, a
peça louvada no poema acima se inscreve muito mais pelas circunstâncias de sua montagem do que
pelo brilho do texto, ademais considerado medíocre por inúmeros críticos posteriores. Assim, por
exemplo, se pronuncia a seu respeito Silvio Romero:
Sua tragédia é uma obra incolor, sem vida, sem um só tipo verdadeiramente
acentuado, sem ação dramática. É um desconcerto perpétuo.4

Escrita em Bruxelas no ano de 1836, a peça de Gonçalves Magalhães era, no entanto,


comemorada pelo Jornal do Commercio como Ŗum monumento de mais à Pátriaŗ5. A peça obedecia
aos moldes clássicos dos cinco atos em versos decassílabos, e mais às unidades de tempo, lugar e
ação Ŕ por sinal recomendadas desde a Arte Poética de Aristóteles6. João Caetano iria se celebrizar
pela representação cheia de excessos, própria do melodrama7, o que lhe garantirá mais tarde Ŕ já na
década de 1850 - a forte oposição daqueles que buscavam um teatro realista nos moldes da
dramaturgia realista francesa. No que diz respeito ao texto de Magalhães, o que traz de culto
nacional aparece na condenação do atraso mental do antigo colonizador, encarnado na instituição

3
Jornal do Commercio, 22/03/1838.
4
ROMERO, Sílvio (1851-1914). História da Literatura Brasileira. 7ªEdição. Volume 3. Rio de Janeiro: J. Olympio;
Brasília : INL, 1980.
5
Jornal do Commercio, 22/03/1838.
6
ARISTÓTELES. Arte Poética. Trad. Pietro Nasseti. Martin Claret: São Paulo, 2003.
7
Sobre as características típicas do Melodrama e suas condições de produção ver:
THOMASSEAU, Jean Marie. O Melodrama. Trad. e notas Claudia Braga e Jacqueline Penjon. São Paulo: Perspectiva,
2005.
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do Santo Ofício, mostrando também fortes componentes anti-clericais. No entanto, em seus


aspectos formais a peça é profundamente conservadora.
Além disso, no mesmo ano de 1838, a companhia de João Caetano encena O Juiz de Paz na
Roça, uma sátira aos costumes de época numa clara referência ao cargo criado a partir do Ato
Adicional de 1834, que instituía juízes civis para resolver casos que circunscrevessem aspectos de
direito civil. Esse mesmo Ato Adicional garantiu maiores liberdades provinciais e descentralização
administrativa, expondo a vitória do Parlamento sobre o poder Executivo, característica marcante
da Ŗexperiência republicanaŗ do Período Regencial. Relegado a um plano inferior, as comédias
eram consideradas gêneros menores, em oposição ao status de grande arte das Tragédias e Dramas,
o que relegou Martin Pena a um plano secundário na dramaturgia daquele momento.
No entanto, é importante frisar que os anos da regência serão marcados por importantes
manifestações tanto no espaço físico do teatro como no âmbito da construção de textos teatrais.
Em ambos os casos, tais manifestações terão forte conotação política. No entanto, será no espaço
virtual do texto teatral que interessantes embates serão travados entre diferentes facções políticas,
em todo caso sempre embebidos em forte conotação satírica. Talvez por isso, pelo forte conteúdo
satírico e pela virulência dos ataques morais, tais peças tenham sido relegadas a segundo plano,
tendo em vista que a comédia satírica foi vista como gênero menor na época.
Antes de analisarmos esses textos, anteriores ao suposto Ŗmarco fundadorŗ de Gonçalves
Magalhães, se faz pertinente elencar algumas ferramentas que tornarão possíveis essa análise.

DELIMITANDO O PROBLEMA

Na década de 1830 ocorre no Brasil uma transformação na natureza dos escritos e na forma
como sua circulação afeta a sociedade. Essa transformação pode ser entendia no quadro das
rupturas com os tipos de comunicação que caracterizavam o espaço público do Antigo Regime,
como gazetas, pregões, exibição de cartazes impressos, leituras coletivas e proclamações em voz alta,
para um espaço público onde ganhavam terreno as leituras privadas e individuais, onde tem lugar a
construção de uma opinião de caráter mais abstrato, fundamentada pela crítica de cada Ŗcidadão-

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leitorŗ.8 Claro está que a primeira metade do século XIX pode ser caracterizada como um momento
onde essas duas formas irão coexistir, onde o arcaísmo e a modernidade política estarão em
constante confronto no espaço público.
Nesse sentido, os indivíduos agrupados em torno de determinadas tendências políticas
utilizarão a imprensa para dar vazão a suas idéias e proposições, gerando uma expansão da noção de
política e de espaço público que, independente da tendência defendida em cada caso, constitui
uma ampliação da ação política absolutamente impressionante. Nesse contexto, o teatro e as peças
nele encenadas apresentam-se também como dilatação desse espaço público. O discurso da arte
aparecerá como uma forma de mobilizar a sensibilidade e excitar a percepção do público para os
embates e discussões que tem lugar no universo político.
É importante ressaltar que o público leitor era relativamente pequeno devido ao alto grau
de analfabetismo existente entre a população. Dessa forma, é de se esperar que o público alvo dos
jornais fosse composto por membros de uma elite letrada e, portanto, com grandes chances de
serem pertencentes a chamada Ŗboa sociedadeŗ. Nesse sentido, o teatro apresenta-se com uma
forma de atingir setores mais amplos da sociedade, na medida em que, ao serem encenados, os
textos teatrais tinham um espectro de repercussão muito mais amplo do que a literatura ou os
jornais.
No âmbito da vinculação do teatro com o universo político, muito pouco tem sido
discutido nesse marco temporal. As análises literárias sobre a produção do período tendem a ser
conservadoras, apontando para a mediocridade de concepções e estilo, sobretudo das peças de
Gonçalves Magalhães, sem se perguntar sobre a vinculação mais profunda que essas obras
guardariam em relação a seu tempo e os projetos de poder que esses textos engendrariam. A
historiografia sobre o Período Regencial, por sua vez, quando não ignora totalmente o importante
papel do teatro naquele contexto, tende a apontá-lo em seu âmbito puramente físico, como ponto
de encontro e espaço de sociabilidade, sem, no entanto, analisar o conteúdo das peças encenadas
ou a relação mais profunda entre texto e contexto. Além disso, existe uma imensa lacuna na
historiografia sobre o teatro brasileiro, que tende a saltar da fase do Teatro Jesuítico,

8
Ver: MOREL, Marco. As transformações no espaço público: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade
Imperial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005. p.205
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emblematizado pelas peças de Anchieta, para o que é considerado a fase do teatro nacional,
marcada pela encenação da peça de Gonçalves Magalhães pela companhia de João Caetano em
1838, desconsiderando assim um vasto material.
É interessante observar que o teatro teve importância fundamental nesse momento, como
ponto de encontro e de manifestações políticas que ocorriam na platéia, assim como para embates
entre diferentes projetos políticos que lançavam mão da sensibilidade estética, típica do discurso da
arte, para veicular suas propostas. Assim, através de estratégias discursivas que, ora legitimavam
determinadas idéias políticas ora desqualificavam propostas rivais - geralmente através do apelo à
comicidade - o teatro surge como poderosa arma política. A partir de 1831 teremos uma série de
peças com forte conteúdo político, que marcam esse momento de avanço nos debates sobre o
Estado e a sociedade.
Partindo da idéia de que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm
por função conjurar seus poderes e perigos, busco analisar os mecanismos de afirmação e
interdição que operam no discurso. Tanto no âmbito político, que dramatiza as hierarquias e as
formas de sujeição, quanto no âmbito da arte dramática, que teatraliza o poder e os projetos
políticos em debate na sociedade, a percepção das interdições e formas de controle que se
manifestam no discurso apontam logo para suas relação com os mecanismos de poder.
Michel Foucault defende que os discursos devem ser tratados como conjuntos de
acontecimentos discursivos. Nesse sentido, o que se propõe tratar não são as representações que
podem haver por de trás do discurso, mas sim esses discursos como séries regulares e distintas de
acontecimentos. O discurso entendido como um acontecimento é capaz de Ŗintroduzir na raiz
mesma do pensamento o descontínuo e a materialidadeŗ9. É possível buscar nesse discurso um
conjunto crítico, onde se procurará cercar as formas da exclusão, limitação, apropriação e mostrar
como se formaram, para responder a que necessidade. Assim, busca-se delinear os procedimentos
internos e externos de controle do discurso, seus desníveis, enquadramentos disciplinares e
princípios de coesão. Além disso, os rituais da palavra, as sociedades de discurso, os grupos
doutrinários e as apropriações sociais tornam-se objetos passivos de serem analisados

9
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola: São Paulo, 1996 p. 67.
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historicamente e descritos em sua dispersão. Tais noções permitem o estudo dos procedimentos de
controle e sujeição apontados por Foucault. É importante ressaltar que a noção de discurso aqui
trabalhada é desenvolvida, sobretudo, nos textos de Arqueologia do Saber e Vigiar e Punir. Outra
obra de referência para essa análise será o livro A Ordem do Discurso.
As investigações aqui propostas fazem parte de um artifício tático para empreender uma
análise das relações de poder e dos projetos políticos em jogo no Período Regencial. Para nortear
essas análises, reatualizo algumas precauções metodológicas apontadas por Foucault para o estudo
das relações de poder.
Nessa perspectiva, o poder não deve ser analisado em seu centro, mas sim em seus últimos
lineamentos, Ŗonde ele se torna capilarŗ10. A análise deve ser dirigida para onde o poder investe-se
nas técnicas e fornece instrumentos de intervenções materiais. A possibilidade de estudar os
mecanismos discursivos que laçam mão do texto do teatro para legitimar ou interditar relações de
poder é um forma de trabalhar esse princípio. Foucault defende um estudo voltado para a face
externa do poder, em contato com seus objetos, ou seja, no ponto em que o poder se implanta,
produzindo efeitos. Isso implicaria estudar o poder na altura dos procedimentos de sujeição, nos
procedimentos contínuos que sujeitam os corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos.
Outro elemento fundamental para essa análise é a noção relacional trabalhada por
Foucault, onde o poder se exerce em rede, funcionando em cadeia e não estando localizado aqui
ou ali, como uma riqueza ou um bem. ŖNinguém é alvo inerte ou consentidor do poder, são
sempre seus intermediários.ŗ11 As disputas por legitimidade e pela ocupação de espaços públicos
referem-se a esse princípio. Da mesma forma, os embates políticos que lançam mão do discurso
estético.
Para tanto é preciso buscar uma análise Ŗascendenteŗ do poder, ou seja, partir dos
mecanismos infinitesimais, que possuem sua própria história, seu trajeto, sua técnica e tática, e
depois ver como esses mecanismos de poder, que tem sua solidez, sua tecnologia própria, são
utilizados por formas de dominação global. Aqui, as estratégias que dão um revestimento estético a
mecanismos de poder, no discurso da arte e nas práticas políticas, caracterizam esse princípio.

10
FOUCAULT, Michel. . Em defesa da sociedade: curso no Collêge de France (1975-1976). trad. de Maria E. Galvão.
São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.32.
11
Idem, Ibidem. P.33.
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Além disso, também as manifestações estéticas e a arte em geral engendram saberes e


interpretações sobre os acontecimentos. A idéia de um saber-poder que produz interpretações,
regimes de verdade e que ganha materialidade no discurso da arte e nas estratégias de afirmação
política constitui noção importante para esse trabalho.
É importante lembrar que numa sociedade onde a maioria esmagadora da população - e
inclusive parte da elite - é analfabeta, o teatro surge como forma de veiculação de idéias através da
apresentação espetacularizada de textos literários. Isso é fundamental para a análise das disputas
políticas e das relações de poder que se constroem na sociedade brasileira de então. Como
indivíduos iletrados entrariam em contato com o tipo de sensibilidade estética que caracteriza esse
momento senão através da encenação das obras literárias através do teatro? E como a elite letrada
poderia sensibilizar a população inculta sobre questões políticas senão através dos espetáculos
teatrais?
Quando cotejamos a dramaturgia do período com as criticas teatrais que saem publicadas
na imprensa, temos um rico material de análise das relações de força que se manifestam no
discurso da arte, materializado nos espetáculos teatrais. Para além da relação entre as peças de
teatro e as críticas publicadas em periódicos, se soma o próprio teatro enquanto espaço público,
como lugar onde os debates são travados ora no palco, onde as relações de poder e os projetos
políticos são teatralizados, ora na platéia, onde os espectadores podem desenvolver estratégias de
crítica e contestação, interagindo e reagindo ao texto dramatizado assim como ao contexto político
que se materializa no espetáculo.

A POLÍTICA NO TEATRO

No início do século XIX a Europa encontrava-se ainda atormentada pela turbulência do


impacto da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas. As concepções políticas liberais,
vitoriosas na Inglaterra desde o século XVII e reafirmadas pela Revolução Francesa, ganhavam
terreno e difundiam-se amplamente, representando uma resistência considerável em relação às
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idéias de restauração das forças tradicionais. A falta de lugares determinados para a reunião e o
debate de idéias ao longo do processo de Independência e consolidação do Estado no primeiro
reinado (1822-1831) acabou por transformar a sala do teatro em espaço de manifestação política.
Para além do significado das peças encenadas, o próprio prédio do teatro, a sala de espetáculos
construída no Rio de Janeiro ainda em 1813 por D. João VI, passou por transformações bastante
significativas, revelando seu importante papel político na vida e na sociedade da Corte brasileira.
Situada no então Largo do Rossio, atual Praça Tiradentes, a sala é inaugurada com o nome
de Real Teatro São João. Tendo sido destruído por um incêndio em 1824, o Teatro foi
reinaugurado dois anos depois com o nome de Imperial Teatro São Pedro de Alcântara. Portanto,
como materialização dos projetos políticos em curso na sociedade, o teatro mudará de nome,
transformando a referência ao Rei D.João VI em referência a D.Pedro I. Após os inúmeros
conflitos que caracterizam as relações do primeiro monarca com a elite brasileira, e que culminam
na abdicação de 1831, o nome do Teatro mudará novamente, sendo rebatizado após 1831 como
Teatro Constitucional Fluminense. Novamente a mudança de projeto político em vigor ganhará
materialidade em um novo nome para o teatro. É importante levar em consideração que o ato de
nomear, ou renomear, está diretamente vinculado a tentativa de resignificação desse espaço público
tão importante na vida cultural da Corte.
A intensa atividade pública na cidade do Rio de Janeiro no início do século XIX pode ser
dividida entre dois tipos principais. As associadas a uma mentalidade de Antigo Regime seriam
marcadas por espetáculos da visibilidade do poder monárquico, festas religiosas, celebrações
dinásticas, aclamações e desfiles. A década de 30 será marcada também por outro tipo de atividade
pública. Pelo que as elites taxarão de Ŗanarquias do populachoŗ, inundando as ruas e espaços
públicos de violência, exclamações, vozes e gritos de oposição. A criação de redes, no âmbito
administrativo e comercial, mas também da produção e circulação de jornais e informativos,
portadores de idéias, interesses, palavras de ordem, propostas de organização e mobilização foram
cruciais na formação dos espaços públicos. Nesse sentido, o que começa a se marcar no Brasil dos
anos 1830 é que algumas dessas manifestações na rua passam a ter também conotação ligada a
cidadania, a mudança de soberania, à interferência na vida pública fora da esfera de controle das

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autoridades vigentes num esboço de modernidade política, em que as reuniões se fazem em nome
da soberania popular ou nacional.
A dimensão política da ocupação dos espaços urbanos parece estar em constante diálogo
com essas diferentes matrizes de atividade pública. O teatro tem papel importantíssimo como
espaço público nesse momento. Por vezes a sala de espetáculos será utilizada como espaço para
atividades típicas do Antigo Regime, como aclamações e formas de visibilidade do princípio
monárquico, outras vezes será no mesmo teatro que acontecerão manifestações ligadas a idéia de
soberania popular e revoltas, mais associadas a idéias de modernização política
A importância do teatro como extensão do espaço público e lugar de manifestação da
opinião pública12 é tamanha que Morel chega a compará-lo à ŖÁgora gregaŗ13. Tal fenômeno parece
ser endossado pelo testemunho do inglês Walsh, de passagem pela Corte em fins da década de
1820:
Não obstante, uma circunstância faz com que a Ópera seja um local benquisto
para os brasileiros. É onde todos os acontecimentos políticos do país –sobre os quais
eles têm grande interesse – são anunciados e concluídos. Essa instituição sozinha é
capaz de atrair os brasileiros independentemente de estar apresentando boa música
e dança14

Nesse período, inúmeras foram as celebrações ali realizadas como, por exemplo, a ocorrida
no dia 7 de Setembro de 1825, por ocasião das comemorações da independência, que contaram
com desfile militar no Campo de Santana, missa na Capela Imperial e, por fim, espetáculo teatral
às 20 horas, onde não faltaram exclamações, palavras de ordem e hinos patrióticos.
Após a Abdicação de D. Pedro I o Brasil mergulha num nebuloso período de rearranjos,
reacomodações políticas e reestruturação do Estado, marcado por grandes tensões entre a elite
política. A necessidade de estruturação do aparato burocrático para garantir a governabilidade do
país e a modernização das instituições foram processos que se deram, em grande medida, através de

12
A noção de Espaço público e de opinião pública é trabalhada de acordo com os apontamentos em HABERMAS,
C.R. Lřespace public: archéologie de la publicité comme dimmension constitutive de la société bougeoise. Paris,
1978; e KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênise do mundo burguês. Trad. Luciana
Villas-Boas Ŕ Rio de Janeiro: EDUERJ: Contraponto, 1999.
13
MOREL, Marco. As transformações no espaço público: imprensa, atores políticos e sociabilidades na Cidade
Imperial, 1820-1840. São Paulo: Hucitec, 2005.. p.234.
14
WALSH, R. Notícias do Brasil (1828-1829) Belo Horizonte : Itatiaia, 1985, vol. 1, p.204.
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conturbadas disputas entre facções da elite e acirradas tensões entre as tendências e projetos de
poder.
A partir de 1830, com a proximidade da crise que ocasionará a Abdicação de 1831, o
enfraquecimento do poder monárquico também é sentido no Teatro, já que este agora servirá de
espaço de contestação da soberania monárquica e afirmação de soberania popular. No ano de 1831
o teatro torna-se lugar de gritos e pronunciamentos públicos. Esses manifestantes serão chamados
de ŖBravos defensores da Pátriaŗ pelo redator do jornal Nova Luz Brasileira, um dos mais veementes
opositores do ex-imperador. Em oposição aos Ŗdefensores da Pátriaŗ serão apontados a Ŗcanalha da
cascadura-verde-negra que aluga os camarotes da Gáveaŗ Ŕ referência aos portugueses abastados, que
agora passavam a evitar a sala de espetáculos.15 Nesse momento de crise, quando a elite brasileira
começa ocupar-se da gestão do Estado, manifestações de lusofobia serão comuns.
No mês seguinte à Abdicação, uma série de tumultos têm lugar no Teatro. Devido à
vacância de poder, a sensação de instabilidade política e social ganha visibilidade na platéia, que
passa a reagir às peças desagradáveis com Ŗassovios e algazarrasŗ, resultando em violência por parte
do público, com quebra-quebra, gritos e insultos às autoridades em geral16. Nesse contexto de crise
é que se desenrola o chamado ŖMotim do Teatroŗ, ocorrido a 28 de Setembro de 1831, quando
forças militares, diante de um tumulto similar, abrem fogo contra os espectadores deixando
inúmeros feridos.17

O TEATRO POLÍTICO

É nesse contexto de crise e instabilidade que se trava uma das mais espetaculares batalhas de
idéias políticas no âmbito da dramaturgia. O cônego Januário da Cunha Barbosa, que contava
entre os liberais mais conservadores, chamados Liberais Moderados, escrevera uma sátira direta
sobre a dissidência liberal mais radical, os chamados Exaltados, ambos envolvidos na crise política
que culminou na Abdicação. Logo após a vacância do poder Executivo essas facções liberais
entraram em intenso embate em defesa de seus projetos políticos. Como forma estratégica de
15
Nova Luz Brasilira nº132, 19/4/1831.
16
O Republico, nº74, 9/6/1831.
17
Diário Fluminense, nº77 e 79, 30/9/1831 e 4/10/1831.
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legitimação do projeto Moderado, Januário da Cunha Barbosa, que mais adiante será um dos
fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, usa a tática da desqualificação do projeto
Exaltado, crítica que se manifesta na peça A Rusga da Praia Grande ou O Quixotismo do General das
Massas. Trata-se de uma comédia em três atos, impressa e representada na Corte. Numa clara
referência ao 7 de Abril, momento máximo da crise que indispôs a elite política contra o então
imperador D.Pedro I, a peça chama de quixotesca a disposição jacobina que os Exaltados
defendiam, com propostas de mudanças mais profundas e pronunciamentos de apelo mais popular
e revolucionário. A peça de Januário da Cunha Barbosa zombava diretamente de uma das
principais lideranças dos Exaltados, o Padre Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, participante
destacado do 7 de Abril e recolhido como preso político na fragata Paraguaçu no pós Abdicação. O
texto tenta desmoralizar a política radical e as idéias republicanas de Marcelino através de críticas
pessoais, atacando a vida dissoluta que o padre estaria acostumado a levar em Niterói.
A resposta foi breve. O padre Marcelino, mesmo estando preso, compôs uma peça satírica
em resposta ao texto do Cônego Cunha Barbosa. Intitulada O Cônego e Inês, a peça possuía forte
conteúdo cômico e fazia referência direta à situação política de então, utilizando sempre o riso e o
escárnio como arma política, tecendo no âmbito do discurso da arte, táticas de desqualificação
moral e política dos liberais Moderados. O cônego a que se refere o título da peça é claramente
Januário da Cunha Barbosa, enquanto outras figuras políticas do quilate de Feijó e Evaristo da
Veiga, todos Moderados, aparecem nitidamente ridicularizados sob os anagramas ŖJeijóŗ para Feijó
e ŖEravistoŗ para Evaristo da Veiga. Expressando idéias republicanas, consideradas ultra-radicais
para o período, e declaradamente a favor do fim do celibato, o autor assim se manifesta:
Cala-te Inês! Para o ano
O Brasil há de ser Republicano.
Se a idéia que temos não falhar,
Os padres desde logo hão de casar

Devido a seu forte conteúdo satírico e às idéias consideradas subversivas que o texto
veiculava, este foi impedido pela polícia de ser encenado. É importante ressaltar que as idéias
republicanas estiveram em intenso debate nos anos da década de 1830, quando diferentes projetos
políticos disputam espaço e legitimidade.

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O próprio D.Pedro II, em 1833 no seu aniversário de 8 anos, não escaparia das conturbadas
manifestações políticas que inundavam a principal sala de espetáculos da Corte. Para a
comemoração de seu aniversário o futuro monarca fora levado pelos ministros para assistir a
representação que ocorria no então Teatro Constitucional Fluminense, quando a tensão entre os
partidários de José Bonifácio de Andrada e da Regência acabou por roubar a cena. Os gritos e
palavras de ordem, em nítido desrespeito a presença do futuro monarca, geraram tumulto e grande
concentração do lado de fora do Teatro.
No mesmo ano em que a aclamada peça de Gonçalves Magalhães é encenada, o Padre
Justiniano da Cunha Pereira, redator do jornal mineiro Paraibuna, faz imprimir na oficina do
mesmo jornal a peça Clube dos Anarquistas. Esse texto teatral é praticamente ignorado pela história
do teatro, sendo apenas citado por Wilson Martins na sua História da Inteligência Brasileira, sem que
nenhuma análise seja feita. A peça pode ser lida como parte integrante do período do chamado
ŖRegressoŗ que, sobretudo a partir de 1837, aponta para a o retorno ao princípio monárquico que
terá seu clímax no golpe da maioridade de 1840. O texto lança mão da já conhecida estratégia de
desqualificar o ideário republicano tratando-o como anárquico. Como forma de satirizar os radicais
que, sobretudo após 1835, serão perseguidos e calados por facções que defendiam um liberalismo
mais conservador, o texto ridiculariza duramente as revoltas e rebeliões do período. Através do
apelo ao cômico e ao patético o autor busca de todas as formas invalidar as idéias radicais.
A tomada do espaço do teatro pelo embate entre projetos tornar-se-á cada vez mais intenso
na década de 1830 e possibilitará a formação de uma censura teatral especializada que terá como
incumbência avaliar as peças a serem encenadas. A construção dessa censura será em 1837 e,
portanto, junto com a política do Regresso que buscará, no âmbito do teatro, readquirir o controle
sobre esse importante lugar de discussão. A censura teatral era defendida como forma de remediar
os Ŗperigosŗ a que ficaria exposta a Ŗmocidade brasileiraŗ diante das peças com idéias consideradas
potencialmente subversivas. Esses medos são expressos pelo Deputado Paulo Barbosa:
A inspeção dos teatros está entregue aos juízes de paz, e acontecendo que nem
sempre esses juízes sejam homens literatos, tem acontecido desgraçadamente pôr-se
em cena peças mais capazes de perverter a mocidade do que de corrigi-la.18

18
Jornal do Commercio, 27/06/09.

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Nesse contexto é importante discutir em que medida a peça de Gonçalves Magalhães,


encenada em 1838, teve relevância nesse processo. Considerada o grande marco fundador do
teatro nacional, essa peça parece muito mais o momento decisivo para a domesticação do teatro
como espaço público, e da dramaturgia como forma de veicular idéias regressistas. Nesse sentido,
Gonçalves Magalhães poderia ser considerado regressista no âmbito do teatro assim como
Bernardo Pereira de Vasconcelos seria um regressista no âmbito estrito da política.
Esse mesmo contexto é marcado por intensas disputas entre as companhias teatrais
portuguesas e a companhia brasileira de João Caetano. A rivalidade logo se transformaria em
questão política, na medida em que esses grupos não podiam subsistir sem substanciosos auxílios
oficiais, concedidos em geral sob a forma de loterias públicas.
A percepção da importância do teatro enquanto espaço público fez com que o poder
monárquico buscasse a todo custo ocupar e controlar esse espaço. Mesmo porque, abandonar esse
local a vontade popular significaria abrir mão da soberania sobre uma parte bastante relevante do
espaço público. Em 1840, quando é decretada a Maioridade de D.Pedro II, será no mesmo teatro,
agora Imperial Teatro S. Pedro de Alcântara, a celebração da posse do jovem monarca e sua
aclamação ao trono.
Nesse sentido, uma tragédia neoclássica como o Antônio José de Gonçalves Magalhães é bem
mais pertinente ao chamado Regresso conservador do que a sátira burlesca ou o próprio Drama
nos moldes românticos. Isso porque tanto o drama quanto a sátira são compostos por elementos
típicos da comédia, e seu apelo é em relação a ação, ao acontecimento, trazendo embutida a idéia
de que os homens são os atores de sua própria estória e imputando a eles a responsabilidade pelos
seus atos. Na tragédia, o centro da trama é o destino, a incapacidade do homem frente ao acaso, e
isso é a expressão máxima da conservação, algo que certamente melhor se coaduna com o
momento histórico no qual a tragédia escrita por Magalhães foi encenada.
O retorno ao princípio monárquico em 1840 foi legitimado pelo discurso que clamava pela
ŗordemŗ como contraposição à Ŗanarchiaŗ republicana. Portanto, a conservação da ordem no

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discurso da arte seria melhor representada pela tragédia neoclássica de Magalhães do que pelas
sátiras políticas dos dramaturgos brasileiros que foram seus contemporâneos.

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MOVIMENTOS COLETIVOS: A POTÊNCIA DOS "SUJEITOS ORDINÁRIOS"


DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Daniela Bruno Quintanilha
Mairce da Silva Araújo
Jacqueline de Fátima dos Santos Morais

Resumo
A partir das narrativas de professoras, a comunicação fundamentada na pesquisa ŖMemórias,
narrativas e histórias: a educação de jovens e adultos de São Gonçalo/RJŗ desenvolvida junto ao
Mestrado em Educação, da Faculdade de Formação de Professores, recuperando a trajetória da
EJA/SG, 1990/2010, revela uma história de desafios, redes de solidariedade e disputas na luta pela
efetivação do direito da população à escolarização, e nos remete a compreensão da história como
possibilidade (FREIRE, 1999) e como construção cotidiana.

Palavras-chave: Educação de jovens e adultos; história; Ŗinéditos viáveisŗ

Abstract
From the narratives of teachers, based on research communication "Memories, stories and
narratives: the education of young people and adults in São Gonçalo / RJ" developed by the Master
of Education, Faculty of Teacher Education, recovering the trajectory the EJA / SG, 1990/2010,
reveals a story of challenges, solidarity networks and disputes in the struggle for realization of the
right to schooling of the population, and leads us to understand history as a possibility (Freire,
1999) and as building everyday.

Keywords: youth and adult education; history; "unprecedented viable"

Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da UERJ, professora das redes municipais de Niterói
e São Gonçalo/RJ. Contato: danielabrq@hotmail.com.

Pós Ŕdoutora, professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ.Contato: mairce@hotmail.com

Doutora, professora da Faculdade de Formação de Professores da UERJ e do CAP-UERJ. Contato:


jacquelinemorais@hotmail.com
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A presente comunicação é fundamentada na pesquisa ŖMemórias, narrativas e histórias: a


educação de jovens e adultos (EJA) de São Gonçalo/RJŗ desenvolvida junto ao Mestrado em
Educação, da Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
A pesquisa recupera a trajetória da EJA na rede municipal de educação de São Gonçalo
(1990/2010),revelando uma história de desafios, redes de solidariedade e disputas e nos remete a
compreensão da história como possibilidade (FREIRE, 1999) e como construção cotidiana.
A EJA em São Gonçalo vem sendo construída por muitos sujeitos. Dentre esses sujeitos,
professores e professoras da rede municipal vêm desempenhando um papel fundamental na luta
pela efetivação de um direito que vem sendo negado historicamente a grande parte da população
brasileira: o direito à escolarização, como ajudam a demonstrar os dados da Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios (PNAD) referentes ao ano de 2008, ao apontar que 10% da população
brasileira com 15 anos ou mais é analfabeta. O número sinaliza que um em cada dez brasileiros
nessa faixa de idade não sabe ler ou escrever. Quanto aos analfabetos funcionais, o número
continua alarmante, o Brasil ainda concentra 21% de pessoas com mais de 15 anos e com menos
de quatro anos de estudo completos. Esse percentual representa, segundo os dados divulgados, 30
milhões. É importante lembrar que, desde a década de 70, a oferta da escolarização obrigatória é de
oito anos, sendo ampliada para nove anos em 2006.
Com vistas a contribuir na reconstrução da história da EJA em São Gonçalo entrevistamos
professores/as e antigas coordenadoras da EJA no município. A opção por ouvir os sujeitos que
participaram da construção dessa modalidade de ensino no município foi, em parte, decorrente da
dificuldade de acesso a documentos oficiais, mas, acima de tudo, uma opção político-
epistemológica, pois buscamos com essa pesquisa a emergência de memórias que vêm sendo
silenciadas e que, ao serem registradas possibilitem um movimento de ressignificação dessas
experiências com vistas a uma perspectiva de futuro
Como parte dessa história, a presente comunicação é resultado de um diálogo com as
coordenadoras da EJA/SG. Nela, trazemos algumas reflexões sobre o contexto político de São
Gonçalo, além de dois movimentos enfocando a experiência vivida pelos sujeitos da EJA. O

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primeiro movimento narrado, Ŗcontrafogo1ŗ: Ŗtáticasŗ que acendem o fogo do encontro contamos
uma história na qual professores/as se organizam e convocam o poder público para discutir os
encaminhamentos das políticas da EJA do município. No segundo movimento, Ŗda Ŗsituação
limiteŗ ao Ŗinédito viávelŗ: a força do movimento coletivoŗ trazemos a experiência vivida por
professores e professoras durante o processo de elaboração e implantação do então chamado 2º
segmento da EJA na rede municipal. Experiência que conta uma história de luta, resistência,
astúcias, possibilidades... Uma história que mostra a força dos Ŗsujeitos ordináriosŗ (CERTEAU,
1994) e acena com a possibilidade de intervenção na formulação de políticas educativas.

Conhecendo São Gonçalo

(...)
Se digo a verdade inteira,
se digo tudo o que penso,
se digo com todas as letras,
com todos os pingos nos is,
seria um deus nos acuda,
entraria um sudoeste
pela janela da sala.
Então eu digo
a verdade possível2
(...)
São Gonçalo é um dos noventa e dois municípios do Estado do Rio de Janeiro. Situado na
região metropolitana, com 249 km² de extensão, é o segundo município mais populoso do Estado,
com uma população de quase um milhão de habitantes. Com sérios problemas sociais expressos na
falta de acesso a saneamento básico, saúde, moradia, segurança e emprego, o município tem
noventa e um bairros oficiais, além de dezoito sub- bairros reconhecidos pela população,
espalhados por cinco distritos3.
Descrever o contexto econômico, social e político de São Gonçalo não é tarefa fácil,
principalmente se considerarmos a escassez de dados disponíveis para consulta e os impedimentos

1
Titulo de um dos últimos livros de Bourdieu, contrafogo, ou fogo de encontro, é uma tática utilizada para combater
incêndios florestais. Abre-se uma espécie de clareira em torno do fogo, denominada aceiro, e coloca-se fogo no
sentido contrário à propagação do fogo e em direção à frente principal. Como a propagação do incêndio é no
sentido do vento, o fogo de encontro é colocado no sentido contra o vento, e quando os dois se encontram, provoca-
se a sua extinção, pois em ambos os sentidos não haverá combustível para a propagação.
2
MURRAY, Roseana. Pêra, uva ou maçã.
3
Dados disponíveis em http://www.saogoncalo.rj.gov.br/mapas.php
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criados quando ousamos ter acesso a indicadores que, talvez, permitissem traçar o perfil de
acentuadas carências sócio econômicas em que vive grande parte da população deste município. No
início da pesquisa fomos informadas, extraoficialmente, de que a secretaria de educação havia
proibido que membros da equipe gestora concedessem entrevistas. No momento da escrita deste
trabalho recordamos de uma frase constantemente usada por uma antiga orientadora educacional
da rede que, ao longo dos anos, assistiu a Ŗmudançasŗ decorrentes da troca de governantes tendo,
inclusive, feito parte da equipe gestora na secretaria de educação por um período. Mudanças que,
para grande parte da população, resultaram em permanências. Permanência do abandono, da
carência, do impedimento. Dizia ela: ŖSão Gonçalo é uma grande Sucupiraŗ. Ao aludir à fictícia
cidade criada por Dias Gomes na novela ŖO Bem Amadoŗ, ela denuncia a expropriação que as
classes populares vêm sofrendo neste município, independente do poder estar nas mãos da situação
ou da oposição. Corrupção, nepotismo e clientelismo são fios que, muitas vezes, se entrelaçam na
construção da história política de São Gonçalo, por isso, muitas vezes os depoimentos trazem
apenas a verdade possível, pois algumas verdades, se reveladas, poderiam propiciar a turbulência de
um sudoeste.
Em sua tese de doutorado, Mendonça (2007) faz uma retrospectiva da política gonçalense e
monta um curioso quadro constatando que o poder político vem se alternando entre dois grupos
hegemônicos nas últimas décadas. Mostra como o governo deste município vem sendo marcado
pelo fisiologismo e clientelismo e, atualmente, também pelo assistencialismo religioso. O autor
destaca que o fisiologismo tem propiciado uma estreita e Ŗharmoniosaŗ relação entre o legislativo e
o executivo, favorecendo a aprovação das políticas públicas empreendidas pelo executivo. O
clientelismo tem produzido uma espécie de loteamento dos espaços públicos, inclusive das escolas,
que são comandados por vereadores e candidatos, transformando esses espaços em redutos
eleitorais. Nesse contexto, variados centros comunitários, fundações e centros sociais pululam pelo
município, sempre comandados por vereadores ou candidatos. Nesses espaços encontramos
inúmeros serviços que são oferecidos a população: atendimento médico e odontológico,
distribuição de alimentos e medicamentos, cursos profissionalizantes, entre outros.
Na pesquisa desenvolvida junto aos jovens do Jardim Catarina, bairro periférico do
município, Cordeiro (2009) denunciava essa prática dos políticos locais tendo, inclusive,
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participado de um curso de manicura e pedicura de agosto a outubro de 2005 em um centro


comunitário do bairro a fim de, segundo a autora, Ŗconhecer de perto a expansão dessas ações no
bairro, que era procurado por um público tão jovemŗ (p.193). Sobre os projetos sociais
desenvolvidos diz a autora
[...] são um registro do tempo e do cenário que marcam as propostas criadas na ausência
do Estado para atender os bairros precarizados, especialmente os jovens pobres. Notam-se
Ŕ não apenas nas associações de moradores, nos projetos de primeiro emprego e esporte
nas escolas [...] mas também na rede de projetos sociais que proliferam na cidade - novos
agenciamentos estabelecidos pelo envolvimento de grupos políticos muito interessados na
questão da pobreza e no Řzoneamentoř político para atender a juventude, atualizando sua
visibilidade pela filantropia e pela caridade (p.196).

Analisando o contexto político municipal de São Gonçalo, Senna (2004) constata que
Ŗclientelismo e corrupção se entrelaçam em um contexto marcado por altos índices de pobreza,
desigualdade e carência de serviços urbanos essenciais e por uma pronunciada fragilidade da
sociedade civilŗ(p. 139). Uma sociedade civil que na busca de melhorias para suas precárias
condições de subsistência não reivindica direitos, e sim privilégios. Essa fragilidade da sociedade
civil pode ser percebida, por exemplo, ao observarmos o resultado da última eleição municipal,
ocorrida em 2008. Apesar de ter suas prestações de contas reprovadas pelo Tribunal de Contas do
Estado do Rio de Janeiro por quatro anos consecutivos, a prefeita Aparecida Panisset foi reeleita no
primeiro turno com 56,05% dos votos válidos.

“Contrafogo”: “táticas”que acendem o fogo do encontro


Uma das histórias vividas que ilustram o movimento dos professores da EJA de São
Gonçalo se deu por ocasião de um convênio estabelecido entre a prefeitura de São Gonçalo e a
Organização não governamental (ONG) Viva Rio. Várias telessalas seriam instaladas em escolas que
já ofereciam a EJA, com a proposta de oferecer todo o ensino fundamental em apenas um ano. As
aulas seriam ministradas por monitores, formandos de Letras e História, contratados pela referida
ONG.
O anúncio desse convênio, financiado pela prefeitura, foi feito pelo então secretário de
educação durante uma reunião de diretores, em dezembro de 2003. Descrito pelo secretário como

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um Ŗgrande presente de natalŗ que o município recebia, o convênio previa a instalação de 20


telessalas no início de 2004.
Inconformados com a arbitrariedade e a secundarização das políticas públicas para a EJA no
município, principalmente porque nessa reunião tomaram ciência de que em três escolas da rede
essas telessalas já estavam em funcionamento sem consulta prévia a comunidade escolar, um grupo
de professores recorreu a docentes do departamento de educação da FFP/UERJ, que interpelaram
o Conselho Municipal de Educação através de uma carta aberta. Não obtendo êxito, esses
professores, em parceria com a FFP/UERJ, organizaram um fórum para discutir as políticas para a
EJA no município. O I Fórum de Educação- As diretrizes da educação de jovens e adultos em São
Gonçalo: dilemas e perspectivas, realizado na FFP/UERJ, no dia 2 de abril de 2004.
Nesse período, a rede municipal de educação estava vivenciando o processo de elaboração
do Plano Municipal de Educação (PME). Nesse sentido, a Secretaria de Educação vinha realizando
diversos fóruns para todos os segmentos de ensino com o intuito de discutir as questões
educacionais com a comunidade escolar. O fórum da EJA organizado pela secretaria de educação
aconteceu em dois momentos. O primeiro, em setembro de 2003 e o segundo, em 1º de abril de
2004. Apesar de o fórum Ŗoficialŗ ter acontecido na véspera e no mesmo local onde seria realizado
o fórum organizado pelos professores da rede e da universidade (o auditório da FFP/UERJ), os
representantes da secretaria de educação conduziram os debates sem mencionar a instalação das
telessalas nem o fórum programado para o dia seguinte.
A despeito da tentativa de invisibilização desse movimento, a mobilização do ŖI Fórum de
Educação- As diretrizes da educação de jovens e adultos em São Gonçalo: dilemas e perspectivasŗ
congregou professores/as de diferentes segmentos da rede municipal de São Gonçalo e de
municípios vizinhos, além de representantes do poder local e do sindicato da categoria (SEPE).
Inicialmente previsto para 200 pessoas, o fórum contou com a participação de 400, o que
demonstrou a demanda por um espaço de discussão, interlocução e intervenção. Segundo
Alvarenga, esse fórum foi Ŗum chamado da escola. A sociedade que, em geral, é chamada para

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participar, inverte a lógica e convoca o poder público para discutir seu projeto de educação, de
sociedadeŗ4.
Os debates acalorados suscitaram denúncias, principalmente no que se refere ao
financiamento da educação e, em especial, da EJA. O professor Nicholas Davies, que também
participou do fórum, demonstrou que apesar da receita adicional que a prefeitura vinha recebendo,
através do Fundef e do salário educação somada aos 25% dos impostos previstos para a educação,
tal aumento não resultou em ampliação das matrículas da rede municipal, em melhoria salarial
para os professores, muito menos em aparelhamento das escolas.
Apesar desse movimento não ter gerado resultado concreto no que se refere a investimentos
imediatos na EJA do município, o convênio com a ONG foi suspenso. Esse movimento dos/as
professores/as que, mobilizados pela indignação, consegue reunir um número significativo de
pessoas para discutir o projeto de educação do município e, de alguma maneira, intervir nas
políticas implementadas, nos faz perceber o que Freire (1999, p.85), desde a década de 60
anunciava, que Ŗo mundo não é, o mundo está sendoŗ. Uma categoria que perpassa toda a obra de
Paulo Freire e fertiliza esse movimento é o Ŗinédito viávelŗ, que nos remete a compreensão da
história como possibilidade, entendendo que a mesma está sendo construída no presente pelos
sujeitos que dela participam podendo, portanto, ser modificada. São as utopias, os sonhos coletivos
materializados.

Da “situação limite” ao “inédito viável”: a força do movimento coletivo


Outro episódio da história da EJA em São Gonçalo que revela movimentos potentes que
também concretizam, em nossa avaliação, o que Freire denomina de Ŗinéditos viáveisŗ, é a
experiência vivida pelos sujeitos da EJA, durante o processo de elaboração e implantação do então
chamado segundo segmento do ensino fundamental e da Orientação Profissional como
componente curricular da EJA na rede municipal de educação.
A Orientação Profissional como componente curricular da EJA em São Gonçalo nasceu na
maior escola da rede, o Colégio Municipal Presidente Castello Branco, no ano de 2003, em um

4
Fala da profª. Drª. Marcia Soares de Alvarenga durante a abertura do fórum.

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contexto de tensões junto à Secretaria de Educação. É importante destacar que essa escola tem uma
tradição de luta dentro do movimento dos professores no município, com intensa participação no
sindicato da categoria.
Nesse período, o segundo segmento do ensino fundamental do terceiro turno dessa escola
funcionava como um curso regular noturno, com duração de quatro anos, diferente de outras
escolas da rede, que tinham autorização da secretaria de educação para funcionar com outras
estruturas. Umas eram organizadas por ciclos de aprendizagem e havia até uma organizada de
forma semipresencial.
Sobre o fato do ŖCastello Brancoŗ, como era conhecida a escola, ser organizada como
regular noturno Ana Valéria, que era coordenadora da EJA dessa escola, esclarece:
[...] Nós fomos várias vezes para a Secretaria de Educação querendo que implantassem o
ciclo no Castelo Branco. Porque achávamos que dessa maneira iríamos conseguir resolver
alguma coisa. Não conseguíamos entender porque o Castelo Branco não podia fazer parte
desse sistema de ciclos. O nosso primeiro momento não era fazer projeto nosso [...]
Queríamos alguma coisa que atendesse a expectativa dos alunos [...] a EJA só existia no 1º
segmento. O ciclo não era considerado EJA. O ciclo era considerado ensino regular. Tanto
é que o ciclo foi organizado para ser regular por conta do FUNDEF. Porque a partir do
momento que você tem regular você recebe o FUNDEF. Nós pesquisamos muito isso [...]
Então a questão era a seguinte: o ciclo funcionava no Ernani e funcionava no Nicanor
(escolas da rede municipal de São Gonçalo) de maneira que era para atender uma
configuração de ensino regular para receber o Fundef e que era ilegal. Nós descobrimos
essa ilegalidade consultando o site do MEC. Respondendo a uma questão formulada pela
secretaria de Belo Horizonte, o MEC montou parecer dizendo que não, que não poderia
montar em três anos, porque isso estaria caracterizando uma tentativa de burlar a
legislação [...] Até então não compreendíamos. Quando estava rolando esse babado aí, nos
bastidores, de ilegalidade, eles (Secretaria de Educação de São Gonçalo) deviam estar
puxando os cabelos, porque obviamente teriam que responder por alguma coisa
(Fragmento da entrevista realizada com Ana Valéria).

Segundo a professora, a estrutura do regular noturno, com duração de


quatro anos, afastava os alunos que haviam concluído o primeiro segmento na escola, que era
estruturado em trinta meses, pois a maioria buscava, além da escolarização, uma certificação rápida
que, pensavam, facilitaria a inserção no mercado de trabalho.
Paralelo a isso, a oferta de EJA pelas escolas privadas no município era
imensa, algumas chegando a oferecer todo o ensino fundamental em doze meses. Diante de tantas
opções, esses alunos faziam a matrícula na rede municipal e frequentavam poucos dias, até
receberem a carteira e o uniforme que garantiriam a gratuidade no transporte coletivo e, em

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seguida, abandonavam, buscando a rede privada. Esse movimento revela Ŗtáticasŗ (CERTEAU,
1994) desses sujeitos, que engendram artimanhas criativas reinventando outras possibilidades de
acesso a escolarização desejada. Nesse contexto, o índice de evasão na EJA era altíssimo, o que
motivou a secretaria de educação a encerrar o terceiro turno em algumas escolas, acarretando um
deslocamento de professores das escolas. Segundo Ana Valéria, também os professores dessa escola
estavam ameaçados.
[...] Só resolvemos montar um projeto nosso em 2003. Porque em 2002 o terceiro turno foi
um fracasso. Em 2002 nós recebíamos visitas da supervisão educacional, à noite, de surpresa,
para verificar a quantidade de alunos dentro das salas de aula. Falavam que o terceiro turno
era um engodo! [...] elas chegavam e encontravam dois alunos, três por sala... Avisaram que se
em 2003 permanecesse aquela mesma situação iriam acabar com o turno [...] Então, por conta
de pressão dos alunos e da secretaria de educação, e também os professores querendo garantir
o terceiro turno, resolvemos nos movimentar (Fragmento da entrevista realizada com Ana
Valéria).

Ou seja, diante de uma Ŗsituação limiteŗ os professores responderam com uma grande
mobilização para a elaboração de um projeto para a EJA que apontasse também para o 2º
segmento.
Reuniões sistemáticas com professores e alunos, consultas ao MEC, às secretarias de
educação de outros municípios e estados; foram construindo os caminhos para o Ŗinédito viável”
buscando alternativas e agindo coletivamente os professores foram tornando viável, possível, o que
anteriormente se revelara inviável.
Dessa ação coletiva nasceu um novo componente curricular a ser agregado à matriz
curricular da EJA/SG, oferecida ao segundo segmento: uma disciplina chamada de Orientação
Profissional, cuja proposta tenta ir além da solicitação inicial dos alunos, que se resumia em
informações que proporcionassem uma preparação para o mercado de trabalho.
No documento produzido por três pedagogas do ŖCastello Brancoŗ, é apontado como
objetivo da disciplina levar os alunos a uma reflexão crítica das relações de trabalho na sociedade
capitalista, além de orientá-los em suas escolhas profissionais. Propõe-se ainda, a problematizar o
papel de cada um na sociedade em que estão inseridos5.

5
Referencial teórico da disciplina Orientação Profissional de São Gonçalo, 2005, mimeo.

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Na discussão sobre o novo componente curricular, percebeu-se que os anseios dos alunos
por orientação profissional eram voltados para uma preparação para o mercado de trabalho,
pautando-se em uma tradição liberal, ainda presente em nossa sociedade, que faz com que recaia
sobre os indivíduos a responsabilidade sobre suas trajetórias social/escolar/ profissional, numa
relação direta com seus méritos pessoais, encobrindo as determinações sociais a que estão sujeitos.
Tentando se contrapor a essa perspectiva, foi construído um referencial que possibilitasse
uma discussão sobre o mundo do trabalho, abordando os seguintes temas: as relações de trabalho
entre trabalhador e não trabalhador na sociedade brasileira: trabalho indígena, trabalho escravo e
trabalho assalariado; organização sindical, suas funções e importância para a classe trabalhadora;
preenchimento de formulários em geral; noções de informática; currículo; técnicas de entrevistas;
técnicas básicas do dia-a-dia do trabalhador com a tecnologia moderna; direitos do trabalhador;
discussão sobre o ensino fundamental, médio, profissionalizante e superior; reflexões sobre a
escolarização e seus caminhos; ética e filosofia.
Ao ser questionada sobre a possibilidade de que, no bojo daquele movimento, prevalecesse
um corporativismo dos professores, a coordenadora esclarece:
É claro que foi corporativista. Isso é um momento anterior a um momento maior, ilustrado
por Gramsci... Porque Gramsci diz: primeiro o individualismo, depois o corporativismo,
depois o momento ético-político, que é onde desaparecem esses limites, essas fronteiras do
corporativismo e quando vemos a sociedade como um todo. Não chegamos ao momento
ético-político [...] até então ninguém tinha se mexido. Os alunos reclamavam [...] o
fechamento do turno prejudicaria a vida de todo mundo. Não tínhamos mais para onde fugir.
Todas as possibilidades estavam esgotadas. Foi o momento da ruptura (Fragmento da
entrevista com Ana Valéria).

Como Freire (1999), Certeau (1994) também nos auxilia a identificar em movimentos
como esses uma subversão, muitas vezes, silenciosa. A partir da sua Ŗteoria das práticas cotidianasŗ,
as iniciativas de professores e professoras ganham novos sentidos revelendo-se como ações
Ŗmicrobianasŗ de resistência. Frente às “estratégiasŗ impostas pelo poder público, os/as docentes
respondem com Ŗtáticasŗ que lhes permitam ocupar as brechas deixadas pelo poder.
No caso de São Gonçalo, semelhante a tantos outros municípios do Brasil, listando algumas
estratégias poderíamos apontar: reorientação de projetos político-pedagógicos e práticas
curriculares, muitas vezes atendendo ao jogo de interesses do poder instituído, um salário aviltante,

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precariedade das instalações das escolas, fornecimento de materiais pedagógicos6 envolvendo por
vezes negociatas escusas, entre outras.
Paulo Freire, desde os anos 60, já nos convidava a pensar a história enquanto possibilidade,
anunciando que o futuro não está definido a priori, mas sim que depende da ação concreta dos
homens, que o constroem no presente.
O futuro não é um pré-dado. Quando uma geração chega ao mundo, seu futuro não está
predeterminado, preestabelecido. Por outro lado, o futuro não é também, por exemplo, a
pura repetição de um presente de insatisfações. O futuro é algo que se vai dando, e esse
Ŗse vai dandoŗ significa que o futuro existe na medida em que eu ou nós mudamos o
presente. E é mudando o presente que a gente fabrica o futuro; por isso, então, a história é
possibilidade e não determinação (FREIRE, 1999, p.90)

Cabe ressaltar que a implementação de propostas curriculares no Brasil, seja no âmbito


municipal, estadual ou federal, em geral, têm se constituído de forma verticalizada, num
movimento comumente denominado de cima para baixo, com pouca ou nenhuma participação da
comunidade escolar.
Mas esse grupo de professores da EJA de São Gonçalo, através de ações Ŗmicrobianasŗ,
subverteu essa lógica. Inicialmente corporativista, esse movimento resultou na concretização de
Ŗsonhos possíveis”, criando outras possibilidades de intervenção na realidade da escola.
Atualmente, essa proposta curricular construída pelo coletivo de professores, regulamentada pela
portaria 016/2004, foi estendida por toda a rede, tornando-se a proposta oficial do município.

Considerações

Se perdem gestos, cartas de amor, malas, parentes


Se perdem vozes, cidades, países, amigos
Romances perdidos, objetos perdidos, histórias se perdem.
Se perde o que fomos e o que queríamos ser.
Se perde o momento, mas não existe perda, existe movimento.
Bruna Lombardi7

6
Como exemplo podemos citar a adoção do Programa Alfa e Beto na rede municipal. Apesar de receber livros,
inclusive para as classes de alfabetização, através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), sem custo para a
Prefeitura, a Secretaria de Educação optou pela aquisição de kitřs do programa Alfa e Beto, sem licitação, com o
elevado custo de R$850.000,00 (decreto 51/07, publicado em 10/4/2007 no D.O. do município). É importante
destacar que a adoção e implementação do referido programa foi decidida de forma verticalizada, sem consulta prévia
aos professores da rede.

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Pensar a EJA em São Gonçalo nos remete ao poema da Bruna Lombardi e percebemos a
EJA como uma sucessão de aparentes perdas e derrotas. Um projeto de educação de uma nação
cuja marca é a concepção de política social como concessão reverbera nas políticas para seus jovens
e seus adultos, que são fragmentadas e descontinuadas. Basta um rápido olhar retrospectivo para a
história do Brasil para perceber essas perdas e derrotas: da colonização à década de 50 um país
pensado pela e para a elite, cujos interesses, muitas vezes, divergiram de um projeto de educação
para o povo; do golpe militar que calou a sociedade civil e os movimentos de educação popular na
década de 60, até a retirada da EJA do FUNDEF na década de 90. Mas assim como a poeta
enxergamos além das perdas e vemos a EJA em um movimentocotidiano que se reinventa diante
das ocasiões (CERTEAU, 1994).
O movimento que empreendemos ao recuperar essa história, buscando as lembranças dos
sujeitos que dela participaram/participam, ouvindo as vozes de professores e professoras, muitas
vezes procurando vestígios de acontecimentos em um tempo cronológico que já se escoou, nos fez
perceber que essa história vem sendo construída no movimento de ação/reflexão desses sujeitos
que, cotidianamente, buscam propostas para problemas/interdições, aparentemente impossíveis de
superação.
Buscar memórias e reunir fragmentos dessa história nos possibilitou pensar que as histórias
precisam ser contadas para que as pessoas, ao escutá-las/lê-las, possam construir inúmeros sentidos
e que, muitas vezes, o que aparentemente parece perda traz no seu interior o movimento
transformador.
A partir das tensões entre flexibilização e institucionalização, direitos e privilégios, leis e
direitos, São Gonçalo ainda busca uma nova forma de fazer a EJA, tentando construir um modelo
próprio para essa modalidade de ensino que atenda a diversidade dos seus sujeitos. E, nessa busca,
percebemos que professores e professoras têm desempenhado um importante papel na construção
de um projeto de educação para o povo gonçalense. Com Milton Santos (2008), acreditamos que
[...] é lícito dizer que o futuro são muitos; e resultarão de arranjos diferentes, segundo o
nosso grau de consciência, entre o reino das possibilidades e o reino da vontade. É assim
que iniciativas serão articuladas e obstáculos serão superados, permitindo contrariar a
força das estruturas dominantes, sejam elas presentes ou herdadas. A identificação das

7
Poema lido no filme O signo da cidade.
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etapas e os ajustamentos a empreender durante o caminho dependerão da necessária


clareza do projeto (p.161).
Olhar para o passado, aprender com e a partir do passado, reescrevê-lo, recriá-lo... São
movimentos que, acreditamos, poderão contribuir para a Ŗnecessária clareza do projetoŗ de uma
EJA para São Gonçalo, nos fazendo perceber que o passado está encharcado de outras
possibilidades de presente e de futuro.

Referências bibliográficas
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano - Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
CORDEIRO, Denise. Juventude nas sombras. Rio de Janeiro: Lamparina editora, 2009.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
MENDONÇA, Adalton da Motta. Transformações sócio-econômicas no eixo Niterói- Manilha em São
Gonçalo/RJ. 2007. Tese (Doutorado em Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional) - Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
MURRAY, Roseana. Pêra, uva ou maçã. São Paulo: Scipione, 2005.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de
Janeiro: Record, 2008.
SENNA, Mônica de Castro Maia. Racionalidade técnica e lógica política: um estudo sobre o processo
de implantação do programa saúde da família em São Gonçalo, RJ. 2004. Tese (Doutorado em
Saúde Pública) Ŕ Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro,
2004.

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ASPECTOS DA FORMAÇÃO IDENTITÁRIA DO GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA


SOB A PERSPECTIVA DA ANÁLISE DO DISCURSO

Fabiano Cataldo de Azevedo

Resumo
O presente artigo é parte de uma investigação que objetiva analisar as produções discursivas do
Gabinete Português de Leitura (GPL) para delinear um projeto identitário lusitano, no âmbito do
Rio de Janeiro no século XIX, pós-independência. Nesse intento, procuramos situar esta instituição
como lugar de memória da cultura portuguesa. Para isso apresentamos e justificamos a constituição
de um corpus de pesquisa utilizando o arcabouço teórico-metodológico da Análise de Discurso de
vertente francesa (AD). Utilizando esse substrato, apresentaremos a análise de um documento que
compõe o corpus proposto.
Palavras-chave: Análise de Discurso. Formação discursiva. Gabinete Português de Leitura. Rio de
Janeiro. Século XIX.

Abstract
This article is part of an investigation aimed to analyze discoursive processes in the constructionof
the image of the Gabinete Português de Leitura as Lusitanian identity in post-independence Rio de
Janeiro. We seek to nometed this institution as a place of memory of Portuguese culture. Working
from the perspectives of the French school of Discourse Analysis. Based on this methodological-
theoretical framework we present and justify the creation of a research corpus.
Key words: Discourse Analysis. Discoursive processes. Gabinete Português de Leitura. Rio de
Janeiro. 19th Century.

Introdução

A nação portuguesa das primeiras décadas do século XIX ainda se recuperava do terremoto
de 1750, da invasão napoleônica em 1807, da vinda da corte de D. Maria I para o Brasil em 1808.
Ainda vivendo questões políticas acirradas, na década de 1820, houve a perda de uma das suas mais

Mestrando em Memória Social. Programa de Pós-Graduação em Memória Social, UNIRIO. Orientadora: Profa. Dra.
Carmen Irene.
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importantes colônias e na seqüência o temor pela volta de um governo absolutista e uma quase
guerra civil com a Revolução Porto. Todos esses acontecimentos causaram um esmorecimento e
levaram aos lusos uma perda de confiança em si e no Estado. Foi uma época na qual a
rememoração do passado glorioso esteve presente em muitos discursos.
Havia naquele momento de crise, de estagnação científica e de obscurantismo cultural 1,
uma necessidade de buscar meios para se reconhecer, se reafirmar. Se no presente encontravam
poucas perspectivas e um panorama bastante confuso seria necessário ir ao passado para buscar a
memória coletiva de um tempo glorioso. Supomos que esse movimento de deslocar o passado para
o presente foi uma forma que se reconstruírem social e culturalmente, posto que politicamente
estivessem mergulhados numa cizânia.
O presente artigo é parte de uma investigação que objetiva analisar as produções discursivas
do GPL2 para delinear um projeto identitário lusitano, no âmbito do Rio de Janeiro no século XIX,
pós-independência. Nesse intento, procuramos situar esta instituição como lugar de memória da
cultura portuguesa.
Nesse sentido, apresentamos e justificamos a constituição de um corpus de pesquisa conforme
Mariani3. O arcabouço teórico-metodológico será da Análise de Discurso de vertente francesa (AD).
Os conceitos de interdiscurso, Ŗmemória discursivaŗ e intradiscurso permeam esse estudo uma vez
que os textos que compõem nosso corpus encontram-se em linhas extremas para compreensão de
uma rede de significados que o GPL forjou para si. A produção discursiva dos monumentos
textuais4 que pretendemos mostrar até agora pouco foi estudada sob a ótica da AD, restringindo-se,
quando muito, à análise de conteúdo. Por fim, apresentaremos a análise de um documento desse
conjunto: Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de
Janeiro, em sessão extraordinaria de 10 de setembro de 1837 [...].

1
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez,
2000.
2
Foi por um decreto de 12 de setembro de 1906 que o rei dom Carlos I, concedeu o título de ŖRealŗ a Instituição. Por
coerência ao período delimitado para a pesquisa, na redação desse artigo utilizaremos apenas Gabinete Português de
Leitura (GPL).
3
MARIANI, Bethânia. A institucionalização da lingual, história e cidadania no Brasil do século XIX: o papel das
academias literárias e da política do Marquês de Pombal. In: ORLANDI, Eni (Org.). História das idéias lingüísticas:
construção do saber metalingüístico e constituição da língua nacional. Campinas, SP: Pontes, 2001, p. 141-154.
4
MARIANI, op. cit.
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A leitura e interpretação dos monumentos textuais estabelecidos em nosso corpus será feita a
partir do seguinte dispositivo analítico: perquirir referentes discursivos que revelam como se
constituiu a identidade portuguesa no GPL. Tentaremos identificar formas discursivas que tragam
as marcas das representações que se constroem na relação GPL-Portugal-Brasil. Quem são esses
portugueses? Como eles se vêem na ex-Colônia? Como eles vêem os brasileiros?
Os documentos destacados para a análise configuram-se também como
documento/monumento no conceito de LeGoff5, pois representam dois pólos históricos Ŕ como
veremos a seguir Ŕ da Instituição. Significam também Ŗlugar de memóriaŗ, se pensarmos como
Courtine6, pois seu dispositivo discursivo rememora a história de Portugal relacionando-a com a
história da Instituição, com presença de um interdiscurso referenciado às formações discursivas
constitutivas de uma formação portuguesa sedimentada por Luís de Camões n‟Os Lusíadas.

Aspectos históricos do objeto de pesquisa

Inferimos que a identidade institucional forjada pelo GPL a partir da sua produção
discursiva pode estar ligada a própria identidade do grupo fundador e sua necessidade de
aglutinação e fortalecimento. Por isso, e considerando as demandas de quem trabalha na AD, será
fundamental delinearmos o contexto sócio-histórico desses atores e da instituição.
O GPL conforme os critérios discorridos por Schapochnik7 é categorizada como uma
biblioteca associativa. No caso das bibliotecas associativas criadas no Rio de Janeiro na primeira
metade do século XIX havia uma particularidade interessante: algumas delas, como a British
Subscription Library e a Gesselschaft Germania, possuíam necessidade de estabelecer e fortalecer a
identidade do idioma. Elas municiavam com publicação os cidadãos falantes dessas línguas que
aqui viviam e lhes oferecia espaços de sociabilidade.

5
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: _____. História e memória. Campinas, São Paulo: Editora da
Unicamp, 2010.
6
COURTINE, Jean Jacques. Discursos sólidos, discursos líquidos: a mutação das discursividades contemporâneas. In:
SARGENTINI, V; GREGOLIN, M. R. (Org.). Análise do discurso, métodos e objetos.
7
SCHAPOCHNIK, Nelson. Os jardins das delícias: gabinetes literários, bibliotecas e figurações da leitura na corte
imperial. 1999. Tese (Doutorado em História) Ŕ Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
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O GPL também seguia essa mesma idéia. Não se pode esquecer que a instituição foi
fundada poucos anos após a Independência do Brasil. Assim, havia, sobretudo na corte do Rio de
Janeiro, um forte sentimento anti-lusitano que queria apagar todos os arquétipos que ligavam a
Portugal Ŕ incluindo o idioma: o português do colonizador.
Além de sua significativa importânciacultural,a cidade do Rio de Janeiro, naqueles
primeiros anos da Independência, como a maior parte do Brasil, Ŗnão mais cultivava as tradições
lusas, e, muito pelo contrário, procurava erradicar a influência metropolitanaŗ 8. O ensino da língua
francesa crescia, assim como o gosto por seus autores. Restam poucas dúvidas de que o critério
magno de seleção, isto é o privilégio aoidioma português, espelhava o desejo dos fundadores do
RGPL em reagir pacificamente a uma sociedade Ŗculturalmente rendida à França e, mais que isto,
apressada em trocar os arquétipos culturais lusitanos [...]ŗ9. Buscaram não somente criar uma
Instituição de caráter associativo, mas também oferecer ao emigrado uma espécie de embaixada
cultural lusitana, onde poderiam dispor das publicações em sua língua vernácula.
Na tarde de 14 de maio de 1837, Ŗpessoas das diversas classes da emigração portuguezaŗ 10
dirigiram-se para o sobrado n. 20 da Rua Direita (hoje Primeiro de Março), casa do advogado
português António José Coelho Lousada. A sessãofoi presidida pelo conselheiro João Baptista
Moreira, na época cônsul-geral de Portugal. Para que isso acontecesse, os maiores esforços para
criação da primeira organização portuguesa no Brasil após a Independência foram dos emigrantes
José Marcelino Cabral e Eduardo Alves Viana.
Há circunstâncias da vinda desses portugueses para o Brasil que influem na fundação do
GPL e sobre a qual cabem aqui algumas informações. Com a morte de D. João VI em março de
1826 a linha sucessória recaía sobre D. Pedro I. Contudo, este como imperador do Brasil, não
poderia ser rei em Portugal. Assim, envia sua filha D. Maria da Glória, princesa do Grão-Pará, para
assumir o trono. Contudo, D. Miguel, tio dela, empreendeu uma luta para lhe usurpar o trono. De

8
MARTINS, Ana Luiza. Gabinetes de leitura da província de São Paulo: a pluralidade de um espaço esquecido: 1847-
1890.1990. 370f.Dissertação (Mestrado em História) Ŕ Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990, p. 35.
9
Loc. cit.
10
MONTORO, Reinaldo Carlos. Noticia histórica do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro fundado em
1837. In: CAMÕES, Luiz. Os Lusíadas. Lisboa: Na Officina de Castro Irmão, 1880. p. 402.
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1826 a 1834, Portugal viveu adenominada Campanhas da Liberdade que fragmentaram a sociedade
portuguesa. Foi um período de luta sangrenta e perseguições.
Assim, Ŗfugidos às perseguições miguelistas, muitos homens que haviam combatido pelos
novos princípios da liberdadeŗ11 emigraram para o Rio de Janeiro. Nesse grupo estavam José
Marcelino da Rocha Cabral e Eduardo Alves Viana. O primeiro era advogado e chegara ao Brasil
com 30 anos, em 1828, e aqui viera encontrar António José Coelho Louzada, Alberto Antonio de
Moraes Carvalho, Caetano Alberto Soares Ŗe outros advogados portugueses de boa nomeada que o
haviam precedido na emigraçãoŗ12. De Eduardo Viana não restam muitosdetalhes biográficos; sabe-
se apenas que era comerciante estabelecido na Rua do Ouvidor.
O grupo fundador do GPL não foi formado de maneira aleatória, havia nele um forte
elemento de aglutição associado à política e a um tipo de resistência cultural Ŕ se é que podemos
utilizar esse conceito sem incorrer em anacronismos. Percebemos nesse grupo certa dinâmica da
Ŗdiásporaŗ, ou seja, como exilados voluntários numa sociedade ainda de corte e absolutamente
contrária a memória colonialista sentiram a necessidade de formar um grupo coeso para que
sentirem-se mais forte.

O corpus de análise

Aqui pretendemos apenas identificar e justificar um corpus que nos permitirá mapear os
processos discursivos de construção da identidade portuguesa no GPL. Tendo por base esses
documentos pretendemos estabelecer nosso dispositivo de análise.
A partir de Pêcheux e Foucault, Mariani 13 considera o corpus dispositivo de arquivo que
compreende Ŗum conjunto heterogêneo de monumentos textuais de uma época, considerada em
termos do seu funcionamento discursivoŗ.

11
DIAS, Carlos Malheiro. Discurso. In: GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA. Sessão commerativa do 347º
Anniversario da Morte de Camões e do 90º Anniversario da Fundação do Gabinete. Rio de Janeiro, 1927. p. 6.
12
BARROS MARTINS, A. A. de. Esboço histórico do Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro : Typ.
do ŖJornnal do Commercioŗ de Rodrigues & C., 1901, p. 12

13
Op. cit., p. 101.
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Orlandi14 afirma que Ŗa construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir
o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivasŗ. Ademais, Ŗem grande
medida o corpus resulta de uma construção do próprio analistaŗ.
A leitura prévia dos documentos discursivos nós possibilitou como analista estabelecer o
pressuposto de que os monumentos textuais selecionados serão fundamentais para a compreensão
do dito em relação ao não dito nos demais documentos do corpus. A materialidade discursiva15 que
trabalharemos constitui-se apenas de textos impressos e manuscritos.
O ponto de vista do analista é primordial para compreender o estabelecimento do corpus,
por isso no bojo do recorte cronológico de nossa pesquisa, que compreende o período de 1837 a
1887, estabelecemos três marcos fundamentais no histórico do GPL. O primeiro diz respeito à
fundação da instituição a 14 de maio de 1837 representando a gênese; o segundo refere-se ao ano
de 1880 ao longo do qual foi comemorado o ŖTricentenário da Morte de Luís de Camões,
efeméride que projetou toda a influência no GPL no âmbito luso-brasileiro e teve como ápice o dia
10 de junho com o lançamento da pedra fundamental do edifico manuelino pelo próprio D. Pedro
II e finalmente o terceiro situando-se em 10 de setembro de 188716 com inauguração do atual
prédio sede, representando o momento de afirmação e início da consolidação da identidade do
GPL com o lugar de memóriaportuguesa no Rio de Janeiro por antonomásia.
Permeando as fases apontadas acima há um conjunto de documentos que refletem uma
produção discursiva dos portugueses que formaram a instituição.
Pêcheux17 afirma que "não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o
indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentidoŗ. Essa idéia foi
de extrema relevância na escolha que fizemos ao constituirmos o corpus.
Para conceber uma interpretação analítica estabelecemos recortes no corpus e selecionamos
monumentos textuais que possuem representatividade simbólica expressiva. Nesses documentos

14
ORLANDI, Eni. Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2010, p. 63.
15
MENDONÇA, Edinamária Conceição.Imagem especular: visões do Maranhense no Discurso do Álbum
Comemorativo do Tricentenário de São Luís. 2010. 138f. Dissertação (Mestrado em Memória Social) Ŕ Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
16
Nosso corpus documental dá conta de dois marcos; o terceiro marco será problematizar a partir da questão do
espaço, o que ainda está em construção na pesquisa.
17
Apud ORLANDI, op. cit.
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procuraremos localizar enunciados discursivos que constroem a identidade do GPL e estão


impregnados de ideologias.
Desta maneira, com base no dissemos até aqui, estabelecemos como corpus da pesquisa os
seguintes documentos:

GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO.


Relatório apresentado à Assemblea da Sociedade do Gabinete Portuguez de Leitura
no Rio de Janeiro, em sessão extraordinaria de 10 de setembro de 1837, a primeira
celebrada no local do estabelecimento [...]. Rio de Janeiro: Imprensa Americana
de I. P. da Costa, 1837. Ŕ GPL 118.

GABINETE PORTUGUEZ DE LEITURA NO RIO DE JANEIRO. Actas


da Sessão da Diretoria. 1837. Ŕ GPL 2.

MONTORO, Reinaldo Carlos. Noticia histórica do Gabinete Portuguez de


Leitura no Rio de Janeiro fundado em 1837. In: CAMÕES, Luiz. Os
Lusíadas. Lisboa: Na Officina de Castro Irmão, 1880. p. 399-422. (Edição
consagrada a commemorar o Terceiro Centenario do Poeta da
Nacionalidade Portugueza pelo Gabinete Portuguez de Leitura no Rio de
Janeiro). Ŕ GPL 3.

Tratando das condições de produção que constitui um discurso, Orlandi afirma que Ŗnão
há discurso que não se relacione com outrosŗ19. Nesse seara, os documentos acima representam um
recorte e em torno deles gravitam outros. Não seria possível percebermos a memória discursiva e as
redes de sentidos as formações discursivas sem a compreensão dos demais monumentos textuais,
representados no quadro a seguir

Quadro 1. Corpus de pesquisa.


Impressas Manuscritas
Catálogo da Biblioteca (1840) Actas da Sessão da Diretoria (1837-1847)
Catálogo da Biblioteca (1844) Actas da Assemblea Geral (1837-1860)
Catálogo da Biblioteca (1846) Relação das obras fora do Gabinete.... (1846)

18
A partir de agora vamos nos referir a esses documentos utlizando esses códigos, a exemplo que fez Mariani (2001).
19
Op. cit, p. 39.
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Relatório do GPL (1837) Obras que se achaõ fóra com bilhetes... (1842)

Estatutos (1841) Relação das obras fora do Gabinete com recibos dos
Snrs Socios e Subscriptores... (1845)
Estatutos (1844) Relação das obras faltas na entrega (1845)
Fonte: O autor.

Os três documentos textuais destacados como corpus de pesquisa justificam-se a partir do


conceito de Ŗmemória discursivaŗ20, pois para um discurso fazer sentido temos que estabelecer uma
rede de significados que se situam além de uma determinada formação discursiva 21. Orlandi22
afirma que o discurso Ŗé um efeito de sentidos entre interloculocutoresŗ. Dessa maneira a relação
de GPL 1 e GPL 3 pode ser compreendida por representarem documentos que se situam entre dois
momentos significativos que ligam o passado com o presente.
De acordo com o processo metodológico de Mendonça (2010), podemos considerar que
GPL 1, 2 e 3 representam nosso campo discursivo de referência, isto é, documentos que servem de
espinha dorsal ao corpus do analista.

Condições de produção

De acordo com a perspectiva de Indursky23 a memória discursiva é uma espécie de


deslocamento de prática passada com o presente. Essa ideia é-nos bastante útil para estabelecermos
a seguir um diálogo com as condições de produção do corpus selecionado.
Mendonça24, baseando-se em Courtine e Orlandi sugeriu que Ŗas condições de produção de
um discurso tem a ver com as condições sócio-históricas e culturais em que os discursos são
constituídos, assim como a forma pelo qual se apresentam e onde se apresentamŗ.

20
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. São Paulo: Pontes, 2008.
21
A formação discursiva é definida como Ŗaquilo que numa formação ideológica dada Ŕ ou seja, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada Ŕ determina o que pode e deve ser ditoŗ (ORLANDI, 2010, p.
43).
22
ORLANDI, 2003, p. 26 apud MENDONÇA, op. cit., p. 26.
23
INDURSKY, Freda. De ocupação a invasão: efeitos de sentido no discurso do/sobre o MST. In: INDURSKY, Freda
e FERREIRA, M. Cristina Leandro (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre: Sagra Luzzatto,
1999, p. 173-186.
24
Op. cit, p. 26.
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As pesquisas e textos acadêmicos produzidos sobre o GPL repetem palavras e termos que
ficam desvinculados de sentidos devido a falta de compreensão acerca dos deslocamentos históricos
da Instituição. Imiscuídos a esses deslocamentos estão o interdiscurso, com uma série de
formulações acerca da relação identitária dos portugueses que fundaram a instituição. Da mesma
maneira, há formulações que revelam a percepção que esses emigrantes lusos tinham do Brasil
recém independente.
Segundo Orlandi25
E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito
específico, em um momento particular se apague na memória para que,
passando para o Řanonimatoř, possa fazer sentido em Ŗminhasŗ palavras.
No interdiscurso, diz Courtine (1984), fala uma voz sem nome.

Por isso é necessário estabelecer uma relação entre o que foi dito em diferentes
temporalidades.
Passemos a contextualizar os documentos que fazem parte do corpus.
Cronologicamente o primeiro documento produzido foi GPL 2. Trata-se de Ata de
fundação:
Ilustração 1.

Fonte: RGPL.

Esse documento foi lavrado pelo primeiro presidente da Instituição, José Marcelino da
Rocha Cabral, no dia 14 de maio de 1837. Pelo texto, percebe-se que já havia ocorrido uma
reunião prévia, antes dessa data escolhida para abertura solene. Apesar da importância como
documento histórico a única função desse documento no corpus é identificar nominalmente o
Ŗnósŗ que encontraremos em GPL 1, pois não localizamos nenhum tipo de referente ou termo que
apresente recorrência em outro documento.
O documento GPL 1 é um dos mais importantes do corpus de pesquisa. Seu texto foi
apresentado na Sessão Extraordinária da Assembléia Geral dos Acionistas. Possui treze página e é

25
Op. cit., p. 33-34.
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assinado por José Marcelino da Rocha Cabral. A primeira parte é composta pelas sessões: ŖObjectos
de Leituraŗ, que se divide em dois sub-itens, ŖLivrosŗ e ŖPeriódicosŗ; ŖEscripturação e Objectos da
Secretariaŗ; ŖEdificioŗ; ŖMobiliaŗ, estrutura os procedimentos e no que tange ao acervo, alicerça as
bases para as tomadas de decisões quanto à seleção e aquisição ao longo de alguns decênios. Na
última sessão intitulada ŖServiço do Gabineteŗ o texto assumeaspectos de discurso, suas palavras
possuem detalhes que corroboram para delinear a motivação, objetivos e missão da Instituição
nascente.
A presença desse Relatório é sine qua non para qualquer análise acerca do processo de
formação identitária do GPL. Apesar de representar um texto fundador do processo discursivo que
permeará a história da Instituição, há nele elementos de interdiscurso que remontam enunciados
comuns em textos do período colonial. Seguindo a metodologia de Mariani26 realizamos alguns
recortes discursivos que nos permitiram levantar alguns termos e seqüências discursivas que nos
levaram ao dispositivo teórico analítico27. Na seção seguinte, apresentaremos uma proposta de
análise a partir desse documento.
No período de 1878 a 1880 o GPL se transformou no epicentro da efémeride do 3º
Centenário de morte de Luís de Camões, cuja data celebrativa foi 10 de junho de 1880 Ŕ
posteriormente adotada como o ŖDia da Raçaŗ28. Na ocasião foi lançada a pedra fundamental do
atual prédio sede, pelo próprio imperador D. Pedro II29.
O GPL produziu para essa efeméride, medalhas, selos e uma edição especial dřOs Lusíadas.
Dentre esses lugares de memória, é o impresso que nos interessa aqui.
A edição especial dřOs Lusíadas possui um prefácio intitulado ŖA Renascença e os
Lusíadasŗ, assinado por Ramalho Ortigão; a seguir ŖObservacções sobre o texto dos Lusíadasŗ,
incluindo um glossário, de autoria de Adolpho Coelho. Após o texto de Camões, no final do

26
Op. cit.
27
LAGAZZI, Suzy. Recorte significante na memória. In: INDUSTRY, F.; FERREIRA, M. C.; MITTMANN, S. (Orgs.).
O discurso na contemporaneidade:materialidades e fronteiras. São Carlos, SP: Claraluz, 2009.
28
Referiam-se ao dia da Ŗraçaŗ portuguesa. Não pudemos ainda verificar com exatidão, mas em algum momento da
segunda metade do século XX passaram a nomear simplemente ŖDia de Portugalŗ.
29
Não entraremos aqui nos vários detalhes que norteam esse acontecimento, pois seria prematuro. Em nossa
dissertação faremos análise, relacionando a AD com a memória social.
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volume consta a ŖNotícia Histórica do Gabinete Portuguez de Leitura no Rioŗ, de responsabilidade


de Reinaldo Carlos Montoro.
Vamos nos deter nessa ŖNotíciaŗ. Para o GPL ele representa a primeira sistematização de
sua história. É bastante significativo perceber que esse lugar de memória foi criado porque não
havia mais meios de memória. Cabe ressaltar que percebemos esse documento sob o conceito de
Ŗmemória coletivaŗ de Halbwachs30. Seu autor, Reinaldo Carlos Montoro, é alguém em que a
memória coletiva do grupo fundador ainda habita. Assim, podemos ver nele Ŗuma ponte entre o
passado e o presenteŗ31.
O texto de Montoro é datado a partir da Cidade de Ubá (MG) a 1º de Janeiro de 1880.
Compõe-se que quatro partes nas quais inicialmente o autor traça um breve comentário acerca do
contexto que levou ao exílio voluntário do grupo fundador do GPL e ainda comenta a ambiência
da corte do Rio de Janeiro nos primeiros anos do século XIX. Nas três partes seguintes historiciza a
criação da instituição até o seu tempo presente.
A escolha desses documentos para compor nosso corpus de pesquisa é fundamental para
mapear um processo dicursivo acerca da formação identitária da instituição.
Proposta analítica
A partir de recortes feitos no texto GPL 3 depreendemos um conjunto de fragmentos de
enunciados que produzem imagens acerca na relação GPL-Portugal-Brasil. Assim o objeto
discursivo foi construído considerando as seguintes questões: Quem são esses portugueses? Como
eles se vêem na ex-Colônia? Como eles vêem os brasileiros?
De certo que não pretendemos analisar todo o documento, isso não seria factível para um
artigo.
Inicialmente buscaremos fragmentos que constituem o núcleo de enunciados que apontam
para auto-imagem da Instituição. Partimos do pressuposto de que há uma tensão dialética nesses
discursos que objetivavam legitimar e afirmar o papel GPL como ponto de referência de cultura
portuguesa no Rio de Janeiro.

30
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
31
HALBWACHS, op. cit., p. 84
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Auto-imagem:
Termos: Associação; Estabelecimento; Sociedade; Gabinete.
Fragmentos:
[…] só pelas vistas da utilidade futura do estabelecimento.
[…] das transcendentes vantagens do Estabelecimento.
[…] vastos e importantíssimos fins da Associação
[...] entendemos assim dever obrar, tanto por ser hum fim especial da
Associação Ŕ colligir as obras e manuscriptos de mérito na língua
portugueza.
[…] achar um edifício com todas as condições dezejaveis para o GABINETE
PORTUGUEZ DE LEITURA
[…] no intuito da sua illustração, da illustração geral, e de concorrer para restaurar
a gloria literária da sua Pátria!...
[...] primeira reunião de Portuguezes, que tem havido neste Imperio.
[…] hum estabelecimento, cujo fim he a cultura do espírito

Essas seqüências discursivas remetem para o caráter associativo que previam ao GPL.
Chama a atenção que em nenhum momento aparece o termo ŖBibliotecaŗ e a baixa incidência do
termo ŖGabineteŗ. Não vamos aprofundar essa análise aqui, pois isso será objeto em outro
trabalho adiante.
De qualquer modo, para nós fica patente são as estratégias discursivas que vão consolidar a
imagem do GPL como local de memória da cultura portuguesa. Analisando os demais documentos
que subsidiam o corpus da pesquisa percebemos a presença de uma memória discursiva que
remonta a esse texto. Como exemplo podemos citar um trecho em GPL 3, ao se referir a sua
criação diz: Ŗgérmen de todas as associações portuguezas no Brasilŗ e ainda mais expressivo:
Ŗinstituição mãe do progresso portuguez na Americaŗ e Ŗo centro para que devem convergir as
associações portuguezas de instrucção e cultura litteraria [...]ŗ.
Dando continuidade à analise do monumento textual GPL 1, perquirimos fragmentos de
enunciados acerca da imagem dos portugueses que fundaram e que circulavam na Instituição
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Fundadores:
[...] Socios Instituidores
[...] há de reconhecer o nosso cuidado, e zelo, em cumprir a missão que nos foi confiada
[...] como portuguez, como órgão ligitimo da Directoria, e como especialmente encarregado da direcção de seus
trabalhos

Portugueses que circulavam na Instituição:


[...] portuguezes residentes no Rio de Janeiro
[...] concidadãos estabelecidos n‟esta Capital e Imperio
[...] senhores
[...] concidadãos e sócios!

Brasileiros
[...] o povo irmão e generoso, que nos acolhe, e nos facilita os meus de augmentar as suas e nossas riquezas.
Portugueses
[...] o grande Povo

Esses fragmentos de enunciados não são compreensíveis sem associá-los as condições de


produção discursiva, visto que há meandros históricos e sociais que envolvem esse texto. Com essa
base, é possível detectar alguns esquecimentos ideológicos. Orlandi, considera que esse
esquecimento Ŗé da instância do inconsciente e resulta do modo pelo qual somos afetados pela
ideologiaŗ32.
A formação discursiva desses fragmentos de enunciados se estrutura a partir da seguinte
conjuntura: uma instituição fundada por emigrantes que se exilaram numa ex-colônia
voluntariamente por serem contrários a um regime absolutista que iria levar o seu país a uma
obscurantismo ainda maior; uma instituição fundada numa sociedade de corte que desejava apagar
todos arquétipos lusitanos Ŕ associados ao atraso; uma instituição formada por um grupo vindo de
um país absolutamente em crise cultural e política em relação aos demais do continente.

32
Op. cit., p. 35.
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Diante da ambiência anti-lusitana que havia na corte do Rio de Janeiro naquele momento
Ŗa própria língua portuguesa encontrava-se então ameaçadaŗ33 tamanha a quantidade de cursos de
francês. Além disso, Ŗpouco cultivados eram então os literatos portuguesesŗ 34e Ŗaté mesmo a
literatura [brasileira] deixava de ser um reflexo das letras portuguesas [...]ŗ35.
Na seção ŖObjetctos de Leituraŗ e na subseção ŖLivroŗ encontramos os seguintes
fragmentos de enunciados:

Na escolha dos livros, deu-se a precedência em numero, e por conseqüência no


emprego do capital, as obras portuguezas [...].

[...] entendemos assim dever obrar, tanto por ser hum fim especial da
Associação, - colligir as obras e manuscriptos de merito na língua
portugueza, - como por dever-mos essa homenagem a nossa Patria, e fazer-
mos assim também hum serviço ao Paiz em que residimos, cuja literatura se
confunde com a nossa.

Dentre outras significações e leituras possíveis, esse aspecto poderia configurar uma forma
de Ŗmanter viva a chama da cultura e da literatura portuguesas em uma das cidades mais
significativas política e culturalmente [...]ŗ36.
Esses portugueses que fundaram o GPL eram membros de uma diáspora, bem diferente da
geração anterior e da leva que seguiu a partir dos anos de 184037. Como emigrados precisavam se
aglutinar para se fortacer. Essa ideia era tão presente que em dado momento do discurso Ŕ ainda
no GPL 1 Ŕ José Marcelino da Rocha Cabral se refere as dificuldades que a Instituição passou e
que poderá passar. Para ele, a superação das dificuldades Ŗse tornão faceis aos esforços combinados
de muitos homensŗ. E continuando o discurso, diz: Ŗesta observação, trouxe o convencimento, de
que a proposição, a união faz a força, he uma verdade evidente, tanto na ordem phisica, como na
ordem moralŗ.

33
MARTINS, op.cit., p. 35.
34
Loc. cit.
35
MARTINS, op. cit., p. 36.
36
CARVALHO, Kátia de. Travessia das letras. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 1999, p. 108.
37
Em 2004 quando começamos a pesquisar o GPL após um exaustivo levantamento bibliográfico verificamos a quase
absoluta escassez de pesquisas sobre o fluxo migratório no período pós-golpe de Dom Miguel, ou seja, anos 1820 e
1830. Pouco houve interesse no mundo luso-brasileiro de perquirir as fontes que tratam da vinda de uma geração de
portugueses que fogem do perfil social que se concebe ao emigrante luso.
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Percebemos em alguns trechos um sentimento muito comum em exilados voluntários, ou


seja, um sentimento de dívida com os que ficaram. Na seção intitulada ŖServiço do Gabineteŗ, José
Marcelino da Rocha Cabral, relata que:
Ainda que distantes de nossa Patria, não podiamos deixar de sentir a
necessidade de acompanhar os esforços, que, á annos, faz o Povo
Portuguez, para seguir o movimento accelerado, que leva o genero humano
ao aperfeiçoamento de suas faculdades [...].

Na última parte do discurso Ŕ de maneira inflamada Ŕ a crer pelas interjeições Ŕ diz:


[...] finalmente, (e isto val mais do que tudo), em Portugal, ha-de dizer-se
com orgulho nacional: - Řos portuguezes residentes no Rio de Janeiro, são
beneméritos da Nação a que pertencem; elles coopérão efficazmente para a
restauração da antiga, da immensa, da incomparavel gloria da sua Patria!!!ř

Seguindo pari passu todo o conteúdo das palavras de Rocha Cabral, notamos mais uma vez
o termo Ŗrestauraçãoŗ sendo associado a Portugal. Nesse Ŗimplícito do discursoŗ 38é possível
depreender a representação do estado caótico da política e da cultura lusa do período.
Ainda nesse período discursivos, cremos ser bastante sintomático o destaque que Rocha Cabral dá
a sua fala ao chamar a atenção Ŗe isso val mais do que tudoŗ, ou seja, a imagem deles em Portugal.
Na mesma sequência discursiva se refere que Ŗos Portuguezes, residentes no Rio de Janeiro, já não
serão considerados como estranhos, também residentes neste Imperio, reconhecerão que, como
elles seguimos o movimento actual do espirito humanoŗ.
Esses enunciados podem assumir outras possibilidades a partir da intenção do analista39.
Observamos que o documento GPL 3 possui elementos discursivos que vão se tornar elementos de
interdiscurso numa série de outros impressos produzidos ao longo do período que recortamos para
pesquisa.

Considerações finais
Neste artigo estabelecemos e justificamos o corpus de pesquisa que subsidiará o
estabelecimento de nosso dispositivo de análise para mapearmos a formação identitária do GPL

38
PÊCHEUX, op. cit.
39
ORLANDI, Op. cit.
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quando de sua fundação. Categorizamos esses monumentos textuais como lugares de memória, de
acordo com Nora e igualmente como documentos/monumentos, segundo o conceito de LeGoff 40.
A produção discursiva estudada permitiu identificar alguns fragmentos de enunciados que
corroboram para o pressuposto de que os monumentos textuais selecionados serão fundamentais
para a compreensão do dito em relação ao não dito nos demais documentos do corpus.
Esses fragmentos de enunciados somam pistas que revelam como se constituiu a identidade
portuguesa no GPL. Ao perquirir esses enunciados, além de localizarmos elementos de
interdiscurso forjados em outras produções textuais da Instituição, percebemos intencionalidades
ideológicas do grupo que fundou o GPL.
Como estudo preliminar, esse artigo objetivou perquirir três documentos que foram
selecionados como objeto de análise para compreender o estabelecimento de uma representativa
identitária do GPL. Após compulsar esses documentos à luz da AD, foi possível apresentar um
panorama de como a Instituição, lançando mão de uma produção discursiva, forjou meios para
manter-se como local da memória da cultura lusitana no Rio de Janeiro.

Referências

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Gabinete. Rio de Janeiro, 1927. p. 1-19.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

40
Op. cit.
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III Seminário LEDDES P á g i n a | 204

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Memória Social) Ŕ Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

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Janeiro fundado em 1837. In: CAMÕES, Luiz. Os Lusíadas. Lisboa: Na Officina de Castro Irmão,
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OS AFRICANOS LIVRES E A DEFESA DOS INTERESSES


INTERNACIONAIS.
Gustavo Pinto de Sousa

É doloroso informar-vos que os cruzadores ingleses,


pretextando ter recebido instruções de seu governo,
continuam a infringir a Convenção de 1817, [...]
O Governo Imperial tem protestado e
representado energicamente contra esses abusos,
esperando que o Governo Britannico fará cohibir
o procedimento de seus Officiaes de Marinha,
que offendem tão directamente
os Tratados em vigor1.

Ernesto Ferreira França


Ministro dos Negócios dos Estrangeiros.

O comunicado do ministro Ernesto Ferreira França para a Assembléia Nacional no ano de


1844 descrevia a dificuldade em respeitar os tratados internacionais. França denunciava as ordens
Ŗoficiosasŗ realizadas pelos oficiais britânicos e reconhecia que o contrabando ainda era praticado
pelos brasileiros. O assunto da diplomacia sobre o tráfico de escravos não era um tema restrito ao
Ministério dos Estrangeiros, pelo contrário, com muita freqüência os ministros da justiça se
debruçavam sobre a questão jurídica do Ŗinfame comércioŗ. Os episódios de desrespeito as
resoluções e tratados internacionais propiciaram diferentes querelas políticas entre as autoridades
das colônias africanas, e das nações européia e brasileira. Pode-se dizer, que acordos internacionais
sobre a escravidão estavam em voga no século XIX. E como se sabe, na década de 1830 houve no

Mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UERJ. Pesquisador do Laboratório de Estudo
das Diferenças e Desigualdades Sociais Ŕ LEDDES/UERJ. Professor auxiliar na Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais do Instituto Isabel (FCHS)
1
Relatório da Repartição dos Negócios Estrangeiros de 1844. p.4.
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cenário político brasileiro um intenso debate sobre o tema. Manter ou não os instrumentos legais
de 07 de novembro de 1831 foi o Ŗcarro chefeŗ nos debates internos sobre a extinção do tráfico de
escravos. Contudo, é preciso entender os quadros internacionais, que contribuíram para o
prolongamento do tráfico de escravos para o Brasil. Porque o desembarque ilegal de africanos no
Brasil só deu certo devido às grandes redes de comerciantes, que transitavam pelos importantes
portos comerciais. E nesse período, como lembrou Luiz Felipe de Alencastro (ALENCASTRO,
2000), o comércio atlântico de africanos para o Brasil se dava diretamente com Angola. Assim,
como no Brasil, Angola no período de 1831 a 1850 promoveu algumas medidas políticas para o
comércio de escravos.
A economia angolana no século XIX tinha como produtos azeite de palma, ginguba, cera e
o apresamento de escravos. Em Benguela, por exemplo, se concentrava o mais importante porto de
Angola de onde partia para o Brasil os navios com os escravos. Essa próspera praça comercial
também sofreu com os tratados internacionais que colocava o comércio de escravos na ilegalidade.
Com a validade dos tratados internacionais, em Angola foi gerado um medo de crise econômica,
semelhante à preocupação dos agricultores brasileiros com a possível ausência de negros para
trabalharem nas lavouras. No ambiente internacional de luta contra o comércio de escravos,
Angola precisava construir normas para conviver com a ilegalidade do tráfico. Roquinaldo do
Amaral observou:
ŖCom os navios negreiros desaparecendo do porto da cidade no início da ilegalidade, em
1830, logo sentiram-se os efeitos de uma grave crise de abastecimento. Isso porque era
através de tais navios que Luanda conseguia parte dos gêneros de primeira necessidade
consumidos por sua população.ŗ (AMARAL, 1999: 147)

Angola passou a sofrer com a falta de insumos importantes para a população. Basta
lembrar, que a pólvora, cachaça e o fumo eram símbolos de troca entre comerciantes brasileiros e
angolanos. No entanto, mesmo com a proibição do tráfico de escravos, africanos e africanas
(KARASCH, 2000: 51) continuavam a desembarcar no país. Como os comerciantes angolanos
planejaram continuar suas ilícitas atividades? O porto de Benguela, assim como o Valongo, estava
fechado. E na América continuavam a ser introduzidos os africanos ilegais para trabalhar em suas
lavouras. O deslocamento dos portos e a saída dos navios em lastro foram os fatores que
possibilitaram a perpetuação dos embarques ilegais de africanos para América. Pela costa norte do
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litoral angolano, especificamente Ambriz, Ambrizete e o Rio Zaire (AMARAL, 1999), as


embarcações se dirigiam para a América, driblando o policiamento marítimo das nações européias.
Esse deslocamento geográfico dos portos dificultava a fiscalização dos oficiais da Marinha dos países
envolvidos na repressão ao tráfico de escravos. Os números de navios de guerra no porto de
Luanda aumentaram na década de 1845 e 1860, com o objetivo de combater as ações de
comerciantes brasileiros e angolanos. Para uma breve noção da distribuição das nacionalidades com
movimentação no litoral de Angola, especialmente em Luanda, Amaral preparou uma tabela a
partir dos boletins do Governo-Geral da Província de Angola, a saber:

Períodos 1845 e 1860

Inglaterra 51%
Portugal 25%
França 14%
Estados Unidos 10%
Fonte: AMARAL, Roquinaldo do. Brasil e Angola no Tráfico Ilegal de Escravos,
1830-1860. In: PANTOJA, Selma & SARAIVA, José Flávio Sombra (org.) Angola e
Brasil nas rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.p150.

Os números calculados por Amaral, possibilitaram a construção do debate sobre a defesa


dos interesses internacionais, na questão do tráfico de escravos. Em relação à Grã-Bretanha, essa
nação, já vinha desenvolvendo medidas contra a escravidão, ou pelo menos, para sufocar o
comércio de escravos. Em 1807, o Parlamento britânico aboliu o tráfico de escravos para suas
colônias. Indo além, os abolicionistas ingleses não tardaram para criar um grupo de oposição à
escravidão, o chamado Anti-Slavery Society (BETHELL E CARVALHO, 2009). Seu objetivo era
promover uma abolição gradual e ampliar os debates sobre o fim da escravidão. Além de
promoverem medidas políticas internas contra a escravidão, os britânicos no plano internacional
firmaram e mediaram uma série de tratados para condenar o escravismo. No caso brasileiro, por
exemplo, assinaram os acordos de 1810, 1815 e 1817, quando o Brasil constituía parte do Império
Português e mais tarde com a independência ratificou sua atuação com o tratado de 1826, que a
posteriori abriu caminho para a lei de 07 de novembro de 1831. Como se não bastasse em 17 de

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abril de 1839, um grupo abolicionista britânico criou a Foreign Anti-Slavery Society com o intuito de
intensificar a internacionalização da luta contra a escravidão.
Nos primeiros anos foram organizadas convenções com outros países abolicionistas para
discutir e traçar estratégias para desarticular o tráfico de escravos. Segundo José Murilo de Carvalho
e Leslie Bethell a presença da Marinha era uma das soluções para combater o Ŗinfame comércioŗ.
Para eles, além da Marinha, os países abolicionistas deveriam produzir uma Ŗregeneração
econômica, social e moral da África pela agricultura, pelo comércio e pelo cristianismo.ŗ
(BETHELL E CARVALHO, 2009: 216)
A Grã-Bretanha articulava os instrumentos jurídicos para policiar as embarcações suspeitas
e isso em alguns casos feria o princípio de soberania nacional de determinados países, como o
Brasil. Não foi à toa, que o ministro dos Negócios Estrangeiros reclamava da atuação dos oficiais de
Marinha da Grã-Bretanha. Além do Foreign Office, os ministros dos assuntos Exteriores eram
enérgicos no comprimento dos tratados internacionais. Carvalho e Bethel discorrem o exemplo de
Lord Palmerston, que ia além da cordialidade da Anti-Slavery Society. Lord Palmerston acreditava
que o tráfico de escravos só seria desmantelado através da força naval, por isso reconhecia as
atividades de policiamento dos marinheiros britânicos. Nesse sentindo, a postura de Palmerston
gerava conflitos com o Governo brasileiro em relação ao princípio de soberania, que deveria ser
respeitado nas águas brasileiras pelos oficiais britânicos. Na opinião de Leslie Bethell, o Governo
Britânico via com desconfiança as ações brasileiras no combate ao tráfico. Para ele integrantes da
elite política britânica, como Robert Gordon Ŗjá expressavam a opinião de que o tráfico de escravos
seria com dez vezes mais força durante os três anos até 1830 e que depois continuaria ilicitamente,
com a conveniência do governo brasileiro.ŗ (BETHELL, 1976: 75)
A partir do percentual calculado por Amaral, a presença portuguesa em ações a repressão
no porto de Luanda tem um aspecto peculiar para o Brasil. No balanço anual do ministro da
justiça Antonio Paulino Limpo de Abreu relatou que o Brigue Orion 2 foi apreendido pela Marinha
Brasileira portando a bandeira portuguesa. Para Kátia Mattoso as trocas de bandeiras em alto mar

2
O Brigue Orion foi apreendido no ano de 1835 pela Marinha brasileira. Em sua carga constavam 243 africanos. Após
seu julgamento, pelos comissionários brasileiros e ingleses os africanos foram emancipados e distribuídos pelas obras
públicas do Império. E os quatro marinheiros oriundos da embarcação foram reenviados para a Costa dřÁfrica por
ordem da polícia.
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eram conhecidas como prática de Ŗpavilhão falsoŗ. (MATTOSO, 2003: 60) De acordo com o
ministro, a continuação do tráfico ilegal para o Brasil acontecia por responsabilidade de alguns
comerciantes portugueses que insistiam em manter vivos seus negócios na África. Dessa maneira,
não poderia ser diferente a importância da Marinha Brasileira nos conflitos do ilícito comércio.
Manoel Alves Branco na apresentação de seu relatório a Assembléia descrevia a necessidade da
Marinha combater os especuladores da escravidão. Dizia o ministro:
ŖSe huma ideia ha neste negocio a todos os amigos do Brasil, e He que a Marinha
Brasileira não so tem rivalisado, mas até excedido á Estrangeira na actividade e empenho,
que tem mostrado de combater o crime desse trafico deshumano. Das apprehensões de
1834 duas são Brasileiras, e duas Inglezas; das deste anno de 1835 duas são Brasileiras, e
huma so Ingleza: he neste facto, Senhores, que eu espero, mais ver hum dia extirpada pela
raiz a tendência viciosa, e horrivel de ávidos especuladores: e daqui se mostra a
conveniencia da continuação do cruzeiro em toda a Costa do Brasil.ŗ (ARQUIVO
NACIONAL, IJ7-1)

Alves Branco celebrava o sucesso da Marinha na apreensão de uma embarcação a mais do


que a Marinha Britânica. O esforço da Marinha Brasileira em fiscalizar as costas do litoral do país
tinha como objetivo mostrar para os britânicos a eficiência dos brasileiros em proteger o território
nacional. A ideia de rivalidade marítima potencializava as discussões entre as nações brasileiras e
britânicas. As disputas marítimas encenadas pela Marinha Brasileira e Britânica acirravam os
debates nas Comissões Mistas estabelecidas entre os dois países, desde a aprovação do Ato
Adicional em 1817. De acordo com Jaime Rodrigues Ŗlogo depois da promulgação da lei de
novembro de 1831, o poder legislativo passou a discutir diversos pontos dela, tais como a atuação
das comissões mistas anglo-brasileiras e a própria ineficiência da lei.ŗ (RODRIGUES, 2000: 109)
Outro problema político, que se apresentava em relação à Marinha Brasileira contra os
conflitos do ilícito comércio era a questão das bandeiras dos navios apreendidos. As bandeiras das
embarcações serviam como um mecanismo de identidade dos navios e dentro do caloroso debate
da lei de novembro de 1831 o Governo Brasileiro problematizava o internacionalismo do tráfico
negreiro. O ministro Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho expressava a cultura política
brasileira na questão ao combate ao tráfico. Ele enfatizava:
Ŗcomo o julgamento summario pela Comissão mixta Brasileira, e Ingleza rezidente nesta
Côrte em virtude da Convenção de 23 de Novembro de 1826, só pode ter lugar a respeito
dos Subditos das duas Potencias Contractantes, tem acontecido, que tão deshumano
trafico he quase sempre protegido pela Bandeira Portugueza. Navios cobertos com a
referida Bandeira partem continuadamente de nossos Portos para as Costas dřAfrica, a

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pretexto de irem ali carregar marfim, cera, azeite, e outros gêneros de comercio; porem so
com o fim de importarem os infelizes negros, que lhes affianção hum melhor lucro.ŗ (ARQUIVO
NACIONAL Ŕ IJ7-1)
Ao culpar os portugueses pelas ações ilícitas do tráfico de escravos, Oliveira Coutinho trazia
à tona a necessidade de associar o comércio ilícito aos portugueses Ŗpés de chumboŗ, que atrasavam
os ideais brasileiros. Para Lúcia Bastos Pereira das Neves (NEVES, 2003) a carga pejorativa de
Ŗcorcundasŗ ou Ŗpés de chumboŗ estava associada ao elemento português, que remetia ao atraso do
período colonial. Assim, a Ŗpungenteŗ nacionalidade brasileira precisava eleger uma forma de
negação das estruturas coloniais. A bandeira portuguesa vinculada aos interesses especuladores foi
um mote encontrado pelo segmento político para responsabilizar a perpetuação do tráfico negreiro.
Os políticos brasileiros destacando as mercadorias do comércio português Ŕ marfim, azeite e óleo-
denunciavam que tais produtos eram a forma de troca por escravos na Costa da África, pois os
africanos representavam maior lucro, do que os produtos portugueses. Em suma, a apropriação
negativa denominada aos portugueses na época da Independência foi retomada no período
regencial como uma forma de legitimar as ações brasileiras e condenar os portugueses pela
manutenção do Ŗvil e desumanoŗ tráfico negreiro. (SOUSA, 2010) E nesse sentido, os ministros da
justiça do período apenas mencionam que as atividades ilícitas continuam pelas costas litorâneas
do Império e que o Governo continua incessantemente reprimindo tal atividade. Assim, na tabela
pode-se visualizar:

Navios Apreendidos Ano Informação


Escuna Destemida 1831
Escuna Camilla 1832
Barca Maria da Gloria 1833 Navio Português
Brigue Paquete do Sul 1834
Escuna Duqueza de Bragança 1834
Patacho Dois de Março 1834
Patacho Santo Antonio 1834
Bergantim Rio da Prata 1835
Brigue Amizade Feliz 1835
Escuna Angélica 1835
Brigue Orion 1835 Bandeira Portuguesa e Inglesa
Brigue Ganges 1838
Patacho Providencia 1839 Apreendido em Pernambuco
Brigue Carolina 1839
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Patacho Especulador 1839


Brigue Ganges 1839
Patacho Leal 1839
Pilot Boat ou Hiate Africano Atrevido 1839 Apreendido em Santa Catarina
Galiota Brasileira Alexandre 1840
Patacho Paquete de Benguella 1840
Brigue Portuguez Assiceira 1840
Brigue Brasileiro Nova Aurora 1840
Escuna Brasileira Primeiro de Abril 1840
Patacho (sem nome) 1844
Catão 1850 Apreendido em Santa Catarina
Edelmonda 1850 Apreendido em Cananéa
Trenton 1850 Apreendido em Cananéa
Rolha 1850
Urania 1850
Hiate Jovem Maria 1850
Hiate Theresa Maria ou Theresa 1850 Apreendido no porto de Ilhéos
Encantador 1850 Apreendido na Bahia
Cupido 1850 Apreendido em Marambaia
Hiate (sem nome) 1850 Apreendido em Itapemirim
Escuna Inocente 1850 Apreendido em Alagoas
Patacho Natividade 1850
Garopeira 1850
Barca Tourville 1850
Barca Tentativa 1850 Apreendido em Quissamã
Fonte: Foi possível organizar a listagem com base na seguinte documentação: Arquivo Nacional Ŕ IJ7-1 Ŕ
Série Justiça - Relatórios dos ministros da Justiça, ano 1831-1850. Encontra-se também disponível para
download em http://www.crl.edu/brazil/ministerial

No debate internacional sobre os africanos livres, os ministros da justiça reconheciam a


frouxidão na fiscalização da lei e tinham consciência de que o reenvio para África não eraexecutado
pelo Governo. O ministro da justiça Manoel Alves Branco propunha a criação de asilos
internacionais no território africano para instalação dos africanos beneficiados com a lei de 07 de
novembro de 1831. Alves Branco tentava perante os senadores e deputados angariar um crédito
especial para construir na África um lugar para abrigar os africanos livres. Em suas palavras:
ŖO Governo pois espera do patriotismo, liberalidade, e espirito religioso dos Membros
desta Augusta Assembléa, que nesta Sessão lhe seja facultado hum credito especial para a
criação na Africa de hum estabelecimento semelhante á Liberia dos Americanos do Norte,
que me parece o mais útil por outros muitos destinos, que se lhe pode dar.ŗ (ARQUIVO
NACIONAL Ŕ IJ7-1)

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Alves Branco queria com a criação de um território para os africanos livres desonerar o
Governo de pagar as despesas de comida, vestuário, guarda e transporte dos africanos livres no país.
Para ele os gastos com o sustento dos africanos livres seriam equivalentes ao crédito solicitado a
Assembléia para a construção de um território na África. Sua inspiração para uma Libéria decorreu
da iniciativa tomada no século XIX pelos norte-americanos, que construíram na Costa Ocidental
da África um território constituído por escravos libertos nos EUA. Sua formação foi oriunda da
iniciativa da Sociedade Americana de Colonização, que levou para África negros livres ou
alforriados da escravidão. O incentivo para a construção desse território foi motivado pelo fato dos
africanos, que gozavam de liberdade não serem integrados a sociedade norte-americana e a fim de
evitar a ociosidade e a marginalidade era mais vantajoso construir um lugar na África. No entanto,
a comunicação do ministro Manoel Alves Branco em 1834, não passou de uma suposição, pois o
Governo brasileiro não tinha interesse em atender seu pedido, por três razões: primeiro, porque a
ausência da mão-de-obra africana no país geraria um colapso na produção; segundo, o Governo não
tinha receitas disponíveis para tamanho empreendimento; e depois, o Governo brasileiro já
contava com a utilização da mão-de-obra dos africanos livres para garantir os Ŗserviços pesadosŗ Ŕ
labor Ŕ das e nas instituições públicas.
Como o projeto de adquirir um território na África não vingou, o debate de dar outro
destino aos africanos livres foi retomado em 1837 por Bernardo Pereira de Vasconcelos. No seu
relatório para a Assembléia, Vasconcelos propunha que o Governo brasileiro fizesse contato com as
autoridades africanas para a construção de um asilo para os africanos introduzidos no país após 07
de novembro de 1831. Sua proposta também não teve efeito e os africanos livres e os africanos
ilegalmente escravizados continuavam a desembarcar ilicitamente no Brasil.
No debate em defesa dos interesses internacionais sobre os africanos livres, em 18 de
novembro de 1845, o governo brasileiro e britânico encenou uma calorosa discussão relacionada à
execução dos tratados internacionais e ao destino dos africanos livres. O episódio entre os
comissionários britânicos e o curador Mascarenhas foi um bom exemplo para mostrar a produção
de enunciações num mesmo contexto, mas com sentidos diferentes.

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O curador dos africanos livres Luis Alves de Mascarenhas apresentou em carta para o
ministro da justiça Paulino Limpo de Abreu, um oficio produzido pelos comissionários britânicos
ao Conde de Aberdeen, no qual continha informações inexatas sobre os africanos livres. Conforme
expõe Beatriz Gallotti Mamigonian (MAMIGONIAN, 2009), os Comissionários Britânicos John
Samo e Frederick Grigg redigiram um relatório sobre as precárias condições dos africanos livres no
Brasil, em dezembro de 1843. Samo e Grigg escreveram o relatório baseado em denúncias sobre o
estado de pauperização que viviam os africanos livres nas obras da Casa de Correção. No ofício
redigido pelos Comissionários Britânicos foi afirmado que os africanos livres que trabalhavam nas
obras da prisão correcional eram forçados ao trabalho cruel, no qual muitas vezes era pior do que
um simples condenado. Além disso, a alimentação e a vestimenta eram de qualidades inferiores a
roupa de um escravo. Em relação à habitação os Comissionários Britânicos descreviam que os
africanos livres residiam num pequeno quarto próximo ao pátio das obras. E concluíram Ŗseus
soffrimentos e privações podem ser facilmente conjecturados. Ninguem se informa do estado
d'esses seres infelizes, que vivem assim occupados ate que a morte, ou a sua incapacidade para o
trabalho, lhes altere a sorte.ŗ(ARQUIVO NACIONAL, IIIJ7-138)E essa denúncia não tinha sido a
única feita por Frederick Grigg. Em novembro de 1833, ele escreveu para as autoridades britânicas
que Ŗapesar da lei de 1831, que o declarava ilegal, o tráfico de escravos no Brasil começara a crescer
num ritmo alarmante.ŗ (BETHELL, 1976: 83) E, em 1845, Samo e Grigg se embasavam na
resolução do Bill Aberdeen, que proibia o comércio de escravos da África para América.
A aprovação do Bill Aberdeen complicaria as relações com os países dependentes dos
Ŗbraços africanosŗ, e como o próprio Lord Aberdeen escreveu: Ŗas relações entre a Grã-Bretanha e o
Brasil em breve se tornariam Ŗdesagradáveisŗ e Ŗcomplicadas.ŗ (BETHELL, 1976: 84) Já a
respostade Mascarenhas sobre tal documento, era que o texto o colocava em situação muito
embaraçosa e que o seu trabalho era garantir o bem-estar dos africanos livres. A denúncia feita
pelos Comissionários britânicos ao Conde de Aberdeen relatava que internamente o Governo
brasileiro infligia os acordos internacionais e que os africanos livres eram tratados como escravos.
E, na Casa de Correção, por exemplo, desempenhavam serviços grosseiros e pesados, lembrando
muito mais a escravidão do que a concepção de trabalho livre. E Mascarenhas em sua defesa

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relatava que além da linguagem ríspida dos Comissionários de Sua Majestade Britânica, o Governo
Brasileiro era empenhado em respeitar o Ŗespíritoŗ dos tratados internacionais.
Ele dizia em seu oficio que os africanos livres trabalhavam no Brasil confiados a cidadãos
brasileiros e aos estabelecimentos públicos e que tinham liberdade de circular pelas ruas da cidade
como qualquer trabalhador livre. Seu texto tinha como sentindo político rivalizar com os
britânicos, que se os africanos livres eram desrespeitos no Brasil, a classe trabalhadora britânica era
tratada muito pior que os africanos livres. O curador afirmava com muita segurança, que Ŗmuitos
trabalhadores na Europa, se julgarião felises, se tivessem igual sorte a dos Africanos livres existentes
no Brazil.ŗ (ARQUIVO NACIONAL, IJ6-523) Dessa maneira, ele apontava que simples denuncias
não podiam ser alimentadas como querelas diplomáticas entre seus países, pois o operariado inglês,
assalariado e livre, não gozava de tanta liberdade como os africanos livres. Para o curador, o salário,
do operariado não era garantia de bem-estar social. Até mesmo nos debates internacionais, a
experiência de trabalho era referenciada como forma de disciplinarização dos indivíduos. Nos
centros industriais da Grã-Bretanha, o operariado era instruído a uma rotina de trabalho
controlada pelo desempenho da máquina, não foi à toa que o movimento operário contra a
exploração do trabalhador tinha como inimigos os proprietários e a máquinas. (HOBSBAWM,
1998) Nesse período de elaboração de dispositivos disciplinares pelo trabalho, E. P. Thompson
observou que o operariado britânico sofreu com a intensificação da exploração das atividades fabris
(THOMPSON, 2002: 38) e os novos padrões do laissez faire projetaram na vida do operariado
britânico a busca de novos modos de vida, onde além do trabalhador disciplinado era preciso
constituir um grupo de trabalhadores com Ŗconsciência de classeŗ.3 Amparado nessa comparação,
Mascarenhas observava que os africanos livres, quando enfermos eram medicados no Hospital da
Santa Casa de Misericórdia, onde recebiam medicamentos em prol da sua saúde. E ainda tinham a
Enfermaria na Casa de Correção, criada em 1838, para dar tratamento aos africanos doentes. Além
de garantias médicas, os africanos livres contavam com o serviço do curador de africanos livres, que

3
Para Thompson o termo Ŗconsciência de classeŗ está vinculado à formação da classe operária na Grã-Bretanha. Seu
efeito está voltado à percepção do trabalhador, enquanto, sujeito e sujeitado das condições históricas. Apesar de
Thompson não trabalhar diretamente os instrumentos disciplinares, o sentido de um grupo de trabalhadores como
autores históricos (produtores da História) pode ser compreendido na medida, que esses sujeitos se tornaram
senhores da sua condição, rompendo, ou melhor, tentando romper com os instrumentos disciplinares na tentativa de
encenar um novo devir para sua História.
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os servia como advogado perante os Tribunais brasileiros, benefício esse que muitos estrangeiros e
Ŗnacionais desvalidosŗ não podiam gozar por falta de fundos. Dessa maneira, Mascarenhas
respondia ao ministro Paulino Limpo de Abreu que as informações relatadas ao Conde Aberdeen
não procediam, pois a denúncia feita pelos Comissionários britânicos estava repleta de inexatidões.
E ele aproveitava para responder ao ministro, que o argumento dos britânicos sobre os
estratagemas da política brasileira estavam equivocados. Ao elevar os méritos brasileiros em
respeitar os acordos internacionais, o curador logo procurou apontar para o demérito dos
Comissionários britânicos. Segundo Mascarenhas:
Ŗpara concluir que os Commissionarios Ingleses não se dão ao trabalho de fazer quaesquer
pesquisas, e que lanção sobre as Authoridades Brazileiras sua culpa, que ellas não terá,
pois se elles se dissem ao trabalho de que alias fazem na ostentação ou rectificarão o seo
falso juiso á respeito do tratamento dos mesmos Africanos Livres, ou poderia facilmente
habilitar-se para indicar os nomes dos que não fossem tratados segundo o espirito das
Instrucções do Governo Imperial.ŗ (ARQUIVO NACIONAL: IJ6-523)

Mascarenhas, como empregado do Governo, cumpria seu dever em responder ao ministro


Paulino Limpo de Abreu sobre a situação dos africanos livres. Ele defendia o interesse brasileiro na
contra argumentação de que os africanos livres eram bem tratados em terras brasileiras. E que a
Inglaterra não podia cobrar a Ŗhumanidadeŗ que os Comissionários britânicos diziam que o
Império do Brasil não praticava, uma vez que, sua classe trabalhadora era oprimida nas atividades
das fábricas. Como lembrou Mamigonian, Mascarenhas iluminou o debate sobre a situação do
cotidiano do operariado na Inglaterra. Da querela política produzida pelos Comissionários
britânicos, Mascarenhas dizia sentir-se traído pela postura desses estrangeiros, que recebiam no
Brasil Ŗbom tratamentoŗ e que a atitude dos estrangeiros era produzir uma desconfiança do
Governo brasileiro em relação aos Ŗempregados públicosŗ, que merecem a confiança do Governo.
Por fim, Mascarenhas ratifica que no Brasil, os africanos livres tinham muito mais sorte se
comparado aos Ŗdesgraçadosŗ que vivem na Europa sem alimentos básicos para seu sustento.
Não apenas a Grã Bretanha possuía ações de combate ao comércio ilegal de escravos nas
costas da África, a França também dedicou sua força marítima para desarticular as ações dos
traficantes de escravos. O Ministério dos Assuntos Externos Francês Ŕ Quai d‟ Orsay Ŕ reconhecia
que o embarque de africanos para o Brasil, e especialmente, para o Rio de Janeiro era contínuo
mesmo com as leis proibitivas. No entanto, a atuação do governo francês nas apreensões de
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tumbeiros brasileiros tinha um papel especial. De acordo com Cláudio Monteiro a atuação
repressora da Marinha francesa acontecia em menor escala comparada a Grã Bretanha, pois a
França Ŗnão poderia intervir em um domínio, onde a falta de fundamentos legais a proibia de
exercer, sobre os navios e equipagens brasileiras, as mesmas pressões exercidas pela Inglaterra.ŗ
(MONTEIRO, 2009) Mesmo com um percentual de 14% como calculou Amaral, nos anos de
1845 e 1860, a França era limitada de tratados internacionais com o Brasil em relação à questão
escravista.
Com a atuação restrita, o Governo francês investia uma boa cifra para manutenção dos
marinheiros pelas costa dřÁfrica para evitar o embarque clandestino de africanos. Apesar do
investimento francês e britânico, o representante francês Charles His de Butenval avaliava que a
perpetuação do tráfico de escravos, tanto por comerciantes na África e no Brasil era legalizada
porque tal atividade tinha características institucionais. Entre a disciplina e a escravidão Bunteval
tinha a opinião de que Ŗo governo brasileiro obedecia, antes aos costumes da nação, e não ao texto
da lei.ŗ (MONTEIRO, 2009) Antes de um desrespeito as leis brasileiras, o problema da sua
eficiência não se deu somente aos costumes, o problema maior era o conflito de interesses
encenado na lógica estatal, que retardava as políticas de combate a escravidão. Entre a lei de 1831 e
1850, as atuações de repressão foram distintas, a primeira concedia a polícia o papel de fiscalizar e
abriu um amplo debate entre os legisladores para sua reforma, enquanto a segunda foi estratégia,
desarticulando as redes negreiras tanto aqui e África.
Em suma, para Cláudio Monteiro a falta de resultados e o dispêndio econômico para
repressão ao ilícito comércio levaram o Ministério de Assuntos Externos Francês a diminuir sua
atuação naval nas costas dřÁfrica. Na avaliação do ministro plenipotenciário Butenval, o tráfico de
escravos não era uma necessidade do governo brasileiro, pelo contrário, era um ramo de negócios.
(MONTEIRO, 2009) E, nesse sentindo, o ministério dos Assuntos Externos Francês resolveu em
31 de janeiro de 1849 diminuir sua força naval no combate ao tráfico na costa africana, pois a
França não possuía com os países beneficiados com os africanos ilegalmente escravizados
instrumentos jurídicos para atuar na repressão. Por fim, a posição dos franceses era não encerrar
sua atuação no combate ao comércio de africanos Ŗilegalizadosŗ, ao invés disso, combatiam os

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possíveis navios franceses que atuassem no tráfico reduzindo com essa medida, os custos aos cofres
do Governo Francês.
Por fim, no trato internacional, a presença dos africanos livres na América era recorrente
nos países onde existiam comissões mistas, pois essa tinha a função de cobrar a execução dos
tratados internacionais. Houve registro de africanos livres na América em localidades como: Cuba,
Trinidad, Bahamas, Estados Unidos e Brasil. Nesses lugares os africanos livres apresentavam como
semelhança, o aproveitamento da sua mão-de-obra para o trabalho. Segundo Enidelce Bertin
(BERTIN, 2008) a utilização da mão-de-obra africana era empregada nas atividades agrícolas e
urbanas dessas localidades. Nas Bahamas era comum o emprego dos africanos livres como
aprendizes na cidade ou empregados na agricultura local; já em Cuba o uso da mão-de-obra foi
direcionado para as plantações de cana-de-açúcar; Trinidad os africanos livres eram aproveitados
em atividades semelhantes a Cuba.

Referências Bibliográficas

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CASA DE DETENÇÃO:
ESPAÇO PARA (RE) EDUCAR OS “VADIOS‟ DA CORTE (1880-1889).

Jailton Alves de Oliveira - UERJ

Resumo

O objetivo deste trabalho é analisar as formas educacionais propostas para os milhares de vadios
enviados para a Casa de Detenção da Corte. As análises serão postas a partir das teorias, propostas
por Michel Foucault, sobre o poder disciplinar e biopoder.
Palavras-chave: Prisão; Educação; Disciplina.

Abstract

The objective of this study is to analyze the ways educational proposals for the thousands of stray
sent to the House of Detention of the Court. The analysis will be made from the theories,
proposed by Michel Foucault, on disciplinary power and biopower.
Keywords: Prison; Education; Discipline.

A escriptura de venda de chácara que fazem a Manuel de Passos Correa e sua mulher
dona Rosa Maria Abreu Correa á fazenda nacional, pelo excellentissimo procurador
da coroa soberana e fazenda nacional srº José Antonio da Silva Maia, sres.
proprietários de uma chácara e benfeitorias nella existentes situada no lugar
determinado Catumby e que se divide pela frente com a rua do Conde [...] vendião
por esse instrumento de hoje para compra mencionada chácara com todas as
benfeitorias existentes á fazenda nacional pela quantia de oitenta contos de reis valha
mais ou valha menos que esses contos de reis. 1

Mestrando em história da Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


1
Arquivo Nacional. Fundo Estados e Chácaras. Série Justiça. IJ6, nº. 2523, Cx.419, Gal. A.
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A Casa de Detenção da Corte, atual penitenciária Milton Dias Moreira,2 fez parte do grande
complexo penitenciário do império3onde se encontravam também o Calabouço e a Casa de
Correção. A instituição foi criada para substituir o Aljube, uma antiga prisão eclesiástica desativada
por não mais atender as necessidades da justiça. Embora também pudesse abrigar presos
condenados, sua principal função era manter detidos aqueles que ainda não tivessem sido
condenados ou cometidos pequenos delitos sem pena. Portanto, era para lá que, muito
particularmente após o fechamento da prisão do Calabouço, em 1874, que convergiam todos os
dias uma massa de desocupados e errantes que caíam na malha fina do poder jurídico-policial da
época. A maioria das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da ordem constituída e, por
isso, muitos transeuntes eram direcionados à instituição sob argumento de simples averiguação.
A maioria das prisões era feita sob prerrogativa da manutenção da ordem constituída. Essa
hipótese pode ser confirmada pelo elevado número de presos que eram diariamente conduzidos à
Casa de Detenção para prestar esclarecimentos sobre suas condutas. Assim, pedreiros, fundidores,
latoeiros, guardas freio, ostreiros, lavadeiras, lustradores, estivadores, barbeiros, quitandeiros,
escravos ao ganho, pautadores, alfaiates, cigarreiros, calafates, cafeteiros, cigarreiros, entre outros,
eram encaminhados à instituição por incorrerem em delitos como vadiagem, mendicância,
embriaguez, desordem, ofensas públicas, agressões, insultos, portar navalha, entre outros. Ao
analisar o último livro do império, entre setembro e novembro de 1889, podemos encontrar
desordem e vadiagem como os principais motivos das prisões da cidade.4
Pensar a instituição como um lugar educacional é promover um distanciamento da
historiografia tradicional, que só percebe a escola formal como lugar de educação e
aprendizado. Para, além disso, pensar em educação na cidade do Rio de Janeiro oitocentista é
ter em mente uma heterogeneidade das formas educacionais; plularidades das possibilidades

2
A penitenciária Milton Dias Moreira, após a desativação do complexo da Frei Caneca, em março de 2010, encontra-se
instalada no município de Japeri, estado do Rio de Janeiro.
3
BRASIL. Decreto nº. 1774, de 02 de julho de 1856, p. 294.
4
Notação nº. 61. Página 06 a 29; 31 a 250. Em virtude das más condições do livro deixamos de computar quase
duzentas prisões. São 232 prisões por desordem e 123 por motivo de vadiagem.
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históricase Ŗusos diversos que os agentes fazem das instituições educativas, es colares e não-
escolares, remodelando e reconstruindo os espaços, os saberes e os tempos sociaisŗ. 5
Gondra e Schueler, 6ampliando o que seria o termo educação no Brasil do século XIX,
perpassam o campo de visão da chamada educação formal . Para ambos, o espaço escolar dito
formal do oitocentos não pode ser considerado como único lugar de aprendizado; ou seja,
permitem pensar em prisões, escolas, quartéis, manicômios, ordens religiosas, entre outros,
como espaços também educacionais. A escola e escolarização dos corpos, na cidade imperial,
perpassam o campo de visão da chamada educação formal. Para, além disso, a significativa
ampliação de fontes e campos do saber na história da educação brasileira, observada em
dissertações e teses de doutoramento, produzidas nos diferentes programas de pós-graduação
em educação, em diferentes instâncias e processos de difusão do saber, têm contribuído muito
às abordagens no campo da história da educação. Esses estudos no Brasil vêm cedendo espaços
às Ŗnovas abordagens e problemas, provocando um deslocamento no campo e fazendo aparecer
novos perigosŗ.7 Educação, portanto, como Ŗ[...] uma forma de instrução, polidez ŗ.8Essa posição
justifica-se na medida em que a elite político-econômica oitocentista procurava polir os
comportamentos dos considerados vadios.
Os recentes estudos, no campo educacional, sobre o período em questão dão conta de
intensos debates, e embates, sobre a escolarização de uma massa populacional constituída por
negros, índios e brancos pobres. Estudos que muito têm se distanciado de outros que consideram
o período escolar imperial como uma suposta Ŗidade das trevasŗ 9 da educação brasileira. Ou seja,
que não houve movimentações ou estudos nesse campo do saber. No entanto, é bom lembrar que
os modelos escolares vigentes no país estavam imbricados com ideários civilizatórios iluministas,
onde, para que houvesse progresso, seria necessário ordenar e adestrar para melhor (re) educar a
população dita perigosa nesses novos modelos civilizatórios. Portanto, parede ter havido

5
GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no império brasileiro. São Paulo
: Cortez, 2008, p. 19-35.
6
Idem.
7
GONDRA, José Gonçalves. Paul-Michel Foucault: uma caixa de ferramentas para a História da Educação. In.
FILHO, Luciano Mendes de Faria (org.) Pensadores sociais e história da educação. São Paulo, 2004, pp. 285-311.
8
Idem.
9
Idem.
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necessidade de inventar o Brasil, a partir dessas concepções iluministas de igualdade, fraternidade e


igualdade. Processo, esse, que perdurou até o final do regime imperial e trouxe significativas
modificações nos diferentes mecanismos educacionais, particularmente nos debates pedagógicos,
pois a Ŗinstrução possibilitaria arregimentar o povo para um projeto de país independente ŗ.10Assim,
o país assistiu à formação de escolas de primeiras letras, ainda nas primeiras décadas do século, até
aos sistemas de ensino primário, no final da centúria.
Pensar a educação supõe inscrever em nosso horizonte os interesses que esse tipo de
prática aciona e mobiliza. Nesse movimento, é possível observar que a vontade de
educar, de interferir no curso da vida de modo mais ou menos Ŗracionalŗ, mais ou
menos Ŗcientíficoŗ, está presente em lugares variados. Dessa forma, consideramos a
existência de forças distintas que, agindo de modo solidário ou concorrente,
delineiam aquilo que encontramos em termos de iniciativa e conteúdo educativo. 11

A educação, como instrumento de interferência no curso da vida desses sujeitos, estava


presente em lugares variados. Nesse contexto, considera-se a Ŗ[...] existência de forças distintas
que, agindo de modo solidário ou concorrente, delineiam aquilo que encontramos em termos
de iniciativa e conteúdo educativo”.12 Pensar, portanto, em escola ou escolarização no Brasil do
XIX é pensar em termos plurais e que perpassam o campo de visão da chamada educação
formal. Os diferentes espaços formais de educação não podem ser considerados como únicos
lugares de aprendizado. Nesse contexto, pode-se entender que prisões, quartéis, manicômios,
ordens religiosas, entre outros, também foram locais selecionados para educação da população.
Para, além disso, a significativa ampliação de fontes e campos do saber na história da educação
brasileira, observada em dissertações e teses de doutoramento, produzidas nos diferentes
programas de pós-graduação em educação, em diferentes instâncias e processos de difusão do
saber, tem contribuído muito às abordagens no campo da história da educação. Esses estudos
no Brasil vêm cedendo espaços às Ŗnovas abordagens e problemas, provocando um
deslocamento no campo e fazendo aparecer novos perigos ŗ.13

10
Ibidem., p. 290.
11
GONDRA, José Gonçalves; Schueler, Alessandra. Op. Cit., p.41.
12
Idem., p.43.
13
Gondra, José Gonçalves. In. Luciano Mendes de Faria (org.). Op. Cit., p. 311.
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Quando Foucault problematiza a respeito de Ŗlugares de sequestroŗ, 14 se referindo as


prisões, escolas, manicômios e hospitais, está tentando demonstrar como esses locais colaboram
para educar, adestrar, os corpos desses sujeitos, via vigilância e punição. A vigilância
hierárquica e a sanção normalizadora, combinadas com um procedimento de exame, formam
instrumentos aos quais se de deve o sucesso do poder disciplinar. O exame exerce Ŗ[...] uma
vigilância que permite qualificar, classificar e punir [...]ŗ 15 estabelecendo, nesse sentido, uma
visibilidade constante sobre os indivíduos fazendo com que sejam diferenciados e sancionados.
No poder disciplinar é o individuo que precisa ser visto, identificado, classificado e posto em
ordem.
Certeau diz que os europeus, após os deslumbramentos com o que viram e acharam nas
novas terras, vão procurar escrever uma história desses momentos e nessa direção acabam
produzindo Ŗuma colonização do corpo pelo discurso do poderŗ. 16Desta forma, ainda segundo
ele, o Novo mundo teria sido uma espécie de Ŗpágina em branco para nela escrever o querer
ocidentalŗ.17Incluir os americanos na história oficial européia significava excluí-los do direito de
reviver e legar suas memórias e histórias, anteriores à chegada dos colonizadores. Refletir sobre
uma possível construção de memória desses sujeitos é pensar em complexidades, em jogos de
saber-poder, em resistências. Resistências entendidas não como reação aos poderes
constituídos, às normas, mas simplesmente como uma outra forma de existir, pois Ŗse não há
resistências, não há relações de poder [...]ŗ. 18
A partir destas reflexões de Certeau pode-se problematizar e executar um movimento no
sentido de questionar como o Brasil, no século XIX, pode ter sido uma folha em branco e
escrito sua história política, econômica, social e cultural a partir de múltiplas idéias liberais;
mas, sobretudo, aquelas que promulgavam a liberdade, a prosperidade, cujos objetivos
orbitavam em torno da implantação de um sistema de produção capitalista, tendo com pano de
fundo a domesticação da população. A ruptura política de Portugal representava para o Brasil

14
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Ed. Vozes, 16ª Ed., p.154.
15
Ibidem., p.156.
16
CERTEAU, Michel de (org). Escritas e Memórias. A Escrita da História. Coleção vanguarda teórica : Ed. Forense
Universitária, 1994, pp. 9-59.
17
Ibid., pp. 10-13.
18
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal , 1979.
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aparar os resquícios de um passado colonial. Era preciso construir um Estado nacional forte e
conciliador e, para tanto, novas formas de representações foram sendo erigidas no sentido de
deslocamentos de colônia a Estado nacional. E, ancorados por idéias liberais de liberdade,
prosperidade e igualdade, o poder constituído, que toma posse do aparelho político-
econômico, procura incluir os pobres nesse modelo de nação. Modelo, porém, estranh o a essa
camada populacional uma vez que sem cidadania tinha que preencher os requisitos exigidos
pelos vários discursos apresentados à sociedade. A população do país vai sendo inserida nesse
emergente modelo de nação onde os mais Ŗdiversos estratos sociais que aqui viviam [...] viessem
a obedecer as determinações legais”.19O século XIX, portanto, pretendeu deixar o legado de
cidade colonial destruído, erguendo em seu lugar uma cidade moderna. ŖMenos São Sebastião,
mais Rio de Janeiro”.20
Neste processo, a cidade e os seus sujeitos vão sendo alvos de transformações, ao longo do
século. Enquanto os sujeitos eram classificados e distribuídos nos novos espaços da urbe carioca, a
cidade ganhava contornos europeus. A partir da segunda metade do século XIX inúmeras
transformações já eram tangíveis na sociedade brasileira relacionadas, particularmente, à expansão
do capitalismo e ao processo de urbanização.21Momentos de conturbações sociais, políticas e
econômicas no país. A lei do Ventre Livre, a crescente chegada de trabalhadores estrangeiros, a
constituição do partido abolicionista, ascensão e declínio da produção do café no Vale do Paraíba,
o fim da guerra do Paraguai, as pressões de diferentes setores, a resistência negra, alteraram
significantemente o comportamento do Estado imperial que se viu diante da inadiável decisão de
por fim ao sistema escravista no país. Nesse final de século, em particular a partir da década de
1870, como empório comercial e sede do governo central, a cidade foi muito beneficiada com os
múltiplos investimentos estrangeiros, que dantes eram destinados ao tráfico transatlântico. Capitais
que contribuíram para a construção de estradas de ferro, calçamentos, implantação de redes de

19
FILHO, Luciano Mendes de Faria. Instrução elementar no século XIX. In. LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO,
Luciano Mendes de Faria; CYNTHIA, Greive Veiga (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte :
Autêntica, 2000. 2ª edição, p.137.
20
GONDRA, José Gonçalves. Artes de Civilizar. Medicina, higiene e educação escolar na Corte imperial. Rio de
Janeiro: Eduerj, 2004, pp. 17-37.
21
LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capitalismo industrial e
financeiro. Rio de Janeiro : Imec, 1978, 2º volume, pp 110-115.
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esgotos, a criação de serviços de limpeza pública e de transportes urbanos, iluminação a gás; além
de empresas industriais, bancos, caixas econômicas, companhias de navegação a vapor, companhias
de seguros, entre outros. Soma-se a isso o surgimento de novas freguesias, em função do fluxo de
pessoas que a cada dia enchia a cidade.
Por outro lado, a massa populacional desocupada, vadia, errante, deveriam ser (re) educados
nesse modelo de nação. Modelo, esse, estranho a essa camada já que, sem cidadania, tinham que
cumprir os requisitos básicos de convívio com a boa sociedade. Nessa direção, diferentes formas de
controle jurídico-policial foram sendo acionadas a fim de vigiar, punir a fim de adestrar a
população da urbe carioca oitocentista. E o Código Criminal, entendido como mecanismo
produtor de discurso de verdade, foi sendo muito utilizado nesse processo pedagógico ao associar,
particularmente, desocupado a vadio.
Não tomar qualquer pessoa uma ocupação honesta, útil de que possa substituir depois
advertido pelo juiz de paz, não tendo renda suficiente, pena de prisã o com trabalho de
oito a vinte e quatro dias, simplesmente por ser vadio, e de prisão simples ou com
trabalho segundo o estado de forças do mendigo, de oito dias a um mês, por estar
simplesmente andar mendigando. 22
Na língua portuguesa, a palavra vadiagem, além de expressar a condição de indivíduos
vagabundos, errantes e sem moradia certa, queria exprimir também a recusa em se conduzir de
acordo com as normas do trabalho. As ordenações Filipinas definiam o vadio como indivíduo sem
ocupação, sem senhor e sem moradia certa, pessoas ociosas e refratárias ao trabalho.23O dicionário
de Antonio Morais, publicado em 1813, definia vadio como alguém que vivia sem amo ou sem
senhor, sem Ŗ[...] tracto honestoŗ, negócio, ofício, emprego, nem modo de vida nem domicílio
certo [...]ŗ.24 O código Criminal do Império, porém, foi mais incisivo ao criminalizar os ociosos.
Não especifica claramente se o criminoso é um vadio. Apenas trás formulações subjetivas sobre
quem deveria ser o criminoso. O crime é definido como Ŗtoda acção, ou ommissão voluntária
contrária ás leis penaesŗ 25 e os criminosos são Ŗos autores, os que commeterem, constrangerem
ou mandarem, alguém commeter crimesŗ. 26 Os decretos que compõem à categoria de crime

22
Código Criminal do Império do Brasil. Op. Cit., p. 129.
23
FILHO, Walter Fraga. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do séc. XIX. São Paulo, Hucitec/Salvador: Ed.
UFBA, 1996, pp.130-140.
24
Idem. p. 135..
25
Código Criminal do Império do Brasil. Op. Cit., p. 130.
26
Idem.
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policial, por exemplo, são destinados a Ŗmanter a civilidade e os bons costumesŗ 27 e isso incluía
perseguição a Ŗvadios, desordeiros, capoeiras, prostitutas e sociedade secretaŗ. 28 No Título I, cap.
I, referente a crimes e dos criminosos, o Código informa que Ŗnão haverá crime, oudelicto sem
uma lei anterior que o qualifiqueŗ.29 No entanto, era de se esperar que nessa sociedade estamental
oitocentista, que se formava à luz dos pensamentos liberais jurídicos, que Ŗ[...] o homem pobre,
sem quase nenhuma chance de ascensão profissional, acabaria mais cedo ou mais tarde atrás
das grades das prisões da cidadeŗ. 30Essa associação entre crime e vadiagem persistiria no Brasil
República: Ŗexercer profissão, ofício [...] proversubsistência por meio de ocupação proibida por
lei [...].31Nesta intercessão entre delito, ociosidade e vadiagem, milhares de seres considerados
como pertencentes ao mundo da rua eram encaminhados à instituição. Alguns saíam em um,
dois ou mais dias. Outros, ficaram até anos, em virtude da morosidade da justiça, aguardando
sentença e a possível remoção para a Casa de Correção.
Ao dar entrada na instituição todos os presos, a despeito do tempo de permanência na
instituição, eram submetidos ao mesmo ritual:
Os presos condenados a galés, galés perpetúa, pena de morte e trabalhos forcçados por
mais de dez anos deveriam ocupar as mansardas e os presos por infração de posturas
municipaes, regulamentos policiaes, infração de contrato, dividas civis ou comerciaes, ou
subditos estrangeiro tiverem sido presos à requisição dos respectivos cônsules, presos
indiciados de qualquer crime, por crimes afiançáveis, inafiançáveis [...] 32 juntamente com
os que padecessem de moléstias contagiosas, ou repugnantes, cuja presença seja nociva aos
outros, devem occupar o andar térreo. 33

Para ser recolhido o preso deveria ser conduzido com ordem emitida pela autoridade
responsável por sua prisão. Essa ordem deveria conter os dados do delito, tais como características
físicas, o crime cometido, horário, entre outras informações. Somente pessoas presas em flagrante
delito eram aceitas sem a ordem de prisão, com a condição de explicar os motivos da detenção. Os
que cometeram delitos mais brandos ou ainda não tinham sido condenados ficavam no primeiro

27
Idem., p. 132.
28
Idem., p. 133.
29
Idem., p. 134.
30
CARVALHO, José Murilo. Teatro de Sombras: A política imperial brasileira. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. P.231.
31
MENEZES, Lená Medeiros de. Os indesejáveis: Desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na
capital federal (1890-1930). Rio de Janeiro : EdUERJ, 1996,p.132.
32
BRASIL. Decreto de número 1774. Op. Cit., p.295
33
Idem., p. 299.
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andar, enquanto os presos condenados por qualquer delito, os de comportamento violento, os


condenados à morte e os acometidos de doenças contagiosas ficavam no andar térreo. Na entrada
o detido tinha seus bens arrolados e deixados sob a guarda da instituição, podendo os mesmos
serem entregues a uma pessoa indicada por ele ou retirados por ocasião de sua soltura. Em seguida
passavam por uma triagem composta por dois itens: averiguação do crime e condição do preso. O
objetivo, a princípio, era discriminar os detentos que iriam para este ou aquele lugar dentro da
instituição. Os presos recolhidos à noite seriam encarcerados em lugar separado e classificados no
dia seguinte, já que a instituição só funcionava entre oito e dezesseis horas.
O Regulamento previa que Ŗas mulheres, escravos e menores serão recolhidos em prisões
separadas guardadas as convenientes divisões [...]ŗ.34Esse raio destinado à instituição era composto
por dois corredores, com vinte celas de cada lado, cubículos com aproximadamente 14,85m², além
de alguns cubículos, solitária e cela escura, destinados para castigos.35No entanto, existe a hipótese
de que esse parágrafo do Regulamento tenha ficado apenas no campo da teoria, já que o presídio
feminino foi inaugurado apenas no regime republicano. Segundo alguns jornalistas, que
freqüentaram a instituição entre o final do século XIX e início do XX, existia uma extrema
convivência entre homens, mulheres e crianças na mesma cela. Presos perigosos e inocentes
dividiam o mesmo espaço.
Lavadeira Julieta Maria da Conceição, 18 anos, moradora da Rua do Resende, filha de
Manoel e Maria Isidora, presa no dia 03 de abril de 1888, 36 por desordem e vagabundagem, era,
portanto, uma suposta descumpridora do pacto social. Pela ocupação, cor da pele, por
exemplo e motivo da prisão, podemos deduzir que Juliana não pertencia ao mundo da ordem,
governo ou trabalho, mas sim ao mundo da rua. Mas, trajando sua saia de chita e paletot
branco, com seu Ŗnariz reggular, bocca reggular, olhos escuros, lábios reggular, semblante
reggular, cabelos carapinha e rosto redondoŗ 37, Julieta foi solta somente dez dias após ter dado
entrada na instituição. Por outro lado, a preta Dionísia Maria da Silva Lopes, escrava, presa em
nove de novembro de 1889, trajada com um vestido verde, foi, como Juliana, presa por
34
Idem., p. 300.
35
AZEVEDO, Duarte Moreira de Azevedo. Rio de Janeiro: Sua história, monumentos, homens notáveis, usos e
curiosidades. Biblioteca Garnier, 1877, p. 404.
36
Livro de Matrícula de Presos da Casa de Detenção da Corte. Notação número 61, p. 210.
37
Idem., p. 211
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vadiagem. Tinha nariz Ŗreggular, bocca reggular, olhos escuros, lábios grossos, semblante
reggular, cabelos carapinha e rosto redondoŗ. 38 Como foi presa descalça, o escrivão, que por
algum motivo não especificou o motivo de sua prisão, deduzimos que Dionísia poderia ser uma
escrava fugida que, nos dizeres de Chalhoub, contribuía para tornar a cidade, além de perigosa,
um Ŗesconderijoŗ.39Dionísia ficou quarenta dias presa e ambas não foram beneficiadas com o
pedido do Ministro da Justiça que, em 1888, pediu Ŗalguma providencia para os presos
encarcerados por mais de oito dias ŗ.40
Todos deveriam, portanto, esquecer a Ŗbandidagem, a ociosidade, a perdição e o crimeŗ41
que os levou à instituição e se apropriar dos novos mecanismos disciplinares impostos pelos
mecanismos reguladores. Esse novo modelo de vida, modelo institucional, deveria, então, reger
todo o corpo, o tempo e as atitudes. Uma espécie de exclusão do mundo social e inclusão no
mundo prisional.
Disciplinar para educar a população pareceu ser um dos principais ingredientes para o
envio de tanta gente à prisão da corte. Nessa direção, a instituição deveria ser um prolongamento
dos acontecimentos sociais, políticos e econômicos do espaço da cidade. Deveria se a escola para
educar, produzir comportamentos desejáveis, ensinar o vadio a ser produtivo, mediante as
oportunidades de trabalhos nas diversas oficinas da instituição. Deveria contribuir com o processo
de construção da nação. E não por acaso a instituição chega ao final do império superlotada;
correcionais e apenados, na mesma cela, participantes de uma teia de poder onde as múltiplas
relações ocasionassem, por exemplo, em motins, assassinatos, promiscuidade, jogos de azar,
suborno a policiais, brigas entre outros. A instituição como uma escola de todas as perdições.

Referências bibliográficas

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38
Idem, p.212.
39
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Brasiliense, 1986, p.35.
40
Arquivo Nacional. Relatório do ministro da justiça, 1888, p.5.
41
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deteriorada. Rio de Janeiro: Ed. Zaar, 1999. p. 45.
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O ENVOLVIMENTO DO IPES NAS RELAÇÕES ENTRE O REGIME CIVIL-


MILITAR E A SOCIEDADE CIVIL

Joana DřArc Fernandes Ferraz


Elaine de Almeida Bortone

RESUMO

Este artigo tem como objetivo geral analisar as ações do Instituto de Pesquisa e Estudos
Sociais (IPÊS), instituto criado em 1961, por empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo com
apoio dos setores militares. Este instituto ajudou na construção da ação militar, no que se refere ao
suporte político-jurídico, financeiro e ideológico para a mobilização de setores civis e militares, a
fim de evitar o Ŗperigo comunistaŗ, Ŗa deteriorização do setor econômicoŗ e Ŗpreservar a
democraciaŗ, ainda que fosse necessário para isso, a efetivação do golpe de 1964. Suas estratégias
centravam-se na mobilização e articulação das formas de participação de segmentos sociais, entre
eles donas de casa, professores, intelectuais, estudantes, padres e empresários.

Palavras-chaves: IPES; golpe civil-militar; ditadura militar; Lei de Anistia.

INTRODUÇÃO

Na primeira parte deste artigo iremos discutir a atualidade deste tema. Trataremos das
questões que ainda hoje são polêmicas no que se refere à memória e à história da ditadura no

Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-Graduação em


Administração Ŕ PPGAd/UFF
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Administração Ŕ PPGAd/UFF
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Brasil. Em seguida, iremos analisar, nos arquivos do IPÊS, as formas de atuação deste instituto na
preparação e organização do golpe de estado no Brasil.
De acordo com os dados recentes do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), a
radiografia dos atingidos pela ditadura militar no Brasil é alarmante:
(…) Calcula-se que pelo menos 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses
de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos
cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos. Ocorreram milhares de prisões políticas
não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos, uma cifra
incalculável de exílios e refugiados políticos. (PNDH3, 2010, p. 173)

Decorridos 47 anos do início da ditadura no Brasil, um conjuntos de questões impedem


que tenhamos uma visão mais clara do que realmente ocorreu. Observa-se uma contenda entre o
Estado e a sociedade civil em relação ao período da ditadura em diversas questões. As mais
polêmicas referem-se à abertura dos arquivos, pois muitos arquivos ainda permanecem fechados.
Outra questão conflituosa refere-se à forma como se operou o processo de reparação, cuja
prioridade do governo centrou-se na denominada Ŗindenização pecuniáriaŗ. E, uma terceira
questão muito polêmica é em relação à interpretação da Lei de Anistia.
No que se refere à abertura dos arquivos da ditadura. Os arquivos do Exército, da Marinha
e da Aeronáutica ainda estão fechados. Assim como os arquivos da polícia investigativa (conhecida
como P2), e dos órgãos de repressão do Departamento de Operações Especiais (DOPS) de muitos
estados da federação.

OS ARQUIVOS

O Decreto número 4.553, de 27 de dezembro1 estabeleceu novas classificações para os


arquivos da ditadura. Os documentos reservados tinham prazo de cinco anos e passaram para dez;
os confidenciais subiram de dez para vinte anos; os secretos, de vinte para trinta anos; e os ultra-
secretos podem permanecer sigilosos para sempre. Além disso, as regras para desclassificação
tornaram-se confusas. Este Decreto foi um dos últimos atos do governo Fernando Henrique
Cardoso e passou a vigorar 45 dias após a sua publicação, ou seja, no governo Lula. O governo Lula

1
Como um dos últimos atos do governo Fernando Henrique Cardoso, passando a vigorar 45 dias após a sua
publicação, ou seja, no governo Lula.
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nada fez em relação a este Decreto, permitindo que alguns arquivos da ditadura pudessem
continuar fechados por um prazo indefinido.
Em 2005, a Lei 11.111, de 11 de maio, originária da Medida Provisória 228/2004, atribui a
uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas o poder de administrar os
documentos ultra-secretos e trata do denominado sigilo imprescindível à segurança da sociedade e
do Estado.
Ainda em 2005, 21 de dezembro, a então ministra-chefe da Casa Civil Dilma Russef, hoje
Presidente da República, anunciou a transferência da documentação relativa à ditadura militar, que
estava em poder da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) para o Arquivo Nacional,
subordinado a sua pasta. O material pertencia ao Serviço Nacional de Informações, ao Conselho
de Segurança Nacional e à Comissão Geral de Investigações, compreendendo o período de 1964 a
1990. Os arquivos datados até 1975 tiveram seu sigilo expirado e tornaram-se disponíveis apenas
para pessoas diretamente interessadas Ŕ que tenham os nomes neles citados Ŕ ou seus cônjuges,
ascendentes ou descendentes. Assim, estes documentos não estão acessíveis para os pesquisadores e
nem para o público em geral.
Em 2006, a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Russef, coordenou outras iniciativas de
desclassificação dos arquivos, que resultaram na transferência para o Arquivo Nacional dos
documentos pertencentes à Inteligência da Polícia Federal e de algumas Divisões de Segurança
Interna (DSI) dos ministérios, seguindo a mesma linha dos documentos de 2005.
Os historiadores Carlos Fico e Jesse Jane Vieira de Souza, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), se desligaram das suas funções no Arquivo Nacional e se rebelaram contra a
política do Projeto Memórias Reveladas, cuja função deveria ser abrir e manter disponíveis os
documentos da ditadura militar, mas que restringiu o acesso ao material. Carlos Fico explica, na
sua carta, que o motivo da decisão do Arquivo se deu "sob a alegação de que jornalistas estariam
fazendo uso indevido da documentação, buscando dados de candidatos envolvidos na campanha
eleitoral".

ANISTIA

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Outra questão bastante polêmica refere-se à Lei de Anistia. O primeiro Projeto de Lei de
Anistia foi resultado da pressão de militantes dos Direitos Humanos, reunidos em diversos comitês
em todo o Brasil. Primeiro foram os Comitês Femininos pela Anistia, em seguida, os Comitês
Brasileiros Pela Anistia. Os Comitês eram compostos de militantes que não estavam presos,
religiosos, familiares de mortos, de clandestinos e de desaparecidos políticos, políticos que tiveram
seus mandatos cassados e alguns parlamentares. Seus objetivos eram a libertação dos presos
políticos, o retorno dos exilados, banidos e cassados, a apuração e julgamento dos crimes cometidos
pelo Estado e a responsabilização do Estado pelos crimes que cometeu. Este Projeto de Lei perdeu
por 5 votos no Congresso Nacional.
Em seguida, ainda em 1979, foi encaminhado ao Congresso Nacional, pelo então
presidente João Baptista de Figueiredo o segundo projeto de Lei de Anistia. Na ocasião, alguns
presos políticos ficaram 32 dias em greve de fome até a aprovação da lei, que ocorreu no Congresso
no dia 22 de agosto daquele ano. Naquele dia, os parlamentares tentaram aprovar uma emenda ao
projeto original que tornava a anistia total e irrestrita, inclusive para praticantes de crimes de
seqüestro, mas a emenda não passou.
A Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, chamada Lei de Anistia teve um alcance restrito e
deixou de fora, arbitrariamente, grande parcela dos presos político existentes. A Lei serviu como
primeiro impulso de abertura política. No entanto, foi intencionalmente ampla e permitiu
interpretações equivocadas.
Após a promulgação desta Lei, foram anistiados todos os que, de 2 de setembro de 1961 a
15 de agosto de 1979, cometeram crimes de motivação política e crimes eleitorais, alcançando
aqueles que tiveram seus direitos políticos suspensos, servidores públicos, militares e dirigentes e
representantes sindicais punidos com fundamento nos atos institucionais e complementares do
regime militar. Muitos exilados puderam retornar ao Brasil e foram recebidos no aeroporto com
cartazes de boas-vindas. Alguns presos políticos saíram da prisão. Algumas pessoas que viviam na
clandestinidade retornaram ao seu estado de legalidade.
No entanto, ainda permaneceram muitas questões a serem resolvidas. Se se pode afirmar
que algum avanço ocorreu, por outro lado argumenta-se que houve uma maior dificuldade em
avançar na luta dos que não foram contemplados, uma vez que estes se tornaram minoria. A luta
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dos sobreviventes e dos parentes continuou no dia seguinte ao da aprovação da Lei, a fim de incluir
os que ficaram fora. Não foram contemplados com a anistia os condenados pela prática de crimes
de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
A interpretação que foi dada à Lei de Anistia abriu outras polêmicas entre o Estado e a
sociedade civil. De alcance restrito e deixando de fora arbitrariamente grande parcela dos presos
políticos existentes a lei serviu como primeiro impulso de abertura política. No entanto, ela acabou
permitindo interpretações equivocadas. Na esteira dessas negociações, de ambos os lados, a Lei de
Anistia passou a ser interpretada como uma lei que serviria para anistiar os militares e os
militantes. A leitura de que os crimes conexos também eram anistiáveis abriu a interpretação de
que eram conexos os crimes que os militares cometeram em decorrência da luta com os militantes.
Desta forma, abriu-se a possibilidade de perdão para os crimes de lesa-humanidade cometidos pelo
Estado brasileiro, tais como o de tortura, seqüestro e execução.
A revisão da Lei de Anistia é uma reivindicação dos movimentos sociais na luta contra os
resquícios que a ditadura produz ainda hoje. Assim, a OAB, junto com outras entidades e juristas,
solicitaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma revisão da Leide Anistia. Em 28 de abril de
2010, por 7 votos a 2, o STF foi contra a revisão desta lei. O STF decidiu que os crimes cometidos
por agentes públicos à época podem ser considerados crimes conexos às infrações políticas. Dessa
forma, o Tribunal julgou ser impossível processar os agentes de Estado nos crimes contra
opositores do regime militar.
A deputada Luciana Genro enviou para a Câmara dos Deputados o Projeto de Lei
7430/10, que tem por objetivo alterar a Lei da Anistia (6.683/79) para permitir o julgamento dos
crimes cometidos por agentes públicos civis ou militares contra pessoas acusadas de atos contra a
segurança nacional e a ordem política e social. No entanto, este novo projeto ainda não foi julgado.
De acordo com o jurista Fábio Konder Comparato, a interpretação do STF afrontou a
Constituição, segundo a qual crimes de tortura não podem ser objeto de graça ou anistia, uma vez
que são crimes de lesa-humanidade.
Segundo o jurista Hélio Bicudo (2005:12) Ŗ…o Brasil, ao promulgar a Lei de Anistia de
1979, deveria sancionar e punir os criminosos do regimeŗ. Segundo o autor, anistia refere-se ao
Ŗperdão a determinados crimes, tendo em vista a pacificação dos espíritos, agitados por
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acontecimentos que, engendrando paixões coletivas, perturbam a ordem social, incidindo no


Direito Penalŗ. Completamente diferentes são os crimes conexos, que segundo o jurista, Ŗ(…)
contemplam ações de uma ou mais pessoas objetivando o mesmo resultadoŗ. Não se pode falar em
crimes conexos uma vez que Ŗconexão é nexo, ligaçãoŗ. Não há ligação entre os crimes dos militares
e dos militantes. ŖSó pode haver conexidade se os vários autores buscam a mesma finalidade na
prática o ato delituoso (…)ŗ.
A Lei de Anistia abriu a possibilidade de reparar juridicamente os absurdos cometidos pelo
Estado durante a ditadura. Assim, diversas pessoas atingidas pela ditadura, que tiveram as suas
vidas interrompidas psicologicamente, politicamente, juridicamente, parentes de mortos,
desaparecidos, pessoas que precisaram viver na clandestinidade, que foram exiladas, entre outras,
entraram com ações de reparação.

REPARAÇÕES

As lutas dos familiares de mortos e desaparecidos, bem como dos sobreviventes da ditadura
brasileira continuou pelas décadas seguintes. A luta dos sobreviventes e parentes continuou, como
resultado dessas lutas, uma nova Lei foi aprovada no Congresso nacional, a Lei 9.140, de dezembro
de 1995, denominada Lei dos Desaparecidos Políticos. Votada no Congresso Nacional esta Lei
estabeleceu:
a) Que o Estado brasileiro reconheceria oficialmente a sua responsabilidade no assassinato de
opositores políticos do período da ditadura, sem, no entanto, que se desculpasse publicamente
pelos seus crimes;
b) A criação de uma Comissão Especial, composta de sete membros: um deputado da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara, uma pessoa ligada às pessoas atingidas pela ditadura, um
representante das Forças Armadas, um membro do Ministério Público Federal e três pessoas
livremente escolhidas pelo presidente da República.
O Coronel João Batista Fagundes, representante das Forças Armadas, integrante da
Comissão em 2003, assim se manifesta:
Evidentemente, eu, como integrante das Forças Armadas, não penso da mesma forma que
pensam outros integrantes. Mas eles têm todo o direito de pensar daquela maneira, até porque

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nós vivemos a plenitude de um Estado Democrático de Direito. Tenho procurado interpretar o


pensamento das Forças Armadas. Temas algumas falhas no nosso passado, alguns períodos de
turbulência, em que determinados movimentos de força eram justificados. E que hoje não são
mais justificados. As Forças Armadas têm o maior interesse em restabelecer a verdade dos fatos e,
se possível, quando for o caso, até promover o ressarcimento do dano. Agora, nós não podemos é
atribuir ao Exército e às Forças Armadas determinados erros e exageros dos quais participaram no
passado. (Relatório Direito à Memória e à Verdade, 2007: 39)

c) Esta Comissão tinha três tarefas: reconhecer formalmente caso por caso, aprovar a reparação
indenizatória e buscar a localização dos restos mortais que nunca foram entregues para
sepultamento. A Comissão Especial atravessa quatro mandatos presidenciais sem localizar muitos
restos mortais;
d) E a necessidade de se permitir amplo acesso aos arquivos abertos e outros arquivos públicos, ou
mesmo privados, para consulta e esclarecimento da realidade das mortes. No entanto, isto ainda
não foi feito.

Em 2002, uma nova Lei, de número 10.536, altera a Lei dos Desaparecidos em relação à
data de abrangência para efeito de reparações, de 15 de agosto de 1979 para 5 de outubro de 1988.
Amplia para casos de mortes e manifestações em passeatas, e pela responsabilidade do Estado em
caso de suicídio. No entanto, muitas formas de opressão ainda permaneceram nas décadas
seguintes e não foram contempladas para efeito de reparações.
Em seguida, ainda em 2002, a Lei 10.559, propõe a reparação econômica, estabelecendo a
contagem do tempo em que o perseguido político foi obrigado a afastar-se de suas atividades
profissionais, devido à punição ou ameaça de punição. Também se determinou o pagamento de 30
salários mínimos por ano de punição aos que não tem como provar vínculos com a atividade
laboral e cujo valor não pode exceder, em hipótese alguma, cem mil reais. Os que conseguirem
provar que tinham vínculos com a atividade laboral podem ganhar uma reparação mensal. Ou seja,
as perdas profissionais representam prejuízo maior do o suplicio da tortura, assim, o direito ao
trabalho e a uma profissão é superior ao direito à vida, à liberdade.
Assim, verifica-se, ao longo de todo este período, uma política que busca o consenso. Esta
política do consenso não pretende ir fundo nas questões da reparação moral e jurídica. Ela também
não pretende expor para toda a sociedade as iniqüidades do regime ditatorial. Movidos por este

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ideal do consenso, inúmeros filmes, relatos, documentários, seriados televisivos sobre a ditadura
recente não apontam os culpados, não revelam os nomes dos torturadores, não indicam as
continuidades da luta, tais como, a luta de familiares e grupos para encontrar os restos mortais dos
desaparecidos2 políticos, as lutas pela abertura dos arquivos secretos da Divisão de Segurança e
Informações3.
Ao lado da memória oficial, que exclui, na forma de esquecimento e silêncio grande parte
da história deste país, parece que o Ŗanjo da históriaŗ, a quem Walter Benjamin se refere,
lentamente vem abrindo um tempo de possibilidades. Sua força enfrenta e questiona a memória
nacional. É como se o discurso anteriormente criado sobre esse período de repressão não desse
mais conta de narrar a história nacional.
Os discursos da memória e da história oficial nos parecem hoje incompreensíveis e sem
lógica. Eles não dão conta de narrar os sofrimentos, as dores, as lutas e as expectativas de um grupo
bastante representativo da sociedade nas décadas de 60 e 70 do século passado.
O discurso produzido pela memória oficial preteriu os seus principais atores. Silenciados,
humilhados e traumatizados, esses sujeitos hoje ressurgem juntos com outros. Explode na
sociedade uma outra memória, exibida nos cinemas, nas biografias, nas pesquisas acadêmicas e,
principalmente, nas narrativas dos seus protagonistas, os militantes de esquerda.
Paralelamente, uma vontade de ouvir tem tomado conta das novas gerações. Neste
momento, o relato, a narração e a escuta parecem exercer uma função social. O relato passa a ter
uma função de testemunho e também reelaboração do passado. Esta vontade não é só individual,
mas também é social.
O silêncio e o esquecimento afetaram os indivíduos diretamente envolvidos, mas também
colaboraram para uma construção social autoritária, na família, na escola, em diversos os grupos
sociais, em diversas instituições públicas. Ouvir esses relatos, escutar esses narradores, abrir a

2
São considerados desaparecidos aqueles que o Estado, em momento nenhum reconhecem a sua prisão ou morte. Este
encaminhamento serve para todos os países da América Latina que passaram por ditaduras recentes. São
considerados mortos todos os que têm o Atestado do Óbito ou de Presunção da Morte, embora os seus corpos
tenham sido ou não encontrados.
3
O DSI, como é conhecido este órgão, Ŗera um órgão de informações do regime militar instalado em todos os
ministérios civis, que se subordinava hierarquicamente ao ministro, mas que permanecia sob a Řsuperintendênciař do
SNIŗ. (Fico, 2004: 125)
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comunicabilidade, como nos ensina Walter Benjamin, é resgatar da sociedade o sentido da


experiência coletiva.

O IPÊS E O GOLPE DE 1964

É neste sentido que o estudo dos arquivos do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais
(IPÊS), criado em 1961, custodiados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, é de suma
importância para compreender as articulações político-jurídico, financeiro e ideológico construídas
para efetivar o golpe, com os argumentos de evitar o Ŗperigo comunistaŗ, Ŗa deteriorização do setor
econômicoŗ e Ŗpreservar a democraciaŗ.
Suas estratégias centravam-se na mobilização e articulação das formas de participação de
segmentos sociais, entre eles donas de casa, professores, intelectuais, estudantes, padres e
empresários. Depois de elaborado, preparado e efetivado o golpe militar, em 1972, o IPÊS finda as
suas atividades, argumentando que não faz mais sentido a sua existência uma vez que o motivo de
sua criação já havia se consolidado.
É de fundamental importância repensar e narrar as ações do IPES na história
contemporânea do Brasil, uma vez que este instituto criou uma estrutura sofisticada, produziu
estratégias e foi responsável pela construção de um imaginário que se utilizou do medo como
argumento para a deposição de João Goulart, por meio de filmes, livros, cartilhas, panfletos,
financiados pelo capital interno e externo, com contribuições das grandes empresas multinacionais.
O Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPÊS) tinha como objetivo constituir uma base de
apoio intelectual e financeira ao movimento Ŗcontra-revolucionárioŗ que se organizava para
combater a Ŗrepública sindicalistaŗ, implantada pelo Presidente João Goulart.
Segundo seu Estatuto, de 1963, tinha como finalidade Ŗpromover a educação cultural,
moral e cívica dos indivíduosŗ, Ŗdesenvolver e coordenar estudos e atividades de caráter socialŗ e
Ŗpor meio de pesquisa objetiva a discussão livre, tirar conclusões e fazer recomendações que irão
contribuir para o progresso econômico, o bem estar-social e fortificar o regime democrático do
Brasilŗ

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O Comitê central se encontrava na Guanabara (RJ) e coordenava os outros braços da


Instituição espalhados pelo Brasil, tais como IPÊS São Paulo, IPÊSul, IPÊS Pernambuco, IPÊS
Belo Horizonte, IPÊS Paraná, IPÊS Manaus, IPÊS Santos e IPÊS Belém. Mantinha-se
financeiramente através das contribuições dos seus associados, dentre eles, pessoas jurídicas,
empresas nacionais e estrangeiras e pessoas físicas. Com isto, dispunha de volumosos recursos, no
ano de 1963, por exemplo, a sua receita foi de CR$ 219.166.136,50 (duzentos e dezenove milhões,
centos e sessenta e seis mil, centro e trinta e seis cruzeiros e cinqüenta centavos), com a qual podia
cobrir as despesas com propaganda e relações públicas, segundo o Relatório de Atividades do IPÊS
de 1963.
Seu organograma, segundo seu Estatuto (1963), era composto por Conselho Orientador,
Comissão Diretora, Comitê Executivo e Conselho Fiscal. Cabe ao Conselho Orientador: 1) traçar
as diretrizes e orientação das atividades; 2) eleger a Comissão Diretora; 3) aprovar ou recusar
alterações dos estatutos, propostas pela Comissão Diretora, sem, no entanto, modificá-las; 4)
colaborar na ampliação do quadro social e na obtenção de recursos e 5) decidir sobre questões
omissas dos estatutos. A Comissão Diretora é composta por um presidente, dois vice-presidentes, e
dois secretários. A esta Comissão compete: 1) elaborar o seu regimento interno; 2) coordenar os
programas e projetos de ação de cada Região; 3) decidir sobre aplicação de valores disponíveis; 4)
traçar as normas administrativas a serem seguidas pelo Comitê Executivo; 5) examinar e aprovar
balanço e contas do Comitê Executivo; 6) eleger e substituir os membros do Comitê Executivo; 7)
programar e decidir sobre as atividades e a ação do IPÊS com o fim de atingir seus objetivos; 8)
colaborar na ampliação do quadro social e na obtenção de recursos. O Comitê Executivo, formado
por 10 membros, tinha a incumbência de eleger um presidente, dois vice-presidentes, quatro
coordenadores, dois secretários, um tesoureiro geral. A ele compete: 1) direção administrativa; 2)
executar as decisões do Conselho Orientador e da Comissão Diretora; 3) instalar, coordenar e
dirigir os diversos Grupos de Trabalho ou Grupos de Estudos; 4) aprovar convênios de cooperação
com entidades diversas, públicas ou privadas, para execução de tarefas e trabalhos a que se propõe
o IPÊS; 5) praticar todos os atos de administração que não sejam privativos do Conselho
Orientador e da Comissão Diretora.

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Para preparar suas estratégias de ação o IPÊS montou uma cadeia de unidades operacionais,
por meio do qual atuariam em diferentes áreas, setores da sociedade civil e dentro do Estado. O
Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC) ou Grupo de Pesquisa era responsável pelo
planejamento estratégico e pela obtenção de informações para preparar a ação. Indicava as áreas de
preocupação para os Grupos de Estudo e Grupos de Doutrina para fixar diretrizes a curto e a longo
prazo para suas manobras; Grupo de Assessoria Parlamentar (GAP) localizado em Brasília, tinha
como objetivo a busca de apoio para os projetos e conhecimento da coordenação política da
campanha anti-João Goulart; Grupo de Opinião Pública (GOP) responsável em difundir o
pensamento do IPÊS de maneira abrangente, planejando ações como a disseminação de
declarações feitas pelo Grupo de Estudo e Doutrina (RJ) e Grupo de Doutrina e Estudo (SP);
Grupo de Publicações/Editorial (GPE) disseminava material impresso e visual com a mensagem
ideológica apropriada por todo país; Grupo de Estudo e Doutrina (GED) preparava estudos que se
tornavam a base para teses e diretrizes, produzia análises com objetivos definidos, limitados e
táticos; Grupo de Integração (GI) que tinha como objetivo Ŗintegrar pessoas e corporações dentro
do espírito democrático do IPÊS e ao mesmo tempo angariar contribuições financeiras para as
atividades do Institutoŗ (Boletim mensal n. 23, 1964).
Para disseminar sua ideologia, o IPÊS criou estratégias e se apropriou de vários recursos,
técnicas, mídias e profissionais de destaque de diferentes áreas. Uma das atividades prioritárias foi
a realização de estudos acerca de Reformas de Base, Reforma Tributária, Habitação Popular e
inflação com propósito, não só de participar no debate ideológico, como também constituir-se num
contrapeso às propostas da Reforma de Base de João Goulart.
Outra forma de disseminar sua ideologia foi através de cursos, palestras, seminários. Para
ser mais eficaz, difundiu as idéias o mais amplamente possível alcançando diferentes setores da
sociedade por todo o país, e, para isto, organizou enorme repertório de opção para sua execução,
como publicação de materiais impressos nos formatos de livros, jornais, revistas, boletins, panfletos.
Segundo Ramirez (2009) .
Entre livros, encartes e panfletos se editaram 182 milhões de unidades, para o que o
Instituto contou com a colaboração de numerosas empresas, instituições e organismos
oficiais, nacionais quanto estrangeiros, bem como de editoras a ele vinculadas, dentre as
quais as ligadas à Igreja Católica foram as mais ativas.

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Utilizou os meios massivos de comunicação que incluem rádio (Programa ŖPeço a palavraŗ),
televisão, cinema. Preparou palestras e cursos para serem ministrados nas escolas, universidades e
fábricas, com o cuidado de usar uma Ŗlinguagem popularŗ (Ata de Reunião do Comitê Executivo
do IPÊS de 03.07.62). Para atingir seus objetivos e finalidades, conforme descrito em seu Estatuto
de 1963, art. 3º Ŗo IPÊS usará dos meios adequados, entre os quais campanhas educativas, cursos,
conferências, seminário, difusão e propaganda, manutenção de escolas, institutos ou bolsas de
estudos, etcŗ
Inicialmente, a direção do IPÊS estava preocupada com a agitação política e o crescimento
de participação popular no governo de João Goulart, para isso, produziu e distribuiu grande
quantidade de materiais anticomunistas e antipopulistas, nos quais louvava o capitalismo.
Posteriormente, deu início a uma forte campanha disseminando os valores da iniciativa
privada, a livre iniciativa, promoção do neocapitalismo liberal, rejeição a diretrizes políticas
consideradas estatizantes ou socialistas, anticomunista e a promoção da democracia. Através de
ações estratégicas, o IPÊS pretendia, desagregar os quadros populistas, deslegitimar as ações do
Executivo, conter o desenvolvimento das organizações das classes populares e obter o controle do
Estado.
Para alcançar seus objetivos o IPES aproximou-se e manteve relações com diversos
segmentos sociais, como militares, políticos, empresários de diversos setores, profissionais liberais,
donas-de-casa, funcionários públicos, movimento estudantil, professores, camponeses, intelectuais,
Igreja católica e organizações internacionais, privadas e estatais, preferencialmente as norte-
americanas.
O movimento estudantil despertou muita atenção do IPÊS, Ŗem especial pela crescente
onda de agitação nesse setor, em nível nacional e internacional, alcançando seu ápice no
emblemático ano de 1968ŗ (Ramirez, 2009). No início da década de 60, o desejo de mudanças
agitava o país, aumentou o interesse pela política, havia uma valorização nacional. A Revolução
Cubana, em 1959, representou claramente a possibilidade de transformação. A sociedade brasileira
estava engajada em uma mudança, no novo, e os estudantes tinham uma grande participação neste
processo. Em função disto, as formas de ação para com os estudantes sempre esteve nas pautas de

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reuniões do IPÊS, o ipesiano Cândido Guinle de Paula Machado afirma que Ŗa ação só será eficaz
se partir dos estudantesŗ
Na Ata de Reunião da Comissão Diretora do IPÊS, de 27 de novembro de 1962, este
encaminhamento torna-se claro. Golbery do Couto e Silva pontua a importância de Ŗtrabalhos de
apoio dos interesses das classes estudantis, para futuras vitóriasŗ, Duvivier Goulart concorda que Ŗo
principal é a formação estudantilŗ, mas pontua a necessidade de também se desenvolver a ação
política através do professores, já que eles constituíam os elementos permanentes da estrutura
educacional.
Para isto, o IPÊS criou uma rede de influência nos altos escalões acadêmicos e
administrativos em diferentes universidades, através de Oscar de Oliveira, para desorganizar o
movimento estudantil. Inicialmente, o IPÊS firmou convênios com diferentes universidades. Em
1963, a ŖUniversidade Católica de Campinas deliberou instalar convênios com IPÊS um curso de
Ciências Sociais e Políticasŗ criou o Instituto Universitário do Livro. Em 1962, com a finalidade de
Ŗpromover e distribuir livros universitários a preços baixosŗ que o IPÊS julgava de Ŗreal interesse
universitárioŗ, conforme aponta o Relatório de Atividades do IPÊS de 1963. Fez convênios e
distribuiu altas somas para os padres das Universidades Católicas como a PUC/SP, PUC/RJ e
Universidade Católica de Campinas.
Em 21 de maio de 1963, conforme aponta a Ata Reunião do Comitê Executivo, o IPÊS
liberou Cr$ 200.000,00 (duzentos mil cruzeiros) para a realização de um seminário na PUC/RJ
com os diretórios acadêmicos, cujo titulo foi: ŖUma resposta cristã para um Brasilŗ. O IPÊS estava
envolvido na ação universitária através do Centro Acadêmico Machado, da PUC/RJ, e por
intermédio do líder estudantil Manoel da Rocha, do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira Ŕ
CACO da Faculdade de Direito.
O IPÊS não conferia apenas apoio financeiro, mas também provia experiência política,
conforme consta na Ata do IPÊS, de 21/11/62, e convidava profissionais de Ŗexpressãoŗ como
palestrantes, como por exemplo, o prof. Miguel Reale, da Faculdade de Direito da USP. Segundo
conta no Noticiário do IPÊS, de agosto de 1962, o jurista Miguel Reale fez uma exposição em
programa de televisão no canal 2, sobre o momento político atual brasileiro e a agitação estudantil

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de fundo comunista. O jurista afirmou que Ŗas greves estudantis, insufladas por extremistas, são
um aspecto do problema do subdesenvolvimentoŗ.
Produzia e distribuía material de propaganda adverso aos da Liderança da União Nacional
dos Estudantes (UNE). A UNE foi uma grande preocupação do IPÊS, tinha consciência da sua
força política e, por isto, trabalharam para tirar sua força e estabilidade. ŖAs atividades Řextremistasř
da UNE podem ser bem avalizadas pelo desligamento de número crescente de Centros Acadêmicos
em vários Estados, bem assim como pela conquista mesmo da direção em algumas entidades
estaduaisŗ, tal como consta no documento de Apreciação Geral do IPÊS, de outubro de 1962.
O prof. Suplicy Lacerda, da Universidade do Paraná, no artigo intitulado ŖAgitação
comunista no meio estudantil, publicado em agosto de 1962, Ŗdenunciou o caráter comunista
subversivo da agitação no meio universitário, apontando a UNE como centro dessa agitação,
inteiramente dominada pelos comunistas,
Ata da Reunião do Comitê Executivo e chefes de grupos, em 03.01.63, o IPÊS manifesta o
seu desejo de trazer os estudantes para mais perto, através de uma interação direta entre
empresários e universitários, via Departamento de Estágio, oferecendo estágios para estudantes.
Segundo Dreifuss (2006: 277), Ŗo IPÊS era apresentado para a sociedade como uma
organização educacional que fazia doações para reduzir o analfabetismo das crianças pobres e como
centro de discussões acadêmicasŗ.
Não explicitava sua campanha político-ideológica, Ŗnão devemos engajar o nome do IPÊS e
sim continuar atuando à meia luzŗ (Ata Comitê Executivo (Pleno) Rio/São Paulo de 22.01.63), que
visava reunir amplos segmentos da população em torno dos seus objetivos.
O objetivo do IPÊS era desagregar os quadros populistas, deslegitimar as ações do
Executivo, conter o desenvolvimento das organizações das classes populares e obter o controle do
Estado. Para isto, fazia uso de todos os recursos disponíveis para operar em diversos aspectos da
vida social. Para estas ações montaram o complexo IPÊS/IBAD.
As articulações com todos os segmentos da sociedade civil e militar foram rigorosamente
planejadas pelo complexo IPÊS/IBAD. IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) fundado
em 1959 por vários empresários para combater o estilo populista de Juscelino Kubtischek e
possíveis influências do comunismo no Brasil. Segundo Dreifuss (2006: 176) Ŗo IBAD agia como
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uma unidade tática e o IPÊS operava como um centro estratégico... mas o IBA se expunha muito
mais do que o IPÊS.ŗ
Para conseguir mobilizar parte da sociedade civil usavam duas modalidades de ação:
1) ação ideológica e social, e
2) ação política-militar (Dreifuss, 2006: 248).
Na ação ideológica visava infundir e fortalecer atitudes e pontos de vista tradicional da classe
dominante e estimular percepções negativas do bloco popular nacional-reformista. Suas ações
estavam voltadas para a orientação da opinião pública, concentravam na transmissão de valores
ideológicos contra o comunismo. Dizia-se que Ŗa hora de afastar o desastre é agora, não quando os
vermelhos já tiverem o controle completo do nosso governoŗ (Artigo: A nação que se salvou a si
mesma, produzido pelo IPES). Esse tipo de alerta Ŗestamos diante de um fato: o da ameaça
comunista às forças nacionais de convivênciaŗ (Documento: Noticiário, agosto de 1962 Ŕ Razões da
criação do IPES, p. 12), fomentou o temor às massas, e defenderam a democracia, ŖNão há quem
de boa fé, não sinta ou não reconheça que a Democracia brasileira está em perigo (...)ŗ
(Documento: Noticiário, agosto de 1962 Ŕ Razões da criação do IPES, p. 12).
Articulou um Ŗbombardeio ideológicoŗ (Dreifuss, 2006), para influir o clima de inquietação,
influenciar e mobilizar a sociedade civil. Com todo este arranjo, o IPÊS conseguiu desestabilizar
parte da sociedade civil que contribuiu para efetivar o golpe de Estado em 1964. O que ocorreu em
abril de 1964 não foi um golpe militar conspirativo, mas sim o resultado de uma campanha
política, ideológica e militar travada pela elite centrada no IPÊS (Dreifuss, 2006: 156).
Em 1971, a direção do IPÊS enviou uma circular aos seus associados informando sobre as
dificuldades financeiras que a organização atravessava. Comunicou também que Ŗmuitos membros
da diretoria e muitos dos grandes contribuintes... chegaram à conclusão de que a missão para a
qual o IPÊS havia sido criado achava-se efetivamente e plenamente cumpridaŗ. Em 29 de março de
1972, em assembléia geral extraordinária, decidiu-se encerrar as atividades.
A política de conciliação tem como principal meta produzir esquecimento e silêncio, mais
do que memória. O controle do esquecimento e do silêncio pode produzir novas tiranias. O
grande problema não se coloca em termos de existir ou não memória, de se fazer ou não seleção de
memórias, mas do Estado se colocar como o controlador da memória. É preciso lembrar para que
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não se esqueça jamais. Uma das formas mais cruéis de soterramento da memória foi o
desaparecimento de muitos corpos, o rapto dos arquivos, a negação da tortura e a desqualificação
intelectual e moral dos opositores.
Segundo Tzevetan Todorov (2000), o maior problema que os regimes totalitários deixaram
para nós foi a tentativa de supressão da memória. O controle da informação, a supressão de rastros
e a ocultação de cadáveres faziam parte dessa tentativa de suprimir a memória do horror. Por isso,
todos os inimigos do totalitarismo prestigiam a memória. Todo ato de reminiscência deste período
está associado à luta contra o totalitarismo.
Norbert Elias assinalou que Ŗtodos os homens transportam consigo, em seu habitus pessoal
particularidades do habitus de seu grupo. E o destino de cada homem singular é determinado
também pelo destino dos grupos a que ele ou ela pertencem.ŗ
A ditadura e as suas conseqüências destruidoras não atingiram somente os opositores do
regime imposto, atingiu todos nós. A sociedade brasileira hoje é marcada pelas formas nefastas de
autoritarismos. Até hoje o Estado ainda pratica tortura, desaparecimento e mortes. O alvo principal
é a população pobre.
Por isso, não podemos deixar de olhar as diferentes tiranias da memória, que somente
objetivam circunscreverem-se no tempo. As tiranias, que devem definitivamente ser extintas, não
podem ser olhadas somente no tempo em que nos afetou diretamente. Pensar as novas formas de
tiranias, a atualização e reprodução da repressão em diferentes modalidades da vida social, é buscar
uma saída, não somente para alguns grupos, mas para o sofrimento coletivo. Até agora, a política
de conciliação tem fechado os olhos para o passado, talvez porque olhar para o passado nos mostre
as similaridades com o presente.

REFERÊNCIAS

BICUDO, Hélio Pereira. Minhas Memórias. São Paulo: Martins Fontes, 2005

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito à Memória e à Verdade. Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007

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História, v. 24, n. 47, 2004.
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DREIFUSS, Renè. 1964 A conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis:
Editora Vozes, 2006.

RAMIREZ, Hernán. Empresários e política no Brasil: o Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais (IPES),
1961 – 1971.Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 13, n. 1 p. 209-240, 2009

TODOROV, Tzevetan. Memória do mal, tentação do bem. São Paulo: Editora ARX, 2000.

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O DEBATE SOBRE A PUNIÇÃO E O PERDÃO EM PORTUGAL DO


ANTIGO REGIME E SUAS CONSEQUÊNCIAS NA REPRESSÃO
ÀS REVOLTAS DO BRASIL NO SÉCULO XVII E PRIMEIRA
METADE DO XVIII
João Henrique Ferreira de Castro*

Resumo
O senso comum reza que o costume das monarquias de Antigo Regime era punir os líderes
das revoltas contra a Coroa, mas o tema é bem mais complexo do que este postulado e merece
reflexão.
Em Portugal, tratadistas políticos e juristas debateram insistentemente o tema durante o
período moderno e divergiram constantemente acerca da melhor forma de conter uma revolta.
A defesa do perdão, por exemplo, foi expediente comum no século XVII e teria impacto na
negociação para o fim das revoltas ocorridas no Brasil neste período, muito embora o castigo fosse,
progressivamente, sendo legitimado dentro do debate político e, em alguns casos, aplicado como na
Revolta de Vila Rica de 1720.

Palavras-chave: Punição, Portugal do Antigo Regime, revoltas do Brasil.

Abstract
The common sense says that the custom of the monarchies of the OldRegime was to
punish the leaders of the uprising against the Crown, but the theme is much more complex of
what this postulated and requires an analysis.
In Portugal, political treatises and lawyers debated the issue repeatedly during the modern
period and steadily diverged on how best to contain aninsurgency.

*
Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Bolsista CAPES.
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The defense of forgiveness, for example, was common expedient in the seventeenth century
and would impact on trading on negotiations to end the unrest in Brazil during this period, even
though the punishment was, progressively, being legitimized in political debate and, in some cases,
applied as in the ŖRevolta de Vila Ricaŗ, 1720.

Keywords:Punishment, Portugal's Old Regime, Revolts in Brazil

Os tratados políticos acerca do uso do perdão ou do castigo difundidos pelo continente


europeu durante o período moderno estavam longe de carregar um sentido fechado e, por
conseqüência, de serem usados sempre com o mesmo intuito.
Manipuladas de acordo com os interesses de momento, as idéias presentes nos escritos que
tratavam dos direitos dos povos de se revoltar ou do poder dos governantes de sujeitar a força os
rebeldes circulavam pelos mais diferentes territórios europeus e em suas conquistas e, no caso de
Portugal e de seu Império Ultramarino, não seria nada diferente.
O tema do perdão e do castigo era recorrente entre os oficiais da Coroa lusa e também
preocupava os teólogos e juristas lusitanos e estava longe de ser abordado sem divergências entre os
que se dedicaram a este tema, fosse em seus escritos, fosse na resolução prática dos conflitos.
A historiografia que insistiu em tratar as revoltas como reação aos desmandos de uma
monarquia absolutista, por outro lado, enxergava na Coroa lusa uma tendência a agir com rigor e
sujeitar os povos que ousassem, por exemplo, enfrentar uma determinada ordem régia.
Desde o século XIX, boa parte da historiografia brasileira insiste nesta perspectiva, mas foi
na primeira metade do século XX que esta percepção se consolidou como uma espécie de tradição
no olhar dos historiadores brasileiros acerca dos levantamentos ocorridos no Estado do Brasil
durante o período em que esteve sob o domínio de Portugal.
Neste contexto, Pedro Calmon pode ser tomado como um modelo de como a violência
passou a ser tratada como fundamento das relações entre a Coroa portuguesa e os seus súditos
rebelados, especialmente os que viviam fora do reino. A partir da articulação deste pensamento,
por exemplo, Calmon tratou a repressão à revolta de Vila Rica de 1720 como uma clara
demonstração de como este domínio era exercido de forma arbitrária e autoritária, no qual o uso
da violência seria entendido pelo Conde de Assumar como a única forma capaz de impor as
vontades da Coroa a Ŗum povo aguerrido, vaidoso de seu poderio, desde que fazia recuar os
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prepostos de sua majestade (após a guerra dos emboabas) e certo de que, naquele sertão, as leis só
seriam cumpridas se nisto consentissem os moradores.ŗ1
Esta percepção, calcada em uma noção maniqueísta da política na qual os governantes
visariam, a todo o tempo, impor o seu poder sem medir os prejuízos que causavam aos governados,
foi duramente combatida nos últimos anos. Considerada dicotômica e incapaz de explicar a
complexidade das relações sociais estabelecidas dentro dos territórios do Império Ultramarino
Português por boa parte da historiografia luso-brasileira atual2, tal noção perdeu espaço dentro do
debate historiográfico, embora ainda resista, especialmente em trabalhos que se dedicam às revoltas
ocorridas no Brasil quando ainda era uma conquista de Portugal.
O caso mais recente é a tese de doutoramento de Maria Verônica Campos que, de forma
insistente, considera todas as iniciativas do Conde de Assumar em conter a revolta sem ser com o
uso da violência como mera protelação objetivando Ŗganhar tempoŗ e que a concessão de perdão
só ocorria Ŗdiante da pressão e perigo de disseminação do movimentoŗ.3
Uma interpretação como esta, porém, é impossível de ser feita sem uma reflexão sobre
como a concessão de perdão ou a aplicação de um castigo era vista, não só pelo Conde de Assumar,
como também pelos seus contemporâneos e, até mesmo, a forma que estas práticas eram
tradicionalmente percebidas pelos portugueses e os súditos das demais conquistas em tempos
anteriores, o que Campos não fez, provavelmente por partir da premissa de que o domínio da
coroa portuguesa se expressava sempre de forma imposta e violenta.

1
CALMON, Pedro. História do Brasil. Volume 3. José Olympio: Rio de Janeiro, 1959. p. 165.
2
Nas últimas duas décadas fortaleceu-se uma perspectiva historiográfica denominada ŖAntigo Regime nos Trópicosŗ
que tem como uma de suas principais preocupações pensar justamente as relações estabelecidas nos territórios
pertencentes à Coroa portuguesa no período moderno rompendo com a perspectiva de um domínio imposto e
exercido sempre de forma autoritária. Esta corrente Ŗquestionou o suposto caráter absolutista e/ou centralizado dos
impérios ultramarinos português, britânico dentre outros. Nesse sentido, novas análises discutiram a pertinência e a
abrangência da ideia de negociação entre centro e metrópole e entre periferia e colônia. Na base desse debate se
situava também uma maior problematização da natureza das relações de poder para além de um escopo bipolar e
dicotômicoŗ. FRAGOSO, João & GOUVÊA, Maria de Fátima. ŖIntroduçãoŗ. IN: FRAGOSO, João & GOUVÊA,
Maria de Fátima (orgs.) Na Trama da Redes: política e negócios no Império Portugês, Séculos XVI-XVIII”. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010. p. 13.
3
CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros: de como meter as minas numa moenda e beber-lhe o caldo dourado
(1693 a 1737). Tese (Doutorado em História) Ŕ FFLCH, USP, São Paulo, 2002. p. 221.
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Antes de se dedicar a interpretar as decisões do Conde de Assumar, portanto, é adequado


investigar a cultura política portuguesa e perceber em que matrizes ideológicas se pautavam os
oficiais da Coroa lusa na hora de decidir ou pela punição ou pelo perdão.
Quem se dedicou a este tema nos últimos anos e pode contribuir substancialmente para
esta questão é o historiador António Manuel Hespanha que, ao se deparar com os tratados
políticos, os textos e decisões jurídicas e as práticas de repressão em Portugal na era moderna,
constatou que perdoar era atividade mais freqüente do que a aplicação de castigos.
A benevolência régia aparece em inúmeros momentos como uma das principais virtudes
que um monarca deveria ter segundo muitos tratadistas políticos da época. Sem negar que o castigo
era algumas vezes indispensável, muitos destes autores, e até mesmo reis, defendiam o valor do
perdão. Foi o que fez D. João III em uma Ŗcolecção de ditos memoráveis, diversas vezes impressa no
século XVIII (...) (na qual) definia o seu ofício, perante os vedores da Fazenda, como equivalente a
fazer mercês e perdoarŗ.4
Fato é que o perdão era em Portugal e em suas conquistas, sem sombra de dúvida, um dos
aspectos básicos da aplicação da justiça distributiva. O ato de perdoar gozava de tão nobre prestígio
que não era de se estranhar que em Portugal havia juízes Ŗque se gabavam de, em toda a vida,
nunca terem ordenado ninguém à morte, antes terem dela livrado muitos réus.ŗ5
Mesmo diante de uma legislação rígida que previa a pena capital a quem cometesse o crime
de lesa-majestade, Hespanha destaca a importância de se atentar para a diferença entre a lei e sua
aplicação prática, pois Ŗse lermos, nas próprias Ordenações, que direito deviam os juízes aplicar nos
casos presentes a julgamento, damo-nos conta de como eram tênues, mesmo na determinação das
normas de decisão, as suas relações com o poder realŗ.6 Ainda segundo Hespanha, apenas as
infrações ligadas à religião parecem ter sido reprimidas de forma mais eficiente e Ŗno caso de
denúncias de fundo religioso, o êxito da vigilância e controlo sociais parece ter sido elevado.ŗ7

4
OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o estado moderno. Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa.
Estar editora, 2001.p. 18.
5
HESPANHA, António Manuel. ŖDiscurso e Puniçãoŗ. In: MATTOSO, José (dir). História de Portugal. O Antigo
Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.. p. 274.
6
HESPANHA, António Manuel. ŖA monarquia: a legislação e seus agentes.ŗ In: MATTOSO, José (org.) História da
Vida Privada em Portugal. Vol. 2. Lisboa: Temas e Debates, 2011. p. 25.
7
Idem. p. 19.
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A existência da Inquisição, dos Tribunais do Santo Ofício e do incentivo as denúncias entre


vizinhos podem explicar esta situação, mas mesmo no caso de acusações de práticas judaizantes,
uma das mais reprimidas em Portugal e que motivou a migração de inúmeras pessoas, não é
possível afirmar que a repressão sempre foi severa e Hespanha exemplifica mencionando o caso da
Ŗcomunidade judaica de Belmonte [que] conseguiu resistir quase incólume durante mais de
quatrocentos anos, com uma clara conveniência Ŕ embora hostil Ŕ dos seus vizinhos cristãosŗ.8
A perseguição ligada à religião, porém, não é o foco principal desta pesquisa e aqui só
interessa para efeito de comparação com a repressão aos crimes civis, como a realização de uma
revolta. Mesmo não sendo extremamente rigorosa, a repressão religiosa, feita a partir de denúncias
das próprias comunidades, era ainda mais efetiva e Ŗno caso de denúncias de natureza civil, a
convite de oficiais da Coroa, é presumível que o êxito fosse muito menorŗ. 9
Afirmar, porém, que inúmeras situações nas quais caberia o exercício de uma atividade
repressora não tiveram este desfecho e que tratadistas, juristas e até mesmo reis portugueses
defendiam a prática do perdão de nada adianta se estas posturas não forem contextualizadas e
tratadas de acordo com o debate político no momento em que foram realizadas, especialmente por
ser necessário explicar que, embora fosse o perdão frequentemente recomendado, inúmeros foram
os episódios em que o castigo foi aplicado.
Hespanha segue ajudando a responder as questões apresentadas quando realça a presença
do direito de castigar entre os direitos régios e que entre as principais Ŗfunções em que a
governação se desdobrava Ŕ [estavam] regular, julgar, vigiar, castigar.ŗ10
Muito embora existissem os defensores do perdão, na cultura política portuguesa, tal qual
na tradição escolástica, praticamente havia um consenso entre juristas e teóricos da política de que
pecados públicos eram dignos de Ŗcorreção pública, pois, aqui, trata-se não apenas de admoestar o
pecador para que não peque mais, mas ainda de dissuadir os outrosŗ.11
No caso da pena capital, o objetivo de dar exemplo aos demais como valor superior ao de
ensinar o infrator a não pecar mais é, por motivos óbvios, ainda mais claro. Sua aplicação, no

8
Ibidem.
9
Ibidem.
10
Idem. p. 17.
11
Ibidem.
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entanto, era ainda mais rara e pode-se dizer que, de forma geral, apenas nos casos de denúncias de
crime de lesa-majestade era recomendado, muito embora mesmo nesta situação muitos tenham
sido agraciados com o perdão.12
Considerar a benevolência régia e a concessão de perdões como a Ŗregra de ouroŗ em
Portugal como fez Hespanha, é importante para desmistificar a crença de que a Coroa lusa sempre
agia com rigor na repressão as revoltas. Todavia, transformar esta tendência em regra não é a
melhor solução, pois assim se omite importantes processos históricos e, obviamente, não se explica
os casos em que esse não foi concedido, como a revolta de Vila Rica.
A punição a Filipe dos Santos estava longe de ser um feito inédito e, até mesmo, raro na
história da Coroa portuguesa que, inclusive, já havia sido responsável por extensos derramamentos
de sangue dos seus opositores, como no reinado de D. João II, momento em que o monarca
Ŗdescobriu as conjuras armadas pelos Duques que o rei castigou de modo exemplar, num ato de
justiçaŗ.13
A conjuntura que levou D. João II a castigar seus opositores, no entanto, parece explicar a
opção do monarca de punir seus opositores melhor que qualquer tratado político ou conjunto de
leis vigente naquela época. A monarquia portuguesa vivia um claro momento de instabilidade e as
disputas dinásticas provocavam sucessivos episódios de conspiração contra o detentor do trono
como a Batalha de Alfarrobeira, ocorrida em 1449, na qual o avô de D. João II, o infante D. Pedro,
seria derrotado por D. Afonso V na disputa pelo trono português.
A derrota na batalha custaria a vida ao infante D. Pedro, tio do próprio D. Afonso V e pai
de D. Isabel. Foi justamente esta união que deu origem a D. João II que, em decorrência destes
acontecimentos, cresceria em uma corte comandada por um grupo senhorial Ŗque havia conduzido
D. Afonso V a Alfarrobeira, e que tinha condenado à morte seu avôŗ.14

12
O caso da Revolta de Vila Nova da Rainha em 1715 é um exemplo dos mais significativos de que nem sempre o
crime de lesa-majestade era punido com o rigor e de como o perdão era um expediente possível mesmo em casos nos
quais os oficiais da Coroa percebiam na ação dos infratores uma afronta ao poder do rei.
13
TAVARES, Maria José P. Ferro. ŖA Moeda Medieval como fonte para a História das Mentalidades”. In: Estudos de
História de Portugal. Homenagem a A.H. de Oliveira Marques. Vol. 1 (séc X a XV). Lisboa: Estampa, 1982. p. 295.
14
MELLO, Ieda Avênia de. Rituais e Cerimônias Régias da dinastia de Avis: Pacto e Conflito na Entronização de D. João II
(Portugal – 1438 a 1495). Dissertação de mestrado Ŕ Universidade Federal Fluminense, Departamento de História,
2007. p. 147.
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A tradição historiográfica acerca de D. João II se sustenta na afirmação de que este


ambiente seria crucial para explicar os castigos aplicados por este monarca aos seus opositores. Ieda
Mello lembra que a historiadora Manuela Mendonça Ŗinfere que numa corte dividida, o espírito
do jovem príncipe deve ser sido semeado de desejos de vingança e de recuperar a linha de governo
de seu avô, a qual as forças senhoriais impediram de imperarŗ.15
A influência da literatura política utilizada na formação de D. João II, no entanto, não pode
ser desprezada e é destacada por Mello que, apoiando-se nos estudos de Mendonça, ressalta que D.
João II havia sido educado junto a homens Ŗconhecedores de novos caminhos políticos, bem como
a influência dos italianos presentes na corte de seu paiŗ.16
A mistura entre a formação de D. João II, calcada na cultura política italiana que lhe
apresentava os tais Ŗnovos caminhos políticosŗ, uma clara referência aos valores da política
renascentista, e os resquícios dos conflitos entre seu pai e seu avô pelo trono português moldariam
a personalidade política de D. João II e explicam melhor as suas decisões como monarca,
especialmente a do castigo aos seus opositores, do que a cultura política portuguesa.
De fato, é isto que se percebe quando se concentra na tradição memorialística portuguesa
que prefere exaltar o reinado de D. João III, aquele que escreveu uma coleção de textos destacando
o perdão como um dos pontos basilares do seu ofício, ao de D. João II, lembrado pela execução
sumária de seus opositores, dentre os quais o Duque de Bragança, patrono da família que assumiria
o trono logo após a Restauração, muito embora tenha conferido à estes um julgamento justo com a
realização de um júri e o cumprimento das demais normas para a execução da pena capital sem
violar as leis.
O rigor com que D. João II tratou os seus opositores contrasta com uma série de outros
momentos da história da Coroa lusa e, durante os séculos XVI e XVII, rechaçar os defensores da
repressão violenta aos revoltosos foi uma tendência não só dos textos políticos produzidos em
Portugal, mas também elemento importante na negociação para o fim de inúmeras revoltas
ocorridas, especialmente no Estado do Brasil.

15
Ibidem.
16
MENDONÇA, Manuela. D. João II – um percurso humano e político nas origens da modernidade em Portugal. Lisboa:
Editorial Estampa, 1991. p.76-77. apud MELLO, Ieda Avênia de. Op. Cit. p. 148.
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Este processo se manifesta de forma bastante clara durante o período da União Ibérica
(1580-1640) no qual a maior parte dos teóricos da política portuguesa se apegou a tradição
escolástica e buscou reagir à crescente influência dos textos renascentistas, de ampla penetração na
Espanha naquele contexto.17
É este objetivo que explica, por exemplo, o título de um dos principais tratados políticos
portugueses do século XVII. A Verdadeira Razão de Estado18, escrita por Fernando Alvia de Castro
em 1616 com o intuito de destacar Ŗque o justo se deve antepor ao útilŗ.19
Alvia, que era nascido em Castela, mas que Ŗpassou a Portugal em data indeterminadaŗ 20
preocupou-se em reagir a percepção política cunhada pela Renascença e aos Ŗmiseráveis sucessos
dos que, por falsa matéria de Estado, fizeram coisas injustas.ŗ21
A fórmula adotada pelo autor pautava-se basicamente na crítica aos valores políticos
apresentados pelos renascentistas como o culto a simulação, definida por Alvia como o Ŗfingir
aquilo que [não] é como se fosseŗ22 e que consiste emŗmostrar alguém em suas palavras e acções
exteriores algum gênero de prudência, bondade ou outra qualquer virtude moral que em si não
tem, para enganarŗ23.
Considerava Alvia ser Ŗa simulação um acto falso, fingido e mentiroso e o mentir e enganar
tão impróprio do Príncipe como do varão bomŗ. Em seu pensamento, deveria o rei ter uma postura
moral praticamente impecável e, na matéria de castigo, lembrar-se que Ŗa misericórdia e a verdade
guardam o reiŗ.24
Alvia rejeitaria o apelo dos renascentistas aos filósofos da antiguidade que defendiam a
mentira em Ŗcasos urgentesŗ25 lembrando, curiosamente, de Cícero, um dos mais importantes elos

17
O texto de Baltasar Gracián, por exemplo, é um nítido exemplo de como já neste período a cultura política
espanhola já comportava elementos do discurso político pragmático da Renascença. Ver: GRÁCIAN, Baltasar. A Arte
da Prudência. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret. 2003.
18
CASTRO, Fernando Alvia. Verdadeira Razão de Estado. Parede: Principia, 2009.
19
ALBUQUERQUE, Martim de. ŖEstudo Introdutórioŗ. In: CASTRO, Fernando Alvia. Op. Cit. p. 20.
20
Idem. p. 8.
21
Ibidem.
22
CASTRO, Fernando Alvia. Op. Cit. p. 81
23
Ibidem.
24
Idem. p. 82.
25
Alvia cita um bom número de exemplos de filósofos da antiguidade que defenderam a mentira em casos urgentes.
ŖSófocles, que disse que se a verdade dana, é permitido não a dizer, Pisandro, que para salvar a vida se pode mentir,
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de aproximação entre tradição escolástica e pensamento renascentista, que Ŗa ninguém, diz, é lícito
pecar e aquele que mente e engana bem se sabe que peca e faz malŗ.26
A citação de Cícero feita por Alvia, no entanto, deixa de ser curiosa quando se percebe que,
no século XVII, mesmo aqueles que rejeitavam os ideais da renascença costumavam absorver uma
parcela significativa dos seus argumentos. Quem dá o devido destaque a este postulado, ao menos
para a obra de Alvia, é Martin de Albuquerque que ressalta que Ŗsubscrevendo uma divisão
tripartida das concepções da razão de Estado Ŕ as tacitistas ou realistas, as eticistas ou tradicionalistas
e as intermédias ou acomodatícias Ŕ a obra de Alvia de Castro foi já incluída nestas últimasŗ.27
De fato, a aproximação de Alvia com os ideais da renascença, por mais que houvesse a
pretensa motivação em rejeitar as formulações para o debate sobre a Ŗrazão de estadoŗ feita pelos
autores ligados a este movimento, especialmente os mais polêmicos como Maquiavel, existia e ia
além da utilização de Cícero como referencial.28
Mesmo rejeitando a simulação e a mentira, Alvia considerava alguns aspectos da política
renascentista importantes para o exercício de um bom governo. O principal deles, e que merece
atenção especial do castelhano imerso no debate político português era a dissimulação, a qual
tentava demonstrar em um capítulo especial intitulado Ŗcomo é útil e proveitosa a dissimulação,
mas necessário muito tento para não pecar nelaŗ.29
Alvia considerava que a diferença entre simular e dissimular se manifestava no fato de que,
enquanto a primeira implicava a utilização da mentira para esconder a falta de uma determinada
virtude, a segunda consistia apenas em Ŗcalar e encobrir aquilo que é como se não fosseŗ 30, ou seja,
na utilização do recurso da omissão da verdade.
Alvia, um dos precursores na introdução do pragmatismo político em Portugal, preocupava-
se, no entanto, em não abandonar os valores cristãos destacando que mesmo a dissimulação Ŗna

Dífilo, que a mentira em boa ocasião é de proveito; e prudência, segundo Plínio, enganar conforme o tempo...ŗ
Ibidem.
26
Idem. p. 83.
27
ALBUQUERQUE, Martim de. ŖEstudo Introdutórioŗ. In: CASTRO, Fernando Alvia. Op. Cit. p. 21.
28
Lembrando que o autor romano estava longe de ser monopólio da cultura política da renascença e era também
frequentemente mencionado pelos escolásticos.
29
CASTRO, Fernando Alvia de. ŖComo é útil e proveitosa a dissimulação, mas necessário muito tento para não pecar
nelaŗ. IN: CASTRO, Fernando Alvia de. Op. Cit. p. 85-93.
30
Idem. p.81.
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forma que deixo significada, é ímpia e perigosaŗ, apesar de defender que Ŗusada bem é justa,
prudente e necessáriaŗ.31
O que pode ser notado até aqui, portanto, é que tratados de autores como o de Alvia
buscavam a cristianização da Ŗrazão de estadoŗ da Renascença e, devido a isto, embora assimilassem
aspectos fundamentais do pragmatismo político defendido por esta corrente, como o culto a
dissimulação, destacavam a todo instante seus vínculos com o cristianismo.
Tais tratados, no entanto, se aproximavam, como no caso da defesa da dissimulação, em
muitos pontos do pragmatismo político de autores como Botero 32, ao passo que se distanciavam de
uma rígida concepção moral da política, embora não fosse esta a intenção desses autores que viam
em suas obras, justamente, uma resposta aos tratados renascentistas e aos demais que por eles se
deixaram influenciar.
Na prática, o que autores como Alvia e o espanhol Gracián fizeram, de fato, foi contribuir
para a difusão de valores políticos que a princípio não poderiam circular nos países ibéricos. A
rígida concepção moral da política escolástica na qual a rebeldia contra a tirania era legítima
passaria a conviver com a defesa do direito do soberano de se voltar contra o súdito rebelde e o
punir em nome do Ŗbem comumŗ e da manutenção da ordem, valores renascentistas aos poucos
incorporados a política ibérica a partir justamente de autores católicos como Alvia e Gracián.
Seria equivocado, porém, considerar que estes autores defendiam que a sujeição dos povos
aos desígnios do monarca fosse o melhor mecanismo para a preservação do governo. Assim como
Gracián, que defendia que melhor governa o rei que consegue ser amado do que o que é temido,
Alvia destacava que Ŗnenhuma coisa é mais própria e louvável num varão excelente e grande do
que o perdão e a clemência. Escreve Cícero e Séneca, que são torpes no Príncipe muitos castigos
como no médico muitas mortes.ŗ33
O certo é que, em Portugal, mesmo os autores com algum vínculo com a literatura política
renascentista não enunciavam, na primeira metade do século XVII, uma defesa radical do direito

31
Idem. p. 85.
32
O jesuíta italiano era uma importante referência da junção entre os valores políticos da renascença e a tradição
escolástica. Ver: BOTERO, João. Da Razão de Estado (coordenação e introdução Luís Reis Torgal). Coimbra: Centro
de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992.
33
Idem. p. 87.
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do monarca de sujeitar os povos. Tal conclusão é referendada não só pela obra de Alvia de Castro,
mas também por Angela Barreto Xavier que atribui esta situação ao fato de que, no pensamento
político que vigorava Ŗno Portugal de seiscentos, a marca dominante fosse ainda deixada pela
escolástica de raiz tomistaŗ.34
Nos tratados políticos desta centúria, especialmente em sua primeira metade, o que se via
era o apreço aos valores escolásticos e a ideia de que Ŗo governo referia-se à moral (e ao Criador, em
última instância).ŗ35 Neste período, os autores que tratavam do direito do monarca de castigar,
indubitavelmente, destacavam a qualidade do perdão e a virtuosidade do governante que o
concedia.
É o caso, por exemplo, do cavaleiro da Ordem de Cristo Antonio de Pinho da Costa que,
ao escrever a obra Da Verdadeira Nobreza em 1651,36 defenderia que, entre as obras de misericórdia,
atributos próprios de quem tem uma conduta nobre, constava a obrigação de Ŗperdoar as
injúriasŗ37, embora também a de Ŗcastigar os que erram.ŗ38
O elogio a misericórdia, porém, é recorrente e Pinho da Costa aconselha aos nobres: Ŗsede
misericordiosos, assim como o é vosso celestial pai: de que se preza Deus tanto que diz São
Bernardo que se não se intitula Deus de vinganças e justiça, senão de misericórdias.ŗ39
As referências ao valor da misericórdia se estendem até encontrar em São Tomás de
Aquino, mais uma vez, um sustentáculo da argumentação em defesa do perdão, mesmo a aquele
que está em pecado mortal, pois

é tão agradável a Deus o homem piedoso que se está em graça se lhe faz nova mercê pelo
merecimento, que com ela ganha, satisfazendo também pelas penas que deve e se está em
pecado mortal inclina muito a divina Misericórdia para lhe dar tal ajuda, que saia da culpa
e venha em sua amizade. Assim o nota o Angélico Doutor São Thomas. 40

34
XAVIER, Angela Barreto. “El Rei aonde póde, & não aonde quer”. Razões da política no Portugal seiscentista. Lisboa:
Colibri, 1998. p.120.
35
Idem. 121.
36
A obra foi publicada apenas quatro anos depois, em 1655.
37
COSTA, Antônio Pinho da. A Verdadeira Nobreza. Lisboa: Officina Craesbeeckiana, 1965. p. 29.
38
Ibidem.
39
Idem. p. 30.
40
Idem. p.30-31.
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Destacar que a literatura política portuguesa era extremamente frutífera em produzir


tratados em defesa da misericórdia e do perdão, porém, não é exercício suficiente para demonstrar
que o tratamento dispensado aos revoltosos no Império Ultramarino Português se pautava por esta
literatura sem uma necessária análise sobre a repressão a estes movimentos.
O português Antônio de Oliveira, ao tratar das revoltas ocorridas em Portugal no século
XVII, se preocupou em destacar o seu caráter cotidiano mostrando que
estas lutas, pela sua intensidade e difusão geográfica, pertenciam efectivamente ao
quotidiano (...) Todos os agrupamentos sociais, dos escolares às freiras, dos eclesiásticos
aos soldados, dos camponeses aos citadinos se encontram envolvidos em acções coletivas
violentas ao longo do século XVII.41

A recorrência de revoltas e a aceitação da realização de eventos desta natureza são


argumentos importantes levantados por Oliveira para rechaçar a ideia de uma monarquia
absolutista para a Coroa lusa e lembrar que Ŗo absolutismo foi inventado pelas conveniências
políticas do século XIXŗ42 e ajudam a consolidar a percepção de que o trato cotidiano aos
revoltosos no reino estava longe de ser pautado pela violência.
A violência, aliás, era atributo comum dos revoltosos e apesar do fato de que Ŗas acções
colectivas podem assumir aspectos pacíficos, semelhantes às actuais manifestações (...) de modo
geral é a violência que as caracterizaŗ.43Mesmo nos casos em que as reivindicações eram feitas de
forma violenta, no entanto, o perdão poderia ser concedido e frequentemente o era, especialmente
nas revoltas ocorridas no Estado do Brasil.
Quem bem demonstra como um bom número de revoltas ocorridas nesta conquista
durante o século XVII terminou sem o castigo dos seus líderes é Luciano Figueiredo ao se dedicar
as revoltas ocorridas na região no período imediatamente posterior à Restauração Portuguesa de
1640 cujos eventos Ŗem vários dos domínios ultramarinos transformaram-se a distância em uma
onda de alterações de múltiplas formasŗ.44

41
OLIVEIRA, António de. Movimentos Sociais e Poder no Século XVII. Coimbra: Instituto de História Económica e
Social. Faculdade Letras, 2002. p. 18.
42
Idem. p. 20.
43
Idem. p. 35.
44
FIGUEIREDO, Luciano. ŖO Império em Apuros: Notas para o estudo das alterações ultramarinas e das práticas
políticas no Império colonial português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.) Diálogos
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Figueiredo não se ateve a matéria da punição e nem mesmo realizou uma discussão efetiva
acerca da cultura política lusa sobre este tema, mas procurou enfatizar que, naquele momento, o
debate político Ŗao contrário da punição desenfreada, recomendava muita cautela e sangue-frio por
parte do soberanoŗ.45
Ao invés da punição violenta aos revoltosos, a Coroa, em geral, atendia as reivindicações,
ou parte delas, dos levantados. Devido a isso, no Estado do Brasil do século XVII, os Ŗmotins de
soldados, conjura de fidalgos, rebeliões antifiscais e antijesuíticas, quase sempre resolvidas pela
deposição do governador, vice-rei ou capitão-generalŗ.46
Inocente, porém, seria acreditar que todos os governadores e demais oficiais da Coroa
portuguesa seguiriam fiéis as determinações de agir com cautela em meio a tantos exemplos de
levantamentos que culminavam com a expulsão e, em casos extremos, até mesmo na morte dos
oficiais da Coroa lusa em serviço pelo Império Ultramarino Português.
Salvador Correia de Sá e Benevides, por exemplo, seria um governador que não se curvaria
a este conselho e ousaria impor o castigo aos líderes da Revolta da Cachaça de 1655, especialmente
ao líder do movimento Jerônimo Barbalho.
As conseqüências da sua decisão, no entanto, não foram as melhores para a sua carreira no
ultramar e o governador do Rio Janeiro, muito embora Ŗtenha esmagado completamente a revolta,

Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império ultramarino português. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2001.p. 198.
45
Ibidem.
46
Ibidem. Figueiredo contabiliza, incluindo aí outras regiões do Império, que Ŗdesde 1640 até os anos finais de 1680,
pelo menos uma dezena de insurreições que estalaram nas costas da América, África e Ásia contra os representantes
régios. O ricochete foi intenso. Bahia, 1641: o vice-rei dom Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão, foi expulso
sobre suspeita de traição; Rio de Janeiro, 1644: Luis Barbalho, então governador, enfrentou uma rebelião antifiscal,
morrendo logo depois (segundo alguns, de desgosto); Macau, 1646: dom Diogo Mascarenhas foi trucidado por uma
multidão furiosa; Ceilão, 1652: o capitão-general Manuel Mascarenhas Homem foi deposto em seguida ao
amotinamento das tropas; Goa, 1653: o vice-rei da Índia, Conde de Óbidos, foi afastado do poder à força pelos
fidalgos locais, encarcerado e devolvido para o reino; Rio de Janeiro, 1660: a cidade ficou cinco meses fora do
controle do governador Salvador Correia de Sá e Benevides, entregue à oligarquia amotinada; Pernambuco, 1666: o
ŖXumbergas, devoto governador da capitania, foi cercado pela aristocracia local e obrigado a abandonar o governo;
Angola, 1667: Tristão da Cunha, governador geral foi expulso; Maranhão, 1684: governador e jesuíta foram atacados;
Bahia, 1688: soldados do regimento da capital atacaram um governador moribundo, depois de ameaçar de morte os
camaristas, enquanto esperavam receber os soldos atrasadosŗ. Idem. p. 198-199.
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a execução de Barbalho, em vingança, ficou tristemente na memória dos habitantes do Rio de


Janeiro e não lhe criou atmosfera favorável na corte de Lisboa.ŗ47
O que se percebe a partir destes episódios, portanto, é que ao longo de boa parte do século
XVII o que prevalecia na maioria dos casos era o perdão aos revoltosos em virtude especialmente
da importância que tinha para a monarquia portuguesa a Ŗa imagem do príncipe virtuoso (e
benevolente que) provém de uma tradição medieval (a escolástica).ŗ48 Tal situação, no entanto,
começaria a se modificar, primeiramente no Reino, e começaria a ser revista a partir da segunda
metade do século XVII.
António Manuel Hespanha e Angela Barreto Xavier perceberam este processo a partir,
principalmente, do contexto do pós-Restauração no qual a
atenuação da polémica anti-habsbúrgica e o progresso das influências de correntes mais modernas do
pensamento político (seja da Ŗrazão de Estado católicaŗ espanhola e italiana, seja da Ŗpolítica cristãŗ
francesa) vêm vulgarizar as referências a uma Ŗpolítica católica.49
Por política católica entende-se o freqüente contágio da cultura política lusa com os textos
políticos da Renascença, apesar da preocupação em não confrontar os valores cristãos. Tal
processo, que teve seu início, como visto anteriormente, ainda no início do século XVII com
autores como Alvia de Castro, desenvolveu-se, portanto, lentamente e com uma série de ressalvas e
é por isto, por exemplo, que o historiador Martim de Albuquerque chega a afirmar que Ŗa doutrina
de Maquiavel [símbolo da Ŗrazão de estado renascentistaŗ] conheceu, pelo menos no plano
doutrinal, contestação generalizada, [e] o puro tacitismo político não logrou grande fortuna nos
séculos XVI e XVII.ŗ50
A historiografia contemporânea é praticamente unânime em reconhecer tal miscigenação,
embora insista em demonstrar a dificuldade de realização deste processo no Portugal dos
seiscentos. António Manuel Hespanha, por exemplo, reitera que este praticamente não ocorre na

47
BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: EDUSP, 1973. p. 335.
48
CURTO, Diogo Ramada. ŖA revolta do maranhão de 1684ŗ. In Cultura Imperial e projetos coloniais (séculos XV a
XVIII). Campinas, editora da Unicamp, 2009. p.292.
49
HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. ŖAs representações da sociedade e do poderŗ. In:
HESPANHA, António Manuel. História de Portugal. O Antigo Regime. 4º vol. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. p.
123.
50
ALBUQUERQUE, Martim de. ŖMaquiavelismo e Antimaquiavelismo em Portugal dos fins do século XVI aos fins
do século XVIIŗ. In: ALBUQUERQUE, Martim de. Maquiavel e Portugal (Estudos de História das Ideias Políticas.
Aletheia Editores: Lisboa, s.d. p. 81.
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primeira metade do XVII, pois Ŗo advento da Restauração Ŕ ideologicamente apoiada na crítica


cerrada ao amoralismo e pragmatismo da política dos Áustrias Ŕ pôs sob suspeição tudo o que fosse
suspeito de maquiavelismo ou mesmo de tacitismo.ŗ51
Doravante, tal situação começaria a se modificar a partir do fim do domínio castelhano e se
acentuaria no século XVIII, especialmente no reinado de D. João V. Cada vez mais autores como
Botero e suas referências como Cícero e Tácito apareceriam nos discursos dos oficiais ultramarinos,
em especial maneira no discurso de defesa do Conde de Assumar para legitimar as decisões
tomadas para conter a revolta de 1720, e a defesa da punição, tal qual sugerida pelos autores aqui
mencionados, se difundiria na documentação que circulava no Império Ultramarino Português,
consolidando a defesa da punição ao súdito rebelde que cada vez mais encontrava defensores
dentro do debate político português.
Tal postulado representaria em Portugal uma corrente diferente da tradição escolástica que
defendia que Ŗo rei não possuía o poder, apenas o usufruía com o fim de realizar o bem-comumŗ52
e que legitimava o direito dos povos a resistência. Corrente, aliás, que se mantém mesmo após a
progressiva assimilação em Portugal dos textos renascentistas e que se inspirava na memória da
Restauração para defender o direito de resistir à tirania.53
Portugal, no entanto, progressivamente receberia a influência da cultura política que se
desenvolvia a partir da Renascença pelo continente europeu no qual desde os Ŗfinais do século XVI
e nos primeiros decênios do século XVII, a condenação da rebelião foi um traço dominante da
cultura e da mentalidade.ŗ54 Frequentemente, mesmo nos países católicos,
na literatura da primeira metade do século XVII, o tema das revoltas e sedições converte-se
em capítulo necessário e nele se desenvolve toda uma técnica de repressão na qual pode
haver longínquos ecos maquiavélicos, mas que nada tem a ver com o maquiavelismoŗ 55

51
HESPANHA, António Manuel & XAVIER, Ângela Barreto. ŖAs representações da ...ŗ p. 123.
52
Xavier, Ângela Barreto. Op. Cit. p. 128.
53
O principal exemplo de crítico ao castigo na contenção as revoltas nas primeiras décadas do século XVIII foi o
conselheiro ultramarino Antônio da Costa que, frequentemente, emitia pareceres contrários a esta prática. Entre
estes pareceres, o mais conhecido e de maior destaque foi escrito em 1734 já no final da vida do conselheiro. Ver:
PARECER do Conselheiro Antonio Rodrigues da Costa. RIHGB, t. 7, v.7, 1847.
54
VILLARI, Rosário. ŖO Rebeldeŗ. In: VILLARI, Rosario: O homem barroco. Lisboa: Editorial Presença, 1995. p. 97.
55
MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco. São Paulo: Edusp, 1995. p. 111.
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Ecos maquiavélicos que se encontravam justamente nos tratados políticos cristãos como os
de Alvia e Gracían, homens que concederam a política escolástica uma nova roupagem com
tendências renascentistas e que desgastavam progressivamente a força dos argumentos de quem
defendia a tradição do perdão, muito embora seguissem em defesa do rei que conquista o súdito
pelo amor e não pelo temor. Os defensores do perdão, no entanto, cada vez mais encontravam a
resistência a esta prática nos textos políticos e se desenvolveria com o passar do tempo uma tradição
escrita que radicalizaria obras políticas como as de Botero Ŗconsiderando muitas vezes que não
assistia quaisquer direitos de resistência aos povos, e que apenas perante Deus responderia o rei
pelo mau uso que fizesse do seu ofício.ŗ56
Sebastião César de Meneses, já na segunda metade do século XVII, seria um dos principais
expoentes desta radicalização, segundo Angela Barreto Xavier. César de Meneses sintetizaria tal
pensamento Ŗem 1666, no livro Sugillatio Ingratitudinis (no qual) aponta a submissão dos súditos
como pilar fundamental para a manutenção do bem comumŗ.57
Meneses é considerado por Xavier como símbolo de uma corrente se desenvolveu em
Portugal a partir da condenação da rebelião Ŗconsiderando muitas vezes que não assistiam
quaisquer direitos de resistência aos povos, e que apenas perante Deus responderia o rei pelo mau
uso que fizesse do seu ofícioŗ.58
Autores como Menezes, portanto, contribuíram sistematicamente para a mudança da forma
de se conceber a forma que as revoltas deveriam ser tratadas e conceitos como Ŗobediência e
sujeição introduziam o monarca no universo do temor, alternativo ao poder pelo amor que
caracterizava as relações dos monarcas portugueses com os seus súditosŗ.59
Com o passar do tempo, torna-se cada vez mais Ŗevidente a permeabilidade da ética política
portuguesa aos preceitos de uma política utilitaristaŗ e homens como Menezes deixariam de ser
exceção para tornar-se praticamente a regra.
A mudança, no entanto, não deve ser vista de forma radical, pois a História está longe de
ser a disciplina das rupturas. Tal mudança, efetivada de forma lenta e gradual, encontrou seus

56
XAVIER, Ângela Barreto. Op.Cit. p.133.
57
Ibidem.
58
Idem. p. 128.
59
Idem. p. 134.
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opositores ao longo do tempo e, como bem lembra Hespanha, ainda no século XIX seria motivo de
orgulho para muitos magistrados jamais ter condenado alguém a morte, mas antes de terem livrado
vários desta condenação.60
Homens como o Conde de Assumar, responsável pela decisão de punir de forma severa
alguns dos personagens da Revolta de Vila Rica de 1720, como Filipe dos Santos, condenado a
pena capital, no entanto, conviveriam com este debate e tomariam suas decisões com apoio na
formação que haviam recebido e também nas contingências que lhes eram apresentadas.
Fato é que em Portugal e seus domínios, a decisão de castigar ou perdoar um revoltoso era
diretamente influenciada pelo magistrado responsável por tomar a decisão e o contexto em que este
estava inserido e não se pode afirmar que Ŗa intensidade da repressão depende apenas da força
disponível do Estadoŗ.61
Toda esta discussão, além dos vários exemplos de revoltas que não terminaram com o
castigo na listagem feita por Luciano Figueiredo ou o caso da Revolta da Cachaça na qual a decisão
de punir foi extremamente prejudicial ao governador Salvador Corrêa de Sá em Lisboa, mostram
que o perdão estava longe de ser aplicado apenas em conjunturas nas quais Ŗo Estado é obrigado a
contemporizarŗ62 e que esta prática era vista como virtude régia e, durante muito tempo,
amplamente recomendada por juristas e teóricos da política em Portugal. Enfatizar isto é bastante
importante e corrige um equívoco de boa parte da historiografia acerca das revoltas ocorridas no
Império Ultramarino Português durante o século XVII e a primeira metade do XVIII 63 que ignora
o debate político acerca desta matéria e, assim, insiste em repetir que o perdão só se manifestava
em situações nas quais as forças de repressão não estavam organizadas de forma eficiente e capaz de
conter os revoltosos de forma violenta.
Apenas destacar o valor do perdão dentro da cultura política lusa, no entanto, não explica o
porquê das decisões do Conde de Assumar para reprimir a Revolta de Vila Rica terem assumido a
forma que tiveram e, para isto, é necessário ir além da constatação de que, apesar do culto ao

60
HESPANHA, António Manuel. ŖDisciplina e punição..ŗ. p. 274.
61
OLIVEIRA, Antônio de. Op. Cit. p. 40.
62
Ibidem.
63
Novamente trato aqui de forma especial do trabalho de Maria Verônica Campos que, como sinalizado
anteriormente, reitera frequentemente este argumento para explicar os perdões concedidos em Minas nas primeiras
décadas do XVIII sem, contudo, analisar o debate acerca desta matéria entre os oficiais da Coroa portuguesa.
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perdão, desenvolveu-se em Portugal uma corrente política utilitarista na qual o governador da


Capitania de São Paulo e Minas do Ouro claramente se filiava e encontrava boa parte de seus
argumentos.64
É importante, neste momento, se dedicar a conjuntura política vivida pelas Minas durante
o século XVIII e como o perdão e o castigo foram discutidos e vivenciados na região em contextos
anteriores à sedição de 1720, pois, indiscutivelmente, a experiência administrativa na região
também tem muito para contribuir para o entendimento das medidas tomadas pelo Conde de
Assumar, mas isto é assunto para outro momento.

Referências Bibliográficas
1. Obras de referência:

BOTERO, João. Da Razão de Estado (coordenação e introdução Luís Reis Torgal). Coimbra: Centro
de História da Sociedade e da Cultura da Universidade de Coimbra, 1992.

CASTRO, Fernando Alvia. Verdadeira Razão de Estado. Parede: Principia, 2009.

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2003.

PARECER do Conselheiro Antonio Rodrigues da Costa. RIHGB, t. 7, v.7, 1847.

2. Bibliografia

ALBUQUERQUE, Martim de. ŖMaquiavelismo e Antimaquiavelismo em Portugal dos fins do


século XVI aos fins do século XVIIŗ. In: ALBUQUERQUE, Martim de. Maquiavel e Portugal
(Estudos de História das Ideias Políticas. Aletheia Editores: Lisboa, s.d.

BOXER, Charles. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São Paulo: EDUSP, 1973.

64
A conclusão é evidente a partir do contato com os textos produzidos pelo Conde de Assumar, mas é sistematizada de
forma bastante clara na recente tese de doutorado de Marcos. Ver: Vivendo Entre Cafres: Vida e Política do Conde de
Assumar no Ultramar, 1688-1756. Niterói: UFF, ICHF, 2009 (tese de doutoramento).

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CAMPOS, Maria Verônica. Governo de Mineiros: de como meter as minas numa moenda e beber-lhe
o caldo dourado (1693 a 1737). Tese (Doutorado em História) Ŕ FFLCH, USP, São Paulo, 2002.

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Ferreira (Org.) Diálogos Oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império
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Império Portugês, Séculos XVI-XVIII”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

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O DISCURSO DE JULIANO MOREIRA:


A PSIQUIATRIA COMO INSTRUMENTO DE MODERNIZAÇÃO
NA BELA ÉPOCA CARIOCA
José Paulo Antunes Teixeira1
PPGH ŔUERJ

A instituição de uma direção higienista para a administração da cidade do Rio de Janeiro


na passagem do século XIX para o século XX se dá a partir do interesse do Estado no
fortalecimento de uma medicina social capaz de reformular os costumes e livrar o espaço urbano
carioca daquilo que era visto como obstáculo à contemplação de um ambiente civilizado: os vícios.
Neste sentido, são postos em evidência os campos de conhecimento interessados na descrição do
comportamento, bem como ganham respaldo as teorias científicas responsáveis pela identificação
da origem e respectiva solução para as ditas degradações.
O discurso médico sobre a loucura, isto é, a psiquiatria surge neste momento como uma
importante ferramenta de normatização da sociedade. Frente a um panorama que compreende o
louco como um alienado, ou seja, estranho, alheio à ordem vigente, a saúde mental se fortalece
embasada em uma postura voltada para a classificação das enfermidades mentais e para o estudo
das origens de tais doenças. O psiquiatra baiano Juliano Moreira surgirá neste contexto liderando
tais propostas e pregando uma abordagem evolucionista sobre o estudo das anormalidades e dos
comportamentos desviantes, em contraposição às correntes atávicas2 e racistas da medicina
brasileira. Por sua afinidade com as propostas políticas da época, trato aqui de conferir
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historicidade ao surgimento deste saber alienista no Brasil, voltado para suas origens,
descontinuidades e sua consolidação naquele princípio de regime republicano.
O arcabouço teórico encontrado por Juliano Moreira no que diz respeito ao embasamento
para o estudo da psiquiatria, teria como principais fontes para este entendimento a produção dos
cientistas Philippe Pinel (1745-1826) e Jean-Etienne Dominique Esquirol (1772-1840), destaques
do alienismo francês em desenvolvimento na passagem do século XVIII para o XIX. 3
A psiquiatria brasileira acompanhava a caracterização da loucura, sua descrição,
identificação e classificação desenvolvida por Esquirol, na qual, é enfatizado o critério de caráter
moral para a enfermidade mental. O primeiro passo para tal posicionamento é a criação do
conceito de monomania, que descreve um comportamento desviante baseado em três variantes; a
intelectual, a afetiva e a instintiva. Na primeira, é verificada uma lesão parcial da inteligência que
consequentemente leva à desordem do comportamento. Já a segunda está associada ao convívio e
às relações interpessoais, visto que é motivada pelo despertar de paixões e pelo ressentimento
cotidiano sendo, portanto, ambientada no campo das sensibilidades. Por último, o que define
como monomania instintiva aproxima-se daquilo que pode ser descrito como o ato movido por
uma força irresistível, ou seja, uma vontade desvinculada de racionalidade ou moralidade a ser
satisfeita pelo indivíduo.4
Ambientando-se a partir destes três modelos monomaníacos, quando a desordem se
restringe apenas a um aspecto do comportamento, Esquirol torna a loucura independente de um
quadro de deficiência mental permanente, como a idiotia, por exemplo, e possibilita a criação de
um segundo conceito, o delírio parcial. Assim, estabelece um desvio de comportamento limitado a
um determinado momento, enquanto o funcionamento da inteligência nas demais atividades do
cotidiano permanece inalterado. Dessa maneira, o delírio, bem como a loucura, não corresponde à
inexistência de inteligência, ou de pensamento, mas a uma perturbação destas que tem como
consequência um ato de perversão da ordem. Com isso, pode-se concluir que
Ŗ[...] se a loucura implica desordem da sensibilidade, da inteligência ou da vontade, sua
característica essencial não é sererro ou ilusão dos sentidos, delírio da inteligência, mas
5
perversão da vontade, que é um fenômeno moral, e não intelectual.ŗ .

A solução para esta perversão social e seu potencial gerador de desordem urbana, segundo
Esquirol, está na imposição de uma reeducação normativa baseada na moralidade vigente e voltada
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para a cura do indivíduo transgressor. Neste sentido, o psiquiatra acompanha as propostas de seu
colega e antecessor Philippe Pinel, quando estabelece como indissociáveis as funções médicas e
sociais para aqueles homens de ciência responsáveis pelo trato com a loucura. Pinel, ainda ao final
do século XVIII, reconheceria a loucura como fruto da imoralidade e do artificialismo urbano dos
ambientes que se impunham através do advento das fábricas. Sua cura, por consequência, se daria a
partir da intervenção médica afastando deste meio caótico, o indivíduo desorientado. 6
O espaço destinado a este asilamento não poderia, contudo, ser compartilhado pelos
demais segmentos da marginalidade das cidades. Aos loucos deveria ser instituído um espaço
exclusivo, de onipotência médica, capaz de conferir-lhes a cura e a reinserção na sociedade.
Concebido como baluarte no tratamento da loucura do século XIX, o hospício será o lugar
institucional da correção, base de uma ciência instrumental na validação da medicina social que
intervinha na sociedade. Assim
Ŗ[...] retirado do mundo, não será como um espaço de natureza e de verdade imediata, mas
um domínio uniforme da legislação, um lugar de sínteses morais onde se apagam as
alienações que nascem nos limites exteriores da sociedade. Toda a vida dos internos, todo o
comportamento dos vigilantes em relação a eles, bem como o dos médicos. São organizados
7
por Pinel para que essas sínteses morais se efetuem.ŗ .

Dando continuidade aos estudos sobre a loucura e suas implicações, ao longo do século
XIX, um terceiro alienista francês teria contribuição fundamental, desta vez, voltado não para a sua
caracterização ou tratamento, mas para a sua origem. O médico Benedict Augustin Morel (1809-
1873) apresentaria um estudo que, pela primeira vez, enfatizava aspectos orgânicos em detrimento
aos morais sobre a doença mental, embasado no conceito de degenerescência. Este se baseava na
crença de hereditariedade no que diz respeito à transmissão das enfermidades, contudo,
extrapolava isso ao determinar não só a transferência de pai para filho de determinadas
intoxicações, moléstias ou distúrbios adquiridas ao longo da vida, mas o agravamento da doença ao
longo dos descendentes até que a família fosse interrompida. Com isso, a degenerescência se
estabelecia como
Ŗ[...] baseada no pressuposto de que haveria progressiva degeneração mental conforme se
sucedessem as gerações: nervosos gerariam neuróticos, que produziriam psicóticos, que
8
gerariam idiotas ou imbecis, até a extinção da linhagem defeituosaŗ .

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A despeito de sua importância no deslocamento do eixo de análise da loucura de acordo


com caracteres morais para uma atribuição de causa orgânica que privilegiava a abordagem
psicofisiológica, a degenerescência de Morel abria nos campos de estudos da psiquiatria uma
brecha para os estudos racialistas, em ascensão naquela segunda metade do século XIX. A absorção
deste tema faz com que o circuito médico passe a buscar nos indivíduos que fugiam aos padrões
fenotípicos europeus, isto é, de cor dos olhos, pele e cabelos escuros, uma predisposição para o
desenvolvimento de enfermidades. No caso da psiquiatria, enfermidades mentais. A ciência se
direcionava, portanto, em sentido a reforçar as teses de superioridade racial europeia sobre os
demais povos e consolidar o chamado atavismo como a possibilidade de repetição de determinadas
tradições ou comportamentos de acordo com a herança genética. Através destas condições, seria
possível intervir na sociedade, remediar aquilo que se colocasse como indesejável e, principalmente,
prevenir o desenvolvimento de desvios de comportamento.9
Estes entendimentos serão assimilados em princípio pela Faculdade de Medicina da Bahia,
que se colocará, no Brasil, como um polo de estudos que propunham a relação entre o cruzamento
racial e a incidência de criminalidade, loucura e degeneração. Neste campo, sobressai a figura do
médico maranhense Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) como expoente na promoção de
críticas à mestiçagem e seus desdobramentos para a constituição política, social e econômica do
país.
O professor da Faculdade de Medicina da Bahia demarcava a crença na existência de uma
diferença de espécies entre brancos, índios e negros, sendo dessa forma inconcebível equipará-las
em igualdade e determinar um convívio entre elas. Sob o estandarte desta diferença entre as raças
afirmava que
ŖUm leve verniz de civilização poderia recobrir as populações mestiças, como os sertanejos,
mas certas condições sociais fariam eclodir o lado bárbaro e selvagem destes, mal refreado
10
por regras que não eram as suas, incompatíveis com o seu suposto nível mentalŗ .

Em oposição a este pensamento se posicionaria o psiquiatra baiano Juliano Moreira (1873-


1933), formado também na Bahia, contudo, alinhado aos estudos da Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro. Ali, se dava ênfase a uma análise não sobre as raças propriamente ditas, mas sobre o
convívio entre elas e os costumes propiciadores de degeneração. Como resultado desta
mentalidade, teríamos estudos que procuravam relacionar o meio e as doenças que surgiam dele, e
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acabavam por contrariar a proposta de diferença entre as raças para cristalizar a proposta de
existência de uma desigualdade. Isto reforçaria a crença na existência de um indivíduo universal,
cujas diversidades seriam transitórias e remediáveis através da moralização e da educação, de acordo
com as concepções de cultura e sociedade civilizadas consolidadas na Europa ao final do século
XIX.11
Em um conjunto de periódicos organizados por Juliano e seu colega em exercício da
profissão médica Afrânio Peixoto, os Arquivos Brasileiros de Psiquiatria e Ciências Afins, se estabelece a
noção de doença mental como uma doença corpórea, tal como as demais enfermidades estudadas
pela medicina epidemiológica do Rio de Janeiro. Traçando este paralelo, seria possível promover
diversas inferências entre ambos os campos. Numa delas, afirmava que
ŖNão há muito tempo todas doenças as eram hereditárias: para tomar só uma delas, a
tuberculose. [...] agora, Berend demonstrou-o, filhos de hecticos [sic] até, ninguém traz
originariamente a semente de Koch e só mais tarde, nós todos, na vida, vamos ficando mais
12
ou menos tuberculososŗ .

Embora sem negar as possíveis influências da hereditariedade, o que o psiquiatra buscava


era a observação do desenvolvimento da loucura a partir da vivência e da exposição, em
determinado meio, a agentes físicos e sociais capazes de desencadear um desvio de comportamento.
Os indivíduos seriam todos iguais em nascimento, e as enfermidades observadas seriam resultado
de tudo aquilo que ocorresse a partir desse momento. O enquadramento neste raciocínio da
desigualdade permitia o entendimento de que a doença mental possuiria majoritariamente origem
nas condições sociais e econômicas do meio, sendo estas, frutos da própria ação do homem em
suas escolhas. Juliano Moreira, em suas considerações, determinava que
O atavismo é mera fantasia [...] sempre em suas qualidades fundamentais, a humanidade foi
a mesma e a mesma seria, se a vida mesológica Ŕ física e civil Ŕ não nos viesse deformando,
alterando, adaptando. [...] é a educação, a disciplina, a cultura, que as submetem,
13
modificam, adaptam, dando-lhes por fim essa identidade socialŗ .

Esta nova psiquiatria estruturava, portanto, um pensamento crítico voltado para a solução
de uma realidade urbana profundamente marcada por uma série de esgotamentos condicionantes a
um processo de degeneração, deixando em segundo plano o caráter miscigenado do povo
brasileiro. Traria exemplos, como os esgotamentos mental, devido ao excesso de trabalho, o

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venéreo, ocasionado pela promiscuidade e pelas perversões sexuais e, finalmente, o fisiológico,


associado aos hábitos intoxicantes como o consumo de álcool entre outras drogas..
Dessa maneira, o que Juliano procurava estabelecer era a relação claramente sociológica
existente entre os comportamentos característicos de uma sociedade que ainda não atingira o status
quo de civilização ideal, e as consequências orgânicas destes comportamentos em relação à
degeneração e ao desenvolvimento da doença propriamente dito. Dessa forma, dava continuidade
ao processo organicista iniciado por Morel, afastando-se de uma caracterização moral da loucura,
tal qual se idealizara no princípio do século XIX, para uma identificação psicofisiológica da doença
ocasionada por hábitos ou condições nocivas ao bom funcionamento do corpo e da mente.
Promovia, contudo, um revisionismo em relação a estas recentes propostas, visto que permitiam a
relação entre os componentes raciais à maior incidência de doenças mentais. A causalidade do
desenvolvimento da loucura deveria ser associada majoritariamente às intoxicações, às verminoses e
às condições sanitárias e educacionais adversas.14
Equiparando as condições naturais, entre brasileiros e europeus, no que diz respeito à sua
relação com a potencialização das enfermidades mentais, as novas propostas da psiquiatria
brasileira conquistam, de fato, a possibilidade de adequar e relacionar os diagnósticos estudados
por teóricos europeus com casos clínicos observados aqui. Esta já seria a visão inicial de Juliano
Moreira, que durante sua formação no exterior, entrara em contato com os estudos do professor
alemão Emil Kraepelin, responsável por uma renovação nos estudos sobre as causas da loucura e
pela elaboração de uma classificação metódica de enfermidades mentais, ambas fortemente
embasadas em influências orgânicas para a alienação. Aquilo que se verificava como desvio da
ordem finalmente adquiria critérios e descrições verdadeiramente científicas.15
É a partir do estudo do Tratado de Psiquiatria de Kraepelin, que passa a se desenvolver no
Brasil a classificação das doenças e a enumeração de seus sintomas. Até então, não era possível
diferenciar as formas de desvio sendo, da mesma maneira, impossível ordenar o tratamento de
acordo com um distúrbio específico. A psiquiatria, ansiosa pela cientificização, verificava que
Ŗ[...] ora se descrevem doenças diversas com o mesmo nome, ora enfermidades idênticas
com outros nomes, ora finalmente, algumas designações qualificativas precisam espécies
mórbidas que se não podem conter dentro do mesmo gênero. É um verdadeiro estado de
Babel ou confusão psiquiátrica em que a gente se arrisca, no fim, a não sair à luz com uma
16
ideia definidaŗ .
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É também a partir da influência de Kraepelin, e dos trabalhos publicados por ele, que se
desenvolve a relação entre a doença mental e comportamentos condicionantes a ela, como o
alcoolismo, a epilepsia, a sífilis, entre outros. Esta leitura do psiquiatra alemão permite então o
entendimento sobre a noção médica de conduta anormal, conceituada e denominada como
personalidades psicopáticas. Isto significava que os indivíduos entregues a determinados vícios, ou
acometidos por determinada doença, apesar de não manifestarem traços de alienação já trilhavam
sentido a tal condição, e isto já poderia ser caracterizado como enfermidade, cujo tratamento seria
indispensável. Sobre aqueles que mantinham tais hábitos, Juliano Moreira alertava:
ŖOlhando-se para a vida com uma certa acuidade, descobrem-se destes indivíduos o que se
poderia chamar de temperamentos ou caracteres paranoicos; não são predispostos porque a
17
anomalia já existe, falta apenas a irrupçãoŗ .

Neste alinhamento da psiquiatria desenvolvida no Brasil por Juliano Moreira, com os


saberes do mesmo campo de conhecimento propagados na Alemanha por Kraepelin, é possível
perceber o que a filósofa Vera Portocarrero chama de descontinuidade histórica da psiquiatria. Isto
se deve inicialmente ao discurso de ambientação contrário aos determinismos raciais que
distanciavam o saber médico nacional e estrangeiro. A partir desta adequação, torna-se possível
utilizar a classificação de enfermidades descrita pelo psiquiatra baiano, conferindo finalmente
critérios científicos para a identificação e tratamento da loucura como uma doença mental de fato.
Além disso, o alienado, apesar de manter o seu posicionamento na estrutura social como aquele
que vive distante, ou evita a ordem vigente, perde esta caracterização generalista para ser
diagnosticado com uma enfermidade específica, com causas e tratamentos igualmente específicos. 18
Entretanto, as inovações propostas por Juliano Moreira são estudadas aqui não apenas
como frutos de dedicação ao estudo da conservação corpórea, e sim como ferramentas de
legitimação de uma ideologia. Ideologia esta atrelada a um projeto de modernização liberal e
excludente, voltado para o esvaziamento e para a consequente despolitização do espaço público na
cidade do Rio de Janeiro.
Determinadas palavras, como a anormalidade ou a higiene, ganham sentido a partir dos
eventos e do espaço temporal em que estão inseridas. Assim, reconhecemos a necessidade de
discussão a respeito de referenciais já consolidados na historiografia. A partir da definição destes
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ditos referenciais, será inteligível conferir direção e sentido ao estudo, e àquilo que se pretende
analisar.
Em princípio o reconhecimento que se faz sobre este estudo é que propõe uma prática de
interação entre aquilo que se apreende como história, isto é, um campo de conhecimento que tem
como foco a construção da realidade, e uma ciência construída a partir desta realidade, a
psiquiatria. Neste sentido, o entendimento a ser assimilado aqui, sobre a genealogia do saber
psiquiátrico, diz respeito à ótica arqueológica produzida por Michel Foucault, na qual se estabelece
ser aquele um discurso médico sobre a loucura. A partir desta premissa o conhecimento alienista
associa duas características bem definidas.19
Inicialmente é visto como discurso, e dessa maneira, por resultar de um processo de
construção, é dotado de historicidade, de contribuição do meio e, portanto, representa a
perspectiva de quem assume uma parcela ou a totalidade desta construção. Ao mesmo tempo, por
se tratar de um tipo específico de medicina, a psiquiatria assume caracteres médicos, no que diz
respeito ao papel que a prática tem no convívio. O que se percebe é a loucura enquanto doença Ŕ
no caso, mental Ŕ e que recebe por isto uma prática que objetiva a sua cura, necessária enquanto
instituição para a estruturação de uma sociedade dotada de ordem, orientada pela disciplina.
O estudo desta instrumentalização política da psiquiatria enquanto saber voltado, ou
utilizado, para o estabelecimento de uma ordem burguesa, tal qual nos sugere Foucault, permite a
compreensão da institucionalização da psiquiatria enquanto ciência como um processo análogo ao
da consolidação de um caráter liberal para o Estado republicano. Amparado pelas considerações da
historiadora Mary Douglas20, que dizem respeito a importância da analogia no processo cognitivo
de internalização de um determinado conjunto de valores, o saber psiquiátrico é apresentado aqui
como importante passo na adequação aos padrões de civilização buscados na época. Isto porque
identifica em padrões de comportamento indesejáveis no espaço público como passíveis de
diagnóstico, inclusive cunhados a partir da concepção de anormalidade.
Esta correlação entre o discurso e o âmbito institucional configura de maneira eficiente a
interação que se pretende aqui, entre a história cultural e a abordagem política. Se por um lado
reconhece a sua autoria, conferindo a seus autores uma determinada posição, como sujeitos na
construção da realidade e também como predicados deste mesmo ambiente, por outro, confere ao
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resultado, à criação daquele saber, uma finalidade. A psiquiatria enquanto instituição será encarada
aqui não só como um saber construído, mas como
[...] uma ciência política, já que respondeu a um problema de governo. Ela
permitiu administrar a loucura. Mas deslocou o impacto diretamente político do
problema para o qual propunha solução, transformando-o em questão puramente
técnica. Se existe repressão, esta se deve ao seguinte: com a medicina, a loucura
passou a ser administrável.21

Estas posições a respeito do saber psiquiátrico serão importantes para o trabalho proposto
aqui, relativo à ambientação do discurso de Juliano Moreira, e no relato sobre suas práticas e
relevâncias na aplicação da política higienista do período a que a historiografia reconhece como
Belle Époque carioca. E para expressar a tônica deste entendimento sobre o papel da psiquiatria
naquele momento de transformações da sociedade, utilizarei uma exemplificação de Foucault, em
que determina como análogos o alienado na modernidade, e o leproso na Idade Média. Segundo o
filósofo, para ambos os personagens foi concebida a necessidade de intervenção e exclusão de
indivíduos indesejáveis do seio da sociedade, em razão dos males que o acometiam. O que se atesta
é a necessidade de idealizar um tratamento baseado em valores característicos de um temor, por um
personagem cuja presença deve ser evitada através de um aparato de isolamento, seja ele um
manicômio ou um leprosário.22
O estudo de Juliano Moreira é proposto por este trabalho a partir destas perspectivas.
Como um produto de seu tempo, isto é, como um foco de poder simbólico instituído e legitimado
a partir da dicotomia entre o discurso e a prática discursiva no comportamento coletivo. E também
como uma ferramenta de intervenção utilizada pelo Estado na normatização Ŕ ou normalização,
segundo seus próprios termos - da sociedade em uma tentativa de adequação do espaço urbano
carioca aos moldes de civilização concebidos e importados da Europa ao final do XIX.

Notas

1 Mestrando do Programa de Pós-graduação em História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob a Linha
de Pesquisa Política e Cultura. (Bolsista CAPES)
2 O atavismo é um conceito que ganha projeção ao final do século XIX e diz respeito à crença na transmissão de
valores e comportamentos a partir da herança biológica. O uso destes princípios daria embasamento a diversas
tentativas de interrupção de linhagens consideradas imperfeitas, ou defeituosas. Cf: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
Espetáculo das Raças Ŕ Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil (1870-1930). São Paulo: Companhia
das Letras, 1993.
3 Idem.
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4 MACHADO, Roberto et alii. Danação da Norma Ŕ Medicina Social e Constituição da Psiquiatria no Brasil. Rio de
Janeiro: Ed. Graal, 1978.
5 MACHADO, Roberto et alii. Danação da Norma. p.388
6 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1997.
7 FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. p.489.
8 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. ŖA teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira:
contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreiraŗ In: Psychiatry On-line Brazil - part of The
International Journal of Psychiatry, v. 6, n. 12, Dec. 2001.
9 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. A teoria da degenerescência na fundação da psiquiatria brasileira:
contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira.
10 RODRIGUES, Nina. Apud ODA, Ana Maria Galdini Raimundo. A teoria da degenerescência na fundação da
psiquiatria brasileira: contraposição entre Raimundo Nina Rodrigues e Juliano Moreira.
11 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças.
12 MOREIRA, Juliano e PEIXOTO, Afrânio. ŖParanoia e Síndromes Paranoidesŗ In: Arquivos Brasileiros de
Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. 1(1) 1905. p. 7-8.
13 MOREIRA, Juliano e PEIXOTO, Afrânio. ŖParanoia e Síndromes Paranoidesŗ In: Arquivos Brasileiros de
Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins. 1(1) 1905. p.08.
14 ODA, Ana Maria Galdini Raimundo e DALGARRONDO, Paulo. ŖJuliano Moreira Ŕ Um psiquiatra negro
frente ao racismo científicoŗ In: Revista Brasileira de Psiquiatria. Vol. 22 (4), 2000. p.178-179.
15 VENANCIO, Ana Teresa A. ŖDoença Mental, Raça e Sexualidade nas Teorias Psiquiátricas de Juliano Moreiraŗ
In: PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2004. p. 283-305.
16 MOREIRA, Juliano e PEIXOTO, Afrânio. Paranoia e Síndromes Paranoides. p.05.
17 MOREIRA, Juliano e PEIXOTO, Afrânio. Paranoia e Síndromes Paranoides. p.10.
18 PORTOCARRERO, Vera Maria. Arquivos da Loucura
19 FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1978.
20 DOUGLAS, M. Como as instituições pensam. São Paulo: Edusp, 1998.
21 CASTEL, R. A Ordem Psiquiátrica - a Idade de ouro do alienismo. Rio deJaneiro: Ed. Graal, 1978.
22 FOUCAULT, M. Op. Cit. p.09

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DIRETAS JÁ ATRAVÉS DO HUMOR: UMA ANÁLISE DAS CHARGES SOBRE O


MOVIMENTO PUBLICADAS NO JORNAL DO BRASIL ENTRE
JANEIRO E ABRIL DE 1984.
Luciana Borges Patroclo*
Resumo:
Esta comunicação tem o propósito de estabelecer uma análise sobre a campanha das Diretas Já
através das charges publicadas no Jornal do Brasil, entre janeiro e abril de 1984. Por meio da
pesquisa destes recursos humorísticos se pretende compreender a linha editorial adotada pelo
periódico no desenrolar deste movimento político e social. Neste trabalho as charges são
apresentadas como imagens criadas com o objetivo de fazer uma reflexão de um assunto em voga
na mídia por meio da sátira e da ironia. Como parte do aporte teórico deste texto é utilizado o
conceito de representação proposto por Roger Chartier.

Palavras-chave: Imprensa; Charge; Diretas-Já


Abstract:
This communication is intended to provide an analysis of the campaign for Diretas Já through the
cartoon published in the Jornal do Brazil, between January and April 1984. Through the research of
these resources, it wants to understand the humorous editorial line adopted by the journal in the
course of political and social movement. In this work the cartoon are presented as images created
with the goal of making a reflection of a subject in vogue in the media through satire and irony. As
part of the theoretical contribution of this paper is used the concept of representation proposed by
Roger Chartier.

Keywords: Press; Cartoon; Diretas-Já

INTRODUÇÃO

*
Doutoranda em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Bolsista CAPES.
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Foi ao som do refrão um, dois, três/ quatro, cinco, mil/ queremos eleger/ o presidente do Brasil
que milhares de pessoas, nos mais diversos estados brasileiros, saíram as ruas para exigir o direito
de elegerem pelo voto direto o presidente do Brasil. As manifestações ocorridas no início da
década de 1980, com o nome de Diretas Já, estavam inseridas no contexto dos movimentos de
redemocratização que se intensificaram ao longo dos países da América Latina.1
Esta comunicação se caracteriza como uma reflexão acerca deste movimento político-social
a partir de sete charges publicadas Jornal do Brasil no período entre janeiro e abril de 1984.
Embora a campanha tenha se iniciado no ano anterior, em 1983, foi a partir do início deste ano
que os meios de comunicação impressos e televisivos passaram a ampliar o espaço de sua cobertura
sobre as reivindicações dos partidários das Diretas. Principalmente com a realização dos comícios
em grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, bem como o fato da votação da emenda ter
sido realizada em 25 de abril de 1984. Outro fator importante foi o fato de que nos últimos anos
do regime militar ocorreu, por exemplo, uma diminuição da censura e da pressão sobre os meios de
comunicação, situação que propiciou menor repressão sobre a imprensa neste período.2
A escolha das charges como fonte de pesquisa sobre um ato político está inserido na
perspectiva de uma nova história política que possibilitou a inserção de conceitos, trazidos da
história cultural, como o de representação social. O processo de releitura da história política
provocou a ampliação dos assuntos e das fontes pesquisadas, passando-se a abordar temas por meio
da percepção de que as relações de poder estavam presentes em todos os grupos sociais. Foi através
de deste campo que a história passou a contemplar grupos sociais até então esquecidos pelos
historiadores (mulheres, crianças).3
As charges são desenhos e tem como objetivo fazer, por meio do humor, uma crítica ou
sátira de um assunto que esteja em voga na mídia. Esse recurso começou a ser usado em larga escala
com o aumento dos jornais de oposição que faziam uso do humor político como forma de

1
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1975.
In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (Orgs.). O tempo da ditadura: regime militar e movimentos
sociais em fins do século XX.3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2009. p.246.
2
BERTONCELO, Edison Ricardo. ŖEu quero votar para presidenteŗ: uma análise sobre a campanha das Diretas. Lua
Nova, São Paulo, 76, p. 169-196, 2009. p.172.
3
RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/UGV, 1996.p.23.

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Řalfinetarř alguém ou algum acontecimento que mexia com a sociedade. O cartum político, nome
pelo qual as charges também são conhecidas, estão intimamente ligadas aos fatos veiculados na
imprensa. O chargista escolhe um tema entre as notícias que mais chamaram a atenção da
população e procura através de sua arte traçar um panorama bem-humorado sobre a situação.
Sempre se valendo do fato de que as pessoas tenham conhecimento da notícia ou do indivíduo
escolhidos. As charges do Jornal do Brasil estão inseridas no contexto das fontes históricas
denominadas de periódico. Também fazem parte desta tipologia de fonte: os jornais, as revistas,
anúncios publicitários, imagens e ilustrações provenientes de meios de comunicação impresso. 4 O
uso dos periódicos como fontes históricas ainda é recente; e está vinculado diretamente as
concepções de História produzidas na vigência da Terceira Geração dos Annales; na década de 70.
Diante da perspectiva de análise deste texto formam selecionados alguns conceitos com o
intuito de nortear tais ações. Primeiramente, tem-se a perspectiva de Chartier sobre Representação.
Segundo ele, as representações estabelecem a visão de mundo de um determinado grupo e são
formuladas a partir das práticas sociais do mesmo.

O Ŗmundo como representaçãoŗ, moldado através de séries de discursos que o apreendem


e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma
figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão
a ver e pensar o real.5

Como observa Jeanneny com o advento deste novo olhar sobre o político, estabeleceu-se a
necessidade dos historiadores concedessem uma maior atenção os meios de comunicação e o modo
como estes se constituem como veiculo de socialização e de circulação de determinadas
representações e ideias sobre um determinado objeto.6 Além disso, o conteúdo das charges pode ser
considerado como editais imagéticos de um jornal. Instituindo-se uma perspectiva para além de
uma função meramente ilustrativa. Como observa Burke, às imagens podem ser usadas como
formas de busca por evidências históricas.7

4
LUCA, Tania Regina de.História de dos,nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008.p.111-153.
5
CHARTIER, Roger. A história cultural entre praticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; Lisboa: DIFEL,
1990.,p.23-24.
6
JEANNENY, Jean-Nöel. A mídia. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ/UGV,
1996.p.213-225.
7
BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru-SP: EDUSC, 2004.p.11.
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Este trabalho se propõe a observar, através das charges, a linha editorial adotada pelo Jornal
do Brasil durante o desenrolar desse movimento popular. Para cumprir com o objetivo proposto
foram feitas pesquisas nos arquivos do JB. Nas páginas seguintes são abordadas a constituição do
movimento das Diretas Já e como foi estabelecida essa ligação entre o humor e a notícia, o
significado do movimento em prol da emenda Dante de Oliveira8.

1 - As Diretas Já e o seu caráter sociopolítico


No ano de 1960 foi à última vez em que os brasileiros elegeram um presidente da
República, por meio do voto direto, quando Jânio Quadros chegou ao poder. Com a renúncia
deste, em agosto de 1961, o vice João Goulart se tornou presidente. Três anos depois com a saída
de Jango do poder, mediante o golpe militar, Castelo Branco foi empossado sem participação
direita da população. Logo depois, a promulgação do Ato Institucional nº 2 em 27 de outubro de
1965 extinguiu o direito do voto direto. ŖA eleição do Presidente e do Vice-Presidente, da
República seria realizada pela maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão
pública e votação nominalŗ.9 (BRASIL, 1965). Com o passar dos anos, diversas modificações foram
feitas, na legislação eleitoral, com o intuito de diminuir a participação da oposição nos pleitos
eleitorais.
A instauração da Constituição de 1967 que estabeleceu novas regras para eleição foi uma
delas. De acordo com o Art.76: ŖO Presidente será eleito pelo sufrágio de um Colégio Eleitoral,
em sessão, pública e mediante votação nominalŗ.10 (BRASIL, 1967). A partir daquela desta data o
presidente da República passou a ser eleito através de uma votação por um colégio eleitoral
formado por membros do Congresso e por pessoas indicadas pelas Assembléias Legislativas
Estaduais. Esse número de participantes era estabelecido através da representatividade eleitoral dos

8
A emenda constitucional ficou conhecida pelo nome do seu criador, o Deputado do PMDB Dante de Oliveira (1952-
2006).
9
BRASIL. Ato Institucional nº2. Promulgado em 27 de outubro de 1965. Disponível em:
http://www2.camara.gov.br/legin/fed/atoins/1960-1969/atoinstitucional-2-27-outubro-1965-363603-norma-pe.html
. Acesso em 11 de set.2011.
10
BRASIL. Constituição (1967).. Promulgada em 24 de janeiro de 1967.Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm. Acesso em 11 set.2011.
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Estados. Somente 15 anos depois todas as unidades da federação passaram a ter o mesmo peso na
escolha do presidente do Brasil.
Durante os anos do regime militar diversas manifestações e movimentos foram realizados
para combater a ditadura, como a passeata dos cem mil no centro do Rio de Janeiro em 1968. Mas,
foi a partir do começo dos anos 80 que a discussão sobre transição política e a retomada de eleições
diretas se tornou assunto recorrente nas ruas do país. Nesta época, João Figueiredo era o
presidente e tinha como uma de suas plataformas políticas continuar o processo de abertura Řlenta
e gradualř iniciada por seu antecessor Ernesto Geisel.
As eleições para governador realizadas em 1982 também demonstraram o enfraquecimento
do regime em razão da oposição ter se consagrado como grande vencedora. ŖO PDS não somente
perdeu a maioria na Câmara dos Deputados, como também perdeu os governos de Minas Gerais,
Rio de Janeiro e São Pauloŗ.11 Além disso, o país atravessava uma grave crise na economia causada
pelos efeitos não tão Řmilagrososř do plano Milagre Econômico posto em prática em 1973. O PIB
do país diminuiu e os índices de desemprego e inflação aumentaram. Greves eclodiram no ABC
paulista sob o comando dos sindicatos dos metalúrgicos.
Sem contar com o desgaste da imagem dos militares, em razão, do uso abusivo da violência
e da força, principalmente, nos governos de Costa e Silva e Médici, como também, o episódio da
bomba no Riocentro em 1981. Um ano depois foi dado início a um movimento suprapartidário
que contou com a participação de: PT, PDT, PMDB e PTB.12 Numa ação conjunta o deputado
peemedebista Dante de Oliveira apresentou uma emenda que propunha o fim dos colégios
eleitorais e o retorno de eleições diretas para presidente. E, esta, seria realizada em 1985. 13
Neste mesmo ano de 1983 começaram a surgir manifestações espontâneas de apoio às
Diretas. Após um debate realizado na Universidade de Goiânia que contou com a presença de
Ulysses Guimarães (o Sr. Diretas-Já) os estudantes saíram as ruas em apoio ao movimento. Em
meio à propagação da campanha os partidos políticos já escolhiam seus candidatos para uma

11
SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. São Paulo: Paz e Terra, 1988.p.465.
12
Ibid,.p.468.
13
A emenda constitucional PEC nº5/1983 de autoria do então deputado do PMDB do Mato Grosso foi apresentada
ao Congresso em 1983.
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possível eleição direta. Entre eles estavam pela oposição Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e pelo
PDS, partido da situação, Marco Maciel, Aureliano Chaves e Paulo Maluf.

Em 1984 a população passou a usar camisas com slogans pró-eleições diretas, a agitar
bandeiras do Brasil e a gritar palavras de ordens. Segundo Delgado este movimento se constitui na
principal expressão política do país em todo o período republicano. 14

O governo tem que ver nas ruas nossas passeatas de protestos. Proponho uma greve geral.
Os músicos devem organizar shows de contestação, os caricaturistas fazer calungas com o
máximo de rancor. Os deputados e demais representantes do povo devem até insultar a
autoridade na tribuna. Ah, sim! A Igreja e a OAB precisam lançar notas contundentes,
ferinas e bem irônicas. Isto é muito importante! O João é muito sensível e fica furibundo
com a linguagem dos documentos da CNBB e OAB.15
Em todo país, milhares de pessoas se amontoavam em comícios. A campanha pelas Diretas-
Já ganhou as ruas:

Em 12 de janeiro trinta mil pessoas se reuniram no centro de Curitiba;


No dia 20 de janeiro quinze mil pessoas foram às ruas em Salvador;
Sessenta mil pessoas participaram de um comício em Belém no dia 16 de janeiro;
No dia 17 de fevereiro, quase 10 mil pessoas dançaram frevo no Recife como forma de apoio à
Campanha;
Em 24 de fevereiro cerca de 250 mil pessoas foram participaram de manifestações em Belo
Horizonte que teve a presença do então governador do estado Tancredo Neves, Ziraldo e da
cantora Simone.
As maiores manifestações de apoio à emenda Dante de Oliveira foram realizadas em São
Paulo e no Rio de Janeiro. No dia 25 de janeiro mais de 200 mil pessoas, mesmo com uma forte
chuva, compareceram à Praça de Sé em São Paulo. Estiveram presentes no comício: Franco
Montoro, Leonel Brizola e Luís Inácio Lula da Silva. Além de artistas como Chico Buarque, Milton
Nascimento, Sônia Braga entre outros. Em 23 de abril quase um milhão pessoas foram ao vale do
Anhangabaú pedir à volta de eleições diretas.16 Também foi inaugurado na capital paulista um

14
DELGADO, Lúcilia de Almeida Neves (2007). Diretas-Já: vozes das cidades. In: FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel
Aarão (Orgs.). Revolução e democracia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p.409-427. p.413.

15
HENFIL. Diretas Já! Rio de Janeiro: Record, 1983.p.118.
16
KOTSCHO, Ricardo. Explode um novo Brasil: Diário da campanha das Diretas. São Paulo, Brasiliense, 1984.p. 21-65.
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gigantesco Řplacar das Diretasř no qual seriam mostrados os nomes de todos congressistas e seus
votos. Ŗa campanha agora assumia um ar festivo. Os partidários das diretas envergavam camisetas
(algumas com as cores da bandeira brasileira) com a inscrição ŘQueremos votar para presidenteŗ.17
O Rio de Janeiro foi palco diversas passeatas em apoio à campanha. Na primeira em 16 de
fevereiro estiveram presentes mais de 40 mil pessoas. Em 21 de março uma multidão tomou conta
da Av. Rio Branco, num protesto espontâneo que não contou com o apoio de políticos. Mas, foi
no dia 10 de abril que o país assistiu ao maior comício já realizado em prol das Diretas-Já. Mais
de um milhão de pessoas se reuniram em frente à igreja da Candelária. A reunião popular teve a
presença de: Franco Montoro, Leonel Brizola, Luís Inácio Lula da Silva e de Fernando Henrique
Cardoso. Artistas como Osmar Santos, Lucélia Santos, Christiane Torloni (eleita musa das
Diretas), Milton Gonçalves, Fafá de Belém (cantou o hino nacional) entre outros.18
A votação da emenda das Diretas Já foi marcada para o dia 25 de abril. No dia
estabelecido, diversas entidades como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) fizeram uma vigília para esperar o resultado da votação. Na madrugada
do dia 25 para 26 de abril foi anunciado que a emenda Dante de Oliveira havia sido rejeitada. Para
ser aprovada eram necessários 320 votos dos 479 possíveis (2/3 do Congresso). No entanto, ela só
recebeu 298 votos a favor. (DELGADO, 2007). Quando a multidão que aguardava nas galerias do
Congresso soube da decisão, todos de mãos dadas aos prantos cantaram o hino nacional. Era o fim
da campanha pelas Diretas Já. Apenas cinco anos depois os brasileiros puderam eleger de forma
direta o presidente da República.

2 – As charges do JB e as Diretas

Desde o início do período analisado o ŘJornal do Brasilř se caracterizou por publicar charges
sobre o tema Diretas Já. Essa atitude tomada pelo jornal foi uma das conseqüências geradas pela
abertura Řlentař e Řgradualř iniciada com o governo Geisel. O jornal fazia questão de marcar sua

17
SKIDMORE, op.cit.,p.469.
18
SKIDMORE, loc.cit.
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posição favorável ao movimento popular. Denunciava a existência de um possível acordo para que
o direito ao voto direto fosse adiado.
No dia 9 de janeiro de 1984 foi publicada uma charge na qual o jornal procurava
demonstrar possíveis manobras estabelecidas pelo governo como forma de evitar o andamento da
votação sobre a realização de eleições diretas para presidente. Como demonstra a figura 1:

19

Figura 1
Em 12 de janeiro de 1984, o jornal publicou uma charge na qual o então presidente João
Batista Figueiredo é retratado conversando em uma mesa com outros personagens da política
brasileira, entre eles, José Sarney. O ex-presidente usa uma camisa com os seguintes dizeres: ŖNão
dá mais para segurar, minha mulher quer votarŗ. Sua fisionomia de constrangimento fica evidente
em seu sorriso trêmulo, mesmo ele tendo sido retratado de óculos escuros.
Os desenhos publicados no periódico também conclamavam a participação popular como
também faziam referência as suas ações. Como pode ser observado na figura 2:

19
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Figura 2
A charge fazia referência ao comício realizado, em 25 de janeiro de 1984, em São Paulo em
meio às comemorações do aniversário da cidade. É importante observar que em meio aos prédios
conhecidos da metrópole, como o edifico Copan e do Banespa, podem ser vistas urnas de votação.
Além disso, elas são representadas como algo tão grandioso que está presente por toda a cidade.
Neste contexto, as urnas representam a ação popular em busca pelo voto direto que começava a se
fortalecer nas grandes capitais do país.
Em 13 de março de 1984, o jornal publicou uma charge na qual um mapa do Brasil está em
um consultório médico. Os políticos que os examinam demonstram ter um posicionamento
contrário a realização da votação da emenda Dante de Oliveira, ao pedir que no momento de
examinar o pulmão, ao invés de se pedir que o paciente diga 33, os supostos doutores podem que
ele repita: 1988, 1990 ou 2000.
No dia 25 de abril foi publicada uma charge na qual um membro do PDS, partido de apoio
ao regime, faz uma reflexão sobre quem apoiar na votação sobre a emenda. Na parte inferior da
imagem está a seguinte reflexão: - Ser ou ser... eis a questão! Na madrugada do dia 25 para o dia 26
de abril foi realizada a votação da emenda Dante de Oliveira. O projeto não obteve votos
suficientes para sua aprovação.

20
Jornal do Brasil Ŕ 26/01/1984

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A charge publicada no Jornal do Brasil, trás um desenho em que seu conteúdo fazia uma
projeção política do que viria a acontecer. Ela retrata a imagem de Paulo Maluf cumprimentando
Tancredo Neves ao mesmo tempo em que segura um abacaxi. Na mesma imagem, Tancredo Neves
aparece com uma fisionomia desolada. Na legenda da charge está escrito: - Vai sobrar para mim!
Ela fazia referência a possível indicação de Tancredo Neves para disputar pela oposição às eleições
indiretas para a Presidência da República. Também é mostrado essa disputa causava temor nos
políticos, pois muitos temiam que depois da não aprovação da restituição do voto direto para eleger
o representante máximo do país, de ficarem marcados e de que o processo de abertura política e o
fim dos governos militares fossem adiados. Naquela época, Tancredo Neves foi o escolhido para
concorrer com Paulo Maluf, pois os partidos de oposição temiam que se o candidato fosse Ulysses
Guimarães poderia haver uma resistência maior por parte dos militares em deixar de vez o poder.
Naquela época, os chargistas, com o intuito de fazer com que as pessoas, mesmo aquelas
que não eram ativas na política, entendessem e refletissem sobre o que as charges mostravam o
movimento político ligado ao futebol. Em ambos os jornais foram publicadas charges com a
presença do jogador Sócrates, um dos membros da chamada Řdemocracia corintianař. O
movimento foi criado pelo time bicampeão paulista em 1982 e 1983, formado por jogadores como
Casagrande e Wladmir. Entre os seus objetivos estavam o estabelecimento de regras mais flexíveis
entre jogadores e comissão técnica, como o fim das concentrações. Como também, a luta pelo
direito do povo eleger seu presidente. Esta perspectiva fica evidente na figura 3:

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21

Figura 3

O jogador Sócrates, um dos integrantes mais ativos, tinha na época uma proposta para jogar
na Itália. Nos dizeres da charge estava a seguinte frase: - Só você se manda em 86???. O jogador
prometeu que se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, Sócrates continuaria jogando no
Corinthians. No entanto, como a emenda recebeu votos suficientes, o jogador foi para a
Fiorentina.
A perspectiva do estabelecimento de questionamentos sobre o processo político e a
campanha das Diretas através de narrativas sobre as ações políticas do cotidiano se insere na
perspectiva defendida por Michel De Certau de que estas relações se caracterizam como meios de
resistência a uma modelo vigente de sociedade ŖAs práticas cotidianas estão na dependência de um
grande conjunto, difícil de delimitar e que a título provisório pode ser designado com o dos
procedimentos. São esquemas de operações e manipulações técnicasŗ.22
Dessa forma, ao utilizar o cotidiano das manifestações como elemento condutor das
narrativas, seus autores estabelecem um espaço de críticas sobre o comportamento político
brasileiro. A utilização do humor com o propósito de criticar a sociedade se faz presente na
imprensa brasileira desde o século XIX, por exemplo, através das charges. Segundo Isabel Lustosa,

21
Jornal do Brasil Ŕ 30/04/1984
22
DE CERTAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes do fazer. 3.ed. Petrópolis: Vozes,1998.p.109.
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os recursos humorísticos são empregados como uma forma de afirmação de determinada posição
no campo social e político. Ao invés de se usar palavras ofensivas se poderiam abordar as mesmas
temáticas por meios desenhos e jogos de palavras.23
Segundo Roger Chartier, as praticas socais devem ser analisadas pelo pesquisador por meio
do estudo dos paradigmas predominantes em uma determinada comunidade de leitores.24 Assim
como, a análise acerca dos próprios gêneros literáriosn neste caso os periódicos. Neste contexto, o
autor também aponta a importância de se pesquisar as representações que são estabelecidas a partir
do contato do indivíduo ou da coletividade com os conteúdos impressos.

3 - Algumas considerações

Ao longo da comunicação pode-se perceber que em alguns momentos o Jornal do Brasil


adotou uma postura de oposição e publicava, quase diariamente, desenhos que mostravam sua
participação ativa pela aprovação da emenda Dante de Oliveira. A medida que a história dessa
campanha mostrou um maior engajamento popular a favor da emenda Dante de Oliveira, o jornal
em questão, abriu espaço para que suas charges criticassem o governo e o modo como esse assunto
era tratado pelos membros do Congresso.
Desta forma pode-se concluir que as charges publicadas em jornais procuram seguir as
praticas sociais vivenciadas por seus leitores. A partir de 1984 toda vez que a imprensa se
posicionou a favor de suas convicções políticas e não observando o posicionamento de seus leitores
ela teve que recuar e mudar seus parâmetros. Como aconteceu nas eleições de 1989.

23
LUSTOSA, Isabel. O texto e o traço: a imagem de nossos primeiros presidentes através do humor e da caricatura. In:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.).O Brasil Republicano:o tempo do liberalismo excludente:
da Proclamação da República a Revolução de 1930. 3.ed. v.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2008. p.310.
24
CHARTIER, Roger. Textos, Impressão, Leituras. In: In: HUNT, Lynn. (Org.). A Nova História Cultural. 2.ed.São
Paulo: Martins Fontes,2001.p.237-238.

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Referências

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campanha das Diretas. Lua Nova, São Paulo, 76, p. 169-196, 2009.

BRASIL. Ato Institucional nº2. Promulgado em 27 de outubro de 1965. Disponível em:


http://www2.camara.gov.br/legin/fed/atoins/1960-1969/atoinstitucional-2-27-outubro-1965-
363603-norma-pe.html . Acesso em 11 de set.2011.

BRASIL. Constituição de 1967. Promulgada em 24 de janeiro de 1967. Disponível


em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao67.htm. Acesso em
11 set.2011.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. Bauru-SP: EDUSC, 2004.

CHARTIER, Roger. A história cultural entre praticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil;
Lisboa: DIFEL, 1990

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DELGADO, Lúcilia de Almeida Neves (2007). Diretas-Já: vozes das cidades. In: FERREIRA, Jorge;
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JEANNENY, Jean-Nöel. A mídia. In: RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro:
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Jornal do Brasil Ŕ 9/01/1984

Jornal do Brasil Ŕ 12/01/1984

Jornal do Brasil Ŕ 26/01/1984

Jornal do Brasil Ŕ 14/03/1984

Jornal do Brasil Ŕ 25/04/1984


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Jornal do Brasil Ŕ 26/04/1984


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Republicano:o tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República a Revolução de 1930. 3.ed.
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SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no
Brasil, 1974-1975. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. (Orgs.). O tempo
da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX.3.ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira,2009. p.244-282..

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Castelo a Tancredo. São Paulo: Paz e Terra, 1988.

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NARRAR E NÃO NARRAR: IMPLICAÇÕES ÉTICAS


Marcus Vinicius de Moura Telles1

Resumo
Narrativas, bem o sabem os teóricos das ciências humanas, possuem como uma de suas
características a atribuição de sentido. A questão do quanto esta atribuição consiste, na verdade, em
uma imposição da forma sobre o conteúdo Ŕ ou, antes, da imposição de um Ŗconteúdo da formaŗ
Ŕ traz à tona o problema que ora nos ocupa. O seguinte par de perguntas pode expressá-lo: narrar
diz mais respeito ao Mesmo ou ao Outro? É possível narrar de maneiras mais responsáveis
eticamente? Nossa discussão, que não pretende dar respostas definitivas, tem como base alguns dos
textos clássicos sobre o assunto.

Introdução: A inevitabilidade da narração


A narração é uma atividade humana por excelência. David Carr, em Time, Narrative,
andHistory, argumenta que Ŗação, vida e experiência histórica são... estruturadas narrativamente,
independentemente de suas apresentações em forma literária, e... esta estrutura é prática antes de
ser cognitiva ou estéticaŗ. Isto porque não pode haver experiência humana vazia de retention
(memória primária) e de protention(expectativa primária). A experiência assume formas estendidas
temporalmente, de modo que o futuro, o presente e o passado determinam-se mutuamente como
partes de um todo. Assim, as narrativas são a forma adequada para a representação da realidade:
mais especificamente, da realidade humana. Tal conclusão não vale apenas para o nível individual,
mas também para o social, do qual o passado histórico é parte. A história particular do indivíduo
precisa ser parte de um contexto narrativo mais amplo para possuir sentido. Este contexto narrativo
é parte essencial não apenas da ação, mas da própria identidade do indivíduo (CARR, 1991:
passim).

1
Mestrando em História Social Ŕ UFRJ. Bolsista da CAPES
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Quando tratamos da historiografia, uma lógica semelhante se aplica. Em 1965, Arthur


Danto argumentava que a explicação histórica trata necessariamente de mudanças. Este tipo de
explicação, dizia ele, Ŗconsiste em preencher o meio entre os pontos extremos temporais de uma
mudançaŗ (2007: 233).Por isto, para Danto, a explicação histórica assume necessariamente forma
narrativa. Um dos argumentos comuns por parte daqueles que buscaram refutar Danto consistiu
na insistência de que, muitas vezes, o objetivo de um trabalho historiográfico é explicar porque as
coisas não mudaram: explicar permanências, e não mudanças. Rolf Gruner, por exemplo, argumenta
que Ŗexistem obras de história que não seguem um padrão cronológico e, consequentemente, não
podem ser narrativosŗ(ELY et. al., 1967). Nossos exemplos a seguir buscarão mostrar que: (a)
mesmo quando não se pretendem narrativos, os textos históricos assumem tal forma; e (b) autores
como Danto e Gruner levaram em conta Ŕ não podiam levar Ŕ a dimensão do enredo presente em
toda narrativa; e que esta dimensão faz com que mesmo a tentativa de não narrar produza sentido.
Em 1967, ao analisar o discurso historiográfico, Barthes (2004: 163-180) mencionou a
Ŗmorteŗ da narração histórica. O veredito não surpreende, já que as primeiras geração annalistes
associaram narrativa à história événementielle, focada nos acontecimentos singulares, positivista
(BLOCH, 2001; FEBVRE, 1989: 49). O diálogo com as ciências sociais, porém, permitiria a
elaboração de uma história não necessariamente narrativa Ŕ projeto que, mais tarde, na avaliação
de Lawrence Stone em 1979, dava lugar a um Ŗrevival da narrativaŗ. Porém, autores como Paul
Ricœure Philippe Carrard, dentre outros, lançaram nova luz sobre a questão. Em sua análise d'O
Mediterrâneo, Ricœurmostra que Ŗjuntos, os três níveis da obra constituem uma quase-intriga...
dividida em muitas sub-intrigasŗ, a saber, o Ŗdeclínio [do Mediterrâneo] como herói coletivo na
história mundialŗ (1994: 304-306).Ricœur fala também em quase-personagem e quase-acontecimento.
No caso dos textos da Ŗterceira geraçãoŗ dos Annales, Philippe Carrard (1992: 47) identifica um
padrão de escrita na divisão da longa duração em um certo número de fases, que são caracterizadas
de forma sucessiva e postas em conjunto para constituir uma narrativa. Trata-se de uma Ŗnarrativa
de estágiosŗ, não de eventos; mas, ainda assim, de uma narrativa.
Cabe, de qualquer forma, uma concessão. Para P. Burke, a caracterização de Ricœur dilui o
conceito de narrativa (1992: 329). É uma afirmação a se levar em conta, especialmente se notarmos
que, em 2000, Ricœur acentua ainda mais sua posição: Ŗhoje, eu tiraria a cláusula Řquaseř e
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consideraria as categorias narrativas em questão como operadores de pleno direito no plano


historiográfico...ŗ (2007: 256, n12). Não se trata, porém, de desacordarmos do filósofo francês, mas
de não levar longe demais sua afirmação: assim, se podemos afirmar, com Ricœur, que a história
não deixa jamais de ser narrativa, podemos, com Burke, reconhecer a existência de diferentes
Ŗgraus de narrativaŗ.
De mãos dadas com a inevitabilidade da narração, anda a inevitabilidade da atribuição de
sentido Ŕ questão que Danto, por exemplo, não se ocupou. Em texto publicado em 1972, The
StructureofHistoricalNarrative, HaydenWhite examinou a historiografia de Ranke, Tocqueville e
Burckhardt. Em seus termos, a narrativa de Ranke pode ser descrita como Ŗprocessionáriaŗ, já que
dispõe linearmente seus eventos. Não é, portanto, de interesse para nosso argumento. Já
Tocqueville, em Da Democracia na América, está, segundo White, Ŗobviamente mais preocupado em
figurar uma estrutura do que em descrever um processoŗ, motivo pelo qual desenvolve uma
Ŗnarrativa estruturalistaŗ. Mas o caso de A Cultura do Renascimento na Itália, de Burckhardt, é ainda
mais extremo. Como nota White, o livro Ŗparece não possuir estória, enredo, e nem mesmo um
argumentoŗ. Porém, o livro tem, sim, Ŗuma estória de um espécie, o tipo de estória que é todo
meio, que incidentalmente é reconhecível como uma história de um certo tipo, o tipo de história
que nós associamos às estruturas de enredo irônicasŗ. O significado de uma estória deste tipo
deriva exatamente da Ŗfrustração das nossas expectativas de estórias românticas, cômicas ou trágicas
e da sua negação de que teorias possam ser combinadas com evidência para produzir conclusões
com qualquer autoridade convincente cientificamenteŗ. Por isso, White define a narração deA
Cultura do Renascimento na ItáliaŔ outrora cogitado como não sendo dotado de dimensão narrativa
Ŕ como impressionista(2010: 116-8).

O Mesmo, o Outro e a transferência

Eis, portanto, duas inevitabilidades: a de narrar; e a de produzir sentido ao fazê-lo.Sentido


que, neste caso, diz respeito à narrativa como um todo, utilizando para isso os instrumentos míticos
fornecidos pela sociedade em que a comunicação se dá (WHITE, 1994; 1995). A questão do
quanto esta atribuição consiste, na verdade, em uma imposição da forma sobre o conteúdo Ŕ ou,
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antes, da imposição de um Ŗconteúdo da formaŗ Ŕ traz à tona o problema que ora nos ocupa. O
seguinte par de perguntas pode expressá-lo: narrar diz mais respeito ao Mesmo ou ao Outro? É
possível narrar de maneiras mais responsáveis eticamente?
É possível pensar estas questões à luz do que DominickLaCapra chamou, em diálogo com a
psicanálise, de transferência: a repetição/deslocamento do Ŗobjetoŗ de estudo no discurso que a ele
se refere. A ilusão Ŕ mais pressuposta que teorizada Ŕ de que a própria voz possa estar ausente da
narração, de que a narração possa ser um meio neutro por meio do qual as próprias coisas falam,
reside em um dos extremos da negação do processo transferencial. Há, porém, um outro extremo.
Com o advento do pós-modernismo, tornou-se frequente a argumentação segundo a qual o
ato narrativo consiste em uma imposição da própria voz sobre a voz do Outro. Narrar, neste caso,
diria respeito unicamente ao Mesmo. Keith Jenkins, um dos mais destacados defensores desta
tendência, considera que Ŗa história é basicamente um discurso em litígio, um campo de batalha
no qual pessoa(s), classes e grupos constroem autobiograficamente interpretações do passado para
agradar a si mesmas. Não há história definitiva fora dessas pressões, qualquer consenso só sendo
alcançado quando vozes dominantes podem silenciar outraspela força manifesta ou pela incorporação
dissimuladaŗ (JENKINS, 2004: 23; grifos nossos).
Ginzburg lembra-nos (em outro contexto) que Ŗpor mais de quatro séculos a história
acompanhou e facilitou a conquista do mundo por parte da Europa em primeiro lugar, e depois
pelos Estados Unidosŗ (2001: 17). A argumentação de JenkinsŔ acima referidaŔ certamente
exemplifica uma descrença de que a historiografia desvencilhar-se de tal fardo. Por outro lado,
como mencionaremos a seguir, as tentativas de fazê-lo frequentemente incluíram novas abordagens
quanto à escrita da história.
Podemos selecionar dois exemplos nos quais dois problemas com o qual lidamos no
presente texto se manifestam com força especial: (a) a questão da transferência, tal como apontada
por LaCapra; e (b) o desejo de dar voz ao Outro.
O primeiro exemplo está no diálogo estabelecido entre história e antropologia a partir dos
anos 1970. Mencionaremos, dentro dele, um exemplo mais específico: o do campo de estudos que,
posteriormente, se consolidaria sob o nome de micro-história. Como aponta Henrique Espada Lima,
Ŗa crítica simultânea ao estruturalismo e ao funcionalismo empreendida no contexto inglês a partir
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da década de 1960 havia sido influenciada pela expansão da antropologia em direção às sociedades
ditas complexasŗ, graças, por exemplo, ao processo de descolonização africano. ŖUm mundo em
transformação diante do qual os instrumentos analíticos tradicionais da antropologia Ŕ moldados
para compreender o que se julgava serem os elementos estáticos da sociedade Ŕ encontravam
limites difíceis de serem contornadosŗ. Diante de problema semelhante encontravam-se os
historiadores, por definição ocupados do estudo de processos diacrônicos. No caso de historiadores
ligados à revista QuaderniStorici (ponto de encontro dos futuros micro-historiadores), o objeto
central de estudo eram as sociedades camponesas da Europa moderna. Antropólogos e
historiadores destes exemplos citados, ambos enfrentavam problema análogo com seus objetos:
Ŗtanto umas quanto outras tiveram de enfrentar em determinado momento de sua história a
imposição de um novo modelo, exterior e centralizador, que iria repropor completamente desde
suas relações econômicas até seus valores morais e culturaisŗ. Assim, prossegue Espada Lima, Ŗé na
trilha desse debate que grande parte das formulações da micro-história tentava encontrar os termos
de seu diálogo com a disciplina [antropologia]ŗ (ESPADA LIMA, 2006: 108-109).
Daí que Ginzburg, ao relembrar sua trajetória dentro da micro-história, identifique como
elemento central na formação deste campo de estudos a rejeição ao etnocentrismo ocidental.
Quanto ao assunto que nos ocupa, é importante ressaltar o quanto autores como o próprio
Ginzburg buscaram introduzir em seus escritos modos de narrativa menos fechados. ŖAs hipóteses,
as dúvidas, as incertezas tornavam-se parte da narração; a busca da verdade tornava-se parte da
exposição da verdade obtida (e necessariamente incompleta)ŗ(GINZBURG, 2007: 265).
O segundo exemplo encontra-se nas dificuldades postas pelo Holocausto à representação;
mais especificamente, aqui, na dificuldade de dar voz ao outro na narração.
O problema, muitas vezes, é tratado na forma de uma negatividade absoluta do evento. Um
caso extremo é o Jean-François Lyotard:Auschwitz, para ele, mostra Ŗa falsidade dessa filosofia que
pretendia dar um sentido unitário e definitivo aos destinos do Ocidente, a filosofia de Hegelŗ.
Afinal: ŖTudo o que é real é racional, tudo o que é racional é real: Auschwitz refuta a doutrina
especulativa. Quando nada, esse crime, que é real, não é racionalŗ (GUALANDI, p. 22). Assim
concebida, a problemática envolve o pressuposto de que o evento seja dotado de uma magnitude
tal que se torne irrepresentável.
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É evidente que tal irrepresentabilidade apresenta-se, em outros termos, nas próprias falas
das vítimas. Leiamos Primo Levi:

Assim como nossa fome não é uma sensação de sentir falta de uma refeição, também a
nossa maneira de estar com frio tinha necessidade de uma nova palavra. Nós dizemos
'fome', nós dizemos 'cansaço', 'medo', 'dor', dizemos 'inverno' e elas são coisas diferentes.
Elas são palavras livres, criadas e usadas e usadas por homens livres que viveram em
conforto e sofrimento em suas casas. Se os Lagers tivessem durado mais, uma nova
linguagem, áspera, teria nascido; e apenas esta linguagem poderia expressar o que significa
labutar o dia todo no vento, com a temperatura abaixo de zero, vestindo apenas uma
camisa, cueca, camisa e calças de pano, e com nada no corpo além de fraqueza, fome e
conhecimento de que o fim se aproxima (LEVI, 1959: 144).

Outros autores, porém, buscam a construção de narrativas que lidem com o elemento
irrepresentável deste evento traumático de maneiras mais construtivas do que permitido por
posições como a de Lyotard Ŕ e que se posicionem de maneira mais eticamente responsável diante
de constatações de autores como Levi. As propostas do historiador do Holocausto Saul
FriedländerŔ também afetado pessoalmente pelo trauma, embora de maneira menos direta (1979)
Ŕ exemplificam uma das várias tentativas de lidar com o problema. Nos dois volumes de Nazi
GermanyandtheJews2, Friedländer buscou Ŕ conforme anunciara no primeiro deles Ŕ Ŗjustapor níveis
inteiramente diferentes da realidade (...) com o objetivo de criar um senso de estranhamento que se
oponha à nossa tendência de 'domesticar' este passado em particular e atenuar seu impacto por
meio de explicações inequívocas e interpretações padronizadasŗ (1997: 5). Esta tentativa é a
culminação de uma longa trajetória de reflexões sobre o assunto. Busquemos sintetizar suas visões a
respeito. Um primeiro ponto (que escapa parcialmente à nossa discussão no momento) reside na
estreita relação entre história e memória, especialmente para aqueles que tratam de eventos
traumáticos do século XX (FRIEDLÄNDER, 1979; 1993). Há, porém, outras dimensões. Como o
Holocausto é um passado não-domesticado, afirma Friedländer, o historiador se depara com um
campo de projeções, de modelações e remodelações inconscientes, de uma autêntica situação
transferencial. A perlaboração (workingthrough)deste evento passa pela necessidade de se buscar o
equilíbrio entre o entorpecimento protetor e a emoção disruptiva. Isto implica, para o historiador,

2
São eles: The Years of Persecution (1933-1939) e The Years of Extermination (1939-1945). Em 2008, último deles recebeu o
prêmio Pulitzer. Sua repercussão no meio historiográfico é considerável: em 2009, por exemplo, a HistoryandTheory
publicou o fórum On Saul Friedländer‟s ŘThe YearsofExterminationř.
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o imperativo de prestar conta o mais verdadeiramente que os documentos e testemunhos


permitam, mas sem render-se à tentação de pôr pontos finais no assunto. Em termos narrativos,
isto se torna possível tornando-se a voz do comentarista audível, produtora de dissonâncias,
multiplicadora de pontos de vista e passível de leitura crítica. Uma historiografia de tal tipo deve
permitir a integração das memórias das vítimas às abstratas decisões político-administrativas, sem
que elas se tornem um obstáculo para Ŗhistoriografia racionalŗ; e, por sua função analítica, deve
buscar conceitos que expressem, ainda que inadequadamente, o colapso de todas as normas e as
dimensões do sofrimento intratáveis para a historiografia tradicional (FRIEDLÄNDER, 1994: 256-
263; 2000: passim).Nazi GermanyandtheJewstêm evidente atenção a todas estas preocupações teóricas.
Soluções deste tipo lembram a diferenciação avançada por Mikhail Bakhtin entre romances
monológicos e dialógicos. Não por coincidência: é explícito o quanto autores como Ginzburg e
LaCapra, aqui discutidos, foram influenciados por este autor. Em Problemas na Poética de Dostoiévski,
Bakhtin considera que este autor Ŗpossuía um dom extraordinário para ouvir o grande diálogo de
sua época, ou, mais precisamente, para ouvir sua época como um grande diálogo, para detectar nela
não apenas vozes individuais, mas precisamente e predominantemente a relaçãodialógicaentre vozes,
sua interação dialógica.No mundo de Dostoiévski, mesmo a concordância retém seu caráter dialógico,
isto é, nunca leva a uma fusão de vozes e verdades em uma única verdade impessoal, como ocorre
no mundo monológicoŗ(BAKHTIN, 1999: 90-95).
No texto Narrativa e Fronteira Cultural, Felipe Charbel3 trata de três diferentes abordagens
em relação à inevitável adoção de procedimentos de mediação narrativa nas ciências humanas. A
primeira, a narrativização do real, consiste na Ŗapresentação encadeada de fragmentos do mundo,
como se estes carregassem Řem-siř uma estória auto-evidente e trazida à tona pelo pesquisadorŗ. O
segundo é o dialogismo, que mencionamos no parágrafo anterior. Mas há uma terceira proposta, que
consiste na recusa da narrativa. Charbel exemplifica esta postura com o livro O Local da Cultura, de
HomiBhabha. Na introdução, cita Charbel, Ŗo leitor é obrigado, sem convite prévio, a mergulhar
num fluxo contínuo de idéias, que parecem se sobrepor sem que haja nexos causais evidentesŗ.

3
Muito do que desenvolvemos aqui é,de maneiras diversas, debitário do contato com o prof. Charbel, que orienta
nossa pesquisa no PPGHIS da UFRJ. O tema do dialogismo foi bastante explorado em seu curso ŖA historiografia
literária no século XXŗ.
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ŖTerminada a leitura, o texto se revela o próprio movimento: não há cadeia, apenas seqüência de
idéias, que se superpõem e evidenciam as fraturas da existência nas Řmargens da modernidadeřŗ
(TEIXEIRA, 2005: 8-9).
Outro exemplo é a proposta de Hayden White para a narração do Holocausto. Trata-se,
nesse caso, de um Ŗdiscurso negador da distânciaŗ entre sujeito e objeto, que, devido a isto, termina
por rejeitar o processo transferencial discutido por LaCapra. Para White, os modos modernistas de
representação ofereceriam melhores possibilidades de representar a realidade do Holocausto, pois,
de acordo com a caracterização do modernismo literário por Auerbach, as próprias concepções de
história e de realismo haviam mudado. Seguindo Berel Lang, sugere a adoção de uma escrita
intransitiva (intransitive writing), na qual o autor não escreve para prover acesso a algo independente
de si e do leitor: Ŗescreve a si mesmoŗ. No modernismo, o verbo Ŗescreverŗ, afirma (seguindo
Barthes), não conota nem uma relação ativa nem uma passiva, mas uma voz intermediária
(middlevoice). De qualquer forma, como aponta Carroll: ŖWhite não nos deu muito uma idéia de
como seria uma narrativa histórica anti-modernistaŗ, pois Ŗtodos os seus exemplos são ficcionaisŗ.
Para Paul, porém, críticas assim Ŗperdem o pontoŗ, pois, em sua visão, Ŗo que White está
apontando não é a necessidade dos historiadores de usarem estas formas de escrita, mas exatamente a
importância de representações não-historiográficas.
Em todos os exemplos citados até o momento, o que está em jogo é tentativa de se construir
alternativas éticas em relação à inevitável autoridade da voz daquele que narra. É com isto em mente
que encerraremos. Para fazê-lo, cabe trazer à tona a bastante conhecida tese de PaulRicœur, exposta
nos três volumes de Tempo e Narrativa, publicados entre 1983 e 1985. Partindo da hipótese de base
de que Ŗo tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativoŗ,
Ricœur defende a tese de que o próprio sentido da operação da configuração constitutiva da
tessitura da intriga, ou mimese II, resulta de sua posição intermediária a mimese I e a mimese III, que
constituemseu montante e sua jusante. A mimese II extrai sua inteligibilidade de sua faculdade de
mediação, que é a de transfigurar o montante em jusante por seu poder de configuração. A
trajetória hermenêutica, portanto, percorre o destino de um tempo prefigurado (mimese I) em um
tempo refigurado(mimese III)pela mediação de um tempo configurado (mimese II) (1994: 85-87).Daí
que, como Ricoeur desenvolveria posteriormente, exista um pacto tácito entre historiador e leitor,
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com expectativas deste quanto àquele. ŖDiferentemente do pacto entre um autor e um leitor de
ficção que se baseia na dupla convenção de suspender a expectativa de qualquer descrição de um
real extralinguístico e, em contrapartida, reter o interesse do leitor, o autor e o leitor de um texto
histórico convencionam que se tratará de situações, acontecimentos, encadeamentos, personagens
que existiram realmente anteriormente, isto é, antes que tenham sido relatados, o interesse e o
prazer de leitura resultando como que por acréscimoŗ. A própria natureza deste pacto, portanto,
espera do historiador o uso de sua autoridade.
Para LaCapra, Ŗuma das metas da historiografia (incluindo historiografia como
perlaboração) é uma tentativa de devolver às vítimas, no máximo possível, a dignidade de que eles
foram privados por seus opressores. Este é um componente muito importante da compreensão
histórica: tentar, simbolicamente, compensar por certas coisas que não podem nunca ser
totalmente compensadas (...). Pode-se mencionar a este respeito as tentativas de se elaborar
narrativas que não são simplesmente narrativas redentoras mas também narrativas mais
experimental, auto-questionadorasŗ (2001: 78).
Segundo Pierre Bourdieu, Ŗquando se trata do mundo social, falar com autoridade significa
fazer: se, por exemplo, digo com autoridade que as classes sociais existem, contribuo imensamente
para fazer com que existamŗ (2004: 71; grifo nosso).Uma vez que não há como recusar a autoridade
(do historiador, do etnólogo), não há, também, como não fazer algo com a voz do Outro. A recusa
da narrativa, também ela, consitui um uso específico (e bastante legítimo) da autoridade daquele
que narra, uma vez que também produz sentido.
Mas esta escolha, como qualquer outra, deixa algo de lado. Podemos exemplificar com dois
casos que, da perspectiva de um indivíduo ocidental, tratam de uma alteridade extrema: os
saramakas venezuelanos e os chineses. No primeiro caso, relembremos a resenha feita pelo
historiador Eric Hobsbawmao livro Alabi´s World, de R. Price. O marxista reconhece a capacidade
do livro de Ŗtransmitir com nitidezŗ a incompreensão entre europeus e nativos; porém, em sua
visão, não ajuda o leitor a Ŗpenetrar palavras existenciais diferentes das suas próprias e evocar sua
texturaŗ, com pretendia Price ao escrevê-lo. ŖÉ claroŗ, afirma Hobsbawm, Ŗque os saramakas
contemporâneos também falam realmente por si mesmos, mas é seguro dizer que essas palavras por
si mesmas diriam muito pouco ao leitor desinformado, sem o cenário e o comentário fornecidos
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pelo autorŗ (HOBSBAWM, 1998: 212). O segundo encontra-se em artigo recente da


HistoryandTheory, no qual Zhang Longxi discute quatro abordagens tradicionais pelos quais os
historiadores ocidentais estudaram a China: por um lado, teorias do Ŗimpacto e resposta,ŗ da
Ŗmodernizaçãoŗ e do Ŗimperialismoŗ, cuja visão é a dos outsiders; por outro, a proposta de Paul
Cohen de estudá-la pela perspectiva de um insider. A conclusão de Longxié que nem os insiders nem
os outsiders têm acesso privilegiado em suas tentativas de compreender qualquer aspecto da China
(2010, p. 68). Para ele,

Compreender a China e a história chinesa requer a integração de diferentes visões


oriundas de diferentes perspectivas, mas tal integração não é uma simples justaposição das
visões de insiders e outsiders; é mais um ato de interação e iluminação mútua do que a
junção de acadêmicos chineses nativos e sinólogos ocidentais.

Eis, portanto, nossa hipótese conclusiva.Há uma violência inevitável em relação à voz do Outro,
mas a recusa dessa violência impede ao historiador a possibilidade de uma diálogo mais compreensivo (e, por
isso, menos violentador) entre seu leitor e seus Outros, no espaço e no tempo. Pequenas violências, quando
autoconscientes e apresentadas ao leitor como tal, talvez sejam mais hábeis a auxiliar na prevenção de
violências maiores, causadas pela intolerância típica do desconhecimento do Outro.

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VULNERABILIDADE E CONTROLE SOCIAL NA CIBERCULTURA:


A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA EM DEBATE

Profª Drª. Marilene Rosa Nogueira da Silva1


Resumo:
Quem fiscaliza quem e como? As velhas matrizes jurídicas centradas no Estado Nacional ainda
conseguiriam enquadrar os novos Ŗbandidos digitaisŗ, ou cibercriminosos? Será que o complexo
carcerário disponível estaria capacitado para isolar o pirata pós-moderno? A prisão que surgiu na era do
legislador como um lugar da punição e recuperação pelo trabalho, ainda seria a solução final para os
tempos da desterritorialização virtual. Este texto, nos limites de uma comunicação, se propõe discutir as
questões que emergem a partir das condições de possibilidades da sociedade de controle no ciberespaço,
aqui entendido como um espaço outro da heterotopia.
Palavras chaves: heterotopia; punição; controle; vulnerabilidades

Abstract:

Who oversees whom and how? The old state-centered legal matrices National could still fit the new
cybercriminals? Does the available prison complex would be able to isolate the pirate post-modern? The
prison was discovered in the legislature as a place of punishment and rehabilitation for work, would still
be the final solution to the virtual time of dispossession?These issues present new punitive practices that
emerge from the conditions of possibilities of the society of control.
Keywords: heterotopia,; punishment; control; vulnerabilities

1
.Professora Adjunta do Departamento de História e Membro efetivo desde 1996 do Programa de Pós Graduação de História
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro onde atualmente é Coordenadora Adjunta; Coordenadora do Laboratório do
Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais- LEDDES/UERJ; líder dos Grupos de Pesquisa do CNPq: Diferenças e
Desigualdades e Campo de Experimentação: Michel Foucault e a História. Desenvolve projeto O lugar da Punição a
construção do discurso jurídico politico sobre a prisão no Brasil financiado pela Faperj. email-mrns1950@gmail.com.
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Criar meu web site Fazer minha home-page Com quantos gigabytes faz uma
jangada Um barco que veleja .Que aproveite a vazante da infomaré. Que leve um
oriki do meu orixá Ao porto de um disquete de um micro em Taipé Eu quero entrar
na rede. Promover um debate Juntar via Internet Um grupo de tietes de Connecticut
Gilberto Gil2

A música que abre esse texto, lançada em 1997 apresenta a emergência das novas
tecnologias e seus efeitos de poder. Um dos versos parodia "Pelo telefone", de Donga 3considerado
o primeiro samba -maxixe, gravado em 1916, onde diz "Que o chefe da polícia manda avisar /Que
lá na praça Onze tem uma roleta para se jogar" Os ecos dessa canção identifica o artista engajado
no político, agora Ministro da Cultura, um dos principais defensores da liberdade digital e do
software Livre no Fórum Social Mundial em 2005.
Falar de Gil e de seu engajamento nos remete aos enfrentamentos à ditadura militar no Brasil
dos loucos anos sessenta e setenta do século XX. Naquele momento Marx e Engels, se apresentava
como a matriz discursiva que formava, informa e conforma uma ação política. Afinal, Tudo o que era
sólido se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e os homens finalmente são levados a enfrentar(...)
as verdadeiras condições de suas relações com seus companheiros humanos4 . E o comunismo era o espectro
que assombrava a Europa no dizer do Manifesto de 1848. Não havia nada de virtual na afirmação, ao
contrário, esta se assentava na considerada hiper realidade violenta do capitalismo que produzia em
doses gigantescas a riqueza concentrada nas mão de poucos e pobreza para a maioria. Essa equação
perversa propiciaria as condições de possibilidades da revolução que destruiria o capitalismo. Sabemos
que a utopia comunista não oconteceu, ao contrário, o capitalismo em mutação constante, torna-se
cada vez mais forte, embora diluído em fractais, absorve e reproduz, naturalizando formas cada vez

2
.Gilberto Gil- Pela Internet- http://letras.terra.com.br/gilberto-gil/68924/ acesso 18/03/2011 às 23 hrs
3
-Pelo Telefone é considerado o primeiro samba a a ser gravado no Brasil segundo os registros da Biblioteca Nacional O
samba de Ernesto Joaquim Maria dos Santos ( Donga) e Mauro de Almeida, em 27 de novembro de 1916 como sendo
da autoria de Donga.Composição famosa e controversa, que por ter sido o primeiro samba gravado na história musical
do Brasil, e por ter sido concebido em uma casa famosa, daqueles tempos, a casa da Tia Ciata, freqüentada por grandes
músicos da época, Por ter sido um grande sucesso e devido ao fato de ter nascido em uma roda de samba de
improvisações e criações conjuntas, vários foram os que reivindicaram a autoria da composição.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pelo_Telefone, acesso em 6/11/2011, às 23 :00
4
.KARL, Marx; ENGELS, Friedrich. O Manifesto Comunista. p.12
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mais sofisticadas de exploração, de eliminação dos nomeados consumidores falhos, aqueles cujos meios
não estão à altura dos desejos, segundo Zigmunt Baumant. 5
A busca insaciável das tecnologias conforma os novos tempos da globalização marcado pela
obsolência cotidiana . O chip redefine a comunicação, produz saber, produz poder, produz discurso. A
internet desenvolveu-se a tal ponto que gigantescos bancos de dados são criados com uma quantidade
de informação sem precedentes, com todos os riscos de vazamentos, de apropriações indevidas desse
novo capital. A emergência dos internautas, como novos atores sociais, estimula os debates sob o
controle e normalização do acesso, navegação e produção de informação. Tão importante quanto a
navegação e a participação na web,é a necessidade de identificar as formas e os níveis de
inclusão/exclusão. Melhor dizendo, iluminar as formas de inserção de nativos, imigrantes,
desconectados ou passivos na matrix.
O historiador, como os demais cientistas sociais, precisa instrumentalizar-se para lidar com as
facilidades e os perigos das libertárias práticas experimentadas no espaço outro da internet. Como
problematizar a complexa noção de autor? Como armazenar e, principalmente, como proteger dados de
hackers em sua destruição criadora? Ou ainda, quais seriam os limites entre público e privado.?
Anarquismo ou um novo sentido para o termo socialismo? Velhos conceitos tentam enquadrar as
subversões ou os arranjos inovadores de compartilhamento e colaboração típicos dos coletivos
conectados pela internet. Porém, mais que artefato tecnológico inovador, estabeleceu-se um novo
espaço e tempo de interação social, nos quais emergem diferenciadas sociabilidades que não se ajustem
as classificações tradicionais. Estamos experimentando uma nova episteme.
Aproprio-me da noção de Heterotopia, apresentada por Foucault em 1966, primeiro em
palavras e as Coisas e mais tarde em conferencia pronuncianda na Tunísia, publicada em 1984, para
pensar a cibercultura. As heterotopias, em contraposição à utopia, seriam lugares diferentes, uma
espécie de contestação ao mesmo tempo mítica e real do espaço onde vivemos. Estas caracterizariam o
mundo contemporâneo, substituindo o hierárquico, conjunto de lugares da Idade Média e o
envolvente Ŗespaço de localizaçãoŗ inaugurado por Galileu. O filósofo-historiador concentra sua
atenção numa outra espacialidade da vida social, num espaço externo- o espaço efetivamente vivido ( e

5
.BAUMANT, Zigmunt. Os estranhos da era do consumo In O mal estar da pós modernidade: Rio de Janeiro: Jorge
Zahar,1998.p.57.
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socialmente produzido) contra localizações, ou seja, lugares que estão fora de todos os lugares
localizáveis embora estejam presentes em todas as culturas:
“ A nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do espaço. Nós vivemos na
época da simultaneidade: nós vivemos na época da justaposição, do próximo e do
longínquo, do lado-a-lado e do disperso. Julgo que ocupamos um tempo no
qual a nossa experiência do mundo se assemelha mais a uma rede que vai
ligando pontos e se intersecta com a sua própria meada do que propriamente a uma
vivência que se vai enriquecendo com o tempo. ( grifos meus)6
A cibercultura emerge, portanto, como a utopia efetivamente realizada, que se por um lado,
revoluciona a pesquisa, por outro, produz novos problemas ao desdisplinarizar a comunicação. O que
parecia ficção se transforma numa nova realidade ou, num peculiar realismo virtual que rompe com as
noções formais e formalizadas de tempo e espaço , reinventa instituições, antes delimitadas por muros
que fazia a mediação entre o dentro e o fora, produz e sofistica a exploração sem limites dos
trabalhadores/as. Da sociedade disciplinar, organizadora de grandes meios de confinamento, vemos se
modular a sociedade de controle, descentrada, mas eficientemente operada por máquinas de
informação e por computadores. No dizer de Deleuze:7
Nas sociedades de controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e
nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades
disciplinares são reguladas por palavras de ordem (tanto do ponto de vista da
integração quanto da resistência). A linguagem numérica do controle é feita de
cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição. Não se está mais diante do
par massa indivíduo. Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas
tornaram-se amostras, dados, mercados ou “bancosŗ8.
Quem fiscaliza quem e como? As velhas matrizes jurídicas centradas no Estado Nacional ainda
conseguiriam enquadrar os novos Ŗbandidos digitaisŗ, ou cibercriminosos? Será que o complexo
carcerário disponível estaria capacitado para isolar o pirata pós-moderno? A prisão que surgiu na era do
legislador como um lugar da punição e recuperação pelo trabalho, ainda seria a solução final para os
tempos da desterritorialização virtual, que no dizer de Levy9

6
.Ver. Motta. Manoel de Barros ( org.).Outros Espaços. In Michel Foucault. Estética: Literatura e Pintura, Música e
Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2006.p.411-422.
7
.Post-scriptum Sobre as Sociedades de Controle, in L Autre Journal, no 1, maio de 1990, e publicado em Conversações,
1972 Ŕ 1990 / Giles Deleuze; tradução de Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992
www.portalgens.com.br/filosofia
8
.Idem ibidem
9
.LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo ed.34,1999. p. 16.
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“ o virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual. Contrariamente ao possível,


estático e já constituído, o virtual é como o complexo problemático, o nó de
tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um
objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um processo de resolução: a
atualização(...)Não mais o virtual como maneira de ser , mas a virtualização como
dinâmica...A virtualização não é uma desrealização( a mutação de uma
realidade num conjunto de possíveis) , mas uma mutação de identidade,
um deslocamento do centro gravitacional.”10 ( grifos meus)
Essas questões mobilizam os debates sobre a criação de uma legislação normativa dos usos e,
consequentemente, repressora dos abusos da internet. Os códigos penais brasileiros (1830;1890 e
1940)como os demais códigos ancorados na força da lei, do direito e não da justiça, do discurso liberal
em suas produções de ilegalismos construíram jurisprudência. Afinal, o que não está nos autos não
existe. Como legislar sob atividades múltiplas, estilhaçadas, abrigadas sob o termo genérico de crimes
eletrônicos ou cibercrimes, crime informático, e-crime, crime hi-tech, crimes eletrônicos ou crime
digital? Termos também utilizados para descrever crimes tradicionais, tais como fraudes, roubo,
chantagem, falsificações e apropriação indébita, na qual computadores ou rede de computadores são
usados para facilitar as atividades ilícitas tais como: Subtração de identidade, práticas de racismo e
xenofobia on line, pedofilia na rede, clonagem de cartão, ciberterrorismo e cibertaques, entre outras
práticas que atentam contra a integridade, confidencialidade e segurança do tráfego e dos dados de
sistemas de computadores, configuram-se em ameaças que requerem um esforço para desvirtualizar o
crime e o criminoso. Para além do Estado nacional ou da empresa, do público ou do privado, o
crime informático circunscreve qualquer conduta ilegal, não ética, ou não autorizada que envolva o
processamento automático de dados e/ou transmissão de dados".
O criminoso sem rosto, sem assinatura, sem ideologia, que inventa um novo sistema, no
caso entendido como um software, ou então pirateia, constrói similares, desafia as grandes
organizações. Os efeitos desses poderes tentaculares, descentralizados, justificam a produção de novos
dispositivos que incluiu discursos, mas igualmente as instituições, as disposições arquitetônicas no
caso as novas arquiteturas virtuais da informação, os regulamentos, as leis, as medidas
administrativas, os enunciados científicos, as proposições filosóficas, a moralidade, a filantropia. O
dispositivo também emerge como uma grade de análise e, também, como as práticas que atuam

10
.Idem ibidem
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como um aparelho, uma ferramenta, constituindo sujeitos e organizando-os. Na questão em debate,


definem, classificam e subjetivam o cibercriminoso.
No caso do Brasil esses dispositivos são enunciados em dois projetos de lei que polemizam
provedores e membros da sociedade civil em questões como o anonimato e a responsabilização por
conteúdo publicado .De um lado a proposta de definição dos Cibercrimes 11 da Lei Azeredo, apelidada
de AI5 digital por sua conservadora razão punitiva (cria 13 novos crimes, além de aumentar as penas
para alguns que já existem). O aspecto policialesco se exprime na perda de privacidade da navegação
pela Internet; na exigência de um cadastro para qualquer pessoa que pretenda acessar a rede; além de
propor que os provedores de acesso guardem registros (logs) de toda a navegação feita pelos usuários.
Tais registros poderiam ser liberados para investigações criminais, caso fosse solicitado por ordem
judicial.
A desconfiança da relação entre o projeto de lei e instituições do setor privado também é
compartilhada por grande parte dos usuários que temem ser enquadrados por uma prática velada,
mas que todos sabem que ocorre onde quer que haja um computador conectado à rede: o
download de material protegido por direitos autorais. Por outro lado, o Senador Eduardo Azeredo
afirma que Ŗnão serão atingidos pela proposta aqueles que usam as tecnologias para baixar músicas
ou outros tipos de dados ou informação que não estejam sob restrição de acesso. A lei punirá, sim,
quem tem acesso a dados protegidos, usando de subterfúgios como o phishing, por exemplo, que
permite o roubo de senhas bancáriasŗ. No entanto, mesmo com a declaração do senador, o receio
dos internautas é compreensível, considerando o histórico de atitudes Ŗduvidosasŗ quando o
assunto são novas mídias. É o medo da arbitrariedade que muitas vezes tenta colocar o usuário
habitual dessas tecnologias no mesmo nível de um criminoso violento, como alguns representantes
da imprensa e mídia não especializada por vezes tentam reforçar.
A proposta modifica oito leis brasileiras para que possa abranger os infodelitos,
respaldando-se na desatualizada Convenção de Budapeste, assinada em 2001 por nações da União
Europeia, Estados Unidos, Coreia do Sul e Japão12. Sabemos que conflitos entre os países, na

11
.A proposta visa substituir o Projeto de Lei da Câmara (PLC) n° 89, de 2003 (n° 84, de 1999, na origem), e os Projetos
de Lei do Senado (PLS) n° 137, de 2000, e n° 76, de 2000, reunindo-os e alterando alguns itens dos textos originais
12
A Convenção sobre o Cibercrime, também conhecida como Convenção de Budapeste, é um tratado internacional de
direito penal e direito processual penal firmado no âmbito do Conselho da Europa para definir de forma harmônica os
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questão de combate aos crimes de internet, não se resolvem tão somente com a análise tradicional
dos conceitos de soberania, poder estatal e jurisdição, pois esta ideia foi diluída pelo novo direito
que se estabelece perante o avanço tecnológico, requerendo assim, a conjugação de esforços de
forma cooperada. A mobilização contra o projeto reuniu diferentes entidades civis13 , que em carta
aberta ao então ministro da Justiça Tarso Genro destacaram os efeitos desastrosos que a Lei Azeredo
produziria:
“criminalizar em massa, práticas comuns na Internet; irá tornar mais caros nossos
projetos de Inclusão Digital; proibirá as Redes Abertas; piorará a legislação referente à
propriedade intelectual; legalizará a delação e o vigilantismo; inviabilizará sites de
conteúdo colaborativo; atacará frontalmente a privacidade individual e oferecerá
mecanismos digitais para que ressurjam perseguições politicas como houve nos tempos da
ditadura”.
Para além dos protestos presenciais ou virtuais, a Lei foi aprovada em 9 de julho de 2008,
devendo ser submetida a ajustes e modificações. O segundo projeto emerge dessa discussão propondo-
se mais do que criminalizar, instaurar as bases do que seria a nossa primeira Ŗ Constituição Virtualŗ . O
Marco Civil Regulador estabeleceria uma legislação positivada, voltada aos direitos privados e liberdade
de expressão na internet. O novo projeto nomeado PL 2/26/11 deu entrada na Câmara propondo um
cruzamento entre um marco civil e um marco penal para criar um arcabouço cultural mais do que
legislativo. Como construir essa complexa articulação? O que diferenciaria cultura de legislação? Afinal
a legislação não é um enunciado da cultura jurídica? Esse jogo perigoso de sintagmas nominais me
inquieta, ainda mais quando identifico entre os defensores do projetoMarcel Leonardi, diretor de
Políticas Públicas e Relações Governamentais do Google que afirma:
“O marco civil ajuda o empreendedorismo de forma geral, por reconhecer a lógica da
internet, em que o usuário é responsável pelo que publica”, afirma o executivo. Para ele,
é impossível que o provedor seja responsabilizado pelo conteúdo de terceiros, porque, “só
no YouTube, são 48 horas de vídeo postadas a cada minuto no mundo inteiro”.14

crimes praticados por meio da Internet e as formas de persecução. Ela trata basicamente de violações de direito autoral
fraudes relacionadas a computador, pornografia infantil e violações de segurança de redes
.http://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%A3o_sobre_o_Cibercrime acesso em 30/08/2011 às 8:15 hrs
13
. Formado pelo Setorial de TI do PT-RS, Associação Software Livre. Org, Aptic-RS, SindBancários e CUT-RS.
14
. Blog Conjur http://www.conjur.com.br/2011-ago-27/ acesso em 27/08/2011 às 22 hrs.
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Qual o estado atual da questão? Poderíamos resumir em duas cores; verde e branco, numa
referência aos dois documentos produzidos recentemente pelo governo federal em sua arte liberal de
governar. Ou seja, produzindo liberdades, cujo preço deve ser pago em segurança, em vigilância de
olhos virtuais. Mas voltemos as cores e, principalmente, aos referido livros: o Verde15 que tentaria
despoluir o espaço cibernético dos excessos e inadequações dos entulhos legislativos. Para tanto foi
aberto um site que aceita contribuição para a redação da Política Nacional de Segurança Cibernética o
ŖLivro Branco”16 conforme apresentou Mandarino Junior, chefe do Departamento de Segurança da
Informação e Comunicações do Gabinete de Segurança Institucional. A análise dos enunciados
apresentados permitem identificar as contradições conceituais, principalmente, a fragilidade
operacional da normalização e fiscalização da navegação na internet sob a tutela de um órgão
governamental de Segurança.
Enfim, no espaço heterotópico da cibercultura conformado pela obsolência constante, onde
não há sólido, onde tudo se desmancha literalmente, como produzir uma legislação estável? O que
significa estabilidade? Por que não apostar numa outra lógica. Sou favorável a um abolicionismo
penal17, logo considero que não precisamos de mais leis, porém de uma nova ética que
desnaturalize a punição tão arraigada em nossa sociedade. A proposta é navegar livremente, mas
com responsabilidade. A noção chave que conformou o texto é retomada e reatualizada pela
escolha da historiadora para encerrar esta comunicação e abrir o debate:
Um navio é um pedaço flutuante de espaço, um lugar sem lugar, que existe por si só,
que é fechado sobre si mesmo e que ao mesmo tempo é dado à infinitude do mar. O
navio tem sido, na nossa civilização, desde o século dezesseis até aos nossos dias, o maior
instrumento de desenvolvimento econômico e simultaneamente o grande escape da
imaginação. O navio é a heterotopia por excelência. Em civilizações sem barcos,

15
.Brasil. Presidência da República. Gabinete de Segurança Institucional. Departamento de Segurança da Informação e
Comunicações. Livro verde : segurança cibernética no Brasil / Gabinete de Segurança Institucional, Departamento de
Segurança da Informação e Comunicações; organização Claudia Canongia e Raphael Mandarino Junior. Ŕ Brasília:
GSIPR/SE/DSIC, 2010. Análises da situação atual do setor e propostas e diretrizes para a formulação de um marco teórico e
legal sobre o tema. Desde então, o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República tem recebido
contribuições da sociedade civil e fomentado debates com especialistas do setor público e privado, mas não há prazo para a
conclusão do texto.
16
.Essa questões foram discutidas no 12° Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção ao Crime e à Justiça Criminal,
realizado em Salvador em abril do ano passado, o Brasil propôs a construção de uma nova convenção para substituir a de
Budapeste, e foi escolhido para liderar o processo. A primeira reunião do grupo de trabalho ocorreu em fevereiro, na sede das
Organizações das Nações Unidas em Viena, na Áustria.
17
.Ver a respeito PASSETI, Edson, Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan,2004.
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esgotam-se os sonhos, e a aventura é substituída pela espionagem, os piratas pelas


polícias.
Retorno a canção de Gilberto Gil:
Criar meu web site
Fazer minha home-page
Com quantos gigabytes
Se faz uma jangada
Um barco que veleja ...(2x)
Que veleje nesse informar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve um oriki do meu orixá
Ao porto de um disquete de um micro em Taipé
Um barco que veleje nesse infomar
Que aproveite a vazante da infomaré
Que leve meu e-mail até Calcutá
Depois de um hot-link
Num site de Helsinque
Para abastecer
Eu quero entrar na rede
Promover um debate
Juntar via Internet
Um grupo de tietes de Connecticut
De Connecticut de acessar
O chefe da Mac Milícia de Milão
Um hacker mafioso acaba de soltar
Um vírus para atacar os programas no Japão
Eu quero entrar na rede para contatar
Os lares do Nepal,os bares do Gabão
Que o chefe da polícia carioca avisa pelo celular
Que lá na praça Onze tem um videopôquer para se jogar...

Arquivos Digitais
http://www.leieordem.com.br/crimes-virtuais-e-a-lei-azeredo.html
http://pt.scribd.com/doc/3604559/Projetos-de-Lei-contra-cibercrimes-no-Brasil
http://www.culturadigital.br
http://www.hiperweb.com.br/caderno/2008/12/cultura-da-convergencia/
http;//www.portagens.com.br/filosofia
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http://letras.terra.com.br/gilberto-gil/68924/
.http://pt.wikipedia.org/wiki/Conven%C3%A7%C3%A3o_sobre_o_Cibercrime
http://www.conjur.com.br/2011-ago-27/
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pelo_Telefone,

Referências Bibliográficas
DELEUZE, Gilles. Post-scriptum Sobre as Sociedades de Controle, in L Autre Journal, no 1, maio
de 1990, e publicado em Conversações, 1972 Ŕ 1990 : tradução de Peter Pal Pelbart. Rio de Janeiro
: Ed 34, 1992

LEMOS, André;CUNHA, Paulo (orgs.). Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo ed.34,1999.

____________LÉVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligência. Rio de janeiro: editora 34;1993.

MORAES, Denis de. O Concreto e o Virtual: mídia, cultura e tecnologia. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.

MOTTA. Manoel de Barros ( org.).Outros Espaços. In Michel Foucault. Estética: Literatura e


Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária,2006.p.411-422.SILVA, Marilene
Rosa Nogueira da.

PASSETI, Edson, Curso Livre de Abolicionismo Penal. Rio de Janeiro: Revan,2004.

VIANNA, Túlio. Transparência pública, opacidade privada. Rio de Janeiro: Revan.

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UMA DÉCADA DE MILÍCIAS NO RIO DE JANEIRO

Michelle Airam da Costa Chaves*

RESUMO
O presente artigo tem como objetivo despertar a atenção e a reflexão para o desenvolvimento da
atuação de grupos milicianos no Estado do Rio de Janeiro, ressaltando seu amplo desenvolvimento
em dez anos de existência. Pretendemos também analisar as diversas definições do conceito milícia
tanto por parte de pesquisadores das Ciências Sociais assim como de políticos e da mídia.
Palavras-chave: Milícia; Violência; Direitos Humanos.

ABSTRATC
This article have objective to pay attention end reflection about development and action to
militians group at Rio de Janeiro state, emphasize the bigger development in ten years to existence.
We are pretend analyze many definitions and conceptions about militians with Social Science
investigator and politicians of media.
Key-words: Militia; Violence; Human-Law.

Nossa pesquisa pretende mostrar as formas de atuação das milícias no Rio de Janeiro
durante uma década de sua existência e despertar a reflexão para futuros trabalhos nesta área. Para
tanto, as fontes principais para este estudo são matérias do jornal O Globo e O Dia além do
Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as milícias (CPI das Milícias),
instaurada no ano de 2008.
Os grupos existentes na última década têm sido chamados de milícia, em nosso estado, o
que já nos desperta a reflexão, pois

*
Graduada em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisadora associada do Laboratório das
Diferenças e Desigualdades Sociais (Leddes/UERJ) e do Laboratório do Tempo Presente (UFRJ).
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A palavra militia tem raízes latinas que significam Řsoldadoř (miles) e


Řestado, condição ou atividadeř (itia) e que, juntas, sugerem o serviço
militar. Mas milícia é comumente usada para designar uma força militar
composta de cidadãos ou civis que pegam em armas para garantir sua
defesa, o cumprimento da lei e o serviço paramilitar em situações de
emergência, sem que os integrantes recebam salário ou cumpram função
especificada em normas institucionais.1

A idéia de milícia exposta não condiz com a realidade vivida nas favelas e bairros pobres em
que atuam já que a Ŗproteçãoŗ esta associada a diversas formas de remuneração direta ou indireta.
Dependendo da área onde agem os milicianos cobram diretamente aos moradores e comerciantes
por seus Ŗserviçosŗ, ou oferecem a proteção e o lucro é obtido através da dominação e controle de
outras atividades.
A utilização do termo milícia possivelmente pode ter como objetivo desvincular a imagem
negativa da polícia mineira ou grupos de extermínio tendo em vista a Ŗintenção de re-legitimar um
velho cenárioŗ2.
ŖMilícia aparece como uma palavra de perfil mais neutro ou, inclusive, levemente
positivo. Com efeito, o dicionário Aurélio define o termo como ŘTropas auxiliares de
segunda linhař. Em outras línguas a palavra é usada para designar os componentes do
exército que não são militares profissionais, isto é, combatentes do povo. Essa linha
semântica encaixa perfeitamente na tentativa de apresentar a milícia como um grupo de
pessoas que se une para se defender contra uma ameaça externa, no caso o tráfico.ŗ 3

Já o ex-prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, em seu mandato de 2004-2008, quando


perguntado a respeito das milícias que já ocupavam quarenta e duas favelas do município declarou
que estes grupos eram uma Ŗauto-defesa comunitáriaŗ, um Ŗmal menorŗ.4
Outro ponto a ser ressaltado é a milícia ser tratada como um sinônimo à polícia mineira,
mesmo entre pesquisadores
ŖNo Rio de Janeiro, o termo Ŗmilíciaŗ vem sendo utilizado desde a denúncia de grupos de
policiais que estavam dominando 42 favelas da cidade, feita pela reportagem do jornal O

1
ZALUAR, 2007, p. 90
2
CANO, 2008, p. 59
3
CANO, 2008, p. 59
4
Reportagem do Jornal O Globo, em 10 de dezembro de 2006.
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Globo em março de 2005. O termo, que acabou fixado na opinião pública, refere-se, de
fato, à ŖMineiraŗ ou à ŖPolícia Mineiraŗ.5

A Polícia Mineira tinha uma atuação mais restrita que a milícia, pois agia diretamente no
extermínio de criminosos e Ŗsegurançaŗ para comerciantes e população de bairros pobres e favelas.
De acordo com o Relatório, as milícias estão envolvidas em uma série de outras atividades como a
venda de botijões de gás, gatonet6, o controle sobre o transporte alternativo e participação de seus
integrantes no Poder Legislativo. Ao tratarmos os grupos atuais como polícia mineira estaríamos
simplificando suas ações.
Entendemos que seja necessário uma definição mais ampla do conceito que reflete as ações
do grupo que atua em favelas e bairros pobres do Rio de Janeiro. Seria um somatório dos seguintes
pontos:
Ŗ1. O controle do território e da população que nele habita por parte de um grupo
armado irregular;
2. O caráter em alguma medida coativo desse controle dos moradores do território;
3. O ânimo de lucro individual como motivação principal dos integrantes desses grupos;
4. Um discurso de legitimação referido á proteção dos habitantes e instauração de uma
ordem que, como toda ordem, garante certos direitos e exclui outros, mas permite gerar
regras e expectativas de normatização de conduta;
5. A participação ativa e reconhecida de agentes do estado como integrantes dos grupos.ŗ 7

Essa definição reflete melhor a atuação desses grupos como poderemos comprovar
analisando o Relatório, por apontar os pontos cruciais e comuns aos milicianos. Cano também foi
ouvido durante a CPI assim como outros pesquisadores com o objetivo de esclarecer a ação desses
grupos e a busca por uma melhor definição do conceito.
Diante do que foi exposto percebemos uma forte relação entre as milícias e a idéia de
proteção que o grupo oferece. Sendo assim, o medo criado nos últimos trinta anos principalmente
pelo aumento do tráfico de drogas e insegurança nas ações do Estado diante desse problema
permitiu o surgimento e desenvolvimento desses grupos.
A década de 1980 é um marco no aumento da violência no Rio de Janeiro sendo um dos
principais fatores o desenvolvimento do tráfico internacional que incluiu nosso país em sua rota e

5
SANTOS, 2007, p. 59
6
Gato feito em localidades para viabilizar o acesso ao sinal de TV á cabo.
7
CANO, 2008, p. 60
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pontos de venda internamente. De fato houve um crescimento do crime contra pessoa, inclusive os
relacionados à busca de recursos para manter o consumo de drogas.
Com o crescimento da violência a sociedade exige do governo soluções para o combate a
criminalidade. A insegurança gerada pelos criminosos leva a sociedade a buscar medidas rápidas
que demorariam a ser alcançadas através de programas para inclusão social e que respeitem os
direitos de todos levando à aceitação de parte da população a atuação dos grupos de extermínio8.
As favelas aparecem como o foco do problema e seus moradores não têm garantidos seus
direitos humanos. ŖA idéia de que os morros possuem um Ŗoutro Estadoŗ contra o qual se está em
guerra produz um efeito evidente, que é a restrição dos direitos de cidadania dos moradores de favela e
o desrespeito aos direitos humanos.ŗ9
A violência existente além de ser causada pelo próprio tráfico de drogas e seu
desdobramento para garantir o consumo, ainda é ampliada com o combate repressivo e
exterminador de policiais em suas ações durante o expediente assim como os grupos de justiceiros
que atuam nas áreas mais vulneráveis de nosso estado.10
O desdobramento deste contexto é o desenvolvimento de uma segurança privada que age
de forma diferente em relação aos bairros em que atua. Nos condomínios de luxo e das camadas
médias existem as empresas de segurança que são contratadas. Já nos locais onde residem as
camadas menos favorecidas, os moradores aderem ou se sujeitam à Ŗsegurançaŗ oferecida pelas
milícias que muitas vezes é imposta através de ações ou de ameaças. Alguns comerciantes chegam a
recorrer a ação desses grupos ou recebem apoio dos moradores. O medo e a insegurança causados
pelos crimes relacionados a traficantes de drogas e conflitos com a polícia, somado a falta de
segurança pública, principalmente, nessas áreas que ficam a própria sorte sem ações
governamentais favorecem o desenvolvimento das milícias11.
Ao agirem levando a Ŗsegurançaŗ , exterminando e controlando, justificam sua atuação
como para o bem da coletividade. O extermínio de indivíduos que não seguem suas ordens,
cometendo furtos, roubos, assassinatos e consomem drogas ilícitas, serve como argumento de sua

8
DIMENSTEIN, 1996, p.7
9
DUARTE, 2004, p.12
10
SILVA FILHO, 2007, p. 97
11
RELATÓRIO CPI das Milícias, 2008, p. 39
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atuação protetora como também de exemplo para que os outros moradores não os enfrentem. As
execuções são justificadas Ŗpela falta de local para prendê-los e lentidão nos processos. Muitos
apóiam os exterminadores que são vistos como pessoas que executam a justiça.ŗ12 Cumpre lembrar
que essas ações recebem, muitas vezes, apoio dentro das áreas onde ocorrem, pois os moradores
entendem que essa é a melhor forma de lidar com o problema.
Na maioria dos casos os moradores são obrigados a pagar taxas pelo serviço prestado e ainda
estão vulneráveis a Ŗvinganças e acertos de contaŗ13 com esses grupos. Segundo a pesquisa de Cano,
existem áreas que contam com a presença da milícia e de traficantes de drogas aumentando ainda
mais os riscos dos moradores.
Percebemos que a ausência do Estado em relação à segurança pública favoreceu a ação
desses grupos, aliado a impunidade e a baixa remuneração dos policiais e outros membros da
segurança pública, que exercem algum trabalho complementar a sua renda nos dias de folga,
favorecendo a atividade nas milícias como uma alternativa.14 O Estado não atua diretamente nas
ações das milícias, mas também não há combate de forma eficiente, é no mínimo omisso diante
dessas atuações.

“Mesmo assim, ainda que não houvesse uma política de encorajamento dessas ações, sua
existência e crescimento apontam um sinal de fraqueza na capacidade do Estado manter a
paz e a ordem. Em termos práticos, fica difícil imaginar que grupos grandes e visíveis
possam consistentemente fazer justiça com as próprias mãos por longo tempo a não ser
que alguém com autoridade acredite que tal comportamento seja útil para os interesses
que defende.ŗ15

Impressionante, no entanto, é seu crescimento em um curto espaço de tempo. Matérias


jornalísticas denunciavam o aumento desses grupos e os locais onde atuavam, mas o Poder
Legislativo e a segurança pública permaneceram passivos. No ano de 2005 foram registradas 13
matérias sobre as milícias, em 2006 cerca de 70 e em 2007 esse número dobra. 16 Algumas dessas
matérias:
Ŗ Policiais vendem Řproteçãoř em 72 comunidadesŗ (Jornal O Globo 29/01/2006)

12
DIMENSTEIN, 1996, p. 71
13
RATTON JUNIOR, 1996, p. 104
14
RELATÓRIO CPI das Milícias 2008, p. 40
15
MENDEZ, 2000, p. 35
16
CANO, 2008p. 63
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ŖMilícias articulam a criação de braço políticoŗ (Jornal O Globo 30/01/2006)


ŖMilícias de policiais chegam a Zona Norteŗ (Jornal O Globo 22/09/2006)
ŖMilícias avançam sobre favelas da Maré.ŗ (Jornal O Dia 26/11/2006)
ŖMilícias teriam 30 PMs na Ilha e na Leopoldinaŗ (Jornal O Globo 10/02/2007)
ŖTráfico e Milícia voltam a guerraŗ (Jornal O Globo 02/08/2007)

Esse crescimento nos leva a refletir sobre alguns pontos: se a atuação desses grupos era
denunciada por jornais de grande circulação, como o Estado não promoveu uma política de
segurança para investigá-lo e/ou combatê-lo? Até que ponto esses grupos foram favorecidos pela
vista grossa da polícia e de outros poderes? Como, pessoas ligadas a esses grupos conseguiram se
eleger deputados estaduais? O fato de esses grupos atuarem em áreas empobrecidas aumentou o
descaso das autoridades competentes, pois tratavam de Ŗclasses perigosasŗ? O que motivou a
instauração de uma CPI depois de diversas denúncias?
A motivação para a aprovação da CPI das Milícias transparece o descaso da Câmara dos
Deputados pela população carente, pois em 2007 o deputado Marcelo Freixo propôs a instauração
desse Inquérito sendo descartada por seus colegas já que não consideravam a atuação desses grupos
como algo relevante. A mudança ocorre quando em maio de 2008 dois jornalistas e um motorista
do jornal O Dia, ao fazerem uma matéria são presos e torturados pelos milicianos da favela do
Batan, em Realengo, pelo grupo conhecido como Águia. Quando os milicianos descobriram que
eram jornalistas estes foram soltos buscando evitar um escândalo como o ocorrido com a execução
do jornalista Tim Lopes em 2002 por traficantes no Complexo do Alemão. Os jornalistas não se
calarem e a ação do grupo veio mais uma vez a toma, mas agora as personagens eram outras.
De acordo com o exposto podemos perceber que enquanto a ação das milícias incomodava
apenas os moradores de favelas ou bairros pobres a maioria dos legisladores não considerou
importante a aprovação de uma CPI para investigá-las, mas quando o caso atingiu jornalistas e
espalhou-se em matérias do O Dia e outros jornais não havia mais como não instaurá-la. Ou seja, o
motivo da CPI não foi o desrespeito aos direitos da população mais humilde e sim uma ação que
atingiu a mídia. Os milicianos eram policiais e foram condenados a 31 anos de prisão.

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Além da Ŗsegurançaŗ, outra ação desses grupos, segundo opromotor do Ministério Público
Estadual, Jorge Magno,são os lucros obtidos com o transporte alternativo em kombis e vans sendo
altamente lucrativo para os milicianos que controlam esta atividade. Já que o Estado não oferece
um serviço de transporte de massa de qualidade satisfatória as pessoas vulneráveis a esse problema
reagem e recorrem ao seu direito contando com a atuação, muitas vezes ilegal, desse tipo de
transporte. A superlotação e demora dos transportes nessas áreas ajudam a financiar as ações desse
grupo.
A cooperativa de vans de Santa Cruz denunciou, ao Ministério Público, o controle exercido
pelos milicianos, mas nenhuma providência foi tomada para resolver o problema. A renda obtida
pelo grupo, com esta atividade, é alta:
ŖO lucro obtido pelas milícias, seja através da cobrança de ágio, seja através da exploração
direta via cooperativas comandadas por elas, é alto. De acordo com declaração do vice-
presidente do Sintral, Guilherme Biserra, ao jornal O Globo, edição do dia 27 de agosto
de 2008, os motoristas de vans pagam, em média, R$ 50,00 de pedágio/dia. Levando em
conta o número de vans irregulares que circulam e das vans legalizadas que são vítimas de
extorsão, o valor arrecadado anualmente pode chegar a R$ 145 milhões.ŗ 17

Neste ponto, percebemos que as milícias oferecem novamente um serviço que o Estado não
garante a todos e mesmo denunciando a extorsão não existem providências para resolver o crime. A
população é vulnerável em relação ao transporte e também pelo descaso das autoridades
competentes em investigar e punir suas denúncias.
Outra forma de obtenção de recursos é o controle da venda de botijões de gás que sofrem
um ágio imposto por esses grupos, além da obrigatoriedade de compra na distribuidora da própria
favela:

Declaração feita pelo vice-presidente do Sindicato dos Revendedores de GLP do Estado do


Rio de Janeiro (Sirgaserj), Maurício Rodrigues, ao jornal O Globo de 27 de agosto de 2008,
mostra que 90% do gás vendido nas comunidades carentes do Rio são monopolizados por
traficantes ou milicianos. Embora a ANP tenha um preço tabelado para o produto,
moradores das comunidades dominadas por grupos armados pagam valores superiores ao
da tabela, chegando até a R$ 45,00 o botijão, de acordo com o Sirgaserj. Mesmo quando o
preço é igual ao da tabela, os moradores são obrigados a adquirir o produto em empresas
determinadas pelos milicianos ou traficantes. 18

17
Relatório CPI das Milícias, 2008, p. 116
18
Relatório CPI das Milícias, 2008, p. 117
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Mesmo com a denúncia feita a um jornal de ampla circulação o poder público não tomou
providências para regularizar a situação.
Atuam ainda invadindo terrenos, loteando-os e vendendo-os, muitas vezes através da
Associação de Moradores como no caso da favela Rio das Pedras em Jacarepaguá. O documento
que garante a posse é feito pela Associação controlada por membros da milícia. Invasões em áreas
consideradas de risco mesmo depois de remoções ocorrem nesta favela sob a liderança da Amarp Ŕ
Associação de Moradores e Amigos de Rio das Pedras.19
Ainda existe o lucrativo controle do sinal de antena coletiva, conhecido como Ŗgatonetŗ. De
acordo com as informações do Disque-Denúncia os valores para este tipo de serviço são: ŖInstalação
de TV a cabo de R$ 50,00 a R$ 60,00 Sinal de TV a cabo de R$ 20,00 a R$ 40,00 Internet de R$
10,00 a R$ 35,00.ŗP. 125
Dentre estas situações está o clientelismo, ou seja, o usufruto dos direitos e a participação
mediados por políticos ou personagens dotados de poder.ŗ20 Os votos, nestas áreas, são
conquistados através de pressões, favores ou coações. De acordo com o Relatório foi possível
observar a existência de currais eleitorais em áreas de atuação das milícias elegendo inclusive
integrantes desses grupos. Normalmente, a obtenção de votos em um único candidato por zona
eleitoral é de 10%, mas nas áreas em que acusados de participarem de milícias foram eleitos essa
porcentagem é muito superior como no caso de Nadinho.
CONCENTRAÇÃO DE VOTOS POR LOCAL
NADINHO DE RIO DAS PEDRAS
200421
CONCENTRAÇÃO LOCAL BAIRRO
69,03% ESCOLA MUNICIPAL RIO DAS RIO DAS PEDRAS
PEDRAS

65,13% CIEP LINDOLPHO COLLOR RIO DAS PEDRAS

64,51% ESCOLA MUNICIPAL JORGE RIO DAS PEDRAS


AMADO

19
BURGOS, 2002
20
ESCOREL, 2003, p. 144
21
Relatório CPI das Milícias, 2008, p.94
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63,84% CIEP GOVERNADOR ROBERTO RIO DAS PEDRAS


DA SILVEIRA

60,12% CIAC EUCLIDES DA CUNHA RIO DAS PEDRAS

14,38% COLÉGIO MV1 JACAREPAGUÁ

Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho de Rio das Pedras, foi presidente da AMARP
(Associação de Moradores e Amigos do Rio das Pedras) e depois se lançou candidato pelo partido
DEM (Democratas) sendo eleito vereador em 2000. Foi acusado do assassinato de inspetor Félix,
também integrante da milícia do Rio das Pedras com quem disputava o controle local. Nadinho foi
assassinado em 2009, na porta do prédio onde morava na Barra da Tijuca, após ter recebido duas
ameaças de morte após ter denunciado outros integrantes de milícias.
A favela de Rio das Pedras é conhecida por não ter a presença de traficantes de drogas,
terem a presença de grupos de extermínio e depois milícias. Conta com uma população de 70 mil
habitantes, grande comércio na localidade e o valor em circulação dentro da favela, é de
aproximadamente 40 milhões de reais por mês, garantindo que a milícia possa retirar lucro em suas
atividades Ŕ Ŗ... habitação, alimentação, transporte alternativo, TV a cabo, o baile no Castelo das
Pedras e o Bingo localŗ22
Os milicianos seguiram uma legitimação iniciada com os matadores da Baixada
Fluminense que Ŗlavavam sua cidadania pelo votoŗ23 lançando-se candidatos a cargos do Executivo
e Legislativo na região. Membros ligados as milícias tem buscado espaço na política através dos
votos alcançados nos locais em que atuam garantindo a Ŗsegurançaŗ da população. No início agiam
como cabos eleitorais e agora lançam sua candidatura.
Assim, além de indivíduos ligados à Polícia Militar, Polícia Civil, Bombeiros e Agentes
Penitenciários, as milícias contam com a presença de membros no Poder Legislativo aumentando
ainda mais a dificuldade de denúncias, que na maioria dos dados coletados, só foram possíveis
através do Disque-Denúncia, confrontando com outros documentos para provar sua veracidade.

22
TELLES, 2008, p.194
23
ALVES, 2003
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Foi criado dentro do Disque-Denúncia uma parte específica para receber denúncias da atuação das
milícias, era chamado de Disque-Milícia. O tempo de existência das milícias em determinadas áreas
mostra também como elas se desenvolveram ao longo dos anos sem nenhuma política pública de
segurança que tivesse como objetivo a sua desarticulação e/ou punição. Vejamos alguns dados
coletados e apresentados no Relatório24:
ŖJacarepaguá –
Comunidade do Rio das Pedras
– Grupo formado por: Políticos, civis, policiais militares e ex-policiais militares.
- Tempo de Duração: 10 anos
- Número de milicianos: 37 (relacionados no Disque Milícia).
- Exploração irregular de serviços com cobrança de: Segurança de moradores entre R$ 10,00 e
R$ 50,00; comércio R$ 50,00 e R$ 200,00; entregadores do Mercado Mult Market R$ 20,00;
barracas R$ 30,00; gás R$ 39,00; sinal de TV a Cabo R$ 18,00 e Transporte alternativo de R$
270,00 a R$ 325,00 por semana.
- Formas de Intimidação: Expulsão da residência e subtração de imóveis.
- Ex-Líder: Vereador Josinaldo Francisco da Cruz (ŖNadinhoŗ) - Candidato a Vereador pelo
Município do Rio de Janeiro, Partido Político DEM Ŕ Democratas, número 25.100, não foi
eleito, obteve 16.838.ŗ
Tanque - Largo do Tanque25
- Grupo formado por: Políticos, Civis, policiais militares e bombeiros militares.
- Número de milicianos: 30 (segundo denunciantes).
- Tempo de Atuação: 03 anos
- Exploração irregular de serviços com cobrança de: segurança de moradores de R$ 10,00 a R$
30,00; sinal de TV a cabo, taxa para vaga em garagem de prédios, gás, transporte alternativo:
moto-táxi R$ 20,00; Kombi R$ 100,00 por semana e taxa de 50% na compra e venda de
imóveis.
- Formas de Intimidação: Agressões, seqüestros, expulsão de moradores e mortes.
- Líderes: Ex-Deputado Álvaro Lins “PM Japão”

Além de pessoas atuantes na área de segurança pública ainda existe parte de civis, muitas
vezes membros da favela que passam a trabalhar com as milícias. No entanto o comando
permanece nas mãos das pessoas ligadas ao poder público.
Baseado nos dados descritos ao longo do artigo buscamos aprofundar a idéia das
milícias serem um poder transversal e não paralelo ao Estado. ŖAcredito em poder transversal. Em

24
Relatório CPI das Milícias, 2008, p.147
25
Relatório CPI das Milícias, 2008, p. 152
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algum momento o poder da criminalidade se encontra na esquina com o poder constitucional.ŗ 26


Percebemos que agentes do Estado agem como milicianos sem uma política de segurança para
evitá-lo, inclusive denunciado em jornais e a passividade dos governantes e órgãos competentes
permaneceu. De acordo com as informações coletadas durante a CPI
ŖAs apresentações das oitivas acadêmicas foram unânimes em apontar que o contexto no
qual está inserida a emergência das milícias está ligado às opções da política de segurança,
mas, além disso, a uma lógica própria e acumulativa de organização dessas corporações
sob a égide de um circuito clientelista, que a partir da independência e insubordinação
mantêm projetos de poder e troca de privilégios.ŗ 27

O deputado Marcelo Freixo, presidente da CPI das milícias, afirma ŖNão se trata de um
estado paralelo, é o crime dentro da máquina públicaŗ e continua
Ŗ A milícia representa uma ameaça maior ao estado democrático e de direito, até pelo seu
grau de organização e penetração dentro do poder púbico. O tráfico não se reúne para
discutir o projeto de lei, nem ver quem vai dirigir hospital ou escola. No máximo se junta
para pagar propina à polícia. O tráfico se fortalece na ausência do Estado, a milícia não.
Ela não é o vácuo do Estado. É o Estado leiloado, atendendo a interesses particulares. E
os chefes são agentes públicos...ŗ28

O conceito de poder transversal que elaboramos é incipiente e esta sendo desenvolvido ao


longo da pesquisa, mas esse poder é a articulação da esfera pública com a privada ilegal, seja por
impunidade, conivência ou descaso das autoridades públicas. É a criminalização de setores do
Estado que se relacionam na esfera privada para defender interesses de alguns em detrimento da
maioria.
Ao longo do artigo os questionamentos nem sempre foram solucionados, mas nosso
objetivo era despertar um olhar crítico e reflexões sobre o tema e a forma que escolhemos para
combater a violência, inclusive quem consideramos os mais aptos para fazê-los. Pretendemos
despertar o debate sobre como o Estado lida com essa nova forma de criminalidade.

BIBLIOGRAFIA
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Janeiro, In: Segurança, Tráfico e Milícia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2008.

26
FROSSARD, 2002, p. 1
27
Relatório CPI das Milícias, 2008, p. 38
28
VENTURA, 2008, p.8

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“PRESTADO POR UM INDIVÍDUO A OUTRO QUE COM ELE CONVIVE, MEDIANTE


RETRIBUIÇÃO”: O SERVIÇO DOMÉSTICO EM FINS DO SÉCULO
XIX E PRINCÍPIOS DO XX

Natália Batista Peçanha

Resumo
Ser uma criada em fins do século XIX e princípios do XX, corresponde, primeiramente, uma
relação de convívio mediante uma retribuição. Caracterizada como um serviço associado à relação
existente entre duas pessoas ligadas por um laço empregatício, essa atividade pautava-se numa
relação ambígua em que intimidade e vigilância determinavam às práticas desenvolvidas na relação
entre patrões e criados. A presente pesquisa terá como objetivo analisar o serviço doméstico em fins
do século XIX e princípios do XX, analisando o que significa, para essas mulheres, serem criadas.
Palavras-chave: Serviço doméstico; Pós-abolição; Público e Privado.

Abstract
Being a maid in the late nineteenth and early twentieth centuries, corresponds primarily a
relationship of coexistence for a remuneration. Characterized as a service associated with the
relationship between two people linked by a tie employment, this activity was guided in an
ambiguous relationship in which intimacy and surveillance determined the practices developed in
the relationship between masters and servants. This research will analyze the domestic service in
the late nineteenth and early twentieth centuries, examining what it means for these women, being
created.

1
Pensando a história como Ŗuma disciplina do contexto e do processoŗ em que seus
significados estão numa constante mutação ao decorrer do tempo e das mudanças de costumes, foi

Mestranda da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Ŕ UFRRJ. E-mail: nataliahist@hotmail.com


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que nos questionamos acerca do sentido em que a noção de criada foi vivenciada pelos seus
contemporâneos. Desta forma, pensando em Ŗtraduzirŗ os significados dos acontecimentos
vivenciados nas relações sociais, lançaremos mão de significados presentes em dicionários
publicados em fins do século XIX, bem como processos de regulamentação, a fim de que possamos
trazer à tona a noção de criada e todas as peculiaridades imbricadas em tal sentido. Todavia, pensar
em analisar o serviço doméstico e o que significa ser uma criada em fins do século XIX e princípios
do XX, é se remeter às discussões macros, que se constituem em grande importância para o
entendimento do contexto em que essa atividade se desenvolveu. Neste sentido, para que
possamos compreender as dinâmicas do serviço doméstico no período em foco, teremos que
perpassar temas mais amplos como a escravidão e a sua abolição, bem como, políticas
governamentais em torno do controle à Ŗclasses popularŗ a fim de implementar uma Ŗnação
modernaŗ, dentre outros assuntos que surgirão no decorrer do texto.
***
Quando falamos em serviço doméstico, muitas vezes, nos remetemos a categorias prévias
que nos estão inculcadas e naturalizadas. Desta forma, ao discutirmos o serviço doméstico em fins
do século XIX e princípios do XX, não podemos associar essas mulheres que desempenhavam a
função de criada, com a noção de empregada doméstica como a conhecemos hoje:
(...) empregado (a) doméstico(a) aquele(a) maior de 16 anos (alterado para 18 anos – grifo
meu) que presta serviços de natureza contínua (freqüente, constante) e de finalidade não-
lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas.
Assim, o traço diferenciador do emprego doméstico é o caráter não-econômico da
atividade exercida no âmbito residencial do (a) empregador(a). Nesses termos, integram a
categoria os(as) seguintes trabalhadores(as): cozinheiro(a), governanta, babá, lavadeira,
faxineiro(a), vigia, motorista particular, jardineiro(a), acompanhante de idosos(as), entre
outras. O (a) caseiro(a) também é considerado(a) empregado(a) doméstico(a), quando o
sítio ou local onde exerce a sua atividade não possui finalidade lucrativa.2
Ser uma empregada doméstica, hoje, é muito diferente do que podemos chamar de criada, ou
seja, as mulheres que desempenhavam serviços domésticos em meados do século XIX às primeiras

1
THOMPSON, Edward P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. NEGRO, Antonio Luigi e SILVA, Sergio (orgs).
São Paulo: Editora da Unicamp, 2001. p. 243
2
Trabalho doméstico: direitos e deveres: orientações. 3ª ed. Brasília: MTE, SIT, 2007, p. 6. Conforme o Decreto nº 6.481,
que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil, assinada pelo ex-presidente da República Luiz Inácio
Lula da Silva no dia 12 de julho de 2008, é proibida aos menores de 18 anos Ŕ por força de dispositivo da
Constituição Federal (art. 7º, XXXIII) Ŕ o trabalho em 94 tipos de atividades, dentre elas, o serviço doméstico.
Disponível em http://www.mte.gov.br/trab_domestico/default.asp. Acessado em 08 de agosto de 2011.
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décadas do século XX. Conforme o DiccionárioContemporâneo da Língua Portuguesa, de Francisco


Júlio Caldas Aulete, publicado em 1881, no significado dado a palavra serviço, o serviço doméstico
é caracterizado como,
(...) o que é prestado temporariamente a qualquer indivíduo por outro que com ele
convive, mediante certa retribuição (Cód. Civ., art. 1.270º)./ [...] Pessoa do serviço de
alguém, o criado ou criada de servir, serviçal./ Estar de serviço, fazer o serviço que lhe
compete, estar de piquete./ Estar ao serviço de alguém. (...)3

Baseado no artigo 1.270 do Código Civil português, a noção de serviço doméstico está
associada à relação existente entre duas pessoas ligadas por um laço empregatício, mediante a
retribuição, ou seja, mais do que o local em que tal atividade é exercida, o serviço doméstico, é
nesses moldes, definido pela relação de convivência entre os patrões e os criados.
Em debates ocorridos na Câmara Municipal da Corte, no ano de 1888, acerca das
discussões de propostas para a regulamentação desse serviço, a categoria Ŗcriado de servirŗ é
questionada pelo presidente da Câmara, onde ele propõe uma definição mais sistemática de quais
profissões estão abarcadas nessa categoria.

[...] O Sr. Dr. Presidente expõe o motivo principal da sessão extraordinária


convocada para hoje, o qual é discutir e adotar a Ilustríssima Câmara uma
resolução regulamentar sobre o serviço doméstico Ŕ convindo, porém, liquidar
antes de tudo quais são as profissões que abrangem a classificação comum Ŕ
criado de servir. Tem presentes vários regulamentos sobre o assunto: de São
Paulo, do Recife, do Paraná e da Cidade do Porto. Consultou todos esses
regulamentos e o que há escrito a respeito de locação de serviços, e acha que a
definição que mais satisfaz, e é a mais completa, em sua opinião, é a do Código
Civil português, o qual no artigo 1.270 diz: ŖServiço doméstico é o prestado por
um indivíduo a outro que com ele convive, mediante retribuiçãoŗ.
Somente esta definição é a que abrange os pequenos serviços que o indivíduo
presta a outros mediante certas condições.
O Sr. Dr. Dias Ferreira: Ŕ E os caixeiros estão compreendidos?
O Sr. Presidente responde que só não compreendem os caixeiros afiançados, os
primeiros caixeiros. (Apartes)
Tem um trabalho já pronto que pode ser aproveitado, porquanto é moldado pelos
trabalhos de seus colegas, mas ainda não está copiado. Parecia-lhe não ser tempo
perdido enviar todos esses papéis à comissão de justiça, para que esta depois de
estudar o assunto convenientemente, ajudada por todos nós, elabore seu parecer,

3
AULETE, Francisco Júlio Caldas. Diccionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, feito sobre um plano inteiramente
novo. Portugal, Lisboa: Imprensa Nacional, 1881. p. 1.641.
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e, com a máxima urgência em sessão próxima, expressamente convocada para esse


fim, o apresente a uma ampla discussão. Faz esta proposta, porque julga que sem
um começo, sem uma base não é conveniente estabelecer discussão sobre a
matéria. E espera que os seus colegas concordem como o que se propõe. [...]4

Concordando com a definição estipulada pelo Código Civil português, o presidente da


Câmara Municipal do Rio de Janeiro, alarga o sentido de serviço doméstico para além da
coabitação. Ser um criado é mais do que morar ou realizar funções somente dentro da casa dos
patrões, seu sentido abarca uma noção de reciprocidade e convívio entre essas duas partes. Sandra
Graham, principal referência no que tange aos estudos acerca do serviço doméstico e as relações
entre as criadas e os patrões, em seu texto5, realiza uma simplificação ao dar mais relevância e
importância aos serviços desempenhados no interior das casas dos patrões. Ao fazer isso, ela cria
uma relação ambígua entre a casa, representada pelo lugar seguro; e a rua, local dos perigos e das
moléstias. A partir dessa constatação, ela desenvolve toda a sua argumentação acerca do serviço
doméstico, relegando ao serviço desempenhado por lavadeiras, carregadoras de água, cocheiros,
que são atividades, que geralmente, eram realizadas Ŗpara fora da casaŗ como secundárias ou
acessórias às atividades desenvolvidas Ŗpara dentro da casaŗ. Conforme Olívia Maria Gomes da
Cunha,
[...] o ideal do serviço doméstico caracterizava-se como um tipo de relação pessoal
no qual a empregada, em vez de realizar determinadas tarefas ou produzir para
outrem determinado produto, Ŗserviaŗ aos patrões. Ao servirem pessoas, as
criadas, por sua vez, viam-se diante da possibilidade de interpretar os limites, as
restrições, os consentimentos, a liberdade e a intimidade que as tornavam mais ou
menos próximas de seus patrões. Se, por um lado, essa relativa possibilidade de
interpretação foi, por vezes, muito mais retórica do que real, uma vez que os
senhores tinham a seu favor mecanismos legais a protegê-los, criou relações de
reciprocidade que, em vez de remediar a ausência de leis claras, tornou justificável
a violência física e simbólica que perpassava a relação. 6

4
ACGRJ. Divisão de Pesquisa. Biblioteca. Boletim da Ilustríssima Câmara Municipal da Corte (contendo todos os trabalhos
relativos aos meses de julho, agosto e setembro de 1888). Rio de Janeiro: Tipologia Imperial e Constitucional de J.
Villeneuve, 1888. p.5. Apud. SOUZA, Flávia Fernandes de. op. cit. p. 123
5
GRAHAM, Sandra. op.cit. 237pp.
6
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. op. cit. p. 411
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Esse caráter personalizado da relação existente entre patrões e criados, sem referências
concretas da natureza do trabalho fica patente nos anúncios coligidos no Jornal do Comércio7, em
que podemos verificar a prevalência dos atributos morais dos criados, por parte dos patrões que
anunciavam a necessidade desse serviço.
Aluga-se uma excelente ama-de-leite e muito carinhosa, na Rua da Carioca n. 3(?)
sobrado. 8

Precisa-se de uma boa ama seca, que de fiador à sua conduta. Na Rua Mariz e
Barros n. 36. 9

Precisa-se de uma boa ama seca, que seja carinhosa e de bom comportamento, na
Rua do Barão de Itamby n. 10, Botafogo. 10

Os anúncios em questão nos possibilitam verificar alguns dos meandros que perpassam tal
relação que envolve dominação e submissão, típicas do paternalismo e das relações escravocratas.
Quando um patrão decidia contratar um criado, o mesmo estava mais preocupado na sua conduta
moral do que nos seus atributos domésticos, ou seja, no desempenho das atividades executadas. Tal
característica nos permite desvendar a relação que pautava o serviço doméstico em fins do século
XIX e princípios do XX. ŖBoa condutaŗ, Ŗbom comportamentoŗ, ser Ŗcarinhosaŗ são alguns dos
atributos necessários para o bom convívio entre ambas as partes, mesmo que tais características não
fossem presentes nas atitudes do patrão para com os criados. Essas prerrogativas, necessárias para a
aceitação no emprego, mostram o quanto essa relação empregatícia fundava-se na autoridade, na
hierarquia e na dependência do criado em relação ao patrão. Todavia, não é demais ressaltar que a
complexidade desse mundo do trabalho, permitiu, muitas vezes, o conflito, ou manifestações de
descontentamento por parte dos criados, quando seus limitessociais11 eram ultrapassados.

7
O Jornal do Commercio está localizado no setor periódicos da Biblioteca Nacional, sob a referência (PRC-SPR 0001).
Foi selecionado para essa pesquisa 30 anúncios, de janeiro de 1890, dos quais, encontram-se referências a aluguéis de
criados por parte de agências, oferecimento de seus serviço por parte dos criados e solicitação, por parte de algum
senhor, de criados que queiram se empregar. Cabe ressaltar, também, que os anúncios serão redigidos respeitando a
pontuação original, porém a ortografia será corrigida.
8
Jornal do Commercio Ŕ 02 de janeiro de 1890. p.4 - BN
9
Ibidem
10
Jornal do Commercio Ŕ 03 de janeiro de 1890 p. 5 - BN
11
Quando nos remetemos em limite social, estamos pensando no que Witold Kula apresenta em seu livro intitulado
teoria econômica do sistema feudal.Por limite social, podemos dizer que é o resultado do limite fisiológico à quantidade de
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A imprensa se valeu muito desses conflitos que ocorriam nos domicílios cariocas, para
alertar a população do cuidado que se tinha que ter com esses Ŗestranhosŗ que se colocava dentro
de casa. Em cançoneta publicada no jornal O Rio Nu, de 03 de junho de 1903, verificamos uma
criada descontente com o baixo salário, e por isso barganhando um aumento.
Lá em casa a mulherzinha
Se a creada é reinadia,
Não a atura nem um dia,
Pois é logo despedida, mas se ella com ar zangado,
Vai o salário pedindo,
Então a patroa rindo...

Ora, filha. Isso de dinheiro por um pequeno serviço é uma figa mortal.
Más para que não vás por ahi dizer cobras e lagartos da casa...

Fala-me logo, á sahida!12

Por mais que a cançoneta em questão, represente uma situação fictícia, e esteja presente em
um jornal que se pretende humorístico, tal situação não era incomum. Provavelmente fazia parte
do cotidiano daqueles que escreviam e daqueles que liam. A atitude de barganha de melhores
salários por parte dos criados, representa uma ameaça a assimetria da reciprocidade característica
das relações pautadas no paternalismo, em que o poder senhorial é tido como Ŗincontestávelŗ.
Desempenhado, majoritariamente, por mulheres13 - serviçais ou criadas Ŕ esse serviço
abarcava as atividades Ŗda porta para dentroŗ e Ŗda porta para foraŗ, tais como lavadeiras, copeiras,

trabalho, mais o coeficiente de opressão praticável, ou seja, o quanto um senhor pode Ŗexplorarŗ sua mão-de-obra até que
ela resista. O limite social “representa os encargos que é possível impor ao camponês em determinadas condições
institucionais, tendo em conta o rendimento do trabalho, a correlação das forças sociais e a possibilidade de
sabotagem e de fuga. Cf. KULA, Witold. Teoria económica do sistema feudal.Lisboa: Editorial Presença, LDA. p.42.
12
S.C. Fala-me logo... á sahida. In. Theatro do Rio Nu. O Rio Nu. 03 de junho de 1903. Biblioteca Nacional. Obras
Raras.
13
No censo de 1872, podemos identificar que apenas um quarto de todos os criados do Rio de Janeiro, eram homens.
ŖOs que trabalhavam em serviços domésticos compreendiam cerca de 15% do total de trabalhadores e cerca de 8%
dos trabalhadores livres. Em 1906, eles chegavam a representar 6% do total de homens empregadosŗ. Todavia, no
que concerne a inserção das mulheres nessa ocupação, o quadro é oposto. Grande parte das mulheres
economicamente ativas do Rio de Janeiro desempenhava o serviço doméstico. No censo de 1872, identificamos uma
percentagem expressiva de 63% das mulheres livres e 88% das escravas, desempenhando tal atividade. O número
significativo de mulheres exercendo a função de criada contribuiu para a construção de uma feminização do serviço
doméstico. Porém, essa realidade não pode ser generalizada. Valdemir Zamparoni, ao apresentar o caso de Lourenço
Marques, em Moçambique, nos ajuda a relativizar a associação apriorística do serviço doméstico ao gênero feminino.
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arrumadeiras, amas-de-leite, costureiras, mucamas, cocheiros, ferreiros, carregadores de água e


atendentes de estalagens14; funções essas, que poderiamser desempenhadas, por crianças, idosos,
escravos, livres, libertos e estrangeiros.
A delimitação dessas funções ao serviço doméstico, era algo bastante frouxo. Muitas
propostas foram feitas a fim de sistematizar e categorizar esse serviço. No decreto nº 284, de 15 de
junho de 1896, em que se cria a Matrícula Geral do serviço doméstico, o
Art. 1º. Ŕ Serviço doméstico é o que é prestar temporariamente a qualquer
indivíduo por outro, que com ele convive, mediante certa retribuição.

Art. 2º. Ŕ Fica criada a matrícula geral do serviço doméstico para os indivíduos
que na Capital Federal se empregarem como: 1º. Cozinheiros e seus ajudantes; 2º.
Copeiros; 3º. Serviços de qualquer mister doméstico; 4º. Lavadeiras e
engomadeiras; 5º. Jardineiros e horteleiros; 6º. Cocheiros e seus auxiliares.15

No artigo 2º, caracterizam-se como servidores domésticos horteleiros, auxiliares de caixeiros, dentre
outras funções já mencionadas. A indecisão acerca de quais atividades eram, realmente,
consideradas como serviço doméstico, foi resolvida pelo artigo 1º, em que a questão do convívio,
reaparece como ponto fulcral para a sua delimitação. A noção de convívio será de suma
importância para o entendimento do serviço doméstico na passagem século XIX para o XX.
Entendendo, o homem com um ser social, em que sua economia Ŗestá submersa em suas
relações sociaisŗ, mais do que em simples trocas econômicas de bens materiais, analisaremos, assim
como sugere Polanyi16, a valorização desses bens pelos homens, atrelados a interesses sociais acima
de tudo. Neste sentido, pensaremos esta espécie de Ŗcontratoŗ firmado entre criada e patrão a partir
do princípio da reciprocidade.17 Mas não uma reciprocidade simétrica, como nos apresenta Polanyi.
Apesar de concordar com ele, em que os interesses sociais sobrepõem, muitas vezes, aos

Zamparoni apresenta o censo de 1912 em que, por exemplo, no que tange ao serviço de lavadeira, 99 pessoas
desempenhavam este serviço, sendo apenas 13 mulheres e o restante homens. Ver: ZAMPARONI, Valdemir D.
Gênero e trabalho domésticonuma sociedade colonial: Lourenço Marques, Moçambique, c. 1900-1940. Afro-Ásia, 23
(1999), 145-172; CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Criadas para servir: domesticidade, intimidade e retribuição. In.
Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. (org.) CUNHA, Olívia Maria Gomes da e
GOMES, Flávio dos Santos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. cap. 12. GRAHAM, Sandra L. Proteção e Obediência.
Criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 15.
14
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. op.cit. pp. 379-380.
15
AGCRJ. Regulamento para o serviço doméstico. Capitulo 1. p. 32. 1896. Notação. 48-4-56
16
POLANYI, Karl. op.cit. cap. 4
17
Ver nota 6
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econômicos, ao trabalharmos com a noção de reciprocidade a consideraremos como sendo


assimétrica, no sentido em que as trocas não precisam ser equivalentes. Elas são pautadas numa
hierarquia que demarca, acima de tudo, uma relação marcada pelo paternalismo, e, por
conseguinte a reciprocidade assimétrica entre proteção e obediência. Não é à toa, que quando essa
relação se fragiliza, o serviço doméstico entra em crise, precisando ser contido por regulamentações,
que na verdade não deixam de ser uma transferência desse poder paternal das mãos dos senhores,
para a do Estado. 18
Possibilitando a inserção de pessoas Ŗpouco qualificadasŗ no mercado de trabalho,
exercendo atividades que eram extensão do interior de seus domicílios, o serviço doméstico
abarcava não só mulheres escravas, ou livres, mas também homens, criança e idosos19, como
mencionado anteriormente. No caso do emprego de crianças verificamos um número significativo
de processos do Juízo de Órphãos e Ausentes da 2ª Vara, em que pessoas de determinadas posses iam
abrir processos de guarda de menores, a fim de Ŗvesti-los, alimentá-los e lhes ensinar o serviço
domésticoŗ.
Luiz Gonçalves de Freitas, morador à rua do Conde de Bonfim, tinha em sua casa um
menor chamado Manoel, de 6 anos de idade, que fora abandonado por sua mãe, a preta liberta
Fructuosa. Luiz requer a responsabilidade da guarda desse menor para lhe concluir a criação, ao
qual pagará uma soldada assim que Manoel completar 12 anos.20
Roberto Jorge Machado Lobo, também abriu um processo de requisição de autorização de
tutela de menor, pois apareceu em sua casa a menina Nazarena, que estava sob jurisdição do Juízo
de Órphãos e Ausentes da 2ª Vara, a quem ele solicita a guarda do menino, se responsabilizando pela
soldada em troca de seus serviços domésticos21.

18
Gilberto Freyre aponta em Ordem e Progresso, que com a Proclamação da República, as alterações de natureza
sociológicas foram mínimas, ou seja, o paternalismo que era o grande sustentáculo do Império perpassa a República.
Desta forma, penso que essas regulamentações representam por um lado uma concessão aos servidores domésticos,
por lhes garantir certos direitos, como por exemplo, se for agredido Ŗrepetidas vezesŗ pelos patrões, o criado poderia
se retirar do serviço. Por outro, um controle por parte do Estado a esses servidores. Cf. FREYRE, Gilberto. op.cit.
pp.298-386.
19
SOUZA, Flávia Fernandes de. op.cit. p. 86
20
Juízo de Órphãos e Ausentes da 2ª Vara-ZM Ŕ processo de soldada: Menor Manoel. Nº. 2145, maço. 2315 gal: A -
AN
21
Juízo de Órphãos e Ausentes da 2ª Vara-ZM Ŕ processo de soldada: Menor Nazarena. Nº. 1913 Ŕ maço. 2304 gal: A -
AN
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Práticas como essas eram comuns no momento analisado. Ter como criados, crianças, nos
faz pensar, primeiro, na baixa qualificação desse tipo de serviço, que não requeria experiência
profissional. Além disso, tais recorrências nos permitem associar a própria noção de criada à noção
Ŗde ser criada por alguémŗ, remetendo a uma relação pautada no paternalismo.22 Nessa relação, a
criança ao ser Ŗadotadaŗ recebe do patrão educação, vestimenta, abrigo e, sobretudo, proteção,
retribuindo-lhe em troca, status social Ŕ a quantidade de criados determinava um status social, mais
ou menos elevado Ŕ , um bom exercício dos afazeres domésticos na casa dos patrões, além, da
obediência. Outro exemplo dessa prática pode ser percebida pelos anúncios, em que muitos
patrões mostram sua preferência por menores no serviço doméstico.

Precisa-se de um menino de qualquer cor, de 10 a 12 anos para serviço leves em


casa de uma viúva, em Catumby à Rua Itapirú, n.34.23

Precisa-se de uma menina para companhia de uma senhora de idade, pode ter ou
não mãe, educa-se e dá-se-lhe que vestir, na Rua do Hospício, n. 105.24

Outra categoria que também foi muito importante para a composição social do serviço
doméstico de fins do século XIX, foi a dos imigrantes.
O Rio de Janeiro, do século XIX, foi um verdadeiro pólo de atração de imigrantes, que
vinham tentar fazer a vida nesta capital. O Recenseamento Geral de 1890 nos elucidam
importantes dados acerca da presença dessas pessoas no Rio de Janeiro. De uma população

22
Recorreremos às considerações feitas por Sidney Chalhoub ao apresentar uma noção de paternalismo não pautada
num sistema de dominação absoluto do senhor sobre seus dependentes. Muito mais do que isso, esse tipo de relação
envolvia expectativas por parte dos dependentes, bem como, a existência de solidariedades horizontais e
antagonismos sociais, ou seja, Ŗ(...) subordinação não significa necessariamente passividadeŗ. Para Chalhoub, é Ŗ(...)
claro que os senhores sabiam que as solidariedades entre trabalhadores (escravos e/ou livres dependentes) estavam lá,
para além do fato comum da própria subordinação, e reconheciam tacitamente alguns costumes locais, laços étnicos,
dialetos, manifestações religiosas, artes de cura e outros ofícios, e demais práticas culturais. O problema é que essa
alteridade, essa autonomia, que era real, não tinha lugar enquanto tal no imaginário senhorial. Às práticas
autônomas dos dominados não eram atribuídos, via de regra, sentidos de alteridade, menos ainda de antagonismo.
Elas existiam porque os senhores teriam concedido aos trabalhadores a possibilidade de exercê-la ou inventá-las.
Sendo soberana e inviolável a vontade dos senhores, as ações dos outros sujeitos históricos apareciam como
originárias dessa vontade, como sua simples extensão. O que escapava a esse enquadramento era insubordinação ou
revolta, algo a ser esmagado com a incivilidade de que são sempre capazes os poderosos.ŗ In. CHALHOUB, Sidney.
Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. nota 295. p. 47 e 60 Apud. SOUZA, Flávia
Fernandes de. op. cit. p. 137
23
Jornal do Commercio Ŕ 01 de janeiro de 1890, p. 5 - BN.
24
Ibidem – 03 de janeiro de 1890, p.5 Ŕ BN.
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estimada em 274.972 habitantes, em 1872, a cidade passa a ter 522.651 habitantes, em 1890, dos
quais 84.283 habitantes eram estrangeiros.
A capital do país contava com uma população bem superior a sua demanda por
trabalhadores do setor industrial e de serviços. Essa população excedente ficava à mercê do
desemprego ou da inserção em atividades que não requeriam muita qualificação, dentre elas, o
serviço doméstico.25 Aproveitando-se desse excedente, era comum vermos nesse momento, chefes
de famílias e donos de agências de locação anunciarem em jornais a procura por criados
estrangeiros, pois ter, por exemplo, uma governanta estrangeira em uma casa, dava aos seus donos
certo status social.
Aluga-se uma criada portuguesa, na rua Bambins, n.3, Botafogo.26

Aluga-se uma moça franceza, chegada da Europa, para cozinheira ou ama seca, em casa de
pequena família; trata-se na rua do Lavradio, n. 13. 27

Aluga-se uma mucama e copeira hespanhola, e uma cozinheira boa do trivial e arruma
casa; na rua da Carioca n. 3(?), sobrado. 28

Ama-de-leite Ŕ Aluga-s uma chegada há dias da Europa e levando dois filhos de 1 e 5


anos; informa-se na rua do Senador Dantas, n.3 Ŕ confeitaria. 29

Essa presença de imigrantes no serviço doméstico, não é algo típico ao Rio de Janeiro. Em
Buenos Aires, a massiva onda imigratória ao decorrer do século XIX, também enxertou esse campo
de trabalho.
En la ciudad de Buenos Aires se conformó un abultado servicio doméstico.
Familias de diversos niveles socio-económicos solicitaron personal para el
desempeño de faenas domésticas. Las diferencias en la organización y
composición de este segmento laboral evidencian la heterogeneidad existente en
la demanda de las familias porteñas en un mismo momento pero así también los
cambios suscitados en la vida doméstica a lo largo del período.
Este tipo de actividades han socialmente atribuidas a las mujeres, sin embargo,
por aquellos años los varones también se desempeñaron en algunas tareas
específicas desde edades muy tempranas. Y si bien la demanda de servicio fue
provista tradicionalmente por la población nativa (indígenas, criollos, negros,

25
RIBEIRO, Gladys Sabina. Op.cit. p. 9-10
26
Jornal do Commercio Ŕ 01 de janeiro de 1890, p.5.
27
Ibidem
28
Ibidem – 02 de janeiro de 1890, p. 4.
29
Ibidem – 01 de janeiro de 1890, p.5.
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mulatos y mestizos), la incidencia creciente de inmigrantes europeos alteró


sustancialmente el perfil de los trabajadores/as del rubro.30

Assim como no Rio de Janeiro, o serviço doméstico era definido em Buenos Aires pelo seu
caráter pessoal, que dá brechas a diversas formas de negociações que articulavam características de
um serviço livre, quanto de um compulsório.
El servicio doméstico consistió básicamente en la prestación de servicios
personales para realizar tareas vinculadas a la reproducción cotidiana de los
miembros de una familia o individuo a cambio de un salario o ciertas prestaciones
como el uso y consumo de una serie de bienes de subsistencia. Lo que distinguió a
esta actividad ha sido la relación bajo la cual trabajaban los sirvientes: al servicio
personal de quien les paga.
En tanto trabajadores/as domésticos/as, formaban parte de la vida del hogar
junto a los miembros de la familia. Este espacio social definía las relaciones entre
estas personas que, por su función, su origen social y étnico, ocupaban diferentes
posiciones sociales. A su vez, en el ámbito doméstico, todos debían reconocer la
autoridad paterna y debían corresponder con la obediencia apropiada al lugar que
ocupaban como esposa, hijos, parientes o sirvientes.31

Enfim, ao nos debruçarmos sobre qualquer documentação acerca desse tema, abrindo mão
de categorias prévias que já nos são inculcadas e partindo para a análise de como os
contemporâneos vivenciavam tais categorias, podemos observar de forma mais clara os meandros
que perpassam não só o mundo do trabalho, como essa categoria empregatícia do serviço
doméstico. Além disto, estamos nos remetendo a transformações no mundo do trabalho que não
se restringem ao serviço doméstico no Rio de Janeiro32. Ao ter em mente que essas transformações

30
ALLEMANDI, Cecília. Una mirada sobre un grupo socio-ocupacional: El servicio doméstico en la ciudad de Buenos Aires
a fines de siglo XIX y principios del XX. I Seminário Internacional de História do Trabalho - V Jornada Nacional de
História do Trabalho Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 25-28 de Outubro de 2010. p. 3.
31
Ibidem. p. 4.
32
Neste momento verifica-se tentativas de regulamentações e discussões acerca do serviço doméstico, não só no Rio de
Janeiro, mas também em Recife, Rio Grande do Sul. Sobre o serviço doméstico em outros estados do Brasil ver:
CARVALHO, Marcus J. M. de. De portas adentro e de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife,
1822-1850.Afro-Ásia, Salvador, n. 29/30, p. 41-78, 2003; SILVA, Maciel Henrique Carneiro da. Pretas de honra:
trabalho, cotidiano e representações de vendeiras e criadas no Recife do século XIX (1840-1870). 299 f. Dissertação
(Mestrado em História) Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife,
2004; Maria Izilda Santos de. Porta adentro: criados de servir em São Paulo de 1890 a 1930. In: BRUSCHINI, Maria
Cristina; BAKOS, Margaret Marchiori. Regulamentos sobre o serviço dos criados: um estudo sobre o relacionamento
Estado e
Sociedade no Rio Grande do Sul (1887-1889). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 4, n. 7, p. 94-104, mar. 1984
SORJ, Bila (Org.). Novos olhares: mulheres e relações de gênero no Brasil. São Paulo: Marco Zero, 1994. p. 193-212;
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estão sendo gestadas num campo macro, podemos nos desvencilhar da sujeição que temos a pensar
que o que estudamos são situações excepcionais.33 Desta forma, conclui-se que o serviço doméstico
de fins do século XIX e princípios do XX, está inserido numa mudança universal, em que idéias
liberais que trazem à tona a questão da liberdade são inseridas, sobretudo, nos países que se
utilizavam da mão-de-obra escrava. Com isso, traz-se ao plano das discussões a questão da
emancipação e de uma liberdade burguesa, mesmo que tenha ficado num campo mais ideal, do
que real.

REFERÊNCIAS

Periódicos
Biblioteca Nacional (BNRJ) – Setor de Obras Raras
O Rio Nu (1898-1916): S.C. Fala-me logo... á sahida. In. Theatro do Rio Nu. O Rio Nu. 03 de
junho de 1903. Biblioteca Nacional. Obras Raras.
Códices

Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ)


Proposta de regulamentação de Jeronymo de Assis Pinto Freitas. 20 de outubro de 1887.
Códice.50-1-41.

Regulamento para o serviço doméstico. Capitulo 1. p. 32. 1896. Notação. 48-4-56.

Dicionário
AULETE, Francisco Júlio Caldas. Diccionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, feito sobre um
plano inteiramente novo. Portugal, Lisboa: Imprensa Nacional, 1881.

Obras Literárias
ALMEIDA, Júlia Lopes de. A Intrusa. Introdução e estabelecimento do texto por Elódia Xavier, da
UFRJ. Rio de Janeiro: Edições do Departamento Nacional do Livro. Fundação Biblioteca
Nacional, 1994.

33
Sobre essa preocupação metodológica acerca do perigo de considerar os casos individuais como típicos ou dar
importância a casos excepcionais. Ver: DAUMARD, Adeline. Hierarquia e riqueza na sociedade burguesa. São Paulo:
Perspectiva S.A, 1985.

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Documentação
Arquivo Nacional (AN)
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Juízo de Órphãos e Ausentes da 2ª Vara-ZM Ŕ processo de soldada: Menor Manoel. Nº. 2145,
maço. 2315 gal: A.

Juízo de Órphãos e Ausentes da 2ª Vara-ZM Ŕ processo de soldada: Menor Nazarena. Nº. 1913 Ŕ
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Biblioteca Nacional (BN)


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presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva no dia 12 de julho de 2008, é proibida aos
menores de 18 anos Ŕ por força de dispositivo da Constituição Federal (art. 7º, XXXIII) Ŕ o
trabalho em 94 tipos de atividades, dentre elas, o serviço doméstico. Disponível em
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O SERVO DE CORPO E ALMA, O PÃO ESPIRITUAL E A ESCRAVIDÃO NO PROJETO


MISSIONÁRIO BENCIANO

Natália de Almeida Oliveira

Resumo
A obra ŖEconomia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravosŗ do Padre Jorge Benci é formada
por sermões que este pregou na Bahia durante o XVII. A Economia Cristã tem uma introdução e
quatro discursos. Nesta comunicação propomos a análise do Discurso II - “Da Doutrina Cristã, que
os senhores são obrigados [a] ensinar a seus servos” no qual o jesuíta almeja constituir um molde no trato
com o cativo nas questões que tangem a doutrinação cristã. O escopo de nossa comunicação é
realizar a análise deste discurso do italiano sobre a escravidão.
Palavras Chave: Jorge Benci; Escravidão; Discurso.

O SERVO DE CORPO E ALMA: A ECONOMIA CRISTÃ DOS SENHORES NO GOVERNO


DOS ESCRAVOS

Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Gama Filho. Atualmente é membro pesquisadora do Grupo de
Estudos em ações coloniais, denominado ŖTerra Brasilisŗ (ainda não registrado), da mesma instituição, coordenado
pelo Professor Doutor Marcos Guimarães Sanches (UNIRIO/UGF). As considerações apresentadas neste artigo são
derivadas da monografia de conclusão de curso, defendida em Junho deste ano na Universidade Gama Filho.
Durante a graduação foi realizada a pesquisa de Iniciação Científica por dois anos, nossa temática estava atrelada ao
projeto coletivo vinculado ao CNPQ, intitulado de ŖPoder e Sociedade no Mundo Colonial: Estado Colonial: perfil
institucional, esferas administrativas, adaptações e tensões (1640-1750)ŗ, sob a orientação do Professor Doutor
Marcos Guimarães Sanches (UNIRIO/UGF). Atualmente trabalha como pesquisadora no Arquivo do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro.
Neste artigo, optamos por privilegiar a análise da fonte histórica e não a historiografia. Trabalhamos o discurso de
Jorge Benci, inserido na sociedade colonial escravista. Trabalhando com o campo da História Cultural. A
metodologia usada é a da análise de discurso, pautando-nos, em Michel de Certeau, Michel Foucault e Eni P.
Orlandi. Trabalhamos com os conceitos de prática e representação de Roger Chartier. Por uma questão de número
de laudas, mostraremos estes pressupostos teóricos na prática, já inseridos na análise da fonte.
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O jesuíta italiano Jorge Benci1, é o autor da ŖEconomia Cristã dos Senhores no Governo
dos Escravosŗ 2, obra esta formada pelos sermões que este pregou na Bahia durante o XVII, como
Serafim Leite3 nos elucida estes sermões eram chamados de ŖObrigações dos Senhores para com os
escravos”. Depois de transformados na obra citada acima, o manuscrito foi enviado à Roma em 12
de Maio de 1700, sendo publicado e impresso em Roma no ano de 1705.No discurso II Ŕ “Em que
se trata da segunda obrigação dos senhores para com os servos”, vemos o esforço do jesuíta italiano, na
contruçao molde no trato com o cativo, o que a nosso ver enquadra-se na constituição do Ŗprojeto
escravista-cristãoŗ4, não apenas pela edificação de uma Ŗfamília-cristãŗ, mas pela tentativa de
organização da cristandade.
“Como os servos são criaturas racionais, que constam de corpo e alma, não deve só o senhor dar-
lhes o sustento corporal para que não pareçam seus corpos, mas também o espiritual para que não
desfaleçam suas almas”5, depois de propor o que o senhor deve dar o sustento ao cativo, como

1
Jorge Benci nasceu em Ramini, na Itália, em 1650. Ingressou na Companhia em Bolonha, em 17 de Outubro de
1665, com 15 anos de idade. Embarcou para Lisboa em 1681, para trabalhar nas atividades missionárias. Em 15 de
Agosto de 1683, realizou sua profissão solene no Rio de Janeiro. Exerceu cargos de Pregador e Procurador do Colégio
da Bahia, Professor de Teologia e Humanidades, Secretário Provincial e Visitador Local. Serafim Leite na História da
Companhia de Jesus no Brasil o considera “moralista”. No mesmo livro, vemos que em 2 de Maio de 1700, quando
estava na Bahia Jorge Benci, pediu para sair do Brasil, por motivos pessoais, acreditamos que estes motivos pessoas,
são as divergências entre jesuítas italianos e portugueses dentro da Companhia de Jesus, as chamadas Ŗgraves
querelasŗ pelo historiador Ronaldo Vainfas. Benci pediu para voltar para Veneza onde havia estado em 1670 ou para
ir para a Ilha de São Tomé, mas é enviado para Lisboa, aonde morreu em 10 de Julho de 1708.
2
BENCI, Jorge. Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. Livro Brasileiro de 1700. Editora: Grijalbo. São
Paulo, 1977.
3
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VII Ŕ ESCRITORES: de A a M (Suplemento
Bibliográfico Ŕ I). Instituto Nacional do Livro; Livraria Portugália. Rio de Janeiro; Lisboa. 1949. p.p. 95-96.
4
Na obra Ideologia e Escravidão, o historiador Ronaldo Vainfas, trabalha os três Ŗníveis de consciênciaŗ sobre a
escravidão, aonde ele cria um esboço ideológico acerca destas. No primeiro nível de consciência, que tange os séculos
XVI e XVII, a escravidão negra não foi apontada como problema, ela era parte daquela sociedade, passando
despercebida de qualquer contestação. Já o segundo nível de consciência, que é aquela relatada pelos letrados
envolvidos no contexto histórico de Palmares, aonde o escravo negro é visto como um inimigo social, nesta
consciência há um temor social por causa das rebeliões. E no terceiro nível de consciência, que cronologicamente vai
de meados do século XVII até meados do século XVIII, os jesuítas e seus seguidores buscam normatizar a escravidão,
inseridos no que foi chamado de Ŗprojeto escravista-cristãoŗ, por Ronaldo Vainfas. No projeto escravista-cristão a
escravidão toma contornos de Ŗmodelo de família cristã e patriarcal, através do qual se julgava possível neutralizar as
contradições sociaisŗ, desta maneira, transpondo o ideal de escravo/negro e senhor/branco, todos deveriam ser cristãos,
filhos de Deus, independente de serem senhores ou escravos, logo: ŖNormatizar o sistema, conferindo-lhe eficácia e
equilíbrio e, ao mesmo tempo, construir a cristandade no Brasil, eis os objetivos fundamentais do projeto escravista-cristão e do
discurso que lhe serviu de suporte.” In: VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e Escravidão: Os Letrados e a Sociedade Escravista
no Brasil Colonial. Editora: Vozes. Coleção: História Brasileira 8. Petrópolis, 1986. p.152.
5
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.84. Grifos nossos.
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conservação de vida humana, no que tange alimentação, vestuário e cuidado com as enfermidades,
que são preocupações com o corpo do servo, Benci afirma a alma do cativo, e que esta alma precisa
ser alimentada, assim como o corpo;
E se me perguntam em que consiste o alimento espiritual? Digo que em três
coisas, que correspondem às três coisas, que correspondem três vezes que
mandou Cristo a S. Pedro.[...]Mas que três coisas são estas? O Concílio
Tridentino as declara, e diz que são a Doutrina Cristã, o uso dos
Sacramentos, e o bom exemplo da vida (m). E suposto que neste lugar fala o
Concílio particularmente com os Párocos e Pastores de Almas, não deixa
contudo de falar também com os senhores, pois também são Curas das
almas de seus servos.6

Benci utilizando-se do texto bíblico de João 217, e das determinações do Concílio de


Trento, denota a quem fala o seu projeto missionário, fala aos párocos “pastores de almas” e aos
senhores de escravos, que juntamente com os religiosos, são os responsáveis pela alma dos cativos.
O pão como alimento espiritual para a alma do servo, esta dividido em cinco partes na
ŖEconomia Cristãŗ. Analisaremos as principais perspectivas presentes no discurso jesuítico de Jorge
Benci.
Partimos do pressuposto que o discurso por mais particular que seja, está inserido em um
contexto maior e utilizando a premissa que não há discurso sem sujeito, nem sujeito sem
ideologia8; entendemos que Benci está inserido em uma sociedade escravista colonial, o que com
certeza interfere em suas afirmações.

6
Idem. p. 83-84. Grifos nossos.
7
João 21: 15-17 - ŖDepois de comerem, Jesus disse a Simão Pedro: ŖSimão, filho de João, tu me amas mais do que
estes?ŗEle lhe respondeu: ŖSim, Senhor, tu sabes que te amoŗ. Jesus lhe disse: ŖApascenta meus cordeirosŗ. Segunda
vez disse-lhe: ŖSimão, filho de João, tu me amas? Ŕ ŖSim, Senhorŗ, disse ele, Ŗtu sabes que te amoŗ. Disse-lhe Jesus:
ŖApascenta minhas ovelhasŗ. Pela terceira vez lhe disse: ŖSimão, filho de João, tu me amas?ŗ Entristeceu-se Pedro
porque pela terceira vez lhe perguntara ŖTu me amas?ŗ e disse-lhe: ŖSenhor tu sabes tudo; tu sabes que te amoŗ. Jesus
lhe disse: ŖApascenta minhas ovelhasŗ.ŗ In: JERUSALÉM, Bíblia de. Nova edição revisa e ampliada. Editora: Paulus.
São Paulo, 2002.p.1894.
8
ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso Ŕ Princípios & Procedimentos. Editora: Pontes. São Paulo, 2009. p. 47.
Nosso trabalho é pautado no campo da História Cultural, sabemos da possível incongruência teórica de pensar
ideologia em um trabalho de vertente culturalista. Por isso ressaltamos que apesar de nos basearmos nas
considerações de Michel Pêcheux e de Eni P. Orlandi, acerca da análise de discurso, não compactuamos com o seu
conceito nem com a sua vertente teórica de ideologia. Recorremos a Peter Burke para tal, quando este nos mostra a
variedade de definições existentes para o conceito de ideologia, e em todo o nosso trabalho entendemos ideologia
pela perspectiva de Karl Manheim, aonde esta tem um “sentido neutro como sinônimo de visão de mundo”, aonde a
“concepção específica de ideologia é a noção segundo a qual idéias ou representações podem ser utilizadas para manter
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No item um do discurso II, intitulado de: “Da Doutrina Cristã, que os senhores são obrigados
[a] ensinar a seus servos”, Benci nos diz; ŖBem sabeis que a maior parte dos servos deste Brasil vem da
Gentilidade da Guiné [e] mais partes da África, tão rudes dos mistérios de nossa Santa Fé” 9, nessa assertiva
Benci já mostra sua concepção Cristã, aonde gentil são todos aqueles que não são cristãos, logo na
visão de mundo de Benci a África é gentil, e todos que de lá saem também são, pois não se
alimentam da sua concepção de fé. Por isso afirma: “Devem primeiramente os senhores alimentar as
almas de seus servos com a Doutrina Cristã, para que saibam os mistérios da Fé, que devem crer, e os preceitos
da Lei de Deus, que hão de guardar”10, deste modo os senhores de escravos e religiosos coloniais têm a
obrigação de alimentar a alma dos escravos com a religião Católica.
O senhor de escravos peca quando tem um escravo recém convertido a Fé (muitos
escravos tinham o batismo realizado antes do embarque para o Brasil ou no percurso da viagem) e
que não cuidam da doutrinação cristã deste.
Benci indaga “Em que se funda esta tão precisa obrigação, que têm os senhores de catequizar os
servos? Digo que no poder e domínio que tem sobre eles; porque o doutrinar aos rudes é conseqüência de quem
tem neles o senhorio”11, sendo Jesus Cristo, filho de Deus, ao qual foi dado todo poder sobre o Céu e
a Terra12, Benci afirma: “Entendeis muito bem, senhores, que tendes domínio e poder sobre os escravos;
entendei também que a conseqüência deste poder e deste domínio é a obrigação de ensinar e instruir nos
mistérios da Fé e preceitos da Lei de Deus” 13, deste modo o senhor que afirma, que os escravos são
brutos e que não conseguem aprender a fé, erra e peca, pois Jesus Cristo é o senhor de todas as
gentes e por isso a Ŗgente da Áfricaŗ deve aprender a doutrina Católica.
O senhor que ensina a doutrina cristã a seu servo deve considerar-se Ŗum ministro
deputado por Cristoŗ, na concepção de Santo Agostinho14como afirma Jorge Benci, por que:
“Pregando o nome de Cristo e ensinando a doutrina a todos que puder. Pois com quem melhor o podes e deveis
fazer, que com aqueles que Deus vos sujeitou, fazendo-os vossos escravos, para que sejais seus Mestres na

determinada ordem social ou política”. In: BURKE, Peter. História e Teoria Social. Editora: Unesp. São Paulo, 2000.
p.134.
9
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.84.
10
Idem.
11
Idem. p. 85.
12
Mateus 28:18 - ŖTodo poder foi me dado no céu e sobre a terra.ŗ In: Bíblia de Jerusalém. Op., Cit. p.1758.
13
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.86.
14
Idem. p. 87.
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Cristandade.” 15O italiano afirma que a conversão do servo em nada abala a autoridade do senhor e
que ao doutrinar um escravo no Cristianismo o senhor torna-se seu mestre na cristandade.
Fazendo referencias a Roma, ao Imperador Marco Crasso, Benci questiona se no Império
Romano, aonde os imperadores eram gentis, estes tinham o cuidado de um pai com os seus servos,
como pode no Brasil Cristão, os senhores não cuidarem bem de seus servos? Afirmando que
quando o senhor não puder ou não quiser doutrinar o escravo, este deve o levá-lo para os Colégios
e Casas da Companhia de Jesus ou para outras casas religiosas, para os clérigos doutriná-los, pois
não se pode permitir que o escravo passe a vida na gentilidade.
Para esta conversão do cativo o senhor deve ter paciência, pois ela não é automática, ela
leva tempo, e muitas vezes os senhores não querem esperar, por isso o italiano afirma: ŖDeixai pois a
disposição do Missionário gastar o tempo, que julgar conveniente, na instrução do escravo; e daí graças a Deus
de haver quem vois alivie da obrigação que tender de dar o pão da Doutrina Cristã ao vosso servo.”16
Partindo da premissa que Ŗtodo dizer é ideologicamente marcado”17, podemos perceber o ideal
de missão na tentativa de afirmação de uma cristandade colonial, que alcança os considerados
como gentis, transformando-os em escravos cristãos. Realizando uma tentativa da normatização do
trato ao cativo, na qual a todo o tempo Jorge Benci respalda-se em referências bíblicas e da
Antiguidade para a construção de seu discurso, que a nosso ver carrega sua visão de mundo, sua
posição social como jesuíta, pois o discurso está carregado de interesses, deste modo a manutenção
da sociedade escravista, a legitimação da escravidão e o do Império eram necessários.
No item dois do discurso II, intitulado de: “Digressão exortatória aos Párocos para que ensinem
a Doutrina Cristã aos escravos, com têm de obrigaçãoŗ, Benci nos diz que:
ŖA doutrina e a instrução dos seus escravos no que toca à sua salvação e bem de
suas almas, deva correr por conta de seus Curas e Párocos, só o poderia duvidar
quem ignorasse a obrigação precisa, que têm os Pastores de Almas de dar o pão
espiritual a suas Ovelhas.ŗ 18

15
Idem. p. 88.
16
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.90.
17
ORLANDI, Eni P. Op. Cit. p. 36. A lógica de uma sociedade colonial, pautada e mantida pela escravidão a nosso ver
é inerente ao discurso de Benci.
18
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.91.
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Sendo todos os homens filhos de Deus, os religiosos são pastores dos cativos, tanto pelo
direito canônico quanto pelo divino, e é obrigação destes religiosos doutrinarem os servos, “pela
maior necessidade que há neles de doutrina, por causa de sua natural rudeza e ignorância” 19.
Entretanto de acordo com Benci, existem religiosos que só ministram a Doutrina para os
brancos e livres, pois esperam recompensas materiais em troca, e os negros cativos nada podem dar
em troca. Esses religiosos são condenados ao Inferno, pois não são verdadeiros cristãos.
Mostrareis, que sois verdadeiros Pastores, e não mercenários, que olham somente
para o interesse e a conveniência própria e não para o bem de suas Ovelhas: e
justamente seguires o verdadeiro exemplar de todos os pastores, Jesus Cristo, que
disse, falando se si mesmo, que o enviara o Eterno Padre e mandara ao mundo
doutrinar e evangelizar unicamente os pobres. 20

Se Jesus Cristo foi missionário enviado por Deus para evangelizar a todos, como os
religiosos coloniais se negavam a tal? Era necessário que estes religiosos se desfizessem de interesses
materiais e se focassem na missão de Ŗdeputados de Cristoŗ, escolhidos por Deus para doutrinar os
pretos cativos.
ŖNão só no tempo da Quaresma, mas em todos Domingos e Dias
Santos, como manda o Concílio Tridentino; e vereis que com essa continuação e
repetição se há-de abrandar e quebrar a dureza dessas pedras, e se transformarão
em bons e verdadeiros Cristãosŗ 21
Esse ensinamento aos cativos não deve ser superficial, só com perguntas sobre a
Quaresma, ou sabendo os Mandamentos e Orações para poder receber os Sacramentos, como diz
Benci, pois muitos destes escravos rezam, mas não sabem ou entendem o que rezam. É preciso que
os servos Ŗentendam o que dizem, percebam os mistérios que hão-de-crer, e penetrem bem os
preceitos que hão-de guardarŗ22.Os religiosos devem dar o pão da doutrina Cristã aos sevos, ensiná-
los com paciência, ensinando-os quantas vezes forem necessárias, dando exemplos palpáveis e
entendíveis aos cativos. Se o escravo for rude, o jesuíta nos diz que deve ensiná-lo mesmo assim,
para este possa deixar de ser rude.
Não adianta ensinar a doutrina uma vez ao ano apenas, às pressas, o ensino deve ser um
processo contínuo. No texto Benci fala que é uma ignorância isto que ocorre no Brasil, Ŗignorância

19
Idem.
20
Idem. p.93.
21
Idem p.96.
22
Idem p.94.
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tão geral e comum” 23, fazendo uma analogia bíblica ao Livro de Isaías24, no que tange o Destino do
Povo de Israel, com as Invasões Holandesas25 no período colonial, Benci constata que tanto povo
de Israel quanto o povo do Brasil foram castigados.
Para evitar pois todos esses castigos e gerais destroços , apliquem os Párocos e
Senhores o maior de seus cuidados em dar o pasto espiritual às almas dos Pretos,
inculcando-lhes, uma e muitas vezes, a Doutrina Cristã e os mistérios da Fé.26
No discurso de Benci percebemos o castigo de Deus aquelas nações que não o obedecem.
E o povo do Brasil peca quando não doutrina seus cativos como manda a lei cristã, desta maneira
para evitar punições Divinas os senhores de escravos e os religiosos, devem dar o alimento
espiritual aos escravos.
Trabalhando com a perspectiva de Ŗnoção de metáfora, aonde não há sentido sem metáforaŗ 27,
percebemos que o intuito de missão vindo do ideal de Portugal como povo escolhido por Deus,
para defender e lutar pela Cristandade serve como suporte para mensagem passada pelo jesuíta,
pois ao propor dar o alimento espiritual aos escravos, vemos este ideal de missão e Cristandade,
atrelados e não ditos no discurso de forma literal e clara. A missão e a Cristandade estão no
discurso, mas não estão ditos, estando subtendidos.
No Brasil Cristão os religiosos devem praticar a doutrinação continuadamente, sem
querer nada em troca, pois são enviados diretos de Deus para tal missão, os que não o fazem, serão
castigados com a ida para o inferno e o povo do Brasil também será castigado como foi o de Israel.
A todo o momento as narrativas bíblicas servem de aporte para a construção do texto Benciano,
respaldado pelo ideal de missão e pela pelo ideal de construção de uma Cristandade, o jesuíta
comporta em seu texto, a obrigação dos senhores de escravos de dar o pão espiritual aos cativos
coloniais.

23
Ibidem.
24
Isaias 5:13- ŖEis porque meu povo foi exilado: por falta de conhecimento; seus ilustres são homens famintosŗ . In:
Bíblia de Jerusalém. Op., Cit. p. 1261.
25
Ressaltamos que esta não é a primeira referência de Benci sobre as Invasões Holandesas, em sua obra. Independente
de qual discurso ele esteja dissertando, ele sempre usa a invasão Holandesa como um castigo divino ao povo do
Brasil.
26
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.98.
27
A metáfora por Lacan é quando uma palavra é definida pela tomada de uma palavra por outra palavra, na análise de
discurso ela é a transferência, o modo que as palavras significam. ŖAs palavras não têm, nessa perspectiva, um sentido
próprio, preso a uma literalidade.ŗ In: ORLANDI, Eni P. Op. Cit. p. 44.
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No item três do discurso II, intitulado de: “Como os senhores estão obrigados a procurar que os
servos recebam a seu tempo os Santos Sacramentos,” Benci afirma que os senhores devem dar o pão
espiritual a seus servos, fazendo que estes recebam os Sacramentos, “que devem os senhores querer e
buscar para os servos, com o mesmo cuidado e diligência, com o que querem e buscam para si” 28,
encontrando no livro bíblico de Gêneses 17 29 respaldo na atitude de Abraão, quando este
circuncidou todos em sua casa no mesmo dia, incluindo os servos. Benci chama Abrão de senhor
entendido, que deu Ŗum grande exemplo este grande documento aos mais senhores, que devem querer e
procurar os Sacramentos para os servos com o mesmo cuidado, com que devem querer e procurar para si.” 30
Os senhores do Brasil não tem essa concepção, pois se tivessem não permitiriam que seus
escravos morressem sem se confessar, pois a morte sem confissão faz com que o escravo vá direto
para o inferno. E estes escravos clamarão vingança aos seus senhores, pois é por causa destes, que
eles não iram para o céu.
Há também o senhor que não leva o Sacramento quando o escravo está doente, quando
este não pode ir a Igreja. Se Jesus Cristo visitou os doentes, como pode os senhores cristãos, não
levarem o Sacramento? Logo é dever do senhor levar o Sacramento aos negros, pois a alma deles
está doente e precisa de saúde.
Jorge Benci trata também o Sacramento do matrimônio, este é impedido para os servos
pelos senhores de engenho. O matrimônio foi instruído aos homens não apenas para manutenção
da espécie, mas para “remédio a concupiscência e para evitar pecados” 31, deste modo, os senhores que
proíbem o matrimônio erram e vão contra o Concílio Tridentino.
Muitos senhores depois de casados e senhoras depois de casadas pecam, praticam o
adultério, e se algum escravo ou escrava casar e praticar o adultério, Deus o castigará, assim como
castiga qualquer homem. Então o possível adultério, não é justificativa para os senhores. Estes
devem permitir o casamento de seus escravos e não devem impedir e complicar a vida de casado
destes, separando um cônjuge do outro, pois só quem pode realizar divórcios é a Igreja. Se um dos

28
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.98.
29
Gêneses 17:26,27 Ŕ ŖNesse mesmo dia foram circuncidados Abraão e seu filho Ismael , e todos os homens de sua
casa, filhos da casa ou comprados por dinheiro a uma estrangeiro, foram circuncidados com ele.ŗ In: Bíblia de
Jerusalém. Op. Cit. p. 55.
30
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.99.
31
Idem p.102.
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escravos casados for vendido deve-se perguntar ao outro se este quer ir, se quiser este também será
vendido, se não este fica. Os senhores de escravos devem ser a favor do casamento de seus cativos,
apoiando-os, pois assim estarão dando alimento espiritual para suas almas.
No discurso Benciano o senhor deve dar os Sacramentos necessários aos escravos, quando
este está a beira da morte e quando este está doente, apoiando-se novamente nas determinações do
Concílio de Trento e nas escrituras bíblicas, legitimando mais uma vez, a posição de Portugal como
nação escolhida para difundir a fé católica.
Entretanto, o que mais chama atenção na análise do terceiro ponto do discurso de Jorge
Benci, é a questão do matrimônio, sua posição favorável ao casamento de escravos. Enxergamos
esse apoio a união de cativos, como uma forma de garantir estabilidade ao sistema escravista, pois o
escravo casado, cria família, e esta é um empecilho a fugas e revoltas, é mais fácil um escravo
solteiro fugir, do que um casado. Desta forma, o discurso é pautado na lógica de uma sociedade
escravista colonial.
No item quatro do discurso II, intitulado de: “Do bom exemplo que devem dar os senhores aos
seus servos,” Jorge Benci, nos fala sobre o exemplo que os senhores têm de dar a seus escravos; ŖO
melhor modo de doutrinar não é com palavras, é com obras” 32, pois doutrina é apenas auditiva, já as
obras são visíveis aos olhos, chegando até ao coração, Ŗo verdadeiro Mestre mais ensina visto, do que
ouvidoŗ 33. Sendo o senhor um exemplo e modelo de postura para o cativo.
Trabalhando com a ideia de que os escravos são descansados e vagarosos por sua natureza,
ideia esta que estava presente em todo o imaginário colonial e nas letras coloniais, podemos
34
comprovar a premissa que Ŗtodo discurso se delineia na relação com os outros” , pois conseguimos
enxergar uma ligação entre os discursos coloniais.
Benci compactua o seu discurso com o imaginário do período e vai ao texto Bíblico de
Gêneses 1835 e ao texto de João 1336 buscar legitimação, e a encontra, já que o escravo de Abraão se

32
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.105.
33
Idem. p. 106.
34
ORLANDI, Eni P. Op. Cit. p. 43.
35
Gêneses 18:7 - ŖDepois correu Abraão ao rebanho e tomou um vitelo tenro e bom; deu-o ao servo que se apressou
em prepará-loŗ. In: Bíblia de Jerusalém. Op. Cit. p. 56.
36
João 13:14-15 Ŕ ŖSe, portanto eu, o Mestre e Senhor, vois lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns dos outros.
Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós os façais.ŗ Idem. p.1877.
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apressou ao ver a pressa de seu senhor, e os discípulos de Jesus ao verem que este lavou os pés, logo
lavaram os pés também, imitando-o. Nestas passagens o jesuíta encontra respaldo bíblico para
poder afirmar aos senhores que se estes forem um bom exemplo, para seus escravos, estes os
seguiriam e o imitariam.
O italiano afirma que os escravos de Abraão na passagem bíblica o seguiram porque este
era um senhor exemplar e não por este usar de violência ou castigos, assim mostrando aos senhores
que o uso do castigo e da violência tão usados no Brasil são errôneos, pois não servem de exemplo
para uma boa conduta dos escravos.
Como os senhores de escravos querem criticar a vida de Ŗescândalosŗ dos escravos e
escravas coloniais, se os próprios senhores dão exemplos de vidas escandalosas, utilizando o termo
de Benci, pois a vida que os senhores do Brasil levam, são vidas de pessoas gentis, e não de cristãos.
Não basta ensinar a palavra é preciso ser um exemplo de vida, de uma vida cristã; ŖOs senhores, que
querem persuadir aos escravos a exacta observância dos preceitos divinos, devem viver de sorte que vejam neles
os mesmos escravos um exemplo e retrato de verdadeiro cristão”37. O senhor deve dar o exemplo e não
perjurar o nome de Deus e dos Santos, ir a missa aos Domingos e dias santos, não matar nem ferir,
não praticar o adultério, não furtar, não pecar contra nenhum mandamento, pois Benci afirma
que: Ŗque toda mais doutrina, que os senhores derem aos seus servos, se não for acompanhada de seu exemplo
e confirmada com suas obras, não servem de alimento espiritual, que devem dar as almas de seus
escravos.”38Sendo assim, se a doutrinação não caminhar junto com o exemplo, ela não serve como
alimento para a alma do cativo.
No item cinco do discurso II, intitulado de: “Em que se infere e mostra quão grave seja o
pecado daqueles senhores, que escandalizam a seus servos, induzindo-os por qualquer modo ao pecado”, Jorge
Benci afirma que:
Se os senhores (como temos visto) pecam tão gravemente faltando à obrigação,
que têm, de dar aos servos o pão e o alimento espiritual, sem o que pareceriam
suas almas, [...] Que pecado será dos mesmos senhores, quando por qualquer
caminho lhes dão de beber o veneno, que lhe trás a morte eterna? Chamo de

37
BENCI, Jorge. Op. Cit. p.110.
38
Idem. p.111.
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veneno tudo aquilo, que induz e convida a pecar, a que os teólogos vulgarmente
chamam de escândalo.39
Benci nos fala sobre aqueles senhores que faltam com as obrigações do pão espiritual, mas
que também pecam induzindo os escravos a pecarem também. A razão natural ensina de acordo
com Benci, que o mal de pecar é maior do que o mal da morte, pois o pecado é uma ofensa a Deus,
e os senhores quando induzem os escravos a pecar, estão tirando-lhes sua alma. E isto é mais grave
do que se estes senhores o matassem, pois se isto fizessem tirariam apenas seu corpo.
Quando o senhor Ŗescandalizaŗ seu servo, ele faz um favor ao Demônio, poupando-o de
seu trabalho. E de acordo com os escritos de Benci, o senhor ao Ŗescandalizarŗ o escravo, não faz
mal só ao escravo, faz mal a si mesmo, pois a alma de ambos é morta, entretanto o servo pecou
induzido pelo senhor, já o senhor foi aquele que o induziu, logo este é Ŗdigno de uma maldição
tremenda de Deus, por ser instrumento do demônio na perdição e na ruína das almas.”40 Desta maneira, o
senhor ofendeu não só ao escravo por ter o induzido a pecar, mas ofendeu a Cristo, com a sua
atitude. Todo pecado cometido contra o outro é um pecado cometido contra Cristo e a contra
Deus.
Que haja senhores que, não reparem nem advirtam do grande escândalo, que dão
as suas escravas, consentindo que saiam de casa a quaisquer horas e desoras, ou
sejam da noite ou do dia, sabendo que daí provem tantas ofensas a Deus!41
Outro escândalo, explicitado por Benci, é aquele que os senhores que permitem que suas
escravas andem vestidas com o pecado, isto é quando estas estão vestidas com roupas que foram
adquiridas por meio de ofensas a Deus (no discurso I, quando Benci fala das vestimentas, ele nos
afirma que as escravas que pecam (sexo fora do casamento), estavam “trajada (s) com a libré do pecado,
tão vária nas sedas, e nas cores, como são várias as mãos de quem a recebem” 42), e estes senhores ao
permitir isso e compactuar para tal erro, pecam não sendo verdadeiros cristãos.
Mais ainda não param aqui os escândalos dos senhores do Brasil; porque não
contentes com induzir, aconselhar, consentir, e ainda mandar aos escravos que
pequem, passam muito mais avante, obrigando-os com o castigo ou ameaços
dele.43

39
Idem. p.112.Grifos nossos.
40
Idem. p.115.
41
Idem. p. 118.
42
Idem, p. 68.
43
Idem. p. 120.
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O senhor que obriga o servo a pecar, e quando o servo não quer pecar o castiga, é Lúcifer
personificado em forma humana de senhor, pois o senhor que mantém relações sexuais com a sua
escrava, e ainda mais quando a obriga a força, não é um senhor cristão. Este será punido com a
pena eterna no Inferno, e com a pena do direito comum português.
“E que haja senhores tão cegos, que não reparem, nem advirtam da grande injustiça que cometem
44
obrigando a seus servos a pagar-lhes o que não devem!” Há no Brasil colonial aqueles senhores que
castigam seus escravos quando estes quebram algo sem querer durante o trabalho, ou que quando
estavam trabalhando e a casa do senhor foi assaltada, e nada puderam fazer. Isto é outro escândalo
que estes senhores cometem, pois os cativos não tiveram culpa, eles voluntariamente não causaram
nenhum dano, e desta maneira os senhores pecaram, pois foram injustos com os seus escravos.
No fim de seu discurso Benci, afirma que estes escândalos, que os senhores cometem ao
fazerem os escravos pecarem, são muito graves e freqüentes. Entretanto, Ŗsendo tão fáceis os homens
em dar escândalos, são tão difíceis de se arrepender e fazer penitência delesŗ45, pois os senhores devem se
arrepender e se confessar, para assim tirar estes escândalos de si. E devem também parar de dar
veneno as almas dos escravos, por isso Benci deixa um lembrete a todos os senhores de escravos do
Brasil: “Lembrai-vos que tender obrigação de vos aplicar a todos a procurar-lhes o alimento para a alma, assim
como tender de lhes procurar o sustento para o corpo.” 46
O discurso de Benci, a todo o momento usa alegorias bíblicas para se constituir, a batalha
bem x mal, Deus x Lúcifer é representada pelo escravo que peca por indução do seu senhor. E um
senhor cristão, não deveria corromper o seu escravo ao erro.

O DISCURSO: O PÃO ESPIRITUAL E A ESCRAVIDÃO


Em todo o discurso desta Obra mostrei aos senhores (não só aos do Brasil, mas
todos) quais são as obrigações, que devem guardar no governo dos escravos.
Mostrei em primeiro lugar que lhes devem dar o pão, assim como o corporal para
o sustento dos corpos, como o espiritual para alimento das almas, panis, ne
succumbat. Em segundo ligar mostrei que os devem corrigir, e sendo necessário
castigar com moderação, para que não vivam erradamente, disciplina, ne erret.
Mostrei ultimamente que lhes devem dar o trabalho a seu tempo,
proporcionando-o às suas forças, e atemperando-o com o descanso, de maneira

44
Idem. p. 121.
45
Idem. p. 163.
46
Idem.
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que sirva, não para lhes oprimir a vida, mas para lhes oprimir a insolência, opus,
ne, insolescat. O que agora resta, é, que os mesmos senhores procurem dar
execução todas estas obrigações, considerando (além do que tenho dito) a
miserável condição de quem é escravo.47

O escravo no texto de Benci é um escravo que veio das terras gentis da Etiópia, é um
pecador. A visão cristã do jesuíta se adapta a sociedade colonial escravista, a projetada família cristã
patriarcal é orquestrada e nasce no imaginário de sua obra, no seio de um Ŗprojeto escravista-
cristãoŗ, quando o senhor transpõe-se em pai e o escravo transforma-se em um filho, o primeiro é
um novo homem, que é um modelo, que tem uma conduta moral impecável, que doutrina seu
cativo, o segundo é um servo obediente, piedoso, que abriu mão de suas raízes africanas e tornou-se
um cristão. Ser cristão é ser modelo de homem, que depois da morte, ascenderá ao Céu, para ficar
junto a Santíssima Trindade e com os Santos.
Michel de Certeau ao nos falar sobre discurso afirma que estes ao falar da História estão
na História, pois estes discursos não são flutuantes em um contexto, “são históricos porque ligados a
operações e definidos por funcionamentos. Também não se pode compreender o que dizem independentemente
da prática de que resultam,”48 sendo assim ao realizarmos a análise do discurso de Jorge Benci acerca
da escravidão devemos enxergar este como um homem de seu tempo, pertencente a uma sociedade
colonial escravista.
49
“Um texto é transformado em mercadoria e em sintoma do sistema que transporta e vende” ,
partindo desta premissa os textos coloniais são uma mercadoria do sistema colonial, um produto
deste, que transporta e repassa a escravidão e o sistema escravista. Ainda segundo Certeau: “O
discurso político não revela os cálculos de que resulta, mas os serve. As ideologias repetem verdades que se
tornaram não críveis, mas são sempre distribuídas pelas instituições que delas de beneficiam,”50 partindo
deste pressuposto vemos o duplo papel da Companhia de Jesus no Brasil Colonial, pois de um lado
ela é difusora da Verdade51, do outro ela é uma instituição eclesiástica escravista.

47
Idem. p. 213.
48
CERTAU, Michel De. A Escrita da História. 2° Edição. Editora: Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2010.p.32.
49
CERTAU, Michel De. A Linguagem da Violência. In: CERTAU, Michel De. A Cultura no Plural. 6° Edição. Editora:
Papirus. São Paulo, 2010. p.88.
50
Idem. p.89.
51
A Companhia de Jesus, Ordem fundada por Inácio de Loiola após a ruptura da Cristandade em 1537, chega ao
Brasil junto com a expedição do Governador Tomé de Souza em 1539, trazendo consigo o ideal de missão, sendo
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A linguagem-mercadoria não diz para que serve nem o que determina. Ela é seu efeito. É o
produto do sistema violento que, apreendido sob sua forma cultural, desarticula a língua e
52
a fala, coagindo uma a se calar e a outra a se proliferar indefinidamente.

O discurso Benciano seguindo a passagem de Michel de Certeau acima, é entendido como


mercadoria da sociedade colonial. Na qual a escravidão é o efeito, produto de um sistema escravista
que se prolifera continuadamente.
Enxergamos o discurso Benciano tendo “atenção sobre as estratégias simbólicas que determinam
posições e relações que constroem, para cada classe, grupo ou meio, um ser-percebido constitutivo de sua
identidade”53, e ao analisá-lo, o percebemos como “um sujeito lingüístico-histórico, constituído pelo
esquecimento e pela ideologia e o modo como definem o exteriorŗ 54. Desta maneira os escritos de Benci
acerca da escravidão, falam e definem seus lugares sociais na lógica da colonização, e isto nos
permite dizer que molde no trato dos cativos é uma justificativa do sistema, e não um meio de
acabar com ele.
O discurso do jesuíta italiano está entre práticas e representações, pois no que tange o
conceito de prática, a sociedade colonial continuava sendo uma sociedade colonial escravista, a
pregação religiosa sobre a normatização da escravidão em nada abalou a sociedade colonial, desta
forma não tendo ecoado na prática social daquela sociedade. E na visão permitida pelo uso do
conceito de representação, há uma mudança, o projeto missionário é orquestrado, a normatização
da escravidão ocorre, é criada uma cristandade e uma família cristã colonial, que engloba senhores
e escravos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

herdeiros de uma concepção medieval de conversão de fiéis. Mas a Era Moderna muda a concepção de missão, esta
toma um caráter social, que objetiva sair a de novos lugares para difundir a Verdade, lugares estes aonde esta, não é
conhecida ou não é ouvida, desta maneira o sagrado iria unir-se ao profano [Entendemos sagrado e profano pelo
estudo de ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano Ŕ A essência das religiões. Editora: Martins Fontes. São Paulo,
2001.] para “a procura da Glória de Deus” Os Inacianos têm um duplo papel na sociedade colonial, pois além de ser a
difusora da Verdade para os considerados gentis sendo missionários e educadores, esta também, é uma instituição
escravista que deseja manter e legitimar a escravidão. A Ordem de início pobre tornou-se uma das instituições mais
opulentas da colônia, com o decorrer do tempo a Companhia passa a não ser bem vista pela Coroa Portuguesa, pelos
colonos e pelas demais Ordens.
52
Idem. p. 90
53
CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Revista Annales Ŕ Novembro/Dezembro de 1989. n.6.
P.P:1505-1520.
54
Eni P. Orlandi. Op. Cit. p. 91. Ressaltamos que falamos aqui na pragmática que é o fora e não o interdiscurso, como
pontua a autora.
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O NOVO DA NOVA: SEXUALIDADE FEMININA EM REVISTA.


Renata Rodrigues Brandão
Resumo:
A revista Nova surge no Brasil em outubro de 1973 com uma característica editorial marcante: a
presença exaustiva de discursos sobre a sexualidade. No intuito de dizer as mulheres Ŗvocê podeŗ e
Ŗvocê deve quererŗ surge a Cosmopolitan brasileira Ŗsem brados do movimento da libertação
femininaŗ, mas preocupada em dizer a mulher como alcançar prazer no sexo. As práticas
discursivas da mídia contribuem para colocar em ação o dispositivo da sexualidade reproduzindo
um conjunto de regras e de normas, criando modelos, identidades e fixando padrões de conduta.
O presente trabalho propõe discutir a relação mídia e sexualidade com a constituição de
identidades femininas tendo como referencial a arqueo-genealogia de Michel Foucault e os
Estudos Culturais.
Palavras-Chave: Sexualidade; Gênero; Mídia; Revista Nova; Estudos Culturais.

As sociedades contemporâneas ocidentais vivenciam cada vez mais o triunfo da intimidade


no espaço público onde cresce na mídia televisiva, impressa e seus outros suportes; discursos que
põe em questão o sexo. Convivemos diariamente com manchetes de jornais, revistas, anúncios
publicitários e programas de televisão que debatem a importância do sexo na vida dos indivíduos,
da saúde sexual, do sexo como auxílio para prevenir outras doenças, do sexo como promotor de
Ŗbem-estarŗ. Artigos sensacionalistas dos casos de pedofilia, comentários e flagrantes das
Ŗorientações sexuaisŗ e da vida amorosa dos artistas-celebridades, o ensino das técnicas de
aprimoramento das relações sexuais e cuidados com o corpo, nos bombardeiam com imagens de

Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Mestre em Saúde Coletiva pelo
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ), Doutoranda do Programa de
Pós Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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corpos atléticos seminus e em posições e falas Ŗprovocantesŗ. O sexo também aparece na mídia para
nos lembrarmos da alarmante epidemia da AIDS, da violência sexual, do tráfico de mulheres e da
prostituição infantil. Seja como for sexo está sempre na pauta do dia. Sexo vende e vende bem. Por
isso, todos estão atrás desse filão: desde a indústria farmacêutica e cinematográfica, passando pela
mídia, os autores de livros de auto ajuda e de técnicas sexuais.
A mídia tem uma grande parcela de responsabilidade na difusão de numerosos discursos
que circulam na sociedade sobre o sexo. Discursos que inserem a sexualidade no centro do
desenvolvimento humano, como aquilo que é capaz de nos dizer quem somos, naturalizando
identidades que são construídas culturalmente. Ler os discursos da sexualidade em uma revista
feminina é, ao mesmo tempo, passar em revista o papel da mídia em nossa sociedade,
especialmente em relação à constituição de identidades e diferenças de gêneros. Nesse sentido, o
presente trabalho tem como objetivo apresentar a relação mídia, sexualidade e gênero tendo como
objeto de pesquisa a revista feminina Nova no primeiro ano de sua publicação no Brasil em 1973.
Inicialmente apresentarei as proposições teóricas e os caminhos metodológicos dos quais me
aproprio para uma leitura crítica e política dos discursos da sexualidade na revista Nova. Após uma
breve exposição teórico-metodológica sigo com uma reflexão sobre os estudos da sexualidade e com
um panorama histórico-cultural da sexualidade no final dos anos 60 e início dos anos 70 contexto
em que surge a revista Nova.
O pesquisador na ampla área das chamadas Ciências Humanas quando escolhe
como objeto de pesquisa uma mídia freqüentemente utiliza-se dos estudos das representações
sociais. O termo oferece perigos. Pois podemos pensar que a representação social é uma imagem,
um discurso, uma expressão da linguagem que representa o real. No entanto os trabalhos de
Michel Foucault e os estudos culturais proporcionam uma problematização da noção de
representação tão cara aos estudos dos meios de comunicação e da mídia. Pois as reflexões destes
trabalhos partem da premissa de que o real é que é produzido pela e na linguagem, isto é, para
Foucault são as práticas discursivas produtos das relações de poder que permeiam nosso cotidiano
que produzem nossos objetos de estudos, nossos saberes e também os sujeitos. Para os estudos

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culturais Ŗo mundo real não está fora dos discursos; não está fora da significação. É prática e
discursos, como qualquer outra coisaŗ.1
Os diversos textos que circulam na mídia não são transparentes, pois não representa o
real, são cheios de significações e ressignificações que atribuem sentidos ao universo discursivo no
qual estamos inseridos. Para Stuart Hall (2006) existe uma vontade de poder nas práticas de
significação e por isso cabe ao pesquisador identificar essas relações de poder que fabricam
determinados significados e sentidos.
Esse trabalho crítico é sempre uma prática desconstrutivista pois abre o texto a uma
variedade de significados ou apropriações que não foram estabelecidas no momento de sua
produção2. Para que o texto midiático surja são realizadas escolhas de discursos, direcionadas pela
política da instituição a qual determinada mídia está atrelada. Desta forma, o texto midiático é um
produto das relações de poder e expressam não somente uma vontade de poder mas
fundamentalmente uma vontade verdade. Por esse motivo estudar a mídia deve ser um trabalho
crítico, desconstrutivista e político. Como afirma Douglas Kellner (2008) ler e criticar a mídia
torna-se fundamental para uma maior autonomia do sujeito, para as resistências e possíveis
intervenções que podemos fazer a partir desta mesma cultura ou produzindo novas formas de
produção cultural. Essa é uma aposta dos estudos culturais, em que argumenta que o individuo não
é apenas assujeitado ao poder da mídia, mas pode usufruir desse meio para produzir intervenções
políticas importantes na sociedade3.
Kellner argumenta que a mídia deve ser compreendia como fonte de uma pedagogia
cultural, pois contribui para nos ensinar a como nos comportar, o que pensar e sentir e em que
acreditar, temer e desejar- e o que não4. A cultura da mídia atua nos nossos sentidos e coloca em
cena emoções, sentimentos, ideias e desejos que também fazem parte de uma cultura comercial
cujos produtos são mercadorias que visam seduzir o leitor-espectadorcom a finalidade de atrair

1
HALL, Stuart. Da Diáspora- Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovick (org). Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003. p.344.

2
Idem, p.348.
3
Cf. HALL,Stuart. Ob cit.
4
KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia- estudos culturais: identidade e política entre moderno e o pós moderno.
Bauru. São Paulo: EDUSC, 2001. p.10.
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lucros para as grandes empresas capitalistas. É uma cultura comercial que procura apresentar,
discutir e trazer à tona assuntos e preocupações atuais da vida social contemporânea.
Assim, quando escolhemos uma mídia como a revista feminina Nova como objeto
de estudo devemos perceber as diferenças que foram apagadas para que fossem construídos os
discursos desta revista. É instigante pensar por que uma revista feminina nos anos 70 escolhe a
sexualidade como marca da sua linha editorial? Que implicações há nessa escolha? Quando a
sexualidade é posta em discurso na revista quais saberes foram convocados para dar legitimidade?
Que outros discursos da sexualidade foram apagados? Que mulheres aparecem? Como aparecem?
Que outras mulheres foram apagadas ou passam a surgir com a marca da diferença (da histeria, da
depressão, da feiúra, da obesidade, da bulimia, da ninfomania, da masculinização, da
homossexualidade)?
Historiadores, antropólogos e estudiosos de gênero vêm investigando como as revistas
femininas fabricam identidades, determinam normas e fixam padrões de condutas para as
mulheres5. Nestes estudos a representação das mulheres nas revistas femininas é lida como uma
função normativa de uma determinada linguagem. Uma função normativa que produz o sujeito
que alega representar. Os discursos das revistas femininas também reproduzem as formas pelas
quais somos formados e produzidos como sujeitos generificados, isto é, a forma pela qual nos
identificamos como homens e mulheres. Nesse sentido estudar como uma revista feminina coloca
em discurso a sexualidade é também questionar a produção e reprodução dos tipos de ser mulher e
ser homem dentro de uma visão de mundo notadamente masculina e heteronormativa que
colaboram para estabelecer diferenças e aumentar as desigualdades sociais.
Assim, o presente trabalho propõe reconstituir histórica e culturalmente o conjunto
de normas produtoras dos novos processos de subjetivação feminina pós 68, fundamentalmente no
que diz respeito ao papel desempenhado pela sexualidade neste processo. O filósofo Michel
Foucault, em suas últimas obras, demonstrou a relação do termo sexualidade, que surge
tardiamente no século XIX, com:
O desenvolvimento de campos de conhecimentos diversos (que cobrira tanto os
mecanismos biológicos da reprodução como as variantes individuais ou sociais de

5
A esse respeito podemos citar os trabalhos de Carla Bassanezi (1996), Tânia Navarro Swain (2001), Carmem Rosa
Caldas-Coulthard (2005)
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comportamento); a instauração de um conjunto de regras e de normas, em parte


tradicionais e em parte novas, e que se apóiam em instituições religiosas,
judiciárias, pedagógicas e médicas; como também as mudanças no modo pelo
qual os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres,
prazeres, sentimentos, sensações e sonhos.6

As formas pelas quais os seres humanos tornam-se sujeitos possuem diversas histórias.
Podemos apreender a construção da subjetividade na cultura ocidental estabelecendo suas raízes
genealógicas, mediante a observação das transformações culturais e das formas de
governamentalidade. Isto é, para o filósofo Michel Foucault, o genealogista deve estar atento para
as mudanças que operaram nas mais fugidias práticas cotidianas e não perder de vista as normas
que foram sendo transformadas, transgredidas ou reafirmadas, no interior de uma determinada
cultura, para o governo do outro e de si mesmo.7 Este tipo de investigação histórica tem uma
preocupação com os perigos do presente. Perigos estes, desvelados pelas observações que se pode
fazer da passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de controle.

Este trabalho busca, assim, com Foucault realizar uma história do cuidado e das técnicas
de si através do empreendimento das transformações, na nossa cultura, das Ŗrelações consigo
mesmoŗ, com seu arcabouço técnico e seus efeitos de saber. Trata-se de uma história da
subjetividade que se articula a análise das formas de Ŗgovernamentalidadeŗ. Isto é, das formas de
governo de si por si e em relação ao outro como é encontrada na pedagogia, nos conselhos de
conduta, na direção espiritual, na prescrição dos modelos de vida etc.8

Sustentamos que o sujeito só pode ser histórico e que o campo da ação humana é o
espaço no qual se desenrolam as lutas em torno da subjetividade. Na modernidade, conforme a sua
análise, a constituição do ser sujeito perpassa por estratégias dos saberes e práticas médicas que se
ocupam da vida e de seus perigos. Para uma melhor compreensão, deste crescente poder sobre a
vida na modernidade Foucault formulou o conceito de biopolítica9, um poder que tem como alvo,

6
FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o Uso dos Prazeres; tradução de Maria Thereza da Consta Alburqueque;
revisão técnica de José Augusto Guilhon Alburqueque. RJ: Editora Graal,2001. P.9 grifos meus.
7
cf; Ibidem.
8
FOUCAULT, M. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). RJ: Jorge Zahar editora. 1997. p. 111.
9
No curso do Collège de France do ano de 1978-1979 Foucault dedica-se ao tema da Ŗbiopolíticaŗ: a maneira pela qual
se tentou desde o século XVIII, racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos
próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raça. (Cf. ob cit, p.89).
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ao mesmo tempo, o corpo do indivíduo e a população. É sobre a vida da população e do corpo que
ocorrem os procedimentos de normalização que são estudados a partir das diversas instituições
como escola, família, exército e os diversos saberes sobre o homem tal como a medicina.
A vigilância médica que marca a modernidade, para Foucault, sugere certas condições de
comportamento percebido através do olhar médico que compõe os procedimentos de normalização
que fazem parte da biopolítica. Para Peter Conrad (1992), a vigilância médica descrita pelo filósofo
é uma das categorias que compõe o controle médico social em expansão na sociedade
contemporânea. Fazem parte também destas categorias a ideologia médica, a colaboração e a
tecnologia que vem a definir determinados comportamentos, pessoas e coisas dentro do universo
do que é considerado normal ou patológico. A definição de medicalização, segundo o autor, dá a
legitimidade deste controle social exercido pelo poder médico. Medicalização é o processo sócio-
cultural, que pode ou não envolver um médico profissional, pelos quais os problemas não médicos
são definidos e tratados como problemas médicos, usualmente em termos de doença ou distúrbio. 10
Vários fatores contribuíram para a medicalização, tais como, o aumento da secularização e
racionalização do conhecimento bem como o crescente prestígio da profissão médica 11. A
homossexualidade, a anorexia, a bulimia, os problemas relacionados à aprendizagem da criança
como a hiperatividade e o déficit de aprendizagem, a Ŗsíndrome pré-menstrualŗ, vícios como o do
jogo e o de drogas, entre outros, são problemas rotulados como doenças ou distúrbios e que
exemplificam o alcance da medicalização como um meio de controle social na contemporaneidade.
Com a crescente medicalização da sociedade que aparece na modernidade Ŕ a sexualidade
humana passou a ser objeto da ciência e de outros saberes, tais como a sexologia, psiquiatria e
psicologia que visava regulamentá-los ou proporcionar mais prazer. O sexo, como comportamento
humano, se estimulado pelo Estado poderá ser controlado por ele. Por isso, Foucault enfatizou o
caráter social das sensações e prazeres humanos. Revelou mecanismos ocultos de dominação e
admitiu a possibilidade de duplicidade: prazer e poder.
O argumento da repressão sexual nas sociedades capitalistas promoveu o estudo e a
vontade de saber sobre o tema, isto é, proliferaram as práticas discursivas sobre o sexo. Para

10
CONRAD, Peter. Medicalization and Social Control. In: Annual Reviews Sociology, 1992.18:209-32. p.211.
11
Ibidem, p. 213
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Foucault, a sociedade ocidental é aquela que mais fala de e sobresexo e a que mais exige a Ŗverdadeŗ
sobre ele. No entanto, apesar da sua história da sexualidade ter se posicionado contra a hipótese
repressiva do sexo (Freud) e ter revelado como uma ciência sexual forjada no século XIX se
contrapõe a uma arte erótica, o saber psicanalítico não pode ser ingenuamente posto ao lado dos
saberes normativos. Para Inês Loureiro, a sexualidade encontra-se no cerne da teoria freudiana
juntamente com o inconsciente, porém a relação da psicanálise com a questão da sexualidade
sempre foi de uma tensão paradoxal, pois se apresenta ao mesmo tempo como uma teoria
normalizadora e um instrumento de contestação permanente dessa norma12.
Em ŖSexualidade e Solidãoŗ, Michel Foucault e Richard Sennet (1988) abordam a relação
entre verdade, sexualidade e poder. De acordo com os autores, as formas de subjetividades na
cultura moderna são marcadas pelas noções de individuo autônomo, de autoconsciência e
representação de si como um ente isolado, de tal modo, que as práticas e discursos sobre a
sexualidade centraram-se na noção de consciência sexual que relaciona mente e corpo. A
sexualidade é assim empregada para medir o caráter humano13, isto é, o desejo do corpo do
individuo é capaz de dizer a verdade do que ele é. Assim, vemos no final dos anos 60, inicialmente
nas sociedades norte-americanas para depois se espalhar pelas outras cidades dos países ocidentais,
o desenvolvimento do que Sennet e Foucault chamaram de Ŗtecnologia de siŗ: um conjunto de
táticas (meios) e estratégias (fins) que consiste em utilizar a sexualidade e o desejo corporal como o
meio para conhecer a verdade sobre si mesmo. A Ŗtecnologia de siŗ diz respeito aos procedimentos
em que se articulam saberes e poderes capazes de fazer com que os indivíduos reflitam sobre seu
estilo de vida, sobre a maneira de regular sua conduta para fixar sua identidade, mantê-la ou
transformá-la em função de determinados fins. Tais procedimentos se realizam graças à relação de
domínio de si sobre si ou de conhecimento de si por si14.
Essa crença no sexo como a verdade de si permeou a sociedade americana, que nos anos
60 já estava imersa em uma cultura de consumo e se sentia encorajada pelo crescimento da

12
LOUREIRO, Inês. Psicanálise e Sexualidade. Crítica e Normalização. In: PISCITELLI,Adriana; GREGORI, Maria
Filomena Gregori; CARRARA, S. Sexualidade e saberes: convenções e fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
p.82.
13
FOUCAULT, Michel; SENNET, Richard. ŖSexualidad e Soledadŗ. In: ABRAHAM, Tomás (org). Foucault y la Ética.
Buenos Aires: Editora Biblos, 1988. p. 69
14
Foucault, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France (1970-1982). RJ: Jorge Zahar editora. 1997. p.109
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visibilidade e dos discursos sobre o sexo nos meios de comunicação, rádio, jornais e revistas 15.
Muitos americanos e americanas vieram aceitar o prazer sexual como legítimo, como um
componente necessários às suas vidas, que não se limitava ao antigo ideal de fidelidade e
estabilidade conjugal. ŖA sociedade tornou-se sexualizadaŗ 16. Do meado dos anos 60 até os anos
80, testemunhou-se uma grande transformação da sexualidade: o sexo torna-se um negócio muito
lucrativo, a pornografia perdeu seu caráter marginal, filmes e revistas pornográficas como a Playboy
invadiram o mercado e as publicidades de vestuário nas revistas e jornais faturaram expondo
modelos em poses sensuais. Na televisão, comerciais despertavam fantasias e apetites eróticos,
seriados e novelas exibiam tramas que envolviam sexo, dinheiro e poder, e tornavam público os
dramas que se desenrolam em um quarto de casal. Programas de rádio e artigos de revistas
passaram a ser espaços abertos onde circulavam múltiplos discursos sobre sexo, envolvendo temas
como atividade sexual, casamento, divórcio e romance. Todas essas transformações provocaram
uma mudança comportamental: cresceu o número de divórcios, lutou-se pelo direito de aborto,
discutiu-se sobre o aumento de controle de natalidade mobilizando a década de 70 em torno das
questões sexuais17.
Nesse cenário, em que a mídia encorajou mudanças comportamentais uma literatura
prescritiva também ganha espaço e publicidade. Nos anos 70, manuais e livros sobre sexo viram
Best- Sellers, entre eles o ŖTudo o que você gostaria de saber sobre sexo (mas tinha medo de
perguntar)ŗ do médico David Reuben, autor também de vários artigos publicados na revista Nova.
A obra de Reuben foi traduzida em mais de 50 países e é estimado que foi lido por mais de 100 mil
pessoas. Esses manuais endossaram a idéia de experiência sexual em uma linguagem que vinte anos
antes só era vista em pornografia.18 Muitos desses manuais continham ilustrações de homens e
mulheres em inúmeras variedades de posições sexuais. Até mesmo livros escritos com a intenção

15
Nos anos 60 os resultados das pesquisas de Kinsey e os tratamentos propostos por Masters e Johson a respeito de
uma orgasmoterapia começaram a serem divulgados na sociedade norte americana. Na mídia, a revista Time publicara
em uma reportagem de capa intitulada ŖA segunda revolução sexualŗ que os EUA corriam o risco de se tornar em
uma vasta caixa de orgônio. Tratava-se de uma referência ao artefato de Wilhelm Reich, que segundo ele, poderia
captar e revigorar a energia sexual de uma pessoa (cf. Groneman, ob.cit, p. 141).
16
Cf. DřEMILIO; John, FREEDMAN, Estelle. Intimate Matters: A history of sexuality in America. Chicago/London:
The University of Chicago Press, 1997.
17
Ibidem, p.329.
18
Ibidem, p. 330.
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declarada de defender papéis tradicionais do homem e da mulher, como o The Total Woman de
Marabel Morgan incluíam instruções explicitas sobre técnica sexual19.
Esse mercado editorial que contribuiu para impulsionar a Ŗrevolução sexualŗ foi
acompanhado por uma crescente medicalização da sexualidade e da sociedade. E é nesse contexto
social e cultural que surge a revista feminina Cosmopolitan que não tarda a entrar em cena no Brasil
prometendo inovar o mercado de revistas femininas. Ao folhear as páginas da revista Nova somos
inundados de discursos sobre sexo, metáforas e imagens sexuais. Citemos alguns exemplos do
primeiro número da revista: Ao se referir à decoração de um apartamento de uma sala só, o título
da matéria é ŖPequeno, bonito e gostosoŗ na imagem um casal sentado no meio da sala onde a
mulher morde com Ŗlevezaŗ e sensualidade a mão do parceiro. Na seção de moda o título propõe
ŖEsta noite ou nuncaŗ e continua Ŗroupas para aquele definitivo encontro marcado com amorŗ,
nas imagens em que a roupa era o produto a ser exibido o apelo sexual é evidente, pois os vestidos,
calças, saias e camisas femininas são fotografadas com modelos em poses sensuais são casais
abraçados, se acariciando deitados ou sentados. A cada imagem um enunciado: ŖSeu corpo
transpira sensualidade e pede o mínimo para cobri-lo!ŗ; ŖAssim ele vai ficar louco, você
inteiramente livre...para prendê-loŗ; ŖSeu jeito de olhar, um tanto felino, combina com o não-sei-o-
quê que emana desta blusa em fios de lurexŗ; ŖDê um nó. Torça. Enrole. Amarre. Seu corpo fica
mais sedutor, excitante, quase nu. E você tem uma interminável coleção de blusas, para trocar a
toda hora enquanto é verão!ŗ 20
Esses enunciados e essas imagens são acompanhados por uma ideia de estimular
experiências novas que todo esse cenário de Ŗrevolução sexualŗ convidava a vivenciar. A ideia de
experiência vem sempre associada aquela da Ŗtecnologia de siŗ, de um aprimoramento de si mesma.
Diz o edital número 1 de Nova em 1973:
(...) a fórmula moderna e inteligente da revista Cosmpolitan (...) conquistou
milhões de mulheres dizendo para elas duas coisas muito simples. Primeiro: Você
pode. Você também pode ser mais feliz, mais bonita, mais realizada...Segundo: eu
quero é ser útil a todos vocês (grifos meus).

19
GRONEMAN, Carol. Ninfomania- História. Rio de Janeiro: Editora Imago, 2001. p143.
20
Os enunciados foram retirados de matérias de NOVA, n.1, 1973.
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Esse discurso aparentemente inovador deve ser pensado e inserido na trama discursiva do
cenário histórico da revolução sexual que foi impulsionada não só pela segunda onda do
feminismo e mudanças comportamentais, mas, fundamentalmente, pela sexologia e uma série de
práticas e discursos que evocavam a saúde sexual, o prazer, a felicidade, o auto- aprimoramento não
como um direito, mas como um dever.
Os sexólogos dos anos 60 e 70 já não se preocupavam mais com as perversões e passavam
a ter como objetivo oferecer uma terapêutica que consistia em possibilitar tanto ao homem quanto
à mulher o alcance do orgasmo21. Essa nova visão da sexologia como uma orgasmologia baseada em
psicologias comportamentais foram responsáveis por esses inúmeros livros e manuais que se
tornaram best-sellers e que eram a principal fonte de discurso da revista Nova. Essa literatura tratava
das fantasias de excitação sexual, das artes de sedução, da masturbação, de como era importante se
conhecer e de como a mulher poderia assumir o comando de sua própria sexualidade. Entre os
sucessos editoriais estava o livro da criadora da Ŗfórmula: Você podeŗ da revista Cosmopolitan.
Helen Gurley Brown anos antes de lançar a revista feminina que no Brasil recebeu o nome de Nova
publicou em 1962 o livro Sex and the single girl que proclamava, com a Ŗmaior ousadiaŗ, que Ŗas
boas moças têm casos amorosos e não precisam necessariamente morrer por causa dissoŗ.22
Convém agora destacar a singularidade da revista Nova no inicio dos anos 70. Destinada
ao um público feminino das camadas médias urbanas o tema da sexualidade era um viés diferencial
da revista. Enquanto os textos das revistas femininas Claudia e Capricho, nas edições dos anos 70,
ainda mesclavam moda, receitas de amor, forno e fogão, fotonovela, corte e costura, a revista Nova
trazia na capa, no momento de sua primeira edição no Brasil em outubro de 1973, assuntos como:
Ŗ101 maneiras de um homem agradar vocêŗ, ŖVocê é sensual - um teste insinuanteŗ, ŖExplore as
vantagens de morar sozinhaŗ e ŖToda mulher pode sentir prazer no amor, Você tambémŗ. Nova foi,
assim, um marco diferencial no estilo da escrita, nas imagens, nos tipos de reportagens e nas
colunas que apresentava ao público feminino em relação às outras revistas da época. Hoje,

21
De acordo com Béjin (1987) a proto-sexologia do século XIX preocupava-se mais em classificar as perversões do que
oferecer uma terapêutica. Essa visão modificou-se, fundamentalmente depois que Wilhelm Reich em 1922 descobriu
o que chamava de Ŗverdadeira natureza da potência orgásticaŗ e que as obras de Kinsey sobre o comportamento
sexual do homem e da mulher foram publicadas demonstrando que o problema central da sexologia passava ser o
orgasmo (cf.ob. cit, p. 211).
22
Groneman, ob cit, p. 142
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observamos que a prática discursiva da revista Nova - que era e é editada e consumida por boa parte
das mulheres das camadas médias urbanas de São Paulo, Paris, Nova York, entre outras grandes
cidades ocidentais Ŕ veio a normalizar-se e a servir de parâmetro para outras mídias dedicadas ao
público feminino. Em uma primeira leitura pode-se perceber que os discursos sobre o sexo
veiculados nesta mídia, buscavam referências e autorização justamente na sexologia e na psicanálise
a exemplo da coluna ŖNo divãŗ que esteve presente em várias edições da revista.
Desde a primeira publicação de Nova no Brasil, as capas das revistas até aqui analisadas
trouxeram assuntos a serem abordados no seu interior que diziam respeito à quebra de tabus em
relação ao sexo, isto é, às antigas perversões sexuais encaradas como doenças. Tratava de ensinar as
mulheres a conhecerem o próprio corpo, gostarem de si mesmas a fim de que pudessem otimizar o
prazer e alcançarem o orgasmo ao que as mulheres tinham o Ŗdireitoŗ e o Ŗdeverŗ de conhecer.
Afinal, no editorial da primeira publicação a editora brasileira soma ao imperativo ŖVocê podeŗ da
criadora da revista Helen Gurley Brown a outro imperativo ŖVocê deve quererŗ.23 Diz Nova às
mulheres: Você pode e deve querer ser mais bonita, pode e deve querer ter orgasmo, pode e deve querer
morar sozinha, pode e deve querer ter uma carreira de sucesso, pode e deve querer decorar o
apartamento que possa Ŗdizer muito de vocêŗ, pode e deve querer usar decotes e transparências
insinuantes, pode e deve querer diminuir o busto e ficar mais magra e finalmente pode e deve querer
dizer a ele Ŗessa noite ou nuncaŗ. Esses discursos em termos de Ŗdireitosŗ e Ŗdeveresŗ em torno do
sexo, do bem estar, da saúde e da felicidade eram próprios dos debates entre psicólogos,
psicanalistas, sexólogos, feministas e hedonistas dos anos 60 e 70 24. Assim, as primeiras matérias da
revista Nova refletem uma pedagogia sexual ao propor Ŗser útilŗ ajudando e ensinando as mulheres
a romperem com os tabus, corrigirem os seus corpos, decifrarem seus sonhos e desejos, gostarem de
si mesmas e alcançarem o orgasmo com o parceiro. Eis os títulos de algumas matérias do primeiro
ano da revista: ŖO orgasmo depende muito de você.ŗ (Nova nº1, 1973), ŖVocê gosta mesmo de

23
Cf. no Editorial Nova, n 1, 1973.
24
Béjin (1987) observou muito bem essa confusão entre direitos e deveres em torno do sexo e do bem estar e da saúde
sexual. De acordo com este autor, o direito ao orgasmo promovido pelos sexólogos e seus laboratórios de orgasmos e
orgasmoterapias em pouco tempo se transformou em um dever sob o risco do individuo que não atingisse
constantemente o clímax na relação sexual ser considerado um portador de Ŗdisfunção sexualŗ (dificuldades de
ereção no homem, frigidez na mulher). O orgasmo passava a ser então um indicador da saúde sexual (cf. obcit, p
238).
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você?Ŗ (Nova nº2, 1973), ŖEmagreça e fique magra.ŗ (Nova nº3, 1973); ŖToda mulher (até a mais
comportada), tem fantasias sexuais isso é bom sabia?ŗ (Nova nº4, 1974); ŖComo o sexo pode mantê-
la magra.ŗ (Nova nº 5, 1974). Legitimados pelos saberes medicalizados, os artigos sobre sexo na
Nova incita o exercício do conheça a ti mesmo, por isso as leitoras são estimuladas a enviarem
cartas contando seus problemas sexuais e emocionais, seus sonhos e desejos mais secretos. Com a
ajuda dos sexólogos e psicanalistas prontos a responderem as demandas femininas, a revista
estimulava as mulheres a reconhecer o desejo do seu corpo como um desejo que é capaz de desvelar
a verdade sobre o seu próprio eu. Quando essa verdade não estava de acordo com a norma
convinha acionar os mesmos especialistas para intervir na mente e no corpo a fim de que os
Ŗsofrimentosŗ, os Ŗdistúrbiosŗ e Ŗas disfunçõesŗ fossem tratados e desaparecessem25. Os artigos que
até aqui foram investigados valorizam o cérebro como verdadeiro centro do prazer. É nele que
reside a capacidade de sentir orgasmo e não nos órgãos genitais. Por isso, alertavam os especialistas
em sexo, ao menor sinal de desconforto na relação sexual, de falta de prazer, de dificuldades com o
parceiro ou de alcançar o Ŗclímaxŗ a conversa era a melhor aliada. Uma conversa que nunca
deveria se desenrolar na cama, visto que o local mais apropriado é fora dela e se necessário em um
consultório médico ou no divã de um analista26. Aliás, em outros assuntos esses especialistas
também são convocados, como por exemplo, em matérias sobre emagrecimento as mulheres são
conduzidas a entenderem seu próprio funcionamento psíquico a fim de alcançar a disciplina
necessária para manter um corpo magro. O homossexual, a ninfomaníaca, a frígida e a prostituta

25
Béjin (1987), Hekma (1995) e Groneman (2001) são autores que nos oferecem importantes informações sobre a
historia da sexologia e sua transformação ao longo do século XX. As antigas perversões como o homossexualismo, o
tribadismo, a sodomia, a ninfomania e a masturbação; perdem aos poucos no século XX o titulo de perversão.
Algumas passam a serem classificadas pelos psiquiatras como Ŗdesvios sexuaisŗ- é o caso da ninfomania, já a
masturbação passa a ser indicada pelos sexólogos como um meio de auto-erotismo. A partir de 1952 quando surge
pela Associação Psiquiátrica Americana o primeiro DSM um livro de código administrativo e instrumento de
diagnóstico de doenças mentais algumas antigas perversões passam a ser encaradas como Ŗdesvios sexuaisŗ, nos anos
subseqüentes as novas edições da DSM substituem o termo Ŗdesvioŗ por Ŗdistúrbioŗ e Ŗdisfunçãoŗ que provocam
sofrimentos nos indivíduos. (cf., Groneman, 2001, p. 157/158).
26
REUBEN, David. Os treze mitos sexuais (que você precisa derrubar). NOVA, n.2, p 70-73. P.73.

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não são mais vistas como doentes, são considerados Ŗinfelizesŗ e portadores de Ŗdistúrbios
emocionaisŗ.27
Nas primeiras edições da revista Nova pudemos perceber a linha editorial da revista
dedicada a falar sobre sexo. Há muito ainda que investigar, realizar leituras das imagens impressas
em suas páginas, articulá-las com as noções de saúde, doença, normal, anormal que vão sendo
construídas, substituídas, transformadas. Nesses primeiros números vimos como os saberes da
sexologia e da psicanálise predominavam e eram postos em pauta para possibilitar às mulheres a
uma vida sexual mais prazerosa. Esse pareceu ser o foco dos primeiros números da revista: acabar
com determinados Ŗmitos sexuaisŗ sobre a masturbação, a ninfomania, a prostituição e o
homossexualismo. Pretendo na pesquisa aprofundar-me nesses discursos de uma despatologização da
sexualidade que Nova disseminou. De forma alguma - com exceção da masturbação- a ninfomania,
a prostituição e o homossexualismo eram encarados como práticas normais da sexualidade. Com
muita sutileza essas práticas não apareciam mais como perversões, no entanto, não deixavam de ser
um Ŗproblemaŗ que oferecia um Ŗsofrimentoŗ para os corpos e as mentes. Sem serem tratadas
como perversão, lemos em Nova uma normatização das práticas sexuais a partir dos discursos
medicalizados, expressos pelos saberes da psiquiatria, psicologia, psicanálise e da sexologia. A
comparação das práticas discursivas de Nova com esses campos de saber serão investigados com a
finalidade de elucidar as tramas do discurso sobre a sexualidade feminina nos anos 70.
Contudo há muito ainda que explorar nas práticas discursivas sobre o sexo da revista e sua
relação com a formação das novas subjetividades femininas. Os imperativos, você pode e você deve
querer que marcam o editorial da revista parece nos indicar que as trilhas dos discursos - sobre o que
é o feminino e sobre o sexo - longe de libertar o corpo feminino mercantilizou-o instituindo novas
normas de controle sobre a sexualidade. Partimos do pressuposto que vivemos sob uma Ŗtirania do
prazerŗ em que o Discurso-Capitalista e o Discurso-Científico impulsiona o gozo ilimitado com a
produção e o consumo de objetos descartáveis de tal maneira até nos tornarmos o próprio objeto a
ser consumido. Esse terrível diagnóstico dos nossos tempos nos conduz a buscar entender na

27
Na matéria os Ŗ13 mitos sexuais (que você precisa derrubar)ŗ, Dr. Reuben, esclarece em relação aos pervertidos que
durante muito tempo foram vistos como doentes: ŖNão. Não são (doentes). São pessoas infelizes, elas dão as costas
para uma vida sexual normal (...)ŗ (idem, p.73).
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imbricada e complexa rede de discursos sobre o sexo o caminho que foi percorrido desde a
denúncia de uma suposta Ŗrepressão sexualŗ até a Ŗtirania do prazerŗ dos dias hoje.

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DA VULNERABILIDADE À RESISTÊNCIA POSSÍVEL: OS MUSSEQUES DE LUANDA E


A GUERRA COLONIAL.
Rogério da Silva Guimarães*

Resumo
O ano de 1961 data o início da luta armada contra o colonialismo português em Angola. Em
Luanda, os musseques, que já viviam situações de vulnerabilidades no seu cotidiano, têm que lidar
como uma nova realidade que se apresenta: a luta anticolonial. O presente artigo tem por objetivo
fazer uma análise das vulnerabilidades dos musseques, o agravamento destas com o advento da
guerra colonial e a resistência possível, veiculada principalmente na literatura. A análise será feita a
partir da literatura de José Luandino Vieira produzida na década de 1960, e da obra sociológica ŖA
Família nos Musseques de Luanda. Subsídios para o seu estudoŗ, de Ramiro Ladeiro Monteiro,
publicado em 1973.
Palavras-chave: musseque Ŕ vulnerabilidade social Ŕ guerra colonial angolana.

O ano de 1961 data o início da luta armada contra o colonialismo português em Angola.
Em Luanda, os musseques1, que já viviam situações de vulnerabilidades no seu cotidiano, têm que
lidar como uma nova realidade que se apresenta: a luta anticolonial. O presente artigo tem por
objetivo fazer uma análise das vulnerabilidades dos musseques, o agravamento destas com o
advento da guerra colonial e a resistência possível, veiculada principalmente na literatura. A análise
será feita a partir da literatura de José Luandino Vieira produzida na década de 1960, e da obra

*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHC/IH/UFRJ). Bolsista Capes. Membro do Laboratório de estudos Africanos (LêÁfrica/UFRJ). Pesquisador
associado do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES/ UERJ).
1
Musseques são áreas pobres localizadas na periferia de Luanda, a exemplo das favelas cariocas. Caracterizá-los-emos de
forma minuciosa mais à frente.
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sociológica ŖA Família nos Musseques de Luanda. Subsídios para o seu estudoŗ, de Ramiro Ladeiro
Monteiro, publicado em 1973.
A utilização da literatura de José Luandino Vieira como uma das fontes para esta análise se
deve ao fato de que em Luanda surgiu uma série de escritores que souberam compreender e
retratar os fenômenos sociais com os quais eram confrontados, sendo um dos maiores expoentes
José Luandino Vieira. O autor Ŕ que nasceu José Vieira Mateus da Graça em 04 de maio de 1935
em Portugal Ŕ passou a sua infância e adolescência nos musseques luandenses Braga, Makuluso e
Quinaxixe. Essa vivência, fez com que sua produção literária testemunhasse um conhecimento
vivido no universo desses bairros periféricos. Sua experiência de vida foi importante para toda sua
trajetória como cidadão e escritor. Ela possibilitou-lhe acompanhar as mudanças da cidade e da
sociedade de Luanda e avaliar as consequências do sistema colonial (LABAN, 1980, p. 12).
Em 20 de novembro de 1961, Luandino Vieira foi preso Ŕ sob a acusação de atividades
subversivas contra a segurança interna e externa do Estado, com auxílio de potencias estrangeiras Ŕ
e condenado à pena de quatorze anos. Estava preso quando escreveu boa parte de seus livros.
Em 1959, Ramiro Ladeiro Monteiro era um administrador colonial na Circunscrição de
São Paulo, em Luanda. Em 1962 foi transferido para os Serviços de Centralização e Coordenação
de Informações, também em Luanda, que tinha por objetivo Ŗreunir, estudar e difundir
informações que interessem à política, à administração e à defesa das respectivas províncias, e
prestar apoio aos seus governosŗ2. Ou, dito de outra forma Ŗestabelecer um olhar panóptico sobre a
movimentação dos nacionalistasŗ na província de Angola (CARVALHO FILHO, 2009, p. 01).
Sua obra é considerada fundamental e basilar para o estudo sociológico dos musseques,
uma vez que é um volume pormenorizado, consequência de um intenso inquérito realizado nessas
localidades em fins da década de 1960. Assim, temos duas pessoas que ocupam locais distintos na
sociedade angolana. Luandino Vieira é um escritor, colonizado, que busca em suas obras denotar
as desigualdades sociais dos musseques e militar politicamente pela independência de Angola. Já o
sociólogo Ramiro Ladeiro Monteiro, português, é um agente desse governo colonialista num
período de efervescência da luta anticolonial.

2
Disponível em <http://www.guerracolonial.org/index.php?content=304> Acesso em 28.out.2009.
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Musseque, grafia aportuguesada, é um termo originário do quimbundo 3, que indica as


zonas de areias avermelhadas, situadas no planalto de Luanda, capital de Angola. O termo assume
Ŗsignificado sociológico quando é utilizado para designar os aglomerados de cubatas 4 construídas
nestas áreas por indivíduos expulsos da cidade [centro] devido à expansão urbanaŗ (AMARAL,
1968, p. 113). Ou seja, os musseques são zonas residenciais que se formam em torno do centro
urbano de Luanda, servindo de refúgio dos pobres. A expressão musseque ganhou sentido
pejorativo ao qualificar os moradores dessas localidades por seu baixo nível econômico e social.
Ocorre que a cidade de Luanda sempre foi caracterizada por uma macrocefalia. Seu centro
desempenha funções administrativas importantes e gere grande parte dos fluxos econômicos.
Consequentemente, exerce Ŕ em termos de oportunidades econômicas, acesso a serviços e infra-
estruturas Ŕ uma grande atração, provocando um afluxo crescente de pessoas à capital. Este afluxo
migratório causou efeitos múltiplos: subiram as rendas de casa e o custo dos terrenos para
construção, por conta da excessiva procura em relação à oferta; as infra-estruturas urbanas (água,
eletricidade, saneamento, etc.) não se desenvolveram ao ritmo necessário; a grande oferta de mão-
de-obra e a sua deficiente qualificação levam ao subemprego; o salário, única fonte de subsistência,
não acompanha o aumento do custo de vida. Nesta perspectiva, surgiram os musseques, os quais
reconfiguraram a cidade em termos de paisagem e provocaram transformações ao nível social,
político, econômico, entre outros (MONTEIRO, 1973, p. 24-6; RODRIGUES, 2003, p. 20). Mas
revelando também as situações de vulnerabilidades ante a realidade que está inserido.
Neste momento, deixamos claro que a definição de vulnerabilidade por nós utilizada surgiu
a partir do conceito de exclusão social articulado por Sarah Escorel. A autora considera Ŗexclusão
social como um processo no qual Ŕ no limite Ŕ os indivíduos são reduzidos à condição de animal
laborans, cuja única atividade é a sua preservação biológica, e na qual estã impossibilitados do
exercícío pleno das potencialidades da condição humanaŗ (ESCOREL, 2000, p. 140-141).
Dividindo a existência humana em sociedade em cinco eixos Ŕ a saber: eixo ocupacional, eixo
político (cidadania), eixo sóciofamiliar, eixo cultural (valores simbólicos) e a dimensão da própria
vida, este entendido como um Ŗâmbito no qual podem ser analisadas trajetórias de

3
Quimbundo é a língua do povo umbundo, um dos grupos étnicos prevalecentes em Luanda.
4
Casas tradicionais de materiais vegetais. O termo serve também para as casas de pau-a-pique.
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inserção/desvinculação por meio dos fenômenos relacionados à saúde/doença e a violência Ŕ


Escorel pensa cada eixo como um processo no qual ocorrem Ŗmúltiplas e variadas possibilidades
entre duas situações polares (positiva: inserção, inscrição, integração; e negativa: exclusão,
desvinculação, ruptura)ŗ (ESCOREL, 2000, p. 141). Assim, o indivíduo socialmente excluido será
aquele que se encontra desvinculado em todos esses eixos. Por conseguinte, o indivíduo que se
encontra positivamente integrado nestes eixos está totalmente vínculado socialmente. Diante de
uma realidade tão heterogênea como a dos musseques, não há uma correspondência sistemática
entre os processos de desvinculação, ou seja uma pessoa pode estar desvinculada em um
determinado eixo, mas inserida em outro. É nesta instabilidade, na fragilidade destes vínculos é
que estabelecemos a zona de vulnerabilidade (ESCOREL, 2000, p. 140-145).
O surgimento dos musseques ou Ŗsenzalasŗ quase coincide com o nascimento da própria
cidade de Luanda;
primeiro sob a forma de quintais onde os traficantes de escravos
acumulavam as suas Ŗpeçasŗ para exportação, depois sob a forma de
aglomerados de cubatas localizados nos Coqueiros, no Bungo, nas
Ingombotas ou nas Maiangas, habitados por africanos, escravos e libertos
(AMARAL, 1968, p. 116).

A construção dos casebres era, inicialmente, em terrenos particulares. Uma das evidências é
o fato de muitos conservarem o nome do antigo proprietário como, por exemplo, Ramalho, Braga
e Cayette. Porém, em muitos casos, os musseques ultrapassaram os limites que delimitavam o
terreno original, abrangendo outras áreas e fazendo com que o nome já não se referisse ao espaço
inicial.
As diferenças entre os musseques se dão em função de sua antiguidade e sua localização.
Alguns deram origens a bairros mais ou menos urbanizados, como por exemplo, o Bairro Operário5
que se originou do musseque Burity. Outros, os mais antigos, que são os mais próximos do centro
da cidade, se parecem com um labirinto, com casas coladas umas às outras em ruelas, sem quintais.
Esta é a ideia mais comum que se faz dessas localidades. Porém, os mais recentes, que encontram-se

5
Monteiro nos diz que nunca ouviu utilizar o termo musseque relativamente a este bairro de casas provisórias
encravado no centro da Cidade. Contudo ele salienta que em função da utilização pejorativa do termo musseque
houve um acolhimento do termo bairro que não obstante a força da tradição, foi utilizado por muitos residentes, de
preferência ao velho vocábulo (MONTEIRO, 1973, p. 54, p. 62).
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mais afastados do centro da cidade, apresentam espaços razoáveis, com casas rodeadas de quintais.
A improvisação no que diz respeito à construção é dominante.

Localização dos musseques e distribuição da população, em 1962. (Fonte: AMARAL, 1968, fig.12)
1 - Coréia do Norte; 2 - Samba Pequena; 3 Ŕ Prenda; 4 Ŕ Catambor; 5 Ŕ Bananeira; 6 Ŕ Calemba;
7 Ŕ Cemitério Novo; 8 Ŕ Bairro Indígena; 9 Ŕ Terra Nova; 10 Ŕ São Paulo (anexo); 11 Ŕ São Paulo;
12 Ŕ Marçal; 12 Ŕ Rangel; 14 Ŕ Caputo; 15 Ŕ Zangala; 16 Ŕ Sambizanga; 17 Ŕ Mota; 18 - Lixeira.

À medida que a cidade de Luanda cresceu com o decorrer dos anos os musseques se
deslocaram sobre o planalto. Ou seja, a expansão dessas localidades está intimamente ligada à
evolução da Cidade propriamente dita. A cada impulso das atividades econômicas seguia-se um
aumento de migrantes6. A cada fase de urbanização correspondia um desaparecimento de dezenas
ou centenas de cubatas. Logo, a população destas foi engrossando os musseques sobreviventes ou
criando outros em locais mais distantes do núcleo urbano (MONTEIRO, 1973, p. 58). Luandino
Vieira revela este deslocamento que ameaça a existência dos musseques, Ŗbrilhando suas luzes de
candeeiro no meio da eletricidade das casas dos brancos, que em todos os lados, ameaçadoramente,
vão subindo o morro onde o musseque resisteŗ (VIEIRA, 1983, p. 85).

6
Em 1960, 20% da população branca residente em Luanda não era natural da Província e cerca de 57% dos naturais
não tinham nascido na cidade (AMARAL, 1968, p. 65).
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Mesmo assim, os musseques constituíram uma presença permanente, e sua multiplicação


foi um fato incontestável a ponto de ser assistir à Ŗmussequização de outros pontos da cidadeŗ
(CARVALHO, 1997, p. 133 apud RODRIGUES, 2003, p. 21). A precariedade das residências, a
falta de acesso e usufruto de uma infra-estrura básica como luz elétrica, saneamento, água encanada
são indícios de uma situação de vulnerabilidade desses musseques. Todos esses elementos
irrompem no âmbito da dimensão da vida, revelando as iniquidades existentes em relação ao
acesso e à utilização de serviços de qualidade. Segundo Escorel, a ausência desses serviços revela o
grau de dificuldades encontradas por uns e por outros para permanecerem vivos. Estabelecer a
distinção entre viver e sobreviver (ESCOREL, 2000, p. 145).
Tendo sido sempre áreas tradicionais de habitação da grande maioria da população
africana, durante as décadas de 1940 a 1960, os musseques receberam uma parte significativa da
população branca imigrante. ŖQuando em 1922, se poderiam contar pelos dedos os europeus que
viviam nas Ingombotasŗ (LOPO, 1965, p.15 apud AMARAL, 1968, p. 116),

as condições actuais são inteiramente diferentes, pois nos muceques, pode-se


dizer, habitam, sem distinção de raças, os elementos da população urbana
cuja capacidade económica, técnica ou cultural é muito fraca; representam
assim áreas ocupadas por uma sociedade complexa, de segregação
espontânea, marginada pela debilidade de seus rendimentos (AMARAL,
1968, p. 116).

Portanto, os musseques continuarão a desempenhar o papel de refúgios da população que, pelos


seus baixos rendimentos, não consegue habitar na área urbanizada.
A chegada desses imigrantes brancos, entenda-se portugueses, corresponde à fase migratória
devido ao crescimento da exploração do café na década de 1940. Na cidade, até mesmo para os
imigrantes metropolitanos sem qualificação profissional abriam-se maiores perspectivas que em
Lisboa ou no Porto, onde seus títulos e referências eram insuficientes (AMARAL, 1968, p.74).
Logo, essa população migrante metropolitana que chegou a Luanda veio essencialmente à procura
de melhores condições de vida, em especial à procura de trabalho, por conta do aumento da
atividade econômica que se registrava e do forte desenvolvimento industrial.

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Atenta-se que esta população branca atraída por este crescimento econômico formou uma
burguesia que pouco a pouco foi substituindo uma burguesia crioula já existente, marcando uma
política racista do governo colonial. Na verdade, a política colonial salazarista7 pode ser definida
pela exploração da mão-de-obra africana e a expropriação das melhores terras para o cultivo dos
produtos em alta no mercado internacional (BITTENCOURT, 1996, p. 73). Entre 1940 e 1960,
os migrantes provenientes de zonas do interior do país também tentavam escapar ao trabalho
contratado8 (ROBSON&ROQUE, 2002, p. 25).
Os imigrantes brancos pobres, junto com os residentes africanos já fixados formavam os
grupos de pequenos assalariados (funcionários públicos, empregados no comercio, operários e
artesãos, etc.), de pequenos comerciantes (a grande maioria, cerca de 95%, desses estabelecimentos
pertenciam a europeus) dos sem emprego permanente e dos desempregados.
A remuneração por meio do trabalho, seja por conta própria seja por salário, é
praticamente o único meio de subsistência das famílias dos musseques. Isso porque a possibilidade
de possuir uma área para o cultivo de gêneros agrícolas para consumo própria é inexistente, diante
da indisponibilidade de terras para a atividade agrícola.
Embora houvesse entre a população dos musseques uma maior iniciativa no que diz
respeito ao exercício das chamadas profissões livres, o trabalho assalariado continuou a ser a
principal fonte de receitas. Segundo Monteiro, mais de 90% dos homens residente nos musseques
eram assalariados. Sendo a grande maioria (71,3%) absorvida pelo setor privado. Grande parte
destes trabalhadores (69,5%) ocupava cargos que exigiam pouco ou nenhum grau de escolaridade:
carpinteiros, marceneiros, polidor, pedreiros, pintores, serventes e jardineiros. Todos estes com as
médias salariais mais baixas (MONTEIRO, 1973, p. 213; 215-220). Muitos recorriam a pequenos
serviços informais Ŗbiscatesŗ para aumentar a renda, como no conto Cardoso Kamukolo, sapateiro em

7
António de Oliveira Salazar (1889-1970) presidente do Conselho de Ministros, em 1932, foi líder e fundador do
regime político autoritário conhecido por Estado Novo, também chamado de Salazarismo, em Potugal entre 1933 e
1974.
8
Embora tivesse sido abolido o trabalho obrigatório, o sistema de Ŗcontratoŗ colocava sob dependência forçada (através
da obrigatoriedade do pagamento de despesas de alimentação, alojamento, etc. aos empregadores, através da retenção
dos salários até ao final do contrato, entre outras) inúmeros trabalhadores de regiões onde escasseavam outras
oportunidades. Para maiores detalhes ver RODRIGUES, Cristina. Urbanização acelerada em Luanda e Maputo:
impacto das guerras e das transformações socioeconômicas (anos de 80 e 90) e BTTENCOURT, Marcelo. As linhas
que formam o ŖEMEŗ: um estudo sobre a criação do Movimento Popular de Libertação de Angola.
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que o protagonista trabalhava de segunda a sábado e para complementar o pequeno vencimento


muitas vezes Ŗagarrava o biscate, meias solas para um patrício [...]. E ainda trazia Ŗo assentador, a
faca, o ferro de brunir que o mestre costumava lhe emprestar para trabalhar nos domingosŗ
(VIEIRA, 1985, p. 99). Por meio dos dados da obra de Monteiro como no conto de Luandino
Vieira é possível questionar o discurso dos colonizadores ao identificar os musseques como
localidades habitadas por bandidos e desocupados.
A análise destas informações nos dá, por si só, uma panorâmica das possibilidades
econômicas das famílias nos musseques, já que a remuneração do homem constitui o seu principal
sustento, ao contrário dos meios rurais onde o trabalho agrícola da mulher é a base do sustento do
agregado familiar. Além disso, com as crescentes ondas migratórias o nível de concorrência nesses
empregos aumenta, gerando uma reserva de mão-de-obra que muitas vezes será subaproveitada e
com rendimentos ainda menores. Escorel afirma que o trabalho é o Ŗcritério que confere a
legitimidade e a dignidade da existência do cidadãoŗ (ESCOREL, 2000, p. 142). Assim, os
processos na esfera econômico-ocupacional estão fortemente relacionados à identidade e auto-
estima do Ŗindividuo-trabalhador-cidadãoŗ de modo que a vulnerabilidade nesta dimensão
ocupacional coloca em risco não só a possibilidade de sustento e de mobilidade social, mas, em
paralelo, a constituição do trabalho como Ŗsistema identitárioŗ, a partir da valorização social da
função (ESCOREL, 2000, p. 142-143).
Em relação às famílias de origem africana no meio urbano, a família migrante sofre uma
transmutação brusca, pois é forçada a acomodar-se ao novo ambiente, onde a vida decorre de
moldes diferentes dos da sua terra. É a emancipação da família restrita ou nuclear (pai, mãe e
filhos). Aqui a família restrita assume características de unidade de consumo, opondo-se a família
extensa, que é a célula social base na aldeia e é caracterizada por ser uma unidade econômica de
produção. Portanto, os musseques não ofereciam condições favoráveis à vigência das estruturas da
família extensa. A tendência para a família conjugal pode não só corresponder a uma verdadeira
ocidentalização, mas também a condicionamentos da vida urbana que, quer se trate de condições
de trabalho quer de alojamento, se opõem geralmente à manutenção, nos lares urbanos, do sistema
da família extensa e da autoridade paternal. Portanto, o sistema matrilinear, tradicional africano,
estava em regressão, a favor de um sistema bilateral (pai e mãe), comum na Europa. O tradicional
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era influente no caso de imigrantes recentes e, sobretudo de etnia umbundo e kikongo


(MONTEIRO, 1973, p. 146-8).
Os contatos múltiplos dos diferentes grupos resultaram aspectos que são peculiares aos
musseques: sincretismo religioso, pela coexistência de cultos europeus e africanos; formas de
poligamia, particularmente pela população africana menos urbanizada, ou seja, atitudes que
contribuem para a marginalização cultural dessas áreas (AMARAL, 1968, p. 118-120). É no eixo
cultural que se desenvolve a troca dos valores simbólicos. Podemos observar Ŗos processos do
mundo da subjetivação, a construção de identidades, a relação com o outro e as representações
sociaisŗ (ESCOREL, 2000, p. 144). A desvinculação cultural pode conduzir a Ŗexperiência de não
encontrar nenhum reconhecimento nas representações sociais, ou só encontrá-los em negativoŗ.
(ESCOREL 2000, p. 144). São caminhos que podem envolver Ŗdiscriminaçãoŗ, Ŗestigmatizaçãoŗ,
Ŗindiferençaŗ, Ŗnegação da identidadeŗ ou Ŗidentidade negativaŗ (ESCOREL, 2000, p. 144-145).
Neste quadro colonial onde os musseques estão inseridos, as vulnerabilidades também
estavam no cerne de outras dimensões da própria vida. Na verdade, o colonialismo traçava um
quadro de calamidade em áreas como a saúde e a educação. No tocante à saúde, por exemplo,
Angola tinha 250 médicos em 1960, um médico para mais de 18 mil habitantes, sendo que a
maioria desses médicos se concentrava nas cidades. Havia dezoito hospitais do Estado, para todo o
território, e 67 hospitais ou clínicas privadas, frequentadas basicamente por europeus e colonos
bem situados financeiramente, totalizavam cerca de 4.000 leitos (BITTENCOURT, 1996, p. 85).
Na educação, o caráter predatório do colonialismo português inviabilizou o direcionamento
de capitais para a construção de um sistema de escolas. Em 1962, o índice geral de analfabetismo
nos musseques entre ambos os sexos era de 52%. E o número de estabelecimento de ensino na
região dos musseques era extremamente reduzido (MONTEIRO, 1973, p. 333; p.345). Salazar,
certamente, era prisioneiro da equação segundo a qual educação demais é igual a aumento da
subversão. Sua obstinação fazia com que tentasse utilizar todos os recursos possíveis para manter a
colônia (BITTENCOURT, 1996, p. 85, p. 87).
Ao evidenciar as vulnerabilidades dos musseques percebemos a sua fragilidade em relação
ao caráter opressor do colonialismo. Podemos dizer que a situação ganha contornos mais graves
com o início da luta anticolonial. Isso porque a repressão contra os movimentos favoráveis a
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independência revela-se feroz junto às populações do musseques. Os musseques antes vistos como
local de bandindos e vagabundos agora eram vistos como terroristas, inimigos de Portugal. De fato,
os quadros dos grupos de resistência contra o domínio colonial foram compostos basicamente por
uma camada mais conscientizada desses musseques.
Partia-se da perspectiva que os musseques eram uma ameaça ao regime colonial, portanto
havia uma vigilância constante por parte das autoridades coloniais, muitas vezes violenta e
amplamente retratada pela literatura de Luandino Vieira:

[...] nessas horas de confusão das pessoas e das coisas, tiros dentro das noites,
muitas vezes gritos de cubatas invadidas, choros e asneiras e mais tiros e depois
ainda o fugir de passos, o correr de jipes com soldados de metralhadora [...] e lá em
cima da torres deles de ferro com tinta alumínio, que mijavam a luz amarela nas
areias vermelhas dos musseques, despindo cubatas [...]. [...] lua amarela, parecia era
azeite-palma, dos quatro olhos dos projectores desrespeitando os segredos dos
musseques (VIEIRA, 1985, [1975], p.14).

[...] de gritos de Ŗagarra, agarraŗ, das portas se fecharem com barulho e mais choros
e gritos de monandengues [crianças] arrancadas nas suas brincadeiras, escondidos
dentro das cubatas. Pelo areal, esquivando-se entre os quintais, o homem corre, e
tiros, ninguém que sabe mesmo onde estão a sair, passa a cantar na boca do escuro
(VIEIRA, 1985, [1975], p. 20).

Outro dado importante em relação à vulnerabilidade da população dos musseques é que


com a chegada das tropas militares metropolitanas, houve um aumento considerável da
prostituição nos musseques. Monteiro não chega a problematizar esse dado. Quando analisava as
razões que geravam a prostituição no musseques, o autor apontava os desajustamentos sociais
trazidos pela Ŗsimples transição do rural para o meio urbanoŗ, o Ŗafrouxamento do controle
familiar e socialŗ (MONTEIRO, 1973, p. 380; 393). O fato de residirem nos musseques interferia
diretamente no valor cobrado pelas prostitutas. Segundo Monteiro, em relação às prostitutas que
ocupavam o centro urbano de Luanda, as prostitutas que habitavam os musseques recebiam em
torno de 50% menos que aquelas (MONTEIRO, 1973, p. 393-394).
Luandino Vieira no conto Dina representa, por meio da personagem-título, a violência e o
torpor que se faz presente na vida de uma prostituta.

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A matutar nesse princípio de nojo que estava sentir muitas vezes no serviço;
quando deitava com os tropos tinha qualquer coisa dentro dela não aceitava [...] lá
dentro, bem no fundo, na pele dela e na carne dela, um bicho que não conhecia,
não sabia, torcia-se, mexia, refilava (VIEIRA, 1985, [1975], p. 16).

A protagonista sente Ŗnojoŗ ao prostituir-se, mas é com as Ŗtropasŗ militares que esse
sentimento que a acomete se manifesta, inclusive fisicamente: suas Ŗmamas ficavam rijas e a pernas
apertavam o homem [...] que depois, zangado, punha queixas na velha [cafetina]. [...] no corpo não
aceitava mais esse cheiro de sola, de suor da tropa [...]ŗ (VIEIRA, 1985, [1975], p. 16).
A repressão colonial também se abateu sobre as associações culturais e recreativas que
começaram utilizar esse espaço para um início de um lento e tímido processo de contestação
(ANDRADE, 1980, p. 47). Os clubes de futebol também se transformaram num espaço
privilegiado para o desenvolvimento de tal processo.

[...] muitos irmãos do Botafogo foram na prisão por causa da escola primária do
clube Ŕ que não tinha autorização; que não estava no Plano de Ensino; isto é,
palavras dos brancos que querem dizer que ninguém sozinho pode fazer nada, pior
se negro é quem quer fazer [...]. (VIEIRA, 1983, p. 37).

Em entrevista a Laban, Luandino Vieira faz referência sobe a atuação do Botafogo, um


clube do musseque, que tinha departamento cultural que preocupava-se com a conscientização
desta população. E salienta a importância da ligação entre as associações culturais e a
Ŗmovimentação política subterrâneaŗ, que foi o caminho possível para se buscar a conscientização e
a organização necessárias para o início da luta anticolonial. Os indivíduos quase sempre eram os
mesmos e participavam nas várias frentes, fossem de perfil cultural ou político (LABAN, 1980, p.
45).
Ao longo deste texto, apontamos uma série de vulnerabilidades que atingem os musseques.
Se nos detivermos a uma análise mais profunda veremos que em todos os eixos, em todos os
âmbitos os musseques encontram-se em inúmeras situações de fragilidade, instabilidade,
precarização, irregularidade entre outros, que se agravam com a luta anticolonial. Uma questão se
impõe: Por que não tratamos essas populações dos musseques como excluídas e não como
vulneráveis? A resposta reside onde o musseque se faz mais presente: na resistência. A resistência
daqueles que assumindo sua diferença, luta, para ampliar seu espaço na sociedade e modificar a
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situação de desigualdade instalada há muito tempo. A resistência mostra os vínculos de


solidariedade que envolvem estes indivíduos. Vínculos, que como afirma Bittencourt, pretendem
dar conta dos diversos laços de união entre os angolanos ao longo de sua vida e que em
determinados momentos assumem grande importância, facilitando ou condicionando suas ações.
Referem-se, principalmente, entre outros, às ligações familiares, religiosas, guerrilheiras e etárias
(estas sendo um reflexo da área de residência e dos locais mais frequentados durante determinada
época) (BITTENCOURT, 2002, p.52).
É bem verdade que pela natureza da sua ocupação no governo colonial, Monteiro não teça
comentários sobre a resistência empregada nos musseques. Mas neste sentido, Luandino Vieira não
se furtou em representar.
A resistência está em Dina que foi presa, mas estava feliz, pois não precisará deitar-se com as
tropas. ŖNunca mais! Juro! Com estes gajos, nunca mais! [...] (VIEIRA, 1985, [1975], p. 24). Assim
como, está em O exemplo de Job Hamukuaja, que tomando conhecimento do não domínio por parte
dos agentes colonialistas do idioma quimbundo, utiliza-o como meio possível de comunicação
entre os companheiros sem o conhecimento dos opressores. Na figura do pequeno Zito Makoa, da
4ª classe, que foi agredido no colégio pela professora por não revelar o papel que possuía em suas
mãos, onde se lia ŖANGOLA É DOS ANGOLANOSŗ.
Portanto, os vínculos de solidariedade estão alocados no eixo sociofamiliar, que segundo
Escorel, correspondem a vínculos familiares sólidos e estáveis, relações de amizade, coleguismo,
companheirismo, que se deixam perceber na família, no grupo religioso, na comunidade
(ESCOREL, 2000, p. 142). Neste sentido, podemos afirmar que a população dos musseques ao
resistir e ao se solidarizar na luta está positivamente inserida neste âmbito.
Propusemos neste artigo uma pequena análise das vulnerabilidades dos musseques, como
elas agravaram-se com o advento da guerra colonial e de que forma os musseques resistiram. A
análise foi feita a partir da literatura de José Luandino Vieira e da obra sociológica de Ramiro
Ladeiro Monteiro. Ambos com seus lugares de fala bem determinados. O primeiro escreve sobre
um universo que conhece bem, o segundo propõe uma cientificidade a um objeto ainda
desconhecido da literatura científica. Contudo, eles evidenciam formas de vulnerabilidade que os
musseques estão sujeitos: precariedade da habitação, informalidade dos empregos, a estigmatização
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e criminalidade desta população. Ainda que Ladeiro Monteiro não problematize alguns dados ou
que Luandino Vieira carregue a tinta da sua literatura, visando reforçar a denúncia da opressão,
está tudo lá.

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GUIMARÃES ROSA E A NOMADOLOGIA: TRÊS TEMPOS DE UMA HISTÓRIA


Rogério Mattos

Resumo
Utilizando do conceito de Ŗmáquina de guerra nômadeŗ, de Gilles Deleuze e Félix Guatarri,
analisar de forma sintética, a partir dos movimentos autóctones narrados no ŖGrande Serão:
Veredasŗ, de Guimarães Rosa, as forças exteriores, aquém ou além do Estado, inserido dentro dele
ou não, que lutaram consciente ou inconscientemente pela soberania nacional, através de
passagens no Império, na República pré-64 e no Brasil dos dias atuais. Colocar o romance de GR
como síntese das forças políticas que atuavam no país antes do golpe, mostrando suas raízes no
Império e que se desenvolveram até a nossa década.
Palavras-chave: Guimarães Rosa, ditadura, movimentos sociais, império, república.

Existe uma leitura do romance de Guimarães Rosa, ŖGrande Serão: Veredasŗ, que o coloca
não só como espelho dos rumos nacionais à época em que foi concebido, mas na vanguarda de
movimentos que hoje em dia se afiguram como o que de mais importante existe enquanto
representação das diversas parcelas de nossa sociedade. Porém, antes de seguirmos em frente com
tal interpretação, devemos analisar a característica marcante da ficção que ora temos em conta. Ela
nos narra, antes de tudo, um movimento de guerra, uma rebelião, uma revolução feita pelo povo,
com o povo e para o povo. Feita pelo povo, ou seja, Medeiro Vaz Ŕ o primeiro chefe da jagunçagem
que busca a paz no sertão - pensa na população quando quer o fim do banditismo no sertão; com o
povo porque escolhe entre seus integrantes os futuros guerrilheiros; e para o povo pois quer
entregar a ele os resultados da batalha pela paz, e não a meia dúzia de poderosos como idealizara Zé
Bebelo, nosso herói que pensa como os príncipes iluministas, centralizador e cruel.

Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


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O movimento operário no Brasil teve início no começo do século passado. Também nascia
no fim do oitocentos os justiceiros sertanejos, procurando autonomia para suas terras. A guerra
encenada por Guimarães Rosa, com fins pacíficos e consciência dos limites de suas reivindicações
pode ser encarada como um protótipo do que iria ocorrer no nordeste brasileiro na década
seguinte à publicação de seu livro: as Ligas Camponesas. Como que seguindo o curso histórico,
com o campo se antecipando à cidade na criação de movimentos de base, nos anos 70 nasce o
movimento operário no ABC paulista e, por outro lado, na necessidade crescente de legitimar ao
máximo tais feitos populares, cria-se o MST, para diálogo amplo com o Estado e a Sociedade. Mais
tarde, também na década seguinte, cria-se o PT, substituto legítimo do PTB varguista, para o
Ŗsocialismo morenoŗ ser paulatinamente implantado nos trópicos.
Tais movimentos de autonomia popular são diametralmente opostos às clássicas
reivindicações burguesa que tiveram curso na Europa moderna, pois com elas nasceram juntos a
consciência dos direitos sociais, para além da ampliação dos direitos políticos que derrubaram de
uma vez o Antigo Regime. Se as manifestações pela independência na América tiveram como foco
as Luzes e lado a lado aos reclames populares aparecia como liderança os chefes burgueses (ou até
mesmo os nobres, como no Brasil), nas lutas pela independência na África e na Índia o elemento
autóctone e popular foi predominante e às revoltas cedeu-se espaço às guerrilhas. Não foi outro
também o destino da América Latina, apesar de no Brasil terem sido mais pacíficas as investidas,
mas nem por isso menos exemplares, como é o próprio caso das Ligas, da criação do Partido dos
Trabalhadores (e inúmeros outros que buscavam fins semelhantes por meios diversos) e do MST.
O filósofo francês Gilles Deleuze junto ao psicanalista Felix Guattari parecem ter captado
tal movimentação global e dedicam partes importantes de sua principal obra, o ŖAnti-Édipoŗ para
tal discussão. Não é uma obra tão Ŗengajadaŗ como pode parecer, mas é uma análise filosófica,
psicológica e social que capta como nenhuma outra os rumos de nosso tempo. Edward Said, no seu
ŖCultura e Imperialismoŗ, fez breve e excelente interpretação do platô ŖNomadologiaŗ, que trata
exatamente da Ŗmáquina de guerra nômadeŗ e seus efeitos em todos os ramos do conhecimento e
do poder humanos.

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O capítulo intitulado “Traité de nomadologie: La machine de guerre”, baseia-se na obra de


Virilo e estende suas idéias sobre o movimento e o espaço num estudo altamente excêntrico
de uma máquina de guerra itinerante. Esse tratado profundamente original apresenta uma
metáfora sobre uma espécie disciplinada de mobilidade intelectual numa era de
institucionalização, arregimentação e cooptação. A máquina de guerra, dizem Deleuze e
Guattari, pode ser identificada com os poderes militares do Estado – mas como ele é
fundamentalmente uma entidade separada, não é necessário que o seja, da mesma forma
que as perambulações nômades do espírito nem sempre precisam ser posta a serviço das
instituições. A origem da força da máquina de guerra nômade não está apenas em sua
liberdade nômade, mas também em sua metalurgia – que os autores comparam à arte de
composição musical –, que forja os materiais, moldados “para além das formas separadas;
[essa metalurgia, tal como a música] acentua o desenvolvimento contínuo da própria forma,
e para além dos materiais individualmente diferentes, ela acentua a variação contínua
dentro da matéria”. Precisão, concretude, continuidade, forma – todas elas possuem os
atributos de uma prática nômade cujo poder, diz Virilio, é não agressivo e sim transgressivo.
Podemos perceber essa verdade no mapa político do mundo contemporâneo. Pois certamente
uma das características mais lamentáveis da época é ter gerado refugiados, imigrantes,
deslocados e exilados do que qualquer outro período da história, em grande parte como
acompanhamento e, ironicamente, conseqüência dos grandes conflitos pós-coloniais e
imperiais. Assim como a luta pela independência gerou novos Estados e novas fronteiras, da
mesma forma ela gerou andarilhos sem lar, nômades, errantes, que não entravam nas
estruturas nascentes do poder institucional, rejeitados pela ordem estabelecida por sua
intransigência e obstinada rebeldia. E na medida em que essas pessoas existem entre o velho
e o novo, entre o velho império e o novo Estado, a condição delas expressa as tensões,
irresoluções e contradições nos territórios sobrepostos mostrados no mapa cultural do
imperialismo (SAID, 1995: pp. 406 Ŕ 407).

Para conhecer um pouco mais os nômades, os que provocam a guerra apesar de não tê-la
como objetivo, farei uma breve explanação sobre o Ŗplatôŗ de Deleuze e Guattari. Assim é expressa
no livro, de maneira bem resumida, a distinção entre a Ŗmáquina de guerra nômadeŗ e o aparelho
estatal:
1) La souveraineté politique aurait deux pôles, l‟Empereur terrible et magicien, opérant par
capture, liens, noeuds et filets, Le Roi prêtre et juriste, procédant par traités, pactes, contrats
(c‟est [segundo a tese de Dumézil] le couple Varuna-Mitra, Oddhin-Tyr, Wotan-Tiwaz,
Ouranos-Zeus, Romulus-Numa...); 2) une function de guerre est extérieure à la souveraineté
politique, et se distingue d‟um pôle autant que de l‟autre (c‟est Indra, ou Thor, ou Tullus
Hostilius...) (DELEUZE; GUATARRI, 1980: pp. 528).

Ou o Estado possui uma violência que não passa pela guerra, ao contratar policiais e não
guerreiros, ou adquire uma força armada, mas que pressupõe uma organização jurídica da guerra e
uma organização da função militar. A máquina de guerra não funciona por tratos, mas por traições.
ŖIl serait plutôt comme la multiplicité pure et sans mesure, la meute, irruption de lřéphémère et
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puissance de la métamorphoseŗ (DELEUZE; GUATARRI, 1980: pp. 435). Hobbes diz ser o Estado
contra a guerra e a guerra contra o Estado. Caso não concluirmos que a guerra é um estado
natural, ela seria, ao contrário, um modo de estado social que conjura e impede a formação estatal.
Segundo Pierre Clastres, a guerra impede as alianças, as trocas comerciais, ou seja, impede o Ŗfatorŗ
Estado, impede a fusão de grupos. A partir desse ponto de vista, é impossível enxergar uma
continuidade, uma evolução que levaria as sociedades primitivas chegarem à complexidade estatal.
As sociedades primitivas e o Estado são pólos distintos e irredutíveis.
Os autores consideram a tese da Ŗsociedade contra o Estadoŗ, mas não existiria
simplesmente uma organização que anularia o Estado ou este acabaria com as sociedades
primitivas. O Estado, segundo GD e FG, só pode ser pensado segundo suas relações com os grupos
exteriores que o contestam numa crescente e múltipla interação.

La forme-Etat, comme forme d‟intériorité, aune tendance à se reproduire, identique à soi à travers ses
variations, aisément reconnaissable dans les limites de ses pôles, s‟adressant toujpurs à la recognition
publique (il n‟y a pas d‟Etat masqué). Mais la forme d‟extériorité de la machine de guerre fait
qu‟elle n‟existe que dans ses propes métamorphoses; elle existe aussi bien dans une innovation
industrielle, dans une invention technologique, dans um circuit commercial, dans une création
religieuse, dans tous ces flux et courants qui ne se laissent approprier par les Etats que
secondairement. Ce n‟est pas em termes d‟indépendance, mais de coexistence et de concurrense, dans
um champ perpétuel d‟interaction, qu‟il faut penser l‟éxtériorité et l„intériorité, les machines de guerre
à métamorphoses et les appareils identitaires d‟Etat, les bandes et les royaumes, les mégamachines et
les empires. Une même champ circonscrit son intériorité dans des Etats, mais décrit son extériorité
dans ce qui échappe aux Etats ou se dresse contre les Etats. (DELEUZE; GUATARRI,
1980: pp. 445 - 446).

Os autores nos contam que a máquina de guerra é, entre outros, atestada pela
epistemologia, Ŗque deixa pressentir a existência e a perpetuação de uma Řciência menorř ou
Řnômadeřŗ. Seria uma ciência como o antigo atomismo, no qual não trataria, numa teoria dos
sólidos, os fluidos como um caso particular. Onde o fluxo é a própria realidade ou a consistência,
abre-se espaço para um modelo científico hidráulico, oposto ao estável, ao eterno, ao constante.
Nesse modelo, o mar aparece como o espaço liso (em contraposição ao espaço estriado, espaço
estatal, das estratificações, ordenações, leis e instituições) por excelência. Lugar primeiro dos
aventureiros, dos piratas, lugar deslocado do controle de um governante, preocupado ele com a
posse de suas terras. Posteriormente, o mar passa a ser controlado pelo governante, por suas rotas,

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seus portos que amparam os navegadores. É quando a máquina de guerra nômade é apropriada
pelo aparelho de Estado e o mar passa a ser um espaço estriado. Não é outra a lógica da interação
entre os dois pólos opostos que interagem, dá Ŗmáquinaŗ, que é exterior ao Estado.
A forma das catedrais românicas peculiares a certo período medieval, dão lugar a uma lógica
distinta de construção: a catedral gótica. Nas primeiras, existe a lógica da justaposição das pedras de
acordo com um plano predeterminado (espaço estriado); na segunda, as rochas são dispostas de tal
forma que dão a sensação de ser apenas uma coluna, estendida ao espaço infinito. A construção
das pontes européias no século XVIII participariam do mesmo princípio de Ŗfluxo livreŗ adotado
pela arquitetura gótica. Apesar de terem sido construídas através da administração e das verbas
estatais, elas não eram controladas como as rotas naquele período. Trudaine organizou assembléias
gerais livres para a idealização dos projetos. Perronet se inspirou em um modelo oriental, Ŗpara que
a ponte não bloqueie ou obstrua o rioŗ. Dentro das ciências menores podemos encontrar os
modelos que formam ou foram formados pela máquina de guerra nômade.
Por outro lado, em nossa exposição que se pretende sumária, definiremos de uma vez o que
os autores entendem como nomadologia a partir da fórmula que os mesmo usam de Clausewitz, na
qual Ŗa guerra é a continuação por outros meios das relações políticasŗ. É claro que guerra, no
texto que ora analisamos, não se reduz aos campos de batalha, sendo toda a disputa cientifica,
social, econômica, etc. (como a vida dos mineiros, dos artesãos, dos imigrantes, a própria história
da filosofia e de inúmeros ramos da ciência e das artes), ou seja, existe toda uma relação que se
empregam na relação entre o Estado e os mecanismos que formam seu exterior. A fórmula de
Clausewitz não seria uma idéia pura que levaria a um aniquilamento abstrato do adversário. Ela
teria a guerra como objetivo e que entretém com a guerra uma Ŗrelação sintética potencial ou
suplementarŗ.
Na nona e última proposição do texto, se afirma que Ŗa guerra não necessariamente tem
por objeto a batalha, e acima de tudo a máquina de guerra não tem necessariamente por objeto a
guerra, apesar de a guerra e a batalha assim resultar necessariamente (sob certas condições)ŗ.
Portanto, seria a guerra ela mesma objeto da máquina de guerra? Ela é a invenção dos nômades,
por sua essência ser constituída pelo espaço liso, da ocupação desse espaço, do deslocamento para
esse espaço e para a correspondente composição dos homens: Ŗcřest là son seul et véritable objet
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positif (nomos). Faire croîte le désert, la steppe, non pas les dépeupler, bien au contraireŗ
(DELEUZE; GUATARRI, 1980: pp. 519). Se a guerra acontece Ŗnecessariamenteŗ é porque a
máquina de guerra se choca com o Estado e as cidades, Ŗcomo as forças (de estriagem) que se
opõem ao objeto positivoŗ. Assim começa a guerra, ao se procurar anular as forças do Estado, ao
tentar conseguintemente destruir a Ŗforma-Estadoŗ.
O problema propriamente dito não seria da realização ou não da guerra, mas da
apropriação da máquina de guerra nômade pelo Estado. Enquanto aquela possuir um Ŗdevir
abstratoŗ, procura perpetuar sua própria forma para além das inibições da estratificação social -
como a história do bando de moleques de rua e sua vida livre e carregada de poesia em os
ŖCapitães de Areiaŗ, de Jorge Amado Ŕ, este (o Estado) procura se apropriar dos mecanismos
fluídos do nomadismo a fim de que ele trabalhe para si, para seus objetivos políticos, os quais
consequentemente aparecem como forma de guerra. É interessante o conceito de Deleuze e
Guattari sobre a guerra total praticada pelos Estados e sua gênese na apropriação da máquina de
guerra:

La question donc moins celle de la réalisation de la guerre que de l‟apropriation de la machine de


guerre. C‟est en même temps que l‟appareil d‟Etat s‟approprie la machine de guerre, la subordonne à
des buts “politiques”, et lui donne pour objet direct la guerre. Et c‟est une même tendance historique
qui entraîne les Etats à évoluer d‟un triple point de vue: passer des figures d‟encastement à des formes
d‟appropriation proprement dite, passer de la guerre limitée à la guerre dite totale, et transformer le
rapport du but et de l‟objet. Or les facteurs qui font de la guerre d‟Etat une guerre totale sont
étroitement liés au capitalisme: il s‟agit de l‟investissement du capital constant en matériel, industrie
et economie de guerre, et de l‟investissement du capital variable en population physique et morale (à
la fois comme faisant la guerre, et la subissant). En effect, la guerre totale n‟est pas seulement une
guerre d‟anéantissement, mais surgit lorsque l‟anéantissement prend pour “centre” non plus
seulement l‟armée ennemie, ni l‟Etat ennemi, mais la population tout entière et son économie. Que
ce double investissement ne puisse se faire que dans les conditions préables de la guerre limitée montre
le caractère irrésistible de la tendance capitaliste à développer la guerre totale. Il est donc vvrai que la
guerre totale reste subordonée à des buts politiques d‟Etat et réalise seulemnt le maximum des
conditions de l‟appropriation de la maquine de guerre par l‟appareil de‟Etat. Mais il est vrai aussi
que, lorsque l‟objet de la maquine de guerre appropriée devient guerre totale, à ce niveau d‟un
ensemble de toutes les conditions, l‟objet et le but entrent dans ce nouveaux rapports qui peuvent aller
jusqu‟à la contradiction. D‟où l‟hésitation de Clausewitz quand il montre tantôt qu‟elle à effectuer
l‟Idée de la guerre inconditionée. En effect, le but reste essentiellement politique et determiné comme
tel par l‟Etat, mais l‟objet même est devenue illimité. On dirait que l‟appropriation s‟est retournée,
ou plutôt que les Etats tendent à relâcher, à reconstituer une immense machine de guerre dont ils ne
sont plus que les parties, opposables ou apposées. Cette machine de guerre mondiale, qui “ressort” en
quelque sorte des Estats, présent deux figures successives: d‟abord celle du fascisme qui fait de la
guerre un mouvement illimité qui n‟a plus d‟autre but lui-même; mais le fascisme n‟est qu‟une
ébauche, et la figure post-fasciste est celle d‟une machine de guerre qui prend directement la paix pour
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objet, comme paix de la Terreur ou de la Survie. La machine de guerre reforme un espace lise qui
prétend maintenant contrôler, entourer toute la terre. La guerre totale est elle-même dépassée, vers
une forme de paix plus terrificant encore. La machine de guerre a pris sur soi le but, l‟ordre mondial,
el les Etats ne sont plus que des objets ou des moyens appropriés à cette nouvelle machine. C‟est là
que la formule de Clausewitz se retourne effectivement; car, pour pouvoir dire que la politique est la
continuation de le guerre avec d‟autres moyens, il ne suffit pas d‟inverser les mots comme si l‟on
pouvait les prononcer dans un sens ou dans l‟autre; il faut suivre le mouvement réel à l‟issue duquel
les Etats, s‟étant appropriés une machine de guerre, et l‟ayant approprié à leurs buts, redonnent une
machine de guerre qui se charge du but, s‟approprie les etats et assume de plus en plus de fonctions
politiques(DELEUZE; GUATARRI, 1990: pp. 524 - 525).

A guerra total promovida pelo Estado é, nos dias atuais, a guerra do Afeganistão e do
Iraque, os dois exemplos mais notáveis. Sem nenhuma base na realidade, cooptando os meios de
comunicação (três ou quatro que são os maiores do mundo e que portanto tem suas notícias
ecoadas por todas as partes sem possibilidade, a priori, de maiores averiguações), criam factóides
para continuar a construir civilizações à base da rapina. A apropriação da máquina de guerra pelo
Estado é a guerra do Paraguai cooptando escravos e os escalões inferiores da sociedade para
defender um expansionismo despótico e é também encarnada nos cientistas nazistas, onde cada um
fazia uma parte minúscula de uma pesquisa bem mais ampla e que no fim daria como resultado a
bomba atômica, muito bem barganhada pelos EUA através dos serviços de Robert Oppenheimer.
A apropriação da máquina de guerra nômade pelo Estado é atestada no caso brasileiro
durante a formação da Marinha Imperial. A historiografia acostumou-se a tachar de simplesmente
de mercenários os capitães ingleses que dominaram as revoltas no Pará, Maranhão e Bahia após a
Proclamação da Independência. Um estudo de Nélio Galsky (sua tese de mestrado), na UFF, vem
clarear um pouco as origens de nossa Marinha e de seu fundador nativo, Tamandaré. Vamos à uma
pequena biografia do Almirante Cochraine, antes de se engajar nas lutas brasileiras, escrita por
Nélio:

De origem arsitocrática, héroi das Guerras Napoleônicas, ele se transformaria rapidamente em


crítico do almirantado britânico. Depois de acusar alguns superiores de covardia, discutiria a lisura
dos tribunais de presas, e principalmente, investiria contra as condições desumanas impostas aos
marinheiros. Em uma época em que o recrutamento forçado ainda era a tônica nas Marinhas
européias, ele atacaria a falta de alimentação adequada nos navios, de recursos médicos, e a
ausência de pensão no caso de incapacidade dos feridos. Suas críticas à corrupção nos altos escalões
da Royal Navy o aproximariam dos radicais da política britânica, ao mesmo tempo em que lhe
criariam inimizades em vários setores da elite. Eleito para o Parlamento em 1807, ele defenderia
várias posturas do jacobinismo inglês, como a ampliação do sufrágio universal. Porém uma questão

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mostraria os limites do seu radicalismo: a cada vez que um dos seus colegas pedia a retirada das
tropas que lutavam na Espanha. Cochrane retirava-se da sala e não participava dos trabalhos
parlamentares. Lutar contra a corrupção na Marinha e pela melhoria das condições de vida dos
marinheiros era uma coisa, lutar pelo término da guerra, que representaria o fim das possibilidades
de apresamento de barcos e cargos, era outra.
Em 1814, foi expulso do Parlamento, em consequência de um escândalo na Bolsa de
Valores: um coronel, conhecido de Cochrane, espalhou o boato da morte de Napoleão. A notícia era
falsa, mas fez com que houvesse uma alta súbita das ações, beneficiando certo número de
investidores, entre os quais estava o próprio Almirante. Embora tenha protestado inocência e
atribuído seu envolvimento no escândalo a uma conspiração política dos seus inimigos conservadores,
ele perderia todas as suas condecorações e títulos. Após 1818, o Almirante deixaria a Inglaterra e
dedicaria a sua energia e coragem à criação e/ou liderança das forças navais do Chile, Peru, Brasil e
Grécia (GALSKY, 2006: pp. 16 Ŕ 17).

Continuando seu estudo, o autor nos narra que o corso servia como forma de sobrevivência
ou uma espécie de fonte de renda dos oficiais da marinha britânica durante a época moderna, já
que não se havia instituído no país a racionalização da administração estatal, fruto, entre outros
motivos, das guerras napoleônicas, as quais fizeram as monarquias européias aparelharem seus
mecanismos de poder com uma força armada forte, numerosa e de alistamento compulsório. A
perda da lealdade ao capitão em favor da lealdade ao Estado é o corolário desse movimento,
tornando anacrônica a cumplicidade entre os oficiais e seus subordinados provocadora do corso, da
Ŗpirataria oficialŗ realizada até então. Os meios de coesão entre os integrantes das esquadras
britânicas muda de feição à chegada da burocratização cada vez maior do Estado surgido após as
revoltas e revoluções que marcam o fim da Era Moderna. O fim do corso também é consequência
da introdução dos navios a vapor nas navegações de grande distância e a resistência à
profissionalização da Royal Navy pode ser imputada à mentalidade independente dos nascidos na
Bretanha, que se outorgavam o direito de servir aos países que falavam mais próximo às suas
concepções de deveres de oficial.
Visto serem as práticas dos comandantes britânicos da velha escola (talvez podemos chamá-
los assim) como um conflito entre a nova e antiga forma de organização estatal nas ilhas britânicas,
Nélio Galsky passa então a analisar as motivações que redundaram na má fama dos combatentes
britânicos em nossa terra. Consulta a imprensa portuguesa da época, procurando ver refletidas nela
a causação do fenômeno. Nada encontra, pois no primeiro momento ela se mantém contra o
Almirante, já que ele ignorava as deliberações das Cortes de Lisboa. Com a volta ao poder de D.

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João VI e sua política de conciliação ou de ambiguidade política e posterior reaproximamento do


Brasil, cessam nos jornais lusitanos as críticas às primeiras guerras patrocinadas por nossa Marinha.
As causas apontadas para o desprestígio dos oficiais britânicos nas Forças Armadas
brasileira e na historiografia nativa são a questão do apresamento das mercadorias dos navios das
forças derrotadas e o papel de alguns oficiais nas políticas do Império. ŖO corso e o apresamento
[no Brasil] eram regulados pelo Alvará português de 7 de dezembro de 1796. Esta legislação exigia
nos seus artigos XVII e XVIII que a presa para ser válida tinha de ser entregue às autoriadades
portuárias com a carga e a documentação intactas. Além disto, era necessário trazer dois oficiais de
cada navio capturado para testemunhar sobre a lisura dos procedimentosŗ (GALSKY, 2006: pp.
51). A expedição solitária de John Taylor perseguindo a frota portuguesa até a embocadura do Tejo
resultou em diversos problemas, pela dificuldade da empreitada, a qual obrigou o consumo ou a
venda de produtos dos navios apresados por causa da falta de alimentos e de dinheiro dos
tripulantes, transformando-se num caso notável da dificuldade do julgamento relativos às presas de
guerra.
Cochrane, depois de nomeado Marquês do Maranhão, iria enfrentar graves empecilhos
para reaver as terras e o dinheiro que achava em seu direito após as conquistas realizadas. Grenfell,
o qual mais tarde se tornou o mais prestigiado marinheiro estrangeiro à serviço do Império, por seu
lado, além dos problemas relativos as presas (situação quase cotidiana enfrentada por esses
comandandes e seus tripulados), foi também protagonista quando ainda possuia 26 anos e
comandava a frota de Cochrane na pacificação do Pará de um dos episódios mais obscuros da
reconquista das terras brasileiras por eles promovida. Além de ter executado, aparentemente de
forma aleatória, cinco revoltosos da situação política no Pará, teve em seu navio uma rebelião de
presos cujo final resultou na morte de praticamente todos que lá estavam condicionados, ou seja,
mais de duzentas pessoas. Não se sabe ainda hoje com plena certeza como o tumulto se iniciou e
muito menos a causa de um desfecho tão trágico. O comandante fez sua defesa, mas levou a fama,
apesar de não ter levado a pena (que não conseguiu ser provada) pelo massacre.

Os episódios maraenheses marcariam de forma perene a imagem de Cochraine. Seus oficiais, que
permaneceram no Brasil, herdariam boa parte da fama de caçadores de butim, a maioria sem ter
acesso às vantagens pecuniárias referêntes às presas. Enquanto o projeto de nação brasileira não

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estava consolidado, eles seriam úteis para os sucessivos governos imperiais, pela lealdade, coragem e
competência que sempre demonstrariam. A década de 1850 veria a consolidação definitiva do
projeto de Estado Imperial. Dez anos depois, a cena política seria marcada pelo retorno do Partido
Liberal ao primeiro plano. Neste cenário, uma reavaliação dos acontecimentos do ponto de vista das
diferentes Províncias não representaria mais perigo. A partir daí, autores como Domingo Raiol, vão
retirar os oficiais ingleses do papel de “heróis da unidade nacional” e colocá-los como executores de
uma repressão desmedida. Por outro lado, após a década de 1870, a própria Marinha reconstituiria
sua história, dando ênfase aos heróis da Guerra do Paraguai. O antilusitanismo não era mais
necessário como arremedo de projeto nacional, e o português, Barroso, ao lado do brasileiro,
Tamandaré, iriam ocupar o lugar de Taylor, Grenfell e Hayden no panteão dos heróis navais
(GALSKY, 2006: pp. 81).

Não queremos aqui reavaliar a importância desse ou daquele herói. A Marinha ou os


historiadores dos feitos militares é que carregam a responsabilidade sobre tais discussões.
Queremos posicionar as frotas de Lord Cochraine dentro da perspectiva da apropriação da
máquina de guerra nômade pelo aparelho de Estado e da grave importância do militarismo frente à
desagragação do país promovida principalmente pelas Cortes de Lisboa.
Guattari e Deleuze expõem o aspecto negativo da cooptação de elementos exteriores ao
Estado. No entanto, ao Estado em si mesmo não se pode tecer alguma crítica. Obviamente, esta
deve ser feita quando se usa os mecanismos de poder para beneficiar uma minoria ou uma facção.
A Europa, ainda mais no século XX, vergada ao ímpeto de seus impérios monstruosos construídos
à base da rapina, poucas bases poderia dar aos seus pensadores em relação à criação de um poder
benigno dentro dos meios oficiais. O pessimismo da filosofia oitocentista também não escapa da
esfera dos poderes dominantes, nesse caso o da Igreja que vivenciava seu mais amplo declínio em
relação ao domínio temporal. As mentiras religiosas e as bases morais da sociedade foram
seriamente ameaçadas, frente inclusive a detuparções incontestes das verdades superiores como foi
a publicação do Syllabus.
Invertendo a lógico dos autores franceses e tendo em frente a importância de uma
Independência que manteve o Brasil senhor de todos seus territórios, de todas suas riquezas, sem
maiores derramamentos de sangue (pois estes existiram e saltam aos olhos de quem os estuda,
apesar de relativamente menor do que se as Províncias, instigadas por forças externas, quase todas
se insurgissem), poderemos entender o poder nômade capturado pelo Estado como fundamental
para a união nacional. Os oficiais britânicos que por aqui passaram, todos eles pertencentes à

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Ŗvelha escolaŗ naval de seus países e como tal relegados a segundo plano, erravam pela América do
Sul, ajudando nas guerras de independencia de nações ora aqui ora lá.
O aparelho de Estado, no caso brasileiro, admitindo esses guerrilheiros em seus quadros
oficiais através da criação por José Bonifácio da Marinha Imperial, promovem uma Ŗguerra totalŗ
contra as Províncias aliadas a Lisboa desprezando a organização da guerra que cada vez se tornava
maior, em grande parte, depois que passaram pelo Velho Continente as tropas arregimentadas pelo
gênio militar de Napoleão. O fator surpresa, assim como a mentira pura e descarada (a traição, nas
palavras dos teóricos de França), foram os motores desses combates, como na conquista da maior
província brasileira, a do Grã-Pará (que compreendia toda a Amazônia), por Grenfell, um oficial de
apenas vinte e três e que chefiara somente uma expedição anteriormente Ŕ e de muito menor
importância, a de busca e captura de fragatas no litoral da América Central. Chegara com uma
carta de Cochraine que o mesmo e sua esquadra estavam realizando uma operação na foz do
Amazonas e não tardariam. A realidade é que Cochraine partira após os sucessos no Maranhão
para o Rio de Janeiro afim de agilizar questões relativas aos apresamentos realizados no norte. Com
a bravata, a adesão dos paraenses ao Império de D. Pedro não tardou, apesar dos problemas que
surgiram posteriormente, resolvidos ainda sim por um comandante jovem e sem grande habilidade
política, mas com indomável coragem.
Outro ponto discutido na tese de mestrado com a qual agora dialogamos e que nos
interessa frontalmente é a do destino dos oficiais britânicos após a pacificação do extremo-norte e
nordeste brasileiros. Taylor e Hayden casaram com mulheres brasileiras de família rica e seguiram,
mais por forças das circustâncias do que por vontade própria, carreiras burocráticas dentro do
Império e o primeiro teve participações limitadas em algumas guerras. Grenfell teve participação
ativa na guerra na província Cisplatina, sendo sucedido com o mesmo êxito naquele conflito
apenas por Caxias. Tornou-se Consul Geral na Inglaterra e morreu como Vice-Almirante, a mais
alta patente alcançada por um oficial estrangeiro dentro da oficialidade brasileira. Lord Cochraine,
a figura de maior relevo na pequena epopéia aqui narrada, voltou a seu país de origem, vivendo dos
frutos de sua linhagem aristocrática e da riqueza alcançada em nosso continente.
É interessante nesse momento de nosso trabalho colocar um fator de condicionalidade ao
que ocorreu factualmente. Quero problematizar o ocorrido. Cochraine herdou extensas e
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numerosas terras no Maranhão, assim como boa parte da riqueza lá produzida. O que levou de fato
do governo brasileiro, diz o Almirante, foi muito aquém do que se julgava merecedor. Qual seria o
destino do lord caso quisesse entrar em guerra franca com as autoridades nacionais, se instalasse no
Maranhão com seu poder que fazia temer aos habitantes daquela terra e se tornasse, sem sombra de
dúvida, um verdadeiro Marquês do Maranhão (título realmente concedido a ele pelo imperador)?
Tal pergunta, claro, só saberíamos com plena certeza caso tal fato se materializasse em nosso
horizonte histórico. Por outro lado, não seria difícil prever as dificuldades que iria encontrar o
nobre saxão, principalmente se aspirasse a se tornar uma espécie de Gárcia DřÁvila com sua Casa
da Torre, um dos maiores exemplos de ocupação efetiva do interior brasileiro durante o período
colonial, à revelia da historiografia tradicional que talvez só consiga Ŕ ainda Ŕ enxergar os
portugueses como caranguejos a rastejar nas areias de nosso território.
A morte, por que não, poderia ser seu fim. Caso transformasse o temor dos provincianos
em amor, talvez tivéssemos um território dividido dentro do conjunto nacional. Um estrangeiro,
dado o preconceito e as reservas dos homens da época a esse tipo de elemento com alguma espécie
de poder, teria contra si os meios oficiais de repressão e intrigas gigantescas sem maiores esforços
poderiam surgir. E o lord deveria tocar mais uma vez os clarins da guerra, só que agora em total
contradição com sua luta inicial, a de manter íntegro o Brasil. A fuga, o exílio do Almirante, sem
sombra de dúvidas foi a melhor escolha que poderia fazer. Tal figura não viveria pacificamente
num Estado que lutava com todas as forças para encontrar sua própria identidade.
A realidade do exílio, voltando ao grande tema que ora estudamos, a ficção de Guimarães
Rosa, qual seria seu corolário na realidade plena, a da vida, tal como vemos até aqui, onde o
romance em muito prefigura os acontecimentos nacionais pré-64? Jango, acredito ser a resposta
correta. A realidade da máquina de guerra nômade mais uma vez se inverte ao defrontarmo-la com
a história brasileira. O conceito de nomadologia se insere não exatamente em grupos que se
formam às margens da sociedade ou se desenvolvem, como as grandes empresas globais, em seu
centro, mas que guardam certa independência da regulação dos mecanismos estatais. No caso da
república brasileiro pré-64 existe um governo cuja representatividade está nos movimentos sociais Ŕ
incipientes à época se comparados aos de hoje Ŕ, fundamentalmente inserido na questão

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trabalhista, que vai de encontro à tradição do oligopólio dos plantadores de café que sustentaram o
Império e financiaram o início de nossa vida republicana.
Jango, com uma aprovação popular de 47 % meses antes do golpe, pode ser considerado
um polítco bem aceito pela sociedade como um todo, devido tanto aos seu pouco tempo na chefia
do Estado, como também pela ausência de canais amplos que promovessem seu governo, tal como
hoje fazem a mídia partidária da tradição direitista ou como Getúlio fez para se autopromover.
Tudo isso excluindo os graves conflitos que o presidente teve de enfrentar devido à tentativa de
golpe de Jânio Quadros, gerando um quadro político de grande instabilidade e da insistência das
Forças Armadas e das alas conservadoras do país em impedir sua posse como vice-presidente eleito.
A falta de representatividade do presidente, com os movimentos sociais pouco ramificados
dentro da sociedade; os conflitos dentro dos mesmos, muitas vezes instigados por agentes exteriores
neles infiltrados; a herança conservadora de nossa política desde a colonização pelo elemento
português junto à marcha conservadora afim de dar legitimidade ao golpe, levantando a bandeiro
de Deus e da Família, minaram as forças da política desenvolvimentista, trabalhista e autóctone que
lutava por se implantar em nosso país. Tivemos a posse da presidência pelo vice-presidente eleito
feito dentro dos ditames legais, mas o mesmo não obteve êxito em se legitimar como dirigente
nacional. Tivemos um caso em que os elementos orindos dos extratos marginais ao Estado, os
trabalhistas, chegaram ao poder. A máquina de guerra nômade se apossou do aparelho de Estado.
Como Cochraine, Jango buscou dominar o Brasil, mas não através das armas. O plano ideal
buscado por ele foi o de fazer comícios como o da Central do Brasil por todo o país, e assim
conseguir o apoio popular que lhe faltava à época. Percorreria a nação, utilizando de seus poderes
como dirigente máximo da pátria, e espalharia, como numa cruzada, as idéias que ele e sua base
defendiam, através de um Brasil ainda deveras provinciano, no qual os acontecimentos políticos
ocorridos no centro-sul pouco ou nada interessavam ao restante do país. Ao contrário de 64, a
mobilização popular nas eleições de 2010 representaram grande avanço na consciência política
nacional, contra uma campanha do ódio e do preconceito, os velhos trunfos da velhacaria udenista.
Jango não teve tempo nem meios para conquistar o povo como um todo.
Como representante de um poder nômade, alheio às estruturas sedimentadas do
conservadorismo político que dava seu golpe máximo naqueles anos, teve por bem evitar a guerra
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civil e procurar o exílio no Uruguai. As forças que se movem paralelas à sociedade tradicional não
necessariamente tem a guerra como objetivo na conquista de seus ideais. Cochraine voltou à
Inglaterra; Jango partiu para o Uruguai. O exílio como opção foi a saída justa para não
comprometer de maneira irreparável a coesão nacional.
Como Guimarães Rosa resolveu tal conflito entre poderes extremamente opostos em sua
ficção? A oposição representada por seu personagem Zé Bebelo, centralista e se preciso cruel, como
os príncipes idealizados por Maquiavel, contra a contratualidade entre a população e os líderes
jagunços proposta pelo bando iniciado por Medeiro Vaz Ŕ o jagunço que busca pacificar o sertão Ŕ
, é o sinal, na realidade política brasileira, de uma possível união, não perene, mas de conjectura,
entre a esquerda e a direita moderadas. Tanto é uma posição de situação que Zé Bebelo é líder dos
jagunços enquantos não possuiam um líder de fato. Após a emergência de Riobaldo como chefe, Zé
Bebelo volta a Goiás e não mais aparece.
Talvez em nossa realidade institucional pré-64 não houveram situações pertinentes para tal
união. Após o golpe, sim, apesar da coalização de forças não ter saído vitoriosa. O fato é que o
exílio proposto por Guimarães Rosa não é sua exclusão das relações diretas com o poder
estabelecido. Seu diálogo durante todo o romance com a figura do Doutor é exemplo disso.
Realmente, não vemos em sua prosa a questão do exílio como tal, mas é concreta sua posição de
independência frente aos símbolos considerados sagrados pela sociedade de então. A vitória do
jagunço Riobaldo e de seu bando, a pacificação do sertão mineiro com o fim do banditismo, é uma
espécie (talvez falando vulgarmente) de Ŗdestino manifestoŗ para as forças populares que chegam a
alguma espécie de poder ou de independência frente ao Estado, através de lutas internas e de
acordos mútuos. É a sabedoria de Lord Cochraine em não reivindicar como um todo o que achava
legítimo para si após suas conquistas e a sabedoria de João Goulart ao não formentar a guerra civil
e dividir o país, como parece ter havido essa movimentação nos bastidores da política norte-
americana a partir do domínio (político e econômico, não militar) do estado de Minas Gerais.
O romance de Guimarães Rosa é um Ŗdestino manifestoŗ de nossa independência no
sentido em que propõe um contrato civil entre o povo e suas lideranças, quando nos mostra uma
união altamente livre e democrática já no início de seu romance ao relatar que, caso houvesse
necessidade de guerra, mesmo Riobaldo não sendo o senhor do sertão, teria amplas condições de
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se reunir a quantos sertanejos fossem necessários para não trazer novamente a desordem para o
lugar onde vivem. É a diplomacia do embaixador da causa de Zé Bebelo em seu julgamento pelos
jagunços inimigos: quieto, confiante, pacífico e fundamental no desfecho para um sentença justa. É
a negociação que prevê imagens edênicas (Diadorim), mas abraça a realidade dada com toda sua
beleza (seu casamento com Otacília), não se calcando pelo remorso odiento, fermentador de
disputas e conflitos. Acima de tudo, é representação de um povo que através de sua história mais e
mais vai tomando consciência de si e de sua integração na comunidade nacional como um todo e
que por movimentos independentes dos poderes oficiais reúne-se pelo pacto mútuo para atingir os
objetivos prementes que sua situação social lhes sugere. É o Brasil que hoje vai se contruindo, com
a emergência dos antes pobres ou miseráveis; o Brasil da classe c que a mídia facciosa destesta e ao
mesmo tempo busca cooptar. É o Brasil da corrupção e do autoritarismo, nas palavras da nossa
velha direita, aliados aos aparelhos de controle social, através da imprensa, buscando tornar
sedicioso o que não é, e o mal em bem, como nunca se viu corrupção igual na história republicana
como o caso das privatizações e todo o jogo de mentiras e enganos que o reacionarismo brasileiro
promoveu para justificá-lo. É o Brasil que luta novamente, o povo quase que como uma entidade
separada das elites, portanto soberano, não tanto contra o Estado, mas ao estamento que suga
nossa vitalidade desde a época de D. Manoel, o Venturoso. É o Brasil, não tão culto e educado,
mas vivo e vencedor como nunca e hoje, talvez, como nenhuma outra nação no planeta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. Capitalisme et schizophrénie 2 Ŕ Mille plateaux. 1. Ed. Paris:
Éditions de Minuit., 1980.

Galsky, Nélio. Mercenários ou libertários: as motivações para o engajamento do Almirante


Cochrane e seu grupo nas lutas da independência no Brasil. 2006. 138 f. Tese (Mestrado em
História) Ŕ Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006.

Said, Edward W. Cultura e imperialismo. 1. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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AS REPRESENTAÇÕES DE LAMPIÃO E DO CANGAÇO ATRAVÉS DOS


VERSOS DA LITERATURA DE CORDEL
Sabrinne Cordeiro
William Oliveira Collyer Junior**

Resumo
O presente artigo tem como tema central a construção da imagem do cangaceiro Lampião através da
literatura de cordel. A pesquisa procurou estabelecer as principais características de alguns cordéis
a fim de analisar a ligação entre os mesmos e a forma de construção do discurso propagado por eles
que denotam a imagem que Lampião perpetuou até os dias atuais.
Palavras Ŕ chave: Cangaço; Literatura; Representação

INTRODUÇÃO
A necessidade de se trabalhar com a construção de um mito, perceber que nenhum mito
possui uma única origem e seu publico é sempre variado e constituído por diferentes grupos
sociais. Se em determinado momento Lampião é visto como herói, em outro ele pode ser notado
como bandido sem escrúpulos. A falta de formalidade na distribuição dos cordéis dificulta a
precisão de data da produção dos mesmos. Até o nascimento desses cordelistas são imprecisos e
muito pouco registrados. O principal para tal pesquisa é a forma como esses Ŗcordelistasŗ
produziam e de que forma essas obras circulavam e movimentavam o meio social onde eram vistas.
O grupo de analise é precisamente esses autores que viveram até a década de 50 e dedicou boa

Graduada em História - Universidade Gama Filho


**
Graduando em História Ŕ Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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parte de sua vida literária na discussão a respeito de Lampião e sua representação no meio social.
Este artigo não visa estabelecer uma imagem real de Lampião, pois a realidade presente não
é a do personagem, mas sim a representação que teve essa imagem através dos folhetos de cordel.
O cangaceiro já foi retratado de diversas formas, sendo sempre diagnosticado como
bandido ou herói por tais obras culturais. Porém o que este artigo busca, é promover uma analise
no que seria o processo de construção desses folhetos e como este grupo social, aqui representado
por dois dos mais conhecidos e controversos cordelistas do inicio do século XX, se relacionava com
o seu meio social. Poderemos definir em teoria que se trata de uma pesquisa sócio-cultural por se
tratar de um estudo voltado para produções culturais feitas por um grupo social.
O conceito utilizado é de representação social do historiador Roger Chartier. O historiador
francês se distancia do estudo das mentalidades, antes ligada diretamente ao estudo da cultura.
Chartier vai contra a ideia mecânica que a cultura possuía vínculo direto com o social, propondo
um conceito de cultura enquanto prática e representação.

Assim, refletiremos sobre as representações da figura de Lampião na literatura de cordel. O


conceito de representação é usado aqui como uma explicação do que seria o mito para as
construções sobre a realidade daquela sociedade, que por sua vez é retratado em forma da literatura
de cordel. Este trabalho, portanto, vê o conceito de representação como possuidor de duplo caráter
de funcionalidade. Por um lado, a representação faz, às vezes, da realidade representada e a traduz o
que seria uma ausência; por outro, torna visível a realidade representada e, portanto, sugere a
presença. Para Chartier, o conceito de representação na História Social é entendido como
Ŗinstrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente a partir da
substituição por uma imagem capaz de reconstituí-lo em memória e de figurá-lo como ele éŗ.1

Chartier, ao definir o conceito se atenta para o grupo social como aquele que produz
realidades múltiplas. Nessas realidades, os diferentes produtores de cultura no meio social são em
sua totalidade controversos e não tem necessidade de usar as representações da mesma forma.

1
CHARTIER, Roger. A História Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990. p. 20.

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A representação é o que torna legítimo o indivíduo na realidade a qual pertence. Ela é para
cada sujeito o real imediato e a percepção de que como o mundo é organizado. As representações
estão ligadas ao seu contexto de origem, não podendo ser generalizada. Assim, ela está presa ao que
lhe permitiu emergir, e será sempre possibilitador de um indivíduo estar inserido em determinados
grupos sociais.

A representação social è uma maneira pela qual os sujeitos organizam seu modus vivendi. E
mais: para determinados grupos a realidade é somente compreendida pela forma como ela é
representada nas práticas sociais definidas e construídas exatamente por esses grupos. A realidade
torna-se, portanto, é um discurso aspirado historicamente pelos elementos que a elaborou e
justificada pelas ações cotidianas no âmbito das práticas sociais.

Cabe ressaltar o enlace do conceito de representação e a realidade do mito de Lampião. O


que é discutido em termos de conceito são as práticas de representação, onde a figura de Lampião
está presente, onde é visto de formas diferentes dependendo de onde ele é representado, ou seja, as
práticas de representação da figura de Lampião tornam-se plurais. O cangaceiro pode ser entoado,
quer como bandido quer como herói, ou mesmo um aspirante ao poder.

Em razão da seleção de cordéis como fonte de pesquisa, propõe-se que a análise dos dados
seja feita através da utilização do método comparativo; que como afirma Burke 2 se caracterizou por
ter um lugar central na Teoria Social. A escolha do método comparativo se deu em razão do
mesmo, permitir que o pesquisador encontre explicações para um determinado fato; por meio da
semelhança ou da diferença. Desta forma esta metodologia a que melhor se aplica a este trabalho
por ser uma analise das produções dos cordelistas do inicio do século XX que possuem a mesma
temática ŖLampiãoŗ, porém abordam de forma diferente a cada verso gravado nos folhetos.

O cordel e o universo do Cangaço

2
BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 2002.p.71-74

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Tornando-se apropriada a idéia inicial do cordel com uma narrativa simples que poderia
ser lida em voz alta. Essa realidade pode ser vista por todos os locais onde as ações e versões oficiais
não conseguiam Ŗchegarŗ. Os cordelistas se encarregavam de fazer circular as informações e ainda
Ŗbrincarŗ com tais realidades. A construção dos versos torna o cordel uma literatura viva que se
relaciona intimamente com o popular. Um dos recursos que tornaram essa literatura popular foi o
fato da utilização de recursos como o humor. ŖDa comoção de sentimentos à ação bem-humorada e
a sátira, registra-se, no folheto, a expressão mais genuína dos valores, dos mitos e das preferências
popularesŗ.3 É comum que os versos desses folhetos contenham jogos de palavras e até críticas
pesadas sobre os políticos da região.

A temática do Cangaço se constituiu em dos assuntos mais abordados nos folhetos de


cordel. Os cordelistas não podiam deixar de registrar um movimento que teve influência direta na
política local e nacional para com o Nordeste. Como também, pelo fato das ações dos bandos de
cangaceiros terem tido influência direta no cotidiano da população de diferentes localidades. Um
aspecto a ser ressaltado é o fato desse tipo de literatura se dedicar a relatar os feitos dos principais
líderes desse fenômeno como: Antônio Silvino e, principalmente, Lampião. Demonstra-se que
assim como a literatura tradicional possuiu um ciclo voltado para esse universo nordestino, após a
década de 1930, os livretos de cordel também se dedicaram exaustivamente a esse tema.
Um aspecto a ser ressaltado é que em muitas situações os autores de cordel se dedicavam a
relatar através de seus versos a vida dos grandes líderes do Cangaço. Estabelecendo-se uma relação
na qual o cordelista realiza a função de biógrafo. Como relata Curran, o autor Leandro Gomes de
Barros (1865-1918) se dedicou a descrever as façanhas de Antônio Silvino.

A literatura de cordel é então o instrumento que passa para os versos a memória que este
meio social construiu a partir de uma realidade vivida. O que difere da narrativa literária em forma
de romance é o fato da literatura de cordel ter suas origens na oralidade.

3
SANTOS, op.cit., p. 5
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A literatura de cordel é conhecida por ser uma narrativa de cunho popular muito
difundida, principalmente, pela região nordeste do Brasil. Inicialmente, o cordel poderia ser
identificado como uma simples expressão cultural caracterizada por imagens despreocupadas de
xilogravura e versos recheados de expressões regionais. No entanto, ela se constitui em uma fonte
que pode ser traduzida como uma forma de comunicação produzida do povo para o povo. ŖO
cordel, como crônica poética e história popular é a narração em versos do Řpoeta do povo em seu
meio [...]ŗ.4 Instituindo-se também como um recurso para se compreender a trajetória histórica
brasileira
Torna-se interessante perceber que esse tipo de cordel, os autores apresentam a seus leitores
acontecimentos sobre a vida dessas personagens que fazem referência a acontecimentos que
ocorrem quando eles estavam vivos. No entanto, as narrativas se prolongam com o intuito de
contar sobre os desafios vivenciados por esses líderes após a morte.
Uma breve leitura dos folhetos de temática cangaceira nos revela que essa literatura popular
constrói seus heróis e vilões seguindo uma lógica simples da economia, a lei da oferta e da procura.
Onde se precisam de heróis carismáticos a produção de cordel se intensifica nessa temática,
aproveitando sempre seus nomes locais mais populares, como no exemplo desta pesquisa o
cangaceiro Lampião.
Trabalharemos com o conceito de Coronelismo, para que possamos inserir Lampião em seu
contexto, visto que o cangaceiro pernambucano tinha relações políticas com as práticas
coronelistas. O termo que ganha notoriedade ainda nos tempos de Brasil Regência quando o
governo coloca os postos militares a venda, tem aí a idéia de que o coronel seria então aquele com
mais poder aquisitivo. Com o passar do tempo, a figura do coronel perante o povo se torna a do
homem mais poderoso da sociedade e a quem se relacionava com dependência. Não importa então
se esta figura possui procedência militar, mas, sim, sua qualidade de proprietário rural, se
responsabilizando pelo meio em que vive, assim como os trabalhadores aos quais controla.

4
CURRAN, Marc. História do Brasil em Cordel. São Paulo: EDUSP, 2003.p.20.
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Victor Nines Leal5 faz uma abordagem do que seria a mais completa obra sobre o tema, em
Coronelismo, Enxada e Voto, o autor apresenta uma narrativa relacionando o conceito de Coronelismo
com o contexto histórico. Incluem nessa tese do autor alguns elementos fundamentais, como a
questão do sufrágio com o advento da Constituição de 1891 que transforma os trabalhadores rurais
em eleitores Apesar de reforçar ainda mais o Coronelismo, o sufrágio representa neste momento a
decadência do poder privado e ascensão do poder público. Seria então um arranjo de reciprocidade
onde o coronel possui uma relação de troca de favores com o estado, para manutenção de o
próprio poder. O estado dispõe da nomeação de cargos públicos e o coronel por sua vez detém
liderança entre os trabalhadores de sua circunscrição rural. Uma relação de troca de favores que
visa à manutenção do poder deste coronel que precisa do estado em sua rede de benefícios.

Apresentação das Fontes

1- Cordel Ŕ ŖOs decretos de Lampiãoŗ Francisco das Chagas Batista/ 1925.

2- Cordel- ŖA Chegada de Lampião ao Infernoŗ José Pacheco/ S/ data.

Os cordéis utilizados como fonte de análise para este artigo mostram a grandiosidade da
imagem de Lampião por todo o nordeste. Esta pratica coronelista parecia ser algo a ser alcançado
pelo próprio Lampião, como vemos no cordel analisado de Francisco das Chagas Batista ŖOs
decretos de Lampião" que nos conta que ao ser preso Antonio Silvino Lampião passou a governar o
sertão.

O Cordel ŖOs Decretos de Lampiãoŗ mostra o que seria um governo liderado pelo
cangaceiro. Nele, apesar de deixar clara a cobrança de impostos para os sertanejos, o autor alimenta
a fama de herói dos pobres de Lampião, ao dizer que os pobres serão poupados de tal cobrança.
Outro cordel que demonstra tal tirania de seu legado de maldade e de certa forma de popularidade
é ŖA chegada de Lampião ao Inferno" de José Pacheco, aonde a fama de Lampião chega aos portais

5
LEAL,Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no Brasil. São Paulo: Alfa-
Ômega, 1975.p.21.

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do inferno sendo negado até mesmo pelo demônio. O folheto traduz o que seria a péssima
recepção que o cangaceiro obteve ao chegar ao inferno, o que resulta em uma batalha cheia de
prejuízos à Lúcifer. No final, o cordelista dá a entender que realmente não existe lugar para este
cangaceiro pelejar, somente seu próprio sertão.

A imagem do cangaceiro, construída por tantos veículos de comunicação e ajudada por ele
mesmo é usada de toda forma nos folhetos de cordel. Muitos dos cordéis produzidos
concomitantemente aos veículos de imprensa usam dessa soberba aparente, para ridicularizar
Lampião. O título de capitão que tanto foi almejado pelo cangaceiro é tratado de forma irônica na
literatura de cordel. A exemplo dessa apropriação, temos o folheto dos anos 20 Os Decretos de
Lampião do cordelista Francisco das Chagas Baptista. O cordel de linha cômica transforma em
decretos um pouco do que Lampião demonstra apregoar pelo sertão. Controle e domínio sobre
todos, com pagamento de tributos feitos por todos os sertanejos ao cangaceiro.
[...]
Está preso Antonio Silvino
Porém ficou Lampeão
Governando pelas armas
O nordestino sertão;
E agora elle publicou
Dois Decretos que baixou
Da sua legislação.

Diz o primeiro decreto


No seu artigo primeiro:
- Todo e qualquer sertanejo,
Negociante ou fazendeiro,
Agricultor ou matuto,
Tem que pagar o tributo
Que deve ao cangaceiro
[...]
(Os Decretos de Lampião) Estrofes I e II
A ambigüidade da figura do cangaceiro, também é relatada em seus Ŗdecretosŗ. O poeta
contradiz essa representação de bandido em versos onde reproduz que o cangaceiro ira poupar os
pobres e atingirá somente fazendeiros. O que vai contra o verso da segunda estrofe onde diz ŖTodo

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e qualquer sertanejo, negociante ou fazendeiro, agricultor ou matuto tem que pagar tributo que
deve ao cangaceiroŗ. Segue o trecho:
[...]
No paragrapho primeiro
Desse artigo ele restringe
A lei somente aos ricos
Dizendo: - a lei não attinge
Ao pobre aventureiro
Pois quem não possui dinheiro
Diz que não tem e não finge
[...]

Saibam manejar o rifle


Sejam bons escopeteiros
Defendam os opprimidos,
Tirem só dos fazendeiros,
Persigam os traidores
Não perdoem os oppressores
Sejam peritos guerreiros
[...]

(Os Decretos de Lampião) Estrofes III e VI


José Pacheco é um dos mais populares cordelistas referentes ao tema do mito de Lampião.
“A chegada de Lampião ao Inferno” pode ser considerado um dos cordéis mais populares da Literatura
de Cordel brasileira. Para José Ribamar Lopes6 a data de nascimento do cordelista, pode ser datada
do início do século XX, porém nenhuma de suas produções tem data definida. Incertezas a parte,
temos neste folheto um exemplo da construção do mito de um homem que parece recusar-se a
submeter-se a tratamentos Ŗnormaisŗ mesmo depois de morto. O trecho mostra o momento da
chegada de Lampião aos portais do inferno. Notamos que o cangaceiro ainda mantém suas
características terrenas de tirania e hostilidade:

6
LOPES, José de Ribamar (Org.). Literatura de cordel: antologia. 2. ed. Fortaleza/CE: BNB, 1983.
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[...]
Vamos tratar na chegada
quando Lampião bateu
Um moleque ainda moço
no portão apareceu:
-Quem é você cavalheiro?
Moleque sou cangaceiro...
Lampião lhe respondeu

Moleque não, sou vigia


e, não sou pariceiro
e você aqui não entra
sem dizer quem é primeiro
- Muleque abra o portão
saiba que sou Lampião
assombro do mundo inteiro
[...]
(A chegada de Lampião ao Inferno) Estrofes V e IV
Francisco das Chagas Batista e José Pacheco são considerados pelo universo do cordel os
mais conhecidos e prestigiados autores, porém não conseguiram espaço na chamada literatura
clássica brasileira. O motivo talvez seja exatamente a forma despreocupada que sempre se pensou

7
Capa original do Cordel “A chegada de Lampião ao Infernoŗ. Feita com técnica de xilogravura. Reproduz o incêndio que
Lampião teria causado ao enfrentar Lúcifer e seu exército de negros. Fundação Casa de Rui Barbosa Acervo Digital.

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esse material na história da literatura brasileira, considerada sempre como uma expressão regional
que é o caso de José Pacheco e sua forma de escrita simples e gracejada.
Já Francisco das Chagas Batista, deixou um pouco mais de sua vida registrada na história da
Literatura de Cordel. Segundo Sebastião Nunes Pimentel8, outro estudioso dos folhetos, Francisco
das Chagas nasceu em Vila do Teixeira na Paraíba em 1882. Seus primeiros folhetos são datados
do inicio do século e diferente de José Pacheco que quase nada nos deixou sobre sua vida Francisco
das Chagas percorreu diversos ambientes do universo cordelista. Foi fundador da Popular Editora
editando paródias, modinhas, novelas, contos, poesia, e se firmou como um dos intelectuais da
época. Em 1929 publica o livro Cantadores e poetas populares, imprescindível para a pesquisa em
literatura popular em verso por conter as mais antigas e confiáveis informações sobre esta forma
poética. Ele foi dos primeiros editores de cordel e imprimiu produções de muitos poetas populares
da época, exceto de João Martins de Ataíde considerado seu rival nos folhetos. Ruth Terra 9
identificou quase 40 folhetos escritos por ele, e pelo menos metade deles foram dedicados ao
Cangaço e ao líder Lampião. Foi um dos responsáveis pela circulação das idéias cangaceiras e
transformava a poesia dos cantadores e repentistas regionais em literatura. Por ser de origem
humilde e ter se destacado na sociedade nordestina, fez questão de expor seu fascínio e admiração
ao cangaceiro. Em "Decreto de Lampião" foi questionado por sua ousadia de colocar nos folhetos o
que seria a tão desejada vontade de Lampião impressa. Ser o governador do Sertão. Ruth atenta
para o fato do cordelista nunca ter editado um folheto que falasse mal de Lampião.
Bibliografia

BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 2002.

BATISTA, Sebastião Nunes. Francisco das Chagas Batista: notícia bibliográfica. Rio: Fundação
Casa de Rui Barbosa, 1977.

CASTRO.Hebe. inDomínios da História. Editora Campus. 1997.

8
BATISTA, Sebastião Nunes. Francisco das Chagas Batista: notícia bibliográfica. Rio: Fundação Casa de Rui Barbosa,
1977. 280p
9
TERRA, Ruth. Memória de lutas: literatura de folhetos do Nordeste. S.Paulo: Global, 1983. 190 p.

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CHARTIER, Roger. A História Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990.

CURRAN, Marc. História do Brasil em Cordel. São Paulo: EDUSP, 2003.

GILL, Rosalind. In: BAUER, M.W.; GASKELL, George. Pesquisa Qualitativa com texto, imagem
e som: um manual prático. 6.ed. Petrópolis,RJ: Vozes,2007.

LEAL,Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo no


Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975.

LOPES, José de Ribamar (Org.). Literatura de cordel: antologia. 2. ed. Fortaleza/CE: BNB, 1983

MOSCOVICI, Serge. A representação social da psicanálise.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

SANTOS Boaventura de Souza. Renovar a teórica crítica e reinventar a emancipação social. São
Paulo; Boitempo, 2007.

TERRA, Ruth. Memória de lutas: literatura de folhetos do Nordeste. S.Paulo: Global,


1983.

THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. 3 vols.. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1985.

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PERSCRUTANDO O TEMPO PRESENTE: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA


HISTORIOGRAFIA CHILENA CONTEMPORÂNEA À
FILOSOFIA DA HISTÓRIA.

Silvia Cáceres

Resumo
A história do tempo presente é uma área de conhecimento promissora e contravertida que impõe
questões acerca dos limites entre a história como disciplina acadêmica e sua influência na
composição da historicidade constituinte dos múltiplos sujeitos e sociedades. Além disso, a
emergência desse campo historiográfico está de tal forma imbricada com a análise dos traumas de
proporções coletivas vivenciados nos séculos XX e XXI, que o mesmo por vezes parece se confundir
com uma espécie de história da catástrofe. À luz dos debates recém-enumerados gostaríamos de
refletir sobre a contribuição de historiadores chilenos à formação de uma filosofia da história do
tempo presente, notoriamente através da análise da obra de Gabriel Salazar. Cremos que a
historiografia produzida por nossos Ŗhermanosŗ pode iluminar alguns dilemas que se constroem
num horizonte de questões partilhadas na história recente do cone sul.

Palavras-chave: Historiografia chilena contemporânea; Gabriel Salazar; história do tempo presente;


filosofia da história.

Abstract
The history of present time is a promising and controversial area of knowledge that imputes
questions about the boundaries between history as an academic discipline and its influence on the
composition of the constituent historicity of multiple agents and societies. In addition, the
emergence of this historiographical field is so intertwined with the analysis of collectives traumas
experienced in large proportions in the XX and XXI centuries, that it sometimes seems to be
confused with a kind of story of catastrophe. In the light of those debates we would like to reflect
about the contribution of Chilean historians to form a philosophy of the history of the present
time, notably by examining the work of Gabriel Salazar. We believe that the historiography
produced by our Ŗhermanosŗ [brothers in the American continentřs history] can illuminate some
dilemmas that are built on a shared horizon of issues in the recent history of the Southern Cone.

Doutoranda do PPGHIS UFRJ orientada pelo professor dr. Fernando Vale Castro.
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Key-Words: contemporary Chilean historiography; Gabriel Salazar; history of present time;


philosophy of history.

Comecemos por alguns eventos recentes ocorridos no Chile que, transpassando as barreiras
midiáticas, nos trazem notícias deste Ŗlongínquo paísŗ1 tão próximo de nós. Nos últimos dois anos
o Chile entrou como pauta dos diários internacionais por diversas razões, todas com algum fundo
de dramaticidade: o terremoto que arrasou cidades e vidas em março de 2010 e que fora seguido
por saques e clima de desordem social. O drama dos mineiros presos no fundo de uma mina no
deserto do Atacama no mesmo ano. No correr de 2011 o Chile volta como tópico dos diários
internacionais dessa vez por forças disruptivas sociais: o protesto prolongado de milhares de jovens
do ensino secundário e superior em torno de suas condições de estudo e as imensas dívidas
imputadas pelo sistema de crédito estudantil.
Esses fatos dramáticos se aglutinaram na história recente do Chile sem qualquer nexo
interno entre si. Contudo, na forma de eventos disruptivos do cotidiano dessa sociedade nacional,
os mesmos de alguma forma encontraram elos de conexão quanto às possibilidades de assimilação
dos mesmos a uma leitura sobre a história recente do Chile. De que maneira isso pode ocorrer, já
que falamos de eventos de natureza tão díspares: uma catástrofe natural, um acidente e um
movimento de protestos?
Significar socialmente esses eventos não afins implica numa leitura da historicidade que os
rege. Esses são/foram situações de impacto nacional no Chile não só por suas extensões e
impactos, mas porque os mesmos acionaram os elementos gregários que a ideia de nação comporta
mesmo que de maneira arbitrária/ mítica. Essa é a maneira pela qual um terremoto torna-se mais
do que uma catástrofe natural, mas um marco da percepção do sentido de gregarismo cidadão
diante da catástrofe, gregarismo esse que pode virar elemento de comparação histórica: como os

1
O uso do termo Ŗpaís longínquoŗ como uma forma de referência ao Chile é uma constante na correspondência do
crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa (1901-1981) quando o mesmo vivia exilado no país. Era uma maneira do
mesmo se remeter ao caráter insular do país que, do dia para a noite trouxe para si os holofotes da mídia mundial a
partir da eleição democrática de um presidente socialista, Salvador Allende, em 1970. Gostamos da expressão por ela
nos remeter a um dos sentidos fortes do termo periferia, por remeter à ideia de distância imaginária existente entre
regiões de um mundo regido por uma dinâmica global.
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chilenos de 2010 reagiram ao seu terremoto? E como os chilenos de 1952 Ŕ ano de outro forte
abalo sísmico no país Ŕ reagiram?
O mesmo pode ser dito quanto aos mineiros de Atacama. Seu drama acionou uma larga
memória social acerca da atividade mineradora. A mineração fora uma das principais indústrias
responsáveis pela modernização chilena a partir do século XIX. Sua atividade de risco consumiu
vida e gerou influxos migratórios. A nacionalização dos minérios fora pauta corrente dos diversos
governos de corte nacional-desenvolvimentistas que vingaram no Chile da década de 30 ao início
dos anos 70 do século XX. Esses tópicos são reativados como circuitos de memória quando do
trágico evento envolvendo esse grupo de mineiros.
Quanto ao movimento de estudantes do ensino secundário e superior; este se desenrola
com uma pauta ampla de caráter antineoliberal. O enfrentamento estudantil com o governo Piñera
Ŕ representante da direita chilena, ainda muito marcada pela adesão de seus segmentos a Pinochet
Ŕ reaviva as discussões sobre o desenho da sociedade chilena pós-ditatorial, sociedade esta que, não
só seria pioneira das medidas neoliberais quanto seria no parecer de alguns, um modelo de
neoliberalismo dos mais profundos, mais radical do que o vivenciado nos EUA.
Esses ocorridos identificam que há tensões latentes na sociedade chilena que podem
emergir diante de situações que suspendem temporariamente o sentido de ordem e de cotidiano.
Essa suspensão por seu turno ativa o circuito existente entre memória, identidade e projeto no
espaço de constituição cidadã dos chilenos. Há aqui um evidente entrelaçamento entre
temporalidades que irrompem na arena pública. A discussão pública se reveste então de cena para
o balanço e projeção dos projetos nacionais e cidadãos no Chile. Organizar a memória em torno de
narrativas históricas que iluminem os projetos públicos passa, portanto a ser um elemento essencial
da disputa dos próprios rumos do país.
No presente artigo iremos fazer um breve percorrido na historiografia chilena dedicada a
pensar o tempo presente. Essa historiografia possui como nome proeminente o historiador Gabriel
Salazar, autor esse que defende uma concepção de escrita de história como tarefa intimamente
imbricada à constituição da cidadania.

Ciclos Sensíveis de interpretação da História Recente no Chile.


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É patente na bibliografia sobre a história da história recente no Chile que as leituras


produzidas no Chile sobre o governo Unidad Popular (1970-1973) se gestaram e se gestam por ciclos
sensíveis inaugurados a partir de certas constelações de eventos. Exporemos tais ciclos de maneira
sistemática e, ao enunciá-los, não estamos obviamente querendo dizer que dão conta de toda a
produção de uma época. Além disso, sabemos que diversas obras não desimportantes, ao menos
sobre o ponto de vista de seu impacto público, poderiam ser classificadas em suas linhas gerais em
ciclos interpretativos anteriores e que, obras marginalizadas ou de pouco impacto público quando
de seus lançamentos eventualmente conformam sensibilidades que depois se tornariam
hegemônicas. O que chamamos de ciclos interpretativos, nada mais são do que marcos gerais que
orientaram parte significativa da produção de uma época e se dirigem à arena pública, se
mesclando dessa forma a uma infinidade de usos sociais da história: às necessidades de justificação
governamental, às demandas sociais reprimidas, ao inconformismo, ao desconforto ou sensação de
desfrute dos resultados da ditadura por partes da sociedade chilena.
Aggio em seu livro Socialismo e Democracia: a experiência chilena2 nos sinaliza dois ciclos
interpretativos: o primeiro deles, desenvolvido nos primeiros anos após o golpe, seria marcado pela
necessidade de apresentar teses coesas em torno dos ocorridos, pelo uso de referencial teórico
advindo da constelação teórica vigente durante o período Unidad Popular3 (governo Salvador
Allende), pela concentração do olhar nos eventos do período Allende em si, e pela réplica de
posições políticas em disputa durante o período UP. Seus autores são ex-ministros, dirigentes
partidários, lideres da oposição que tomam para si a tarefa de revelar Ŗa verdade dos fatosŗ sobre o
governo de Allende. Uma bibliografia com variações intensas de qualidade elaborada no dizer de
Aggio, sob o signo da revolução.
Um segundo momento sinalizado por Aggio, através de sua leitura das análises teóricas de
importantes sociólogos anti-autoritários como Robert Lechner, é um momento que se desenvolve a
partir de meados dos anos 80. Nesse período a oposição à ditadura começa a dar sinais públicos de

2
Ver sobretudo seu capítulo 2 Ŕ Da Revolução a Democracia. In: AGGIO. A. Democracia e Socialismo: a experiência
chilena. São Paulo, Annablumme, 2002.
3
Daqui em diante, UP.
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vitalidade através das marchas antiditatoriais ocorridas entre 1983-1986 Ŕ as protestas, como ficaram
conhecidas Ŕque incluíram tanto os atos sem rosto: o bater de panelas durante a noite em sinal de
descontentamento, buzinassos, etc, quanto as marchas públicas reprimidas por tiros aleatórios que
infundiram o medo e acabaram por auxiliar a dissipar essas manifestações. Esse é um momento de
definição de estratégias para o processo de abertura política e redemocratização. Desde a academia,
diversos centros de reflexão intelectual hegemonizados pelas Ciências Sociais tomam a tarefa de
refletir e planejar o processo de redemocratização chileno. Nesta etapa interpretativa, os intelectuais
trabalhavam sob o signo da democracia como eixo articulador de sua reflexão.
Um terceiro ciclo4 torna-se sensível e adentra com força na arena pública a partir da
detenção de Pinochet em Londres em 1998, mesmo ano em que Pinochet reclama sua vaga de
senador vitalício conforme lhe garantia a Constituição chilena. Esse evento funciona como
detonador público do dissenso acumulado por diversas linhas de tensão no Chile pós ditadura: o
desgaste dos segmentos médios e populares com a crescente disparidade da concentração de renda,
o desgaste da frente política Concertación de Partidos por la Democracia, sobretudo no que tange a não
resolução dos entraves autoritários herdados da ditadura, a crise econômica asiática em 1999 que
irá rebater com força na economia chilena gerando mais desconforto e questionamento sobre os
rumos do Chile. Todos esses elementos evidenciam que o tão propagado consenso vigente na
sociedade chilena era absolutamente frágil. A escrita da história entra no cenário público, agora
marcada pelo signo do questionamento a democracia protegida. Esse ciclo parece ainda estar em
vigência, tendo ele produzido importantes peças historiográficas que marcam a presença mais forte
dos historiadores no debate público.
Parece-nos haver ainda um quarto ciclo, ou ao menos, uma nuança sensível dentro dos
marcos gerais do terceiro ciclo; trata-se da sensibilidade publica instaurada a partir dos dois
governos Concertación encabeçados por socialistas: Lagos (2000-2006) e Bachelet (2006-2009) e das

4
Este terceiro ciclo e tentativas de sistematização do mesmo então esboçadas no artigo de AGGIO, A & QUIERO, G.
C. Chile: processo político e controvérsias intelectuais. LUA NOVA, n.o 49. São Paulo, 2000. Note-se que (1) este artigo
aborda a questão desde análise dos sociólogos, sobretudo os Ŗsociólogos da transição democráticaŗ que constituíram
o corpo teórico e as bases da plataforma transicional da frente política multipartidária Concertación por la Democracia,
que tomou o assento da presidência chilena desde a abertura política em 1989 até o governo de Bachelet (2) embora
nos pareça pertinente tratá-lo também como um esboço de um terceiro ciclo interpretativo de impacto na
historiografia, o fato é que os autores não chegam a mencionar essa possível leitura.
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comemorações em torno dos 30 anos do golpe militar em 2003 e do centenário de Allende em


2008. Esses são anos marcados por uma grande leva memorialística, com um aumento vertiginoso
de produção historiográfica sobre o tema, a abertura ou projeção de uma série de museus, parques
e estatuárias que integram ou integrarão a urbanística como marcos culturais públicos em torno da
memória do período UP e da Ditadura Militar. Esse possível quarto ciclo engloba o tempo presente
e o futuro imediato5 do ambiente cultural chileno.
Esquematicamente, também é possível apresentar os campos de produção, o lugar dos
intelectuais artífices das análises em cada etapa mencionada: os políticos (primeiro ciclo), os
sociólogos (segundo ciclo) e os historiadores (terceiro e quarto ciclo). Dentro destes distintos
lugares profissionais de interpretação, há uma tensão latente na produção de sentidos sobre o
período UP e sobre a Ditadura Militar. A defesa da forma com que cada disciplina olha o passado,
as maneiras como elas se relacionam entre si e com o espaço político, como elas produzem análises
de algum teor normativo, são tópicos constantemente retomados na arena de disputa
interpretativa. Assim, não são somente as conclusões a que certos autores chegam que são
questionadas; questiona-se mesmo a forma com que tais conclusões puderam vir a tona, se os
instrumentos que inferiram uma ou outra conclusão eram próprios do campo disciplinar a que o
autor se filia ou não. Cremos que esse questionamento é interessante, porque põe a baila o sentido
público da produção intelectual e os compromissos e normas de rigor internas que essa produção
deve possuir para que possa adentrar na arena pública sem perder as marcas de seu local de
emissão. 6

5
Se realmente se pode atribuir uma nova sensibilidade aos últimos anos, cremos que devemos incluir entre seus
definidores a mobilização em torno da comemoração do bicentenário da República no Chile comemorado em 2010.
O Bicentenário foi precedido por uma série de eventos, palestras, publicações acadêmicas, onde de maneira similar a
geração do centenário, o que está em perspectiva é um balanço dos últimos 100 anos da República e a projeção de
seus anos vindouros. Dentro desse cenário, duas iniciativas nos parecem ser mais significativas no que tange a
memória do período UP: O Museu de Direitos Humanos, recém inaugurado como último ato do governo Bachelet e
a campanha encabeçada pela Igreja Católica chamada “Un Teto para Chile” que visaria acabar com as poblaciones
(favelas) em 2010.
6
Nesse sentido Gabriel Salazar comenta a existência de um questionamento feito aos historiadores que se agrupam
dentro do campo chamado de Ŗhistória recenteŗ, campo que estaria sendo questionado por alguns sociólogos como
uma espécie de invasão do espaço temporal da sociologia. Ver: SALAZAR, G. Historiografia Chilena siglo XXI:
transformación, responsabilidad, proyección. in: MUSSY, L. G de (editor). Balance Historiográfico Chileno: El
orden del discurso y el giro crítico actual. Santiago, Ediciones Universidad Finis Terrae, 2007
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Qual sentido da escrita da história? Campo intelectual, memória social e projetos de cidadania
no Chile Contemporâneo.

A historiografia produzida logo após o Golpe de Estado buscava explicar o que aconteceu
centrando-se na atuação dos atores durante o período UP, cerceando no campo inimigo o
Ŗculpadoŗ do golpe. O segundo ciclo de produção de leituras sobre o período UP está preocupado
com a faceta institucional da crise como forma de dimensionar as instituições pós-ditatoriais. Esse
segundo ciclo de produção intelectual, verá uma parte de seus intelectuais de peso migrar ao final
dos anos 80 do campo anti-autoritário ao campo de coalizão governista Concertación. Como
remontam diversos autores, a transição a democracia no Chile fora amarrada pelos princípios legais
estabelecidos durante a ditadura, cuja cartada final fora a redação das chamadas medidas de amarre7.
Durante o correr dos anos 90, aConcertación teve que orquestrar um discurso de poder vencedor e
anti-ditatorial, ao mesmo tempo em que administrava formas institucionais irremovíveis
constitucionalmente e que compunham a herança ditatorial. Dentro dessa situação paradoxal, os
sociólogos da transição e o discurso oficial de poder asseguravam a grande vitória da democracia
chilena assentada sobre o consenso.
A primeira fase historiográfica fora marcada pela intensa polarização política. A segunda
fase, quando de seu amarre ao projeto Concertacionista, pela tentativa de assepsia política. Entre
uma e outra, a junção a projetos globais de poder impediram uma diversificação do olhar sobre o
período UP. Podemos traduzir esses dois momentos como uma trajetória que se desenhou desde a
busca dos culpados (primeiro ciclo) aos caminhos de absolvição (segundo ciclo).
A terceira fase de produção historiográfica no que tange sua relação com a política é, a
primeira vista, paradoxal. Ela é mais política do que as demais fases, no sentido em que coloca a
discussão historiográfica no centro do debate público e pretende somar e produzir análises para o
debate cidadão; ela é menos política do que as demais fases por não estar comprometida a priori
com um projeto de poder estatal e nem se compromissar com idéias como governabilidade, termo

7
As medidas de amarre são uma série de dispositivos constitucionais que, na prática, sempre garantiriam uma maioria
de direita/pinochetista dentro do Congresso. Uma descrição das medidas de amarre podem ser encontradas no já
mencionado artigo de Aggio e Quiero. Vide nota 4.
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que remete a política do Ŗpossívelŗ dentro de uma concepção ortodoxa de neoliberalismo. É uma
historiografia que se arrisca a colocar polêmicas indo à contramão do culto ao consenso tão
alardeado pelo projeto de poder em vigência no Chile desde 1990.

Um manifesto, muitas polêmicas.


Com já mencionamos, este terceiro ciclo de produção historiográfica de impacto público
tem como marco inicial a fogueira acessa na opinião pública quando da prisão de Pinochet em
Londres em outubro de 1998. Respondendo ao ocorrido, Pinochet redige uma Ŗcarta aos
Chilenosŗ reativando as teses que justificam a ditadura como dever patriótico frente à ameaça
marxista. Posteriormente, no periódico La Segunda, Gonzalo Vial, historiador, ex-ministro da
Educação de Pinochet, publica uma série de artigos sobre historia do Chile de 1964 a 1973,
apresentando teses conservadoras cujas conclusões serviam à justificação histórica do campo
pinochetista.
Em 2 de fevereiro de 1999, no mesmo La Segunda, surge um texto assinado por onze
historiadores nominado ŖManifiesto de Historiadores”. É um texto redigido com o propósito de
combater “La profusa difusión de verdades históricas manipuladas respecto a temas que inciden
estratégicamente en la articulación de la memória histórica de la nación y por ende en el desarrollo de la
soberanía civil.” O que move os signatários a “hacer valer el peso de nuestro parecer profesional y la
soberanía de nuestra opinión ciudadana sobre el abuso la difusión de esas supuestas verdades implica”.8
Sendo um manifesto, o texto mescla um discurso social cuja validade se remete a uma
origem determinada (no caso, a origem é o Ŗparecer profissionalŗ dos historiadores) às prerrogativas
políticas defendidas por esses cidadãos. É um texto num trânsito específico entre o Ŗcientíficoŗ e o
Ŗpolíticoŗ e assim deve ser analisado.
Não vamos nos deter nos detalhes da discussão apresentada pelo manifesto. Porém é
importante ressaltar as teses historiográficas que lhe sustentam e a filosofia de história que lhe dá
estopo. Quanto às teses historiográficas, enumeram-se: (1) a polarização política dos anos setenta
deve ser debitada a uma crise social, política e institucional de largo prazo, instalada na sociedade
chilena desde ao menos o início do século XX; (2) a violência política dos anos 70 não tem como

8
GREZ, S. & SALAZAR, G. (Compiladores). Manifiesto de Historiadores. Santiago, LOM, 1999.pg.7-8.
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fonte privilegiada o esquerdismo, mas é composta também por uma larga história de violência
política perpetrada por sucessivos governos; (3) a intervenção militar não teve o fim de reimpor a
ordem constitucional ou impulsionar a reunificação nacional, mas sim impor um novo
ordenamento social e destruir o poder político de esquerda e de centro.
As teses historiográficas aqui enumeradas respondem imediatamente às colocações mais
direitistas e autoritárias presentes no texto de Gonzalo Vial. Não dão conta da riqueza da produção
historiográfica de onde emanam, produção cujo fim não é exatamente sair em defesa da esquerda e
do centro político (embora seus autores sejam identificados e se auto-identifiquem como
produtores de uma historiografia de esquerda9), mas sim escrever a historia desde a Ŗbaixa
cidadaniaŗ: um postulado de concepção historiográfica que, junto a outros, conforma uma teoria
da história que embasa essa produção. Um segundo postulado que toca a concepção historiográfica
desse conjunto de historiadores é o de que:

La historia no se solo pasado, sino también, y principalmente, presente y futuro.


La historia es proyección. Es la construcción social de la realidad futura. El más
importante de los derechos humanos consiste en respectar la capacidad de los
ciudadanos para producir por si mismos la realidad futura que necesitan. No
reconocer eses derecho, usurpar o adulterar ese derecho, es imponer, por sobre
todo, no la verdad, sino la mentira histórica. Es vaciar la verdadera reserva moral
de la humanidad.10

Os perdedores da história – escrita da história e projeto.


O Manifiesto de Historiadores não é o texto mais indicado para apresentar as teses acadêmicas
de um grupo de historiadores que, embora partilhem diversos elementos em suas escritas, não
conformam um bloco homogêneo. Além disso, as palavras fortes que compõem o tom de defesa
política contida no manifesto podem fazer com que o leitor não possa delinear onde acaba o
Ŗparecer profissionalŗ e onde começam a tomar palavra os cidadãos que subscrevem o texto 11.

9
Ver o artigo de SALAZAR, G. Historiografia Chilena siglo XXI: transformación, responsabilidad, proyección. in:
MUSSY, L. G de (editor). Balance Historiográfico Chileno: El orden del discurso y el giro crítico actual. Santiago,
Ediciones Universidad Finis Terrae, 2007.
10
Ibid. Pg.19
11
Encontramos um interessante texto crítico ao Manifiesto de Historiadores e a uma parte da historiografia crítica dos
historiadores que subscrevem o texto. É o texto de PALIERAKI, Eugenia & TORREJON, Carolina.
Historiadores¿Portavoces de la memoria? Reflexión sobre los limítes y usos de la memoria en las historiografias chilena y
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Cremos que tal trabalho seria pouco útil, pois o texto é uma leitura que esses historiadores fazem
desde seu lugar de cidadãos acerca do dever público de sua profissão. Lemos, portanto, o Manifiesto
como (1) um manifesto político-cidadão e (2) como uma peça histórica (e não propriamente
historiográfica, embora apresente teses historiográficas) que ilumina um ciclo de interpretações
sobre o governo UP e a ditadura militar desde seu lugar testemunhal. E é nesse segundo sentido
que nos interessou trazê-lo a este texto, para auxiliar a compreender o clima do debate sobre a
história recente no Chile contemporâneo.
A geração de autores do Manifiesto começa a gestar-se em meados dos anos 80, quando se
instala algum clima de maior tolerância e mobilização antiditatorial na sociedade chilena. Uma
parte da intelectualidade chilena de esquerda retorna de seu exílio trazendo consigo a literatura
sobre memória em debate na Europa nos anos 80. Duas tradições de reflexão sobre história e
memória começam a fluir nos cursos de história chilenos: a tradição francesa, tendo como autores
exponenciais Halbwachs e Pierre Nora e a tradição anglo-saxã de Fraser e E. P. Thompson.
Exponencial desta geração é o trabalho de Gabriel Salazar. Formado na tradição da
Ŗhistória dos de baixoŗ thompsoniana, Salazar irá desenvolver um conjunto de teses muito originais
sobre a história recente do Chile, bem como se demonstrar um autor profícuo também no campo
da filosofia da história Ŕ e talvez aí resida sua colaboração mais interessante e possivelmente
duradoura para a historiografia chilena.
Sintetizando suas teses históricas sobre a história recente do Chile, Salazar coloca a
necessidade de se olhar para a construção do Estado não somente à luz da estabilidade política,
pressuposto que levou muitos analistas a afiançarem ser o Chile uma das sociedades latino-
americanas mais modernas politicamente, com um sistema de partidos e instituições de poder

francesa. In: ACTUEL MARX Intervenciones. N.o 6. Santiago de Chile, LOM, 2008. pg.27-46. Consideramos
pertinentes as críticas elaboradas ao uso abusivo dos testemunhos que se concentram sobre os militantes de esquerda,
uso por vezes acrítico e criador de mitos e versões unilaterais dos ocorridos. Cremos, porém que há dois elementos
frágeis no texto: o fato de se ater ao Manifiesto de Historiadores imputando-lhe críticas historiográficas que seriam
merecidas caso o manifesto fosse um texto propriamente historiográfico. O fato de definir e restringir os
Ŗhistoriadores da memóriaŗ como aqueles que trabalham com a metodologia de história oral. Tal definição deixou de
fora de suas análises os textos de Gabriel Salazar, que não trabalha com historia oral, mas que é justamente o autor
que conjuga uma filosofia da história de inspiração hegeliano-marxista que gera algumas leituras sobre historia e
cidadania presentes na redação do Manifiesto. A não leitura da concepção historiográfica de Salazar torna ainda mais
obtusa a tarefa que as próprias autoras se colocaram: ler o Manifiesto como documento (para elas historiográfico)
representativo de uma geração de autores.
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estáveis. A tese da estabilidade constituiria um mito abraçado e propagandeado pela classe política
civil, beneficiária imediata das conclusões de tal imagem. Nas palavras de Salazar:

Si se siguen, a la vez, el Sendero alto de la estabilidad y el Sendero bajo de la


legitimidad, se puede llegar a sorprendentes paradojas históricas. Como por
ejemplo, que la historia de Chile ha sido una sucesión de Ŗepisodios de
estabilidad equilibrándose sobre una tensa inestabilidad fundamental de largo
plazoŗ. O bien: que Ŗel desorden es la otra cara, cara oculta, del orden en forma
que supuestamente ha prevalecido. Ambos forman parte… del mismo argumento,
de una misma tramaŗ.12

A estabilidade conquistada sobre a exclusão sistemática da participação política da baixa


cidadania é frágil por não garantir a legitimidade cidadã do Estado, só alcançada via participação
política da grande maioria dos cidadãos. À luz dessa tese central define-se um sujeito histórico
privilegiado para a análise nomeado baixa cidadania ou simplesmente cidadania. Na descrição da
baixa cidadania emerge imagens de sujeitos populares: baixos mercadores, empregados, domésticos,
mulheres das camadas baixas, mestiços, rotos, trabalhadores de todas as indústrias, baixo oficialato,
professores, baixos funcionários do Estado, mineiros, camponeses, inquilinos de terras, e
eventualmente, indígenas de diversas etnias13. Mas não estão de fora, sobretudo quando o termo
empregado é simplesmente cidadania, os intelectuais, profissionais qualificados, comerciantes de
média monta: as classes médias em geral. Percebe-se que, ao se referir à cidadania, Salazar não está
incluindo os grandes proprietários, nem os membros da classe política civil (CPC), nem os
membros da classe política militar (CPM); pois que, embora formalmente desde as concepções
liberais adotadas na Constituição Portalina de 1833 e na Constituição de 1925, esses sejam

12
SALAZAR, G. & PINTO, J. Historia Contemporánea de Chile I: Estado, Legitimidad, Ciudadanía. Santiago do
Chile, LOM, 1999. pg.15
13
A questão indígena não está excluída dos escritos de Salazar. Contudo, eles surgem como sujeitos particulares, que
não podem ser simplesmente somados às questões do Estado Nacional chileno sem se observar as diversas fases,
estratégias e conflitos entre indígenas e colonos, entre indígenas e as forças militares, as diversas facetas entre a
tentativa de manutenção de suas autonomias e sua subordinação-integração. No segundo tomo de História
Contemporânea de Chile, tomo onde Julio Pinto toma a frente de redação, há um capítulo dedicado a questão
indígena, onde se explicita a particularidade e a história de diversas etnias desde a colônia. SALAZAR & PINTO. Las
Etnias Indígenas. In:_______. Historia Contemporanea de Chile II: Actores, identidad y movimiento. Santiago do
Chile, LOM, 1999.pg. 137-173.
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eventualmente cidadãos mais classificados do que os demais14, tais seguimentos constituem os que
têm no Estado sua banca de negócios. Mais do que cidadãos no sentido formal, tais segmentos são
lidos na historiografia de Salazar como grupos privilegiados que usurpam a cidadania dos demais.
A concepção de cidadania em Salazar não advém portanto de uma matriz liberal, mas de
uma matriz hegeliano-marxista fortemente ancorada pelos escritos do dito jovem Marx, ainda
muito próximo dos jovens hegenianos de esquerda15. À luz dessa matriz, Salazar desenvolve suas
teses acerca da historicidade das sociedades e da função ativa que a escrita da história deve ter para
com a cidadania. Nos diz:
La sociedad es histórica no solo porque tiene un pasado lejano ya Řcosificadoř,
sino también, y sobre todo, porque tiene un presente saturado de historicidad,
pues el presente no está constituido como tal por Řhechosř consumados, sino por
Řdecisionesř que deben producir hechos. […] La tendencia tradicional de los
historiadores ha sido, sin embargo, concentrar su atención de modo casi exclusivo
en el pasado, cediendo el presente a otras ciencias (la Sociología, la Economía y la
Ciencia Política) y adoptando, por tanto, una actitud de irresponsabilidad frente a
la historicidad del presente.ŗ16

À luz de tal colocação, Salazar prevê a necessidade de tecer relações entre historiadores e
espaços horizontais de exercício da cidadania. O autor põe em perspectiva paradigmas
historiográficos clássicos que postulam a separação do historiador dos sujeitos históricos em
movimento, bem como os novos paradigmas das universidades contemporâneas, cada vez mais
afastada de todo exercício crítico, cada vez mais atrelada à lógica de mercado através, por exemplo,
das chamadas consultorias que marcam com o selo da validade científica uma miríade de produtos,
pacotes e políticas empresariais e governamentais. Não se escreve a história de forma alheia às
linhas de sensibilidade histórica, de historicidade inscrita no tempo presente, alheia aos sujeitos
históricos viventes, nem de forma alheia as dinâmicas e pressões dos lugares de anunciação, dos
lugares institucionais ou não de escrita da história Ŕ eis a tese que perpassa seus escritos.

14
Devido, por exemplo, às restrições ao direito de voto que só se torna universal em 1949 quando as mulheres são
incluídas no direito ao voto. SALAZAR & PINTO. Historia Contemporánea de Chile I... pg.95
15
Para uma análise desse momento intelectual de Marx ver: LÖWY, M. A Teoria da Revolução no Jovem Marx.
Petrópolis, Vozes, 2002.
16
SALAZAR, G. Historiografia Chilena siglo XXI: transformación, responsabilidad, proyección. in: MUSSY, L. G de
(editor). Balance Historiográfico Chileno: El orden del discurso y el giro crítico actual. Santiago, Ediciones
Universidad Finis Terrae, 2007. pg.102

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Sintetizando os argumentos de Salazar, podemos dizer que o autor postula dois marcos
gerais relacionados: (1) a concepção de que toda escrita da história é fundamentalmente
anacrônica, pois é o presente, esse tempo carregado de historicidade, que nos mobiliza para o
passado, prospectando desejos de futuro. (2) àz luz dessa conjugação temporal, a escrita da história
não poderia deixar de dizer respeito também aos sujeitos em ação histórica no presente. A escrita
da história tem, portanto, interlocutores históricos privilegiados. Ela pode estar ao lado dos
vencidos ou ao lado dos vencedores.
Estar ao lado dos vencidos não tem de significar borrar a face do lado oposto e mascarar,
maquiar a face do lado que se toma. A possibilidade de compreender o ser humano e suas
experiências sociais em sua grandeza e em sua vileza, em suas contradições, descomposturas,
decisões, titubeios, estratégias marginais, frustrações, angustias e felicidades, é a possibilidade
inscrita numa postura humanista de leitura de mundo, postura indisposta a fazer do passado um
tribunal histórico, mas disposta a tomar seus problemas irresolutos como parte da tarefa histórica
dos oprimidos de nossos tempos.

Algumas Conclusões
Tentamos demonstrar no presente artigo a imbricação entre escrita da história e a formação
de identidades intelectuais e constituição da cidadania no Chile contemporâneo. Trabalhamos,
sobretudo com um campo intelectual identificado com chamada História Recente e receptivo a
uma análise de base marxista Ŗquenteŗ, como a chamaria Michel Löwy 17 devido à afluência do
romantismo em suas formulações (notoriamente através das análises de E. P. Thompson). Esses
autores identificam-se com a história da esquerda e trabalham os despojos dos grupos de esquerda
antes e depois da ditadura militar. Sua análise visa habilitar a crítica materialista atualizada com a
sensibilidade temporal contemporânea, sem esquivar-se do debate pós-moderno como se esse fosse
mera ideologia e não se relacionasse a mudanças reais na forma de viver a modernidade 18. Isso

17
A referência a vertentes Ŗquentesŗdo marxismo, associando-as a tradição do romantismo revolucionário encontra-se
em diversos trabalhos sobre o assunto, entre eles: LOWY, Michel & SAYRE. Romantismo e Política.
18
Uma leitura mais ampla e profunda sobre a pós-modernidade desde um ponto de vista crítico - e portanto moderno -
é encontrado nas formulações de Frederic Jameson sobre o assunto. Ver: JAMESON, Frederic. Teorias do Pós-Moderno.
In:________. Espaço e Imagem. Teorias do Pós-Moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro, UFRJ, 2006.
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justifica nosso título na presente comunicação, pois falamos de autores que, sem ignorar as
dificuldades impostas ao trabalho de narração da história recente, colocam-se ainda assim a tarefa
de narrar a história de um período que cria na abertura de ŖGrandes Alamedasŗ jargão do governo
Salvador Allende que se remetia às grandes transformações sociais que se visavam no período,
narração essa que, para se constituir deve caminhar pelas vias estreitas que a analise histórica crítica
deve percorrer no cotidiano pós-moderno, marcado por uma profunda alteridade com os anos 60 e
70.
A narração da história recente do Chile não pode se esquivar das marcas sociais da
Ditadura Militar. O campo de autores que apresentamos no presente artigo visa trabalhar a
historicidade dessa e de outras marcas história no cotidiano de constituição da cidadania no Chile
contemporâneo. Sendo uma história marcada por eventos traumáticos, o principal risco para os
autores que se debruçam sobre o período não é exatamente um possível relativismo extremado na
narração e justificação dos ocorridos, possibilidade até aqui vetada pela força traumática dos
ocorridos, mas sim a possibilidade de manter-se preso as constelações explicativas do trauma,
constelações que trabalham dentro das tensões entre culpados e vítimas, dinâmica que deve ser
quebrada para a construção de novos marcos de responsabilidades para a construção cidadã no
Chile contemporâneo.
Dentro desses parâmetros, cremos que a historiografia do tempo presente que hoje se
desenvolve no Chile muito agrega ao debate sobre a narração do passado presente no cone sul;
talvez sua principal contribuição resida nesse movimento conexo entre observação dos traços de
continuidade, de constituição do ar histórico de nossos tempos sem contato compreender a
história como uma espécie de Ŗcortina de fumaçaŗ sobre os homens e mulheres de nosso tempo. A
historicidade, para Gabriel Salazar é constituinte da cidadania. É portanto, ao mesmo tempo,
amarra e horizonte presente em nossas sociedades pós-traumáticas.

Referências Bibliográficas

AGGIO. A. Democracia e Socialismo: a experiência chilena. São Paulo, Annablumme, 2002.

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ESTUDIOSOS DA(S) MASCULINIDADE(S): UMA ANÁLISE COMPARATIVA DOS


ESCRITOS DE M. KIMMEL E R. W. CONNELL
Tatiane Sant'Ana Coelho Reis

Resumo:
Se por um lado, os estudos de gênero dedicados às mulheres possuem centros de estudo em
diversas partes do mundo e publicações com os mais variados enfoques, por outro, os trabalhos que
se debruçam sobre homens e masculinidades são menos numerosos e o acesso às obras de
referência são bem mais difíceis, principalmente no Brasil. Neste trabalho pretendemos apresentar
as linhas gerais de nossa pesquisa, que vem sendo desenvolvida com objetivo de analisar,
comparativamente, obras selecionadas dos autores Michael Kimmel e R. W. Connell, ambos
considerados fundamentais para os estudos sobre homens e masculinidade(s). Apresentaremos as
duas fontes a serem comparadas, as quais percebemos como os escritos mais referenciados pelos
próprios autores e por outros estudiosos que com eles dialogam.
Palavras-chave: Masculinidades; Estudos de Gênero; História Comparada.

Este trabalho visa apresentar os elementos centrais do projeto de mestrado, agregando as


reflexões geradas nos primeiros meses de pesquisa. O estágio em que nos encontramos é ainda
inicial, porém, o foco tem sido uma substancialidade na aproximação com o objeto, percebendo os
elementos menos coesos e iniciando a experimentação tão enfatizada pelos autores comparativistas.
No Brasil, os estudos de gênero, apesar de já terem centros de pesquisa específicos, não
desfrutam ainda de um reconhecimento consolidado se comparado com outros campos de
investigação. Tal qual afirmam os estudiosos que compartilham uma perspectiva, como por
exemplo, a historiadora Joan W. Scott1, o gênero é relativo, variável, sócio-histórico, portanto o

Mestranda em História Comparada- PPGHC- IFCS-UFRJ. Membro do Grupo de Pesquisa sobre Relações de Poder e
Vulnerabilidade.
1
SCOTT, Joan W. Gênero: uma Útil Categoria de Análise Histórica. Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2,
jul./dez. 1990. p. 5-22.
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feminino é definido e construído em relação ao masculino. Essa postura serve como uma
diferenciação de Scott perante as feministas nos anos 1980 que buscavam legitimidade acadêmica,
porém usavam o termo gênero como sinônimo de mulher. Essa utilização permanece ligada a uma
visão que vê os sexos feminino e masculino como homogêneos, portanto não se desvinculou das
explicações biológicas, rejeitadas pela historiadora norte-americana. Scott organiza as análises de
gênero em três grupos: o primeiro seria aquele essencialmente feminista, preocupado com as
origens do patriarcalismo, o segundo seria de tradição marxista porém agregando algumas
contribuições feministas e o terceiro (subdividido entre o pós-estruturalismo francês e teóricos
anglo-saxões) que a partir de diferentes correntes da psicanálise analisavam a criação e recriação da
identidade do sujeito determinada pelo gênero. Scott rejeita o caráter fixo e permanente da
oposição binária entre homens e mulheres, em prol de uma Ŗhistorização e desconstrução dos
termos da diferença sexualŗ.2
São variadas as áreas que se entrecruzam nos estudos, dentre elas estão: psicologia,
sociologia, história e educação. Podemos destacar os países de herança anglo-saxã, principalmente
Estados Unidos e Canadá, como aqueles que possuem maior tradição na produção sobre o tema.
Esta constatação está diretamente relacionada às discussões levantadas, à produção intelectual e os
direitos conquistados, as feministas, nas suas heterogêneas vertentes, desde finais do século XIX, do
Reino Unido e dos Estados Unidos.
Investigar os homens e suas masculinidades possíveis longe está de configurar uma apologia
à permanência de uma sociedade sexista ou patriarcal. A consolidação dos estudos das
masculinidades como campo acadêmico, segundo R. W. Connel, teve seu processo iniciado no
final da década de 1980/início da década de 1990.3 Minello Martini ressalta ainda que o interesse
pela masculinidade extrapola o ambiente acadêmico, defende seu posicionamento destacando a
proliferação de movimentos, revistas e boletins que foram bem-sucedidos. O autor elabora uma
cronologia por influências das áreas de estudo no que tange aos trabalhos sobre masculinidade.
Primeiramente, antes da década de 1970, a teoria funcionalista teria sido a mais presente. Na
década de 1980, os enfoques psicanalistas feministas se fortaleceram, enquanto nos anos 90 teria

2
SCOTT, Joan W. Op. Cit. p.12
3
CONNELL, R. W., MESSERSCHMIDT, J. W. Hegemonic Masculinity: Rethinking the Concept. Gender & Society, v. 19, n.
6, p. 829-859, 2005.

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havido uma revolução teórica substanciada pelas ciências sociais. Em grande parte esse Ŗatrasoŗ em
relação aos estudos de gênero de uma forma geral se deve à formulação do conceito ter sido
oriunda do movimento feminista, que reivindicava à época a inserção das mulheres como objetos
de estudo das ciências humanas. Podemos destacar os países de herança anglo-saxã, principalmente
Estados Unidos e Canadá, como aqueles que possuem maior tradição na produção sobre o tema.
Esta constatação está diretamente relacionada às discussões levantadas, à produção intelectual e os
direitos conquistados, as feministas, nas suas heterogêneas vertentes, desde finais do século XIX, do
Reino Unido e dos Estados Unidos. Se a história das mulheres e os estudos de gênero ainda
enfrentam dificuldades adicionais às de outros campos no mundo acadêmico, a diminuta
quantidade de traduções de obras em língua inglesa, consideradas pilares nos estudos de
masculinidade, e a distância temporal que separa a concepção dessas obras e a tradução para a
língua portuguesa constituem um indicativo dos obstáculos aos quais nos referimos. Aqueles que se
dedicam aos estudos dos homens e das masculinidades, que vivenciam atualmente o estágio de
consolidação, se defrontam com obstáculos mais desafiadores.
Nelson Minello Martini destaca certo atraso dos países latino-americanos se comparado,
principalmente mas não só, aos de língua anglo-saxã.4 No Brasil temos estudiosos que produziram e
produzem escritos sobre homens e masculinidades. Alguns o fizeram ocasionalmente, outros se
dedicaram a longo prazo. No que tange aos estudiosos de masculinidade no Brasil, podemos
apontar um ícone: o Dr. Sócrates Nolasco, professor da UFRJ na área de psicologia, que exerce uma
forte influência aqui no Brasil neste campo. Dentre os pesquisadores que já abordaram o tema,
porém a ele não se dedicam com freqüência, destacamos o antropólogo Roberto Damatta com o
capítulo Tem Pente Aí? Reflexões sobre a Identidade Masculina, que integra a coletânea organizada por
Dário Caldas, cujo título é Homens: Comportamento, Sexualidade, Mudança.
Debruçar-nos sobre trabalhos teóricos que são considerados pilares deste campo mostra-se
uma iniciativa válida para otimizar nosso desenvolvimento e contribuir para o reconhecimento dos
trabalhos nele inseridos.
Nosso objeto de pesquisa consiste em alguns dos estudos de masculinidade de autores
muito comumente citados em trabalhos nesse campo. Esses autores, além da importância para o

4
MINELLO MARTINI, N. Masculinidades: un concepto en construcción. Nueva Antropología, v. 18, n. 61, p. 11-30, 2002.
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estudo das temáticas mais diretamente relacionadas, ocupam lugar de destaque na área das ciências
sociais. Michael Kimmel e R. W. Connell são os autores das obras elencadas.
R. W. Connell atualmente é professora da Universidade de Sidney e é autora de, 5 dentre
outras obras, Masculinities, selecionada como primeiro escrito a ser comparado durante o mestrado,
ainda sem tradução para o português, cuja publicação ocorreu em 1995, formulada depois do
período de consolidação dos estudos no campo, conforme periodização da própria autora do livro
em obra conjunta.6 O conceito elaborado pela autora em Gender and Power e pormenorizado em
Masculinities é o de Ŗmasculinidade hegemônicaŗ; o qual inclusive foi alvo de uma reformulação,
juntamente com James W. Messerchmidt, em um artigo publicado em 2005 com o título Hegemonic
Masculinity: Rethinking the concept, num esforço explícito de sugerir reformulações do conceito e
contra-argumentar as críticas mais usuais.7
O conceito de masculinidade hegemônica tem filiação teórica principalmente no conceito
de hegemonia formulado por Antonio Gramsci.8 Conforme explica Connell, hegemonia refere-se à
dominação cultural na sociedade com um todo, à dinâmica cultural pela um grupo Ŗclaimsŗ e
sustenta uma posição de liderança na vida social. 9 A masculinidade hegemônica é construída em
relação às masculinidades subordinadas e às mulheres e não necessariamente corresponde às
características de homens que detenham um maior poder na sociedade. As qualidades
contempladas aproximam-se de uma Ŗimagemŗ que sustente seus poderes e que um grande número
de homens estejam dispostos a apoiar.10
Michael Kimmel é o autor da segunda obra escolhida para a análise em perspectiva
comparada, Manhood in America: A Cultural History.11 Sociólogo, professor da State University of
New York em Stony Brook e porta-voz da NOMAS (National Organization For Men Against
Sexism), seus focos de pesquisa apresentam-se variados, contemplando questões como racismo,

5
Robert Connell submeteu-se a uma cirurgia de Ŗmudança de sexoŗ e seus últimos trabalhos lançados ou reeditados
apresentam a assinatura de Rayween Connell (nome atual) ou a forma abreviada R. W. Connell. Optamos por fazer
referências no feminino, mesmo quando estivermos tratando de tratando de trabalhos realizados antes da operação.
6 CONNELL, R. W., MESSERSCHMIDT, J. W. Masculinities. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1995.

7 CONNELL, R. W., MESSERSCHMIDT, J. W. Op. Cit..

8 GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 6 v.

9
CONNELL, Robert W. Masculinities. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1995. p. 77.
10
CONNELL, Robert W. Gender and Power. Stanford: Stanford University Press, 1987.p. 183-185.
11
KIMMEL, Michael. Manhood in America: A Cultural History. New York: Free Press, 1996.
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homofobia, violência doméstica e desigualdade de gênero. Masculinidade adolescente é um tema


que se mostra bastante recorrente em sua produção. Kimmel defende a existência de
masculinidades, pois, para ele, ao pluralizar o termo reconhecemos os diferentes significados que
podem ser atribuídos de masculinidades, pois, para ele, ao pluralizar o termo reconhecemos os
diferentes significados que podem ser atribuídos. 12
A partir dos livros escolhidos responderemos às seguintes perguntas: quais são as filiações
teóricas e metodológicas de Michael Kimmel e R. W. Connell? Quais as principais diferenças e
similitudes encontradas nas reflexões desses autores no tocante à masculinidade? Que conceito de
masculinidade esses autores adotam? Como se estruturam tais conceitos?
Os objetivos do nosso trabalho consistem em investigar os mecanismos de pensamento das
obras selecionadas dos dois autores, discutir o diálogo entre cada um dos autores e outros
estudiosos de homens e masculinidades e relacionar as produções dos respectivos pesquisadores
com o contexto de produção. A publicação de Handbook of Studies on Men and Masculinities é
um exemplo do constante diálogo desses pesquisadores. 13
O presente trabalho está filiado à história intelectual, de forma que tem como objeto os
Ŗdiscursos conscientesŗ, tal qual definido por Roger Chartier.14 Nosso intuito é comparar os
discursos presentes nas obras mencionadas desses autores e não apenas os conceitos nelas
formulados, que são amiúde utilizados em trabalhos neste campo. Desenvolvendo mais a distinção
entre história intelectual e história das mentalidades, Chartier adiciona que somente ao reduzir a
escala de observação dos estudos podemos compreender, sem redução determinista, um sistema de
pensamento.15 Para o pesquisador francês, restituir a historicidade de um texto exige que o
consumo cultural ou intelectual seja ele mesmo tomado como uma produção, dessa forma, o
recorte entre a produção e o consumo dos escritos precisa ser considerado. Devemos assumir que a
significação do autor é uma dentre as outras possíveis.
No que tange o método comparativo, baseamos nosso trabalho na contribuição de Marcel

12
http://creativepromotionsagency.com/mk/biography.htm Acesso em 05/05/2010.
13
KIMMEL, Michael, HEARN, Jeff, and CONNELL, R. W. (Ed.). Handbook of Studies on Men and
Masculinities. California: Sage Publications, 2005.
14 CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietude.
Porto Alegre: UFRGS, 2002.
15
Idem p. 45-46.
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Detienne em Comparar o Incomparável.16 Ao definir o que são os comparáveis, o autor elabora a


noção de Ŗmecanismos de pensamentoŗ. O pesquisador é, desta forma capaz de proceder uma
desmontagem lógica que venha a permitir a descoberta de articulações entre dois ou três
elementos. Os comparáveis às quais Detienne se refere não são temas, distinção feita explicitamente
pelo próprio autor, mas sim relações em cadeia, estabelecidas na configuração de conjunto de
maneira arbitrária. Essa configuração apresenta uma espécie de coerência relativa, denominada
pelo antropólogo de Ŗplacas de coerênciaŗ. Os comparáveis consistem nessas placas de
encadeamento decorrentes de escolhas iniciais. No caso do presente estudo será viabilizado um
exame microscópico do trabalho de dois estudiosos ao se debruçarem sobre a(s) masculinidade (s).
Numa escala mais ampla, ainda que não seja essencialmente o objeto da história das ideias,
Chartier alerta que devemos estabelecer Ŗcomo central a relação do texto com as leituras
individuais ou coletivas que, cada vez, o constroemŗ.17Ou seja, além do diálogo existente entre os
autores contemplados em nosso estudo nas obras que são as Ŗfontesŗ sobre as quais nos
debruçamos, os trabalhos de outros autores serão percebidos ao realizarmos a Ŗdesmontagem
lógicaŗ. É nesse sentido que realizaremos nosso estudo.
Não foram encontrados trabalhos que apresentassem uma sólida análise das obras dos dois
autores em perspectiva comparativa, ou ainda um trabalho que se dedicasse a uma investigação
ampla tal qual pretendemos elaborar. Ainda que hajam numerosas referências aos estudos de
Michael Kimmel, as citações dos textos de R.W. Connell aparecem mais frequentemente, havendo,
inclusive, trabalhos nacionais sobre sua obra.
A obra de Connell, Masculinities, foi analisada comparativamente pelos pesquisadores Fábio
de Souza Lessa e Sílvio de Almeida Carvalho Filho, ambos professores da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Os autores apontam a obra de Connell como Ŗum dos referenciais teóricos mais
marcantes no campo de estudos sobre masculinidadeŗ.18
De acordo com o texto, as duas obras comparadas demonstram o entendimento dos termos
masculinidade e feminilidade como relacionais, como sendo expressões de relações de poder.

16
DETIENNE, M. Comparar o Incomparável. Aparecida, SP: Idéias e Letras, 2004.
17
CHARTIER, R. Op. Cit. p. 55.
18
LESSA, F. de S; CARVALHO FILHO, S. de A. Masculinidade? Uma reflexão comparativa. In: LESSA, F. da. S.
(Org.). Poder e Trabalho. Experiências em História Comparada. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008. p. 11-34.
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Connell, por sua influência teórica de Michel Foucault, vê gênero como metáfora de poder.
Oliveira examina a construção social da masculinidade, concebe-a em seu enraizamento com o
poder, implicando uma hierarquização. Tanto Connell quanto Oliveira, segundo análise dos
historiadores brasileiros, discutem a historicidade da concepção do masculino como distintos,
possuidores de características excludentes. Oliveira estabelece um recorte iniciado no fim da Idade
Média, cujo ideal apregoava duas virtudes básicas: coragem e ousadia. Nesse aspecto a utilização de
Norbert Elias como teórico é mais evidente.19 Por conseguinte, o sociólogo brasileiro assume a
passagem da Idade Média para Idade Moderna como o momento em que ocorreu a elaboração do
20
conceito de masculinidade, refutando a utilização do termo em períodos anteriores a esse.
Connell também refuta o uso dos termos masculinidade e feminilidade nas Idades Antiga e
Medieval. Lessa e Carvalho Filho demonstram discordância perante esse tópico embasando-se em
Koselleck, para quem ainda que o conceito seja teorizado em uma data posterior, seu conteúdo
pode ser anterior. 21
Ao esmiuçarem o conceito masculinidade hegemônica, com grande ênfase no aporte gramsciano
do texto de Connell, são tecidas críticas incisivas ao artigo Uma crítica ao conceito de masculinidade
hegemônica de Fabrício Fialho.22 Resumidamente, o cerne do debate travado é o fato de os escritores
brasileiros qualificarem a interpretação de Fialho como reducionista, ou melhor, pouco atento às
sutilezas do conceito de hegemonia tal qual pensado por Antonio Gramsci e seguido por Connell.
A grande questão concentra-se em discutir se há ou não uma necessária uma luta daqueles que
estão uma posição subalterna pela posição hegemônica. Ainda que o termo hegemonia englobe
conflitos que possam ser gerados pelos não-ocupantes da posição dominante, Fialho considera a
Ŗimportaçãoŗ do conceito de hegemonia para os estudos de gênero como Ŗmais uma fonte de
problemasŗ, já que traz consigo diversas implicações teóricas que tornam o conceito masculinidade
hegemônica impreciso.23 Nesse ponto podemos estabelecer uma correlação com o trabalho de Alan
Greig, Michael Kimmel e James Lang no qual criticam o conceito de masculinidade proposto por

19
Idem, p.25
20
Idem, p..26
21
Ibidem
22
Idem p. 29-32
23
FIALHO, F. Uma crítica ao conceito de masculinidade hegemônica. Working papers. 2006.
www.ics.ul.pt/publlicacoes/workingpapers/wp2006/wp2006_9.pdf Acesso em 02/07/2008. p.10
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R. W. Connell ao enfatizarem sua complexidade e não serem uma propriedade apenas de homens,
já que seus discursos podem ser usados também por mulheres. 24
Em Hegemonic Masculinity: Rethinking the concept, Connell e Messerschmidt reiteram pontos
principais da formulação desse conceito, mas também apontam sugestões de reformulação do
conceito além de responderem a autores específicos e a correntes (pós-modernismo, realismo etc). A
ideia de hierarquias de gênero é proveniente, de acordo com o artigo, da experiência dos homens
homossexuais perante o preconceito dos heterossexuais. Não exploraremos aqui as críticas e
respectivas respostas dos autores, o pontos exposto foi escolhido no intuito de complementar o
esclarecimento, já iniciado, sobre o conceito. No que tange à crítica de ambiguidade ou uma
confusão em se determinar quem seria/representaria a masculinidade hegemônica, os autores
respondem que é desejável eliminar um uso fixo e trans-histórico, uma vez que a historicidade
precisa ser considerada. Nesse sentido, o argumento pode ser facilmente relacionado ao conceito de
gênero elaborado por Joan Scott tal qual abordamos no início desse trabalho. Além disso,
conforme pontuamos ao citar a definição de masculinidade hegemônica, esta não corresponde
necessariamente a uma pessoa-modelo, mas sim a um padrão que os homens estariam dispostos a
apoiar.
Reconhecemos a importância dos artigos acadêmicos, entretanto, ainda que eventualmente
façamos uso de algumas informações e argumentos neles presentes, os textos desse formato não
serão alvo de uma investigação mais apurada nesse estudo. Tanto Connell quanto Kimmel são
autores de destaque entre os acadêmicos de ciências sociais e apesar de serem ícones dos estudos
sobre homens e masculinidades, houve certa variabilidade nos seus objetos de investigação.
Enquanto nos últimos anos, Michael Kimmel lançou livros que se concentram em temáticas
ligadas às mulheres, nas décadas de 1980 e 1990, o autor foi responsável por trabalhos com
temáticas diversas. Já R. W. Connell, no final da década de 1970 e também no início da década de
1980, escreveu livros dedicados à questão de classes e já em 2007 lançou um livro mais voltado
para área de educação.
Ainda que a história narrativa concentrada nos Ŗgrandes feitosŗ sobretudo a produzida no

24
GREIG, Alain; KIMMEL, Michael; LANG, James. Men, Masculinities and Development: Broadening Our Work
towards gender equality. Gender in Development Monigraph Series number 10, Gender in Development
Programme, UNDP.
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século XIX, tenha sofrido um forte abalo desde inícios do século XX, sua herança é muito presente
em aspectos sutis. Tendo sido a disciplina histórica constituída no sentido de atender à valorização
da nação, esse conhecimento estruturou-se em um Ŗuniversoŗ que contemplava o homem,
naturalizando-o como o ser, por excelência, capaz de incorporar as características dignas de serem
narradas pelos estudiosos. A história das mulheres teve um papel de profundo impacto nesse
sentido, entretanto, estudar também a historicidade dos sujeitos tidos Ŗnaturalmenteŗ como
capazes de exercer o poder (nas suas mais variadas instâncias) constitui um passo necessário para
elucidar um masculino que de tão valorizado tende a tornar-se invisível. O fazer histórico a que nos
propomos é datado, assim como os anteriores e os contemporâneos que possuem outros enfoques.
Pretendemos esmiuçar dois trabalhos, e suas temporalidades, lançados num intervalo de um ano
aproximadamente, aos quais ambos autores, se remetem em obras posteriores e demonstram terem
sido aquelas realizações marcantes em sua contínua busca pelo questionamento sobre o sexo que
foi, e não completamente deixou de ser, o primeiro sexo.

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O TEATRO HOMOAFETIVO NA CONTEMPORANEIDADE: ESTUDOS SOBRE


TORCH SONG TRILOGY
Valmir Aleixo Ferreira

Resumo
Este trabalho é uma resenha do texto dramático do espetáculo teatral “Língua Afiada” de Raffael
Araujo escrito em 2009 para montagem do Grupo Tempo de teatro. Nos últimos trinta anos, os
processos e as práticas incluídas no campo do teatro contemporâneo transitam por diferentes áreas
do conhecimento como o teatro, a educação, a política, a filosofia e gênero. Por isso, para traçar
uma problemática desse campo é necessário realizar uma investigação multidisciplinar capaz de
apontar um dentre os principais movimentos dessas vertentes. Esses trabalhos surgiram
principalmente em festivais de teatro que espalhavam-se pelas cidades nos anos 80.

Em todo mundo o desejo de transformação das práticas convencionais provocaram o


aparecimento de novas experiências que explodiram de vez com a cena do teatro dramático
convencional. Os trabalhos influenciados pelos estudos de Antonin Artaud proliferam práticas
inovadoras, nos Estados Unidos temos os trabalhos do Living Theatre com os processos de Robert
Wilson, na Europa temos os projetos de Peter Brook na Inglaterra, na Polônia os trabalhos de
Grotowski, a partir da Alemanha, a expansão dos textos de Brecht e no Brasil, temos a experiencias
do Teatro Oficina com Zé Celso, os trablhos de Gerald Thomas e o maravilhoso trabalho do grupo
de teatro dos anos 70 Dzi Croquettes.1

Mestrando do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ.


1
O conjunto cria, em 1972, o espetáculo Gente Computada Igual a Você, que se origina de um show de boate,
posteriormente levado para São Paulo, na casa noturna TonTon. A realização transferida para o Teatro 13 de maio e
faz enorme sucesso. Na equipe criadora do espetáculo constam os nomes do coreógrafo Lennie Dale, do autor
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Este trabalho analisa o texto Torch Song Trilogy (Trilogia da Canção Iluminada) escrito
por Harvey Fierstein, ator e roteirista, em 1982 para a OffBroadway e ganhou sua versão
cinematográfica em 1988. Quase três décadas depois, ainda pauta questões atuais que estão
imersas na contemporaneidade. Meus estudos sobre Torch Song Trilogy se basearam na livre
adaptação da obra cinematográfica, intitulada “Língua Afiada” de Raffael Araujo, que traz a
história para a cidade do Rio de Janeiro, bairro da Lapa e, assim como a obra cinematográfica,
apresenta a vida de uma Drag Queen fora dos palcos, seus sonhos, amizades, frustrações amorosas,
luta contra o preconceito e sua conturbada relação familiar no ano de 2009.
Seu texto toca em pontos polêmicos como intolerância, crime homofóbico e adoção por
casais do mesmo sexo. Promove uma reflexão sobre a cultura contemporânea, desenvolvendo
temáticas de gênero como questões homoafetivas e aspectos de consolidação e transmissão desta
identidade, o que propicia ao público, um contato imediato com os signos e a representação de
uma linguagem singular no âmbito do teatro contemporâneo. Isto ocorre porque o teatro é
conseqüência do processo histórico do qual ele é fruto já que somos todos sujeitos históricos. O
espetáculo vem ainda, ampliar as discussões a cerca desse tema tendo em vista que o teatro, como
aspecto cultural, é um fórum por excelência de debates e divulgação de idéias que muitas das vezes
são censurados por outros canais de comunicação e cultura.
Todo confeccionado em ferro bruto, o cenário construído para a montagem do espetáculo
apresentado em outubro e novembro de 2009 e abril de 2010 no Rio de Janeiro, compõe um
ambiente de estranhamento que apresenta uma sinestesia sobre o que acontece com as relações
humanas quando não cuidamos delas, pois como um amontoado de ferros velhos, elas tendem a
esfriar, enferrujar e envelhecer. É uma metáfora comparando a relação afetiva entre as pessoas com
a concretude do ferro, usando o tempo como elemento de comparação, pois o mesmo pode trazer
maturidade e experiência, mas também pode corroer e desintegrar-se. As relações estão na ordem
da produção de si mesmo. Nós tendemos a construir uma identidade na relação com o outro, não
só vivemos como também estamos produzindo nossa própria identidade, e por isso, a importância

Wagner Ribeiro de Souza, e dos bailarinos Cláudio Gaya, Cláudio Tovar, Ciro Barcelos, Reginaldo de Poli, Bayard
Tonelli, Rogério de Poli, Paulo Bacellar, Benedictus Lacerda, Carlinhos Machado e Eloy Simões.
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do cuidar, pois é uma reafirmação dessa construção. O tempo transforma tudo em efêmero,
caracterizando esse aspecto diversificado do contemporâneo.
No mundo contemporâneo, conceitos como consumo, mídia e moda, vendem uma idéia de
especificidade e individualização, mas que no fundo, ao ditar padrões de comportamentos e
modelos de felicidade nos joga num profundo processo de uniformização. Foi pensando nisso que
o figurino utilizado no espetáculo uniformiza os personagens que usam camisa branca e calça jeans
azul, destacando apenas, elementos que simbolizam sua identidade o que propõe uma reflexão
sobre essa padronização. Tomaz Tadeu2 explica que o processo de produção da identidade tem
dois movimentos: o primeiro é aquele que tende a fixar e estabelecer a identidade e o segundo
tende a subvertê-la e desestabilizá-la. Quando o figurino propõe esse formato padronizado para os
personagens, está dialogando diretamente com o primeiro movimento de fixação da identidade por
meio de crítica, num processo semelhante ao que ocorre com os mecanismos discursivos. De
maneira geral, a tendência do discurso é apresentar uma identidade previamente fixada, mas nos
dias atuais, este movimento de uniformização transformou-se numa tendência e ao mesmo tempo
numa impossibilidade, porque a produção de subjetividade do individuo está, em ultima estância,
calcada na sua afetividade.
O personagem central, William, produz uma subjetividade a partir da sua identidade e visão
de mundo, bem como a maneira como ele defende seu ponto de vista. William é um estranho.
Alguém fora do lugar numa sociedade que dita normas. A dinâmica de sua identidade questiona
padrões heteronormativos e desnaturaliza aquilo que até então, se entende como modelo de
família, de trabalho (vida profissional) e relações afetivas. O espaço desse ser híbrido, em
movimento e em trânsito é o contemporâneo, o que caracteriza-o imerso na teoria queer3- produção

2
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. In; SILVA, Tomaz Tadeu (org). Identidade e
diferença: a perspectiva dos Estudos culturais. Petrópolis, RJ: Editora Vozes; 2000.
3
Teoria queer. Para tentar entender o que vem a ser a teoria queer, é importante que esclareçamos o significado do
léxico inglês que compõe o nome da área. Queer pode ser traduzido por esquisito, estranho, raro, ridículo, excêntrico.
Contudo, o termo ficou mais conhecido no mundo de língua inglesa como uma forma pejorativa de se referir a
mulheres e homens homossexuais. Um insulto homofóbico que a partir do final da década de 1980 foi apropriado
pelos grupos que pretendia menosprezar e resignificado em uma ação política que afirmava We‟re queer, we‟re here, get
used to it!. Na onda de afirmação do grupo, teóricos/as gays e lésbicas também se apropriam do termo para referir-se
ao que se costumava denominar Estudos Gays e Lésbicos. Com efeito, o termo queer passa a ter dois significados
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teórica referente às áreas de estudos sobre grupos de gays, lésbicas e transgêneros de modo
abrangente Ŕ que causa perturbação e ou constrangimento a partir de sua afirmação no outro.
Existem espaços de fronteiras entre os grupos sociais e também as relações sociais estabelecidas por
William, e é nesse limite que ele desempenha sua função de crítica social.
Se o movimento entre fronteiras coloca em evidência a instabilidade da identidade, é nas
próprias linhas de fronteira, nos limiares, que sua precariedade se torna mais visível.
Aqui, mais do que a partida ou a chegada, é cruzar a fronteira, é estar ou permanecer na
fronteira, que é o acontecimento crítico. (...) Ao chamar a atenção para o caráter cultural
e construído do gênero e da sexualidade, a teoria feminista e a teoria queer contribuem, de
forma decisiva para o questionamento das oposições binárias Ŕ masculino/feminino,
heterossexual/homossexual Ŕ nas quais se baseia o processo de fixação das identidades de
gênero e das identidades sexuais. (SILVA, 2000)

Percebemos esses espaços de fronteira nos diálogos de William com sua mãe, onde, a todo o
momento, ambos os personagens disputam a legitimidade de suas identidades. E são esses espaços
de disputa e de conflito, que querem garantir, além da identidade, sua luta para estabelecer uma
relação verdadeira que é, afinal, o único lugar do afetivo. A relação afetiva é um processo que
reafirma a identidade por meio da verdade dos sentimentos e não somente pelas práticas sociais
estabelecidas. Esse processo de eterna formação de si mesmo precisa em primeiro lugar, garantir a
própria identidade, em segundo, dialogar com o outro estabelecendo um espaço de crítica e
portanto de fronteira e, em terceiro lugar, reafirmar, recriar e garantir na relação com o outro, essa
verdade de sentimentos que é a auto-afirmação da sua subjetividade, aquilo que lhe é mais
essencial. Esse processo de consolidação da afetividade procura dentro da multiplicidade do
mundo contemporâneo, colocar-se como caráter norteador do afetivo. É um processo de alteridade
onde o diálogo com outro é o único caminho possível para reencontro com si mesmo.
MÃE: O que você está fazendo ?

WILLIAM: Estou fazendo o mesmo que você está fazendo.

MÃE: Não ! Não está ! Eu estou recitando o Kaddish para o meu marido. Você está
blasfemando sua religião.

WILLIAM: Mãe, não sei se você percebeu, mas esse aqui era o meu companheiro.

distintos, mas interligados: 1) refere-se aos grupos de gays, lésbicas e transgêneros de modo abrangente; 2) refere-se à
área de estudos sobre esses grupos.

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MÃE: Espera aí... Espera aí... Espera aí! Você vai comparar meu casamento com você e
o Allan ? Seu pai e eu estivemos casados por trinta e cinco anos, tivemos dois filhos.
Como você ousa comparar ?

WILLIAM: Estou falando da perda.

MÃE: Que perda você teve ? Você se envolveu por aí com um garoto. Como você pode
comparar isso a um casamento de trinta e cinco anos ? Ah, por favor William! Isso é um
pouco louco pra se pensar, que dirá pra discutir sobre, não acha ?

WILLIAM: Mãe, eu perdi alguém que eu amava muito.

MÃE: Tudo bem! Ficou mal, talvez tenha chorado um pouco. Mas e eu William. Você
tem noção de como eu fiquei ? ? ? Eu vivi trinta e cinco anos com esse homem. Ele
adoeceu, fiquei com ele no hospital, lhe dei todo o meu amor e ele o que me deu? Me
deu um lugar para eu visitá-lo nos feriados. Como acha que pode saber como me senti.
Levei dois meses para voltar a dormir na mesma cama. Um ano pra eu poder dizer Řeuř ao
invés de Řnósř. E você vem me falar de perda ? Como se atreve ?

WILLIAM: Tem razão, como me atrevo né ? Mas eu não sabia o que era ver as coisas de
alguém que amamos sendo colocadas em sacos pretos de lixo para serem levadas para
doação. Ou então, como se sente colocando dois lugares à mesa de jantar ao invés de um.
Ou quando se esquece como se faz compras sozinho. Como me atrevo né, mamãe ? Mas
não foi fácil pra você... Acredite mamãe, não foi nada fácil pra mim quanto você pensa.
Você teve seus amigos e parentes para lhe consolar, eu só tive a mim. Os meus amigos
diziam que pelo menos eu tive um amante. Você tinha um esposo e o perdeu em um
hospital, limpo e cheiroso. O meu eu perdi na rua, foi morto no meio da rua. Tá legal ?
Ele só tinha 27 anos e já era! E quer saber como foi isso ? Ele foi assassinado...
Assassinado a porretes por garotos... Assim mamãe, crianças... Crianças ensinadas por
pessoas como você, que dizem que gays não se importam, gays não amam, e que gays tem
o que merecem.

(Trecho do espetáculo Língua Afiada, livremente adaptado da obra cinematográfica Torch Song
Trilogy, de Harvey Fierstein, Cena 5, Ato III.)
O processo de subjetivação de William está relacionado à sua persona, que é a idéia de
essência e é a partir deste lugar, que ele se insere no mundo, produzindo e reproduzindo sua
subjetividade. Portanto, essa categoria é mais abrangente do que a definição de identidade, pois se
encontra no território de crítica e de fronteira, como podemos observar, por exemplo, num outro
momento do processo de subjetivação de William com seu namorado Eduardo, pois a partir da
homossexualidade dos dois se discute as práticas para lidar com determinadas relações afetivas, já
que para Eduardo a sua identidade/subjetividade está em manter a sua bissexualidade intacta,
enquanto que para William a discussão vai além das práticas sexuais localizando-se no campo da

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afetividade, ou seja, não é a relação sexual que determina a identidade e sim a capacidade que cada
um tem de amar, pertencendo então, ao campo da afetividade.
Desde quando nascemos, sofremos um profundo processo de repressão, aquilo que
Foucault chamou de teoria repressiva4 quanto a nossa sexualidade. Diante disso é que iniciaram-se
reflexões que desenvolveram a idéia de que o indivíduo centrado na sua sexualidade, teria nela, sua
própria essência. Isso trouxe um pensamento sobre as possibilidades de novas formas de
subjetividade, que seriam nada menos que um relacionamento afetivo com seu próprio eu para, a
partir dele, relacionar-se com o outro. ŖO sexo é o meio pelo qual nós definimos nossa
personalidade e atitudes. A sexualidade é sobretudo, o instrumento pelo qual o sujeito passa a ser
consciente de si mesmo. É a relação entre consciência de si, subjetividade e sexualidade que
queremos investigar.ŗ5
ED: William, espera ! Olha eu tinha falado com você, mas parece que você não acreditou
muito quando eu disse que também saia com mulheres.
WILLIAM: Eu pensei que se referia a suas tias, sobrinhas ou irmãs.
ED: Isso não tem graça!
WILLIAM: Não é pra ter graça.
ED: Você devia ter me ligado antes.
WILLIAM: Você deveria ter me contado isso antes !
ED: William presta atenção numa coisa. Eu não sou como você. Você sabe ser gay,
gosta, sente-se confortável com isso. Eu não. Não me sinto bem indo sempre para guetos
ou bares gays.
WILLIAM: Nunca fizemos isso ! (INTERROMPE)
ED: William ! Tenho muito orgulho de ser quem eu sou.
WILLIAM: Como assim ? Transar com uma mulher te faz sentir orgulho quando na
verdade preferiria estar transando com um homem ? Como quer o respeito das pessoas se
não consegue respeitar você mesmo ? Isso não é nem um pouco de respeito. Você não se
respeita.
ED: Eu também não vejo seu auto-respeito.
WILLIAM: Ah você quer ver meu auto-respeito ? ? ? Quer ver meu auto-respeito ? Vou te
mostrar meu auto-respeito. Está aqui o meu auto-respeito.
(Trecho do espetáculo Língua Afiada, livremente adaptado da obra cinematográfica Torch Song
Trilogy, de Harvey Fierstein, Cena 8, Ato I)
William tem na sua arte o seu espaço de transgressão, é onde ele radicaliza seus
sentimentos, suas emoções. Onde ele expõe seus desejos e reproduz sua subjetividade. Esse espaço
significa a purificação dos sentimentos, a catarse. É a representação clássica do herói trágico que

4
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade III: o cuidado de si. São Paulo: Graal, 2007.
5
SENETT, R.; FOUCAULT, M. Sexualidad y soledad. In: Foucault y la etica.Buenos Aires: Editorial Biblos, 1988. p.
165
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por meio da paixão e do temor, alcança a plenitude. O herói possui um caráter elevado
encontrando-se numa situação intermediária, não sendo nem totalmente bom nem totalmente
mau, mas sim, humanizado pela sua paixão. E é nesse sentido que o público se identifica com as
situações apresentadas na cena, sentindo ora pena do personagem e ora medo de vir sofrer as
mesmas provações do herói. É essa identificação do público com o personagem que Aristóteles
chamou de mímesis. O teatro homoafetivo é antes um processo do fazer, o ato concreto de realizar
estas formas do fazer intervém na distribuição geral das maneiras de fazer e nas relações com
maneiras de ser e existir. Em seu trabalho, William desenvolve a mímesis do ser contemporâneo.
Mais do que nunca, mímesis não pode ser tomada como imitativo. Isso não é correto
sequer em Platão, pois a imagem não é o duplo da coisa a que se refere e porque é incapaz
de representar as idéias. A mímesis é sinônimo de um campo fantasmal, é o outro da
sombra, nem sequer a própria sombra, pois esta ainda supõe um corpo que a projeta.(...)
Mímesis é o processo de criação na natureza, é representação, é expressão e é aspiração à
idealidade. Mímesis supõe uma dualidade do real e do representado.6

Para vivenciar a purificação dos sentimentos, William possui a principal característica do


herói clássico que é o altruísmo, a vontade de ajudar, de resolver e solucionar os problemas do
outro, o que o enquadra num diálogo com esse modelo clássico do teatro, ou seja, somos
contemporâneos porque possuímos história, somos seres historicizados, produzidos a partir do
nosso passado e negá-lo é um equívoco, uma falha. No trecho a seguir, observamos essas
características do personagem enquanto herói, enquanto artista e enquanto estranho (queer):
WILLIAM: (...) Existe sim, um grupo de pessoas que você deve manter certa distância. Eu
os chamo de ŖOs sem chanceŗ. E os defino em três categorias: (CONTANDO NOS
DEDOS) Os Řcasadosř, os Řsó nos fins de semanař e Řos definitivamente héteros.ř Arghh...
Esses são os piores. Você chega neles com os olhos muito bem abertos, conhecendo todas
as suas limitações, aceitando tudo maduramente, e depois... ŖPá pumŗ... Vai acabar com
uma mãe de santo, acendendo velas pretas em alguma encruzilhada, e se perguntando: ŖO
que houve ? ? ?ŗ O que houve? Eu vou te dizer o que houve meu bem. Você teve o que
mereceu. (...) Para aqueles que ainda não adivinharam, sou uma artista performista, ou
pelo menos o que restou de uma. Apresento-me com o nome de Virgínia Hamm. Com
dois êmes... (RI) Não soa com um chute na bunda? Ui, precisava ouvir os anteriores:
Leeloo Saxisuxirú, Fonda Boys, Claire Voyant, Bang Bang La Desh... (RI) Eu sei. Sou
uma raça em extinção, um protesto, uma resistente. Quando chegarem os direitos civis
para os gays, perderei minha finalidade e tipos como eu, se tornarão comuns. Mas tudo
bem. Com essa voz e esse rosto, não tenho com o que me preocupar. Posso de repente,
dirigir um taxi. Há coisas mais fáceis na vida do que ser uma Drag Queen.

6
Lima, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Graal Ed, São Paulo: 1981. P.47.
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(Trecho do espetáculo Língua Afiada, livremente adaptado da obra cinematográfica Torch Song
Trilogy, de Harvey Fierstein, Prólogo, Cena 1, Ato I)
O teatro homoafetivo de Harvey Fierstein trás a tona, a idéia de que não é a prática sexual,
muitas vezes confundida com opção sexual, que conta para a definição da uma identidade
homossexual ou heterossexual, mas sim, as práticas afetivas cíclicas. O que define um homem
homossexual nesse teatro, não é somente o fato de ele praticar sexo com outro homem, mas
principalmente a concretização de uma relação afetiva com esse outro homem. Uma relação que
não deve ter como referência o modelo heteronormativo, mas assim como na mímesis dramática,
não se está reproduzindo ou imitando esse modelo previamente existente, mas a partir desse, se
produz um novo conceito de relação que traz também novas subjetividades. Não é uma
classificação ou uma nomenclatura que se faz importante, mas a vontade de viver, de ser livre, de
garantir a própria identidade. Esse teatro é uma ação política na medida em que cria a
resignificação realizada a seu favor, ou seja, a maneira pela qual a sociedade cria palavras e termos
para insultar ou denegrir a imagem de homossexuais sofre então, um processo de dar novos
significados operados para garantir e reforçar sua identidade, muitas das vezes ironizando esses
termos depreciativos o que o torna capaz de rir de si mesmo, é uma construção da uma nova
consciência sobre si mesmo.
A exemplo disso, citamos o fato de William querer montar um novo conceito de família de
acordo com as suas perspectivas, uma família composta por dois pais e um filho, homossexual.
ALLAN: Pelo que consta, apenas os casais com união civil ou estável podem adotar.
WILLIAM: Então, esquecem do que há de mais importante nesse processo que é o bem
estar dessa criança ou adolescente e o seu encontro com a oportunidade de viver bem e
feliz, num ambiente saudável onde possa se sentir acolhida, amada e poder chamar esse
lugar de seu.

(Trecho do espetáculo Língua Afiada, livremente adaptado da obra cinematográfica Torch Song
Trilogy, de Harvey Fierstein, Cena 7, Ato II)
A homossexualidade dos personagens de Harvey Fierstein é em última instância a
característica fundamental do afeto, todas as situações, todos os conflitos e todas as discussões
pautam a reafirmação de uma homoafetividade que é endógena ao mundo contemporâneo,
concluindo que o teatro homoafetivo consolida-se como um novo campo de teatro contemporâneo

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e insere-se também no campo do teatro experimental na medida em que apresenta novas formas de
subjetividades e a construção de novos significados para a vida.

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REPRESSÃO OU REGRAMENTO? REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA O


ESTUDO DA SEXUALIDADE NO OCIDENTE MEDIEVAL
Wendell dos Reis Veloso1

Resumo
Muito ainda devido ao preconceito com que a Idade Média foi comumente vista, os discursos religiosos e
jurídicos do período que abordam a sexualidade são associados exclusivamente à repressão e a todos os
elementos de interdição que a caracterizam. No entanto, nosso contato com a documentação, assim como
nossos estudos da historiografia têm nos conduzido a uma diferente hipótese, de modo que uma abordagem
do tema no Ocidente medieval por meio da categoria regramento - operacionalizado por meio da tentativa
de controle do corpo Ŕ se mostra mais adequada para a análise dos discursos citados acima.
Palavras-Chave: Ocidente Medieval; Sexualidade; Análise de Discurso.

Ainda não é tão incomum atribuir à Idade Média uma carga negativa, de modo que o seu
entendimento adequado ainda encontra-se, muitas vezes, encoberto pela sombra espessa que a Antiguidade,
de um lado, e o Renascimento, por outro, lançam sobre ele. Esta visão pejorativa acerca das sociedades do
medievo estende-se também à maneira como a sexualidade dos homens e mulheres da Idade Média é
entendida, sendo ela comumente associada quase que exclusivamente à repressão e a todos os elementos que
a constituem. Sobre o entendimento da sexualidade na Idade Média de um modo mais conforme, há que
refletirmos e demarcarmos algumas nuances.
De todas as funções humanas, a sexualidade é ao mesmo tempo, a mais pessoal, a
mais vital, e também a mais normatizada nas sociedades antigas, uma vez que as

1
Graduado em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade Gama Filho; Pesquisador Associado ao
Laboratório Interdisciplinar de Teoria da História, Antiguidade e Medievo (LITHAM) da Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde desenvolve pesquisa sobre o pensamento agostiniano, sob orientação da Prof. Dra.
Renata Rozental Sancovsky (UFRRJ/LITHAM Ŕ LEI/USP).
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estruturas de parentesco e, mais ainda, toda a organização social estão embasadas


na codificação das relações sexuais.2

A assertiva de Jacques Rossiaud evidencia o que alguns estudiosos da sexualidade chamam de


fenômeno curioso ao se referirem ao processo em que algo suposto ser meramente biológico e natural
modifica-se quanto ao seu sentido, à sua função e à sua regulação ao ser deslocado do plano do Natural para
os planos Social, Cultural e Histórico.3
Não obstante a constatação histórica de o controle da sexualidade ser tão antigo quanto à vida
humana em Sociedade, a sexualidade nem sempre foi considerada Ŗfilha legítimaŗ da deusa Clio. Magali
Engel defende que a mudança tomou força a partir da década de 1960, com as novas possibilidades
oferecidas pela História Social e pela História das Mentalidades, além do que ela denomina de verdadeira
revolução provocada pelos estudos de Michel Foucault.4 Este mesmo um ardoroso defensor do que
denominou de insurreição dos saberes insujeitados em detrimento de uma História limitada ao estudo de
estruturas.5
A autora supracitada ainda afirma que no interior de uma produção acadêmica diversificada -
inclusive no tocante ao arcabouço teórico-metodológico -, incentivada pelos trabalhos que surgiam, assim
como pelas críticas erigidas ao modelo historiográfico vigente, Ŗa sexualidade afirma-se, cada vez mais, como um
objeto fundamental na busca da compreensão dos possíveis significados das relações humanas, consideradas nos seus mais
variados e complexos sentidos.ŗ6 Entretanto, como a própria autora atesta ao longo do texto e é verificável em
uma consulta aos acervos das principais bibliotecas, livrarias e acervos de periódicos, os estudos históricos
acerca da sexualidade, a despeito de seu recorte cronológico, costumam centrar-se em sub-temas e/ou
mesmo em outros campos temáticos correlatos, tais como, Ŗprostituiçãoŗ, Ŗhomossexualidadeŗ, Ŗgêneroŗ, e
etc. Em confluência com isto, os estudos do tema que tinham a Idade Média como contexto comumente
centram-se nos grupos sociais supostamente desviantes.
Em um contexto de Império Romano com suas estruturas formais já cristianizadas, ou de Reinos
Germânicos já estabelecidos, posteriormente ao fim do Império no Ocidente, as práticas sociais, tais como,
adultério e sodomia; ou ainda o desejo desenfreado, a luxuria, seriam constituintes da identidade do mau

2
ROSSIAUD, Jacques. ŖSexualidadeŗ. In: LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. 2. ed. São Paulo: EDUSC, 2006, 2 Vols, p. 477.
3
CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: esta nossa (Des)Conhecida. 5 ed. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 10.
4
Cf., todo o artigo: ENGEL, Magali. ŖHistória e Sexualidadeŗ. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo
(Orgs.). Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 297-311.
5
Aqui referimo-nos especificamente ao seguinte texto: FOUCAULT, Michel. ŖGenealogia e Poder.ŗ In: Microfísica do
Poder. 23 ed. São Paulo: Edições Graal, 2007,p. 167-177.
6
ENGEL, Magali. Op., cit., p. 297.
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cristão, ou do não-cristão. Ou seja, a sexualidade é sempre vista como um constituinte da vida errante e
pecaminosa, o que não é, de certa maneira, inadequado, pois as fontes mostram que na Idade Média a
maioria dos pecados perpassa por alguma questão ligada à sexualidade. Entretanto, se as elites eclesiásticas
definem as práticas sexuais que constituem os erros e desvios, deveria existir aquelas Ŕ práticas sexuais - que
garantissem um caminho reto, sem erros ou desvios, para a salvação.
Desta maneira, em confluência com o movimento da Nova História, que alçou a sexualidade ao
posto de objeto legítimo para o estudo dos mais variados significados das relações humanas, em seus mais
variados sentidos, defendemos ser profícuo considerarmos a sexualidade para o estudo da intolerância
religiosa que caracteriza a Idade Média. Em outras palavras, propomos estudar as constantes tentativas de
forja de identidades cristãs nas sociedades medievais, por parte das elites episcopais, identificando e
analisando o peso das questões sexuais nestes processos.
Após ser dito, parece simples e até mesmo óbvio, entretanto, quanto mais avançamos em nossos
estudos, mais eles se mostram, não somente originais em certa medida, mas também extremamente
necessários para um entendimento adequado das sociedades do medievo.
Já temos a pergunta: teria a sexualidade importância no processo histórico de construção de uma
sociedade organizada por meio de um modelo político-religioso de Cristandade Constantiniana7?
Estabelecemos também a hipótese de que a sexualidade teria um papel capital neste processo histórico.
Cabe-nos agora pensarmos as ferramentas epistemológicas e metodológicas mais adequadas para olharmos
para o passado e assim pormos a nossa hipótese à prova.
Uma questão que nos acometeu logo no início de nossas reflexões foi de que maneira as elites
eclesiásticas objetivaram intervir na sexualidade humana em sua tentativa de controle social. Tal
preocupação reverbera diretamente na escolha do vocabulário a ser utilizado para uma análise mais
adequada, e acerca deste aparato epistemológico há que se evocar aquela que talvez seja a maior referência
em estudos da sexualidade humana a partir de uma perspectiva histórica: a obra clássica de Michel Foucault
História da Sexualidade8.
No primeiro volume de sua supracitada obra Foucault tem como principal objetivo o
desenvolvimento de densas reflexões teórico-metodológicas que possuem como ponto nodal ir de encontro

7
Tal denominação é discutida pelo historiador Francisco José Silva Gomes em texto de caráter teórico-metodológico
acerca da relação entre Igreja e Poder na Idade Média. O autor afirma que desde a aproximação entre as esferas de
poder formal e o Cristianismo Niceno operada pelo Imperador Constantino no século IV, a dinâmica entre Igreja e
Poder apresentou características que remontam a este processo histórico. Cf. GOMES, Francisco José da Silva. A Igreja
e o Poder: Representações e Discursos. In: RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros (Org.). A Vida na Idade Média. Brasilia:
Editora Universidade de Brasilia, 1997, p. 33-60.
8
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
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ao que o autor denomina de hipótese repressiva. De acordo com tal concepção, a partir do início do século
XVII ter-se-ia iniciado um processo histórico de crescente repressão sexual9, a qual seria concomitante,
portanto, ao desenvolvimento do capitalismo, sendo assim característica de uma ordem burguesa10. Nosso
autor assevera que os defensores da hipótese repressiva argumentam que em um contexto de exploração
sistemática do trabalho a repressão da sexualidade seria legitimada da seguinte forma: toda energia deveria
ser canalizada para atividades consideradas produtivas, e não perder-se nos prazeres, salvo aqueles mínimos
que permitissem a procriação11.
Desta maneira o século XVII poderia ser conhecido como a origem da Idade da Repressão, em que
a sexualidade tenderia à interdição, à inexistência e ao mutismo12, seja em atos ou palavras13 até ser
cuidadosamente encerrada à época da Era Vitoriana.14
Como podemos perceber Michel Foucault não possui a Idade Média como periodização de estudo,
mas sim o período que vai do século XVI ao XIX, de maneira que são as críticas feitas à maneira como a
sexualidade da Idade Moderna é tratada que mais nos interessam. As objeções do autor à hipótese repressiva e,
consequentemente, a todos os elementos negativos nela agrupados, como recusas, proibições, censuras e
negações, não tem por objetivo a negação de que a relação entre sexo e poder teve caráter repressivo15: ŖDizer
que o sexo não é reprimido, ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder a relação não é de repressão, corre o risco de ser
apenas um paradoxo estéril.ŗ16 O que coaduna-se com as reflexões empreendidas anteriormente, de que a
sexualidade é uma das funções humanas mais normatizadas, de modo que constatar isto não se mostra por
demais profícuo. O autor então afirma que de maior proveito seria analisarmos as instâncias de produção
discursiva acerca da sexualidade,
levar em consideração o fato de se falar de sexo, quem fala, os lugares e os pontos
de vista de que se fala, as instituições que incitam a fazê-lo, que armazenam e
difundem o que dele se diz, em suma, o Řfato discursivoř global, a colocação do
sexo em discurso.17

9
Ibidem, p. 9-11.
10
Ibidem, p. 12.
11
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 12.
12
Ibidem, p. 11.
13
Ibidem, p. 10.
14
Ibidem, p. 9.
15
Ibidem, p. 18-19.
16
Ibidem, p. 14.
17
Ibidem, p. 18.
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Com base nestas reflexões Foucault defende que a hipótese repressiva não se sustenta, uma vez que a
partir do século XVI o Ocidente, ao contrário do que tradicionalmente se sugeria, além de colocar o sexo
em discurso, obstinou-se em construir uma ciência da sexualidade.18 A partir disto, podemos entender por
meio do não dito que para o autor a Idade Média teria sido o momento em que a sexualidade tendeu a não
estar na ordem do discurso - nos valendo de uma expressão do próprio Foucault. Explicitamente sobre o as
sociedades do medievo nosso autor afirma que na Idade Média a repressão sexual se deu tendo como ponto
fulcral dois elementos: ŖA Idade Média tinha organizado, sobre o tema da carne e da prática da confissão, um
discurso estreitamente unitário.ŗ19

Há que nos colocarmos contrário não somente ao uso da hipótese repressiva para o estudo da
sexualidade na Idade Média Ocidental, mas também problematizarmos a assertiva de Foucault no que tange
ao papel primordial, para ele, da confissão e da carne no processo de tentativa de controle do sexo, por parte
das elites episcopais. Nossas leituras historiográficas, assim como a leitura e análise das fontes têm nos
mostrado a inadequação de tais afirmações, pois, como veremos à frente, as tentativas de controle da
sexualidade na Idade Média tinham como cerne uma grande preocupação com o corpo. No caso da
confissão, esta somente é institucionalizada no século XIII.20
Comecemos pela diferenciação entre Ocidente e Oriente. Peter Brown chama atenção para o fato
de que as diferentes escolhas feitas nas diferentes regiões do Mediterrâneo durante os séculos V e VI
anunciam os contornos de duas sociedades diferentes que se relacionavam de maneira também diferenciada
com a vida citadina e a sua antítese, o deserto, assim como no tocante ao exercício do poder clerical das
cidades.21 Tal contraste, entre Ocidente e Oriente, também se evidencia na dinâmica sexual proposta pelas
elites eclesiásticas de cada uma destas regiões.

O paradigma monástico formulado pelos monges orientais que viviam no deserto impõe uma
pesada carga sobre o casamento, as relações sexuais no interior deste, assim como sobre o papel da
sexualidade na pessoa humana22, chegando mesmo a colocar um ponto de interrogação no casamento, na

18
Ibidem, p. 19.
19
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 40.
20
Há que chamarmos atenção ao fato de que até o ano de 1215 a confissão não era institucionalizada. A referência do
cânone que trata do assunto é: IV Concílio de Latrão, 1215 d. C., Cânone 21.
21
BROWN, Peter. ŖAntiguidade Tardiaŗ. In: VEYNE, Paul (org.). História da Vida Privada I: do Império Romano ao
Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 269.
22
Ibidem, p. 268.
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sexualidade e mesmo nas diferenças entre os sexos, em uma clara permanência da cultura antiga do corpo
único.23

Para os bispos gregos o impulso sexual era sempre potencialmente atuante para o mal, em todas as
situações sociais que reuniam homens e mulheres24, isto porque na concepção destes homens do Oriente a
sexualidade foi outorgada ao homem após a Queda, sendo uma das penas desta.25

Entretanto, esta dinâmica da sexualidade humana se apresenta de maneira diferenciada no


Ocidente, especialmente pela versão ocidental do paradigma monástico forjada pelo Bispo de Hipona.
Versão esta que segundo Peter Brown é a que irá se impor aos bispos cristãos nas províncias do Ocidente
após o fim da parte ocidental do Império.26

O IV e o V século, período em que o Bispo Agostinho de Hipona viveu27, são marcados por um
grande dinamismo, caracterizado, por sua vez, por uma série de mudanças. Peter Brown chega a afirmar que
tende a ver o Império Romano a partir do século III como uma sociedade formada por pequenos tremores
de terra que brotavam do interior de seus habitantes28. Ainda o mesmo autor afirma que a maior
característica deste momento é a tensão existente em cada um dos homens e mulheres, entre o seu interior e
a sua vida exterior.29
Brown nos chama atenção para o fato de que a tensão mencionada acima nos foi apontada por
Agostinho de Hipona, um homem que, não podemos esquecer convertido no ano de 386, era ele mesmo
um homem mudado e em mudança.30 E esta mudança o Bispo de Hipona Ŗfoi hábil para registrar com
inquietante sensibilidadeŗ31, de maneira que Ŗele é uma figura central no desenvolvimento do pensamento do
Ocidente.ŗ32

23
Ibidem, p. 270.
24
Ibidem, p. 272.
25
Ibidem, p. 278.
26
BROWN, Peter. ŖAntiguidade Tardiaŗ. In: VEYNE, Paul (org.). História da Vida Privada I: do Império Romano ao
Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 277.
27
Nasceu em 354 e morreu em 430.
28
Ŗ(...), I have at times tended to think of the Romam Empire as a landscape that was slowly veined and folded, from
the third century onwards, by innumerable little earth-tremors, welling up from deep inside the inner lives of its
inhabitants.ŗ In: BROWN, Peter. Religion and Society in the Age of Saint Augustine. Eugene, Oregon: Wipf & Stock
Publishers, 2007, p. 13.
29
Ibidem.
30
Ibidem, p. 09-12.
31
Ibidem, p.09.
32
Ibidem.
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Ele pôs em palavras, cheias de significados, justamente o problema da relação entre o interior e o
exterior na vida dos homens. Aliás, é em torno desta relação que Agostinho constrói suas Confissões33, um
de seus vários escritos, que mais do que evidencias de um período crucial da história, forneceu também uma
linguagem pela qual os homens do IV e V séculos poderiam se entender.34
Esta linguagem constitui-se no que podemos denominar de estratégia discursiva e enquadra-se no
interior de uma tradição patrística, literatura esta que Ŗconsolidava importantes axiomas sobre a sacralidade cristã
e sobre os entes que dela poderiam desfrutar.”35 E, “ao mesmo tempo definia lugares sociais e históricos àqueles que se
distanciavam, por erro ou desvio, das projeções escatológicas contidas em sua teologia ŗ36.
Tal dinâmica e linguagem são evidenciadas em diversos aspectos, sejam os formais/institucionais,
como, por exemplo, os códigos da Lei Romana, a hierarquia da Igreja Católica e a idéia de um império
cristão37; assim como também evidencia-se por meio dos aspectos mais informais, ligados ao cotidiano,
como, por exemplo, a maneira de se vestir que mudava, assim como os mosaicos pelos quais se andava, a fé
dos homens e das mulheres com as quais estes homens passaram a se casar.38 Ou seja, para descobrirmos o
porquê de a sociedade da Antiguidade Tardia ter mudado da maneira como mudou, há que se adentrar na
realidade intima dos homens e mulheres deste período39, pois assim o historiador da religião poderá explicar
o porquê da aderência às novas solidariedades, seja com a sua comunidade, como os monastérios, ou até
mesmo com o Império ortodoxo40 ou Reinos Germânicos.
Desta maneira, entendemos que tais axiomas sobre a sacralidade cristã, a linguagem legada à
sociedade tardo-antiga e medieval pelo Bispo Agostinho de Hipona, se valiam de questões ligadas à
moralidade e à sexualidade para a definição dos lugares históricos e sociais que deveriam ser ocupados pelos
homens e mulheres.
Estas definições citadas acima se caracterizam também por apresentarem-se como elementos de
longa duração na cultura medieval. Desta maneira, é verificável na documentação eclesiástica e jurídico-
canônica, que a tentativa, por parte das elites episcopais, de controle social sobre a sexualidade humana
aparece como uma unidade morfológica em toda a Idade Média.

33
Ibidem, p. 10.
34
Ibidem, p. 09-11.
35
SANCOVSKY, Renata Rozental. Práticas Discursivas e Campos Semânticos das Narrativas ŖAdversus Iudaeosŗ.
Século IV ao VII d.C. Phoînix. Rio de Janeiro, v. 16, n. 1, 2010, p. 128.
36
Ibidem.
37
BROWN, Peter. Religion and Society in the Age of Saint Augustine. Eugene, Oregon: Wipf & Stock Publishers, 2007, p.
13.
38
Ibidem, p. 11.
39
Ibidem, p. 17.
40
Ibidem, p. 13.
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Tal conceito teórico foi discutido por Ginzburg em sua obra História Noturna41 e está ligado à recusa
da noção de contexto referente aos encadeamentosde marcos cronológicos imediatos e sucessivos, uma
vezque tal concepção geralmente tem como cerne uma aparente homogeneidade. Ao contrário, a unidade
morfológica do objeto tem como cerne às múltiplas experiências, contraditórias e ambíguas, por meio das
quais os homens constroem o mundo e suas ações. Logo diz respeito à recusa das sincronias.

Ao criticar os estudos sobre a bruxaria existentes até o momento da escrita de sua obra, Ginzburg
fala na marcante característica destes autores em prenderem-se ao Ŗsuposto fatoŗ em si, e não no significado
dele. Ou seja, dar primazia ao Ŗfatoŗ em detrimento do seu significado impede que o historiador observe os
motivos de fundo do processo de construção do discurso intolerante.

Ginzburg chama atenção ao fato de que o pressuposto da unidade morfológica não nos autoriza à
projeção automática e perigosamente mecânica de conteúdos culturais numa antiguidade demasiado
longínqua, ou de um passado remoto em um período mais atual. Antes, volta-se ao passado longínquo para
lançar luz sobre o seu objeto. Desta forma, entendemos que somente a opção por uma análise morfológica
nos permitiria o exame daquilo que Ginzburg denomina de estrato profundo existente por trás do processo,
inatingível por outros meios.
Tal conceito se mostra de grande proveito par as nossas reflexões, ao passo que defendemos ser a
cultura medieval de tentativa de controle da sexualidade dos homens e mulheres, por parte das esferas de
poder formais, baseada na apropriação agostiniana de um paradigma monástico criado pelos monges do
Oriente, formando assim um estrato profundo identificável em toda a Idade Média. Torna-se capital,
portanto, delinearmos agora os pressupostos que regiam esta cultura.
Uma análise atenta do discurso de Agostinho de Hipona nos mostra que o celibato seria o ideal de
vida, de modo que uma vida sexual era concebida apenas como concessão em um contexto de continência.
Por exemplo, ao tratar do sentido próprio da palavra libido Agostinho escreveu:

Quem, amigo da sabedoria e dos gozos santos, levando vida matrimonial, mas
consciente, segundo o conselho do Apóstolo, de que possui seu vaso em santificação e
honra, não na enfermidade do desejo, como os gentios, que desconhecem Deus, não
preferiria, se lhe fora possível, gerar filhos, sem essa libido?42

41
A discussão teórica é feita na introdução da obra. Cf.: GINZBURG, Carlo. História Noturna: Decifrando o Sabá. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 9-37.
42
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Bragança Paulista: 8ª ed. Editora Universitária São
Francisco, 2008, Livro XIV, Capítulo XVI, p. 156.
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É verificável no trecho acima que Santo Agostinho não atribuiu carga negativa ao casamento, o que mostra-
se me consonância com as reflexões de Michel Sot em texto sobre a gênese do casamento cristão 43. Não há,
portanto, uma preocupação com a supressão da carne e do sexo. Entretanto, há que nos atentarmos para o
que Le Goff, em texto sobre a recusa do prazer, afirma. Que na dinâmica sexual proposta por Agostinho,
mesmo não sendo o casamento um mal, ele estaria marcado pelo pecado, pela concupiscência que
acompanhava o ato sexual.44 O que nos fica claro, portanto, é a necessidade de uma vida sexual que deve ter
por base um controle, no mínimo, de caráter duplo: a vida sexual é aceitável somente no interior do
casamento e ainda assim deve ser controlada, ou, como nos apontam os textos agostinianos, consciente,
diferenciando assim os cristãos dos não-cristãos, uma vez que estes se deixariam levar pelas paixões,
enquanto o controle deveria ser um elemento constituinte da identidade cristã.
O fato de os escritos agostinianos não contemplarem a supressão do sexo, mas sim a sua ordenação
está diretamente ligada à discussão sobre a Queda. Peter Brown afirma que Agostinho de Hipona não ligou
o Pecado Original à sexualidade em si, mas, por sua vez, o ligou à Queda, a uma desestabilização de toda a
vida humana, inclusive da sexualidade, a qual, agora, encontra-se caída e sujeita à concupiscência da carne45.
Entretanto, não nos parece inadequado afirmarmos que o Bispo de Hipona deu especial atenção a esta
ligação, visto a sua grande preocupação no regramento desta.
De acordo com está lógica, o sexo não configura-se como um pecado por si só, pois o que se mostra
como um grave problema é o seu exercício de maneira descontrolada. O Bispo de Hipona, em um de seus
escritos, argumenta: “A libido surgiu do pecado e, depois do pecado, nossa natureza, pudica, despojada do
domínio que tinha sobre o corpo, sentiu esse desarranjo, advertiu-o, envergonhou-se dele e cobriu-o.”46 Percebemos aí
que o pecado do primeiro homem, o qual reverberou na Queda, seria o elemento responsável pela
desconfiguração da vida santa para qual o homem havia sido criado. Vida santa que incluía sim o sexo como
podemos perceber em outro trecho da fala de Agostinho, logo em seguida ao anteriormente citado, em que
ele após argumentar que o mandamento bíblico crescei e multiplicai-vos é uma benção concedida ao

43
ŖSanto Agostinho, o maior dos Pais Ocidentais, dá porém uma definição positiva do casamento: é um bem pois foi
instituído por Deus desde a origem do mundo, depois elevado por Jesus ao papel sublime de representação da sua
própria união com a Igreja.ŗ In: SOT, Michel. ŖA Gênese do Casamento Cristãoŗ. In: Amor e Sexualidade no Ocidente.
Edição especial da Revista LřHistoire/Seuil. Porto Alegre: L&PM, 1992. p. 164.
44
LE GOFF, Jacques. ŖA Recusa do Prazerŗ. In: Amor e Sexualidade no Ocidente. Edição Especial da Revista
LřHistoire/Seuil. Porto Alegre: L&PM, 1992, p. 156.
45
BROWN, Peter. ŖAntiguidade Tardiaŗ. In: VEYNE, Paul (org.). História da Vida Privada I: do Império Romano ao
Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 277-283.
46
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Bragança Paulista: 8ª ed. Editora Universitária São
Francisco, 2008, Livro XIV, Capítulo XXI, p. 161. Os grifos são nossos.
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matrimônio, subsistiu aos delinqüentes, entretanto foi outorgado aos homens e mulheres antes de
delinqüirem, concluindo, portanto, que a procriação de filhos seria glória do matrimônio e não ônus do
pecado.47
O controle do sexo se dava por meio de inúmeras restrições corporais, ligadas à atitudes do
cotidiano, como, por exemplo, as encontradas no discurso agostiniano, quando o Bispo de Hipona,
dissertando sobre o que se deve entender por viver segundo a carne, escreveu: ŖEntre as obras da carne que
disse manifestas e, uma vez enumeradas, condenou, encontramos não apenas as relativas ao prazer carnal, como as
fornicações, a desonestidade, a luxuria, as embriaguezes, as glutonerias, (...).ŗ 48
Tendo como postulado o continuum entre corpo e o seu interior, as elites episcopais objetivavam
controlar e dar equilíbrio à vida sexual, desordenada após a Queda, por meio de um regramento de atitudes
como a prática de beber, ou comer. Construindo assim um repertório de hábitos e símbolos que
reverberariam em uma tradição de controle sexual por meio do controle do corpo, uma vez que de acordo
com Agostinho: ŖÉ verdade que o corpo corruptível oprime a almaŗ49.
Agostinho também argumenta: ŖPois bem, qual pode ser o princípio da má vontade, se não a soberba? O
princípio de todo pecado é a soberba, lemos.ŗ 50A apresentação da soberba como a origem de todos os vícios,
onde começam todos os pecados, a fonte emanante de todos os excessos é recorrente. Em outro trecho
lemos: ŖDiz, por exemplo, serem obras da carne, as inimizades, as porfias, as emulações, as animosidades e as invejas.
Fonte de todos esses males é a soberba.ŗ51 Ao afirmar ser a soberba a fonte de todos os vícios podemos entendê-la
como antagonismo direto das virtudes, as quais estão ligadas à mesura, à medida, ou seja, à negatividade de
todo excesso.
Fica evidenciado no pensamento agostiniano a insistência na idéia de controle como de grande
importância para a identidade cristã, controle este que tinha interesse em afirmar o regramento da vida
social e onde a questão do sexo tinha importante papel definidor dos que eram considerados bons cristãos.
Dando atenção aos indícios existentes na documentação, a detalhes nem sempre considerados
Ŗobjetivosŗ52, verificamos ser inadequado nos referirmos ao processo histórico de tentativa de controle social

47
Ibidem.
48
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus: contra os pagãos. Bragança Paulista: 8ª ed. Editora Universitária São
Francisco, 2008, Livro XIV, Capítulo II, p. 133.
49
Ibidem, Op., cit., Capítulo III, p. 133.
50
Ibidem, Op., Cit., Capítulo XIII, p. 151.
51
Ibidem, Op., Cit., Capítulo III, p. 135.
52
Não abordaremos tal questão de maneira mais apropriada por causa de espaço. Por Ŗobjetivoŗ nos referimos aos
documentos tidos como oficiais, entretanto esta concepção é problematizada por diversos historiadores, especialmente
aqueles da chamada Nova História Cultural. Aqui nos apoiamos especialmente nas reflexões de Carlo Ginzburg no
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da sexualidade dos homens e mulheres das sociedades do Medievo pela expressão repressão sexual,em
favorecimento do termo regramento. Nota-se ainda, também com a ajuda do método indiciário, que esta
tentativa era efetuada por meio da tentativa de controle sobre o corpo, por intermédio de determinações
sobre o cotidiano. E é esta cultura do regramento sexual, operacionalizada por meio de um controle do
corpo, que é identificável em todo o Ocidente medieval como uma unidade morfológica.
Como exemplo da existência desta unidade morfológica nós podemos citar os séculos XII e XIII,
momento de (re)organização social de grande envergadura levado a cabo pela elites episcopais do período e
evidenciado por meio dos quatro concílios ecumênicos conhecidos como os quatro Concílios Lateranenses.
Este processo histórico tem como ponto fulcral a diferenciação entre cristãos e não-cristãos, assim como,
entre os cristãos, a demarcação da falta de equidade que deveria existir entre leigos e clérigos. Neste
desenrolar,
os cristãos seriam caracterizados por uma sexualidade controlada em primeira
instância pelo casamento, e não qualquer casamento, mas um casamento, como
afirmado no primeiro cânone do IV Concílio Lateranense, realizado através da
verdadeira fé. Ou seja, aqueles que questionassem a sacralidade do casamento
cristão estariam incorrendo em erro, como nos mostra o II Concílio de Latrão:
ŖAqueles que, simulando um tipo de religiosidade, condenam (...) legítimos casamentos, nós
excluímos da igreja de Deus e os condenamos como heréticos, e prescrevemos que sejam
constrangidos pelos poderes seculares.ŗ (II CONCÍLIO LATERANENSE, 23º
Cânone)53

Como afirmado no parágrafo anterior, as questões sexuais tem importância capital na demarcação
dos lugares sociais de atuação entre os próprios cristãos. Esta importância pode ser demonstrada nos
valendo, mais uma vez, do caso da crescente sacralização do casamento no período.
A prática do casamento ou do concubinato por parte de eclesiásticos, o
nicolaísmo, mostra-se uma prática comum na história da Igreja, não obstante os
inúmeros cânones direcionados à questão, assim como o cânon vinte e um do II
Concílio Lateranense, o qual legisla sobre a prole de eclesiásticos, decretando que
Ŗfilhos de padres devem ser removidos da ministração do altar sagrado, a não ser que vivam
religiosamente em monastérios (...).ŗ(II CONCÍLIO LATERANENSE, 21º Cânone).
Ainda sobre o mesmo assunto, já tratava o primeiro dos concílios de Latrão: ŖNós
proibimos absolutamente que padres, diáconos ou subdiáconos vivam com concubinas e

texto introdutório de sua obra O Queijo e os Vermes. O mesmo autor é nossa referência para o que é chamado de método
indiciário, o qual se baseia na atenção aos detalhes existentes em uma documentação, ainda que esta não aborde o
objeto de pesquisa.
53
VELOSO, Wendell dos Reis. O Lugar do Casamento no Projeto Político de Centralização do Poder Papal na Idade
Média Central (Sécs. XII-XIII). In: HONORATO, Cláudio de Paula.; VIEIRA, Marina.; CELESTINO, Raphael.;
VELOSO, Wendell dos Reis. (Orgs.). Semana de História: Discurso, Identidade e Poder. Anais ..., Duque de Caxias,:
Departamento de História/Centro de Memória/LABEHM, 2011, p. 126.
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esposas, (...).ŗ (I CONCÍLIO LATERANENSE, 7º Cânone), proibição esta


reiterada no cânone de número vinte e um do mesmo concílio, onde apenas os
monges são incluídos no texto.54

Além do casamento, que possui destaque dentre os mecanismos de tentativa do controle da


sexualidade humana na Idade Média Central, verifica-se nos concílios por nós analisados a reincidência de
elementos ligados ao cotidiano, como, por exemplo, beber. Vejamos:
O cânone posterior [cânone 15 do IV Concílio de Latrão] ainda complementa:
ŖClérigos, que depois de terem sido admoestados não se abstêm da embriaguez, devem ser
afastados de seus ofícios e de seus benefíciosŗ. Em outro trecho do mesmo cânone, ao
estender a recomendação a todos, temos o motivo do afastamento da bebida
revelado. Pois, logo após a assertiva de que todos os clérigos devem se abster da
embriaguez encontramos a seguinte afirmação: ŖNinguém deve ser encorajado a beber,
pois a embriaguez é razão para banimento e incita a luxúria.ŗ55

De acordo com as reflexões empreendidas anteriormente podemos afirmar que, ao menos no


Ocidente não se mostra adequado considerarmos a hipótese repressiva para tratarmos da concepção
eclesiástica de sexualidade, já que mais do que reprimir, no sentido de suprimir, as diversas elites episcopais
medievais, durante toda a Idade Média, trataram de criar mecanismos que objetivavam o controle da
sexualidade, o que, por sua vez, configura-se como permanência da apropriação agostiniana do paradigma
monástico sobre a sexualidade humana desenvolvidos pelos monges orientais ainda na Antiguidade Tardia.
E é em confluência com tais reflexões que defendemos o uso da expressão regramento sexual para nos
referirmos ao processo histórico tratado por nós neste artigo, regramento este que era operacionalizado por
meio da tentativa de controle do corpo.

BIBLIOGRAFIA

1. FONTES PRIMÁRIAS

1.1 Antiguidade Tardia


AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus Contra os Pagãos. 8 ed. Tradução de Oscar Paes Leme. Bragança
Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. (Coleção Pensamento Humano). 2 v.

54
Ibidem, p. 127-128.
55
VELOSO, Wendell dos Reis. ŖReflexões sobre o Cristianismo e o Processo de Institucionalização do Regramento
Sexual na Idade Média a partir dos Concílios Lateranensesŗ. NEARCO, Rio de Janeiro, v. 1, p. 165-175, 2011, p. 167.
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1.2 Fontes Jurídico-Canônicas (séculos XII e XIII)


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II CONCÍLIO DE LATRÃO. In: Documenta Catholica Omnía:Concilium Lateranum II [1139-1139].
Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_1139-
1139__Concilium_Lateranum_II__Documenta__LT.doc.html. Acesso em julho de 2010.
III CONCÍLIO DE LATRÃO. In: Documenta Catholica Omnía:Concilium Lateranum III [1179-1179] .
Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_1179-
1179__Concilium_Lateranum_III__Documenta__LT.doc.html. Acesso em julho de 2010.
IV CONCÍLIO DE LATRÃO. In: Documenta Catholica Omnía:Concilium Lateranum IIII [1215-1215].
Disponível em: http://www.documentacatholicaomnia.eu/04z/z_1215-
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2. HISTORIOGRAFIA

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A HISTÓRIA COMO JOGO: CONTRIBUIÇÕES DE MICHEL FOUCAULT PARA O TRABALHO


DO HISTORIADOR1

Luciano Rocha Pinto2


Resumo
O presente trabalho busca evidenciar uma Teorien, um modo de ver norteador a partir da abordagemteórica
e metodológicaproposta por Michel Foucault. Acusado de não possuir um método, o filósofo-historiador vai
ampliar a perspectiva ou o olhar dos historiadores com outro modo de ver, pensar e construir a história.
Nunca foi óbvio ou transparente, nem elaborou esquemas teóricos de fácil medição do que seria a realidade.
Foi criticado e, por vezes, mal compreendido, por apresentar um olhar diferenciado e feroz contra as idéias
de continuidade, totalidade, sujeitos fundadores, origens nobres e abordagens teleológicas. As noções de
descontinuidade e poder relacionalinstauram outro olhar sobre a história, que deve ser percebida como um
jogo.
Palavras-chave: História, teoria, poder, Michel Foucault.

Breve Introdução
O trabalho está dividido em três partes. As duas primeiras são um exercício de reflexão a respeito
dapercepção de Michel Foucault sobre o sentido da História e sua contribuição original como a primazia da
descontinuidade (parte 1), onde levanteisuas críticas ao Ŗestatuto do realŗ, à noção de verdade e documento e
realcei seu método de trabalho arquegenealógico. Na parte 2 abordo o surgimento de uma nova anatomia do
poder. Opondo-se ao modelo do Leviatã, concepção contratualista do poder, e ao modelo marxista
economicista, que entendem o poder como coisa, ou posse. Foucault se apropria da Ŗhipótese Nietzscheŗ,

1
Texto publicado originalmente com o título ŖA história como jogo: contribuições de Michel Foucault para o ensino da
históriaŗ,na Revista História & Ensino, Londrina, v. 17, n. 1, p. 149-165, jan./jun. 2011.
2
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPGH-UERJ). Pesquisa financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ). Pesquisador Associado do Laboratório de Estudos das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES-
UERJ).
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ou seja, de uma noção de poder concebido como luta.O poderé relacional, todos, em algum sentido ou
direção, o exercem ao mesmo tempo em que sofrem seus efeitos. Não mais o Estado como centro irradiador
do poder, mas o poder enquanto rede. Interessa o Ŗcomoŗ do poder, os modos de sujeição e as técnicas de
disciplina e normalização. A última parte, História como jogo procuro amarrar as questões levantadas e
mostrar o modo como Foucault compreende as relações humanas. A palavra Ŗjogoŗ ilustra seu olhar acerca
do mundo, revelando as ações humanas como razão de ser da História. São as próprias praticas humanas, na
maior parte das vezes, conflituosas que fazem o acontecer da História, não havendo um sentido apriori, nem
uma essência teleológica, original, racional e metafísica que guie o movimento do homem no tempo. A
História é o acontecimento, marcado pelas táticas e estratégias dos processos de hierarquização, próprias de
um jogo. Segue, então, as contribuições metodológicas de Foucault para a história.
Primazia da descontinuidade.
Há dezenas de anos que a atenção dos historiadores se voltou, de preferência, para
os longos períodos, como se, sob as peripécias políticas e seus episódios, eles se
dispusessem a revelar os equilíbrios estáveis e difíceis de serem rompidos (...) As
velhas questões de análise tradicional são substituídas, de agora em diante, por
interrogações de outro tipo. 3
Foucault não critica a História, mas um determinado modo de pensá-la. Ao longo de ŖA
Arqueologia do Saberŗ é possível perceber uma defesa declarada à História visando libertá-la,do que
denominou, de noções e procedimentosenvelhecidos (continuidade, sujeito fundador, totalidade, origens
nobres e abordagens teleológicas) fazendo uma série de críticas àquele modo de pensar uma história
contínua e globalizante.
A historiografia tradicional é aquela iniciada em meados do século XIX e que se estendeu até o
início do século XX, a chamada escola metódica, que estabeleceu um discurso cientificista aos
historiadoresse distanciando do discurso literário. Para ela a História era contínua, linear e feita de grandes
nomes e eventos políticos. Nação, civilização, revolução, eram temas da História. Objetivava-se recuperar o
passado da nação e de seus líderes. A História, como indica seu nome grego, era a narrativa e suas
personagens testemunhavam os grandes feitos do passado. Não havia lugar para a singularidade, para o
descontínuo. Se era singular e descontínuo não poderia ser histórico, pois, a História era uma grande
continuidade de fotos movidos por causas e efeitos constantes. Havia harmonia e equilíbrio. Havia
Ŗcientificidadeŗ.
É este Ŗestatuto do realŗ que Foucault critica em suailusão de recompor a realidade, como se fosse
possível ao pesquisador descobrir o que de fato aconteceu. Partindo do pressuposto que a realidade é uma

3
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, pp. 3 e 4.
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construção discursiva passa-se a questionar um verismo que por muito tempo marcou o fazer histórico, fruto
da ilusão cientificistade dominar a realidade. ŖSaber o que aconteceuŗ definiu por muito tempo o
procedimento do historiador. A materialização dos fatos históricos, como entes ordenáveis e preexistentes,
dava segurança e cientificidade à História. Como as ciências naturais, caberia à História descobrir a lógica da
realidade, suas leis e, assim, ordená-la.
A História não é uma fabricação artesanal de corte e costura dos acontecimentos. Os fatos não são
retalhos dispersos esperando para serem ordenados na colcha do tempo que a todos cobre e lhes oferece
lugares específicos e cores previamente acertadas. Uma segunda crítica surge, então, da noção documento. A
preocupação documental,fundamentalmente de cunho oficial, era uma característica da escola metódica. Os
arquivos oficiais pareciam incontestes, verídicos. Para fugir da narrativa romântica, buscava-se fidelidade ao
documento. Narrava-se os fatos Ŗtais como aconteceramŗ segundo a documentação oficial do Estado.
A história nova é estritamente metódica. Em nome de um racionalismo total (...)
prega unicamente o estudo das fontes escritas: coleta dos documentos (heurística),
crítica externa (data, autor, origem...), crítica interna (hermenêutica), resumo
crítico, síntese e colocação em perspectiva dos dados. O método rompe com o
aproximativo que dominava freqüentemente uma historiografia feita por
inúmeros historiadores mais de coração do que de formação.4
Em Foucault a História não escreve a si mesma, não tem sentido por si só, nem os documentos
falam por si. Ela não é um quebra-cabeça que possui uma ordem previamente estabelecida pela realidade, de
forma que caiba, a quem se debruça sobre ele, apenas descobrir suas conexões.Não se trata de reconstruir o
que os homens fizeram ou pensaram pela simples transcrição documental e arrumação dos fatos
cronológicos. Em Foucault não há heurística, pois não existe nenhuma verdade oculta porser descoberta.
Não há busca Ŗda verdadeŗ, mas da produção da verdade, de uma verdade que deseja se impor. Seu olhar
sobre o documento é diferenciado.
...A história mudou sua posição acerca do documento: ela considera como sua
tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é
seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza,
recorta e distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que
é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve
relações. O documento, pois, não é mais para a história, essa matéria inerte
através da qual ela tenta reconstruir o que os homens fizeram ou disseram, o que
é passado e o que deixa apenas rastros: ela procura definir, no próprio tecido
documental, unidades, conjuntos, séries, relações. 5
O documento passa a ser visto dentro de outra lógica. Não mais aquela fonte inerte de informações,
com uma lógica própria emergindo dos fatos descritos, mas uma produção histórica que trás a lógica de seus

4
TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru-SP: EDUSC, 2000, p. 109.
5
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Op. Cit., p. 7.
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produtores. O documento é um fato histórico. Um acontecimento que traz em si mesmo as múltiplas


relações de poder que o produziram. ŖA História, embora possa parecer, às vezes, homogênea, contínua,
habitada pela semelhança, pela repetição, pelo mesmo, é trabalhada por dentro pela diferença, pela
heterogeneidade, pela descontinuidade...ŗ6É preciso dar uma inteligibilidade aos documentos, arrumá-los,
dar uma lógica à sua materialidade, inserir uma coerência aos fatos dispersos. Nada que chegou até nós foi
arquivado inocentemente. As evidências são fabricações. O documento é, em si, um acontecimento
histórico. A acontecimentalização é seu método de trabalho. Ao fazer surgir a singularidade, como um
procedimento de análise histórica,busca-se suprimir os encadeamentos naturais e teleológicos e emergir os
jogos de poder, as estratégias de dominação e a construção da realidade em seu caráter discursivo.
Foucault traz de Nietzsche a noção de história efetiva, que faz ressurgir o acontecimento em sua
singularidade. Faz vir à tona as relações que possibilitaram aquele acontecimento. É um método de análise
das condições históricas (do à priori histórico) que fizeram que em um dado momento
determinadoacontecimento (discursivo ou não) tivesse sido efetivamente possível. Ele não entende o fato
como algo dado, mas produzido. Não toma o acontecimento como realidade, mas se pergunta como foi
possível. Desrealiza-o na relação de força em que foi produzido. Não faz a história dos sujeitos e dos objetos,
mas das possibilidades de materialização daqueles que aparecem naturalizados. Assim, busca problematizar
(desnaturalizar) as experiências e os discursos. Ambos são vistos como acontecimentos que estão na ordem
do poder. O próprio sujeito e as experiências são desnaturalizados e vistos como uma produção.
A experiência não é pura empiria, pois esta depende do modo como é concebida. Como o Ŗrealŗ,
por sua vez, é o insuportável e o caótico, o discurso reinventa a realidade, lhe dá sentido, uma vez que em si
mesma é vazia. ŖNenhum ser humano suporta o real se não trabalhá-lo simbolicamente, se não aplacar sua
estranheza através da dotação de sentido e significado...ŗ. 7Relações, saberes e poderes moldam nosso modo
de ser, ver, pensar, agir e interagir. Cada época histórica tem seu jeito particular de produzir sujeitos e
reinventar a homem. OŖcomoŗ experimentamos a realidade é uma produção. Os indivíduos são sujeitos
históricos e historicizáveis. Ser brasileiro no início do século XXI não é o mesmo que sê-lo durante o
Império. Temos a consciência possível de nosso tempo e lugar. Somos tanto sujeitos da história como
objetos dela. Somos o resultado de relações múltiplas, de dotações de sentido, de saberes e poderes que
produzem o simbólico, o cultural, as relações, os conflitos e as alianças. Foucault assim critica a noção de
sujeito fundador e recusa a pesquisa das Ŗorigensŗ.

6
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da história. Bauru,
SP: Edusc, 2007, p. 31.
7
ALBUQUERQUE JR. Op. Cit., p. 27.
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A história contínua é o correlato indispensável da função fundadora do sujeito


(...) Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência
humana o sujeito originário de todo o devir e de toda prática são as duas faces
de um mesmo sistema de pensamento. 8
O problema do sujeito é um dos temas centrais da obra de Foucault. A relação história/sujeito surge
como domínio de seu trabalho, por ele mesmo descrito como uma história dos modos de
subjetivação/objetivação do ser humano em nossa cultura. A história das práticas de subjetivação é uma
ontologia de nós mesmos, da constituição histórica do que somos. 9Não há sujeito fundador, pois, aquele
que é considerado Ŗfundadorŗ é produto de sua época. Ademais ninguém estabelece nada sozinho. Somos
animais sociais, relacionais. A questão não é saber quem escreveu o código criminal de 1830, por exemplo,
mas o que permitiu que aquele código fosse escrito, que forças o produziram, quais os interesses em jogo. O
indivíduo que o escreveu estava motivado por uma série de situações, pressionado por uma gama de forças,
auxiliado por outros códigos, enfim, não há sujeito fundador como origem nobre. O sujeito é uma
invenção, assim como a realidade. Inventamos a História pelas nossas ações e representações assim como
somos inventados pelas representações de realidade que nos precedem. O termo invenção...
...ganha destaque com o progressivo afastamento dos historiadores em relação às
explicações que remetiam para o emprego de categorias trans-históricas, das
abordagens metafísicas ou estruturais, que tendiam a enfatizar a permanência, a
continuidade, e pressupunham a existência de uma essência, de um núcleo
significativo da História, de determinadas relações ou processos como sendo
determinantes de toda a variedade do acontecer histórico. 10
O uso do termo Ŗinvençãoŗ remete a uma abordagem que não toma os fatos como dados a priori,
mas como construções históricas, enfatizando a descontinuidade, a singularidade e a ruptura. Há uma
desnaturalização de objetos e sujeitos. Uma desmistificação na qual o historiador deixa de guiar um rastro
metafísico ou originário e passa a debruçar-se no que os acontecimentos possuem de singular. A busca pela
origem idealiza as coisas perfeitas, puras e essencializadas. ŖA origem está sempre antes da queda, antes do
corpo, antes do mundo e do tempoŗ. 11 No começo o que existe é o conflito, a dúvida e a luta. Em Foucault
as coisas deixam de ser evidentes e se tornam problemáticas, pois são, ao mesmo tempo, materialidade,
relação social, jogos de força e produção de sentido. O discurso elaborado pelo historiador vai dar lógica à
trama histórica. A noção de discurso, para Foucault, já é, em si mesmo, um acontecimento histórico. Todo
discurso possui interesses, tem um lugar de produção, possui estratégia, vislumbra algo a conseguir ou

8
FOUCAULT. A Arqueologia do saber.Op. Cit., p. 14.
9
CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2009, p. 204.
10
ALBUQUERQUE Jr. Op. Cit., p. 20.
11
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, p. 18.
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chegar. Logo, o discurso é um instrumento de poder e é em si mesmo um acontecimento da ordem do


poder que busca produzir efeitos. Não é a representação de um acontecimento, é, em si, um acontecimento.
Não procuro encontrar, por traz do discurso, alguma coisa que seria o poder e
sua fonte (...) Eu parto do discurso tal como ele é! O tipo de análise que pratico
não trata do problema do sujeito falante, mas examina as diferentes maneiras
pelas quais o discurso desempenha um papel no interior do sistema estratégico
em que o poder está implicado, e para o qual o poder funciona. Portanto, o
poder não é nem fonte, nem origem do discurso. O poder é alguma coisa que
opera através do discurso, já que o próprio discurso é um elemento em um
dispositivo estratégico de relações de poder.12
Produzimos verdades como produzimos riquezas,13por isso Foucault se preocupa com a explicação
da teia discursiva e das práticas que sustentam as verdades. O discurso não é imaterial, pois, é no âmbito da
materialidade que ele se efetiva e produz efeitos. Seu lugar é o da relação,14 uma vez que cria o verdadeiro e o
falso, o justo e o injusto, o legal e o ilegal, o normal e o anormal. O discurso Ŗliga os indivíduos a certos
tipos de enunciação e lhes proíbe, conseqüentemente, todos os outros (...) serve, em contrapartida, de certos
tipos de enunciação para ligar indivíduos entre si e diferenciá-los, por isso mesmo, de todos os outros". 15Ao
ver a produção do discurso como um acontecimento, Foucault ensina a desnaturalizar as verdades
consagradas e fazer emergir os jogos de poder envolvidos naquilo que consideramos verdadeiro, justo, certo
e normal.
Quando se fala em invenção da realidade e dos sujeitos pode-se pensar que os indivíduos são alvos
inertes do poder. A arqueogenealigia faz emergir o jogo das forças e coloca os sujeitos da história como
imanentes aos próprios acontecimentos. Reside aqui a segunda grande contribuição de Foucault para a
História: uma nova anatomia do poder.
Nova anatomia do poder
Os indivíduos sempre se encontram na posição de padecer e exercer o poder. São receptores e
emissores. O poder funciona em rede. Não há dualismo em sua abordagem. Nem oposição entre realidade e
aparência. O poderé relacional, provoca o consentimento pela livre adesão, uma vez que incorpora os
indivíduos em suas malhas como numa rede, na qual todos, em algum sentido ou direção o exercem ao
mesmo tempo em que sofrem seus efeitos.
Para estudarmos o poder, como exercício e não como coisa, Foucault propõe uma semiologia
genealógica, capaz de atingir os fenômenos nas suas formas embrionárias e, a um só tempo, abordar os

12
Idem.Estratégia, Poder-Saber.Op. Cit., p. 253.
13
Idem. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 29.
14
Idem, A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 57.
15
Ibidem, p. 43.
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sintomas dos acontecimentos, entendidos não a partir de um estruturalismo que elenque acontecimentos,
mas como uma abordagem que contemple os fenômenos a partir de sua singularidade, enfatizando a
descontinuidade e as malhas mais finas da rede do poder. 16Embora o poder seja mais perceptível na forma
das instituições, como o tribunal, por exemplo, ele não existe fora das relações sociais. O Juiz só exerce
poder por que há alguém que é considerado um perigo à sociedade. Todo um aparato repressivo é montado
a fim de eliminar os indesejáveis, controlá-los e minimizar sua periculosidade.
Na concepção liberal o poder é algo como um Ŗbemŗ que os indivíduos podem possuir. Está sujeito
a contrato, posse e alienação. É uma noção contratualista fortemente ligada ao conceito de soberania, ou
seja, a visão jurídica do poder. Na concepção marxista o poder serve para manter as relações de produção e
permanece com semelhante concepção de poder enquanto posse. Quem tem dinheiro, tem poder. Foucault
se apropria da Ŗhipótese Nietzscheŗ, ou seja, de uma noção de poder concebido como luta. Evidente que a
forma mais perceptível de poder é aquele que se faz sentir pela repressão, identificada como uma lei que diz
não, ou, ao menos, como manutenção da ordem pelo uso da força. A proibição na concepção jurídica é, por
sua vez,uma noção negativa.ŖSe o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer
não você acredita que seria obedecido?ŗ17Esse questionamento de Foucault lança as bases da compreensão
do poder como uma rede que atravessa o corpo social e produz adesão pelo convencimento.
Foucault se interessa pelo Ŗcomoŗ do poder. Tentar apreender seus mecanismos e as múltiplas
relações que constituem e corpo social. Não há exercício de poder sem uma determinada economia de
discursos de verdade. Para isso sugere algumas precauções de método: (1) apreender o poder em suas
extremidades, tomando o poder em suas formas institucionais mais regionais e locais, sobretudo em seus
instrumentos de intervenção material e regulação; (2) estudar o poder em suas práticas reais de regulação,
onde se relaciona com seu objeto, sujeitando os corpos, dirigindo os gestos e regendo os comportamentos.
Deve-se apreender sua instância material de sujeição. (3) Não tomar o poder como dominação de um
indivíduo, ou grupo de indivíduos, sobre outros. Deve ser analisado como algo que circule, que exista em
exercício, em ação e que funcione em cadeia. Os indivíduos jamais são alvos inertes, mas seus
intermediários. (4) O poder circula na forma de rede e deve ser analisado ascendentemente, ou seja, a partir
dos mecanismos infinitesimais, os quais possuem sua própria história. Examinar o modo como os
fenômenos, as técnicas, os procedimentos de poder atuam, se mostram, se deslocam, são consentidos,
modificam os indivíduos e produzem seus efeitos. (5) Compreender a relação saber/poder. O saber é uma
forma de poder, um exercício de poder que tem suas técnicas de registro, métodos de observação,

16
FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder.Op. Cit.,pp. 5 e 6.
17
Ibidem, p.8.
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procedimentos de investigação e aparelhos de verificação. O poder põe em circulação determinados saberes,


que se orientam para promover e/ou excluir. 18
Em vez de dirigir a pesquisa para o âmbito do edifício jurídico da soberania e da repressão, deve-se
buscar as formas de sujeição. É preciso estudar o poder fora do modelo do Leviatã, fora do campo da
soberania jurídica e analisar as leis, por exemplo, a partir das técnicas e práticas de dominação que buscam
normalizar os indivíduos. Em Foucault, a noção de Ŗrepressãoŗ é substituída por Ŗnormalizaçãoŗ.A
normalização descreve o funcionamento e a finalidade do poder que é regular a vida dos indivíduos e das
populações. Pretende-se aumentar sua força econômica e diminuir sua força política, produzindo corpos
dóceis e úteis. A normalização consiste em:
...Colocar um modelo, um modelo ótimo que é construído em função de certo
resultado, e a operação de normalização disciplinar consiste em procurar tornar
as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal
precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não
é capaz. Em outros termos, o que é fundamental e primeiro na normalização
disciplinar não é o normal e o anormal, é a norma. Dito de outro modo há um
caráter primitivamente prescritivo da norma, e é em relação a essa norma
estabelecida que a determinação e a identificação do normal e do anormal se
tornam possíveis. 19
O estabelecimento de sujeitos adequados, que vivem conforme as normas e, por essa razão, são
considerados Ŗnormaisŗ, se contrasta com os indesejáveis, sujeitos que insistem em viver de outro modo,
não adequados, não conforme a normalidade. Mas é a norma que determina o lugar dos indivíduos na
sociedade, que lhes subjetiva, classifica, hierarquiza, inclui ou exclui. É anormal tudo ao que foge do
aceitável ou do tolerado. É um saber não legitimado, validado ou reconhecido. Muitos podem ser os
indesejáveis. Cada sociedade estabelece seus critérios de normalização, no entanto, em última instância estão
aqueles considerados perigosos para o sistema: os criminosos. São inimigos de todos: da sociedade, dos
indivíduos e do bem-estar social. Intervindo na circulação dos bens, tais indivíduos são segregados e sua
punição deve servir de exemplo para outros possíveis indesejáveis. A punição é a arte de rotular, marcar e
criar subjetividades indesejáveis.
As sociedades modernas preocupam-se com a normalização da vida dos indivíduos e da população.
Foucault identifica na disciplina um exercício de poder normalizador. O costume dos indivíduos passa a
interessar o Estado a partir do século XVIII e uma série de técnicas de normalização vão sendo produzidas
pelo poder disciplinar, como a distribuição dos corpos no espaço.Foucault busca recolocar o corpo na
História, o corpo em sua materialidade, seja observando-o como superfície de inscrição de suplícios e penas,

18
FOUCAULT. Michel.Em Defesa da Sociedade.Op. Cit., pp. 32-40.
19
FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 75.
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como ocupante de um lugar no espaço.O encarceramento é um procedimento de separar os indesejáveis,


controlar sua periculosidade e tirá-los de circulação. Tirar de circulação é uma forma de garantir a
integridade dos bens que circulam pela cidade e dos cidadãos de bem. O controle da atividade e do tempo se
caracteriza numa segunda técnica do poder disciplinar, com horários regulados, controlados, como toque de
recolher, por exemplo, e com figuras precisas de mando. Um modelo clássico do controle disciplinar é o
panóptico.
A ideia de ligar a disciplina do cárcere à utilidade social foi desenvolvida, na por Jeremy Bentham.20
Pensava o encarceramento como uma atitude mais apropriada para o controle das individualidades. Para ele,
o Ŗprincípio da utilidadeŗ está direcionado à produção da felicidade. Toda medida do governo deveria estar
voltada à produção do bem estar social. Punir é uma forma de garantir a felicidade dos homens de bem. Na
medida em que um indivíduo colabora para a desordem social e a infelicidade dos cidadãos cabe ao Estado a
retribuição de seus atos prejudiciais. Para manter o bem estar social é preciso excluir os degenerados e
minimizar seus efeitos perversos para que a felicidade não seja abalada. Embora Bentham veja a punição em
si como um mal, o princípio da utilidade o admite tendo em vista um bem maior ou um mal maior há se
evitar. Esta nova anatomia política, que tem por objeto os corpos e por objetivo sua normalização, pode ser
situada no contexto do panoptismo geral da sociedade moderna.
Panoptismo é, inicialmente, uma arquitetura prisional. Bentham denomina de Panóptico uma
construção em formato de anel dividida em celas que atravessem a espessura da construção com apenas duas
janelas, uma para o interior do anel e outra para fora. Assim, a luz atravessaria todo o cômodo. No centro
do anel haveria uma torre cujo vigia poderia observar pelo efeito da contraluz o que se passa no interior da
cela. É a inversão do princípio da masmorra que busca trancar, privar da luz e esconder. Embora conserve a
primeira, de modo geral, perverte as demais, pois, coloca o encarcerado sob constante vigilância. Eis abaixo
o modelo idealizado por Bentham em 1791 e a foto do interior da penitenciária de Stateville nos Estados
Unidos onde podemos perceber a aplicação deste modelo prisional.

20
ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de
Criminologia, 2008, pp. 203 e 207.
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(1) (2)
(1) O Panoptico, num desenho de Jeremy Bentham, 1791. Vista e Planta do Panoptico de Bentham
(2) Interior da penitenciária de Stateville (EUA) séc. XX

Como se pode observar, o Panóptico é um arquétipo arquitetônico que permite a observação


constante de todas as celas. Sob a claridade e o olhar atento da torre as silhuetas cativas apresentam seu
teatro de atores solitários. Tal esquema permite evitar as massas aglomeradas dos encarceramentos. Cada
preso em seu lugar, sem comunicação, nem contato com os demais infortunados. Não há convivência,
apenas a certeza da permanente visibilidade das individualidades. Cada indivíduo em sua cela torna-se
objeto de informação, mas, nunca de comunicação. Seu funcionamento repousa sobre essa distribuição do
espaço em sua constante vigilância. Uma geometria simples e econômica ao contrário das antigas fortalezas.
Ao buscar iluminar-se na antiguidade, a modernidade instaurou um paradoxo. A antiguidade pode ser
pensada como uma sociedade do espetáculo, pois colocava um pequeno número de objetos, indivíduos
objetados, sob o olhar de uma multidão. Na modernidade se invertem as personagens: a multidão passa ser
objeto de uns poucos.21 Isso porque o Panoptico não se reduz apenas a uma arquitetura, mas uma forma de
governo, um diagrama do poder destinado a se difundir no corpo social.
Para Foucault, o panoptismo é um modo de ver, se relacionar e normalizar o corpo social. Este,
como o corpo encarcerado, é recortado, vigiado e regulado; os indivíduos são ordenados, separados e
controlados. É um mecanismo de poder destinado a dirigir as condutas por um poder disciplinar que
produza corpos dóceis. O objetivo último é aumentar sua força econômica e diminuir a política. Trata-se de
dar certa ordem racional à multiplicidade dos indivíduos. Por isso, os movimentos devem ser controlados,
os acontecimentos registrados, o trabalho fiscalizado, os indivíduos rotulados e localizados. A aplicação do
panoptismo na sociedade é múltipla. Serve não apenas ao sistema prisional, mas aos hospitais, aos
manicômios, às fábricas, à polícia, às escolas. Se separando os doentes diminui-se o risco de contaminação,
os loucos separados não se agridem, os operários não divagam, os mendigos são afastados das ruas

21
CASTRO, Edgardo. Op.cit., p. 315.
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diminuindo sua periculosidade, os estudantes são disciplinados e todos fiscalizados, controlados, rotulados,
hierarquizados, promovidos e segregados conforme sua resposta ao regime de verdade imposto.
Não se trata, portanto, de fazer uma análise do Estado e suas instituições. A sociedade disciplinar é
algo que escapa ao Estado. É porque existem os resistentes que há a necessidade de disciplinar. O poder
estatal é mais um poder em meio a tantos outros. Deve-se abolir definitivamente a idéia de um centro
irradiador de poder que fosse capaz de coordenar ou tecer sozinho a malha social, com seus códigos e leis. O
que interessa no método arqueogenealógico é o que motiva a lei, o que está por traz dela, são os conflitos
que a produziram e as razões não ditas. Interessa também os seus efeitos de subjetivação. Que sujeito se
pretende construir? Aonde se quer chegar com isso: Quem ganha e quem perde? Ganha ou perde o quê?
Para Foucault, o poder se exerce na relação em níveis variados e em pontos diferentes da rede social.Esta
nova anatomia do poder aparece de forma astuciosa, como um jogo.
A História como jogo: a guisa de conclusão22
A palavra jogo surge em muitos dos escritos de Michel Foucault como um modo de compreender o
funcionamento da sociedade e das relações humanas. É uma figuração do mundo e a História em seus jogos
múltiplos, inumeráveis, de naturezas diversas e de relações múltiplas. A História vista como jogo, como o
resultado da ação dos homens, tem como pano de fundo e razão de ser as próprias práticas humanas, na
maior parte das vezes, conflituosas.
Nas disputas da vida os homens estabelecem seus jogos: táticas e estratégias que são orientadas para
a arte de viver, em muitos casos sobreviver.Em suas ações os homens disputam os espaçosfísicos e
existenciais. Dominam outros homens pela força e pela palavra, pela imposição ou pelo simples
convencimento. Nestas disputas o discurso encontra-se como instrumento eficaz de poder: ele inventa a
realidade. A vida social inexiste sem o conflito, sem luta por representação da realidade. A cultura é um
campo fértil de imposição de verdades. Os veículos de cultura e informação são instrumentos destes jogos de
poder/saber, que buscam conformar os indivíduos a partir de suas estratégias de convencimento. Foucault
pensou a História mediada pela ação humana, assim como um jogo, na qual estratégias e táticas movem a
criatividade do agir e do reagir.
A História vista como jogo marca a noção de descontinuidade, pois, sua razão de ser não está na
origem, nos sujeitos fundadores ou na teleologia. A História não tem um sentido dado a priori. ŖO que se
encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem Ŕ é a discórdia entre

22
Cf. ALBUQUERQUE JR. Op. Cit., pp. 165-182.
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as coisas, é o disparateŗ.23Ou seja, é o esforço humano de hierarquização. Não existe uma racionalidade,
nem uma finalidade histórica. O sentido da História é seu acontecer. Ela é feita nos seus lances, nas diversas
jogadas que buscam normalizar e subjetivar.
Ao escrever a ŖHistória da Sexualidadeŗ II e III Foucault preocupou-se com os jogos que buscam
conformar os indivíduos, sujeitá-los moralmente. A invenção de identidades para os sujeitos tem uma
importância política fundamental. Até bem pouco tempo havia os Ŗcomunistasŗ. A invenção do comunista
como indivíduo perverso, inimigo da moral, dos bons costumes e da sociedade justificava as intervenções de
força, por mais que extrapolassem o desumano. Hoje muito se fala do Ŗmarginalŗ. Esse indivíduo sem rosto,
muitas vezes, é personificado no morador da comunidade pobre do Rio de Janeiro. A pobreza tem sido
criminalizada em nome do bem estar social. Foucault ensina a desnaturalizar esses jogos de poder que
inventam a realidade e sujeitam os indivíduos. Onde está a verdade nisso? No discurso. Desmonte esta
construção, quebre as palavras, e você encontrará os jogos de poder em suas intencionalidades e motivações,
em sua face nua e sem disfarces.
A História é um saber perspectivo. Nós participamos da história que contamos. Entramos no jogo
para escrever a História. Escrevemos sobre aquilo que ainda nos incomoda. A História é uma máquina
produtora de verdades interessadas. O prazer do historiador não está na descoberta da verdade oculta, mas
na desmontagem das verdades impostas, dos comportamentos exigidos e das conformidades dessacralizadas.
24
ŖNão me diga para permanecer o mesmoŗ. Essa frase de Foucault sobre si mesmo bem poderia ser
atribuída à História.
A história tem por função mostrar que aquilo que é nem sempre foi, isto é, que é
sempre na confluência de encontros, acasos, ao longo de uma história frágil,
precária, que se formaram as coisas que nos dão a impressão de serem as mais
evidentes. Aquilo que a razão experimenta como sendo sua necessidade, ou aquilo
que antes as diferentes formas de racionalidade dão como sendo necessária,
podem ser historicizadas e mostradas as redes de contingência que as fizeram
emergir...25
Assim, o historiador deve estar atento não às causas dos fatos, mas aos elementos que se cruzam,
suas motivações, desejos e encontros. É daí que surgem os acontecimentos. O trabalho do historiador é de
desmontagem, interessa mostrar as peças do jogo em sua dispersão. Isso permite insuflar nova vida aos
relatos,26 desconfiando de tudo que nos chega como natural e verdadeiro.

23
FOUCAULT. Michel. Microfísica do Poder. Op. Cit., p. 18.
24
Idem. A Arqueologia do Saber.Op. Cit., p. 20.
25
FOUCAULT, Michel. Estratégia, Poder-Saber - Ditos e Escritos (Vol. IV). Rio de Janeiro: Forense
Universitaria,2006 , p.499.
26
ALBUQUERQUE JR. Op. Cit., p. 153.
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ISSN 2237-4051
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Foucault propõe três novos usos para a História, novas maneiras de praticá-la que realçam seu
caráter político e subjetivo. O primeiro é o uso paródico ou irônico, que se opõe à História vista como
reminiscência ou conhecimento. É uma história que dessacraliza a realidade e o que dizem que somos. O
segundo é odissociativo e destruidor da identidade, que se opõe à História vista como continuidade e tradição.
Propõe um afastamento da continuidade, o dilaceramento dos modelos de identidade que se impõem do
passado. Por fim, o uso sacrificial e destruidor da verdade, que se opõe à História conhecimento. Uma história
que desconfie de todas as verdades que nos chegam prontas, que suspeite de todas as certezas que nos
chegam sem questionamento. Deve buscar destronar os ídolos, inquietar o pensamento e nos libertar do
peso do passado acrítico.27 Só é possível pensar a História com Foucault se tivermos coragem de
repensarmos a nós mesmos.

Referências Bibliográficas
ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru, SP: Edusc, 2007.

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2008.

BURK, Peter. História e Teoria Social. São Paulo: Editora Unesp, 2002.

FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

__________. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

__________. Estratégia, Poder-Saber - Ditos e Escritos (Vol. IV). Rio de Janeiro: Forense Universitaria,
2006.

__________.A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2005.

__________. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

__________. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.

__________. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

__________.Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

RAGO, Margareth.Foucault, História e Anarquismo. Rio de Janeiro: Achimé, 2004.

TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru-SP: EDUSC, 2000.

27
Ibidem, p. 185.
Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011
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Obra de Referência

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

Rio de Janeiro, 07 a 10 de novembro de 2011


ISSN 2237-4051
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PUBLICAÇÃO DO LABORATÓRIO DE ESTUDOS


DAS DIFERENÇAS E DESIGUALDADES SOCIAIS DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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