David Har- vey. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: An- nablume, 2005, 251 pp.
Maria Amelia Costa
Fundação Oswaldo Cruz <ailema@fiocruz.br>
David Harvey, geógrafo inglês, surgiu no cenário
intelectual da disciplina geográfica na década de 1960. Sua primeira contribuição científica referente, em particular, a modelos e teorias dos sistemas e seus impactos em geografia foi publicada em Londres, 1969, sob o título “Explicação em geo- grafia”. Contudo, a experiência efetiva com a tos em trabalhos de diversos autores, tanto na cátedra de geografia ocorreu a partir de sua in- América (Paul Baran, Paul Sweezy) como na Eu- serção nos quadros da Universidade Johns Hop- ropa (Maurice Dobb, E. P. Thompson, Raymond kins, em Baltimore, no Estados Unidos, de 1969 Williams). Através da recuperação e da análise a 1987. Posteriormente, retornou à Inglaterra das obras clássicas, remetendo-as a releituras para ocupar a cátedra Mackinder, em Oxford, que respeitassem as diferentes visões de mundo ministrando cursos esporádicos na Johns circunscritas à época de sua elaboração, foi pos- Hopkins. sível desenvolver propostas. Contudo, essa re- Todavia, foram os debates travados nos visitação atentou para o risco de estabelecer lei- meios acadêmicos a partir dos anos 70 do sé- turas anacrônicas e reacionárias, inclusive com culo XX que possibilitaram uma reviravolta em o cuidado de evitar a construção de simulacros sua produção científica. Sempre afeito a temas dogmáticos que, por vezes, apenas restabelece- que extrapolassem as fronteiras disciplinares da ram antigas fórmulas em novas paisagens. geografia, manteve interlocução constante com De certa forma, as mudanças na base tecno- diversos campos das ciências humanas e natu- lógica de produção a partir de meados do século rais, prática desenvolvida durante os anos em passado e as transformações no plano político- que esteve em Baltimore. Pode-se afirmar que social nas duas últimas décadas, sob interferên- as duas primeiras publicações – “Explicação em cia direta do capitalismo, influenciaram a pro- geografia” e “Justiça social e a cidade”, esta de dução acadêmica de contingente considerável 1973 – diferenciam-se das que produziria a par- de intelectuais, inclusive geógrafos como David tir de então. Com o objetivo de estabelecer uma Harvey, interessados nos debates contempo- teoria da relação sociedade-espaço, com base râneos. Para tanto, travar diálogos sobre essas nos ensinamentos da teoria social de Marx, de- questões foi imprescindível para explicitar a senvolveu alguns estudos que resultaram em nova ordem mundial, suas conseqüências locais um número considerável de publicações. e globais, seus reflexos no cotidiano da vida A constante preocupação em aprofundar a urbana, o boom do capital financeiro, as mu- análise das características e das contradições danças paradigmáticas com a incorporação da do modo capitalista de produção e suas impli- acumulação de valor na economia globalizada cações nas relações de classe, em detrimento – enfim, temas da dita ‘pós-modernidade’. Na de um outro caminho – o socialismo –, fez com atualidade, é a partir dessa temática que se as- que Harvey se debruçasse sobre os textos mar- sentam as reflexões e os escritos de David Har- xistas clássicos, o que lhe possibilitaria novos vey. Fundamentalmente, com a preocupação de insights. Suas inquietações se pautavam, princi- formular pressupostos metodológicos que re- palmente, por duas razões: lacionem concepções marxistas do Estado, das classes sociais, entre outras. “(...) em primeiro lugar, entender por que Neste livro, A produção capitalista do espaço, essa doutrina [marxista], tão denegrida e essa contribuição se consolida atendendo a certa menosprezada nos círculos oficiais do mun- cronologia histórica do pensamento da geografia do de fala inglesa, podia ter um apelo tão ao longo das três últimas décadas do século XX. grande entre aqueles que lutavam ativa- A obra, composta por oito capítulos – sete deles mente pela emancipação em todas as outras apresentando uma coletânea de textos publica- partes; em segundo lugar, para verificar se dos desde 1975 até 2001 em conceituadas revis- uma leitura de Marx poderia ajudar a esta- tas internacionais –, inicia-se com uma entrevis- belecer uma teoria crítica da sociedade, pa- ta e conta também com prefácio e apresentação ra abarcar e interpretar os conflitos sociais que pormenorizam desde a trajetória acadêmi- que culminaram com o alto drama político ca do autor, sua produção intelectual, até suas desenrolado entre 1967 e 1973” (p. 12). principais formulações e propostas teórico-meto- dológicas. Essas problemáticas iniciais foram vitais pa- No primeiro capítulo, “A reinvenção da Geo- ra instigar o autor a percorrer o campo teórico grafia: uma entrevista com os editores da New da cultura e do pensamento marxistas e cons- Left Review”, dialoga com seus editores, que tatar que eles ainda incitavam questionamen- estruturam perguntas que possibilitam ao leitor perceber sua trajetória. A partir dessa panorâmi- to acerca das crises e contradições inerentes ao ca, o capítulo avança com questões inicialmente capitalismo discutidas no segundo capítulo. de cunho cronológico, tecendo como numa carta Contudo, neste caso em especial, ele sinaliza o geográfica as coordenadas de sua vida profissio- “ajuste espacial” como categoria de investiga- nal, acadêmica e de sua produção científico-li- ção vital para se analisar essas características terária. A seguir, uma seqüência de perguntas do modo capitalista de produção, a partir de com um perfil mais teórico e conceitual permite propostas clássicas desenvolvidas por Hegel ao leitor vislumbrar a que orientação político-fi- (Filosofia do Direito), Von Thünen (Estado isola- losófica Harvey se filia, iluminando as modifica- do) e Marx (O capital). ções presentes em suas obras através do tempo e No quinto capítulo, “A geopolítica do ca- no espaço. Além disso, possibilita ao autor apre- pitalismo”, publicado pela primeira vez na sentar parceiros e interlocutores do campo da geo- revista Social relations and spatial structures, grafia, da antropologia e da economia. edição de 1981, Harvey chama a atenção para No segundo capítulo, “A geografia da acu- a permanente necessidade das forças capitalis- mulação capitalista: uma reconstrução da teoria tas de implementar a circulação da produção, marxista”, texto publicado pela primeira vez fomentando a teoria do “ajuste espacial” como na revista Antipode, edição de 1975, iniciam-se estratégia para manter a condição desigual en- as reflexões conceituais onde o autor estabelece tre as economias avançadas e aquelas que são algumas categorias de análise para tal estudo. consideradas não avançadas ou mesmo as não- Nessa edição, introduzem-se questões acerca da capitalistas. Para isso, inclui em seu trabalho as teoria marxista da acumulação capitalista apre- proposições defendidas por Schumpeter a res- sentando uma problemática muito cara ao pen- peito da “destruição criativa” promovida pelas samento da geografia contemporânea: a relação fases de crise do capitalismo, que possibilitam entre essa acumulação e a idéia de supressão do o surgimento de inovações tecnológicas como espaço em favor da expansão do tempo. forma de superação permanente. Harvey identifica no modo capitalista de pro- O sexto capítulo, uma edição de 1989, com dução algumas barreiras por ele mesmo produzi- texto originalmente publicado na revista Geogra- das que promovem as crises que, por outro lado, fiska Annaler, recebeu o título “Do administra- são necessárias para o seu próprio desenvolvi- tivismo ao empreendedorismo: a transformação mento, apresentando permanentemente aspectos da governança urbana do capitalismo tardio”. de destruição e preservação. Essas contradições Neste trabalho, o autor discute o papel dos go- inerentes ao capitalismo promovem a dinâmica vernos que têm assumido para si um perfil mui- da circulação, cuja principal questão é o tempo to mais empreendedor do que administrador; de redução da circulação do capital – por isso chama a atenção que a opção por um Estado os investimentos nas comunicações e nos trans- empreendedor já se verifica em economias ca- portes, centrada preferencialmente no comércio pitalistas avançadas desde as décadas de 1970 e exterior, viabilizando a evolução da formação so- 1980, em oposição ao papel administrativo que cial capitalista para outras fronteiras. perdurou até a década de 1960. Observa que es- O terceiro capítulo, com texto publicado pela sas ações são postas em prática principalmente primeira vez também na Antipode em 1976, rece- através de conselhos locais, inaugurando o vín- beu o título “A teoria marxista do Estado”. Nele o culo entre os setores público e privado, e abor- autor desenvolve uma extensa análise sobre o Es- da os efeitos dessa relação no empreendedoris- tado na teoria marxista. Fundamentalmente, pro- mo urbano e a “autonomia relativa”. põe uma crítica ao modelo de Estado como produ- No sétimo capítulo, “A geografia do poder to da construção da democracia social burguesa. de classe”, publicado pela primeira vez em So- Destaca, ainda, que o Estado enquanto entidade cialist Register, edição de 1998, Harvey recupe- não se estrutura meramente como “coisa” e sim ra o “Manifesto comunista” de 1948 e debate como “lugar” de reunião de diversas instituições. acerca das contribuições de Marx e Engels. Tem Já no quarto capítulo, “O ajuste espacial: como principal questão ampliar as possibilida- Hegel, Von Thünen e Marx”, presente na edi- des de se perceber como as relações burguesas ção de 1981 da Antipode, o autor apresenta três se ocuparam do espaço local e globalmente e teorias explicativas e sugere um aprofundamen- como as resistências se diferenciam muito pou- co quanto à exploração das forças de trabalho. Discute, também, a proximidade entre as evi- dências contidas no Manifesto e aquelas en- contras em sociedades globalizadas a partir da dinâmica do ajuste espacial. E, finalmente, o oitavo capítulo, “A arte da renda: a globalização e transformação da cul- tura em commodities”, preparado para a Con- ference on Global and Local, realizada na Tate Modern, em Londres, 2001, fala da possibilida- de de se transformar em renda qualquer forma de serviço ou mercadoria que seja singular, de- vido a sua condição de exclusividade, escassez ou raridade. Além disso, desenvolve intensa re- flexão sobre a relação entre governança urbana e empreendimentos que objetivem a obtenção de rendas monopolistas, fazendo com que as estru- turas administrativas locais patrocinem investi- mentos que viabilizem vantagens monopolistas ao capital financeiro, gerando sinergias satisfató- rias para o processo de urbanização. Sem dúvida alguma este livro reflete o nível e a maturidade em que se encontra a disciplina geografia, outrora esquecida e marginalizada das discussões acerca das transformações ocorridas na sociedade contemporânea. E, principalmente, possibilita ao leitor reconhecer as contribuições do geógrafo David Harvey nessa (r)evolução, pre- sentes nos diferentes momentos de sua produção acadêmico-científica ao longo dos últimos anos.