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ANTROPOLOGIA, ÉTICA E CULTURA

CURSOS DE GRADUAÇÃO - EAD


Antropologia, Ética e Cultura – Prof. Ms. Eugenio Daniel e Prof. Dr. Sávio Carlos Desan
Scopinho

Meu nome é Eugenio Daniel. Sou formado em Filosofia e Teologia


com especialização em Educação, com ênfase no Ensino e Aprendi-
zagem, e em Filosofia Clínica e Filosofia para criança e Psicopedago-
gia: processo ensino-aprendizagem. Atuo como orientador vocacio-
nal há mais de 30 anos e leciono Filosofia e Antropologia Teológica
em vários cursos. Mestre em Ciências e Práticas Educativas pela
Unifran (SP), sou coordenador geral de Ação Comunitária do Centro
Universitário Claretiano.
E-mail: comunitario@claretiano.edu.br

Meu nome é Sávio Carlos Desan Scopinho. Sou diretor acadêmico


das Faculdades Integradas Claretianas de Rio Claro-SP, onde atuo,
também, como professor, ministrando a disciplina Antropologia
Teológica. Tenho o título de Doutor em Teologia Dogmática pela
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (1995-1997), com a
seguinte tese: "Igreja e ‘Laicato Adulto’: A ‘Teologia do Laicato’ nas
Conferências Gerais do Episcopado e no debate teológico da América
Latina" (1955-1995). Também sou mestre em Filosofia pelo Programa de Mestrado em
Filosofia Social, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (SP). O tema da minha
dissertação, que culminou na publicação de um livro, foi: "Filosofia e Sociedade Pós-
Moderna: a reflexão de Gianni Vattimo para uma compreensão da crise dos paradigmas
da Modernidade". Fiz, ainda, um MBA em Administração Acadêmica & Universitária, nas
Faculdades Integradas Pedro Leopoldo, em Belo Horizonte (MG). O título do Trabalho de
Conclusão de Curso foi "Avaliação Institucional Externa e a Formação do Corpo Docente:
entre a legislação e a realidade". Tenho bacharelado em Teologia pela PUC de Campinas
(1986-1989) e mestrado em Teologia pela Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em
São Paulo (1991-1995), e licenciatura em Filosofia pela PUC de Campinas (1982-1985).
A dissertação de mestrado em Teologia versou sobre o seguinte tema: "A questão
epistemológica nas obras de Juan Luis Segundo e sua contribuição para um estudo crítico
da Teologia que deve ser da libertação".
E-mail: savio@claretianas.edu.br
Prof. Dr. Sávio Carlos Desan Scopinho
Prof. Ms. Eugênio Daniel

ANTROPOLOGIA, ÉTICA E CULTURA

Caderno de Referência de Conteúdo


© Ação Educacional Claretiana, 2010 – Batatais (SP)
Trabalho realizado pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP)

Cursos: Graduação
Disciplina: Antropologia, Ética e Cultura
Versão: jul/2013

Reitor: Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanor Piva


Vice-Reitor: Prof. Ms. Pe. José Paulo Gatti
Pró-Reitor Administrativo: Pe. Luiz Claudemir Botteon
Pró-Reitor de Extensão e Ação Comunitária: Prof. Ms. Pe. José Paulo Gatti
Pró-Reitor Acadêmico: Prof. Ms. Luís Cláudio de Almeida

Coordenador Geral de EAD: Prof. Ms. Artieres Estevão Romeiro


Coordenador de Material Didático Mediacional: J. Alves

Corpo Técnico Editorial do Material Didático Mediacional


Preparação Revisão
Aline de Fátima Guedes Felipe Aleixo
Camila Maria Nardi Matos Rodrigo Ferreira Daverni
Carolina de Andrade Baviera
Talita Cristina Bartolomeu
Cátia Aparecida Ribeiro
Vanessa Vergani Machado
Dandara Louise Vieira Matavelli
Elaine Aparecida de Lima Moraes
Josiane Marchiori Martins Projeto gráfico, diagramação e capa
Lidiane Maria Magalini Eduardo de Oliveira Azevedo
Luciana A. Mani Adami Joice Cristina Micai
Luciana dos Santos Sançana de Melo
Lúcia Maria de Sousa Ferrão
Luis Henrique de Souza
Patrícia Alves Veronez Montera Luis Antônio Guimarães Toloi
Rita Cristina Bartolomeu Raphael Fantacini de Oliveira
Rosemeire Cristina Astolphi Buzzelli Tamires Botta Murakami de Souza
Simone Rodrigues de Oliveira Wagner Segato dos Santos

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução, a transmissão total ou parcial por qualquer
forma e/ou qualquer meio (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação e distribuição na
web), ou o arquivamento em qualquer sistema de banco de dados sem a permissão por escrito do
autor e da Ação Educacional Claretiana.

Centro Universitário Claretiano


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SUMÁRIO

CADERNO DE REFERÊNCIA DE CONTEÚDO


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 9
2 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA.................................................. 10

Unidade  1 – SER HUMANO E SOCIEDADE: CONTEXTO HISTÓRICO


1 OBJETIVOS........................................................................................................... 33
2 CONTEÚDOS........................................................................................................ 33
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE..................................................... 34
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................... 36
5 SER HUMANO..................................................................................................... 39
6 CONTEXTO HISTÓRICO........................................................................................ 41
7 SER HUMANO E SOCIEDADE............................................................................... 51
8 CAMINHOS A PERCORRER................................................................................... 58
9 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS............................................................................. 63
10 CONSIDERAÇÕES................................................................................................. 64
11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 64
12 E-REFERÊNCIA..................................................................................................... 65

Unidade  2 – SER PESSOA – UMA PROPOSTA HUMANISTA


1 OBJETIVOS........................................................................................................... 67
2 CONTEÚDOS........................................................................................................ 67
3 ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNIDADE........................................ 68
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................... 69
5 DIMENSÕES DA PESSOA...................................................................................... 72
6 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS............................................................................. 84
7 CONSIDERAÇÕES................................................................................................. 84
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 85

Unidade  3 – SER PESSOA, ÉTICA E CIDADANIA


1 OBJETIVOS........................................................................................................... 87
2 CONTEÚDOS........................................................................................................ 87
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE..................................................... 88
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................... 89
5 O SER HUMANO COMO PESSOA......................................................................... 90
6 QUESTÃO DA CIDADANIA.................................................................................... 105
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS............................................................................. 114
8 CONSIDERAÇÕES ................................................................................................ 115
9 E-REFERÊNCIAS................................................................................................... 117
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 118
Unidade  4 – ESTRUTURA DO SER HUMANO: SER BIO-PSÍQUICO-
ESPIRITUAL- TRANSCENDENTE
1 OBJETIVOS .......................................................................................................... 119
2 CONTEÚDOS ....................................................................................................... 120
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE..................................................... 120
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 121
5 HOMEM: UM ÚNICO SER E UM ÚNICO SUJEITO................................................. 122
6 REGIÕES ESSENCIAIS DO HOMEM...................................................................... 127
7 HOMINIZAÇÃO.................................................................................................... 135
8 PARALELISMO "PSICOFÍSICO".............................................................................. 138
9 SUJEITO............................................................................................................... 141
10 DIMENSÃO MUNDANA DO SERBIO-PSÍQUICO- ESPIRITUAL............................... 143
11 OS ATOS HUMANOS............................................................................................ 145
12 SER SOCIAL ......................................................................................................... 145
13 PESSOALIDADE E PERSONALIDADE: PARTICIPAÇÃO DO TU................................ 146
14 O SUJEITO ABERTO AO MUNDO......................................................................... 149
15 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS............................................................................ 152
16 CONSIDERAÇÕES................................................................................................ 154
17 E-REFERÊNCIAS................................................................................................... 155
18 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 155

Unidade  5 – CARACTERÍSTICAS DA PESSOA HUMANA, CONSTITUTIVOS


ESSENCIAIS
1 OBJETIVOS........................................................................................................... 157
2 CONTEÚDOS ....................................................................................................... 157
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE..................................................... 158
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................... 159
5 CATEGORIAS PARA COMPREENDER O HOMEM.................................................. 159
6 LIBERDADE.......................................................................................................... 163
7 HISTORICIDADE................................................................................................... 172
8 COMUNICAÇÃO................................................................................................... 172
9 HOMEM: SER HISTÓRICO E VALORES.................................................................. 179
10 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS............................................................................ 186
11 CONSIDERAÇÕES................................................................................................ 188
12 E-REFERÊNCIAS................................................................................................... 188
13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 188

Unidade  6 – A BIOÉTICA E A INTERDISCIPLINARIDADE


1 OBJETIVOS........................................................................................................... 191
2 CONTEÚDOS........................................................................................................ 191
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE..................................................... 192

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


4 INTRODUÇÃO À UNIDADE .................................................................................. 193
5 PONTO DE PARTIDA DA BIOÉTICA MODERNA..................................................... 194
6 BIOÉTICA E INTERDISCIPLINARIDADE.................................................................. 195
7 BIOÉTICA E SUAS FRONTEIRAS EPISTEMOLÓGICAS............................................ 197
8 QUESTÃO AUTOAVALIATIVA................................................................................ 207
9 CONSIDERAÇÕES................................................................................................. 207
10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 208

Unidade  7 – A FINALIDADE DA ÉTICA E A ESSÊNCIA DA MORAL


1 OBJETIVOS........................................................................................................... 209
2 CONTEÚDOS........................................................................................................ 210
3 ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE..................................................... 210
4 INTRODUÇÃO À UNIDADE................................................................................... 211
5 MORAL................................................................................................................ 214
6 ÉTICA NORMATIVA E O FENÔMENO MORAL...................................................... 222
7 QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS............................................................................. 224
8 CONSIDERAÇÕES................................................................................................. 225
9 E-REFERÊNCIAS................................................................................................... 226
10 REFERÊNCIAS BLIBLIOGRÁFICAS......................................................................... 227

Unidade  8 – O HOMEM SER CULTURAL


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 230
2 O HOMEM SER CULTURAL................................................................................... 232
3 CULTURA E EDUCAÇÃO....................................................................................... 233
4 CONSIDERAÇÕES................................................................................................. 234
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 235
6 E-REFERÊNCIAS................................................................................................... 235

APÊNDICE
1 PROJETO EDUCATIVO CLARETIANO..................................................................... 236

ANEXO 1

2 UM SENTIDO PARA A VIDA...................................................................................... 260

ANEXO 2
1 EU ETIQUETA....................................................................................................... 274

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
Caderno de
Referência de
Conteúdo

CRC

Ementa––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Aspectos históricos que envolveram o ser humano e influenciaram a concepção
social, ao mesmo tempo em que a sociedade influenciava a concepção de pes-
soa. As implicações nas diferentes áreas da atuação do ser humano. A maneira
como a sociedade atual concebe e trata o ser humano, bem como as implicações
decorrentes disso. Noção de pessoa a partir do Projeto Educacional Claretiano e
as correlações nas diferentes áreas de atuação do ser humano.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

1. INTRODUÇÃO
Seja bem-vindo, vamos iniciar o estudo da disciplina Antro-
pologia, Ética e Cultura! Teremos muito prazer em desenvolvê-la
com você. Vamos, juntos, descobrir e aprofundar reflexões que se
referem à pessoa humana. Não queremos discutir com você qual-
quer "tipo" de pessoa, nem qualquer estudo sobre a pessoa.
Nossa intenção é analisar como o Centro Universitário Clare-
tiano entende e deseja que seus alunos conheçam, qual é e como é
a pessoa com quem convivemos e ainda vamos conviver e em nosso
ambiente de trabalho
10 © Antropologia, Ética e Cultura

Nesta disciplina, você terá oportunidade de conhecer como


a pessoa foi pensada e tratada nos vários períodos da história. De-
pois, terá oportunidade de analisar como a sociedade atual pensa
e trata a pessoa, qual o seu interesse e a sua proposta para ela.
Por fim, você estudará a proposta de pessoa que o Claretiano acha
mais conveniente para os dias de hoje. Isso envolve o campo edu-
cacional ou qualquer outro, pois, seja qual for o curso que você
faça ou seu ramo de atuação, o ponto de referência ou o destina-
tário daquilo que você está fazendo, ou pretende fazer, é a pessoa.
Como futuro profissional, em qualquer campo, é importante
compreender que você tem uma grande responsabilidade na ma-
neira de entender e tratar as pessoas, pois disso depende o futuro
da sociedade e do mundo, em geral. Conseguiremos construir um
mundo melhor se tivermos um cuidado muito grande com relação
à vida; e o ser humano não pode ficar à mercê de interesses eco-
nômicos, políticos ou sociais. Cabe a cada um de nós contribuir
para a melhoria da vida.

2. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA DISCIPLINA

Abordagem Geral da Disciplina


Prof. Dr. Sávio Carlos Desan Scopinho
Prof. Ms. Eugênio Daniel

Neste tópico, apresenta-se uma visão geral do que será es-


tudado nesta disciplina. Aqui, você entrará em contato com os as-
suntos principais deste conteúdo de forma breve e geral e terá a
oportunidade de aprofundar essas questões no estudo de cada uni-
dade. No entanto, essa Abordagem Geral visa fornecer-lhe o conhe-
cimento básico necessário a partir do qual você possa construir um
referencial teórico com base sólida – científica e cultural – para que,
no futuro exercício de sua profissão, você a exerça com competência
cognitiva, ética e responsabilidade social.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 11

Vamos começar nossa aventura pelo conhecimento da disci-


plina Antropologia, Ética e Cultura?
Inicialmente, é importante recordar que esta é uma discipli-
na institucional, ou seja, todos os cursos do Centro Universitário
Claretiano a têm em sua grade curricular.
O nome pode até parecer estranho e, às vezes, cria receio
em algumas pessoas por remeter ao tema catequese ou à aula de
religião. Mas você perceberá que não é essa a intenção. Embora
nossa Instituição seja confessional, não temos a intenção de fazer
uma aula de catequese.
Uma nova imagem de ser humano
Nossa proposta é mostrar uma nova imagem de ser huma-
no. A sociedade tem uma concepção toda própria do ser humano,
como veremos no decorrer dos nossos estudos. Essa maneira de
tratar o ser humano acabou criando nas pessoas um jeito negativo
de ver a vida, a sociedade, a si mesmo e aos outros seres huma-
nos.
Poderemos perceber que há alternativas e outros modos de
entender a pessoa, utilizando uma visão positiva. E é isso que pro-
pomos para o estudo de nossa disciplina.
Vamos conhecer novas alternativas e buscar juntos novos ca-
minhos e possibilidades de ser e de viver. Um dia uma aluna disse
com toda simplicidade: "As outras disciplinas ensinam a gente a fa-
zer, esta disciplina ensina a gente como ser". E ela expressou muito
bem o que pretendemos.
Com as atividades e interatividades, discutiremos abundan-
temente a maneira de vida das pessoas e como elas estão sendo
tratadas pela sociedade contemporânea. Vamos perceber que o
sistema capitalista em que vivemos nos coloca diante de uma re-
alidade cruel. Com uma ideologia própria, esse sistema criou um
padrão de vida e de entendimento da sociedade conforme os inte-
resses das classes dominantes.
12 © Antropologia, Ética e Cultura

No fundo, o que interessa para as classes dominantes é o


lucro cada vez maior. A riqueza que acompanha esse modo de con-
ceber a sociedade vai fazendo com que as pessoas vivam, cada vez
mais, de modo egoísta, egocêntrico e imediatista.
A pessoa, na visão neoliberal, acaba valendo pelo que produz
e pelo que consome. Ou seja, só quem produz e quem consome tem
seu espaço, pequeno e sem muitas alternativas, na sociedade.
Mas a pessoa não é só isso. Veremos que ela é muito mais do
que uma máquina de produzir e de consumir.
Nosso objetivo, você poderá perceber, é analisar como o ser
humano está sendo tratado pela sociedade atual e, a partir daí,
apresentar a maneira como o Centro Universitário Claretiano pensa
a pessoa e qual a postura que podemos adotar, adiante da socieda-
de neoliberal (ou capitalista) e a postura adotada pela sociedade.
Ainda na disciplina Antropologia, Ética e Cultura, vocês po-
derão analisar, compreender e discutir as influências da sociedade
atual sobre a vida das pessoas e a maneira de construir uma nova
forma de comportar-se no relacionamento consigo mesmo, com
os outros e com o mundo em que vivemos.
Nossa disciplina está dividida em três unidades, além de três
anexos, que apresentam textos para complementar seu estudo,
dentre eles o Projeto Educativo do Centro Universitário Claretiano.
Seu tutor apresentará um roteiro para que todos sigam com mais se-
gurança as propostas que temos para desenvolver nosso trabalho.
Por que estudar esta disciplina?
Talvez, você possa estar se perguntando: "o que esta disci-
plina tem a ver com o que quero estudar?". É preciso entender
que em qualquer área do saber, ou como profissional em qualquer
campo, deve-se compreender a grande responsabilidade na ma-
neira de entender e tratar as pessoas, pois disso depende o futuro
da sociedade e do mundo em geral.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 13

Cabe a qualquer um de nós, educadores ou profissionais de


qualquer área, dar uma parcela de contribuição para a melhoria
da vida.
Em todas as fases da história, o homem quer saber sobre o
fundamento e o sentido do mundo e da vida. Ao querer entender
a si mesmo no seu mundo, na sua história e no conjunto da reali-
dade, ele faz um exercício filosófico.
Na verdade, essa é uma preocupação presente na vida dos
povos em geral.
Vamos dispensar um breve olhar pela história para conhe-
cermos alguns pensamentos significativos do Ocidente, porque é
o que vai interferir diretamente na formação de nossa sociedade e
em nossa maneira de ser e de viver.
A imagem do homem na história
No pensamento grego, o homem é entendido como o eixo
unificador da ordem universal, porém, o que o caracteriza é a pró-
pria essência e a alma.
Aristóteles trata da alma, mas não do homem integral, utili-
zando uma visão psicológica, não antropológica.
O que se percebe no pensamento grego primitivo é uma du-
alidade fundamental da alma espiritual e do corpo material. Para
Platão tudo o que diz respeito à essência e à dignidade do homem
se situa no espiritual. Por isso, em Platão percebemos o dualismo:
espírito e matéria, alma espiritual e corpo material.
No pensamento cristão podemos encontrar a visão de ho-
mem como pessoa. Esta é resultado, sobretudo, da experiência do
diálogo entre Deus e o homem. Mas essa decisão implica na deci-
são e na responsabilidade do ser humano. O diferencial que vamos
perceber aqui é a revelação.
Na Idade Média, uma sociedade teocrática (ou seja: a seguran-
ça estava na fé em Deus), o cristianismo utiliza o pensamento filosófi-
14 © Antropologia, Ética e Cultura

co grego para explicar racionalmente a fé. Para Santo Agostinho, por


exemplo, a alma não tem o mesmo sentido que em Platão, de preexis-
tência, mas se apresenta como livremente criada por Deus.
Santo Tomás de Aquino adota a doutrina de Aristóteles. Para
ele, alma e corpo não são duas substâncias separadas, mas dois
princípios eternos que formam o único e mesmo homem concreto.
No Renascimento, o humanismo predomina. O homem é
olhado como situado neste mundo, cuja referência é Deus e a se-
gurança está na fé nesse Deus. O homem questiona-se sobre seu
ser e o sentido de sua vida.
Mas na Idade Moderna a sociedade torna-se antropocrática
(ou seja: o homem torna-se o centro da sociedade). A submissão
do homem a uma religião é substituída pela autonomia no pensa-
mento humano por meio da razão e da experiência.
Na modernidade surge, portanto, o Racionalismo. O homem
é reduzido a um sujeito pensante, ele é um ser racional e não se
leva em conta o homem total, concreto.
Nesse período, o pensador mais influente é o francês René
Descartes, que continua com o dualismo corpo e alma.
Na Pós-Modernidade, o reflexo de tudo o que está sendo
discutido e pensado: o homem passa por uma autoexperiência
concreta. Agora, o homem se vê diante da vida, da sociedade e de
si mesmo e não encontra mais nenhuma segurança que dê sentido
para sua existência.
Essa fase se caracteriza pela forma materialista de olhar o
mundo, a sociedade e a humanidade. E para o materialismo o ho-
mem é uma realidade material como outra qualquer.
Alguns pensadores dessa forma de pensar são:
Augusto Comte (considerado o pai do positivismo), vê o homem
como um simples objeto do estudo científico natural empírico.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 15

Darwin, com o evolucionismo, afirma que a evolução é fruto


da seleção natural e o ser humano está incluído nessa seleção.
Para Nietzsche, o homem é produto da evolução que levará
ao "super-homem", tudo acontece na livre competição.
Karl Marx e Engels são os pais do materialismo dialético. As
coisas não são estáticas, mas dinâmicas. O princípio é material. O
homem não passa de um conjunto de relações sociais, que, na ver-
dade destroem o sentido da pessoa individual e a torna "função"
dentro do processo da sociedade.
Contudo, nessa época, surgem o Existencialismo e o Persona-
lismo. Entre os pensadores dessas correntes de pensamento estão:
Pascal, que acrescenta à razão o coração. A existência do ho-
mem explica-se por meio do imediatismo da experiência pessoal.
Porém, o homem é jogado contra si mesmo e pode compreender
sua própria existência.
Sartre vai ao extremo. Para ele, a existência humana é con-
duzida à plena nulidade, ou seja, não tem validade alguma.
Você pôde ver, rapidamente, algumas concepções feitas so-
bre o homem no decorrer da história.
Na Unidade 2, vamos estudar como a sociedade atual está
tratando o ser humano.
Já vimos em que implica a situação humana dependendo da
maneira como se olha o ser humano. Durante muitos anos, a socie-
dade ocidental tratou a pessoa de uma maneira não muito boa.
Apesar das mudanças que ocorreram durante cada momen-
to histórico, nota-se que o ser humano, em geral, sempre foi dei-
xado em um plano inferior pela sociedade.
Estamos vivendo numa sociedade neoliberal. O neoliberalis-
mo é um estilo de governar em que o governo central não exerce
influência direta na sociedade, deixando para a iniciativa privada
e a livre concorrência todas as decisões com relação ao mercado
16 © Antropologia, Ética e Cultura

e aos preços. As coisas que estão relacionadas ao social também


saem da responsabilidade do governo.
O neoliberalismo coloca toda a sociedade envolvida em uma
lógica tecnicista, excluindo quem não se adapta a ela.
É um estilo de sociedade que reduz a pessoa numa máquina
de fazer e de consumir, por isso precisamos estar atentos a tudo
o que nos envolve para percebermos se nossa atitude está sendo
tecnicista ou se há espaço para uma forma humanitária de ser e
de agir.
No sistema capitalista no qual vivemos, os atrativos para
uma vida de consumo levam as pessoas a buscarem, desenfrea-
damente, a satisfação ilusória de inúmeras necessidades. É mais
fácil desencadear a perspectiva de uma vida sem objetivo e sem
valores, do que uma vida de esperança e realizações.
É sabido e notório que o sistema capitalista sufoca cada vez
mais os anseios de grande parte da população mundial.
Com a descoberta das ciências modernas, o mundo passou
por profundas transformações. Quando as primeiras sociedades
capitalistas começam a surgir, no final do século XVIII, as pessoas
foram se juntando em torno das fábricas.
Na sociedade pós-moderna, o capitalismo se estabelece
como sistema econômico, influenciando o social e interferindo
no político. Aos poucos o neoliberalismo vai se implantando e de-
monstrando regressão no campo social e político. O individualis-
mo é a tônica constante de todo o seu agir. O raciocínio neoliberal
é tecnicista, pois reduz problemas sociais a questões administrati-
vas, e os problemas da educação em problemas de mercado e de
técnicas de gerenciamento.
Olhando dessa forma, podemos perceber que o ser humano
vale pelo que produz e pelo que consome. Enquanto produz, o ho-
mem tem, ainda, possibilidade de ser considerado pela sociedade,
essa é a ótica tecnicista. Porém, se não produzir só terá lugar se
tiver posses para consumir.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 17

O sistema capitalista considera aquilo que fará que as pes-


soas tenham atitudes nitidamente competitivas visando o lucro.
Numa visão estreita da sociedade e do ser humano, dentro dessa
ótica tecnicista, a pessoa se reduz e seu valor e não é levado em
conta.
O ponto fundamental sobre que precisamos refletir é que
estamos num sistema que prioriza a competição. O individualismo
carrega consigo todo o envolvimento de uma sociedade competiti-
va em que o sucesso individual está acima de qualquer outro valor.
O mercado, de forma contraditória, impulsiona as pessoas
para uma maneira competitiva e individualista de ser e viver.
O ser humano, de maneira geral, não costuma perceber-
-se, conhecer-se e valorizar-se. Esse é um ponto que fica obscuro
quando lemos e falamos de relacionamento.
Finalizando esta etapa, podemos perceber que o homem es-
teve e está diante de uma situação não muito confortável para sua
vida e para o entendimento da sua existência.
O homem como pessoa humana
Vimos que o homem, durante a história, não foi valorizado
como deveria. Queremos, agora, estudar um pouco o sentido da
pessoa e, principalmente, a maneira como o Centro Universitário
Claretiano entende esse sentido, e, ao mesmo tempo, qual a sua
proposta com relação ao tema.
Pretendemos analisar a pessoa na sua totalidade, inserida
num contexto e numa realidade mais amplos. Convidamos, como
Sócrates, o famoso filósofo grego, todos para realizar o desafio que
ele fazia aos cidadãos de sua época: "conhece-te a ti mesmo".
É urgente resgatar o verdadeiro sentido do ser humano. Toda
pessoa que compartilha parte de sua vida com o Claretiano está
convidada a perceber a importância de si mesmo e do outro com
quem compartilha seu saber, sua profissão e sua vida.
18 © Antropologia, Ética e Cultura

No entanto, o Centro Universitário Claretiano tem como par-


te de sua missão o compromisso com a vida e com a formação
integral do ser humano. O objeto de seu Projeto Educativo tem
pelo homem um apreço inigualável, dedicando-lhe um estudo es-
pecial e um jeito próprio de tratar o que está ligado e relacionado
ao humano.
A base da Unidade 3 é o modo Claretiano de ver a pessoa. A
preocupação principal e fundamental é entender como esses con-
ceitos poderão incorporar nosso fazer e nossa maneira de atuar
em nossa profissão, seja ela qual for, e em nossa sociedade. Não
serve a maneira da ideologia capitalista, muito menos o conceito
tecnicista que daí decorre, reduzindo o homem a um objeto que
faz e consome.
O Projeto Educativo Claretiano, preocupado com a pessoa
no sentido em que acabamos de abordar, deixa claro sua posição
frente à situação humana da realidade em que vivemos. Esse pro-
jeto ressalta a educação para a justiça e para o amor. O centro
de toda a preocupação é o homem, pois ele "é um ser único e
irrepetível, constituído das dimensões biológica, psicológica, so-
cial, unificadas pela dimensão espiritual, que é o núcleo da pessoa
humana" (Apêndice, p. 136).
Queremos analisar o homem como um ser multidimensional.
Precisamos olhar a pessoa na sua totalidade se quisermos compre-
endê-la. Olhar uma parte não significa olhar o todo. Por isso, nos-
so olhar antropológico quer olhar a totalidade para compreender
quem é o homem e qual sua responsabilidade neste mundo.
Vamos analisar cada uma dessas dimensões para podermos
ter ideia do compromisso que devemos assumir como membros
integrantes de uma sociedade que busca aperfeiçoar-se e dar sen-
tido à sua existência. Enquanto seres humanos que somos, esta-
mos comprometidos com o bem comum e com cada pessoa em
particular. Nosso compromisso começa em nosso próprio ser, mas
ultrapassa nossa realidade e nos lança diante do outro, da socieda-
de, do mundo e de Deus.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 19

As dimensões da pessoa humana


São quatro as dimensões da pessoa: biológica, psicológica,
social e espiritual.
Quando nos referimos à parte biológica, falamos, natural-
mente, de tudo o que se relaciona ao corpo da pessoa. Sem dú-
vida, é por meio do corpo que o ser humano faz contato com os
outros seres, com o mundo e com Deus, seu Criador.
Como sempre, não podemos deixar de perceber que estamos
inseridos em um contexto social capitalista, neoliberal. Nesse am-
biente, o homem acaba sendo reduzido a um ser que produz e que
consome. Diante desse enfoque, o que acaba tendo valor para esse
sistema de sociedade é a parte do ser humano que está em contato
com o mundo e que possui a força produtiva e consumidora.
Não queremos dizer que o corpo não tenha valor. Pelo con-
trário, achamos e afirmamos que seu valor é inenarrável. É por
meio dele que o homem constrói o mundo, adquire conhecimen-
to, transforma a realidade e consegue dar sentido à sua existência.
Portanto, é necessário cuidar bem do corpo que temos.
No entanto, não é isso que podemos perceber, mas, sim,
uma realidade que explora e expõe o corpo das pessoas a uma si-
tuação ridícula, como em diversos níveis da mídia em que há uma
exploração total da realidade corpórea.
A mídia criou padrões de beleza e de biotipo na moda, nas
novelas, nos programas de televisão, nas revistas etc. Quem, por
uma razão ou por outra, não se sente enquadrado nesses padrões
gasta muito dinheiro para se adequar a eles ou se sente excluído
da convivência geral da sociedade.
É só notar as roupas produzidas pelas grandes grifes. Elas não
são feitas para qualquer pessoa ou qualquer corpo. Quem desejar
"ficar na moda" precisa adaptar o próprio corpo para vesti-las, pois
as grandes grifes não querem qualquer tipo de corpo utilizando
suas roupas.
20 © Antropologia, Ética e Cultura

Do mesmo modo, assistimos, atualmente, a uma corrida


impressionante atrás dos bisturis, dos "Botox" e de toda ou qual-
quer espécie de cirurgia para mudar a estética facial e corporal. Há
uma supervalorização da dimensão corporal em detrimento das
demais.
A dimensão "psicológica" remete-nos ao que os filósofos gre-
gos chamam de anima, que, no português, chamamos alma, aquilo
que dá vida. E o que faz a vida da pessoa acontecer é a sua interiori-
dade. Remetendo novamente ao pensamento filosófico, nos depa-
ramos com o conceito de essência. Mas o que vem a ser essência?
Por essência, entendemos aquilo que faz que o ser seja ele
mesmo. Ou seja, o ser é o que ele é por causa da sua essência, que
o torna um ser único. Só eu sou eu. Só você é você. E o que me faz
ser eu e você ser você é a essência. Não existe outro igual. Eu sou
único. Você é único.
Como afirma Sócrates, o indivíduo é um centro de autocons-
ciência e vontade, por isso é dotado de um poder dinâmico, capaz
de observar, dominar e dirigir todos seus processos psicológicos.
Se tomarmos como exemplo o perfume, sabemos que em
todos eles há elementos químicos, há o álcool, há um fixador etc.
Porém, o que diferencia um perfume do outro é sua essência. E a
quantidade da essência é pouca, mas é ela que faz a diferença e
torna o perfume único. Você já deve ter ouvido a expressão popu-
lar que diz: "nos pequenos frascos, os grandes perfumes".
A essência no ser humano é uma pequena parte do seu ser.
O resto é hereditário e influência social.
Aqui fica a interrogação: como a pessoa conhece e entra em
contato com essa essência? E a resposta vem de forma simples:
quem tem a chave de nosso interior somos nós mesmos. Para co-
nhecê-lo é preciso entrar em contato consigo mesmo através da
reflexão e da meditação. Para isso é preciso prestar atenção em si
mesmo, no seu modo de ser, de pensar e de agir.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 21

Quanto tempo você gasta consigo mesmo? Cinco minutos


por dia? Cinco por semana? Cinco por mês? É por meio desse tem-
po que você consegue perceber e entender quem é você de fato.
Mas há um segundo passo. Além de se conhecer, é preciso
se aceitar na essência. "Tenho erros?"; "Como e o que posso fazer
para corrigi-los?"; "Tenho defeitos?", claro que sim, mas quando
percebemos nossa essência na profundidade, vemos a beleza do
que somos. Aceitar-nos como somos é um passo adiante, mas não
é tudo. Há mais pela frente, é hora de gostar de nós como somos.
Quando consigo dar esses passos, percebo que nossos se-
melhantes são tão importantes quanto eu e que merecem meu
carinho, minha atenção, meu apreço, meu amor. Aí entendemos as
palavras do Cristo referindo-se a um dos dez mandamentos: "Ama-
rás teu próximo como a ti mesmo" (MATEUS, 19, 19).
Quem consegue amar-se na essência, ama o outro, ama o
mundo, ama a natureza, ama o Criador, porque se vê parte do
todo.
O eu do indivíduo é a sua individualidade, é o seu Ser Pes-
soa. É essa a marca do Eu Sou. E a consciência disso é que faz o
indivíduo perceber que ninguém jamais vai ocupar o seu lugar no
mundo. Sua missão no mundo é única. Entrar em contato com seu
núcleo, com seu Ser Interior, é abrir as portas para descobrir a sua
individualidade, a sua importância, o caminho para a autorrealiza-
ção, para a felicidade.
Quanto mais profundo for esse contato com o seu próprio
eu, mais profundo será seu conceito de pertença do todo e a per-
cepção de seu papel na melhora do meio em que vive e do mundo
onde habita.
Não é possível ser feliz sozinho. Quanto mais o indivíduo bus-
ca sua realização pessoal mais ele percebe que ela só acontece na
medida em que se abre para o outro, para o todo, para que todos
tenham vida, e vida em abundância, como quer Jesus Cristo.
22 © Antropologia, Ética e Cultura

Fechar-se em si mesmo é causar morte, não vida. Contribuir


para que haja vida significa estar centralizado, mas aberto, sem
deixar que o meio social tire a possibilidade de autorrealização, a
qual abrirá as portas para que os outros também se realizem e se-
jam felizes. Contribuir para que haja vida é lutar contra tudo aquilo
que impede que a vida esteja ao alcance de todos.
O que caracteriza o indivíduo frente à comunidade é saber
que homem algum é uma ilha e que um necessita do outro para ser
o que é. No contato com as outras pessoas, o indivíduo percebe-se
e vê que é na relação com o outro que ele próprio se identifica.
Na dimensão social, segundo os especialistas, somos o pro-
duto do meio onde nascemos e vivemos, pois recebemos uma car-
ga genética e influência desse meio.
Não devemos esquecer, ainda, que a ideologia do sistema
capitalista influencia nosso pensar, nosso sentir e nosso agir. Por-
tanto, essa carga de influência que recebemos através da família,
da mídia, da escola, do grupo dos amigos etc., confere a nós uma
maneira toda própria de ser.
Além da carga genética, carregamos a influência do meio.
Mas isso não é tudo. Temos algo em nós que nos identifica e nos
torna diferentes. O que vai nos mostrar essa diferença é a forma e
a maneira como olhamos a nós mesmos e nos identificamos com
nosso interior para podermos distinguir o que é próprio de cada
um e o que é influência do meio em que vivemos.
Sabe-se que cada ser humano é um ser único. No entanto,
está inserido num contexto mais complexo, bem mais amplo do
que seu próprio ser, que é a sociedade. Não podemos olhá-lo de
forma distinta, pois estaríamos tirando dele as características que
dão sentido à sua existência.
A pessoa vive em sociedade. Ela não pode e não deve ficar
isolada em sua existência, pois é um ser em constante relação.
Não podemos restringir a análise e a concepção da pessoa huma-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 23

na como costumamos ouvir pela vida afora: o homem é um ser


que nasce, cresce, reproduz, envelhece e morre. Muitas vezes, ou-
vimos crianças e adolescentes fazerem esse tipo de brincadeira.
Mas, na atitude, percebemos que muitas pessoas adultas também
agem como se esse fosse o sentido da vida, fazendo simplesmente
uma leitura biológica, tecnicista e neoliberal da existência. Assim,
valorizam uma parte do ser em detrimento do restante.
E, por fim, há a dimensão espiritual. Mas, antes de tudo, va-
mos entender melhor o significado etimológico da palavra espiri-
tual.
Em outras língua, não existe problema em entender o signifi-
cado dessa palavra. Mas existe um problema na língua portuguesa
por causa do uso equivocado da palavra "espírito" com "e" minús-
culo. As palavras "Espírito" e "Espiritual" só são usadas para o Es-
pírito divino e seus efeitos no homem, e são escritos com "E" mai-
úsculo. Queremos entender, como muitos autores, o sentido dessa
palavra designando uma dimensão particular da vida humana.
Nesse sentido, falamos do espírito como poder de vida, que
tem o poder de animar e não é uma parte acrescentada ao siste-
ma orgânico. Alguns pensamentos filosóficos, aliados a tendências
místicas e ascéticas, separaram espírito e corpo. Como veremos, e
que já foi brevemente abordado em Descartes, a palavra recebeu
a conotação de "mente" e a própria "mente" recebeu a conotação
de "intelecto". O elemento de poder no sentido original de espírito
desapareceu e, finalmente, a própria palavra foi descartada.
A vida em si possui um significado próprio e dá ao ser huma-
no uma expressão de totalidade.
A questão fundamental é como ajudar a pessoa a descobrir-
se e perceber-se dessa forma. Sua existência não está isolada, pois
o ser humano é um ser de relação, relação esta que abrange o seu
eu, o outro, o mundo e a transcendência.
24 © Antropologia, Ética e Cultura

Por isso, constantemente muitos autores chamam atenção


para o cuidado, o respeito, a veneração e a ternura que devemos
ter para com a vida de maneira geral e a pessoa, em particular. É
a vida que garante a todos os seres a razão de seu existir, do seu
ser-no-mundo.
Mas é preciso entrar em contato com algo que está implícito
no homem, o espírito. Alguns indícios mostram a espiritualidade:
a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, o colóquio, a auto-
transcendência etc. Mas o indício mais certo, porém, é a liberdade.
Esta é a condição própria do espírito.
É esse elemento espiritual que envolve o ser humano no
todo. A autoconsciência e a liberdade representam para a pessoa
a capacidade de entender seu papel no mundo.
Com essa dimensão espiritual o homem goza de uma aber-
tura sem limites, infinita. Ele está em busca da plena realização
porque participa dessa esfera espiritual que o coloca em contato
com o infinito.
O Projeto Educativo Claretiano (ver Anexos) afirma que cada
pessoa é o princípio de suas ações, de sua capacidade de governar-
se tendo em vista sua liberdade. Fundamentalmente, o ser huma-
no é livre para se realizar como pessoa e, por isso, responsável
pelo seu projeto pessoal e social de vida.
Quem consegue olhar para si mesmo percebe-se como pes-
soa humana, única e irrepetível, capaz de criar e dar respostas po-
sitivas a seus anseios; essa pessoa tem todas as chances de fazer
uma opção livre e consciente.
A evolução técnica experimentada nos últimos séculos de-
sumanizou o ser humano. No entanto, ele entenderá essa respon-
sabilidade quando adquirir a liberdade de pensamento, quando
aguçar a capacidade de discernimento e puder compreender seus
sentimentos e imaginação.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 25

Unidade e totalidade
Quando tratamos do entendimento sobre a pessoa é impor-
tante notarmos que ela é unidade e totalidade, ao mesmo tempo.
Não podemos tratar o ser humano como se fosse possível dividi-lo
e olhá-lo com um único enfoque. Já que cada pessoa é um ser úni-
co e absolutamente novo, com capacidade de se decidir, de esco-
lher, pois é um ser livre por existência, ao mesmo tempo é um ser
dinâmico, aberto ao outro e à transcendência.
A pessoa consciente da unidade e da totalidade abre espa-
ço para a realização pessoal. Ela compreende seu estar-no-mundo
enquanto compreende o sentido de ser-no-mundo. Só o ser huma-
no goza do privilégio de ter consciência de si mesmo, do seu eu, do
seu ser e do seu existir.
A pessoa precisa perceber que ela constrói seu próprio ser, o
que lhe permite adquirir consciência de si mesmo para conquistar
sua identidade.
Ela busca uma finalidade e um sentido para sua existência.
O que está no cerne de toda a questão é a realização da pessoa, é
o seu ser.
Veja, a seguir, os principais conceitos que irão nortear seu
estudo nesta disciplina. Sempre que estes termos surgirem, tenha
presente o seu significado. Isso facilitará o seu estudo.

Glossário de Conceitos
O Glossário de Conceitos permite a você uma consulta rápi-
da e precisa das definições conceituais, possibilitando-lhe um bom
domínio dos termos técnico-científicos utilizados na área de co-
nhecimento dos temas tratados na disciplina Antropologia, Ética
e Cultura. Por opção pedagógica do autor, os termos do Glossário
não seguem a ordem alfabética, mas a ordem cronológica da im-
portância que cada um dos conceitos adquire ao longo deste ma-
terial. Veja, a seguir, a definição dos principais conceitos:
26 © Antropologia, Ética e Cultura

1) Antropocêntrico: onde o homem é o centro das atenções.


2) Antropologia: do grego άνθρωπος (anthropos), "ho-
mem", e λόγος (logos), "razão" / "pensamento", é a ci-
ência que tem como objeto o estudo sobre o homem
e a humanidade de maneira que abranja todas as suas
dimensões.
3) Cosmos: do grego κόσμος (cósmos): cosmos, mundo. Se-
gundo Burnet em sue Aurora da filosofia grega, primei-
ramente essa palavra designivava a organização de um
exército, mas com o desenvolvimento das sociedades na
Grécia Antiga ela passou a ocupar o lugar do conceito
de καώς (caos) para designar a organização do universo.
Isso ocorreu mais ou menos ao mesmo tempo em que se
dava a famosa passagem "do Mito ao Lógos".
4) Idealismo: corrente de pensamento que reduz toda a
existência a ideias ou considera que toda a existência se
determina pela consciência.
5) Holístico: significa totalidade. Considerar o todo levando
em consideração as partes e suas inter-relações.
6) Logos: do grego λόγος (logos): razão, pensamento. Tudo
o que se refere ao conhecimento, estudo.
7) Mecanicista: a Escola Mecanicista procura explicar os fenô-
menos sociais por analogia com os fenômenos físicos. Vê o
universo como se fosse uma máquina. Peças discretas inte-
ragem no espaço e no tempo e quando alguma força atua
sobre elas o resultado é uma sequência de ações e reações
em cadeia. Nessa corrente de pensamento o homem é visto
exclusivamente como sendo um elemento que reage quan-
do se lhe aplicam forças; em outras palavras, as atividades só
ocorrem em resposta a forças que lhe foram aplicadas.
8) Modernidade: refere-se à época moderna, ou seja, pe-
ríodo entre o século 15 e 18. Essa época é marcada pela
descoberta científica e pelo novo rumo que a sociedade
ocidental tomou.
9) Neoliberalismo: é uma corrente de pensamento que de-
fende a absoluta liberdade de mercado a não interven-
ção estatal sobre a economia.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 27

10) Pragmatismo: Corrente de pensamento filosófico que


adota como critério da verdade a utilidade prática, iden-
tificando o verdadeiro como útil; senso prático.
11) Racionalismo: Trata-se da doutrina que atribui exclusiva
confiança na razão humana como instrumento capaz de
conhecer a verdade. O pensamento é a única fonte de
conhecimento (verdade absoluta). Para os racionalistas
o tipo de conhecimento que é verdadeiro é o que pro-
vêm da razão, do pensamento.

Esquema dos Conceitos-chave


Para que você tenha uma visão geral dos conceitos mais impor-
tantes deste estudo, apresentamos, a seguir (Figura 1), um Esquema
dos Conceitos-chave da disciplina. O mais aconselhável é que você
mesmo faça o seu esquema ou mesmo o seu mapa mental. Esse
exercício é uma forma de construir o seu conhecimento, ressignifi-
cando as informações a partir de suas próprias percepções.
É importante ressaltar que o propósito do Esquema dos
Conceitos-chave é representar, de maneira gráfica, as relações
entre os conceitos por meio de palavras-chave, partindo dos
mais complexos para os mais simples. Esse recurso pode auxiliá-
-lo na ordenação e na sequenciação hierarquizada dos conteúdos
de ensino.
Com base na teoria de aprendizagem significativa, entende-
se que, por meio da organização das ideias e dos princípios em
esquemas e mapas mentais, o indivíduo pode construir o seu co-
nhecimento de maneira mais produtiva e obter, assim, ganhos pe-
dagógicos significativos no processo de ensino e aprendizagem.
Aplicado a diversas áreas do ensino e da aprendizagem es-
colar (como planejamentos de currículo, sistemas e pesquisas em
Educação), o Esquema dos Conceitos-chave baseia-se, ainda, na
ideia fundamental da Psicologia Cognitiva de Ausubel, que estabe-
28 © Antropologia, Ética e Cultura

lece que a aprendizagem ocorre pela assimilação de novos concei-


tos e de proposições na estrutura cognitiva do aluno. Assim, novas
ideias e informações são aprendidas, uma vez que existem pontos
de ancoragem.
Tem-se de destacar que "aprendizagem" não significa, ape-
nas, realizar acréscimos na estrutura cognitiva do aluno; é preci-
so, sobretudo, estabelecer modificações para que ela se configure
como uma aprendizagem significativa. Para isso, é importante con-
siderar as entradas de conhecimento e organizar bem os materiais
de aprendizagem. Além disso, as novas ideias e os novos concei-
tos devem ser potencialmente significativos para o aluno, uma vez
que, ao fixar esses conceitos nas já existentes estruturas cogniti-
vas, outros serão também relembrados.
Nessa perspectiva, partindo-se do pressuposto de que é
você o principal agente da construção do próprio conhecimen-
to, por meio de sua predisposição afetiva e de suas motivações
internas e externas, o Esquema dos Conceitos-chave tem por
objetivo tornar significativa a sua aprendizagem, transformando
o seu conhecimento sistematizado em conteúdo curricular, ou
seja, estabelecendo uma relação entre aquilo que você acabou
de conhecer com o que já fazia parte do seu conhecimento de
mundo (adaptado do site <http://penta2.ufrgs.br/edutools/ma-
pasconceituais/utilizamapasconceituais.html>. Acesso em: 11
mar. 2010).

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 29

Figura 1 Esquema dos Conceitos-chave da disciplina Antropologia, Ética e Cultura.

Como você pode observar, esse Esquema dá a você, como


dissemos anteriormente, uma visão geral dos conceitos mais im-
portantes deste estudo. Ao segui-lo, você poderá transitar entre
um e outro conceito da disciplina e descobrir o caminho para cons-
truir o seu processo de ensino-aprendizagem. Sem o domínio con-
ceitual desse processo explicitado pelo Esquema, pode-se ter uma
visão confusa do tratamento da temática da Antropologia, Ética e
Cultura proposto pelos autores deste CRC.
O Esquema dos Conceitos-chave é mais um dos recursos de
aprendizagem que vem se somar àqueles disponíveis no ambiente
virtual, por meio de suas ferramentas interativas, bem como àqueles
30 © Antropologia, Ética e Cultura

relacionados às atividades didático-pedagógicas realizadas presen-


cialmente no polo. Lembre-se de que você, aluno EaD, deve valer-se
da sua autonomia na construção de seu próprio conhecimento.

Questões Autoavaliativas
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas sobre os conteúdos ali tratados, as quais podem ser
de múltipla escolha, abertas objetivas ou abertas dissertativas.
Responder, discutir e comentar essas questões, bem como
relacioná-las com Antropologia, Ética e Cultura pode ser uma for-
ma de você avaliar o seu conhecimento. Assim, mediante a re-
solução de questões pertinentes ao assunto tratado, você estará
se preparando para a avaliação final, que será dissertativa. Além
disso, essa é uma maneira privilegiada de você testar seus conhe-
cimentos e adquirir uma formação sólida para a sua prática profis-
sional.

Bibliografia Básica
É fundamental que você use a Bibliografia Básica em seus
estudos, mas não se prenda só a ela. Consulte, também, as biblio-
grafias complementares.

Figuras (ilustrações, quadros...)


Neste material instrucional, as ilustrações fazem parte inte-
grante dos conteúdos, ou seja, elas não são meramente ilustrativas,
pois esquematizam e resumem conteúdos explicitados no texto.
Não deixe de observar a relação dessas figuras com os conteúdos
da disciplina, pois relacionar aquilo que está no campo visual com
o conceitual faz parte de uma boa formação intelectual.

Dicas (motivacionais)
O estudo desta disciplina convida você a olhar, de forma
mais apurada, a Educação como processo de emancipação do ser

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Caderno de Referência de Conteúdo 31

humano. É importante que você se atente às explicações teóricas,


práticas e científicas que estão presentes nos meios de comunica-
ção, bem como partilhe suas descobertas com seus colegas, pois,
ao compartilhar com outras pessoas aquilo que você observa, per-
mite-se descobrir algo que ainda não se conhece, aprendendo a
ver e a notar o que não havia sido percebido antes. Observar é,
portanto, uma capacidade que nos impele à maturidade.
Você, como aluno dos Cursos de Graduação na modalidade
EAD, necessita de uma formação conceitual sólida e consistente.
Para isso, você contará com a ajuda do tutor a distância, do tutor
presencial e, sobretudo, da interação com seus colegas. Sugeri-
mos, pois, que organize bem o seu tempo e realize as atividades
nas datas estipuladas.
É importante, ainda, que você anote as suas reflexões em
seu caderno ou no Bloco de Anotações, pois, no futuro, elas pode-
rão ser utilizadas na elaboração de sua monografia ou de produ-
ções científicas.
Leia os livros da bibliografia indicada, para que você amplie
seus horizontes teóricos. Coteje-os com o material didático, discuta
a unidade com seus colegas e com o tutor e assista às videoaulas.
No final de cada unidade, você encontrará algumas questões
autoavaliativas, que são importantes para a sua análise sobre os
conteúdos desenvolvidos e para saber se estes foram significativos
para sua formação. Indague, reflita, conteste e construa resenhas,
pois esses procedimentos serão importantes para o seu amadure-
cimento intelectual.
Lembre-se de que o segredo do sucesso em um curso na
modalidade a distância é participar, ou seja, interagir, procurando
sempre cooperar e colaborar com seus colegas e tutores.
Caso precise de auxílio sobre algum assunto relacionado a
esta disciplina, entre em contato com seu tutor. Ele estará pronto
para ajudar você.
Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
EAD
Ser Humano e Sociedade:
Contexto Histórico

1
1. OBJETIVOS
• Compreender a realidade e os fatos que marcaram as fa-
ses principais da história.
• Analisar como o ser humano foi tratado nas diversas situ-
ações históricas.
• Compreender a realidade da sociedade capitalista neoli-
beral e como o ser humano é tratado nesse sistema.

2. CONTEÚDOS
• Ser humano, como entendê-lo melhor.
• Contexto histórico, a realidade de cada época e de cada
situação.
• Ser humano e sociedade. Não se pode entender o ser hu-
mano sem entender a sociedade em que ele está inserido.
• Caminhos a percorrer.
34 © Antropologia, Ética e Cultura

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, sugerimos que você
leia atentamente as informações seguintes:
1) Para conhecer as situações históricas, é importante lem-
brar que cada época tem suas características próprias.
Cada realidade é diferente da outra. Para pensar a histó-
ria, precisamos conhecer um pouco mais da realidade de
cada época e as situações que envolvem cada contexto.
2) Concentre-se em compreender o processo cultural e a
experiência vivida em cada época. Se você conseguir
perceber isso, conseguirá entender melhor cada pro-
posta, pois tudo está inserido dentro de um contexto
próprio e peculiar. Não podemos julgar o passado com
o pensamento de hoje. Aliás, nem mesmo podemos jul-
gar o passado. As razões de cada época dependem dos
acontecimentos e pensamentos de cada época.
3) A análise da sociedade capitalista atual dará oportunida-
de para que você compreenda um pouco mais as condi-
ções de vida das pessoas e as influências que interferem
no pensar, no sentir e no agir do ser humano. Por isso,
na medida do possível, leia os livros indicados na Biblio-
grafia. Acima de tudo, discuta os assuntos nos Fóruns,
coloque suas dúvidas para seu tutor, enfrente o desafio
de entender cada situação dentro do contexto próprio.
4) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia dos pensado-
res cujo pensamento norteia o estudo desta disciplina.
Para saber mais, acesse os sites indicados.

René Descartes (1596-1650)


Nasceu de uma família nobre dedicada à medicina e ao co-
mércio. Os Descartes se fixaram em La Haye, Tourenne. Seu
pai se chamava Joaquim e era conselheiro do Parlamento
britânico. René tinha uma saúde frágil e era cuidado por sua
avó. Entrou no colégio jesuíta de Le Flèche, que havia sido
fundado dois anos antes, mas já adquirira notoriedade. Nes-
se estabelecimento René teve formação filosófica e cientí-
fica. Foi um bom aluno, mas não encontrou a verdade que
procurava, como escreveu no Discurso do Método. Apren-
deu a filosofia pelo método escolástico, e René, apesar de
ser católico, percebeu a diferença existente entre aquele tipo
de ensino antigo e o recente espírito renascentista, baseado

Centro Universitário
Claretiano - REDE DEClaretiano
EDUCAÇÃO
© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 35

nas últimas descobertas e inovações científicas e culturais. Agradava a Descar-


tes a matemática, por dar respostas exatas. A educação em Le Flèche havia
sido religiosa, e havia um clima de atraso e submissão às instituições políticas,
acompanhados de estudos das infindáveis controvérsias teóricas da escolástica.
Portanto Descartes saiu de lá um pouco confuso e decepcionado. Mas apesar
disso recomendava o colégio para os filhos de amigos. Entrou para a Universi-
dade de Poitiers, curso de direito, e se formou. Como não ficou satisfeito com os
conhecimentos adquiridos, resolveu entrar para o exército. Se alistou nas tropas
holandesas de Maurício de Nassau. Descartes tinha uma ligação com a Holanda,
e foi combater os espanhóis. Fez então uma forte amizade com um entusiasta
da Física e da Matemática, Isaac Beckman, jovem médico holandês (imagem e
texto disponíveis em: <http://www.consciencia.org/descartes.shtml>. Acesso em:
15 out. 2010).

Leonardo Boff
Nasceu em Concórdia, Santa Catarina, aos 14 de de-
zembro de 1938. É neto de imigrantes italianos da re-
gião do Veneto, vindos para o Rio Grande do Sul no
final do século XIX. Fez seus estudos primários e se-
cundários em Concórdia-SC, Rio Negro-PR e Agudos-
-SP. Cursou Filosofia em Curitiba-PR e Teologia em
Petrópolis-RJ. Doutorou-se em Teologia e Filosofia na
Universidade de Munique-Alemanha, em 1970. Ingres-
sou na Ordem dos Frades Menores, franciscanos, em
1959.
Durante 22 anos, foi professor de Teologia Sistemática e Ecumênica em Petró-
polis, no Instituto Teológico Franciscano. Professor de Teologia e Espiritualidade
em vários centros de estudo e universidades no Brasil e no exterior, além de
professor-visitante nas universidades de Lisboa (Portugal), Salamanca (Espa-
nha), Harvard (EUA), Basel (Suíça) e Heidelberg (Alemanha).
Esteve presente nos inícios da reflexão que procura articular o discurso indigna-
do diante da miséria e da marginalização com o discurso promissor da fé cristã
gênese da conhecida Teologia da Libertação. Foi sempre um ardoroso defensor
da causa dos Direitos Humanos, tendo ajudado a formular uma nova perspectiva
dos Direitos Humanos a partir da América Latina, com "Direitos à Vida e aos
meios de mantê-la com dignidade".
É doutor honoris causa em Política pela Universidade de Turim (Itália) e em Teo-
logia pela Universidade de Lund (Suécia), tendo ainda sido agraciado com vários
prêmios no Brasil e no exterior, por causa de sua luta em favor dos fracos, dos
oprimidos e dos marginalizados e dos Direitos Humanos.
De 1970 a 1985, participou do conselho editorial da Editora Vozes. Nesse perío-
do, fez parte da coordenação da publicação da coleção Teologia e Libertação e
da edição das obras completas de C. G. Jung. Foi redator da Revista Eclesiástica
Brasileira (1970-1984), da Revista de Cultura Vozes (1984-1992) e da Revista
Internacional Concilium (1970-1995).
Em 1984, em razão de suas teses ligadas à Teologia da Libertação, apresenta-
das no livro Igreja: Carisma e Poder, foi submetido a um processo pela Sagra-
da Congregação para a Defesa da Fé, ex-Santo Ofício, no Vaticano. Em 1985,
foi condenado a um ano de "silêncio obsequioso" e deposto de todas as suas
36 © Antropologia, Ética e Cultura

funções editoriais e de magistério no campo religioso. Dada a pressão mundial


sobre o Vaticano, a pena foi suspensa em 1986, quando pôde retomar algu-
mas de suas atividades (Imagem: disponível em: <http://www.voltairenet.org/ar-
ticle126328.html>. Acesso em: 29 out. 2010. Texto: disponível em: <http://www.
leonardoboff.com/site/bio/bio.htm>. Acesso em: 29 out. 2010).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Ao analisar o contexto histórico, é possível compreender
como a sociedade, em alguns momentos, tratou o ser humano.
Do mesmo modo, é possível ver como alguns pensadores enten-
deram e se pronunciaram a respeito do ser humano. Contudo, não
se pode deixar de olhar tudo isso dentro do contexto em que ele
vivia, levando em consideração tudo o que acontecia naquela rea-
lidade. Muitos se dispuseram a falar e a tecer alguns comentários
a respeito do ser humano. É importante analisar algumas concep-
ções, de algumas épocas para entender alguns pensamentos que
norteavam as atitudes e as ações da sociedade e quais as influên-
cias que esses pensamentos exerciam na vida das pessoas e da
sociedade em geral.
Interessa notar que a concepção a respeito do conceito que
se criava ou que se criou sobre a pessoa influenciou a maneira de
ser e de agir da sociedade em cada época determinada. Ou o con-
trário. Aquilo que se pretendia da sociedade e para a sociedade
acabava criando uma concepção a respeito do ser humano. A ma-
neira como o ser humano era tratado dependia, muitas vezes, do
modo como a sociedade era concebida. Isso parece simples, mas
é preciso notar as diferenças na concepção de homem que tive-
mos em cada momento da história, para que se possam compre-
ender os fatos de forma clara. Ao conseguir enxergar todos esses
mecanismos, pode-se entender a relação existente entre o modo
de vida da época e os pensamentos que regiam as sociedades em
cada período da história. Aliás, é difícil dizer o que vem primeiro.
Tudo acontece quase ao mesmo tempo: enquanto a situação
da sociedade se apresenta de uma forma ou de outra, as análises vão

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 37

surgindo e as propostas vão sendo feitas. Naturalmente, essas aná-


lises podem provocar mudanças na maneira de pensar e de agir do
homem. E as consequências nem sempre são facilmente percebidas.
Aqui interessa entender o que está relacionado com o ho-
mem em todo esse processo. Serão estudadas algumas teorias que
influenciaram a sociedade em cada período histórico e a maneira
de entender a pessoa. Em contrapartida, é preciso ver as relações
existentes entre essa maneira de entender o homem e as propos-
tas que interferem na sociedade. Esse é um grande desafio.
Antes de prosseguirmos, é importante que você perceba que
tudo está relacionado à Antropologia. Aliás, é o estudo antropoló-
gico que vai tratar desses assuntos. Não se deve, porém, confundir
Antropologia com Humanismo. Estudaremos a antropologia como
forma de compreender o ser humano e a sociedade dentro do
contexto histórico. É importante que você perceba como o homem
busca compreender a si mesmo, pois, ao fazer isso, ele representa
sua experiência original. Enquanto o homem se compreende, ele
representa o todo ou a sua totalidade concreta sem se desligar da
experiência e da compreensão de si mesmo.
O ser humano sempre procurou entender o significado de
sua existência. Desde tempos remotos, ele quis saber sobre sua
existência e sobre a existência do mundo e das coisas ao seu redor.
Preocupou-se em entender os meandros da sociedade e o signifi-
cado de tudo. Percebeu que era uma parte do todo. O todo é com-
plexo, mas é preciso compreender bem o que isso significa.
Sem separar as coisas, sem separar a parte do todo, pois a
parte só tem sentido no todo, assim também é o ser humano. Não
se pode separar o homem em partes. É certo que, em alguns mo-
mentos da história, essa separação vai aparecer, e isso se torna um
enorme problema para as pessoas e para a sociedade. As ideias
mecanicistas, muito presentes na contemporaneidade, atuam des-
sa forma e fragmentam tudo em partes, como se nada (cada coisa
ou cada parte) tivesse sentido isoladamente.
38 © Antropologia, Ética e Cultura

Também é importante perceber que essas coisas não são


percebidas facilmente nem são percebidas por todos. Muitos es-
tudiosos, porém, conseguem analisar essas situações e apontam o
que está por trás dos acontecimentos.
O ser humano é capaz de se inquietar; ele está aberto ao
mundo, e essa abertura se converte em abertura ao ser. Essa ati-
tude explica a liberdade que o ser humano possui e que é própria
dele. O homem é um ser aberto ao mundo e ao ser, podendo per-
ceber a verdade e o valor que há nessa atitude humana. Nisso, o
homem percebe sua essência, isto é, a essência dele se concretiza
na abertura ao mundo e ao ser. Por isso, ele se pergunta sobre sua
própria essência, sobre o que faz no mundo, por que está neste
mundo e qual a razão de sua existência.
Só o homem possui essa capacidade, possibilidade e neces-
sidade; por isso, ele faz a si esse tipo de pergunta. Em outras pa-
lavras, podemos perceber que o homem se tornou um problema
para si mesmo. Sua experiência de vida questionou suas concep-
ções; por isso, começou interrogar-se e procurou respostas.
Como o homem possui a capacidade de questionar-se sobre
sua essência, ele tem a possibilidade de ter consciência de si mes-
mo e, ao mesmo tempo, a capacidade de se compreender. Mas,
como vive em um mundo em que a realidade não favorece a com-
preensão de si mesmo, por causa dos acontecimentos materiais,
ele não consegue ter uma completa autocompreensão.
Todos sabemos quanto é difícil a autocompreensão. Há di-
versos fatores que impedem o auto-olhar: as preocupações diá-
rias, o trabalho, os estudos, a família, os compromissos. Enfim, são
muitas as coisas que impedem a pessoa de olhar para si mesma
para se compreender e compreender os acontecimentos ao seu
redor.
Os questionamentos que o ser humano se faz e sempre se
fez, como "Quem sou?", "Por que estou neste mundo?", "Por que
sou assim?", "Por que as coisas são dessa forma?", ficam, muitas

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 39

vezes, sem respostas e inquietam – às vezes, até incomodam. Isso


é comum a todos os seres humanos. É próprio do homem querer
entender-se.
Esta primeira parte de nosso estudo pretende apresentar al-
gumas concepções a respeito do ser humano. Todavia, é preciso
analisar a sociedade atual para perceber como e por que as coisas
acontecem e que relação tem isso na vida das pessoas. Essa influ-
ência da sociedade é relevante e de fundamental importância para
entender a vida atual.
Não é possível separar o ser humano da realidade em que
está inserido. Por isso, é de extrema importância analisar como o
sistema da sociedade de hoje atua no ser humano e provoca nele
reações que não são perceptíveis. Analisar a questão da ideologia
vigente é perceber como o ser humano pode tomar consciência
ou não da situação social e como a ideologia consegue camuflar a
realidade e nos mostrar um modo de pensar, de sentir e de agir em
que o ser humano é apresentado de maneira equivocada.
A concepção de homem apresentada pelo sistema dominan-
te nem sempre é compatível com o que ele pretende para si mes-
mo. Por isso, estudar a questão social ajuda a entender a realidade
e faz perceber que é importante ter consciência da situação para
poder traçar o perfil da própria existência.

5. SER HUMANO
Enquanto a sociedade atual olha o ser humano de modo
fragmentado, alguns pensadores acreditam que:
[...] ser homem significa uma pluralidade de dimensões nas quais
não só experimentamos o mundo, senão que nos experimentamos
a nós mesmos [...] o homem é uma totalidade concreta que funda-
menta a totalidade em uma unidade estrutural que contribui para
sua compreensão (CORETH, 1985, p. 39).

No entanto, o todo precisa entender-se a si mesmo.


40 © Antropologia, Ética e Cultura

O homem é uma totalidade e não pode ser visto separada-


mente, fragmentado, como acontece na sociedade atual. É impor-
tante compreender o homem concreto, não um homem fictício,
mas o homem que se pergunta e quer saber quem é. O homem
está dentro do mundo onde vive. Ele não está confinado à sua sub-
jetividade, dentro de si mesmo.
Heidegger (1989) parte do significado de presença e, a partir
daí, propõe compreender e interpretar o ser dentro da realidade
do tempo. A pessoa é vista como parte das transformações e mo-
dificações. Isso implica situá-la em determinado contexto. É pre-
ciso olhar a pessoa dentro do contexto histórico para entender o
processo da constituição do ser.
Dentro desse contexto, a pessoa não pode ser vista de forma
fragmentada, como se fosse simplesmente um número, um mero
consumidor. Do mesmo modo, o ser humano é um ser em constru-
ção. Sendo assim, tem grande potencial para a mudança.
O autor propõe compreender e interpretar o ser dentro da
realidade do tempo. Tudo acontece dentro de determinado contex-
to. O ser está inserido em algum contexto histórico. O ser humano
não é só o seu passado nem só o seu presente, mas podemos per-
ceber que é um projeto de vida, com um potencial em construção,
com um potencial imenso pela frente, ainda não acabado.
Olhar o "ser-no-mundo", como Heidegger, cria a possibilidade
de olhar o ser como um potencial a partir do que ele ainda pode ser:
[...] o homem não se realiza no horizonte do ser, é pelo que se expe-
rimenta sob aspiração do absoluto. Ele só consegue entender-se a si
mesmo se não estiver em relação transcendental com o ser absoluto
e infinito, dito de modo mais concreto, em sua relação com o funda-
mento absoluto, pessoal e divino do ser (CORETH, 1985, p. 42).

É necessário que essa relação ultrapasse os limites do pró-


prio ser para alcançar uma dimensão metafísica do homem, a sua
transcendência, a fim de que haja uma relação com o ser, numa
abertura ao ser em geral ao mesmo tempo em que se abre ao ab-
soluto do ser.

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 41

É preciso se compreender o homem desde o fundamento de


seu ser ao mesmo tempo em que se compreende a totalidade do
ser.

6. CONTEXTO HISTÓRICO
Como vimos, o homem quer saber sobre o fundamento e o
sentido do mundo em que vive. Por meio do pensamento filosófi-
co é possível interrogar-se sobre o princípio de todas as coisas para
entender o fundamento de tudo. Ao querer entender a si mesmo
no seu mundo, na sua história e no conjunto da realidade, ele faz
um exercício filosófico.
Na verdade, essa é uma preocupação presente na vida dos
povos em geral. Em todas as épocas da história pode-se perceber a
preocupação que o ser humano tem quanto à sua origem e sobre a
origem do mundo. Afinal, quais foram as preocupações que envol-
veram as sociedades nos diversos momentos históricos?
Percorrendo alguns desses momentos é possível verificar
certos pontos de vista interessantes e que poderão elucidar nosso
estudo.

O homem no pensamento grego


Para Coreth (1985, p. 45):
A filosofia grega antiga começa a olhar o mundo, o cosmos, o uni-
verso. Pretende estudar o ser, as formas e as leis essenciais das coi-
sas. Estabelece um escalonamento ordenado dos seres que parte
das coisas inanimadas até chegar às formas de vida e culminar nos
modos de ser e de operar do espírito.

No pensamento grego o homem é entendido como o eixo


unificador da ordem universal. No entanto, o que caracteriza e
constitui o homem é sua própria essência e sua alma. Aristóteles
trata da alma, mas não do homem como um todo. Na verdade,
trata de uma psicologia, não de uma antropologia.
42 © Antropologia, Ética e Cultura

O que se percebe no pensamento primitivo grego é que ele


apresenta uma dualidade fundamental da alma espiritual e o cor-
po material:
Para Platão o homem está ordenado por seu espírito para o mun-
do inteligível frente ao mundo aparente e mutável das coisas que
se percebem pelos sentidos. Para ele a alma do homem imortal
pertence ao mundo imutável das ideias e está fundamentalmente
acima do mundo mutável (CORETH, 1985, p. 48).

Tudo o que diz respeito à essência e à dignidade do homem


se situa no espiritual. Platão apresenta o dualismo espírito e maté-
ria, alma espiritual e corpo material do homem.
Aristóteles, mesmo sem superar a visão platônica do ho-
mem, demonstra que a alma espiritual é o princípio interno que
conforma o corpo.
Desde a Antiguidade, o homem é apresentado tentando des-
cobrir sua origem. Essa apresentação de que o homem se reco-
nhece ligado à sua história demonstra como é importante para ele
conhecer sua origem. No pensamento grego, tudo está ligado ao
destino, ou seja, o homem é predeterminado. No entanto, é aí que
ele sente a si mesmo e percebe os acontecimentos do mundo.
Essa afirmação nos remete à doutrina de Heráclito do logos,
à doutrina do ser de Parmênides e ao mundo das ideias de Platão.
Fica demonstrado que o homem se reconhece sob o destino do
absoluto. Boff (2003, p. 61) explica que:
A tradição clássica dos gregos não descobrira a dimensão típica na
qual poderia madurar uma reflexão profunda sobre ser-pessoa. Di-
ficultavam-no as coordenadas de seu horizonte de pensar. Um eixo
destas coordenadas era constituído pelo espírito concebido como
universal, transcendente e divino.

E continua dizendo que:


[...] outro eixo era composto pelo corpo informado pelo espírito,
corpo material, imanente e sujeito de todas as limitações. O ho-
mem é composto de duas grandezas desproporcionais. Pela morte
dar-se-ia a cisão de ambos. Espírito e corpo; o espírito, enfim, se
libertaria dos laços limitadores da matéria e se recolheria em sua
universalidade e primitiva transcendência.

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 43

A tradição grega utiliza-se da dualidade quando trata o ser


humano. Nesse contexto, o espírito tem superioridade sobre o
corpo.

O homem no pensamento cristão


O diferencial no pensamento cristão é a revelação. Tanto no
Antigo Testamento como no Novo Testamento a mensagem é de
salvação e está direcionada para o homem concreto na história.
Essa história é uma história de salvação em um acontecimento que
se desenvolve entre Deus e o homem.
O Cristianismo ensina que o mundo procede da livre palavra
criadora de Deus, que diz "faça-se" (Gênesis 1,3). Mesmo o mal de-
pende de decisão livre e pessoal do homem. E, embora desde o iní-
cio esteja marcado pelo pecado, o homem sabe da ação salvífica de
Deus. Na "encarnação", Ele se revela livre e pessoalmente por meio
de seu filho. O filho de Deus faz-se homem para salvar os homens do
pecado. É essa a obra redentora que revela a vontade do Pai.
Para Agostinho, o livre-arbítrio não é a verdadeira liberdade. Esta,
libertas, é a confirmação da vontade no bem pela graça. De fato,
o homem entregue a si mesmo é impotente para triunfar da con-
cupiscência. O socorro de Deus é necessário para apoiá-lo em sua
ação no sentido do bem. [...] a liberdade é, para Agostinho, es-
sencialmente libertação pela graça e comporta uma gradação: o
homem é tanto mais livre quanto mais se submete ao chamado
da graça e mais participa da sua salvação (BARAQUIM; LAFFITTE,
2007, p. 5-6).

Quando o Cristianismo, na patrística, utiliza o pensamento


grego para explicar racionalmente a fé, não contém o mesmo sig-
nificado, pois "acentua o valor e a dignidade do particular [...] a
vocação divina e sua livre decisão frente ao destino eterno" (CO-
RETH, 1985, p. 53). Por isso, a alma não tem o mesmo sentido pla-
tônico de preexistência, mas apresenta-se como livremente criada
por Deus. Essa é a linha que segue Agostinho.
Tomás de Aquino, adotando a doutrina aristotélica, não segue
o mesmo raciocínio quando trata da alma e do corpo. Para ele, alma
44 © Antropologia, Ética e Cultura

e corpo não são duas substâncias separadas, mas são dois princípios
eternos que formam o único e mesmo homem completo.
No pensamento cristão, o homem está inserido na ordem obje-
tiva e universal que tem seu fundamento em Deus. Cristo revela o ho-
mem ao homem. Os cristãos têm uma ideia muito elevada do que é o
homem, de sua dignidade, de sua realização, de seu chamado a ser filho
de Deus e viver fraternalmente na dignidade do mistério da vida.
Cristo mostra o verdadeiro amor, que é entrega, doação,
uma perda voluntária de liberdade. Mas nele a pessoa é pessoa e
tira o melhor de si.
Os cristãos são considerados grandes humanistas, mas, ob-
viamente, não são os únicos, pois outras pessoas com concepções
diferentes, com sentido comum e com sentido da beleza ou de
justiça compartilham essas convicções.
É possível perceber uma espécie de otimismo ingênuo na so-
ciedade moderna, enquanto ela acredita que é possível vencer o
mal tanto dentro quanto fora de si, apenas com a razão e a educa-
ção; para os cristãos, é necessária a graça de Deus e o amor.

O homem no pensamento da idade moderna


No século 14, com o Renascimento, e, no século 15, na Idade
Moderna, depois de um longo período em que o Teocentrismo era
referência de tudo, a preocupação voltou-se para a pessoa. O An-
tropocentrismo olha o homem situado neste mundo.
Até essa época, a segurança estava na fé em Deus. Desde
o século 4 até o 14, o homem achava-se no centro de um mundo
perfeito, ordenado e claro, fruto de uma fé que lhe dava a seguran-
ça de um Deus que olhava por ele, consequência do pensamento
teocrático que predominava na época. Frei Betto (Anexo I, p. 147)
aponta que:
[...] a última mudança de época foi justamente na "descoberta" da
América, quando o Ocidente passou do período medieval para o
moderno. A pintura de Michelangelo expressa, com genialidade,

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 45

essa chegada de um tempo em que o conhecimento, a epistemolo-


gia, se desloca de uma perspectiva teocêntrica para uma perspec-
tiva antropocêntrica. A rainha das ciências, durante mil anos, no
período medieval, foi a teologia. A rainha das ciências, da moderni-
dade é a física. O período medieval se baseava na fé; o moderno, na
razão. O período medieval se baseava na contemplação das verda-
des reveladas; o moderno, na busca da compreensão da mecânica
deste mundo e no pragmatismo, na transformação deste mundo (o
texto se encontra na íntegra ao final deste CRC no tópico Anexos).

A modernidade mostra o homem sem um lugar assegurado no


mundo, fazendo que ele se retraia cada vez mais sobre si mesmo. Isso
o faz questionar-se sobre o ser do homem e o sentido de sua vida.
O homem passa a ocupar o centro: é o que se chama Antro-
pocentrismo. O problema é que esse homem é um simples sujeito,
não é o centro de uma ordem objetiva do ser, mas o centro de um
mundo de conhecimentos subjetivos.
Frei Betto (Anexo I, p. 149) aponta que a característica da
modernidade:
[...] são duas pernas: a filosofia de René Descartes e a física de Isa-
ac Newton. Descartes, com o "Penso, logo existo", mostrou que a
razão é capaz de decifrar os enigmas do conhecimento. Já contem-
poraneamente a ele, ou um pouco antes, um acontecimento mar-
cou decisivamente a introdução da visão moderna: a astronomia
de Nicolau Copérnico, depois complementada por Galileu Galilei.
Copérnico fez algo de revolucionário, a ponto de hoje se falar de re-
volução copernicana, porque até então as pessoas olhavam o mun-
do com os pés na Terra. Copérnico fez o inverso: como será a Terra
se eu me imaginar com os pés no Sol? A partir dessa mudança, ele
teve uma compreensão completamente diferente do universo, mas
só ousou partilhá-la em seu leito de morte, com medo da Inquisi-
ção. Depois veio Galileu e acabou com a ideia de que a ciência é
baseada no senso comum.

A pretensão é que o ser humano se tornará autônomo. E isso


será possível por meio da racionalidade trazida pelas descobertas
científicas. O desenvolvimento técnico-científico tendeu para esse
novo aporte. Durante o Feudalismo, o homem ficou submisso aos
senhores feudais. Tudo dependia do feudo. Pouco precisava se preo-
cupar com o desenvolvimento da sua vida e da sociedade em geral.
46 © Antropologia, Ética e Cultura

Na modernidade, porém, o homem pode apostar em sua au-


tonomia, pois a maneira como a sociedade está sendo estruturada
lhe permite buscar novas formas de vida (MARTINS, 2009). E Mar-
tins aponta um problema sério sobre a modernidade, a respeito
do homem:
O mundo moderno tem uma concepção de ser humano muito frag-
mentada e mecanicista. Ele apostou piamente na capacidade racio-
nal do homem e rompeu com a realidade transcendente. Contudo,
essa "autonomia" não foi capaz de realizar a existência humana e
solucionar os problemas da humanidade, mas desencadeou uma
crise ética e de sentido (2009, p. 13).

O mesmo autor aponta outras preocupações decorrentes


dessa postura nova que o mundo começa a experimentar: o mun-
do moderno trouxe muito desenvolvimento ao homem, sobretudo
no campo material. Novas descobertas e inventos trouxeram con-
forto às pessoas, que passaram a se apegar cada vez mais aos bens
materiais e às descobertas das ciências.
Com isso, o "ter" passou a ser extremamente valorizado e
desejado. Contudo, a existência humana não se realiza somente
com o "ter". Some-se a isso o fato de que, diante da grande desi-
gualdade social, adquirir os bens da tecnologia não é possível para
maioria da população mundial.
À existência, na modernidade, agrega o "ter" como funda-
mento para o sentido do "viver". Cria-se a ilusão da realização exis-
tencial unida ao material, proveniente da produção técnico-cien-
tífica que se aperfeiçoa a cada dia. Com esse aperfeiçoamento, o
"ter" vai-se modificando, e essa falsa necessidade nunca é suprida.
Estabelece-se uma crise no mundo moderno, pois a satisfação com
o material não é capaz, por si, de dar sentido à vida:
A modernidade jogou o homem dentro de uma crise de sentido: o
ser foi engolido pelo ter, que é superficial, pois nunca toca no cerne
da existência (MARTINS, 2009, p. 15).

A modernidade construiu-se com a supervalorização da ra-


zão, com a capacidade de transformar o todo em suas partes. O
mesmo autor vai além, afirmando que:

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 47

[...] a crise de sentido do ser é enorme. O ser humano na moder-


nidade encontra-se em pedaços, sem saber integrar-se novamente
dentro de uma unidade ontológica capaz de realizá-lo. O homem
definitivamente foi fragmentado com as ciências, a partir de Des-
cartes (2009, p. 17).

Descartes (1596-1650) aponta uma mudança de rumo quan-


do apresenta o dualismo entre corpo e alma; dualismo que, de
duas realidades distintas como se nada tivessem entre si, elimina
qualquer possibilidade de uma ação mútua entre corpo e alma.
Para Descartes, o valor supremo do homem, aquilo por meio
de que ele realizará da melhor maneira possível sua humanidade,
é a plena disposição de um livre-arbítrio cujo bom uso consiste
em privilegiar a clareza do entendimento e em tomar o partido da
razão. Porque é em Descartes que o Racionalismo se estabelece.
O homem é reduzido a um sujeito pensante. Em contrapartida, o
Empirismo inglês impõe-se sob a impressão das ciências da natu-
reza como única realidade objetiva cientificamente demonstrável,
como aparece em John Lock (1632-1704), considerado pai do Em-
pirismo, e David Hume (1711-1766), considerado o maior filóso-
fo empirista inglês, que se apoiam exclusivamente na experiência
sensível.
O Racionalismo entende o homem essencialmente como
um ser racional sem levar em conta o homem total e concreto;
em contrapartida, o Idealismo eleva e absorve a razão finita no
acontecimento espiritual infinito com o qual não adquire seu ple-
no valor à singularidade pessoal do homem na sua liberdade e res-
ponsabilidade.
A Revolução Francesa, com o lema "liberdade, igualdade,
fraternidade", expressa ideais que devem ser considerados pelas
pessoas e pela sociedade. É um novo momento que se inicia. Uma
nova concepção de pessoa, de mundo e de sociedade tem início.
Contudo, a história mostra que o Materialismo científico não acre-
dita, por exemplo, na liberdade. E a Biologia não acredita na igual-
dade ou na fraternidade.
48 © Antropologia, Ética e Cultura

Da mesma forma, a evolução das espécies funciona porque


não há igualdade e porque o mais forte se impõe. É uma sociedade
de competição.
Percebe-se, em contrapartida, que uma grande parte da
cultura moderna já não é capaz de sustentar seus fundamentos,
porque não acredita neles. Menos ainda acredita no valor ou dig-
nidade da vida humana.

Materialismo e Evolucionismo
Enquanto na Idade Média o direcionamento da sociedade
era teocêntrico, da modernidade em diante, o direcionamento
passa a ser antropocêntrico. O homem passa a ser o centro das
preocupações, até que, no século 19, essa preocupação se direcio-
na para a sua autoexperiência concreta.
Historicamente, a tradição considerou o espírito no homem
como aquilo que constituía propriamente sua essência e a carac-
terizava acima de qualquer outra qualidade. No século 19, o Mate-
rialismo opôs-se terminantemente a isso, afirmando que o homem
é uma realidade material como outro ser qualquer.
Com Augusto Comte (1798-1857), essa concepção de pessoa
se tornou forte. Considerado o pai do Positivismo, Comte defende
que o valor está no conhecimento objetivo da realidade, tornando
o homem um simples objeto do estudo científico natural empírico,
psicológico, sociológico. Baraquim e Laffitte (2007, p. 69) apontam
o Positivismo como o movimento que:
[...] lança as bases de uma reorganização mental geral que acabaria
com as conquistas do "espírito positivo" próprio da era industrial. Esse
sistema é também chamado por Comte de "filosofia positiva", que
busca a certeza apenas nas aquisições das ciências e do método destas
– busca de constância observáveis, de relações entre fenômenos e não
de causas absolutas – e se recusa, contra o cientificismo, a separar as
ciências da sua utilidade humana e da sua ancoragem na história.

O Positivismo abre as portas para o Materialismo. Enquanto,


para o Positivismo, só tem valor aquilo que se pode experimentar,
para o Materialismo, tudo é matéria e só existe a realidade material.

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© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 49

No Evolucionismo de Darwin (1809-0882), dá-se uma nova


revolução na imagem do homem. A evolução é fruto da seleção
natural. Na mesma linha de pensamento, Friedrich Nietzsche
(1844-1900) vê no homem um produto da evolução que o levará
ao "super-homem".
Contrário a Darwin, sua afirmação segue o raciocínio de que
a evolução não ocorre de forma mecânica, mas realiza-se na livre
competição entre os homens na vontade de poder. O super-homem
não é um produto do processo mecânico, mas da livre vontade hu-
mana. No Dicionário Universitário dos Filósofos, pode-se ler que:
[...] o super-humano não deve ser compreendido no sentido de
uma etapa próxima na evolução: "A questão não está em saber
que espécie sucederá na história dos seres a espécie dos homens.
O homem é um fim. A questão está em saber que tipo de homem
devemos formar, que tipo de homem querer". Zaratustra ensina
aos homens "o sentido do seu ser": criar, a partir da sua vontade de
poder, um homem que, simultaneamente, supere o homem e con-
sume sua verdade. O super-homem é esse homem superior, cujo
querer emancipado de todo ressentimento, de toda culpa, de toda
negação, assume plenamente o sentido da vida sob todas as suas
formas e a justificativa inclusive no que ela tem de mais ambíguo e
de mais assustador. Duro em relação aos outros e em relação a si
mesmo, livre de espírito e de coração, ele enfrenta então a verdade
com lucidez. Sua felicidade está em vencer a si mesmo. Somente
uma cultura nobre, ligada a uma moral aristotélica, é capaz de edu-
car o homem à super-humanidade e ensinar-lhe a arte de se supe-
rar a si mesmo (BARAQUIM; LAFFITTE, 2007).

Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engles (1820-1895) vão


para o lado do Materialismo dialético. No Materialismo dialético,
não afirmam que as coisas são estáticas, mas dinâmicas; não são
mecânicas, mas dialéticas. No entanto, só existe a realidade mate-
rial, embora não seja matéria estática, unívoca e uniforme; contu-
do, trata-se de um princípio material.
Para Marx, o homem não passa de um conjunto de relações
sociais que destroem a pessoa individual e a tornam uma função
dentro do progresso da sociedade. O indivíduo dilui-se no proces-
so social e histórico.
50 © Antropologia, Ética e Cultura

Em Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), encontramos a


afirmação de que a matéria contém em germe todas as formas da
evolução. Nesse processo, forma-se o campo da vida em todas as
suas manifestações e o campo do pensamento e da consciência
espiritual do homem.

Existencialismo e Personalismo
Blaise Pascal (1623-1662) opõe-se à estreita visão raciona-
lista de Descartes. Pascal soube tomar consciência do trágico da
condição humana, marcada pela finitude e pela morte, da solidão
do homem num universo em que a presença de Deus está excluída
pelo Racionalismo científico. Somente a fé pode salvar o homem
do absurdo e do desespero (BARAQUIM; LAFFITTE, 2007).
No século 20, Sören Kierkegaard (1813-1855) vai mostrar
que o que interessa é a existência, o homem individual e concreto
na totalidade de sua existência pessoal, de sua singularidade e au-
tonomia, de sua liberdade e responsabilidade.
Friedrich Nietzsche (1844-1900) é contrário a tudo isso. Ele
exalta a vida dando a ela um valor supremo, apesar de considerar
a vida humana de uma maneira naturalista, ou seja, de um modo
puramente biológico natural. Para ele, a vida resume-se à vida cor-
poral. Porém, o maior representante dessa corrente de pensamen-
to é Henri Bérgson (1859-1941):
Numa época em que o cientificismo exercia sua tirania sobre os
espíritos, Bérgson propõe restaurar a metafísica em sua vocação de
alcançar o absoluto e de nos transportar por meio da intuição ao
próprio cerne do real. Eclipsado pelas três correntes de pensamen-
to, que são o existencialismo, o marxismo e o estruturalismo, ele
suscita um novo interesse no contexto contemporâneo, que pro-
cura escapar do domínio da filosofia dos conceitos (BARAQUIM e
LAFFITTE, 2007, p. 44).

Na filosofia existencialista, o conceito de existência desem-


penha um papel capital. Trata-se do homem; no entanto, a existên-
cia não é entendida nem analisada racionalmente, mas explica-se
por meio do imediatismo da experiência pessoal, a partir da com-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 51

preensão que o homem tem de si mesmo. Podemos perceber pro-


postas abertamente negativas, como: a finitude e a contingência
do homem, a angústia e a preocupação (Kierkegaard e Heidegger),
o fracasso (Jaspers, 1883-1968), o ser-para-a-morte (Heidegger).
[...] o existente é mergulhado em condições exteriores (naturais,
culturais, históricas) que lhe ocultam o trágico próprio do seu desti-
no. Somente as "situações-limites" – o sofrimento, o erro, o fracas-
so, as lutas, a morte – quebram as evidências tranquilizadoras da
vida cotidiana e levam o existente a aclarar mais profundamente
sua existência (BARAQUIM; LAFFITTE, 2007, p. 158).

No fundo, o que se pretende é mostrar que o homem é jo-


gado contra si mesmo e que ele pode compreender sua própria
existência originária e total.
Sartre (1905-1980) radicaliza o Existencialismo e conduz a existên-
cia humana à plena nulidade, dando-lhe uma conotação que não con-
fere sentido algum. Em Gabriel Marcel (1889-1973), o Existencialismo
cristão acrescenta algum elemento positivo de esperança e confiança.
Apesar de tudo, o homem é apresentado como um puro su-
jeito no sentido do Racionalismo proposto por Descartes ou do
Idealismo de Kant a Hegel. Aparece aqui como homem em seu
mundo. O mundo converte-se em uma categoria antropológica.
O homem, entendendo-se a si mesmo e ao mundo em que
vive, percebe que ambos não se opõem, mas constituem-se numa
unidade dialética. O mundo do homem é um mundo pessoal. Por
um lado, como pessoa individual, o homem possui singularidade
e irrepetibilidade; constitui-se a si mesmo na liberdade, na auto-
decisão e na autorresponsabilidade. Por outro lado, o homem não
vive sozinho; ele vive numa relação constante com o outro e com
o mundo. Ele é um ser social.

7. SER HUMANO E SOCIEDADE


O homem está inserido em uma realidade concreta. Por isso,
a pessoa deve ser analisada dentro da realidade em que vive. O
52 © Antropologia, Ética e Cultura

contexto social influencia a maneira como se olha o ser humano.


Durante muitos anos, a chamada sociedade ocidental tratou a pes-
soa de uma forma que não beneficiou muito a pessoa como tal.
No decorrer da história, em cada época, com características
diferentes, os grupos dominantes determinam o andamento e a
situação da sociedade – seja o poder de um grupo específico, seja
o poder de um grupo bem mais amplo, que nem sempre é iden-
tificado, como é o caso do poder do sistema capitalista. O que se
percebe é que o poder sempre trabalhou para satisfazer o desejo
dos que estão no comando da sociedade. Veja a parábola das rãs:
Num lugar não muito longe daqui havia um poço fundo e escuro
onde, desde tempos imemoriais, uma sociedade de rãs se esta-
belecera. Tão fundo era o poço que nenhuma delas jamais havia
visitado o mundo de fora. Estavam convencidas de que o Universo
era do tamanho do seu buraco. Havia sobejas evidências científi-
cas para corroborar esta teoria e somente um louco, privado dos
sentidos e da razão, afirmaria o contrário. Aconteceu, entretanto,
que um pintassilgo que voava por ali viu o poço, ficou curioso e
resolveu investigar suas profundezas. Qual não foi sua surpresa ao
descobrir as rãs! Mais perplexas ficaram estas, pois aquela estra-
nha criatura de penas colocava em questão todas as verdades já
secularmente sedimentadas e comprovadas em sua sociedade. O
pintassilgo morreu de dó. Como é que as rãs podiam viver presas
em tal poça, sem ao menos a esperança de poder sair? Claro que a
idéia de sair era absurda para os batráquios, pois, se o seu buraco
era o Universo, não poderia haver um "lá fora". E o pintassilgo se
pôs a cantar furiosamente. Trinou a brisa suave, os campos verdes,
as árvores copadas, os riachos cristalinos, borboletas, flores, nu-
vens, estrelas... o que pôs em polvorosa a sociedade das rãs, que
se dividiram. Algumas acreditaram e começaram a imaginar como
seria lá fora. Ficaram mais alegres e até mesmo mais bonitas. Co-
axaram canções novas. As outras fecharam a cara. Afirmações não
confirmadas pela experiência não deveriam ser merecedoras de
crédito, elas alegavam. O pintassilgo tinha de estar dizendo coisas
sem sentido e mentiras. E se puseram a fazer a crítica filosófica,
sociológica e psicológica do seu discurso. A serviço de quem esta-
ria ele? Das classes dominantes? Das classes dominadas? Seu can-
to seria uma espécie de narcótico? O passarinho seria um louco?
Um enganador? Quem sabe ele não passaria de uma alucinação
coletiva? Dúvidas não havia de que o tal canto havia criado muitos
problemas. Tanto as rãs-dominantes quanto as rãs-dominadas (que
secretamente preparavam uma revolução) não gostaram das idéias
que o canto do pintassilgo estava colocando na cabeça do povão.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 53

Por ocasião de sua próxima visita o pintassilgo foi preso, acusado de


enganador do povo, morto, empalhado e as demais rãs proibidas,
para sempre, de coaxar as canções que ele lhes ensinara (ALVES,
1981, p. 119-120).

Apesar das mudanças que ocorreram durante cada momen-


to histórico, pode-se notar que o ser humano, em geral, sempre foi
deixado em um plano inferior pela sociedade.
A análise histórica vista de outro ângulo pode parecer pessi-
mista, demonstrando que o ser humano sempre foi o ponto cen-
tral das preocupações de pensadores, filósofos, religiosos e pesso-
as sensíveis às necessidades que afligiam uma grande parcela da
sociedade.
Há exemplos de muitas pessoas que atuaram corajosamente
na sociedade em que viveram e que souberam analisar os fatos e
tudo o que envolvia a vida humana, independentemente da raça,
da cor, da religião e do lugar social em que se encontravam, e tive-
ram coragem de analisar, questionar e lutar dignamente pela cons-
trução de uma sociedade mais digna e humana.
A história está repleta de pessoas que se dedicaram exclu-
sivamente em favor do bem da pessoa. A situação hoje não é di-
ferente. Ainda há muita gente lutando e trabalhando para dar um
sentido diferente para a sociedade e para a vida.
É urgente resgatar o verdadeiro sentido do ser humano. Toda
pessoa que compartilha parte de sua vida com o Claretiano está
convidada a perceber a importância de si mesma e do outro com
quem compartilha seu saber, sua profissão e sua vida.
Para Boff (2003, p. 61), "a dignidade do homem reside em
ser ele pessoa". Por meio de uma vivência enraizada em conceitos
éticos, a pessoa é convidada a trabalhar em prol de uma socie-
dade mais justa e igualitária, a fim de resgatar a dignidade do ser
humano.
Sem esquecer que, na época atual, o Neoliberalismo colo-
ca toda a sociedade envolvida em uma lógica tecnicista, excluin-
54 © Antropologia, Ética e Cultura

do quem não se adapta a ela. Esse sistema reduz a pessoa a uma


máquina de fazer e consumir. Por isso, exige atenção a tudo o que
envolve o ser humano, a fim de perceber se a atitude está sendo
tecnicista ou se há espaço para uma forma humanitária de ser e
de agir.
Por isso, é importante que haja sempre uma reflexão e uma
inquietação a respeito da postura assumida por quem quer que
seja. Não existem respostas prontas, receitas acabadas. Cada re-
alidade é diferente da outra. Contudo, ninguém nega que o ser
humano precisa ser resgatado em sua dignidade e em seus direitos
e precisa conhecer seus deveres para consigo mesmo, para com o
outro e para com a humanidade em geral.
Independentemente de sua origem racial, de sua cor, de sua
fé e de sua profissão, ele é, antes de tudo, uma pessoa que tem
direitos e deveres. É preciso partilhar reflexão, discutir e descobrir
caminhos, juntos.

A atual sociedade é capitalista


A sociedade capitalista, que camufla a realidade, condiciona
o mercado de trabalho e cria certos tipos de necessidades e, ao
exigir capacidade profissional cada vez mais seleta, deixa a grande
maioria à margem do que almeja (MÜLLER, 1997). Sem uma pers-
pectiva de futuro, toda uma geração pode desorientar-se.
No sistema capitalista, os atrativos para uma vida de consu-
mo levam as pessoas a buscar, desenfreadamente, a satisfação ilu-
sória de inúmeras necessidades; é mais fácil desencadear a pers-
pectiva de uma vida sem objetivo e sem valores do que uma vida
de esperança e realizações.
A descoberta das ciências modernas fez o mundo passar por
profundas transformações e se redefinir. Quando as primeiras so-
ciedades capitalistas começam a surgir, no final do século 18, as
pessoas foram se juntando em torno das fábricas.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 55

Nessa época, o capital passa de comercial e mercantil para


industrial. A busca cada vez maior do lucro cria a necessidade de
construir máquinas cada vez mais sofisticadas. A mão de obra ten-
de a se tornar mais especializada. "A modernidade jogou o homem
dentro de uma crise de sentido: o ser foi engolido pelo ter, que é
superficial, pois nunca toca no cerne da existência" (BOFF, 2003,
p. 15).
Na sociedade pós-moderna, o Capitalismo estabelece-se
como sistema econômico, influenciando o social e interferindo no
político. Aos poucos, o Neoliberalismo vai-se implantando e de-
monstrando regressão no campo social e político. O Individualis-
mo é a tônica constante de todo o seu agir. O raciocínio neoliberal
é tecnicista, pois reduz problemas sociais a questões administrati-
vas e os problemas da educação em problemas de mercado e de
técnicas de gerenciamento.
Siqueira afirma que, dentre os vários pontos negativos da
sociedade pós-moderna, o que mais atinge os aspectos da vida é
a busca por um desempenho, exigindo que as pessoas sejam ope-
racionais ou poderão até desaparecer:
Aqueles que por algum motivo (idade, renda, saúde...) não estive-
rem atendendo às exigências de performance impostas, são des-
prezados pelo sistema, e neles nada se investe. Exemplo claro disso
são os aposentados; seu desempenho já não impulsiona mais a
performance do sistema, e por isso podem até ser considerados
vagabundos (SIQUEIRA, 2000).

Olhando dessa forma, podemos perceber que o ser humano


vale pelo que produz e pelo que consome. Enquanto produz, tem
ainda alguma possibilidade de ser considerado pela sociedade;
essa é a ótica tecnicista. Porém, se não produz nada, só terá lugar
se tiver posses suficientes para consumir.
A ótica utilizada é a da negatividade, pois está calcada na
quantidade sem levar em consideração o equilíbrio da qualidade.
A performance não pode apoiar-se só na competência, mas deve
considerar o desenvolvimento integral do homem, valorizando-o
56 © Antropologia, Ética e Cultura

no seu todo: fazer, ser, refletir, participar e agir autonomamente


(SIQUEIRA, 2010).
Depois do século 15, quando se iniciam as primeiras desco-
bertas científicas, o mundo começa a sofrer uma mudança sem
precedentes no relacionamento entre as pessoas. Nos séculos
seguintes, o desenvolvimento industrial e tecnológico trouxe na
bagagem o individualismo provocado por essa maneira de ser e
de agir. As primeiras sociedades capitalistas, fruto do desenvolvi-
mento econômico industrial, provocaram uma corrida intensa em
busca de satisfações pessoais.
O consumo desenfreado provocado pela incessante busca
das satisfações e desejos individuais deixou transparecer uma rea-
lidade em que o outro é peça descartável. A busca das satisfações
pessoais criou distâncias entre as pessoas.
O sistema econômico e social capitalista, com sua ideologia
predominantemente consumista e que instiga a acumulação de
bens e de poder nas mãos de poucos, provoca uma luta incons-
ciente e sem precedentes no seio da sociedade. É urgente reverter
esse processo.

Relação consigo e com o outro


O ponto fundamental a ser considerado é que o sistema prio-
riza a competição. O individualismo carrega consigo todo o envol-
vimento de uma sociedade competitiva em que o sucesso indivi-
dual está acima de qualquer outro. O grupo perde a importância, o
trabalho em equipe gera desconfiança, pois a ideia de competição
não considera o outro como elemento imprescindível, mas, sim,
como alguém contra quem eu devo lutar.
Essa competitividade vista na ótica capitalista é a responsá-
vel pela guerra econômica travada em todos os âmbitos da socie-
dade. Por essa razão, é importante analisar alguns passos para que
essa corrente seja quebrada e novos paradigmas sejam inseridos
nesse estilo de ser e de viver imposto pelo sistema capitalista.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 57

O mercado, de forma contraditória, impulsiona as pessoas


para um modo competitivo e individualista de ser e viver.
O ser humano, de maneira geral, não costuma se perceber,
conhecer e valorizar. Esse é um ponto que fica um pouco obscuro
quando se trata de relacionamento.
Se a descoberta do outro é necessária nas relações sociais,
a relação consigo mesmo é imprescindível para que haja um rela-
cionamento sadio com o outro e com o mundo. É necessário que
haja uma compreensão profunda nessa relação mais ampla, pois
há uma interligação essencial que não pode ser esquecida.
O sistema capitalista leva em consideração aquilo que fará
com que as pessoas tenham atitudes nitidamente competitivas vi-
sando à competição e ao lucro. Numa visão estreita da sociedade
e do ser humano, dentro dessa ótica tecnicista, o ser humano fica
reduzido, e seu valor é considerado zero:
A visão mecanicista do homem e do mundo separa tudo para poder
entender e, do mesmo modo, tentar resolver os problemas. O ho-
mem não é um ser constituído de fragmentos simplesmente, mas
uma unidade com uma estrutura ontológica. Uma unidade pensan-
te, que sofre influências do meio social e da natureza; uma estrutura
aberta ao transcendente, isto é, ao espiritual. A modernidade enco-
bre essa busca com uma cura paliativa, cura incapaz de tocar o ser.
Incapaz de mostrar o sentido da existência (BOFF, 2003, p. 22-23).

O alto índice de desemprego atinge as pessoas e proporcio-


na um ambiente de incerteza quanto ao futuro, com relação à vida
e com relação à realização pessoal:
Na sociedade justa, ninguém pode ser deixado à mingua ou sem
teto. A primeira exigência é ampla oportunidade de emprego e de
renda, e não a inatividade forçada (GALBRAITH, 1996).

E Martins (2009, p. 17) afirma que:


[...] a crise de sentido do ser é enorme. O ser humano na moder-
nidade encontra-se em pedaços, sem saber integrar-se novamente
dentro de uma unidade ontológica capaz de realizá-lo. O homem
definitivamente foi fragmentado com as ciências, a partir de Des-
cartes.
58 © Antropologia, Ética e Cultura

8. CAMINHOS A PERCORRER
Boff (2000) mostra uma característica que é própria do ser
humano e que precisa ser utilizada quando se trata de construir o
novo. Por isso afirma que:
[...] possuímos a dimensão de romper barreiras, de superar inter-
ditos, de ir para além de todos os limites. É isso que chamamos
de transcendência. Essa é uma estrutura de base do ser humano
(BOFF, 2000, p. 28).

E mais adiante acrescenta:


O que é o ser humano então? É um ser de abertura. É um ser con-
creto, situado, mas aberto. É um nó de relações, voltado em todas
as direções. [...] Ele é um ser em potencialidade permanente. Então
o ser humano é um ser de abertura, um ser potencial, um ser utó-
pico (BOFF, 2000, p. 36).

A situação em que o ser humano atual se encontra não é


própria do humano. Isso faz parte de uma contingência da socie-
dade atual. Por isso, ele pode buscar alternativas. O humano é ca-
paz de fazer acontecer o novo.
O estudo desenvolvido pela UNESCO, apresentado por De-
lors (1999), apresenta quatro pilares para a construção da socie-
dade necessários para que a pessoa possa se adaptar aos novos
tempos: aprender a conhecer (adquirir os instrumentos da com-
preensão); aprender a fazer (para poder agir sobre o meio envol-
vente); aprender a conviver com os outros (a fim de participar de
todas as atividades humanas) e aprender a ser (que é o ponto de
ligação com os outros três).
Sem dúvida, atentos a toda a lógica do mercado, aprender
a conhecer significa estar atento a tudo o que acontece à nossa
volta. Perceber os detalhes daquilo que envolve o ser humano e
as circunstâncias ao seu redor dá à pessoa a capacidade de poder
decidir sobre o que fazer com sua vida e, desse modo, buscar o
caminho mais adequado para alcançar a realização pessoal. Max
Scheler (2003) mostra como isso é possível ao afirmar que

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 59

[...] o homem nunca se aquieta com a realidade que o cerca, sem-


pre ávido de romper as barreiras de seu aqui-e-agora de tal modo,
sempre aspirando a transcender a realidade efetiva que o envolve
– nesta também a sua própria auto-realidade (p. 53).

Nas relações humanas, sempre há riscos. Muitas vezes, po-


de-se fazer uma prévia concepção de uma visão fixa que impede
que seja vista a totalidade das coisas. Essa forma de agir, tendo
uma concepção prévia, sem discussão, impede a compreensão
verdadeira do ser.
É preciso tomar cuidado com as concepções prévias, pois
elas podem colocar em risco as relações humanas. Para superar
isso, é necessária uma constante superação de si mesmo. A socie-
dade e as pessoas estão em construção. Não estão acabadas e não
se realizaram plenamente ainda. Desse modo, podem ser mais do
que já são.
O Materialismo moderno tira das pessoas a necessidade de se
sentirem responsáveis. Embora o ser humano viva uma situação ad-
versa, não há como negar que há muitas possibilidades; há muitas
situações que estão aí esperando uma oportunidade para acontecer.
É preciso ficar atento aos acontecimentos que envolvem a
sociedade. As coisas boas e importantes que estão presentes no
mundo não são muito ressaltadas. Os meios de comunicação so-
cial não mostram os acontecimentos positivos que estão sendo
engendrados no seio da sociedade e, por isso, é preciso que eles
estejam atentos ao que acontece ao seu redor.

Adaptabilidade
O ser humano é um ser capaz de adaptar-se às situações
mais diversas e adversas. A educabilidade permite a ele situar-se
de tal forma que, mesmo nas situações mais difíceis, é possível
encontrar uma forma, uma possibilidade, um atalho para reencon-
trar o caminho ou adaptar-se em outro modo de viver ou em outro
ambiente distinto.
60 © Antropologia, Ética e Cultura

O importante é que a pessoa adquira os instrumentos ne-


cessários para compreender essas situações complexas do mundo
em que vive. Quando a pessoa começa a olhar para si mesma e a
conhecer-se, ela passa a perceber que há espaço para desenvolver
todo o seu potencial criativo. No entanto, duas coisas são essen-
ciais:
• Conhecimento da realidade que a cerca.
• Percepção das potencialidades naturais e existentes em
cada um.
Esse tesouro presente dentro de cada pessoa precisa ser
descoberto e colocado para fora a serviço de seu desenvolvimen-
to pessoal, das pessoas e da sociedade em geral. O exercício do
pensamento ajuda a pessoa a situar-se nesta vida, neste mundo,
nesta sociedade, ajuda a entender o "porquê" do estar aqui e qual
o papel de cada um nesta realidade.
Ao mesmo tempo em que ocupa o pensamento e presta
atenção às coisas, é necessário dirigir essa atenção às pessoas. É
no grupo social que a pessoa encontra a ressonância do seu ser. É
no grupo social que percebe a importância do conhecimento e o
que fazer com isso (DELORS, 1999).
Não basta compreender o que está se passando ao redor.
A pessoa precisa de uma preparação específica para determinada
tarefa ou profissão. Mesmo sabendo que isso não garante um lu-
gar no mercado de trabalho, é necessário aprender, ter habilidade
e competência.
O mercado requer qualificação, conhecimento técnico apro-
fundado e, em alguns casos, especializado, sendo necessária for-
mação profissional comprovada. Ao mesmo tempo, há necessida-
de de uma relação interpessoal mais profunda.
Essa relação interpessoal ocupa um lugar de importância nas
relações de trabalho. Contudo, quando as indústrias começaram a
produzir em série, o relacionamento interpessoal esfriou. Com o

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 61

grande crescimento tecnológico, a automação e novas formas de


produção, o trabalho em equipe é de fundamental importância.
Sennett (2000) chama a atenção para esse "perigo". Toda
a sistemática do trabalho em equipe que envolve o sistema ca-
pitalista torna as pessoas vulneráveis, ou seja, dispensáveis, pois
essa forma de exercer as atividades dentro da empresa mostra que
qualquer pessoa, a qualquer tempo, pode ser substituída por ou-
tra sem que haja prejuízo ao funcionamento da engrenagem.
No entanto, é importante ressaltar que a relação interpes-
soal traz a necessidade de uma relação que eu costumo chamar
de intrapessoal, ou seja, antes mesmo de haver uma relação boa
e agradável com o outro, há necessidade de haver uma relação
muito íntima consigo mesmo.
Isso será parte de estudo posterior. De qualquer forma, o
modo de ser e de viver o relacionamento interpessoal não nasce
com a pessoa; ele é adquirido no dia a dia e é importante para o
crescimento particular e comunitário, pois não é só no ambiente
de trabalho que a pessoa necessita desenvolver um relacionamen-
to bom com os demais.

Autoconhecimento
O primeiro passo compreende um conhecimento de si mes-
mo; e quanto mais profundo esse conhecimento, melhor. Conhe-
cer-se implica conhecer as potencialidades, as aptidões, as dificul-
dades; enfim, a história da existência pessoal.
Esse é um elemento importante, mas não é o único. É preci-
so aceitar-se e, mais que isso, é extremamente necessário gostar
de si mesmo assim como se é. Isso compreende um entendimento
amplo de tudo o que envolve a pessoa. Ao olhar para si mesmo de
maneira positiva, a pessoa descobre o outro.
Durante a guerra fria entre Capitalismo e Comunismo, o ou-
tro era apresentado como inimigo. Devido a esse medo, as rela-
62 © Antropologia, Ética e Cultura

ções interpessoais ficaram comprometidas. Hoje, por causa da vio-


lência generalizada, ainda há certa desconfiança quando se trata
do outro, sem nos esquecermos de que há um agravante muito
profundo: a sociedade competitiva. A ideia de que o outro vai tirar
o meu lugar me faz estar atento aos seus gestos e me coloca numa
situação de desconfiança com relação a ele.
Há uma profunda interdependência entre os seres humanos.
Da mesma forma, essa interdependência se estende à natureza, à
casa de todos os seres.
Essa interdependência entre os seres do mundo interior não
pode ficar esquecida. Há uma necessidade cada vez maior de per-
ceber que a vida das pessoas e a vida do mundo não podem acon-
tecer separadamente.
Essa visão que provoca a descoberta de si mesmo e a desco-
berta do outro oferece uma visão adequada do mundo ao redor do
ser humano. E essa é uma tarefa educacional que não se restringe
só à escola, mas também à comunidade e à família.
Um dos pontos importantes desse novo paradigma é a supe-
ração do individualismo para valorização do que é comum. O que
une é mais importante do que o que separa. A cooperação é mais
importante do que atividades que dividem, que competem e que
distanciam as pessoas.
Dessa forma, as atividades com conotações sociais, que
implicam cooperação entre os membros do grupo, precisam ser
implantadas nos bairros, na ajuda aos menos favorecidos, nos
serviços solidários ou nas ações que olhem os outros como seme-
lhantes, embora sejamos completamente diferentes.

Consciência do eu
O relatório da ONU chama a atenção para a importância de
aprender a ser. Delors (1999) aponta que é necessário levar em
consideração que o processo de caracterização da pessoa consiste

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 63

na consciência que ela tem de si mesma. Isso faz que a pessoa en-
tre em contato com o seu interior.
Nesse contato com o interior, cada um pode perceber mais
completamente como a diferenciação é importante e necessária
no processo do próprio desenvolvimento e no desenvolvimento
do mundo.
Essa consciência do eu, que leva o indivíduo a perceber-se
distinto dos outros seres criados e dos indivíduos da sua mesma
espécie, cria nele a consciência da responsabilidade de ser mais e
melhor. Mas é aí que ele encontra o caminho da autorrealização. A
autoconsciência abre caminho para a autorrealização.
O conceito que cada um faz de si mesmo determina o seu
comportamento. O que faz ou tenta fazer, o que realiza ou tenta
realizar e o relacionamento interpessoal podem estar intimamen-
te relacionados com o conceito de "eu-mesmo" e com os vários
fatores que lhe são afins.

9. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar as questões a se-
guir, que tratam da temática desenvolvida nesta unidade:

1) Quais as principais correntes de pensamento apresentadas nesta unidade?

2) Descreva as fases históricas e os principais fatos relacionados ao estudo da


nossa disciplina.

3) Você compreendeu o sistema capitalista neoliberal? Aponte quais os prin-


cípios que regem esse sistema e como o ser humano é tratado nesse con-
texto.

4) Apresente sua crítica sobre a unidade apontando:


a) Quais os pontos fundamentais apresentados?
b) Que pontos podem ser melhorados?
c) Ela corresponde aos objetivos propostos?
d) É importante para sua formação profissional?
e) É importante para sua formação pessoal?
64 © Antropologia, Ética e Cultura

10. CONSIDERAÇÕES
O objetivo desta unidade não foi aprofundar historicamente
as questões abordadas. Contudo, foi possível mostrar a realidade
e as situações que envolveram a sociedade e o ser humano nos
diferentes períodos da história.
Foi possível perceber, ainda, toda a realidade envolvendo a
sociedade atual, a sociedade em que vivemos, a realidade que en-
volve todo o contexto social, a pessoa inserida nesse contexto e
algumas coisas referentes ao ser humano.
Na próxima unidade, será estudada uma proposta ligada à
maneira como o Centro Universitário Claretiano compreende a si-
tuação que envolve o ser humano. É uma proposta humanista.

11. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALVES, R. O que é Religião? São Paulo: Brasiliense, 1981.
BARAQUIM, N.; LAFFITTE, J. Dicionário universitário dos filósofos. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
BOFF, L. Tempo de transcendência - o ser humano como um projeto infinito. Rio de
Janeiro: Sextante, 2000.
______. O destino do homem e do mundo. Vozes, 2003.
CORETH, E. ¿Que és el hombre? – esquema de uma antropologia filosófica. Barcelona:
Herder, 1985.
DELORS, J. Educação: um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez, 1999.
HEIDEGGER, M. Ser e tempo. São Paulo: Vozes, 1989
GALBRAITH, J. K. A sociedade justa – uma perspectiva humana. Rio de Janeiro: Campus,
1996.
MARTINS, A. A. É importante a espiritualidade no mundo da saúde? São Paulo: Paulus,
2009.
MÜLLER, M. Orientar para un mundo en transformación: jóvenes entre la educación y el
trabajo. Buenos Aires: Bonum, 1997.
SCHELER, M. A posição do homem no cosmos. Rio de Janeiro: Florense Universitária,
2003.
SENNETT, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo
Capitalismo. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Humano e Sociedade: Contexto Histórico 65

12. E-REFERÊNCIA

Site pesquisado
SIQUEIRA, H. S. G. Performance sob uma lógica tecnicista. Disponível em: <www.angelfire.
com/sk/holgonsi/performance.html>. Acesso em 25 set. 2010.
Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
EAD
Ser Pessoa – Uma Proposta
Humanista

1. OBJETIVOS
• E ntender o conceito que o Centro Universitário Claretia-
no possui sobre a pessoa.
• P
erceber como a pessoa faz parte de um contexto social,
porém pode olhar a realidade de forma mais humana.

2. CONTEÚDOS
• Proposta humanista do Centro Universitário Claretiano.
• O ser humano visto como humano.
• As dimensões da pessoa.
• Unidade e totalidade, uma visão humanista.
68 © Antropologia, Ética e Cultura

3. ORIENTAÇÕES GERAIS PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante
que você leia as orientações a seguir:Para estudar esta
unidade, é importante perceber como é desumana a for-
ma como a sociedade capitalista considera e trata o ser
humano Por isso, é importante entender que há outras
maneiras de se ver a pessoa.
2) Observe como a proposta humanista procura apresentar
a realidade existencial de modo humano.
3) Aprofunde-se no conhecimento da proposta humanista
apresentada pelo Centro Universitário Claretiano. Você
perceberá que é possível ser pessoa e viver a realidade
pessoal de forma verdadeira e intensa, numa profunda
união consigo, com o outro e com o Ser Absoluto, que é
Deus.
4) Antes de iniciar os estudos desta unidade, pode ser inte-
ressante conhecer um pouco da biografia dos pensado-
res cujos pensamentos norteiam o estudo desta discipli-
na. Para saber mais, acesse os sites indicados.

Max Scheler (1874-1928)


Filósofo alemão nascido em Munique, de importância
fundamental para a filosofia sociológica. Estudou na Uni-
versität Jena, onde continuou como professor e o tam-
bém filósofo germânico Rudolf Eucken (1846-1926), que
veio influenciá-lo inicialmente, quando este lhe expôs
sua concepção de um mundo ideal. Passou a lecionar
em Munique (1907) e a partir do contato (1910) com dis-
cípulos de Edmund Husserl (1849-1938), impressionou-
-se com o estudo da fenomenologia daquele filósofo e
procurou descobrir a essência das atitudes mentais e a
relação destas mantêm com seus objetos, fundando assim a sua chamada ética
material dos valores. Morou em Berlim (1910-1917), onde começou a escrever.
Trabalhou para o Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1917-1919)
e retomou a atividade acadêmica em Colônia. Rompeu com a igreja católica
por motivos pessoais (1923), chegando a declarar, nunca haver se sentido uma
pessoa católica. Morreu em Frankfurt, aos 53 anos de idade, em plena produção
filosófica. É considerado um filósofo da fenomenologia e seus principais trabal-
hos foram Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik (1913-1916),
Vom Ewigen im Menschen (1921), Wesen und Formen der Sympathie (1923),
Die Wissensformen und die Gesellschaft (1926) e Die Stellung des Menschen
im Kosmos (1928), onde revelou a sua inclinação para o panteísmo. Opôs-se
à ética de Immanuel Kant (1724-1804), por achá-la arbitrária, pois segundo sua

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 69

compreensão, ela não permitia a plenitude e a alegria de vida, uma vez que
Kant considerava o dever como algo fundamental à ética (imagem disponível em:
<http://www.personalismo.org/filosofia-personalista/grandes-maestros/>. Acesso
em: 15 out. 2010. Texto disponível em: <http://www.netsaber.com.br/biografias/
ver_biografia_c_2671.html>. Acesso em: 15 out. 2010).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Nesta unidade, será desenvolvida uma análise da pessoa na
sua totalidade, inserida num contexto mais amplo, englobando-a
numa realidade mais abrangente.
Como Sócrates, o famoso filósofo grego, você está convida-
do a realizar o desafio que ele fazia aos cidadãos de sua época,
"conhece-te a ti mesmo". Como afirma Mondin (1998, p. 8):
O homem não entra neste mundo como uma obra inteiramente
completa, totalmente definida, mas, principalmente, como um
projeto aberto, a ser definido, a ser realizado e que, na definição e
realização de si mesmo, deve ter em conta três coisas: o próximo,
o mundo e Deus.

Por sua vez, Martins (2009, p. 14) acrescenta:


[...] o ser humano é um todo, um ser integral cuja existência é cons-
tituída por todas as suas dimensões, na relação contínua consigo
mesmo, com o outro, com o mundo e com a transcendência...

É importante ao ser humano ter esse olhar holístico. Come-


çando por si mesmo, mas aberto para tudo o que está fora, que
transcende seu próprio eu. Ao entrar em contato com seu eu, a
pessoa lança-se para fora de si e se reconhece como parte do todo.
Não olha para si, para o outro e para o mundo de forma tecnicista,
mas como um ser humano repleto de transcendência, procuran-
do entender sua situação e seu lugar no todo. Ao entender a si
mesmo, quer entender a sociedade em que vive para poder atuar
de forma consciente e positiva, assumindo, corajosamente, o com-
promisso com a vida.
O Projeto Educativo Claretiano preocupa-se com a pessoa no
sentido que foi descrito, deixando clara sua posição diante da situ-
ação humana no contexto da realidade atual e ressaltando a edu-
70 © Antropologia, Ética e Cultura

cação para a justiça e para o amor. O centro de toda a preocupação


é o homem, pois ele "é um ser único e irrepetível, constituído das
dimensões biológica, psicológica, social, unificada pela dimensão
espiritual, que é o núcleo da pessoa humana" (CLARETIANO, 2005,
p. 20) (você poderá ler todo o Projeto Educacional Claretiano que
está em anexo).
Há muito tempo, o conceito de pessoa vem sendo estudado
e construído. É o caso do Centro Universitário Claretiano, que tem
como parte de sua Missão o compromisso com a vida e com a
formação integral do ser humano. Seu Projeto Educativo tem pelo
homem um apreço inigualável, dedicando-lhe um estudo especial
e um jeito próprio de tratar com o que está ligado e relacionado
ao humano.
A base desta segunda unidade é sobre o modo Claretiano
de ver a pessoa. A preocupação principal é entender como es-
ses conceitos poderão incorporar o fazer e a maneira de atuar na
profissão escolhida (seja ela qual for) e em nossa sociedade. Não
serve ao modo da ideologia capitalista, muito menos ao conceito
tecnicista que daí decorre, reduzindo o homem a um objeto que
faz e que consome.
O Claretiano analisa o homem como um ser multidimensio-
nal (que possui dimensões). Na afirmação de Arduini (1989, p. 9)
é possível perceber que "dimensão não é sinônimo de partes. As
partes somadas formam o todo. Mas o todo não resulta da soma
das dimensões. As dimensões é que derivam do todo, que as pre-
cede e funda".
Nós não somos somente seres físico-biológicos: temos sentimen-
tos, vivemos num meio social e numa natureza, temos uma cons-
tituição ontológica e uma abertura à realidade transcendente (o
espiritual) (MARTINS, 2009, p. 37).

Por meio da transcendência, é possível procurar o funda-


mento do mundo e a busca de sentido para a própria existência.
"A capacidade de autotranscender-se (sair de si) é o específico da
pessoa"(BOFF, 2003, p. 64).

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 71

É importante notar que o homem não pode ser visto apenas


sob um ou outro ângulo; pois, dessa forma, não se olha o todo.
Para compreender a pessoa, é preciso enxergá-la na sua totalida-
de. É necessário compreender o ser todo do homem. Olhar uma
parte não significa olhar o todo. Por isso, o olhar antropológico
quer olhar a totalidade para compreender quem é o homem e qual
sua responsabilidade neste mundo. Da mesma forma, quando se
olha a totalidade é possível perceber que o ser humano é único e
irrepetível.
Boff (2003, p. 63) afirma que:
[...] a tradição clássica via no ser-pessoa o momento de indepen-
dência, de ausência de relação necessária para fora, o poder estar
em si e para si sem necessitar para subsistir de outrem. Tal visão
certamente atinou com dimensões verdadeiras e profundas do ser
pessoal. Mas é também incompleta.

Arduini (1989, p. 184) acrescenta:


O homem produz-se, isto é, conduz-se para frente. Atira-se às me-
tas. Lança-se à cata de novas maneiras de ser, de viver, de trabalhar
e de conviver. Em resumo, destina-se. [...] Quando falta finalidade,
desaparece o sentido.

Nesse sentido, a concepção da educação do Claretiano pro-


cura compreender cada ser humano como um ser único.
O processo de humanização aceita cada educando como ser único
e irrepetível, enfeixando num todo suas dimensões biofísicas, psi-
cossociais, espirituais e inserindo-o no contexto histórico (CLARE-
TIANO, 2005, p. 21).

No contexto das dimensões, na descrição da Missão do Cla-


retiano, afirma-se que o homem é um ser único, irrepetível, cons-
truído das dimensões biológica, psicológica, social, unificadas pela
dimensão espiritual, que é o núcleo do ser-pessoa.
Como pessoa, o homem expressa seu ser-espírito na liber-
dade, entendida como capacidade de afirmação, apesar dos con-
dicionamentos e limitações que reforçam sua responsabilidade na
construção da própria existência, cuja plenitude é alcançada pela
superação de si e pela transcendência.
72 © Antropologia, Ética e Cultura

Ao analisar cada uma dessas dimensões, será possível ter


uma ideia do compromisso que se deve assumir como membros
de uma sociedade que busca aperfeiçoar-se e dar sentido à sua
existência. Como humano, o homem está comprometido com o
bem comum e com seu semelhante. O compromisso começa no
próprio ser, mas ultrapassa essa realidade e se lança diante do ou-
tro, da sociedade, do mundo e de Deus.
A análise multidimensional da pessoa faz perceber o com-
promisso existente na condição de ser humano inserido em uma
realidade histórica, que convoca esse ser para ser agente de mu-
dança, em busca de finalidade e sentido para sua vida.

5. DIMENSÕES DA PESSOA

Dimensão biológica
Ao referir-se à dimensão biológica, refere-se, naturalmente,
a tudo que se relaciona ao corpo da pessoa. Sem dúvida, é por
meio do corpo que o ser humano faz contato com os outros seres,
com o mundo e com Deus, seu Criador.
Como sempre, não se pode deixar de perceber que a socie-
dade está inserida em um contexto social capitalista, neoliberal.
Nesse ambiente, envolvidos pela lógica tecnicista, como analisa-
do anteriormente, o homem acaba sendo reduzido a um ser que
produz e que consome. Diante desse enfoque, o que acaba tendo
valor específico é essa parte do ser humano que está em contato
com o mundo e que possui a força produtiva e consumidora.
Um dos problemas fundamentais que aparece com relação
ao corpo é apontado por Scheler (2003, p. 73), quando ele anali-
sa a questão do Dualismo: "O fosso erigido por Descartes entre o
corpo e a alma através de seu dualismo de extensão e consciência
como substâncias fechou-se hoje quase até a palpabilidade a uni-
dade da vida".

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 73

No entanto, apesar da distorção imposta pela atual socie-


dade, não se pode negar que o corpo tem seu valor e que este
deve ser considerado. É por meio dele que o homem constrói o
mundo, adquire conhecimento, transforma a realidade e consegue
dar sentido à sua existência. Portanto, é importante frisar que é
necessário cuidar bem do corpo.
Leloup faz um relato interessante sobre a atenção e o cuida-
do que é preciso dispensar a ele e o respeito que se deve ter com
o ser humano quando comenta que:
O corpo, o imaginal, o desejo, o outro – estamos na presença de
um quatérnio para o qual os Terapeutas no tempo de Filon de Ale-
xandria dirigiam sua atenção e os seus cuidados. Esse quatérnio
depende de uma antropologia em que as diferentes dimensões
do ser humano – corpo, alma, espírito – parecem respeitadas. Os
cuidados do corpo não excluem os cuidados da alma, os cuidados
da alma não dispensam que se leve em consideração a dimensão
ontológica e espiritual do homem (1998, p. 32).

E acrescenta:
Para o terapeuta, o corpo não deve ser visto somente como um
objeto, uma coisa ou uma máquina funcionando com defeito, que
seria mister "consertar". Não; o corpo é corpo "animado". Não há
corpo sem alma, não sendo mais "animado", não merece o nome
de corpo, mas de cadáver (1988, p. 70).

Falar do corpo é falar da necessidade de cuidado, cuidado


esse que requer um olhar diferenciado para si, mas que leva na
direção do outro que, para Boff (2004, p. 33-34), significa:
Mais que um ato; é uma atitude... Representa uma atitude de ocu-
pação, preocupação, de responsabilidade e de envolvimento afeti-
vo com o outro", pois "sem o cuidado ele deixa de ser humano".

Esse é o ideal, mas é notório que as coisas não acontecem


dessa forma no ambiente social capitalista da atual sociedade. É
possível perceber uma realidade que explora e expõe o corpo e as
pessoas de modo ultrajante. Não é difícil perceber que a mídia im-
põe uma exploração total da realidade corpórea em diversos níveis.
Aliás, a mídia criou padrões de beleza e de biotipo. Quem
não se adapta aos padrões fica relegado ao segundo plano. Os pa-
74 © Antropologia, Ética e Cultura

drões de beleza e do corpo estão expostos na moda, nas novelas,


nos programas de televisão, nas revistas etc. São padrões criados
e valorizados, forçando as pessoas a se adequarem a eles. Quem,
por uma razão ou por outra, não se sente enquadrado nesse pa-
drão gasta muito dinheiro para se adequar a ele ou se sente exclu-
ído da convivência geral da sociedade.
É só notar que os tipos de roupas produzidos pelas grifes
(pelo menos, pelas grandes grifes) não são feitas para qualquer
pessoa ou qualquer corpo. Quem desejar precisa adaptar o pró-
prio corpo para vestir aquele tipo de roupa. Aliás, as grandes grifes
não querem qualquer tipo de corpo vestindo as suas roupas. Elas
são feitas para físicos "esculturais", pois é uma forma de fazer pro-
paganda da marca. As pessoas tornam-se "etiquetas ambulantes",
como diz o poeta Carlos Drummond de Andrade (1984).
Do mesmo modo, é impressionante a corrida atrás dos bis-
turis, dos "botox" e de toda espécie de cirurgia para mudanças na
estética facial e corporal. Há uma supervalorização da dimensão
corporal em detrimento das demais. Para uma sociedade assim, a
pessoa vale pelo que aparenta fisicamente. E só em função disso.
Tudo visando à possibilidade de aumentar o lucro daqueles que
possuem os meios de produção em suas mãos.

Dimensão psíquica
A dimensão psíquica remete àquilo que os filósofos gregos
chamam de anima – no Português, "alma", "o que dá vida". O que
faz a vida da pessoa acontecer é sua interioridade; remetendo ao
pensamento filosófico, é deparar-se com o conceito de essência. A
alma da pessoa é sua essência. Mas o que vem a ser essência?
Por essência, entende-se aquilo que faz o ser ser ele mesmo.
Ou seja, o ser é aquilo que ele é por causa da sua essência. É a
essência que o torna um ser único. Só eu sou eu. Só você é você. E
o que me faz ser eu e você ser você é a essência. Não existe outro
igual. Eu sou único. Você é único(a).

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© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 75

Cada um possui um corpo, mas não é o seu corpo. Do mes-


mo modo, o indivíduo possui emoções, mas não é nenhuma des-
sas emoções. O indivíduo tem desejos, mas não são esses desejos.
O indivíduo pensa, estuda e sabe muita coisa, mas não são as coi-
sas que sabe. Como costumava afirmar Sócrates, o indivíduo é um
centro de autoconsciência e vontade; por isso, é dotado de um
poder dinâmico, capaz de observar, dominar e dirigir todos os seus
processos psicológicos.
Entendendo melhor, tomemos como exemplo os perfumes.
Sabemos que, em todos eles, há elementos químicos, tais como o
álcool e a substância que fixa o perfume. Porém, o que diferencia
um do outro é a essência, usada em pouca quantidade, mas que o
diferencia e o torna único. Aliás, quem não ouviu a expressão po-
pular que diz: "nos pequenos frascos, os grandes perfumes"?
Hoje em dia, há alguns cientistas que querem dimensionar o
homem de maneira fracionada, afirmando que ele possui 2% a 5%
de essência. O resto é hereditário e influência social. Alguns até
afirmam que próprio da pessoa não existe nada, ela é 100% influ-
ência do meio social e da herança genética. Mas, ao olhar a pessoa
como um todo, não se pode entendê-la assim. Ela não pode ser
reduzida a frações percentuais, pois é única e irrepetível.
E aqui fica a interrogação: como é que a pessoa conhece e
entra em contato com essa essência? A resposta vem de forma
simples: quem tem a chave de seu interior é a própria pessoa. Para
conhecer seu interior, é preciso que entre em contato consigo
mesma através da reflexão e da meditação. É um constante prestar
atenção em si mesmo, no seu modo de ser, de pensar e de agir.
Pensando nisso, cabe perguntar: quanto tempo você gasta
consigo mesmo? Cinco minutos por dia? Cinco por semana? Cinco
por mês? É por meio desse tempo que se ocupa consigo mesmo
que se consegue perceber e entender quem se é de fato.
Mas há um segundo passo; além de se conhecer, é preciso
aceitar-se como você é na sua essência. Tem erros? Como e o que
76 © Antropologia, Ética e Cultura

fazer para corrigi-los? Tem defeitos? Claro que sim. Mas quando
percebe sua essência na profundidade, percebe a beleza daquilo
que é. Aceitar-se como é define o passo adiante. Mas não é tudo,
há mais pela frente, é hora de gostar de si como você é.
Se não conseguir dar esses passos, não poderá perceber que
os semelhantes são tão importantes como você e merecem seu ca-
rinho, sua atenção, seu apreço, seu amor. Assim é possível enten-
der as palavras de Cristo: "amarás teu próximo como a ti mesmo"
(Mt 22,39). Quem consegue amar-se na essência, ama o outro,
o mundo, a natureza e o Criador, porque se percebe parte desse
todo.
O eu do indivíduo é a sua individualidade, é o seu ser pessoa.
É essa a marca indelével do eu sou. E a consciência disso é que faz
o indivíduo perceber que ninguém vai ocupar seu lugar no mundo;
sua missão no mundo é única. Entrar em contato com o seu nú-
cleo, isto é, com o seu ser interior, é abrir as portas para descobrir
sua individualidade, sua importância, para encontrar o caminho
para a autorrealização, a felicidade.
Quanto mais profundo for esse contato com o seu próprio
eu, mais profundo será seu conceito de pertença do todo; mais
profunda será a percepção de seu papel na melhora do meio em
que vive, do mundo onde habita.
Não é possível ser feliz sozinho. Quanto mais o indivíduo
busca a realização pessoal, mais ele percebe que essa realização só
acontece à medida que se abre para o outro, para o todo, para que
todos tenham vida em abundância, como ensina o Cristianismo.
Essa busca do próprio eu não significa fechar-se em si mes-
mo, mas, sim, perceber e sentir um intenso amor e respeito por
si e por seu corpo e, ao mesmo tempo, uma abertura e um pro-
fundo amor pelo outro, pela natureza, pelo meio ambiente, pelo
universo, pelo todo. É isso que nos une aos outros, é isso que une
ao Criador. Entrar em sintonia consigo, com seu próprio núcleo, é
entrar em sintonia com o outro, é entrar em sintonia com Deus.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 77

Essa unidade é quebrada quando o indivíduo se fecha em si mes-


mo, em uma atitude egoísta, egocêntrica, como ensina e propõe a
lógica tecnicista.
Fechar-se em si mesmo é causar morte, não vida. Contribuir
para que haja vida significa estar centralizado, mas aberto, sem
deixar que o meio tire a possibilidade de autorrealização, a qual
abrirá as portas para que os outros também se realizem e sejam
felizes. Contribuir para que haja vida é lutar contra tudo o que im-
pede a vida de estar ao alcance de todos.
O que caracteriza o indivíduo diante da comunidade é saber
que homem algum é uma ilha, e que um necessita do outro para
ser o que é. No contato com as outras pessoas, o indivíduo perce-
be-se. Ao perceber-se, compreende que é na relação com o outro
que ele próprio se identifica. Contudo, nem sempre isso acontece
de forma consciente e clara.
Scheler (2003, p. 75) afirma que "a vida psicofísica é una – e
esta unidade é um fato que vale para todos os seres vivos; portan-
to, também para os homens". Fazendo uma crítica a Descartes, o
autor ainda afirma, categoricamente, que este:
[...] introduziu na consciência ocidental todo um exército de equí-
vocos da pior espécie acerca da natureza humana. (ele dividiu to-
das as substâncias em "pensantes" e "extensas")... Para Descartes o
mundo não consiste senão em pontos "pensantes" e em um meca-
nismo violento a ser investigado matematicamente (2003, p. 69).

E acrescenta:
[...] os filósofos, os médicos, os pesquisadores da natureza que se
ocupam hoje com o problema do corpo e da alma convergem cada
vez mais para a intuição fundamental: é uma e a mesma vida que
possui uma configuração formal psíquica em seu íntimo, corpórea
em seu ser para os outros (2003, p. 71).

Dimensão social
Conforme alguns pensadores, o ser humano é produto do
meio em que nasce e vive. Ele recebe uma carga genética mui-
78 © Antropologia, Ética e Cultura

to grande. Alguns dizem que essa carga e essa influência do meio


chegam a 95%, outros falam em 98%. Há até alguns que dizem
que a influência do meio é de 100%. Se fosse assim, não haveria
individualidade.
O meio influencia os que vivem nesse ambiente, levando-os
a adquirir os modos da família, do bairro onde vivem, da cidade
etc. Existe grande influência dos amigos que, ao mesmo tempo, é
transmitida ao ambiente.
Não se pode esquecer, ainda, que a ideologia do sistema ca-
pitalista influencia a pessoa no seu pensar, seu sentir e seu agir.
Portanto, essa carga de influência que diariamente é recebida por
meio da família, da mídia, da escola, do grupo de amigos etc. con-
fere à pessoa uma maneira própria de ser.
Apesar da carga genética e da influência do meio, o ser hu-
mano possui algo que o identifica consigo mesmo e o torna dife-
rente. Portanto, o que vai mostrar essa diferença é a forma como
ele olha para si e como ele se identifica com seu interior. Assim,
pode-se distinguir o que é identidade própria e o que é influência
do meio em que vive.
É nesse âmbito que a pessoa humana se encontra. Cada ser
humano é um ser único. No entanto, está inserido num contexto
mais complexo, bem mais amplo do que seu próprio ser.
Cada pessoa humana tem necessidade dos outros: para vir ao mun-
do, para crescer, para nutrir-se, para educar-se, para programar-se
a si mesma e para realizar seu próprio projeto de humanidade. [...]
Cada ser humano nasce, vive e cresce no interior de um grupo so-
cial... (MONDIN, 1998, p. 27).

A pessoa vive em sociedade. Ela não pode e não deve ficar


isolada em sua existência, pois é um ser em relação. Não é apro-
priado restringir a análise e a concepção da pessoa humana, como
popularmente se fala e se ouve pela vida afora: o homem é um
ser que nasce, cresce, reproduz, envelhece e morre. Muitas vezes,
crianças e adolescentes fazem esse tipo de brincadeira, e, na ati-
tude, muitas pessoas adultas também agem como se esse fosse

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 79

o sentido da vida, fazendo, simplesmente, uma leitura biológica.


Assim, valorizam uma parte do ser em detrimento do restante. É
comum valorizar uma dimensão em detrimento das demais.

Dimensão espiritual
O significado etimológico da palavra "espiritual" apresenta
um problema de terminologia específico da língua portuguesa.
O termo estóico para espírito é pneuma, e o latino, spirtus, com
suas derivações nas línguas modernas – no alemão é Geist, em he-
braico ru’ach. Não existe problema semântico nessas línguas, mas
existe um problema no português, por causa do uso da palavra
"espírito" equivocadamente, com um "e" minúsculo. As palavras
"Espírito" e "Espiritual" só são usadas para o Espírito divino e seus
efeitos no homem, e são escritos com "E" maiúsculo. A questão
agora é então: pode ser restaurada a palavra "espírito", designando
uma dimensão particular da vida humana? (TILLICH, 1984, p. 401).

Essa preocupação remete a uma questão fundamental para


o entendimento dessa dimensão da pessoa. O mesmo autor afir-
ma mais adiante, quando aponta o espírito como poder de vida:
[...] espírito é o próprio poder de animar e não uma parte acrescen-
tada ao sistema orgânico. Contudo, alguns desenvolvimentos filosófi-
cos, aliados a tendências místicas e ascéticas no mundo antigo tardio,
separaram espírito e corpo. Nos tempos modernos essa tendência
chegou ao seu auge em Descartes e no empirismo inglês. A palavra
recebeu a conotação de "mente" e a própria "mente" recebeu a co-
notação de "intelecto". O elemento de poder no sentido original de
espírito desapareceu, e finalmente a própria palavra foi descartada.

Martins (2009, p. 37) dimensiona o entendimento sobre a


espiritualidade afirmando que:
[...] quando falamos de espiritualidade, falamos de uma relação com
algo superior à própria materialidade. Não necessariamente estamos
falando da relação com Deus, tampouco com o Deus cristão...

Se não estamos no terreno religioso, então, onde se situa o


entendimento da questão em pauta? O mesmo autor afirma que:
[...] entramos no terreno da filosofia, precisamos considerar a espi-
ritualidade com base na questão da transcendência, uma questão
genuinamente filosófica... No ser humano há uma abertura para as
coisas existentes e uma abertura para seu semelhante, portanto,
80 © Antropologia, Ética e Cultura

um ser-para-as-coisas e um ser-para-o-outro. A relação estabeleci-


da com as coisas se dá no plano da objetividade e a relação com o
outro se dá no plano da intersubjetividade. Contudo, há um tercei-
ro nível de abertura, que ocorre no plano da transcendência. Uma
abertura para o Absoluto... (MARTINS, 2009, p. 37).

A vida em si possui um significado próprio e dá ao ser huma-


no uma expressão de totalidade. O ser humano tem um significa-
do especial e deve ser visto na sua totalidade.
A questão fundamental que devemos analisar é como ajudar
a pessoa a descobrir-se e a perceber-se dessa forma. Quando se tra-
ta de totalidade do ser humano, trata-se das dimensões biológica,
psicológica, social e espiritual. Sua existência não está isolada, pois o
ser humano é um ser de relação. Relação essa que abrange o seu eu,
o outro, o mundo e a transcendência, ocorrendo uma inter-relação
Leonardo Boff (2003), teólogo e escritor, quando fala a res-
peito da vida que envolve o ser humano, especifica as característi-
cas próprias da pessoa que começa com a auto-organização, passa
pela autonomia, pela adaptabilidade ao meio e pela reprodução e
culmina na autotranscendência.
Por isso, constantemente, ele chama a atenção para o cuida-
do, o respeito, a veneração e a ternura que devemos ter para com a
vida de maneira geral e a pessoa em particular. É a vida que garante
a todos os seres a razão de seu existir, do seu ser-no-mundo. Respei-
tar a vida, cuidar dela, tratá-la com veneração e ternura são requisi-
tos inerentes a todos nós que estamos em busca de um sentido.
Entretanto, é preciso entrar em contato com algo que está
implícito no homem: o espírito. Isso não elimina a importância dos
outros aspectos da pessoa, que estão subentendidos no ser como
um todo. Mas o que evidencia essa espiritualidade? Quem nos dá
essa resposta é Mondin (1998, p. 21), quando fala que há:
[...] muitos indícios: a autoconsciência, a reflexão, a contemplação, o
colóquio, a autotranscendência, etc. Mas o indício mais certo, porém, é
a liberdade. Esta é a condição própria do espírito. O espírito, e somente
o espírito é essencialmente livre. [...] o homem possui uma dimensão
interior de natureza espiritual: a alma, a mente e o espírito.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 81

Completando essa afirmação, Betto e Boff acrescentam que


"Espírito é o ser humano na sua totalidade enquanto ser que pensa,
que decide, que tem identidade, que tem subjetividade, é sujeito.
[...] espírito é o modo de ser" (2005, p. 76), pois "espiritualidade
é a transformação que a mística produz nas pessoas, na forma de
olhar a vida, no jeito de encarar os problemas e de encontrar solu-
ções" (2005, p. 28).
Para aprofundar um pouco mais o que significa essa dimen-
são espiritual, é importante verificar o que Mandrioni (1964, p. 53)
escreve quando se refere a ela:
[...] capacidade de reflexão; a plena consciência de si mesmo; a ca-
pacidade de separar a essência universal da existência concreta e
particular; o poder universalizador; o fator da liberdade e o âmbito
indefinido de possibilidades aberto aos atos humanos; o poder de
controlar seus impulsos mais poderosos a fim de ajustar sua conduta
à norma de um ideal percebido e valorizado; o poder de conceitua-
lizar, julgar e raciocinar; a capacidade de captar a ordem [...] o poder
de transcender a relatividade dos atos humanos e alcançar um con-
teúdo permanente, necessário e estável [...] o fato de poder pergun-
tar-se sobre o sentido do "Todo"; a capacidade de construir a ciência;
o sucesso da cultura com a imensidade de valores que concentra...

Max Scheler (2003, p. 35) aponta o espírito como princípio


ao mostrar a diferença entre o homem e o animal:
O espírito é um princípio novo e ele abarca a razão, utilizada pelos
gregos, abarca um determinado tipo de intuição, que ele chama de
intuição dos fenômenos originários ou dos conteúdos essenciais e
abarca os atos volutivos e emocionais (a bondade, o amor, o remor-
so, a veneração, a ferida espiritual, a bem-aventurança, o desespero
e a decisão livre), além disso, designa pessoa como sendo o centro
ativo no qual o espírito aparece no interior das esferas finitas do ser.

No entanto, Scheler ainda acrescenta que o ser "espiritu-


al" está aberto para o mundo. "Espírito é com isso objetividade...
Somente um ser capaz de levar a termo tal pertinência às coisas
"tem" espírito" (2003, p. 36). E acrescenta:
O ato espiritual, como o homem pode realizá-lo... leva ao "recolhi-
mento em si", "consciência de si mesmo por parte do centro espiri-
tual do ato" ou autoconsciência. Isso dá ao homem a possibilidade
de "modelar livremente sua vida" (2003, p. 39).
82 © Antropologia, Ética e Cultura

Por força do espírito o homem é dado a si na autoconsciência e na


objetividade de seus processos psíquicos e de seu aparato senorio-
motor (2003, p. 41).

O espírito envolve o ser humano no seu todo. A autocons-


ciência e a liberdade representam para a pessoa a capacidade de
entender seu papel no mundo. O homem, e só ele, é capaz de
conhecer seu passado e entendê-lo; de perceber-se no presente e
projetar seu futuro. Mas nessa dinâmica da vida pode fazer esco-
lhas tornando-se pessoa na plenitude.
Como espírito, o homem goza de uma abertura sem limites, in-
finita. Ele está em busca da plena realização porque participa dessa
esfera espiritual que o coloca em contato com o infinito. Como pes-
soa, é ser finito se relacionando finitamente com os outros seres, pois
são seus semelhantes. Por isso, sua existência e sua autorrealização
ocorrem enquanto se relaciona com os outros, seus semelhantes.
Cada pessoa é o princípio de suas ações, de sua capacidade de go-
vernar-se tendo em vista sua liberdade. Fundamentalmente, o ser
humano é livre para se realizar como pessoa e, por isso, responsável
pelo seu projeto pessoal e social de vida (CLARETIANO, 2005, p. 23).

A pessoa que consegue olhar para si mesma se percebe


como pessoa humana, una e única, capaz de criar e dar respostas
positivas a seus anseios e de conquistar todas as chances de fazer
uma opção livre e consciente.
A evolução técnica experimentada nos últimos séculos de-
sumanizou o ser humano. É importante que ele perceba que é co-
autor na construção do mundo; por isso, deve agir com liberdade,
responsabilidade e justiça. No entanto, ele entenderá essa respon-
sabilidade quando adquirir a liberdade de pensamento, quando
aguçar a capacidade de discernimento e puder compreender seus
sentimentos e sua imaginação.

Unidade e totalidade
Quando tratamos do entendimento sobre a pessoa, é im-
portante notarmos que ela é uma unidade e uma totalidade ao

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 83

mesmo tempo. Frankl (1989), psiquiatra, obteve uma experiência


profunda sobre o ser humano enquanto esteve preso em um cam-
po de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.
Ele percebeu e analisou, profundamente, a unicidade e a to-
talidade da pessoa. Não é admissível tratar o ser humano como
se fosse possível dividi-lo e olhá-lo com um único enfoque. Já que
cada pessoa é um ser único e absolutamente novo, ao mesmo
tempo está imbuído de capacidade de se decidir, de escolher, pois
é um ser livre por existência e, ao mesmo tempo, um ser dinâmico,
aberto ao outro e à transcendência.
Cada pessoa é uma complexidade, e é indispensável levar
em consideração esses aspectos se quisermos dar à pessoa o seu
devido lugar nesta totalidade do universo. E o que mostra essa
realidade é o ser em si mesmo. Cada ser é um ser em relação, mas
cada ser possui o seu valor em si mesmo. Contudo, por estar em
relação, ele tem sentido em si, no outro e na sua transcendência.
A pessoa consciente da unidade e da totalidade abre espaço
para a realização pessoal. Ela compreende seu estar-no-mundo en-
quanto compreende o sentido de ser-no-mundo. Piva (1995), sacer-
dote, doutor e reitor do Centro Universitário Claretiano, estudioso e
entusiasmado com a dimensão humana do ser, afirma que só o ser
humano goza do privilégio de ter consciência de si mesmo, do seu
eu, do seu ser e do seu existir, o que constitui uma exclusividade sua,
pela qual ele se diferencia de todos os demais animais; não somente
tem consciência de si, mas também se percebe como um ser único.
O ser-no-mundo confere à existência humana uma conota-
ção mais profunda do ser em si, é o modo como a pessoa humana
se estrutura e se realiza no mundo com os outros.
Leonardo Boff (2000) expressa essa realidade de forma abran-
gente, pois inclui não só a existência, mas também a coexistência
que acontece em um relacionamento estreito. É nessa realidade
que o ser humano vai construindo seu próprio ser, o que lhe permite
adquirir consciência de si mesmo para conquistar sua identidade.
84 © Antropologia, Ética e Cultura

Ter consciência de si dá à pessoa oportunidade de entrar em


contato com o seu eu, com a sua essência própria, particular, como
também com a essência do ser humano; em geral, do mundo como
um todo e com a transcendência.
A pessoa humana busca em todas as coisas uma finalidade,
um sentido para sua existência. O que está no cerne de toda a
questão é a realização da pessoa, é o seu ser.

6. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no
estudo desta unidade:

1) Você compreendeu como o Centro Universitário Claretiano entende a pes-


soa? Quais são as características próprias do ser humano visto sob a ótica
humanista dessa proposta?

2) Você consegue definir quais são as dimensões da pessoa?

3) Em breves palavras, você pode descrever como cada dimensão da pessoa


está relacionada com a sua unicidade?

4) O que essa maneira de ver o ser humano muda em sua existência? Em que
muda a vida da sociedade? Em que muda na sua forma de viver a sua pro-
fissão?

7. CONSIDERAÇÕES
Se fizermos uma comparação com a primeira unidade, po-
deremos perceber que a proposta humanista apresentada nesta
unidade difere, completamente, da proposta do Capitalismo Ne-
oliberal apresentada anteriormente. A proposta humanista apre-
senta uma realidade em que o ser humano é olhado de maneira
caracteristicamente apropriada à realidade humana.
O ser humano, considerado um ser único e irrepetível, visto na
sua totalidade, apresenta em suas dimensões a maneira apropria-
da para que seja respeitado na sociedade. Entretanto, é importante
considerar que há dois caminhos que devem ser percorridos.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa – Uma Proposta Humanista 85

Isso não significa trilhar um caminho em detrimento do ou-


tro, mas, sim, fazer acontecer as duas coisas ao mesmo tempo,
ou seja, a transformação deve ocorrer conjuntamente, causando
mudança no meio em que vivo e ocasionando uma modificação na
minha maneira de ser, de pensar e de sentir.
Por isso, o projeto humanista adotado pelo Centro Universi-
tário Claretiano oferece uma proposta de transformação, saindo
do sistema capitalista neoliberal para uma vivência mais humana.

8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARDUINI, J. Destinação antropológica. São Paulo: Paulinas. 1989.
BETTO, F.; BOFF, L. Mística e espiritualidade. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
BOFF, L. O destino do homem e do mundo. São Paulo: Vozes, 2003.
______. Saber cuidar, ética do humano – compaixão pela terra. São Paulo: Vozes, 2004.
______. Tempo de transcendência: o ser humano como um projeto infinito. Rio de
Janeiro: Sextante, 2000.
CLARETIANO – Centro Universitário Claretiano. Missão e projeto educativo. Batatais:
[s.n], 2005.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. O Corpo. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1984, pp. 85-87.
FRANKL, V. E. Sede de sentido. São Paulo: Quadrante, 1989.
LELOUP, J-Y. Cuidar do ser. São Paulo: Vozes, 1998.
MANDRIONI, H. D. Introdución a la filosofia. Buenos Aires: Kapelusz, 1964.
MARTINS, A. A. É importante a espiritualidade no mundo da saúde?. São Paulo: Paulus,
2009.
MONDIN, B. Definição filosófica da pessoa humana. Bauru: EDUSC, 1998.
PIVA, S. I. A pessoa, uma análise. Batatais: União das Faculdades Claretianas, 1995.
SCHELER, M. A posição do homem no cosmos. Rio de Janeiro: Florense Universitária,
2003.
TILLICH, P. Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas, 1984.
Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
EAD
Ser Pessoa, Ética e
Cidadania

3
1. OBJETIVOS
• Refletir sobre a Pessoa Humana, retomando e aprofun-
dando aspectos já abordados nas unidades anteriores.
• Compreender o significado de ética e moral, suas distin-
ções, campos de atuação e implicações para a sociedade
contemporânea.
• Analisar a importância de se resgatar o papel da cidadania
como ação individual e coletiva na perspectiva de uma
sociedade eticamente sustentável.

2. CONTEÚDOS
• As dimensões humanas da consciência, do amor e da li-
berdade como características antropológicas.
• A definição de ética e moral e suas respectivas distinções
e semelhanças.
88 © Antropologia, Ética e Cultura

• As tarefas e o campo de atuação da ética a partir da De-


claração Universal dos Direitos Humanos.
• O resgate da cidadania enquanto valorização do ser huma-
no diante de uma sociedade em crise de valores humanos.
• Humanização ou coisificação: os desafios da sociedade
contemporânea.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Leia atentamente cada item proposto para compreen-
der os diversos temas que serão abordados, percebendo
a inter-relação entre eles.
2) Conheça a bibliografia indicada, inclusive com a suges-
tão de outros livros e filmes que ajudam na compreen-
são dos temas da unidade.
3) Estabeleça permanentes contatos com os demais parti-
cipantes da disciplina e levante exemplos reais que aju-
dem a entender os diversos tópicos abordados.
4) Acompanhe os acontecimentos do dia a dia por meio da
leitura de jornais e da imprensa falada para perceber a
importância dos assuntos veiculados na mídia com a te-
mática desenvolvida.
5) Antes de iniciar os estudos desta unidade, é interessante
conhecer um pouco da biografia dos pensadores, cujo
pensamento norteia o estudo desta disciplina. Para sa-
ber mais, acesse os sites indicados.

Antonio Gramsci (1891-1937)


Um dos fundadores do Partido Comunista Italiano. Estudou
literatura na Universidade de Turim, cidade aonde frequen-
tou círculos socialistas. Filiou-se ao Partido Socialista Ita-
liano, tornando-se jornalista e escrevendo para o jornal do
Partido (L’Avanti) e tendo sido editor de vários jornais socia-
listas italianos, tendo fundado em 1919, junto com Palmiro
Togliatti, o L’Ordine Nuovo. O grupo que se reuniu em torno
de L’Ordine Nuovo aliou-se com Amadeo Bordiga e a ampla
facção Comunista Abstencionista dentro do Partido Socia-
lista. Isto levou à organização do Partido Comunista Italiano

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 89

(PCI) em 21 de janeiro de 1921. Gramsci viria a ser um dos líderes do partido


desde sua fundação, porém sobordinado a Bordiga até que este perdeu a lide-
rança em 1924. As teses de Gramsci foram adotadas pelo PCI no congresso que
o partido realizou em 1926. Em 1924, Gramsci foi eleito deputado pelo Veneto.
Ele começou a organizar o lançamento do jornal oficial do partido, denominado
[[L’Unità]]. Em 8 de novembro de 1926, a polícia fascista prendeu Gramsci (ape-
sar de sua imunidade parlamentar, permaneceu preso até próximo da sua morte,
quando foi solto em liberdade condicional dado ao seu precário estado de saúde
(imagem e texto disponíveis em: <http://www.marxists.org/portugues/dicionario/
verbetes/g/gramsci.htm>. Acesso em: 15 out. 2010).

Max Weber (1864-1920)


Max Weber nasceu e teve sua formação intelectual no perí-
odo em que as primeiras disputas sobre a metodologia das
ciências sociais começavam a surgir na Europa, sobretudo
em seu país, a Alemanha. Filho de uma família da alta clas-
se média, Weber encontrou em sua casa uma atmosfera
intelectualmente estimulante. Seu pai era um conhecido
advogado e desde cedo orientou-o no sentido das huma-
nidades. Weber recebeu excelente educação secundária
em línguas, história e literatura clássica. Em 1882, começou
os estudos superiores em Heidelberg; continuando-os em
Göttingen e Berlim, em cujas universidades dedicou-se simultaneamente à eco-
nomia, à história, à filosofia e ao direito. Concluído o curso, trabalhou na Univer-
sidade de Berlim, na qual idade de livre-docente, ao mesmo tempo em que servia
como assessor do governo. Em 1893, casou-se e;, no ano seguinte, tornou-se
professor de economia na Universidade de Freiburg, da qual se transferiu para
a de Heidelberg, em 1896. Dois anos depois, sofreu sérias perturbações ner-
vosas que o levaram a deixar os trabalhos docentes, só voltando à atividade
em 1903, na qualidade de co-editor do Arquivo de Ciências Sociais (Archiv tür
Sozialwissenschatt), publicação extremamente importante no desenvolvimento
dos estudos sociológicas na Alemanha. A partir dessa época, Weber somente
deu aulas particulares, salvo em algumas ocasiões, em que proferiu conferências
nas universidades de Viena e Munique, nos anos que precederam sua morte,
em 1920 (imagem disponível em: <http://www.liberal-vision.org/2010/03/18/max-
-weber-1864-1920-political-writings-1994-edition/>. Acesso em: 15 out. 2010.
Texto disponível em: <http://www.culturabrasil.org/weber.htm>. Acesso em: 15
out. 2010).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Entender o ser humano é uma tarefa extremamente exigen-
te e difícil. Isso porque não se pode analisá-lo a partir de um único
ponto de vista ou sob uma ótica predefinida. O ser humano deve
ser entendido na sua complexidade, abrangência e profundidade,
caso seja a intenção de toda pessoa que reflete sobre si mesma e
sobre a realidade que está a sua volta.
90 © Antropologia, Ética e Cultura

A disciplina Antropologia, Ética e Cultura procura responder


a esse desafio, sugerindo caminhos de reflexão que, mais do que
conclusivos, abrem pistas para novas reflexões, numa perspecti-
va dialética e, portanto, sempre em mudança. A terceira unidade,
que está sendo apresentada, propõe-se a ser uma contribuição
a mais diante do que foi apresentado nas unidades anteriores e
em outros contextos, acadêmicos, profissionais, familiares, entre
outros, que querem entender a vida e exercer alguma forma de
participação.
Tratar da noção de pessoa, recuperando o que já foi aborda-
do nas unidades anteriores, refletir sobre a relação entre ética e
moral, numa perspectiva antropológica, discutir a importância e o
reconhecimento da cidadania, entendida como fundamental para
o processo de transformação da sociedade, são aspectos funda-
mentais do mundo acadêmico; mas não só dele, como também da
vida em toda sua totalidade, plenitude e abrangência.
Por isso, a sugestão é que você, como aluno do Centro Uni-
versitário Claretiano, entre nessa dinâmica e seja capaz de perce-
ber a importância das temáticas que serão apresentadas para sua
existência individual e social. Entre no conteúdo desta unidade
com espírito crítico, com disciplina e disposição, mas, principal-
mente, com vontade de contribuir para a realização de uma so-
ciedade melhor, mais humana e cada vez mais preocupada com o
desenvolvimento sustentável.
A disciplina não é a solução para esse problema, mas, com
certeza, ajudará a colocá-lo sobre a mesa, exigindo que nossa
postura não seja de aceitação, mas de vontade de mudar. Afinal,
"quem sabe faz a hora não espera acontecer..." (VANDRÉ, 2010).

5. O SER HUMANO COMO PESSOA


Como já foi apresentado nas unidades anteriores, o ser hu-
mano sempre foi objeto de investigação e estudo ao longo da his-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 91

tória da humanidade. Quem é o ser humano? Como entendê-lo?


Qual é o seu limite de compreensão? Essas foram algumas discus-
sões apresentadas nas unidades anteriores. Nesta unidade, a pre-
tensão é esboçar algumas conclusões a respeito dessas discussões
e enfocar a importância de duas dimensões que caracterizam sua
razão de ser no mundo: a ética e a cidadania. Mas, antes de tratar
dessas questões, serão propostas algumas reflexões conclusivas
sobre a noção de pessoa na perspectiva que se pretende sustentar
na disciplina Antropologia, Ética e Cultura.
A busca de compreensão do ser-pessoa culminou num es-
forço histórico, fazendo brotar o movimento filosófico e social de-
nominado "Humanismo". Essa palavra tem sentido muito positivo
porque se propõe, fundamentalmente, a valorizar o ser humano
na sua plenitude como ser. Entretanto, ela pode ter, pelo menos,
três sentidos básicos:
• Movimento histórico-literário. Refere-se a um movimen-
to cultural cujas raízes estão nos séculos 13 e 14, que tem
o seu esplendor nos séculos 15 e 16, irradiando suas luzes
até os séculos 17 e 18, e tenta resgatar os valores huma-
nos e literários oriundos da cultura greco-romana.
• Movimento especulativo-filosófico. A preocupação é
resgatar, ao longo da história, as grandes questões que
desafiam o ser humano: sua origem, natureza e destino.
Como o ser humano explica a si mesmo nas culturas an-
tigas, no Cristianismo, na filosofia moderna e, sobretudo,
atualmente, o que se quer saber é, principalmente, o que
é humano e o que é anti-humano.
• Movimento ético-sociológico. A preocupação principal é
a prática do ser humano. Não se quer vê-lo contemplando
o mundo, mas, principalmente, transformando o mundo
e a si mesmo. É nessa dupla relação, ser humano-ser hu-
mano e ser humano-natureza, que se revela a condição
humana. É uma posição mais realista e menos doutriná-
ria, que está preocupada em afirmar o ser humano como
sujeito da história e medida de todas as coisas, como afir-
mava o sofista grego Protágoras.
92 © Antropologia, Ética e Cultura

De qualquer forma, poderíamos sintetizar que o Humanismo


vê o ser humano como Pessoa. Isso significa que o ser humano é
uma totalidade que não pode ser reduzida a nenhuma dimensão,
por mais importante que seja. O ser humano tem uma dimensão
biológica, psicológica, social, cultural, religiosa, política, econômi-
ca; mas ele é pessoa, no sentido de que todas essas dimensões são
aproximações de sua essência; isto é, ele é tudo isso e muito mais.
O ser humano é um mistério, uma surpresa, um desafio.
A partir desse conceito humanista de Pessoa, não se pode
aceitar que o ser humano seja apenas um indivíduo (biológico),
um ser consciente e in-consciente (psicológico), um ser de relações
(social), um ser libidinoso (sexual), um ser produto da cultura (cul-
tural), um ser que produz (econômico), um ser que gravita em tor-
no do poder (político), um ser que reza (religioso). Tudo isso ajuda
a compreender o ser humano, mas pode reduzi-lo a um animal, a
uma coisa. Você pode ver um elefante com um microscópio? Claro
que não! Assim, você também não pode ver o ser humano como
Pessoa a partir de uma única dimensão. O ser humano, portanto,
é um ser complexo: ele possui infinitas dimensões que, ao longo
da humanidade, foram sendo integradas no seu ser. Pessoalidade
é sinônimo de complexidade.
Do ponto de vista do Humanismo filosófico, a Pessoa Huma-
na tem uma tríplice dimensão: da consciência, do amor e da liber-
dade. Analisaremos, a seguir, cada uma delas.

Dimensão da consciência
O ser humano é o único que sabe de si mesmo. Ele se pergun-
ta: Quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Para que existo?
Ele é, portanto, o valor absoluto, o valor-fim, a medida de todas as
coisas. Diante do valor ser humano, todas as demais são relativas,
por mais importantes que sejam. Ele sabe isso porque, ao longo da
humanidade, foi descobrindo, foi desvendando, foi compreenden-
do o seu lugar no mundo.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 93

E, mais ainda, foi descobrindo, sempre com erros e acertos.


Sempre que o ser humano se nega, nega os seus semelhantes e
nega a natureza, ele trai a si mesmo, e as consequências logo virão.
É dessa experiência complexa de dominar a natureza, de dominar
a si mesmo e de estabelecer comunhão com os demais que brota a
Pessoa Humana como ser consciente. Portanto, consciência é mais
que ciência; é descobrir na ciência a essência do ser humano.

Dimensão do amor
O ser humano como Pessoa é um ser de comunhão e não de
solidão. Ele reconhece no outro o valor absoluto. Ninguém é mais
importante para uma Pessoa que a outra Pessoa. É o "Eu" que se
dirige ao "Tu", para afirmar como valor supremo a comunhão do
"Nós". O outro sou eu mesmo, isto é, a mesma essência sob outra
aparência. Esta é a experiência do Amos: descobrir o outro na sua
identidade, na sua singularidade e na sua profundidade.
Na sua identidade, o outro sou eu mesmo; é a minha essên-
cia que se revela a mim no outro. Na sua singularidade, o outro
não sou eu, pois não há produção em série; o outro é ele mesmo
com uma marca pessoal. Na sua profundidade, o outro é um mis-
tério marcado pela história; um mistério que nunca chegaremos
a penetrar totalmente. E amar é precisamente isto: querer que o
outro seja Eu; querer que o outro seja Tu; querer que o outro seja
Nós. A Pessoa é capaz de amar, por isso somente ela deu o salto da
materialidade para a espiritualidade, do físico para o metafísico,
do ciente para o consciente, do indivíduo para o ser.

Dimensão da liberdade
A liberdade é outra dimensão fundamental da Pessoa. Para
Dostoiévski, "a liberdade é o atributo da divindade", no sentido de
que o que mais aproxima o ser humano de Deus é a possibilida-
de do exercício da liberdade. Entretanto, a liberdade é uma con-
dição ambígua do ser humano: ela tanto constrói como destrói o
94 © Antropologia, Ética e Cultura

ser humano. É preciso definir bem esse termo. Podemos falar de


liberdade biológica, no sentido de que o ser humano é livre para
o impulso biológico de suas ações, sem necessidade de impulsos
externos. Podemos falar de liberdade psicológica, no sentido de
liberdade de opção e autodeterminação.
E, assim, pode-se falar de liberdade cultural, econômica, reli-
giosa, sexual etc. Entretanto, a liberdade é uma condição que pre-
cisa ser bem entendida a partir de dois princípios éticos:
• É a capacidade humana de tornar-se Pessoa, isto é, a pos-
sibilidade que o ser humano tem de caminhar na direção
de sua plenitude, de seu valor supremo: o ser humano é a
medida de todas as coisas.
• É uma utopia, um ideal a ser perseguido permanentemen-
te. Na verdade, ninguém é totalmente livre; somos exces-
sivamente influenciados e condicionados pela história do
nosso tempo e pela história de nossa vida. Nossas ações,
decisões e opções são "contaminadas" pelo mundo que
nos rodeia.
De qualquer forma, a liberdade é um dos atributos que confi-
guram a essência humana: a possibilidade de transcender o tempo
e a história e assumir uma opção fundamental de vida. Essa opção
leva-nos a ser Pessoa Humana, portanto, é a síntese das dimen-
sões consciência, amor e liberdade. Esses três atributos possuem
uma relação dialética: um explica-se a partir do outro, e cada qual
tem sua expressão e significado à luz dos outros dois.
São as dimensões que se expressam na Pessoa humana. A
consciência só é plenamente humana se for consciência do amor
e da liberdade; do amor, enquanto comunhão entre os homens, e
da liberdade, enquanto opção fundamental para essa comunhão.
Exceto isso, não teremos consciência, só ciência; teremos indivídu-
os e não pessoas; teremos opressão e não comunhão. O amor só é
amor se for consciente e livre. Não há amor onde não há conheci-
mento; não há amor onde não há liberdade.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 95

O amor é entendido aqui como expressão de comunhão


entre pessoas, como compromisso de concretude (amor é fazer),
como expressão do bem (o ser é o bem). A liberdade só é plena
onde há consciência e amor. Não há liberdade na ignorância, na
negação da realidade da Pessoa, não há liberdade na opressão, na
exploração do ser humano pelo ser humano.
Portanto, a Pessoa Humana exprime-se na síntese da cons-
ciência, do amor e da liberdade; na antítese da inconsciência, do
egoísmo e da opressão; na tese da criação, da redenção e do Espí-
rito. Três atributos que qualificam um ao outro, numa relação de
convergência e de interdependência. Vê-los isoladamente, sobre-
por um ao outro, é negar a Pessoa Humana.
Se o ser humano fosse só consciência, seria pura racionalida-
de; se o ser humano fosse só amor, seria puro sentimento; se o ser
humano fosse só liberdade, seria pura ação. A Pessoa Humana é
Pessoa porque tem poder de criar (consciência), de redimir (amor)
e de transformar (liberdade).

A dimensão ética do Ser Pessoa


Diante do ser pessoa, deparamo-nos com a questão da éti-
ca, elemento constitutivo da condição de sobrevivência, vivência e
convivência. Assim, a ética pode ser entendida como um conjunto
de normas que regula o comportamento de grupos humanos.
Nas sociedades feudais, por exemplo, refere-se a um con-
junto de representação religiosa da relação social de produção. A
ética social, naquela concepção de sociedade, é de ordem religio-
sa. Ela consiste em seguir as normas de uma ordem estabelecida
por Deus e é, fundamentalmente, uma moral de conformismo. A
sociedade não era entendida como construção humana.
Nas sociedades vinculadas ao capitalismo globalizado, a éti-
ca refere-se a uma construção humana fundamentada, segundo
Max Weber (1992), numa ética protestante, em que a austerida-
de – que significa utilizar o necessário e não consumir de maneira
96 © Antropologia, Ética e Cultura

ostensiva – se torna um elemento constituinte e determinante.


Nesse caso, a religião apresenta-se como papel ideológico na re-
produção da relação capitalista, gerando submissão do trabalho
ao capital.
Mas o que podemos entender propriamente por ética, sa-
bendo que vivemos em um mundo capitalista globalizado, exclu-
dente e opressor? A primeira observação que deve ser feita é que
ela não se confunde com a moral. A moral entende-se como regu-
lação dos valores e comportamentos considerados legítimos por
uma determinada sociedade, um povo, uma religião, uma tradi-
ção cultural etc. Portanto, apresenta-se como um fenômeno social
particular, sem o compromisso com a universalidade.
A ética, por sua vez, pode ser entendida de duas maneiras.
Primeiro, como o julgamento da validade das morais; nesse caso,
apresenta-se como uma reflexão crítica sobre a moralidade. Mas
ela não é puramente teórica. A ética, nesse caso, deve ser enten-
dida, ainda, como um conjunto de princípios e disposições voltado
para a ação, historicamente produzido, cujo objetivo é balizar as
ações humanas. A ética existe como uma referência para os seres
humanos em sociedade, de modo tal que a sociedade possa se
tornar cada vez mais humana.
Assim, tanto a ética como a moral, sendo distintamente re-
conhecidas, não se colocam como um conjunto de verdades fixas e
imutáveis, pois ambas apresentam um caráter histórico e social.
Diante do que se pretende trabalhar na disciplina, outra pre-
ocupação importante é saber quais são as tarefas da ética. Elas
podem ser resumidas da seguinte maneira:
• principal reguladora do desenvolvimento histórico-cultu-
ral da humanidade;
• sem ética, ou seja, sem a referência a princípios huma-
nitários fundamentais comuns a todos os povos, nações,
religiões etc., a humanidade já teria se despedaçado até
a autodestruição;

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 97

• em seu sentido etimológico – Ethos: ética em grego –, de-


signa a morada humana, significando tudo aquilo que aju-
da a tornar melhor o ambiente para que seja uma morada
saudável: materialmente sustentável, psicologicamente
integrada e espiritualmente fecunda.
Um exemplo paradigmático de princípio ético é a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, promulgada pela ONU (Organi-
zação das Nações Unidas) no ano de 1948. Para nós, que vivemos
numa sociedade marcadamente capitalista, em que predomina uma
postura extremamente individualista, é preciso que cada cidadão in-
corpore esses princípios como uma atitude prática diante da vida
cotidiana, de modo a pautar por eles seu comportamento.
Isso traz uma consequência inevitável: frequentemente, o
exercício pleno da cidadania (ética) entra em colisão frontal com a
moralidade vigente. Até porque a moral vigente, sob pressão dos
interesses econômicos e de mercado, está sujeita a constantes e
graves degenerações.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos apresenta 30
artigos que sustentam o que deveria ser uma vivência humana que
reconheça e valorize a dimensão humana na sua totalidade. Aqui,
eles serão apresentados como forma de corroborar com a reflexão
proposta.

Declaração Universal dos Direitos Humanos–––––––––––––––


Artigo I.
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com
espírito de fraternidade.
Artigo II.
1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades esta-
belecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça,
cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacio-
nal ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, ju-
rídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer
se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer
sujeito a qualquer outra limitação de soberania.
98 © Antropologia, Ética e Cultura

Artigo III.
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
Artigo IV.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de
escravos serão proibidos em todas as suas formas.
Artigo V.
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano
ou degradante.
Artigo VI.
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como
pessoa perante a lei.
Artigo VII.
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual pro-
teção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que
viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Artigo VIII.
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes re-
médio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam
reconhecidos pela constituição ou pela lei.
Artigo IX.
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Artigo X.
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiên-
cia por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus
direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
Artigo XI.
1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido
inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei,
em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garan-
tias necessárias à sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento,
não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não
será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era
aplicável ao ato delituoso.
Artigo XII.
Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada, em sua família, em seu
lar ou em sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser
humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.
Artigo XIII.
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e residência dentro das
fronteiras de cada Estado.
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e
a este regressar.
Artigo XIV.
1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de procurar e de gozar
asilo em outros países.

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 99

2. Este direito não pode ser invocado em caso de perseguição legitimamente


motivada por crimes de direito comum ou por atos contrários aos objetivos e
princípios das Nações Unidas.
Artigo XV.
1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionalidade, nem do direito de
mudar de nacionalidade.
Artigo XVI.
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, na-
cionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma fa-
mília. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua
dissolução.
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à pro-
teção da sociedade e do Estado.
Artigo XVII.
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
Artigo XVIII.
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião;
este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de
manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela
observância, em público ou em particular.
Artigo XIX.
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito
inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e
transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de
fronteiras.
Artigo XX.
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.
Artigo XXI.
1. Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo de seu país direta-
mente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será
expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.
Artigo XXII.
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social,
à realização pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo
com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais
e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua
personalidade.
100 © Antropologia, Ética e Cultura

Artigo XXIII.
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a con-
dições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração
por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfa-
tória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível
com a dignidade humana e a que se acrescentarão, se necessário, outros
meios de proteção social.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a neles ingressar para
proteção de seus interesses.
Artigo XXIV.
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das
horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.
Artigo XXV.
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e
a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação,
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança
em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de
perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais.
Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio gozarão da mesma
proteção social.
Artigo XXVI.
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória.
A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução
superior, esta baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da perso-
nalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a to-
lerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será
ministrada a seus filhos.
Artigo XXVII.
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da co-
munidade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus
benefícios.
2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses morais e materiais
decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja
autor.
Artigo XXVIII.
Todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional em que os direi-
tos e liberdades estabelecidos na presente Declaração possam ser plenamente
realizados.

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 101

Artigo XXIX.
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, na qual o livre e pleno
desenvolvimento de sua personalidade é possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser humano estará sujeito ape-
nas às limitações determinadas pela lei, exclusivamente com o fim de assegu-
rar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e
de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar
de uma sociedade democrática.
3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese alguma, ser exercidos
contrariamente aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Artigo XXX.
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reco-
nhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer
atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direi-
tos e liberdades aqui estabelecidos (ONU, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Mas, diante da tarefa da ética, é possível perceber que exis-
tem diversos campos de atuação da própria ética. Podemos desta-
car os seguintes:
1) Ética e convivência humana: há necessidade de ética
porque há o outro ser humano. A atitude ética é uma
atitude de amor pela humanidade.
2) Ética e justiça social: um sistema econômico-político-
-jurídico que produz, estruturalmente, desigualdades,
injustiças, discriminações, exclusões de direitos, entre
outros, é eticamente mau, por mais que seja legalmente
(moralmente) constituído.
3) Ética e sistema econômico: o sistema econômico é o fa-
tor mais determinante de toda a ordem (e desordem)
social. Quando existe uma reprodução da miséria estru-
tural, a ética diz que se exigem transformações radicais e
globais na estrutura do sistema econômico.
4) Ética e meio ambiente: o trabalho é a ação humana que
transforma a natureza para o homem. Mas, para que o
trabalho cumpra essa finalidade de sustentar e huma-
nizar o homem, ele deve se realizar de modo autossus-
tentável para a natureza e para o homem. Preservar e
cuidar do meio ambiente é uma responsabilidade ética
diante da natureza humana.
102 © Antropologia, Ética e Cultura

5) Ética e educação: toda educação é uma ação interativa:


faz-se mediante informações, comunicação, diálogo en-
tre seres humanos. Em toda educação, há um outro em
relação. Em toda educação, por tudo isso, a ética está
implicada.
6) Ética e cidadania: a cidadania nem sempre é uma reali-
dade efetiva nem é para todos. A efetivação da cidadania
e a consciência coletiva dessa condição são indicadores
do desenvolvimento moral e ético de uma sociedade.
7) Ética e política: política é a ação humana que deve ter
por objetivo a realização plena dos direitos e, portanto,
da cidadania para todos. O projeto da política, assim, é o
de realizar a ética, fazendo coincidir com ela a realização
da vontade coletiva dos cidadãos, o interesse público.
8) Ética e corrupção: a corrupção, seja ativa ou passiva, é
a força contrária, o contrafluxo destruidor da ordem so-
cial. É a negação radical da ética, porque destrói na raiz
as instituições criadas para realizar direitos. A corrupção
é antiética. Indignar-se, resistir e combater a corrupção
é um dos principais desafios éticos da política.
Diante dessa reflexão sobre o ser pessoa, numa perspecti-
va ética e moral, ficam alguns questionamentos, principalmente
quanto às ações que devem ser realizadas. Para isso, podemos
mencionar uma iniciativa da ONU, que, no ano 2000, ao analisar
os maiores problemas mundiais, estabeleceu Oito objetivos do mi-
lênio (ODM), que, no Brasil, são chamados de Oito jeitos de mudar
o mundo. A ideia é mostrar que, juntos, podemos mudar a nossa
rua, a nossa comunidade, a nossa cidade, o nosso país.
A Rede Brasil Voluntário, que congrega centros de volunta-
riado de todo o Brasil, consciente da importância desse projeto,
criou dois sites (disponível em: <http://www.pnud.org.br>. Aces-
so em: 29 out. 2010. Disponível em: <http://www.odmbrasil.org.
br>. Acesso em: 29 out. 2010) para estimular debates e propiciar o
conhecimento e o engajamento de todos os interessados em par-
ticipar de ações, campanhas e projetos de voluntariado que cola-
borem com os ODM.

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 103

Os Oito jeitos de mudar o mundo podem ser conhecidos da


seguinte forma iconográfica:

Figura 1 Oito jeitos de mudar o mundo.


104 © Antropologia, Ética e Cultura

Frei Betto escreveu na ALAI (Agência Latino-Americana de


Informação) América Latina en Movimiento, em 19 de julho de
2004, diante da proposta da ONU, um belíssimo texto, que repro-
duzimos a seguir.

Oito jeitos de mudar o mundo–––––––––––––––––––––––––––


De 9 de agosto –­ aniversário da morte de Betinho –­ a 15, haverá, no país, uma
grande mobilização em torno da Semana Nacional pela Cidadania e Solidarieda-
de. A motivação é despertar gestos de pessoas e instituições que façam multipli-
car exemplos de cidadania e solidariedade.
É o caso da indústria Tevah, no Rio Grande do Sul, que dedica um dia de toda a
sua produção de agasalhos à população de baixa renda ou da escola Florestan
Fernandes, do MST, em São Paulo, que educa seus alunos conscientizando-os
de sua responsabilidade política e incutindo-lhes visão histórica.
Qualquer pessoa ou instituição – movimento social, denominação religiosa,
ONG, escola, empresa, associação etc. – pode e deve participar da Semana,
recriando-a no local onde se insere. Basta promover algo que reforce a cidadania
e a solidariedade: mesas-redondas; campanhas; palestras; mutirão que benefi-
cie, sem assistencialismo, a população de baixa renda.
A Semana estará centrada nas Metas do Milênio, aprovadas por 191 países da
ONU, em 2000. Todos, inclusive o Brasil, se comprometeram a cumprir os oito
objetivos até 2015: 1) Acabar com a fome e a miséria; 2) Educação básica de
qualidade para todos; 3) Igualdade entre sexos e valorização da mulher; 4) Re-
duzir a mortalidade infantil; 5) Melhorar a saúde das gestantes; 6) Combater a
AIDS, a malária e outras doenças; 7) Qualidade de vida e respeito ao meio am-
biente; 8) Todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento.
Não há quem não possa fazer um gesto na direção desses oito objetivos: debater
em sala de aula as causas da pobreza e os entraves à melhor distribuição de
renda; introduzir na escola educação nutricional e o programa Jovem Voluntá-
rio, Escola Solidária; promover painel sobre Chico Mendes, exposição sobre os
direitos dos povos indígenas ou ações de combate ao trabalho e à prostituição
infantis; participar do Fome Zero ou organizar uma horta comunitária; lutar pela
melhoria da educação, do acesso a medicamentos seguros e baratos ou abrir um
curso de alfabetização de adultos; denunciar o preconceito contra homossexuais
e o uso da mulher no estímulo ao consumismo; fortalecer a Pastoral da Criança
e discutir a relação entre explosão demográfica e crescimento econômico com
desenvolvimento social; conscientizar sobre os riscos da Aids, as causas da ma-
lária e o aumento de doenças decorrentes do desequilíbrio ecológico; atuar na
implantação da reforma agrária, visitar e apoiar acampamentos e assentamentos
rurais e pesquisar o que é desenvolvimento sustentável etc.
Há na esquerda quem torça o nariz para as Metas do Milênio. O mesmo erro foi
cometido quando os verdes, décadas atrás, levantaram a bandeira da ecologia.
Felizmente Chico Mendes nos abriu os olhos, ensinando que a preservação do
meio ambiente é uma das poucas bandeiras que mobilizam adeptos em todas
as classes sociais.
A Semana Nacional pela Cidadania e Solidariedade não é uma iniciativa do go-
verno, embora conte com o seu apoio e participação. É uma proposta da so-

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 105

ciedade civil, visando mobilizar a nação em torno de ações concretas que nos
permitam construir o "outro mundo possível". E priorizar, em pleno neoliberalismo
que assola o Planeta, valores antagônicos ao individualismo e à competitividade,
como o são a cidadania e a solidariedade.
A pergunta central que a Semana pretende levantar é: o que estamos fazendo
para mudar o mundo? O que faz você, a sua escola, a sua comunidade religiosa,
o seu movimento social, a sua empresa? Queixar-se é fácil e reclamar não é
difícil. O desafio, porém, é agir, organizar, conscientizar, transformar.
"Diários de motocicleta", filme de Walter Salles, mostra a cena em que Ernesto
Guevara decide, na noite de seu aniversário, mergulhar no rio que o separava da
comunidade de hansenianos. Naquele momento, Che optou pela margem oposta­
a da cidadania e da solidariedade. Não ficou na margem em que nascera e fora
criado, cercado de confortos e ilusões, nem se reteve "na terceira margem do rio",
aquela dos que se isolam em suas convicções sectárias e jamais completam a tra-
vessia. É esta opção que a Semana quer incentivar. Porque nós podemos mudar o
Brasil e o mundo. Basta passar das intenções às ações (BETTO, 2010).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

6. QUESTÃO DA CIDADANIA
O que fazer para que o Brasil e o mundo possam implemen-
tar uma sociedade eticamente sustentável? Acreditamos que a
resposta a essa pergunta remete para outra situação, que trata de
pensar a questão da cidadania. Pinsky (2003, p. 9) irá dizer que:
Ser cidadão é ter direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igual-
dade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis. É também parti-
cipar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políti-
cos. Os direitos civis e políticos não asseguram a democracia sem os
direitos sociais, aqueles que garantem a participação do indivíduo
na riqueza coletiva: o direito à educação, ao trabalho, ao salário
justo, à saúde, a uma velhice tranquila. Exercer a cidadania plena é
ter direitos civis, políticos e sociais.

Portanto, para o autor, "cidadania não é uma definição es-


tanque, mas um conceito histórico, o que significa que seu sentido
varia no tempo e no espaço" (PINSKY, 2003, p. 9).
A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culmi-
naram, por exemplo, na Independência dos Estados Unidos da América
do Norte e na Revolução Francesa. Esses dois eventos romperam o prin-
cípio de legitimidade que vigorava até então, baseado nos deveres dos
súditos, e passaram a estruturá-lo a partir dos direitos do cidadão.
106 © Antropologia, Ética e Cultura

Desse momento em diante, todos os tipos de luta foram tra-


vados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e
para que o mundo ocidental a estendesse para mulheres, crianças,
minorias nacionais, étnicas, sexuais, etárias. Nesse sentido, pode-
se afirmar que, na acepção mais ampla, cidadania é a expressão
concreta do exercício da democracia.
A cidadania tem uma história que pode ser sumariamente
apresentada levando-se em consideração vários momentos, co-
meçando com o Povo Hebreu – os profetas sociais e o Deus da
cidadania. Os profetas sociais, há quase 30 séculos, falavam em cui-
dar dos despossuídos, proteger a viúva e o órfão, não pensar apenas
em morar, comer e viver bem num mundo de pobreza extrema. Fa-
zem parte, ainda, da história da cidadania, as cidades-estado greco-
romanas, entendidas como organizações de democracia direta em
que cada cidadão era um voto.
O Cristianismo dos primeiros séculos também se nessa te-
mática quando apresenta uma postura igualitária e contrária a
qualquer forma de hierarquia. Também o Renascimento – Floren-
ça e Salamanca –, entendido como um período considerado o da
redescoberta do homem.
Os alicerces da cidadania encontram-se nas três grandes
revoluções burguesas: a Revolução Inglesa, com o surgimento da
separação dos poderes como base para uma sociedade cidadã; a
Revolução Francesa, quando propõe os ideais de Igualdade, Liber-
dade e Fraternidade; e a Revolução Norte-Americana, que partia
do discurso para a prática democrática, colocando em ação aquilo
que apenas frequentava o mundo das ideias na Europa.
Assim, o desenvolvimento da cidadania ocorreu com as
ideias que romperam fronteiras, particularmente o Socialismo, a
luta pelos direitos sociais, tais como: a bandeira fundamental dos
trabalhadores dos séculos 19 e 20, a marcha das mulheres em bus-
ca da igualdade com especificidade e as minorias religiosas, étni-
cas e nacionais.

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 107

Também é relevante para o desenvolvimento do tema: a au-


todeterminação nacional; a Anistia Internacional, que se empenha
pelos direitos humanos elementares, como o direito à integridade
física; e as diversas conquistas da humanidade, sempre em busca
da qualidade de vida, de um meio ambiente razoável.
No Brasil, é possível perceber que a cidadania ocorreu em
várias áreas e segmentos sociais, principalmente com a cidada-
nia indígena, os quilombos, presentes na luta dos negros fugidos
organizados, as conquistas sociais dos trabalhadores no Brasil, as
mulheres brasileiras em busca da cidadania. No campo político,
temos as eleições como possibilidades e limites da prática de vo-
tar, a cidadania ambiental, com a preservação da natureza e da
sociedade como espaços de cidadania, e as novas possibilidades
de cidadania por meio do terceiro setor.
Constata-se, diante de toda essa evolução, que a sociedade
moderna adquiriu um grau de complexidade muito grande com a
divisão clássica dos direitos do cidadão em individuais, políticos e
sociais, sem que consigam dar conta da compreensão da realida-
de. Nesse caso:
Sonhar com cidadania plena em uma sociedade pobre, em que o
acesso aos bens e serviços é restrito, seria utópico. Contudo, os
avanços da cidadania, se têm a ver com a riqueza do país e a pró-
pria divisão de riquezas, dependem também da luta e das reivindi-
cações, da ação concreta dos indivíduos (PINSKY, 2003, p. 13).

Diante do que foi apresentado, contata-se que a cidadania e a


ética exigirão de todo ser humano um posicionamento eficiente e efi-
caz para pensar e transformar a realidade na qual estamos inseridos.
Nesse sentido, duas posturas éticas podem ser assumidas diante da
complexidade da sociedade atual, embora a primeira que será men-
cionada se refere ao que pode se considerar uma postura antiética.

Uma ética coisificadora do ser humano


As implicações éticas da modernidade, desde seu início até
sua evolução, são alvos de muitas discussões. A ciência tem alcan-
108 © Antropologia, Ética e Cultura

çado um grau de desenvolvimento nunca antes percebido pela


humanidade. Portanto, ela apresenta valores que não podem ser
menosprezados.
No entanto, podemos considerar que nem sempre houve
contribuição para o reconhecimento da plena dignidade humana.
Esse fato coloca a necessidade de se considerar a relação entre
ciência, ética e cidadania. A compreensão de cada um dos termos
não é uma tarefa fácil por apresentar diversas abordagens a res-
peito. Mas isso não torna a temática irrelevante.
Podemos perceber que existe uma postura ética que não se
preocupa com esse assunto, pois não acredita em sua importância.
A ciência não necessita desse tipo de indagação, por se apresentar
com características particulares. Ela é entendida a partir de uma
concepção positivista, que estuda a sociedade da mesma maneira
que se estuda a vida social das formigas ou das abelhas.
A ideia de que a sociedade pode ser entendida como coisa
trouxe várias implicações para o estudo das ciências não somente
na área de exatas e biológicas, mas também na área de humanas.
A mentalidade positivista esteve e ainda está presente em várias
ciências, desde a Sociologia até a Psicologia, passando pela Teoria
da Evolução e pela Física. A Psicologia, por exemplo, que começa a
ser entendida como ciência somente a partir do século 19, reflete
esse tipo de pensamento.
Fundamentando-se numa concepção positivista da mente
humana, ela não se preocupou com questões ligadas à alma (psy-
que). A tendência behaviorista, na sua formulação inicial, ressalta-
va o estudo do indivíduo apenas interagindo com o meio, basean-
do-se na relação entre estímulo e resposta. Essa concepção teve
dificuldade em trabalhar com o método da introspecção, que sa-
lientava as questões da alma e não somente o indivíduo e o meio
(JAPIASSU, 1995, p. 45-69).
As implicações éticas tornam-se evidentes. Quando se nega
a condição humana na sua complexidade e nas suas diferentes

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 109

nuances de compreensão, corre-se o risco de interpretá-la como


coisa. Esse processo de coisificação apresenta sérias consequên-
cias para a sociedade e para o próprio ser humano. Uma delas é a
supervalorização das ciências, privilegiando uma minoria, enquan-
to a grande maioria suporta as consequências dessa evolução. As
pesquisas científicas avançam em diferentes campos da realidade,
enquanto uma parcela considerável da população não tem as mí-
nimas condições para sobreviver. Veja o que dizia Hugo Assmann
(1994, p. 19) quando, em 1994, se referia a 2010:
Muitas das grandes corporações transnacionais trabalham com
uma perspectiva de ‘cenário futuro’, para o ano 2010, entre 700
milhões e um bilhão de consumidores potenciais, com apreciável
poder aquisitivo. Alguns poucos aumentam a cifra da clientela po-
tencial ‘interessante’ para ao redor de um bilhão e meio. Isso numa
humanidade de, previsivelmente, 6,5 a 8 bilhões de habitantes. É
para esse recorde de clientela que se planeja o ‘crescimento econô-
mico’. Como se dá para ver, a ‘massa sobrante’, isto é, o número de
‘desinteressantes’ e ‘descartáveis’, é assustador.

Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados. Na so-


ciedade brasileira, que convive com uma diferença exorbitante de
ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, classifi-
cando o Brasil como um dos países com pior distribuição de renda,
há um excelente mercado emergente de consumo e, ao mesmo
tempo, convive-se, diariamente, com uma situação de extrema
miséria. No continente africano, os seres humanos morrem por
motivos de doenças como a AIDS ou por causa de guerras civis,
sem o apoio de organismos internacionais. Como é um continente
que não interessa política e economicamente, seus problemas são
irrelevantes para o capitalismo globalizado.
A sociedade contemporânea tomou proporções alarmantes,
criando relações de dependência e intercâmbio entre todos os pa-
íses do planeta. Essa situação nem sempre considera a dignidade
da pessoa humana. A abordagem é apenas de ordem econômica
em detrimento da solução dos problemas sociais, vistos como in-
significantes para a manutenção de um pretenso crescimento eco-
nômico.
110 © Antropologia, Ética e Cultura

O que fazer diante desse quadro? Parece que não existem sa-
ídas plausíveis. A apatia e a falta de perspectivas geram um senti-
mento de desânimo generalizado. Basta olhar para a política no Bra-
sil diante dos casos de fraude e corrupção, cada vez mais evidentes
nos três poderes: o executivo, o legislativo e o judiciário. Ou, então,
para o papel da imprensa diante desses fatos e de tantos outros que
envolvem vários campos da sociedade civil e da política.
Na maioria das vezes, o que se percebe é que a imprensa não
se mobiliza para esclarecer essas questões, mas quer apenas criar
sensacionalismo e uma divulgação que não considera as causas re-
ais desses acontecimentos. E a violência explícita e implícita presen-
te na sociedade? Não podemos deixar de nos preocupar com toda
essa problemática. Por isso, torna-se necessário pensar um projeto
ético que resgate a importância da cidadania na sociedade atual.

Um projeto ético humanitário


Existe saída diante de um projeto social que não prioriza a
condição humana? Como ser protagonista numa sociedade em que
a grande parte da população apenas recebe as informações sem
se comprometer com a transformação da realidade? Será possível
aceitar essa postura coisificadora que submete à passividade uma
grande parte da população?
Um projeto ético humanitário pode ser concretizado. O ca-
minho de sua realização depende de cada um de nós e dos meios
disponíveis. O projeto deve ser um compromisso de toda a socie-
dade e pode ser realizado por meio da solidariedade para com o
ser humano, do reconhecimento de relações sociais justas e equi-
tativas e do respeito pela natureza.
Uma ética fundada na solidariedade reconhece o respeito à
pessoa. O homem não pode ser visto como objeto de exploração e de
consumo, mas deve ser respeitado em todas as suas dimensões, des-
de a econômica, política, social e individual. A solidariedade implica
no compromisso com aqueles que são excluídos da sociedade.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 111

É possível criar um processo de inclusão em que todos pos-


sam ter os direitos plenamente reconhecidos. Mas, enquanto exis-
tir tanta diferença social e enquanto tantas pessoas se submeterem
a viver embaixo de pontes e viadutos ou "puxando carroças" para
sobreviver, é sinal de que ainda há muita coisa para ser feita. Tal-
vez, diante disso, tenha-se a sensação de impotência. O que pode
ser feito para transformar essa realidade? Basta dar um pedaço de
pão para quem precisa ou dar uma esmola para um mendigo que
nos interpela na rua? Se isso não for suficiente, como reverter uma
estrutura geradora dessa situação?
Vamos analisar alguns pontos dessa discussão. O primeiro é
a necessidade de se fazer algo a partir das nossas possibilidades,
tomando consciência do problema. Muitas pessoas não se depa-
ram com esse tipo de questionamento. Existe um desconhecimen-
to que ocorre ou por ignorância ou por negligência.
À medida que percebemos ser um problema que atinge a
todos, tornamo-nos responsáveis pela sua legitimação ou trans-
formação. Podemos recuar, mas se o fizermos estaremos nos colo-
cando como coniventes com a maneira que a sociedade está orga-
nizada, tanto no desenvolvimento das ciências como nas relações
políticas, econômicas e culturais.
A propósito das relações sociais é preciso motivar para a ela-
boração de uma ética humanitária. Estamos nos referindo a uma
sociedade que seja capaz de oferecer as condições básicas para a
sobrevivência da vida humana. E levantar esses aspectos é consi-
derar duas grandes áreas: a Saúde e a Educação.
Somente com uma população saudável, em que a medici-
na, por exemplo, não seja apenas curativa, mas preventiva, será
possível garantir os direitos à saúde, ao trabalho, ao lazer, à habi-
tação, entre outros. Uma vida saudável, que englobe todos esses
elementos, exige, também, uma educação não somente alfabeti-
zadora, mas conscientizadora.
112 © Antropologia, Ética e Cultura

No momento, essa tarefa pode ser concretizada por várias


instâncias da sociedade que vão desde o ensino institucional até
outras formas de organização, como sindicatos e empresas. A luta
deve ser de todos, inclusive dos que estão inseridos diretamente
na prática pedagógica, procurando ser agentes de conscientização
libertadora e promotora da vida.
Outra temática essencial que não podemos omitir é no que
tange à natureza. E falar sobre natureza não significa apenas deixar
de cortar uma árvore, embora isso também seja necessário. Signifi-
ca pensar na recuperação e manutenção do ecossistema, que está
sendo destruído por aqueles que, em nome da ciência, entendem
ser a natureza apenas um objeto de exploração e de consumo.
Quando tomamos conhecimento de acontecimentos como
o desmatamento da floresta Amazônica, a dizimação dos índios
– que cada vez mais perdem o direito a terra – e a destruição da
camada de ozônio, nossa posição não pode ser de passividade.
Devemos começar a nos manifestar, sabendo que existem
vários caminhos. Pode ser fazendo um estudo dessa realidade e
conhecendo as iniciativas presentes na comunidade. Ou pela nos-
sa inserção em organizações não governamentais (ONGs) que lu-
tam pela preservação da natureza e pela ecologia política; ou por
meio de uma iniciativa pessoal e com amigos que sensibilize para
a solução dos problemas.
Não podemos nos silenciar diante de tanta barbaridade feita
contra a natureza. Se nos calarmos, quem irá se manifestar é a pró-
pria natureza e, quando isso acontecer, poderá ser tarde demais
para pensar numa solução viável e capaz de reverter a situação.
Assim, apresentamos alguns elementos do que denomina-
mos ética humanitária. A metodologia ou o caminho a ser seguido
depende de cada um. O fato é que não podemos ficar parados, es-
perando os problemas aparecerem. Temos de fazer a nossa parte.
Refletir sobre a ética, analisar as ciências e suas implica-
ções sociais, solidarizar-se com a situação dos pobres e excluídos

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 113

da sociedade e perceber o que o ser humano está fazendo com a


natureza não é uma tarefa fácil. Quando nos deparamos com tal
contexto, temos de nos desacomodar do nosso mundo e nos lan-
çar para uma iniciativa que acreditamos plausível e cujo resultado
ainda não sabemos como se concretizará.
O que deve nos impulsionar é a certeza de que, se não fizermos
algo para mudar esse quadro, as consequências serão catastróficas.
Talvez não soframos o resultado disso, mas as próximas gerações
com certeza sentirão o impacto das decisões tomadas por nós.
Por isso não podemos nos tornar indiferentes. Citamos uma
passagem importante sobre esse tema, que serve como elemento
de reflexão:
Odeio os indiferentes. Como Federico Hebbel, acredito que "viver
quer dizer tomar partido". Não podem existir os apenas homens,
os estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode dei-
xar de ser cidadão e partidário. Indiferença é abulia, é parasitismo,
é covardia, não é vida. Por isso, odeio os indiferentes. A indiferença
é o peso morto da história. É a bola de chumbo para o inovador, é a
matéria inerte na qual frequentemente se afogam os entusiasmos
mais esplendorosos. (...) A indiferença atua poderosamente na his-
tória. Atua passivamente, mas atua. É a fatalidade; é aquilo com o
que não se pode contar; é aquilo que confunde os programas, que
destrói os planos mais bem construídos. É a matéria bruta que se
rebela contra a inteligência e a sufoca. O que acontece, o mal que
se abate sobre todos, o possível bem que um ato heróico (de va-
lor universal) pode gerar, não se deve tanto à iniciativa dos poucos
que atuam, quanto à indiferença de muitos. O que acontece não
acontece tanto porque alguns o queiram, mas porque a massa dos
homens abdica de sua vontade, deixa fazer; deixa enrolarem os nós
que, depois, só a espada poderá cortar; deixa promulgar leis que,
depois, só a revolta fará anular; deixa subir ao poder homens que,
depois só uma sublevação poderá derrubar. (...) Os fatos amadu-
recem na sombra porque mãos, sem qualquer controle a vigiá-las,
tecem a teia da vida coletiva e a massa não sabe, porque não se
preocupa com isso. Os destinos de uma época são manipulados de
acordo com visões restritas, os objetivos imediatos, as ambições
e paixões pessoais de pequenos grupos ativos, e a massa dos ho-
mens ignora, porque não se preocupa (GRAMSCI, 1917).

O nosso compromisso é exigente, apresentando-se como um


desafio colocado por esse cenário atual, do qual temos uma grande
114 © Antropologia, Ética e Cultura

parcela de responsabilidade. Cabe à sociedade mudar as práticas


que não são condizentes com uma ética verdadeiramente humanitá-
ria. Não podemos, em nome de uma ética, continuar atestando uma
falsa ética legitimadora de interesses pessoais ou corporativos.
Para exercermos plenamente o nosso direito de cidadania,
não basta apenas votar no candidato que acreditamos lutar pelos
interesses da população. Precisamos nos sentir membros partici-
pantes e, na medida das nossas possibilidades, fazer alguma coisa
para a concretização de uma sociedade na qual os valores huma-
nos sejam respeitados. Por isso faz sentido acreditar na ética como
fundamento das ações humanas e como princípio que regula as
normas do comportamento social.

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar as questões a se-
guir que tratam da temática desenvolvida nesta unidade, ou seja, da reflexão
sobre a pessoa e das respectivas implicações antropológicas, da distinção en-
tre ética e moral, assim como da valorização e da recuperação do conceito de
cidadania como importante papel de transformação social.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no
estudo desta unidade:

1) Para saber se você compreendeu bem o conteúdo, verifique se há distinção


entre ética e moral, segundo a apostila e os textos indicados. Fundamentado
nessa afirmação, responda:
a) Você entende que é possível existir moral sem ética?
b) Quando moral pode ser entendida como ética?
c) Por que a ética e a moral não são entendidas como um conjunto de ver-
dades fixas e imutáveis, mas fazem parte de um contexto histórico-social
determinado?
2) Diante do que foi estudado sobre ética e moral, reflita sobre o porquê de,
na sociedade contemporânea, não constatarmos uma verdadeira morte dos
valores, tais como a honestidade, a palavra, a sabedoria, a sensibilidade e a
semelhança?

3) A partir do extrato de texto a seguir, reflita sobre o porquê de, por mais que
a constatação seja entendida como moralmente ou até naturalmente aceita
por muita gente, ela ser colocada como um problema ético fundamental.
Você consegue identificar qual seria esse problema?

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© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 115

Muitas das grandes corporações transnacionais trabalham com


uma perspectiva de ‘cenário futuro’, para o ano 2010, entre 700
milhões e um bilhão de consumidores potenciais, com apreciável
poder aquisitivo. Alguns poucos aumentam a cifra da clientela po-
tencial ‘interessante’ para ao redor de um bilhão e meio. Isso numa
humanidade de, previsivelmente, 6,5 a 8 bilhões de habitantes. É
para esse recorde de clientela que se planeja o ‘crescimento econô-
mico’. Como se dá para ver, ‘a massa sobrante’, isto é, o número de
‘desinteressantes’ e ‘descartáveis’, é assustador (ASSMANN, 1994).

4) Segundo a missão e o projeto educativo Claretiano, "O homem é um ser úni-


co, irrepetível, constituído das dimensões biológica, psicológica, social, uni-
ficadas pela dimensão espiritual, que é o núcleo do ser-pessoa". (CEUCLAR,
2005). Partindo dessa afirmação, você pode compreender por que a noção
de Pessoa é tão importante para compreender quem é o ser humano?

5) A missão e o projeto educativo Claretiano enfatizam a importância e o valor


da pessoa humana. Tendo como referência tal definição, você acha que o
estudo desta disciplina foi importante para uma mudança na sua visão so-
bre a noção de pessoa e sua implicação para a compreensão da sociedade
contemporânea?

8. CONSIDERAÇÕES
Depois de refletir sobre o ser pessoa numa perspectiva ética
e cidadã, cabem algumas considerações, cuja finalidade é propor
não o fechamento da questão, mas a abertura de horizontes, vi-
sando a uma atitude de compromisso e de responsabilidade neste
início de século 21. O que pensar a respeito dos temas elencados?
Quais as implicações que eles apresentam para uma atuação cons-
ciente e responsável?
Uma primeira ideia que não se pode negligenciar é o fato de
que a pessoa humana está sendo desconsiderada no atual sistema
capitalista globalizado. Cada vez mais, a preocupação não é com
a humanização do ser humano, mas com a valorização do lucro e
da ganância, "custe o que custar". Os avanços da ciência, o desen-
volvimento tecnológico, entre outras conquistas alcançadas, nor-
malmente, trazem benefícios para uma pequena parcela da popu-
lação; a maioria ainda sofre um processo de empobrecimento que
se traduz numa frase do papa da Igreja católica João Paulo II que
116 © Antropologia, Ética e Cultura

diz: "vivemos numa sociedade de pobres cada vez mais pobres a


custa de ricos cada vez mais ricos". Será esse o nosso desejo para
a sociedade futura e para as próximas gerações, que sofrerão o
impacto das decisões tomadas pela sociedade atual?
Outro aspecto importante, diante da constatação apresentada
no parágrafo anterior, é a morte dos valores na sociedade contem-
porânea. Parece que falar sobre ética e moral se tornou um assunto
arcaico e "fora de moda"; além disso, muitos sustentam que teria
ocorrido uma verdadeira morte dos valores, como, por exemplo, a
sensibilidade, a compaixão, a misericórdia, entre outros.
Resgatar a importância dos valores e o papel da ética, en-
quanto reconhecimento de princípios universais que valorizam a
vida na sua totalidade, é uma tarefa que compete a todos aqueles
que têm sensibilidade e empatia para com o sofrimento e as an-
gústias do ser humano e, porque não dizer, da própria natureza.
Por isso, tratar do tema da ética é tão fundamental quanto
realizar descobertas científicas e tecnológicas. Mas não basta ape-
nas o desenvolvimento do assunto no mundo acadêmico; é preci-
so perceber que existem implições, exigindo ações concretas que
levem os seres humanos a se comprometerem com a transforma-
ção da sociedade, fazendo-a cada vez mais humana e eticamente
sustentável.
Todos esses aspectos remetem para a discussão a respeito
da cidadania, por isso, na última parte da terceira unidade, o tema
foi apresentado dentro dos limites propostos pela disciplina. Mui-
tas coisas poderiam ser ditas. Mas cabe ressaltar que foi apresen-
tada apenas uma pequena reflexão, remetendo o interessado a
estudar mais a respeito, a partir das obras indicadas nos tópicos de
referências bibliográficas de cada unidade.
O problema é que falar de cidadania não é apenas refletir te-
oricamente a questão, mas, assim como a ética, é pensar em ações

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Ser Pessoa, Ética e Cidadania 117

concretas que mostrem a nossa preocupação com a situação atual


da sociedade em que estamos inseridos.
O texto de Gramsci – odeio os indiferentes – apresenta-se
como um questionamento interessante para nos posicionarmos
diante dos desafios atuais. O que estamos fazendo para resolver
os problemas e impasses presentes nos diversos campos de atu-
ação do ser humano, tais como a política, a religião, a família, a
desigualdade social, entre outros?
Chegando ao final da unidade, inserida dentro da disciplina
Antropologia, Ética e Cultura, a intenção é mostrar que, indepen-
dentemente de credo religioso, de ideologia política, de opiniões
pessoais, o ser humano não pode ficar alheio aos desafios que de-
vem ser enfrentados na sociedade atual.
O Centro Universitário Claretiano tem uma missão e um
projeto de educação ética e humanitária. Todos são convidados a
entendê-los e aplicá-los. Ajude a multiplicar essa ideia, fortalecen-
do a consciência e a necessidade da nossa responsabilidade para
alcançar esse objetivo. Não percamos a esperança, jamais...!

9. E-REFERÊNCIAS

Lista de figuras
Figura 1 – Oito jeitos de mudar o mundo: disponível em: <http://www.objetivosdomilenio.
org.br/todosjuntos/>. Acesso em: 23 set. 2010.

Sites pesquisados
BETTO, F. Oito jeitos de mudar o mundo. Disponível em: <http://alainet.org/
active/6469&lang=es>. Acesso em: 23 set. 2010.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.onu-
brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em: 15 out. 2010.
VANDRÉ, Geraldo. Pra não dizer que não falei das flores. Disponível em: <http://www.
mpbnet.com.br/musicos/geraldo.vandre/letras/pra_nao_dizer_que_nao_falei_das_
flores.htm>. Acesso em: 15 out. 2010.
118 © Antropologia, Ética e Cultura

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ALVES, Rubem. Filosofia da ciência. Introdução ao jogo e suas regras. 8. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
ASSMANN, Hugo. Crítica à lógica da exclusão. São Paulo: Paulus, 1994.
BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca de fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2004.
COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São
Paulo: Companhia das Letras, 2006.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. 14a
ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
GALLO, Silvio (Coord.). Ética e Cidadania: Caminhos da Filosofia. 11. ed. Campinas:
Papirus, 2003.
HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry; GAARDER, Jostein. O livro das religiões. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.
JAPIASSÚ, Hilton. Introdução à epistemologia da psicologia. 5. ed. São Paulo: Letras &
Letras, 1995.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura. Um conceito Antropológico. 20. ed. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
MONDIN, Battista. O homem: quem é ele? Elementos de Antropologia Filosófica. 8. ed.
São Paulo: Paulus, 1980.
MANZINI COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. São Paulo: Brasiliense, 1998.
MONDIN, Battista. Definição filosófica da pessoa humana. Bauru: EDUSC, 1998.
PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. 2. ed. São Paulo:
Contexto, 2003.
RUBIO, Alfonso García. Elementos de antropologia teológica. Salvação cristã: salvos de
quê e para quê? 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
VALLS, Aluaro. O que é ética. São Paulo: Brasiliense, 1994.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1992.

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EAD
Estrutura do Ser Humano:
Ser Bio-Psíquico-
Espiritual-
-Transcendente
4
Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanos Piva
Prof. Juan Antonio Acha

1. OBJETIVOS
• Familiarizar-se com as dimensões constitutivas do ser hu-
mano e com a relação corpo-alma.
• Interpretar a reflexão que a antropologia faz sobre o ser
"homem" e sua estrutura ontológica.
• Reconhecer e analisar os argumentos válidos para justifi-
car o não antagonismo e a não identificação do corpo e
da alma.
• Identificar o eu, núcleo da pessoa humana, e refletir so-
bre ele.
• Interpretar a importância do tu na formação da persona-
lidade.
120 © Antropologia, Ética e Cultura

• Analisar, desde a realidade bio-psíquico-espiritual do ser


humano, sua relação com o mundo.

2. CONTEÚDOS
• Elementos constitutivos do ser humano.
• Princípios essenciais do ser humano.
• Relação funcional das dimensões constitutivas do ser hu-
mano.
• Descrição da unidade vital do homem, o sujeito.
• Caracteres constitutivos do ser humano.
• O homem, ser social.
• Surgimento da personalidade e a relação com o outro.
• Características existenciais do homem.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Confira no Caderno de Atividades e Interatividades as dicas
e os dados para a realização de sua avaliação continuada.
Aproveite este momento para ler e refletir sobre os obje-
tivos que propusemos atingir e, com base nessa reflexão,
assumir uma postura crítica diante de sua aprendizagem.
2) Nesta unidade, você terá a possibilidade de considerar
a posição dos antropólogos e filósofos que sugerem que
as regiões constitutivas do homem são três: a vital, a
psicológica e a espiritual. Eles destacam, ainda, que elas
não podem ser pensadas separadamente, pois não seria
humano o homem sem corpo, sem interioridade e sem
dimensão espiritual – afinal, todas essas dimensões são
parte do ser homem.
3) Para aprofundar-se nos temas tratados nesta unidade,
sugerimos a leitura de algumas obras:

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 121

a) de Teilhard de Chardin, O fenômeno humano, p.


192-198 e p. 206.
b) Anatomia da destrutividade humana, de E. Fromm,
p. 300-350.
c) O Homem, quem é ele?, de B. Mondin e o primeiro
e o segundo capítulos de O fenômeno humano, de
Teilhard De Chardin.
d) Fundamentos antropológicos da psicoterapia, de
Viktor E. Frankl.
4) Vá além! Pesquise os livros citados no Tópico Referências
Bibliográficas e os sites referenciados em E-Referências.
5) Antes de iniciar os estudos desta unidade, é interessante
conhecer um pouco da biografia de Viktor E. Frankl, cujo
pensamento norteia o estudo desta unidade. Para saber
mais, acesse os sites indicados.

Viktor E. Frankl (1905-1997)


Foi psicoterapeuta, criador da Logoterapia, método psicoterápico baseado no
sentido da vida. Médico e pensador brilhante, doutor em filosofia, conhecido con-
ferencista. Publicou 27 livros, dos quais muitos são considerados de fundamen-
tal importância para o desenvolvimento da psicoterapia. Se você está tendo um
primeiro contato com a obra desse pensador, sugerimos que leia as obras Um
psicólogo no campo de concentração, Psicoterapia e sentido da vida e Deus
inconsciente.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na Unidade 1, você teve oportunidade de ver que existem
diversas interpretações filosóficas sobre o homem, as quais o ex-
plicam de diferentes perspectivas:
• As que dão ênfase ao físico: o homem atuaria sustenta-
do pelas características físico-biológicas, sem se admitir
que possa existir entre ele e a natureza uma diferenciação
qualitativa.
• A existencialista, que enfatiza a construção da personali-
dade na existência.
• Os que defendem que há, entre o homem e a natureza,
122 © Antropologia, Ética e Cultura

uma diferenciação ontológica. Por sua capacidade supe-


rior, o homem pode passar por cima do determinismo da
matéria e da existência.
Nesta unidade, você vai perceber que o estudo da Antropo-
logia Filosófica tem por objetivo abranger o homem em sua to-
talidade. Por isso, é de vital importância saber como se unificam
as dimensões constitutivas. Você vai estudar as regiões essenciais
que compõem o Ser Homem: a biológica ou vital, a psicológica e a
espiritual.

5. HOMEM: UM ÚNICO SER E UM ÚNICO SUJEITO


Qualquer forma de dualismo antropológico (como a de Pla-
tão ou a de Descartes) é refutada pelos investigadores atuais da
Antropologia Filosófica. Tampouco é aceito o monismo naturalista
contido na ideia materialista, pois este é entendido como uma das
formas de reducionismo. Se a Antropologia Filosófica pretende
explicar o homem de forma integral e não fragmentada, como já
foi exposto, deve, antes de qualquer coisa, explicar como as dife-
rentes dimensões constitutivas do ser humano acontecem: corpo,
psique e espírito unificam-se.

Dualismo corpo-alma
O dualismo é uma concepção que está sempre presente na
concepção antropológica. Os filósofos "pitagóricos gregos" pensa-
vam que a alma era imortal, vinha do céu e caía na Terra para en-
trar no corpo, ao qual ficava atada. Por isso, eles buscavam, com a
"liberação do corpo", o "retorno".
Corpo e espírito, esses dois termos opostos em natureza,
criaram sucessivas discussões. A filosofia aristotélica e, logo, a cha-
mada filosofia perene, virão para auxiliar na superação do proble-
ma criado pelo dualismo, em que a alma espiritual e o corpo físico
existem como dois seres separados.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 123

A filosofia tradicional, superando essa concepção dualista,


contempla todos os fundamentos da pessoa humana sem recor-
tar aspectos de sua realidade. Para isso, leva em consideração, no
momento de uma análise antropológica, os aspectos psicológico,
biológico e espiritual, considerando não só as particularidades ôn-
ticas, mas também a dimensão existencial.
A posição de Santo Tomás é clara: o homem não pode ser
explicado como a união de duas partes: a orgânica e a espiritual.
Para os clássicos, o ser humano é uma reunião substancial desses
dois princípios (um opera em relação ao outro). Assim, a ausência
de algum deles destrói a pessoa, que passaria a ser alguma outra
coisa diferente de um ser humano.
Na nossa cultura, é muito comum interpretar a "alma" no
sentido teológico-religioso. Nesse caso, o termo "alma" indica a
relação de criatura com Deus criador entrando no plano da fé. No
outro extremo, encontramos a psicologia empírica, movimento
intelectual contrário ao exposto. Nesse caso, o termo alma tem
uma finalidade diferente, sendo utilizado como sinônimo de fe-
nômenos psíquicos. Para Hume (2003), falar em alma é falar em
fenômenos psíquicos impessoais.
Santo Tomás (2002) explica que a alma concede a perfeição
ao homem, relacionando-o com seu ser. Ela caracteriza o homem
porque lhe informa as funções vegetativa e sensitiva. O homem,
então, é composto de alma e corpo numa unidade integrativa,
substancial.
Para continuar nossa linha de raciocínio, é preciso ressaltar
que o termo "alma" deve entender-se sempre como a não redução
da pessoa ao orgânico, ao corpo; supõe que o homem, se bom,
possui corpo e não se identifica somente com ele.
Podemos resumir essas ideias da seguinte maneira: o ho-
mem não é o resultado de elementos sobrepostos (alma e corpo),
mas, sim, a unificação, num "núcleo", dessas dimensões diferen-
tes. A antropologia tradicional, inspirada na teoria hilemorfista de
124 © Antropologia, Ética e Cultura

Aristóteles, pronuncia-se a favor da concepção unitária. Corpo ani-


mado em conjunto com alma corporizada.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Na obra de Tomás de Aquino, fica evidente a importância da unidade essencial
do homem. É conhecida a expressão de Tomás de Aquino sobre a matéria: est
principium individuationis, que indica que o que determina a individualidade no
homem é a matéria (totalidade biológica), sendo este seu constitutivo essencial.
Essa afirmação resulta em estranheza, pois parece que não se encaixa na rea-
lidade do ente humano. Isso acontece porque ainda temos, pela herança platô-
nica, a ideia da matéria imperfeita em oposição ao ser perfeito e a sensação de
que existe um abismo entre o mundo inteligível e o sensível. O individual, para
Platão, por estar ligado à matéria, é a parte imperfeita em oposição à perfeição,
que é o universal (a ideia). Esse pensador recebe de Parmênides a noção de que
a matéria é o não inteligível e está em oposição ao ser. O discípulo de Platão,
Aristóteles, a denomina "pura potência", colocando-a como princípio de "muta-
bilidade". O pensamento cristão, movimento do qual participa Tomás de Aquino,
quando admite que a matéria é criação de Deus, muda totalmente a concepção
grega de autoria do trinômio Parmênides, Platão e Aristóteles. Hoje, vemos que
há uma impossibilidade para atribuir a personalidade (como princípio de individu-
ação) somente à matéria; parece mais racional colocá-la no conjunto substancial
matéria-espírito (QUILES, 1967). Chegando a nossos dias, o contemporâneo
Gabriel Marcel, pensador existencialista católico, descreve a existência humana
como "existência encarnada", explicando que a vida vegetativa está em relação
plena e total com a vida intelectual.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
O termo "dimensão espiritual" é controverso na história
da filosofia. A seguir, você encontrará uma parte da obra de
Etchebehere (2008) que apresenta as diferentes vertentes para se
pensar esse termo:

A dimensão espiritual––––––––––––––––––––––––––––––––––
O homem é um horizonte entre corporal e espiritual. Cabe então falar do es-
piritual. Porém, há uma necessidade ontológica de falar do espírito ou é, uma
necessidade metafórica?
Ou, com outras palavras, se ajusta somente à descrição do homem como hori-
zonte ou tem uma real existência além do simbólico?
Por experiência, percebemos uma diferença entre o vivo e o inerte, isto é, naquilo
que manifesta vida e o que nunca teve – uma cadeira, por exemplo – ou não tem
vida porque a perdeu – um animal morto –. Por outra parte também experimen-
tamos algo comum que existe entre o vivo e o morto, e isso comum é o material.
Deve existir algo mais que somente matéria para poder explicar a vida. E esse
"algo mais", esse outro que não está nos seres mortos, o chamamos alma ou
espírito.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 125

Isso que foi colocado tem alguns pressupostos. Por um lado, devemos experi-
mentar a diferença entre o vivo e o morto, isto é, devemos ver uma heterogenei-
dade no real, uma diferença radial entre estar vivo e estar morto.
Isto significa que "esses 21 gramas", que diferenciam um ser vivo de um morto
não pertencem à mesma hierarquia que o material. Seja como for, imaginemos
como imaginemos, o que chamamos alma é o que dá sentido a essa matéria,
sem a qual a matéria dissolve-se nos diferentes elementos que a compõem. Ou
para dizer de outra maneira, quando a alma se vai da carne, esta se torna corpo
e os elementos que a compõem retornam a suas formas primitivas, o úmido do
corpo volta a ser líquido, e se evapora, por exemplo.
O outro pressuposto é que essa teoria da alma não deve ser uma solução por
ignorância, isto é, não devemos dizer "espírito" onde a ciência biológica diz "ain-
da não sei".
A Antropologia filosófica, neste caso enquanto psicologia ou estudo da alma,
deve se esforçar em dialogar com as ciências biológicas, tanto para a superação
do esquema cartesiano de res cogitans / res extensa, como para a superação do
esquema ciências do espírito/ciências da natureza.
Assim, podemos dizer que existe uma alma ou espírito que anima, isto é, dá
vida a uma matéria, fazendo com que passe de corpo a carne. Temos usado
indistintamente o termo alma como o termo espírito, porém, cabe fazer algumas
distinções. Neste livro de antropologia preferimos usar a palavra "espírito" mais
que "alma", porque este termo nos permite mostrar o mais propriamente huma-
no, em comparação com os outros seres viventes e, por outro lado, nos leva a
pensar algo mais que humano.
Os usos da palavra espírito.
A palavra "espírito" chega a nossos ouvidos com um som de divindade. Um dos
usos desse termo é o religioso. Espírito é uma das pessoas da trindade. Assim,
então, quando usamos essa palavra no que diz respeito ao homem, teremos que
assinalar que algo dele é divino, que alguma participação tem com a natureza
de Deus.
O segundo uso desta palavra já não é no singular, mas, sim, no plural. Falamos
de "os espíritos" para nos referirmos à realidade demoníaca, isto é, realidades
que fazem de nexo entre os deuses e os homens. Assim se entende o demônio
de que falava a Sócrates e que lhe aconselhava o que não fazer, ou a caracteri-
zação que faz Platão do amor no Banquete. O espírito como demônio é um poder
capaz de unificar as diferentes forças da alma humana dando-lhe um sentido,
uma orientação superior.
Na história do pensamento o termo "gênio" se aplica à pessoa que é muito in-
teligente, com o qual vemos que o espiritual é referido diretamente ao racional
não tanto ao afetivo. Porém, "gênio" se aplica também à pessoa que se destaca
sobre o comum, àquele que tem certo carisma que o torna atrativo aos demais,
ou, em outras palavras, é um ídolo para os demais. Tanto demônio como gênio
têm a capacidade de colocar o homem além de seus limites. Então podemos di-
zer que o demônio e o gênio possuem a característica de propor uma forma nova
de atuar, rompem com a rotina e anunciam algo novo, aí está a genialidade – por
sua novidade – seja inicialmente rejeitada, mal compreendida.
O terceiro uso da palavra espírito se aplica à atitude que tomamos perante as
dificuldades. Assim, dizemos que um ancião tem espírito quando apesar da idade
e das enfermidades tem uma visão otimista das coisas, ou também o usamos
126 © Antropologia, Ética e Cultura

quando alguém se sobrepõe a enfermidades muito graves. A força do espírito


aparece então em situações limites, sob as quais a maioria das pessoas decai.
Então, podemos dizer que, se a carne mostra claramente os sinais de finitude, o
espírito os assume, porém não se dá por vencido.

Da Alma
Anteriormente dizemos que preferíamos o uso do termo "espírito" para falar da-
quilo que dá vida, que vivifica. Porém, agora cabe fazer uma aclaração. Na his-
tória da Antropologia, os autores têm oscilado entre dois modelos de constituição
do homem: o bipartido ou o tripartido.
O modelo bipartido é aquele que diz que o homem está composto de corpo e
alma. Então são dois os princípios essenciais do homem. Este modelo tem a
vantagem de ser simples – dentro do que se pode tratar aqui de simples – e ter
uma valorização positiva do corpo. Ainda que a simplicidade do modelo tenha
como desvantagem dificultar a visão espiritual da alma.
É por isso que alguns autores adotaram o modelo tripartido. Segundo esse mo-
delo, o homem está composto de corpo, alma e espírito (PLATÃO, República). O
homem tem assim um princípio vital, que é a alma, e que tem como função ani-
mar o corpo, porém, tem também o espírito, que se distancia do material e é onde
propriamente o humano mora. Vemos então como esse modelo tem a vantagem
de dar uma característica espiritual ao homem e claramente uma dimensão que
entra em comunhão com o transcendente; porém, tem como desvantagem des-
considerar o carnal, dado que o humano tende, como já dizemos, a localizar-se
no espiritual. A outra vantagem que possui esse modelo é que permite um trata-
mento da alma como realidade independente do espírito e, portanto, o que afeta
a um não afeta ao outro. Porém, essa vantagem se transforma em problema:
deixa muito comprometida a unidade do homem.

Que entendemos por alma?


Segundo Aristóteles, poderíamos distinguir três definições de alma. A primeira – de
caráter fenomenológico – nos diz que a alma é "aquilo por que vivemos, sentimos,
raciocinamos primariamente e radicalmente" (ARISTÓTELES, Sobre a alma).
Essa primeira definição nos diz que a alma é princípio de vida e que, por outro lado,
como tal é princípio também das operações, dos atos dos seres vivos. E, seguindo
essa definição, podemos distinguir também três tipos de alma: a vegetativa, cujos
atos são a nutrição, o crescimento e a geração; a alma animal, cujos atos têm a ver
com o sentir e, finalmente, alma humana, cujos atos são racionais.
A segunda definição diz assim: "A alma é o ato primeiro de um corpo natural que
tem vida em potência" (ARISTÓTELES, Sobre a alma).
Em primeiro lugar, esse pensador diz que alma é o ato primeiro. O ato primeiro
é o ato que constitui uma coisa, isto é, a forma substancial, aquilo mais perfeito
da essência de uma coisa material. Se diz ato "primeiro" enquanto funda o ato
"segundo", que são as operações. Em segundo lugar, fala-se de um corpo na-
tural, isto é, um corpo que não é artificial. O artificial pode ter movimentos, pode
raciocinar, porém, não tem alma, porque sua matéria não é orgânica, o artificial,
como seu nome indica, é constituído pela arte humana. Em terceiro lugar, diz-se
"que tem a vida em potência" enquanto se quer destacar a disposição do corpo-
ral para exercer as ações vitais. A alma não pode ser alma se o corpo não está
disposto, como se vê nos moribundos ou doentes terminais, quando não tem
possibilidades de exercer os atos da vida.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 127

Essa definição de alma explicita ou dá razão à primeira definição, quando nos diz
que o princípio das operações, porque é ato primeiro, é a forma substancial do
vivente. Porém, cabe ainda uma terceira definição, e é a seguinte: "A alma é de
algum modo todas as coisas" (ARISTÓTELES, Da alma).
Enquanto que na segunda definição a alma se fecha na carne, se oculta ao
dar vida à matéria e, portanto, se limita a essa carne, a esses ossos, esta nova
definição nos mostra que a alma é infinita, isto é, está aberta a todo o real (SAN-
TO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica). A alma, então, tem uma capacidade
de infinitude enquanto pode receber, pode hospedar inclusive ao mesmo tempo
Deus, por isso se fala do homem como "capax Dei", está aberta ao absoluto.
Porém, essa infinita abertura da alma, que a constitui em alma espiritual, envolve um
risco, envolve o drama da alma. Porque enquanto é infinita, a alma pode se perder,
pode não encontrar seu sentido e cair em desespero. Seguindo Kierkegaard, podemos
dizer que o desesperado é aquele que não é o que é, e é o que não é. O desespe-
rado aparece como aquele que, graças a essa capacidade de ser tudo, não é nada
(KIERKERGAARD, Tratado da desesperação). Vai de um lado para o outro, sem lugar
próprio, sem destino fixo. Assim, a infinitude da alma pode ser seu fundamento, porém
também seu abismo. (ETCHEBEHERE, 2008, p. 47-52, tradução nossa).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

6. REGIÕES ESSENCIAIS DO HOMEM


Max Scheler, no Capítulo II da obra A posição do homem no cos-
mo, trata da diferença essencial que pode existir entre o homem e o
animal. Para ilustrar o tema, ele formula as seguintes perguntas:
[...] não existiria em última instância mais do que uma diferença
de grau entre o homem e o animal – ainda existiria então alguma
diferença essência? Ou será que há ainda algo totalmente diverso
no homem para além dos estágios essências até aqui tratados, algo
que lhe adviria especificamente e que não é de maneira alguma
tocado e exaurido através de noções tal como a de escolha e inteli-
gência em geral? (2003, p. 34).

Sobre esses questionamentos, há duas teorias dominantes e


muito difundidas:
• A primeira é a que reserva a inteligência como constituti-
vo exclusivo do homem e a nega aos animais.
• A segunda defende que não existe diferença essencial
entre o homem e o animal. Os defensores dessa última
posição são os evolucionistas, como Darwin, Lamarck,
Schwalbe e seus seguidores.
128 © Antropologia, Ética e Cultura

Scheler (2003), entretanto, não concorda com nenhuma das


duas, por considerar que a essência do homem está acima da in-
teligência e da faculdade de eleição. Observe o que ele escreve
sobre o tema na obra A posição do homem no cosmos:
A essência do homem––––––––––––––––––––––––––––––––––
Surge agora, aqui, a questão decisiva para o conjunto do nosso problema: se a
inteligência está já presente no animal, existirá ainda mais do que uma simples
diferença de grau entre o homem e o animal – haverá também uma diferença
de essência? Existirá ainda no homem algo de todo diverso que ultrapasse os
estágios essenciais até agora abordados, algo de especificamente humano, que
seja irredutível e não se esgote com a escolha e com a inteligência em geral? É
aqui que os caminhos se dividem de forma mais pronunciada.
Uns querem reservar para o homem a inteligência e a escolha, que recusam ao
animal: reconhecem decerto uma diferença hiperquantitativa, mas situam-na a
um nível em que, a meu ver, não existe nenhuma diferença essencial. Outros,
sobretudo todos os evolucionistas da escola darwiniana e lamarckiana, rejeitam
com Darwin, Schwalbe e W. Köhler uma diferença derradeira entre o homem e o
animal, justamente porque este já possui também inteligência; religam-se assim,
de alguma forma, à grande teoria da unidade do homem, que designo como a
teoria do "homo faber" e, por conseguinte, não conhecem nenhum ser metafísi-
co, nenhuma metafísica do homem, a saber, nenhuma relação distintiva, que o
homem enquanto tal possuiria com o fundamento do mundo.
Pelo que a mim me toca, rejeito ambas as teorias. E afirmo: a essência do ho-
mem, o que se pode chamar a sua "posição peculiar", está muito acima do que
se denomina inteligência e aptidão para a escolha; e não se chegaria lá, mesmo
se estas faculdades se representassem ampliadas seja a que grau for e, inclu-
sive, se intensificassem até ao infinito. Mas seria igualmente errôneo imaginar a
novidade, que faz do homem um homem, como um novo estágio essencial que
se acrescenta aos anteriores: impulso afectivo, instinto, memória associativa, in-
teligência e escolha – e como um novo grau das funções e aptidões psíquicas
e vitais: o seu conhecimento respectivo dependeria ainda da competência da
psicologia.
O novo princípio está fora de tudo aquilo que, no sentido mais amplo, podemos
chamar "vida". O que somente do homem faz um "homem" não é um novo está-
dio da vida em geral – nem sequer é um estádio da única forma de manifestação
desta vida, da "psique" –, mas é apenas um princípio oposto a toda e a cada vida
em geral, e também à vida no homem: um genuíno e novo facto essencial que,
como tal, não se pode reduzir à "evolução natural da vida"; se a algo se reduz, é
apenas ao fundamento supremo e único das coisas: ao próprio fundamento, de
que a "vida" é apenas uma grande manifestação".
Os Gregos afirmaram já semelhante princípio e chamaram-lhe "razão". Prefiro
utilizar uma palavra mais ampla; engloba ela o conceito de "razão" e, além do
"pensamento por ideias", abarca também uma espécie determinada de "intuição"
(Anschauung) – a intuição dos protofenômenos ou dos conteúdos eidéticos –,
e ainda uma certa classe de actos volitivos e emocionais como bondade, amor,
arrependimento, veneração, admiração espiritual, beatitude e desespero, a livre
decisão: ou seja, a palavra espírito (Geist). Mas ao centro de actos, em que o
espírito se manifesta no seio das esferas finitas do ser, caracterizamo-lo como

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 129

"pessoa", em contraste incisivo com todos os centros vitais funcionais que, do


ponto de vista interno, se chamam também centros "psíquicos".
Mas que é este "espírito", este princípio novo e tão decisivo?
Poucas palavras suscitaram, como esta, tantos abusos – uma palavra em que
raramente se pensa algo de determinado. Se situarmos no topo do conceito de
espírito a sua função particular de saber, o tipo de saber que só ele pode propor-
cionar, então a determinação fundamental de um ser "espiritual", seja qual for a
sua constituição psicofísica, é o seu desprendimento existencial do orgânico, a
sua liberdade, a possibilidade que ele – ou o centro da sua existência – tem de se
separar do fascínio, da pressão, da dependência do orgânico, da "vida" e de tudo
o que pertence à "vida" – por conseguinte, também da sua própria "inteligência"
pulsional.
Um ser "espiritual" já não se encontra, pois, sujeito ao impulso e ao meio, mas
está "liberto do meio" e, como nos apraz dizer, "aberto ao mundo": semelhante
ser tem "mundo". Pode, ademais, elevar a "objectos" os centros de "resistência"
e de reacção do seu meio, também a ele originariamente dados, que só o animal
possui e nos quais extaticamente mergulha; pode, em princípio, apreender o
próprio ser-assim (Sosein) desses objectos, sem a limitação que este mundo ob-
jectal, o seu carácter de dado, experimenta através do sistema pulsional da vida,
bem como as funções e os órgãos sensoriais a ele submetidos.
O espírito é, pois, objectividade, determinabilidade pelo ser-assim das próprias
coisas. "Tem" apenas um ser vital capaz de plena objectividade. Em termos mais
incisivos: só um tal ser é "portador" do espírito, cujo intercâmbio principial com
a realidade a ele exterior e consigo mesmo sofreu, em relação ao animal, uma
inversão dinâmica, incluindo a sua inteligência.
Que "inversão" é esta?
No animal – seja ele de organização superior ou inferior – cada acção, cada
reacção, por ele efectuada, inclusive a "inteligente", dimana de uma disposição
fisiológica do seu sistema nervoso, à qual estão ligados, no plano psíquico, ins-
tintos, impulsos motores e percepções sensíveis. O que para os instintos e para
os impulsos não é interessante também não é dado, e o que é dado só é dado ao
animal como centro de resistência relativamente ao desejo ou à aversão, isto é,
como centro biológico. O primeiro acto do drama de um comportamento animal
frente ao seu meio tem, pois, sempre o ponto de partida num estado psicofisio-
lógico. A estrutura do meio ambiente é aí, de modo exacto e pleno, "consistente-
mente" conforme à peculiaridade fisiológica e, indirectamente, à natureza morfo-
lógica do animal, e ainda à estrutura impulsiva e sensorial, pois elas constituem
uma rigorosa unidade funcional. Tudo o que o animal pode advertir e apreender
a partir do seu meio reside nos seguros limites e fronteiras da estrutura do seu
meio. O segundo acto deste drama consiste em introduzir no meio uma modifi-
cação efectiva, mediante uma reacção do animal na direcção do fim almejado. O
terceiro acto é assim a transformação do estado psicofisiológico.
A conduta animal desenrola-se, pois, sempre de acordo com esta forma:
A[nimal]!M[eio]
Num ser que tem "espírito" ocorre absolutamente o contrário.
Ele – quando e na medida em que também, por assim dizer, se serve do seu es-
pírito – é capaz de uma conduta que possui uma forma de decurso oposta. O pri-
meiro acto deste novo drama, do drama humano, é o seguinte: o comportamento
é "motivado" pelo puro "ser-assim" de um complexo intuitivo ou representativo
130 © Antropologia, Ética e Cultura

elevado a objecto, e isto é, em princípio, independente da organização fisiológica


e psíquica do organismo humano, independente dos seus impulsos motores e
do aspecto exterior e sensível do meio, que justamente encontra neles a sua
elucidação e recebe sempre uma certa determinação modal (óptica ou acústica,
etc.). O segundo acto é a inibição livre, isto é, derivada do centro da pessoa, de
um impulso motor, ou então, a desobstrução de um impulso motor antes retido
(e de uma reacção correspondente). O terceiro acto é uma transformação, vivida
como dotada de valor próprio e com carácter definitivo, da objectalidade de uma
coisa. A forma de semelhante comportamento é a da "abertura ao mundo", da
libertação do fascínio do meio ambiente:
H[omem] A[bertura ao mundo]!
Este comportamento, onde por constituição existe, é por natureza susceptível
de uma extensão ilimitada – chega até onde se desdobra o "mundo" das coisas
existentes.
O homem é, pois, o X que, em medida ilimitada, se pode comportar como "aberto
ao mundo". A hominização (Menschwerdung) é a elevação à abertura ao mundo
por força do espírito.
O animal não tem "objectos"; vive extaticamente imerso no seu meio que ele,
qual caracol com a sua concha, transporta como estrutura para onde quer que
vá – sem de tal meio conseguir fazer um objecto. Não consegue levar a cabo
nem o afastamento peculiar, a distanciação do "meio ambiente" ao "mundo"
(isto é, a um símbolo do mundo), de que o homem é capaz, nem a transforma-
ção em "objectos" dos centros de "resistência" que os seus afectos e impulsos
delimitam. Ser-objecto é, pois, a categoria mais formal da vertente lógica do
espírito. Eu diria que o animal está por essência demasiado preso e absorvido
na realidade vital, correlativa aos seus estados orgânicos, para alguma vez "ob-
jectivamente" a conseguir apreender. O animal já não vive, decerto, de modo
absolutamente extático no seu ambiente (como no seu meio mergulha o impul-
so afectivo, insensível, privado de representações e inconsciente, da planta,
sem qualquer ressonância interna dos estados peculiares do organismo); é,
por assim dizer, restituído a si mesmo, graças à separação entre o sensório e
o elemento motor e em virtude da permanente retroacção dos seus respectivos
conteúdos sensoriais: possui um "esquema corporal". Frente ao meio, porém,
o animal continua a comportar-se extaticamente – mesmo onde se conduz de
modo "inteligente". E a sua inteligência permanece orgânica-impulsiva-pratica-
mente vinculada.
O acto espiritual, tal como o homem o pode realizar, e contrariamente à simples
retroacção do esquema corporal animal e dos seus conteúdos, está essencial-
mente ligado a uma segunda dimensão e etapa do acto reflexo. Em resumo,
chamaremos "concentração" a este acto, e chamá-lo-emos a ele e ao seu fim,
o fim deste "concentrar-se", "consciência de si, própria do centro de actividade
espiritual", ou "autoconsciência". O animal, diferentemente da planta, tem cons-
ciência, mas não autoconsciência, como já Leibniz vira. Não se possui, não é
senhor de si – e, por isso, também não é consciente de si mesmo.
Concentração, autoconsciência e capacidade objectivante da originária resistên-
cia impulsiva formam, portanto, uma singular estrutura indissolúvel que, como tal,
só ao homem pertence.
Com este tornar-se-consciente-de-si, com este novo recuo e centração da exis-
tência que o espírito possibilita, surge igualmente a segunda característica es-
sencial do homem. Graças ao seu espírito, o ser que denominamos "homem"

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 131

pode alargar o ambiente circundante à dimensão do universo e objectivar as "re-


sistências"; pode igualmente – e é o mais notável – transformar em objecto a sua
própria constituição fisiológica e psíquica, cada "vivência" mental particular, cada
uma das suas funções vitais. Só por isso é que semelhante ser pode também
renunciar livremente à sua vida. O animal ouve e vê – mas sem saber que ouve e
que vê. A psique do animal funciona, vive – mas o animal não é nenhum psicólo-
go e fisiólogo! Devemos pensar em estados extáticos muito raros do homem – na
hipnose plena, na absorção de certos venenos inebriantes, em certas técnicas
de inibição consciente do espírito (ou seja, já com uma intervenção mental), por
exemplo, cultos orgiásticos de toda a espécie – para, de algum modo, nos trans-
ferirmos para o estado normal do animal. O animal também não vive os impulsos
derivados das suas tendências como seus, mas como atracções e repulsas dinâ-
micas, que derivam das próprias coisas do meio. [...]
O animal não tem uma "vontade" que sobreviva aos seus impulsos e à sua mu-
dança e que, na alteração dos seus estados psicofísicos, possa garantir uma
continuidade. Um animal chega sempre, por assim dizer, a um lugar diferente da-
quele que originariamente "pretendia". Nietzsche é profundo e correcto quando
diz que "o homem é o animal que pode prometer".
Há quatro graus essenciais em que aparece todo o existente, relativamente à sua
interioridade (Innesein) e ipseidade (Selbstsein).
As coisas anorgânicas são de todo desprovidas de semelhante interioridade e
ipseidade; também não têm centro algum, que onticamente lhes pertença; por-
tanto, também nenhum medium, nenhum ambiente. O que neste mundo objec-
tivo designamos como unidade, até às moléculas, aos átomos e aos electrões,
depende exclusivamente do nosso poder de dividir os corpos realiter (do latim
corpori realiter) ou, pelo menos, em pensamento. Cada unidade corporal anor-
gânica só é tal relativamente a uma legalidade determinada da sua acção sobre
outros corpos. Mas os centros inespaciais de forças, que suscitam o aparecimen-
to da extensão no tempo, e que temos de colocar metafisicamente na base das
imagens dos corpos, são centros de pontos dinâmicos de acção interdependente
e recíproca, em que confluem as linhas de força de um campo. Um ser vivo, pelo
contrário, é sempre um centro ôntico e modela "a sua" unidade espacio-temporal
e a sua individualidade; estas não derivam, como nas coisas anorgânicas, da
"nossa" actividade de unificação biologicamente condicionada. Ele é um X que a
si próprio se delimita; tem "individualidade" – desmembrá-lo significa aniquilá-lo,
eliminar a sua essência e a sua existência. O impulso afectivo da planta possui
um centro e um meio em que o ser vivo, relativamente aberto no seu crescimen-
to, está mergulhado, sem réplica dos seus diferentes estados ao seu centro; mas
a planta dispõe, em geral, de uma "interioridade" e, por isso mesmo, é "animada".
No animal, a sensação e a consciência existem, e há nele um ponto central de
retransmissão dos estados mutáveis do seu organismo, e também uma modi-
ficabilidade do seu centro mediante tal retransmissão: está, pois, já dado a si
mesmo uma segunda vez. Mas o homem ainda o é uma terceira vez, em virtude
do espírito: na autoconsciência e na objectivação dos seus processos psíquicos
e do seu aparelho sensório-motor. Importa, pois, pensar a "pessoa" no homem
como o centro que supera a oposição do organismo e do meio (SCHELER, 2011,
p. 6-13).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
132 © Antropologia, Ética e Cultura

É importante expor que, no homem, o psíquico, com o orgâni-


co e o espiritual, integra um sistema superior, que é a estrutura hu-
mana. O psíquico, mesmo que alguns autores o denominem alma,
difere do espírito. Ainda sobre a alma, leia o quadro a seguir:

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Voltando ao problema, lembremo-nos mais uma vez de que, na psicologia em-
pírica, o termo "alma" é utilizado para indicar os fenômenos psíquicos. Dessa
forma, esse termo deixa de ter um conteúdo filosófico para ter uma aplicação
prática (denota uma capacidade operativa). Na linguagem teológica, alma indica
essa relação entre o homem e Deus; dizer que o homem tem alma é dizer que o
homem foi criado por Deus, que é alguém diante do Criador. Para os clássicos,
alma indica a forma substancial constitutiva da pessoa humana.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Sobre esse tema, você, além de outras obras, pode ler o Capítulo
2, intitulado "A vida", da obra O homem que é ele?, de B. Mondin.

Espírito
Gevaert (1995) explica que o termo "espírito" é um termo
"complicado" por ser vago e impreciso. Muitas vezes, expressa
um fenômeno vital concreto: hálito, e, outras vezes, um princípio
exclusivamente humano: atman, pneuma, spíritus etc. No nível
filosófico-antropológico, esse termo é empregado para simbolizar
aquilo que é humano e que não pode ser reduzido a fenômenos
materiais definidos pela causalidade ou pela realidade espaçotem-
poral.
Como explica Royce (apud GEVAERT 1995, p. 140): "Denomi-
na-se espiritual o sujeito que pode atuar sem depender intrinseca-
mente da matéria. O espiritual não inclui uma dependência extrín-
seca da matéria e sim intrínseca". Indica que a pessoa humana não
pode ser compreendida unicamente desde a dimensão material
por ser tanto material quanto espiritual.
Sabemos que o espírito é a dimensão constitutiva que dife-
rencia o humano do resto da criação. O espiritual é a dimensão

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 133

própria do homem e, embora seja a dimensão específica, não é a


única dimensão, pois o homem é uma unidade e uma totalidade
biológica, psicossocial e espiritual.
Filósofos e teólogos definem o homem como o resultado da
imersão do espírito na matéria. A maioria defende a ideia de que
não é imersão acidental e sim substancial e, a partir dessa caracte-
rística ontológica, o homem é uma pessoa espiritual.
Veja, a seguir, um pequeno texto sobre a diferenciação entre
psique e espírito.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


A Antropologia Filosófica diferencia psique de espírito. O termo "espírito" indica
uma autoconsciência de si mesmo. As manifestações espirituais ou próprias do
ser humano são: compreensão do sentido, prefixação de metas, fins, ideais e
capacidade de atuar por cima dos condicionamentos de qualquer tipo por ser o
espírito uma substância sem limites materiais ou espaciais.
Em sua antropologia, Scheler (2003) destaca o conceito de que o espírito é uma
potência que complementa e direciona as outras potências (as biológicas e as
psicológicas) presentes no ser humano.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Evolução do espírito na pesquisa filosófico-antropológica
Para Platão, o espírito era um princípio autônomo. Aristóte-
les, corrigindo a posição do mestre na teoria da forma e matéria,
define-o pelo sentido do telos, que significa "fim".
Para Aristóteles, a matéria é informada, ou seja, recebe for-
ma, o que lhe confere sentido, finalidade. Cada coisa é como é
porque foi feita inteligentemente. O material precisa de uma força
não material para formar o homem: o espiritual.
Aristóteles salva, dessa forma, a unidade, corpo-espírito,
ante a ideia dualista de Platão. Mesmo assim, continua a concep-
ção de que o espírito se caracteriza por possibilitar o conhecimen-
to do mundo e das essências.
A concepção escolástica defende a ideia de que a alma hu-
mana (interprete-se como espírito) necessita das potências que
134 © Antropologia, Ética e Cultura

operam por meio dos órgãos corporais, e que, unidas naturalmen-


te, conceituam o ser humano (estando o espírito perante a vida).
Pelo poder do espírito, o homem pode dizer não ao meio, aos im-
pulsos. Para esses pensadores, pessoa é a realidade substancial
composta de corpo e alma.
Os pensadores modernos como Hegel interpretam o espírito
como uma obra cultural realizada na história, como evolução da ma-
téria corpórea. Por esse caminho, perde-se a singularidade da pessoa.
A Antropologia Filosófica contemporânea defende como
princípio que o que caracteriza a pessoa espiritual é a capacidade
que possui para se distanciar da dimensão psicofísica, esse "sair
de si". Essa característica o converte em um "ex-sistente". Como
explica Heidegger a expressão "o homem ex-siste" não esta diri-
gida a explicar se o homem é real ou não, responde à questão da
essência do homem. "A essência reside na sua exsistencia, isto é
aquilo que se apresenta com 'ser ai'".(HEIDEGGER, 1967, p. 50).
Enquanto que a existência está relacionada com a concretude.
O sujeito espiritual é único por ser irredutível ao mundo e
aos outros. Por ser espiritual, o ser humano é sujeito diante do
mundo.

Na Antropologia do século 20, predomina a ideia de que as duas


dimensões humanas, corpo e espírito, atuam em conjunto, mas,
deixando suas diferenças ontológicas aparecerem, nunca se con-
fundem; o espírito é o não físico.

Corpo
O corpo, assim como o espírito, não é um sistema comple-
to. Ambos, corpo e espírito, formam partes, como subsistemas de
uma estrutura superior: a pessoa humana. Sobre o corpo, pode-
mos destacar as seguintes concepções:
1) O corpo coloca a pessoa dentro dos organismos vivos;
existimos como corpo.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 135

2) O corpo é expressão, comunicação.


3) Pelo corpo, a pessoa tem identidade.
4) O corpo permite a existência física e, na existência, a
pessoa aperfeiçoa-se.
5) Pelo corpo, o espírito pode ter consciência do mundo.
O corpo da pessoa representa muito mais que o organismo.
Enquanto o organismo sintetiza o orgânico, que é uma forma par-
ticular, o corpo é o elemento constitutivo de uma realidade com-
pleta: a pessoa humana, bio-psíquica-espiritual.
O corpo é uma parte constitutiva do homem concreto por es-
tar inserido dentro do mundo evolutivo. Pensemos, por exemplo,
que a obstrução de uma artéria do coração ou do cérebro pode
acabar com toda a perfeição que emana do espírito imaterial. As-
sim, sem o espírito, o homem não seria homem, seria como as má-
quinas que parecem perfeitas, mas não são únicas – ao contrário,
são reproduções feitas em série, que não têm alma. O homem é
um ser que pensa e que sabe que pensa, que come, que sente von-
tade, que quer ser feliz, que precisa do outro, das orientações, da
proteção, do amor, que tem sonhos e ideais e que, um dia, morre.

7. HOMINIZAÇÃO
O termo "homem", ou hominis, não indica somente um
grau diferente dentro da escala zoológica; ele sugere alguma coisa
mais. Quando se pensa o homem, um dos questionamentos mais
comuns é: "de onde ele surge?".
Sabemos que, pela reprodução sexuada, herdamos de nos-
sos pais o quadro cromossômico. Dessa união, surge um novo ser,
que, produto da gestação, vai ter uma carga genética dos pais e,
também, vai ser um novo eu. Mas por que "novo eu"? Porque esse
sujeito que espreita o mundo é uma figura nova, com uma reali-
dade própria. Como os seus pais, esse novo eu vai possuir uma
existência particular, unitária, intransferível e indivisível. Esse ser
humano é, portanto, único.
136 © Antropologia, Ética e Cultura

A escolástica chama de haecceitas o princípio de individua-


lização. Nessa explicação muito simples, acabamos de descrever
uma hominização filogenética. Entretanto, há outra, paralela, cha-
mada ontogênica, que é caracterizada pela infusão do espírito.
Aristóteles diz que o espírito vem do exterior (thyrathen).
O que sabemos é que o espírito é constitutivo do ser humano,
afinal, ninguém carece dele, nem tem dois ou mais. O ato repro-
dutivo possibilitou a hominização e esse ser humano novo está
composto de:
• Uma dimensão corporal caracterizada pela herança.
• Uma dimensão psíquica alinhada pela herança e trabalha-
da pela educação (influência do meio cultural).

Natureza do homem
O homem tem uma natureza que é universal a todos os homens.
Entretanto, ele não é uma realidade estática, pois o homem concreto
é um ser dinâmico que forja sua personalidade na existência.
A inteligência instrumental, ou seja, o uso do pensamento
como instrumento, não é particular do homem, afinal, ela é co-
mum a todos os primatas superiores. O que é propriamente huma-
no é a capacidade de individualizar as coisas como meio para satis-
fazer necessidades e perceber as essências dos entes, das coisas.
Uma vez que o homem é o único ser que possui essa capacidade,
ele se sente um ente separado da natureza.
O homem é um animal, mas, diferentemente dos outros
animais, não se sente produto da evolução da vida e não se sen-
te somente natureza. Biólogos, como Portmann e Gehlen (apud
FRANKL, 2003), afirmam que o homem não tem um lugar definido
dentro da natureza e não possui um desenvolvimento orgânico de-
terminado. Ele é livre diante do meio.
A pergunta que se refere ao nascimento da espécie humana
tem, hoje, respostas controversas. A maioria das informações

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 137

disponíveis é baseada em descobertas de restos mortais, que estão,


muitas vezes, aos pedaços e sem o entorno cultural. Partindo dos
dados disponíveis sobre o aparecimento dos primeiros mamíferos,
vamos falar em pelo menos 200 milhões de anos, e o Homos
Erectus, que, talvez, seja o nosso antecedente ou ancestral mais
direto, é mais novo.

Somente um ser em particular caracteriza-se por estar aberto a


outros seres. Esse ser é o homem, que possui uma consciência,
que tem a particularidade de apreender a forma dos outros seres.

Leia agora uma reflexão sobre a evolução do homem e a sua


diferenciação dos outros animais:

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Afirma-se que o homem nasce como uma folha em branco, e que a sociedade o
modela. Esse conceito evolucionista provém de pensadores como Köhler e ou-
tros. Os evolucionistas modernos, como G. G. Simpson, defendem que o homem
tem atributos essenciais próprios que o diferem dos animais. Até Darwin, que
colocou o homem dentro da escala zoológica animal, descreveu características
psíquicas próprias, como a de refletir sobre seu passado e elaborar abstrações
mentais, como símbolos, em que a capacidade mais elaborada é a da linguagem,
seguida pelo sentido de beleza e pelo senso de religião, por ser o homem um
animal cultural e social. A Antropologia Cultural descreve as alterações do habitat
baseando-se em estudos de povos primitivos e, assim, comprovando que existe
uma enorme variedade de costumes, valores etc.
O grande questionamento da Antropologia Filosófica é se existe alguma caracte-
rística que seja comum a todos os homens e que, portanto, não tenha sido her-
dada durante o período da evolução. Uma visão explicativa do interior humano
leva-nos a concluir que existe algo que se destaca do puramente sensitivo e do
anímico: o princípio espiritual, que é de natureza diferente da matéria. Há, em
nós, conhecimentos e atos psíquicos que são comuns a todos os animais, como
sentir dor, sofrer etc., mas somente o homem pode dar sentido ao sofrimento. O
homem tem a capacidade de transcender seus atos e converter-se em objeto de
suas reflexões. O animal é um ser realizado dentro de seus instintos, já o homem
transcende o espaço temporal.
As características humanas denotam a existência de um Centro Espiritual ou
Alma Espiritual. Esse centro dá independência diante do meio e do corpóreo. O
espírito não é um agregado, pois o espiritual determina o somático. Desse modo,
o homem sem espírito não é homem, como também é impossível imaginar um
animal com espírito, pois este não seria o animal que conhecemos, seria ontolo-
gicamente outra coisa, talvez uma criatura parecida com os extraterrestres dos
filmes de ficção.
138 © Antropologia, Ética e Cultura

A discussão sobre o fato de a "hominização", ou infusão do espírito, ter sucedido


de um processo longo de evolução ou de a criação ter sido imediata não muda
nada a essência do homem e o que lhe é inerente por direito.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. PARALELISMO "PSICOFÍSICO"
A Antropologia Filosófica apoia-se no princípio de que há, no
homem, uma unidade vital, uma unidade ontológica que envolve
o corpo e a psique. Como seres humanos, possuímos o eu, que nos
confere identidade. O eu é o nome do comando interno que uni-
fica, a partir do centro da pessoa, as ações dos extratos biológico,
psicológico e espiritual. O eu converte a vida psicofísica numa vida
de caráter espiritual e, portanto, única.
Como se produz essa relação denominada paralelismo psico-
físico? Há duas correntes principais de interpretação do denomi-
nado paralelismo psicofísico. Observe:
• A primeira diz que a consciência (portanto, o espírito) não
passa de um epifenômeno, trocando o paralelismo por
uma reação de causa-efeito. Nessa concepção, tudo de-
pende do aparato psíquico e a causa radica na estimu-
lação do sistema nervoso. Tudo é explicado a partir da
matéria. O comportamento espiritual é, desse modo, re-
sultado do cérebro.
• A outra admite um estreito paralelismo entre o sistema
nervoso e o espírito. O corpo físico diferencia-se da ati-
vidade espiritual da mesma forma que o espírito se di-
ferencia do aparelho psíquico. Cada um tem caracteres
próprios. São, por isso, protofenômenos.
As duas interpretações gerais apresentadas vêm desde a filo-
sofia grega primitiva. No princípio, os gregos pensavam a alma como
forma do corpo e, mais tarde, começam as doutrinas espiritualistas.
Santo Agostinho e, anteriormente, Platão, concebem uma
alma incorpórea. Já Demócrito, Epicuro e os estoicos (pais do ma-
terialismo) reconhecem a alma como composta por átomos.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 139

Hoje, há variadas e diferentes interpretações derivadas des-


sas duas formas de concepção antropológica. Sem chegar a uma
análise intensiva, lembremos as principais:
a) Dualismo Espiritualista: esse sistema filosófico afirma
que o corpo (matéria) e a alma (imaterial) são duas subs-
tâncias irredutíveis e com caracteres próprios de cada
uma delas.
b) Idealismo: corrente de pensamento que nega a existên-
cia objetiva do mundo exterior. Isso significa que a única
realidade que existe é a do nosso espírito. Autores como
Bruno, Berkeley, Fichte, Schelling e Hegel empregam a
palavra "idealismo" em diferentes matizes, ainda que
todos considerem que a realidade do mundo externo
depende de nossas mentes.
c) Panteísmo: Baruch Spinoza (1632-1677), pensador de
orientação marcadamente cartesiana, une os princípios
propostos por Descartes com as concepções de origem
hebreias, como a Cabala, e os conceitos escolásticos
provenientes das obras de Suárez. Em sua filosofia, de
orientação panteísta, ele interpreta a realidade de for-
ma racionalista e mecanicista. Em sua obra Ethica Ordine
Geometrico Demonstrata, Spinoza afirma que o homem
é um ser em Deus, o que é diferente do conceito de
"relação com Deus". Deus, para esse autor, é a nature-
za toda. Para entender melhor esse tema, é importante
analisar a seguinte parte da obra citada:
À essência do homem não lhe pertence o ser da substância, a subs-
tância não pode constituir a essência do homem porque o ser da
substância corresponde unicamente à "existência necessária". [...]
a mente humana é parte do entendimento de Deus, que se explica
pela natureza da mente humana (SPINOZA, 2002, p. 2).
"Spinoza, dessa forma, só aceita uma única substância, que identifi-
ca como a natureza de Deus" (CARVALHO, 1992, p. 231). Aqui está a
explicação do porquê de esse autor ser qualificado como panteísta.
d) Materialismo: oposto ao espiritualismo, afirma que o
espírito é uma função do cérebro. O argumento princi-
pal do materialismo surge da lei da conservação da ener-
gia e da matéria, que trabalha no domínio do físico.
140 © Antropologia, Ética e Cultura

e) Doutrina cristã: é a da infusão do espírito no primeiro


momento da vida orgânica. Com o Cristianismo, surge,
como dogma, a imortalidade da alma, ou seja, a ideia da
salvação desta após a morte do corpo. Na esfera filosófi-
ca, essa ideia cristã de infusão do espírito é, no primeiro
momento, defendida por Leibniz. Para ele, cada corpo
tem uma enteléquia, dominante, e a morte é o começo
de uma nova vida.
f) G. W. Leibniz (1646-1716), intelectual herdeiro dos filó-
sofos antigos, do pensamento escolástico e da ciência da
Renascença, concebe a substância como mônada. Essa
forma supera o conceito de substância como algo inde-
pendente, como pensava Descartes e Spinoza. Leibniz
conclui, então, que a noção de pessoa tira o homem do
plano natural de ser uma coisa a mais do mundo. Para
ele, o homem é alma.
g) Idealismo Transcendental: Kant, que defende a imorta-
lidade da alma ao reconhecer que existe uma base para
a lei moral. Concebe a ideia da existência de Deus como
criador do soberano bem, a base necessária para essa
lei moral.
Quando Frankl (1978, p. 80-81) trata o problema da relação
corpo-alma, escreve o seguinte:
Sabem as senhoras e os senhores que do ponto de vista problemá-
tico-histórico, se nos deparam três teoremas fundamentais no que
concerne ao problema corpo-alma: a par da teoria da ação recípro-
ca, a teoria da identidade, bem como a do paralelismo "psicofísico"
[...]. A título de antecipação: fica de uma vez estabelecido que o so-
mático e o psíquico não podem se reduzir um a outro, nem podem
derivar-se um do outro.

Citando Nicolas Hartman, escreve:


Nicolas Hartman, em Der reale aufbau der welt (Berlim, 1940, p.
428), afirmou: "Quem quer explicar a vida orgânica pelas forças
mecânicas e pelas relações de causa e efeito, quem quer apreender
a consciência pelos processos físicos, ou o ethos do homem pela lei
psíquica do ato, choca-se contra a lei da propriedade das camadas.
Assim, o que pertence a uma camada é transferido para a outra
camada mais evoluída".

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 141

Temos assim quatro camadas que formam o ser: as camadas do


físico, do orgânico, do psíquico e do espiritual. Jasper ensinou: "En-
tre os fenômenos não-orgânicos da natureza e a vida, entre vida e
a consciência, entre a consciência e o espírito, abre-se um abismo
instransponível" (FRANKL, 1978, p. 80-81).

Cabe, após essa explanação da realidade material e espiri-


tual, investigar o centro convergente de toda a realidade humana,
seu eu (ego). Vejamos!

9. SUJEITO
Já explicamos que as principais questões sobre a existência
humana giram em torno da existência pessoal, o núcleo que sus-
tenta a existência (o ego, o eu). Esses termos mostram o atributo
de unicidade que é característica do ser humano.
Na pessoa, há uma unidade, ou núcleo, que é comum a toda
pessoa humana. Porém, a pessoa de cada um não é uma máqui-
na fabricada em série, pois, como já mencionamos, cada pessoa é
única. Desse modo, o "eu" responde a certas características:
• O sujeito é único, não existem dois sujeitos com os mes-
mos atos humanos. Todos os atos psíquicos respondem a
um eu real e único.
• Também há uma coincidência entre o sujeito que pensa-
va anteriormente e o sujeito que pensa neste momento.
Há uma identidade histórica com o tempo. Eu pensava
ontem e eu penso hoje e, mesmo que meu pensamento
tenha pontos de vista diferente, sou eu quem mudou. No
conjunto ontológico, entretanto, a relação se mantém. O
eu é consciente de si mesmo e de sua atividade.

O eu, núcleo da pessoa


Coreth (1998) explica por que cada um de nós se sente um
eu. Esse ponto central do ser humano, que aqui denominamos eu,
142 © Antropologia, Ética e Cultura

é um espaço de liberdade e responsabilidade em que o homem


pode dispor de si mesmo. Sem cair no egocentrismo, podemos
afirmar que o eu é o centro do mundo do homem.

Rabuske (2003, p. 69) coloca a pergunta: "O que significa esse


termo (eu)?" e explica, em seguida, que ele pode significar duas coisas:
• eu centro;
• eu totalidade.
O primeiro, o "eu centro", podemos situar na experiência de
"eu penso", "eu conheço". Nós experimentamos e reconhecemos
esse eu por meio de cada ato que executamos. Já o segundo, o eu
totalidade, é realizado na interação com o mundo. No intercâmbio
com o mundo que não é ele, o ser humano atua como uma totali-
dade; é consciência e é corpo de forma conjunta.

Núcleo espiritual: o homem incondicionado


Viktor E. Frankl (2003) explica o homem como um ser incon-
dicionado e afirma que nenhuma condição o determina de tal for-
ma que, a partir dela, possa ser definido totalmente. Desse modo,
a condicionalidade o condiciona, porém, não o constitui.
Conheceremos, a seguir, o que esse autor diz sobre a consti-
tuição do homem:
A ontologia do homem não está referida ao "homem que é" e sim
ao ser humano mesmo. Por outro lado a ciência (ôntica) contempla
o "homem que é", contempla-o condicionado seja no biológico, no
psicológico, no sociológico. A ontologia conhece além da facticida-
de humana.
À condicionalidade fática se opõe sua incondicionalidade facultati-
va, contida na dimensão espiritual (FRANKL, 2003).

Note que Frankl chega a essas conclusões partindo de uma


análise fenomenológica baseada nos atos humanos e destaca a
existência de um núcleo, ou centro espiritual, que é responsável
pela unidade do somático, do psíquico e do espiritual. Sua teoria,
portanto, baseia-se na premissa de que o espírito é o que individu-
aliza o ser humano.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 143

O ser humano é uma unidade e, também, uma totalidade.


Tudo no homem está sujeito à sua condição ontológica de pessoa
porque há uma "governabilidade" espiritual, o que significa que o
homem não é um ser biológico, psicológico ou espiritual, mas sim
a união substancial desses estratos.
Pela pessoa espiritual-existencial, o ser humano é "in-diví-
duo". Assim, o que individualiza a existência humana é a coexistên-
cia dessa unidade antropológica.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


O "núcleo espiritual", ou "eu centro", não é cognoscível, pois a razão humana não
consegue chegar ao centro ontológico que caracteriza o eu.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Como acabamos de ver, para V. Frankl:
a) O homem não é um ser composto pela soma do corpo-
ral, do anímico e do espiritual; ao contrário, ele é uma
totalidade: corpóreo-anímico-espiritual.
b) O homem conhece a realidade partindo de si mesmo, do
eu. Ele não pode conhecer esse eu-centro de forma dire-
ta. Esse centro espiritual não é cognoscível diretamente,
o que converte o homem num mistério.
c) O homem como existência é devir justificado pela di-
mensão de liberdade.
d) O homem é condicionado pelo psíquico-físico no modo
de ser, porém, ele é capaz de se determinar por ser es-
piritual.
e) A pessoa humana, categoria que não é adquirida, visto
que é constitutiva, é produzida pela transcendência e
possui uma escala de valores dentro de um universo de
sentido e significado.

10. DIMENSÃO MUNDANA DO SERBIO-PSÍQUICO-


-ESPIRITUAL
Vimos os extratos que compõem o ser humano: o biológico,
o psicológico e o espiritual, os quais estão claramente diferencia-
144 © Antropologia, Ética e Cultura

dos na natureza humana. É natureza do homem o biológico, bem


como o somático, toda a carga genética herdada e todas as ações
motivadas pelos instintos. Entretanto, nem tudo pode ser conside-
rado natureza no homem. O componente espiritual, por exemplo,
não pode ser enquadrado dentro dessa realidade.
Como Max Scheler (2003) destaca, a dimensão espiritual é
aquela que permite que o homem se eleve por cima do físico e
do psicológico, ou seja, da natureza, permitindo que ele atue com
total independência. Esse autor explica, também, que as notas di-
ferenciais do ser humano são a inteligência e o dinamismo, que lhe
permitem projetar-se para horizontes que estão além do instinti-
vo, conferindo-lhe independência e liberdade de atuação ante os
condicionamentos físicos.
Essa dimensão humana que acabamos de descrever, deno-
minada espiritual, tem seu lugar no mundo como parte integrante
do ser humano, porém, não é nem mundana, nem espacial como
o corpo, nem temporal como a psique. O espírito é potência e tem
como manifestação a consciência reflexa, a compreensão do sen-
tido, a previsão de futuro e a prefixação de metas (LUCAS, 1996).
Por ser espiritual, o ser humano é um ser de liberdade aberto ao
mundo e atua como uma unidade indissolúvel.
O filósofo Diógenes, autor de Apolíneas, emprega, em suas
obras filosóficas, a expressão Antrophine Physis, ou seja, nature-
za humana, para diferenciar o homem dos outros seres (BURGOS,
2007). Outro conceito de natureza essencialmente humana que
deve ser destacado por seu peso no pensamento universal per-
tence a Aristóteles. Como o resto dos pensadores gregos, o filóso-
fo desconhecia o conceito de pessoa, mas, mesmo assim, define
o homem como o ser mais perfeito da natureza por ser racional
(BURGOS, 2007).
Essas reflexões aristotélicas, bem como as platônicas, che-
gam à Filosofia Medieval e são "adaptadas" para coincidir com o
dogma da criação. Para isso, a união entre corpo e alma deixa de
ser pensada como um acidente e toma um caráter pessoal.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 145

Cada indivíduo possui uma alma individual, que constitui a


intimidade pessoal. A noção de pessoa diferencia o ser humano
dos outros seres individuais e seu conceito está baseado na uni-
cidade, na racionalidade e na vontade livre. Cada pessoa tem sua
própria realidade pessoal e posiciona-se de forma livre e autôno-
ma na hora de tomar suas próprias decisões.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Juan de Sahagun Lucas (1930), autor de obras como El Hombre¿Quién es?,
Nuevas Antropologias del siglo 20, Las Dimensiones del Hombre, entre outras,
desenvolve um estudo completo sobre o homem. Nele, descreve três dimensões:
cósmica, sócio-pessoal e transcendente, baseando-se em três princípios: vitais,
psíquicos e espirituais.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

11. OS ATOS HUMANOS


Há, no ser humano, condições a priori que o diferenciam do
resto dos seres e que são responsáveis por seu comportamento. A
Antropologia Filosófica é a área do conhecimento que busca esta-
belecer quais são as condições universais que existem por trás de
toda experiência humana.
Estudar o homem como totalidade não é uma tarefa fácil.
Buber (1976) explica que, se colocarmos o homem como objeto do
conhecimento, "cristalizaremos" somente uma instância do eu, e,
consequentemente, esse momento que está sendo estudado não
representará o verdadeiro eu, que já não é mais o mesmo. Como
diz Lucas (1996), o homem deve ser estudado "em presença". Não
é possível colocá-lo como objeto do conhecimento se a intenção é
a de estudá-lo em sua totalidade.

12. SER SOCIAL


O homem é composto, como já explicamos, pelas regiões
psicológica, biológica e espiritual e atua como uma unidade. É, an-
tes de mais nada, um eu. O ser humano não é nem espírito, nem
146 © Antropologia, Ética e Cultura

matéria, nem psique separadamente, pois suas dimensões consti-


tutivas são irredutíveis. O homem é uma peça só e essa particula-
ridade faz da vida humana uma realidade única.
Olhando para o ser humano, podemos afirmar que todos os
homens têm a mesma natureza potencial e que ela é inseparável
da influência cultural. Mondin explica que todo homem é um ser
cultural e alerta:
O homem não é um edifício pré-fabricado que basta simplesmente
montar, como hoje se faz com as coisas, bancos e escolas. Ele deve
se construir com suas próprias mãos, cultivando a si mesmo. O
objetivo primário da cultura é promover a realização da pessoa
(MONDIN, 1998, p. 116).

Todas as culturas têm traços similares porque são produto


do homem e, como ele, também são caracterizadas pela diversi-
dade. A cultura abraça todo o ser humano, envolvendo sua razão,
sua vontade e sua liberdade enquanto condições subjetivas neces-
sárias para continuar sendo produzida. O ser humano é tão artífice
quanto beneficiário da cultura.

13. PESSOALIDADE E PERSONALIDADE: PARTICIPAÇÃO


DO TU
Para configurar sua personalidade, o ser humano precisa do
suporte, ou seja, da cooperação que as outras pessoas proporcio-
nam. Contudo, a mesma coisa não acontece com a pessoalidade,
já que o ser humano é dotado dela. A pessoalidade é uma con-
dição pessoal própria porque existe uma origem, uma realidade
prática. O homem nasce como pessoa potencial.
A pessoalidade é uma característica básica do ser humano, ao
nascer o ser humano nasce com sua pessoalidade, mas a perso-
nalidade ainda não está presente. O ser humano é pessoalidade
expressada em ato e possui uma personalidade em potência, que
vai se desenvolver com os atos realizados pelo eu. "O ser humano é
sempre o mesmo (pessoalidade) sem ser sempre o mesmo (perso-
nalidade)" (ZUBIRI apud LOPEZ QUINTAS, 1995, p. 89).

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 147

Vejamos, agora, o surgimento da personalidade.

Surgimento da personalidade
O biólogo e filósofo Gelhen (apud CABADA, 1994) diz que
o homem, ao ser comparado, no plano biológico, com o animal,
é um "ser defeituoso", pois a cria que precisa de mais tempo de
cuidados para prosperar e para poder ser independente é a do ser
homem. Para esses defeitos, segundo o autor, há um antídoto: o
amor. Receber amor (ser amado) é fundamental para a criança que
aparece no mundo.
Segundo Cirulnik (2004), revelações baseadas em fatos em-
píricos têm demonstrado que a falta de amor na primeira idade
chega a comprometer não só o desenvolvimento da personalida-
de, mas também os aspectos fisiológico e biológico.
Observe que o homem não nasce com condições físicas e
existenciais prontas para estar no mundo. Ele nasce, por assim
dizer, com os alicerces prontos, e, a partir daí, da fundação, vai
erguer a estrutura do que vai ser a pessoa futura. Esse movimen-
to dependerá, em grande parte, do amor que recebe do outro.
Esse importante fato antropológico pode ser constatado nas obras
de pensadores, de biólogos, de psiquiatras etc. O homem é consi-
derado um "ser de carência" pelo biólogo Gehlen (apud CABADA,
1994); por isso, sua vida futura dependerá do modo que será rece-
bido pela família construtora – O termo construtora, empregado
por Gehlen (apud CABADA, 1994), tem seus antecedentes históri-
cos na Antiguidade greco-latina).

Nascimento sociológico
O homem é um ser essencialmente social. Logo depois do
nascimento, do parto que nos colocou fora do útero materno, con-
tinuamos dependendo de algo; não do útero, que teve a função de
auxiliar a mãe a "dar à luz", mas do cuidado de alguém. Essa de-
pendência pode ser traduzida como a necessidade de uma segun-
148 © Antropologia, Ética e Cultura

da "gestação", não de caráter biológico como a primeira, e, sim,


sociológico e cultural.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Referindo-se à indigência humana, Portmann (apud CABADA, 1994), um investi-
gador que auxilia V. Frankl em seu pensamento, demonstra que o homem passa
por uma espécie de "parto prematuro fisiológico". A sua tese assinala a deficiên-
cia humana ante a segurança instintiva e a especialização do animal.
J. Rof Carballo, na obra Rebelión y futuro, escreve: "a mãe dá duas vezes a vida,
a primeira no momento de dar a luz ao filho e a segunda quando a mãe possibilita
o 'nascimento' (leia-se surgimento) do espírito do filho concebido, no trato, na de-
dicação, com ternura" (CARBALLO, 1970). Essa etapa é alcançada dando amor,
carinho e cuidando. É importante que, paralelamente, aconteça o necessário pro-
cesso de separação, que possibilitará o entrosamento do novo eu no meio social.
A segunda gestação, considerada extrauterina, é responsável pela plenitude do
ser, visto que a prematura pessoa não tem meios para surgir por si só, conforme
pretendia o idealismo. Essa evidência leva à comprovação de que só é possível
ser pessoa em relação com o outro, uma das regras de ouro da Antropologia Fi-
losófica. O amor é o que possibilita o surgimento da pessoa e vai acompanhá-la,
como energia orientadora, pelo resto de sua vida. O tu, inicialmente a mãe, vai
possibilitar a vida pessoal.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Está provado fenomenologicamente que a personalidade e a
subjetividade surgem do amor procriador. Se, na primeira etapa da
existência, faltasse o amor do outro e a criança fosse deixada a sua
própria sorte, ela poderia perecer ou, talvez, sobreviver à morte
física, mas, nesse caso, ficaria exposta a uma desestruturação de
sua personalidade (TOMÁS DE AQUINO, 1990).
As ações boas fazem-nos crescer em direção ao ser. Os vícios e
a soberba afastam-nos do ser, colocando-nos na direção do não ser.
O homem é constituído pela matéria e pelo espírito e esses
coprincípios formam o ser humano, que traz consigo o princípio
ou a orientação para o bem. Contudo, essa orientação não é de-
terminante. Em outras palavras, devemos escolher entre perfei-
ção e degradação. Essa realidade confirma a característica de ser
"contingente" que acompanha o homem. Por ser contingente, o
homem não goza de toda a perfeição; ele está pendurado entre a
racionalidade e a irracionalidade.

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 149

O ser humano não é auto-ssuficiente, não chega ao mundo


pronto, é um ser em permanente construção de sua personalidade.
Por sua qualidade de ser social, precisa das outras pessoas, a relação
com o outro, com o tu, é fundamental para levar adiante a existência
pessoal. O homem não é um ser solitário, é um ser de alteridade,
sua vida desenvolve-se em comunhão com os outros sujeitos (ou-
tros eus) no mundo. Aqui, explica-se a importância da educação.
A educação é um processo social que possibilita o contato
com todo o patrimônio cultural das gerações anteriores, sendo vi-
tal para o desenvolvimento da personalidade. Durante a vida, a
pessoa permanece aberta a novos desdobramentos e descober-
tas, ganhando qualidades novas. Segundo Hoz (1993), a formação
da personalidade implica um aperfeiçoamento intencional, que
acontece mediante a verdadeira educação, que, por sua vez, im-
pulsiona o processo de personalização, possibilitando o desenvol-
vimento das potencialidades próprias da pessoa.

14. O SUJEITO ABERTO AO MUNDO


A philosofia perennis ou prima philosophia, concordando com
a realidade bio-psíquico-espiritual do indivíduo, explica o processo
de conhecer pela via dedutiva, indo sempre do físico para o me-
tafísico. Esse processo está aberto aos novos avanços no caminho
da verdade que, com o tempo, vão se abrindo. Essa filosofia não é
outra coisa senão a via para a apreensão inteligente e real do ser.

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


Atualmente, há uma retomada desses princípios filosóficos. Neles, apoia-se a es-
cola fenomenológica contemporânea, concretizada por E. Husserl, que arranca
a possibilidade de poder definir o ser, partindo da intuição da essência que está
presente em cada realidade, independentemente das circunstâncias empíricas
que revestem o fato. Para esse pensador, os princípios lógicos supremos não se
referem ao pensar, e, sim, à coisa pensada, ou seja, aos objetos.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Observemos, a seguir, um esquema que mostra como com-
preendemos o mundo. O tomismo está dentro da ciência escolás-
150 © Antropologia, Ética e Cultura

tica que, por sua vez, está apoiada em três graus diferentes de
abstração da realidade:
• Quando a inteligência percebe a realidade material por
meio da experiência sensível, abstrai o ser material (ou
ser móvel, na terminologia escolástica). Pertencem a essa
etapa o conhecimento empírico do ser e os conhecimen-
tos da Filosofia Natural.
• Ultrapassando o ser material da primeira abstração, fica
em evidência a dimensão de quantidade, como, por
exemplo, os conceitos matemáticos.
• Superando toda a materialidade do ser, a inteligência cap-
ta o ser enquanto ser. Essa terceira abstração é a que pos-
sibilita a percepção do bem.

Não podemos pensar no tomismo como um sistema filosófico fe-


chado, terminado. Ele é um sistema dinâmico, pois a inteligência
está continuamente descobrindo novos aspectos do ser.

O sujeito cognoscente e o objeto cognoscível estão ligados


um ao outro, condicionam-se reciprocamente e unem-se pela in-
tencionalidade. Pelos sentidos, conhecemos o objeto por meio
de sua forma acidental (alto, baixo, grande, pequeno, com tal cor,
com tal cheiro). Com os sentidos (vista, ouvido, tato etc.), capta-
mos o objeto como ele é, sem intermediações ou imagens. Por
isso, nessa primeira etapa, fala-se em intuição.
A essência ou forma essencial universal do objeto é apreendi-
da pela inteligência. Esta, por meio dos atos dos sentidos, desvela o
ser (descobre sua verdade; por isso, falamos em percepção do bem).
Esse processo não é intuitivo, mas, sim, abstrativo. Por ser de natu-
reza espiritual, a inteligência pode conhecer o imaterial contido no
objeto e é capaz de captar o ser ou a essência das coisas materiais.
Assim, olhando para o esquema, é fácil perceber que o ho-
mem interage com o mundo por meio de sua constituição bioló-
gica (sentidos, conhecimento intuitivo), psicológica (forma como

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 151

chegam as sensações) e espiritual (o processo abstrativo desenvol-


vido pela inteligência).

Cultura
Sabemos que, onde existe o homem, existe a cultura. Todos
os homens tiveram, têm e terão uma cultura que os diferencia do
meio ambiente.
O homem não é só o sujeito de cultura, é, também, seu ob-
jeto. Ele, por exemplo, não come qualquer coisa, pois, pelo menos
em condições normais, aprende o que deve comer; por isso, entre
uma e outra cultura, os tipos de alimento podem variar. O homem
aprende, ainda, normas morais para poder viver em sociedade,
regras de boa conduta e de comportamento social, ofícios, cultu-
ra etc. A educabilidade é uma exigência ôntica, afinal, nascemos
inacabados, mas potencialmente perfeitos, embora necessitemos
aprender a desenvolver nossas potencialidades.

Homem, ser cultural


O homem é moldado pela cultura. Colocado dessa forma, pare-
ce que todos os atos humanos são produto da cultura, mas não é bem
assim. O homem é um ser que transcende as coisas e, também, a si
mesmo. Ele tem liberdade sobre o fático e é o único ser que não fica
preso no condicionamento biológico, podendo superá-lo. Entretanto,
ele também está situado e faz parte da realidade social e histórica.
O ser humano precisa da contribuição dos outros seres huma-
nos, pois nem sua estrutura biológica nem sua estrutura psicológica
estão preparadas para que ele atue de forma isolada. Lembre-se de
que o homem é, ontologicamente, um ser em comunhão. Em seu
nascimento, chega ao mundo dos homens que o antecederam e, de-
les, recebe como herança o contexto social, no qual vai desenvolver
sua capacidade e tentará alcançar a perfeição.
152 © Antropologia, Ética e Cultura

Informação complementar ––––––––––––––––––––––––––––––


O homem espiritual, pela intervenção do entendimento, descobre os fins por que-
rer. O fim principal é o Bem Universal ou Bem Comum. Contudo, mesmo sendo
um ser espiritual, o homem pode não perceber corretamente o Bem Comum,
fixando-se em fins subordinados ou em bens particulares que encontra no curso
de sua vida. Isso acontece porque a vontade é livre e, o juízo, variável.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

15. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar
as questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta
unidade, ou seja, a natureza biológica-psicológica-espiritual que
caracteriza o ser humano. Este que é espírito encarnado ou corpo
espiritualizado. Lembrando sempre de que não podemos pensar
no ser humano como matéria, separando, assim, o espírito, por-
que, sem querer reiterar nossas afirmações, somos espírito encar-
nado ou corpos espiritualizados, ou seja: somos uma unidade.
A partir que foi exposto nesta unidade, você pôde perceber
que o conceito de homem não se reduz a um dualismo (corpo e
alma), tampouco a um monismo (corpo=alma).
Poderíamos afirmar resumidamente que: corpo e alma são
unidades irredutíveis – parece que sempre reaparece a ideia de
que espírito é o contrário de matéria. Esse conceito por si só não
serve para nada se a intenção é esclarecer qual é a dimensão espi-
ritual. O homem é uma unidade indissolúvel formada pelo extrato
biológico, psicológico e espiritual. Cada dimensão é um subsiste-
ma do núcleo que compõe a pessoa humana.
Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Reflita sobre a seguinte afirmação:
O dualismo é uma concepção que está sempre presente na concepção antro-
pológica.
Assinale a resposta INCORRETA:

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 153

a) A posição de Santo Tomás é clara: o homem não pode ser explicado


como a união de duas partes: a orgânica e a espiritual. Para os clássicos,
o ser humano é uma reunião substancial desses dois princípios (um ope-
ra em relação ao outro).
b) Na obra de Tomás de Aquino, fica evidente a importância da unidade es-
sencial do homem. É conhecida a expressão de Tomás de Aquino sobre a
matéria: est principium individuationis, que indica que o que determina a
individualidade no homem é a matéria (totalidade biológica), sendo este
seu constitutivo essencial.
c) Qualquer forma de dualismo antropológico (como a de Platão ou de Des-
cartes) é refutada pelos investigadores atuais da Antropologia Filosófica.
d) O dualismo é uma concepção que está sempre presente na antropolo-
gia grega. Os filósofos "pitagóricos gregos" (Platão, Aristóteles, Zenão,
no período seguinte Agostinho, os escolásticos etc.) pensavam a alma
separada do corpo. Esta, que era imortal, vinha do céu e caía na Terra
para entrar no corpo, ao qual ficava atada. Por isso, eles buscavam, com
a "liberação do corpo", o "retorno".
2) Gevaert (1995) explica que o termo "espírito" é um termo "complicado" por
ser vago e impreciso. Muitas vezes, expressa um fenômeno vital concreto,
"hálito", e, outras vezes, um princípio exclusivamente humano, "atman",
"pneuma", "spiritus" etc. Sobre esse tema, assinale a resposta INCORRETA.
a) O espírito é a dimensão constitutiva que diferencia o humano do resto
da criação. O espiritual é a dimensão própria do homem. Aristóteles diz
que o espírito que vem de fora é thyrathen.
b) Os pensadores da antropologia filosófica contemporânea, como Scheler,
Mondin e J. Jolif, defendem que o corpo, como o espírito, são sistemas
completos. Ambos, corpo e espírito, são substâncias concretas.
c) São muitos os teólogos que definem o homem como o resultado da imer-
são do espírito na matéria. A maioria defende a ideia que não é imersão
acidental e sim substancial, e, a partir dessa característica ontológica, o
homem é uma pessoa espiritual.
d) A Antropologia Filosófica contemporânea defende como princípio que o
que caracteriza a pessoa espiritual é a capacidade que esta possui para
se distanciar da dimensão psicofísica, esse "sair de si".
3) O homem tem uma natureza que é universal a todos os homens. Entretanto,
ele não é uma realidade estática, pois o homem concreto é um ser dinâmico
que forja sua personalidade na existência. Partindo dessa reflexão, analise as
alternativas seguintes e indique a única que a complementa corretamente.
a) Desde Santo Tomás, os pensadores cristãos defendem que todos os ho-
mens nascem como uma folha em branco, sendo que a sociedade os
modela.
b) Ao ler o conteúdo da unidade, podemos afirmar que existe algo que se
destaca do puramente sensitivo e do anímico: o princípio espiritual, que
é de natureza evolutiva.
c) As características humanas denotam a existência de um Centro Espiritual
ou Alma Espiritual.
154 © Antropologia, Ética e Cultura

4) Viktor E. Frankl (2003) explica o homem como um ser condicionado e afirma


que é o resultado da reunião de vários fatores que respondem a leis – como
a da causalidade, a da semelhança etc.

5) Você considera que o ser humano, para configurar sua personalidade, pre-
cisa das outras pessoas ou que, pelo contrário, por ser espiritual, ele é in-
dependente onticamente e todo o processo é de sua exclusiva responsabi-
lidade?

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) d.

2) b.

3) c.

4) Resposta:
Para configurar sua personalidade, o ser humano precisa do suporte, ou seja,
da cooperação que as outras pessoas proporcionam.

16. CONSIDERAÇÕES
Ao longo desta unidade, levantamos o problema da diversidade
cultural e colocamos, como caminho de explicação, a necessidade de
investigar o homem, que é sujeito no processo da geração da cultura.
A Antropologia Filosófica trabalha com a concepção de que
todos os homens têm a mesma natureza. Então, por que existe
a pluralidade cultural? Os antropólogos culturais, para explicar
esse fato, desenvolveram diferentes teorias. Algumas delas são: o
evolucionismo, o funcionalismo, o estruturalismo etc. Como você
pôde notar, a Antropologia Filosófica focaliza essa realidade a par-
tir do homem como sujeito da cultura.
Assim, nas próximas unidades, vamos continuar a discussão
desses assuntos. Quando você estudar as propriedades essenciais
do ser humano (a liberdade, a historicidade e a dimensão trans-

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© Estrutura do ser Humano: Ser Bio-Psíquico-Espiritual-Transcendente 155

cendente, com a capacidade intelectual e a vontade livre), anali-


sará por que o homem, como indivíduo, vive num meio humano
sustentado pela cultura, enquanto, como pessoa, distingue-se de
tudo o que não é ele (e de todos).
Estudamos ainda que, por trás de toda filosofia, há uma con-
cepção de homem. A visão de homem na história vai desde o ho-
mem como ser de dignidade até o homem como ser de utilidade,
passando por todos os níveis intermediários, como, por exemplo,
homens vivendo em comunhão com o meio e com os outros ho-
mens; homens explorando o meio e vivendo um individualismo
social; e homens sendo explorados sem nenhum controle sobre o
mundo e suas vidas.
A Antropologia Filosófica entende que o homem é uma uni-
dade indissolúvel, um ser que não pode caber em nenhum redu-
cionismo.

17. E-REFERÊNCIAS

Sites pesquisados
SCHELER, M. A situação do homem no cosmos. Diferença essencial entre homem e
animal. Tradução Artur Morão. 2008. Disponível em: <http://www.lusosofia.net/textos/
scheler_max_dieferenca_entre_homem_e_animal.pdf>. Acesso em: 11 jan. 2012.

18. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABBAGNANO N. História da filosofia. Lisboa: Editora Presença Ltda., 1985.
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002.
BUBER, M. Qué es el hombre. México: FCE, 1976.
BURGOS, M. La naturaleza humana. Madrid: Ediciones Internacionales Universitarias,
2007.
CABADA, M. La vigencia del amor. Madrid: San Pablo, 1994.
CARVALHO. Introdução à Ética de Espinosa. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1992. v.
2. (Obra completa).
CARBALLO, J. R. Rebelión y futuro. Madrid: Taurus, 1970.
156 © Antropologia, Ética e Cultura

CIRULNIK, B. El amor que nos cura. Barcelona: Gedisa, 2004.


CORETH, E. Metafísica. Buenos Aires: Herder, 1998.
ETCHEBEHERE, P. R. Antropologia filosófica. Una introducción al estudio del hombre y de
lo humano. Buenos Aires: Agape, 2008.
FRANKL V. Psicoterapia e sentido da vida. Fundamentos da Logoterapia e Análise
Existencial. São Paulo: Quadrante, 2003.
GEVAERT, J. O problema do homem. Salamanca: Sígueme, 1995.
HOZ, V. G. Introducción general a una pedagogía de la persona. Madrid: Rialp, 1993.
HUGON, E. Las veinticuatro tesis tomistas. México: Porrúa, 1974.
HUME, D. Do suicídio e outros textos póstumos. Florianópolis: Nephelibata, 2003.
LUCAS, S. J. Las dimensiones del hombre. Salamanca: Sígueme, 1996.
LOPEZ QUINTAS. El amor humano. Petrópolis: Vozes, 1995.
MONDIN, B. Definição filosófica da pessoa humana. Bauru: Edusc, 1995.
______. Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
QUILES, I. S. J. La persona humana. Buenos Aires: Kraft, 1967.
RABUSKE, E. A. Antropologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2003.
SCHELER. M. El puesto del hombre en el Cosmo. Buenos Aires: Losada, 2003.
______. A posição do homem no cosmos. Tradução e apresentação de Marco Antônio
Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
SECONDI, P. Philosophia perennes. Atualidade do Pensamento Medieval. Petrópolis:
Vozes, 1992.
SPINOZA, B. Ética demonstrada à maneira dos geometras. 2. ed. Tradução de Tadeu
Thomaz. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.
TOMAS DE AQUINO. Suma contra os gentios. Porto Alegre: Sulina, 1990.
______. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2002.

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EAD
Características da
Pessoa Humana,
Constitutivos
Essenciais
5
Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanos Piva
Prof. Juan Antonio Acha

1. OBJETIVOS
• Identificar os níveis ontológicos do ser humano e desen-
volver uma reflexão sobre as características ou dimensões
centrais da existência.
• Reconhecer a liberdade como um conceito intersubjetivo
e entender a estrutura de relação que é própria do ser
humano.
• Estabelecer debates sobre a importância da relação com
o outro.

2. CONTEÚDOS
• Liberdade da Vontade, característica central da existência
da pessoa humana.
158 © Antropologia, Ética e Cultura

• Dimensão intersubjetiva: alteridade e unicidade.


• Valor e sentido.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Para dar continuidade a seus estudos, é importante que
não fiquem dúvidas para trás. Por isso, sugerimos que, se
necessário, retome os conteúdos vistos até o momento.
2) Para ampliar os conhecimentos sobre um dos temas cen-
trais da unidade, o tema liberdade e sentido existencial,
você pode ler: Psicoterapia e sentido da vida, obra de V.
E. Frankl; A essência do homem, de E. Coreth e O mun-
do da pessoa, de Guardini Romano, entre outras obras.
As bases desse princípio você encontra na Summa
Theologica de Tomás de Aquino, Livro I, e na Ética a Ni-
cômaco, de Aristóteles. Não se esqueça de anotar suas
reflexões!
3) Para aprofundar seus conhecimentos sobre a realação
eu–tu, leia a obra de M. Buber, Que é o homem?, que
descreve essa estrutura dialogal e a faz sua principal
tese. Esse livro é uma das obras básicas da Antropologia
Filosófica.
4) A Filosofia de Lévinas também foi sempre um eco em
direção ao outro – a ética Lévinas sempre se reporta ao
outro. Para ampliar seus conhecimentos sobre esse tema,
leia de LÉVINAS, Emmanuel, Ética e infinito. Lisboa: Edições
70, e Entre nós: Ensaios Sobre a Alteridade. Trad. Pergentino
Stefano Pivatto. Petrópolis: Vozes.
5) Ao pesquisar, você não impõe fronteiras em sua aprendi-
zagem e pode construir um conhecimento amplo e pro-
fundo sobre o assunto consultado. Sugerimos, portanto,
que você leia as obras citadas no tópico Referências Bi-
bliográficas.
6) Juan De Sahagun Lucas nasceu em Rollán (Espanha), em
1930. Doutor em Filosofia, filologia e Letras, é professor

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 159

da Universidade de Salamanca. Além disso, é autor de


obras fundamentais para o estudo e para o desenvolvi-
mento da Antropologia Filosófica, dentre as quais pode-
mos citar: Alcances Significativos del Lenguage Humano
sobre Dios (1975), Antropologia del Siglo XX (1983), e El
Hombre ¿Quién es? (1988).

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Sabemos que o homem tem como característica destacar-se do
meio. Como indivíduo, vive num meio humano sustentado pela cul-
tura, porém, como pessoa, distingue-se de tudo o que não é ele (e de
todos). No ser espiritual, podemos destacar duas capacidades princi-
pais: capacidade intelectual e vontade livre. Afirmar que a vontade é
livre no homem equivale a afirmar que ele possui um princípio que
lhe possibilita levar adiante o seu projeto de vida de forma autônoma.

5. CATEGORIAS PARA COMPREENDER O HOMEM


As categorias servem para descrever a estrutura humana,
pertencem ao ser, são ontológicas. Você já estudou as Categorias
Universais do ser? Viu, portanto, que Aristóteles falava em oito
categorias e as definia como predicados, e também explicava que
elas têm um sentido lógico e ontológico.
O filósofo comprometido com o estudo da Antropologia Fi-
losófica, observando o homem na existência e tendo em vista as
categorias universais do ser, destaca as condições universais que
possibilitam as experiências humanas (as categorias). Estas nunca
são estabelecidas a priori nem podem ser produto da experiência;
surgem do contato com as experiências humanas, são princípios
racionais baseados em leis do entendimento.
160 © Antropologia, Ética e Cultura

Alteridade
A categoria alteridade permite descrever uma das dimen-
sões essenciais do ser humano; sua necessária vinculação com os
outros "eus". O homem não é um ser fechado em si mesmo. Se ele
se fecha, desaparece, já que em seu constitutivo o ser humano é
um ser aberto à sociabilidade e a comunidade.
O ser humano necessita de comunicar-se com o outro e tam-
bém de ter contato com o mundo. Sua finitude e sua dificuldade
para compreender a multiplicidade da verdade o obrigam ao diálo-
go ao intercâmbio. Para um homem só, a tarefa de desenvolver as
ciências seria fantástica, como seria fantástico educar a consciên-
cia moral sem uma orientação, sem acompanhamento.
Lévinas alerta para o fato de que a singularidade do outro,
sua liberdade, nunca deve perder-se nem deve ser desrespeitada,
nunca devo pretender dispor do outro:
O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A cole-
tividade em que eu digo "tu" ou "nós" não é um plural de "eu". Eu e
tu, não são indivíduos de um conceito comum. Nem a posse, nem a
unidade do número, nem a unidade do conceito me ligam a outrem
[...]. Ausência de pátria comum que faz do Outro – O Estrangeiro
que o perturba em sua casa. Mas o Estrangeiro quer dizer também
o livre. Sobre ele não tenho poder, porquanto escapa ao meu domí-
nio num aspecto essencial, mesmo que eu disponha dele: é que ele
não está inteiramente no meu lugar. Mas eu, que não tenho concei-
to comum com o Estrangeiro, sou tal como ele, sem gênero. Somos
o Mesmo e o Outro. A conjunção e não indica aqui nem adição,
nem poder de um termo sobre outro (LÉVINAS, 2008, p. 25-26).

Esse movimento contínuo de intercâmbio, referido no texto


principal, sucede sem que se perca sua individualidade e sem que
se amalgame com o entorno.

Unicidade
Quando você estuda os delineamentos da Antropologia Filo-
sófica, lê, com frequência, definições como esta: a pessoa é "subs-
tância", uma substância concreta que existe em si mesma. O que
significa dizer, pois, que a pessoa é uma substância?

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© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 161

Pode-se dizer que a pessoa é ela mesma quanto mais di-


ferente ela é, quanto mais peculiar em relação aos outros seres
humanos, ou seja, quanto mais indivisa seja e mais forte seja a
presença do seu núcleo espiritual.
Ser pessoa significa ter autonomia racional para atuar de for-
ma independente, ou seja, ser dona de seus atos morais, poder ser
um perante o mundo.
Portanto, para ser pessoa, o ser precisa:
• Ser um – desde uma perspectiva ontológica.
• Ser único diante dos seres da natureza e das outras pessoas.
Como diziam os escolásticos, a pessoa é: indivisum in se et
divisium a quolibet alio, ou seja, a individualidade ontológica é a
que possibilita a personalidade.
A seguir, leiamos um pouco sobre a intersubjetividade.

Informação Complementar –––––––––––––––––––––––––––––


M. Buber (1976), em Que é o homem?, descreve um dos fenômenos mais impor-
tantes do homem; a relação com o outro, que ele chama intersubjetividade. Esse
fenômeno sempre é destacado pelos pensadores da filosofia personalista e feno-
menológica. A intersubjetividade é uma experiência comum a todos os homens,
e Nunzio Galantino (2003), na obra Dizer o homem hoje, a denomina experiência
originária. A reciprocidade está relacionada com a dimensão transcendente, é
uma orientação ética para o tu. Nasce da dimensão ontológica e é uma categoria
constitutiva da pessoa. Encontra sua explicação na relação (beziehung), no en-
contro com o outro (begesnung). O eu não existe em si mesmo, como pretendiam
na modernidade, o eu sempre está em relação com um tu e, também, com o "ele"
(as coisas do mundo). O que provoca a alteridade é a presença do espírito que
é originária do homem, cada um existe no mundo em relação ao tu, o eu está
aberto ao tu. O eu, ontologicamente irredutível, constitui-se na relação com o
tu. O homem precisa do tu. O homem forma parte da sociedade como pessoa,
o homem, mesmo dentro da sociedade, é livre para perseguir sua plenitude e a
sociedade, como conjunto dos homens, é um meio para esse aperfeiçoamento.
Numa descrição antropológica do ser homem, então, é possível afirmar que: por
possuir espírito, é um "eu", tem consciência de si próprio, se conhece e se sabe
diferente do tu e do ele, pelo espírito tem consciência de ser um sujeito e que
deve estar no mundo compartindo sua existência com outros sujeitos; é um in-
divíduo, mas forma parte de uma sociedade que é a soma das individualidades.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
162 © Antropologia, Ética e Cultura

A esse respeito, podemos, ainda, dizer que: para a Antro-


pologia Filosófica, essas duas categorias (unicidade e alteridade)
são fundamentais para entender o homem. Pelo comportamento,
deduz-se que a estrutura dialogal é constitutiva do ser humano,
com base numa disposição espiritual. Alguns autores descrevem
outras categorias. J. Y. Jolif (1969, p. 149-154), por exemplo, des-
creve cinco categorias ou estruturas formais para conhecer o ser
humano no nível filosófico. São estas:
1) Alteridade.
2) Diferenciação.
3) Dialética.
4) Metafísica.
5) Totalidade.
O importante na hora de pensar o ser humano é que ele
ama, fala, troca ideias, projetos, é solidário e "dialogal" na existên-
cia com os outros "eus" e coisas do mundo.
Essa concepção de homem é contrária à ideia de ser indivi-
dualista, que o neoliberalismo e linhas de pensamento positivista
defendem hoje. A estrutura dialogal do homem é uma condição
necessária da existência humana, a própria existência vem acom-
panhada da compreensão do outro como ex-istente, como sujeito.
A concepção individualista está tão arraigada no pensamento que
o próprio Heidegger, ícone existencialista, considera que o eu não
está para o tu e sim com seu próprio ser, o do Dasein (HEIDEGGER,
2001). O outro não aparece em sua antropologia em relação dialo-
gal. Quando diz que o ser-no-mundo é um ser com os outros, não
enxerga o outro como seu próximo e sim como outro.

Sobre esses temas, sugerimos a leitura da seguinte obra: Antropo-


logia Filosófica, de Vaz H C L, livro II, cap. II.

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© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 163

6. LIBERDADE
Por nossa condição espiritual, somos seres dotados de liberdade.
[...] a propriedade de um ser espiritual é sua independência, liber-
dade ou autonomia essencial perante os contratempos e pressão
do orgânico da vida [...]. Tal ser espiritual não está limitado pelos
impulsos e o meio, é aberto ao mundo (SAHAGUN 996, p. 146).

A liberdade é uma característica central da existência: supõe


que a pessoa, ainda que ligada ao mundo pelo corpo, não está con-
dicionada, como o animal, pelos impulsos. Não depende exclusi-
vamente das pulsões, do patrimônio genético, do meio social, das
características históricas. Em outras palavras, não está determina-
da pelas forças da natureza. Como diz V. Frankl (1995, p. 111): "O
homem é o ser especial que possui contínua liberdade de decisão,
apesar de todos os vínculos". As pulsões existem, mas de forma
"pensada"; a genética está presente, mas de forma assumida.
A pessoa, por ser espiritual, atua sabendo o que está fazen-
do e, especialmente, podendo concordar ou não segundo o juízo
da razão.
A liberdade da vontade é a possibilidade de construir-se de
que o homem dispõe; é uma propriedade específica, pertence ao
próprio ser. Não é uma característica adquirida, social; é consti-
tutiva do ser homem; nunca é uma imposição, é por si mesma; o
homem é livre porque não pode ser de outra forma ou não seria
um ser humano. Como diz Sartre (2009, p. 42): "O homem está
condenado a ser livre, condenado porque não se criou a si próprio
e no entanto é livre pelo fato de que está no mundo".
Pela liberdade, o homem pode planificar e executar a idealiza-
ção de sua vida. Ninguém, nem o próprio Deus, pode posicionar-se
no lugar do homem e decidir por ele.
Na liberdade, está radicada a possibilidade de realização ou
de fracasso do projeto pessoal. A pessoa, pela liberdade, sente-se
capaz do progresso, da realização do humanismo, de ser mais do
164 © Antropologia, Ética e Cultura

que ela sempre foi. Mesmo depois do mais terrível fracasso, da


mais completa alienação, continuamos a ter uma consciência livre
palpitando dentro de nós.
Mesmo ante tal cenário de onipotência e império, variados
são os impedimentos da liberdade: há os impedimentos psíqui-
cos e, também, a possibilidade de que indivíduos que não estejam
enfermos careçam de liberdade – são aqueles que se deixaram
alienar. Por que sucede isso? Porque, em qualquer desses casos,
o espírito não consegue expressar-se, fica impedido de se atuali-
zar. Octavio Dirisi (1985) explica que a liberdade no sentido estrito
consiste no autodomínio da vontade sobre sua própria atividade,
em poder querer ou não alguma coisa, em poder escolher entre
esta ou outra coisa.
O termo liberdade acompanha o termo homem, é uma con-
dição considerada por praticamente todas as correntes de pensa-
dores que estudam o homem:
• Os kantianos veem na liberdade a ideia suprema para al-
cançar a perfeição. Concebem-na iluminada pelos ditados
da razão prática. Nessa concepção, a vontade fica subme-
tida à moral decorrente dessa razão prática, e os princípios
da razão prática devem ser de plena realização, sem espe-
rar nenhuma recompensa. Esse momento é reconhecido
pelo pensamento kantiano como "de total liberdade".
• Os materialistas são rígidos ao extremo na defesa da liber-
dade do homem. Nesse ponto, coincidem com os existen-
cialistas, que são ainda mais radicais na hora de conceber
a liberdade. Sartre, que, olhando Nietzsche, adere à não
existência de valores absolutos, vê na própria liberdade o
fundamento para o sentido e o valor. O ponto máximo da
liberdade é, para o existencialismo, possibilitar a liberdade
dos demais. Para Sartre, os valores são projetos que o ho-
mem propõe baseados no que ele quer ser sem poder pen-
sar que exista um futuro e sem necessidade de um prin-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 165

cípio caracterizador. Diferentemente dos materialistas, ele


rejeita qualquer princípio naturalista. Para ele, o homem
transcende as estruturas naturais e as verdades anteriores,
tudo deve ser produto de sua liberdade (SARTRE, 2003).
As posturas mais radicais sobre a ontologia da liberdade,
como a sartreana, argumentam: não existem determinismos no
homem, sempre é possível agir de outra maneira.
Na perspectiva antropológica, Sartre não crê em determinis-
mo teológico, biológico ou social. Como escreve na obra O exis-
tencialismo é um humanismo, que contém as principais ideias da
conferência que deu em Paris em 20 de outubro de 1945: nela
expressa as ideias de que nem Deus, nem a natureza, nem a so-
ciedade determina absolutamente nossas possibilidades, predis-
pomos nossa conduta na mediação da liberdade (SARTRE, 2009,
ps. 31,36, 43, 55, 77). Esse autor considera que o homem é um ser
"para-si", ou seja, que não tem uma essência definida antecipada-
mente, nunca é resultado de uma ideia preexistente; o homem é
um fazer-se contínuo, "Somos o que temos querido ser e sempre
poderemos deixar de ser o que somos" (2009, p. 61).
Segundo Sartre, só o homem é o responsável pelo que é.
Essa responsabilidade não está restrita ao âmbito individual, e,
sim, corresponde à totalidade da humanidade. Quando decidimos
pelo casamento, aceitamos seguir a monogamia. Sempre que ade-
rimos a uma ideia política ou a um ideal, estamos tomando partido
de uma forma de humanidade. Sartre explica: "Se Deus não existe,
não há valores ou ordens que modelem nossa conduta. Estamos
sós, o homem é o ser condenado a ser livre" (2009, p. 42-43). No
mundo (na existência), o homem é responsável por tudo o que faz
ou deixa de fazer; ele é o único responsável por suas paixões, pela
moral que adota. "Não há signos no mundo que digam ou indi-
quem o que devemos fazer" (2009, p. 50).
Para esse pensador, os fins que perseguimos não são dados
nem do exterior nem do interior, não existe nenhuma suposta na-
166 © Antropologia, Ética e Cultura

tureza, é na liberdade que cada um se escolhe; cada "Para-si" tem


a liberdade de fazer de si o que quiser.
[...] o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não
se criou a si próprio e no entanto é livre pelo fato de estar no mun-
do. Assim o homem começa a existir para logo, na sua existência,
definir-se (2009, p. 42-43).

O primeiro princípio do existencialismo sartreano é: o ho-


mem é o único ser que pode ser tal como ele se quer. Segundo o
autor como não temos uma natureza ou essência, não estamos de-
terminados; como não escolhemos ser livres, não somos livres de
deixar de ser livres (2009, p. 60-63). A liberdade é tão importante
nesta antropologia porque ela é o fundamento de todos os valo-
res. Também é princípio de responsabilidade: "Querer a liberdade
é respeitar a liberdade do outro" (SARTRE, 2009, p. 77). O homem
de boa fé procura a liberdade pela liberdade.
Mesmo defendendo que o homem deve obrar de forma hu-
mana em relação à humanidade, que está representada por ele
próprio e pelos outros homens, para executar sua liberdade, essa
"liberdade" proposta por Sartre é totalmente autônoma. Nesse
ponto, é criticável, já que a verdadeira liberdade não existe se não
está orientada à perfeição, à humanização e à plenitude do próprio
ser humano – caso contrário, pode ser uma "libertação". Liberda-
de está sempre acompanhada pelo vocábulo "responsabilidade".
A seguir, um excerto de Sartre, veja como o filósofo francês inter-
-relaciona a liberdade e a responsabilidade pela liberdade.

Existencialismo é um Humanismo –––––––––––––––––––––––


Dostoievski escreveu: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido". Eis o ponto
de partida do conceito de liberdade sustentado pelo existencialismo. De fato,
tudo é permitido se Deus não existe, e, por conseguinte, mas o homem está de-
samparado porque não encontra nele próprio nem fora dela nada a que se agar-
rar. Para começar, não encontra desculpas. Com efeito, se a existência precede
a essência, nada poderá jamais ser explicado por referência a uma natureza hu-
mana dada e definitiva; ou seja, não existe determinismo, o homem é livre, o ho-
mem é liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontramos, valores
ou ordens prontas que possam legitimar a nossa conduta. Assim, não teremos
nem atrás de nós, nem na nossa frente, o reino luminoso dos valores transcen-
dentes, não podemos apelar a nenhuma justificativa e nenhuma desculpa. Esta-
mos sós, sem desculpas. É o que posso expressar dizendo que o homem está
condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si mesmo, e como, no

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© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 167

entanto, é livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo o que
faz. O existencialismo não acredita no poder da paixão. Ele jamais admitirá que
uma bela paixão é uma corrente devastadora que conduz o homem, fatalmente,
a determinados atos, e que, conseqüentemente, é uma desculpa. Ele considera
que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensará nun-
ca, também, que o homem pode conseguir o auxílio de um sinal qualquer que o
oriente no mundo, pois considera que é o próprio homem quem decifra o sinal
como bem entende. Pensa, portanto, que o homem, sem apoio e sem ajuda, está
condenado a inventar o homem a cada instante. Ponge escreveu, num belíssimo
artigo: "O homem é o futuro do homem" (SARTRE, 2011, p. 6).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Vamos continuar analisando o que é liberdade para enten-
der plenamente essa passagem.

Liberdade para e liberdade de


Não podemos falar em "liberdade total", já que todo ato
requer um limite, mesmo assim a liberdade é aquela realidade
que permite que o homem não sucumba ante o destino genético,
psicológico, biológico, social ou histórico. Não há liberdade sem
condição ética, não há liberdade sem responsabilidade. Já que a
liberdade, por ser da pessoa, supõe sempre uma dimensão inter-
pessoal, o homem é sempre um eu no mundo com outros "eus",
situação essa que exige reciprocidade de condutas, porque a liber-
dade supõe um sentido.
Pela liberdade, dimensão essencial, o homem é considerado
um sujeito de responsabilidades e direitos. Caso contrário, seria
uma coisa dirigida. Mesmo assim, você é livre: pode ser responsá-
vel ou não.
A liberdade é condição do ser racional e com vontade. O ser
humano é o único com possibilidade de agir ou não agir, de fazer
isto ou aquilo, e, portanto, de praticar atos pensados, deliberados.
De assumir responsabilidades. Justamente na dinâmica entre liber-
dade e responsabilidade é que o ser humano possui a capacidade
de mudar, de transformar sua vida e sua forma de ver o mundo.
Liberdade não pode significar indeterminismo, como diz
Bento XVI na homilia na festa do Corpo de Deus, 22.5.2008:
168 © Antropologia, Ética e Cultura

Deus criou-nos livres, mas não nos deixou sós: Ele mesmo se fez
'caminho' e veio caminhar conosco, para que a nossa liberdade te-
nha também um critério para discernir a estrada certa para percor-
rer (BENTO XVI, 2008)

O termo liberdade na sociedade atual tem correspondência


com a ideia de liberum arbitrium ou livre arbítrio – termo utilizado
pelos pensadores antigos do cristianismo que conforma um dos
pontos fundamentais da teologia cristã.
Somos livres para atuar. Porém, a liberdade deve ser vista
como um caminho para progredir em direção à plena humanida-
de, o que possibilita uma sociedade justa e equitativa. Desse prin-
cípio, surge o conceito de "Liberdade para", que corresponde ao
ideal de poder assumir a própria responsabilidade para conceber
uma sociedade justa, regida por leis justas, sem limitações para as
potencialidades que são próprias da pessoa e concordantes com a
ordem do ser.
Não é sempre que o homem pode exercer, de forma autô-
noma, sua "liberdade para". Historicamente, debate-se entre alie-
nação e subjugação. Muitas vezes, na história, o homem somente
teve a possibilidade de vivenciar uma liberdade pessoal de forma
privada, interior, sem poder estendê-la no campo das realizações
humanas, que é o seio da sociedade.
A "liberdade para" não pode ser interpretada como "liberda-
de de", que é sinônimo de uma libertação, que não possui o mesmo
suporte de sentido. Nem como a "experiência de liberdade psico-
lógica" que experimentamos quando escolhemos entre diferentes
marcas, diversos estabelecimentos, ou profissionais. A "liberdade
de" nos abre para o mundo, mas se a interpretamos como liberdade
completa ela pode nos levar a executar, de forma arbitrária, a mo-
ral individual. Esse foi o caso da maioria dos ditadores do mundo,
que, longe de dotar de sentido a existência de quem a exerce ou a
sofre, altera a ordem moral e provoca consequências existenciais
totalmente negativas pela óptica humana. A "liberdade para" é a
ferramenta de que o homem dispõe para forjar seu destino, nunca
é condição para estabelecer um mundo arbitrário (FRANKL, 1978).

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 169

Para o cristianismo, o homem aperfeiçoa-se atuando porque


é livre. Agostinho de Hipona diferencia entre libertas (liberdade
radical) e liberum arbitrium (que significa liberdade da vontade),
tendo iniciado desde essa perspectiva o caminho para o estudo da
liberdade psicológica e a liberdade de consciência que é própria do
homem. Tomás de Aquino baseia a liberdade na racionalidade, ou
seja, em decidir ou não agir de uma determinada forma, depen-
dendo da apreciação. "A raiz de toda liberdade está constituída na
racionalidade" (LUCAS, 1996, p. 204).
Para uma melhor compreensão do tema aqui abordado, va-
mos analisar o que Juan de Sahagun Lucas, na obra Las Dimensiones
del Hombre, escreve sobre liberdade e indeterminação.
Juan de Sahagun Lucas estuda a liberdade em três aspectos:
• Fenomenológico.
• Metafísico.
• Antropológico.
Na dimensão fenomenológica, diferenciam-se dois concei-
tos parecidos, mas de características diferentes: indeterminação
e liberdade.
"Indeterminação" refere-se a um conceito negativo de não
dependência teleológica, não necessidade. Cria uma sensação psi-
cológica de liberdade, mas não liberta.
O segundo termo (liberdade) é um conceito positivo que sig-
nifica viver as potencialidades de forma consciente e assumida.
Atuar com liberdade é fazer sabendo o que está sendo feito e para
que está sendo feito.
O conceito de liberdade mostra-se no exercício da vontade
durante o percurso da vida pessoal. O homem, complementa Juan
de Sahagun Lucas, exerce sua liberdade como existente quando
realiza, a partir da consciência, ações sem a obrigatoriedade de
agentes externos (LUCAS, 1996). Isso concorda com o conceito de
liberdade presente na obra Ética, de Spinoza. Sobre a liberdade,
ele afirma:
170 © Antropologia, Ética e Cultura

Diz-se livre a coisa que existe exclusivamente pela necessidade de


sua natureza e que por si só é determinada a agir. E diz-se necessá-
ria, ou melhor, coagida, aquela coisa que é determinada por outra
a existir e a operar de maneira definida e determinada (Ética, Pri-
meira parte, Def. 7).

Essa afirmação leva em conta que o homem é um "ser cor-


porizado", que está no mundo e, portanto, nasce com determinis-
mos. Que não pode prescindir de contribuição e participação do
outro; pensemos que todos nós precisamos de um guia e de bons
exemplos no campo espiritual. Essas situações existenciais não re-
presentam uma coerção do nosso ser livre.
Liberdade leva a ter dignidade, ambas são constitutivos essen-
ciais da pessoa humana. O homem, pela dimensão espiritual, é livre e
pode sobrepor-se a todas as situações de determinismo, situar-se por
cima delas e atuar em relação a cada uma, mas o homem não está li-
vre dos condicionamentos do mundo, é livre para tomar uma posição
diante deles e, nesse ponto e escolha, radica sua responsabilidade.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Porque estamos no mundo e porque realizamos nosso projeto pessoal nele so-
mos movimentados por impulsos que, segundo Jung (2005), são produto de mi-
lhões de anos de evolução. Baseado nesse postulado, esse psicólogo descreve
o problema do "inconsciente coletivo", o que define como "o sedimento da expe-
riência universal de todos os tempos, é portanto uma imagem de mundo que se
formou há muitos anos (eocenos)". Imagens depositadas no cérebro sobre dife-
rentes acontecimentos psíquicos nos impulsionam a ter prejuízos, medos e, até,
alguma forma de angústia. Por outro lado, somos motivados por sentimentos e
paixões que, muitas vezes, desafiam o pensamento lógico, a razão. Em algumas
pessoas, esses componentes psíquicos impossibilitam o desenvolvimento e não
lhes permite atuar livremente. Nessa mesma ordem estão as necessidades cor-
porais que o homem precisa satisfazer para sobreviver. Mas esse conjunto de ca-
racterísticas é só uma pequena parcela das motivações humanas, a pessoa não
se aquieta como o felino depois de ter comido e bebido, suas necessidades são
essas e outras, o objeto convida constantemente o homem a descobrir coisas
novas, os bens particulares estão sempre despertando algum grau de interesse,
um livro, um poema, a visão da pessoa amada, compaixão, autossuperação,
são o combustível que impulsionam a vontade em direção a um objetivo. Tam-
bém não é uma verdade absoluta que todo objeto externo leve o homem para o
caminho da constante superação. Na sociedade tecnológica contemporânea a
pessoa é estimulada ao consumo, à voracidade, ao sexo, ao individualismo, a ter
e a possuir. Esses estímulos são veiculados pelos meios de difusão, TV, revistas,
cinema etc., são provocados pela propaganda e promovem uma atitude passiva,
levam à massificação, à perda da individualidade etc., desembocam em estados
de ânimo que têm como consequência o tédio, a falta de sentido e, como diz V.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 171

Frankl (1995, p. 89-119), acabam em crises noéticas (existenciais), porque esses


bens não são o bem que promove o sentido verdadeiro, são realizações passa-
geiras e alheias à nossa natureza. O homem "normal", pelo poder de oposição
do espírito, pode tomar uma atitude porque, como diz Hartmann (apud. Frankl,
1995), a liberdade do homem é uma liberdade apesar da dependência.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Sobre esse tema, sugerimos a leitura da obra: Antropologia Filosó-


fica, de E Rebuske, cap. III.

Liberdade e sentido existencial


O que dá sentido à existência é a capacidade espiritual que
possibilita lutar por uma causa nobre, um ideal, uma ilusão. Esse
movimento de sentido tem relação com a "liberdade para".
Podemos, em outras palavras, assim entender:
• O homem é livre para o bem, para a verdade, para concre-
tizar suas realizações dentro de um projeto de vida, esse é
o caminho que liberta.
• Existe no homem uma direção para o bem, para os valores,
para o sentido, e o homem é livre para segui-la ou não.
Observando o animal, vemos que ele está determinado por
leis naturais, que vão das muito rígidas até as mais adap-
táveis. Já o ser humano não tem limites infranqueáveis, é
capaz até de imolar-se por um ideal de liberdade.
A liberdade é um constitutivo antropológico da pessoa, é ante-
rior à ação. Como a pessoa tem a capacidade de ordem ontológica de
tomar as decisões desde o centro do ser, continuará tendo autonomia
ainda carecendo de meios para exercer fisicamente sua liberdade. So-
mente o homem, ser de liberdade, pode transcender ao âmbito do
físico, das pulsões, do medo, do círculo fechado do egocentrismo.
172 © Antropologia, Ética e Cultura

7. HISTORICIDADE
Você percebeu por que o ser humano é diferente dos ou-
tros seres da natureza? Seu comportamento é outro. Enquanto os
animais se ajustam ao conjunto da natureza, o ser humano sente
necessidade de construir acima do natural. Para satisfazer essa ne-
cessidade, ele parte da cultura que herda de seus antecessores.
O homem é o ser que sempre está a caminho, entende sua
existência em termos de "progresso".
Com base nessa particularidade humana, a Antropologia
Filosófica conclui que o homem atua assumindo o passado para
construir o presente, tendo em vista uma realização futura. A esse
processo de tempo humano, os antropólogos denominam histori-
cidade (LUCAS, 1996, p. 219). A historicidade é uma propriedade
humana que:
Depende da liberdade, da comunidade humana e da cultura.
É dinâmica, por estar motivada pela dimensão de liberdade.
Abarca o passado, o presente e o porvir.
Tem um significado oposto ao historicismo.
Precisa partir – essa historicidade da existência – do humanismo
herdado do passado para se dirigir a um futuro que esteja aberto
à liberdade.

8. COMUNICAÇÃO
O homem é um ser no mundo, possui um corpo biológico
que o sujeita ao mundo físico e, por ser no mundo, precisa das
coisas e das outras pessoas para realizar seu projeto pessoal.
No mundo, o "eu" está sempre em comunicação com os ou-
tros "eus", seu corpo serve para se comunicar. A comunicação é
a característica que possibilita ao homem atravessar com êxito a
existência.

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© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 173

O homem é um ser que recebe e transmite cultura, informa-


ções, sentimentos, direção ética etc.

Palavra
O homem expressa-se por ser um ser social, porque vive
numa comunidade. O homem é constitutivamente um ser de lin-
guagem.
Na palavra utilizada, estão comprometidas tanto a dimen-
são espiritual como a física, porque a palavra é a exteriorização do
conceito ou da ideia. Não chegaria a ser palavra propriamente se
não existisse um pensamento que a legitimasse e uma condição
física que a divulgasse.

Homem: ser social


O homem não é um ser autossuficiente: da mesma forma
que necessita dos elementos que lhe fornece a natureza para po-
der sobreviver, também precisa das outras pessoas, do próximo.
A personalidade do homem é forjada pela existência que desen-
volve no mundo juntamente com outros "eus" ou sujeitos (em suas re-
lações, é amado e ama, troca ou compartilha pensamentos e projetos).
Como explica Lévinas (1980) em Totalidade e infinito, o outro
demanda uma conduta ética. A simples existência do outro exige
uma resposta; não uma resposta simplesmente intelectual, uma
resposta que brote da orientação ontológica do ser.
Para compreender melhor esse tema, definamos o que é o
outro para nós:
1) O outro nunca é um ser indiferente, é um ser que cha-
ma, exige um comportamento ético.
2) O reconhecimento do outro é de caráter objetivo, o ou-
tro não é um "amigo invisível".
3) A acolhida do outro não está dentro do universo daquilo
que é construído na cultura como algo aprendido e sim
174 © Antropologia, Ética e Cultura

como algo dado e constitutivo. É uma exigência interior


que se projeta numa dimensão transcendente.
4) Por meio do outro, descobrimos o sentido último por
nos transportar à relação com o divino, numa dimensão
transcendente.
A relação pessoal é fundamental na constituição da pessoa hu-
mana, que possui como constitutivo a "alteridade". Isso implica que
o homem nunca está sozinho, que é um "ser-com-os-outros"; sua
existência pessoal sempre está orientada aos outros, a existência no
mundo sempre é uma "coexistência". M. Buber (1976) explica que até
quando o homem se encontra só, a dimensão dialogal continua por
ser essa de caráter transcendental.
O ser humano existe como um "eu" capaz de autocompre-
ender-se, autodeterminar-se, o que o faz único e irrepetível, ou
seja, pessoa. Em nenhum caso, a pessoa pode ser instrumentaliza-
da para algum fim que seja alheio à sua natureza de desenvolver
sua personalidade em liberdade. A sociedade neoliberal reduz o
ser humano às funções de produção e consumo, submetendo-o a
projetos de caráter econômico em nome do progresso.
É verdade que o progresso tecnológico trouxe grandes bene-
fícios para a humanidade, mas, como diz Jung Mo Sung:
Não vivemos mais em uma civilização em que se trabalha para
viver, onde as questões econômicas – como consumo, trabalho e
acumulação de bens – estavam subordinadas a viver bem; mas em
uma civilização onde devemos trabalhar para ganhar mais dinheiro
e consumir mais, e o viver bem foi identificado com o sucesso pro-
fissional ou a capacidade de consumo (2007, p. 101).

A liberdade individual está em perigo porque, como diz


Frankl, a liberdade de resposta ante cada situação particular con-
fere ao homem a condição de ser único e irrepetível:
A vida humana não se apresenta como uma obra acabada, mas
como um projeto a ser realizado. Toda pessoa humana representa
algo único algo que não se repete. Cada missão concreta de um ho-
mem depende relativamente desse "caráter de algo único", dessa
irrepetibilidade. É por isso que um homem só pode ter, em cada
momento, uma missão única, e é assim que essa peculiaridade de
que é única comunica a tal missão o caráter de absoluto (FRANKL,
2003, p.75).

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 175

A pessoa, um fim em si mesma


"Eu penso que a cultura do consumo e a ideologia neoliberal
estabelecem unilateralmente o parâmetro para o sentido da vida
na nossa sociedade". Com essa frase, Jung Mo Sung (2007, p. 120)
evidencia um dos maiores problemas que está acontecendo com a
organização social marcada pela forma de produção neoliberal: a
redução do ser humano à condição de coisa. A sociedade atual está
caracterizada pelos grandes progressos no campo da tecnologia, da
planificação, da produção e da comunicação. Essa nova realidade
trouxe grandes benefícios para a humanidade, mas também gerou
importantes mudanças nas relações interpessoais. A vasta produção
de objetos oferecidos ao consumo junto com o consumo exacerba-
do de bens (necessários e supérfluos) de informações e de serviços
levou as pessoas a adotarem novas formas de pensar, sentir e agir.
Assim foram perdendo os grandes ideais que caracteriza-
vam a modernidade (Deus, estado, sociedade, família, igualdade,
fraternidade etc.). O que ficou no lugar foi a ideia de que tudo é
transitório e mediato. Hoje nos toca viver num mundo de valores
tumultuados, onde o consumo, o lucro (a qualquer custo) e o indi-
vidualismo trouxeram uma crise de valores e colocaram em risco
a autoconsciência e a autodeterminação que definem que o ser
humano seja pessoa. Isso nos leva a esquecer de um dos alicerces
do humanismo: a pessoa é sujeito, centro e fim da ação humana.
A seguir, apresentamos alguns excertos de pensadores que
analisam o problema do homem ante a pressão dos mercados:

A pressão dos mercados–––––––––––––––––––––––––––––––


O mercado de trabalho é um dos muitos mercados de produtos em que se escre-
vem as vidas dos indivíduos; o preço de mercado da denominada "mão-de-obra" é
apenas um dos muitos que precisam ser acompanhados, observados e calculados
nas atividades da vida individual. Mas em todos os mercados valem as mesmas
regras.
Primeira: o destino final de toda mercadoria colocada à venda é ser consumido
por compradores.
Segunda: os compradores desejam obter mercadorias para consumo se, apenas
se, vão ser consumidas para algo que sirva para satisfazer seus desejos.
176 © Antropologia, Ética e Cultura

Terceira: o preço que o potencial consumidor em busca de satisfação está dis-


posto a pagar dependerá da credibilidade da promessa de satisfazer seus dese-
jos e da intensidade desses desejos.
Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais objetos de consu-
mo tendem a tornar as principais unidades na rede peculiar de interações huma-
nas conhecidas, como sociedade de consumidores. Ou melhor, o ambiente exis-
tencial que se tornou conhecido como "sociedade de consumidores" se distingue
por sua reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à semelhança,
das relações entre os consumidores e o objeto do consumo. Esse feito notável
foi alcançado mediante a anexação e colonização, pelos mercados de consumo,
do espaço que entende entre os indivíduos – esse espaço em que se estabele-
cem as ligações que conectam os seres humanos e se erguem as cercas que
os separam.
Numa enorme distorção e perversão da verdadeira substância da revolução con-
sumista, a sociedade de consumidores é com muita frequência representada como
se estivesse centralizada em torno das relações entre consumidor, firmemente es-
tabelecido na condição de sujeito cartesiano, e a mercadoria, designada para o
papel do objeto cartesiano, ainda que nessas representações o centro de gravi-
dade do encontro sujeito-objeto seja transferido, de forma decisiva, da área da
contemplação para a esfera da atividade. Quando se trata de atividade o sujeito
cartesiano (pensante, que percebe, examina, compara, calcula, atribui relevância e
torna inteligível) se depara – tal como ocorreu durante a contemplação – com uma
multiplicidade de objetos espaciais (de percepção, exame, comparação, cálculo,
atribuição de relevância, compreensão), mas agora também com a tarefa de lidar
com eles: movimentá-los, apropriar-se deles, usá-los, descartá-los.
O grau de soberania em geral atribuído ao sujeito para narrar a atividade de con-
sumo é questionado e posto em dúvida de modo incessante [...].
Na sociedade de consumidores ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar
mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, res-
suscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas exigidas de
uma mercadoria vendável. A "subjetividade" do sujeito, e a maior parte de aquilo
que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentrar-se num esforço sem
fim para ela própria se tornar, e permanecer uma mercadoria vendável. A caracterís-
tica mais proeminente da sociedade de consumidores – ainda que cuidadosamente
disfarçada e encoberta – é a transformação dos consumidores em mercadoria; ou
antes, sua dissolução no mar de mercadorias em que, para citar aquela que talvez
seja a mais citada entre muitas sugestões citáveis de Georg Simmel, os diferentes
significados das coisas, "é portanto as próprias coisas, são vivenciados como ima-
teriais", aparecendo "num tom uniformemente monótono e cinzento" – enquanto
tudo "flutua com igual gravidade específica na corrente constante do dinheiro". A
tarefa dos consumidores. E o principal motivo que os estimula a se engajar numa in-
cessante atividade de consumo, é sair dessa invisibilidade é imaterialidade cinzenta
e monótona, destacando-se da massa de objetos indistinguíveis "que flutuam com
igual 'gravidade específica' e assim captar o olhar dos consumidores".
[...] Escrevendo de dentro da incipiente sociedade de produtores, Karl Marx cen-
surou os economistas da época pela falácia do "fetichismo de mercado": O hábito
de, por ação ou omissão, ignorar ou esconder a interação humana por trás do
movimento das mercadorias. Como se estas, por conta própria, travassem rela-
ções entre si a despeito da mediação humana. A descoberta da compra e venda
da capacidade de trabalho como a essência das "relações industriais" ocultas no

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 177

fenômeno da "circulação de mercadorias", insistiu Marx, foi tão chocante quanto


revolucionária: um primeiro passo rumo à restauração da substância humana na
realidade cada vez mais desumanizada da exploração capitalista.
Um pouco mais tarde, Karl Polanyi abriria outro buraco na ilusão provocada pelo
fetichismo da mercadoria: sim, diria ele, a capacidade de trabalho era vendida e
comprada como se fosse uma mercadoria como outra qualquer, mas não, insis-
tiria Polanyi, a capacidade de trabalho não era nem poderia ser uma mercadoria
"como" qualquer outra. A impressão de que o trabalho era pura e simplesmente
uma mercadoria só poderia ser uma grande mistificação do verdadeiro estado
das coisas, já que "a capacidade de trabalho" não pode ser comparada nem
vendida em separado dos seus portadores. De maneira distinta de outras merca-
dorias, os compradores não podem levar a sua compra para casa. O que com-
praram não se torna sua propriedade exclusiva e incondicional, e eles não estão
livres para utere et abutere (usar e abusar) dela à vontade, como estão no caso
de outras aquisições. A transação que parece "apenas comercial" (recordemos
a queixa de Thomas Carlyle no início do século XX, de que relações humanas
multifacetadas tinham sido reduzidas a um mero "nexo financeiro") inevitavel-
mente liga portadores e compradores num vínculo mútuo e numa interdependên-
cia estreita. No mercado de trabalho, um relacionamento humano nasce de cada
transação comercial; cada contrato de trabalho é outra refutação do fetichismo
da mercadoria, e na sequência de cada transação logo aparecem provas de sua
falsidade, assim como da ilusão ou auto-ilusão subseqüente.
Se foi o destino do fetichismo da mercadoria ocultar das vistas a substância dema-
siado humana da sociedade de produtores, é papel do fetichismo da subjetividade
ocultar a realidade demasiado comodificada da sociedade de consumidores.
A "subjetividade" numa sociedade de consumidores, assim como as "mercado-
rias" numa sociedade de produtores, é (para usar o oportuno conceito de Bruno
Latour) um fetiche – um produto profundamente humano elevado à categoria
de autoridade sobre-humano mediante o esquecimento ou a condenação à ir-
relevância de suas origens demasiado humanas, juntamente com o conjunto de
ações humanas que levaram ao aparecimento e que foram condição sine qua
non para que isso ocorresse. No caso da mercadoria na sociedade de produto-
res, foi o ato de comprar e vender sua capacidade de trabalho que, ao dotá-lo de
um valor de mercado, transformou o produto do trabalho numa mercadoria – de
uma forma não visível (e sendo oculta) na aparência de uma interação autôno-
ma de mercadorias. No caso da subjetividade na sociedade de consumidores,
é a sua vez de comprar e vender os símbolos empregados na construção da
identidade – a expressão supostamente pública do "self" que na verdade é o
"simulacro" de Jean Baudrillard, colocando a "representação" no lugar daquilo
que ela deveria representar –, a serem eliminados da aparência do produto final
(BAUMAN, 2008, p. 18-24)
Eu penso que a cultura do consumo e a ideologia neoliberal estabelecem unila-
teralmente o parâmetro para o sentido da vida na nossa sociedade. Não vivemos
mais em uma civilização em que se trabalha para viver, onde as questões econô-
micas – como consumo, trabalho e acumulação de bens – estavam subordinadas
a viver bem; mas em uma civilização onde devemos trabalhar para ganhar mais
dinheiro e consumir mais, e o viver bem foi identificado com o sucesso profis-
sional ou a capacidade de consumo. Antes a vida ou certo aspecto da vida e a
natureza eram encantados porque eles eram a fonte de encanto das pessoas.
Hoje, o encanto se transferiu para o mudo do consumo, para o artificial, para
as mercadorias de marcas famosas, e a vida ficou desencantada. A vida sem
178 © Antropologia, Ética e Cultura

consumo de mercadorias objetos de desejo se tornou quase que insuportável,


sem nenhum encanto. E como não queremos viver uma vida desencantada, fria,
sem graça, corremos atrás de mercadorias que encantem a nossa vida. Ir ao
Shopping Center para fazer compras quando nos sentimos "desanimados" ou
meio chateados (parecendo que nossa humanidade ficou diminuída, achatada) é
uma expressão clara desse fenômeno. O sentido da vida não está mais na vida
mesma, mas em consumir mercadorias que encantem a nossa vida.
O problema é que quando fazemos do "consumir mais" o sentido último da vida
caímos numa armadilha que nos conduz a uma ansiedade sem fim (sempre há
novas coisas para consumir e assim causar inveja nas outras pessoas ou pade-
cer a inveja de não possuir o que outro tem) e nos leva à promessa de um "pa-
raíso" – a plenitude do consumo – que é muito solitário e frio. Falta nele o calor
humano do encontro das pessoas na amizade e gratuidade sem a concorrência
e inveja da lógica do consumo.
Quando o sentido da vida não está nela mesma, a educação também perde o
seu sentido original de possibilitar uma vida boa e formar uma pessoa "de bem"
e se concentra em capacitar tecnicamente os jovens para o sucesso econômico.
Assim, o valor e o sentido da vida e da mesma educação passam a ser medido
através do cálculo econômico (JUNG MO SUNG, 2007, p. 12).
[...] Há um texto de João Sayad, um importante economista brasileiro, que che-
gou às minhas mãos por acaso, nesses lances de sorte na vida, que sintetiza
bem o drama da nossa sociedade que estamos abordando.
"Há trezentos anos que o capitalismo transforma todas as coisas a nossa volta em
quantidade – dólares, francos ou reais. Não sabemos bem quem somos, mas sa-
bemos quanto valemos: somos o carro, a lancha, a casa ou os quadros que temos.
A economia capitalista focaliza tudo em torno de cifrões. Em compensação, embaça
tudo o mais. Cada vez nos tornamos mais eficientes, mais baratos e mais produtivos.
Mais ricos, ficamos cada vez mais pão-duros. Sobram produtos agrícolas que
são jogados nos rios ou estragam nos armazéns. Sobram produtos industriais
que atendem necessidades que precisam ser criadas. Sobra mão-de-obra por-
que gente custa salário. Não podemos gastar dinheiro com os ineficientes, com
os aposentados ou com os mais pobres.
Sabemos exatamente quanto custa cada coisa e cada decisão. Tudo é muito
nítido e claro em reais ou dólares.
Mas não temos tempo de nos perguntar sobre o sentido de tudo isso.
Por isso o mundo nos parece embaraçado e fora de foco." (SAYAD, 1998).
[...] A redução de tudo ao cálculo econômico deixa tudo "muito nítido e claro em
reais ou dólares", mais, por isso, "O mundo nos parece embaçado e fora de
foco". Uma das razões para isso é que "não temos tempo para nos perguntar
sobre o sentido de tudo isso". A busca obsessiva por mais dinheiro e mais consu-
mo, uma corrida sem fim porque a linha de chegada vai se afastando na medida
em que nos aproximamos, nos deixa cegos ou desfocados para ver o "resto" que
compõe a vida. E o que fica completamente fora de foco é o sentido da vida, pois
nessa corrida por consumo ou ostentação. O objetivo a ser alcançado está sem-
pre se movendo para mais longe e tomando as mais diversas formas que nos
deixa aturdidos. Mas o sistema de mercado também oferece uma solução para
isso. A propaganda "se dirige à desolação espiritual da vida moderna e propõe o
consumo como cura" (LASCH, 1983, p. 103).

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 179

Os efeitos desse encantamento hipnotizador não recai somente sobre as pessoas


que procuram a cura em mais consumo. Muito pelo contrario, as conseqüências mais
devastadoras recai também sobre os mais pobres da sociedade, que sofrem com a
exclusão social, e o meio ambiente. De uma forma ou outra, todos nós perdemos.
Diante de uma sociedade que reduz tudo ao cálculo econômico, cálculo que
desfoca o sentido da vida e desencanta tudo o que na vida não é acumulação e
consumo, inclusive a educação, vários autores de diversos campos do saber tem
proposto o reencantamento da natureza, da vida e da educação.
Estas propostas devem ser entendidas não como uma simples volta a uma civi-
lização baseada na religião ou em uma visão mágica do mundo, mas como uma
tentativa de ir além dessa redução da natureza, das pessoas e das atividades so-
ciais ao cálculo econômico. Em outras palavras, encontrar valores nas coisas, nas
atividades e nas pessoas que transcendam o valor econômico e que revelem um
sentido de vida que seja muito mais humano e profundo do que simplesmente acu-
mular riqueza e ostentar bens de consumo (JUNG MO SUNG, 2007, p. 101-103).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

9. HOMEM: SER HISTÓRICO E VALORES


O homem é um ser aberto ao mundo. É no mundo que vai
desenvolver seu projeto pessoal. Com o mundo, leva adiante uma
constante troca. Isso é possível porque possui um "instinto" de
percepção que lhe permite perceber o que é útil ou não numa de-
terminada situação. Consegue, por meio da consciência, captar os
valores contidos nas coisas. Como pessoas humanas, organizamos
nossa existência a partir de valores.
Que valores são esses? Valores econômicos que percebo por
ser treinado ou possuir um dom para avaliar o que cada coisa vale
no mercado dos bens? Os valores físicos que possibilitam a con-
servação da vida biológica? Não, estamos nos referindo a valores
espirituais!

Valor e sentido
Os valores espirituais são aqueles que, tendo uma base me-
tafísica, estão referidos à realidade; ao brilharem nos objetos reais,
fazem-se presentes, cativam nossa atenção. Uma relação pessoal,
a programação de uma ação, a intervenção racional na natureza,
escolher algo para comer ou beber, cada situação existencial está
180 © Antropologia, Ética e Cultura

revestida de um valor e, como o sentido está presente nas situa-


ções de valor, diz-se que há um sentido por trás da realidade.
A orientação para o sentido é particular a cada indivíduo,
uns descobrem um sentido onde outros enxergam outro diame-
tralmente diferente; os valores são comuns a todos, o sentido da
situação é uma coisa particular; eu descubro um sentido, outra
pessoa descobre o dela, sem ser permitida a troca de informações,
já que ninguém, por sua própria vivência, perceberá o sentido da
mesma forma que o outro o percebe. Se não fosse assim, todos
viveríamos da mesma forma.
As coisas que compõem o mundo onde vivemos têm, todas
elas, características peculiaridades: umas são belas, outras feias,
umas são boas, outras más. O individuo se relaciona com aquelas
que são importantes para sua existência, descartando as desne-
cessárias e ignorando as que lhe são indiferentes. O que sucede é
que, ante as coisas, adotamos posições críticas, porque todas as
coisas têm "valor". Perante as coisas, formulamos um juízo, que
pode ser:
• Juízo de existência: quando dizemos o que o objeto é.
• Juízo de valor: nada altera a existência do objeto. Esse
juízo não agrega elementos à coisa nem os tira. Concor-
damos ou não com a coisa, mas não a modificamos por
meio desse juízo. O que fazemos com os juízos de valor
é destacar impressões que são próprias do objeto, não
subjetivas.
Leia o texto a seguir, que lhe possibilitará refletir um pouco
mais sobre valor e sentido.

Informação Complementar––––––––––––––––––––––––––––––
Como o sentido e o valor são coisas afins, a possessão do valor pode aliviar o
homem na hora de ter que procurar o sentido de cada situação. Se eu me oriento
pelos valores universalmente aceitos, vou transitar, por concomitância, pela linha
do sentido, sempre que não aconteça um conflito de valores. Os mandamentos
são valores universalmente aceitos. Se, em cada ocorrência, eu os coloco em
prática, estou atuando com sentido; se eu roubar ou matar ou trair para conse-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 181

guir um fim, estou realizando uma ação sem sentido. Agora, se faço isso para
defender minha vida ante uma injustiça, o sentido muda, porque a vida é o valor
principal.
Devemos destacar que os mandamentos "eram" valores universais na época
de Abraão, mas, hoje, possivelmente, é necessário complementá-los. O homem
moderno descobriu que há novas dimensões existenciais, novas realidades, o
trânsito por elas é "novidade" e, portanto, sem antecedentes. Mesmo assim,
devemos aceitar que não estão defasados: posso, perfeitamente, orientar meu
comportamento pelos mandamentos e, sem dúvida, estaria levando adiante a
existência com sentido. Isso é possível porque há uma relação entre realização
existente, sentido e valor. Lembremos que, sempre que as ações de sentido
saem do particular para o universal, convertem-se em valor.
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

Lotze, filosofo alemão, foi quem explicou que os valores valem e


as coisas são. Isso significa que os valores estão fora das catego-
rias do ser. Assim, os valores não têm ou carecem de substância
por si mesmos. Não se pode dizer belo, deve-se dizer belo em a
relação alguma coisa, já que belo é uma qualidade da coisa e não
a coisa em si. Lotze introduziu o conceito de valor e, Nietzsche, a
palavra "valor". Mas foi com Brentano, em 1889, ao lançar o livro
A origem do conhecimento moral, que se inaugurou o que, hoje,
conhecemos por axiologia (HESSEN, J. 1980).

Impressões subjetivas e valor


Além desses juízos, também formulamos impressões subje-
tivas. Dentro dessa denominação estão contidos os sentimentos,
que são fenômenos psíquicos. Usamos a denominação "impres-
sões subjetivas" porque representam vivências internas, podem
ser o produto de uma vivência alojada no subconsciente de cará-
ter positivo ou objetivo. Os valores, por outro lado, representam
qualidades objetivas das coisas. Podemos dizer que é objetivo se
existe independentemente de um sujeito ou de uma consciência
valorativa. Em contrapartida, será subjetivo se sua existência, sen-
tido ou validez dependerem das reações fisiológicas ou psicológi-
cas do sujeito que valora.
Por exemplo: olhando para uma determinada pessoa na fila
de um cinema, dois amigos conversam e um comenta: "Essa pessoa
tem cara de 'nojenta'". O outro discorda, por considerá-la simpática;
aprofundando na qualificação subjetiva, o primeiro se lembrou de
182 © Antropologia, Ética e Cultura

que parecia com um antigo professor com quem tivera diferenças,


enquanto o outro o viu parecido com um antigo amigo de seu pai.
Ambos fizeram um juízo subjetivo baseado em vivências psíquicas,
que não tinha fidelidade em relação à coisa investigada – nesse caso,
uma pessoa desconhecida.
Lotze resgatou o termo valor do universo da economia e
colocou-o dentro da terminologia filosófica, diferenciando muito
bem o valor econômico do valor espiritual (DURKHEIM, 2003).

Os clássicos utilizavam o termo bem no lugar do termo moderno


valor. Mesmo assim, são eles que explicam que existem as coisas
que são portadoras de valor Bona, e o valor da coisa ratio bonitatis.

O que os filósofos deixam muito claro, baseados na concep-


ção de valor e de valer de Lotze, é que o homem é o centro dos
valores, o receptor dos valores. Mesmo assim, as coisas têm sen-
tido independentemente do homem. Como diz Heidegger (1967,
p. 69), inspirando-se na filosofia clássica, "o homem é o pastor e
não o criador do ser". O homem tem a capacidade de optar pelo
valor, pelo bem, e, o que é mais importante, de transmiti-lo aos
semelhantes.
Nosso sistema de valores éticos e suas consequentes normas
de conduta são formados dentro da tradição psíquico-espiritual do
Ocidente, que, em geral, tem sua base na revelação. Em nossa so-
ciedade, esses valores são especialmente amor, individualidade,
compaixão, empatia, esperança no futuro etc., todos eles de tra-
dição religiosa ou humanística. Contudo, há os valores criados por
grupos de interesses que atuam na sociedade. Esses valores, pro-
dutos de ideologias, não são necessários para orientar o compor-
tamento humano e, às vezes, são negativos: estamos falando de
valores como o de propriedade, consumo, posição social, vícios,
possessão etc.
Quais valores você acha que orientam o comportamento das
pessoas que formam parte da sociedade atual? Analise como os
dois autores citados a seguir classificam os valores.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 183

Classificação dos valores


Hessen (1962), na obra Tratado de Filosofia III, descreve qua-
tro tipos de valores espirituais:
1) Lógicos.
2) Estéticos.
3) Éticos.
4) Religiosos.
Os valores estéticos e os religiosos são necessários para a
interpretação do sentido da vida, do mundo. São os primeiros na
hierarquia dos valores.
Já M. Scheler (1989), na obra El Formalismo en la Ética y la
Ética Material de los Valores (título original Der Formalismus in der
Ethik und die materielle Wertethik), primeira grande obra de sua
carreira, desenvolve uma vastíssima investigação sobre o fenôme-
no do valor e das essências em geral. Coloca como objeto a antro-
pologia da pessoa, estuda o problema da fundamentação gnosio-
lógica e antropológica da ética, estabelece as relações de grau e
hierarquia dos valores entre si, e a relação de fundamentação do
valor com o bem.
Scheler (1989) classifica os valores em:
a) Úteis: conveniente, inconveniente...
b) Vitais: forte, fraco...
c) Lógicos: verdade, falsidade...
d) Estéticos: belo, feio...
e) Éticos: justo injusto...
f) Religiosos: profano, sacro...
Scheler explica que os valores não são entes, mas, sim, qua-
lidades dos entes – mas não qualquer qualidade: são "qualidades
valentes". Esse mesmo autor descreve, também, uma hierarquia
dos valores. Nessa fase de sua vida, ele não pensava em termos
religiosos. Colocou os valores religiosos como os mais elevados,
juntamente com os éticos, por darem sentido à vida.
184 © Antropologia, Ética e Cultura

A existência (vida) sempre compreende o ôntico (o eu pensante)


e o ontológico (são as coisas que o eu pode pensar).

Resumindo, diríamos que os valores não podem ser capta-


dos pela razão. Os clássicos dizem que não é a ratio, mas, sim, o
intuito que capta o sentido do mundo e, também, que os valores
espirituais (que, para serem valores, nunca podem ser criação
nossa) se percebem de forma instintiva, brilham ante nossa in-
teligência.

Para você refletir––––––––––––––––––––––––––––––––––––––


Percebemos que, executando valores, encontramos sentido no mundo, e, nesse
movimento, assimilamos que nossa existência tem um sentido.
Terapeutas como V. Frankl, em Psicoterapia e Sentido da Vida, concluem, por
meio de uma análise fenomenológica, que a pessoa que realizar valores de ati-
tude consegue dar sentido à existência. Esses gestos, considerados "valores
atitudinais", devem ser dirigidos ao tu e poderiam ser traduzidos como ações
sociais. Você acredita que a maioria das pessoas da nossa sociedade está mes-
mo preocupada em multiplicar esse capital social, e que pensam no próximo?
(FRANK, 2003).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Etchebehere citando Platão explica que o drama humano
está na eleição da própria vida: de muitos que poderíamos ser te-
mos que escolher ser um. Ainda que a alma seja em essência todas
as coisas, deve determinar-se a ser uma só coisa. Há um livro da
vida onde nossos nomes estão escritos, ainda que caiba a cada um
de nós escrever a história de nosso nome. Assim é apresentado, no
início da filosofia, em Platão, o mito de ER – que veremos agora.

O mito de Er––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
A verdade que o que te vou narrar não é um conto de Alcínoo, mas de um homem
valente, Er, o Arménio. [...]
"A virgem Láquesis, filha da Necessidade, declara: Almas efêmeras, vais come-
çar outra vida de caráter transitório, entrarás em um novo corpo mortal humano.
Não é um demônio que vos escolherá, mas vós que escolhereis o demônio. O
primeiro a quem a sorte couber será o primeiro a escolher uma vida a que ficará
ligado pela Necessidade. Mas a virtude não tem dono, cada um poderá tê-la em
maior ou menor grau, conforme a honrar ou desonrar. A responsabilidade é de

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 185

quem escolhe. A Divindade é isenta de culpa".


Ditas estas palavras, atirou com os lotes para todos e cada um escolheu o que
caiu perto de si, exceto Er, a quem isso não foi permitido. A variedade era infinita,
ao apanhá-lo, tornaram-se evidentes para cada um a ordem que lhe cabia para
escolher. Seguidamente, dispôs no solo, diante deles, os modelos de vida, em
número muito mais elevado do que o dos presentes. Havia de todas as espécies,
vida de todos os animais, e bem assim de todos os seres humanos. Entre elas,
havia tiranias, umas duradouras, outras derrubadas a meio, e que acabavam
na pobreza, na fuga, na mendicância. Havia também vidas de homens ilustres,
umas pela forma, beleza, força e vigor, outras pela raça e virtudes dos antepas-
sados; depois havia também as vidas obscuras, e do mesmo modo sucedia com
as mulheres. Mas não continham as disposições do caráter, por ser forçoso que
este mude, conforme a vida que escolhem. Tudo o mais estava misturado entre
si e com a riqueza e a indigência, a doença e a saúde, e bem assim o meio termo
entre estes predicados. É aí que está, segundo parece, meu caro Glaucón, o
momento crítico para o homem, e por esse motivo se deve ter o máximo cuida-
do, e que cada um de nós ponha por cima de tudo buscar e adquirir a ciência de
distinguir uma vida honesta da que é má e de escolher sempre em toda a parte
tanto quanto possível a melhor. Calculando que efeito tem, em relação com vir-
tude em uma vida, para prever o mal que produz a beleza, por exemplo, unida à
riqueza ou a pobreza, as consequências que tem o nascimento ilustre ou escuro,
os cargos públicos ou a condição de simples particular, ou a debilidade física, a
facilidade ou dificuldade […].
Ora, então, anunciou o mensageiro do além, o profeta falou deste modo: "Mesmo
para quem vier em último lugar, se escolher com inteligência e viver honestamen-
te, espera-o uma vida apetecível, e não uma desgraçada. Nem o primeiro deixe
de escolher com prudência, nem o último com coragem".
Ditas estas palavras, contava Er, aquele a quem coube a primeira sorte logo se
precipitou para escolher a tirania maior, e, por insensatez e cobiça, arrebatou-
-a, sem ter examinado capazmente todas as consequências, antes lhe passou
despercebido que o destino que lá estava fixado comportava comer os próprios
filhos e outras desgraças. Mas, depois que a observou com vagar, batia no peito
e lamentava a sua escolha, sem se ater às prescrições do profeta. Efetivamente,
não era a si mesmo que se acusava da desgraça, mas à sorte e às divindades,
e a tudo, mais do que a si mesmo. Ora, esse era um dos que vinham, do céu, e
vivera, na encarnação anterior, num Estado bem governado; a sua participação
na virtude devia-se ao hábito, não à filosofia. Pode-se dizer que não eram menos
numerosos os que vindos do céu, se deixavam apanhar em tais situações, devi-
do à sua falta de treino nos sofrimentos. Ao passo que os que vinham da terra,
na sua maioria, como tinham sofrido pessoalmente e visto os outros sofrerem,
não faziam a sua escolha às pressas. Por tal motivo, e também devido à sorte
da escolha, o que mais acontecia às almas era fazerem a permuta entre males
e bens. […]
Era digno de se ver esse espetáculo, contava ele, como cada uma das almas
escolhia a sua vida. Era, realmente, merecedor de piedade, mas também ridículo
e surpreendente. Com efeito, a maior parte fazia a sua opção de acordo com
os hábitos da vida anterior. Dizia ele que vira a alma que outrora pertencera a
Orfeu escolher uma vida de cisne, por ódio à raça das mulheres, porque, devido
a ter sofrido a morte às mãos delas, não queria nascer de uma mulher; vira a de
Tamiras escolher uma vida de rouxinol; vira também um cisne preferir uma vida
humana, e outros animais músicos procederem do mesmo modo [...].
186 © Antropologia, Ética e Cultura

"Assim que todas as almas escolheram as suas vidas, avançaram, pela ordem
da sorte que lhes coubera, para junto de Láquesis. Esta mandava a cada uma
o demônio que preferira para guardar a sua existência e fazer cumprir o destino
que escolhera". (PLATÃO, República, Livro X, p. 614-620)
A eleição do tipo de vida é, como diz Platão, o momento crítico para o homem,
tanto que nesse momento coloca em jogo seu destino. "Não será um demônio
quem escolhe, e sim você quem escolherá o demônio". Isto é, não é uma força
cega quem nos dirige e sim nós próprios, por intermédio de nossas ações, que
vamos configurando nosso caráter, moldando nosso demônio.
(ETCHEBEHERE, 2008, p. 138-142, tradução nossa).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––
Ante a exigência de escolher nossa vida, Platão orienta a pro-
curar um conhecimento que nos permita discernir entre uma vida
que é boa e aquela que não é.

10. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu
desempenho no estudo desta unidade:
1) Indique a única alternativa falsa:
a) A categoria alteridade é própria da natureza humana, está relacionada
com a necessária vinculação com os outros "eus". O homem é em seu
constitutivo um ser aberto à sociabilidade e a comunidade.
b) Pode-se dizer que o ser humano é pessoa, quanto mais diferente, mais
peculiar seja em relação aos outros seres humanos. Quanto mais indi-
viso seja, como diziam os escolásticos, para estes pensadores a pessoa
é: indivisum in se et divisium a quolibet alio, ou seja, na individualidade
ontológica está a base da personalidade.
c) J. Y. Jolif (1969, p. 184-185) explica que a alteridade e a unicidade são cate-
gorias ontológicas. Estas categorias implicam em si mesmas numa contra-
dição. Ambas dependem da renuncia do conceito de subjetividade pura, o
homem não pode deixar de reconhecer, aceitar e integrar a dimensão da
alteridade. Eu não posso dar-me sem que se dê também o outro. Essa con-
cepção de homem é contrária à ideia de ser individualista que o neolibe-
ralismo e as linhas de pensamento positivista defendem nos dias de hoje.
d) O ser humano necessita comunicar-se com o outro e também ter contato
com o mundo – essa é uma exigência natural. Devemos considerar tam-
bém que sua finitude e sua dificuldade para compreender a multiplicida-
de da verdade o obrigam ao diálogo e ao intercâmbio.
2) Indique a única alternativa que complementa o pensamento de SAHAGUN.
"A propriedade de um ser espiritual é sua independência, liberdade ou auto-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Características da Pessoa Humana, Constitutivos Essenciais 187

nomia essencial perante os contratempos e pressão do orgânico da vida [...].


Tal ser espiritual não está limitado nem pelos impulsos, nem pelo meio é aber-
to ao mundo". (SAHAGUN 1996, p. 146).
a) Portanto, o homem está limitado por crenças, desejos, vínculos sociais
etc. Estes são determinantes do comportamento.
b) Assim, se somos produtos de situações e realidades que fogem do nosso
controle e não escolhemos livremente nossos genes nem nossa realidade
ambiental e cultural, não podemos fundamentar efetivamente a hipótese
de que o nosso comportamento seja resultado de uma escolha livre.
c) Nascemos em uma sociedade estruturada, não pedimos nem escolhemos
nosso destino, bem como não escolhemos nossa personalidade social.
d) A pessoa, por ser espiritual, atua sabendo o que está fazendo e, especial-
mente, podendo concordar ou não segundo o juízo da razão.
3) Complete os textos com "Liberdade de" ou "Liberdade para".
a) Não há liberdade sem condição ética, não há liberdade sem responsabi-
lidade. Já que a liberdade, por ser da pessoa, supõe sempre uma dimen-
são interpessoal, o homem é sempre um eu no mundo com outros "eus".
Esta forma de liberdade é denominada: _________________________.
b) O homem nasce sem nenhuma norma ou modelo – portanto, com uma
liberdade sem limites. A minha responsabilidade é limitada ante a liber-
dade. A vontade é livre e ela impõe a ação. Esta forma de liberdade é
denominada ________________________.
4) Como pessoas humanas, organizamos nossa existência a partir de valores.
O homem é um ser aberto ao mundo. É no mundo que vai desenvolver seu
projeto pessoal. Quais valores você acha que orientam o comportamento
das pessoas que formam parte da sociedade atual? Caso tenha dúvidas,
compare sua resposta com a análise dos dois autores que são citados no
tópico Classificação dos valores.

Gabarito
Confira, a seguir, as respostas corretas para as questões au-
toavaliativas propostas:
1) c.

2) d.

3) a)  "+Liberdade "para"";


b) +) liberdade "de".
4) Resposta pessoal.
188 © Antropologia, Ética e Cultura

11. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, você pôde aprender sobre as características
centrais da existência, sobre a radical liberdade do homem e a es-
trutura que o compõe. Além disso, pôde constatar a importância
do "tu" no desenvolvimento da personalidade, ou seja, a impor-
tância do outro.

12. E-REFERÊNCIAS

Sites pesquisados
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cancaonova.com/noticia.php?id=260781>. Acesso em 12 jan. 2012.
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diaadiaeducacao.pr.gov.br/diaadia/diadia/arquivos/File/conteudo/sugestao_leitura/
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13. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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BAUMAN Z. Vida para o consumo. A transformação das pessoas em mercadoría. Rio de
Janeiro: Zahar, 2008.
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Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
TOMÁS DE AQUINO. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 2002.
Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
EAD
A Bioética e a
Interdisciplinaridade

6
Prof. Dr. Mariano Antonio Sehnem

1. OBJETIVOS
• Identificar que o tema da Bioética ultrapassa a sua dimen-
são científica e médica.
• Reconhecer a complexidade que envolve Bioética e inter-
disciplinaridade e procurar construir caminhos de diálogo
e de convergência.
• Analisar o ponto de partida da Bioética moderna, bem
como a Bioética e suas principais fronteiras epistemoló-
gicas.

2. CONTEÚDOS
• Ponto de partida da Bioética moderna.
• Bioética e interdisciplinaridade.
• Bioética e suas fronteiras epistemológicas.
192 © Antropologia, Ética e Cultura

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


1) No decorrer do estudo desta unidade será apresentado
a você, alguns filósofos. Antes de iniciar seus estudos é
interessante que você conheça um pouco da biografia
desses pensadores e para saber mais acesse o site indi-
cado.

Edgar Morin
Edgar Morin nasceu em 1921 e, em 1970, fundou, em Paris, o
Centro Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares.
Para ele, a concepção holística não é apenas a somatória de to-
das as coisas, mas, mais do que isso, é uma integração, ou seja,
todas as coisas estão profundamente interligadas entre si (Gran-
de Enciclopédia Larousse Cultural). Edgar Morin: disponível em:
<http://www.ehess.fr/centres/cetsah/IMAGES/CarolineCuello.
jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

Jean Bernard
Jean Bernard é professor da Faculdade de Medicina de Paris,
Diretor do Instituto Francês de Investigação sobre a Leucemia e
as doenças de sangue, membro da Academia Francesa, mem-
bro da Academia Nacional de Medicina e Presidente honorário do
Comitê Consultivo Nacional para as Ciências da Vida e da Saú-
de. Escreveu, dentre inúmeras obras, A Bioética. Lisboa: Institu-
to Piaget, 1993 (Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Jean
Bernard: disponível em: <http://ams.astro.univie.ac.at/~nendwich/Science/SoFi/
portrait.gif>. Acesso em: 4 set. 2010.

Immanuel Kant
Immanuel Kant (1724-1804) foi um importante filósofo alemão.
Em 1781, publicou Crítica da razão pura; em 1785, Fundamentos
da metafísica dos costumes, e, em 1788, escreveu Crítica da razão
prática, obra em que o autor remete a razão ao centro do mundo
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Immanuel Kant: dispo-
nível em: <http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/2/2f/
Immanuel_Kant_2.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

Baruch Spinoza
Baruch Spinoza (1632-1677) foi um filósofo holandês. Entrou em
contato com Galileu e o pensamento renascentista de Giordano
Bruno e, depois, foi influenciado por Descartes. Publicou: Princí-
pios da filosofia de Descartes (1663) e Tratado teológico-político
em 1670 (Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Baruch Spino-
za: disponível em: <http://philosophy.tamu.edu/~sdaniel/Images/
spinoza1.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

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© A Bioética e a Interdisciplinaridade 193

Jean Jacques Rousseau


Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo e romancista
suíço de língua francesa, conheceu Voltaire, Diderot e outros
filósofos iluministas, tendo colaborado na produção da Enciclo-
pédia. Publicou diversas obras, com destaque para: O contrato
social e Da educação em que vincula política, moral e educação
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Jean Jacques Rousse-
au: disponível em: <http://ebooks.adelaide.edu.au/r/rousseau/
jean_jacques/portrait.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

Hans Küng
Hans Küng nasceu na Suíça em 1928. Em 1962, foi nomeado
pelo Papa João XXIII peritus, ou seja, consultor teológico para
o Concílio Vaticano II. Em 1996, tornou-se presidente da Fun-
dação de Ética Global em Tübengen. Tem uma vasta produção
com destaque para: Igreja católica (2001), As religiões do mun-
do (2004), Teologia a caminho: fundamentação para o diálo-
go ecumênico (1999), e O princípio de todas as coisas (2007)
(Grande Enciclopédia Larousse Cultural). Hans Küng: disponível em: <http://
fratresinunum.files.wordpress.com/2009/02/kung.jpg>. Acesso em: 4 set. 2010.

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Vamos prosseguir nossa caminhada com relação ao estudo
introdutório da Bioética.
Desde o início, deixamos claro que há uma relação estreita
da Ética com a sociedade, e uma relação mais íntima da Ética com
a Bioética, uma vez que elas se complementam.
Em seguida, abordamos alguns aspectos históricos evoluti-
vos da Bioética.
Acabamos de analisar, na unidade anterior, alguns conceitos
e princípios que fundamentam e dão sustentação à Bioética como
um novo campo do saber.
O nosso desafio, agora, é mergulhar mais a fundo na Bioética
propriamente dita e verificar toda a complexidade que é entender
o ser humano vivendo em grupo, em sociedade e quais as dificul-
dades daí decorrentes.
194 © Antropologia, Ética e Cultura

5. PONTO DE PARTIDA DA BIOÉTICA MODERNA


Podemos, inicialmente, afirmar que a Bioética não pode ser
entendida apenas como um campo de saber específico, pois seu
referencial teórico e metodológico e a sua prática cotidiana no en-
frentamento dos problemas situam-se na intersecção da Medicina,
da Biologia com as suas múltiplas ramificações e especializações,
com as ciências humanas, como também com a Ética, o Direito, a
Filosofia e a Teologia entre outros campos.
Já vimos que Potter, em 1971, entendia a Bioética como uma
ponte entre duas culturas: a das ciências e a das humanidades,
que, ainda hoje, aparecem extremamente distanciadas.
Mais que um precursor, Potter dedicou sua vida inteira ao
fortalecimento e à abertura de caminhos para que a Bioética se
incorporasse às diferentes culturas, para que ela se transformasse
num projeto de vida para todos os seres humanos que habitam o
planeta.
Em 2 de julho de 1974, o Presidente norte-americano assi-
nou um Projeto de Lei que ficou conhecido como a Lei Nacional
para a Investigação Científica. Uma vez promulgada a lei, criou-
-se, em seguida, uma Comissão encarregada de estudar e apreciar
os problemas éticos relativos à pesquisa científica nos campos da
Biomedicina e das ciências do comportamento. A criação dessa
Comissão respondia, pelo menos em parte, às duras críticas que
a opinião pública fazia com relação aos abusos cometidos pelos
pesquisadores na manipulação de pessoas e de animais em suas
experiências laboratoriais.
A Comissão tinha como compromisso básico revisar as nor-
mas do Governo Federal sobre a pesquisa científica, visando pro-
teger os direitos e o bem-estar dos cidadãos em geral.
Desde o início, ficou estabelecido que a Comissão não deve-
ria se restringir apenas à identificação de possíveis abusos, mas,
em especial, deveria dedicar-se a formular princípios gerais e os

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Bioética e a Interdisciplinaridade 195

mais sólidos e abrangentes que pudessem orientar e guiar a pes-


quisa futura em Biomedicina e nas ciências de conduta.
Como resultado prático, a Comissão, após quatro anos, di-
vulgou o Relatório Belmont, já estudado anteriormente, descre-
vendo e apontando os três princípios gerais e fundamentais que
são: o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça.
Segundo esse relatório, o princípio do respeito às pessoas
apoia-se em duas convicções morais fundamentais:
• devem-se tratar as pessoas sempre como agentes autô-
nomos;
• devem ser tutelados os direitos das pessoas cuja autono-
mia está diminuída ou comprometida.
Isso quer dizer que o reconhecimento da autonomia alheia
implica sempre que as escolhas das pessoas autônomas sejam res-
peitadas e que não lesem a autonomia e os direitos de terceiros.
O princípio da beneficência inclui, também, a obrigação de
não fazer mal (a não maleficência) como dever moral de agir para
beneficiar os outros.
Já o princípio da justiça é entendido com base na chamada
justiça distributiva, que tem a ver com o que juridicamente é de-
nominado como aquilo que pertence às pessoas ou aquilo que é
devido a elas.
O problema está no fato de que cada país tem a sua legis-
lação, a Constituição, o seu Código Penal e a formulação de suas
políticas públicas, o que fornece e fundamenta uma autonomia de
cada Estado ou Nação.

6. BIOÉTICA E INTERDISCIPLINARIDADE
Falar das “fronteiras” da Bioética é uma tarefa bastante com-
plicada, porque envolve a compreensão dos paradigmas e das in-
ter-relações da epistemologia, isto é, envolve o ser humano, que é
o ser mais complexo do planeta Terra.
196 © Antropologia, Ética e Cultura

O conceito Paradigma pode ser definido como um modelo, um


conjunto de ideias e valores capazes de situar os membros de
uma comunidade em determinado contexto, de maneira a possi-
bilitar a compreensão da realidade e a atuação, com base em va-
lores comuns. Dessa forma, o paradigma engloba todo o referen-
cial teórico-prático, todo um conjunto de saberes e conhecimentos
produzidos, acumulados e transmitidos de geração para geração,
mantendo vivas as tradições e costumes de um povo (Thomas
Kunh).

O conhecimento, então, vai sendo construído com base nas


experiências, na solução prática dos problemas, arquitetadas na
forma criativa de pensar, discernir, comparar, enfim, de fazer esco-
lhas diante de uma situação desafiadora.
Utilizamos o termo “fronteiras” entre aspas, porque compar-
tilhamos da concepção holística de Edgar Morin, que se autodeno-
mina “sequestrador” de saberes e de conhecimentos e defende a
tese de que não há, efetivamente, fronteiras reais entre as ciências
exatas, biológicas e humanas. Todas essas coisas estão intimamen-
te interligadas entre si, de tal modo que a fronteira é artificial, exis-
tindo apenas na cabeça das pessoas.
As nossas Escolas e os Currículos estão organizados, de um
modo geral, de forma estanque e fragmentados, o que nos fornece
uma visão de mundo compartimentalizada com uma nítida sepa-
ração entre as ciências exatas (as que possuem leis universais), as
ciências da natureza (que têm causa e efeito) e as ciências huma-
nas ou sociais (que têm conceitos e paradigmas diferenciados de
uma região para a outra).
Considerando as diferenças e diversidades econômicas, polí-
ticas e socioculturais entre os países do mundo e levando em con-
ta os limites que o sistema educacional nos apresenta em termos
curriculares, poderíamos afirmar que não é por acaso que há uma
“grade” curricular nas Escolas, em que cada docente mora na sua
“gaiola de ouro”, ou na sua “torre de marfim” sem estabelecer
uma abordagem interdisciplinar.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Bioética e a Interdisciplinaridade 197

Segundo Morin, a transdisciplinaridade contém dois elemen-


tos básicos: primeiro, trata-se de algo mais que a mera intensifi-
cação do necessário diálogo entre as distintas áreas e disciplinas
científicas, porque a questão que precisa ser explicitada é a da mu-
dança de paradigma epistemológico; em segundo lugar, o diálogo
entre as ciências será mais profundo se houver uma transmigração
de certos conceitos fundantes por meio das diversas disciplinas
– em especial, a junção dos conceitos “complexidade” e “auto-or-
ganização” como base e fundamento do enfoque transdisciplinar.
Portanto, a concepção transdisciplinar é uma nova postura,
um novo olhar do educador e do educando numa visão dinâmica e
integradora dos fatos e dos conhecimentos científicos.
A Bioética, nesse sentido, não é uma metafísica, mas é um
conhecimento pragmático e processual resultante de quase todas
as áreas científicas. O seu estudo e aprofundamento podem trazer
benefícios inestimáveis, salvar e prolongar vidas humanas.
Em contrapartida, ela precisa ser tratada e estudada com
responsabilidade, porque tanto pode trazer aplicações vitoriosas,
como também pode produzir resultados ambíguos e perigosos.

7. BIOÉTICA E SUAS FRONTEIRAS EPISTEMOLÓGICAS


Tentar estabelecer clara e formalmente as fronteiras rigoro-
sas de cada campo do saber é quase que uma tarefa desnecessá-
ria, uma vez que cada disciplina ou área de conhecimento tem a
sua especificidade e a contribuição a dar com referência à explica-
ção da vida humana.
Há um leque para tentar dividir, classificar e descrever as
fronteiras dos diversos campos do conhecimento da Bioética com
relação aos demais campos do conhecimento.
Contudo, abordaremos, nesta unidade, a classificação utili-
zada por Jean Bernard.
198 © Antropologia, Ética e Cultura

A Bioética e as fronteiras com a Filosofia


A Ética é um tema recorrente da Filosofia; não é exclusivo
dela, mas tem sido abordado por Sócrates, que foi o pioneiro em
criticar as regras da sociedade grega como injustas e ambíguas. O
filósofo, ao questionar profundamente a ética das aparências na
estrutura e organização da sociedade grega, foi condenado à mor-
te, embora não tenha deixado nada escrito.
Platão, por sua vez, possui uma vasta produção e o trabalho
mais importante é a República, no qual expõe suas ideias políti-
cas, filosóficas, estéticas, éticas e jurídicas. A sua filosofia culmina
com a ética: a ideia do bem é, no seu modo de entender, a ideia
suprema. Para uma realização, deve tender a todo procedimento
humano, ou seja, o bem é imperativo moral para todos.
Para Platão, há quatro tipos fundamentais de virtude:
• a sabedoria ou prudência, própria da parte racional da
alma;
• a coragem, virtude da vontade, temperança própria da
sensibilidade humana;
• a justiça, nascida do equilíbrio, que se deve estabelecer
entre todas as disposições éticas e sociais.
Aristóteles forma o tripé dos autores clássicos que consegui-
ram sistematizar, grosso modo, o pensamento humano ocidental.
Enquanto Sócrates e Platão construíram as bases filosóficas, Aris-
tóteles, as bases científicas.
Houve uma Filosofia e uma Ciência antes deles, mas a orien-
tação dada por eles fez toda a pesquisa filosófica e científica pos-
terior se basear nos resultados que eles nos deixaram.
Até a época moderna de Galileu Galilei (1564-1642), que
introduziu o método científico propriamente dito, toda a ciência
ocidental era, fundamentalmente, aristotélica. Ele produziu uma
vasta literatura sobre a Ética, que teve uma influência quase “bíbli-
ca” em toda a sociedade europeia medieval.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Bioética e a Interdisciplinaridade 199

Na era moderna, Immanuel Kant e Baruch Spinosa dedica-


ram-se mais a fundo na discussão do tema e, contemporaneamen-
te, o estudo e a discussão da Ética situam-se em todos os campos
do conhecimento.
Segundo Bernard (1993), os filósofos podem ser divididos,
de maneira geral, em três grupos distintos: os indiferentes, os arti-
ficiosos e os renovadores.
Os indiferentes consideram os avanços da Medicina de for-
ma emotiva e preferem manter-se equidistantes da agitação e da
polêmica.
Já os artificiosos procuram utilizar, com talento, tanto os
progressos da Medicina como da Biologia, mas, em contraparti-
da, negligenciam a revolução terapêutica. Dessa forma, acabam
esquecendo que a Medicina alimenta estudos e pesquisas para os
filósofos e diminui o sofrimento dos seres humanos.
Na terceira categoria, estão os renovadores, que percebem
a importância das recentes descobertas biológicas e médicas, de-
bruçam-se sobre a tarefa nada fácil de analisar o que é normal
e o que é patológico, percebendo que os progressos da Biologia
“iluminam” e trazem novas alternativas para temas e problemas
especificamente filosóficos.
Com base nessa visão e concepção é que se estabeleceram
intercâmbios reflexivos, anteriormente desconhecidos ou impos-
síveis de acontecer.
Portanto, podemos concluir que a Filosofia passa a ser uma
importante auxiliar no estudo, no debate e na solução de proble-
mas da Bioética.

A Bioética e as fronteiras com a Teologia


Os teólogos estão fundamentados na sua fé, que é algo ínti-
mo, interior, e os cientistas estão embasados no empirismo posi-
tivista; ambos, convencidos da posse da verdade, assumiram, du-
rante séculos, uma postura rígida, excludente e antagônica.
200 © Antropologia, Ética e Cultura

As fronteiras existentes entre a ciência e a Teologia eram, na


verdade, elevados muros, fortificações e muralhas. Por esses mo-
tivos, foram condenados Galileu, Giordano Bruno e tantos outros,
por meio da Inquisição, um tribunal eclesiástico vigente por quase
toda a duração da Idade Média.

A Inquisição nasceu da intenção de combater as heresias popu-


lares que se multiplicavam na Europa a partir do século 12. Ini-
cialmente, foi confiada aos tribunais ordinários, mas, em 1231,
tornou-se “Tribunal Permanente”, dirigido por um Bispo, encarre-
gado pelo “Papado” de lutar contras heresias. Tanto Galileu como
Giordano Bruno tiveram de enfrentar a Inquisição, sendo o último
queimado na fogueira (Grande Enciclopédia Larousse Cultural).

Precisamos destacar que os cientistas, em geral, acreditam


demasiadamente na potencialidade da ciência: como se ela pu-
desse trazer as soluções mais variadas e avançadas, na tentativa de
superar problemas e limites até hoje existentes e, portanto, apos-
tam todas as suas fichas nesse campo.
Em contrapartida, os teólogos têm consciência de que o ser
humano não é um ser pronto e acabado, e que ainda não se co-
nhece o seu o pleno desenvolvimento mental e espiritual. Mais do
que nunca, há uma percepção e um certo consenso do exagerado
expansionismo material, econômico e financeiro e uma extrema
pobreza espiritual do homem contemporâneo.
Em outras palavras, há, na prática, um enorme descompasso
entre o avanço da ciência e da tecnologia, em detrimento dos va-
lores humanos e do crescimento interior. O diálogo entre a ciência
e a religião será objeto de estudo e aprofundamento na próxima
unidade, contudo, será enfatizado agora também.
Por inúmeras vezes, há posturas muito rígidas de ambas as
partes (ciência e religião) e, ao reunir cientistas e teólogos para
discutir os temas atuais da Bioética, a compreensão e um diálogo
produtivo tornam-se muito difíceis, ou quase impossíveis.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Bioética e a Interdisciplinaridade 201

Há, atualmente, uma enorme lacuna entre as gerações, na


qual o ser humano nunca viveu de forma tão solitária, vazia e frus-
trada. O uso intensivo do micro-ondas, do telefone celular, da TV
e da internet criou uma distância mental entre as pessoas. Nas
famílias de classe média, por exemplo, há tantos aparelhos de TV
quantos forem os moradores.
Uma pesquisa feita pela CET (Companhia de Engenharia de
Tráfego), em novembro de 2007, em São Paulo, revelou que 62%
dos automóveis que circulam diariamente na cidade têm apenas
um ocupante, que é o motorista.
Isso significa dizer que o automóvel, o micro-ondas, a TV e a
internet são os símbolos máximos do individualismo exacerbado e
presente na sociedade.
Por isso, o diálogo entre a ciência e a religião, no início do
século 21, busca um maior consenso para canalizar esforços con-
vergentes no sentido de elaborar uma “agenda mínima comum”,
na qual todos os seres humanos que estão descontentes e indigna-
dos com a exclusão social, a injustiça e a desumanidade busquem
a construção de uma sociedade mais fraterna e feliz.

A Bioética e as fronteiras com a Política


A Ciência Política é a esfera do poder, isto é, do poder de
decisão para adotar esse ou aquele caminho a trilhar.
Platão foi o inventor da Política ao escrever o livro A Repúbli-
ca, que dividiu em três partes: a primeira é a exposição e proposi-
ção de uma comunidade ideal (utópica) governada pelos filósofos;
na segunda, ele apresenta o seu pensamento filosófico; e, na ter-
ceira, expõe as várias formas de governo, decidindo, no final, pela
aristocracia como a melhor delas.
Assim que os agregados humanos atingiram um certo grau
de desenvolvimento da cultura, passaram a estabelecer hierar-
quias entre seus membros e a adotar conjuntos de normas regula-
doras das relações entre grupos.
202 © Antropologia, Ética e Cultura

A principal característica da organização política da Idade


Média foi a formação dos feudos, entidades intermediárias entre
o soberano e o cidadão comum. Os senhores feudais exerciam sua
autoridade sobre todos os habitantes de seus domínios e o regime
era monárquico, ou seja, era o rei quem representava a lei.
Na era moderna, aparece a figura do Estado como uma ins-
tância jurídico-administrativa, supraideológica e suprapartidária
que deveria administrar toda a sociedade. Afirmamos que “deve-
ria administrar”, pois iremos verificar que, na prática, não foi isso
o que aconteceu.
Thomas Hobbes (1588-1679), como vimos anteriormente,
escreveu o livro Leviatã, obra em que justifica a presença da mo-
narquia absoluta como o regime que melhor se adapta à natureza
humana.
Segundo ele, o Estado surgiu e é necessário devido à preci-
são de controlar as violências dos homens entre si.
Contudo, é importante aqui destacar o pensamento político
de Jean Jacques Rousseau, autor do livro Contrato Social, obra em
que aponta o regime democrático como aquele que melhor prote-
ge os direitos dos cidadãos.
Rousseau não admite que o povo delegue seus direitos nem
mesmo a uma assembleia eletiva, ou seja, o poder de participação
e de decisão deve pertencer à totalidade dos cidadãos. Evidente-
mente, essas ideias e princípios inspiraram os líderes da Revolução
Francesa em 1789, contribuindo para a destruição da monarquia
absoluta, extinção gradativa dos privilégios da nobreza e do clero
e a tomada do poder pela burguesia.
A democracia de fato e de direito, na qual os cidadãos têm
um peso real na tomada de decisões, está ainda muito precária no
mundo inteiro: há ditaduras veladas e países nos quais a democra-
cia ainda tem uma vida muito tenra, como no caso do Brasil.

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© A Bioética e a Interdisciplinaridade 203

Não podemos ter uma visão ingênua e nos iludir no que se


refere à dimensão política; quem tem poder econômico tem, tam-
bém, poder político e, com certeza, não quer perder esse poder.
Quem trabalha na educação, por exemplo, precisa estudar
e analisar as ambiguidades e contradições que contêm as institui-
ções, os partidos, os sindicatos, as igrejas e as organizações sociais
para não se tornar presa fácil no jogo de interesses na esfera po-
lítica.
As fronteiras entre a Bioética e a Política precisam conter
uma constante vigilância e uma análise crítica vigorosa: o avan-
ço da ciência e da tecnologia pode abrir portas e gerar benefícios
para toda a sociedade, mas pode, também, trazer e produzir gra-
ves abusos e destruições.
Nessa direção, as campanhas de vacinação obrigatórias rea-
lizadas no Brasil e em outros países do mundo são as responsáveis
pelo quase desaparecimento de doenças como varíola, difteria,
poliomielite entre outras doenças e epidemias.
Em contrapartida, as fábricas e indústrias bélicas, os enormes
investimentos em estratégias de guerra, a medicina esteticista e as
derrubadas criminosas das florestas estão, todos os dias, exibindo
os seus milhões de dólares de lucros escandalosos e imorais.
A violação das fronteiras da Bioética e da Política é trágica
para a maioria da humanidade, pois os cientistas (que não estão
neutros nesse jogo de interesses) produzem teorias, conhecimen-
tos, paradigmas que passam a ser dogmas científicos para pautar
e fundamentar sua ação predatória generalizada.
Nunca é demais perguntar quais são as políticas públicas,
quanto de investimento é feito nos seres humanos e na gestão so-
cial e quanto é a fatia orçamentária para a pesquisa tecnológica.
É razoável aceitar, por exemplo, a morte de um bebê que não
tem cérebro, mas é totalmente inaceitável que morram milhões de
crianças no mundo inteiro pelo fato de não possuírem um prato de
comida.
204 © Antropologia, Ética e Cultura

A Bioética e as fronteiras com o direito


As fronteiras entre duas propriedades, entre municípios ou
entre dois países costumam ser precisas, a não ser que haja algum
conflito entre as partes.
As fronteiras entre a Bioética e o Direito, no entanto, ainda
são muito imprecisas e nebulosas. Nem todas as leis são passíveis
de interpretação dúbia ou conflituosa e, em se tratando de proble-
mas novos da Bioética, em que não se estabeleceu uma jurispru-
dência, torna-se mais difícil um posicionamento.
Num primeiro momento, o Direito pode adotar uma atitude
silenciosa, isto é, enquanto não pode prever os progressos da ciên-
cia e da tecnologia, é razoável uma postura de cautela.
Contudo, temos os adeptos progressistas, de forma que os
que estão mais abertos e dispostos a aceitar as inovações estarão
sujeitos a entrar no mérito da questão e a adotar posições mais
flexíveis.
Há uma diversidade de situações perante os avanços nas
pesquisas e investigações que não permite ao legislador que ela-
bore um código completo e minucioso em que se possam prever
todas as eventualidades.
Como meio termo, podemos imaginar uma lei-quadro na
qual estão elencados e explicitados os princípios básicos, sem en-
trar em detalhes, o que pode facilitar uma determinada tomada
de posição.
No entanto, dependendo das situações prementes, como se
decidir com relação à eutanásia, o aborto, as células-troco embrio-
nárias, e que carecem de uma legislação mais rigorosa, será difícil
chegar a um consenso.
As questões que envolvem a repetição de experiências e a
solidez das decisões poderão figurar num segundo grupo no Direi-
to, que terá mais tempo para a sua consolidação.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Bioética e a Interdisciplinaridade 205

A Bioética e as fronteiras geográficas


Segundo Bernard (1993), as fronteiras geográficas, sem dú-
vida, são fatores preponderantes para se entender os difíceis con-
tornos da Bioética. Cada país, região e seu povo caracterizam-se
por possuir língua, costume, tradição, valores próprios que vão
imprimir certa solidez organizativa daquele grupo humano espe-
cífico.
Há, hoje, uma riqueza e, ao mesmo tempo, um problema
que engloba o multiculturalismo: o pluralismo e a diversidade cul-
tural que geram preconceitos, xenofobia e discriminações profun-
das e injustas.
No Japão, por exemplo, é proibido por lei extrair um órgão
de uma pessoa, logo após a constatação da sua morte; os japone-
ses ricos, porém, atravessam o Oceano Pacífico para efetuarem,
em São Francisco, um transplante de fígado ou de coração.
No Brasil, a venda de um rim vivo é permitida e pode ser
averiguada por meio de pequenos anúncios nos jornais e revistas.
A fecundação artificial é interditada pela Igreja Católica, mas
largamente aceita e mesmo aconselhada por diversas Igrejas Pro-
testantes.
As variações geográficas podem ser entendidas por variados
fatores. Em primeiro lugar, há, de fato, as diferenças culturais, em
que cada povo constrói suas casas, tem sua própria arte culinária,
suas festas que remontam a séculos, há milênios e que fazem par-
te constitutiva de sua história. Reside aí a riqueza incomensurável
do multiculturalismo.
Em segundo lugar, há as diferenças religiosas. A doutrina bu-
dista, por exemplo, é diferente da católica, do protestantismo, do
islamismo, do hinduísmo e assim por diante. Não se pode, porém,
admitir atitudes fundamentalistas, intolerâncias, preconceitos e
oposições irredutíveis. Há a necessidade de se buscar os pontos
de convergência, segundo Hans Kung , em seu livro As religiões do
mundo: em busca dos pontos comuns.
206 © Antropologia, Ética e Cultura

Em terceiro lugar, devem ser levados em consideração os fa-


tores econômicos: a pobreza é sempre um estímulo significativo
para a venda de bebês, de órgãos humanos, o comércio de sangue,
de fígado, de rim entre outros.
Destaquem-se, ainda, as diferenças médicas: não somente
a presença física da Medicina, uma vez que há lugares e regiões
onde ela inexiste ou se apresenta totalmente precária, mas aque-
las aliadas às políticas públicas de saúde de um sistema preven-
tivo, e não apenas curativo, como é o caso do “Sistema de Saúde
Brasileiro”, em que temos um “Ministério de Doenças” e não de
“Saúde”.
A listagem das diferenças geográficas poderia ser estendida
e ampliada, mas o importante é que cada um de nós tenha consci-
ência de que essas diferenças existem e precisam ser reconhecidas
e, sobretudo, respeitadas.
Há, atualmente, uma tendência no sentido de se criar “Co-
mitês de Ética” nas instituições, nas empresas, nos Estados e em
regiões estratégicas que deverão discutir, elaborar e divulgar, pela
mídia, suas decisões e posicionamentos, tentando aproximar as
pessoas das organizações jurídicas e civis, buscando sempre ações
mais convergentes.
Os Comitês locais, regionais, nacionais e internacionais têm
uma tarefa premente e importante: promover encontros, debates
e simpósios bem como a produção de uma legislação que demo-
cratize os estudos e pesquisas, as descobertas científicas para toda
a sociedade, em especial, a adoção de medidas preventivas quan-
to à saúde pública, ao planejamento familiar, em relação a uma
alimentação mais correta, à adoção de atividades físicas que pos-
sam contribuir para uma efetiva melhoria da qualidade de vida de
todas as pessoas, indistintamente.
Esses Comitês, num primeiro momento, podem desempe-
nhar um papel mais consultivo e informativo do que propriamente
jurídico ou político, e o seu poder está, fundamentalmente, na éti-
ca e na preservação dos valores humanos.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Bioética e a Interdisciplinaridade 207

Leitura Complementar–––––––––––––––––––––––––––––––––
O global é mais que o contexto, é o conjunto das diversas partes ligadas a ele de
modo inter-retroativo ou organizacional. Dessa maneira, uma sociedade é mais
de um contexto: é o todo organizador de que fazemos parte. O planeta Terra é
mais do que um contexto: é o todo ao mesmo tempo organizador e desorganiza-
dor de que fazemos parte. O todo tem qualidades ou propriedades que não são
encontradas nas partes, se estas estiverem isoladas umas das outras, e certas
qualidades ou propriedades das partes podem ser inibidas pelas restrições pro-
venientes do todo. Marcel Mauss dizia: “É preciso recompor o todo”. É preciso
efetivamente recompor o todo para conhecer as partes (MORIN, 2002, p. 37).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

8. QUESTÃO AUTOAVALIATIVA
Sugerimos, neste tópico, que você procure responder às
questões a seguir, que tratam da temática desenvolvida nesta uni-
dade, bem como que as discuta e as comente.
A autoavaliação pode ser uma ferramenta importante para
testar seu desempenho. Se encontrar dificuldades em responder
a essas questões, procure revisar os conteúdos estudados para
sanar suas dúvidas. Este é o momento ideal para você fazer uma
revisão do estudo desta unidade. Lembre-se de que, na Educação
a Distância, a construção do conhecimento ocorre de forma coo-
perativa e colaborativa. Portanto, compartilhe com seus colegas
de curso suas descobertas.
2) Potter dedicou sua vida inteira para fortalecer e cons-
truir caminhos para que a Bioética se transformasse
num projeto de vida para todos os seres humanos que
habitam o planeta Terra, fato que ainda está muito dis-
tante de acontecer.
Pesquise na mídia uma matéria jornalística que conte-
nha preconceito, xenofobia ou algum tipo de discrimi-
nação religiosa, sexual, étnica, ideológica ou de gênero.

9. CONSIDERAÇÕES
Nesta unidade, tivemos a oportunidade de conhecer o pon-
to de partida da Bioética moderna, bem como os temas relacio-
208 © Antropologia, Ética e Cultura

nados à Bioética e à interdisciplinaridade, como às suas fronteiras


epistemológicas.
Já na próxima unidade, poderemos estudar o processo de
secularização e o momento em que a ciência encontra a religião.
Até a próxima!

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


BERNARD, J. A Bioética. Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
BRAGA, K. S. Bibliografia sobre Bioética Brasileira: 1990 – 2002. Brasília: Letras Livres,
2002.
DINIZ, D. Conflitos morais e Bioética. Brasília: Letras Livres, 2002.
GARRAFA, V. Pesquisas em Bioética no Brasil de hoje. São Paulo: Gaia, 2006.
VIDAL, M. Dez palavras chave em moral do futuro. São Paulo: Paulinas, 2003.
VIEIRA, T. R. Bioética e Direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2003.
MORIN, E. Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro. São Paulo: Cortez, 2002.

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EAD
A Finalidade da Ética e a
Essência da Moral

7
Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanos Piva
Prof. Juan Antonio Acha

1. OBJETIVOS
• Entender o cerne da reflexão ética na perspectiva filosó-
fica.
• Apreender a natureza, o objeto e o campo semântico da
Ética e da moral.
• Compreender a relação que o aspecto moral tem com a
liberdade humana.
• Dotar de uma ideia adequada o que é um valor moral.
• Entender a presença iniludível de regras morais no seio
da sociedade.
• Compreender por que as normas morais são de caráter
obrigatório.
210 © Antropologia, Ética e Cultura

2. CONTEÚDOS
• A Ética no âmbito das disciplinas filosóficas.
• Razão prática e Ética.
• Análise dos termos "moral", "moralidade", "ética".
• Diversidade de concepções morais e éticas.
• Campo da Ética e campo da moral.
• Conceitos fundamentais da Ética: o ser humano, razão,
história, liberdade.
• Ética e religião: os grandes princípios éticos.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que
você leia as orientações a seguir:
1) Os temas desta segunda unidade são bastante questio-
nadores, porém é bom lembrar que, na reflexão sobre o
sentido que as coisas têm, não existe receita pronta. A
única receita é desenvolver a capacidade de discernir, de
possuir o próprio pensamento e de ser crítico.
2) Como você pôde perceber, para os gregos antigos o ho-
mem não vive imerso no meio ambiente; vive na me-
diação da liberdade que se realiza dentro de um mundo
humano, estruturado pela cultura. Para entender as dife-
rentes concepções éticas do período que vai dos gregos
antigos até a Idade Média, você deverá levar em con-
ta que é própria do homem a capacidade de decidir, de
agir com autonomia e responsabilidade, de posicionar-
-se diante da realidade com autodeterminação, ou seja,
de tomar decisões e atitudes dentro das circunstâncias
da vida a partir de critérios que são identificados pela
consciência. O ser humano é um ser de responsabilidade
porque a dimensão racional lhe possibilita escolher com
liberdade.

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© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 211

3) Ao longo da vida, podemos adotar uma única concepção


moral ou, pelo contrário, podemos nos apropriar, em
algum momento de nossas vidas, de alguma outra que
consideremos mais apropriada, em parte ou na totali-
dade. Em realidade, no mundo globalizado existe uma
multiplicidade de concepções morais, que apresentam
diversidades no que toca a definição do que é bem ou
mal. Os costumes, do latim “mores", estão presentes na
identidade dos povos, mas nem tudo o que pertence aos
costumes tem relevância moral.
4) Somos seres no mundo, no mundo realizamos nossa
vida. Para ajudá-lo a refletir sobre a Ética e a práxis, não
deixe de ler as seguintes obras de Leonardo Boff:
• Ética e moral: a busca dos fundamentos. Disponível
em: <http://pt.scribd.com/doc/89815308/Etica-e-
-moral-a-busca-dos-fundamentos>.
• Saber cuidar: ética do humano. Disponível em:
<http://cursa.ihmc.us/rid=1GMSLFWNB-5RXV9C-GSQ/
Saber%20Cuidar%20-%20Etica%20do%20Humano.
pdf>.
5) Para aprofundar seus conhecimentos sobre a Ética e a
moral, sugerimos que assista ao filme O Jardineiro Fiel
(2005), dirigido por Fernando Meirelles. Após assisti-lo,
você estará apto a realizar a última questão do Tópico
Questões Autoavaliativas desta unidade!

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Como vimos na primeira unidade, quando analisamos as di-
ferentes doutrinas éticas da Antiguidade, a Ética é uma reflexão
sobre a conduta humana considerando seus dois aspectos: parti-
cular ou subjetivo e social ou objetivo. A dimensão subjetiva cor-
responde à noção grega de "êthos", forma de ser da pessoa, tra-
duzida por “caráter", enquanto a parte dos costumes e hábitos, o
que tem como desencadeador o social, corresponde ao conceito
de “ethos", traduzido como “o que vem da casa", “o que surge dos
212 © Antropologia, Ética e Cultura

costumes da comunidade". As teorias éticas buscam responder às


perguntas: por que existe a moral? Por que esse sistema moral é
válido para orientar nossa vida social? Enquanto as morais con-
cretas buscam esclarecer de que modo podemos organizar uma
boa sociedade, respondem à pergunta: como devo atuar ou o que
devo fazer ante tal ou qual situação?
Tanto os pensadores citados na primeira unidade como os
pensadores da Ética medieval propunham uma moral universal
obrigatória para toda a humanidade, que na Grécia Antiga estava
baseada em normas de validez objetiva, em supostos necessaria-
mente verdadeiros, enquanto na Idade Média ela dependia da pa-
lavra de Deus.
Porém, é bom esclarecer que a moral não pode estar fun-
damentada em um primeiro princípio indemonstrável (tese fun-
damentalista). A comunidade é formada por pessoas; quando
dizemos que o homem é pessoa, estamos supondo que tem auto-
nomia ética, traduzida como a capacidade de distinção entre bem
e mal. E, também, que possui a capacidade de autodeterminação,
de assumir a condução de sua própria vida desde a perspectiva
moral.
Diferente do resto dos entes, o ser humano contém na sua
natureza a dimensão de pessoa, evidenciada na disposição que
possui para atuar de forma autônoma ante uma ação concreta.
Por ser pessoa, ante um caso extremo pode escolher entre o me-
lhor e o pior dos males. A liberdade é a capacidade de que dispõe
o ser humano de obrar ou não obrar, de se sentir responsável por
seus atos voluntários; a liberdade ética caracteriza a pessoa. A pes-
soa humana pode agir em conformidade com agentes externos ou
não, por isso o direito a considera como sujeito ético e um ser de
responsabilidade. A responsabilidade tem relação com a capaci-
dade humana de exercer reflexivamente os atos, ponderando as
consequências (boas ou más) dos mesmos. Atuar com responsa-
bilidade equivale a crescer em direção ao bem (ao ser) no sentido
de um crescimento individual e comunitário, traduzido como hu-
manização.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 213

Enfim, a reflexão ética e o comportamento moral são ineren-


tes ao homem livre.
Analisando os escritos de Aristóteles (2002, livro II) vamos
perceber que, para esse autor, a palavra “ética" procede do ter-
mo grego “ethos", termo que, na Filosofia aristotélica, possui dois
sentidos: por um lado, significa “morada, casa familiar, lugar onde
se habita" e, em segundo lugar, quer dizer “modo de ser" ou “o
caráter de que o ser humano vai se apropriando ao longo de sua
vida". Esses dois momentos também estão presentes na hora de
idealizar as virtudes: na mesma obra, faz referência a duas formas
de virtudes: aquelas inatas (dianõetikaí) e as que são adquiridas
pelo hábito (ethikaí).
Na Retórica (2005, livro II, 12-14), Aristóteles distingue os di-
ferentes tipos de “êthes", mas estas têm relação com o amadure-
cimento, com a idade. Assim o ético (ethos) compreende o caráter
do homem, os seus costumes e também a moral. Dessa forma,
podemos descartar as tentativas de considerar a moral como um
sistema normativo, fixo, que vale em todos os momentos e cir-
cunstâncias.
Na passagem do grego para latim, os dois termos gregos,
ethos e êthos, foram englobados num único termo, “moralitas",
de “moris", que vai significar tanto o modo de ser como aquela
disposição de cada um para o bem, para a retitude.
Paul Ricoeur (2011), na obra Ética e moral, pergunta: é pre-
ciso distinguir moral e Ética? Esclarecendo que nada na etimologia
das palavras nem no uso histórico das mesmas o exige, a diferen-
ça é clara: a primeira vem do latim, enquanto a outra, do grego.
Mesmo que ambas remetam à ideia dos costumes (ethos/mores)
é importante esclarecer que, por convenção, se reserva o termo
“ética" para a intenção da vida boa realizada sob o signo das ações
estimadas boas, e o termo “moral" para o lado obrigatório, marca-
do por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo
tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de
constrição.
214 © Antropologia, Ética e Cultura

5. MORAL
Schopenhauer diz que instituir moral é simples, o difícil é funda-
mentá-la. E Wittgenstein acrescenta, instituir moral é simples,
fundamentá-la impossível.

Vásquez (2007, p. 19) diz que os problemas éticos se caracte-


rizam por sua generalidade e se diferenciam dos problemas morais
da vida cotidiana, que são os que têm relação com as situações
concretas. A Ética, como Filosofia moral, serve para fundamentar
ou justificar a forma de comportamento moral. A moral diz sobre
o modo de comportar-se do ser humano, que, por natureza, é his-
tórico, ele é um ser de liberdade e responsabilidade ética. É um
ser que não nasce perfeito, tem como característica produzir-se e
aperfeiçoar-se mediante suas ações. O ser humano vive como uma
pessoa quando é senhor de si mesmo; sem liberdade de escolha
lhe é impossível a responsabilidade ética. A moral está presente
em toda coletividade na forma de regulamento do comportamen-
to social, ela tem uma dimensão social, mas essa realidade não
para no binômio homem/sociedade; o ser humano tem interesses
pessoais além dos coletivos. A moral, nesse sentido, deve estar
baseada na responsabilidade pessoal.
Para conceituar o termo moral, devemos partir da ideia de
que existe uma série de morais concretas com características his-
tóricas, todas elas compostas de regras que orientam o comporta-
mento, sendo, portanto, normativas. Essas regras fazem referên-
cias a ações concretas: não mentir, não roubar, não enganar, não
desrespeitar os pais, os maiores etc. E, como contrapartida, estão
as ações morais, que fazem referência às normas: ser solidário com
quem precisa, não jogar lixo na rua, não perturbar o descanso dos
vizinhos com sons altos ou gritos, dar bons exemplos aos menores
etc., o que, muitas vezes, supera o alcance da norma. As normas
impõem um comportamento moral e esses atos devem estar em
consonância com elas.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 215

Também devemos considerar que a Ética não cria a moral;


ela procura determinar a essência da moral. A Ética é concebida
como a ciência da moral.

Diferença de moral e moralidade


Segundo Vásquez (2007, p. 66), existe uma distinção entre
moral e moralidade:
A moral tende a transformar-se em moralidade devido à exigência
de realização que está na essência do corpo normativo; a mora-
lidade é a moral em ação, a moral praticada. Por isso, lembrando
que não é possível levantar um muro instransponível entre as duas
esferas, cremos que é melhor empregar um termo só – o da moral
como se costuma fazer tradicionalmente e não dois. Mas, deve fi-
car claro que se utilizamos um só, com ele se indicam os dois planos
da moral, o normativo ou prescritivo e o prático ou efetivo, ambos
integrados na conduta humana concreta.

Diferentes sociedades, diferentes concepções morais


Como diz Vásquez (2007, p. 67), “A moral possui, em sua es-
sência, uma qualidade social". Toda sociedade, ainda as mais pri-
mitivas, possuem normas morais que convivem com outras nor-
mas, as jurídicas, as religiosas, técnicas etc., e todos os indivíduos
adotam uma concepção moral determinada pelo simples fato de
pertencer a uma sociedade. Toda mudança radical na estrutura
social traz consigo uma mudança na moral. A História apresenta
uma sequência de morais que correspondem às diferentes socie-
dades que se sucederam no tempo. É importante esclarecer que
essa linha não deve ser necessariamente ascendente, como a do
conhecimento científico, social ou cultural. Toda sociedade em seu
momento teve códigos morais, e estes podem ser considerados
avançados ou deficientes, independente do momento histórico.
As sociedades escravistas podem ter sido as piores, mas, se com-
paradas às que aceitavam o canibalismo, foram melhores; mesmo
assim foram péssimas.
216 © Antropologia, Ética e Cultura

Na realidade cotidiana, percebemos que algumas comuni-


dades (gens) progrediriam mais que outras, tiveram melhores nor-
mas morais, na medida em que estimularam a responsabilidade
dos atos dos integrantes. Portanto, uma sociedade é mais eleva-
da em seu desenvolvimento moral quanto maior seja o grau de
liberdade e responsabilidade que todos os seus membros têm. É
verdade que na sociedade há uma série de padrões que mode-
lam o comportamento social dos indivíduos, e que estes variam de
uma para outra, mas a sociedade é a união de homens livres que,
com suas relações, a constroem. A sociedade não existe sem os
indivíduos concretos, e estes também não existem fora do social.
Como alerta Vásquez (2007, p. 67), não devemos considerar a so-
ciedade como algo que existe em si e por si, como uma realidade
substancial que se sustenta independentemente dos homens que
a formam.
A moral é fundamental para garantir a ordem ou a harmonia
da sociedade, ela regulamenta a conduta entre os homens. Os in-
divíduos que compõem a sociedade aceitam os valores, as normas
que a distinguem, e se submetem livremente a eles.
A moral tem uma concordância com o Direito, ambos ba-
seiam-se em regras que visam organizar a partir do ponto de vista
da conveniência a maioria das ações humanas. Porém, diferen-
ciam-se no fato de que, enquanto o Direito garante o cumprimen-
to do sistema social em vigor, a moral procura fazer com que os
indivíduos que compõem a sociedade harmonizem de maneira
consciente, voluntária e livre seus interesses pessoais com os in-
teresses coletivos.
As idéias, normas e relações sociais nascem e se desenvolvem em
correspondência com uma necessidade social. [...] A função social
da moral consiste na regulamentação das relações entre os ho-
mens (entre os indivíduos e entre o indivíduo e a comunidade) para
contribuir assim no sentido de manter e garantir uma determinada
ordem social. Esta ação também se cumpre no Direito. Graças ao
Direito, cujas normas, para assegurar o seu cumprimento, contam
com o dispositivo coercitivo do estado, assim consegue-se que os
indivíduos aceitem – voluntária ou involuntariamente – a ordem

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 217

social que é juridicamente formulada. Mas isso não considerado


suficiente, procura-se que os indivíduos aceitem de forma íntima
e livremente, por convicção pessoal, os fins, princípios, valores e
interesses dominantes em uma determinada sociedade. Tal função
social que a moral deve cumprir (VÁSQUEZ, 2007, p. 69).

A moral acontece em dois planos: o normativo e o factual.


No primeiro, encontramos as normas, regras e princípios que exi-
gem obediência e, no segundo, estão os atos humanos denomina-
dos morais que têm relação com esses princípios.
O enriquecimento da vida moral acarreta um aumento de
responsabilidade individual, e isso depende do exercício da liber-
dade e da responsabilidade humana. Quem não tem liberdade não
pode ser responsável pelos seus atos, por isso a massificação dos
dias de hoje apresenta-se como impedimento para o progresso da
moral.

Figura 1 Astreia, divindade que difundia entre os homens sentimentos de justiça e de


virtude.
218 © Antropologia, Ética e Cultura

Astreia, filha de Zeus e Têmis. “Segundo Grimal (1997, p. 51), ‘ela


espalhava entre os homens os sentimentos de justiça e de virtude.
Isto passava-se na tempo da Idade de Ouro. Mas depois que os
mortais degeneraram e a inclinação para o mal se espalhou pelo
mundo, Astreia subiu de novo ao céu’" (SUPREMO TRIBUNAL FE-
DERAL, 2012).

Diferentes usos do termo moral


Cortina e Martínez (2005, p. 13) alertam sobre a pluralidade
de significados que o termo moral possui na linguagem atual: "O
termo moral é utilizado hoje em dia de maneiras muito diferentes,
dependendo dos contextos. Essa multiplicidade de usos dá lugar a
muitos mal-entendidos".
Frequentemente utilizamos esse termo como adjetivo: “fu-
lano é imoral". Como adjetivo estamos fazendo um julgamento das
ações dos indivíduos na medida em que estes não respeitam valo-
res estabelecidos, normas ou princípios consagrados como morais.
Outras vezes, ele é utilizado como substantivo; "a moral"
equivale a um conjunto de ordens, normas de conduta, proibições
e permissões relacionados à vida boa para um determinado grupo
social. Assim, o termo “moral" equivale à forma de vida no sentido
coletivo, como norma correta de conduta.
Outro uso do termo “moral" como substantivo faz referência
ao código de conduta pessoal ou de alguma instituição: “fulano
tem uma moral muito rígida". Tais instituições impõem uma moral
muito rigorosa, ou carecem de moral. Dessa forma, o termo faz
referência ao código moral que inspira a conduta do indivíduo ou
da instituição.
Também é normal ouvir a palavra “amoral". Esse termo reú-
ne o prefixo "a" (acéfalo, privação) e a palavra "moral" (o termo se
refere aos campos da conduta humana e tem a ver com os princí-
pios que orientam a conduta do homem), ser amoral significa não

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 219

possuir um código moral. Cuidado, essa palavra não é sinônimo de


imoral. A conduta dos animais é amoral, ou seja, não tem relação
com a moralidade que rege a sociedade de seres humanos, em
que são moralmente maduros, cada um é senhor de seus atos e é
responsável por sua conduta moral. A invenção da bomba atômi-
ca é em si um descobrimento científico amoral. O uso no caso do
bombardeio americano ao Japão foi imoral. Um tem relação com
o desenvolvimento de um princípio físico e o outro com o uso des-
truidor desse princípio, com a intenção de matar e destruir.
Pessoas imorais são aquelas que, reconhecendo a validade
das normas e dos valores da sociedade, os infringem, priorizando
seu próprio interesse.
Outro termo de uso frequente que tem relação com moral
é: “ter a moral bem alta"; nesse caso, refere-se à confiança, à co-
ragem que tem o indivíduo para fazer frente a um determinado
desafio. A moral deixa de ser um dever para refletir uma determi-
nada atitude.
Outro uso frequente do termo “moral" como substantivo, no
sentido de moral como “a ciência que trata do bem geral da comu-
nidade", faz referência àquele conjunto de normas estabelecidas
e de caráter normativo que regem à convivência social. A mesma
tem um caráter histórico. Sofre progressos na medida em que se
amplia o campo de atuação, ou seja, que se universaliza.

Atos morais
Os atos morais são atos essencialmente humanos. Neles dis-
tinguimos três elementos: objeto, fim e circunstâncias.
São motivados por uma eleição relacionada com a pergunta
“por quê?", sucedida pela indagação “para quê?", relacionada à
finalidade do referido ato. A consciência das possíveis consequên-
cias de nossos atos é importante para a valoração moral. Os atos
morais devem ser realizados de forma voluntária, podendo esco-
lher realizá-los ou não.
220 © Antropologia, Ética e Cultura

O ato humano implica uma estrutura baseada nos seguintes


princípios:
1) Cognoscitivo: é um princípio fundamental, já que não
podemos querer algo se não temos conhecimento de
sua existência. Assim, o conhecimento intelectual é in-
dispensável para a realização do ato moral.
2) Volitivo: é voluntário. Todo ato moral deve ser voluntá-
rio e para isso devemos prever de forma antecipada as
consequências de tal ação.
A liberdade é componente essencial; sem ela estaríamos ao
nível animal. Para que exista o ato moral, devemos ser responsá-
veis pelo mesmo.
Como disse o Papa João Paulo II (2013): “Nenhum homem
pode esquivar-se às perguntas fundamentais: Que devo fazer?
Como discernir o bem do mal?".

O bom como valor moral


Vásquez (2007, p. 135) diz que todo ato moral inclui a neces-
sidade de escolher entre vários atos possíveis. Todo ato moral no
sentido positivo é um ato valioso. Mas, o que é bom? Lembremos
que, na Unidade 1, para Sócrates e seus principais discípulos, o
bom é o absoluto, incondicionado. Na Idade Média, o bom concor-
da com a vontade de Deus. O bom tem concordância, então, com
a razão ordenadora presente na natureza. Durante a Idade Mo-
derna, esse conceito muda, condicionado pelo progresso socioe-
conômico. O problema do que fazer ante cada situação concreta é
um problema prático-moral, mas definir o que é bom tem caráter
teórico, é de competência da Ética.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 221

Figura 2 Têmis, divindade grega responsável por definir a justiça, no sentido moral

Moral e religião
Toda crença religiosa leva, implícita, uma determinada con-
cepção moral e uma visão de mundo ou cosmovisão. As grandes
religiões, como o Cristianismo, Budismo e Islamismo, possuem
um corpo doutrinar moral, em geral muito bem elaborado, que o
crente deve observar para orientar suas ações. Nele detalham-se
valores, objetivos, normas e virtudes que servirão para orientar a
ação. Entretanto, a religião não compreende só um código moral;
é uma forma de relacionar-se com o transcendente e ordenador.

A obrigatoriedade moral
A realização da moral é um fato individual, porém a moral
responde aos interesses da sociedade, formada pelos indivíduos e
sua vida econômica, política, espiritual e social.
222 © Antropologia, Ética e Cultura

As teorias morais são sistematizações de algum conjunto de


valores: princípios ou normas, como é o caso da moral cristã, da
laicista, moral protestante etc. Ante a pergunta: “qual moral deve
ser cultivada?", existem diferentes teorias: egoístas, utilitaristas,
as teleológicas ou deontológicas, formalistas etc.
Todas as teorias morais partem de uma concepção de ho-
mem. Muitas vezes essa concepção é abstrata e a teoria deriva-
da será também abstrata; em outros casos, estará relacionada às
ideias de sociedade e em concordância com a História. Contudo,
seja qual for a concepção de homem, a humanidade sempre admi-
tirá a obrigatoriedade da moral.

6. ÉTICA NORMATIVA E O FENÔMENO MORAL


As normas morais são de caráter obrigatório, mas a moral
não entra em nossa consciência como uma “injeção"; pelo con-
trário, é de responsabilidade pessoal do sujeito. Ante o caráter
normativo da mesma, é preciso responder à questão: como devo
agir ante determinada situação? Os filósofos morais colocam como
alternativas as "teorias teleológicas" e as "teorias deontológicas".
As teorias teleológicas (de “telos" que, em grego, significa
“fim") baseiam-se nas ideias de que o padrão para decidir o que
é certo e o errado, o conveniente e o inconveniente depende da
quantidade de bem que a ação vai causar. Assim, uma ação é boa
se produz consequências intrínsecas boas superiores ao mal pro-
duzido.
Como diz Frankena (1969, p. 29), o teologista pode assumir
qualquer posição com relação ao que é o bem no sentido não mo-
ral. Frequentemente os teologistas têm sido hedonistas, relacio-
nando o bem ao prazer. Em Aristóteles (2002), a Ética teria um
caráter propriamente teleológico e não deontológico, e esclarece,
na Ética a Nicômaco, que só pode ser bom aquele que é orientado
para o bem em seus afetos e em suas inclinações.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 223

Já as teorias deontológicas (de “déon", palavra grega para


“dever") negam a proposta teleológica, e defendem que existem
outras características legitimadoras do ato moral. Partem de juízos
como: “devemos sempre cumprir nossas promessas, independen-
te das cosequências de dito ato moral". Defendem que o caráter
específico de cada ato diante de cada situação impede que pos-
samos apelar para uma norma geral que determine o que deve-
mos fazer. Essa posição é comum a diversas teorias éticas, como a
kantiana, as intuicionistas e contratualistas etc., que analisaremos
futuramente na disciplina Ética II. Todas elas postulam a existên-
cia de princípios e deveres morais, independentes de seus efeitos.
Para esses éticos, as ações humanas são boas ou más por sua coe-
rência com esses princípios, não por suas consequências.
Frankena (1969, p. 39) destaca ainda as teorias ato-deoanto-
lógicas, que são aquelas que não propõem qualquer padrão para
determinar o que é certo ou errado em casos particulares. Os juí-
zos particulares não devem seguir uma determinada regra. Os ato-
-deoantológicos não propõem nenhum princípio orientador.
Uma aproximação às teorias éticas é importante para enten-
der o fenômeno da moral. Assim, para finalizar esta unidade, suge-
rimos a leitura do mito O anel de Giges, contido no livro II da A Re-
pública, em que Platão discute sobre a deficiência do ser humano
ante a possibilidade de ser imoral porque não terá consequências:
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Fontes, 2006.

Figura 3 O anel de Giges.


224 © Antropologia, Ética e Cultura

7. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS
Chegamos ao final desta unidade. Sugerimos que você pro-
cure analisar, responder e comentar as questões a seguir, que tra-
tam da temática aqui desenvolvida, ou seja, dos problemas éticos
e dos problemas morais da vida cotidiana.
1) Com base nos conteúdos desta unidade e nos conhecimentos sobre a rela-
ção entre Ética e moral, analise se é correto afirmar que:
Os problemas éticos são caracterizados pela generalidade. Seria inútil recorrer
à Ética para encontrar uma norma de ação para uma situação concreta. A ética
vai ajudar na análise do comportamento pautado por normas, que consiste o
fim do comportamento moral.
Resposta:______________________________.

2) Responda as seguintes questões:


a) O que é moral?
b) O que é Ética?
3) O homem se diferencia do animal, pois se relaciona de forma diferente com
o mundo exterior, transforma-o, conhece-o. O animal vive sua relação com
o mundo exterior de forma única; já o homem intervém na natureza de for-
mas diferentes, segundo a sua cultura.
Mas, não nos é permitido fazer qualquer coisa!
Aqui surge o problema da responsabilidade. Para falar em responsabilidade
ante nossos atos de conduta, devemos referir-nos ao conhecimento, de um
lado, e à liberdade, de outro. A ignorância e a falta de liberdade (entendida
como coação) permitem eximir o sujeito da responsabilidade por seus atos.
Você considera possível argumentar "ignorância" ante as normas morais e as
leis positivas para não ser responsável por nossas ações?

4) Sobre Ética podemos afirmar que:


a) é um conjunto de regras que determina ou que mostra como os indiví-
duos devem se comportar em determinado grupo social.
b) é um estudo sistemático que se ocupa da reflexão e do estudo do com-
portamento humano, bem como da sua relação com o belo e com a arte.
c) é a parte da Filosofia que se ocupa da reflexão sobre as noções e princí-
pios que fundamentam a vida moral, da discussão acerca do que é certo
ou errado e do comportamento dos indivíduos.
d) é o estudo dos comportamentos individuais.
5) Hoje em dia, quase todos utilizam com frequência a palavra “ética" em suas
conversas. Nos meios de comunicação, também é comum que se fale da

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 225

Ética como condição da vida política e social em geral. No entanto, sabemos


que muitas vezes se fala da Ética sem ter claro qual é seu significado. Identi-
fique situações em que a palavra “ética" aparece na mídia com um sentido
apresentado nesta disciplina.

6) Escreva uma breve dissertação respondendo à seguinte questão: por que


devo obedecer às leis morais?

7) Diferencie “moralidade" de “moralismo" e dê um exemplo de moralismo.

8) Sobre o mito O anel de Giges, presente no livro II de A República, de Platão,


Glaucón expõe a Sócrates que aqueles que seguem a justiça o fazem por
desejo próprio ou para evitar punições? Justifique sua resposta.

9) Como exercício de reflexão, propomos que você analise, na prática, a essên-


cia dos termos “ética" e “moral". Para isso, é preciso que você assista ao fil-
me O Jardineiro Fiel (2005). Esse filme permite reflexividade sobre os temas
éticos e você poderá entrar em contato com juízos de dever efetivo, regras
morais e juízos éticos. Após assistir ao filme, analise qual é a justificação
válida para a conduta moral.

Gabarito
4) c.

8. CONSIDERAÇÕES
É comum na Filosofia encontrarmos correntes de pensa-
mento que embaraçam o significado dos termos “ética" e “moral"
por partirem eles de uma mesma fonte, o “ethos". Essa posição
é muito discutida porque as funções dos dois saberes são bem
diferenciadas: a Ética consiste fundamentalmente numa reflexão
filosófica sobre a moral, enquanto a esta última competem as nor-
mas e códigos que regulam o comportamento dos indivíduos em
sociedade.
Moral e Ética respondem a diferentes questionamentos, já
que a moral tem relação com os códigos que versam sobre a ação
do indivíduo na sociedade e opera ante o questionamento: o que
devo fazer perante determinada situação concreta? Enquanto isso,
a Ética atua num nível teórico, tratando de responder a perguntas
226 © Antropologia, Ética e Cultura

sobre o fundamento da moral, sua aplicação na vida cotidiana, sua


incidência no bom funcionamento da sociedade etc.
O problema está na interpretação do ethos grego, que tinha
como fundamento a ideia de auto-perfeição, liberdade, estética
etc. O ethos tinha uma função transcendente, na medida em que
era a meta para a perfeição, imitativa da beleza dos deuses.

9. E-REFERÊNCIAS

Lista de Figuras
Figura 1 Astreia, divindade que difundia entre os homens sentimentos de justiça e de
virtude. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliot
ecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=astreia>. Acesso em: 26 abr. 2013.
Figura 2 Têmis, divindade grega responsável por definir a justiça, no sentido moral.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaCons
ultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=temis>. Acesso em: 26 abr. 2013.
Figura 3 O anel de Giges. Disponível em: <http://www.outonos.com.br/filosofia.asp>.
Acesso em: 26 abr. 2013.

Sites pesquisados
ARISTÓTELES. Moral. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/
texto/bk000424.pdf>. Acesso em: 26 abr. 2013.
BOFF, L. Ética e moral: a busca dos fundamentos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. Disponível
em: <http://pt.scribd.com/doc/89815308/Etica-e-moral-a-busca-dos-fundamentos>
Acesso em 26 abr. de 2013.
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JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Veritatis Splendor. Disponível em: <http://www.
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RICOEUR, P. Ética e Moral. Tradução de António Campelo Amaral. Covilhã: Universidade
da Beira Interior, 2011. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/pdf/
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SANTOS, A. L. Para uma Ética do como se. Contingência e Liberdade em Aristóteles e Kant.
Convilhã: Universidade da Beira Interior, 2008. Disponível em: <http://www.lusosofia.
net/textos/santos_ana_leonor_para_uma_etica_do_como_se.pdf>. Acesso em: 26 abr.
2013.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© A Finalidade da Ética e a Essência da Moral 227

10. REFERÊNCIAS BLIBLIOGRÁFICAS


ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. 17. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
______. Ética a Nicômaco. São Paulo: Edipro, 2002.
BOFF, L. Ética e moral: a busca dos fundamentos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. São Paulo: Loyola, 2005.
FRANKENA, W. K. Ética. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.
GARCÍA GÓMEZ-HERAS, J. M. Teorías de la moralidad. Madrid: Síntesis, 2004.
PLATÃO. Diálogos Platônicos. São Paulo: Nova Cultura, 1999. (Coleção Os Pensadores).
VÁZQUEZ, A. S. Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2007.
Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO
EAD
O Homem Ser Cultural

8
Prof. Artieres Estevão Romeiro
Prof. Dr. Pe. Sérgio Ibanos Piva

Objetivos
• Entender a relação existente entre educação e cultura.
• Analisar a dimensão de interioridade da cultura pessoal.
• Pensar e entender que a cultura brota do espírito do ho-
mem e que ele também é o destinatário da cultura.
• Compreender que a pergunta: “o que é o homem?” de-
penderá a configuração da cultura.

Conteúdos programáticos
• Conceito de cultura.
• O homem ser cultural, determinado e determinante da
cultura.
230 © Antropologia, Ética e Cultura

Orientações para o estudo dos conteúdos


Esta disciplina tem como principal referência o estudo da
obra:
MONDIN, Battista. Definição filosófica da pessoa humana.
Tradução de Ir. Jacinta Turolo Garcia. Bauru: Edusc, 1998.

1. INTRODUÇÃO
Nesta primeira unidade, iremos estudar uma das dimensões
centrais do projeto político pedagógico do Claretiano: o homem
ser cultural. Prepare-se para fazer uma viagem pessoal rumo à
compreensão de como o nosso projeto pedagógico se articula com
sua existência.
Esta disciplina não visa apenas transferir informações, mas
também quer favorecer uma compreensão integral do ser huma-
no, que deve ser refletida em todos os nossos processos educati-
vos e na vida de cada um.
O conhecimento é inerente a todo homem e mulher. Todos
desejam conhecer, descortinar e descobrir o mundo. Em nosso
dia-a-dia, buscamos informações sobre as coisas que nos rodeiam.
Conhecer é uma necessidade para o ser humano.
Contudo, dentre os objetos de estudo, há alguns que deve-
riam preceder todo conhecimento: tratam-se do conhecimento de
si e do conhecimento acerca do ser humano.
No Centro Universitário Claretiano, conhecer o ser huma-
no é uma necessidade primordial para que alcancemos o êxito de
nossa proposta educativa.
O educador Claretiano além de ser um estudioso, ou expert
em diversos conhecimentos deve ter expertise em ser humano.
Deve conhecer e amar a pessoa e ser capaz de conduzi-la, de for-
ma integral, ao processo educativo, formando-a para a vida.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© O Homem Ser Cultural 231

Desde a infância até a morte, buscamos interpretar o mun-


do, e nossos sentidos impõem-nos tal necessidade obrigatoria-
mente. O ser humano é um ser aberto, um ser de relação, um ser
que transcende as limitações de tempo e do espaço e, por isso,
quer ir além, deseja transcender.
Diante do conhecer o mundo e do significar e re-significar da
existência, o ser humano pergunta-se sobre o que são as coisas,
e, antes disso, pergunta-se o que é o seu próprio ser. O que é o
homem?
Tal pergunta é realizada, a priori, a qualquer conhecimento.
Responder às perguntas “o que é o homem?” e “qual sua natureza
e finalidade?” é de fundamental importância para qualquer tipo
de educação ou concepção de mundo.
Para nós:
Existe uma atividade superior que é realmente totalizadora, porque
abarca todas as atividades indicadas por Hegel, Comte, Cassirer,
Croce e Pannenberg, a ela nós chamamos de cultura. De fato ela
abraça todos os produtos que são frutos da iniciativa e da genia-
lidade do homem. De fato ela abarca todos os produtos especifi-
camente humanos. Segundo uma das definições mais comuns, a
cultura é o conjunto de todas as atividades e de todos os produtos
que são frutos da iniciativa e da genialidade do homem (PROJETO
EDUCATIVO CLARETIANO, s/d., p. 5).

Todo o nosso conhecimento será determinado pela visão de


ser humano que temos. Dessa forma, torna-se fundamental ao
educador ter clareza epistemológica acerca do ser humano. Esse é
um pressuposto que certamente qualificará e determinará toda a
abordagem do conhecimento, bem como as relações pessoais e as
formas de transcendência.
Nesta unidade, abordaremos, portanto, a dimensão cultural
do ser humano, ou seja, buscaremos compreender como o ho-
mem determina e é determinado pela cultura.
Bons estudos!
232 © Antropologia, Ética e Cultura

2. O HOMEM SER CULTURAL


Há várias formas de definir o homem. Cada ciência tem uma
maneira peculiar de descrever e qualificar o ser humano. Entretan-
to, cada uma dessas formas depende de uma categoria anterior,
primeva, à cultura. É no seio da cultura que brota cada uma das
ciências.

A cultura, nesse sentido, é a síntese entre a natureza e a história.

A concepção naturalista de homem define o ser humano en-


quanto produto da natureza, determinado por ela e totalmente
dependente dela. Outra concepção comum é a historicista, a qual
considera o ser humano como produto de si mesmo, como artífice
de toda vida.
Há uma justa medida para a antítese naturalismo versus his-
toricismo, que trata da concepção de homem como ser cultural,
ou seja, da síntese entre determinações naturais e autoconstrução
histórica.
A cultura não é uma roupa que se vista ou se dispa ao próprio pra-
zer, não é qualquer coisa acidental ou secundária, mas é um ele-
mento constitutivo da essência do homem, ela faz parte da natu-
reza humana. Sem a cultura não é possível existir nem a pessoa
individualmente, nem o grupo social (PROJETO EDUCATIVO CLARE-
TIANO, s/d., p. 4).

É preciso considerar que a dimensão somática e biológica


determina o homem, visto que é impossível a qualquer ser huma-
no não sentir frio, fome e sede. Dessa forma, há leis genéticas e
biológicas gerais, das quais nenhum ser humano pode esquivar-se.
Contudo, há, também, possibilidades psíquicas, que possibilitam o
uso da liberdade de forma a cultivar e transformar a realidade que
nos cerca.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© O Homem Ser Cultural 233

Logo, o ser humano pode ser artífice de si mesmo, pode


construir sua forma de ser no mundo.
A cultura, portanto, é o conceito e a estrutura mais abran-
gente para a compreensão de qualquer concepção de homem,
pois dela depende toda possibilidade de expressão individual ou
coletiva da espécie humana. É a cultura que nos diferencia dos de-
mais animais, uma vez que abraça todas as dimensões do fazer
humano (razão, vontade, liberdade, linguagem, técnica, religião,
arte).
O homem não é somente o sujeito ativo da cultura, mas também o
sujeito passivo; ele não é só artífice, mas também o produto princi-
pal. Devemos, de fato, reconhecer que a tarefa primeira e principal
da cultura não é construir casas, carros, trens, navios, aviões, com-
putadores, bombas etc., em outras palavras, construir o mundo.
Sua tarefa principal é construir o homem, um projeto de humanida-
de que seja adequado à dignidade e à exigência da pessoa humana
(PROJETO EDUCATIVO CLARETIANO, s/d., p. 5).

Desse modo, cada cultura, à sua maneira, traz um projeto


de construção e promoção do ser humano. Portanto, “o objetivo
primário da cultura é promover a realização da pessoa” (PROJETO
EDUCATIVO CLARETIANO, s/d., p. 5). Por essa razão, a definição
primeira de homem é ser cultural.

3. CULTURA E EDUCAÇÃO
A educação é um elemento social que visa transmitir todo
patrimônio cultural desenvolvido pelas gerações anteriores. As-
sim, ao mesmo tempo em que repassa inúmeros conhecimentos,
promove a possibilidade de que cada indivíduo avance criando no-
vas nuances ou críticas à cultura.
Já a educação Claretiana visa à formação integral do homem,
de forma que, pela cultura e na cultura, cada indivíduo seja um ser
responsável, livre e autônomo, capaz de ser agente comprometido
com a vida e vida em abundância.
234 © Antropologia, Ética e Cultura

Nesse sentido, todos os elementos culturais transmitidos pe-


los mecanismos culturais de educação devem ter para o educador
Claretiano a mesma finalidade: levar o ser humano à plenitude, de
maneira que todos os saberes devem estar articulados com a vida,
com a existência da sociedade e de cada um.

4. CONSIDERAÇÕES
Ao discutirmos cultura, devemos ter em mente a noção de
diversidade cultural, ou seja, o fato de que, diante da multiplicida-
de de povos e culturas, cada uma deve ser respeitada.
Observe que não se trata de propor uma ética de tolerância,
mas de compreender que existe uma multiplicidade dos produtos
e das relações culturais. Tolerar significa suportar aquilo de que
não se gosta.
Nossa discussão sobre cultura visa promover a compreensão
de que o ser humano é um valor em si. Ele carrega uma dignidade
natural independentemente da cultura a qual pertença.
Nossa comunidade educativa deve, portanto, ter uma con-
cepção ampla de cultura e aberta para acolher a pluralidade ou a
multiplicidade cultural do Brasil e do mundo.
Vale salientar que, em nosso cotidiano, já vislumbramos
exemplos significativos de promoção da vida e da cultura huma-
na com as interações entre professores, alunos e funcionários de
vários estados do Brasil, como é o caso de Rondônia, Goiás, Minas
Gerais, Paraná e Distrito Federal; além das parcerias e contatos
com comunidades educativas Claretianas da Argentina, do Chile e
da Colômbia: povos com culturas diferentes, porém unidos para a
promoção da educação de pessoas mais livres, fraternas e huma-
nas.
O princípio educativo do diálogo é o caminho que possibilita
uma compreensão ampla e abrangente de cultura.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© O Homem Ser Cultural 235

Na próxima unidade, vamos refletir sobre o homem como


ser livre.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASSIRER, Ernst. Antropologia filosófica: ensaio sobre o homem. São Paulo: Mestre Jou,
1977.
______. Ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Unesp, 2005.
FAETHERSTONE, Mike. O desmanche da cultura global. Globalização, pós-modernidade e
identidade. São Paulo: Studio Nobel, 1997.
GOMBRICH, Ernest Hans. Para uma história cultural. Lisboa: Gradiva, 1994.
JAMESON, Frederic. Estudios culturales: reflexiones sobre el multiculturalismo. Buenos
Aires: Paidòs, 1998.
LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
MONDIN, Battista. Definição filosófica da pessoa humana. Tradução de Ir. Jacinta Turolo
Garcia. Bauru: Edusc, 1998.
______. O homem, quem é ele? Elementos de antropologia filosófica. São Paulo: Paulus,
2005.
PROJETO EDUCATIVO CLARETIANO. Batatais: Claretiano, s/d.
RABUSKE, E. A. Antropologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2003.

6. E-REFERÊNCIAS
YOUTUBE. Povo tupi e rituais de antropofagia. Disponível em: <http://www.youtube.
com/watch?v=3JmQmHTrXaQ&feature=related>. Acesso em: 10 set. 2008.

______. Cavalhada Pirenópolis. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=Gs


U24s3JPlI&feature=related>. Acesso em: 10 set. 2008.
236 © Antropologia, Ética e Cultura

Apêndice
PROJETO EDUCATIVO CLARETIANO
APRESENTAÇÃO
A vocação de serviço que caracteriza a Igreja e a torna soli-
dária com os problemas humanos inspirou os Missionários Clare-
tianos a preocuparem-se também com a realidade cultural que foi
tão marcante na vida de Santo Antônio Maria Claret, fundador da
Congregação dos Missionários Claretianos.
As instituições de Ensino Infantil, Fundamental e Médio da
Ação Educacional Claretiana: Colégio São José de Batatais, Colégio
Anglo Claretiano de Rio Claro e Colégio Claretiano de São Paulo,
juntamente com o Studium Theologicum de Curitiba, Centro Uni-
versitário Claretiano de Batatais e União das Faculdades Claretia-
nas de Rio Claro e São Paulo, foram criadas com um carisma pecu-
liar: anunciar a Palavra de Deus.
O serviço dessa Palavra abrange uma vasta área de ativida-
des, que, embora bem distintas, se unem em sua finalidade.
Uma dessas áreas é a Educação, promotora da dignidade da
pessoa humana e do seu desenvolvimento integral, segundo o de-
sígnio do Criador, e considerada verdadeira evangelização e objeto
de acurada ação pastoral.
A atividade educativa dos Missionários Claretianos, no Bra-
sil, sempre permaneceu atenta ao processo histórico da educação
em nossa pátria. Essa orientação educativa vem atualizando-se
para responder às situações e às realidades novas que surgiram.
Como consequência natural desse processo, a partir do ca-
risma claretiano, foi definida a “MISSÃO" das instituições educa-
tivas claretianas e elaborado o “PROJETO EDUCATIVO", que apre-
sentamos neste livreto a fim de transmitir aos alunos, aos pais, aos

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 237

professores, aos funcionários e aos amigos a Proposta de Educa-


ção dos Missionários Claretianos.
A MISSÃO sintetiza o ideal carismático das instituições edu-
cativas claretianas, centrado no amor e no serviço ao ser humano
partir da educação, tendo como base a mensagem de Jesus Cristo,
ao estilo de Santo Antônio Maria Claret e da Congregação dos Mis-
sionários Claretianos.
Coerentemente com esses princípios, intensificaram-se, nos
últimos anos, as reflexões sobre as questões básicas da educação
com todos os segmentos da Instituição, visando ao crescimento
harmônico de toda a comunidade educativa.
O Projeto Educativo sistematiza a ação educacional dos cla-
retianos que assumem a Educação Básica e o Ensino Superior para
formar cidadãos com sólida base profissional e mentalidade sau-
dável, acolhedora e aberta a Deus, à realidade da natureza e à re-
alidade humana. O Projeto Educativo visa, ainda, construir uma
sociedade mais justa e humana.

CAPÍTULO I
SANTO ANTÔNIO MARIA CLARET
Vida e Obra
O fundador da Congregação dos Missionários Claretianos e
patrono de nossas instituições de ensino nasceu em 23/12/1807,
em Sallent, Catalunha, Espanha, numa época de muitas mudan-
ças sociais, culturais, econômicas e políticas que afligiam o mundo
ocidental.
Claret, filho de uma família católica, formou-se nos ensina-
mentos cristãos e, desde criança, desejava ser missionário para
anunciar o Evangelho e a salvação a toda a humanidade.
Insistindo nessa ideia, sua mãe permitiu que estudasse la-
tim com um velho sarcedote. Quando este morreu, seu pai decidiu
238 © Antropologia, Ética e Cultura

empregá-lo na fábrica de tecidos dele, iniciando-o na carreira in-


dustrial, na qual fez muito sucesso.
Aos 17 anos, ficou encarregado de supervisionar os teares.
Seu pai, percebendo sua grande capacidade, enviou-o a Barcelona
a fim de estudar. Lá, passou a trabalhar também com muito êxito.
Entretanto, nada o satisfez. Para tristeza paterna, decidiu ser pa-
dre. Foi ordenado sacerdote em 1835 e trabalhou como pároco
em Sallent, sua terra natal.
Apesar de pároco, queria ser missionário; por isso, ofereceu-
-se para trabalhar nas missões estrangeiras. Assim, decidiu ir para
Roma a fim de trabalhar na Congregação da Evangelização dos Po-
vos, entrando na Ordem Jesuíta para chegar rapidamente às mis-
sões.
Por motivo de saúde, em 1840, retornou à Espanha a serviço
do bispo de Vic, sendo encarregado de pregar missões em todas as
paróquias da diocese.
Exerceu várias atividades como sacerdote consagrado total-
mente ao serviço de Deus: missionário apostólico e pregador itine-
rante em várias regiões, pároco, diretor de escola e promotor da
educação, escritor da boa imprensa (falada e escrita), diretor es-
piritual, fundador de congregação e de movimentos, arcebispo de
Santiago de Cuba de 1850 a 1857, confessor da rainha da Espanha,
participante do Concílio Ecumênico do Vaticano I, em 1870 etc.
Homem de oração e ação e de grande mística, levou uma
vida sóbria e austera, totalmente voltada ao serviço da Igreja, e,
por onde passava, arrastava multidões.
Claret foi um homem que trabalhou em várias frentes, sem-
pre sensível ao mais urgente. Pensava em como preparar as pes-
soas para a missão e em como articular iniciativas de formação.
Escreveu 15 livros e 81 opúsculos, bem como traduziu outras 27
obras.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 239

Criou escolas técnicas e agrárias em Cuba; foi diretor do


El Escorial, escola real espanhola, de 1859 a 1868; e incentivou
a Congregação de Missionários a trabalhar com a educação e a
assumi-la como importante e eficaz meio de evangelização.
Ele foi um grande e verdadeiro apostólo, sendo perseguido,
apesar de ter evitado envolvimento com questões políticas. Em
função disso, sofreu um atentado sangrento na cidade de Holguín,
em Cuba, e, no final de sua vida, foi exilado na França, onde veio
a falecer a 24 de outubro de 1870, data em que celebramos sua
festa em todas as frentes apostólicas claretianas espalhadas pelo
mundo.
Sua santidade foi reconhecida pela Igreja católica, sendo be-
atificado no ano de 1937 e canonizado no dia 7 de maio de 1950.

CAPÍTULO II
A CONGREGAÇÃO DOS MISSIONÁRIOS FILHOS DO IMACULADO
CORAÇÃO DE MARIA
Missionários Claretianos
Uma das maiores obras da vida de Santo Antônio Maria Cla-
ret foi a fundação da Congregação dos Missionários Claretianos.
Claret, no seu ideal evangelizador e nas suas andanças missionárias
pela Espanha, pelas Ilhas Canárias e por outras regiões, percebeu
que poderia tornar o seu apostolado mais produtivo se conseguis-
se articular homens desejosos de proclamar a mensagem de Jesus
Cristo, unidos em torno de uma congregação de missionários.
Assim, no dia 16 de julho de 1849, na cidade espanhola de
Vic, na Catalunha, fundou, com mais cinco amigos sacerdotes, José
Xifré, Jaime Clotet, Manuel Vilaró, Domingos Fábregas e Estevão
Sala, a Congregação dos Filhos do Imaculado Coração de Maria,
conhecidos, posteriormente, como Missionários Claretianos.
240 © Antropologia, Ética e Cultura

A Família Claretiana é constituída de missionários sacerdo-


tes, missionários irmãos e diáconos, além de irmãs, leigos e leigas,
dedicados ao serviço da Palavra.
O objetivo da Congregação é anunciar, por todos os meios
possíveis, no Serviço Missionário da Palavra, o Evangelho de Jesus
Cristo a todo o mundo.
Inicialmente, a Congregação Claretiana dedicou-se exclusi-
vamente ao serviço missionário e, mais tarde, foi assumindo ou-
tras atividades apostólicas: atuações em paróquias, na educação
(colégios, faculdades, escolas eclesiásticas, formação de leigos,
agentes de pastoral e voluntários), em missões, nos Meios de Co-
municação Social (editoras, revistas e periódicos, rádio, televisão e
internet) e em obras sociais e promocionais.
Atualmente, a Congregação Claretiana conta com mais de
3100 missionários em todos os continentes, em 63 países. Nos cin-
co continentes, trabalha com 90 centros educacionais e com mais
de 77 mil alunos.
Ela ainda tem a colaboração de mais de 3650 docentes, além
de grande número de funcionários técnico-administrativos que
auxiliam na “missão partilhada".
No Brasil, a Congregação Claretiana chegou em 1905, na ci-
dade de São Paulo, e difundiu-se por vários estados (São Paulo,
Paraná, Mato Grosso, Alagoas, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás,
Distrito Federal e Rondônia).
Hoje, desenvolve várias atividades missionárias, com desta-
que para as paróquias e missões, os colégios e faculdades e a grá-
fica Ave Maria, com a Bíblia.

CAPÍTULO III
IDENTIDADE DE UMA IES COMUNITÁRIA
O Claretiano, Centro Universitário Claretiano, identifica-se
como uma Instituição de Ensino Superior com espírito e postura
comunitários.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 241

Uma IES Comunitária não é universidade pública, porque não


pertence ao governo, mas também não é privada, pois não é pro-
priedade particular. Segundo Aldo Vannucchi (2004), presidente
da Abruc (Associação Brasileira das Universidades Comunitárias),
"a universidade comunitária representa um modelo alternativo,
ou seja, ela não é nem pública, no sentido estatal, nem privada, no
sentido estrito, empresarial. É pública não estatal".
Vannucchi (2004, p. 25-26) ainda traça o perfil das Universi-
dades Comunitárias, caracterizando-as:
1. pela democratização das relações de poder dentro da instituição;
2. pela lógica do seu funcionamento, pautado pelo interesse da
população, a serviço da sociedade, sem visar a lucro, ou seja, li-
vre do produtivismo economicista, próprio do setor empresarial, e
controlado tanto pela comunidade interna como pela comunidade
externa, porque a universidade é um bem da sociedade, antes e
acima de tudo;
3. pela sua inegável legitimidade social, enquanto existe por dele-
gação estatal e opera, legalmente credenciada, regulamentada e
supervisionada pelo governo, para atender ao direito constitucio-
nal de todos os cidadãos à educação, suprindo, por um custo me-
nor que as instituições governamentais, a demanda de muitos pelo
ensino superior, como única oportunidade de ascensão social e de
profissionalização;
4. pela maneira coletiva e pública com a qual toda a reflexão crítica
e todo o conhecimento científico e cultural que nela se produzem
constituem um valor realmente democrático;
5. pelo serviço público e plural que presta à sociedade, em amplas
áreas geográficas, onde muitas vezes o Estado está ausente, como
parceira privilegiada na construção do planejamento estratégico
e do desenvolvimento da cidade e da região de sua abrangência,
formando profissionais, fomentando a cidadania, impulsionando
lideranças no setor produtivo, disseminando conhecimento e tec-
nologia, alfabetizando jovens e adultos.

Quando menciona a MISSÃO das Universidades Comunitá-


rias, Vannucchi (2004, p. 34-35) afirma que:
a missão atinge um nível ainda mais alto, chegando a consubstan-
ciar mais que uma ideologia ou filosofia de trabalho, um autêntico
apostolado, uma verdadeira mística de traços quase evangélicos,
embora sob traços seculares. Está longe, pois, de ser simples fór-
242 © Antropologia, Ética e Cultura

mula de propaganda institucional, mero fraseado de uma técnica


de manipulação ou mero slogan. Sua importância e seu constan-
te enfoque criam, corroboram e revelam, a todo o momento, um
conjunto de convicções e de motivações fundamentais para o tra-
balho do dia-a-dia, concretizando o que os psicólogos chamam de
sentimento de comunidade, força contraposta à ambição egoísta
e desagregadora de poder e prestígio pessoal. Numa universidade
comunitária, os melhores membros de seu quadro docente e téc-
nico-administrativo vivenciam-na devotamente, numa experiência
permanente de auto-entrega apaixonada ao serviço da instituição,
por causa da comunidade interna e externa. Não são meros agentes
acadêmicos trabalhando para a comunidade, porque aprenderam
a trabalhar com a comunidade e, mais ainda, como comunidade.

Nessa mesma linha de pensamento, Helfer (2003) expõe os


seguintes princípios básicos do Projeto Político-Institucional das
Universidades Comunitárias: compromisso com a qualidade uni-
versitária, com a democracia, com a comunidade, com a realidade
regional e com a manutenção de suas características de Universi-
dade Comunitária – instituição pública não estatal.
É dentro e a partir dessas linhas de pensamento que o Cen-
tro Universitário Claretiano trabalha e deseja cumprir sua Missão
Institucional.
E nós, Missionários Claretianos, queremos que os colabora-
dores invistam nessa ideia para que, juntos, possamos construir
uma comunidade na qual o nosso múnus de educar seja concreti-
zado em relações respeitosas, valorizando-se o outro, na partilha
dos seguintes valores: verdade, honestidade, confiança, liberdade,
responsabilidade e respeito à dignidade humana e à natureza.

CAPÍTULO IV
A MISSÃO DO CENTRO UNIVERSITÁRIO CLARETIANO
A Missão do Centro Universitário Claretiano, inspirada nos
valores éticos e cristãos e no carisma claretiano, consiste em ca-
pacitar a pessoa humana para o exercício profissional e para o
compromisso com a vida mediante uma formação integral; Missão
essa que se caracteriza pela investigação da verdade, pelo ensino e

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 243

pela difusão da cultura, que dão pleno significado à vida humana.


A seguir, faremos uma análise da Missão, tendo em vista que
o sentido de um texto é percebido pela correlação entre as partes.

A MISSÃO
Entendemos por MISSÃO o princípio que está na origem de
nossos trabalhos e atividades, norteado pelo compromisso de as-
sumir a PASTORAL EDUCATIVA como um trabalho de evangeliza-
ção, já que "educar é um modo de ser, um modo de significar e um
modo de atuar em favor do crescimento do Reino" (BOCOS, 1999).
Por isso, nossa Missão, como instituição católica, é:
• garantir, de forma permanente e institucional, a presença da
mensagem de Cristo – luz dos povos, centro e fim da criação
e da História – no mundo científico e cultural, fomentando o
diálogo entre razão e fé, entre Evangelho e cultura;
• favorecer o encontro da Igreja com as ciências, as culturas e
os graves problemas de nosso tempo, ajudando-a a responder
adequadamente a esses desafios;
• consagrar-se sem reservas – pelo esforço da inteligência e à luz
da Revelação – à investigação livre, responsável, corajosa e ale-
gre da verdade sobre o universo, em todos os seus aspectos e
em seu nexo essencial com a Verdade suprema, Deus;
• contribuir para aprofundar o conhecimento do significado e o
valor da pessoa humana;
• dedicar-se ao ensino e a proclamação da verdade, valor funda-
mental, sem o qual se extinguem a liberdade, a justiça e a dig-
nidade humana;
• fomentar o diálogo ecumênico e inter-religioso. (CNBB, 2000,
p. 13-14).

O Centro Universitário Claretiano


O Centro Universitário Claretiano foi instalado no dia 14 de
maio de 2002. Segundo as normas contemporâneas, Centro Uni-
versitário é uma instituição de ensino que segue estes princípios:
• Excelência de organização e atividades de ensino, pesqui-
sa e extensão.
244 © Antropologia, Ética e Cultura

• Preferência pela qualidade humana e funcional, acadêmi-


ca e religiosa da direção, dos professores e dos funcioná-
rios.
• Formação de uma verdadeira comunidade educativa,
abrangendo direção, professores, alunos e funcionários,
na qual se vive um clima de verdadeiro amor fraterno e
solidariedade, de respeito recíproco e diálogo construti-
vo, com ideais compartilhados e tarefas planejadas.
• Comunidade educativa que se destaque pela competên-
cia científica e pedagógica e, também, pela integridade
doutrinal e probidade de seus membros.
Nossa instituição de ensino é uma INSTITUIÇÃO CATÓLICA, e,
como tal, ela deve ser:
• uma comunidade acadêmica que, inspirada na mensagem e
pessoa de Jesus Cristo e fiel à Igreja, se dedica, de modo refleti-
do, sistemático e crítico, ao ensino, à pesquisa e à extensão, nos
variados ramos do conhecimento, e se consagra à evangeliza-
ção e formação integral de seus membros – alunos, professores
e funcionários – bem como ao serviço qualificado do povo, con-
tribuindo para o aumento da cultura, a afirmação ética da soli-
dariedade, a promoção da dignidade transcendente da pessoa
humana e ajudando a Igreja em seu anúncio salvífico e serviço
ao Reino de Deus (CNBB, 2000, p. 13).

Como INSTITUIÇÃO CLARETIANA, esta comunidade educati-


va é dirigida pelos Missionários Claretianos, que têm como com-
promisso carismático o Serviço Missionário da Palavra, exercido
por todos os meios possíveis. Assim, assumimos o ministério edu-
cativo como um modo de colaborar com a construção de uma so-
ciedade mais justa, fraterna e solidária.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 245

Inspiração nos valores éticos e cristãos


Os princípios seguidos por esta Instituição têm sua origem
na pessoa, nos ensinamentos e nas obras de Jesus Cristo, o Deus
que se fez homem-história e anunciou à humanidade que é possí-
vel conviver em paz e amor e que o ser humano é chamado a viver
em plenitude a relação com o outro, gerando valores de solidarie-
dade, justiça e fraternidade.
Nossos valores têm em Jesus Cristo seu fundamento, porque
Ele é o modelo perfeito de homem, que viveu no abandono incon-
dicional ao Pai e no amor misericordioso e compreensivo para com
as pessoas. Nele, o homem encontra tudo o que deseja e procura.
A Igreja é o prolongamento de Cristo na História. Essa missão
universal continua através dos tempos e, dela, somos participan-
tes e responsáveis.
Somos uma instituição confessional e vemos o processo edu-
cativo como um modo de ajudar na construção do Reino de Deus,
instaurado por Jesus Cristo e articulado pela Igreja. Nesse sentido,
uma instituição católica de ensino:
deve distinguir-se pela fidelidade à doutrina e determinações da
Igreja, pela excelência de sua organização e atividades de ensino,
pesquisa e extensão, bem como primar pela qualificação humana e
funcional, acadêmica e religiosa de sua direção, professores e fun-
cionários (CNBB, 2002, p. 21).

Por isso, no tocante à formação humana e doutrinal, ética e


social, a nossa instituição deve dar:
a todos a oportunidade de seguir cursos de doutrina católica. Tais
cursos consistirão de disciplinas teológicas ou de outras afins; na
programação de todos os departamentos constará uma formação
moral apropriada; a doutrina social da Igreja, confrontada com a
realidade e os desafios do país, a sensibilidade para com os proble-
mas do povo e o espírito de serviço comunitário estarão presentes
na formação teórica e prática dos estudantes; dada a importância
da Teologia na busca de uma síntese superior do saber e no diálo-
go entre razão e fé, ofereceremos uma disciplina teológica em que
se possa adquirir uma formação doutrinal mais sólida, garantindo-
-se o lugar legítimo da Teologia no mundo da ciência e da cultura
(CNBB, 2002, p. 28-29).
246 © Antropologia, Ética e Cultura

Inspiração no carisma claretiano


A Congregação dos Missionários Claretianos tem por objeti-
vo "buscar em tudo a glória de Deus, a santificação de seus mem-
bros e a salvação dos homens de todo o mundo" (CONSTITUIÇÕES
CLARETIANAS, p. 15, n. 2).
A partir da evolução histórica de nosso instituto, definimos
seu carisma como um serviço missionário profético da Palavra que
tem as seguintes características: anúncio do Reino de Deus e da
vida em plenitude e denúncia de tudo o que lhe é contrário, op-
tando pelos meios possíveis para que a salvação seja levada à hu-
manidade.

Capacitação da pessoa humana


O Centro Universitário Claretiano quer oferecer ao corpo
discente instrumentais científicos, técnicos, humanos, religiosos e
vivenciais que o tornem capaz de compreender a si mesmo e à sua
função no plano criador de Deus, que, antes de tudo, é o de tornar
cada ser humano coparticipante e corresponsável pelo aperfeiço-
amento dos segmentos e interesses da vida humana.
Por outro lado, queremos ser sensíveis ao perfil de nossos
alunos, entender suas virtudes e fragilidades, potencialidades e
limitações, dando atenção ao lugar, ao espaço e à estrutura de en-
sino de onde muitos deles procedem.
Sabemos que muitos de nossos alunos procedem de setores
carentes e menos privilegiados da sociedade, que é discrimina-
dora e excludente. Dessa maneira, propomo-nos, como entidade
filantrópica, a recuperar as possíveis defasagens e limitações bási-
cas que eles possam apresentar. Assim:
na perspectiva cristã, a educação deverá ajudar na formação de
uma pessoa: colaboradora de Deus, tendo como tarefa comple-
mentar, humanizar e partilhar a obra da criação; com sentido de

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 247

liberdade que lhe permita agir consciente e responsavelmente,


tomando decisões pessoais e coerentes com seu projeto de vida
e capaz de participar na sociedade, fazendo opções religiosas, po-
líticas e culturais livres; com senso ético e consciência crítica que
lhe permitam avaliar com clareza os acontecimentos e o que está
implícito neles, oferecendo soluções apropriadas e comprometen-
do-se a atuar de forma adequada e eficaz; com equilíbrio que lhe
permita enfrentar, com serenidade e sentido cristão, o êxito e o
fracasso; com sensibilidade histórica e capacidade de compromis-
so e de solidariedade que a impulsione a assumir as responsabili-
dade sociais e políticas na construção de um mundo democrático,
com relações de comunhão e participação; sujeito construtor da
história, livre e solidário, capaz de amar, mas também de resistir e
recusar; que vive em comunidade a partilha e a convivência frater-
na, até à doação de si mesmo; que por sua dignidade, é superior
a qualquer lei ou organização social, mesmo a mais democrática
e cuja cidadania transcende a terrestre, completando-se no Reino
definitivo de Deus; que assume atitude de amor à coisa pública,
de vontade permanente de participação, de abertura ao outro, do
poder-serviço e da encarnação na realidade do povo; que sabe li-
gar a auto-realização à construção do bem comum e da comunhão
social (CNBB, 1990, p. 37).

Essa mesma formação precisa estar aberta para a vida so-


cial, e, nessa perspectiva, a Educação objetiva preparar para uma
sociedade:
fundamentada na dignidade da pessoa humana e que tem como
meta a comunhão social; marcada pela igualdade de todos, pela
solidariedade e pela participação como critérios de organização;
pluralista, aberta aos valores que são patrimônio da humanidade,
sem preconceitos e discriminações; que preconiza relações dialo-
gais, participativas e democráticas na sociedade civil; que supera
a contradição entre as estruturas sociais injustas e as exigências
do Evangelho, tornando efetiva a justa distribuição dos bens eco-
nômicos, culturais e espirituais, de serviços e oportunidades; que
garante a seus segmentos plena liberdade de se associarem e de
se organizarem e a efetiva oportunidade de serem ouvidos e res-
peitados, bem como a todas as pessoas o direito de manifestarem
pública e privadamente a sua fé.
Para conseguir tais objetivos, o educador cristão deverá primar por
desenvolver em sua vida valores tais como: dignidade pessoal, fir-
meza de caráter, solidariedade e união de propostas, fraternidade,
honestidade, paciência, força e vontade. (CNBB, 1990, p. 38).
248 © Antropologia, Ética e Cultura

O exercício profissional
Queremos preparar pessoas íntegras que, optando por um
determinado segmento profissional, aceitem se submeter ao
aprendizado científico-técnico-humano para poder desempenhar
com eficiência, consistência e integridade as tarefas e obrigações
condizentes com o seu dom profissional e com a área que se pro-
põem a trabalhar.
Nesse sentido, a proposta pedagógica de nosso Centro Uni-
versitário:
buscará integrar o progresso acadêmico e profissional dos alunos
com o amadurecimento nas dimensões humana, religiosa, moral
e social, de modo que respeitada a convicção religiosa de cada um
– eles não só se tornem competentes no seu setor específico, a
serviço da sociedade, mas também líderes qualificados, decididos
a viver e testemunhar sua fé, na Igreja e no mundo. (CNBB, 2000,
p. 27).

O compromisso com a vida


Desejamos formar profissionais que, antes de tudo, sejam
gente, homem e mulher, movida pelos sentimentos de sensibili-
dade e respeito pela vida do outro. Profissionais que valorizem a
VIDA como dom de Deus a ser construído no amor, na fraternida-
de, no diálogo, na responsabilidade e na solidariedade. Assim:
dado que o saber está a serviço da pessoa humana, garantindo-lhe
o primado sobre as coisas e a orientação para Deus, uma prioridade
específica da Universidade Católica é explicitar as implicações éticas
presentes em todos os campos de ensino e investigação, examinar
e avaliar sob o ponto de vista cristão os valores e normas dominan-
tes na sociedade e cultura modernas, bem como comunicar-lhes os
princípios e valores éticos e religiosos que dão pleno significado à
vida humana... Dar-se-á atenção particular às questões levantadas
pelas disciplinas específicas da área de estudo e ao crescimento da
consciência moral e do sentido de responsabilidade, pessoal e so-
cial (CNBB, 2000, p. 28).

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 249

A formação integral
O homem é um ser único, irrepetível, construído das dimen-
sões biológica, psicológica e social, unificadas pela dimensão espi-
ritual, que é o núcleo do ser-pessoa. Como pessoa, expressa seu
ser-espírito na liberdade, entendida como capacidade de afirma-
ção, apesar dos condicionamentos e das limitações que reforçam
sua responsabilidade na construção da própria existência, cuja ple-
nitude é alcançada pela superação de si e pela transcendência.
Assim, a pessoa é entendida e assumida como “ser em rela-
ção" e “ser de abertura" ao mundo, aos outros, a si mesmo e ao
Tu absoluto, Deus, que ilumina e dá sentido pleno à sua realidade
humana, e como ser criado por Deus, sentido último de sua exis-
tência, feito à sua imagem e semelhança. Em Jesus Cristo, Filho
de Deus, encarnado na história humana, o homem é chamado a
encontrar tudo o que deseja e procura.
A pessoa humana é um ser educável. Entendemos a educa-
ção como um processo de aperfeiçoamento intencional das dimen-
sões especificamente humanas e cristãs, portanto, um processo de
humanização e personalização.

Missão: investigação da verdade


Como instituição de ensino católica, nosso Centro Universi-
tário compartilha, com todas as outras Universidades, aquele gau-
dium de veritate, tão a gosto de Santo Agostinho, isto é:
a alegria de procurar a verdade, de descobri-la e de comunicá-la,
em todos os campos do conhecimento. Sua tarefa privilegiada é
unificar existencialmente, no trabalho intelectual, duas ordens de
realidade que, não raro, tende-se a opor, como se fossem antitéti-
cas: a investigação da verdade e a certeza de conhecer, já, a fonte
da verdade (JOÃO PAULO II, 1990).

A verdade representa a aceitação do plano de Deus, que


quer todos os homens vivendo em plenitude, realizando-se, res-
peitando-se e crescendo de um modo integral: política, econômi-
ca, cultural e religiosamente.
250 © Antropologia, Ética e Cultura

Essa verdade deve ser investigada, desejada, assimilada, ab-


sorvida, amada e praticada na articulação de mecanismos e ins-
trumentais que levem o ser humano ao pleno desenvolvimento
e à evolução integral. Portanto, é inerente à nossa instituição de
ensino a tarefa de:
proclamar o sentido da verdade, valor fundamental sem o qual se
extinguem a liberdade, a justiça e a dignidade do homem. Em prol
duma espécie de humanismo universal, a universidade católica
dedica-se, totalmente, à investigação de todos os aspectos da ver-
dade, no seu nexo essencial com a Verdade suprema, que é Deus
(JOÃO PAULO II, 1990).

O ensino e a difusão da cultura com atribuição de significado


Cabe à universidade católica o ensino, a transmissão e a par-
tilha de todo conhecimento adquirido do patrimônio experimen-
tado e vivido na expressão das mais variadas civilizações. Por sua
mesma natureza, a universidade católica:
promove a cultura, mediante a atividade de investigação, ajuda a
transmitir a cultura local às gerações sucessivas, mediante o ensi-
no, favorece as iniciativas culturais, com os próprios serviços edu-
cativos. Ela está aberta a toda a experiência humana, disposta ao
diálogo e à aprendizagem de qualquer cultura... A universidade ca-
tólica deve tornar-se, cada vez mais, atenta às culturas existentes
na Igreja, na maneira de promover um contínuo e proveitoso diálo-
go entre o Evangelho e a sociedade de hoje. Entre os critérios que
distinguem o valor duma cultura, está em primeiro lugar, o sentido
de pessoa humana, sua liberdade, sua dignidade, seu sentido de
responsabilidade e sua abertura ao transcendente. Ao respeito da
pessoa está unido o valor eminente da família, célula primária de
toda a cultura humana (JOÃO PAULO II, 1990).

O verdadeiro sentido para a vida humana está na relação fi-


lial com Deus, que nos criou não só como seres materiais, mas
como seres espirituais, voltados para o transcendente. Por isso, a
vida há que ser defendida e desejada em plenitude e, como comu-
nidade educativa (alunos, professores, pais, comunidade religiosa,
funcionários), propomo-nos a articular os mecanismos e as estru-
turas que propiciem a todos o respeito aos seus direitos e à sua
integridade.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 251

CAPÍTULO V
PROJETO EDUCATIVO
Educação para a Justiça e o Amor

1. O HOMEM
1.1 O homem é um ser único, irrepetível, constituído das di-
mensões biológica, psicológica e social, unificadas pela di-
mensão espiritual, que é o núcleo do ser-pessoa.
1.2 Como pessoa, expressa seu ser-espírito na liberdade,
entendida como capacidade de afirmação, apesar dos con-
dicionamentos e das limitações que reforçam sua responsa-
bilidade na construção da própria existência, cuja plenitude
é alcançada pela superação de si mesmo e pela transcen-
dência.

2. SER EM RELAÇÃO
2.1 O ser humano apresenta-se numa relação múltipla de
abertura ao mundo, aos outros, a si mesmo e ao Tu absoluto,
Deus, que ilumina e dá sentido pleno à sua realidade huma-
na. Nesse relacionamento múltiplo, ele encontra o caminho
da liberdade e do crescimento, realizando-se ao assumir sua
missão cristã e política.
2.2 Empenhando-se com os outros na libertação de todos,
participando ativamente da vida do seu povo e tendo cons-
ciência de que é agente da história do seu povo e da sua
própria história particular, o homem constrói a própria liber-
dade.
2.3 Essa consciência histórica obriga-o a posicionar-se pe-
rante a realidade social concreta, intervindo para a mudança
das estruturas injustas e desumanas. Tendo consciência de
suas limitações, necessita do apoio e da comunhão de vida
com os seus semelhantes para sua própria realização.
252 © Antropologia, Ética e Cultura

3. CRIATURA
3.1 A esse ser humano, criado por Deus, feito à sua imagem
e semelhança, foi confiada a obra da criação.
3.2 Pela fé, o homem encontra em Deus o sentido último de
sua existência, a fonte da vida, da liberdade e do amor.
3.3 O homem, aceitando Deus como Pai, reconhece-se como
seu filho, irmão de Jesus Cristo, solidário com a humanida-
de na busca da construção do Reino que é Justiça, Verdade,
Comunhão.
3.4 Modelo perfeito de homem é Jesus Cristo, que viveu no
abandono incondicional ao Pai e no amor misericordioso e
compreensivo para com as pessoas. Nele, o homem encon-
tra tudo o que deseja e procura.
3.5 A Igreja é o prolongamento de Cristo na História. Essa
missão universal continua através dos tempos e, dela, somos
participantes e responsáveis.

4. UM SER EDUCÁVEL
4.1 Partindo desses pressupostos, a educação é entendida
como processo de aperfeiçoamento intencional das dimen-
sões especificamente humanas e cristãs, portanto, um pro-
cesso de humanização e personalização.
4.1.1 Processo de humanização enquanto aceita cada edu-
cando como ser único e irrepetível, enfeixando num todo
suas dimensões biofísicas, psicossociais e espirituais, bem
como inserindo-o no contexto histórico.
4.1.2 Processo de personalização enquanto suas dimensões
se integram e convergem para o centro da pessoa como ser
transcendental e ser-em-relação.
4.2 Educação é, pois, um processo de libertação e de con-
versão, mediante o qual o indivíduo se torna agente de seu

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 253

próprio destino pessoal e social, para construir um mundo


humano e cristão. Visa, portanto, formar uma personalidade
aberta, capaz de discernir e optar pelos verdadeiros valores,
segundo o Evangelho.

5. IDENTIDADE CLARETIANA
5.1 Como Claretianos, inspiramo-nos na figura de Santo An-
tônio Maria Claret, da qual destacamos:
• Ação evangelizadora e missionária, atenta em promover
os meios mais eficazes para atingir seus objetivos.
• Amor e docilidade à Palavra de Deus, como iluminadora
de sua vida.
• Amor a Maria, ao seu Coração Imaculado, como centro
de intimidade com Deus e de afeto maternal aos homens.
• Fidelidade e amor à Igreja.
• Preocupação em preparar evangelizadores leigos.

5.2 Para nós, Claretianos, cujo carisma é a evangelização e


o anúncio da Palavra, que é vida e sentido para o homem,
a educação é reconhecida: como valor humano e, por isso,
evangelizadora; como processo de libertação por humanizar,
personalizar e socializar.
5.3 Os Claretianos evangelizam a partir de uma comunidade,
à semelhança dos apóstolos. Por isso, educar significa criar
uma comunidade educativa em que se incluam os alunos, os
professores, os pais, a comunidade religiosa, bem como o
pessoal de administração e de serviço.
5.4 Essa comunidade deve estar em constante processo de
revisão e deve ser:
• QUALIFICADA – intelectualmente bem atualizada, pes-
quisadora e corresponsável.
254 © Antropologia, Ética e Cultura

• LIBERTADORA – enquanto participa da ação libertadora


de Cristo, inscrevendo-se no projeto histórico de constru-
ção de um homem e de uma sociedade novos, com novas
relações de justiça, fraternidade e solidariedade.
• EVANGELIZADORA – enquanto, partindo da contempla-
ção de Cristo, inspirador da comunidade evangelizadora,
dá testemunho de justiça, de fraternidade no trabalho, de
humanização e de tomada de consciência da dimensão
transcendental das atividades comunitárias.

6. PRINCÍPIOS EDUCATIVOS
A educação da comunidade claretiana baseia-se em três
princípios fundamentais, que devem orientar sua prática educa-
tiva:
6.1 Cada pessoa é um ser único e singular. A educação pro-
cura tornar esse ser um sujeito consciente de suas possibili-
dades e limitações. A manifestação dinâmica dessa singulari-
dade é a originalidade e a criatividade.
6.2 Cada pessoa é o princípio de suas ações, de sua capa-
cidade de governar-se tendo em vista sua liberdade. Fun-
damentalmente, o ser humano é livre para realizar-se como
pessoa e, por isso, é responsável pelo seu projeto pessoal
e social. Tal assertiva opõe-se totalmente à arbitrariedade
vigente.
6.3 O homem é, simultaneamente, uma totalidade e uma
exigência de abertura e contato com os outros. Esse princí-
pio orienta a educação para as relações de colaboração de
trabalho e para a amizade na vida econômica, política e so-
cial.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 255

7. PRINCÍPIOS DIDÁTICOS
7.1 A educação humanista proposta pela Ação Educacional
Claretiana tenta vivenciar uma pedagogia e uma didática
que sejam coerentes com ela.
7.2 A metodologia, amparada pelo Projeto Educativo Clare-
tiano, incide profundamente no desenvolvimento da per-
sonalidade, na autorrealização e na autonomia de ser e de
aprender do aluno, bem como na formação do espírito de
cooperação e de solidariedade. Para isso, essa metodologia
e didática apoiam-se nos seguintes princípios:
• PRINCÍPIO DA UNIDADE
Visa-se com vergência dos valores para o desenvolvimento
da inteligência, da vontade, do sentimento e da ação do alu-
no.
• PRINCÍPIO DA PERSONALIZAÇÃO
Visa salvaguardar e potenciar a unidade e a originalidade do
aluno.
• PRINCÍPIO DA AUTONOMIA
Trata-se de criar, no aluno, uma atitude cultural de abertu-
ra ao saber e de dotá-lo de uma técnica de aprendizagem
intelectual capaz de atualização constante. Além disso, visa
despertar nele o desejo e a responsabilidade de aprender,
mesmo depois de concluída a ajuda do educador.
• PRINCÍPIO DA ATIVIDADE
Requer a atividade pessoal do aluno, sem a qual é inútil qual-
quer ensinamento.
• PRINCÍPIO DA LIBERDADE
Procura-se respeitar o caminho pessoal do aluno para a con-
secução da verdade, do desenvolvimento próprio, adotando,
para isso, princípios de aprendizagem.
256 © Antropologia, Ética e Cultura

• PRINCÍPIO DA INTERIORIZAÇÃO
Caracteriza-se pela formação intelectual como processo do
exterior para o interior, isto é, da atividade e do interesse
pessoal para a posse interior profunda da cultura.

• PRINCÍPIO DA INTEGRIDADE
Considera-se o aluno vocacional e profissionalmente inte-
grado somente quando ele como um todo se projeta numa
perspectiva de vida que lhe seja peculiar e inalienável. Visa
à cultura prática e funcional e não ao intelectualismo puro
e abstrato. Por esse caminho, o jovem é conduzido a buscar
seu próprio aperfeiçoamento, autonomia nos estudos, de-
senvolvimento da capacidade pessoal de investigação, aná-
lise e reflexão.

8. NOSSA PRÁTICA EDUCATIVA

Nosso educador:
8.1 Tem consciência de seu valor e exerce papel fundamental
na educação.
8.2 Alicerça seu trabalho numa concepção da pessoa, da
vida, do mundo e da sociedade. É essa concepção que de-
termina atitudes e valores coerentes com a visão da escola.
8.3 Sente-se um mediador entre a verdade, que deve ser co-
nhecida, e o educando, agente fundamental da educação,
aquele que constrói o próprio conhecimento.
8.4 Promove uma educação DIALÓGICA, que implica reco-
nhecer o educando como pessoa com identidade e missão
pessoal, estimulando-o a assumir sua responsabilidade indi-
vidual e comunitária.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 257

8.5 Promove uma educação que torna o educando conscien-


te de que ele é o AGENTE principal de seu processo de aper-
feiçoamento. Isso implica formação da capacidade criativa,
na capacidade de ver os outros como pessoas, de julgar e
ponderar as circunstâncias históricas, de descobrir o sentido
único e válido ao qual deve responder.

8.6 Vivencia uma educação ABERTA ao amor e ao serviço dos


semelhantes, num mundo animado pela justiça e pela ver-
dade, às aspirações profundas do ser humano, aos direitos
das pessoas e das comunidades, à paz, à solidariedade e às
conquistas do espírito humano no campo da ciência, da filo-
sofia, da arte etc.
Nosso objetivo é formar cidadãos capazes e dispostos a par-
ticipar da vida política, social, econômica e cultural da humanida-
de.

9. COMUNIDADE EDUCATIVA
A Direção, o corpo docente, os alunos, os pais e os funcioná-
rios compõem a Comunidade Educativa, na qual todos se integram
e, dela, participam, de acordo com sua função, para a educação
integral do aluno.
O principal objetivo é que essa comunidade educativa cons-
titua uma verdadeira comunidade cristã.
O sentido e o alcance da participação de cada um dos mem-
bros da Comunidade Educativa nas decisões que afetam a condu-
ção da Instituição Claretiana estão condicionados às responsabili-
dades assumidas por cada um.
À Ação Educacional Claretiana, como entidade mantenedo-
ra, cabe estabelecer as linhas pedagógicas e as características pró-
prias da educação.
258 © Antropologia, Ética e Cultura

A Instituição Claretiana responsabiliza-se, perante a socieda-


de, por este PROJETO EDUCATIVO e pela aplicação prática dos seus
princípios na atividade educativa.

Integrantes da comunidade:
• Professores participam da Comunidade Educativa pela re-
gência de aulas, pelas reuniões de colegiado, pela orien-
tação de trabalhos científicos etc.
• Os alunos, que são o centro da atenção educativa, par-
ticipam da Comunidade como representantes de classe,
nas reuniões pedagógicas e junto à Direção, quando ne-
cessário.
• Os funcionários participam do processo educativo por
meio de suas atividades técnico-profissionais, em uma
estrutura essencial para a realização do PROJETO EDUCA-
TIVO.
• Os pais devem estar presentes no processo educativo,
fazendo de seus lares a primeira escola de virtudes, que
prepara seus filhos para o relacionamento com os ho-
mens e com Deus.
• Eles devem, também, acompanhar seus filhos nos estu-
dos e nas atividades escolares ao longo do ano letivo,
comparecendo às reuniões sempre que convocados pela
Direção.
Além desses canais oficiais de participação, existe a possibili-
dade de contato espontâneo com os responsáveis pela Instituição.

Bibliografia
Bibliografia Claretiana
CABRÉ, Agustín. Evangelizador de dos Mundos. Barcelona: Editorial Claret, 1983.
CLARET, A. M. Santo AUTOBIOGRAFIA. Santo Antônio Maria Claret por ele mesmo.
Tradução de Elias Leite. São Paulo: Ave-Maria, 2004.
CODINACHS, P. Pobre e a pie. Barcelona: Claret, 1999.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Apêndice 259

GÓMEZ, J. Á. Claves para leer la historia de la congregación. Madrid: Claretianas, 2001.


GÓMEZ ÁLVAREZ, Jesús. Claves para Leer la Historia de la Congregación. Madrid:
Publicaciones Claretianas, 2001.
MAZULA, Ronaldo. (Org.). História da congregação dos missionários claretianos. São
Paulo: Editora Ave-Maria, 1999.
RUFATT, A. C. Evangelizador de dos mundos. Barcelona: Claret, 1983.
SANZ, Vicente. Huellas de Claret. Madrid: Lecar Impresiones, 1997.
VERDAGUER CODINACHS, Pere. Pobre e a Pie. Barcelona: Editorial Claret, 1999.
VILLANOVA, Juan. Vida de Antônio Maria Claret. São Paulo: Editora Ave-Maria, 1999.

Bibliografia Geral
BOCOS, Aquilino. Preparando nuestros colégios para el futuro. Vida Religiosa, v. 87, n.
5, 1999.
BRANDÃO, Euro. Universidade e transcendência. Curitiba: Champagnat, 1996.
CNBB  – CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Doc. 64. Diretrizes e normas
para as universidades católicas. São Paulo: Paulinas, 20020.
______. Doc. 64. Diretrizes e normas para as universidade católicas. Saõ Paulo: Paulinas,
2002.
______. Educação: exigências cristãs. São Paulo: EP, 1990.
DIENELT, Karl. Antropologia pPedagógica. Madrid: Aguilar, 1980.
ESCALONA, Iara . López. Antropologia e educação. São Paulo: Paulinas, 1983.
FABRE, M. F. (Relatora). Pastoral das universidades. Educação Integral e Universidade em
Pastoral. Abesc, Brasíllia: Abesc, 2001.
FRANKL, Víctor. Psicoterapia e sentido da vida. São Paulo: Quadrante, 2003.
______. Fundamentos antropológicos da psicoterapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HELFER, Carmen L. L. L. iIdentidade das IES comunitárias: referências teóricas. In: X
ENCONTRO E V ASSEMBLÉeéIA NACIONAL DO FÓRUM NACIONAL DE EXTENSÃO E AÇÃO
COMUNITÁRIA DAS IES COMUNITÁRIAS. Brasília, Anais... Brasília, 2003.
HOZ, Victor V. Garcia. Educación personalizada. Bogotá: Grupo Editor Quinto Centenario,
S.A., 1988.
JOÃO PAULO II. Ex corde ecclesiae. Universidades Católicas. São Paulo: Edições Paulinas,
1999.
LIMA, S. A. Caminhos novos na educação. São Paulo: FTD, 1995.
MOURA, L. D. A educação católica no Brasil. São Paulo: Loyola, 2000.
STEIN, G. B. A educação nos documentos da Igreja Católica Apostólica Romana. Brasília:
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VANNUCCHI, Aldo. A universidade comunitária. São Paulo: Loyola, 2004.
260 © Antropologia, Ética e Cultura

Anexo 1
UM SENTIDO PARA A VIDA
Palestra realizada em 20 de novembro de 1997 na Federa-
ção do Comércio do Estado de São Paulo, onde Frei Betto, um dos
maiores teólogos e intelectuais brasileiros, fala do papel da ciên-
cia, da educação e da religiosidade no mundo moderno.
Minha intenção é falar sobre o momento que estamos viven-
do, momento confuso em termos de perspectiva do futuro. A pri-
meira evocação que faço é da pintura de Michelangelo na Capela
Sistina, “A criação de Adão”, em que a figura de Deus, recoberto de
mantos e com a barba longa, estende o dedo para Adão. Ao mes-
mo tempo em que Adão, como símbolo da humanidade, é atraído
em direção à Terra, ele estende o dedo na direção do Criador, es-
pécie de premonição nostálgica de que é preciso não perder o con-
tato com a fonte, com a raiz, que é Deus. Michelangelo foi genial,
porque é muito difícil compreender o momento em que se vive.
É fácil analisar os momentos depois que eles passaram. O artista,
com sua intuição, com seu talento, tem o dom de captar o momen-
to, que depois a epistemologia e a filosofia tentam explicar.
O que acontecia naquele momento da “descoberta” da Amé-
rica, da “descoberta” do Brasil? A passagem. Diria que não estamos
vivendo uma época de mudanças. Estamos vivendo, hoje, uma
mudança de época. A última mudança de época foi justamente na
“descoberta” da América, quando o Ocidente passou do período
medieval para o moderno. A pintura de Michelangelo expressa,
com genialidade, essa chegada de um tempo em que o conheci-
mento, a epistemologia, se desloca de uma perspectiva teocên-
trica para uma perspectiva antropocêntrica. A rainha das ciências,
durante mil anos, no período medieval, foi a teologia. A rainha das
ciências, da modernidade é a física. O período medieval se base-
ava na fé; o moderno, na razão. O período medieval se baseava

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 261

na contemplação das verdades reveladas; o moderno, na busca


da compreensão da mecânica deste mundo e no pragmatismo, na
transformação deste mundo.
Quando os camponeses medievais preparavam o campo, as-
pergiam água benta e ainda pagavam aos padres pela água com-
prada. Até que apareceu um sujeito, que não era cristão, com um
pozinho preto, dizendo: “Ponham isso na terra, e irão produzir
mais do que com a água benta dos padres”. De fato, o adubo re-
sultou numa produtividade muito maior do que a água benta. Isso
criou uma crise de fé no fim da Idade Média. Por quê? Porque a fé
medieval, como muitas vezes a nossa fé hoje, é uma fé sociológi-
ca, que tem como anteparo nossa compreensão do mundo. Uma
vez que essa compreensão é mudada, a fé desaba. Aliás, muitas
vezes passamos por crises espirituais que, na verdade, não deve-
riam ser entendidas assim, mas como crises de cosmovisões ou de
mundividências que sustentam nossa maneira de compreender a
experiência da fé.

Descartes e Newton
A modernidade aparece, primeiro, com o grande movimento
da globalização que foram as navegações ibéricas. Falamos hoje em
globalização como se fosse novidade. Mas, na Escola de Sagres, já
se falava em globalização, com outras palavras. E tanto globaliza-
ram que conseguiram abarcar outras regiões do planeta, embora
Colombo tenha morrido sem saber que havia chegado à América.
Morreu convencido de que tinha alcançado Cipango, nome que
se dava ao Japão. As descobertas marítimas, a criação das univer-
sidades, principalmente da Sorbonne, que é do século 12, e da
Universidade de Bolonha, e as corporações marítimas, que são as
matrizes dos sindicatos, foram três fatores que, de certa forma,
prepararam o advento da modernidade. Todos nós somos filhos
da modernidade. Nossa estrutura de pensamento é moderna, mas
nem sempre foi assim, e nem em toda parte do mundo é assim.
262 © Antropologia, Ética e Cultura

Qual é a característica da modernidade? São duas pernas: a


filosofia de René Descartes e a física de Isaac Newton. Descartes,
com o “Penso, logo existo”, mostrou que a razão é capaz de deci-
frar os enigmas do conhecimento. Já contemporaneamente a ele,
ou um pouco antes, um acontecimento marcou decisivamente a
introdução da visão moderna: a astronomia de Nicolau Copérnico,
depois complementada por Galileu Galilei. Copérnico fez algo de
revolucionário, a ponto de hoje se falar de revolução copernicana,
porque até então as pessoas olhavam o mundo com os pés na Ter-
ra. Copérnico fez o inverso: como será a Terra se eu me imaginar
com os pés no Sol? A partir dessa mudança, ele teve uma com-
preensão completamente diferente do universo, mas só ousou
partilhá-la em seu leito de morte, com medo da Inquisição. Depois
veio Galileu e acabou com a idéia de que a ciência é baseada no
senso comum. Detalhe: o que Galileu constatou cientificamente
no século 17, Eratóstenes já havia comprovado na Grécia, três sé-
culos antes de Cristo. Eratóstenes, astrônomo grego, afirmava que
a Terra é redonda e gira. Ele teve o cuidado de colocar estacas
entre duas cidades e medir a incidência do Sol sobre essas estacas,
constatando que a sombra que o Sol projetava comprovava que a
Terra era redonda e gira. Mas Eratóstenes não tinha lobby suficien-
te para fazer prevalecer sua opinião. O mais fantástico é que ousou
medir a cintura da Terra, e chegou à conclusão de que ela tinha 39
mil quilômetros. No século 20, a ciência constatou que são 40.008
quilômetros.
A idéia de que vivemos num planeta, que não é o centro do
universo, foi extremamente desconfortável para a Igreja, primeiro
porque, na Bíblia, consta que Josué parou o Sol. Se a palavra de
Deus afirma que Josué parou o Sol, como um cientista ousa afir-
mar que não é o Sol que gira, mas é a Terra que gira em torno do
seu próprio eixo e em torno do Sol? E depois, diziam a Galileu, o
Sol nasce no leste, passa sobre nossas cabeças, desce no oeste,
durante a noite caminha por baixo da Terra e, de repente, renasce
novamente no leste. É ele que gira. A grande revolução que intro-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 263

duz a modernidade foi provar que a ciência não é o que parece,


mas o que se comprova pela experiência e pela pesquisa.
Descartes levou isso ao plano filosófico. Ele tanto influenciou
a modernidade que ainda hoje nossa ciência e nossa chave de co-
nhecimento são profundamente cartesianas. O exemplo mais ób-
vio é a medicina. Você vai ao médico, tem um problema cardíaco
e ele receita um remédio muito bom para o coração. O resultado
é o aparecimento de um pequeno problema colateral no intesti-
no, mas para o coração o medicamento é ótimo. Se o problema
é intestino, você toma um outro remédio, que vai provocar uma
pequena insônia, mas não se preocupe. Ou vai ao médico do es-
pírito, o terapeuta, o psicanalista, e alguns nem sequer lhe esten-
dem a mão porque não pode haver contato físico. Mas o médico
do corpo, que manda fazer uma série de exames, nem sempre tem
o cuidado de perguntar sobre sua história familiar, seus hábitos,
como é o seu cotidiano, o que você come. Ou seja, a cultura mo-
derna é tão cartesiana, tão fragmentada, sem percepção do todo,
que não temos, como na China e no Tibete de antigamente, o mé-
dico da pessoa, nós temos o médico do detalhe. Na China antiga
você pagava o médico enquanto tinha saúde. Ficando doente, ele
tinha que tratá-lo de graça, porque a responsabilidade do médico
é assegurar sua saúde. Nós pagamos o médico quando ficamos
doentes. Então ele não se sente propriamente responsável pela
preservação de minha saúde.
A segunda perna da modernidade é a física de Newton, que
imaginou o universo como um grande relógio, sendo Deus o relo-
joeiro. Como os nossos relógios, o universo possui uma mecânica
interna. No meu relógio os ponteiros coincidem com o movimento
do tempo pela razão dessa mecânica interna. Não preciso dar cor-
da a cada minuto no meu relógio, nem preciso mover com o dedo
os ponteiros para que haja essa coincidência. Então Newton con-
cluiu que o universo também possui leis endógenas: quanto mais
conseguimos decompor as coisas em seus mecanismos internos,
melhor vamos conhecer essas coisas. Resultado: toda a ciência da
264 © Antropologia, Ética e Cultura

modernidade é uma ciência da decantação, da decomposição, da


fragmentação. Ninguém escapa disso. A física se tornou a rainha
das ciências porque conseguiu provar que os fenômenos não acon-
tecem por acaso, mas possuem leis. Podemos não entender essas
leis. Os índios pueblos, no México, acreditavam, antes da chegada
de Colombo, que o Sol nascia graças aos ritos que eles promoviam
todas as madrugadas. Acredito que os índios pueblos nunca te-
nham se arriscado a dormir até mais tarde, com medo de o univer-
so ficar escuro. Newton acharia graça nessa história, porque ele
dizia: “Independentemente da minha vontade, o Sol vai nascer to-
dos os dias, pelo fenômeno da rotação da Terra”. No fim do século
17, um astrônomo inglês chamado Edmund Halley viu um cometa
cruzar os céus de Londres e passou a noite debruçado sobre sua
escrivaninha fazendo cálculos. No dia seguinte, reuniu a comuni-
dade científica e previu: “Dentro de 77 anos, aquele cometa, que
ontem à noite atravessou os céus de Londres, voltará a passar”.
Muitos acharam que Halley tinha ficado louco: como alguém, sem
nenhum instrumento capaz de captar o movimento dos astros, fe-
chado em sua casa, pode afirmar, com tamanha segurança, que
aquele astro brilhante vai voltar exatamente dentro de 77 anos?
Mas a comunidade científica o levou a sério e, efetivamente, em
1759, 77 anos depois (Halley já tinha morrido), o cometa que leva
hoje seu nome atravessou de novo os céus de Londres. Foi a gló-
ria da razão. Ou seja, se a razão é capaz de prever com tamanha
exatidão o movimento dos astros, é capaz de reequacionar todos
os problemas humanos. Aí vem o Iluminismo para dizer: o que não
é racional não é real. A religião, então, passou a escanteio total,
como pura superstição.

A natureza somos nós


A modernidade se construiu com a supervalorização da ra-
zão, com a capacidade de transformar o todo nas suas partes. Mas,
muitas vezes, vendo as árvores sem perceber a floresta. E, no fim
de cinco séculos de modernidade, qual é o saldo que temos? La-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 265

mentavelmente, não é dos mais positivos. É por isso que se fala


em crise da modernidade. Primeiro, graças ao avanço da ciência
e da tecnologia, temos hoje capacidade bélica para destruir o pla-
neta pelo menos 30 vezes e não chegamos à capacidade humana
de salvá-lo uma vez. Lamentavelmente, temos hoje 5,8 bilhões de
pessoas no planeta, das quais cerca de 2 bilhões vivem abaixo da
linha da pobreza. Esse é um primeiro fenômeno.
Segundo a FAO (Food and Agricultural Organization), temos
produção de alimentos suficiente para 10 bilhões de pessoas e,
conforme a própria FAO, o Brasil é um país privilegiado porque é
o único que tem potencial para colher três safras por ano. Com di-
mensões continentais, não é afetado por nenhuma catástrofe na-
tural. Não tem vulcão, não tem deserto, não tem terremoto, não
tem furacão, não tem geleiras, não tem zonas inabitáveis, como a
China, que é apenas 1 milhão de quilômetros quadrados maior do
que o Brasil, mas é habitável só em 16% do território.
Outro fenômeno: não superamos os conflitos regionais in-
ternacionais. Ainda somos uma humanidade guerreira. E há tam-
bém o fenômeno da destruição do meio ambiente. A razão instru-
mental, característica da modernidade, fez com que, ao usarmos a
natureza, nós a destruíssemos. Só que a natureza se vinga. Não é
que a natureza se vinga porque está raivosa, mas porque não há,
ao contrário do que supunha a modernidade, diferença entre nós
e a natureza. Nós somos seres da e na natureza, fazemos a nature-
za, fazemos a nós e ao nosso próprio corpo. E agora começamos a
sentir os reflexos disso.
Mais: a modernidade está em crise porque as quatro gran-
des instituições, nas quais ela se apoiou, estão em crise: família,
Igreja, escola e Estado. Sabemos que os modelos antigos não estão
vigorando mais. Alguns, numa atitude saudosista, querem ainda
manter ou trazer à atualidade aquilo que foi bom no passado. Não
é fácil, porque há novos paradigmas sendo forjados nisso que hoje
os filósofos já chamam de pós-modernidade.
266 © Antropologia, Ética e Cultura

A crise da família é a crise das relações de gênero – ou seja,


uma vez que o patriarcalismo começa a fracassar, a emancipação
feminina se afirma e novos papéis sexuais, como o dos homosse-
xuais, se desclandestinizam. Isso nos obriga a encarar a questão da
família e das relações de gênero por uma outra ótica. Segundo, a
Igreja. As igrejas históricas contavam com o anteparo do consenso
social. Isso não acontece mais. Vivemos numa sociedade pluralista,
uma sociedade onde as crenças são tão variadas quanto possível
e não têm mais força para se impor como uma espécie de teologia
com anteparo estatal, como aconteceu no período medieval ou
mesmo na ascensão dos Estados modernos na Europa, que sus-
tentaram o protestantismo. Martinho Lutero só não foi parar na
fogueira da Inquisição graças aos príncipes europeus, que estavam
interessados em romper com a tutela do Vaticano. E os Estados
europeus só adquiriram autonomia porque buscaram legitimação
religiosa no protestantismo nascente. Tivesse o papa assegurado
sua hegemonia, Lutero teria ido para a Inquisição, como os albi-
genses e tantos outros. A hegemonia católica sobre a Europa teria
se mantido, e possivelmente o protestantismo, pelo menos naque-
le momento, não teria se expandido com a força que teve.
Hoje, essa crise é provocada pelo fenômeno da globalização,
que faz com que o mundo se transforme numa pequena aldeia, de
tal maneira que as várias modalidades de crenças religiosas pos-
sam ser intimamente conhecidas por povos entre os quais elas não
têm raiz, como é o caso do budismo ou do islamismo.

Massa disforme
A escola está em crise, porque nada é mais cartesiano e
newtoniano do que a escola. Se os paradigmas da modernidade
entram em crise, a escola também entra em crise. E por que a es-
cola entra em crise? São Tomás de Aquino tem uma frase de que
gosto muito: “A razão é a imperfeição da inteligência”. Ou seja, a
inteligência vem de intus leggere (ser capaz de ler dentro). Há pes-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 267

soas analfabetas que são sumamente inteligentes. Inteligir uma


situação não depende propriamente de cultura, depende de sen-
sibilidade, de intuição, daquilo que a Bíblia chama de sabedoria.
E hoje constatamos que a escola nos torna cultos, mas não nos
torna necessariamente inteligentes. Passei 22 anos nos bancos
escolares, e a escola nunca tratou dos temas limites da vida, nun-
ca falou de experiências pelas quais passamos, se não por todas,
pelo menos pela maioria, nunca falou de doença, nunca falou de
fracasso, nunca falou de ruptura de laços afetivos, nunca falou de
dor, nunca falou de morte, nunca falou de sexualidade e, se fa-
lou de religião, não falou de espiritualidade. Ou seja, temos uma
escola tipicamente cartesiana, barroca. É como aqueles anjos das
igrejas de Minas Gerais e da Bahia, que só têm cabeça, o resto é
uma massa disforme. Nossa escola cartesiana acha que devemos
saber como são os conceitos da física, mas saímos da escola sem
saber consertar automóvel, televisão, geladeira, pregar um botão
na camisa, cozinhar um ovo, fazer café. Não somos preparados
para prestar primeiros socorros, para fazer coisas absolutamente
triviais do nosso cotidiano, porque a escola separa a cabeça das
mãos, não nos abarca na totalidade, na formação do ser como tal
para a vida. Ela dá instrumentos de compreensão e modificação
da natureza, que constituem a cultura, mas não propriamente de
uma interação com a natureza.
Por fim, o Estado. O Estado hoje, devido à globalização e ao
papel que os grandes conglomerados empresariais desempenham
no mundo, é parceiro de um projeto de desenvolvimento, mas não
é mais o fator determinante desse projeto. A transnacionalização
da economia rompe com as fronteiras nacionais, questiona o con-
ceito de soberania e traz um momento de crise. Isso porque a glo-
balização é inevitável, os meios de comunicação transformaram o
mundo numa pequena aldeia. Minha avó, em São João Del Rei, via
pela janela de sua casa o mundo se transformar a cada dez ou 15
anos. Hoje, a janela pela qual vemos as mudanças do mundo é a
telinha da televisão. Se para a minha avó as mudanças levavam dez
268 © Antropologia, Ética e Cultura

anos, para nós elas acontecem em dez segundos. Essa aceleração


das mutações mexe profundamente com nossos valores tradicio-
nais e tem reflexos sérios do ponto de vista dos paradigmas da
modernidade.
Quais são os setores mais atingidos por essa crise? Na mo-
dernidade, falava-se em desenvolvimento. Encíclicas papais e po-
líticos falavam disso. O conceito de desenvolvimento tem uma di-
mensão ética. Hoje a palavra é modernização, cujo conceito tem
uma dimensão mais tecnológica, no qual nem sempre se inclui o
bem-estar de todos, como no conceito de desenvolvimento. Aliás,
já não existem projetos de países ricos para o desenvolvimento de
áreas pobres do mundo. Falávamos em produção. Hoje falamos
em especulação. O mundo virou um cassino global (está aí a cri-
se das Bolsas), em que dinheiro rende dinheiro. Há mais dinheiro
virtual do que real. Falávamos em trabalho; o trabalho era, na mo-
dernidade, o fator de identificação do ser humano. Hoje, fala-se
de mercado, quem está e quem não está no mercado. A Bíblia, lida
por certa ótica, diz que o trabalho é um castigo: “Comerás o pão
com o suor do teu rosto”. Viviane Forrester, em Horror econômico,
lembra que, hoje, o trabalho é uma bênção: “Feliz de quem tem
um trabalho”.
Minha geração deve ter sido a última que teve o luxo de ter
vocação. A gente chegava aos 15 anos perguntando: “Qual será a
minha vocação?” É muito difícil achar um jovem, hoje, que este-
ja terminando o curso colegial e fale em vocação, tenha idéia de
qual é a sua vocação. Trabalho na Pastoral Operária. Há dez anos,
via muitos operários dizerem: “Eu tenho profissão”. No meio ope-
rário há uma diferença entre aquele que tem profissão e o que
não tem. Hoje, profissão também está ficando um luxo. A questão
é a seguinte: como faço para ter um emprego? Antônio Ermírio
de Moraes, certo dia, disse na televisão: a empresa dele tinha, há
dez anos, 62 mil funcionários, hoje tem 40 mil. Quando cheguei
a São Bernardo do Campo (SP), em 1980, a Volkswagen tinha 45
mil funcionários e fabricava 750 veículos por dia. Hoje produz 1,25

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 269

mil diariamente, com 25 mil funcionários. A Benetton inaugurou


em Milão, na Itália, uma máquina de confecção automatizada e,
no dia seguinte, despediu 3 mil funcionários. Estamos vivendo um
processo angustiante de avanço tecnológico sem uma reflexão,
não digo nem política, porque a questão é muito mais ampla, uma
reflexão sobre a questão do trabalho, do emprego, das condições
sociais geradas pela globalização. Eu faria até um paralelo: é como
querer ganhar a guerra. Você pode ganhar a guerra com a bomba
atômica, como afinal se ganhou a Segunda Guerra em Hiroshima
e Nagasaki. O custo humano, porém, é muito grande. Será que ele
não pode ser evitado? Será que não podemos ganhar a guerra do
desenvolvimento tecnológico e científico com menos custo para
as pessoas?

Educação televisiva
Falávamos em bem comum. Essa expressão está sumindo até
dos documentos da Igreja. Hoje, falamos em tecnologia de ponta.
Falávamos em nação, hoje falamos em globalização. Falávamos em
cultura. Hoje, de tal maneira os veículos de cultura estão atrelados
à publicidade que estamos tendo menos cultura e mais entrete-
nimento. A sensação que tenho, depois de passar uma semana
vendo a televisão brasileira, é de ter ficado mais pobre espiritual-
mente, sobretudo no domingo, que é o dia nacional da imbeciliza-
ção geral. Na segunda-feira, a gente tem ressaca moral, precisa de
um tempo para se refazer, depois de ver o ser humano sendo tão
degradado, ridicularizado e ainda com um toque de humor.
Vivemos uma esquizofrenia social. De um lado, queremos
defender os nossos valores religiosos, morais etc., e, de outro, te-
mos, dentro de casa, uma pessoa da família, eletrônica – a telinha
–, que não foi convidada, não pede licença, não dialoga e nos im-
põe valores que nem sempre conferem com os nossos. É a história
da minha cunhada, que me disse: “Betto, fui aluna de colégio de
freira, por isso paguei muitos anos de análise para me livrar da
idéia de que tudo é pecado. Espero que meus filhos, quando adul-
270 © Antropologia, Ética e Cultura

tos, escolham se querem ou não ter uma religião, mas não preten-
do ensinar-lhes nenhuma religião”. Eu lhe disse: “Você, como mãe,
tem todo o direito de fazer essa opção. Mas, como pessoa, não
tem o direito de ser ingênua. Ou você educa ou a Xuxa educa. Não
pense que existe neutralidade. Se você não educar, a televisão vai
ensinar a seus filhos o que é bem, o que é mal, o que é certo, o que
é errado, o que é justo, o que é injusto”. É uma questão de opção.
Falávamos em valores, hoje falamos de sucesso. E introduzi-
mos cada vez mais na linguagem e na prática a idéia da competiti-
vidade. Às vezes, faço treinamento de recursos humanos em em-
presas, e os treinamentos são interessantes porque não se trata de
fazer palestras, trata-se de captar o pano de fundo da cultura da
empresa. Um dos detalhes mais interessantes é o seguinte: os fun-
cionários de uma mesma empresa praticam entre si a competitivi-
dade. A idéia da competição com outras empresas é internalizada
de tal maneira, que a coisa emperra porque a competitividade está
lá dentro, onde deveria haver cooperação. A competitividade vai
entrando de tal forma que as pessoas já não sabem estabelecer
um nível mínimo de cooperação.
Falávamos de realidade, hoje falamos de virtualidade. A re-
alidade virtual é positiva, do ponto de vista da interação no pla-
neta, que se transforma numa pequena aldeia, mas perigosa do
ponto de vista da abstração dos valores. Em outras palavras, do
meu quarto no convento no bairro das Perdizes, em São Paulo,
posso ter um amigo íntimo em Tóquio, mas não quero nem sa-
ber o nome do vizinho de porta. Então sou um amigo virtual. Há
até o sexo virtual, por computador, que está trazendo um proble-
ma para a teologia moral: o adultério virtual. Sofremos o risco de
entrar numa concepção de virtualidade que nos leva a falar em
cidadania e continuar jogando lata de refrigerante e cerveja pela
janela do carro, invadindo a faixa de pedestre etc. Vamos criando
toda uma linguagem que é virtual e não tem incidência no real. Na
vida real, ficamos cada vez mais agressivos, mais violentos, mais
competitivos.

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 271

Falávamos em história. Esse é outro fator da crise da moder-


nidade: estamos perdendo a idéia do tempo como história. Daí
a dificuldade das novas gerações de construir um projeto. Nossa
geração foi educada pela literatura e não pela televisão. Somos a
última geração literária da humanidade. O que isso muda? Quem
foi educado pela literatura percebe o tempo como passado, pre-
sente e futuro, como projeto. A televisão rompe a historicidade do
tempo e introduz a circularidade. Ao mesmo tempo que vejo na
metade da tela Ayrton Senna vivo, na outra metade vejo-o morto.
Então, na cabeça das novas gerações não há história. Daí a dificul-
dade de seu filho ou de seu neto fazerem projeto. A geração deles
é tudo “aqui e agora”. Por que hoje não se fala em QI, mas em inte-
ligência emocional? Porque muitas empresas constatam que seus
executivos, do ponto de vista do QI, são geniais, mas são garotões,
emocionalmente infantilizados, e isso afeta profundamente sua
relação com as pessoas, na medida em que hoje há um processo
de perenização da juventude, o que é saudável de um lado e peri-
goso de outro.
As pessoas malham muito o corpo, mas esquecem de malhar
o espírito. Não tenho nada contra o fato de malhar o corpo. Mi-
nha preocupação é a seguinte: como é que se malha o espírito? A
cidade de Ribeirão Preto (SP), em 1960, tinha seis livrarias e duas
academias de ginástica; hoje tem 60 academias de ginástica e seis
livrarias. Como se resolve isso?
Por fim, estamos perdendo, na crise da modernidade, a idéia
da contextualidade das coisas, ou seja, que tudo está relacionado
com tudo – que é o novo paradigma holístico. Não há eu de um
lado e a natureza de outro. Todos somos frutos da evolução do
universo. Cada um de nós tem 15 bilhões de anos. Foram preci-
sos 15 bilhões de anos de evolução para que o universo um dia se
singularizasse na sua pessoa. Enquanto não existíamos, enquanto
não existia o ser humano (a menos que haja vida inteligente em
outro planeta. Até acredito que sim, mas tendo captado nossas
transmissões de TV eles chegaram à conclusão de que na Terra não
272 © Antropologia, Ética e Cultura

há vida inteligente, e, então, não convém se aproximar, não vale a


pena o esforço), o universo era cego, não sabia que era belo. Então
o universo criou a nós, que somos seus olhos e sua mente. Atra-
vés de nós o universo sabe que é belo e, por isso, o chamamos de
cosmo, que tem a mesma raiz grega da palavra “cosmético”, aquilo
que traz beleza.

Um sentido para a vida


Esse paradigma holístico que a pós-modernidade procura
reatar – os gregos de certa maneira tinham isso – vai nos dando a
dimensão de que, na natureza, há mais cooperação do que segre-
gação, do que seleção, como o neodarwinismo tanto defende. E na
sociedade também esse processo de cooperação deve prevalecer
sobre a competição.
A holística, hoje, nasce da emergência do fenômeno ecológi-
co, mas se estende para o campo social e filosófico. Dentro disso,
há uma percepção das pessoas a respeito dos limites da razão e há
um certo cansaço do racionalismo. Isso leva a um fenômeno novo,
que é a emergência da espiritualidade. Hoje, em qualquer livraria
de qualquer país, a literatura religiosa, esotérica e espiritualista
tem uma grande aceitação. Isso significa que as pessoas estão fi-
cando mais religiosas? Não necessariamente. É que as pessoas es-
tão ficando saturadas de tanto racionalismo. Elas estão buscando
algo que o consumismo não oferece, um sentido para a vida. Ou
seja, não posso encontrar o sentido para minha vida no automóvel
novo que comprei ou na lata de cerveja que bebo. E a modernida-
de, com o excessivo racionalismo e o processo de secularização, foi
clandestinizando a questão do sentido: por que vivo, qual a razão
desta minha única experiência de ser no mundo, neste breve espa-
ço dos meus anos de vida? A sede de sentido é que explica a busca
desenfreada de religiosidade. Somos o único ser aberto à trans-
cendência, o único ser que tem fome de Deus. Um cavalo está na
sua plenitude eqüina; uma samambaia, no canto da sala, deve nos
olhar com muita pena, dizendo: “Coitados, ainda têm que traba-

Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO


© Anexo 273

lhar, viver emoções atribuladas. Eu estou aqui na minha plenitude


vegetal, preciso apenas de um pouco de água e sol”.
É aí que entra o desafio que se apresenta para nós hoje:
como resgatar a espiritualidade? Quando falo em espiritualida-
de, falo em algo que vai além das religiões institucionais. Estou
falando em como resgatar a subjetividade humana, como resga-
tar os valores da subjetividade, como voltar a uma cultura onde
o trabalho, o pragmatismo ceda lugar à contemplação, à reflexão,
à sabedoria, ao aprofundamento dos valores. Como restabelecer
vínculos humanos que estão se perdendo com a aceleração da tec-
nologia? Às vezes brinco dizendo que sonho escrever uma peça de
teatro sobre uma família que vive numa casa no campo, onde o
acesso à cidade mais próxima não é fácil. De repente, a luz acaba
nessa casa e, por uma semana, ninguém pode ver televisão. O que
aconteceria nessa família obrigada pela circunstância a dialogar
entre si? É capaz de o pai falar para a filha: “Mas, moça, como é
que você se chama mesmo?” Enfim, isso para mostrar que há uma
sede de recuperação desses valores. Se não abrirmos esses espa-
ços, corremos o risco de tê-los como núcleos fundamentalistas de
retrocesso. Quando as coisas não encontram espaço na cidade, na
polis, elas surgem, como contestação, de uma maneira fundamen-
talista, sectária, perigosa (disponível em: <http://www.miniweb.
com.br/cidadania/Temas_Transversais/sentido_vida.htm>. Acesso
em: 12 ago. 2010).
274 © Antropologia, Ética e Cultura

ANEXO 2
EU ETIQUETA

Carlos Drummond de Andrade


Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,

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© Anexo 275

Trocá-la por mil, açambarcando


Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou – vê lá – anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
276 © Antropologia, Ética e Cultura

De ser não eu, mas artigo industrial,


Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.
Fonte: disponível em: <http://www.pensador.info/frase/MjAyODM0/>. Acesso em: 9 ago. 2010.

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